UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em...

144
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS YASMIN RODRIGUES ANTONIETTI “EU JÁ FUI ARRANCADO DE VÁRIOS LUGARES. ARRANCADO. E AINDA TENHO UM PEDACINHO E PARA EU SAIR DE LÁ EU VOU TER QUE SAIR ARRANCADO TAMBÉM” Extrahección e Resistência em Conceição do Mato Dentro (MG) Montes Claros 2019

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em...

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

YASMIN RODRIGUES ANTONIETTI

“EU JÁ FUI ARRANCADO DE VÁRIOS LUGARES. ARRANCADO.

E AINDA TENHO UM PEDACINHO E PARA EU SAIR DE LÁ EU

VOU TER QUE SAIR ARRANCADO TAMBÉM” Extrahección e Resistência em Conceição do Mato Dentro (MG)

Montes Claros

2019

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

YASMIN RODRIGUES ANTONIETTI

“EU JÁ FUI ARRANCADO DE VÁRIOS LUGARES. ARRANCADO.

E AINDA TENHO UM PEDACINHO E PARA EU SAIR DE LÁ EU

VOU TER QUE SAIR ARRANCADO TAMBÉM” Extrahección e Resistência em Conceição do Mato Dentro (MG)

Dissertação apresentada às Universidades

Federal de Minas Gerais e Universidade

Estadual de Montes Claros, como parte

das exigências para a obtenção do título

de mestre em Sociedade, Ambiente e

Território.

Área de Concentração: Sociedade e

Ambiente

Orientador: Prof. Dr. Rômulo Soares

Barbosa

Montes Claros

2019

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu
Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

YASMIN RODRIGUES ANTONIETTI

“EU JÁ FUI ARRANCADO DE VÁRIOS LUGARES. ARRANCADO.

E AINDA TENHO UM PEDACINHO E PARA EU SAIR DE LÁ EU

VOU TER QUE SAIR ARRANCADO TAMBÉM” Extrahección e Resistência em Conceição do Mato Dentro (MG)

Dissertação apresentada às Universidades

Federal de Minas Gerais e Universidade

Estadual de Montes Claros, como parte

das exigências para a obtenção do título

de mestre em Sociedade, Ambiente e

Território.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Prof. Dr. Rômulo Soares Barbosa

UNIMONTES

________________________________________

Profª. Drª Ana Flávia Moreira Santos

Departamento de Antropologia - UFMG

________________________________________

Profª. Drª Andréa Maria Narciso Rocha de Paula

PPGDS/PPGSAT - UNIMONTES

Montes Claros, 29 de julho de 2019

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

À Luzia, Joel e todos os atingidos pelo empreendimento Minas-Rio

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

AGRADECIMENTOS

O trabalho, apesar de monográfico, esconde a impossibilidade de sua concretude

através de um esforço exclusivamente individual. A construção desta dissertação

envolveu processos que perpassaram desde a minha mudança para Montes Claros às

inúmeras dificuldades encontradas pelo caminho. Sendo assim, não poderia agradecer

somente as pessoas diretamente envolvidas no projeto, mas todos que estiveram ao meu

lado em sua construção.

O primeiro agradecimento é destinado a todos os atingidos pelo empreendimento

Minas-Rio que, desde o dia que passei a acompanhar o caso, mudaram o modo como eu

vejo e encaro a vida. Vocês me ajudaram a definir força, coragem e luta. Nunca serei

capaz de retribuir a todos altura os cafés, o teto, a comida e a sabedoria compartilhadas

durante todo o tempo que passei com vocês. À Patrícia, Júnior e Teca, fontes inesgotáveis

de energia, agradeço pela disponibilidade, pelo ouvido atento, pelas conversas e por

dividirem comigo um pouco da imensa força que vocês carregam dentro de vocês.

Agradeço à minha mãe, a quem tudo devo e para quem dedico não só essa

conquista, mas todas as coisas boas que eu possa vir a fazer. À toda minha família, na

pessoa da minha amada avó Jorgina que, mesmo sem entender o porquê de estudar mais

dois anos, sempre me apoiaram em tudo.

Agradeço imensamente o meu orientador Prof. Dr. Rômulo Barbosa, que além do

acompanhamento atento do desenvolvimento da pesquisa e do exemplo de

profissionalismo e dedicação, me deu todo o suporte emocional necessário para vencer

todas as etapas impostas por esse processo.

Nesse mesmo sentido, não poderia deixar de agradecer à Profª Drª Andréa

Narciso, por aceitar fazer parte desta banca e por, juntamente com as Profªas Drªs Felisa

Anaya e Ana Thé, serem exemplos de mulheres guerreiras com quem tenho uma dívida

eterna por todo o carinho, por me fazerem me sentir em casa e, sobretudo, por serem

verdadeiras inspirações não só acadêmicas, mas também pessoais.

À querida Profª Drª Ana Flávia Santos que, para além do pronto aceite para

composição da banca, foi quem esteve ao meu lado em todos os anos da pesquisa,

agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

tanta generosidade, seu conhecimento, os caminhos da profissão, o dia a dia, angústias e

momentos de muita alegria. Obrigada, de coração, por todas as oportunidades

compartilhadas em todos esses anos. Concluir essa etapa com você faz ser ainda mais

especial.

Às Profªs Drªs Andrea Zhouri e Raquel Oliveira por terem me permitido viver o

GESTA, por terem acompanhado toda minha trajetória desde a graduação e por terem

despertado em mim o amor pela pesquisa e pela extensão.

Um obrigada gigante aos amigos do GESTA: Carlos, Ilklyn, Lívia, Luciana, Mary,

Matheus e Tales. À Luciana e Clarissa, agradeço não apenas por dividirem comigo as

angústias, as reflexões, os campos e as alegrias, mas por permitir que caminhássemos

lado a lado na vida.

Ao William, pela paciência, pelo coração gigante e por sempre nos conduzir com

segurança.

Ao meu companheiro, Yan, pela compreensão, pelo apoio, pelo amor e por sempre

acreditar em mim.

Aos amigos do PPGSAT e de Montes Claros: Adinei, Bruna, Emanuella, Géssica,

Bia, Emília, Greiciele, Patrícia, Lunna, Túlio e aos meus amores Michel, Guilherme e

Erika, por fazerem a mudança ser mais leve e por se tornarem minha família no tempo

em que aí estive.

Aos amigos da vida, Amanda, Arnaldo, Cássio, Cissa, Dário, Giulia, Ivan, Luisa,

Magno, Pedro, Roberto, Rosa e Wallisson, meu muito obrigada pelo amparo e por sempre

ouvirem atentos todos os relatos que eu sempre trazia dos campos e por compreenderem

minhas ausências. Ao Otávio, pela atenção, pelas conversas na madrugada, por me

acalmar nos desesperos, por me socorrer e por ser o primeiro leitor de tudo que eu escrevo.

Ao meu mestre Gil, por me fortalecer física e mentalmente dentro e fora do tatame.

À Tia Elaine e Léo, meus alicerces, obrigada por abrirem os caminhos da pesquisa

e despertarem em mim o amor pela vida acadêmica.

À FAPEMIG, pela bolsa de mestrado que possibilitou o desenvolvimento deste

trabalho.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

RESUMO

ANTONIETTI, Yasmin. “Eu já fui arrancado de vários lugares. ARRANCADO. E

ainda tenho um pedacinho e para eu sair de lá eu vou ter que sair arrancado

também”: Extrahección e Resistência em Conceição do Mato Dentro (MG). 2019. 140

f. Dissertação (Mestrado em Sociedade, Ambiente e Território). Instituto de Ciências

Agrárias, Universidade Federal de Minas Gerais, Montes Claros, MG, 2019

A chegada e instalação de um grande projeto minerário, o empreendimento Minas-Rio,

em Conceição do Mato Dentro (MG), resultou em transformações permanentes e

profundas na vida, morada e trabalho das diversas comunidades rurais presentes no

município. Nesse sentido, o objetivo principal do presente trabalho é compreender quais

foram as estratégias do empreendedor no que tange a aquisição de terras, assim como

seus efeitos sobre os atingidos, partindo do cenário macro da adoção de um modelo de

desenvolvimento neoextrativista pela maioria dos países da América do Sul à reprodução

de processos expropriatórios em níveis locais e seus efeitos multidimensionais. A

reflexão, realizada através de metodologias qualitativas e quantitativas, no primeiro

momento, se dá a partir das disputas em torno das diferentes formas de apropriação do

espaço para que, na sequência, seja analisado o caso específico do empreendimento

Minas-Rio em Conceição do Mato Dentro, caracterizando, historicamente, as estratégias

de aquisição de terras adotadas pela mineradora, as disputas entre diferentes atores

durante o processo de licenciamento ambiental e seus efeitos sobre os modos de vida e

ocupação da região. Dessa forma, se destacaram estratégias como a utilização de empresa

laranja para a redução de preços, o não reconhecimento do universo de atingidos, pressões

sobre grupos e famílias, fragilização de laços familiares e entre vizinhos, desconsideração

e, por vezes, negação das formas tradicionais de apropriação do território gerando um

conflito de amplas proporções.

Palavras-chave: mineração; Anglo American; neoextrativismo; territorialidade;

atingidos; MG

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

ABSTRACT

ANTONIETTI, Yasmin. “Eu já fui arrancado de vários lugares. ARRANCADO. E

ainda tenho um pedacinho e para eu sair de lá eu vou ter que sair arrancado

também”: Extrahección e Resistência em Conceição do Mato Dentro (MG). 2019. 140

f. Dissertação (Mestrado em Sociedade, Ambiente e Território). Instituto de Ciências

Agrárias, Universidade Federal de Minas Gerais, Montes Claros, MG, 2019

The arrival and installation of a large mining project, the Minas-Rio, in Conceição do

Mato Dentro (MG), resulted in permanent and deep changes in the life, dwelling and work

of many rural communities present in the municipality. In this sense, the main objective

of the present work is to understand the entrepreneur's strategies regarding the acquisition

of land, as well as its effects on those affected, starting from the macro scenario of the

adoption of a neo-extractive development model by most South American countries to

the reproduction of expropriatory processes at local levels and their multidimensional

effects. The reflection, made through qualitative and quantitative methodologies, in the

first moment, starts from the disputes around the different forms of appropriation of space

so that, afterwards, the specific case of the Minas-Rio in Conceição do Mato Dentro,

analyzing and characterizing, historically, the strategies of land acquisition adopted by

the mining company, the dispute between different actors during the environmental

licensing process and their effects on the livelihoods and occupation of the region.

Therefore, strategies such as the use of an orange company to reduce prices, non-

recognition of the universe of the affected people, pressures on groups and families,

weakening of family and neighboring ties, disregard and sometimes negation of

traditional forms were highlighted resulting in a conflict of large proportions.

Keywords: mining; Anglo American; neoextrativism; territoriality; MG

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Principais destinos do minério de ferro brasileiro ......................................... 58

Figura 2- Mapa do Complexo Industrial Minas-Rio, traçado do mineroduto ............... 66

Figura 3- Linha do tempo Licenciamento do empreendimento Minas-Rio .................. 67

Figura 4- Instrumento Particular de Promessa de Compra e venda da Fazenda Passa

Sete ................................................................................................................................. 73

Figura 5- Contrato Particular de Comodato de Imóvel Rural firmado entre a empresa

Borba Gato Agropastoril e a Anglo Ferrous Minas-Rio................................................. 74

Figura 6- Mapa das comunidades atingidas pelo projeto Minas-Rio de acordo com o

Relatório da Diversus (2011) .......................................................................................... 86

Figura 7- Mudas de D. Luzia, preparadas para a mudança da família ........................ 117

ÍNDICE DE GRÁFICOS

Gráfico 1- Exportação Brasileira por fator agregado (%) ............................................. 48

Gráfico 2- Produto Interno Bruto brasileiro (2015) ....................................................... 55

Gráfico 3 - Produção Mineral Brasileira ....................................................................... 56

Gráfico 4 - Extração de Minério de Ferro vs Preço do Minério no mercado

internacional ................................................................................................................... 56

Gráfico 5- Distribuição percentual das substâncias minerais nas exportações brasileiras

em 2018 em dólares ........................................................................................................ 57

Gráfico 6- Quantidade de Vínculos CLT Indústria Extrativa Mineral .......................... 60

ÍNDICE DE TABELAS

Tabela 1 - Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e Porcentagem de pessoas vivendo

abaixo da linha da pobreza nas principais economias extrativistas na América Latina . 59

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADA - Área Diretamente Afetada

AI-5 - Ato Institucional nº 5

AID - Área de Influência Direta

ALMG - Assembleia Legislativa de Minas Gerais

CFEM - Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais

CIMOS - Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social

CLT - Consolidação das Leis do Trabalho

CMI - Câmara de Atividades Minerárias

CONAMA - Conselho Nacional de Meio Ambiente

COPAM - Conselho Estadual de Política Ambiental

DNPM - Departamento Nacional de Produção Mineral

EIA - Estudos de Impacto Ambiental

FETAEMG - Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais

Fórum CMD - Fórum de Desenvolvimento Sustentável de Conceição do Mato Dentro

GESTA - Grupo de Estudos e Temáticas Ambientais

IBAMA - Instituto de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBRAM - Instituto Brasileiro de Mineração

IDH - Índice de Desenvolvimento Humano

LI - Licença de Instalação

LO - Licença De Operação

LP - Licença Prévia

MPE – Ministério Público Estadual

MPF - Ministério Público FEDERAL

ONG’s - Organizações Não Governamentais

ONU - Organização das Nações Unidas

PIB - Produto Interno Bruto

PNF - Plano de Negociação Fundiária

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

PNO – Plano de Negociação Opcional

PU - Parecer Único

RAIS - Relação Anual de Informações Sociais

REAJA – Rede de Articulação e Justiça Ambiental dos Atingidos pelo Projeto Minas-

Rio

REASA - Rede de Acompanhamento Socioambiental

RIMA - Relatórios de Impacto Ambiental

SEMAD - Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável

SISEMA - Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos

SUPRAM - Superintendência Regional de Regularização Ambiental

TAC - Termo de Ajustamento de Conduta

UNCTAD - Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento

URC - Unidade Regional Colegiada

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 14

A pesquisa e seus dados .............................................................................................. 17

Os capítulos ................................................................................................................. 21

CAPÍTULO 1 - “A terra é minha mãe, porque criou a minha tataravó, minha bisavó, meus

avós, meu pai, cria eu e vai criar resto da família”: Disputas entre as noções de

propriedade privada e de território ......................................................................................... 23

1.1 A construção da lógica da propriedade privada .................................................... 26

1.2 A construção jurídico-formal das leis de terra no Brasil ...................................... 30

1.3 A lei de terras ........................................................................................................ 33

1.4 A questão da propriedade nas constituições da república brasileira ..................... 35

1.5 Da terra ao território e à territorialidade ............................................................... 38

1.6 Territorialidades: formas coletivas de apropriação e uso da terra”....................... 40

CAPÍTULO 2 - “Depois que a Anglo chegou, só atrapalhou, só piorou, nós não tivemos

sucesso de nada. Você vê que nem emprego meus meninos não têm, né?”:

Neoextrativismo e efeitos multidimensionais ....................................................................... 46

2.1 O cenário da mineração no Brasil ......................................................................... 54

2.2 Neoextrativismo e efeitos derrame: a flexibilização do licenciamento ambiental 61

CAPÍTULO 3 - “Aí as licenças vão saindo, vai andando, vai um passo e quando você vai

vendo vai tomando aquela dimensão. Ali você já não pode entrar mais, ali a Anglo

comprou, ali ela fechou.”: A questão fundiária no processo de licenciamento do

empreendimento Minas-Rio .................................................................................................... 65

3.1 O empreendimento ................................................................................................ 65

3.2 O ser ou não atingido: questões fundiárias e denúncias recorrentes ..................... 68

3.3 Práticas Cotidianas da empresa em relação ao território ...................................... 72

CAPÍTULO 4 -“Eu já fui arrancado de vários lugares. ARRANCADO. E ainda tenho um

pedacinho e para eu sair de lá eu vou ter que sair arrancado também.”: Planos de

Negociação Fundiária, narrativas de Extrahección e resistência ....................................... 97

4.1 Atuais contornos do licenciamento ambiental: o plano de negociação opcional .. 98

4.2 Caracterização das famílias e do lugar: a vida antes da chegada da empresa..... 102

4.3 Algumas estratégias de aquisição de terras que não respeitavam o PNF ........... 106

4.4 A fragilização dos laços familiares e das relações comunitárias ........................ 110

4.5 Violações de propriedades e do direito de ir e vir .............................................. 118

4.6 Estratégias de intimidação .................................................................................. 119

4.7 A desmobilização produtiva ............................................................................... 119

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

4.8 Dois diferentes casos de violência: a expropriação via servidão minerária e o

reconhecimento sem o reassentamento ..................................................................... 121

4.9 A continuação da luta.......................................................................................... 123

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 125

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 129

ANEXOS ................................................................................................................................. 137

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

14

INTRODUÇÃO

Eram quase dez horas da noite quando Sr. Joel veio me encontrar para

conversarmos sobre o meu trabalho. Não era a primeira vez que nos encontrávamos neste

horário, afinal, a vida na roça ocupa a maior parte do seu dia. Ele não me deu explicações

sobre o porquê de vir tão tarde, mas eu já sabia: no dia anterior passamos parte da tarde e

toda a noite em uma reunião na comunidade vizinha, o Jassém, discutindo, mais uma vez,

sobre o ser ou não atingido com a empresa. Eu sabia a dificuldade de encontrar Sr. Joel

na sua nova casa, já acompanho as diversas tentativas de intimidação que ele vem

sofrendo desde as primeiras denúncias à MMX, ainda em 2008 e, por isso, decidi passar

a semana com D. Luzia até o momento em que ele se sentisse à vontade para falar comigo.

O medo e a mudança compulsória de território se somam a incontáveis outros efeitos do

empreendimento sobre pequenos agricultores como Sr. Joel e D. Luzia que tiveram suas

vidas e suas dinâmicas sociais expropriadas desde a chegada da mineração.

___

Entre os anos de 2006 e 2008, aproximadamente vinte e duas comunidades

localizadas nos municípios de Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim e Alvorada de

Minas viram seus modos de ser, fazer e viver serem profunda e permanentemente

modificados a partir da chegada de uma grande companhia de mineração, à época, MXX.

A partir de uma pesquisa qualitativa concentrada nas comunidades rurais desses

municípios, descrevo alguns dos efeitos do empreendimento sobre os atingidos, através

da análise dos conflitos ambientais territoriais desencadeados na região.

O empreendimento Minas-Rio, da mineradora Anglo American, é um grande

complexo minerário que envolve uma lavra a céu aberto, uma usina de beneficiamento

de minério de ferro e um complexo industrial-portuário. A produção de minério de ferro

do Minas-Rio, hoje em processo de ramp-up, pretende atingir a meta de produção de 29,1

milhões de toneladas por ano de minério de ferro, para abastecimento do mercado

exterior. Esse minério é transportado de sua cava, em Conceição do Mato Dentro (MG)

até São João da Barra (RJ), passando por trinta e três municípios. Além disso, o

empreendimento conta com estruturas associadas tais como uma linha independente de

transmissão de energia, na cidade de Itabira, e uma adutora de água, cuja captação se dá

no Rio do Peixe (Bacia do Rio Doce), no município de Dom Joaquim, além de

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

15

compreender o maior mineroduto do mundo, com 529 km de extensão. A licença de

operação da cava da mina, concomitante à barragem de rejeitos e a planta de

beneficiamento, foi concedida em 2014, seguida pelo processo de licença de otimização

do projeto (“Step 2”) em 2015 e licença de expansão da cava da mina (“Step 3”) em

dezembro de 2018. O processo de licenciamento e o tratamento da área afetada pelo

empreendimento são responsáveis por efeitos e transformações profundas na vida local,

tais como a devastação de ecossistemas protegidos e o desmantelamento de comunidades

e territórios de ocupação tradicional, deflagrando um conflito de amplas proporções.

A zona rural onde estão localizadas a cava da mina, as usinas de beneficiamento

e a barragem de rejeitos, na porção oriental da Serra do Espinhaço, se caracteriza pela

grandeza de seu patrimônio histórico e natural. O arraial, que originou o município do

Serro e que estimulou a ocupação da região se deu, sobretudo, depois da descoberta das

minas de Serro Frio por bandeirantes que passavam pela região. Com o passar dos anos e

novas descobertas de jazidas, o Serro passou a ser, até o século XVIII, um dos principais

polos de exportação de ouro no Norte de Minas (BARBOSA, 1995). Em 1702, uma nova

bandeira encontra ouro em Itapanhoacanga, o que contribuiu para o surgimento dos

arraiais de Córregos, Morro do Pilar, Tapera e Conceição (COSTA, 1975).

Conceição do Mato Dentro nasce, portanto, da exploração aurífera, em um

processo de conformação econômica e social que se deu pela mescla da presença de

portugueses, brasileiros e africanos de diversas origens (GESTA et al, 2018). Com a

decadência da exploração de ouro, no fim do século XVIII e início do século XIX, a

região passou por intensas transformações econômicas e sociais. O ouro cedeu, então,

lugar às atividades agrícolas, pecuárias e de comércio. A partir da desintegração do

sistema escravista, a ocupação da região se conformou, portanto, a partir de um

campesinato negro, composto por negros libertos ou fugitivos que se apropriaram do

território como trabalhadores livres, posseiros ou “meeiros” de terras (GESTA et al,

2018).

Dois séculos depois, a mineração retorna à região, inserida em novo processo

macro e complexo de reprimarização da economia, marcado pelo alto preço dos

commodities e pela intensificação da exportação de produtos primários com pouco ou

quase nenhum beneficiamento, através de um modelo de desenvolvimento denominado

neoextrativista.

A primazia da exportação de bens primários, mais que uma reforma econômica,

é acompanhada por mudanças profundas no que tangem aspectos territoriais, sociais,

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

16

culturais e políticos, principalmente ligados à intensificação dos conflitos sobre lógicas

de uso e apropriação do espaço divergentes. A indústria minerária é ilustrativa deste

cenário. Assistimos, nas últimas décadas, a uma reformulação do setor que, por meio da

adoção de novas tecnologias, tem permitido a exploração em larga escala de itabiritos

com baixo teor de ferro, expandindo as atividades para zonas antes não exploradas, como

o caso da zona rural de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas. Essa expansão

é responsável pela deflagração de inúmeros conflitos ambientais que envolvem disputas

territoriais, processos expropriatórios, alteração do ambiente e comprometimento de

modos de vida e reprodução de diversas comunidades.

A zona rural supracitada é caracterizada pela presença de grandes fazendas e terras

tradicionalmente ocupadas por famílias de antiga presença local que compõem um

campesinato afrodescendente que se mantêm a partir da agricultura de subsistência e por

plantios complementares, na meia ou na terça, nas fazendas da região (CARVALHOSA,

2016). As famílias vivem em comunidades diversas com regimes possessórios próprios,

através do uso tradicional e comum da terra (ALMEIDA, 2004). Os moradores que se

encontram na área contínua à cava da mina vivenciam inúmeros efeitos, de modo

cumulativo, que alteram, permanente e profundamente, o modo de vida local desde a fase

de prospecção, em 2006, quando foram feitas as primeiras denúncias e relatos de

violações de direitos humanos e ambientais, antes mesmo da primeira licença ambiental

ter sido concedida (LEITE, 2016).

A chegada do empreendimento Minas-Rio e o confronto entre diferentes lógicas

de apropriação do território resultou, portanto, em diversas perdas materiais e simbólicas

através da imposição de um entendimento único e excludente da noção de território que,

segundo a lógica da empresa, é um recurso a ser explorado, homogeneizando o espaço e

as diversas formas de viver e fazer historicamente construídas na região.

Dessa forma, o trabalho em tela teve como objetivo compreender quais foram as

estratégias da MMX/Anglo American no que tange à aquisição de terras pela empresa,

assim como seus efeitos sobre os atingidos, partindo do cenário macro da adoção de um

modelo de desenvolvimento neoextrativista pela maioria dos países da América do Sul e

sua materialização em processos expropriatórios à níveis locais, assim como seus efeitos

multidimensionais.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

17

A pesquisa e seus dados

Antes de adentrar propriamente na metodologia do presente trabalho, faz-se

necessário destacar que a pesquisa desenvolvida esteve intimamente ligada à minha

inserção no Grupo de Estudos e Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG), espaço onde as

atividades de pesquisa e extensão foram as bases das experiências e reflexões que busco

trazer nos capítulos subsequentes, através da articulação entre as práticas acadêmicas e,

também, políticas. Nesse sentido, a partir de 2013, passei a acompanhar o processo de

licenciamento do empreendimento Minas-Rio, momento em que pude ter contato com a

realidade do município e com os moradores. Aproximação aprofundada com a aprovação

do projeto “Poder, território e conflito: processos de territorialização e mineração em

Conceição do Mato Dentro (MG)”. A partir da inserção no projeto, do qual um dos

resultados se concretizou em minha monografia de graduação1, foi possível acompanhar

mais de perto a trajetória de luta e resistência dos moradores, abrindo inúmeras

possibilidades de pesquisa, dado o maior contato com o caso e com os seus

desdobramentos ao longo do tempo. Nesse sentido, um dos grandes interesses

despertados em mim esteve relacionado à questão fundiária da região.

