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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Direito
OS PARADIGMAS NO DIREITO E SUAS ANOMALIAS: hermenêutica dialética e o
justo atual segundo uma consciência paradigmática
Danilo Ribeiro Peixoto
Belo Horizonte - MG
2019
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Direito
OS PARADIGMAS NO DIREITO E SUAS ANOMALIAS: hermenêutica dialética e o justo
atual segundo uma consciência paradigmática
Tese de doutorado apresentada à banca examinadora como
exigência para a obtenção do título de doutor em Direito
junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais pelo
doutorando e bolsista pela CAPES Danilo Ribeiro Peixoto,
sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Henrique Carvalho
Salgado, no interior da linha de pesquisa “Estado, Razão e
História” e do projeto estruturante “Justiça: teoria e
realidade”.
Belo Horizonte - MG
2019
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Peixoto, Danilo Ribeiro P379p Os paradigmas no direito e suas anomalias: hermenêutica dialética e o
justo atual segundo uma consciência paradigmática / Danilo Ribeiro
Peixoto. – 2019.
Orientador: Ricardo Henrique Carvalho Salgado.
Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Direito. 1. Direito - Filosofia – Teses 2. Justiça – Teses 3. Dialética – Teses
4. Hermenêutica (Direito) – Teses I.Título
CDU 340.12
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Meire Luciane Lorena Queiroz CRB 6/2233.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Direito
A presente tese de doutoramento, intitulada “Os paradigmas no Direito e suas
anomalias: hermenêutica dialética e o justo atual segundo uma consciência paradigmática”, de
autoria de Danilo Ribeiro Peixoto, sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Henrique Carvalho
Salgado, foi considerada _____________________________ pela banca examinadora,
composta pelos seguintes membros:
______________________________________________________
Professor Doutor Ricardo Henrique Carvalho Salgado
Orientador
______________________________________________________
Professora Doutora Karine Salgado
______________________________________________________
Professor Doutor Paulo César Pinto de Oliveira
______________________________________________________
Professor Doutor Renato César Cardoso
______________________________________________________
Professor Doutor Roberto Vasconcelos Novaes
______________________________________________________
Professor Doutor Gustavo Felipe Melo da Silva (suplente)
Belo Horizonte, ___ de __________________ de 2018.
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AGRADECIMENTOS
A formação acadêmica é influenciada pelo convívio com inúmeras pessoas diferentes, entre
familiares, professores, amigos, colegas, funcionários da faculdade e tantos conhecidos.
Primeiramente, faço um agradecimento geral a todos aqueles com quem convivi durante todos
esses anos de faculdade, que de alguma maneira participaram em maior ou menor grau de
minha formação como profissional e como pessoa. Peço desculpas caso eu tenha deixado de
mencionar nominalmente alguém nesta singela e apenas representativa página.
Primeiramente, agradeço aos meus pais e aos meus avós por todo o suporte oferecido durante
esta trajetória, sem os quais nada teria sido possível. Agradeço aos meus pais por terem
bancado minha educação e oferecido toda a estrutura para que eu tivesse a oportunidade de
acesso a instituições educacionais de qualidade. Agradeço também aos meus tios, com
lembrança especial dos tios Marco Aurélio e Marco Túlio, que tiveram importância especial
em momentos decisivos de minha trajetória; bem como aos primos e demais familiares.
Agradecimentos especiais aos mestres, pelo ensino, pelos debates e por todos os aprendizados
durante a formação profissional. Em primeiro lugar, agradeço ao caro professor e amigo
Ricardo Salgado, orientador desde o mestrado, por todo o convívio, pela orientação, pelos
ensinamentos, incentivos e pela paciência durante todos esses anos. Ao prof. Marcelo Cattoni,
meu primeiro orientador à época da graduação, por influência importante nos estudos
acadêmicos, contemplados até mesmo nesta tese de doutorado. Agradeço também em especial
aos professores Renato Cardoso, Paulo César Oliveira, Joaquim Salgado, José Luiz Horta,
Bruno Wanderley, Felipe Martins, Mônica Sette, Bernardo Gonçalves, Thomas Bustamante,
Miracy Gustin, Márcio Luís, por influência importante na formação acadêmica. Também a
todos os antigos parceiros, amigos e colegas da Pós e da linha, como Daniel e Dr. Robô.
Aos amigos, gostaria de poder compartilhar mais espaço, mas de todo modo tenho todos em
consideração e lhes agradeço pela amizade e por toda a convivência. Agradeço em especial ao
Diego, por auxílio importante à época da tese e pelos debates; à Adriana, pelos auxílios,
debates, incentivos; à Paula, por toda a amizade e parceria desde o vestibular; à Joanna, Pablo,
Chris, Igor, Santos, Ana Luísa, Franklin e Aline, por toda a parceria e influência decisiva ao
ingresso na pós; Gerson, Lucas e Paulo, grandes parceiros em estudos durante a graduação;
também a outros grandes amigos de faculdade, como Pitchon, Luísa, Iano, Emmanuel,
Isabella, Adriana, Carol, Guilherme, Cristiane, Fernanda, Marcela, André, Claudinha...
Agradeço também especialmente à DAJ e a todos aqueles com quem convivi, desde os mais
próximos amigos até os inúmeros colegas nestes anos todos, lembrando também dos
professores e servidores. Fica uma lembrança especial ao prof. Paulo Edson, que influenciou
decisivamente toda a minha trajetória no dia em que o conheci, à Euza e ao prof. Humberto
Barbi, com quem muito aprendi e muito contribuiu em minha formação profissional na
elaboração de peças judicias e na prática jurídica. Agradeço também a todos os membros do
grupo de segunda, com quem tanto compartilhei: Christine, Ana Cláudia, Ana Luiza, Aline,
Alexandre, Lucas, Caroline, Luiza, Isadora, Flávio, Caio e Janaína.
Agradeço especialmente ao Wellerson e também a todos os membros da secretaria da pós-
graduação, como Ana Paula, Priscila, Saul, Cinthia, Sara, pelo importante trabalho e por todo
o auxílio prestado perante a Pós-graduação.
Por fim, sincero agradecimento institucional à UFMG, à Faculdade de Direito, à Pós-
Graduação e à CAPES por toda a minha formação universitária no âmbito do ensino, pesquisa
e extensão, bem como pelo financiamento por meio de bolsas extensão, mestrado e doutorado.
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RESUMO
Procurar sentidos contemporâneos ao justo implica enxergá-lo como um problema dado
internamente à história por uma racionalidade condicionada, consciente de sua precariedade, e
que forma os seus juízos a partir das compreensões possibilitadas e limitadas por um
horizonte histórico de sentido. A concepção de justo forma-se pela experiência e retrata uma
vontade que nega a própria experiência vivenciada pela consciência. Apesar da comum
pretensão de objetividade para os significados do mundo, o subjetivo é sempre inerente à
constituição de sentido, sobretudo no âmbito da razão prática.
Em um contexto no qual a Constituição compõe o cerne dos sistemas jurídicos e o Direto
Constitucional ocupa o centro dos debates hodiernos; é relevante contemporaneamente no
Direito reconhecer a existência de uma racionalidade paradigmática; tendo esta influência nas
significações jurídicas atuais. A ideia de paradigma é compreendida no Direito a partir de
acepções distintas àquelas às da Filosofia da Ciência e em contextos que não remontam à
teoria original de Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas, no entanto é
possível retratar analogicamente algumas noções presentes na teoria kuhniana dos paradigmas.
Entende-se necessário resgatar ao Direito o conceito de anomalia, inspirado em Kuhn, mas
que viria a compreender significações específicas no âmbito jurídico.
A partir de uma perspectiva hermenêutica e dialética, entende-se que o paradigma deve
reconhecer a precedência de um horizonte histórico de sentido que coloca as possibilidades da
compreensão, além de uma tradição ético-jurídica; bem como deve ser visto também a partir
das suas negações. O conceito de anomalia pode oferecer noções específicas de um negativo
paradigmático e permite também enxergar a possibilidade de se aprimorar o paradigma a
partir da contradição.
Dessa forma, entende-se que a ideia de paradigma no Direito deve vir associada a outro
conceito que retrata as suas insuficiências e as suas negações: a anomalia propriamente
jurídica. A reconstrução de um paradigma jurídico e a consciência de suas anomalias são
capazes de retratar um caminho atual para os sentidos do justo, bem como direcionar
qualitativamente a aplicação do Direito no rumo de sua efetivação. Enxergando a questão
dialeticamente, a identificação de anomalias jurídicas e em momento posterior a sua negação
efetiva é capaz de retratar um caminho possível à efetivação do justo atual. Representaria
também uma maior concretização da vontade segundo sua manifestação contemporânea, o
que faz resultar ainda em uma transformação positiva do próprio paradigma.
Palavras-chave: Justiça; vontade; experiência; dialética; contradição; negação; hermenêutica;
horizonte; paradigma; anomalia; justo atual.
