UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO ......Isso mesmo: vida! Perfeita cisão entre o antes...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
FERNANDA LEONEL MACHADO
TESSITURA DA INDIVIDUAÇÃO: COMO O ALUNO A OFICIAL DA ACADEMIA DE POLÍCIA
MILITAR COSTA VERDE SE TORNA O QUE É
CUIABÁ-MT 2016
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FERNANDA LEONEL MACHADO
TESSITURA DA INDIVIDUAÇÃO: COMO O ALUNO A OFICIAL DA ACADEMIA DE POLÍCIA
MILITAR COSTA VERDE SE TORNA O QUE É
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Linha de Pesquisa Cultura, Memórias e Teorias em Educação.
Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro
Cuiabá-MT 2016
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Ele parece escrito na linguagem do vento que dissolve a neve: nele há
petulância, inquietude, contradição, atmosfera de abril, de maneira
que continuamente somos lembrados tanto da proximidade do
inverno como da vitória sobre o inverno, a qual virá, tem de vir,
talvez já tenha vindo...
(NIETZSCHE, GC, Prólogo, 3)
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DEDICATÓRIA
À família Leonel. Além do compartilhamento de DNA, são as pessoas que
ampararam meu crescimento, contribuindo com as mais belas vivências de amor e amizade,
minha família!
Em especial a meus avós, Sebastiana Dias Machado (in memorian) e Messias Leonel
Machado, símbolos de um amor imenso que sempre supriram todas as ausências. Com eles
descobri a importância e o prazer dos estudos.
À minha mãe, Maria Cláudia Leonel Machado, lutadora solitária na missão de me
fazer uma pessoa de direitos – Obrigada por sempre dizer que eu era capaz!
A meu companheiro e melhor amigo, Raimundo Francisco de Souza. Pela força e
compreensão nos momentos difíceis, aqueles dias em que me perdia na complexidade dos
estudos desta pesquisa. Meu teto, meu chão, meu alicerce – proteção!
Aos meus amores: Lucas Francisco, Davi Fernando e Gabriel Felipe. Inspiração e
alegria, razões do meu dia a dia. Meus filhos!
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Silas Borges Monteiro, pela orientação paciente e amiga. Por
abrir frestas a outros horizontes, possibilitando um crescimento a partir de mim. Um
crescimento que, no princípio, se fez dor e desfazimento, depois puro prazer. Um tom de voz
que não se altera, mas reverbera com amplitudes não imagináveis, lecionando a
argumentação, a cientificidade, a escrita, a filosofia e a educação. Ofereceu-me
possibilidades outras e um olhar diferente para fora do centro. Presentear com possibilidade
é favorecer o livre arbítrio. Obrigada por não me oferecer prisões e métricas, mas
multiplicidades.
À Professora Doutora Emília Carvalho Leitão Biato, pelas valiosas contribuições
quando do exame de qualificação. Ofereceu-me um mapa, tal qual fio de Ariadne para me
conduzir no labirinto textual. Assim, pontuando assertivamente minhas incongruências,
possibilitou a segurança necessária na conclusão do texto. Uma palavra expressa sua
atuação: carinho!
Ao Professor Doutor Gabriel Rodrigues Leal, Major da Polícia Militar do Estado de
Mato Grosso, pela imprescindível cooperação no ato de prover a tecedura do liame dos
meus estudos à realidade de nossa Instituição. Conselheiro importante, chamando à ordem
a necessidade de um texto coerente ao referencial teórico, sobretudo fazendo justiça à
subversão da filosofia francesa aqui suscitada. Sua trajetória me inspira.
À Professora Doutora Michelle Tatiane Jaber da Silva pela atenção que sempre
dedicou aos meus textos nas disciplinas do mestrado e as contribuições necessárias e
importantes neste caminho de estudo.
À Professora Doutora Marcia Helena de Moraes Souza por ser voz apaziguadora e
diretiva, contribuindo para o fluir do texto e das ideias. Acalentadora de saberes, mãos e
olhos gentis que transmitem a experiência.
Ao Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, aqui fazendo
reverência especial ao Programa de Pós-Graduação em Educação e todos seus integrantes
técnicos. Meu carinho especial aos Professores e às Professoras, pelos ensinamentos
reveladores.
A Alessandra Abdalla pela “leitura amiga”. Em momentos onde a inspiração se
esvaia, sua voz-escrita sinalizava a possibilidade de um sopro a mais.
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A minha parceira de desfazimentos, Aline Campos. Juntas trilhamos este
(des)caminho, procurando não encontrar certezas, mas produzir escrituras neste ato de
pesquisar-filosofar. Sem você a dor teria sido imensa! Obrigada por dividir comigo as
angústias e incertezas, também os momentos de alegria e fascínio pelo conhecimento
adquirido.
Ao amigo Major PM Alessandro Souza Soares, companheiro de Curso de Formação
de Oficiais, que alçou vôos em outras terras fazendo da aventura do conhecimento sua
razão. Colaborador entusiasmado desta pesquisa com palavras de incentivo e apoio direto.
A duas mulheres policiais militares que me inspiraram a estudar minha Instituição:
Ten Cel PM Diva Maria Oliveira Mainardi e Ten Cel PM Adriana de Souza Metello.
A meus comandantes, Cel PM Wilson Batista e Cel PM Rachid Mohamed Rachid
Hassoun, por terem entendido e apoiado esta pesquisadora, colaborando para que pudesse
cumprir os créditos do programa.
Ao Grupo de Pesquisas Estudos de Filosofia e Formação - EFF/UFMT. Nenhum
conhecimento seria produzido sem a mágica descoberta do descentramento e das
possibilidades que se engendram a partir das discussões e do pesquisar com filosofia.
A Diretoria de Ensino, Instrução e Pesquisa da PMMT e ao Diretor, à época, Cel PM
Ildomar Nunes Macedo, por ter autorizado a realização das Oficinas de Transcriação com os
Alunos a Oficiais, um gesto claro de que a cientificidade é valorizada pela Instituição.
A Academia de Polícia Militar Costa Verde, em especial ao Comandante, Ten Cel PM
Edson Benedito Rondon Filho, por ter me aberto as portas da Unidade Escola e contribuído
neste caminhar com suas experiências como Doutor em Sociologia.
Aos Alunos a Oficiais do ano 2015, Turmas: Cadete Fonseca, Barão de Melgaço e
Pascoal Moreira Cabral. Por emprestarem seu ânimo a esta pesquisa ao fazerem escritos de
suas vivências, com isso dando notícias de sua individuação. Estar com vocês falando sobre
polícia e policiais foi a parte mais linda desta pesquisa!
À Polícia Militar do Estado de Mato Grosso, minha casa desde 1999. Na esperança
de que este estudo possa contribuir para o reconhecimento das diferenças que permeiam e
movimentam a Instituição.
Agradeço a Deus pelas muitas bênçãos e por ter me favorecido com seu imenso
amor!
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RESUMO
Esta dissertação trata de uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em
Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, na área de
Educação e na linha de pesquisa Cultura, Memórias e Teoria em Educação. Tem como foco a
formação dos Alunos a Oficiais da Academia de Polícia Militar Costa Verde, através da escuta
das vivências cotidianas que compõe sua individuação, utilizando o método de investigação
otobiográfico, tendo como fundamento o trabalho de Monteiro feito a partir do conceito de
otobiografia de Jacques Derrida. Por este método, propõe-se a ouvir a vida escrita dos
participantes da pesquisa - alunos do primeiro, segundo e terceiro ano em formação no ano
de 2015 - que dão nome à própria história através de Oficinas de Transcriação. Os textos
produzidos, firmados em sua assinatura, no sentido derridiano, tem sua força no seu caráter
autobiográfico; revelam potências de vida, caminhos de vivências que tecem a individuação.
Sustenta-se aqui que um texto é sempre autobiográfico, havendo nele a assinatura de seu
autor, dando notícias de suas vivências a partir de seus escritos. Com a metáfora do
labirinto, busca-se ouvir escritos identificando as potências de vida neste membranoso,
arenoso e tortuoso caminho que conduz e compõe a tessitura da individuação. As
ressonâncias dos textos produzidos dão notícias de que a tecnicidade e formalidade
presente no ensino policial militar não impedem o desenvolvimento das individualidades,
mas, à sua maneira produzem diversas formas de ser Oficial da Polícia Militar de Mato
Grosso.
Palavras-chave: Investigação otobiográfica; policiais militares; vivências; individuação;
formação.
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ABSTRACT This dissertation is a survey conducted in the Postgraduate Diploma Program in Education
from the Institute of Education of the Federal University of MatoGrosso, and the research
concentration in Culture, Memories and Theory in Education. It focuses on the training of
students from the State Military Police Academy Costa Verde by listening to their everyday
experiences that make up your individuation, using the otobiographicresearch method,
taking as baseline Monteiro’s work done from the concept of otobiography of Jacques
Derrida. By this method, it is proposed to hear the life writing of research participants - who
were first, second, and third-year-students in the commissioned officer training program in
2015 - which give name to its own history through Transcreation workshops. The produced
written texts, shaped in their signature, in the Derridean sense, have its strength in its
autobiographical character; reveal life powers of experiences, ways of experiences that
shapes individuation. It is argued here that a text is always autobiographical, with its author
signature, reporting experiences from their writings. With the labyrinth metaphor, we seek
to hear written identification oftheir living powers in this membranous, sandy and tortuous
path that leads and composes the fabric of individuation. The resonances of the produced
written texts give news that the technicality and formality presented in the State Military
Police Education System do not prevent the development of individualities, but, to their
pathways produce different ways of being a Mato Grosso State Military Police Officer.
Keywords: Otobiographical Research; Military Police; Experiences; Individuation; Formation.