Desde os primeiros campos, das primeiras entrevistas ou mesmo do

acompanhamento de reuniões, notei que uma das questões cruciais colocadas pelos

atingidos, enquanto efeitos da chegada do empreendimento, está no modo como são

conduzidas as aquisições de terra e a lógica por trás desta operação. A racionalidade da

empresa, pautada pela propriedade privada, nega a existência de territórios nos quais os

moradores se reproduzem socialmente através de lógicas próprias. Essa inquietação

tornou-se mais evidente a partir de reunião realizada com a Subdefensora Pública Geral

Drª Ana Cláudia Silva, em 2016, na qual foram discutidos os contratos de compra e venda

de terras propostos pela Anglo American, as noções do Direito em relação à posse e o

caráter patrimonialista e privado das leis de garantia à terra, que não incorporam

diferentes lógicas de uso e apropriação do território.

Assim, considerando o percurso por mim desenvolvido e as relações estabelecidas

nas comunidades atingidas pelo empreendimento ao longo dos últimos seis anos; a

1 ANTONIETTI, Yasmin Rodrigues. Da resistência cotidiana à mobilização: uma análise da trajetória de

São José do Jassém frente à mineração. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências

Socioambientais) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

18

gravidade e a representatividade do caso Minas-Rio no contexto de expansão das

atividades minerárias e as diversas iniciativas de flexibilização das leis e normas

ambientais; busquei, por meio do presente trabalho, dar continuidade ao trabalho iniciado

na graduação com o objetivo de, a partir de casos concretos, evidenciar modos de vida e

apropriação do território marginalizados ao longo do licenciamento do projeto Minas-

Rio; descrever as práticas comuns da empresa que, via de regra, são marcadas pela

violência; compreender como se desenvolveram os regimes possessórios na região;

descrever a luta e a resistência dos moradores frente às investidas da empresa e, por fim,

a construção de mais um elemento que possa ser utilizado pelos moradores de Conceição

do Mato Dentro enquanto ferramenta para a garantia de direitos.

Assim, considerando a proximidade com o caso e o percurso descrito, a construção

da metodologia utilizada foi um ponto de grande dedicação, uma vez que encontrei no

seu rigor o fator fundamental para a legitimação de todo o trabalho. Cardoso (1986) atenta

para o fato de que, no Brasil, a valorização do método qualitativo, após os anos 1970, não

foi acompanhado por discussões sobre a forma de se conhecer os dados. A superação do

paradigma positivista de neutralidade e objetividade do pesquisador, apesar de superada,

passou a ser justificada por razões políticas e não como um instrumento do conhecimento,

permanecendo, assim, o ideal de que um bom trabalho do pesquisador na coleta de dados

geraria resultados que falam por si mesmos. Portanto, é fundamental esclarecer, como

defendido pela autora, que um bom pesquisador em contextos de convivência com

minorias esteja de acordo com os discursos políticos e conceituais do grupo estudado,

contribuindo para que esse discurso possa acessar novos lugares, sendo o rigor

metodológico, a sistematização dos dados coletados em campo e o compromisso teórico,

os elementos que permitem o avanço de reproduções de relatos, de um texto romântico

e/ou ativista à um trabalho acadêmico de qualidade.

Nesse sentido, é importante esclarecer que ao longo dos últimos seis anos estive

muito presente no ambiente de realização da pesquisa, tornando impossível o não me

deixar tocar pelas inúmeras histórias de resistência presentes na região, ao mesmo tempo

que também despertou em mim grande revolta frente ao descaso do Estado e as violações

de direitos humanos e ambientais realizadas pela empresa. Nesse tempo, foram

construídas relações de amizade e confiança que me permitiram colocar em prática o

projeto de dissertação, considerando a sensibilidade das questões abordadas, mas que ao

mesmo tempo me permitiram compreender o cenário da região, moldaram minha

percepção. Cardoso (1986) defende que:

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

19

(...) o resgate da subjetividade como instrumento de trabalho não

deve ser justificativa para indefinição dos limites entre ciência e

ideologia e, portanto, não devem servir de desculpa para repor a

velha oposição entre verdade e mistificação. A relação

intersubjetiva não é o encontro de indivíduos autônomos e auto-

suficientes. É uma comunicação simbólica que repõe e supõe

processos básicos responsáveis pela criação de significados de

grupos. É neste encontro entre pessoas que se estranham e que

fazem um movimento de aproximação que se pode desvendar

sentidos ocultos e explicitar relações desconhecidas. (p.103)

Sendo assim, o método aparece, enquanto o elemento de controle da subjetividade

inerente à todas as relações sociais. Desta forma, pesquisa teve como recorte espacial as

comunidades rurais de Conceição do Mato Dentro (MG) afetadas pelo Minas-Rio,

considerando todo o período desde a chegada da empresa, tendo como interlocutor(es)

o(s) morador(es) que passaram por processos de “aquisição” fundiária. A execução do

projeto perpassou a compreensão das diferentes relações construídas entre os próprios

moradores, entre os moradores e o lugar, órgãos governamentais e empresa, exigindo,

assim, metodologias e técnicas que permitissem a captura dessas múltiplas dimensões.

Nesse sentido, considerando que o método deve se adequar ao objeto de estudo, optei pela

metodologia qualitativa, já que essa permite a compreensão de cenários complexos

enquanto fundamentais para construção do conhecimento (GÜNTER, 2006). Contudo,

para a análise de diversos dados e para aprofundamento teórico, principalmente do

contexto macro na qual essa dissertação se insere, se fez uso, também, de abordagens

qualitativas.

A pesquisa, descritiva, se pautou em um estudo de caso detalhado, com base em

análises desenvolvidas por Gluckman e Van Velsen (1987) denominadas extended case

method ou análises situacionais. Este tipo de abordagem tem como objetivo compreender,

através da análise de situações sociais, um contexto mais amplo das relações sociais.

Neste caso, através da análise do processo de aquisição de terras busquei tocar em valores

morais, formas de organização e partilha, herança, trabalho.

No campo da realidade, os efeitos e as causas não são apenas

interdependentes, como também cada evento causal, torna-se, por

sua vez, um efeito e cada evento é produzido por muitas causas e

produzem muitos efeitos. Por razões técnicas o antropólogo não

pode isolar os eventos para determinar suas relações necessárias e

os processos da causalidade (GLUCKMAN, 1987, p. 301)

A noção de situação também permitiu compreender os diferentes cenários vividos

pelos interlocutores, desde a vida antes da chegada do empreendimento até sua

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

20

implementação e operação e, também, as mudanças em torno da própria noção de

identidade, construída antes, durante e após esse processo.

A proposta da compreensão do contexto macro da mineração em Conceição do

Mato Dentro a partir de trajetórias individuais partiu da perspectiva teórica de Pierre

Bourdieu na qual as trajetórias aparecem como um dos elementos “do sistema explicativo

das práticas” (CATANI et al 2017, p.355). Segundo o autor, as diferentes variáveis na

trajetória dos indivíduos se constroem a partir de diferenças singulares, não apenas em

seu ponto de partida, mas também da influência do contexto social no qual esse indivíduo

está inserido, sendo, portanto, a singularidade dos indivíduos construída nas e pelas

relações sociais, simultaneamente. A trajetória se dá a partir da estrutura social na qual

habita esse indivíduo e também nos capitais por ele acumulados.

Assim, a partir do recorte espacial dado pelo universo das comunidades rurais

atingidas pelo empreendimento Minas-Rio em Conceição do Mato Dentro (MG) e,

considerando a complexidade do caso, estabeleci como unidade de análise dois “agentes-

chave” nesse processo, escolhidos a partir do conhecimento prévio do histórico de

resistência por eles apresentado. Os dois “agentes-chave” entrevistados foram um homem

e uma mulher, nascidos na zona rural do município e que, a partir de sua trajetória, podem

ser enquadrados na categoria que Brandão (2007, p.21) define como informantes

especialistas. Os informantes especialistas são aqueles que não só “produzem dados

populares com muita precisão como também são aqueles que entendem profundamente

da coisa”. Ambos passaram por processos de “aquisição” fundiária com a MMX/Anglo

American e estiveram engajados no movimento de resistência dos atingidos, possuindo,

assim, grande bagagem quanto ao modus operandi da empresa e os efeitos sobre os seus

modos de vida.

Dessa forma, a partir de entrevistas em profundidade, com uso de instrumentos

como o gravador, a ficha do informante e o caderno de campo, busquei fazer uma análise

dos aspectos concretos a nível do indivíduo que me permitissem captar os modos de vida

e reprodução no território antes da chegada da empresa, as mudanças a partir desse novo

ator, como e quais foram as estratégias de aquisição de terras pelo empreendedor e quais

seus desdobramentos nos modos de ser, fazer e viver dos interlocutores a fim de

compreender o contexto macro experenciado pelos demais atingidos.

Na transcrição dos relatos, optei pela correção de erros de português, tais como

concordância, regência e acentuação, para que se evite a desvalorização do discurso, mas,

ao mesmo tempo, mantive expressões próprias do entrevistado, com o cuidado de não se

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

21

perder os aspectos orais da narrativa e, em seguida, apresentei os textos aos interlocutores

para que fossem feitas as adequações necessárias. Acompanhando a prática da tradição

etnográfica de resguardar a privacidade do informante, foram utilizados, em todos os

casos, nomes fictícios (WEBER, 1996). É importante esclarecer, nesse momento que,

justamente a fim de resguardar a identidade dos informantes, já na versão final do

trabalho, optei por retirar grande parte dos relatos que substanciavam suas trajetórias.

Essa opção foi resultado de muita reflexão, já que busquei justamente compreender a

trajetória desses agentes, contudo, quanto mais informações e especificidades eu trazia

para o trabalho, mais eu tornava a identidade dos meus informantes acessíveis.

Considerando o contexto de violência e repressão intensificados não só em Conceição do

Mato Dentro, mas de uma forma geral em todo o Brasil, acredito que a confidencialidade

garantida aos meus interlocutores era fundamental, mesmo que comprometesse certa

parte da análise.

Ainda nesse sentido, os títulos dos capítulos, colocados no intuito de demonstrar

como as análises feitas por mim no decorrer do trabalho também são objeto de reflexão

dos meus entrevistados, foram retirados de momentos das entrevistas que foram poupados

da exposição, mas que eu senti a necessidade que, mesmo enxutos, aparecessem de

alguma forma em outros momentos, colocados, então, nos títulos dos quatro capítulos que

compõem a dissertação.

Por fim, mas não menos importante, com o objetivo de complementar os relatos

orais, fiz profundo levantamento e análise documental referentes ao processo de

aquisição de terras e licenciamento ambiental da MMX/Anglo American, tais como

diagnósticos técnicos, Estudos de Impacto Ambiental/Relatórios de Impacto Ambiental

(EIA/RIMA), Relatórios da empresa Diversus, e demais documentos produzidos pela

Superintendência Regional de Regularização Ambiental (SUPRAM Jequitinhonha);

Ministério Público (Estadual e Federal); Defensoria Pública, Anglo American e

documentos produzidos pelos próprios atingidos, além das atas das reuniões do processo

de licenciamento realizadas na Unidade Regional Colegiada (URC) Jequitinhonha.

Os capítulos

O trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro, através de autores como

Abreu (1997), Bourdieu (1989), Congost (2007), Martins (1986), Polanyi (2013), Santos

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

22

(1988), e Smith (1990), discuto a construção da ideia de propriedade privada e como o

conceito se constituiu e se tornou hegemônico no contexto brasileiro para, na sequência,

me pautando por autores como Diegues (2001), Almeida (2004), Cândido (1975),

Haesbaert (2004), Little (2002), Mendras (1978) e Soares (1981), discutir outras e

diferentes formas de apropriação do território, onde a terra expande o seu sentido e passa

a integrar elemento essencial da ordem moral na qual se constitui as bases camponesas,

transformando-se na condição da existência desses grupos e lugar concreto de sua

reprodução material, social e simbólica.

O segundo capítulo, resultado da articulação entre as teorias desenvolvidas por

autores como Acosta (2016), Bebbington (2011; 2015), Gudynas (2015;2016), Milanez

& Santos (2013), Svampa (2013) e Zhouri (2016), analiso o motor de um novo cenário

de expropriações e de embates entre diferentes formas de apropriação do território,

desenvolvidas no Capítulo 1, através de um processo macro e complexo de

reprimarização da economia fomentado pela adoção de um modelo de desenvolvimento

denominado neoextrativista e os seus efeitos multidimensionais, sobretudo, no Brasil.

O capítulo três é composto pela caracterização do empreendimento Minas-Rio e

pelo levantamento do licenciamento ambiental do complexo minerário, levando em

consideração o recorte fundiário metodologicamente estabelecido. Nesse sentido, busco

demonstrar qual foi o entendimento tanto da empresa quanto do Estado das categorias

atingido e território e as disputas sócio-políticas travadas com os atingidos por essas

definições.

Por fim, no capítulo quatro, através da análise das entrevistas com os dois

interlocutores, tive como objetivo trazer, com os relatos, como era a vida antes da chegada

da empresa, as relações familiares, o território, morada e trabalho e os efeitos do

empreendimento sobre essas dinâmicas conjugada à analise do campesinato brasileiro

realizada por autores como Woortmann (1990) e Woortmann, (1985). Através dos relatos

de expropriação almejei discutir as diversas violências praticadas contra os atingidos que

tiveram seu território em área de interesse da empresa e/ou que foram reconhecidos dentro

do processo de licenciamento, tentando demonstrar como, na prática, a noção de

propriedade privada, discutida no primeiro capítulo, se concretiza e se torna mais um

mecanismo de legitimação de violações.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

23

CAPÍTULO 1

“A terra é minha mãe, porque criou a minha tataravó, minha bisavó,

meus avós, meu pai, cria eu e vai criar o resto da família”

Disputas entre as noções de propriedade privada e de território

A questão da terra e seu tratamento, assim como a construção do Direito

enquanto um campo de estudo e/ou como um sistema de normas e condutas, são temáticas

amplamente discutidas na literatura especializada. Desta forma, nos limites deste

capítulo, certamente, a abordagem de ambos os temas em toda sua complexidade, correm

o risco de reducionismos e generalizações. Portanto, o objetivo é construir um caminho

que nos permita perceber que existem diferentes formas de apropriação do território e que

algumas formas, tratando aqui, especificamente, da propriedade privada, tendem a

prevalecer sobre as demais.

Ao contrário de promover uma discussão sobre a questão agrária em seus

múltiplos aspectos, ou apresentar um marco teórico que consiga dar conta de questões

históricas, sociais e seus desdobramentos contemporâneos, optei por trazer a discussão

para um recorte em que pese o paradigma da propriedade privada, sua construção

histórica e sua apropriação dentro de um contexto de expansão de atividades extrativas e

seu tratamento dentro dos processos de licenciamento ambiental em curso no Brasil2.

Para tanto, a primeira questão que se coloca é a localização da propriedade

privada, enquanto um conceito, dentro de um campo3 científico, a saber, o Direito. E,

dessa forma, compreender que, enquanto tal, sua definição e “operacionalização” é

resultado de diversos embates dentro desse “espaço”, expressando assim, uma visão, entre

diversas outras, que se configurou hegemônica no debate em relação à terra.4 Essa

abordagem busca romper com o ideal do direito enquanto uma ciência impessoal e neutra,

enquanto expressão única da realidade. Nesse sentido, Santos (1988) sinaliza para o fato

2 Esse desdobramento será tratado com maior propriedade nos capítulos 2 e 3 do presente trabalho 3Utilizaremos o conceito de campo proposto por Bourdieu (1989) no qual este seria um microcosmo, um

“espaço”, de lutas entre diferentes agentes, que ocupam diferentes lugares dentro desse sistema, objetivando

a apropriação de um capital legítimo dentro desse campo e/ou sua modificação.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

24

de que o direito burguês moderno é resultado, sobretudo, das relações econômicas

privadas constituídas no mercado.

Não se pretende, contudo, uma desqualificação do campo, pelo contrário, é sua

compreensão enquanto uma construção social e que, assim como as demais formas de

conhecimento, foi fabricada no seio de diversas relações de poder e, por isso, não está

isento de influências políticas, econômicas, sociais e da força representada pelos

diferentes agentes dentro da luta pela legitimação de suas próprias formas de

compreensão do mundo.

Bourdieu (1989) analisa o direito e a jurisprudência enquanto um reflexo,

justamente, dessas forças existentes que exprimem determinações econômicas e,

substancialmente, o interesse dos dominantes, sendo assim, um importante mecanismo de

dominação.

Com efeito, o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o

resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de

competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de

mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos

disponíveis, pela exploração das “regras possíveis”, e de os utilizar

eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem

triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua

significação real, determina-se na relação de força específica entre

os profissionais, podendo-se pensar que essa relação tende a

corresponder (tudo o mais sendo igual do ponto de vista do valor na

equidade pura das causas em questão) à relação de força entre os

que estão sujeitos à jurisdição respectiva. (Bourdieu, 1989, p. 224)

É importante notar a relevância do campo jurídico pelo seu potencial de produzir

efeitos, principalmente pela possibilidade de construção de referenciais de

“normalidade”, fazendo com que outras práticas, divergentes do padrão constatado pelas

leis e códigos formalmente institucionalizados, se enquadrem enquanto “desviantes,

anômicas e até mesmo anormais, patológicas”, tornando-se, consequentemente, um

importante mecanismo de dominação (BOURDIEU, 1989, p. 247).

Nesse contexto, a questão da terra assume lugar de destaque no fazer jurídico,

desde os princípios de sua normatização. A transição da Idade Média para a Idade

Moderna é marcada, sobretudo, pelas discussões quanto ao regime agrário, sendo a terra

uma das questões fundamentais para a construção das Repúblicas e fundamental para a

consolidação do modelo econômico capitalista. Entre os direitos fundamentais, institui-

se a propriedade privada.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

25

Essa, fortemente assegurada pelos regimes jurídicos dos Estados Modernos é,

hoje, o principal modelo de planejamento urbano e de gestão do território, apesar da

existência de diversas outras expressões de territorialidades ao redor do mundo. Essa

prevalência se dá, sobretudo, pela influência da doutrina econômica que lhe dá suporte e

pelas forças de mercado. Esse processo ofuscou e, por vezes, desconsiderou outras formas

historicamente estabelecidas de posse e de relacionamento com a terra. Como resultado

direto percebemos uma redução e/ou não existência de mecanismos de suporte para outras

formas de uso e apropriação do espaço, bem como inúmeras tentativas de imposição da

lógica da propriedade privada, aumentando consideravelmente o que Rolnik (2009)

define como a “insegurança da posse”.

Nesse sentido, considerando a diversidade das apropriações do espaço, das

formas de arranjo de diversas comunidades, considerar apenas uma lógica, como o

modelo ideal para o desenvolvimento econômico e social, é uma grande simplificação,

que reduz diversas territorialidades, ricos em especificidades e lógicas próprias a

documentos formais e registrados, aumentando a vulnerabilidade de agentes que

historicamente foram marginalizados pelas estruturas dominantes.

A hegemonia da propriedade individual escriturada e registrada em

cartório sobre todas as demais formas de relacionamento com o

território habitado constitui um dos mecanismos poderosos da

máquina de exclusão territorial e de despossessão em marcha no

contexto de grandes projetos, sejam eles de expansão de

infraestrutura e desenvolvimento urbano, sejam de reconstrução

pós-desastres. Na linguagem contratual das finanças, os vínculos

com o território são reduzidos à unidimensionalidade de seu valor

econômico e à perspectiva de rendimentos futuros, para os quais a

garantia da perpetuidade da propriedade individual é uma condição.

(ROLNIK, 2015, p. 13)

Dessa forma, a hegemonia da propriedade privada, “congelada nos nossos

códigos e sobretudo, sacralizada em nossas mentes” (CONGOST, 2007, p. 11) tem

condicionado nossa visão sobre o ideal de “desenvolvimento” e progresso desde os fins

da Idade Média, constituindo um importante mecanismo de violência física e simbólica

sobre diferentes formas de apropriação do território, principalmente pelo fato de ser

garantida pelo regime jurídico e não raro se combinando com o exercício da força física.

A multiplicação de desastres socioambientais, o avanço de inúmeros processos

de expropriação, violações de direitos humanos e expansão de fronteiras sobre áreas

historicamente habitadas por regimes próprios de apropriação do território revelam,

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

26

assim, a necessidade de se repensar o entendimento dessas categorias e avançar na

complexidade por trás das suas interpretações, uma vez que influem diretamente na

consolidação de direitos arduamente conquistados. Afinal, existem povos e comunidades

para quem a terra constitui questão vital. Para essas comunidades a terra é mais que um

espaço físico, é o lugar onde se vive, onde se planta, onde nasceram e cresceram seus

familiares. É lugar da partilha, da colheita, do sustento. É o espaço do lazer, do encontro

e da celebração. É muito mais que o lugar da posse ou da propriedade privada.

Esse movimento de problematização teórica torna-se ainda mais urgente quando

aprofundamos em realidades concretas cujas bases práticas das ações do Estado se

sustentam unicamente no regime da propriedade privada, que não só reduzem diversas

territorialidades à números, metragens e valores, como promovem a depreciação e, por

vezes, a desconsideração de vozes, desejos e projetos de vida e de mundo contraditórias

aos projetos de modernidade e desenvolvimento econômico intrínsecos às sociedades

capitalistas .

Assim, as sessões seguintes buscam, de forma breve, levantar historicamente a

construção e consolidação da propriedade privada, principalmente, no Brasil, buscando

responder algumas questões fundamentais: quais foram os interesses por trás da

assimilação do paradigma no país? Quem foram os beneficiados por esse regime de gestão

da terra? Quais os reflexos desse processo no atual contexto de conflitos ambientais no

país?

1.1 A CONSTRUÇÃO DA LÓGICA DA PROPRIEDADE PRIVADA

A compreensão da construção da lógica da propriedade privada no Brasil e seus

desdobramentos recentes exige que retornemos às bases da profunda modificação da

relação do homem com a terra. Torna-se necessário, portanto, um breve levantamento

sobre a transição do regime feudal para a Idade Moderna, uma vez que o feudalismo

representa uma das primeiras grandes formas de se apropriar e organizar o território. E,

na sequência, a Idade Moderna altera profundamente as condições de reprodução

medievais e inaugura o conceito da propriedade privada tal utilizado atualmente.

A propriedade, sobretudo, da terra, é uma questão que está intimamente

conectada com o desenvolvimento das sociedades, desde os primeiros movimentos de

mudança das civilizações nômades para as sedentárias. Contudo, diversas eram as formas

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

27

de organização sobre o território. Com a ascensão do Império Romano e a constituição

de regras jurídicas que operaram a administração de Roma, a propriedade tornou-se um

direito fundamental e intransponível, regulando, de certa forma, a questão da terra. A

decadência do regime deu origem a um modelo de organização social baseado em

relações servo-contratuais, o feudalismo.

No sistema feudal, a questão da terra tornou-se um fator de ordenação,

autoridade e de condução das relações de produção, uma vez que, para os servos

adquirirem os direitos de usufruto da terra, era necessária a dedicação de parte do seu

trabalho em benefício do senhor feudal. Dessa forma, a propriedade privada da terra,

assim como a sua regulamentação, operou enquanto fator-chave para a divisão de classes

sociais do período e determinante na manutenção do poder nas mãos de poucos, no caso,

os senhores feudais (ARAVENA, 2014).

Sob o feudalismo e o sistema de guildas, a terra e o trabalho

formavam parte da própria organização social (o dinheiro ainda não

se tinha desenvolvido no elemento principal da indústria). A terra,

o elemento crucial da ordem feudal, era a base do sistema militar,

jurídico, administrativo e político; seu status e função

eram determinados por regras legais e costumeiras. Se a sua posse

era transferível ou não e, em caso afirmativo, a quem e sob quais

restrições; em que implicavam os direitos de propriedade; de que

forma podiam ser utilizados alguns tipos de terra todas

essas questões ficavam à parte da organização de compra e venda,

e sujeitas a um conjunto inteiramente diferente de regulamentações

institucionais. (POLANYI, 2013, p. 91)

Nesse mesmo período, a ascensão de uma nova classe social (a burguesia), o

aumento da circulação de moedas, o crescimento de grandes centros urbanos e o

dinamismo comercial propiciado pelas Cruzadas enfraqueceram o regime feudal e

modificaram o modo de poder dele característico, encaminhando para centralização

política nas mãos de monarcas. A concentração da propriedade, assume, nesse momento,

mais um ponto de fortalecimento da gestão absolutista que se consolidava e que marcou

a passagem da Idade Média para a Idade Moderna, sendo a terra, e o controle sobre o

território, elementos fundamentais para o poder real. O início das grandes navegações e

o “descobrimento da América” representam momentos representativos da expansão do

poder das grandes monarquias, sobretudo, as portuguesas, espanholas, francesas e

inglesas, assim como da cristalização do mercantilismo como prática econômica

característica da Idade Moderna.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

28

O mercantilismo, por mais que tivesse insistido enfaticamente na

comercialização como política nacional, pensava a respeito dos

mercados de maneira exatamente contrária à economia de mercado,

o que fica bem demonstrado pela amplitude da intervenção estatal

na indústria. Neste ponto não havia diferença entre mercantilistas

e feudalistas, entre planejadores coroados e interesses investidos,

entre burocratas centralizadores e particularistas conservadores.

Eles discordavam apenas quanto aos métodos de regulamentação:

as guildas, as cidades e as províncias apelavam para a força dos

costumes e da tradição, enquanto a nova autoridade estatal favorecia

o estatuto e as leis. Todos eles, porém, eram igualmente avessos à

ideia da comercialização do trabalho e da terra - a precondição da

economia de mercado (POLANYI, 2013, p. 92)

O mercantilismo, dessa forma, não descontruía dois grandes pilares: o trabalho

e a terra, impedindo que estes se tornassem objetos de comercialização. Contudo, as

transformações políticas, econômicas e sociais da Idade Moderna tornaram o espaço

propicio para o florescimento de um movimento cultural, intelectual e filosófico que,

dentre diversos questionamentos, trouxe consigo a pauta dos direitos e liberdades

individuais, contribuindo enormemente para a positivação do direito de propriedade: o

iluminismo.