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ABSTRACT
A view that seeks contemporary meanings of Justice implies seeing it as a matter given
internally to History from a conditioned rationality that is conscious of its own precariousness.
Their judgements are formed from an understanding activity that is simultaneously made
possible and limited by a historical horizon. A conception of Justice is formed through
experience and depicts a Will that negates experience itself, as experimented by
Consciousness. Despite the common pretension to see reality as only objectivity, subjectivity
Is always inherent to constitution of meanings, especially in practical reasons’ sphere.
Law is seen today in a context which the Constitution and Constitutional Law integrate the
core of juridical systems and juridical debates. It is relevant nowadays a perspective that sees
Law from a paradigmactical rationality, which has influence to actual juridical meanings. The
concept of paradigm is treated rather differently in Law Theory and Philosophy of Law
comparatively to its original context, in Thomas Kuhn’s The Structure of Scientific
Revolutions; although it is possible to understand some of its original concepts as analogies.
One of these concepts is the anomaly, which could be seen in Law as inspired by Kuhn’s
theory, but would need to acquire specific juridical treatment.
From a hermeneutical and dialectical perspective, it is understood that the idea of paradigm in
Law must recognize the precedence of a historical horizon, that allow the possibilities of
understanding, and it also needs a fundament in an ethical-juridical tradition. Furthermore,
paradigm must be seen in parallel with its insufficiencies and specific negations. The concept
of anomaly in Law contemplates specific notions of a paradigmatic negation, also permitting
possibilities of paradigm enhancement through negation.
A paradigmatic reconstruction based in Law as a specific juridical order, associated with the
awareness of its anomalies is capable to retrieve a path to conceive actual meanings of Justice.
This way, it could also qualitatively affect judicial application and contribute to Justice
effectiveness. The awareness of anomalies, then, is seen as a requisite to paradigm
improvement and a viable requisite to actual Justice effectiveness from a paradigmatic
perspective. It could also represent a first step towards a better materialization of the actual
Will that Law manifests in the present.
Keywords: Justice; Will; experience; Dialectics; contradiction; negation; Hermeneutics;
historical horizon; paradigm; anomaly.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 10
2. KANT, RAZÃO E EXPERIÊNCIA ................................................................................. 17
2.1. Considerações preliminares ........................................................................................... 17
2.2. O ser humano enquanto pertencente ao mundo sensível e ao mundo inteligível; a
necessidade de depuração da experiência para os princípios do agir ................................... 21
2.3. Kant e o problema da experiência na Crítica da Razão Pura; a experiência como
condição do conhecimento; a possibilidade de um conhecimento independente da
experiência; dialética, ideia e o uso normativo da razão ...................................................... 25
2.4. A razão prática, a vontade, a liberdade e o uso normativo da razão às ações humanas 33
2.4.1. A determinação da vontade pela razão; a razão pura e a razão empiricamente
condicionada; vontade e capacidade de escolha; leis da vontade ..................................... 33
2.4.2. Os objetos da razão prática; o bem e o mal; ............................................................ 38
2.4.3. Os princípios da razão pura prática, universalidade e a rejeição da experiência
como fundamento do agir; o afastamento da matéria e a busca pela forma; .................... 44
2.5. A autonomia da vontade e a razão (auto)legisladora; imperativo categórico; a
moralidade – Sittlichkeit - como fundamento do agir em Kant ............................................ 49
2.6. Conclusão parcial do capítulo ........................................................................................ 65
3. A DIALÉTICA EM HEGEL............................................................................................. 67
3.1. Considerações gerais sobre a dialética na filosofia........................................................ 67
3.2. Hegel e o pensar como objeto do próprio pensar .......................................................... 72
3.3. A ideia e a lógica dialética ............................................................................................. 77
3.4. Breves considerações sobre a experiência da consciência ............................................. 89
4. GADAMER. HERMENÊUTICA, HISTORICIDADE E EXPERIÊNCIA...................... 95
4.1. Traços gerais da problemática enfrentada por Gadamer na Hermenêutica Filosófica .. 95
4.2. Dialética na Hermenêutica de Gadamer ...................................................................... 106
4.3. Gadamer x Habermas ................................................................................................... 112
5. PARADIGMAS DA CIÊNCIA E ANOMALIAS – KUHN E A ESTRUTURA DAS
REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS ............................................................................................ 115
5.1. Considerações preliminares ......................................................................................... 115
5.2. Thomas Kuhn e a Estrutura das Revoluções Científicas ............................................. 117
5.2.1 A importância da história ....................................................................................... 117
5.2.2. A comunidade científica, a ciência normal, a tradição e os paradigmas ............... 119
5.2.3. As anomalias e as crises ........................................................................................ 131
5.2.4. A pesquisa extraordinária e a revolução paradigmática ........................................ 139
5.2.5. Ciência e Progresso ............................................................................................... 151
5.3. Anomalia e falseabilidade ............................................................................................ 153
6. A IDEIA DE PARADIGMA NO DIREITO E TRAÇOS DE UMA CONSCIÊNCIA
PARADIGMÁTICA ............................................................................................................... 159
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6.1. Considerações preliminares: ........................................................................................ 159
6.2. Paradigmas no Direito ................................................................................................. 160
6.3. Friedrich Müller, superação do paradigma positivista e teoria estruturante do Direito
............................................................................................................................................ 168
6.4. Ronald Dworkin, o Direito como conceito interpretativo, paradigmas e integridade . 182
6.5. Dworkin e o Estado Democrático de Direito como paradigma ................................... 191
6.6. O uso aplicado da ideia de paradigma na práxis jurídica brasileira ............................. 196
6.7. Conclusão parcial do capítulo: síntese sobre as principais concepções de paradigma no
Direito e a necessidade de se contemplar a contradição ..................................................... 202
7. CRÍTICA DA CONSCIÊNCIA PARADIGMÁTICA. HORIZONTE, PARADIGMA E
ANOMALIA NO DIREITO ................................................................................................... 204
7.1. Considerações preliminares –o justo como concepção dialética intra-histórica .......... 204
7.2. Paradigma na ciência, críticas e limitações filosóficas. Dualidade e contradição.
Dialeticidade possível. ........................................................................................................ 209
7.3. Distinções da ideia de paradigma no Direito relativamente ao paradigma na ciência. 215
7.4. A Experiência e a consciência paradigmática no Direito. Horizonte, paradigma e Razão
prática .................................................................................................................................. 221
7.5. Elementos de dogmática jurídica. Pressupostos de completude, coerência e integração
do sistema. Lógica de não-contradição. Norma, paradigma, expectativas de comportamento
e operação ........................................................................................................................... 234
7.6. A anomalia e outras analogias à teoria da ciência de Kuhn. O paradigma jurídico
enquanto alicerce da dogmática jurídica. ............................................................................ 237
7.7. Anomalias, paradoxos e contradições no Direito. A coerência como fim. O negativo e o
justo atual. ........................................................................................................................... 240
7.8. O caminho do negativo a partir da racionalidade paradigmática. A anomalia jurídica.
Paradigma jurídico, anomalia jurídica, vontade e justo atual ............................................. 245
7.9. A reconstrução do paradigma jurídico e sua articulação. A consciência da anomalia
jurídica, a revisão de pré-conceitos e o justo atual. ............................................................ 249
7.10. Anomalias jurídicas e Estado Democrático de Direito .............................................. 256
7.11. Exemplos de anomalias jurídicas ............................................................................... 259
7.12. Conclusão do capítulo - Direito, sistematicidade e paradoxos. Horizonte jurídico, a
anomalia jurídica e o justo atual ......................................................................................... 263
8. CONCLUSÃO ................................................................................................................ 270
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 273
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1. INTRODUÇÃO
Múltiplas as sociedades humanas no decorrer da história, igualmente múltiplos os
sistemas normativos que as disciplinam. A cada coletividade humana corresponde um sistema
normativo a ela particular, adaptado às suas características próprias, as quais se manifestam
historicamente. Para todos os efeitos, é uma conclusão pacífica que a sociedade humana
necessariamente demanda um conjunto de normas que sejam aptas a regular o convívio social.
A justiça desponta no entendimento humano como um dos valores e ideais da mais
alta estirpe. Aristóteles, por exemplo, a considera como a mais elevada das virtudes. Embora a
justiça esteja sempre alçada aos mais elevados patamares a que se deve almejar, a conclusão
sobre aquilo o que efetivamente é justo, no entanto, é fundamentalmente histórica.
Nesse intrínseco vínculo do justo com o histórico, aquilo o que é justo assume uma
feição de contraponto desejável a um injusto claramente manifesto na realidade ou na
potência de se realizar externamente. Além desse contraponto ao negativo que se busca
transformar, pode-se dizer que também se liga à noção de justo a garantia que deseja a
vontade soberana que o instaura de se fazer concretizar na realidade aquilo o que ela
considera mais importante.