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Notação Bibliográfica
Foi adotada, para citação das obras de Nietzsche, a convenção proposta pela edição
Colli/Montinari das Obras Completas. Siglas facilitam a leitura das referências, que são as
seguintes:
NT - O nascimento da tragédia
HH I - Humano, demasiado humano (vol. 1)
AS - Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra
A - Aurora
GC - A gaia ciência
ZA - Assim falou Zaratustra
BM - Para além de bem e mal
GM - Genealogia da moral
CI - Crepúsculo dos ídolos
EH - Ecce homo
EE - Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino
Na citação, o algarismo arábico que segue a sigla indica o aforismo, a seção ou
parágrafo do livro.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO - o EFF/UFMT como caminho ............................................................................ 14
Capítulo I - O MÉTODO ............................................................................................................. 20
LABIRINTO METODOLÓGICO – das forças ativas e afirmativas presentes na pesquisa. ..... 21
- A tradição posta em questão ...................................................................................................... 21
- Teseu - Ariadne – Dioniso: as forças que habitam a pesquisa .................................................... 23
MÉTODO OTOBIOGRÁFICO - eis o labirinto! ........................................................................ 27
- Um primeiro olhar por entre as frestas ...................................................................................... 27
- Notações sobre a pesquisa ......................................................................................................... 28
FUNDAMENTAÇÃO DO MÉTODO ......................................................................................... 32
- Assinatura.................................................................................................................................... 33
- Autobiográfico............................................................................................................................. 37
- Vivências ..................................................................................................................................... 38
- Escritura ...................................................................................................................................... 41
- Gesto Otobiográfico .................................................................................................................... 44
- Da relação com o emissor: uma pesquisa a muitas mãos. ......................................................... 46
INSTRUMENTO DA PESQUISA ............................................................................................... 47
- Caminhos como transcriação ...................................................................................................... 47
- “Minha Assinatura” - o movimento da Oficina de Transcriação ................................................. 48
Poesia e ficção: o ler-escrever em prática na acadêmica da Polícia Militar ................................. 50
Capítulo II - O ENSINO POLICIAL MILITAR ................................................................................. 55
EU CONFESSO! ...................................................................................................................... 56
HISTÓRICO LEGAL – as letras da lei que dizem da Polícia Militar ........................................ 57
RELATÓRIOS DA GENESE – Criação da Academia de Polícia Militar Costa Verde ................ 59
PODER DE POLÍCIA: entre a força e violência da lei. ............................................................ 61
O ENSINO DA HIERARQUIA E DISCIPLINA: pilares que assentam uma Instituição .............. 63
ADAPTAÇÃO E CONDICIONAMENTO – um estrangeiro em quarentena. ............................ 67
JOGADOS AO LABIRINTO – o (re)nascimento-morte no labirinto iniciático ........................ 72
CONDUTA DE REBANHO – um olhar crítico, prelúdio de um espírito livre? ........................ 76
PELO DIREITO A UMA ÚLTIMA QUESTÃO: há responsabilidade e autonomia na formação
policial militar? ..................................................................................................................... 83
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Capitulo III - A ESCUTA DAS VIVÊNCIAS:As personagens do ensino policial militar em Mato
Grosso ....................................................................................................................................... 89
LABIRINTO DA FORMAÇÃO: entre Teseu e Dionísio ............................................................ 90
ECOS DO LABIRINTO: vivências do cadete da APMCV ......................................................... 93
ALGUMAS OUTRAS RESSONÂNCIAS: ecos da pesquisadora .............................................. 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 102
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 108
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INTRODUÇÃO - o EFF/UFMT como caminho
É este o momento de apresentar as motivações desta pesquisa. Sou policial militar
há aproximados dezoito anos. Vida militar que iniciou ainda aos dezoito anos da juventude.
Isso mesmo: vida! Perfeita cisão entre o antes e agora.
Sou Oficial da Polícia Militar, formada na Academia de Polícia Militar Costa Verde no
ano de 2001. Parte de minha experiência profissional se deu no Centro de Formação e
Aperfeiçoamento de Praças Polícia Militar e sempre tive um estreito laço com a educação
policial militar. Percebo que a educação na Instituição sofre fortes influências das relações
humanas, entrecruzando a disciplina e a hierarquia, o ensino militar e as técnicas policiais.
Entrelaçada ao tecnicismo, entra em cena a pessoa, o policial militar que deve dar conta de
sua formação a partir dele mesmo e por entre as regras determinadas a este profissional.
De minha atuação na Corregedoria Geral da PMMT e da análise de situações que
evidenciam a falência dos ideais formativos sobre a padronização de condutas, sobreveio a
intenção de evidenciar outros elementos na formação policial que escapam aos “olhos
duros”1 da Instituição. Assim, acredito que a formação do Oficial da Polícia Militar de Mato
Grosso é fruto dos ensinamentos acadêmicos e das vivências de cada um dos indivíduos
envolvidos nesse processo. É neste norte que proponho este estudo, problematizando as
relações e atestando a individuação dos envolvidos nesta aventura de tornar-se policial
militar.
Ao adentrar pela primeira vez aos portões de uma Unidade Escola de Polícia Militar,
fui apresentada a um mundo inteiramente outro. Os gestos e palavras deviam ser
apreendidos com perspicácia, meus sentidos deviam ouvir, entender, assimilar, absorver
aqueles novos ares. A ruptura não foi fácil, desgarrar-me da outra vida, doeu! Mas, sendo o
ensino policial militar eficiente, percebi-me, enfim, policial militar. É disso que trata este
texto, tornar-se o que é.
Vejo aqui um desafio tamanho, pois ao militar não é dado falar de si. É preferível as
letras frias das leis e das normas para dizer como proceder, mas nunca expor o que é. Talvez
1Em referência ao termo utilizado por Jacques Derrida em O Olho da Universidade, tendendo a necessidade de
que devemos fechar os olhos para enxergar melhor, pois o pensamento ocorre quando nos inundamos do
escuro causado pelo bater de pálpebras, o que é impossível à animais de olhos duros.
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por isso nossas pesquisas nos Centros de Ensino Policiais Militares costumam enfocar a
técnica, a Lei, a sociedade, tudo; menos o policial militar.
Eis aqui uma transgressão! Talvez a oportunidade única de dar voz ao policial
militar. Suas vozes são ouvidas ao longo do texto, vidas demarcam o conhecimento
produzido aqui. O próprio silêncio se fará ouvido, pois, silenciar é uma vocação natural da
formação policial militar.
É preciso, pois, denunciar as limitações da pesquisadora neste contexto. Sendo
policial militar posso transigir meu objetivo, praticar diversamente afirmações que desejo
questionar. Pulsa aqui meu coração e, em cada palavra, uma constante luta pela
possibilidade de por a falar o policial militar.
Nos primeiros encontros com o Grupo de Pesquisa Estudos de Filosofia e Formação,
da Universidade Federal de Mato Grosso – EFF UFMT, sob o olhar do Professor Doutor Silas
Borges Monteiro, percebi ares diferentes, daqueles que sufocam de tão rarefeitos. A
diversidade habita ali. Ouvi muitas vozes falando ao mesmo tempo, muitos discursos
dispostos à mesa e todos em igual condição.
Como quem contrai uma febre, fui exposta a um pensamento rebelde. Senti a
violência do pensamento de Nietzsche perfurando meus recalques, martelando meus
conceitos. Dos seus herdeiros infernais, Jacques Derrida e Gilles Deleuze, bebi o veneno do
pensamento da diferença.
Talvez agora possa dizer de uma morte-vida militar, não há consenso em mim
porque sigo mais policial militar do que nunca, todavia, o que era uma direção única, agora
se apresenta em labirinto. Descobrir o incerto como caminho é ferir de morte os desígnios
da formação policial militar. Trilhar este labirinto é pulsar em meio à morte-vida que habita
em mim.
Começo a ser perseguida pela ideia de identidade que sempre me fora tão
confortável. Na formação policial militar buscamos a sensibilização para a identidade
institucional, desejamos a imagem de grupos coesos, pessoas perfeitamente enfileiradas
técnica e ideologicamente.
Encontro na Filosofia da Diferença a possibilidade de discussão desta programação
em massa, desta eterna busca pela identidade. Identidade que se encontra em direção
oposta ao pensamento deleuziano, a partir das considerações que faz dos escritos de
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Nietzsche. Construir identidade, significa, para Deleuze, a tentativa de igualar o não igual. A
busca da identidade policial militar faz silenciar a singularidade de cada profissional.
Eis aí um pensamento onde os sujeitos imprimem significados e agem em um
processo de singularização, apropriando-se de sua subjetividade e causando
desterritorializações2, fazendo resvalar a diferença. Penso, então, na individuação, em cada
pessoa enfileirada e não somente na fileira.
O conhecimento científico dessa individuação busca na investigação otobiográfica
de Silas Borges Monteiro a possibilidade de uma análise da fisiologia da experiência, uma
experiência que é vida, que se traduz em caminho, na vontade de potência, pois “essa
vontade de potência mostra-se nas vivências. Melhor dito, as vivências são sintomas da
vontade de potência” (MONTEIRO, 2013, p. 40).
A pesquisa é feita na Academia de Polícia Militar do Estado de Mato Grosso, tendo
como participantes os alunos a Oficiais do 3º, 2º e 1º anos. Suas vivências passam em revista
por aqui. Suas experiências de vida falam de si, eles contam suas trajetórias, revivem sua
vida. Em Deleuze (2006) encontro que o ato de Nietzsche de lançar sua autobiografia, não o
demarcam em um tempo, mas vivificam sua história a cada instante.