De acordo com Leopoldi (2002), esse momento histórico marca, também a

transição entre um “estado de natureza”, considerado por iluministas como Rousseau,

Locke e Hobbes, como um estado “ultrapassado”, para um momento de novas formas de

convivência, assegurados por contrato, que garantissem a preservação da vida, da

liberdade, da igualdade e da propriedade, que trariam enormes ganhos para o novo modelo

de sociedade que estava se constituindo nesse momento. Essa transição é marcada pela

separação da terra e do trabalho e pela consolidação da propriedade privada, através

disponibilização das terras para venda no mercado.

Até então, terra e trabalho eram inseparáveis, formando um todo articulado e

aliado às organizações não-contratuais, tais como as de parentesco, vizinhança, profissão

e religião, dando início à economia de mercado e enfraquecendo o uso tradicional da terra

(POLANYI, 2013). Esse novo tipo de organização sacralizou o fim das relações com a

terra constituídas no regime feudal e foi substituída por um modelo caracterizado pelos

direitos individuais, sendo a liberdade no tratamento da propriedade, principalmente, da

terra, fundamental para a fortificação das liberdades individuais.

Porém, as ideias iluministas também trouxeram diversas críticas ao regime

absolutista e quanto aos dogmas da Igreja Católica, colocando ambos enquanto

cerceadores das liberdades individuais e, associado à insatisfação com a crise fiscal

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

29

presente no continente Europeu, sobretudo na França, deram início a Revolução que

marca o fim da Idade Moderna: a Revolução Francesa. Um dos resultados das

insurgências políticas e sociais, que colocaram fim aos antigos privilégios feudais, ao

poder dos monarcas e da Igreja frente aos ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”,

foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A partir da construção

desse paradigma, refletido da Declaração de 1789, o direito à propriedade passa a ser

absoluto, imprescritível e inalienável. No caso da terra, o acesso passa a ser, unicamente,

através de contratos de compra e venda. Ao mesmo tempo, na Inglaterra, observava-se a

intensificação do fenômeno dos cercamentos que, por sua vez, também alteravam

profundamente a relação com o território, que, de bem comum no feudalismo passou a

ser um bem de produção.

Los discursos sobre la propiedad em Francia y en Inglaterra, a pesar

de inspirarse en sistemas jurídicos distintos – processo de

codificación en Francia; jurisprudência, a partir de la aplicación de

la common law, em Inglaterra – consideran que el tipo de propiedad

triunfante em sus respectivo países – la propiedad absoluta pero com

“servidumbres comunitarias” en Francia, la propiedad individual y

cerrada pero com pervivencia del copyhold en Inglaterra – es

notablemente superior – léase, economicamente más eficaz – al tipo

de propiedad antecedente. Por eso calificamos estos discursos como

lineales (CONGOST, 2007, p. 22)

A mudança da Idade Moderna para a Idade Contemporânea é, igualmente,

resultado das mudanças promovidas pela Revolução Industrial na Inglaterra e

solidificação dos ideais liberais. A propriedade privada ocupando lugar de destaque nesse

processo. De acordo com Polanyi (2013) a confiança fundamental da economia liberal é

dada pelos direitos de propriedade e que a segurança do sistema de mercado é

fundamental para a sua vivência plena, sendo a empresa livre e a propriedade privada os

elementos essenciais da liberdade dos indivíduos. A constituição do Estado Liberal nasce,

assim, com a função de assegurar, garantir e proteger os direitos da propriedade

(CONGOST, 2007)

Para llevar a cabo la revolución burguesa era necessária uma nueva

propiedad agraria. Más adelante definía la nueva propiedad liberal:

la propiedad liberal obedece a las características de plena, livre e

individual; y este régimen jurídico, antitético del hasta entonces

dominante, implico uma auténtica revolución, com incidencia

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

30

decisiva em el mercado de la tierra y em el tipo de renta de os

propietarios (Congost, 2007, p. 131)

A autora ressalta, além disso, o fato de que os governos liberais, em distintos

países, apesar da tentativa de se mostrarem neutros, serviam – e ainda servem - a

interesses particulares de grupos sociais determinados. Harvey (2004) corrobora a

afirmação quando ressalta que a acumulação de capital é fomentada por certas estruturas

da lei, da propriedade privada, do contrato e da segurança da forma-dinheiro.

Dois séculos depois a propriedade privada, como já ressaltado, permanece como

sendo o principal paradigma a ser considerado na gestão do território assumindo formas

particulares no contexto brasileiro.

1.2 A CONSTRUÇÃO JURÍDICO-FORMAL DAS LEIS DE TERRA

NO BRASIL

As formas jurídicas que, atualmente, são as bases de políticas públicas de

planejamento territorial e sobre as quais se assentam os Estudos de Impacto Ambiental,

bem como as “negociações fundiárias”, 5são resultados de processos que vem desde a

colonização e fazem sentir seus efeitos até os dias recentes. Não será possível, mais uma

vez, compreender essas questões em suas múltiplas dimensões, sem, contudo, deixar de

mencionar a estreita relação entre a estrutura agrária brasileira as desigualdades presentes

no país e os conflitos fundiários que fizeram com que o Brasil, em 2017, segundo o

relatório da ONG Global Witness, liderasse, pelo segundo ano consecutivo, o ranking

mundial de assassinatos de defensores da terra e do meio ambiente. 6Contudo,

limitaremos, nesse momento, a análise sobre as formas de apropriação e regulamentação

da propriedade privada da terra no país para compreendermos os caminhos que fizeram

com que hoje essa fosse a forma hegemônica de gestão do território, começando com as

formas de apropriação e regulação da propriedade desde a chegada dos portugueses em

território nacional.

Como colocado no tópico anterior, a ascensão do mercantilismo fez com que as

monarquias europeias buscassem o aumento de seu controle sobre outros territórios a fim

de aumentar seu poder e possibilitar trocas comerciais que resultariam, por sua vez, em

5 Aprofundaremos nessa correlação nos próximos capítulos 6 https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/a-que-pre%C3%A7o/

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

31

maior acumulação de moedas. Com as grandes navegações e a chegada nas Américas esse

horizonte se abriu de maneira exponencial. A posse do território brasileiro se deu, nesse

momento, através de uma aquisição originária, ou seja, por um direito de conquista. Dessa

forma, todas as terras “encontradas” pelos portugueses que aqui chegaram foram

consideradas pertencentes à coroa, o que permitiu seu repasse para terceiros para a

garantia do domínio luso sobre o território.

O regime sesmarial, caracterizado pela concessão de grandes glebas à

particulares com o objetivo de ocupação da nova colônia por parte da coroa portuguesa,

teve origem no modelo de concessão de terras característico do processo de reconquista

cristã dos territórios durante a Idade Média, no qual, após as vitórias, era preciso

aproveitar economicamente as novas terras e assegurar a sua defesa militar.

O modelo foi aproveitado para a divisão de terras entre conselhos, em Portugal,

no século XIII e se transformou em uma verdadeira política do povoamento (ABREU,

1997). As sesmarias, concedidas em caráter perpétuo pela coroa portuguesa, cediam parte

do território a um particular assegurado o compromisso de que o solo fosse cultivado

durante determinado prazo, sob pena de cancelamento da concessão e, ao mesmo tempo,

garantindo o uso produtivo da terra e a proteção do território. Foi a partir deste modelo

que foi dado o acesso legal à terra no Brasil Colônia.

Segundo Abreu (1997), as sesmarias eram, na verdade, mais uma forma de

apropriação de que, de fato, de propriedade e, considerando a grandeza das glebas

concedidas e a imprecisão dos seus limites, esse regime eclodiu, com o tempo, em

diversos conflitos.

No final do século XVII, a Coroa reconheceu os traços singulares

de sua principal colônia, incomparavelmente mais extensa que a

metrópole, fracamente povoada, sujeita a um processo de

exploração de terras grandemente predatório, difícil de ser

fiscalizada e, portanto, pouco enquadrável aos controles

administrativos que vigoravam no Reino. Tentando retomar as

rédeas do processo de colonização, que lhe fugia das mãos, o

governo português passou então a intervir cada vez mais nos

assuntos territoriais brasileiros. Sucederam-se então as cartas régias,

as disposições, as provisões, os alvarás, os avisos e os decretos, que

tentaram disciplinar, às vezes de forma contraditória, a concessão

de sesmarias no Brasil (ABREU, 1997, p.225)

A legislação colonial teve seu início em 1695 com a Carta Régia de 27 de

dezembro, que exigia o pagamento de um foro pela extensão das terras e fixou os limites

das sesmarias. O foro, por sua vez, foi objeto de modificação nas Cartas Régias de 1967,

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

32

1699, 1701 e 1729. A inconstância da legislação e a dificuldade de fiscalização fizeram

com que muitas das determinações nunca fossem cumpridas. As sesmarias perduraram,

enquanto forma de apropriação do território até julho de 1822, às vésperas da

independência, quando José Bonifácio de Andrada e Silva redigiu uma resolução que

finalizou com esse modelo de concessão de terras, buscando uma ordenação espacial e a

mudança da outorga gratuita da terra em venda efetiva de áreas demarcadas com preço

delimitado. Esse pode ser considerado o primeiro capítulo de uma série de dispositivos

que visavam regulamentar a questão da propriedade da terra e das relações de trabalho,

visando o desenvolvimento da agricultura no Brasil (SMITH, 1990). Após a Proclamação

da Independência em relação à metrópole portuguesa, a primeira Constituição Brasileira,

de 1824, influenciada pelas ideias liberais que se desenvolviam na França e Inglaterra, já

tratava da propriedade privada; contudo, não tratava diretamente da propriedade privada

da terra, questão normalizada apenas trinta e dois anos depois.

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos

Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança

individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do

Imperio, pela maneira seguinte.

XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude.

Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da

Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do

valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica

excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.

(Constituição 1824)

O período Imperial experimentou uma efervescência quanto ao debate das

questões da propriedade da terra, do seu uso produtivo e do trabalho, três aspectos que se

complementavam e constituíam o centro da estruturação social e normativa da nação

emergente. Por um lado, era latente a necessidade de novas terras para a expansão da

produção de cana, algodão e café para a exportação, ao mesmo tempo, o intervencionismo

inglês pressionava quanto ao fim do tráfico de escravos e a necessidade de mercado no

Brasil. A mudança nesses pilares e a solidificação de um projeto burguês para a nação,

era defendida por algumas elites proprietárias e resistente por parte dos grandes

proprietários de terras e escravos (SMITH, 1990)

Após a cessação da concessão de sesmarias – e o vazio legado nesse

sentido pela Constituição outorgada em 1824 -, a resolução da

questão fundiária, que impunha a iniciativa do Estado na tarefa de

legitimar a propriedade privada e a discriminação das terras pública

ou estatais, permanece na mesma situação que a questão do tráfico.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

33

Era algo a ser resolvido, mas continuamente postergado, por tratar-

se de áreas que poderiam desestabilizar o poder estatal, uma vez que

intervinham em interesses centrais da recente vida econômica e

política do país.” (SMITH, 1990, p.304)

Desde a resolução de José Bonifácio de Andrada e Silva, até 1850, o

apossamento de terras foi intenso no território. Até então as Câmaras eram responsáveis

pelas terras de uso comum, tais como pastagens e florestas, contudo, a partir do fim do

regime sesmarial e das discussões quanto a Lei de Terras, a posse tornou-se a forma de

se adquirir a propriedade, provocando um movimento intenso de invasão por grandes

proprietários de terras livres que, não raro, eram habitadas por indígenas, posseiros e até

propriedades parcelares habitadas por sitiantes, moldando o regime de grandes latifúndios

que até hoje são responsáveis pela concentração de terras no país, assim como

inaugurando práticas violadoras que são comuns no território até os dias atuais (MOURA,

1988). Nesse período tramitava na Câmara dos Deputados o Projeto nº 94, denominado

Divisão de Terras e Colonização, que, após diversas modificações foi aprovado e

reconhecido como a Lei de Terras, de 1850.

1.3 A LEI DE TERRAS

A Lei de Terras é um marco histórico no sentido de instituição legal da

propriedade privada no Brasil e, também, no processo de transição para o capitalismo no

país, uma vez que é através deste novo marco legal que a terra, até então acessada via

concessão ou posse, entra na lógica do capital, como renda territorial capitalizada. Sua

regulamentação, resultado de trinta e dois anos de embates na Câmara de Deputados, era

de interesse das grandes elites políticas dentro do Conselho de Estado e um aditamento

frente às intensas pressões inglesas que, dentre outros fatores, culminariam na abolição

da escravatura nas décadas seguintes.

Parte do setor conservador esse projeto de nação, visava abrir caminhos para a

consolidação do capitalismo no país, desta forma, era fundamental o fim do capital

traficante, a solidificação da legislação comercial e a regularização da propriedade

fundiária a fim de que houvesse uma submissão do trabalho aos imigrantes livres que

chegavam ao país após os processos de fim do tráfico negreiro e esgotamento da

escravidão. A terra passa a ser, então, o cerne da desigualdade entre os grandes

proprietários e os colonos. (SMITH, 1990).

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

34

Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por

outro titulo que não seja o de compra.

Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do

Governo Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com

principios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou

concessionario, ou do quem os represente, embora não tenha sido

cumprida qualquer das outras condições, com que foram

concedidas.

Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas

por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se

acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual

do respectivo posseiro, ou de quem o represente (Lei nº 601, de 18

de setembro de 1850)

Dessa forma, a Lei de Terras trazia em sua redação o reconhecimento das áreas

concedidas via regime sesmarial, garantindo a satisfação da elite agrária; ratificou o

regime de posses, fundamental para a expansão do poderio sobre as terras para a elite

econômica e política nacional; e determinou que a compra fosse a única forma de

obtenção de terras no Brasil, legalizando e universalizando o regime da propriedade

privada da terra e garantindo sua concentração nas mãos das elites supramencionadas.

Segundo Martins (1986, p.3), “O país inventou a fórmula simples da coerção laboral do

homem livre: se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser escravo; se o trabalho fosse

livre, a terra tinha que ser escrava. O cativeiro da terra é a matriz estrutural e histórica da

sociedade que somos hoje”.

De acordo com Smith (1990) a lei era resultado dos interesses do capital

comercial que estruturava a produção conforme os seus moldes, assim como aconteceu,

mais tarde, com o fim da escravidão. Já Martins (1986), em seu livro “O cativeiro da

terra”, aponta que, diferente das mudanças que ocorriam na Europa, as quais foram

presididas pelo capital, aqui, o ponto chave era, na verdade, a economia de exportação e

a manutenção do latifúndio no qual essa economia se baseava. Nos outros países, após o

fim do mercantilismo, o capital se virou contra as grandes propriedades de terra, seguindo

a lógica que se desenvolveu no último regime europeu; contudo, no Brasil, a propriedade

da terra se consolida através da propriedade territorial capitalista, associando ambos e

contribuindo para a concentração da repartição da mais-valia e para o aumento do volume

da reprodução ampliada do capital. Segundo o autor, a Lei de Terras garantiu a

mobilização das instituições jurídicas e policiais da propriedade privada e, ao mesmo

tempo, do caráter compulsório do trabalho.

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

35

Em vez de a propriedade se tornar condição para colocar o trabalho

à disposição do fazendeiro, o trabalho do colono é que se tornou

condição para o acesso à propriedade. Em vez de a terra se tornar

livre, tornou-se renda capitalizada nas mãos do fazendeiro

e capitalista. Em vez de separar-se do capital, como condição da

exploração do trabalho alheio, do trabalhador, no processo de

reprodução do capital, a terra se tornou condição da exploração que

se realizava na acumulação de capital. (MARTINS, 1986, p. 174-

175)

Portanto, a iniciativa de organização da propriedade privada no Brasil, traduzida

na Lei 601/1850, convergia no interesse da elite econômica que aqui habitavam já que,

por um lado, reconhecia as grandes extensões territoriais que foram historicamente

concedidas pela coroa, regularizada a posse de terras griladas e, ao mesmo tempo, com o

fim da escravidão e da exploração compulsória do trabalho, via nos novos moldes de

regulação da terra a maneira de perpetuar as relações de poder (tanto entre os antigos

escravos e os imigrantes) e garantia da manutenção do sistema.

Se as apropriações historicamente mais antigas que a expansão de

um modo de produzir e pensar capitalista, são incorporadas e

aplicadas sem conflito flagrante ao presente contexto, é porque

estão nesse arsenal de práticas políticas e jurídicas as melhores

armas de que o sistema dispõe para a convivência e o entrechoque

das relações sociais (MOURA, 1988, p.19)

Outro importante ponto é que, a partir desse momento, outras formas de

aquisição da terra tornaram-se ilegais e sujeitas a embates judiciais, formando um cenário

de intensos conflitos fundiários que até hoje se perpetuam no país, assim como a geração

de um campesinato expropriado que, subjugado aos grandes fazendeiros, não restava

outra forma de manutenção senão a oferta do seu trabalho. (MARTINS, 1986).

1.4 A QUESTÃO DA PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES DA

REPÚBLICA BRASILEIRA

As Constituições brasileiras, subsequentes à primeira Constituição de 1824, se

moldaram a partir da Lei de Terras e todas trataram da questão da propriedade,

especificamente, da propriedade privada da terra. A Constituição de 1891, promulgada

dois anos após a proclamação da República, garantia o direito à propriedade em toda sua

plenitude, assegurando a perpetuação do grande latifúndio, fortemente ligado às

oligarquias fundiárias que à época controlavam o país. Um adendo importante era a

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

36

garantia de que as minas encontradas permaneceram sob o domínio dos proprietários do

solo.

Art. 72. A Constituição assegura a brazileiros e a estrangeiros

residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á

liberdade, á segurança individual e á propriedade nos termos

seguintes

§ 17. O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude,

salva a desapropriação por necessidade, ou utilidade publica,

mediante indemnização prévia.

As minas pertencem aos proprietarios do solo, salvas as limitações

que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de

indústria. (Constituição da República, 1891)

A Constituição de 1934, redigida durante a Era Vargas, apresentava algumas

importantes mudanças em relação à redigida na República Velha. Dessa forma, traz em

seu texto, pela primeira vez, a condição da propriedade em função do seu interesse social

ou coletivo. A partir deste documento, a propriedade das minas e demais riquezas

encontradas no subsolo passaram a se submeter aos interesses do Estado, sendo definida

como distinta da propriedade do solo para efeito de exploração.

Art 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros

residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á

liberdade, á subsistencia, á segurança individual e á propriedade,

nos termos seguintes:

17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser

exercido contra o interesse social ou collectivo, na fórma que a lei

determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade publica

far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indemnização.

Em caso de perigo imminente, como guerra ou commoção intestina,

poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular

até onde o bem publico o exija, ressalvado o direito á indemnização

ulterior.

Art 118. As minas e demais riquezas do sub-sólo, bem como as

quedas dagua, constituem propriedade distincta da do sólo para o

effeito de exploração ou aproveitamento industrial.

A Constituição de 1938, promulgada no chamado Estado Novo, não traz nova

redação aos artigos supramencionados, contudo, foi nesse momento que foi instituída a

Lei da Desapropriação, que regulava condições de desapropriação para fins de utilidade

pública. Após o primeiro período de “governo” de GetúlioVargas e o processo de

redemocratização passado pelo país, uma nova constituição foi elaborada, em 1946,

conhecida como Constituição Social. A inovação, em relação à propriedade privada da

terra, relacionava-se à sua função social e à garantia de bem-estar social, além da

possibilidade de desapropriação por interesse social.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

37

Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar

social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16,

promover a justa distribuição da propriedade, com igual

oportunidade para todos.

A Constituição de 1967, elaborada entre os governos de Castelo Branco e Costa

e Silva, durante o período da Ditadura Militar no Brasil, sofreu fortes reformulações nos

anos seguintes, graças ao autoritarismo promovido pela Ditadura, acrescentando atos

como o Ato Institucional Nº 5 (AI-5) de 1968. Contudo, permanece a ideia da função

social da terra. Em contrapartida, no mesmo período, foi escrito o Estatuto da Terra que

restringia o direito da propriedade em função do interesse público e do

“desenvolvimento” do país.

Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social,

com base nos seguintes princípios: (...)

III - função social da propriedade;

Após a reabertura política dada pelo contexto de redemocratização pós-ditadura,

o Congresso Nacional redigiu a Constituição de 1988, a atual constituição brasileira,

também conhecida como Constituição Cidadã. Em seu texto, consta:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho

humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados

os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

(...)

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento

diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços

e de seus processos de elaboração e prestação;

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a

exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será

permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional

ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

Portanto, a ordem econômica, além de ser pautada pela questão da propriedade

privada da terra, deveria, em tese, se pautar pelo respeito ao meio ambiente, pela função

social da propriedade e visando a redução das desigualdades regionais e sociais.

Como demonstrei, a propriedade, substancialmente, a propriedade privada da

terra foi tratada de diversas formas ao longo do processo histórico de construção do país,

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

38

desde a colonização até a última constituição, de 1988. Mas, mais importante que esse

resgate histórico, também colocado nos primeiros tópicos nos quais trato da constituição

do direito de propriedade na Europa, foi demonstrar como o conceito e sua regulação,

serviram, historicamente para legitimação de direitos e interesses de classes que estavam

no poder, seja para sua ascensão ou manutenção. Portanto, perceber o território apenas a

partir desse viés é desconsiderar diversas outras formas de entendimento e apropriação

do espaço que, não raro são subjugadas e/ou sobre as quais são impostas essa lógica

hegemônica.

1.5 DA TERRA AO TERRITÓRIO E À TERRITORIALIDADE

A questão fundiária no Brasil é mais que o debate sobre a distribuição de terras, é

necessário um aprofundamento nas diversas formas de ocupação que aqui se

desenvolveram e no seu reconhecimento através do marco legal do Estado. O recorte

histórico, narrado até aqui, nesse sentido, demonstra não apenas o processo de

consolidação do Estado-nação brasileiro como, também, a hegemonia de duas formas de

apropriação do território por ele reconhecida: a propriedade privada, única forma jurídica

de propriedade legítima, e as terras livres que a ele pertencem. Contudo, é fundamental

evidenciar que esse processo se deu através da invisibilização de outras formas e visões

de mundo que revelam outras relações com o espaço e que historicamente vem sofrendo

com a expansão e imposição das duas lógicas supracitadas. Não é exagero dizer que, nesse

sentido, a história agrária brasileira também é uma história conflituosa entre, de um lado,

a forma mercantil evidenciada pela propriedade privada e, do outro, a territorialidade de

diversos grupos sociais que aqui vivem, em uma pluralidade de formas, expressões e

sistemas de posse, no caso dos indígenas, até mesmo antes da época colonial.

Considerando esse antagonismo, dois conceitos aparecem como fundamentais

para a compreensão desse conflito, o território e a territorialidade. Ambos os conceitos,

caros para a Geografia, estão também no cerne de discussões em outras áreas do

conhecimento, como nas Ciências Sociais, na Antropologia, na Sociologia, na Economia

e mesmo na Psicologia, sendo a sua conceituação múltipla. Castro (1998, p.5) define o

território como “o espaço sobre o qual certo grupo garante aos seus membros direitos

estáveis de acesso, de uso e de controle sobre os recursos e sua disponibilidade no tempo”.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

39

Haesbaert (2004), em “O mito da desterritorialização” sumariza três das mais

debatidas definições encontradas na Geografia, a primeira, uma leitura política, na qual o

território é tido a partir de relações de espaço-poder que não, necessariamente, são

exercidas pelo Estado; a segunda, parte de uma leitura cultural e simbólica, consoante

com a praticada pela antropologia, na qual o território é resultado de uma apropriação

simbólica de um espaço e, por fim; a terceira, econômica, na qual o território é visto a

partir de sua visão mercantilizada, ou seja, enquanto um recurso. Raffestin (1993) faz a

distinção entre espaço e território, estabelecendo que, segundo a sua análise, o primeiro

antecede o segundo. Segundo o autor, o território se constrói através do espaço. Uma vez

que atores se apropriam concreta ou abstratamente de um espaço, esse se “territorializa”.

Ou seja, o território seria a cristalização de diversos fatores, sejam eles humanos,

econômicos, políticos, sociais e/ou culturais delimitados material ou simbolicamente.

Para Hasbaert (2005) o conceito de território já nasce como uma dupla conotação,

material e simbólica, já que deixa de ser espaço a partir do momento em que gera uma

identificação e sua efetiva “apropriação”. Esse processo, segundo o autor, é caracterizado,

por um lado pela sua conotação simbólica, através das “marcas do vivido” e do seu valor

de uso e, por outro, materialmente, pelo seu valor funcional, ligado ao seu valor de troca.

O território é, assim, obrigatoriamente, funcional e simbólico, uma vez que dominamos

o espaço tanto para realização de funções quanto para a produção de significados. Aqui,

percebemos o grande gargalo da compreensão do espaço unicamente a partir da

propriedade privada, já que considerar o valor simbólico do espaço é reconhecer sua

multiplicidade em contraposição a sua “unifuncionalidade” colocada pela lógica

capitalista hegemônica (HAESBAERT, 2005).

