UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO ......Isso mesmo: vida! Perfeita cisão entre o antes...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FERNANDA LEONEL MACHADO TESSITURA DA INDIVIDUAÇÃO: COMO O ALUNO A OFICIAL DA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR COSTA VERDE SE TORNA O QUE É CUIABÁ-MT 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

    INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

    FERNANDA LEONEL MACHADO

    TESSITURA DA INDIVIDUAÇÃO: COMO O ALUNO A OFICIAL DA ACADEMIA DE POLÍCIA

    MILITAR COSTA VERDE SE TORNA O QUE É

    CUIABÁ-MT 2016

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    FERNANDA LEONEL MACHADO

    TESSITURA DA INDIVIDUAÇÃO: COMO O ALUNO A OFICIAL DA ACADEMIA DE POLÍCIA

    MILITAR COSTA VERDE SE TORNA O QUE É

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Linha de Pesquisa Cultura, Memórias e Teorias em Educação.

    Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro

    Cuiabá-MT 2016

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    Ele parece escrito na linguagem do vento que dissolve a neve: nele há

    petulância, inquietude, contradição, atmosfera de abril, de maneira

    que continuamente somos lembrados tanto da proximidade do

    inverno como da vitória sobre o inverno, a qual virá, tem de vir,

    talvez já tenha vindo...

    (NIETZSCHE, GC, Prólogo, 3)

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    DEDICATÓRIA

    À família Leonel. Além do compartilhamento de DNA, são as pessoas que

    ampararam meu crescimento, contribuindo com as mais belas vivências de amor e amizade,

    minha família!

    Em especial a meus avós, Sebastiana Dias Machado (in memorian) e Messias Leonel

    Machado, símbolos de um amor imenso que sempre supriram todas as ausências. Com eles

    descobri a importância e o prazer dos estudos.

    À minha mãe, Maria Cláudia Leonel Machado, lutadora solitária na missão de me

    fazer uma pessoa de direitos – Obrigada por sempre dizer que eu era capaz!

    A meu companheiro e melhor amigo, Raimundo Francisco de Souza. Pela força e

    compreensão nos momentos difíceis, aqueles dias em que me perdia na complexidade dos

    estudos desta pesquisa. Meu teto, meu chão, meu alicerce – proteção!

    Aos meus amores: Lucas Francisco, Davi Fernando e Gabriel Felipe. Inspiração e

    alegria, razões do meu dia a dia. Meus filhos!

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Doutor Silas Borges Monteiro, pela orientação paciente e amiga. Por

    abrir frestas a outros horizontes, possibilitando um crescimento a partir de mim. Um

    crescimento que, no princípio, se fez dor e desfazimento, depois puro prazer. Um tom de voz

    que não se altera, mas reverbera com amplitudes não imagináveis, lecionando a

    argumentação, a cientificidade, a escrita, a filosofia e a educação. Ofereceu-me

    possibilidades outras e um olhar diferente para fora do centro. Presentear com possibilidade

    é favorecer o livre arbítrio. Obrigada por não me oferecer prisões e métricas, mas

    multiplicidades.

    À Professora Doutora Emília Carvalho Leitão Biato, pelas valiosas contribuições

    quando do exame de qualificação. Ofereceu-me um mapa, tal qual fio de Ariadne para me

    conduzir no labirinto textual. Assim, pontuando assertivamente minhas incongruências,

    possibilitou a segurança necessária na conclusão do texto. Uma palavra expressa sua

    atuação: carinho!

    Ao Professor Doutor Gabriel Rodrigues Leal, Major da Polícia Militar do Estado de

    Mato Grosso, pela imprescindível cooperação no ato de prover a tecedura do liame dos

    meus estudos à realidade de nossa Instituição. Conselheiro importante, chamando à ordem

    a necessidade de um texto coerente ao referencial teórico, sobretudo fazendo justiça à

    subversão da filosofia francesa aqui suscitada. Sua trajetória me inspira.

    À Professora Doutora Michelle Tatiane Jaber da Silva pela atenção que sempre

    dedicou aos meus textos nas disciplinas do mestrado e as contribuições necessárias e

    importantes neste caminho de estudo.

    À Professora Doutora Marcia Helena de Moraes Souza por ser voz apaziguadora e

    diretiva, contribuindo para o fluir do texto e das ideias. Acalentadora de saberes, mãos e

    olhos gentis que transmitem a experiência.

    Ao Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, aqui fazendo

    reverência especial ao Programa de Pós-Graduação em Educação e todos seus integrantes

    técnicos. Meu carinho especial aos Professores e às Professoras, pelos ensinamentos

    reveladores.

    A Alessandra Abdalla pela “leitura amiga”. Em momentos onde a inspiração se

    esvaia, sua voz-escrita sinalizava a possibilidade de um sopro a mais.

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    A minha parceira de desfazimentos, Aline Campos. Juntas trilhamos este

    (des)caminho, procurando não encontrar certezas, mas produzir escrituras neste ato de

    pesquisar-filosofar. Sem você a dor teria sido imensa! Obrigada por dividir comigo as

    angústias e incertezas, também os momentos de alegria e fascínio pelo conhecimento

    adquirido.

    Ao amigo Major PM Alessandro Souza Soares, companheiro de Curso de Formação

    de Oficiais, que alçou vôos em outras terras fazendo da aventura do conhecimento sua

    razão. Colaborador entusiasmado desta pesquisa com palavras de incentivo e apoio direto.

    A duas mulheres policiais militares que me inspiraram a estudar minha Instituição:

    Ten Cel PM Diva Maria Oliveira Mainardi e Ten Cel PM Adriana de Souza Metello.

    A meus comandantes, Cel PM Wilson Batista e Cel PM Rachid Mohamed Rachid

    Hassoun, por terem entendido e apoiado esta pesquisadora, colaborando para que pudesse

    cumprir os créditos do programa.

    Ao Grupo de Pesquisas Estudos de Filosofia e Formação - EFF/UFMT. Nenhum

    conhecimento seria produzido sem a mágica descoberta do descentramento e das

    possibilidades que se engendram a partir das discussões e do pesquisar com filosofia.

    A Diretoria de Ensino, Instrução e Pesquisa da PMMT e ao Diretor, à época, Cel PM

    Ildomar Nunes Macedo, por ter autorizado a realização das Oficinas de Transcriação com os

    Alunos a Oficiais, um gesto claro de que a cientificidade é valorizada pela Instituição.

    A Academia de Polícia Militar Costa Verde, em especial ao Comandante, Ten Cel PM

    Edson Benedito Rondon Filho, por ter me aberto as portas da Unidade Escola e contribuído

    neste caminhar com suas experiências como Doutor em Sociologia.

    Aos Alunos a Oficiais do ano 2015, Turmas: Cadete Fonseca, Barão de Melgaço e

    Pascoal Moreira Cabral. Por emprestarem seu ânimo a esta pesquisa ao fazerem escritos de

    suas vivências, com isso dando notícias de sua individuação. Estar com vocês falando sobre

    polícia e policiais foi a parte mais linda desta pesquisa!

    À Polícia Militar do Estado de Mato Grosso, minha casa desde 1999. Na esperança

    de que este estudo possa contribuir para o reconhecimento das diferenças que permeiam e

    movimentam a Instituição.

    Agradeço a Deus pelas muitas bênçãos e por ter me favorecido com seu imenso

    amor!

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    RESUMO

    Esta dissertação trata de uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em

    Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, na área de

    Educação e na linha de pesquisa Cultura, Memórias e Teoria em Educação. Tem como foco a

    formação dos Alunos a Oficiais da Academia de Polícia Militar Costa Verde, através da escuta

    das vivências cotidianas que compõe sua individuação, utilizando o método de investigação

    otobiográfico, tendo como fundamento o trabalho de Monteiro feito a partir do conceito de

    otobiografia de Jacques Derrida. Por este método, propõe-se a ouvir a vida escrita dos

    participantes da pesquisa - alunos do primeiro, segundo e terceiro ano em formação no ano

    de 2015 - que dão nome à própria história através de Oficinas de Transcriação. Os textos

    produzidos, firmados em sua assinatura, no sentido derridiano, tem sua força no seu caráter

    autobiográfico; revelam potências de vida, caminhos de vivências que tecem a individuação.

    Sustenta-se aqui que um texto é sempre autobiográfico, havendo nele a assinatura de seu

    autor, dando notícias de suas vivências a partir de seus escritos. Com a metáfora do

    labirinto, busca-se ouvir escritos identificando as potências de vida neste membranoso,

    arenoso e tortuoso caminho que conduz e compõe a tessitura da individuação. As

    ressonâncias dos textos produzidos dão notícias de que a tecnicidade e formalidade

    presente no ensino policial militar não impedem o desenvolvimento das individualidades,

    mas, à sua maneira produzem diversas formas de ser Oficial da Polícia Militar de Mato

    Grosso.

    Palavras-chave: Investigação otobiográfica; policiais militares; vivências; individuação;

    formação.

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    ABSTRACT This dissertation is a survey conducted in the Postgraduate Diploma Program in Education

    from the Institute of Education of the Federal University of MatoGrosso, and the research

    concentration in Culture, Memories and Theory in Education. It focuses on the training of

    students from the State Military Police Academy Costa Verde by listening to their everyday

    experiences that make up your individuation, using the otobiographicresearch method,

    taking as baseline Monteiro’s work done from the concept of otobiography of Jacques

    Derrida. By this method, it is proposed to hear the life writing of research participants - who

    were first, second, and third-year-students in the commissioned officer training program in

    2015 - which give name to its own history through Transcreation workshops. The produced

    written texts, shaped in their signature, in the Derridean sense, have its strength in its

    autobiographical character; reveal life powers of experiences, ways of experiences that

    shapes individuation. It is argued here that a text is always autobiographical, with its author

    signature, reporting experiences from their writings. With the labyrinth metaphor, we seek

    to hear written identification oftheir living powers in this membranous, sandy and tortuous

    path that leads and composes the fabric of individuation. The resonances of the produced

    written texts give news that the technicality and formality presented in the State Military

    Police Education System do not prevent the development of individualities, but, to their

    pathways produce different ways of being a Mato Grosso State Military Police Officer.