Não existe um ponto de partida, mas uma profusão de fatos sempre andantes,
alternantes e deslocados. A auto apreensão das experiências da vida provoca devires e abre
margem a outros devires. Esta alternância entre pousos e vôos, experimentados a partir de
sua própria história exalam a diferença, fazendo com que não seja possível o simples retorno
a aquele tempo vivido, mas uma nova vivificação do experimentado, trazendo novas
possibilidades.
Esta vivificação é formalizada em escrita durante a pesquisa, como confissões de si.
Em Jacques Derrida, este ato autobiográfico de contar como se tornou o que é, revestido na
escritura desta narrativa, pode ser entendido como assinatura, pois “por definição uma
2Desterritorializações (Deleuze e Guatarri): conceito onde a noção de território é extendidaem relação ao uso
corriqueiro. O território pode ser entendido como espaço vivido ou onde um sujeito se sente a vontade, no
sentido de apropriação. Desterritorialização é o abandono de territórios criados nas sociedades e sua
concomitante reterritorialização. Remete-se ao próprio pensamento, sendo que os dois processos se
relacionam, um perpassa o outro em movimento. Não é possível que haja desterritorialização, sem, ao mesmo
tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte, sendo este um movimento constante.
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assinatura escrita implica a não-presença atual ou empírica do signatário, mas, dir-se-á,
marca também e retém o seu ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um
agora futuro, portanto, num agora em geral, na forma transcendental da permanência.
(DERRIDA, 1991, p. 371)
Também em Derrida o gesto desconstrutuor3, buscando os discursos entre os
discursos, as teias que formam as ideias e as lacunas indizíveis deste tecido membranoso
que é a formação policial militar.
É Nietzsche que dá o tom para essa tessitura. Maestro da pesquisa, sua literatura é
daquelas que faz revirar os mais tímidos ou sombrios sentimentos, aqueles que vêm do
profundo vácuo existencial, da necessidade urgente de proclamar pensamentos
inconcebíveis no cotidiano. Claro contraventor das normas impostas e disposto a ferir de um
só golpe aquilo que amortiza e escarnece a liberdade e a possibilidade de uma vida plena.
Sinto em Nietzsche uma vida pulsante, daquelas que se fizeram representar,
latejante por denunciar a necessidade de viver e se fazer existir. É nesta potência de vida
que busco o espelho para meus escritos. Uma experiência que deve ser contada sob um
olhar fascinado, uma perspectiva que busca a vida, a existência, o caminho seguido, a auto
interpretação. Um caminho que se faz rizomático4 e que foge aos enraizamentos que
vinculam ao aprisionamento do sentir, do saber, do querer, do amar, do ser.
Um prólogo para justificar uma contravenção tamanha. Ao falar do policial militar é
difícil dissociar a imagem hierarquizada de uma norma que impregna seu próprio nome, a
Instituição Polícia Militar. Pensar o profissional antes da Instituição. Procuro aqui individuar
este profissional, no sentido estrito de lhe tornar indivíduo. Exercício sobremaneira
complicado, eis que sua maior motivação, sua inclinação é se tornar corpo, Corporação.
Seguindo um caminho labiríntico, descubro que o prazer maior não está em chegar
a um lugar certo, mas em aproveitar os vários destinos. Perder-se é, talvez, a grande
3Desconstrução – Jacques Derrida - um abalo no pensamento metafísico ocidental naquilo que se refere às
relações binárias para estabelecer uma hierarquia ou supremacia de um termo sobre o outro. Busca, a partir
dos próprios discursos, provocar sua desestabilização, ampliando seus limites. Ao questionar os diferentes
discursos, opera no terreno da ambivalência e da duplicidade, não se entregando às escalas hierárquicas da
metafísica.
4Rizoma - da filosofia de Deleuze e Guattari – proposta de construção do pensamento através do modelo do
rizoma, onde os conceitos não partem de um centro, portanto não se faz em hierarquia (modelo arborecente),
mas em rizomas (modelo raízes), funcionando através de encontros e agenciamentos, multiplicidades.
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aventura aqui. Deixo de lado meus azimutes e minha tralha de campanha militar, tento
achar o ar rarefeito na direção que ele me quiser levar, porque “o que está posto em
questão é a vivência do processo e o conhecimento adquirido com ele, muito mais do que o
estabelecimento de uma resposta. O percurso é conhecer; seu método, a criação, o ensaio”
(MONTEIRO; BIATO, 2008, p. 266).
Tendo optado pela investigação otobiográfica proposta por Silas Borges Monteiro,
vejo a possibilidade de ouvir as vivências dos alunos Oficiais em formação na Academia de
Polícia Militar. Vivências que estão atreladas à sua produção textual, pois “só artificialmente
podemos separar um texto da vida do seu autor” (MONTEIRO, 2007, p. 471). Os
participantes da pesquisa produzem textos contando como se tornaram o que são. A partir
desses escritos, busco ouvir as vozes nos textos, as vivências, os caminhos e as experiências
que os conduzem à individuação.
Estruturalmente, a pesquisa divide-se em três partes:
A primeira trata do método, do gesto otobiográfico5 de ouvir experiências de vida,
as vivências. Nômade por natureza, desde sua propositura foi adotado das mais variadas
formas. As possibilidades que se engendram a partir dele serão demonstradas singelamente
com a finalidade precípua de demonstrar a forma como será empregado nesta pesquisa.
Sinto-me a vontade de me apropriar dele na sua forma labiríntica, trazendo a possibilidade
de revelar os meandros da formação policial militar e dos indivíduos de sua cadeia.
São feitos os relatos sobre a realização de Oficinas de Transcriação6 como
instrumento de pesquisa e a força criadora presente no ato de ler-escrever um texto. Este
tomado como autobiográfico, pois, contando suas biografias firmam suas assinaturas no
gesto de falar de si mesmos.
Por fim, é explicitada a estratégia metodológica que percorre toda a produção deste
texto, pois, as escrituras produzidas nas Oficinas de Transcriação são auscultadas e trazidas
para compor e “falar”, em conjunto com as impressões da pesquisadora, como o aluno a
Oficial da Polícia Militar torna-se o que se é.
5Método Otobiográfico – proposto por Silas Borges Monteiro, a partir do conceito criado por Jacques Derrida
no livro Otobiografias: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio. Resumidamente, um gesto de ouvir
escritos, a partir do conceito nietzscheano de vivência.
6(OsT) Oficinas de Transcriação - realizadas como "instrumento de coleta de dados" da pesquisa. Uma
proposta de leitura - escrita agenciada pela arte, deslocando o modo convencional de pesquisar.
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Na segunda parte constará um breve histórico da formação policial militar em Mato
Grosso. Enfoque maior será dado ao processo de construção de valores militares neste tipo
de formação, bem como discussões sobre a importância que se dá aos ritos e mitos e da
maneira como se dá uma apreensão crítica da própria atividade profissional. Sob o olhar
derridiano serão desconstruídas posições históricas sobre a função da Instituição e de seus
membros quando nos referimos à produção de títulos acadêmicos, bem como sobre
assinatura e hospitalidade na formação policial militar.
Na terceira são ouvidos os ecos do labirinto formativo, este tomado nas
interpretações de Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Mircea Eliade, questionando a morte e
(re)nascimento na formação policial militar. As vivências presentes nos textos produzidos
nas Oficinas de Transcriação são ouvidas, sob o atendo olhar que busca saber o que quer os
discursos. A cena do aluno Oficial em formação na Academia de Polícia Militar Costa Verde
está em questão. As muitas escrituras constituem o tornar-se dessa personagem, contam as
experiências que conduziram o aluno a Oficial até o momento da pesquisa, revelam como se
tornou o que é, a tessitura de sua individuação.
Nas considerações finais uma análise do percurso da pesquisa e das breves certezas
que se encerram por aqui.
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Capítulo I
O MÉTODO
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LABIRINTO METODOLÓGICO – das forças ativas e afirmativas presentes na pesquisa.
- A tradição posta em questão
“O método é o percurso do conhecimento e que este se estabelece como criação e
não como descoberta. O conhecimento produzido vem a ser uma perspectiva entre
outras e não, ao estilo metafísico, o conhecimento único e eterno sobre a realidade”
(MONTEIRO, BIATO, 2008, p.270)
Inicio pela metodologia porque tudo o que se seguirá o será feito com base na
escuta das vivências dos alunos a Oficiais da Academia de Polícia Militar de Mato Grosso,
através da investigação otobiográfica, motivo porque todo movimento que perpassa a
produção deste texto precisa ser prescritivamente delineado e desenhado na cena espectral
que o envolve.
É forçoso afirmar que a pesquisa se dá em solo arenoso, fora de padrões
rigidamente estabelecidos, não há a essencial preocupação com a métrica ou estrutura.
Antes, me preocupo em produzir conhecimento à luz de novos olhares, percorrendo
caminhos desconstruídos, tateando escombros, entendido como “gesto de experimentação
de sentidos e conceitos, é suplementação do que já existe, a partir dos cruzamentos da
desconstrução com a ficção. É assumir o simulacro e a transgressão” (BIATO, 2015, p.126).
Transgressão ao modo clássico da cientificidade, privilegiando a potência criadora e
estabelecendo a sedução da pesquisadora pelo seu estudo, a alegria em meio à
convalescença, a jovialidade, o sinal da grande saúde. Escrever assim é notícia de alegria,
como a experiência de saúde após um longo período de doença como afirma Nietzsche no
Prólogo de sua Gaia Ciência:
Todo este livro não é senão divertimento após demorada privação e impotência, o júbilo da força que retorna, da renascida fé num amanhã e no depois de amanhã, do repentino sentimento e pressentimento de um futuro, de aventuras próximas, de mares novamente abertos, de metas novamente admitidas, novamente acreditadas. (NIETZSCHE, GC, §1)
Um senso utilitário da cientificidade tem dado preferência por metodologias que
buscam classificações e enquadramentos, ávidas por respostas transcendentes e “verdades
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absolutas” traduzidas em números e percentagens. Aplicando maior rigor a esta realidade,
entendo que a atividade de pesquisa, com ênfase mais crítica e criadora, tem sido legada a
outro plano que não o principal quando falamos em construção de conhecimento científico.