Paul Little interpreta a territorialidade de forma próxima do discurso geográfico e

seu entendimento é o que norteia o presente trabalho. Para o antropólogo, a

territorialidade é “um esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e

se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim

em seu ‘território’ ou homeland” (LITTLE, 2002, p.253). Ou seja, a territorialidade está

ligada ao modo como os agentes se apropriam do espaço, como elas se organizam e como

elas carregam esse espaço com as “marcas do vivido”, tal como proposto por Hasbaert.

O território é, portanto, um produto histórico de processos sociais e políticos (LITTLE,

2002).

Little (2002), assim como Hasbaert (2004) e Raffestin (1993), destaca a

multiplicidade de expressões da territorialidade e, portanto, diversos tipos de territórios,

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

40

cada qual marcado por especificidades socioculturais7 e, também, por relações de poder.

Compreender o território a partir de suas multiplicidades e das relações de poder

intrínsecas a essas dinâmicas é percebê-lo através da lente dos conflitos, dados pelas

identidades produzidas pelas diferentes relações estabelecidas com o espaço e, também,

por relações entre dominantes e dominados. De um lado temos povos e comunidades que

vêem no território a condição da garantia de sua sobrevivência cotidiana, empregando

lógicas econômicas diferentes do sistema hegemônico e, de outro, os dominantes, que

privilegiam seu caráter funcional e mercantil (HASBAERT, 2005)

Nesse contexto de disputas, tal como retratado no início deste capítulo, a

hegemonia do Estado-nação e suas formas de territorialidade se impuseram sobre as

demais, sendo essas, obrigadas a se (re)organizar e a confrontá-las. Essas diferentes

territorialidades, por sua vez, estão intimamente ligadas à noção de terras

tradicionalmente ocupadas. Portanto, para a compreensão dos desdobramentos do

imperativo da propriedade privada sobre os territórios, é preciso um aprofundamento em

algumas das diferentes formas de apropriação do espaço.

1.6 TERRITORIALIDADES: FORMAS COLETIVAS DE

APROPRIAÇÃO E USO DA TERRA

Como discutido no tópico anterior, a grande extensão territorial do Brasil e suas

particularidades históricas são responsáveis por uma diversidade de territorialidades

distribuídas em todo o território nacional. Diferentemente do que os debates até os anos

1960 demonstraram, as formas tradicionais de apropriação dos espaços não são formas

presentes no passado, congeladas no tempo e/ou sem reação frente aos avanços da

propriedade privada. Pelo contrário, é possível encontrar no Brasil uma pluralidade de

formas tradicionais expressas em diferentes territorialidades que historicamente foram

desconsideradas e mesmo ignoradas pelas formas de apropriação dominantes,

substancialmente pelas duas formas juridicamente reconhecidas pelo Estado, a

7Little (2002) se utiliza do conceito de cosmografia para a compreensão das especificidades da relação de

cada grupo social com seu território. Segundo o autor a cosmografia é definida como “os saberes

ambientais, ideologias e identidades - coletivamente criados e historicamente situados - que um grupo

social utiliza para estabelecer e manter seu território. A cosmografia de um grupo inclui seu regime de

propriedade, os vinculos afetivos que mantêm com seu território específico, a história da sua ocupação

guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele. (LITTLE, 2002,

p. 254)”

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

41

propriedade privada e a pública. Esses sistemas (re)existem sob uma extensa rede de

relações de parentesco, compadrio, ajuda mútua e normas e valores sociais que tem como

base a solidariedade dos grupos (DIEGUES, 2001).

Essa diversidade fundiária é expressa pelas comunidades indígenas, quilombolas,

pelas “terras de preto”, “terras de santo”, “terras de índio”, pelos

seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, caboclos, comunidades de

fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, caiçaras, marisqueiras, ribeirinhos,

varjeiros, caiçaras, praieiros, sertanejos, jangadeiros, ciganos, caipiras, pescadores

artesanais, e uma diversidade de outros grupos que aqui não caberiam ser citadas

individualmente (LITTLE, 2002).

Esses diversos grupos sociais costumam ser agrupados de diversas formas, sejam

sob categorias como “comunidades”, “povos”, acrescidos de adjetivos como

“tradicionais”, “rurais”, sejam como “autóctones” ou “rurais” (LITTLE, 2002). Não

pretendemos aqui abranger a diversidade desses grupos e tão pouco um aprofundamento

das especificidades de cada grupo. Compreendemos as complicações da simplificação da

diversidade de cada grupo a uma única categoria de aglutinação, reconhecendo o sentido

generalista por elas imposto e as limitações de seu uso. Contudo, reconhecemos também

a importância da construção da categoria de “Povos e Comunidades Tradicionais” no seu

sentido político de reconhecimento e de reafirmação de direitos e, portanto, faremos uso

dela a fim de aprofundamento da argumentação que aqui pretendemos, enfatizando que

não existe “um povo e/ou uma comunidade tradicional”, mas uma pluralidade de formas

e expressões próprias. Dessa forma, “Povos e comunidades tradicionais” é aqui utilizada

para conceituar grupos sociais que “reproduzem historicamente seu modo de vida, de

forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a

natureza”. Brandão elenca ainda, enquanto características comuns das comunidades

tradicionais:

a) dinâmicas temporais de vinculação a um espaço físico que se

toma território coletivo pela transformação da natureza por meio do

trabalho de seus fundadores que nele se instalaram; b) um saber

peculiar, resultante das múltiplas formas de relações integradas

à natureza, constituído por conhecimentos, inovações e práticas

gerados e transmitidos pela tradição ou pela interface com as

dinâmicas da sociedade envolvente; c) uma relativa autonomia para

a reprodução de seus membros e da coletividade como uma

totalidade social articulada com o "mundo de fora", ainda que

quase invisíveis; d) o reconhecimento de sí como uma comunidade

presente herdeira de nomes, tradições, lugares socializados, direitos

de posse e proveito de um território ancestral; e) a atualização pela

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

42

memória da historicidade de lutas e de resistências no passado e no

presente para permanecerem no território ancestral; f) a experiência

da vida em um território cercado e/ou ameaçado; g) estratégias

atuais de acesso a direitos, a mercados de bens menos periféricos

e à conservação ambiental. (BRANDÃO, 2010, p.360-361).

As “terras tradicionalmente ocupadas” revelam lugares concretos e/ou simbólicos

de existência, fundamentais para a reprodução material, social e simbólica desses grupos.

Os Povos e Comunidades Tradicionais possuem conhecimento vasto sobre o território no

qual estão localizados, produzindo formas próprias de manejo dos ciclos e dos recursos

naturais. Suas atividades econômicas são caracterizadas por possuir ritmos e lógicas

próprios, muitas vezes associando o calendário religioso ao agrícola. Quanto à tecnologia

empregada, “simples”, é caracterizada pelo seu baixo impacto ambiental. A produção é

tida como um meio para a coesão social e, por isso, as atividades são alicerçadas na

unidade familiar doméstica e nas relações de parentesco e compadrio, sendo a ligação

com o mercado mais ou menos forte, dependendo da organização desses grupos.

Especificamente em relação ao território, os Povos e Comunidades Tradicionais

o veem o território como o local que permite a sua reprodução social em moldes

tradicionais. As dimensões territoriais são simbólicas, não físicas. Existe um sentimento

de pertencimento embutido na noção de território, pois foi ali que viveram e foram

enterrados seus ancestrais, é o espaço onde ocorrem os rituais, onde se planta e se colhe.

O território está intimamente ligado ao sentimento de pertencimento, é o que garante o

modo de vida tradicional e, consequentemente, molda a vida desses povos. (COSTA

FILHO, 2011).

O espaço, para essas comunidades, vira lugar, e esse é, por sua vez, o locus da

vivência e da história, é o concreto, o habitado, o vivido (ZHOURI & OLIVEIRA, 2010).

A memória e o lugar são, portanto, aspectos centrais na compreensão dos modos de vida

e reprodução dos Povos e Comunidades Tradicionais. Sua máxima expressão pode ser

considerada na identificação de lugares sagrados, nos quais o espaço se converte em

lugares dotados de sentimento e significado (LITTLE, 2002). Revela-se, ainda, nas

diferentes noções colocadas sobre aspectos do ambiente, considerando suas tecnologias

e o conhecimento tradicional do lugar em que habitam, dando não apenas significado,

mas uso.

Um recurso é o produto de uma relação. A partir daí, não há recursos

naturais, só matérias naturais. Estaríamos enganados em pensar que

se trata de um problema qualquer de semântica. Trata-se de algo

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

43

bem diferente e, sobretudo, bem mais do que isso: é uma concepção

histórica da relação com a matéria que cria a natureza sócio-política

e socioeconômica dos recursos. (RAFFESTIN, 1993, p. 225)

Como ressaltado por Raffestin (1993), tanto os recursos naturais, quanto o espaço,

são construídos a partir da relação com esses povos e comunidades, através de influências

mútuas. Little (1993) destaca que essa correlação também fundamenta a noção de

identidade, na qual pertencer a um lugar não é, necessariamente, uma questão étnica ou

racial, mas uma relação com um espaço físico determinado, atuando, também, enquanto

fator de defesa e força frente às investidas de outros modelos de apropriação. A identidade

é aqui compreendida como a fonte de significados e de experiência de um povo. É “o

processo de construção de significados com base em um atributo cultural, ou ainda um

conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual (ais) prevalece(m) sobre

outras fontes de significado” (CASTELLS, 1999). As relações solidárias entre esses

grupos, bem como suas regras sobre o uso dos recursos naturais, passam a se estruturar

nessa base concreta, comum, fundamental e garantidora de seus modos de vida.

Considerando esses aspectos, não existe, para esses grupos, a noção de propriedade

privada da terra8.

Temos, em contrapartida, diversos mecanismos de controle, exercidos pelas

comunidades, que visam regular o acesso aos recursos – e ao espaço – por seus membros,

conjugando formas privadas e comuns dos bens e garantindo sua manutenção. Ribeiro et

al (2005), através do estudo de comunidades rurais localizadas no Vale do Jequitinhonha,

atenta para o fato de que não somente os recursos finitos são fonte de regulação, mas toda

uma cadeia complexa que envolve a ponderação entre seu uso e conservação e também

relações que diferenciam o acesso entre as pessoas “de dentro e de fora”. Dessa forma,

também são consideradas “terras tradicionalmente ocupadas” as áreas de uso comum que,

combinadas a propriedade e a posse, são destinadas ao extrativismo, à pequena

agricultura, a pesca e à solta de animais, revelando, mais uma vez, distintas formas de

propriedade social que destoam do regime de propriedade alicerçado na dicotomia entre

o privado e o público.

8 Soares (1981) alerta para o fato de que a propriedade privada da terra não pode ser confundida com a

propriedade individual, regime presente nessas comunidades.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

44

No caso dos povos tradicionais do Brasil, uma grande

semelhança pode ser detectada nas distintas formas de propriedade

social, que as afastam da razão instrumental hegemônica com seu

regime de propriedade baseado na dicotomia entre o privado e o

público. Todavia, a razão histórica a elas subjacente incorpora

alguns elementos que muitas vezes são considerados como públicos

- isto é, bens coletivos -, mas que não são tutelados pelo Estado; ou

seja, essa razão histórica introduz coletividades que funcionam em

um nível inferior no plano do Estado-nação. No entanto,

incorpora elementos comumente considerados como privados, no

caso de bens pertencentes a um grupo especifico de pessoas, mas

que existem fora do âmbito do mercado. Como os territórios desses

grupos fundamentam-se no arcabouço da lei consuetudinária, raras

vezes reconhecida e respeitada pelo Estado, as articulações entre

esses grupos são marginais aos principais centros de poder político.

Mas é igualmente claro no registro etnográfico sobre os povos

tradicionais que eles estabeleçam territórios no sentido

aqui definido. (LITTLE, 2002, p. 260)

Como demonstrado por Almeida (2004), Diegues (2001), Lima (2007), Little

(2002), Ribeiro et al (2005), e diversos outros autores que estudam o regime agrário

brasileiro, uma questão central colocada é o não reconhecimento do Estado sobre uma

diversidade de formas de apropriação do espaço. A partir de 1980, com as pressões nos

territórios impostas pelos projetos de desenvolvimento introduzidos a partir da

consolidação das ideologias neoliberais no país; o surgimento e articulação de

movimentos sociais e seu apoio de Organizações Não Governamentais Internacionais

(ONG’s); e o ambiente propício gerado pela abertura política pós-ditadura militar, os

povos e comunidades tradicionais tiveram a possibilidade de acessar espaços políticos de

extrema importância para a consolidação de seus direitos (LITTLE, 2002). A

Constituição de 1988 foi um marco nesse sentido, reconhecendo direitos e incorporando

demandas sociais e ambientais em sua redação através da normatização de modalidades

étnicas e territoriais plurais, como as terras indígenas e as terras remanescentes de

quilombos.

Ademais, dentre as disposições constitucionais, foi anexado o direito à

propriedade definitiva da terra aos remanescentes quilombolas, em contraposição à tutela,

como ocorre com os povos indígenas. Essas duras conquistas, entretanto, foram

consideradas suficientes para alguns juristas classificarem o Estado brasileiro como

“pluriétnico” sem que, de fato, esse assumisse uma postura política que respondesse ao

adjetivo e tampouco garantir fatores situacionais que influenciassem uma consciência

étnica efetiva.

Tanto no plano jurídico quanto no plano operacional a efetivação desses direitos

foi sufocada por diversos gargalos, seja os modelos de cadastro e censo de terras,

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

45

marcados por vertentes tributaristas, que só veem a terra como mercadoria, seja por

interesse das grandes elites latifundiárias que buscam nesses territórios novas frentes para

a expansão de seus projetos. Além disso, a incorporação de termos como “populações

tradicionais” e “terras tradicionalmente ocupadas” em seu aparato jurídico-formal não

significa a consonância às diversas demandas colocadas por esses povos, não sendo,

portanto, a solução para os conflitos e tensões gerados pelas disputas sobre o controle dos

espaços (ALMEIDA, 2004).

Ao mesmo tempo, novas formas de ocupações emergiram, cada qual com suas

territorialidades específicas e que, até hoje, não obtiveram seu reconhecimento legal,

como é o caso, apontado por Almeida (2004), das “terras de preto”, “terras de santo”,

“terras de caboclos” e mesmo os regimes de uso das comunidades campesinas. Essas

comunidades, apesar de possuir regimes de propriedade que apresentam diferenças

substanciais dos regimes estabelecidos pelos povos indígenas, mantém formas próprias

de relação com o território, como a manutenção de áreas comuns e das relações simbólicas

com o espaço.

Esses grupos sofrem com sua invisibilização jurídica e tem nos processos

expropriatórios a inviabilidade da reprodução de sua existência e manutenção dos seus

modos de vida. A noção de propriedade privada, no âmbito de disputas jurídicas pelo

território, ou mesmo através de práticas de aquisição de terras legitimadas pelo Estado,

aparece como um mecanismo homogeneizador das práticas sociais estabelecidas

espacialmente, configurando um cenário de inúmeras violações materiais e simbólicas

resultantes, justamente, da imposição de uma lógica sobre outra. Esse cenário tem se

intensificado, nas últimas décadas, pela adoção de um novo modelo de desenvolvimento

pautado pela exportação de bens primários e, consequentemente, pela expansão das

atividades extrativistas sobre territórios tradicionalmente ocupados, deflagrando diversos

conflitos ambientais territoriais. Esse cenário macro, caracterizado pelo modelo

neoextrativista, é o tema abordado no seguinte capítulo.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

46

CAPÍTULO 2

“Depois que a Anglo chegou, só atrapalhou, só piorou, nós não tivemos

sucesso de nada. Você vê que nem emprego meus meninos não têm, né?

Neoextrativismo e efeitos multidimensionais

Na América Latina, assim como na Ásia e África, após as transformações

internacionais impostas pelas novas dinâmicas estabelecidas no período pós Segunda

Guerra, assistimos a uma reformulação da relação dos governos nacionais com os setores

primários da economia. Os setores primários, grandes responsáveis pelas balanças

comerciais favoráveis desses países, passaram a representar o status de

subdesenvolvimento, sendo correlacionados à dependência, à pobreza e ao passado

colonial ainda não superado. No Brasil, o questionamento da dependência dos setores

primários foi levantado, com maior ênfase, a partir de 1950, quando foi proposto o modelo

de industrialização via substituição de importações. Naquele momento, as críticas

recaíam sobre os padrões de troca desiguais dados pelo comércio internacional e, como

alternativa, se defendia a substituição das importações de produtos industriais básicos

através do desenvolvimento do setor manufatureiro (MILANEZ & SANTOS, 2013)

Gudynas (2015) atenta para o fato de que apesar desses questionamentos terem

sido fortemente difundidos, não se negava a importância da extração de produtos

primários enquanto fundamentais para a economia desses países, sendo, inclusive, a fonte

de capital que propiciaria o financiamento da industrialização dessas nações. A partir da

década de 1990 o ideal da modernização reformulou a imagem da indústria extrativa com

um discurso de que a partir de novas tecnologias, trabalhadores capacitados, gestão

ambiental e responsabilidade social e empresarial seria possível um “desenvolvimento

sustentável”.

O avanço do setor propiciaria, então, benefícios para toda a sociedade, ocupando

lugar substancial nas estratégias de desenvolvimento adotadas por esses países. Ainda

segundo o autor, a situação se tornou mais complexa com o início do século XXI com a

ascensão de governos progressistas em diversos países da América Latina. O termo

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

47

desenvolvimento, que já apresentava diversas críticas e desgastes9, foi retomado e

colocado no centro de diversos debates, sendo fortemente relacionado ao progresso

econômico e, dessa forma, promovendo a perseguição de inversões estrangeiras, intensa

apropriação da natureza e a promoção de todo tipo de exportação. A intensificação das

atividades do setor primário passou a ser, assim, colocada como positiva e necessária para

superação da condição de subdesenvolvimento.

Tanto desde las posturas convencionales, de corte conservador a

neoliberal, como desde el progresismo, se refuerzan los aspectos

centrales del desarrollo, donde los extractivismo constituyen una de

sus manifestaciones privilegiadas. Son extractivismos distintos pero

expresan las mismas raices conceptuales del desarrollo. Esto hace

que cualquier critica al desarrollo sea, a la vez, un cuetionamiento

que puede poner en riesgo las promesas de progreso. (GUDYNAS,

2015)

Dessa forma observamos uma intensificação das atividades do setor primário

nos países latino-americanos, sobretudo na primeira década dos anos 2000, configurando

o que economistas (ACOSTA, 2016; CARVALHO&CARVALHO, 2011;

GONÇALVES, 2001) definiram como um processo de reprimarização da economia, ou

seja, a primazia pela exportação de produtos com baixo insumo agregado. Esse

movimento foi acompanhado por mudanças profundas em diversas outras dimensões,

sejam elas econômicas, sociais e culturais, compondo o denominado “modelo

neoextrativista”. (ACOSTA, 2016; ZHOURI, BOLADOS & CASTRO, 2016;

BEBBINGTON 2011; GUDYNAS, 2015).

Desta forma, virada do século XX para o século XXI foi acompanhada por um

aumento exponencial dos extrativismos minerais, petroleiros e agrícolas em toda América

Latina, setores que se tornaram apostas mais atrativas para a inversão de capitais

estrangeiros nacionais. De acordo com Bebbington (2011), entre 1990 e 1997, a inversão

em exploração mineral cresceu 90% no mundo, e 400% na América Latina. Entre 1990 e

2001, 12 das 25 maiores inversões em projetos de mineração foram realizadas em países

latino-americanos, com destaque para o Chile, Peru e Argentina. O setor minerário

9 As críticas estavam relacionadas, sobretudo, ao fato de que após anos de intensificação da urbanização,

da modernização da agricultura e de industrialização, os indicadores sociais dos países “subdesenvolvidos”

permaneciam insatisfatórios e, por vezes, piores. Ficou claro que o crescimento econômico, da forma pela

qual foi implantado, vinha acompanhado e se cumpria através da acentuação das desigualdades sociais e da

apropriação massiva dos recursos naturais.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

48

brasileiro, entre os anos 2000 e 2010 apresentou crescimento de 550% no valor de sua

produção (IBRAM, 2017).

Em relação a todos os bens primários, como podemos observar no Gráfico 1, de

2000 a 2018 observamos que os bens primários saltam de 19% para 44% do total de

exportações nacionais, ultrapassando os produtos manufaturados que, em 2000

representavam 62% do total de exportações e que passaram a representar 38% no final do

período (MDCI SISTEMA COMEX STAT, 2019). Segundo estimativas apresentadas

pelo Sistema Comex Stat10, as previsões para 2019 são de que as exportações de produtos

básicos passem a representar 50% do total de exportações brasileiras.

Gráfico 1- Exportação Brasileira por fator agregado (%)

Fonte: MDCI Sistema Comex Stat, 2019 - Elaboração Própria

Um conjunto de fatores contribuiu para a configuração desse cenário, entre eles,

a adoção de novas tecnologias de extração, reformas institucionais do setor, o incremento

do dinamismo econômico dos países do Atlântico Sul, a recente crise econômica

enfrentada pelos países em escala mundial e, por último, mas não menos importante, a

entrada da China no mercado mundial e, consequentemente, sua crescente demanda por

commodities (BEBBINGTON, 2011).

10 Base de dados de comércio exterior disponibilizada pelo Ministério da Economia, Indústria, Comércio

Exterior e Serviços, disponível em: < http://www.mdic.gov.br/index.php/comercio-exterior/estatisticas-de-

comercio-exterior/base-de-dados-do-comercio-exterior-brasileiro-arquivos-para-download>

0

10

20

30

40

50

60

70

Básicos Semifaturados Manufaturados Especiais

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

49

O grande crescimento econômico apresentado pela China, hoje principal destino

das exportações brasileiras, assinalava um cenário promissor para as indústrias extrativas

latino-americanas, inaugurando um ciclo de valorização de commodities, sobretudo

minerais, e elevando o preço das exportações de maneira considerável, principalmente

entre os anos de 2009 e 2012 (MILANEZ & SANTOS, 2014). O chamado “boom” dos

preços dos minérios também foi responsável por grandes implicações econômicas no

Brasil que, em menos de uma década, assistiu ao incremento de 65 bilhões de reais nas

operações minerais entre os anos de 2014 e 2011 (MILANEZ & SANTOS, 2013).

A expansão do setor primário nos países latino-americanos, em especial na

primeira década dos anos 2000, resultou em um cenário que pode ser identificado, como

já apontado, de reprimarização da economia, ou seja, a retomada de políticas econômicas

que privilegiam a exportação de produtos com baixo insumo agregado. Svampa (2013)

analisou a inserção da América Latina nesse novo contexto no que ela denomina

passagem do “Consenso de Washington”, associado ao paradigma neoliberal, para o

“Consenso de los Commodities”.

Lo que de modo general aquí denominados el ingreso en un nuevo

orden, a la vez económico y político-ideológico, sostenido por el

boom de los precios internacionales de las materias primas y los

bienes de consumo cada vez más demandados por los países

centrales y las potencias emergentes, lo cual genera indudables

ventajas comparativas visibles en el crecimiento económico y el

aumento de las reservas monetarias, al tiempo que produce nuevas

asimetrías y profundas desigualdades en las sociedades

latinoamericanas. (SVAMPA, 2013, p. 31)

De acordo com a autora, a alta dos preços dos commodities em nível internacional

colocou os bens primários enquanto prioritários para o desenvolvimento dos países latino-

americanos, assumindo uma posição hegemônica nas políticas de exportação dessas

nações. Dessa forma, a primazia dos debates sobre ajustes financeiros e privatizações

deram lugar as discussões quanto a expansão da produção extrativa. Uma grande mudança

de foco da economia que modificou sua base no setor financeiro para o extrativo.

Apesar de existirem grandes semelhanças entre o modelo neoliberal, representado

pelo Consenso de Washington e o modelo definido por Svampa (2013), do Consenso de

Commodities, existem algumas diferenças, sendo a principal discrepância relacionada ao

papel do Estado. De um lado, o neoliberalismo traz consigo a noção de Estado mínimo,

calcado nas políticas de privatizações e liberdade dos mercados; de outro, o Consenso de

Commodities só existe a partir de uma relação íntima entre entidades públicas e privadas.

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

50

Milanez & Santos (2013) assinalam que, considerando o Consenso de

commodities, o Estado e mercado podem ser classificados como instituições

complementares, sendo o Estado a representação da manifestação coletiva e expressão do

interesse nacional. Nesta nova configuração fica a cargo dos governos novas atribuições,

das quais os autores destacam o apoio à internacionalização de empresas nacionais, a

flexibilização da legislação para a facilitação da implementação de grandes

empreendimentos e, sobretudo, a compensação dos “danos” via políticas de transferência

de renda. Nesse sentido, pode ser destacado, ainda, o suporte financeiro, através da

concessão de empréstimos financeiros e a construção de infraestrutura que possibilite,

principalmente, o escoamento da produção, tais como rodovias, hidrovias e portos.

Segundo Svampa (2013) trata-se, ainda, não apenas de uma nova ordem

econômica, mas de uma nova lógica político-ideológica, onde através da aparência de

acordos mútuos, a associação entre a grande demanda internacional de bens primários e

as riquezas existentes nos países latinos projetaria nesses estados-nações a visão

“eldoradista” de que são lugares, por excelência, abundantes em recursos naturais e seu

destino inexorável seria, portanto, a exaustiva exploração desses recursos com fins de

manutenção de suas balanças comerciais favoráveis. Contudo, a realidade indica a

intensificação de concessões para empreendimentos de grande escala, a baixa

diversificação da economia, uma lógica de apropriação de territórios altamente destrutiva

e a manutenção da posição subordinada dos países do cone sul.