De todo modo, mesmo em uma noção ordinária de justo como essa descrita, a noção
de justiça revela repetidamente na história, com relativa transparência, três elementos centrais:
o caráter de um ideal que deve ou deveria se concretizar na realidade, seja afirmado por ele
próprio, seja por negação a um elemento visto como negativo que se procura equanimizar;
uma vontade humana apta a traçar os caminhos por onde esse ideal de justiça deve percorrer;
e o elemento histórico, porquanto o conteúdo do justo se determina no tempo e no espaço em
dado contexto.
Percebe-se na ideia do justo uma necessária tensão entre um real e um ideal. A noção
de justiça parece sempre aparecer como um ideal que guia a confecção de um real mais
aprimorado. Uma vez que esse real foi construído a partir de uma racionalidade erigida pelo
pensamento, pode-se dizer que a ideia de justiça é elemento nobre de modificação da
realidade. O real se tornou (mais) racional nesse movimento em que o pensamento se põe
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sobre a realidade. Real e ideal, aqui, aparecem reconciliados. Reconciliação que será seguida
de novas cisões e novas reconciliações, identificadas ambas pela própria razão humana.
A ideia de Justiça, com efeito, não é meramente abstrata. Aparece como abstrata em
um primeiro momento, mas se torna concreta em um momento posterior. Ordinariamente, a
Justiça é vista e compreendida apenas a partir dessa primeira perspectiva, de modo que
aparece como um ideal imaginado, desejado e distante em oposição a um real palpável e tido
como injusto. Nesse sentido, o qualificativo “justo” é atribuído como qualidade de algo que
corresponde a esse ideal abstrato e “injusto” o contrário.
Essa noção de justiça abstrata é pertinente a um raciocínio simplista e também apenas
ao plano do entendimento. Entende-se que a Justiça não termina apenas nesse primeiro
momento abstrato, mas se desenvolve em momentos dialéticos. Dessa forma, a noção abstrata
do justo é negada pelo injusto concreto, provocando da vontade efetiva um posicionamento
ulterior. Acontecendo este, o injusto é negado a partir dessa noção primeira de justo, tornando
este, antes ideal, em justo concreto; uma realidade (Wirklichkeit) transformada a partir da
produção de efeitos concretos pela razão.
Defende-se, assim, um conceito de Justiça que não assume a identidade de um mero
ideal, mas que, ao contrário, tem a aptidão de modificar a realidade, concretizando-se e
gerando efeitos a partir de sua racionalidade. O instrumento racional por excelência voltado à
modificação da realidade para ditá-la aos conformes da Razão, no entendimento aqui
esposado, é o próprio Direito. Nesse sentido, retomando parcialmente o conceito de justo do
direito romano, o justo seria dar a cada um o que é devido conforme o direito. Na condição de
qualificativo, a justo permanece numa acepção abstrata, embora vincule diretamente a justiça
ao jurídico.
Mais do que um movimento de transformação de uma realidade particular, Salgado
nos ensina que o justo se reporta a um elemento ético do próprio Espírito que se movimenta e
se expressa na História. Nesse sentido, a Justiça se expressa como o próprio Direito posto
pelo homem em sua manifestação histórica, de modo que em sua processualidade histórica é
movimento do posto como dever ser e ser por ele negado, movimento do justo e do injusto1.
1 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.
10 e 12.
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Recobrando o início desse raciocínio, a ideia de justiça desponta ordinariamente no
pensamento jurídico numa noção abstrata. Assume a feição de mero ideal a ser alcançado, na
forma de um valor que deve orientar a atuação do jurista no exercício de suas atividades. No
caso do ofício judicante, tais considerações ganham ainda mais relevância, porquanto se
enxerga na decisão judicial um protagonismo na consecução do justo. Caso a decisão
terminativa do conflito tenha obedecido a determinados parâmetros cuja observância se
consideram necessários a uma decisão justa, destacando-se principalmente a “correta”
aplicação da lei, considera-se que foi exercida a justiça no caso concreto.
No entanto, a realidade apresenta elementos complicadores que tensionam
sobremaneira tal cenário abstrato. Tendo a perspectiva do juiz como exemplo, destaquem-se
dois. Em primeiro lugar, a decisão judicial é exercida a partir de uma atividade interpretativa
por parte do magistrado – um ser humano, ser histórico localizado no espaço e no tempo, ente
racional e também emocional provido de uma moralidade própria, valores próprios,
entendimentos próprios e sujeito a erros. Segundo, o magistrado não possui acesso à verdade
real dos fatos, mas apenas à reprodução daqueles trazidos e comprovados nos autos na fase de
instrução processual; portanto, é capaz de decidir apenas a partir de uma verdade processual.
Enfim, o juiz real não é juiz Hércules e o caso concreto não é uma metáfora2. Por mais
que se considere existir uma aplicação “correta” da lei no caso concreto, múltiplas serão as
decisões judiciais, porquanto múltiplas as legislações, múltiplos os juízes e múltiplos os casos,
sobretudo nos sistemas jurídicos desenvolvidos na tradição do Civil Law. A coerência se
apresenta apenas como um ideal; nalguns casos, como no brasileiro, talvez como uma ficção.
A lei em grande parte dos casos se torna até mesmo um mero argumento para fundamentação
de decisões judiciais já pré-julgadas por parte do magistrado a partir de convicções políticas e
morais próprias. Tais convicções atuam na formação de uma noção particular de justiça que
muitas vezes não dialoga com os sentidos de justo cultivados pela sociedade em que se vê
inserido. Sem embargo de todas essas apreciações, a própria lei delega à decisão judicial o
caráter de prevalência, ainda que possa supostamente se revelar em contrariedade com um
sentido de justiça mais coerente com aquele preconizado por uma dada comunidade jurídica.
2 Referência indireta a DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
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Na perspectiva de uma consciência individual situada historicamente que deseja a
realização do Justo na sociedade em que vive, pode ser um tanto perturbadora a falta de
universalização de uma única fórmula para a Justiça. Não é outra a realidade senão a
multiplicidade de entendimentos acerca do justo e a incerteza sobre quais desses
entendimentos deveria servir como base para as soluções judiciais. A pluralidade de situações
fáticas e normativas que se lhe apresentam defronte possibilita a existência de atos normativos
e decisões judiciais contraditórios entre si, soluções jurídicas distintas para hipóteses fáticas
semelhantes, falta de segurança jurídica e possível fragilidade das instituições em dado
sistema jurídico.
Enfim, a solução jurídica efetivada em observância aos procedimentos impostos pela
lei para que tivesse a condição de se transformar em solução justa é capaz de gerar injustiças
em concreto e também em abstrato. Em verdade, o próprio ordenamento jurídico contém
disposições que negam umas às outras, muitas vezes envolvendo as próprias instituições do
Estado, e nem sempre os critérios para as soluções de antinomias são capazes de oferecer uma
saída justa, adequada e legítima. Em suma, o próprio “justo” é capaz de gerar o injusto.
Na perspectiva da Razão que se movimenta na história, mais especificamente em
relação aos desdobramentos do Espírito quanto à ideia de justiça em sentido hegeliano, é
possível identificar o caráter de síntese do Direito numa totalidade que reconcilia o justo e o
injusto em movimento dialético; de modo que o injusto se apresenta como momento de uma
posterior reconciliação em que se vê suprassumido no justo como conceito.
Ao contrário dessa perspectiva lógico-dialética em sentido macro, que retrata o Direito
como efetividade no curso da História; a perspectiva da consciência individual do operador do
Direito, ente interpretativo situado em um dado contexto histórico espaço-temporal, é
suscetível à angústia de efetivar a justiça no caso concreto, apesar das contradições que se lhe
apresentam estáticas e da multiplicidade de soluções, correndo o risco de negar o justo e
efetivar o injusto na situação em que o Direito lhe incumbe realizar a justiça.
Nessa sequência de raciocínio, como compreender, num contexto histórico temporal e
espacialmente localizado, o justo que efetiva o injusto? Em face de tantas negações ao que se
concebe como justiça, como essa consciência interpretativa historicamente situada é capaz de
significar o justo e encontrar os parâmetros corretos para a sua realização?
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Nessa inquirição sobre os “parâmetros corretos”, deduz-se logicamente que a
caracterização de tais parâmetros se faz com base em determinados referenciais normativos. A
óbvia conclusão seria a de que esse referencial seria dado pela Lei; contudo, a problemática
aqui apresentada coloca em cheque a própria Lei como critério para realização da Justiça,
porquanto múltiplos os entendimentos aptos a aplicá-la e numerosas as situações em que a
legislação produz anacronismos dentro do próprio ordenamento jurídico, de sorte que a
suposta fonte para a elaboração de soluções “justas” e conformes ao Direito pode também
instaurar injustiças. Por outro lado, verifica-se que o Direito não se resume somente à lei, que
isoladamente não retrata o fenômeno jurídico em sua completude. A norma jurídica posta sob
a forma da Lei é como a ponta do iceberg da normatividade, que parece se ver sustentada em
uma estrutura que lhe é anterior e que lhe fornece fundamento e legitimidade. Portanto,
demanda-se aqui a noção de uma estrutura racional abstrata que preceda a lei e lhe estabeleça
substrato quanto às noções do justo em dado contexto histórico.