Para Dias da Costa (2014), a consciência sobre esta realidade tem despertado no
seio acadêmico pesquisas críticas, por exemplo, aquelas enraizadas em perspectivas pós-
estruturalistas e na filosofia da diferença. Trazem o novo e abraçam a possibilidade de
construção de caminhos metodológicos singulares. Não existem garantias e/ou busca da
verdade das coisas, tampouco é sua pretensão. Romper com a tradição metodológica é a lei
que rege este processo de criação para além daquilo que nos foi ofertado como verdade e
aquilo que nos foi permitido pensar. Nesta perspectiva, abro as portas desta pesquisa para
um novo modo de lidar com obtenção de dados, (re)leitura dos resultados obtidos e
exposição das impressões que povoam os escritos, isso porque:
Se temos, por um lado, a predominância do modelo matemático para o método, ou da lógica formal como possibilidade de encontro com a verdade das coisas “tal qual são”, Nietzsche faz constante alerta sobre os desdobramentos conceituais que podem nos levar a essas teias metafísicas. Afirma, acima de tudo, nossa condição provisional diante da efetividade do mundo. Põe sob suspeita a pretensão em formular garantias metodológicas para o estabelecimento de sentenças que possam ser consideradas unívocas, portanto, verdadeiras. (MONTEIRO, BIATO, 2008, p.266)
É a filosofia da diferença que delineia esta pesquisa, sua maior razão está nas
possibilidades que se abrem a partir das discussões suscitadas, sem o interesse de proclamar
a rigidez e o rigor de resultados quantificados e delimitados. Esta filosofia tem como
referência importante Nietzsche e a impetuosa imagem dionisíaca de seus postulados,
rompendo com a tradição filosófica apolínea, a razão e a verdade, pressupostos metafísicos
que imperam sobre o pensamento ocidental.
Herdeiros desta contravenção, Jacques Derrida e Gilles Deleuze, também inspiram
pesquisas pautadas neste filosofar. Um convite às conjecturas, às perspectivas, aos
extravasamentos, à “arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (DELEUZE &
GUATTARI, 1992, p. 10).
Ocorre uma “inversão” no pensamento filosófico expondo o sujeito às múltiplas
experiências, retirando-o do centro da razão. Uma razão desconstrucionista derridiana,
possibilitando a denúncia a esse aprisionamento logocêntrico, tendo sua força exercida
através da possibilidade de identificar a dualidade que sempre operou o pensamento de
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vocação metafísica. Possível, então, ver por entre os discursos, escutar a diferença que não
se opõe, apenas transborda. Não se operam hierarquias, mas atravessamentos,
sinuosidades, abismos, labirintos. A afirmação da pluralidade como questão primeira, um
constante por vir, destino andante e andarilho.
Este não-caminho inspira a investigação otobiográfica, que aqui se mostra em
labirinto. Um chamamento ao filosofar, adotar estratégias perigosas, insanas até. Seguir este
caminho de profusões múltiplas, procurando a construção do conhecimento científico no
embate/debate com os intercessores da filosofia da diferença, construindo o método a
partir dele mesmo, procurando estilo, a singularidade, as forças ativas e afirmativas deste
pesquisar.
- Teseu - Ariadne – Dioniso: as forças que habitam a pesquisa
“Oh Dioniso, divino, por que tu me puxas as orelhas? perguntou Ariadne certa vez
seu amante filosófico, em um daqueles célebres diálogos por sobre a ilha de Naxos.
Eu vejo algo de gracioso em tuas orelhas, Ariadne: por que elas não são ainda mais
longas?” (Nietzsche, CI, Belo e Feio, 19)
Recorro a Deleuze (1976) para traçar aqui breves linhas sobre a teoria das forças em
Nietzsche. Estas obedecem à seguinte tipologia: ativas e reativas. A superioridade das forças
ativas se consubstancia na sua capacidade de criar, enquanto as reativas guardam um
sentido de inferioridade, posto sua característica conservacionista. Ambas guardam em si
sua qualidade de força e se definem pelas relações que travam com outras forças, pois “uma
força é dominação, mas é também o objeto sobre o qual uma dominação se
exerce”(Deleuze, 1976, p. 5).
Neste movimento estabelecem sua diferença frente a outras forças por ação ou
reação. A força ativa tem caráter afirmativo, enquanto a reativa um caráter negativo. A ação
da força negativa somente pode ser pensada em oposição à força afirmativa, caracterizada
por uma reação, daí sua inferioridade posto que não pode ser concebida independente da
força ativa, dela é dependente.
O caráter afirmativo ou negativo das forças remete ao conceito “vontade de
potência” da filosofia nietzscheana. O que está em questão é saber quais forças dão origem
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aos valores, de que maneira se estabelece um ponto de vista para que este seja considerado
superior.
Vontade de potência está relacionada com a criação de valores, um querer interno
da força com capacidade interpretativa (ativa/reativa) e avaliativa (afirmativa/negativa).
Assim, algo nobre está relacionado à força ativa/afirmativa, enquanto algo baixo está
relacionado à força reativa/negativa. Nietzsche busca as origens desta relação e
determinação na qualidade da força que cria e sustenta estes valores, atribuindo esta divisão
a um contexto histórico, numa profunda crítica aos valores vigentes, estabelecendo sua
genealogia da moral (crítica dos valores vigentes concomitante à proposição de novos
valores).
Aqui nos interessa dizer da qualidade da força presente neste pesquisar. Falar do
policial militar em primeiro plano, levando em consideração aquilo que viveu e sua
individuação, talvez, prima facie, possa ser encarado como uma força reativa ao modelo
usual empregado para as pesquisas relacionadas à Segurança Pública, como uma negação ao
que é sistemático. Povoada pela luta das forças afirmativas e negativas, esta pesquisa busca
a transmutação desta ideia, não somente no sentido de questionar um modo de produzir
conhecimento, mas na possibilidade de criação de novas possibilidades para discutir Polícia
Militar e seus ideais educativos, evidenciando as personagens desse processo. Uma prova
inequívoca de que consiste em um ato de afirmação com qualidade eminentemente ativa,
um grito buscando desgarrar do pesado fardo que, até então, constituiu este pesquisar:
Ora, é esse momento fundamental ("meia-noite") que anuncia uma dupla transmutação, como se o niilismo acabado desse lugar ao seu contrário: as forças reativas, ao serem elas mesmas negadas, tornam-se ativas; a negação se transforma, converte-se no trovão de uma afirmação pura, o modo polêmico e lúdico de uma vontade que afirma e se põe a serviço de um excedente da vida. (DELEUZE, 1997, p.117)
Tomo por norte o texto de Gilles Deleuze (1997), Mistério de Ariadne segundo
Nietzsche, para tratar da imagem labiríntica deste método e das forças que o povoam.
Deleuze fazendo uma leitura do mito a partir de Nietzsche, utiliza o triangulo amoroso em
que estão situados Teseu, Ariadne e Dionísio para falar do conflito das forças.
Ariadne está situada entre dois homens, Teseu e Dioniso. Enganada por Teseu a
quem ajudou a sair do labirinto, junta-se a Dionísio sendo levada, também, a outro labirinto.
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Conta o mito que Ariadne se apaixona por Teseu, herói ateniense, ao saber de seu
sacrifício buscando enfrentar o minotauro que habitava o labirinto de Dédalos. O local
contava com vários caminhos entrecruzados, de tal forma que ninguém seria capaz de sair
depois que nele houvesse entrado. Ariadne se oferece a auxilia-lo em sua investida contra o
monstro, sob a condição que a desposasse e levasse para Atenas. Tendo aceitado a
condição, o herói recebe uma espada e o fio (Fio de Ariadne) que o conduziria a saída do
labirinto, após matar o monstro. Todavia, Ariadne não consegue viver o amor pelo qual
tanto lutou, é abandonada por Teseu na ilha de Naxos enquanto dormia. Várias são as
versões do desfecho da história, mas a que interessa aqui dá conta de que a deusa Afrodite
teria se compadecido e prometido a Ariadne um amante imortal, o deus Dioniso, com quem
viveu em festa. Após a morte da amada, Dioniso lança ao céu o presente de casamento, uma
coroa de ouro cravejada de pedras preciosas, dando origem a uma bela constelação.
O Fio de Ariadne é utilizado como metáfora em diversas construções do
pensamento, no sentido da possibilidade de se guiar em meio ao labirinto e achar a saída.
Deleuze, a partir de Nietzsche, a utiliza para tratar da vontade de potência e do conflito das
forças ativas e reativas, entre o sentido de afirmação da vida e o ressentimento, a negação.
Tratando do homem superior, concebe que este se vê direcionado por força reativa
e vontade negativa. Teseu, o herói, encarna o sentido do homem sublime ou superior,
aquele que, por inclinação própria, carrega o duro fardo e tem sobre suas costas o desejo da
perfeição e do acabamento, constituindo um “disfarce ridículo” da afirmação e, como asno,
a tem como suportar o peso, “avalia a positividade conforme o peso daquilo que carrega:
confunde a afirmação com o esforço de seus músculos tensos”. (DELEUZE, 1997, p. 115)
Entretanto, não sabe o que é afirmar-se. Como um grande ignorante não admite
que afirmar é se desincumbir, desatrelar, descarregar, livrar-se dos valores antigos e tudo
que o amortiza, criando valores novos para uma vida afirmativa, “Teseu não compreende
que o touro (ou o rinoceronte) possui a única superioridade verdadeira: prodigiosa besta
leve no fundo do labirinto, mas que se sente igualmente à vontade nas alturas, besta que
desatrela e afirma a vida”. (ibidem, p.115)
Apaixonada por Teseu, Ariadne compartilha de sua não afirmação, assumindo força
reativa no ressentimento do abandono, o canto triste. Nietzsche a concebe como força
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reativa, a alma ressentida, aquela que segura o fio da moralidade que conduz o herói no
labirinto da moral disfarçado de conhecimento.