Já Gudynas (2015), além de reconhecer as reformas neoliberais em relação aos

setores extrativos, aponta para a continuidade desses processos por governos

“progressistas” que, a partir do final dos anos 1990, assumiram o poder em diversos países

da América do Sul, a saber, Evo Morales (Bolívia, 2005), Fernando Lugo (Paraguai,

2008), Hugo Chávez (Venezuela, 1998), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil, 2003), Rafael

Correa (Equador, 2006) Ricardo Lagos (Chile, 2000) e Tabaré Vázquez (Uruguai, 2005),

compondo o que ele define como modelo neoextrativista. Segundo o autor, o modelo

apresenta um caso particular de extrativismo, que possui algumas características básicas

relacionadas ao volume/intensidade das extrações e ao seu destino.

El extractivismo es aqui definido como un tipo de extracción de

recursos naturales, en gran volumen o alta intensidade, y que están

orientados essencialmente a ser exportados como materias primas

sin processar, o con um procesamiento mínimo (GUDYNAS, 2015,

p.11)

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

51

O neoextrativismo é definido, portanto, como um modelo de desenvolvimento,

pautado pelo crescimento econômico via apropriação de recursos naturais, caracterizado

por redes produtivas pouco diversificadas e uma inserção subordinada na nova divisão

internacional do trabalho (SANTOS & MILANEZ, 2013). Nesse modelo, a combinação

entre o grande estoque de recursos, a alta demanda internacional para sua importação e a

existência de governos que possuíam como diretrizes a diminuição das desigualdades

sociais presentes nesses países resultou em políticas redistributivas que tinham como

principal fonte de capital as exportações do setor extrativo.

O “Estado Compensador”, definido por Gudynas (2013), demandou um papel

mais ativo das decisões governamentais que, ao mesmo tempo que promoviam a

expansão do setor, buscavam “minimizar” não só os efeitos dessa política, mas como

problemas sociais historicamente produzidos. Para tanto, o discurso de legitimação do

modelo se construíram a partir do caráter de interesse nacional, colocando os recursos

naturais enquanto imprescindíveis para o combate à pobreza e as desigualdades sociais,

fonte de capital necessária para a redistribuição de renda.

Para além disso, o neoextrativismo se compõe pela associação de outras

características fundamentalmente importantes. Acosta (2016) aponta que o novo modelo

de extrativismo, na prática, é uma nova roupagem para o discurso de desenvolvimento e

crescimento econômico já largamente utilizados para legitimar o saque e apropriação dos

recursos desde o período colonial, sem que se levasse em conta a sustentabilidade desses

projetos, o esgotamento dos recursos dos quais ele se sustenta e os efeitos negativos para

as comunidades vítimas desses processos.

A argumentação do autor, nesse sentido, se dá a partir do “paradoxo da

abundância” ou da “maldição dos recursos naturais”, lógica pela qual os países ricos em

recursos naturais criam grande dependência da exportação desses bens e deixam de

“investir” em outros setores, limitando o seu real desenvolvimento e ficando presos em

situações de pobreza. Dentre as diversas razões para o problema econômico da primazia

pela exportação de bens primários, pode-se destacar o fato de:

(...)as matérias-primas se caracterizam comercialmente por sua

baixa elasticidade de renda, pois podem ser substituídas por

elementos sintéticos; porque não possuem poder monopólico,

eliminando qualquer possibilidade de monopólio; porque sua

contribuição tecnológica e de inovação é baixa; e porque a

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

52

quantidade de matérias-primas utilizada para a fabricação de

produtos manufaturados é cada vez menor. (ACOSTA, 2016, p. 53)

Essa abundância torna-se, portanto, uma maldição: os países ditos

“desenvolvidos” continuam mantendo o controle das exportações nacionais, processando

e comercializando os recursos extraídos na forma de produtos acabados e reproduzindo a

relação metrópole-colônia de tempos pretéritos, além do fato de que ficam nos países

exportadores de bens primários os passivos ambientais e sociais dessa lógica de

apropriação.

Nesse sentido, Acosta (2016) define esse tipo de economia extrativista como

portadora de uma lógica de enclave, ou seja, as atividades primário-exportadores não se

integram ao resto da economia e da sociedade, deixando-as sujeitas às flutuações do

mercado mundial. Como consequência direta, aponta a promoção de relações sociais

clientelistas que apenas levam em conta os lucros das empresas e pouco investem em

planos de desenvolvimento locais, deixando esses países em posições economicamente

atrasadas e com problemas ambientais que são diretamente proporcionais aos ritmos de

expansão das atividades extrativas.

Outra característica marcante é a ênfase nos benefícios da implementação dessas

atividades, tais como geração de postos de trabalho, aumento na arrecadação de impostos

e a propagação, no imaginário das populações que viverão no entorno dos grandes

empreendimentos, da ideia de que todos se beneficiarão, igualmente, dos seus proveitos.

Todo esse contexto criou o cenário propício para a expansão em larga escala dos

extrativismos gerando efeitos diversos que influem sobre a sociedade, o ambiente, a

economia e a política.

Gudynas (2015) descreve os impactos dos empreendimentos extrativistas como

sendo diversos e de grande amplitude, sendo sempre, nesse entendimento,

multidimensionais. No âmbito social, destaca os efeitos sobre a saúde, sobre a qualidade

de vida, sobre as relações comunitárias, migrações, desmantelamento de comunidades e

laços familiares, êxodo rural, entre tantos outros. No âmbito ambiental, os efeitos vão

desde a contaminação do solo e/ou do lençol freático a completa remoção física de um

ecossistema, em processos definidos pelo autor como de amputações ecológicas.

A complexidade e especificidade dos efeitos do neoextrativismo impedem que

sejam aqui listados todos seus possíveis efeitos, contudo, um fator é sistematicamente

encontrado em todos os países que podem se enquadrar dentro desse paradigma é a

violência. Gudynas (2015) esclarece que para além de uma característica, a violência é

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

53

uma condição da aplicação do modelo. A violência parte tanto das próprias empresas

extrativistas como do próprio governo, em diferentes formas e escalas. A violência e a

violação de direitos, sejam eles através de vias ilegais ou alegais tornaram-se tão graves

e tão intimamente ligados aos processos extrativistas que o autor cunhou uma nova

palavra para caracterizá-los: extraher e o seu derivado extrahección.

Este vocablo tiene su origen en el término latino “extrahere”, donde

“ex” significa fuera y “trahere” alude a quitar y arrastrar hacia si.

Por lo tanto, extraher es aquí presentado para referirse al acto de

tomar o quitar con violencia; es “arrancar” los recursos naturales,

sea de las comunidades como de la naturaleza. De esta manera, la

extraheccion seria el caso más agudo en el gradiente de aprorpiación

de recursos naturales, en tanto se la impone con violencia y se

quiebra el marco de derechos. (GUDYNAS, 2015, p. 127-128)

De acordo com o autor, extrahección ambiental se dá quando se violam os direitos

a qualidade de vida em um ambiente saudável e de acordo com os direitos da natureza,

como por exemplo a perda da qualidade do ar e da água, secagem de nascentes,

desmatamento e a perda da biodiversidade. Já a extrahección social ocorre quando se

rompe com o marco legal dos direitos humanos, que vão desde a garantia de informações

públicas, participação e consulta nos processos de licenciamento ambiental (ou mesmo

antes deles), até processos expropriatórios que se cumprem em detrimento das demandas

de povos e comunidades que historicamente habitaram regiões de implementação desses

projetos.

Zhouri (2016, p. 15) complementa que a materialização do neoextrativismo se

cumpre através de um complexo processo de violência das afetações:

Trata-se de um processo que, definido alhures, pelos mercados

mundiais, materializa-se nos lugares promovendo a expropriação, a

destruição de ecossistemas, a desestruturação de economias

regionais e locais, assim como a morte de formas de ser, fazer e

viver territorializadas. As “afetações” ao meio ambiente, aos modos

de vida comunitários, sejam indígenas ou tradicionais, são também

violentadoras dos processos participativos e dos marcos

regulatórios. A esse conjunto de violências intrínsecas à expansão

da fronteira minerária nos países da América do Sul se somam

também outras modalidades de violência, tais como as violências

epistêmicas, simbólicas e raciais, caracterizando o que autores

lationoamericanos denominam de colonialidade do poder, do saber

e do ser.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

54

O setor minerário e sua expansão nas últimas décadas ilustram bem os processos

previamente descritos, principalmente no Brasil, aspectos trabalhados mais

profundamente no tópico subsequente.

2.1 O CENÁRIO DA MINERAÇÃO NO BRASIL

O Brasil, desde os primórdios da colonização portuguesa, tem na mineração um

dos seus principais eixos econômicos. A mineração, sobretudo do ouro, através das

excursões dos bandeirantes em busca de metais preciosos, foi o que propiciou a ocupação

do interior do Brasil e o início das explorações, a princípio, em Minas Gerais. A imagem

de “El Dourado”, trazida pelos colonizadores europeus, foi transformada, conforme se

intensificava a ocupação do território e se aumentava o conhecimento sobre outros

depósitos minerais, no discurso de “vocação minerária”. Esse discurso se estrutura a partir

da acentuação da condição privilegiada do solo brasileiro e da possibilidade de extrair

dele o saldo positivo da nossa balança comercial, proporcionando competitividade a nível

global (CASTRO, ALONSO & NASCIMENTO, 2016).

Além disso, considerando a localização geográfica do país, sua grande extensão

costeira e a fronteira com a maior parte dos países da América do Sul, soma-se a exaltação

do setor, as diversas possiblidades de comércio e rotas de escoamento da produção

(CASTRO, ALONSO & NASCIMENTO, 2016). Dessa forma, desde os primórdios da

colonização, a aposta no setor extrativo coloca sobre ele o peso da economia do país,

condição que, na verdade, apresenta grande potencial de risco e grande vulnerabilidade.

Ainda que o setor de serviços ocupe a maior porcentagem do Produto Interno

Bruto (PIB) Brasileiro, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) para o ano de 2015, a Indústria representa cerca de 18% do total. A indústria

extrativa representa 3,7% de todo o PIB brasileiro, desses, somente a indústria extrativa

mineral representa 1,4% do total.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

55

Gráfico 2- Produto Interno Bruto brasileiro (2015)

Fonte: IBGE, 2017 – Elaboração Própria

Atualmente, de acordo com os resultados dos Relatórios Anuais de Lavra,

disponibilizados pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) os recursos

minerais nacionais abrangem uma produção de 72 substâncias minerais, dessas, 23 são

metálicas, 45 não metálicas e 4 energéticas. O cenário de exploração é composto por

9.415 minas em regime de concessão de lavra11 , 1820 lavras garimpeiras, 13.250

licenciamentos e 830 complexos de águas minerais (IBRAM, 2018). Por tamanho,

existem 154 grandes minas de grandes empresas, que produzem mais de um milhão de

toneladas ao ano; 1037 médias, com produções entre 100 mil toneladas e 1 milhão de

toneladas ao ano; 2809 pequenas, no intervalo entre 10 mil toneladas e 100 mil toneladas

ao ano; e, por fim, 5415 micro, com produção menor que 10 mil toneladas/ano.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), em 2017 foram

US$ 32 bilhões exportados, resultados da movimentação de mais de 400 milhões de

toneladas nos portos brasileiros, representando 16,8% do PIB Industrial e 30% do saldo

da balança comercial brasileira. Ainda segundo dados do Instituto, a área ocupada pelo

setor mineral corresponde a 0,5% de todo território nacional, ou seja, algo próximo a

43.000m², área aproximadamente todo o território do estado do Rio de Janeiro.

11 Ato administrativo que outorga o direito de aproveitamento de uma jazida

13%

18%

43%

13%

13%AGROPECUÁRIA

INDÚSTRIA

SERVIÇOS

ADM. PÚBLICA

IMPOSTOS

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

56

Gráfico 3 - Produção Mineral Brasileira

Fonte: IBRAM, 2017

Como podemos observar no Gráfico 3 o período de intensificação da produção

mineral brasileira, a partir dos anos 2000, corresponde ao que foi denominado, no tópico

anterior, de reprimarização da economia, resultado da adoção do neoextrativismo

enquanto modelo econômico de desenvolvimento. Observamos, também, os picos de

arrecadação do setor no ano de 2011, período de alta nos preços de commodities,

incentivados, principalmente, pelas demandas de minério da China. Na sequência, com a

diminuição da demanda por minérios pelos principais importadores, os preços das

exportações caíram, de US$ 44,2 bilhões em 2011 para US$ 28,4 bilhões, segundo dados

do International Trade Center, diminuindo os valores das arrecadações.

Gráfico 4 - Extração de Minério de Ferro vs Preço do Minério no mercado

internacional

Fonte: MDCI Sistema Comex Vix, 2019 - Elaboração Própria

35

85

135

185

235

285

335

385

435

2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Toneladas em milhões Preço (US$/Tonelada)

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

57

Contudo, como podemos observar no Gráfico 4, para o caso do minério de ferro,

a queda no preço das exportações teve como efeito a intensificação das atividades a fim

de aumentar a escala de produção e redução dos custos fixos, promovendo a expansão da

mineração para áreas antes não exploradas, nas denominadas por Zhouri, Bolados &

Castro (2016), “zonas de sacrifício”. Ou seja, a compensação pela queda dos preços teve

como resultado a intensificação das atividades e exportações. Nesse contexto, há também

a flexibilização das medidas de controle ambiental, fiscalização e monitoramento desses

empreendimentos, a fim de que se reduzam os custos, aumentando, consequentemente o

risco de acidentes de trabalho e desastres ambientais, tais como os desastres tecnológicos

de Mariana, em 2015 e de Brumadinho, em 2019 (ZHOURI, BOLADOS & CASTRO,

2016).

Gráfico 5- Distribuição percentual das substâncias minerais nas exportações brasileiras

em 2018 em dólares

Fonte: IBRAM, 2019

Em 2016 os metálicos corresponderam a 77% do valor total da produção mineral

comercializada pelo Brasil, com destaque para a produção de ferro, ouro, cobre, alumínio,

níquel, manganês, estanho e nióbio. O minério de ferro, nesse contexto, possui expressiva

participação, representando 68% das exportações minerais brasileiras e 8,5% das

exportações totais do Brasil, em dólares, em 2018. Sua extração se concentra,

majoritariamente, nos estados do Pará e de Minas Gerais.

Conforme a U.S. Geological Survey e a Conferência das Nações Unidas para o

Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), o Brasil é o segundo maior produtor de

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

58

Minério de Ferro do Mundo, perdendo apenas para a Austrália. As maiores empresas

produtoras no Brasil, são a Vale com 84,52%, CSN com 5,45%, Samarco com 6,29%,

MMX com 2,03% e Usiminas com 1,71% (IBRAM, 2012). De acordo com o Ministério

da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços, em 2018, o minério de ferro

ocupou o 3º lugar nas Exportações de Produtos Básicos, sendo seu principal destino a

China, seguido do Japão e Malásia.

Figura 1- Principais destinos do minério de ferro brasileiro

Fonte: MDCI Sistema Comex Vix, 2019

Contudo, apesar da representatividade do setor e dos altos índices, consoantes com

os discursos desenvolvimentistas, na prática, as alíquotas da Compensação Financeira

pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) 12 são insuficientes para a promoção da

qualidade de vida das áreas de instalação desses empreendimentos que, nesse cenário,

perpetuam condições de desigualdades sociais, intensa apropriação de recursos naturais e

inserção subordinada do Brasil no cenário internacional. No ranking de 2018 do Índice

de Desenvolvimento Humano (IDH), promovido pela Organização das Nações Unidas

(ONU), o Brasil ocupa a 79ª posição, com um IDH de 0,759. Se ajustada a desigualdade

presente no país, a situação torna-se ainda mais grave, fazendo com que o valor caia para

12 Atualmente a CFEM, estabelecida pela Casa Civil da Presidência da República é de 3,5 para o minério

de ferro, 3,0% para a bauxita, manganês, nióbio e sal-gema, 2,0% para diamantes e demais substâncias

minerais e 1,5% para o ouro.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

59

0,515 e o país caia 17 posições no ranking. O relatório destaca, ainda, que considerando

o Índice de Gini (51,3), o Brasil é o quarto país mais desigual da América Latina que,

também com economias baseadas no extrativismo, apresentam resultados igualmente

insatisfatórios.

Tabela 1 - Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e Porcentagem de pessoas

vivendo abaixo da linha da pobreza nas principais economias extrativistas na América

Latina

País

IDH

Pobreza Valor Posição

Global

Chile 0.961 44 -

Argentina 0.825 47 -

Uruguai 0.692 55 -

México 0.774 74 43,6 %

Venezuela 0.634 78 -

Brasil 0.759 79 8,7 %

Equador 0.752 86 21,5 %

Peru 0.750 89 20,7 %

Colômbia 0.747 90 28,0 %

Bolívia 0,693 118 39,5 % Fonte: Human Development Indices and Indicators 2018 Statistical Update PNUD – Elaboração Própria

Outro dado importante é a geração de empregos, uma das principais estratégias

utilizadas pelas empresas para convencimento da população de seus benefícios. Segundo

dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), apresentados no Gráfico 6, a

quantidade de vínculos de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) da

Indústria Extrativa Mineral vem apresentando quedas desde 2012, mais um fator que

rompe com o discurso das indústrias extrativas como promotoras de desenvolvimento

local.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

60

Gráfico 6- Quantidade de Vínculos CLT Indústria Extrativa Mineral

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), 2019 – Elaboração Própria

A situação torna-se ainda mais grave quando consideramos que as localizações

desses megaempreendimentos não raro coincidem com terras tradicionalmente ocupadas

cujas populações apresentam lógicas próprias de apropriação, uso e ocupação dos

territórios onde vivem. Esse quadro é responsável por transformar profunda e

irreversivelmente os modos de ver, fazer e viver desses grupos sociais através da

modificação dos seus espaços de trabalho e de vida. A expansão desses projetos é,

portanto, responsável por profundos processos de extrahección.

Contudo, de acordo com Zhouri, Laschefski & Pereira (2005), essas populações

não podem ser encaradas como vítimas passivas desses processos: conforme se expandem

os efeitos das atividades extrativistas, crescem também os movimentos, organizações,

associações e redes que buscam manifestar seus desacordos, embaraços, revoltas e

reivindicações frente aos danos que vem sofrendo e propondo alternativas as formas de

desenvolvimento que os sufoca, configurando um cenário de conflito ambiental.

Os conflitos ambientais são (...) aqueles envolvendo grupos sociais com modos

diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem

quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de

apropriação do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis

(...) decorrentes do exercício das práticas de outros grupos (ACSELRAD,

2004, p.26)

Nesse sentido, cabe ainda ressaltar que esses grupos, historicamente

marginalizados, possuem condições assimétricas frente as grandes empresas e que a eles

são imputados riscos e danos previamente discutidos nas instâncias deliberativas,

configurando casos de injustiças ambientais.

100.000

120.000

140.000

160.000

180.000

200.000

220.000

240.000

260.000

280.000

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

61

Entendemos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual

sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social,

destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento

às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos

povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações

marginalizadas e vulneráveis. (LEROY, 2011, p. 1)

De acordo com Zhouri, Laschefski & Pereira (2005), as vítimas das injustiças

ambientais não só são excluídas do dito desenvolvimento defendido pelas grandes

corporações, mas também são as camadas que recebem todo o ônus desse processo. O

Estado, a quem caberia a garantia da proteção dos direitos difusos e coletivos, atua como

mais um perpetuador da violência sobre essas comunidades já que, além de ser o principal

fomentador da implementação dos projetos de desenvolvimento, se utiliza de mecanismos

que garantam a legalização e efetivação dos empreendimentos através, sobretudo, dos

processos de licenciamento ambiental e flexibilização de instrumentos legais,

instrumentos que, na prática legitimam as violências exercidas nos territórios.

2.2 NEOEXTRATIVISMO E EFEITOS DERRAME: A

FLEXIBILIZAÇÃO DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL

O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo, exigido

legalmente, sob o qual qualquer empreendimento que altere de alguma forma o ambiente,

seja através de poluição ou degradação, devem ser submetidos. Através dele são

autorizadas a localização, instalação, ampliação e operação de empreendimentos e/ou

atividades potencialmente ou poluidoras/degradadoras. Suas políticas são construídas,

principalmente, a partir da Lei 6.938/81, que trata da Política Nacional de Meio Ambiente,

das Resoluções 001/86 e 237/97 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA),

da Lei Complementar 140/11, que trata da cooperação entre os níveis federal, estadual e

municipal na defesa do meio ambiente e, no caso de Minas Gerais, da Lei 21.972/2016

que dispõe sobre o Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SISEMA).

Através das licenças ambientais são estabelecidas regras, medidas e restrições que

deverão ser cumpridas pelos licenciados, concernindo aos órgãos municipais, estaduais e

federais a análise, deliberação e fiscalização do seu cumprimento. Atualmente, o

Licenciamento ambiental possui o formato trifásico, ou seja, são concedidos três tipos de

licença: i) a licença prévia (LP), primeira etapa do processo, onde são discutidas as

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

62

alternativas de locação, a viabilidade do empreendimento e é, também, o momento onde

são realizadas as Audiências Públicas e entregues para avaliação os Estudos e Relatórios

de Impactos Ambientais (EIA/RIMA’s); ii) a licença de instalação (LI), que assim como

o nome revela, concede a autorização para a instalação do empreendimento, cumpridas

as condicionantes da LP e estabelecidas as medidas de controle ambiental dos projetos e;

(iii) a terceira e última licença, a licença de operação (LO) que autoriza o início das

atividades, se regulares as medidas de controle ambiental.

A concessão da licença pode ser de responsabilidade federal, estadual ou mesmo

municipal, a depender do grau de interferência e da extensão dos empreendimentos e/ou

atividades. Se os impactos forem locais, o empreendimento não estiver localizado em

áreas de preservação ambiental e as prefeituras dispuserem de órgão capacitado e

Conselho de Meio Ambiente, o licenciamento se enquadrará na esfera municipal. Se os

impactos atingirem mais de um município e/ou apresentem grande potencial poluidor,

cabe ao estado o seu licenciamento. E, por fim, se o empreendimento se estender por mais

de dois estados e/ou apresentar grande potencial poluidor, fica a cargo do governo federal,

através do Instituto de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a

concessão da licença.

No caso de Minas Gerais, até o ano 2016, as licenças eram julgadas pelo Conselho

Estadual de Política Ambiental (COPAM), órgão subordinado à Secretaria de Meio

Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), através das suas Unidades

Colegiadas Regionais (URC's.). Contudo, neste ano, o então governador do estado,

Fernando Pimentel, sancionou a Lei 21.972/2016 que dispõe sobre o SISEMA que, entre

diversas alterações, reestrutura as unidades administrativas do órgão. De acordo com a

nova legislação, as análises de licenças ambientais podem ser feitas pela própria SEMAD

ou pelo COPAM, considerando a escala do empreendimento e seu potencial poluidor,

sendo os empreendimentos classificados entre as classes 1 e 4 sob responsabilidade da

SEMAD e os empreendimentos 5 e 6 sob responsabilidade do COPAM, através de suas

Câmaras Técnicas Especializadas - não mais as antigas Câmaras Temáticas. Autoriza,

ainda, a possibilidade de licenças concomitantes e licenciamentos simplificados13.

Segundo Bronz (2011), todo processo de licenciamento ambiental representa

sequência lógica de encadeamento de atos administrativos, sendo uma adaptação de

13 Para mais informações, acessar < http://www.meioambiente.mg.gov.br/regularizacao-

ambiental/modalidades-de-licenciamento-ambiental>

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

63

modelos desenvolvidos internacionalmente, que passaram a serem requisitos para

investimentos de capitais estrangeiros e nacionais. A exemplo disso temos o fato de que

o Banco Mundial foi a primeira agência unilateral a estabelecer parâmetros para avaliação

de grandes empreendimentos. Dessa forma, podemos observar que o licenciamento

ambiental possui uma lógica própria para ser realizado, tendo sido objeto de estudo de

diversos autores e sob diferentes perspectivas. Neste trabalho optei por adotar a

perspectiva defendida por Martínez-Alier (2009), denominada “evangelho da

ecoeficiência”.

O evangelho da ecoeficiência, corrente hegemônica no campo ambiental, defende

que o mundo vive uma “crise” passível de resolução através de três grandes pilares: o

mercado, as novas tecnologias e o consenso político. Essa corrente se apoia,

substancialmente, no paradigma do desenvolvimento sustentável, ou seja, na conciliação

entre o desenvolvimento, meio ambiente e condições sociais, através de uma gestão

política à luz do cientificismo. O que reflete, na prática, uma proposta conservadora, em

que se adota uma estratégia de administração dos bens naturais de modo que se possa

permitir o crescimento econômico dos países. Dessa forma, se utilizando desse paradigma

e calcados na noção de gestão e sustentabilidade, projetos com diversos fins e efeitos são

implementados sem que as relações de poder intrínsecas as dinâmicas dos processos

sociais sejam analisadas. (ZHOURI, 2008).

Os conselhos gestores do meio ambiente, como é o caso do COPAM, são

instâncias institucionalizadas que representam essa lógica de governança denominada

como “efeito na prática” Zhouri (2008). De acordo com a autora, os diversos órgãos

deliberativos atuam como agências de arbitragem ou de mediação de conflitos, buscando,

assim, soluções tidas como benéficas para ambos os lados. Contudo, considerada a

natureza do conflito – as diferentes formas de apropriação do ambiente em choque – e as

assimetrias entre os atores, esses órgãos acabam por perpetuar a lógica dos

empreendimentos e aprofundar as condições de vulnerabilidade dos povos, grupos e

comunidades atingidos através de “jogos de mitigação” e efeitos compensatórios

(ZHOURI, LASCHEFSKI & PAIVA, 2005).