Em um primeiro momento, encontrou-se na ideia de paradigma uma referência e uma
hipótese racional para a solução desse problema. Na verdade, entende-se que o pensamento
jurídico atual intuiu a ideia de paradigma como substrato de critérios para a produção de
soluções normativas e fáticas “corretas” no Direito em dada conjuntura normativa. Nesse
sentido, entende-se que os critérios para tais soluções “corretas”, seriam critérios para
soluções “justas” nesse mesmo contexto. No entanto, o uso comum do termo não parece
retratar uma plena consciência disso.
Vê-se em geral a palavra paradigma utilizada de forma aparentemente intuitiva e com
poucas apreciações de ordem técnica em trabalhos acadêmicos ou em peças jurídicas. Com
uma maior apreciação técnica, mas num sentido distinto daquele em que aparece
originalmente em Kuhn, seu uso é visto com maior frequência em estudos de Direito
Constitucional, Teoria da Constituição e Hermenêutica Constitucional; com inspiração
sobretudo em Habermas, que retomou o conceito de paradigma da Filosofia da Ciência e
procurou contextualizá-lo no âmbito social e jurídico, ampliando-o e contemplando nova
perspectiva3.
3 HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
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Muito embora o paradigma enquanto conceito da Filosofia da Ciência aparente ser
pouco apreciável às ciências sociais aplicadas, a ideia de paradigma é correntemente utilizada
no Direito e parece capaz, até certa medida, de congregar noções jurídicas e hermenêuticas
complexas para o fenômeno jurídico. Contudo, a “transposição” desse conceito nem sempre
retrata exatamente a ideia que o uso do termo paradigma reproduz nos estudos relacionados
ao Direito, apontando-se para um uso distinto.
Talvez o paradigma em um sentido mais próximo ao do científico possa identificar as
metodologias “aceitáveis” para a produção do conhecimento jurídico na Ciência do Direito,
ou os parâmetros para determinada produção teórica ser reconhecida pela comunidade
científica do Direito; no entanto, a noção de “paradigma jurídico” retrata um conceito
específico o qual admite a normatividade jurídica em seu seio. Em um primeiro momento,
desdobra-se naturalmente uma hipótese simplificada de que o conceito de paradigma, nesse
sentido intuído, mas tecnicamente conceituado no Direito, seria capaz de retratar os critérios
“corretos”, ou melhor, “justos”, para a produção de soluções jurídicas em dado contexto
societário. Nesse sentido, as soluções conformes ao paradigma seriam “justas” e aquelas que
contrariam seus critérios “injustas”, e anômalas ao paradigma. Com efeito, o paradigmático
seria correspondente ao justo. Essa hipótese não se corroborou suficientemente ao longo do
desenvolvimento do trabalho.
A pesquisa reportada neste relatório procurou testar dita hipótese em vertente teórico-
filosófica. A primeira metodologia confeccionada, correspondente à tentativa de se
fundamentar tecnicamente o conceito de paradigma jurídico a partir do estudo confrontante
entre a concepção de paradigma na Filosofia da Ciência e a Teoria do Direito se revelou,
contudo, inadequada. Mostrou-se assaz analítica e imprópria para retratar a inerente
historicidade do justo e os seus movimentos dialéticos no curso de sua processualidade
histórica. Mais do que isso, revelou a ausência de um adequado tratamento hermenêutico ao
estudo de tais conceitos. Ainda assim, apesar dos ditos problemas, o termo paradigma ainda
conseguia invocar racionalmente no direito, de modo no mínimo intuitivo, a ideia da
existência de parâmetros fundamentais, abstratos e nem sempre claramente identificáveis,
anteriores às normas postas, que viriam a direcionar os padrões de aceitabilidade e o modo
como são produzidos os conhecimentos e as soluções jurídicas nessa mesma sociedade em
que se situa, considerada a dimensão jurídica enquanto dimensão especializada do
conhecimento.
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16
No entanto, a análise e o desenvolvimento do tema sob a forma de um caminho da
experiência evocando caminhos de uma dialética compreensiva na finitude se tornou
oportunamente capaz de suprir tais demandas conceituais, ao recolocar a hipótese aventada
em bases distintas e corroborá-la. Ao invés de se reconhecer o conceito de paradigma como
adequado para fornecer os critérios do justo e avalizar a viabilidade de transposição do
conceito de paradigma da Filosofia da Ciência com as adaptações necessárias ao Direito, o
pressuposto foi de ordem inversa: A racionalidade pertinente ao Direito e à Justiça, no seu
devir, ou melhor, em sua processualidade histórica, é que veio a se enxergar de modo
paradigmático. A partir disso, se faz necessária a sua crítica.
A segunda tentativa empreendida, com o fim de retratar esse substrato do justo que
precede a lei e que sofre cambiações ao longo da história em cada contexto societário,
recobrou no horizonte histórico de sentido, nos rumos de uma hermenêutica ontológica, um
ponto fulcral para a fundamentação do paradigma; não em uma perspectiva analítica
convergente à filosofia da ciência, mas materializado num conceito adaptado que contenha a
historicidade em seu eixo. Por conseguinte, não se reconhece o paradigma como “conceito
aplicável”, mas a própria Justiça é enxergada como paradigmática em um momento espaço-
temporalmente identificável. O paradigma passa a ser visto analogicamente e constituinte de
um conceito próprio e específico no Direito. Mais do que isso, o paradigma se resguarda em
um horizonte histórico de sentido que fornece as condições de possibilidade para a
compreensão racional dos objetos concebidos pelo paradigmático em seu âmbito.
Dessa forma, o justo, histórico e hermeneuticamente situado, se vincula ao
paradigmático e a identificação do paradigma jurídico a cuja tradição o intérprete-jurista é
pertencente seria capaz de retratar os elementos para a efetivação do justo em dado contexto
histórico-temporal. O paradigma se vê como capaz de retratar o justo atual por via
hermenêutica, quando incorpora uma tradição ético-jurídica que lhe seria precedente. Dessa
forma, fornece o substrato do jurídico e condiciona a fundamentação normativa do justo.
Considerando que o “método” escolhido é um caminho ou um percurso, no sentido
antigo da palavra; que esse caminho é dialético, mas que seu ponto de chegada não é
especulativo; qual a melhor perspectiva para retratar o caminho do justo em suas negações e
sua chegada num horizonte jurídico e que na contemporaneidade se enxerga em paradigmas?
Entende-se que o conceito filosófico mais apropriado seja o da experiência, que guia o
experimentar-se relativo à justiça em sua processualidade histórica e que, em suas cambiações
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17
conceituais segundo os distintos referenciais teóricos a que remonta, retrata apropriadamente
os momentos desse caminho. O caminho do justo, nesse sentido, é visto como um conjunto de
experiências que se desenvolvem na História em sua finitude a partir de sucessivas negações
dialéticas e pela mediação de significados históricos produzidos no processo de seu
compreender.
Elegeu-se Kant como ponto inicial da trajetória, considerando-se que é interlocutor
necessário nas reflexões filosóficas relativas ao Direito e o principal interlocutor de Hegel, na
tradição do idealismo alemão. Dessa forma, o capítulo 2 retrata Kant e seu trato sobre a
experiência, com ênfase no âmbito da Razão Prática. O capítulo 3 retrata o pensamento
hegeliano, destacando-se noções elementares da dialética. O capítulo 4 resgata brevemente a
Hermenêutica Filosófica de Gadamer e a experiência situada no campo da compreensão. No
capítulo 5, empreende-se um estudo do pensamento de Thomas Kuhn, procurando-se os
sentidos originais da ideia de paradigma e resgatar o conceito de anomalia. No capítulo 6,
procurou-se identificar a ideia de paradigma no Direito, segundo racionalidade presente no
contexto teórico e no contexto do Direito aplicado. No capítulo 7, procurou-se delinear os
traços de uma consciência paradigmática no Direito e sua crítica; procurando-se ainda
desenvolver a ideia de anomalia jurídica como conceito que deve vir paralelamente ao de
paradigma no Direito, devendo o paradigma ser enxergado juntamente a suas negações. E,
por fim, sucede a conclusão do trabalho.
2. KANT, RAZÃO E EXPERIÊNCIA
2.1. Considerações preliminares
Kant denomina como filosofia transcendental a sua “ciência fundamental filosófica”.