    Keywords: Otobiographical Research; Military Police; Experiences; Individuation; Formation.

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    Notação Bibliográfica

    Foi adotada, para citação das obras de Nietzsche, a convenção proposta pela edição

    Colli/Montinari das Obras Completas. Siglas facilitam a leitura das referências, que são as

    seguintes:

    NT - O nascimento da tragédia

    HH I - Humano, demasiado humano (vol. 1)

    AS - Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra

    A - Aurora

    GC - A gaia ciência

    ZA - Assim falou Zaratustra

    BM - Para além de bem e mal

    GM - Genealogia da moral

    CI - Crepúsculo dos ídolos

    EH - Ecce homo

    EE - Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino

    Na citação, o algarismo arábico que segue a sigla indica o aforismo, a seção ou

    parágrafo do livro.

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO - o EFF/UFMT como caminho ............................................................................ 14

    Capítulo I - O MÉTODO ............................................................................................................. 20

    LABIRINTO METODOLÓGICO – das forças ativas e afirmativas presentes na pesquisa. ..... 21

    - A tradição posta em questão ...................................................................................................... 21

    - Teseu - Ariadne – Dioniso: as forças que habitam a pesquisa .................................................... 23

    MÉTODO OTOBIOGRÁFICO - eis o labirinto! ........................................................................ 27

    - Um primeiro olhar por entre as frestas ...................................................................................... 27

    - Notações sobre a pesquisa ......................................................................................................... 28

    FUNDAMENTAÇÃO DO MÉTODO ......................................................................................... 32

    - Assinatura.................................................................................................................................... 33

    - Autobiográfico............................................................................................................................. 37

    - Vivências ..................................................................................................................................... 38

    - Escritura ...................................................................................................................................... 41

    - Gesto Otobiográfico .................................................................................................................... 44

    - Da relação com o emissor: uma pesquisa a muitas mãos. ......................................................... 46

    INSTRUMENTO DA PESQUISA ............................................................................................... 47

    - Caminhos como transcriação ...................................................................................................... 47

    - “Minha Assinatura” - o movimento da Oficina de Transcriação ................................................. 48

    Poesia e ficção: o ler-escrever em prática na acadêmica da Polícia Militar ................................. 50

    Capítulo II - O ENSINO POLICIAL MILITAR ................................................................................. 55

    EU CONFESSO! ...................................................................................................................... 56

    HISTÓRICO LEGAL – as letras da lei que dizem da Polícia Militar ........................................ 57

    RELATÓRIOS DA GENESE – Criação da Academia de Polícia Militar Costa Verde ................ 59

    PODER DE POLÍCIA: entre a força e violência da lei. ............................................................ 61

    O ENSINO DA HIERARQUIA E DISCIPLINA: pilares que assentam uma Instituição .............. 63

    ADAPTAÇÃO E CONDICIONAMENTO – um estrangeiro em quarentena. ............................ 67

    JOGADOS AO LABIRINTO – o (re)nascimento-morte no labirinto iniciático ........................ 72

    CONDUTA DE REBANHO – um olhar crítico, prelúdio de um espírito livre? ........................ 76

    PELO DIREITO A UMA ÚLTIMA QUESTÃO: há responsabilidade e autonomia na formação

    policial militar? ..................................................................................................................... 83

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    Capitulo III - A ESCUTA DAS VIVÊNCIAS:As personagens do ensino policial militar em Mato

    Grosso ....................................................................................................................................... 89

    LABIRINTO DA FORMAÇÃO: entre Teseu e Dionísio ............................................................ 90

    ECOS DO LABIRINTO: vivências do cadete da APMCV ......................................................... 93

    ALGUMAS OUTRAS RESSONÂNCIAS: ecos da pesquisadora .............................................. 100

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 102

    REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 108

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    INTRODUÇÃO - o EFF/UFMT como caminho

    É este o momento de apresentar as motivações desta pesquisa. Sou policial militar

    há aproximados dezoito anos. Vida militar que iniciou ainda aos dezoito anos da juventude.

    Isso mesmo: vida! Perfeita cisão entre o antes e agora.

    Sou Oficial da Polícia Militar, formada na Academia de Polícia Militar Costa Verde no

    ano de 2001. Parte de minha experiência profissional se deu no Centro de Formação e

    Aperfeiçoamento de Praças Polícia Militar e sempre tive um estreito laço com a educação

    policial militar. Percebo que a educação na Instituição sofre fortes influências das relações

    humanas, entrecruzando a disciplina e a hierarquia, o ensino militar e as técnicas policiais.

    Entrelaçada ao tecnicismo, entra em cena a pessoa, o policial militar que deve dar conta de

    sua formação a partir dele mesmo e por entre as regras determinadas a este profissional.

    De minha atuação na Corregedoria Geral da PMMT e da análise de situações que

    evidenciam a falência dos ideais formativos sobre a padronização de condutas, sobreveio a

    intenção de evidenciar outros elementos na formação policial que escapam aos “olhos

    duros”1 da Instituição. Assim, acredito que a formação do Oficial da Polícia Militar de Mato

    Grosso é fruto dos ensinamentos acadêmicos e das vivências de cada um dos indivíduos

    envolvidos nesse processo. É neste norte que proponho este estudo, problematizando as

    relações e atestando a individuação dos envolvidos nesta aventura de tornar-se policial

    militar.

    Ao adentrar pela primeira vez aos portões de uma Unidade Escola de Polícia Militar,

    fui apresentada a um mundo inteiramente outro. Os gestos e palavras deviam ser

    apreendidos com perspicácia, meus sentidos deviam ouvir, entender, assimilar, absorver

    aqueles novos ares. A ruptura não foi fácil, desgarrar-me da outra vida, doeu! Mas, sendo o

    ensino policial militar eficiente, percebi-me, enfim, policial militar. É disso que trata este

    texto, tornar-se o que é.

    Vejo aqui um desafio tamanho, pois ao militar não é dado falar de si. É preferível as

    letras frias das leis e das normas para dizer como proceder, mas nunca expor o que é. Talvez

    1Em referência ao termo utilizado por Jacques Derrida em O Olho da Universidade, tendendo a necessidade de

    que devemos fechar os olhos para enxergar melhor, pois o pensamento ocorre quando nos inundamos do

    escuro causado pelo bater de pálpebras, o que é impossível à animais de olhos duros.

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    por isso nossas pesquisas nos Centros de Ensino Policiais Militares costumam enfocar a

    técnica, a Lei, a sociedade, tudo; menos o policial militar.

    Eis aqui uma transgressão! Talvez a oportunidade única de dar voz ao policial

    militar. Suas vozes são ouvidas ao longo do texto, vidas demarcam o conhecimento

    produzido aqui. O próprio silêncio se fará ouvido, pois, silenciar é uma vocação natural da

    formação policial militar.

    É preciso, pois, denunciar as limitações da pesquisadora neste contexto. Sendo

    policial militar posso transigir meu objetivo, praticar diversamente afirmações que desejo

    questionar. Pulsa aqui meu coração e, em cada palavra, uma constante luta pela

    possibilidade de por a falar o policial militar.

    Nos primeiros encontros com o Grupo de Pesquisa Estudos de Filosofia e Formação,

    da Universidade Federal de Mato Grosso – EFF UFMT, sob o olhar do Professor Doutor Silas

    Borges Monteiro, percebi ares diferentes, daqueles que sufocam de tão rarefeitos. A

    diversidade habita ali. Ouvi muitas vozes falando ao mesmo tempo, muitos discursos

    dispostos à mesa e todos em igual condição.

    Como quem contrai uma febre, fui exposta a um pensamento rebelde. Senti a

    violência do pensamento de Nietzsche perfurando meus recalques, martelando meus

    conceitos. Dos seus herdeiros infernais, Jacques Derrida e Gilles Deleuze, bebi o veneno do

    pensamento da diferença.

    Talvez agora possa dizer de uma morte-vida militar, não há consenso em mim

    porque sigo mais policial militar do que nunca, todavia, o que era uma direção única, agora

    se apresenta em labirinto. Descobrir o incerto como caminho é ferir de morte os desígnios

    da formação policial militar. Trilhar este labirinto é pulsar em meio à morte-vida que habita

    em mim.

    Começo a ser perseguida pela ideia de identidade que sempre me fora tão

    confortável. Na formação policial militar buscamos a sensibilização para a identidade

    institucional, desejamos a imagem de grupos coesos, pessoas perfeitamente enfileiradas

    técnica e ideologicamente.

    Encontro na Filosofia da Diferença a possibilidade de discussão desta programação

    em massa, desta eterna busca pela identidade. Identidade que se encontra em direção

    oposta ao pensamento deleuziano, a partir das considerações que faz dos escritos de

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    Nietzsche. Construir identidade, significa, para Deleuze, a tentativa de igualar o não igual. A

    busca da identidade policial militar faz silenciar a singularidade de cada profissional.

    Eis aí um pensamento onde os sujeitos imprimem significados e agem em um

    processo de singularização, apropriando-se de sua subjetividade e causando

    desterritorializações2, fazendo resvalar a diferença. Penso, então, na individuação, em cada

    pessoa enfileirada e não somente na fileira.

    O conhecimento científico dessa individuação busca na investigação otobiográfica

    de Silas Borges Monteiro a possibilidade de uma análise da fisiologia da experiência, uma

    experiência que é vida, que se traduz em caminho, na vontade de potência, pois “essa

    vontade de potência mostra-se nas vivências. Melhor dito, as vivências são sintomas da

    vontade de potência” (MONTEIRO, 2013, p. 40).

    A pesquisa é feita na Academia de Polícia Militar do Estado de Mato Grosso, tendo

    como participantes os alunos a Oficiais do 3º, 2º e 1º anos. Suas vivências passam em revista

    por aqui. Suas experiências de vida falam de si, eles contam suas trajetórias, revivem sua

    vida. Em Deleuze (2006) encontro que o ato de Nietzsche de lançar sua autobiografia, não o

    demarcam em um tempo, mas vivificam sua história a cada instante.