Esta vontade negativa atrelada à força reativa conduz ao niilismo e a falsa afirmação
do conhecimento, um mero disfarce da moralidade e do desejo de exterminar o touro, negar
a vida submetendo-a a sua força reativa, as potências do falso.
É no abandono que a força reativa de Ariadne se transmuta em afirmação pura, ao
ser negada torna-se ativa de uma vontade que afirma, o niilismo em repetição, negando-se a
si mesmo deseja a vida. Aproxima-se dela o além-do-homem:
Ariadne sente que Dioniso se aproxima. Dioniso-touro é a afirmação pura e múltipla, a verdadeira afirmação, a vontade afirmativa; ele nada carrega, não se encarrega de nada, mas alivia tudo o que vive. Sabe fazer aquilo que o homem superior não sabe: rir, brincar, dançar, isto é, afirmar. (DELEUZE, 1997, p. 117)
Dionísio é o deus da afirmação do ser e Ariadne a afirmação que o completa, a
afirmação da afirmação. Ela deixa de ser a mão que conduz o fio da moralidade e da falsa
afirmação no labirinto. Este passa a não ser caminho para matar o touro, mas o próprio
touro, Dionísio-touro e sua orelha labiríntica. Ela deixa de ter as orelhas longas do asno que
acredita afirmar e passa a ter pequenas orelhas redondas, a cura, o eterno retorno.
Sob a perspectiva da dupla afirmação e da felicidade de estar junto a Ariadne,
Dioniso não teme o eterno retorno, pois sabe que este será afirmação da vida, força ativa no
canto alegre de Ariadne e “o labirinto já não é o caminho no qual nos perdemos, porém o
caminho que retorna. O labirinto já não é o do conhecimento e da moral, e sim o da vida e
do Ser como vivente” (Ibidem, p. 121).
E nesta metáfora, inspirada por Dias da Costa (2014), penso esta pesquisa além da
força reativa e negativa, mas através da possibilidade impar de trazer Dioniso para compor a
vontade afirmativa e a força ativa deste texto. Abandono ao que nos obriga a produzir
sempre o mesmo tipo de conhecimento, baseado em técnicas, leis, ordens e protocolos. Este
pesado fardo que tem sido não se comprometer.
Nietzsche é caminho labiríntico para esta pesquisa e os pressupostos de Monteiro
(2013) sobre o método de investigação otobiográfica constituem as formas de encurtar
orelhas, condição de possibilidade de criação do novo, novas perguntas, novos olhares,
novos caminhos guiados pela afirmação da vida. A potência deste ato, pesquisar com a
filosofia, está no fato de abrir janelas e aprofundar conceitos:
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A potência do filosofar/pesquisar incide na abertura de canais e adjacências que interligam o pensamento a uma multiplicidade de olhares e escutas dos modos de vida heterogêneos e singulares, extemporâneos ao tempo e lugar. Ora com duras marteladas ora com uma sonoridade musical, a força do filosofar nietzschiano perfura lugares inauditos, disseminando uma multiplicidade de linguagens-outras (aforismos, metáforas, máximas, sátiras, liras, etc.) a um só tempo extemporâneas, errantes, extravagantes. (DIAS DA COSTA, 2014, p.13)
Diminuo minhas orelhas ao passo que encontro o abandono dos azimutes que
sempre me guiaram, como força reativa a esta negação que sempre esteve presente sob o
manto de afirmação, a negação desta negação se transmuta em afirmação na possibilidade
de dar voz ao policial militar. Uma pesquisa sem fardos e sem correntes não me encarregam
de nada, apenas da liberdade criadora de disseminar possibilidades. Uma orelha circular
pronta a ausculta daquilo que vem de fora, do outro.
Lanço-me ao labirinto pleiteando a pequena orelha circular descrita por Nietzsche
e, na metáfora do ouvido usada por Jacques Derrida em seu Otobiografias, perscrutando o
labirinto que leva a uma escuta fisiológica das experiências de vida dos alunos a Oficiais da
Polícia Militar do Estado de Mato Grosso. Por fim, busco timpanizar a pesquisa, fazendo
ecoar os diversos sons que compõem a tessitura da individuação desses
profissionais/alunos.
MÉTODO OTOBIOGRÁFICO - eis o labirinto!
“Escrever com o sangue é fazer pulsar vivências concretas do corpo. Mais do que
um exercício racional, é fisiológico, cujo roteiro é labiríntico. Assumo, portanto, a
trilha labiríntica, tortuosa, sinuosa”. (MONTEIRO, 2013, p.187)
- Um primeiro olhar por entre as frestas
Posto-me a frente do labirinto! Cabe agora a mim o prazer de apresentar as
primeiras impressões do método, como um prelúdio à grande aventura que seguirá.
A investigação otobiográfica foi apresentada por Silas Borges Monteiro em sua tese
de doutoramento, na Universidade de São Paulo, no ano de 2004, cuja importância reside na
possibilidade de uma pesquisa que investigue a experiência pessoal atrelada à formação
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educacional e profissional. Nele o pesquisador ocupa o lugar de ouvinte escutando vivências
presentes nos escritos.
Na tese, Monteiro recorre à leitura que faz do livro Otobiografia: o ensino de
Nietzsche e a política do nome próprio (DERRIDA, 1984), para cunhar um gesto de ouvir
escritos e o faz ouvindo as alunas do curso de pedagogia, a partir do conceito nietzscheano
de vivência. Na obra derridiana o tímpano assume papel importante, onde a metáfora
auditiva da corpo ao ato fisiológico de escutar vivências.
Tal método, recriado a partir do conceito de Derrida7, será utilizado para analisar as
narrativas dos cadetes sobre as vivências experimentadas até o ingresso na Academia de
Polícia Militar e aquelas decorrentes da formação, que, em conjunto, são responsáveis pela
constituição de si.
O termo vivências baseia-se no conceito de Nietzsche de que o indivíduo é
determinado pelas vivências, qual seja, as experiências cotidianas estão na vida da pessoa de
tal forma que a individualizam. Assim, analisando o caminho percorrido pelo profissional e
as percepções alcançadas no trajeto, mostram como ele se tornou o que é.
Não se trata de autoanálise, mas de substrato para percepção dos fatos, no sentido
de que o indivíduo tem mais propriedade para falar daquilo que experimentou e viveu.
Trata-se de um confronto existencial, onde as vivências são importantes ferramentas para
delimitar o que se tornou. Outro ponto importante é a “interpretação avaliativa das forças
que impulsionaram as vivências” (MONTEIRO, 2013, p. 26).
- Notações sobre a pesquisa
O enfoque da pesquisa tem como princípio a escuta das vivências dos alunos em
formação na Academia de Polícia Militar Costa Verde. Através de suas experiências,
afirmações e percepções do novo mundo é tecido o fio que conduz ao processo de
individuação do Oficial disponibilizado à Segurança Pública de Mato Grosso. As notas que
compõe a tessitura de sua formação.
7A partir do livro Otobiografia: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio (DERRIDA, 1984). Oto (ouvir)
Biografia (vida escrita).
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Cabe aqui um parêntese para evidenciar duas disposições constantes no próprio
título desta pesquisa, a saber: “Tessitura” e “Individuação”. Ofereço chaves para que o leitor
possa acessar os meandros desta produção.
Na intenção de produzir um trabalho que prime pela exposição de que o sujeito não
deve ser encarado como um fim ou completude, mas uma constante obra inacabada, o título
deve anunciar este desejo.
A palavra tessitura assume um duplo viés quando de sua interpretação. No primeiro
plano, refere-se ao “encadeamento entre as partes de um todo, organização ou
composição” 8. Em outro plano - o da música - tessitura refere-se ao conjunto de notas
usadas por um determinado instrumento musical, com a qualidade necessária à sua
execução. No caso da voz humana, “refere-se ao conjunto de notas que um cantor consegue
articular sem esforço de modo a que o timbre saia com a qualidade necessária” 9.
A primeira definição cabe bem ao sentido que aqui tomo a tessitura, pois
corresponde à noção de algo em movimento, que se compõe com o fim de uma organização
sem, contudo, assimilar uma finitude, uma conclusão. Uma profusão de andamentos
buscando formar cadeias, organização desestruturante, constituição, caminho, remetendo à
ideia de processo.
Não posso, todavia, perder a metáfora que a segunda definição impõe: um conjunto
de notas que são articuladas sem esforço e produzem o timbre de qualidade necessária –
um enlace daquilo que é inerente à pessoa, disposto em posições diferentes e que
produzem o timbre perfeito espontaneamente.
A individuação me instiga a tratar primeiramente do problema do indivíduo, este
tomado como unicidade, pronto, não dividido; portanto, inconfundível e único. Uno em si e
distinto dos outros. Assim, de que maneira algo que é comum a vários pode se tornar único -
este ou aquele indivíduo? Pensar o indivíduo já constituído é possível apenas ignorando o
processo de tornar-se. Para responder a esta questão, Gilbert Simondon pensa a relação da
operação de individuação e de um princípio de individuação.
8Tessitura in Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-
2016. Disponível na Internet: http://www.infopedia.pt
9Ibidem.