Pode-se identificá-la como crítica, para diferenciá-la da filosofia transcendental medieval,
conforme explica Höffe. Seu primeiro desenvolvimento se dá pela identificação da razão
como faculdade de conhecimento, também chamada de razão teórica ou especulativa, distinta
da razão prática, que pode ser associada à faculdade de desejar. Nesse sentido, a Crítica da
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Razão Pura pode também ser designada como “crítica da razão especulativa pura”4. A razão
humana demanda a própria crítica e, a partir desta, o “desenlace” de sua situação é feita pelo o
que Kant designa como dialética5. Dialética, em Kant, assume um sentido específico em sua
própria filosofia, conforme será apresentado em momento ulterior.
Kant tem como primeiro grande objeto para conduzir as suas investigações a
metafísica, que é vista em uma situação “precária”, porquanto ao mesmo tempo necessária e
tida como impossível: há questões fundamentais que se impõem à razão humana e não podem
ser rejeitadas, mas também não são passíveis de resposta. A razão almeja princípios gerais
que sejam capazes de dar sentido, com coesão e estrutura racional, a tudo o que se observa e
se experimenta. Por outro lado, enquanto a ciência busca a atribuição de sentido a partir de
uma busca finita e que possui como esteio a experiência; a metafísica permanece em seu
questionamento incessante e busca pelo incondicionado, procurando o fundamento da própria
experiência para além da experiência. Sua busca se volta para além (meta) da física e da
natureza6.
Essa tentativa de se obter conhecimento para além da experiência conduz a razão à
“escuridão” e a contradições. Esse transcender da experiência, ou o conhecimento puro da
razão, impedem, para Kant, a metafísica de se constituir como um conhecer científico 7 .
Reconhece a temática da metafísica na filosofia como um “campo primordial de disputas
intermináveis”. Em primeiro lugar, opõe-se à metafísica racionalista, representada na época
moderna, dentre outros autores, por Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz. A oposição
kantiana se dirige primeiro a Wolff, cujo pensamento à época prevalecia nas universidades. A
experiência é tratada por Wolff como fonte genuína de conhecimento; por outro lado,
também admite a possibilidade de conhecer um objeto da realidade a partir da razão pura,
pelo mero pensar. Kant acusa os racionalistas de “dogmáticos” e “despóticos”, porque tomam
certas suposições básicas como pertinentes ao homem, como a imortalidade da alma, a
existência de Deus e o “fato” de que o mundo possui um começo, contudo sem antes uma
crítica prévia da razão8.
4 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant, Trad. Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 33. 5 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 34. 6 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 34. 7 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 35. 8 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 35.
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As controvérsias entre os dogmáticos fazem surgir uma situação de “anarquia”, da
qual emergem os céticos, os quais negam sumariamente toda a metafísica e, nos dizeres de
Kant, “minam os fundamentos de todo o conhecimento em uma ignorância artificial.”9. Em
terceiro lugar, os empiristas, representados por Locke e Hume, que fundamentam todo o
conhecimento em alguma experiência interna ou externa, negando como possível uma espécie
de conhecimento extra-empírico10.
Kant não adere a nenhum de tais posicionamentos e segue uma via própria. Nesta,
estabelece-se um “tribunal” que examina imparcialmente as possibilidades de um
conhecimento puro da razão. Dito exame demanda discernimento e justificação, ou “crítica”,
no sentido original do termo. Por meio dessa crítica, a própria razão julga a si própria – numa
autocrítica. Representa uma investigação sobre a possibilidade de um conhecimento puro da
razão pela própria razão, uma vez que um conhecimento independente da experiência não
pode ter o fundamento na experiência, segundo tais pressupostos11. Em sua (auto) crítica, a
razão recusa tanto o empirismo quanto o racionalismo. Por um lado, o pensamento puro não é
capaz de conhecer a realidade. Por outro, Kant reconhece que todo experimento começa pela
experiência, mas não resulta dela e nem mesmo o conhecimento empírico é possível sem
fontes independentes da experiência. Sendo assim, são possíveis ideias puras da razão, mas
apenas como “princípios regulativos a serviço da experiência”12.
Kant procura conduzir a filosofia ao caminho de uma ciência. A partir da crítica da
metafísica, ela começa como teoria da filosofia, na forma de uma “filosofia científica
autônoma”. Ela perquire sobre as possibilidades do próprio conhecimento e busca colocar a
filosofia sobre um “fundamento seguro”13. Partindo deste e de uma teoria sistemática do
conhecimento, Kant busca respostas aos problemas fundamentais do homem, representados
em três interrogações primordiais: a) “que posso saber?”; “que devo fazer?”; e c) que me é
permitido esperar?1415.
Segundo Höffe, Kant, inserido no contexto do iluminismo europeu, se manteve
equidistante de um iluminismo ingênuo e de uma atitude contra-iluminista, para a qual tudo o
9 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 35-36 10 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 36. 11 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 38. 12 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 39. 13 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit., Introdução, p. XVIII- XXIV. 14 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit., Introdução, p. XXIV. 15 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 651.
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que há é bom e belo. Kant representa o apogeu do iluminismo, a sua transformação e a busca
de uma “razão humana universal”. Essa mesma ideia, em Kant, resulta na crítica da filosofia
dogmática e na descoberta do fundamento último da razão, cujo princípio derradeiro é a
autonomia da vontade, a liberdade enquanto autolegislação16.
Todo o pensamento kantiano, em todas as suas perspectivas e desde as origens de suas
investigações até as suas conclusões, é permeado em seu cerne pela reflexão sobre a
experiência. Por um lado, sobre a participação da experiência no conhecimento e sobre a
possibilidade de um conhecimento puro, para além da experiência. Por outro, sobre a
participação da experiência na vontade e no agir, bem como a possibilidade e o dever de se
agir a partir de princípios que estejam além da experiência. Examina, ainda, a experiência
estética e investiga as possibilidades de uma estética que tenha como fundamentos critérios de
validade universal e independentes da experiência.
Kant é o grande filósofo dos dualismos. Toda a sua filosofia pressupõe conceitos e
categorizações dicotômicas, como sujeito e objeto, forma e conteúdo. Kant inaugurou o que
se chama amiúde de “revolução copernicana na filosofia”, ao deslocar o problema da filosofia
para o sujeito e para as próprias possibilidades de pensar e conhecer. No entanto, nos
momentos em que seu pensamento ostenta viés normativo, toma uma nítida opção pela busca
de uma objetividade na feição de uma universalização formal; a qual, para ser alcançada,
requer a rejeição de tudo o quanto é subjetivo. Tal busca implica o afastamento daquela que
tipicamente representa a relação subjetiva com o mundo: a experiência. A experiência está
diretamente ligada ao material, à concessão de conteúdo para os significados. A
universalidade, para Kant, não poderá ser encontrada na matéria, sendo necessário antes a
abstração desta. A forma afastada do conteúdo emerge como capaz de se chegar nessa
universalização plena. Há, portanto, um formalismo inequívoco que percorre todo o
pensamento kantiano.
O Direito se volta por excelência ao campo do agir. É o âmbito primordial em que se
investiga a razão prática. Como um dos filósofos mais importantes na história do pensamento
ocidental e um dos principais pensadores sobre o agir humano, naturalmente Kant é
identificado como um dos grandes influenciadores do pensamento jurídico. Talvez consista
até hoje no grande interlocutor indireto de todo o pensamento na Filosofia e na Teoria do
16 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit, Introdução, p. XXIV.
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Direito contemporaneamente. Seja para reafirmar, seja para especializar qualquer de suas
posições, seja para refutá-las, toma-se Kant como ponto de partida de alguma forma, direta ou
indiretamente. O pensamento jurídico em grande parte retrata um excesso pelo formalismo e
pela pretensão de um objetivismo formal. Não é diferente que, em nível metodológico, seja
marcante a pretensão, assumida ou não, da procura pela pureza do fenômeno jurídico.
Entende-se que é possível resgatar em grande parte as origens desse apanágio formalista no
pensamento kantiano. Desse modo, reproblematizar algumas das premissas kantianas é
pressuposto para repensar as estruturas do pensamento existente hoje.
O grande objeto de investigação da Filosofia do Direito, em especial da Linha de
Pesquisa em que este trabalho se encontra inserido17, é a Justiça. As teorias sobre o Direito de
inspiração kantiana resguardam premissas excessivamente formais no trato com o problema
do justo. Entende-se que um dos cernes de tais premissas da investigação kantiana sobre o
agir se encontram no modo de abordar a questão da experiência. Ela se denota mais
especificamente quando Kant, ao investigar o objeto, o conteúdo do agir moral, conclui
resolutamente pela rejeição da experiência naqueles que devem ser os fundamentos do agir e
da vontade. O agir deve, segundo prescreve, se afastar de sua matéria e purificar-se em
direção à forma para que possa encontrar os fundamentos universais para a ação devida – e,
por que não dizer, da ação justa.