Entre as limitações estruturais presentes nos processos de licenciamento Zhouri,

Laschefski & Paiva (2005) destacam: a) a ausência de sinergia entre os diversos âmbitos

de planejamento; b) as limitações nas participações da população na elaboração dos

documentos apresentados no processo, tais como Termos de Referência, EIA’s/RIMA’s,

que, por sua vez, se mostram tendenciosos devido as relações entre consultores

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

64

ambientais e empreendedor; c) as dificuldades de acesso à informação, seja a distância, o

linguajar técnico e mesmo os custos de acesso, que limitam e cerceiam a participação das

comunidades; d) a restrição das Audiências Públicas como único momento onde se é

possível as comunidades se posicionarem frente ao empreendimento, considerada suas

limitações; e) as contradições entre as funções dos órgãos deliberativos, de proteção ao

ambiente e as comunidades e as decisões favoráveis aos empreendimentos, na maioria

das vezes, contrariando pareceres técnicos que apresentam posicionamento contrário.

Além disso, é caso comum a interpretação casuística da legislação a fim de que

esta se adeque as necessidades do empreendedor, ato classificado por Gudynas (2015)

como “alegalidades”. As ‘alegalidades’ são, segundo o autor, práticas que são

formalmente legais, mas, “(...) aprovechan de los vacíos o limitaciones de las normas para

lograr benefícios que claramente están contra el espíritu del marco jurídico” (GUDYNAS,

2015, p. 17).

Quando permanecem os entraves a implantação dos empreendimentos, ainda

segundo o autor, o Estado usa de práticas que flexibilizam tanto os direitos sociais quanto

ambientais. Nos casos das flexibilizações sociais, as demandas locais são

desconsideradas, invisibilizando os atores envolvidos ou, ainda que sejam reconhecidos,

são minimizadas ou desconsideradas as suas denúncias, chegando a casos de deliberações

arbitrárias e que são simplesmente impostas. Já a flexibilização ambiental vem através da

flexibilização de leis e do sucateamento e/ou redução de medidas de controle e

fiscalização das exigências ambientais, medida que afeta a gestão ambiental em todo o

território, provocando “derrames” em todos o país, tais como modificações nas políticas

públicas, economia, no entendimento de justiça e democracia e mesmo sobre os

entendimentos de natureza (GUDYNAS, 2016).

Assim, o licenciamento ambiental, instrumento que foi criado para a avalição da

viabilidade socioambiental dos empreendimentos atua, na prática, como um legitimador

de processos expropriatórios e aprofundador de desigualdades, prevalecendo a lógica dos

grandes empreendimentos frente distintas formas de se apropriar do ambiente bem como

dos seus danos ambientais e, sobretudo, sociais.

O licenciamento ambiental do empreendimento Minas-Rio é exemplo

emblemático das situações previamente descritas, na qual podemos observar a

flexibilização do processo, a negação e minimização das denúncias feitas pelos atingidos

ao longo de mais de dez anos de licenciamento, a falta de informação e decisões

arbitrárias em favor da empresa e incontáveis outros efeitos multidimensionais.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

65

CAPÍTULO 3

“Aí as licenças vão saindo, vai andando, vai um passo e quando você

vai vendo vai tomando aquela dimensão. Ali você já não pode entrar

mais, ali a Anglo comprou, ali ela fechou.”

A questão fundiária no processo de licenciamento do empreendimento

Minas-Rio

3.1 O EMPREENDIMENTO

O empreendimento Minas-Rio, originalmente desenvolvido pela empresa MMX

e, desde 2008, pertencente à mineradora Anglo American14, foi um dos maiores projetos

minério-portuários do mundo durante seu período de implementação. Trata-se de uma

operação de exportação de minério de ferro. O empreendimento engloba três grandes

partes que se interligam e compõem o complexo: o empreendimento minerário, que

envolve a mina e a planta de beneficiamento; suas estruturas adjacentes, como a linha

independente de transmissão de energia, a adutora de água, a barragem de rejeitos e as

estruturas administrativas; e as estruturas de escoamento, compostas pelo mineroduto e

pelo porto.

As atividades da lavra a céu aberto, das usinas de beneficiamento e tratamento do

minério, as pilhas de estéril, diques de contenção e barragem de rejeitos estão localizadas

na região da Serra do Espinhaço, na área rural das cidades de Conceição do Mato Dentro

e Alvorada de Minas, em Minas Gerais. A captação de água se dá através da adutora

localizada no município de Dom Joaquim (MG), no Rio do Peixe. Em Itabira (MG) está

localizada a estrutura inicial da linha independente de transmissão de energia, derivada

da subestação da Companhia Energética do Estado de Minas Gerais (CEMIG), que

atravessa nove munícipios ao longo dos seus 89 quilômetros. O mineroduto, que possui

ao todo 529 quilômetros de extensão, parte da cava, em Conceição do Mato Dentro e

desemboca no Porto do Açu, em São João da Barra, norte do estado do Rio de Janeiro.

Em sua trajetória, o mineroduto perpassa 33 municípios, sendo 26 em Minas Gerais e 7

14 A mineradora Anglo American é uma das maiores companhias de mineração do mundo. Possui sede

em Londres e ações negociadas nas bolsas de Londres e Joanesburgo

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

66

no Rio de Janeiro. As operações do porto são de responsabilidade da empresa Ferroport,

joint venture entre a Anglo American e a empresa Prumo Logística.

Figura 2- Mapa do Complexo Industrial Minas-Rio, traçado do mineroduto

Fonte: Relatório dos Impactos Socioambientais do Complexo Industrial Porto do Açu AGB Rio e Niterói.

Setembro/2011

O primeiro embarque de minério de ferro do empreendimento foi realizado em

outubro de 2014 e sua produção, atualmente em processo de ramp-up15, pretende atingir

a meta de produção de 29,1 milhões de toneladas de minério de ferro por ano, para

abastecimento do mercado exterior. Segundo o Parecer único da Secretaria de Estado de

Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustável (SISEMA) “Apesar de viável

economicamente, o percentual médio do teor de ferro do jazimento é considerado baixo,

implicando extrações de grandes volumes, com grande geração de estéril e rejeitos”

(PARECER SISEMA, 2008).

Apesar de se tratar de um empreendimento único, as diversas estruturas do

complexo foram tratadas por processos administrativos independentes, em órgãos

ambientais também distintos, flexibilizando o licenciamento e, consequentemente,

impedindo uma visão holística do projeto de forma a minimizar seus efeitos. A mina, a

15 É a fase inicial de um processo de produção, marcada pelo crescimento gradual da produção até alcançar

a sua estabilização.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

67

usina de beneficiamento e a barragem de rejeitos foram licenciadas em âmbito estadual,

sendo sua LP expedida pelo COPAM em dezembro de 2008. As LI fase I e II16 foram

concedidas em dezembro de 2009 e dezembro de 2010, respectivamente, e sua LO, em

outubro de 2014. Já o mineroduto foi licenciado pelo IBAMA e teve sua LO concedida

em setembro de 2014, antes mesmo da LO da cava da mina, fator fundamental para a

construção do ideal de inexorabilidade do empreendimento. Além disso, o processo de

licenciamento do Porto do Açu foi deliberado pelo órgão ambiental do Rio de Janeiro, o

Instituto Estadual do Ambiente (INEA). Santos & Zucarelli analisam que essa

fragmentação teve como objetivo “diminuir as exigências jurídico administrativas

relativas à avaliação dos impactos e à formação do juízo de viabilidade ambiental do

empreendimento; subsumir ou ocultar efeitos conjuntos, conexos ou transfronteiriços”

(ZUCARELLI & SANTOS, 2016, p. 101).

16 O fracionamento da LI em duas fases (I e II) foi uma das grandes irregularidades do processo. O

procedimento, não previsto pelas normativas que legislam sobre o licenciamento ambiental, foi uma

manobra que permitiu com que as condicionantes cumpridas fossem atreladas a Fase I, enquanto as

descumpridas a Fase II, dessa forma, possibilitou-se o prosseguimento das atividades de implantação das

estruturas sem que fossem resolvidas as medidas relacionadas ao universo dos atingidos (BECKER &

PEREIRA, 2011)

2006

•Início das prospecções

2008

•LP "Step 1"

2009

•LI Fase 1 "Step 1"

2010

•LI Fase 2 "Step 1"

2014

•LO "Step 1"

2015

•LP + LI "Step 2"

2016

•LO "Step 2"

2018

•Janeiro: LI + LP "Step 3"

•Dezembro: LO "Step 3"

Figura 3- Linha do tempo Licenciamento do empreendimento Minas-Rio

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

68

Ainda, considerando apenas a cava da mina, o projeto já passou por mais duas

fases, a Fase II – Otimização da Cava da Mina e Fase III Expansão da cava da mina, com

LO’s expedidas em outubro de 2016 e dezembro de 2018, respectivamente.17

3.2 O SER OU NÃO ATINGIDO: QUESTÕES FUNDIÁRIAS E

DENÚNCIAS RECORRENTES

Os conflitos resultantes dos processos de aquisição fundiária por grandes

empreendimentos podem ser analisados a partir de diferentes prismas. Nesse trabalho, o

recorte se dará a partir da exposição e análise de como o tema foi tratado no licenciamento

ambiental do empreendimento Minas-Rio e os seus efeitos sobre as comunidades

localizadas nas áreas contíguas às estruturas localizadas em Conceição do Mato Dentro,

Alvorada de Minas e Dom Joaquim. Apesar de o tema ter sido alvo de diversos debates,

sejam em esferas públicas e privadas, dentro desse próprio contexto, permanecem as

práticas violadoras de direitos e se acentuam as condições de vulnerabilidadade das

comunidades que permanecem sem respostas às suas demandas. Para tanto, é necessário

que se tome como ponto de partida a própria definição de atingido, uma vez que ela

permeia todas as discussões relativas à questão fundiária do processo.

De acordo com Vainer (2003), a concepção do termo atingido, apesar de ser

comumente apresentada em documentos e relatórios técnicos a partir de um viés

econômico-financeiro, não é uma noção nem meramente técnica, nem estritamente

econômica. Sua definição, resultado de disputas, está relacionada, sobretudo, ao

reconhecimento e legitimação de direitos e a quem eles resguardam.

(...) estabelecer que determinado grupo social, família ou indivíduo

é, ou foi atingido por determinado empreendimento significa

reconhecer como legítimo – e, em alguns casos, como legal – seu

direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação

ou reparação não pecuniária. Isto explica que a abrangência do

conceito seja, ela mesma, objeto de disputa. (VAINER, 2003, p.2)

Nesse sentido, é prática comum nos processos de licenciamento ambiental

brasileiros, que o entendimento da categoria atingido se delimite a partir de uma análise

do custo-benefício dos empreendimento, tendendo a reduzir ao máximo as populações a

17 A barragem de rejeitos, até a data da defesa desta dissertação, ainda não possuía Licença de Operação,

compondo mais uma estratégia de fragmentação do processo, considerando o contexto complexo de

licenciamento de barragens após os crimes de Mariana (2015) e Brumadinho (2019).

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

69

se enquadrarem no termo, para que, como exposto por Vainer (s.d.), se reduzam os casos

de ressarcimento e indenização e, consequentemente, os gastos do empreendedor.

Segundo Leroy & Acselrad (2011), a definição de atingido:

(...) nasce de um cálculo do custo-benefício da obra, em que os

custos com compensações não devem ultrapassar os ganhos

econômicos gerados com a implementação do projeto.

Considerando-se, portanto, que os atingidos são definidos em

função do menor custo possível, observa-se uma tendência a

minimizar a dimensão dos impactos e consequentemente o número

de pessoas atingidas (LEROY & ACSELRAD, 2011, p. 27).

Um exemplo concreto desse entendimento pode ser observado nos Estudos de

Impacto Ambiental (EIA/RIMA’s), nos quais, não raro são considerados atingidos apenas

os moradores que se encontram em áreas convergentes às estruturas físicas dos

empreendimentos, ou seja, as propriedades cuja aquisição são necessárias para a sua

implantação do que Vainer (2003) descreve como uma abordagem territorial-

patrimonialista. No caso do Minas-Rio, a estratégia se revela, especialmente, na definição

de Área Diretamente Afetada (ADA), apresentada pelo EIA/RIMA:

Considerou-se como área diretamente afetada, a porção de terra que

será utilizada pelo empreendimento, para a consolidação dos

diversos atributos que o caracterizam, tais como as minas de

explotação de minério-de-ferro, a planta de beneficiamento, a

barragem de rejeitos, a pilha de estéril e o sistema viário a ser

utilizado pelo mesmo. A área diretamente afetada representa,

atualmente, uma dimensão físico-espacial e um conjunto de

elementos, atributos e processos antrópicos que nelas se

inscrevem ou ocorrem. (BRANDT MEIO AMBIENTE, 2007,

p.110, grifo meu)

Ou seja, a abordagem territorial-patrimonialista, revelada pelo entendimento de

atingido a partir da dimensão físico-espacial e a restrição aos processos que apenas nele

se apresentam, se transforma em uma estratégia política clara de desconstrução e de

desconsideração de direitos. A definição da ADA e todas as lacunas presentes no EIA

caminham para criação de mecanismos de desapropriação e de desresponsabilização do

empreendedor, principalmente a partir do não reconhecimento das comunidades que

cotidianamente tem que conviver com os efeitos das atividades da mineradora.

No caso do empreendimento Minas-Rio, as disputas em torno do termo remontam

às primeiras reuniões para discussão da LP do projeto e perpassam todo o processo de

licenciamento. Nas instâncias deliberativas, as denúncias em relação ao caráter

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

70

reducionista dos estudos de impacto ambiental foram pauta de diversas reuniões, onde

foram explicitados as práticas violadoras da empresa em relação às questões fundiárias,

tais como os processos expropriatórios, a falta de parâmetros para o reassentamento, a

impossibilidade de manutenção dos modos de vida e reprodução das comunidades que

não são consideradas atingidas, assim como o impedimento do direito de ir e vir. Milanez

(2012), ressalta, ainda, que a apropriação do conceito de atingidos pela mineração é um

processo em construção, cuja noção inclui diferentes dimensões tais como:

• Atingidos territorialmente: grupos que são deslocados de um

território específico devido à implantação de uma mina; sejam eles

proprietários com título, populações tradicionais ou mesmo

agricultores posseiros;

• Atingidos economicamente: indivíduos que, apesar de não serem

deslocados, sofrem pela interrupção do acesso a áreas produtivas ou

a recursos de subsistência. Entre eles, podem estar comunidades

extrativas que deixam de ter acesso à floresta, pescadores cuja pesca

diminui devido à mudança na qualidade da água, ou ainda

trabalhadores que perderam o emprego devido à mudança da

dinâmica econômica após abertura (ou fechamento) da mina.

• Atingidos por subprojetos: pessoas que foram prejudicadas na

implantação de infraestrutura ou projetos de apoio à operação das

minas, tais como minerodutos, rodovias, ferrovias, portos (...), etc.

• Atingidos socialmente: aqueles que sofreram devido ao aumento

de preço (de terras, moradia, alimentos etc) após o início da

instalação da mina. Inclui ainda as pessoas expostas a situações de

risco – tais como prostituição, uso de drogas, e violência – criadas

depois da chegada dos novos trabalhadores.

• Atingidos ambientalmente: pessoas que passam por processos de

perda de qualidade de vida, devido a mudanças ambientais

decorrentes da atividade mineral. Tais mudanças podem incluir

poluição atmosférica, contaminação hídrica, poluição sonora, ou

mesmo modificação da paisagem.

(MILANEZ, 2012, p. 40-41)

Dessa forma, perceber os efeitos de um entendimento econômico da categoria

atingido requer a compreensão das especificidades presentes nas zonas rurais da região

de Conceição do Mato Dentro e, sobretudo, como o não reconhecimento dos efeitos do

projeto sobre o modo de vida dessas comunidades acabam por anular suas condições de

existência.

A região é caracterizada por uma antiga ocupação que remonta à crise da

mineração colonial e o estabelecimento de um campesinato livre, afrodescendente, nas

regiões de antiga atividade mineradora. Os lavradores e lavradoras, descendentes desse

processo, se organizam hoje através da cultura de subsistência de diversos alimentos, tais

como mandioca, milho, feijão e hortaliças em regimes de meia ou de terça ou em terras

de herança familiar no que Carvalhosa (2016) define como “movimentos de roça”. Esse

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

71

processo de ocupação também influenciou na constituição de diversos regimes de acesso,

uso e posse da terra, tais como as terras de herança, terras próprias, terras cedidas e as

posses que se caracterizam por regimes fluídos no tempo e no espaço, conjugando formas

privas e comuns de acesso ao território (CARVALHOSA, 2016).

Nesses espaços se conjugam formas de apropriação privada, onde estão

localizadas as terras de plantio, criação e a casa, à espaços de uso comum, regulados

familiar ou coletivamente, tais como os rios e as áreas de extração de lenha. Algumas

dessas comunidades, tais como Mumbuca e Água Santa eram compostas por núcleos

familiares negros que remontam a um passado distante, de tempos próximos à escravidão

(SANTOS, 2009). As terras no bolo não possuem documentos, o que, considerando a

lógica da propriedade privada, abriu espaço para adoção de estratégias de aquisição que

envolveram práticas de violência e expropriação, desconhecendo as formas tradicionais

de apropriação do território, típicos casos de extrahección.

as estratégias para sua aquisição envolveram um forte assédio aos

herdeiros, que eram abordados separadamente e pressionados a

vender seus direitos, sob o argumento da inexorabilidade da obra.

Processos extremamente conflituosos, violentos e desagregadores

foram desencadeados pelo método de negociação da empresa, que

favorecia ou aprofundava desacordos entre herdeiros (SANTOS,

2009, p. 48-49)

Ainda segundo os relatórios, destaca-se a valorização dos quintais que, localizados

ao redor das moradas, é onde se cultivava grande variedade de frutíferas, hortas e

pequenas lavouras. A produção nesses espaços era dividida, ainda, com a criação de

pequenos animais e rebanhos, que produziam os recursos para a produção de leite e

queijo, voltados tanto para a manutenção interna das famílias quanto para a venda do

excedente, comercializados, sobretudo, no Mercado Municipal de Conceição do Mato

Dentro. Todos esses aspectos foram sistematicamente silenciados ao longo do processo

de licenciamento ambiental do Minas-Rio, em que perpetuou o não reconhecimento dos

atingidos bem como dos efeitos cotidianos do empreendimento sobre suas vidas.

Considerando a complexidade das diversas violações vivenciadas pelos últimos

onze anos, a opção metodológica de análise do processo de licenciamento será a

concentração nos aspectos fundiários e nas práticas da empresa para aquisição de terras.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

72

3.3 A QUESTÃO FUNDIÁRIA NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL

DO EMPREENDIMENTO

De início, faz-se necessário passarmos mais profundamente pelo histórico de

licenciamento do empreendimento Minas-Rio para que possamos compreender como foi

tratada a questão fundiária no processo. Contudo, parte fundamental desse entendimento

é o fato de que muitas das áreas destinadas à implementação do projeto foram adquiridas

antes do início do licenciamento ambiental através de um empresa denominada Borba

Gato Agropastoril S.A. Segundo relatos dos moradores, entre os anos de 2006 e 2007,

antes mesmo que fosse divulgada a chegada da mineradora na região, um representante

da então subsidiária da MXX, Borba Gato Agropastoril, sondou os moradores da região

e adquiriu propriedades sob o pretexto da criação de cavalos e, mais tarde, para uma

possível plantação de eucaliptos. Assim como no contexto do bandeirante homenageado

pelo nome da empresa, a violência das frentes de expansão que dizimou índios nas

bandeiras de Borba Gato18 se fez refletir nos processos de aquisição fundiária conduzidos

pela MXX e perpetuados pela Anglo American após aquisição do projeto, em 2008.

18 Borba Gato foi um bandeirante paulista à frente de uma das maiores expedições em busca de ouro e

pedras preciosas junto ao sogro, Fernão Dias. Sua função era comandar as tropas de frente, que abriam os

caminhos e preparavam os espaços para a chegada do grupo principal. Disponível em:

<https://www.ebiografia.com/borba_gato/>.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

73

Figura 4- Instrumento Particular de Promessa de Compra e venda da Fazenda Passa

Sete

Fonte: Ofício AFB-EXT 243-2009

É importante ressaltar que, nesse momento, a relação entre a MXX e a empresa

era desconhecida pelos moradores. Como consta no documento acima, a empresa sequer

detinha CNPJ registrado no momento da aquisição das primeiras propriedades. De acordo

com Santos & Milanez (2015) a estratégia colocava em prática a gestão de risco potencial

de resistência à venda das propriedades e, também, um possível aumento dos custos de

aquisição ao empreendedor. Após a aquisição, a Borba Gato S.A. repassava as

propriedades, através de contratos de comodato, à Anglo American.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

74

Figura 5- Contrato Particular de Comodato de Imóvel Rural firmado entre a empresa

Borba Gato Agropastoril e a Anglo Ferrous Minas-Rio

Fonte: Ofício AFB-EXT 243-2009

Uma vez reconhecida, pelos moradores, a relação entre as duas empresas, criou-

se uma sensação de insegurança e falta de transparência em relação às práticas do

empreendedor que se aprofundaram conforme era maior a presença da empresa na região.

O processo, ainda anterior às discussões da viabilidade do projeto, foram responsáveis

pela fragilização de famílias e laços comunitários, má remuneração dos territórios, bem

como não reconhecimento de direitos de posse e/ou herança. Essas estratégias

comprometeram profunda e irreparavelmente o modo de vida dos moradores e, sobretudo,

cerceamento dos direitos que viriam a ser adquiridos através do Plano de Negociação

Fundiária exigido no licenciamento, já que os contratos de compra e venda, à época, não

atrelavam nenhuma obrigação ao empreendedor. A comunidade Buriti, por exemplo, foi

completamente adquirida à margem do processo de licenciamento, sendo sua existência,

sequer citada nos estudos de impacto ambiental (DIVERSUS, 2011).

No trabalho de campo foi possível colher vários depoimentos,

alguns dramáticos que mostram a situação difícil em que se

encontram vários dos primeiros proprietários induzidos a alienarem

suas terras. Ressalte-se que a negociação se deu em termos bastante

aquém do Programa de Negociação Fundiária, mesmo as ocorridas

no decorrer de 2010. Acrescente-se que vários destes antigos

proprietários denunciam terem sido alvo de negociações sob forte

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

75

pressão psicológica e alguns relatam terem sido enganados uma vez

que venderam suas propriedades em um contexto em que o

comprador (notadamente a Borba Gato Empreendimentos),

afirmava estar adquirindo terras para a formação de uma fazenda

criatório de cavalos e não para um empreendimento minerário. Foi

possível, por exemplo, localizar o caso de uma família que no

período de um ano as terras valorizaram mais de 500% resultando

em claro prejuízo ao ex-proprietário que não só desconhecia a real

finalidade da negociação como também a condição pecuniária da

mesma obedecia outra realidade. (DIVERSUS, 2011, p.209)

Outra prática comum, nesse momento, foram as desapropriações vias declaração

de utilidade pública em favor da Anglo American, como denunciado pela Comissão de

Atingidos em representação ao Ministério Público Federal, em 2012.

Para garantir os investimentos e a implantação desse projeto, os

governos estaduais e federal tomaram várias medidas e criaram uma

série de incentivos fiscais. No caso de Minas Gerais, declarou-se de

utilidade pública para desapropriação, em favor da empresa Anglo

Ferrous Minas-Rio Mineração S.A., as faixas de terras necessárias

à construção das instalações complementares ao empreendimento

mineroduto Minas-Rio e à implantação das minas de minério de

ferro e da usina de beneficiamento, localizadas nos municípios de

Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas respectivamente.

Desapropriou também 752 propriedades nos 25 municípios por

onde passará o mineroduto. Para instalação das obras e demais

atividades de infraestrutura, decretou serem de utilidade pública as

áreas para intervenção e supressão de vegetação primária ou

secundária, em qualquer estágio de regeneração, localizadas no

Bioma Mata Atlântica, áreas de preservação permanente ou em

outros espaços especialmente protegidos (REPRESENTAÇÃO

MPF, 2012 p. 03)

Segundo o Artigo 59 do Código de Mineração: “Ficam sujeitas a servidões de solo

e subsolo, para os fins de pesquisa ou lavra, não só a propriedade onde se localiza a jazida,

como as limítrofes.” A instituição de servidão minerária é tida como de interesse público

uma vez que atua como um mecanismo de viabilização de uma atividade classificada

como de utilidade pública. Dessa forma, considerando o princípio da utilidade pública,

marco fundamental do Direito Administrativo, o interesse público se sobrepõe ao

interesse individual, não restando aos “superficiários” alternativa que não a expropriação.

Após a desapropriação, as terras eram cercadas e os moradores impedidos de

transitar pelos locais que costumeiramente circulavam, comprometendo o acesso aos

vizinhos e, principalmente, às fontes de água. Dentre as denúncias feitas pelos moradores,

ainda se destacam as medições de terras sem o conhecimento dos proprietários, a

circulação nas propriedades sem licença e/ou autorização de acesso, abertura de caminhos

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

76

e cercas para passagem de veículo e maquinaria e a remoção e/ou implantação de mata-

burros, porteiras e de outras estruturas, reverberando em duas situações igualmente

graves: os moradores que foram desapropriados de seus territórios sem seguridade

mínima e os que permaneceram nos locais sem as condições de reprodução social

(SANTOS, 2009).