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Como em um esquema propõe uma “sucessão temporal” a partir do princípio de
individuação chegando ao indivíduo constituído, tendo como meandro a própria operação
de individuação. Esta “operação de individuação” é considerada uma zona obscura
interligando indivíduo pronto e princípio de individuação.
Simondon se interessa pela operação de individuação, a reexamina destituindo o
princípio de individuação e o indivíduo pronto de seus polos, causando cismas nas certezas
em torno do processo. Assim, “o princípio de individuação não passará de um efeito daquela
operação, ao mesmo tempo em que o indivíduo não mais terá o monopólio do ser concreto
em sua totalidade” (ORLANDI, 2014, p. 76).
É preciso, portanto, pensar a gênese recusando o indivíduo já constituído como
ponto de partida e escolhendo o princípio de individuação como ponto de início. Então, a
individuação produz o indivíduo em ontogenia, processo de transformações do pré-indivíduo
até o indivíduo pronto. Nesta subversão, Simondon aduz que a operação da individuação
explica como o indivíduo passa a existir ao mesmo tempo que se observam os
desdobramentos do processo de individuar, não se extinguindo esta operação, pois “a
individuação diz respeito à aparição de fases no ser. Ela não é uma consequência que se
deposita na borda do devir e que se isola, mas a própria operação enquanto efetuante”
(DAMASCENO, 2007, p.176).
Individuação é movimento, inconstância, desfazimento. Não há unidade ou
estabilidade, pois, individuar é desfazer unidades, refazer-se em constante devir. A operação
de individuar não se restringe a camadas sobrepostas, como superação de acontecimentos e
disponibilidade para o novo, mas ao sujeito pré-individual sujeito à incongruência das
diversas direções, às múltiplas dimensões e estas lhe impõe diferenças, nervuras, um campo
intensivo de individuação.
Deleuze retoma Simondon para elaborar sua própria concepção de individuação. O
tal campo intensivo e sujeito aos devires é, em Deleuze, diferença de intensidades. O sujeito
pré-individual é tomado como sujeito larvar, embrião, ovo. Sobre ele se desenvolvem as
tensões, os movimentos e as diferenciações. Primado do corpo sem órgãos, “corpo afetivo,
intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares, gradientes” (DELEUZE, 1997,
Princípio de Individuação Indivíduo Pronto Operação de Individuação
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p. 148), característico da falta de estrutura, sobre ele se desenvolvem todas as formas de
variações, não resiste às transformações.
É preciso, pois, ser larva para suportar a ação de tais forças, uma mediatriz entre a
ausência específica de forma e uma organização mínima, pois “há movimentos dos quais só
se pode ser paciente, mas o paciente, por sua vez, só pode ser uma larva” (DELEUZE, 1997,
p. 173-174).
Esta diferenciação de força - variações de potência - remete ao entendimento da
constituição de si, firmado em Nietzsche. Assim, o indivíduo exposto às variações do meio e
de seu corpo, bem como às lutas de seus instintos, torna-se o que é, em uma variação
constante, pois, “a vontade de vir a ser, crescer, dar forma, isto é, criar e, no criar está
incluído o destruir” (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, 17 [3] maio-junho 1888). Não se trata
de chegar a um fim, um lugar fixo, indivíduo pronto, mas do processo.
Desta maneira, percebo o Aluno a Oficial a partir do princípio de individuação e não
a individuação a partir dele. Não há estática ou definição do ser, mas uma fase do ser, uma
profusão de intensidades e forças, transformações incessantes, potências de vida.
Importante observar a interação deste processo ao meio, onde as intensidades se
diferenciam de acordo com a experiência de cada indivíduo. Admito, então, a possibilidade
de responder ao questionamento sobre de que maneira algo que é comum a vários pode se
tornar único. As vivências, estas funcionam como equalizador das forças, são capazes de
dizer da individuação, pois, "há, de fato, algo que o homem é e tem de ser, mas este algo
não é uma essência, não é propriamente uma coisa: é o simples fato da sua
própria existência como possibilidade ou potência” (AGAMBEN, 1993, p.38).
Tais vivências são auscultadas a partir de textos produzidos pelos cadetes da
Academia de Polícia Militar em Oficinas de Transcriação, onde concebem a construção de
escrituras através do contato com obras literárias tratando de temáticas sobre a
individuação e as forças postas em movimento neste processo.
Procuro pelos aspectos da humanização do policial e do processo ensino-
aprendizagem para se ensinar a ser policial militar, confrontadas a sua própria experiência
de vida. Um processo que não pergunta “o que?”, mas “quem?”. Quer identificar os
impulsos de vida na sua trajetória, fazendo com que este ato de contar a si mesmo o que
passou, provoque a desterritorialização necessária em busca de devires. Monteiro assim
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ess%C3%AAnciahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Exist%C3%AAnciahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Entelequia
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afirma que “no projeto nietzscheano, interpretado por Deleuze, sempre cairemos no
questionamento acerca das forças vitais que impulsionam a produção humana: calibrar essa
questão significa ir ao âmago do que é interrogado. Sua fórmula mais precisa é ‘quem?’”
(MONTEIRO, 2007, p. 479).
Entender o processo formativo deste profissional e os impactos de suas vivências
nesta formação, assim como as ações no decorrer de sua carreira é tarefa intrigante, cujo
valor reside no entendimento sobre a melhor forma de cumprir o dever imposto pelo
oficialato, ampliando a discussão em torno dos conceitos que regem a formação militar,
frente ao exercício de uma polícia mais cidadã, mais humana e mais legítima.
A pergunta que direciona a pesquisa é: Como o aluno a Oficial da Polícia Militar do
Estado de Mato Grosso se torna o que é?
Ao enveredar por estes caminhos, busco pelo processo de individuação, verificando
as experiências formativas que lhe impactam. O gesto de ouvir o aluno a Oficial da Polícia
Militar, busca a potência das forças envolvidas no exercício de torna-se o que é.
A formação policial militar concebe traços que a singularizam frente às outras ideias
clássicas de formação profissional. Estas características impõem especificidade, também, ao
aluno a Oficial. Todavia, o processo de individuação do aluno a Oficial é um acontecimento
independente das imposições dos regulamentos e das rotinas acadêmicas.
Os participantes da pesquisa firmam suas assinaturas, através de textos escritos
sobre sua formação policial militar e assinados por eles, gesto entendido como
autobiográfico, porque é impossível separar a obra da vida de seu autor. É ato de dar voz ao
aluno a Oficial da Polícia Militar para que expresse sua subjetividade frente ao sistema de
ensino a que está inserido.
A partir dos textos, são auscultadas as vivências presentes nos escritos, buscando
pelas potências de vida que tomam a palavra e dão notícia sobre este processo formativo e
como o aluno a Oficial da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso se torna o que é.
FUNDAMENTAÇÃO DO MÉTODO
O propositor do método escolhido para esta pesquisa afirma que a interpretação do
pensamento nietzscheano abre margens para interpretações de outros conceitos do autor e
-
33
estes para outros, fazendo-se necessário uma “espécie de dicionário Nietzsche” (MONTEIRO,
2013, p. 33), dando a impressão de repousarmos por sobre um labirinto, “onde cada porta
aberta introduz um corredor de muitas outras portas”. Para isso nos solicita paciência ao
caminhar neste pesquisar da investigação otobiográfica. Necessário, então, observar as
pegadas marcadas na areia, rastrear as pistas deixadas neste solo acidentado. É o que busco
fazer aqui, mostrar como me conduzi por este caminho, trazendo o leitor pela mão
enquanto sigo o fio deixado por Monteiro.
O método é, sem dúvida alguma, o maior desafio desta pesquisa. Por isso o esforço
em conduzir o leitor por esse dúbio labirinto, que se mostra ora como o caminho andarilho
do interpretar-se, do conflito das forças e das tentativas de encurtamento de orelhas, ora
como o percurso membranoso da audição na escuta das vivências. Proponho adotarmos
como fio de Ariadne a conceituação dos elos importantes do desafio proposto por Monteiro.
Monteiro intitula o primeiro capítulo da tese como Ressonâncias da Filosofia e nele
apresenta as chaves mestras para compreensão do método. A metáfora da escuta delineia o
método, através da utilização do prefixo “Oto”. Otobiografia “é o empenho em dar ouvido às
vivências que tomam a palavra nas expressões humanas” (Ibidem, 2013, p. 15).
Toma o conceito a partir do livro de Jacques Derrida, Otobiografia: o ensino de
Nietzsche e a política do nome próprio. Informa os elementos que formam sua convicção
para o constructo do método e que o conduzem à experiência de criar também conceitos,
possibilitando um novo jeito de pesquisar em filosofia da educação. Sigo o rastro deixado
por ele, procuro tecer o fio desta pesquisa a partir das pistas espalhadas neste labirinto,
encontro os conceitos caros deste pesquisar e com eles busco montar um quebra-cabeça
que me favorecerá:
- Assinatura
O ato de declarar funda uma instituição, uma constituição ou um Estado.
Necessário se faz o empenho de um nome próprio, aquele que atesta, assina. Portanto, a
assinatura pressupõe um nome próprio, aquele que assina em seu próprio nome, que se
compromete. Assim afirma Derrida: “A declaração que funda uma instituição uma
constituição ou um Estado, requer que uma assinatura seja ai comprometida. A assinatura
-
34
guarda como o ato instituidor, como ato de linguagem e de escritura, um vínculo que não
tem nada de acidente empírico” (2009, p. 13).
Em Otobiografia: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio (1984), Derrida
da notícia do estilo filosófico de Nietzsche, que tem sua filosofia fundada em sua própria
experiência, sendo ele talvez o único a fundar sua filosofia em seu nome, através da
assinatura de seu nome próprio.