    Não existe um ponto de partida, mas uma profusão de fatos sempre andantes,

    alternantes e deslocados. A auto apreensão das experiências da vida provoca devires e abre

    margem a outros devires. Esta alternância entre pousos e vôos, experimentados a partir de

    sua própria história exalam a diferença, fazendo com que não seja possível o simples retorno

    a aquele tempo vivido, mas uma nova vivificação do experimentado, trazendo novas

    possibilidades.

    Esta vivificação é formalizada em escrita durante a pesquisa, como confissões de si.

    Em Jacques Derrida, este ato autobiográfico de contar como se tornou o que é, revestido na

    escritura desta narrativa, pode ser entendido como assinatura, pois “por definição uma

    2Desterritorializações (Deleuze e Guatarri): conceito onde a noção de território é extendidaem relação ao uso

    corriqueiro. O território pode ser entendido como espaço vivido ou onde um sujeito se sente a vontade, no

    sentido de apropriação. Desterritorialização é o abandono de territórios criados nas sociedades e sua

    concomitante reterritorialização. Remete-se ao próprio pensamento, sendo que os dois processos se

    relacionam, um perpassa o outro em movimento. Não é possível que haja desterritorialização, sem, ao mesmo

    tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte, sendo este um movimento constante.

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    assinatura escrita implica a não-presença atual ou empírica do signatário, mas, dir-se-á,

    marca também e retém o seu ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um

    agora futuro, portanto, num agora em geral, na forma transcendental da permanência.

    (DERRIDA, 1991, p. 371)

    Também em Derrida o gesto desconstrutuor3, buscando os discursos entre os

    discursos, as teias que formam as ideias e as lacunas indizíveis deste tecido membranoso

    que é a formação policial militar.

    É Nietzsche que dá o tom para essa tessitura. Maestro da pesquisa, sua literatura é

    daquelas que faz revirar os mais tímidos ou sombrios sentimentos, aqueles que vêm do

    profundo vácuo existencial, da necessidade urgente de proclamar pensamentos

    inconcebíveis no cotidiano. Claro contraventor das normas impostas e disposto a ferir de um

    só golpe aquilo que amortiza e escarnece a liberdade e a possibilidade de uma vida plena.

    Sinto em Nietzsche uma vida pulsante, daquelas que se fizeram representar,

    latejante por denunciar a necessidade de viver e se fazer existir. É nesta potência de vida

    que busco o espelho para meus escritos. Uma experiência que deve ser contada sob um

    olhar fascinado, uma perspectiva que busca a vida, a existência, o caminho seguido, a auto

    interpretação. Um caminho que se faz rizomático4 e que foge aos enraizamentos que

    vinculam ao aprisionamento do sentir, do saber, do querer, do amar, do ser.

    Um prólogo para justificar uma contravenção tamanha. Ao falar do policial militar é

    difícil dissociar a imagem hierarquizada de uma norma que impregna seu próprio nome, a

    Instituição Polícia Militar. Pensar o profissional antes da Instituição. Procuro aqui individuar

    este profissional, no sentido estrito de lhe tornar indivíduo. Exercício sobremaneira

    complicado, eis que sua maior motivação, sua inclinação é se tornar corpo, Corporação.

    Seguindo um caminho labiríntico, descubro que o prazer maior não está em chegar

    a um lugar certo, mas em aproveitar os vários destinos. Perder-se é, talvez, a grande

    3Desconstrução – Jacques Derrida - um abalo no pensamento metafísico ocidental naquilo que se refere às

    relações binárias para estabelecer uma hierarquia ou supremacia de um termo sobre o outro. Busca, a partir

    dos próprios discursos, provocar sua desestabilização, ampliando seus limites. Ao questionar os diferentes

    discursos, opera no terreno da ambivalência e da duplicidade, não se entregando às escalas hierárquicas da

    metafísica.

    4Rizoma - da filosofia de Deleuze e Guattari – proposta de construção do pensamento através do modelo do

    rizoma, onde os conceitos não partem de um centro, portanto não se faz em hierarquia (modelo arborecente),

    mas em rizomas (modelo raízes), funcionando através de encontros e agenciamentos, multiplicidades.

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    aventura aqui. Deixo de lado meus azimutes e minha tralha de campanha militar, tento

    achar o ar rarefeito na direção que ele me quiser levar, porque “o que está posto em

    questão é a vivência do processo e o conhecimento adquirido com ele, muito mais do que o

    estabelecimento de uma resposta. O percurso é conhecer; seu método, a criação, o ensaio”

    (MONTEIRO; BIATO, 2008, p. 266).

    Tendo optado pela investigação otobiográfica proposta por Silas Borges Monteiro,

    vejo a possibilidade de ouvir as vivências dos alunos Oficiais em formação na Academia de

    Polícia Militar. Vivências que estão atreladas à sua produção textual, pois “só artificialmente

    podemos separar um texto da vida do seu autor” (MONTEIRO, 2007, p. 471). Os

    participantes da pesquisa produzem textos contando como se tornaram o que são. A partir

    desses escritos, busco ouvir as vozes nos textos, as vivências, os caminhos e as experiências

    que os conduzem à individuação.

    Estruturalmente, a pesquisa divide-se em três partes:

    A primeira trata do método, do gesto otobiográfico5 de ouvir experiências de vida,

    as vivências. Nômade por natureza, desde sua propositura foi adotado das mais variadas

    formas. As possibilidades que se engendram a partir dele serão demonstradas singelamente

    com a finalidade precípua de demonstrar a forma como será empregado nesta pesquisa.

    Sinto-me a vontade de me apropriar dele na sua forma labiríntica, trazendo a possibilidade

    de revelar os meandros da formação policial militar e dos indivíduos de sua cadeia.

    São feitos os relatos sobre a realização de Oficinas de Transcriação6 como

    instrumento de pesquisa e a força criadora presente no ato de ler-escrever um texto. Este

    tomado como autobiográfico, pois, contando suas biografias firmam suas assinaturas no

    gesto de falar de si mesmos.

    Por fim, é explicitada a estratégia metodológica que percorre toda a produção deste

    texto, pois, as escrituras produzidas nas Oficinas de Transcriação são auscultadas e trazidas

    para compor e “falar”, em conjunto com as impressões da pesquisadora, como o aluno a

    Oficial da Polícia Militar torna-se o que se é.

    5Método Otobiográfico – proposto por Silas Borges Monteiro, a partir do conceito criado por Jacques Derrida

    no livro Otobiografias: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio. Resumidamente, um gesto de ouvir

    escritos, a partir do conceito nietzscheano de vivência.

    6(OsT) Oficinas de Transcriação - realizadas como "instrumento de coleta de dados" da pesquisa. Uma

    proposta de leitura - escrita agenciada pela arte, deslocando o modo convencional de pesquisar.

  • 19

    Na segunda parte constará um breve histórico da formação policial militar em Mato

    Grosso. Enfoque maior será dado ao processo de construção de valores militares neste tipo

    de formação, bem como discussões sobre a importância que se dá aos ritos e mitos e da

    maneira como se dá uma apreensão crítica da própria atividade profissional. Sob o olhar

    derridiano serão desconstruídas posições históricas sobre a função da Instituição e de seus

    membros quando nos referimos à produção de títulos acadêmicos, bem como sobre

    assinatura e hospitalidade na formação policial militar.

    Na terceira são ouvidos os ecos do labirinto formativo, este tomado nas

    interpretações de Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Mircea Eliade, questionando a morte e

    (re)nascimento na formação policial militar. As vivências presentes nos textos produzidos

    nas Oficinas de Transcriação são ouvidas, sob o atendo olhar que busca saber o que quer os

    discursos. A cena do aluno Oficial em formação na Academia de Polícia Militar Costa Verde

    está em questão. As muitas escrituras constituem o tornar-se dessa personagem, contam as

    experiências que conduziram o aluno a Oficial até o momento da pesquisa, revelam como se

    tornou o que é, a tessitura de sua individuação.

    Nas considerações finais uma análise do percurso da pesquisa e das breves certezas

    que se encerram por aqui.

  • 20

    Capítulo I

    O MÉTODO

  • 21

    LABIRINTO METODOLÓGICO – das forças ativas e afirmativas presentes na pesquisa.

    - A tradição posta em questão

    “O método é o percurso do conhecimento e que este se estabelece como criação e

    não como descoberta. O conhecimento produzido vem a ser uma perspectiva entre

    outras e não, ao estilo metafísico, o conhecimento único e eterno sobre a realidade”

    (MONTEIRO, BIATO, 2008, p.270)

    Inicio pela metodologia porque tudo o que se seguirá o será feito com base na

    escuta das vivências dos alunos a Oficiais da Academia de Polícia Militar de Mato Grosso,

    através da investigação otobiográfica, motivo porque todo movimento que perpassa a

    produção deste texto precisa ser prescritivamente delineado e desenhado na cena espectral

    que o envolve.

    É forçoso afirmar que a pesquisa se dá em solo arenoso, fora de padrões

    rigidamente estabelecidos, não há a essencial preocupação com a métrica ou estrutura.

    Antes, me preocupo em produzir conhecimento à luz de novos olhares, percorrendo

    caminhos desconstruídos, tateando escombros, entendido como “gesto de experimentação

    de sentidos e conceitos, é suplementação do que já existe, a partir dos cruzamentos da

    desconstrução com a ficção. É assumir o simulacro e a transgressão” (BIATO, 2015, p.126).

    Transgressão ao modo clássico da cientificidade, privilegiando a potência criadora e

    estabelecendo a sedução da pesquisadora pelo seu estudo, a alegria em meio à

    convalescença, a jovialidade, o sinal da grande saúde. Escrever assim é notícia de alegria,

    como a experiência de saúde após um longo período de doença como afirma Nietzsche no

    Prólogo de sua Gaia Ciência:

    Todo este livro não é senão divertimento após demorada privação e impotência, o júbilo da força que retorna, da renascida fé num amanhã e no depois de amanhã, do repentino sentimento e pressentimento de um futuro, de aventuras próximas, de mares novamente abertos, de metas novamente admitidas, novamente acreditadas. (NIETZSCHE, GC, §1)

    Um senso utilitário da cientificidade tem dado preferência por metodologias que

    buscam classificações e enquadramentos, ávidas por respostas transcendentes e “verdades

  • 22

    absolutas” traduzidas em números e percentagens. Aplicando maior rigor a esta realidade,

    entendo que a atividade de pesquisa, com ênfase mais crítica e criadora, tem sido legada a

    outro plano que não o principal quando falamos em construção de conhecimento científico.