Nesse período, foi formalizado o pedido de Licença Prévia do empreendimento,

em setembro de 2007. Ao mesmo tempo, frente aos diversos desrespeitos sociais e

ambientais que já se figuravam na região, foi criado pelos moradores um fórum de

discussão denominado Fórum de Desenvolvimento Sustentável de Conceição do Mato

Dentro (Fórum CMD) que, através de documentos e manifestações, expunham o cenário

violento presente na região, antes mesmo das discussões em relação ao juízo de

viabilidade do complexo.

Com o início das reuniões na URC Jequitinhonha, em outubro de 2010, graves

questionamentos foram feitos em relação ao EIA/RIMA do empreendimento,

principalmente a não apresentação de um universo de atingidos. O Parecer Único

apresentado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustável

(SISEMA) reiterou questões como a falta de informações em relação à reestruturação

fundiária via reassentamento, a perda e comprometimento de patrimônio e capacidade

produtiva, rompimento de vínculos, tradições e laços familiares, resultantes da atuação

da empresa e a ausência de informações em relação às especificidades da região bem

como divergências quanto ao universo de atingidos .

A área é ocupada por estabelecimentos rurais situados

principalmente em propriedades pequenas e médias, algumas delas

organizadas em comunidades, como a da Água Santa, com 26

famílias, e a da Ferrugem, com 12 famílias. Contudo, a equipe do

SISEMA ainda não conhece o quantitativo preciso do total de

propriedades integrantes da ADA, uma vez que as informações

complementares ao EIA/RIMA referentes a esse dado divergem

entre si (PU SISEMA, 2008, p. 38, grifo meu)

O EIA não trazia um diagnóstico e um cadastro do universo de moradores e

comunidades a serem atingidas pelo empreendimento tampouco um estudo aprofundado

sobre a ocorrência de comunidades tradicionais presentes na região. De acordo com

Santos & Zucarelli (2014) essa se demonstra uma "caracterização restritiva e

homogeneizadora da realidade socioambiental impactada", tornando o universo

sociocultural vazio e camuflando os reais efeitos do empreendimento sobre a região. Tal

como já mencionado, o caráter territorial-patrimonialista (VAINER, 2003) do estudo, só

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

77

reconheceu duas comunidades: Mumbuca/Água Santa e Ferrugem, as duas que se

encontravam em áreas coincidentes às estruturas físicas do empreendimento.

Segundo o Parecer Único (PU) Nº001/2008 do SISEMA, as duas comunidades se

enquadram na definição de comunidades negras rurais com características tradicionais, o

que exigiria do empreendedor, parâmetros específicos para negociação e reassentamento,

informação não abarcada pelo EIA. Outra questão de grande importância relacionada ao

documento se deve ao caráter das descrições da região presentes no documento:

A instalação de um empreendimento de grande porte em uma região

com baixa atividade econômica, caracterizada por um PIB pequeno

no qual se destaca a participação do setor agropecuário e do setor

de comércio e serviços, ambos caracterizados por baixo nível

tecnológico, incita um processo de comunicação difuso no qual o

nível elevado de desinformação provoca temores e expectativas

muitas vezes infundadas. A desinformação sobre como se dará a

negociação para aquisição, parcial ou integral, das terras pode gerar

um estado de animosidade dos superficiários para com o

empreendedor, já que esses podem ter expectativas muito elevadas

quanto aos valores a serem pagos por suas terras, assim como,

podem crer que receberão valores abaixo do que consideram justo.

Em ambos casos cria-se um elemento complicador para o processo

de negociação. Ademais, a insegurança gerada pode ser classificada

como um distúrbio social. (BRANDT MEIO AMBIENTE, 2007,

p.589)

Assim como revelado por Moura (1988) sobre o perfil que se quer construir sobre

o Vale do Jequitinhonha, a descrição do lugar é feita de forma negativa, ressaltando a

baixa dinamicidade dos setores econômicos presentes na região, a baixa renda, a

tradicionalidade como fator preponderante, o desemprego e outros atributos que, sem a

crítica às especificidades dos modos de vida da região, a descrevem como uma região “de

pobreza absoluta e de estagnação secular” e abrem caminho para o discurso de

desenvolvimento trazido por uma grande empresa como a mineradora, descaracterizando

completamente a região. O PU do SISEMA (2008) destaca a ausência da contabilização

das perdas de produção dos moradores, como as áreas de lavoura, produção de queijo,

farinha e mandioca e o fato de que, embora não tenham sido consideradas significativas

para as economias municipais, são fonte de subsistência e excedente para as famílias

locais.

A despeito das inúmeras irregularidades apontadas, a LP foi concedida em

dezembro de 2008, sem que fossem realizados estudos de áreas disponíveis para um

possível reassentamento das comunidades atingidas, sem um cadastro de atingidos, sejam

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

78

eles proprietários, meeiros, posseiros ou agregados. Apesar das considerações

relacionadas ao subdimensionamento dos efeitos do empreendimento, realizados no

EIA/RIMA e reconhecidos pela própria SUPRAM, as questões foram postergadas para a

fase subsequente do licenciamento e foram consideradas não impeditivas à viabilidade

socioambiental do projeto.

Esses procedimentos se enquadram no que Zhouri, Laschefski & Paiva (2005)

classificam como o paradigma da adequação ambiental, ou seja, os interesses das grandes

empresas prevalecem sob os danos socioambientais vivenciados pelos atingidos sob a

chancela de uma estrutura institucional democrática. Dessa forma, as comunidades locais,

são usurpadas de seus territórios e/ou das suas condições de existência, ao mesmo tempo

em que são marginalizadas dos processos decisórios, enquanto as etapas procedimentais

continuam em andamento.

As tentativas de minimização das lacunas se desdobraram em condicionantes,

estratégia largamente utilizada durante o licenciamento para que não s paralisasse o

processo, pelo menos quatro delas diretamente relacionadas às questões fundiárias

(condicionantes nº 45, 46, 55 e 7719), com foco para a condicionante de número 45:

Apresentar versão revisada e definitiva do total de propriedades

rurais a serem impactadas – total e parcialmente – em associação

com a localização das estruturas do empreendimento para a

exploração das serras Sapo/ Ferrugem (cava, pilha estéril, barragem

de rejeitos, usina industrial, canteiro de obras, alojamentos, sistema

de captação e adução de água nova, subestação de energia, medida

compensatória). A listagem final deverá conter, no mínimo, para

cada propriedade: nome do proprietário, condição do produtor

(proprietário, posseiro, parceiro, arrendatário); benfeitorias

reprodutivas e não-reprodutivas; área total e área atingida; número

de famílias e população residente; atividades econômicas; mão-de-

obra empregada (PU SISEMA, 2008, p.138)

As inconsistências presentes na autorização da LP mobilizaram os atingidos,

ambientalistas e demais membros do Fórum CMD a realizarem diversas denúncias que

se converteram em um pedido de liminar de suspensão da licença, elaborado pelo MPE.

A liminar foi suspensa, um dia após sua concessão, através de um pedido da Secretaria

Estadual de Meio Ambiente (MAPA DOS CONFLITOS, 2018). Em março de 2010 a

empresa apresenta seu Plano de Controle Ambiental, obrigatório para o pleito da LI,

documento que abarca o Plano de Negociação Fundiária da empresa. Entre as

19 As referidas condicionantes encontram-se nos anexos do presente trabalho.

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

79

informações, destacam-se os dados de 32 propriedades adquiridas pelo empreendedor

antes do início do processo de licenciamento ambiental, e pesquisados no intuito de

elaboração do plano, com o comprometimento do cadastramento das famílias atingidas,

bem como a consideração de informações básicas como a necessidade de assessoria para

o reassentamento, as condições específicas de categorias como meeiros, posseiros e

agregados, além de condições específicas para as comunidades de Mumbuca/Água Santa

e Ferrugem, onde foram contabilizados um total de 26 famílias na primeira comunidade

e 12 na segunda, respectivamente.

Na sequência, um ano após a LP, a mineradora entrou com o pleito da LI. Essa

nova fase foi marcada pela fragmentação da licença em duas fases: LI Fase 1 e LI Fase 2,

medida não prevista pela legislação ambiental, um caso claro de alegalidade do processo

(GUDYNAS, 2015). As discussões da 37ª reunião da URC Jequitinhonha se

concentraram na discussão da legalidade do desmembramento da licença em duas fases,

mais uma vez, concretizando o paradigma da adequação ambiental (ZHOURI,

LASCHEFSKI & PAIVA, 2005) e nas discussões sobre os parâmetros de reassentamento

dadas as inadequações do Plano de Negociação Fundiária apresentado pela empresa.

O Parecer Único nº 002/2009, levantou questionamentos quanto às contradições

estabelecidas pelo PNF apresentado pela empresa e o fato da conveniência da Anglo

American no reconhecimento dos atingidos conforme seu próprio cronograma. Segundo

a empresa, a maior parte das propriedades da cava da fase 1 já teriam sido adquiridas e

para a fase 1 da LI seriam afetadas 16 propriedades, das quais, apenas 5 a serem

adquiridas. O pedido de vistas de conselheiros adiou a decisão para a reunião subsequente.

Foi apresentado novo Programa de Negociação Fundiária, em

08/10/2009, onde consta a relação de 32 propriedades já adquiridas

pelo empreendedor, sendo todas compradas totalmente, não

havendo área remanescente. Duas delas pertencentes à comunidade

de Ferrugem, que deverá ser reassentada. Como alternativa o

empreendedor propõe a aquisição dessas duas propriedades na

primeira fase de instalação, quando haverá apenas o resgate de flora,

não sendo necessário que os moradores mudem de suas residências,

propõe ainda o remanejamento desses proprietários juntamente com

os demais moradores da Comunidade. No entanto, há contradição

nas informações nos documentos apresentados. Na página 8 do

documento de resposta às informações complementares (AFB-

EXT: 244/2009), o empreendedor afirma que a Comunidade de

Ferrugem não será mais atingida pela pilha de estéril, não sendo

mais considerada ADA e seu reassentamento poderá ocorrer

“oportunamente (...) diante de eventuais incômodos causados

pela proximidade com as atividades do empreendimento” (PU

SISEMA, 2009, p.25)

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

80

Nesse contexto, a partir da demanda dos atingidos e de ações da própria Secretaria

Estadual de Meio Ambiente, na 38ª reunião da URC Jequitinhonha importantes mudanças

foram feitas em relação à questão fundiária e os conflitos decorrentes da atuação da

empresa nas comunidades atingidas. A maior delas foi a exigência, materializada em

forma de condicionante, da reformulação do PNF apresentado da empresa dadas as

particularidades das famílias atingidas.

O novo PNF deveria considerar, no mínimo, as medidas estipuladas pelo Termo

de Ajustamento de Conduta (TAC) da Usina Hidrelétrica de Irapé 20para o reassentamento

das famílias atingidas. A medida, contudo, na prática, se apresenta como mais um

mecanismo para o prosseguimento das licenças e desresponsabilização da empresa.

Para tanto, também se tornou imperativo a apresentação de um cadastro de

atingidos que possibilitasse ao órgão identificar, de fato, quem seriam os atingidos pelo

empreendimento. A LI Fase I foi, então, concedida em 17 de dezembro de 2009, com

destaque para as condicionantes 54, 65,68, 69 21e, principalmente a condicionante 91, que

tratam da questão fundiária. A condicionante 91 previa uma revisão do PNF a partir dos

parâmetros estabelecidos pelo TAC da UHE Irapé:

Condicionante 91: Aprovada como condicionante as diretrizes

gerais de reassentamento, determinadas pelo Secretário de Estado

de Meio Ambiente, Dr. José Carlos de Carvalho: A prioridade para

a reconstituição dos direitos é o reassentamento; A indenização

monetária, portanto, é instrumento secundário em relação

ao reassentamento, e só poderia ser ativado após a conclusão das

negociações do reassentamento; O prazo para conclusão das

negociações do reassentamento é março de 2010 e para a

implantação do reassentamento o prazo é até julho 2010; O

processo de reassentamento, em termos de área, infraestrutura,

viabilidade agrícola e demais direitos sociais e produtivos atenderá

no mínimo, às diretrizes aprovadas pelo Copam para o

Reassentamento na UHE Irapé; O empreendedor deverá

fornecer o cadastro das famílias atingidas até 10/01/2010; As

negociações com as famílias atingidas obrigatoriamente contarão

com a participação ativa das famílias; A Supram Jequitinhonha

deverá acompanhar as negociações; Todas as questões pertinentes

aos direitos socioambientais, produtores e de Reassentamento das

famílias atingidas, obrigatoriamente, deverão ser objeto de

avaliação e aprovação pela URC JEQ, sob parecer da SUPRAM.

20 O TAC de Irapé foi um acordo firmado entre a Empresa Companhia Energética de Minas Gerais

(CEMIG), a Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM) e as comunidades atingidas pelo

empreendimento, através da coordenação do MPE. O termo, considerado referência em conquistas de

direitos, aborda de modo enfático a necessidade de consideração dos aspectos sociais e ambientais das

comunidades atingidas pela hidrelétrica, incorporando em suas análises, por exemplo, os modos de vida e

reprodução das comunidades, as dinâmicas territoriais, os saberes tradicionais e a importância do

reassentamento coletivo para minimizar a perda das relações sociais entre as famílias. 21 As referidas condicionantes encontram-se nos anexos do presente trabalho.

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

81

(ATA DA 38ª REUNIÃO DA URC JEQUITINHONHA, 2009,

grifo meu).

Dessa forma, conforme o cronograma estabelecido pela Condicionante 91 da

concessão da LI Fase 1, estava exigido a realização de um cadastro de famílias atingidas.

No dia 08 de janeiro de 2010, o empreendedor, por meio do ofício AFB-EXT 004/2010,

apresentou um primeiro cadastro, que apresentava 12 núcleos familiares de prosseiros de

4 propriedades já adquiridas pelo empreendedor, 3 delas já reasseantadas; 22 núcleos

familiares de 14 propriedades não adquiridas na área da barragem e 13 núcleos familiares

de 13 propriedades também não adquiridas na comunidade Ferrugem. Cadastro

considerado incompleto pela Comissão de Atingidos. No dia 19 de março de 2010 foi

realizada uma reunião na Comunidade Mumbuca, com a presença de moradores das

comunidades Água Santa, Água Quente e Ferrugem, assim como representantes do

SISEMA, do MPF e da FETAEMG. Na ocasião, foram apresentados os parâmetros de

reassentamento estabelecidos pelo TAC de Irapé e discutida a urgência da apresentação

de um cadastro de atingidos, instrumento fundamental para o início das negociações. Um

dos elementos fundamentais da reunião foi o contato com a realidade vivenciada pelos

moradores que, dada a discrepância entre os licenciamentos da estrutura, já conviviam

com as atividades de implementação do mineroduto, que já havia obtido a licença de

instalação pelo IBAMA.

Dessa forma, devido ao descompasso entre os processos e a dificuldade em se

encaminhar o reassentamento das comunidades, os moradores eram obrigados a conviver

com o assoreamento de rios e secamento de nascentes, poeira, barulho, trânsito de

máquinas, equipamentos e trabalhadores, entre diversos outros efeitos da instalação da

estrutura. À época, os moradores solicitaram a paralisação das atividades até que o

processo de negociação se concretizasse, visto que o panorama da região e as condições

degradantes aos quais estavam submetidos funcionavam como fatores de pressão para a

saída dos moradores da localidade e, dessa forma, comprometedores das negociações

(ATA DA 42º REUNIÃO DA URC JEQUITINHONHA, 2010).

É a implementação dessa mínima garantia às comunidades afetadas

que se encontra sob sério risco, caso a situação verificada ao longo

da vistoria perdure durante as negociações: as famílias vem sendo

paulatinamente inviabilizadas em seus locais de moradia, há meses,

sem que nenhuma medida, por parte de qualquer órgão fiscalizador,

seja do Estado, seja da União, tenha sido efetivada, para impedir

que tal situação se perpetuasse; no atual momento, já desesperadas

com sua situação, essas famílias começam a manifestar urgência em

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

82

abandonarem seus lugares, negociando seus patrimônios sem a

tranquilidade necessária para assegurarem que suas condições de

vida sejam recriadas em outro lugar. (INFORMAÇÃO TÉCNICA

Nº 05/2010 apud Diversus, 2011, p. 203)

Na 42ª reunião da URC Jequitinhonha, realizada em maio de 2010, foi apresentado

pelo empreendedor um documento com novas diretrizes para a elaboração do cadastro de

atingidos, contudo, a Comissão de Atingidos denunciou que o cadastro enviado pela

empresa não estava completo e que houve muita dificuldade na interpretação e análise

dos parâmetros colocados pelo empreendedor. Os atingidos questionavam,

principalmente, o fato de o critério espacial, utilizado pela empresa para a definição do

ser ou não atingido, negligenciava os efeitos do empreendimento sobre as demais

comunidades que não se enquadravam no conceito de ADA por eles estabelecido. Um

dos resultados dos enfrentamentos estabelecidos nas reuniões foi a manobra de mais um

recorte restritivo do universo de atingidos: o atingido emergencial, que englobaria as

comunidades de Mumbuca/Água Santa e Ferrugem frente à outras comunidades, aos

quais seria assegurado um processo de “negociação” mais rápida considerada as

condições do mineroduto, aprofundando o processo de fragmentação das famílias. A

distinção entre atingidos e atingidos emergenciais é uma manobra não contida no TAC

de Irapé, o que pode ser considerado como mais uma alegalidade do processo.

Nesse caso, a “emergência” parece ter sempre estado a favor do

empreendimento. As situações emergenciais como ficaram expostas

nos depoimentos de vários entrevistados são vistas como um

empecilho ao desenvolvimento do projeto e, portanto, são sempre

representadas nos discursos de transferências das famílias como

ônus e não como conseqüência de um empreendimento que

modifica a paisagem social, cultural, ambiental e econômica da

região. Até mesmo entre as famílias consideradas “emergenciais”

foi criada uma nova subdivisão quando da reunião da SUPRAM de

Diamantina de dezembro de 2010 que aprovou a Licença de

Instalação – Fase 2 (a licença de instalação também fora

fragmentada em duas) e determinou o reassentamento de quatro

famílias em um prazo inferior aos demais. Dentre estas quatro

famílias, uma era de Passa Sete e nem fazia parte das famílias de

Ferrugem e Mumbuca/Água Santa, anteriormente indicadas como

emergenciais. (DIVERSUS, 2011, p. 171-172).

Entre a 42ª e a 43ª Reunião da URC Jequitinhonha foi apresentado, pelo

empreendedor um ofício (AFB-EXT: 091/2010, posteriormente substituído pelo AFB

EXT: 102/2010) com uma lista de moradores considerado em situação emergencial,

documento encaminhado para a Comissão de Atingidos. A Comissão de Atingidos

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

83

realizou acréscimos ao documento que foi protocolado através do ofício AFB-EXT

118/2010, contudo, os questionamentos quanto à restrição do universo de atingidos

apenas às comunidades de Mumbuca/Água Santa e Ferrugem, permaneceram. Na 43ª

Reunião da URC Jequitinhonha, considerando o impasse em torno do conceito de

atingido entre os moradores e o empreendedor, para além da validação dos cadastros de

Mumbuca e Ferrugem22, ficou decidido que:

Que seja custeado pela empreendedora Anglo Ferrous, um

laudo confeccionado por empresa independente, de notório saber

técnico, a ser indicada pela Comissão de Atingidos, relativamente à

caracterização da ADA-área diretamente afetada e AID-Área de

influência direta. Prazos: 20 dias para a indicação de 03 empresas,

pela Comissão de Atingidos, devendo a indicação ser protocolada

no escritório da Anglo Ferrous em Conceição do Mato Dentro. 20

dias para a contratação da empresa indicada. Na reunião da URC

subsequente à contratação, apresentação da metodologia (ATA DA

43ª REUNIÃO DA URC JEQUITINHONHA, 2010)

A empresa escolhida pela Comissão de Atingidos foi a Diversus Consultores

Associados LTDA, cuja metodologia foi apresentada e aprovada na 45ª Reunião da URC,

em 12 de agosto de 2010. Paralelamente, foi estabelecido um processo de negociação,

realizado pela empresa, pelo MPE, Defensoria Pública Estadual, Pastoral da Terra e

SUPRAM, que envolvia a assinatura de um “Termo de Acordo para Validação do

Cadastro Patrimonial e Definição, pelo Atingido, da Modalidade de Negociação” entre

os moradores e o empreendedor onde a validação do cadastro de atingidos era um pré-

requisito e onde, também, era escolhido uma modalidade de remanejamento entre as

opções apresentadas pelo empreendedor.

É importante notar que, um dos importantes questionamentos feitos pela

Comissão de Atingidos, estava ligada ao fato de que os moradores eram livres para

escolher os modelos de negociação, porém, desconheciam as vantagens e desvantagens

de cada opção, bem como a ausência de participação do MPF, um dos principais

questionadores do PNF ao longo do processo de negociação (DIVERSUS, 2011). A

alegação se dava, sobretudo, pelo PNF privilegiar o reassentamento individual através de

maiores vantagens monetárias. Por fim, é de se questionar o propósito da contratação de

22 Nesse processo, houve ainda mais uma fragmentação, a criação de mais uma categoria de atingido: o

atingido emergencial pela água, o caso da comunidade Água Quente. Segundo o empreendedor, os efeitos

do empreendimento pela comunidade eram passíveis de serem resolvidos por medidas mitigatórias, não

sendo necessário, portanto, a sua inclusão à categoria emergencial e tão pouco seu enquadramento no PNF.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

84

um estudo, ainda não finalizado, que tinha como objetivo um diagnóstico sobre as

comunidades, incluindo as emergenciais, ao mesmo tempo em que ocorreram

negociações paralelas com as famílias da ADA.

No mesmo período, em agosto de 2010, foi entregue a versão final do novo PNF

elaborado pela Anglo American. O programa propunha três linhas de ação: a negociação

com proprietários, a negociação com não-proprietários e a negociação com comunidades

rurais que, consideradas suas especificidades, obtiveram linhas de negociação específicas.

Os dois modelos propostos pelo novo PNF da empresa, para as comunidades em situação

de vulnerabilidade23 foram:

Reassentamento coletivo: Neste modelo, cada chefe de família

recebe 20 hectares de terra, sendo que cada filho casado ou maior

de idade, residente na propriedade, recebe adicionalmente 10

hectares. Serão fornecidos ainda 20 hectares para o total dos filhos

herdeiros não residentes na propriedade. Será construída ainda uma

casa em consenso com a Comissão. Por fim serão fornecidos água,

luz, cesta básica, sementes e assistência técnica, por pelo menos

dois anos, até que a família se restabeleça. (...) Valores monetários

+ remanejamento individual: Neste modelo será pago o valor

pecuniário correspondente à propriedade e suas benfeitorias,

sendo fornecido 20 ha de terra para o chefe de família e 10 ha para

cada filho residente, maior de 18 anos ou casado. Para os herdeiros

não residentes será fornecido um total de 20 ha. O proprietário

receberá o valor integral em dinheiro do patrimônio avaliado no

cadastro patrimonial, tendo o direito de retirar o

material construtivo da antiga propriedade. Será construída uma

casa de 62,8 m², podendo aumentar em até 40 m², sendo fornecidos,

água, energia elétrica, sementes e assistência técnica por 3 anos e

cesta básica por um ano. O acompanhamento de assistente social se

dará por pelo menos um ano. Está previsto o desenvolvimento de

projetos arquitetônicos específicos para as famílias com portadores

de necessidades especiais e idosos. (GEONATURA, PNF, 2010, p.

13-14)

O Programa de Negociação Fundiária concentra a maior parte das suas linhas de

ação e seus parâmetros estabelecidos em torno dos dois modelos acima referenciados,

desconsiderando, dessa forma, as demais comunidades atingidas e reiterando o

entendimento das propostas de “negociação” se restringirem apenas à ADA do

empreendimento, indo de encontro com as premissas do TAC de Irapé, onde uma das

dimensões prevista era o reconhecimento de outras dimensões territoriais que não a posse.

23 A questão da compreensão do que a empresa definia e reconhecia como vulnerabilidade foi assunto

amplamente discutido durante as reuniões da URC Jequitinhonha, através de questionamentos dos próprios

atingidos e do representante do Ministério Público Estadual. Contudo, não existem respostas para os

critérios utilizados pela empresa para a definição dos quadros de vulneráveis ou não vulneráveis. O conceito

foi utilizado, dentro do PNF, sobretudo, para restringir o número de atingidos e cercear direitos.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

85

Será reconhecido o direito ao reassentamento a pessoas físicas ou

entidades familiares que, embora não atingidas diretamente pela

implantação do empreendimento, ficarão isoladas, seja devido à

remoção das famílias vizinhas – implicando desestruturação de

relações sociais, afetivas e produtivas – seja em razão da

desativação de serviços básicos hoje existentes (escolas, posto de

saúde, acessos, telefonia, dentre outros) (TAC DE IRAPÉ, 2002,

p.15).

Ou seja, o principal objetivo do novo PNF, a partir do TAC de Irapé, era que se

fossem pesados os efeitos do empreendimento para além do reconhecimento simples dado

pela relação estrutura do empreendimento vs comunidades localizadas nas áreas de

interesse do empreendedor, contudo, permaneceram as mesmas insuficiências do plano

anterior. Para, além disso, as “negociações” e os reassentamentos ocorreram de forma

individualizada e segmentada, agravando a fragmentação dos grupos e famílias.