Neste trabalho, procura-se resgatar a questão da experiência em sua relação com o
justo. Embora seja obviamente necessário investigar os conceitos principais que perpassam
toda a filosofia kantiana, reconhece-se como necessário um enfoque neste capítulo ao trato
dado por Kant ao agir; consequentemente, um enfoque à razão prática.
2.2. O ser humano enquanto pertencente ao mundo sensível e ao mundo inteligível; a
necessidade de depuração da experiência para os princípios do agir
A problemática tratada no capítulo tem como pano de fundo o direcionamento dado
por Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e, por tal motivo, entende-se
oportuno iniciar o seu conteúdo a partir de considerações presentes na obra de 1785,
17 Linha de Pesquisa 4 (quatro) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG: Estado, Razão e História.
O trabalho está ainda inserido no âmbito do projeto estruturante Teoria da Justiça.
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normalmente estudada a partir de sua segunda edição, de 1786; não obstante o início “natural”
seja pela via da Crítica da Razão Pura.
Kant divide o conhecimento racional em formal e material. O material considera o
objeto e as leis aos quais estão submetidos; o formal se ocupa da forma do entendimento e da
razão em si consideradas, bem como as regras do pensar em geral, sem a distinção dos objetos.
Partindo da tripartição da antiga filosofia grega entre Física, Ética e Lógica, Kant define a
Lógica como a designação da filosofia formal; sobre a filosofia material, caso os seus objetos
estejam relacionados às leis da natureza, sua ciência será a Física ou a Teoria da Natureza; se
os objetos estiverem relacionados às leis da liberdade, a Ética, ou a Teoria dos Costumes18.
A Lógica é considerada como puramente formal e por isso não pode ter princípios
derivados da experiência. Portanto, em momento algum poderá ser empírica. Constitui leis
universais e cujos cânones são necessários para todo o pensar e sua validade precisa ser
demonstrada. Tanto a Filosofia da natureza quanto a filosofia moral podem ter cada qual parte
empírica. Aquela determina as leis da natureza como objeto de experiência; esta determina as
leis da vontade humana enquanto afetada pela natureza19.
Para Kant, é empírica toda filosofia que se baseie em princípios da experiência. Pura é
a filosofia que se apoia em princípios a priori, que antecede a experiência, podendo
corresponder à Lógica ou à Metafísica. A Lógica constitui aquela que é simplesmente formal.
A Metafísica a que se limita a determinados objetos do conhecimento, existindo uma dupla
metafísica: uma Metafísica da Natureza e Metafísica dos Costumes, de modo que tanto a
Física quanto a Ética possuem uma parte empírica. A parte empírica da ética é chamada de
Antropologia prática e a racional seria a Moral propriamente dita20. Segundo Kant, aquela que
“mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de filosofia”; pior:
“(...)merece ainda muito menos o nome de Filosofia moral, porque, exatamente por este
amálgama de princípios, vem prejudicar até a pureza dos costumes e age contra a sua própria
finalidade”21.
Caygill explica que, em Kant, a experiência aparece com uma faceta distante da
humildade e do senso comum. Kant identifica a experiência como um conhecimento reflexivo 18 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70,
2007, p. 13. 19 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 14. 20 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 14. 21 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 17.
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“que surge quando numerosas aparências são comparadas pelo entendimento”, de modo que o
uso lógico do entendimento possibilita uma reflexão sobre a aparência e a própria reflexão é
pressuposta pelo uso lógico do entendimento. Nesse sentido, a experiência é produto dos
sentidos e do entendimento. Configura uma “conexão sintética de aparências”, sendo esta uma
conexão necessária que se manifesta na forma de percepções. Pressupõe em sua base a
intuição de que estamos conscientes, percepção esta que se forma com base nos sentidos22.
Na Crítica da Razão Pura, explica Caygill que a experiência representa uma síntese
que não unifica somente um múltiplo intuído, mas aparece na base de uma adaptação mútua
de conceito e intuição. A experiência implica um conhecimento mediante percepções ligadas
entre si e, considerando que para Kant toda síntese pela qual se torna possível a percepção se
submete a categorias, as categorias aparecem como condição de possibilidade da experiência
e possuem validade a priori em relação aos objetos da experiência. A experiência possui
condições de possibilidade na mútua adaptação entre experiência exterior, correspondente à
receptividade da sensibilidade, e a experiência interior, que corresponde à espontaneidade do
entendimento. Espaço e tempo, como formas a priori da intuição, estabelecem condições da
experiência possível que determinam os limites do conhecimento. O conhecimento aparece
aqui limitado a objetos da experiência possível23.
No que tange à filosofia moral, Kant identifica uma “extrema necessidade” de que sua
fundamentação fosse “completamente depurada de tudo o que possa ser somente empírico e
pertença à Antropologia”, de modo que as noções de dever e de leis morais atestem dita
necessidade. É preciso que uma lei a qual constitui fundamento de uma obrigação valha
moralmente como uma necessidade absoluta e de modo universal, de sorte que apoie
exclusivamente a priori e nos conceitos da razão pura, sem a intervenção de qualquer preceito
baseado em princípios da experiência. Qualquer preceito que se baseie na experiência não
poderá jamais constituir uma lei moral em conformidade com o pensamento kantiano, embora
possa valer como uma regra prática. Nesse sentido, a lei moral e seus princípios se distinguem
de tudo o mais que se constitua como empírico24.
O homem é naturalmente afetado por muitas inclinações e, embora possa conceber a
ideia de uma razão pura prática e de poder apurar a faculdade de julgar para distinguir em que
22 CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 138. 23 CAYGILL, Howard. Dicionário Kant, cit, p. 138. 24 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 15-16.
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24
casos da experiência suas leis possuem aplicação, não é dotado da força para torná-las
eficazes no próprio comportamento. Nesse sentido, Kant reconhece a necessidade de uma
Metafísica dos Costumes para investigar a fonte dos princípios práticos a priori da razão e
preservar os costumes de “toda a sorte de perversão”, que acontece “enquanto lhes faltar
aquele fio conductor e norma suprema do seu exacto julgamento”25.
Kant identifica como inclinação a “dependência em que a faculdade de desejar está
em face das sensações”, provando uma necessidade. Denomina como interesse a
“dependência em que uma vontade contingentemente determinável se encontra em face dos
princípios da razão”, no caso de uma vontade dependente que não é sempre por si mesma
conforme a razão (portanto, jamais identificável com uma possível vontade divina). Distingue
também agir por interesse e tomar interesse por algo, significando este o interesse “prático”
na ação e o outro o interesse “patológico” no objeto da ação, de modo que se age com
proveito da inclinação, agindo-se enquanto esse mesmo objeto for “agradável”26.
Para Kant, tudo o que é empírico é “não só inútil mas também altamente prejudicial à
própria pureza dos costumes”. O que constitui o valor de uma vontade absolutamente boa é
que o princípio seja livre de “todas as influências de motivos contingentes que só a
experiência pode fornecer”27. Princípios empíricos nunca serão aptos a fundamentar uma lei
moral, porquanto reportam particularidades e contingências, não sendo possível por meio
deles se abstrair e alcançar a universalidade, de modo que possam valer para todos os seres
racionais sem distinção28.
O homem encontra em si uma faculdade que o distingue de todas as outras coisas, a
razão (Vernunft). Distingue inclusive a si próprio, enquanto “afetado” por objetos. Kant
distingue razão e entendimento; de modo que a razão está acima do entendimento (Verstand)
enquanto pura atividade própria. Este também é atividade própria, no entanto contém
representações que se originam quando somos afetados por coisas, portanto retratando uma
relação passiva. O sentido compreende somente essas representações, o entendimento não
somente. Compreende outros conceitos que servem para submeter a regras as representações
25 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 16. 26 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 49. 27 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 65. 28 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 87.
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sensíveis e reuni-las por meio da consciência, sem a qual o uso da sensibilidade seria incapaz
de pensar qualquer coisa29.
A razão mostra uma espontaneidade pura sob o nome das ideias e dessa forma
ultrapassa o que a sensibilidade pode fornecer ao entendimento. A razão reconhece a
existência de um mundo sensível e um mundo inteligível, de modo que a distinção entre
ambos revela os limites do próprio entendimento. O ser racional deve se considerar como
inteligência, como pertencente ao mundo inteligível, não ao sensível, prossegue Kant. Nessa
condição, deve reconhecer leis no uso de suas ações: enquanto pertence ao mundo sensível,
está sob o influxo de leis naturais (heteronomia); e enquanto pertencente ao mundo inteligível,
sob leis fundadas somente na razão, não empíricas.30
Porquanto pertencente ao mundo inteligível, o homem não pode pensar a causalidade
da própria vontade senão sob a ideia de liberdade. A própria independência de causas
determinantes no mundo sensível é liberdade. A liberdade está inseparavelmente ligada ao
conceito de autonomia, que consiste no princípio universal da moralidade e que está na base
das ações de todas ações dos seres racionais na ideia31.