    Para Dias da Costa (2014), a consciência sobre esta realidade tem despertado no

    seio acadêmico pesquisas críticas, por exemplo, aquelas enraizadas em perspectivas pós-

    estruturalistas e na filosofia da diferença. Trazem o novo e abraçam a possibilidade de

    construção de caminhos metodológicos singulares. Não existem garantias e/ou busca da

    verdade das coisas, tampouco é sua pretensão. Romper com a tradição metodológica é a lei

    que rege este processo de criação para além daquilo que nos foi ofertado como verdade e

    aquilo que nos foi permitido pensar. Nesta perspectiva, abro as portas desta pesquisa para

    um novo modo de lidar com obtenção de dados, (re)leitura dos resultados obtidos e

    exposição das impressões que povoam os escritos, isso porque:

    Se temos, por um lado, a predominância do modelo matemático para o método, ou da lógica formal como possibilidade de encontro com a verdade das coisas “tal qual são”, Nietzsche faz constante alerta sobre os desdobramentos conceituais que podem nos levar a essas teias metafísicas. Afirma, acima de tudo, nossa condição provisional diante da efetividade do mundo. Põe sob suspeita a pretensão em formular garantias metodológicas para o estabelecimento de sentenças que possam ser consideradas unívocas, portanto, verdadeiras. (MONTEIRO, BIATO, 2008, p.266)

    É a filosofia da diferença que delineia esta pesquisa, sua maior razão está nas

    possibilidades que se abrem a partir das discussões suscitadas, sem o interesse de proclamar

    a rigidez e o rigor de resultados quantificados e delimitados. Esta filosofia tem como

    referência importante Nietzsche e a impetuosa imagem dionisíaca de seus postulados,

    rompendo com a tradição filosófica apolínea, a razão e a verdade, pressupostos metafísicos

    que imperam sobre o pensamento ocidental.

    Herdeiros desta contravenção, Jacques Derrida e Gilles Deleuze, também inspiram

    pesquisas pautadas neste filosofar. Um convite às conjecturas, às perspectivas, aos

    extravasamentos, à “arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (DELEUZE &

    GUATTARI, 1992, p. 10).

    Ocorre uma “inversão” no pensamento filosófico expondo o sujeito às múltiplas

    experiências, retirando-o do centro da razão. Uma razão desconstrucionista derridiana,

    possibilitando a denúncia a esse aprisionamento logocêntrico, tendo sua força exercida

    através da possibilidade de identificar a dualidade que sempre operou o pensamento de

  • 23

    vocação metafísica. Possível, então, ver por entre os discursos, escutar a diferença que não

    se opõe, apenas transborda. Não se operam hierarquias, mas atravessamentos,

    sinuosidades, abismos, labirintos. A afirmação da pluralidade como questão primeira, um

    constante por vir, destino andante e andarilho.

    Este não-caminho inspira a investigação otobiográfica, que aqui se mostra em

    labirinto. Um chamamento ao filosofar, adotar estratégias perigosas, insanas até. Seguir este

    caminho de profusões múltiplas, procurando a construção do conhecimento científico no

    embate/debate com os intercessores da filosofia da diferença, construindo o método a

    partir dele mesmo, procurando estilo, a singularidade, as forças ativas e afirmativas deste

    pesquisar.

    - Teseu - Ariadne – Dioniso: as forças que habitam a pesquisa

    “Oh Dioniso, divino, por que tu me puxas as orelhas? perguntou Ariadne certa vez

    seu amante filosófico, em um daqueles célebres diálogos por sobre a ilha de Naxos.

    Eu vejo algo de gracioso em tuas orelhas, Ariadne: por que elas não são ainda mais

    longas?” (Nietzsche, CI, Belo e Feio, 19)

    Recorro a Deleuze (1976) para traçar aqui breves linhas sobre a teoria das forças em

    Nietzsche. Estas obedecem à seguinte tipologia: ativas e reativas. A superioridade das forças

    ativas se consubstancia na sua capacidade de criar, enquanto as reativas guardam um

    sentido de inferioridade, posto sua característica conservacionista. Ambas guardam em si

    sua qualidade de força e se definem pelas relações que travam com outras forças, pois “uma

    força é dominação, mas é também o objeto sobre o qual uma dominação se

    exerce”(Deleuze, 1976, p. 5).

    Neste movimento estabelecem sua diferença frente a outras forças por ação ou

    reação. A força ativa tem caráter afirmativo, enquanto a reativa um caráter negativo. A ação

    da força negativa somente pode ser pensada em oposição à força afirmativa, caracterizada

    por uma reação, daí sua inferioridade posto que não pode ser concebida independente da

    força ativa, dela é dependente.

    O caráter afirmativo ou negativo das forças remete ao conceito “vontade de

    potência” da filosofia nietzscheana. O que está em questão é saber quais forças dão origem

  • 24

    aos valores, de que maneira se estabelece um ponto de vista para que este seja considerado

    superior.

    Vontade de potência está relacionada com a criação de valores, um querer interno

    da força com capacidade interpretativa (ativa/reativa) e avaliativa (afirmativa/negativa).

    Assim, algo nobre está relacionado à força ativa/afirmativa, enquanto algo baixo está

    relacionado à força reativa/negativa. Nietzsche busca as origens desta relação e

    determinação na qualidade da força que cria e sustenta estes valores, atribuindo esta divisão

    a um contexto histórico, numa profunda crítica aos valores vigentes, estabelecendo sua

    genealogia da moral (crítica dos valores vigentes concomitante à proposição de novos

    valores).

    Aqui nos interessa dizer da qualidade da força presente neste pesquisar. Falar do

    policial militar em primeiro plano, levando em consideração aquilo que viveu e sua

    individuação, talvez, prima facie, possa ser encarado como uma força reativa ao modelo

    usual empregado para as pesquisas relacionadas à Segurança Pública, como uma negação ao

    que é sistemático. Povoada pela luta das forças afirmativas e negativas, esta pesquisa busca

    a transmutação desta ideia, não somente no sentido de questionar um modo de produzir

    conhecimento, mas na possibilidade de criação de novas possibilidades para discutir Polícia

    Militar e seus ideais educativos, evidenciando as personagens desse processo. Uma prova

    inequívoca de que consiste em um ato de afirmação com qualidade eminentemente ativa,

    um grito buscando desgarrar do pesado fardo que, até então, constituiu este pesquisar:

    Ora, é esse momento fundamental ("meia-noite") que anuncia uma dupla transmutação, como se o niilismo acabado desse lugar ao seu contrário: as forças reativas, ao serem elas mesmas negadas, tornam-se ativas; a negação se transforma, converte-se no trovão de uma afirmação pura, o modo polêmico e lúdico de uma vontade que afirma e se põe a serviço de um excedente da vida. (DELEUZE, 1997, p.117)

    Tomo por norte o texto de Gilles Deleuze (1997), Mistério de Ariadne segundo

    Nietzsche, para tratar da imagem labiríntica deste método e das forças que o povoam.

    Deleuze fazendo uma leitura do mito a partir de Nietzsche, utiliza o triangulo amoroso em

    que estão situados Teseu, Ariadne e Dionísio para falar do conflito das forças.

    Ariadne está situada entre dois homens, Teseu e Dioniso. Enganada por Teseu a

    quem ajudou a sair do labirinto, junta-se a Dionísio sendo levada, também, a outro labirinto.

  • 25

    Conta o mito que Ariadne se apaixona por Teseu, herói ateniense, ao saber de seu

    sacrifício buscando enfrentar o minotauro que habitava o labirinto de Dédalos. O local

    contava com vários caminhos entrecruzados, de tal forma que ninguém seria capaz de sair

    depois que nele houvesse entrado. Ariadne se oferece a auxilia-lo em sua investida contra o

    monstro, sob a condição que a desposasse e levasse para Atenas. Tendo aceitado a

    condição, o herói recebe uma espada e o fio (Fio de Ariadne) que o conduziria a saída do

    labirinto, após matar o monstro. Todavia, Ariadne não consegue viver o amor pelo qual

    tanto lutou, é abandonada por Teseu na ilha de Naxos enquanto dormia. Várias são as

    versões do desfecho da história, mas a que interessa aqui dá conta de que a deusa Afrodite

    teria se compadecido e prometido a Ariadne um amante imortal, o deus Dioniso, com quem

    viveu em festa. Após a morte da amada, Dioniso lança ao céu o presente de casamento, uma

    coroa de ouro cravejada de pedras preciosas, dando origem a uma bela constelação.

    O Fio de Ariadne é utilizado como metáfora em diversas construções do

    pensamento, no sentido da possibilidade de se guiar em meio ao labirinto e achar a saída.

    Deleuze, a partir de Nietzsche, a utiliza para tratar da vontade de potência e do conflito das

    forças ativas e reativas, entre o sentido de afirmação da vida e o ressentimento, a negação.

    Tratando do homem superior, concebe que este se vê direcionado por força reativa

    e vontade negativa. Teseu, o herói, encarna o sentido do homem sublime ou superior,

    aquele que, por inclinação própria, carrega o duro fardo e tem sobre suas costas o desejo da

    perfeição e do acabamento, constituindo um “disfarce ridículo” da afirmação e, como asno,

    a tem como suportar o peso, “avalia a positividade conforme o peso daquilo que carrega:

    confunde a afirmação com o esforço de seus músculos tensos”. (DELEUZE, 1997, p. 115)

    Entretanto, não sabe o que é afirmar-se. Como um grande ignorante não admite

    que afirmar é se desincumbir, desatrelar, descarregar, livrar-se dos valores antigos e tudo

    que o amortiza, criando valores novos para uma vida afirmativa, “Teseu não compreende

    que o touro (ou o rinoceronte) possui a única superioridade verdadeira: prodigiosa besta

    leve no fundo do labirinto, mas que se sente igualmente à vontade nas alturas, besta que

    desatrela e afirma a vida”. (ibidem, p.115)

    Apaixonada por Teseu, Ariadne compartilha de sua não afirmação, assumindo força

    reativa no ressentimento do abandono, o canto triste. Nietzsche a concebe como força

  • 26

    reativa, a alma ressentida, aquela que segura o fio da moralidade que conduz o herói no

    labirinto da moral disfarçado de conhecimento.