Na mesma obra, Derrida afirma que ao nome é dado o poder de firmar assinaturas,
falando em nome deste nome. Narra que em Ecce Homo, Nietzsche dá o tom autobiográfico
de sua filosofia. Curiosamente, Nietzsche encerra o livro assinando “Dionísio contra o
crucificado” (NIETZSCHE, EH, “Por que sou um destino”, § 9), numa alusão clara à sua
questão com o cristianismo, para Derrida é a pluralização da singularidade dos nomes de
Dionísio e do Cristo, tomados como pseudônimos.
Este ato autobiográfico de contar como se tornou o que é, revestido na escritura
desta narrativa, deve ser entendido como assinatura, o traço de uma presença que retém o
ter estado presente e que aí permanece. Anunciação de singularidades no ato de firmar,
pois:
Por definição uma assinatura escrita implica a não presença atual ou empírica do signatário, mas, dir-se-á, marca também e retém o seu ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro, portanto, num agora em geral, na forma transcendental da permanência (DERRIDA, 1991, p. 371).
Assinar, em Derrida, é assumir responsabilidade. Não se trata de mero registro em
um momento cronológico, é um testemunho, uma confissão, que perdura na iterabilidade.
Esta característica de iterar, reproduzir, repetir e demarcar são a garantia de sua anunciação
e a possibilidade existência.
A assinatura reclama a singularidade do ato de produzí-la, necessária a capacidade
de iterar, certa performatividade10 resultando não o ato em si, mas o seu ter acontecido e as
circunstâncias, havendo a derivação da palavra evocada.
10
Ato Performativo: que, ao ser proferido, corresponde à ação a que se refere (ex.: "eu juro" é um ato performativo; verbo performativo). "performativo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://www.priberam.pt.
https://www.priberam.pt/
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35
Ao escrever textos dando notícia de seu processo de individuação, os cadetes
testemunham sua vivência e estes textos aqui são encarados como confissão, testemunho
público no sentido derridiano. É desta forma, em Salvo Nome, que Derrida (1995) afirma um
caráter autobiográfico no discurso de santo Agostinho ao se confessar a Deus através de
suas obras. Tendo por princípio que Deus sabe de tudo por antecipação, para o santo a
confissão não tem o condão de revelar ou contar histórias, mas de afirmar verdades em
amor a seu Deus, um testemunho público do que fez e do valor escritural deste testemunho,
pois “um testemunho escrito parece mais público (...) sua sobrevida por meio da atestação
testamentária” (DERRIDA, 1995, p.14).
Esta confissão é inerente ao ato de afirmação de si, “trata-se de manter a promessa
de dizer a verdade a qualquer preço, de prestar testemunho, de se render à verdade do
nome, à coisa mesma, tal como deve ser nomeada pelo nome, isto é, além do nome. Ela
salva o nome” (ibidem, p. 54). Permite-se aqui a dúbia interpretação de salvar o nome,
tendo o entendimento de socorrer ou excetuar. Ambas as possibilidades sugerem a
afirmação da presença daquele que escreveu.
A assinatura carrega a possível individualidade, tem o condão de singularizar,
especificar aquele que firma seu nome. A impossibilidade de uma assinatura subjuga e torna
dimorfo o indivíduo. Jacques Derrida mostra que a mera possibilidade de tentar transformar
o outro em outro qualquer, se faz extirpando-lhe o nome, a sua assinatura:
O desprendimento deve permanecer em ação (portanto, renunciando à ação) para que o outro (amado) permaneça o outro. O outro é Deus ou qualquer um, precisamente, uma singularidade qualquer, a partir do momento em que qualquer outro é qualquer outro. Pois o mais difícil, ou até mesmo impossível, habita aí: aí onde o outro perde seu nome ou pode mudá-lo para se tornar qualquer outro. Passível e impassível, a Gelassenheits e exerce em nós, ela é exercida nessa indiferença pelo outro qualquer (Ibidem, p. 69).
Procuro, então, pelas assinaturas presentes nos escritos produzidos na pesquisa.
Aquilo que fazem em nome de seu nome, demonstrando seu posicionamento nas fileiras
desta formação. Estas desenhadas nas tessituras/teceduras do texto, no movimento
constante de descoser, dando luz às linhas desta trama, diferenças e semelhanças no jogo da
“dissimulação do sentido do texto, disfarçando-o e envolvendo-o, ao mesmo tempo em que
permite o seu desvendamento, a partir do instante no qual se começa a destecer a tela, que,
sendo tal, esconde ao mesmo tempo que revela” (ibidem, p.93).
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Tais escrituras são instancias de argumentação, no movimento do porvir, do tratar
adiante – promessas! Não querem o centro, exercitam o entendimento de si até o
transbordamento, o descabimento, fazendo apagar marcas, muros, certezas sob o pano
escuro dos valores. Consubstanciam-se no livramento, direito à liberdade.
Elas não monumentalizam um nome, não o inferem como um centro em si, rígido e
indivisível, pedra fria jazindo a existência. Dão nome ao nome herdado no paradoxo de
difundir e apagar ao mesmo tempo, testemunhando sua indecidibilidade. Avessa à
singularidade expropria a propriedade do nome no movimento da revelação, esta que se faz
em apagamento, aquilo que o torna ilegível não o suficiente para extinguir.
Retomo a lógica do suplemento em Derrida, inferida na lógica de uma não
identidade frente ao discurso metafísico ocidental, desprivilegiando as oposições binárias
que imperam neste pensamento. Não se ater a identidades traz a possibilidade da conjunção
“e” no intermédio desta tensão, assim: o dentro e fora, mesmo e o outro.
Suplementariedade residente “nesse ‘deslizamento’ entre os extremos, na ausência total de
uma essência” (SANTIAGO, 1976, p 90), presente no jogo do descentramento, jogo este
furtivo:
Seu deslizamento furta- o à alternativa simples da presença e da ausência. Este é o perigo. E o que permite sempre ao tipo de se fazer passar pelo original. A partir do momento em que o fora de um suplemento se abre, sua estrutura implica que ele próprio possa se fazer 'modelar', se fazer substituir por seu duplo, e que um suplemento de suplemento seja possível e necessário. (Ibidem, 1976, p.90)
Para Santiago (1976) a suplementação só se faz compreender a partir do
conhecimento da ausência de centros, no jogo da desconstrução, onde se instaura o signo
flutuante – o suplemento – que em determinada estrutura supre e ocupa um lugar
temporariamente.
Portanto, o significado de uma escritura é sempre dinâmico pelas forças que
alimentam os vários sentidos das palavras e a diversidade de interligações de textos. Pois um
texto recebe influências de outros textos, estes compondo uma malha, tramas que se
enredam na sua fabricação, um exercício de autocomposição. A desconstrução derridiana
atua aí, neste solo de composições, enxergando os enxertos, extenuando-os em si mesmos,
revelando enquanto se esconde. É cadeia de suplementos, multiplicidades.
Deleuze afirma que para Nietzsche, "não há um só acontecimento, um só
fenômeno, uma só palavra, um só pensamento cujo significado não seja múltiplo. Qualquer
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coisa é ora isto, ora aquilo, ora alguma coisa de mais complicado, de acordo com as forças
(os deuses) que a ocupam" (DELEUZE, 1976, p. 05). Assim é a escritura derridiana, potencia
de multiplicidade sob o signo do phármakon – remédio e veneno.
Assumida como simulacro nesta pesquisa, a assinatura, remete a esta
multiplicidade, ao transbordamento do nome próprio inscrito no ato de tornar-se Oficial da
Polícia Militar. Inventividades, descentramentos, diversas maneiras de assinar seu papel
institucional.
Necessário, aqui, compreender a possibilidade de simulacro quando nos referimos a
assinatura. Este assinar, grafar autoria, escriturar revestindo de nome próprio sua história
existe na suplementação do rastro, posto que toda escritura se põe em movimento, é
andarilha. Rastros, gotejamentos de ter estado, se assumem em simulacro prestando
informação sobre as cenas e as vivências experimentadas, inventividades outras sobre o que
é, pois:
Eu incorreria em erro gravíssimo se me ocupasse de perguntar pelos limites entre realidade e ficção neste jogo. As cenas se seguem como performance-vida e afirmam o simulacro. De modo análogo, a escritura — movimento de articulação da fala com a escrita, — movimenta este jogo da atuação. Com a morte do pai do texto, Derrida parece querer superar a procura pela presença, em aniquilação da metafísica dos remetimentos. (BIATO, 2015, p. 117)
Simulacro não está relacionado com irrealidade. É antes um modo de
questionamento ao real. Não quer o centro, posto que “talvez seja a característica
diferencial da disseminação em relação ao simbólico: configura-se como jogo sem
referências a verdades e nem mesmo a mentiras, e se estrutura como indecidibilidade”
(ibidem, 2015, p. 133).
Assinaturas são formas de diferenças, “modos de ser e de ver o outro, de se ver e
de se ver no outro”. Neste desalinho, podem se apresentar em simulacro, inventividades da
vida real, fantasia do ser.
- Autobiográfico
Para Monteiro, “a biografia, quando é tratada na Filosofia, vai além dos acidentes
empíricos dos autores” (2007, p.474). Não há que se preocupar com a análise estruturalista
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de textos, mas com a criticidade potente deste gesto de falar da vida, optando por
questionar o movimento das forças imbricadas nas vivências presentes nos escritos.
Contudo, este pesquisar guarda profunda importância ao autobiográfico, que aqui
não constitui a mera possibilidade de imortalizar as ações dos vivos, através de histórias de
suas vidas, revivendo os momentos, mas o ato de contar a si mesmo sua vida. Em Derrida,
entendimento feito a partir de Nietzsche, um relato é autobiográfico porque é o ato de
contar essa vida para si, sendo ele mesmo o destinatário da narração.