2.3. Kant e o problema da experiência na Crítica da Razão Pura; a experiência como
condição do conhecimento; a possibilidade de um conhecimento independente da
experiência; dialética, ideia e o uso normativo da razão32
Kant tem como problema fundamental de sua filosofia o questionamento de como são
possíveis os juízos sintéticos a priori, que constituem as leis da física, e na Crítica da Razão
Pura busca explicar como são formados tais juízos. Nesse intento, divide o estudo das
faculdades do conhecer em: Estética Transcendental, Analítica Transcendental e Dialética
Transcendental, cujos respectivos objetos são a sensibilidade, o entendimento e a razão3334.
29 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 101. 30 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 102. 31 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 102. 32 Este tópico foi baseado em trecho da dissertação de mestrado correspondente ao tópico 2.7, em razão da
coincidência de conteúdo. PEIXOTO, Danilo Ribeiro. Hermenêutica e Dialética no Direito. 2014. 123 f.
Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2014. 33 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
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26
Kant inaugura uma filosofia do sujeito, preocupando-se não com a explicação do objeto de
conhecimento, como nos gregos, mas sim com a interiorização da realidade. Para Kant, é o eu
transcendental que alcança a verdade e está ele no sujeito35.
O conhecimento da natureza se provém a partir da sensibilidade. Para explicar como
ela aparece no sujeito cognoscente, Kant introduz nesse contexto o dualismo noumenon, a
coisa em si, e fenomenon, o modo como a realidade modifica o homem. Com a interiorização
do fenomenon pela sensibilidade, dá-se o conhecimento e sua organização ocorre pelas formas
a priori da sensibilidade, que originam as intuições. Estas advêm puramente da sensibilidade,
e, portanto, não podem ser considerados pensamentos ou juízos36. Com efeito, o pensar se
inicia na sensibilidade, na captação dos fenômenos pelo sujeito. Para a formação dos juízos, é
necessária a passagem das intuições para o entendimento, de modo que se tornem elas
pensadas por formas a priori do entendimento, as categorias. Nessa apreensão das intuições
pelo entendimento por meio das categorias, os fenômenos captados formam uma síntese com
um juízo sintético experimental 37 . O conhecimento para Kant se mostra limitado ao
fenomenon, o objeto enquanto dado na sensibilidade. Seria impossível ao homem conhecer o
noumenon¸ tendo a capacidade para no máximo pensá-lo38. Portanto, a experiência aparece
como condição para o conhecimento.
De acordo com a teoria kantiana, há conhecimento apenas com o encontro entre
entendimento e sensibilidade. Ao homem seria possível pensar fora da experiência,
unicamente pela razão, mas não será formado o conhecimento. Formar-se-ia no caso a ideia,
que para Kant são conceitos puros da razão. Possui a ideia uma lógica precisa, todavia cria
teses e antíteses e estão relacionadas à dialética transcendental39. A ideia se dirige para a
esfera do agir e ostenta uso normativo. Sendo assim, a razão humana se apresenta como
teórica, mas também preocupada com o agir prático40. A razão para Kant, como em Descartes,
não é apta a sozinha a alcançar a realidade. Seria então incapaz de encontrar verdades,
34 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant. Belo
Horizonte: Decálogo, 2008, p. 18-19. 35 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant,cit, p. 30. 36 Juízo para Kant é o “ato pelo qual uma intuição (fato) é subsumida a uma categoria (direito)”. Salgado afirma
que Kant, ao estudar os juízos, procura defini-los de modo transcendental e não somente pela lógica formal,
abstraída de todo conteúdo. SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na
liberdade e na igualdade. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 39. 37 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant, cit, p. 19-20. 38 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. 3.ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 40. 39 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant,cit, p. 20. 40 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant,cit, p. 20.
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originando teses e antíteses41. As ideias são objeto de estudo da Dialética Transcendental
kantiana.
Explica Salgado que, no pensamento de Kant, o termo transcendental se refere à
possibilidade ou uso a priori do conhecimento. Dessa forma, é transcendental o
“conhecimento pelo qual nós conhecemos serem certas representações (intuições ou
conceitos) aplicadas as priori ou pelo qual conhecemos como são possíveis a priori”. Lógica
Transcendental é “a ciência que determina a origem, a extensão e o valor dos conhecimentos
a priori” e se divide em Analítica Transcendental e Dialética Transcendental42. A primeira se
ocupa dos elementos do conhecimento puro do entendimento e dos princípios sem os quais
nenhum objeto pode ser pensado, enquanto a segunda, constitui uma crítica ao uso ilimitado e
fora do sensível dos princípios puros do entendimento43.
A sensibilidade reúne o múltiplo das sensações e o prepara como intuição por meio de
suas formas puras – o espaço e o tempo. O entendimento se encarrega de organizar esses
dados pela aplicação de suas próprias formas puras, que são as categorias. A razão é a
faculdade superior que tem por única função no conhecimento sistematizá-lo, função esta
meramente regulativa44. Seu interesse, entretanto, se superpõe a essa função reguladora, e lhe
compele a medir as próprias forças, não se contentando somente em regular conhecimentos
oferecidos pelo entendimento e pela sensibilidade – fundados numa experiência possível.
Ao não se contentar apenas com o conhecimento limitado à experiência, busca um
conhecimento absoluto, um conhecimento do incondicionado. Porquanto aspira por natureza
ao incondicionado, é metafísica por excelência, aponta Salgado45. Entretanto, a razão cai em
antinomia quando intenta pensar o incondicionado. A razão trabalha de modo especulativo ao
deslocar para a metafísica a indagação sobre a seriação das causas e também ao se voltar para
um suposto conhecimento das coisas como são em si e não como aparecem através dos
sentidos. A metafísica abandona o fenômeno e, por conseguinte, se desliga da experiência e
da sensibilidade, almejando especulativamente ultrapassar o limite traçado pela experiência
para o conhecimento e procurando um objeto a que se possam aplicar fora do sensível as
categorias. Essa busca da razão especulativa origina as ideias, conceitos que não
41 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant,cit, p. 30. 42 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 29. 43 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 29-30. 44 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 44. 45 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 44.
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correspondem a um objeto dado pelos sentidos. Enquanto as categorias se voltam para o
fenômeno, as ideias procuram a coisa em si, o noumenon46. Kant sintetiza o conceito de ideia
na seguinte passagem da Crítica da Razão Pura, no Livro Primeiro da Dialética
Transcendental:
Entendo por idéia um conceito necessário da razão ao qual não pode ser dado nos
sentidos um objeto que lhe corresponda. Os conceitos puros da razão, que agora
estamos a considerar, são, pois, idéias transcendentais. São conceitos da razão pura,
porque consideram todo o conhecimento de experiência determinado por uma
totalidade absoluta de condições. Não são forjados arbitrariamente, são dados pela
própria natureza da razão, pelo que se relacionam, necessariamente, com o uso total
do entendimento. Por último, são transcendentes e ultrapassam os limites de toda a
experiência, na qual, por conseguinte, nunca pode surgir um objeto adequado à idéia
transcendental. Quando se nomeia uma idéia, diz-se muito quanto ao objeto (como
objeto do entendimento puro), mas, por isso mesmo, se diz muito pouco quanto ao
sujeito (isto é, quanto à sua realidade sob uma condição empírica), porque como
conceito de um maximum nunca pode ser dado in concreto de uma maneira
adequada. Como no uso meramente especulativo da razão é este propriamente o seu
objetivo, e aproximar-se de um conceito, que nunca é atingido na prática, equivale,
nessa aproximação, a falhar inteiramente esse conceito, diz-se de tal conceito que é
apenas uma idéia47.
Contudo, conforme expõe Kant, a razão seria incapaz, pelo seu modo de operação pela
simples coerência lógica, de revelar a essência das coisas e satisfazer essa sua intenção
transcendental. Dado que por meio desse comportamento especulativo a razão prescinde da
experiência, não será possível o uso da intuição – para Kant é impossível uma intuição
intelectual – e, com efeito, o discurso racional nesse tocante nada mais seria que um proceder
analítico o qual mostra a “identidade do sujeito e do predicado”. No entanto, considera que a
existência não é predicado e, por conseguinte, o pensar algo como existente não significa
conhecer algo como existente, aduz Salgado citando Maréchal48. A partir do descompasso
entre a intenção especulativa e o verdadeiro papel da razão no conhecer, emerge a necessidade
da crítica para rebater a “arrogância da razão” de modo a mostrar que a metafísica
especulativa não é conhecimento e que possível seria apenas uma metafísica imanente, uma
exposição sistemática “dos princípios a priori da experiência e das ideias reguladoras”49.
Conforme exposto, a busca por um conhecimento independente da experiência produz
a ideia, que se mostra à razão como coisa em si, mas seria uma realidade aparente (Schein).