    Esta vontade negativa atrelada à força reativa conduz ao niilismo e a falsa afirmação

    do conhecimento, um mero disfarce da moralidade e do desejo de exterminar o touro, negar

    a vida submetendo-a a sua força reativa, as potências do falso.

    É no abandono que a força reativa de Ariadne se transmuta em afirmação pura, ao

    ser negada torna-se ativa de uma vontade que afirma, o niilismo em repetição, negando-se a

    si mesmo deseja a vida. Aproxima-se dela o além-do-homem:

    Ariadne sente que Dioniso se aproxima. Dioniso-touro é a afirmação pura e múltipla, a verdadeira afirmação, a vontade afirmativa; ele nada carrega, não se encarrega de nada, mas alivia tudo o que vive. Sabe fazer aquilo que o homem superior não sabe: rir, brincar, dançar, isto é, afirmar. (DELEUZE, 1997, p. 117)

    Dionísio é o deus da afirmação do ser e Ariadne a afirmação que o completa, a

    afirmação da afirmação. Ela deixa de ser a mão que conduz o fio da moralidade e da falsa

    afirmação no labirinto. Este passa a não ser caminho para matar o touro, mas o próprio

    touro, Dionísio-touro e sua orelha labiríntica. Ela deixa de ter as orelhas longas do asno que

    acredita afirmar e passa a ter pequenas orelhas redondas, a cura, o eterno retorno.

    Sob a perspectiva da dupla afirmação e da felicidade de estar junto a Ariadne,

    Dioniso não teme o eterno retorno, pois sabe que este será afirmação da vida, força ativa no

    canto alegre de Ariadne e “o labirinto já não é o caminho no qual nos perdemos, porém o

    caminho que retorna. O labirinto já não é o do conhecimento e da moral, e sim o da vida e

    do Ser como vivente” (Ibidem, p. 121).

    E nesta metáfora, inspirada por Dias da Costa (2014), penso esta pesquisa além da

    força reativa e negativa, mas através da possibilidade impar de trazer Dioniso para compor a

    vontade afirmativa e a força ativa deste texto. Abandono ao que nos obriga a produzir

    sempre o mesmo tipo de conhecimento, baseado em técnicas, leis, ordens e protocolos. Este

    pesado fardo que tem sido não se comprometer.

    Nietzsche é caminho labiríntico para esta pesquisa e os pressupostos de Monteiro

    (2013) sobre o método de investigação otobiográfica constituem as formas de encurtar

    orelhas, condição de possibilidade de criação do novo, novas perguntas, novos olhares,

    novos caminhos guiados pela afirmação da vida. A potência deste ato, pesquisar com a

    filosofia, está no fato de abrir janelas e aprofundar conceitos:

  • 27

    A potência do filosofar/pesquisar incide na abertura de canais e adjacências que interligam o pensamento a uma multiplicidade de olhares e escutas dos modos de vida heterogêneos e singulares, extemporâneos ao tempo e lugar. Ora com duras marteladas ora com uma sonoridade musical, a força do filosofar nietzschiano perfura lugares inauditos, disseminando uma multiplicidade de linguagens-outras (aforismos, metáforas, máximas, sátiras, liras, etc.) a um só tempo extemporâneas, errantes, extravagantes. (DIAS DA COSTA, 2014, p.13)

    Diminuo minhas orelhas ao passo que encontro o abandono dos azimutes que

    sempre me guiaram, como força reativa a esta negação que sempre esteve presente sob o

    manto de afirmação, a negação desta negação se transmuta em afirmação na possibilidade

    de dar voz ao policial militar. Uma pesquisa sem fardos e sem correntes não me encarregam

    de nada, apenas da liberdade criadora de disseminar possibilidades. Uma orelha circular

    pronta a ausculta daquilo que vem de fora, do outro.

    Lanço-me ao labirinto pleiteando a pequena orelha circular descrita por Nietzsche

    e, na metáfora do ouvido usada por Jacques Derrida em seu Otobiografias, perscrutando o

    labirinto que leva a uma escuta fisiológica das experiências de vida dos alunos a Oficiais da

    Polícia Militar do Estado de Mato Grosso. Por fim, busco timpanizar a pesquisa, fazendo

    ecoar os diversos sons que compõem a tessitura da individuação desses

    profissionais/alunos.

    MÉTODO OTOBIOGRÁFICO - eis o labirinto!

    “Escrever com o sangue é fazer pulsar vivências concretas do corpo. Mais do que

    um exercício racional, é fisiológico, cujo roteiro é labiríntico. Assumo, portanto, a

    trilha labiríntica, tortuosa, sinuosa”. (MONTEIRO, 2013, p.187)

    - Um primeiro olhar por entre as frestas

    Posto-me a frente do labirinto! Cabe agora a mim o prazer de apresentar as

    primeiras impressões do método, como um prelúdio à grande aventura que seguirá.

    A investigação otobiográfica foi apresentada por Silas Borges Monteiro em sua tese

    de doutoramento, na Universidade de São Paulo, no ano de 2004, cuja importância reside na

    possibilidade de uma pesquisa que investigue a experiência pessoal atrelada à formação

  • 28

    educacional e profissional. Nele o pesquisador ocupa o lugar de ouvinte escutando vivências

    presentes nos escritos.

    Na tese, Monteiro recorre à leitura que faz do livro Otobiografia: o ensino de

    Nietzsche e a política do nome próprio (DERRIDA, 1984), para cunhar um gesto de ouvir

    escritos e o faz ouvindo as alunas do curso de pedagogia, a partir do conceito nietzscheano

    de vivência. Na obra derridiana o tímpano assume papel importante, onde a metáfora

    auditiva da corpo ao ato fisiológico de escutar vivências.

    Tal método, recriado a partir do conceito de Derrida7, será utilizado para analisar as

    narrativas dos cadetes sobre as vivências experimentadas até o ingresso na Academia de

    Polícia Militar e aquelas decorrentes da formação, que, em conjunto, são responsáveis pela

    constituição de si.

    O termo vivências baseia-se no conceito de Nietzsche de que o indivíduo é

    determinado pelas vivências, qual seja, as experiências cotidianas estão na vida da pessoa de

    tal forma que a individualizam. Assim, analisando o caminho percorrido pelo profissional e

    as percepções alcançadas no trajeto, mostram como ele se tornou o que é.

    Não se trata de autoanálise, mas de substrato para percepção dos fatos, no sentido

    de que o indivíduo tem mais propriedade para falar daquilo que experimentou e viveu.

    Trata-se de um confronto existencial, onde as vivências são importantes ferramentas para

    delimitar o que se tornou. Outro ponto importante é a “interpretação avaliativa das forças

    que impulsionaram as vivências” (MONTEIRO, 2013, p. 26).

    - Notações sobre a pesquisa

    O enfoque da pesquisa tem como princípio a escuta das vivências dos alunos em

    formação na Academia de Polícia Militar Costa Verde. Através de suas experiências,

    afirmações e percepções do novo mundo é tecido o fio que conduz ao processo de

    individuação do Oficial disponibilizado à Segurança Pública de Mato Grosso. As notas que

    compõe a tessitura de sua formação.

    7A partir do livro Otobiografia: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio (DERRIDA, 1984). Oto (ouvir)

    Biografia (vida escrita).

  • 29

    Cabe aqui um parêntese para evidenciar duas disposições constantes no próprio

    título desta pesquisa, a saber: “Tessitura” e “Individuação”. Ofereço chaves para que o leitor

    possa acessar os meandros desta produção.

    Na intenção de produzir um trabalho que prime pela exposição de que o sujeito não

    deve ser encarado como um fim ou completude, mas uma constante obra inacabada, o título

    deve anunciar este desejo.

    A palavra tessitura assume um duplo viés quando de sua interpretação. No primeiro

    plano, refere-se ao “encadeamento entre as partes de um todo, organização ou

    composição” 8. Em outro plano - o da música - tessitura refere-se ao conjunto de notas

    usadas por um determinado instrumento musical, com a qualidade necessária à sua

    execução. No caso da voz humana, “refere-se ao conjunto de notas que um cantor consegue

    articular sem esforço de modo a que o timbre saia com a qualidade necessária” 9.

    A primeira definição cabe bem ao sentido que aqui tomo a tessitura, pois

    corresponde à noção de algo em movimento, que se compõe com o fim de uma organização

    sem, contudo, assimilar uma finitude, uma conclusão. Uma profusão de andamentos

    buscando formar cadeias, organização desestruturante, constituição, caminho, remetendo à

    ideia de processo.

    Não posso, todavia, perder a metáfora que a segunda definição impõe: um conjunto

    de notas que são articuladas sem esforço e produzem o timbre de qualidade necessária –

    um enlace daquilo que é inerente à pessoa, disposto em posições diferentes e que

    produzem o timbre perfeito espontaneamente.

    A individuação me instiga a tratar primeiramente do problema do indivíduo, este

    tomado como unicidade, pronto, não dividido; portanto, inconfundível e único. Uno em si e

    distinto dos outros. Assim, de que maneira algo que é comum a vários pode se tornar único -

    este ou aquele indivíduo? Pensar o indivíduo já constituído é possível apenas ignorando o

    processo de tornar-se. Para responder a esta questão, Gilbert Simondon pensa a relação da

    operação de individuação e de um princípio de individuação.

    8Tessitura in Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-

    2016. Disponível na Internet: http://www.infopedia.pt

    9Ibidem.