Olini (2012) afirma que o autobiográfico tido por Derrida se diferencia daquele
corriqueiramente conhecido, refere-se a um ato que extrapola os limites tradicionais da
escrita, posto que “o autobiográfico deve nos fazer reconsiderar o lugar do ‘autos’, pois toda
escritura autobiográfica é singular e põe em movimento de cooperação o ‘auto’ de sua
‘autoidentidade’” (p. 19).
E, citando Derrida, a pesquisadora segue afirmando que “na escritura
autobiográfica, o nome do autor, seu corpo, sua posição no espaço e no tempo são,
paradoxalmente, fatos e ficções que devem ser tomados pela filosofia como ‘uma descrição
mais ou menos viva de sua própria ‘escritura’” (ibidem, 2012, p.19).
Monteiro nos adverte para não entender a implicação de vida e obra como
psicologismo, mas como reflexão filosófica, pois “é retorno do pensamento sobre si mesmo,
destinando-se sua descrição, análise e avaliação” (2007, p. 474).
Nesta pesquisa os alunos a Oficiais registram suas autobiografias narrando a si suas
vidas, fazendo isso criticamente não apenas buscando reviver os momentos, mas dando
significação aos fatos, perscrutando os elementos que lhes tornaram o que são.
- Vivências
Zaratustra assim falou: “De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o
próprio sangue. Escreve com sangue e verás que sangue é espírito” (NIETZSCHE, ZA, Do ler e
escrever, § 1º).
Para Monteiro (2013), o conceito vivência atravessa toda a obra do autor de
Zaratustra e descreve em sua tese de doutoramento os principais pontos onde esta
evidência se mostra na sua literatura.
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Em Biato (2015) encontro que vivências são capitaneadas pelo desejo por mais vida,
posto que não são forjadas. Trata-se de instinto e, de acordo como são alimentados estes
instintos, decorrem as performances, estilos.
Retomando Monteiro, encontro que a vivência obedece a lógica do rastro
derridiano, não se trata de marcas ou delimitações de fatos, mas de experiências, o ter
acontecido. Instante único que não se apreende, pois, o momento presente é experiência e
qualquer tentativa de retomar este momento é reinvenção, tudo que ele deixa é rastros. Por
isso, qualquer tentativa de registrar a vida é rastro, formas inventadas de lidar com vidas
inventadas. Nenhuma delas alcançam a vida, este instante absurdo que não pode ser
capturado, restando o registro dos rastros. Vivência se assume nesta impossibilidade, um
instante absurdo que não se pode apreender, portanto rastros.
A escrita tem caráter biográfico. Em Nietzsche remete à superação: “Meus escritos
falam somente de minhas superações” (NIETZSCHE, HH II, Prefácio, § 1). Também: “E este
segredo a própria vida me contou. ‘Vê’, disse, ‘eu sou aquilo que sempre tem que superar a
si mesmo.’” (Idem, ZA, Da superação de si mesmo,§ 27).
Vivência, em Nietzsche, assume o caráter variável daquilo que é sentido por cada
um na exata porção do que é, pois "nossas vivências determinam nosso indivíduo, e na
verdade de tal modo que ele é determinado até a última célula segundo cada impressão de
sentimento" (Idem, Fragmento póstumo 19 (241) do verão de 1872 ao início de 1873).
Importante considerar nesta pesquisa a radical individualidade das vivências e os
rastros que imprimem de modo a alterar significativamente a vida ao ponto de tomá-las
como base e termômetro para apreciação de outros fenômenos da vida, pois “ao vermos
uma nova imagem, imediatamente a construímos com a ajuda de todas as experiências que
tivemos” (idem, GC, Até onde vai a esfera moral, 114).
A experiência daquilo que foi vivenciado é intrínseca às posições que adotamos a
partir de observação de qualquer fenômeno e carrega consigo o significado daquilo que se
vivenciou de maneira até inconsciente e não menos intensa. É assim que Nietzsche afirma
em sua obra que se escreve melhor sobre aquilo que vivenciou: “Ninguém pode escutar mais
das coisas, livros incluídos, do que aquilo que já sabe. Para aquilo a que não se tem acesso
por vivência, não se tem ouvido” ( EH, “Porque escrevo livros tão bons,”§ 1). Revela em todo
seu texto aquilo que ele é, seus textos são a sua vida. Não se trata aqui de autoanálise ou da
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busca de um “si mesmo”, mas o experimento do pensamento, da reflexão filosófica como já
manifestado alhures.
Busco, então, narrar esse experimento filosófico nas forças que tomam a
constituição de si, as vivências que tomam os textos produzidos na pesquisa pelos cadetes
da PMMT, pois estas aparecem, apesar de involuntariamente, nas assinaturas produzidas
nas oficinas.
São as próprias confissões de si dissertadas por Nietzsche em Para Além de Bem e
Mal:
Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas (...)No filósofo, pelo contrário, absolutamente nada é impessoal; e particularmente a sua moral dá um decidido e decisivo testemunho de quem ele é – isto é, da hierarquia em que se dispõem os impulsos mais íntimos de sua natureza. (NIETZSCHE, BM, 6)
Escrevendo com sangue, Nietzsche dá notícia de que seu texto está embebido de
sua vida, seu processo de tornar-se. Suas vivências impregnam seus escritos. Tratam da
superação de si e recobram a necessidade de um leitor específico, posto que “não é coisa
fácil compreender sangue alheio” (ZA, Do ler e escrever, § 2º), daí decorre outro importante
ponto deste estudo: só se tem ouvidos para aquilo que acessamos por vivências. Aquele que
se dá a falar de si e imprime seu sangue neste intento deseja não apenas ser lido, mas “quer
ser aprendido de cor”.
Neste rastro, Leal (2011) mostra que este experimento não se mostra no viés da
impossibilidade, posto que o próprio autor, Oficial da Polícia Militar do Estado de Mato
Grosso, já deu notas de uma escrita de si, carregada com sangue:
Devo dizer que o sangue que viceja entre uma fratura e outra, resultado dos laivos salientes de minhas cicatrizes, é arremessado para a escrita. É simplesmente jogado no texto — sem muita amarra, confesso... — como numa síncope, num surto criativo deliberado de primeira mão, onde a reflexão secundária fere a originalidade da explosão imaginativa inicial, marca inconteste de um estilo pessoal adotado por mim para essa empreita. (2011, p. 13)
Em Ecce Homo, Nietzsche narra sua trajetória literária atrelada aos aspectos de sua
vida, suas vivências. Extrai-se na primeira parte do texto seu frágil estado de saúde (EH, Por
que sou tão sábio, 1). É possível compreender que em seu sofrimento físico ele pode
enxergar com muita clareza a natureza humana e os dogmas cultuados. Ao não estar
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embebido de nenhuma satisfação dos sentidos (a felicidade, o amor, a saúde) teve noção
das coisas que não percebemos porque estamos satisfeitos ou crentes na satisfação.
Nietzsche teve a realidade dos sentidos por companheira, algo que só é possível quando não
busca qualquer satisfação.
Não por acaso, exige leitores bem especiais nesta metáfora fisiológica que é sua
filosofia: “bons dentes e bom estômago, eis o que lhe desejo! Se der conta de meu livro,
certamente se dará comigo!” (NIETZSCHE, GC, 54).
Partimos, então, da ideia de que só compreendemos o que estamos preparados
para compreender. Necessário possuir vivências semelhantes, de modo que só podemos ter
olhos ali onde também possuímos vivências.
Os cadetes deixam suas vivências impregnadas nos escritos produzidos durante a
pesquisa, contam a si seu processo de individuação, refletem sobre como se tornaram o que
são, impregnando o texto de rastros, a vontade de vida, a potência deste caminhar.
- Escritura
Importante destaque para este estudo tem o conceito derridiano de escritura. Toda
a pesquisa gira em torno de textos produzidos pelos cadetes da PMMT em Oficinas de
Transcriação. A potência do ato de escrever precisa ser evidenciada para que não se cometa
o erro milenar de subjugar a escrita pela fala.
Em A Farmácia de Platão (2005), Derrida utiliza o mito de Theuth, onde Platão
apresenta a associação e a comparação da escritura com o phármakon. O uso da mitologia
favorece a discussão em torno da aceitação da escrita enquanto invenção legítima.
Apresenta a escritura como phármakon, remédio para que a rememoração fosse permitida,
através do registro físico da fala. Todavia, o phármakon é remédio e veneno, à medida que
permite a gravação do que foi dito, o diminui, pois “sob pretexto de suprir a memória, a
escritura faz esquecer ainda mais; longe de ampliar o saber, ela o reduz” (DERRIDA, 2005, p.
46).
Derrida traz a noção de escritura como um discurso soberano, não submisso a fala.
Busca o abandono da ideia de escritura como suplemento da fala, fazendo-se resvalar a
dualidade do phármakon a escritura assume esse duplo, não mais submetida à razão da fala
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como superior, mas como aberta a várias possibilidades. Esta ambivalência dá lugar a um
jogo importante também na produção de conhecimento, demonstra sua potência e a
abertura à diferença.
Sendo a escritura um discurso que se queria falado, esta é desnaturada e órfã, pois
é na violência que captura a interioridade da fala. Esta não lhe sendo submissa, se lhe opõe e
distancia-se no jogo constante do remédio e veneno. Contrariamente à fala “que teria na
presença do autor (pai) um ser sempre a defender seu filho-texto, a protegê-lo e a velar por
sua verdade”, a escritura é “letra morta, grafada em monumento, fria e ausente, se dá com
um discurso parricida: assassina seu pai, escapa de seu controle, significa em sua ausência”
(SANTIAGO, 1976, p. 60).
Neste sentido, o parricídio é a afirmação do f