Kant denominava “dialéticos” os raciocínios ilusórios fundados sobre uma aparência, sendo a
46 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 50-51. 47 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 343. 48 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 51. 49 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 51.
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dialética, dessa forma, uma lógica da aparência. A sua função seria a de evitar que o espírito
confundisse o real com o aparente. Enquanto a dialética lógica se encarregaria de identificar
os sofismas, caberia à dialética transcendental revelar as ilusões transcendentais resultantes da
razão 50 . Dessa forma, no livro sobre a Dialética Transcendental, Kant designa como
dialética 51 , em geral, uma lógica da aparência, procurando diferenciá-la conhecimento
verdadeiro52. O seguinte trecho sintetiza em grande parte o assunto ora tratado:
(...)Os princípios do entendimento puro, que anteriormente apresentamos, deverão
ter apenas uso empírico, e não transcendental, isto é, não devem transpor a fronteira
da experiência. Mas um princípio, que suprima estes limites ou até nos imponha a
sua ultrapassagem, denomina-se transcendente. Se a nossa crítica conseguir
desmascarar a aparência destes ambiciosos princípios, poderão os princípios de uso
simplesmente empírico denominar-se, em oposição a estes, princípios imanentes do
entendimento puro.
A aparência lógica, que consiste na simples imitação da forma da razão (a aparência
dos paralogismos), provém unicamente de uma falta de atenção à regra lógica.
Desaparece por completo logo que esta regra for justamente aplicada ao caso em
questão. Em contrapartida, a aparência transcendental não cessa, ainda mesmo
depois de descoberta e claramente reconhecida a sua
nulidade pela crítica transcendental (por exemplo, a aparência na proposição
seguinte: O mundo tem de ter um começo no tempo). E isto, porque na nossa razão
(considerada subjetivamente como uma faculdade humana de conhecimento) há
regras fundamentais e máximas relativas ao seu uso, que possuem por completo o
aspecto de princípios objetivos, pelo que sucede a necessidade subjetiva de uma
certa ligação dos nossos conceitos, em favor do entendimento, passar por uma
necessidade objetiva da determinação das coisas em si. Ilusão esta que é inevitável,
assim como não podemos evitar
que o mar nos pareça mais alto ao longe do que junto à costa, porque, no primeiro
caso, o vemos por meio de raios mais elevados; ou ainda, como o próprio astrônomo
não pode evitar que a lua, ao nascer, lhe pareça maior, embora não se deixe enganar
por essa aparência.
A dialética transcendental deverá pois contentar-se com descobrir a aparência de
juízos transcendentes, evitando ao mesmo tempo que essa aparência nos engane;
mas nunca alcançará que essa aparência desapareça (como a aparência lógica) e
deixe de ser aparência." Pois trata-se de uma ilusão natural e inevitável, assente,
aliás, em princípios subjetivos, que apresenta como objetivos, enquanto a dialética
lógica, para resolver os paralogismos, apenas tem de descobrir um erro na aplicação
dos princípios, ou uma aparência artificial na sua imitação. Há, pois, uma dialética
da razão pura natural e inevitável; não me refiro à dialética em que um principiante
se enreda por falta de conhecimentos, ou àquela que qualquer sofista
engenhosamente imaginou para confundir gente sensata, mas à que está
inseparavelmente ligada à razão humana e que, descoberta embora a ilusão, não
deixará de lhe apresentar miragens e lançá-la !"incessantemente em erros
momentâneos, que terão de ser constantemente eliminados.53
50 FOULQUIÉ, Paul. A dialéctica.Trad. Luís A. Caeiro. Lisboa: Publicações Europa-América, 1966,p. 32. 51 Não obstante o uso do vocábulo dialética por Kant, a dialética transcendental não assume propriamente a
configuração de uma teoria dialética no sentido clássico ou no sentido moderno pós-hegeliano. É identificada a
partir de contornos próprios da obra kantiana. 52 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, cit, p. 321. 53 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, cit, p. 323-324.
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Enfim, na dialética da razão pura, Kant demonstra o insucesso da razão ao tentar um
“vôo tão alto” e com isso prepara o uso “correto” da razão, seja na forma meramente
regulativa – razão teorética, seja na forma inteiramente constitutiva – razão prática. Ensina
Salgado que na filosofia kantiana a ideia representa o ponto de passagem da filosofia teórica
para a prática. Ao demonstrar pela dialética da razão pura a impossibilidade de ela própria
alcançar um conhecimento por ideias puras, Kant mostra na esfera do agir o caminho certo
para a razão, em que opera um retorno sobre si mesma não como intelecto que se volta para o
sensível para conhecer, mas como “vontade que se desdobra sobre si mesma para agir”,
percebendo que “ela mesma é o seu objeto e seu único interesse”54. A ideia, que na razão
teorética é o “resultado do processo de conhecimento no uso dialético da faculdade de pensar,
em busca do incondicionado”, passa a ser na razão prática um princípio de ação55. Conquanto
mantenha a característica fundamental de regra que se dirige ao sujeito, a ideia na razão
prática assume a natureza de lei moral que orienta o agir, tendo como característica a
universalidade como exigência absoluta da razão. Consoante diz Salgado, “a razão legisla
tanto para a natureza quanto para a liberdade”56. A dialética transcendental, primeiro, assumiu
um sentido negativo ao procurar mostrar a “falsidade de seus objetos”, no entanto, considera
Salgado, a mesma ideia que se apresentou falsamente como objeto assume então uma direção
positiva57.
Aponta Salgado que com Kant o mundo sensível deixou de ser um problema à maneira
platônica e se deslocou para a razão de ser de todo conhecimento. Nessa recuperação do
sensível, Kant opera uma revolução ao centrar o pensamento filosófico no eu, interiorizando a
filosofia58 . As categorias não são mais identificadas como ontológicas e pertencentes ao
objeto, mas se situam ao lado do ser, que, agora com Kant, se provém da substância e da
causalidade figurando como o criador da ordem natural do universo, criador da legalidade da
natureza, de sorte que a possibilidade do ente se encontra condicionada pelo eu, prossegue
Salgado, citando Kroner59. Kant, o filósofo dos dualismos, opera cisão entre o eu e o mundo,
o pensar e o ser, que Parmênides havia unido na ontologia. Com base nisso, Hegel denomina
54 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 51. 55 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 63. 56 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 63. 57 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 62-63. 58 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 47. 59 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 48.
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a filosofia kantiana como filosofia da reflexão, em comparação com a sua própria, que intenta
recuperar a ontologia e a identificação entre ser e pensar60.
Salgado destaca que a razão no sentido prático é o suporte de todo o sistema moral
kantiano. O autor enfatiza, no entanto, que o conceito kantiano de razão difere sobremaneira
daquele cunhado desde a antiga Grécia. A razão é tida tradicionalmente como a mais alta
faculdade do conhecimento, oposta à imaginação e à percepção sensível, e pode ser tomada
nessa perspectiva em dois sentidos: um em sentido amplo, que abrange todas as faculdades
superiores do conhecimento; e outro em sentido estrito, que se refere à “faculdade de tirar
conclusões por silogismos ou outros tipos de raciocínio”61.
Prossegue Salgado explicando que enquanto a clássica acepção de razão ou
entendimento se identifica com a faculdade de criar conceitos, sendo ela empírica
(Aristóteles) ou não empírica (Platão); Kant traz ao termo uma nova acepção ao admitir que a
razão envolva também o entendimento somente quando este cria conceitos a priori – que se
originam dele próprio e não da experiência. Dessa forma, a razão pura é aquela que produz
conceitos a priori, alheios em sua origem à experiência e também aquela que se identifica
como a faculdade do conhecimento a partir de princípios – cognitio ex principiis, não de fatos
empíricos – cognitio ex datis. Em sentido estrito, a razão pura significa a razão que cria ideias,
“conceitos puros considerados em si mesmos objetos”. Tais ideias são alcançadas pela razão
quando esta indaga pela origem das premissas de seus silogismos, quando perquire a causa
das causas62, procurando chegar à causa incondicionada capaz de explicar a totalidade das
causas 63 . Salgado sublinha que “uma causa não causada e que se traduz numa ação
absolutamente espontânea, incondicionada, dará a Kant o conceito ou a ideia de liberdade; e
que o “refletir sobre uma ação que age”, uma ideia de razão prática, possui compromisso
inquebrantável com a ideia de liberdade.”64
A razão prática, desse modo, ocupa-se não com a simples atividade de traduzir as leis
que determinam os fenômenos naturais, mas sim em representar as leis que orientam o agir de
um “ser racional ou dotado de liberdade”. Constitui-se, assim, na faculdade do homem em
agir por princípios ou máximas, as quais tornam possível uma ação, entendida nessa
60 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 48. 61 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 49. 62 O incentivo à busca da causa pela causa é identificado como uso puramente negativo. 63 SALGADO,