  • 30

    Como em um esquema propõe uma “sucessão temporal” a partir do princípio de

    individuação chegando ao indivíduo constituído, tendo como meandro a própria operação

    de individuação. Esta “operação de individuação” é considerada uma zona obscura

    interligando indivíduo pronto e princípio de individuação.

    Simondon se interessa pela operação de individuação, a reexamina destituindo o

    princípio de individuação e o indivíduo pronto de seus polos, causando cismas nas certezas

    em torno do processo. Assim, “o princípio de individuação não passará de um efeito daquela

    operação, ao mesmo tempo em que o indivíduo não mais terá o monopólio do ser concreto

    em sua totalidade” (ORLANDI, 2014, p. 76).

    É preciso, portanto, pensar a gênese recusando o indivíduo já constituído como

    ponto de partida e escolhendo o princípio de individuação como ponto de início. Então, a

    individuação produz o indivíduo em ontogenia, processo de transformações do pré-indivíduo

    até o indivíduo pronto. Nesta subversão, Simondon aduz que a operação da individuação

    explica como o indivíduo passa a existir ao mesmo tempo que se observam os

    desdobramentos do processo de individuar, não se extinguindo esta operação, pois “a

    individuação diz respeito à aparição de fases no ser. Ela não é uma consequência que se

    deposita na borda do devir e que se isola, mas a própria operação enquanto efetuante”

    (DAMASCENO, 2007, p.176).

    Individuação é movimento, inconstância, desfazimento. Não há unidade ou

    estabilidade, pois, individuar é desfazer unidades, refazer-se em constante devir. A operação

    de individuar não se restringe a camadas sobrepostas, como superação de acontecimentos e

    disponibilidade para o novo, mas ao sujeito pré-individual sujeito à incongruência das

    diversas direções, às múltiplas dimensões e estas lhe impõe diferenças, nervuras, um campo

    intensivo de individuação.

    Deleuze retoma Simondon para elaborar sua própria concepção de individuação. O

    tal campo intensivo e sujeito aos devires é, em Deleuze, diferença de intensidades. O sujeito

    pré-individual é tomado como sujeito larvar, embrião, ovo. Sobre ele se desenvolvem as

    tensões, os movimentos e as diferenciações. Primado do corpo sem órgãos, “corpo afetivo,

    intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares, gradientes” (DELEUZE, 1997,

    Princípio de Individuação Indivíduo Pronto Operação de Individuação

  • 31

    p. 148), característico da falta de estrutura, sobre ele se desenvolvem todas as formas de

    variações, não resiste às transformações.

    É preciso, pois, ser larva para suportar a ação de tais forças, uma mediatriz entre a

    ausência específica de forma e uma organização mínima, pois “há movimentos dos quais só

    se pode ser paciente, mas o paciente, por sua vez, só pode ser uma larva” (DELEUZE, 1997,

    p. 173-174).

    Esta diferenciação de força - variações de potência - remete ao entendimento da

    constituição de si, firmado em Nietzsche. Assim, o indivíduo exposto às variações do meio e

    de seu corpo, bem como às lutas de seus instintos, torna-se o que é, em uma variação

    constante, pois, “a vontade de vir a ser, crescer, dar forma, isto é, criar e, no criar está

    incluído o destruir” (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, 17 [3] maio-junho 1888). Não se trata

    de chegar a um fim, um lugar fixo, indivíduo pronto, mas do processo.

    Desta maneira, percebo o Aluno a Oficial a partir do princípio de individuação e não

    a individuação a partir dele. Não há estática ou definição do ser, mas uma fase do ser, uma

    profusão de intensidades e forças, transformações incessantes, potências de vida.

    Importante observar a interação deste processo ao meio, onde as intensidades se

    diferenciam de acordo com a experiência de cada indivíduo. Admito, então, a possibilidade

    de responder ao questionamento sobre de que maneira algo que é comum a vários pode se

    tornar único. As vivências, estas funcionam como equalizador das forças, são capazes de

    dizer da individuação, pois, "há, de fato, algo que o homem é e tem de ser, mas este algo

    não é uma essência, não é propriamente uma coisa: é o simples fato da sua

    própria existência como possibilidade ou potência” (AGAMBEN, 1993, p.38).

    Tais vivências são auscultadas a partir de textos produzidos pelos cadetes da

    Academia de Polícia Militar em Oficinas de Transcriação, onde concebem a construção de

    escrituras através do contato com obras literárias tratando de temáticas sobre a

    individuação e as forças postas em movimento neste processo.

    Procuro pelos aspectos da humanização do policial e do processo ensino-

    aprendizagem para se ensinar a ser policial militar, confrontadas a sua própria experiência

    de vida. Um processo que não pergunta “o que?”, mas “quem?”. Quer identificar os

    impulsos de vida na sua trajetória, fazendo com que este ato de contar a si mesmo o que

    passou, provoque a desterritorialização necessária em busca de devires. Monteiro assim

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Ess%C3%AAnciahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Exist%C3%AAnciahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Entelequia

  • 32

    afirma que “no projeto nietzscheano, interpretado por Deleuze, sempre cairemos no

    questionamento acerca das forças vitais que impulsionam a produção humana: calibrar essa

    questão significa ir ao âmago do que é interrogado. Sua fórmula mais precisa é ‘quem?’”

    (MONTEIRO, 2007, p. 479).

    Entender o processo formativo deste profissional e os impactos de suas vivências

    nesta formação, assim como as ações no decorrer de sua carreira é tarefa intrigante, cujo

    valor reside no entendimento sobre a melhor forma de cumprir o dever imposto pelo

    oficialato, ampliando a discussão em torno dos conceitos que regem a formação militar,

    frente ao exercício de uma polícia mais cidadã, mais humana e mais legítima.

    A pergunta que direciona a pesquisa é: Como o aluno a Oficial da Polícia Militar do

    Estado de Mato Grosso se torna o que é?

    Ao enveredar por estes caminhos, busco pelo processo de individuação, verificando

    as experiências formativas que lhe impactam. O gesto de ouvir o aluno a Oficial da Polícia

    Militar, busca a potência das forças envolvidas no exercício de torna-se o que é.

    A formação policial militar concebe traços que a singularizam frente às outras ideias

    clássicas de formação profissional. Estas características impõem especificidade, também, ao

    aluno a Oficial. Todavia, o processo de individuação do aluno a Oficial é um acontecimento

    independente das imposições dos regulamentos e das rotinas acadêmicas.

    Os participantes da pesquisa firmam suas assinaturas, através de textos escritos

    sobre sua formação policial militar e assinados por eles, gesto entendido como

    autobiográfico, porque é impossível separar a obra da vida de seu autor. É ato de dar voz ao

    aluno a Oficial da Polícia Militar para que expresse sua subjetividade frente ao sistema de

    ensino a que está inserido.

    A partir dos textos, são auscultadas as vivências presentes nos escritos, buscando

    pelas potências de vida que tomam a palavra e dão notícia sobre este processo formativo e

    como o aluno a Oficial da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso se torna o que é.

    FUNDAMENTAÇÃO DO MÉTODO

    O propositor do método escolhido para esta pesquisa afirma que a interpretação do

    pensamento nietzscheano abre margens para interpretações de outros conceitos do autor e

  • 33

    estes para outros, fazendo-se necessário uma “espécie de dicionário Nietzsche” (MONTEIRO,

    2013, p. 33), dando a impressão de repousarmos por sobre um labirinto, “onde cada porta

    aberta introduz um corredor de muitas outras portas”. Para isso nos solicita paciência ao

    caminhar neste pesquisar da investigação otobiográfica. Necessário, então, observar as

    pegadas marcadas na areia, rastrear as pistas deixadas neste solo acidentado. É o que busco

    fazer aqui, mostrar como me conduzi por este caminho, trazendo o leitor pela mão

    enquanto sigo o fio deixado por Monteiro.

    O método é, sem dúvida alguma, o maior desafio desta pesquisa. Por isso o esforço

    em conduzir o leitor por esse dúbio labirinto, que se mostra ora como o caminho andarilho

    do interpretar-se, do conflito das forças e das tentativas de encurtamento de orelhas, ora

    como o percurso membranoso da audição na escuta das vivências. Proponho adotarmos

    como fio de Ariadne a conceituação dos elos importantes do desafio proposto por Monteiro.

    Monteiro intitula o primeiro capítulo da tese como Ressonâncias da Filosofia e nele

    apresenta as chaves mestras para compreensão do método. A metáfora da escuta delineia o

    método, através da utilização do prefixo “Oto”. Otobiografia “é o empenho em dar ouvido às

    vivências que tomam a palavra nas expressões humanas” (Ibidem, 2013, p. 15).

    Toma o conceito a partir do livro de Jacques Derrida, Otobiografia: o ensino de

    Nietzsche e a política do nome próprio. Informa os elementos que formam sua convicção

    para o constructo do método e que o conduzem à experiência de criar também conceitos,

    possibilitando um novo jeito de pesquisar em filosofia da educação. Sigo o rastro deixado

    por ele, procuro tecer o fio desta pesquisa a partir das pistas espalhadas neste labirinto,

    encontro os conceitos caros deste pesquisar e com eles busco montar um quebra-cabeça

    que me favorecerá:

    - Assinatura

    O ato de declarar funda uma instituição, uma constituição ou um Estado.

    Necessário se faz o empenho de um nome próprio, aquele que atesta, assina. Portanto, a

    assinatura pressupõe um nome próprio, aquele que assina em seu próprio nome, que se

    compromete. Assim afirma Derrida: “A declaração que funda uma instituição uma

    constituição ou um Estado, requer que uma assinatura seja ai comprometida. A assinatura

  • 34

    guarda como o ato instituidor, como ato de linguagem e de escritura, um vínculo que não

    tem nada de acidente empírico” (2009, p. 13).

    Em Otobiografia: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio (1984), Derrida

    da notícia do estilo filosófico de Nietzsche, que tem sua filosofia fundada em sua própria

    experiência, sendo ele talvez o único a fundar sua filosofia em seu nome, através da

    assinatura de seu nome próprio.

    Na mesma obra, Derrida afirma que ao nome é dado o poder de firmar assinaturas,

    falando em nome deste nome. Narra que em Ecce Homo, Nietzsche dá o tom autobiográfico

    de sua filosofia. Curiosamente, Nietzsche encerra o livro assinando “Dionísio contra o

    crucificado” (NIETZSCHE, EH, “Por que sou um destino”, § 9), numa alusão clara à sua

    questão com o cristianismo, para Derrida é a pluralização da singularidade dos nomes de

    Dionísio e do Cristo, tomados como pseudônimos.

    Este ato autobiográfico de contar como se tornou o que é, revestido na escritura

    desta narrativa, deve ser entendido como assinatura, o traço de uma presença que retém o

    ter estado presente e que aí permanece. Anunciação de singularidades no ato de firmar,

    pois:

    Por definição uma assinatura escrita implica a não presença atual ou empírica do signatário, mas, dir-se-á, marca também e retém o seu ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro, portanto, num agora em geral, na forma transcendental da permanência (DERRIDA, 1991, p. 371).

    Assinar, em Derrida, é assumir responsabilidade. Não se trata de mero registro em

    um momento cronológico, é um testemunho, uma confissão, que perdura na iterabilidade.

    Esta característica de iterar, reproduzir, repetir e demarcar são a garantia de sua anunciação

    e a possibilidade existência.

    A assinatura reclama a singularidade do ato de produzí-la, necessária a capacidade

    de iterar, certa performatividade10 resultando não o ato em si, mas o seu ter acontecido e as

    circunstâncias, havendo a derivação da palavra evocada.

    10

    Ato Performativo: que, ao ser proferido, corresponde à ação a que se refere (ex.: "eu juro" é um ato performativo; verbo performativo). "performativo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://www.priberam.pt.

    https://www.priberam.pt/

  • 35

    Ao escrever textos dando notícia de seu processo de individuação, os cadetes

    testemunham sua vivência e estes textos aqui são encarados como confissão, testemunho

    público no sentido derridiano. É desta forma, em Salvo Nome, que Derrida (1995) afirma um

    caráter autobiográfico no discurso de santo Agostinho ao se confessar a Deus através de

    suas obras. Tendo por princípio que Deus sabe de tudo por antecipação, para o santo a

    confissão não tem o condão de revelar ou contar histórias, mas de afirmar verdades em

    amor a seu Deus, um testemunho público do que fez e do valor escritural deste testemunho,

    pois “um testemunho escrito parece mais público (...) sua sobrevida por meio da atestação

    testamentária” (DERRIDA, 1995, p.14).

    Esta confissão é inerente ao ato de afirmação de si, “trata-se de manter a promessa

    de dizer a verdade a qualquer preço, de prestar testemunho, de se render à verdade do

    nome, à coisa mesma, tal como deve ser nomeada pelo nome, isto é, além do nome. Ela

    salva o nome” (ibidem, p. 54). Permite-se aqui a dúbia interpretação de salvar o nome,

    tendo o entendimento de socorrer ou excetuar. Ambas as possibilidades sugerem a

    afirmação da presença daquele que escreveu.

    A assinatura carrega a possível individualidade, tem o condão de singularizar,

    especificar aquele que firma seu nome. A impossibilidade de uma assinatura subjuga e torna

    dimorfo o indivíduo. Jacques Derrida mostra que a mera possibilidade de tentar transformar

    o outro em outro qualquer, se faz extirpando-lhe o nome, a sua assinatura:

    O desprendimento deve permanecer em ação (portanto, renunciando à ação) para que o outro (amado) permaneça o outro. O outro é Deus ou qualquer um, precisamente, uma singularidade qualquer, a partir do momento em que qualquer outro é qualquer outro. Pois o mais difícil, ou até mesmo impossível, habita aí: aí onde o outro perde seu nome ou pode mudá-lo para se tornar qualquer outro. Passível e impassível, a Gelassenheits e exerce em nós, ela é exercida nessa indiferença pelo outro qualquer (Ibidem, p. 69).

    Procuro, então, pelas assinaturas presentes nos escritos produzidos na pesquisa.

    Aquilo que fazem em nome de seu nome, demonstrando seu posicionamento nas fileiras

    desta formação. Estas desenhadas nas tessituras/teceduras do texto, no movimento

    constante de descoser, dando luz às linhas desta trama, diferenças e semelhanças no jogo da

    “dissimulação do sentido do texto, disfarçando-o e envolvendo-o, ao mesmo tempo em que

    permite o seu desvendamento, a partir do instante no qual se começa a destecer a tela, que,

    sendo tal, esconde ao mesmo tempo que revela” (ibidem, p.93).

  • 36

    Tais escrituras são instancias de argumentação, no movimento do porvir, do tratar

    adiante – promessas! Não querem o centro, exercitam o entendimento de si até o

    transbordamento, o descabimento, fazendo apagar marcas, muros, certezas sob o pano

    escuro dos valores. Consubstanciam-se no livramento, direito à liberdade.

    Elas não monumentalizam um nome, não o inferem como um centro em si, rígido e

    indivisível, pedra fria jazindo a existência. Dão nome ao nome herdado no paradoxo de

    difundir e apagar ao mesmo tempo, testemunhando sua indecidibilidade. Avessa à

    singularidade expropria a propriedade do nome no movimento da revelação, esta que se faz

    em apagamento, aquilo que o torna ilegível não o suficiente para extinguir.

    Retomo a lógica do suplemento em Derrida, inferida na lógica de uma não

    identidade frente ao discurso metafísico ocidental, desprivilegiando as oposições binárias

    que imperam neste pensamento. Não se ater a identidades traz a possibilidade da conjunção

    “e” no intermédio desta tensão, assim: o dentro e fora, mesmo e o outro.

    Suplementariedade residente “nesse ‘deslizamento’ entre os extremos, na ausência total de

    uma essência” (SANTIAGO, 1976, p 90), presente no jogo do descentramento, jogo este

    furtivo:

    Seu deslizamento furta- o à alternativa simples da presença e da ausência. Este é o perigo. E o que permite sempre ao tipo de se fazer passar pelo original. A partir do momento em que o fora de um suplemento se abre, sua estrutura implica que ele próprio possa se fazer 'modelar', se fazer substituir por seu duplo, e que um suplemento de suplemento seja possível e necessário. (Ibidem, 1976, p.90)

    Para Santiago (1976) a suplementação só se faz compreender a partir do

    conhecimento da ausência de centros, no jogo da desconstrução, onde se instaura o signo

    flutuante – o suplemento – que em determinada estrutura supre e ocupa um lugar

    temporariamente.

    Portanto, o significado de uma escritura é sempre dinâmico pelas forças que

    alimentam os vários sentidos das palavras e a diversidade de interligações de textos. Pois um

    texto recebe influências de outros textos, estes compondo uma malha, tramas que se

    enredam na sua fabricação, um exercício de autocomposição. A desconstrução derridiana

    atua aí, neste solo de composições, enxergando os enxertos, extenuando-os em si mesmos,

    revelando enquanto se esconde. É cadeia de suplementos, multiplicidades.

    Deleuze afirma que para Nietzsche, "não há um só acontecimento, um só

    fenômeno, uma só palavra, um só pensamento cujo significado não seja múltiplo. Qualquer

  • 37

    coisa é ora isto, ora aquilo, ora alguma coisa de mais complicado, de acordo com as forças

    (os deuses) que a ocupam" (DELEUZE, 1976, p. 05). Assim é a escritura derridiana, potencia

    de multiplicidade sob o signo do phármakon – remédio e veneno.

    Assumida como simulacro nesta pesquisa, a assinatura, remete a esta

    multiplicidade, ao transbordamento do nome próprio inscrito no ato de tornar-se Oficial da

    Polícia Militar. Inventividades, descentramentos, diversas maneiras de assinar seu papel

    institucional.

    Necessário, aqui, compreender a possibilidade de simulacro quando nos referimos a

    assinatura. Este assinar, grafar autoria, escriturar revestindo de nome próprio sua história

    existe na suplementação do rastro, posto que toda escritura se põe em movimento, é

    andarilha. Rastros, gotejamentos de ter estado, se assumem em simulacro prestando

    informação sobre as cenas e as vivências experimentadas, inventividades outras sobre o que

    é, pois:

    Eu incorreria em erro gravíssimo se me ocupasse de perguntar pelos limites entre realidade e ficção neste jogo. As cenas se seguem como performance-vida e afirmam o simulacro. De modo análogo, a escritura — movimento de articulação da fala com a escrita, — movimenta este jogo da atuação. Com a morte do pai do texto, Derrida parece querer superar a procura pela presença, em aniquilação da metafísica dos remetimentos. (BIATO, 2015, p. 117)

    Simulacro não está relacionado com irrealidade. É antes um modo de

    questionamento ao real. Não quer o centro, posto que “talvez seja a característica

    diferencial da disseminação em relação ao simbólico: configura-se como jogo sem

    referências a verdades e nem mesmo a mentiras, e se estrutura como indecidibilidade”

    (ibidem, 2015, p. 133).

    Assinaturas são formas de diferenças, “modos de ser e de ver o outro, de se ver e

    de se ver no outro”. Neste desalinho, podem se apresentar em simulacro, inventividades da

    vida real, fantasia do ser.

    - Autobiográfico

    Para Monteiro, “a biografia, quando é tratada na Filosofia, vai além dos acidentes

    empíricos dos autores” (2007, p.474). Não há que se preocupar com a análise estruturalista

  • 38

    de textos, mas com a criticidade potente deste gesto de falar da vida, optando por

    questionar o movimento das forças imbricadas nas vivências presentes nos escritos.

    Contudo, este pesquisar guarda profunda importância ao autobiográfico, que aqui

    não constitui a mera possibilidade de imortalizar as ações dos vivos, através de histórias de

    suas vidas, revivendo os momentos, mas o ato de contar a si mesmo sua vida. Em Derrida,

    entendimento feito a partir de Nietzsche, um relato é autobiográfico porque é o ato de

    contar essa vida para si, sendo ele mesmo o destinatário da narração.

    Olini (2012) afirma que o autobiográfico tido por Derrida se diferencia daquele

    corriqueiramente conhecido, refere-se a um ato que extrapola os limites tradicionais da

    escrita, posto que “o autobiográfico deve nos fazer reconsiderar o lugar do ‘autos’, pois toda

    escritura autobiográfica é singular e põe em movimento de cooperação o ‘auto’ de sua

    ‘autoidentidade’” (p. 19).

    E, citando Derrida, a pesquisadora segue afirmando que “na escritura

    autobiográfica, o nome do autor, seu corpo, sua posição no espaço e no tempo são,

    paradoxalmente, fatos e ficções que devem ser tomados pela filosofia como ‘uma descrição

    mais ou menos viva de sua própria ‘escritura’” (ibidem, 2012, p.19).

    Monteiro nos adverte para não entender a implicação de vida e obra como

    psicologismo, mas como reflexão filosófica, pois “é retorno do pensamento sobre si mesmo,

    destinando-se sua descrição, análise e avaliação” (2007, p. 474).

    Nesta pesquisa os alunos a Oficiais registram suas autobiografias narrando a si suas

    vidas, fazendo isso criticamente não apenas buscando reviver os momentos, mas dando

    significação aos fatos, perscrutando os elementos que lhes tornaram o que são.

    - Vivências

    Zaratustra assim falou: “De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o

    próprio sangue. Escreve com sangue e verás que sangue é espírito” (NIETZSCHE, ZA, Do ler e

    escrever, § 1º).

    Para Monteiro (2013), o conceito vivência atravessa toda a obra do autor de

    Zaratustra e descreve em sua tese de doutoramento os principais pontos onde esta

    evidência se mostra na sua literatura.

  • 39

    Em Biato (2015) encontro que vivências são capitaneadas pelo desejo por mais vida,

    posto que não são forjadas. Trata-se de instinto e, de acordo como são alimentados estes

    instintos, decorrem as performances, estilos.

    Retomando Monteiro, encontro que a vivência obedece a lógica do rastro

    derridiano, não se trata de marcas ou delimitações de fatos, mas de experiências, o ter

    acontecido. Instante único que não se apreende, pois, o momento presente é experiência e

    qualquer tentativa de retomar este momento é reinvenção, tudo que ele deixa é rastros. Por

    isso, qualquer tentativa de registrar a vida é rastro, formas inventadas de lidar com vidas

    inventadas. Nenhuma delas alcançam a vida, este instante absurdo que não pode ser

    capturado, restando o registro dos rastros. Vivência se assume nesta impossibilidade, um

    instante absurdo que não se pode apreender, portanto rastros.

    A escrita tem caráter biográfico. Em Nietzsche remete à superação: “Meus escritos

    falam somente de minhas superações” (NIETZSCHE, HH II, Prefácio, § 1). Também: “E este

    segredo a própria vida me contou. ‘Vê’, disse, ‘eu sou aquilo que sempre tem que superar a

    si mesmo.’” (Idem, ZA, Da superação de si mesmo,§ 27).

    Vivência, em Nietzsche, assume o caráter variável daquilo que é sentido por cada

    um na exata porção do que é, pois "nossas vivências determinam nosso indivíduo, e na

    verdade de tal modo que ele é determinado até a última célula segundo cada impressão de

    sentimento" (Idem, Fragmento póstumo 19 (241) do verão de 1872 ao início de 1873).

    Importante considerar nesta pesquisa a radical individualidade das vivências e os

    rastros que imprimem de modo a alterar significativamente a vida ao ponto de tomá-las

    como base e termômetro para apreciação de outros fenômenos da vida, pois “ao vermos

    uma nova imagem, imediatamente a construímos com a ajuda de todas as experiências que

    tivemos” (idem, GC, Até onde vai a esfera moral, 114).

    A experiência daquilo que foi vivenciado é intrínseca às posições que adotamos a

    partir de observação de qualquer fenômeno e carrega consigo o significado daquilo que se

    vivenciou de maneira até inconsciente e não menos intensa. É assim que Nietzsche afirma

    em sua obra que se escreve melhor sobre aquilo que vivenciou: “Ninguém pode escutar mais

    das coisas, livros incluídos, do que aquilo que já sabe. Para aquilo a que não se tem acesso

    por vivência, não se tem ouvido” ( EH, “Porque escrevo livros tão bons,”§ 1). Revela em todo

    seu texto aquilo que ele é, seus textos são a sua vida. Não se trata aqui de autoanálise ou da

  • 40

    busca de um “si mesmo”, mas o experimento do pensamento, da reflexão filosófica como já

    manifestado alhures.

    Busco, então, narrar esse experimento filosófico nas forças que tomam a

    constituição de si, as vivências que tomam os textos produzidos na pesquisa pelos cadetes

    da PMMT, pois estas aparecem, apesar de involuntariamente, nas assinaturas produzidas

    nas oficinas.

    São as próprias confissões de si dissertadas por Nietzsche em Para Além de Bem e

    Mal:

    Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas (...)No filósofo, pelo contrário, absolutamente nada é impessoal; e particularmente a sua moral dá um decidido e decisivo testemunho de quem ele é – isto é, da hierarquia em que se dispõem os impulsos mais íntimos de sua natureza. (NIETZSCHE, BM, 6)

    Escrevendo com sangue, Nietzsche dá notícia de que seu texto está embebido de

    sua vida, seu processo de tornar-se. Suas vivências impregnam seus escritos. Tratam da

    superação de si e recobram a necessidade de um leitor específico, posto que “não é coisa

    fácil compreender sangue alheio” (ZA, Do ler e escrever, § 2º), daí decorre outro importante

    ponto deste estudo: só se tem ouvidos para aquilo que acessamos por vivências. Aquele que

    se dá a falar de si e imprime seu sangue neste intento deseja não apenas ser lido, mas “quer

    ser aprendido de cor”.

    Neste rastro, Leal (2011) mostra que este experimento não se mostra no viés da

    impossibilidade, posto que o próprio autor, Oficial da Polícia Militar do Estado de Mato

    Grosso, já deu notas de uma escrita de si, carregada com sangue:

    Devo dizer que o sangue que viceja entre uma fratura e outra, resultado dos laivos salientes de minhas cicatrizes, é arremessado para a escrita. É simplesmente jogado no texto — sem muita amarra, confesso... — como numa síncope, num surto criativo deliberado de primeira mão, onde a reflexão secundária fere a originalidade da explosão imaginativa inicial, marca inconteste de um estilo pessoal adotado por mim para essa empreita. (2011, p. 13)

    Em Ecce Homo, Nietzsche narra sua trajetória literária atrelada aos aspectos de sua

    vida, suas vivências. Extrai-se na primeira parte do texto seu frágil estado de saúde (EH, Por

    que sou tão sábio, 1). É possível compreender que em seu sofrimento físico ele pode

    enxergar com muita clareza a natureza humana e os dogmas cultuados. Ao não estar

  • 41

    embebido de nenhuma satisfação dos sentidos (a felicidade, o amor, a saúde) teve noção

    das coisas que não percebemos porque estamos satisfeitos ou crentes na satisfação.

    Nietzsche teve a realidade dos sentidos por companheira, algo que só é possível quando não

    busca qualquer satisfação.

    Não por acaso, exige leitores bem especiais nesta metáfora fisiológica que é sua

    filosofia: “bons dentes e bom estômago, eis o que lhe desejo! Se der conta de meu livro,

    certamente se dará comigo!” (NIETZSCHE, GC, 54).

    Partimos, então, da ideia de que só compreendemos o que estamos preparados

    para compreender. Necessário possuir vivências semelhantes, de modo que só podemos ter

    olhos ali onde também possuímos vivências.

    Os cadetes deixam suas vivências impregnadas nos escritos produzidos durante a

    pesquisa, contam a si seu processo de individuação, refletem sobre como se tornaram o que

    são, impregnando o texto de rastros, a vontade de vida, a potência deste caminhar.

    - Escritura

    Importante destaque para este estudo tem o conceito derridiano de escritura. Toda

    a pesquisa gira em torno de textos produzidos pelos cadetes da PMMT em Oficinas de

    Transcriação. A potência do ato de escrever precisa ser evidenciada para que não se cometa

    o erro milenar de subjugar a escrita pela fala.

    Em A Farmácia de Platão (2005), Derrida utiliza o mito de Theuth, onde Platão

    apresenta a associação e a comparação da escritura com o phármakon. O uso da mitologia

    favorece a discussão em torno da aceitação da escrita enquanto invenção legítima.

    Apresenta a escritura como phármakon, remédio para que a rememoração fosse permitida,

    através do registro físico da fala. Todavia, o phármakon é remédio e veneno, à medida que

    permite a gravação do que foi dito, o diminui, pois “sob pretexto de suprir a memória, a

    escritura faz esquecer ainda mais; longe de ampliar o saber, ela o reduz” (DERRIDA, 2005, p.

    46).

    Derrida traz a noção de escritura como um discurso soberano, não submisso a fala.

    Busca o abandono da ideia de escritura como suplemento da fala, fazendo-se resvalar a

    dualidade do phármakon a escritura assume esse duplo, não mais submetida à razão da fala

  • 42

    como superior, mas como aberta a várias possibilidades. Esta ambivalência dá lugar a um

    jogo importante também na produção de conhecimento, demonstra sua potência e a

    abertura à diferença.

    Sendo a escritura um discurso que se queria falado, esta é desnaturada e órfã, pois

    é na violência que captura a interioridade da fala. Esta não lhe sendo submissa, se lhe opõe e

    distancia-se no jogo constante do remédio e veneno. Contrariamente à fala “que teria na

    presença do autor (pai) um ser sempre a defender seu filho-texto, a protegê-lo e a velar por

    sua verdade”, a escritura é “letra morta, grafada em monumento, fria e ausente, se dá com

    um discurso parricida: assassina seu pai, escapa de seu controle, significa em sua ausência”

    (SANTIAGO, 1976, p. 60).

    Neste sentido, o parricídio é a afirmação do f