Em 14 de outubro de 2010 foi aprovado o Cadastro Socioeconômico dos

Atingidos e o novo Programa de Negociação Fundiária. A decisão pela aprovação do

PNF, sem que existisse a definição do universo de atingidos, bem como a decisão pela

contratação de um diagnóstico aprofundado da ADA e AID, contraria os próprios

objetivos lógicos estabelecidos pelos conselheiros, já que, o Estudo da Diversus é quem

deveria analisar o cumprimento do PNF e quais famílias deveriam ser contempladas.

Em 9 de dezembro de 2010 foi concedida a LI Fase II do empreendimento, sem

que fossem consideradas as condicionantes estabelecidas pela LP e tão pouco foram

cumpridos os prazos por elas estabelecidos, assim como das condicionantes da LI Fase I.

Mais uma vez, foram estabelecidas dezenas de condicionantes, das quais, destacamos as

de número 58, 60, 61, 62, 64, 66, 67,70 e 7224, relacionadas ao PNF. Ao mesmo tempo,

os moradores conviviam com o aprofundamento dos efeitos do empreendimento e

agravamento das condições de permanência das famílias, considerando as obras das

estruturas da mina e do mineroduto, situação que, uma vez mais, pressionava os

moradores a saírem do local.

No dia 10 de agosto de 2011 a empresa foi autuada por descumprir e cumprir fora

do prazo condicionantes aprovadas na LI Fase II, dentre elas, as condicionantes

60,61,64,66 e 67, relativas ao PNF. Quase um ano depois, em outubro de 2012, foi pedido

um recurso à SUPRAM relativo a autuação, sendo o pedido negado pelos conselheiros e

pelo setor jurídico da SUPRAM, na 68º Reunião da URC Jequitinhonha. Também, em

24 As referidas condicionantes encontram-se nos anexos do presente trabalho.

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

86

agosto de 2011, foi protocolado junto à SUPRAM o estudo da empresa Diversus

intitulado “Diagnóstico Socioeconômico da Área Diretamente Afetada e da Área de

Influência Direta do empreendimento Anglo Ferrous Minas-Rio Mineração S.A. Lavra a

Céu Aberto com Tratamento a Úmido Minério de Ferro - Conceição do Mato Dentro,

Alvorada de Minas e Dom Joaquim/MG”.

O diagnóstico apresentou, para além do levantamento de diversos efeitos do

empreendimento sobre os modos de vida e reprodução das comunidades no entorno do

empreendimento, um universo de mais de quatrocentas famílias, distribuídas em vinte e

duas comunidades, conjunto muito mais abrangente que as duas comunidades levantadas

consideradas no EIA/RIMA. Todavia, o estudo demorou cerca de dois anos para ser

pautado pelos conselheiros da URC Jequitinhonha, a despeito das inúmeras intervenções

questionando a protelação de sua análise ao longo das reuniões realizadas neste período.

Figura 6- Mapa das comunidades atingidas pelo projeto Minas-Rio de acordo com o

Relatório da Diversus (2011)

Fonte: Diagnóstico Socioeconômico da Área Diretamente Afetada e da Área de Influência Direta

do empreendimento Anglo Ferrous Minas-Rio Mineração S.A. Lavra a Céu Aberto com Tratamento a

Úmido Minério de Ferro - Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Dom Joaquim/MG

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

87

No ano de 2012 foi coordenada pelo MPE uma Audiência Pública onde os

principais questionamentos levantados pelos moradores eram relativos ao

reconhecimento de atingidos, os contratos de compra e venda de terras, o não

cumprimento das cláusulas do PNF, a invasão de terras e a retirada, sem autorização, de

porteiras, cercas e outros equipamentos utilizados para a delimitação de propriedades

(JORNAL ESTADO DE MINAS, 2012). Este momento foi marcado pela sensação da

retomada da atenção do poder público em relação à situação vivenciada na região, sendo

visto pelos moradores como uma “saída da situação de abandono”, colocando o

Ministério Público em uma situação de grande estima.25 Um dos principais

desdobramentos da audiência, para além de três recomendações legais emitidas de forma

conjunta pelo MPF, MPE e Defensoria Pública que exigiam o fim do ciclo de violações

sociais e ambientais, foi a instituição da Rede de Acompanhamento Socioambiental

(REASA). A rede, dirigida pela Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social

(CIMOS)26, possuía representantes dos atingidos, empreendedor, representantes do poder

público e movimentos sociais e tinha como objetivo promover soluções para instaurados

desde a chegada do empreendimento, sobretudo, no âmbito do licenciamento ambiental.

A proposta da rede era a criação de espaços de reuniões mensais, nas comunidades

afetadas pelo empreendimento, para que se fossem discutidos os efeitos não

contemplados no licenciamento. No total, foram realizadas treze reuniões, entre maio de

2012 e agosto de 2013, incluindo duas audiências públicas. As duas Audiências Públicas

foram realizadas na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), espaço onde os

moradores noticiaram as aquisições de terras ao largo do processo de licenciamento, os

efeitos das práticas da empresa sob os laços familiares e as relações entre as comunidades

(PRATES, 2014).

Após quase dois anos de cobranças dos atingidos e de alguns dos conselheiros,

quanto à indefinição do universo de atingidos, as 73ª, 75ª e 76ª Reuniões da URC

Jequitinhonha 27retomaram a pauta do estudo levantado pela empresa de consultoria

Diversus. Na ocasião, foram apresentados aos conselheiros o Diagnóstico da ADA e AID

25 Contudo, as falsas esperanças propiciadas pelas repetidas reuniões, falsas expectativas e promessas, ao

longo dos anos, se converteram em descrédito dos moradores quanto à eficácia das reuniões, medidas e

ações que não se consolidavam em garantias de direitos e/ou mudança das condições na região

26 A CIMOS é um órgão auxiliar do Ministério Público Estadual que tem como objetivo mobilizar

movimentos sociais, organizações não governamentais (ONGs) e grupos em situação de vulnerabilidade 27 As reuniões foram realizadas nos dias 09/05/2013, 12/07/2013 e 24/07/2013, respectivamente.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

88

bem como um adendo, denominado “Síntese do Diagnóstico Socioeconômico da Área

Diretamente Afetada (ADA) e Área de Influência Direta (AID) da Mina da Anglo Ferrous

Minas-Rio Mineração S/A” realizado pela mesma empresa e protocolado em 2012, em

resposta à uma solicitação da SEMAD e da Anglo American. No conteúdo do adendo, é

possível perceber as pressões tanto da empresa, quanto da SEMAD, em relação ao

universo de atingidos estabelecidos pelo estudo, que incorporou todos os moradores da

ADA e AID do empreendimento, bem como tentativas de intervenção nos resultados.

No início de fevereiro de 2012 a Diversus foi convidada para uma

reunião com membros da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e

Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) e da empresa Anglo

American. Esta reunião ocorreu dia 10 de fevereiro, na Sala 04 do

3º andar do Prédio Minas da Cidade Administrativa de Minas Gerais

(...) Naquela oportunidade tanto os representantes da SEMAD

quanto da Anglo American informaram que tinham dúvidas quanto

ao resultado final do trabalho desenvolvido pela Diversus em

atendimento à determinação do Conselho Estadual de Política

Ambiental da Unidade Regional Colegiada do Jequitinhonha,

publicada no Diário Oficial de 15 de junho de 2010. O principal

questionamento a este respeito seria a falta de definição de quem

está na ADA e quem está na AID. A Diversus se manifestou

contrária a este entendimento não só por considerar que o trabalho

não tinha este objetivo como, de resto, por entender que as

informações a este respeito efetivamente já se encontram

disponíveis através dos resultados do trabalho realizado. Não

havendo concordância a este respeito, a Diversus se comprometeu

a elaborar uma “Síntese do Diagnóstico Socioeconômico da Área

Diretamente Afetada (ADA) e Área de Influência Direta (AID) da

Mina da Anglo Ferrous Minas-Rio Mineração S/A”, a ser

protocolada em todas as instâncias em que o trabalho original foi

protocolado. (DIVERSUS, 2012)

Com o descontentamento da expansão do conceito de atingidos para toda a ADA

e AID através do relatório da Diversus, a Anglo American contratou um novo estudo em

contraposição ao diagnóstico, realizado por outra consultoria, a Ferreira Rocha Gestão de

Projetos Sustentáveis. Segundo o Parecer Único nº. 1317868/2013 o Relatório Ferreira

Rocha tinha como objetivo classificar os impactos levantados pela própria Diversos em

“impactos reais” ou “impactos supostos”, definindo a ADA, AID e AII do

empreendimento, assim como identificar os impactos que seriam ou não mitigáveis e, a

partir disso, chegar a uma lista de atingidos diretos. A categoria “impacto suposto”,

desconhecida na literatura especializada, é uma distorção conceitual utilizada com fins de

deslegitimação das narrativas e reivindicações dos atingidos (GESTA, 2014).

As reuniões 73ª, 75ª e 76ª foram caracterizadas pela falta de entendimento da

contratação de um novo estudo paralelo ao da Diversus, o questionamento na morosidade

para se pautar o primeiro estudo e se caberia ou não a apresentação do estudo da Ferreira

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

89

Rocha. Em razão da falta de entendimento quanto às questões, os processos foram

retirados de pauta. As 77ª e 78ª Reuniões da URC Jequitinhonha retomaram as discussões

sobre o estudo e ficou decidido que o estudo Ferreira Rocha só seria apresentado à

SUPRAM após uma apresentação para as comunidades.

Todavia, os dados contidos no documento foram utilizados para contrapor a

apresentação dos técnicos da Diversus bem como deslegitimar todo o processo de

discussão do universo de atingidos, uma vez que retomam as definições dadas pelo

empreendedor no EIA/RIMA. Segundo Parecer Único do Diagnóstico da Diversus:

A consultoria contratada pela Anglo American foi a Ferreira Rocha

Gestão de Projetos Sustentáveis, que realizou um trabalho

utilizando como base o Diagnóstico da Diversus, o EIA, bem como

as informações complementares e condicionantes impostas pela

URC. Neste sentido, considerando as estruturas já definidas e

alocadas e aprovadas para o empreendimento, entende-se que não

ocorreu alteração nos limites da ADA, considerando os impactos

apontados quanto a qualidade do ar, transporte, ruídos e vibrações,

recursos hídricos e serviços públicos. No que tange aos problemas

apontados no âmbito do Programa de Negociação Fundiária,

entende a equipe analista que referido programa visa atender

as famílias reassentadas inseridas na Área Diretamente Afetada, não

sendo objeto deste parecer, vez que a questão em discussão é a

caracterização da ADA e AID do empreendimento. (PU SEMAD,

2013, p. 31)

Ainda, a SUPRAM questionou o fato de que a caracterização socioeconômica

desenvolvida pela Diversus deveria entregar, clara e objetivamente, uma lista de famílias

que deveriam ser incluídas no PNF do empreendedor, o que, segundo os pareceres dos

conselheiros da URC, não foi realizado. Apesar das tentativas de explicação dos técnicos

da consultora ambiental, de que eles teriam sido contratados para realizar um diagnóstico

da ADA e AID do empreendimento, e que no estudo constariam todas as informações

solicitadas, assim como o entendimento dos consultores de que, todas as famílias

apresentadas no estudo sofrem os efeitos do empreendimento e, por isso, deveriam ser

considerados atingidos, ressalvando que isso não diz sobre o fato de reassentamento de

todas as comunidades. Dessa forma, a SUPRAM encomendou um novo trabalho,

complementar, no qual estivesse em seu conteúdo quais famílias deveriam ser assistidas

pelo PNF. As considerações sobre esse novo estudo e as discussões quanto aos atingidos

foram proteladas até setembro de 2014, quando foi pautada a LO do empreendimento.

Em 18 de setembro de 2014, na ocasião da 85ª Reunião da URC Jequitinhonha,

após anos de silenciamento sistemático e a partir da agudização dos quadros

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

90

socioambientais desde as operações de instalação do empreendimento, os atingidos

buscaram, de diversas formas, se fazerem ouvidos. As manifestações foram tantas, que o

presidente da mesa de conselheiros optou por encerrar a reunião sem que se fosse

discutida a pauta da Anglo American. Na tentativa de evitar a mesma situação, na reunião

seguinte, com claro propósito de desmobilização da população, a reunião foi transferida

para o ginásio poliesportivo da cidade de Diamantina. 28

A 86ª Reunião da URC Jequitinhonha, em 29 de setembro de 2014, 29apenas onze

dias após a reunião anterior foi qualificada, em suas mais de dez horas de extensão, pela

forte repressão policial, por graves questionamentos em relação à falta de definição do

universo de atingidos – Condicionante da LP -, e denúncias sobre as condições as quais

os moradores estavam submetidos, como a falta de água, poeira, barulho, temor da

barragem de rejeitos, quebra de vínculos familiares, perda de lavouras e animais, entre

diversos outros. Pauta recorrente foi tanto a condição insalubre dos que ficaram quanto

as péssimas condições dos reassentados, como pode ser demonstrado nas seguintes falas:

Quando foi falado essa questão de Condicionantes, o pessoal que

começou a ser tratado de primeira, esse processo já começou

viciado, já começou com mentira, porque antes da Anglo American,

a MMX, as primeiras propriedades que ela comprou não falaram

que era para Mineradora, falaram que era para fazer grandes

fazendas. Só que acontece, acabou e pessoal que vendeu, até hoje

não tem a documentação, então acaba que a regularização fundiária

não se deu de fato. Não tem documentação, boa parte não foi

engambelado, as famílias não foram consideradas, não foram

agrupadas; os herdeiros ou dependentes não foram considerados de

boa parte dessa galera e a classificação ficou subjetiva à Anglo, esse

processo está viciado. (ATA DA 86ª REUNIÃO URC

JEQUITINHONHA, 2014)

Eu morava na Comunidade de Água Santa, hoje eu moro na

Comunidade do Gondó. Na realidade é que a Maria Andressa está

falando, eu sinto triste de meus filhos chegarem e eles não puderam

dormir dentro de casa, porque a minha casa era de 12 cômodos lá

na Água Santa. Hoje eu moro numa casa de 04 cômodos, porque

são 02 quartos dormitórios, sala e uma copazinha, minha cozinha é

aberta. Então, eu sinto muito triste com isso, de eu fechar a porta e

meus filhos estarem do lado de fora dormindo e eu dentro de casa.

28 Uma minuciosa descrição da reunião pode ser encontrada no trabalho de conclusão de curso do

pesquisador Gabriel Ribeiro Filho, intitulado “Mineração e pessoas que fazem a diferença: uma pesquisa

exploratória sobre estratégias de negociação no contexto do licenciamento ambiental de complexo

minerário na Bacia do Rio Santo Antônio/MG”, defendido em 2015 na Universidade Federal de Minas

Gerais. 29 A 86ª Reunião da URC Jequitinhonha foi objeto de profunda análise do pesquisador Vinícius Villela

Penna, intitulado “A construção da legalidade no licenciamento ambiental do empreendimento Minas-Rio:

Estudo de caso da 86ª Reunião Ordinária da URC-Jequitinhonha”, defendido em 2016 na Universidade

Federal de Minas Gerais

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

91

E outra, eles não tiveram direito a nada, isso para mim traz muita

tristeza mesmo. Como o Dr. Felipe sabe o meu caso, o Dr. Marcelo,

o pessoal da Diversus, eles foram lá na minha casa na Água Santa,

viram o tamanho da minha casa, eles estão acompanhando nós

desde o início, que foi em 2008 que a gente negociou. Lá eu fazia

doce e na Comunidade eu não posso fazer, porque nem lugar eu

tenho para mexer com isso, porque meus negócios foram todos

feitos depressa, mandaram eu sair depressa porque eles precisam da

área lá para trabalhar. E nem um caminhão para favorecer a minha

mudança eles não forneceram, eu e meu esposo que tivemos que

pagar. (ATA DA 86ª REUNIÃO URC JEQUITINHONHA, 2014)

Tanto os atingidos, quando o Ministério Público, questionaram sobre o não

cumprimento de condicionantes e a complexidade que seria votar a licença, naquele

momento, sem que se conhecesse ou se reconhecesse, quem de fato eram os atingidos.

Para além disso, considerando a questão fundiária, cobraram respostas quanto à

flexibilização do PNF que, segundo próprio parecer do MP não cumpria com os

parâmetros estabelecidos no TAC de Irapé, bem como o fato da incoerência de se pautar

a LO do empreendimento sem que se considerasse o novo estudo da Diversus

encomendado pelo próprio órgão. Quando questionados sobre as trinta e duas famílias

que negociaram antes do início do processo de licenciamento, os técnicos da SUPRAM

responderam que, segundo estudos realizados pela própria Anglo, apenas sete famílias se

enquadrariam no definição de “vulneráveis” e, portanto, apenas essas seriam incluídas no

PNF e receberiam correções dos valores iniciais dos contratos de compra e venda. Dessa

forma, após seis anos desde a primeira licença do empreendimento e de seis anos de

violações contra os moradores, a LO foi concedida, sem uma lista de atingidos, exigência

presente nas condicionantes de todas as fases anteriores.

Dois meses depois, em novembro de 2014, a pauta da 89ª Reunião da URC

Jequitinhonha retomou as discussões do estudo da Diversus. Na ocasião, os técnicos da

consultoria independente apresentaram um novo relatório que constava uma atualização

dos efeitos do empreendimento sobre as comunidades, porém, apresentava uma lista de

atingidos infinitamente menor que o universo apresentado no primeiro diagnóstico.

O desalinho entre os dois estudos causou imensa confusão nos moradores que não

entendiam se seriam ou não considerados atingidos e solicitavam explicações para o fato

dos seus nomes e suas condições terem sido retirados pelo segundo estudo. Contestaram

os parâmetros de vulnerabilidade estabelecidos pela empresa e denunciaram as condições

dos reassentados e de famílias que, mesmo incluídas no PNF, não tiveram seus direitos

respeitados. Segundo relatório da Diversus de 2013, os parâmetros de vulnerabilidade

estabelecidos pelos estudos foram bastante discutíveis, segundo os técnicos da consultora:

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

92

(...) algumas pessoas que vivenciaram esse problema tiveram essa

situação revista e outras não, são famílias que em alguns casos

foram classificadas pelo empreendedor como não se encontrando

em vulnerabilidade social, mas, essa classificação ela é bastante

discutível, porque os critérios adotados fizeram que por exemplo a

Sra. Natalina, por exemplo, que é uma Sra. com mais de 80 anos

que vivia sozinha com uma filha com problemas mentais e um filho

com o mal de Parkinson ainda assim não fosse classificada como

vulnerável, vivendo numa área rural nessas condições e a

metodologia de classificação de vulnerabilidade do empreendedor

chegou à conclusão de que um núcleo familiar nesse tipo de situação

não era vulnerável. (ATA DA 89ª REUNIÃO URC

JEQUITINHONHA, 2014)

Através de uma nova estratégia estabelecida entre a empresa e o órgão

deliberativo, foram incluídas, através do estudo da Diversus, apenas oito famílias como

“elegíveis” para o reassentamento segundo o PNF. Conforme denúncia de uma atingida

transcrita em Ata da própria reunião, o “conselho de novo fará uma deliberação a respeito

de uma lista que é emergencial” (ATA DA 89ª REUNIÃO DA URC

JEQUITINHONHA).

Uma condição significativa dessa lista é que nela constavam importantes

lideranças locais que eram muito presentes nas reuniões e atuavam como mobilizadoras

das comunidades, movimento entendido, por parte dos atingidos, como uma tentativa de

silenciamento e de afastamento dos demais atingidos já que os colocavam em uma outra

posição frente aos que permaneciam sem reconhecimento. A inserção no PNF, nesse

sentido, colocou esses núcleos familiares em situação de constrangimento em relação aos

demais e atuou como mais mecanismo de fragmentação e ruptura entre os atingidos.

Ademais, foi levantado pelos moradores o fato de a Anglo American continuar com

práticas semelhantes à Borba Gato, através da aquisição de terras à margem do processo

de licenciamento ambiental, sobretudo nas comunidades de São Sebastião do Bom

Sucesso, Cabeceira do Turco e áreas limítrofes à cava, sem que sejam considerados

parâmetros mínimos de negociação. A prática de contratos fraudulentos, associados a

subsidiária, fizeram com que os atingidos dessem à Anglo a alcunha de “Anglo Gato”.

Vocês liberaram para colocar na L.P. doze quilômetros de cava e

estão aqui discutindo só cinco anos da cava, vocês vejam o tamanho

do problema pela frente que vai ser discutido aqui. E falando que a

Borba Gato acabou. Ela não acabou não, hoje é a própria Anglo que

está se passando pela Borba Gato, porque essas pessoas que estão

ao longo da cava, ela já está negociando livremente com elas e de

certa forma, de maneira fraudulenta, inclusive, com clausula que de

enganar pessoa, falando que ela não está, se pegarem vão DNPM e

olha o mesmo nome dessa pessoa que eles estão falando que não

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

93

tem interesse de minerar na terra dela, o nome dela está lá no

DNPM, se isso não for uma fraude não é mais nada, então, a Borba

Gato infelizmente continua. (ATA DA 89ª REUNIÃO DA URC

JEQUITINHONHA, 2014)

As 94ª e 96ª Reuniões da URC Jequitinhonha, realizadas um ano após a concessão

da LO do empreendimento, em setembro e outubro de 2015, respectivamente,

inauguraram uma nova etapa do empreendimento, o “Step 2 – Otimização da Mina do

Sapo”. Como se tratava de uma nova fase, a empresa teria que passar, novamente, pelo

licenciamento ambiental. Contudo, considerando a nova legislação ambiental do estado,

foi permitida a junção de duas etapas do processo, a LP e LI, em um novo modelo,

classificado por ambientalistas, como licenciamento express. Dessa forma, as duas

primeiras etapas foram pleiteadas concomitantemente.

Segundo Parecer Único da SUPRAM (2015), “apenas” dezesseis propriedades

seriam objeto de intervenção, sendo que onze delas já estariam incluídas na ADA e,

portanto, já eram de posse da empresa. As duas propriedades que não estariam em

processo de “negociação” com a empresa aguardavam decisão judicial de restituição de

posse dada a instituição de servidão minerária. Nas duas reuniões, os conselheiros foram

energicamente cobrados pelo cumprimento das condicionantes da LO antes que fossem

votadas novas licenças, inclusive das condições das oito famílias incluídas no PNF, já que

parte delas sequer tiveram suas situações resolvidas. Contudo, o entendimento da maioria

conselheiros, presentes na fala do próprio presidente da mesa, era de que esse seria um

“novo” processo e, portanto, não caberia discutir as condicionantes do processo anterior.

A LO do “Step 2” foi discutida nas 99ª e 100ª Reuniões da URC Jequitinhonha.

Mais uma vez, em reuniões extensas que beiraram dez horas, no mesmo ginásio

poliesportivo onde foi concedida a primeira LO do empreendimento. As condições, muito

semelhantes: forte aparato policial, presença maciça de trabalhadores da empresa,

distanciamento entre conselheiros e presentes e as reiteradas denúncias de violações e não

cumprimento de condicionantes. O coordenador técnico da SUPRAM esclareceu que, das

oito famílias reconhecidas pelo relatório da Diversus, nenhuma foi considerada em

situação de vulnerabilidade. Seis famílias já teriam feito acordos com a empresa e

optaram pela indenização em dinheiro, duas permaneciam sem aceitar as propostas da

mineradora. A posição da SUPRAM foi de não analisar esses casos.

O Parecer Único da SUPRAM chega a assumir o descumprimento de

condicionantes da LI + LP, dentre elas, a condicionante 29, que estabelecia a proibição

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

94

da intervenção nas áreas de demanda judicial. Segundo o próprio parecer, o

descumprimento das condicionantes não “inviabiliza ambientalmente o prosseguimento

da análise do licenciamento em discussão”. Quando indagados em relação ao

reconhecimento de atingidos da etapa anterior e dos atingidos dessa nova fase, a resposta

dada pelos técnicos da SUPRAM foi a seguinte:

Na nossa análise, não houve a necessidade, não há que se falarem

em reassentamento ou em se buscar novos atingidos por esse

processo de otimização. Deixar bem claro isso. Nós não estamos

falando aqui nem do impacto do Step 1, que nós temos que discutir,

nem do impacto do Step 3, que nós ainda vamos fazer análise. Nós

estamos falando, exclusivamente, do Step 2. Então, não há no Step

2 que se falar da percepção de novos impactados que necessitam ser

reassentados no âmbito do PNF, para esse processo. (ATA DA 100ª

REUNIÃO URC JEQUITINHONHA, 2016)

Em 2016, como já mencionado, o então governador do estado, Fernando Pimentel,

sancionou a Lei 21.972/2016 que dispõe sobre o SISEMA e que, entre diversas alterações,

reestruturou as unidades administrativas do órgão. Nesse novo contexto, a análise da

etapa de expansão da cava da mina - “Step 3”, diferentemente dos anteriores, foi julgada

pela Câmara de Atividades Minerárias (CMI) do órgão ambiental mineiro. O conflito

entre atingidos e empresa, após anos de negligência, silenciamento, acúmulo de vivencia

dos efeitos do empreendimento, bem como a ineficácia de ações e fiscalização do estado,

teve como resposta uma maior articulação e ação por parte dos atingidos. Uma das

estratégias, adotadas durante o processo, foi o cancelamento da Audiência Pública

marcada para o dia 11 de abril de 2017, através de uma Ação Popular que reivindicava o

direito à informação, dada a não disponibilização dos relatórios ambientais por parte da

empresa. A medida, não esperada pelo empreendedor, provocou a reação em forma da

criação de um ambiente hostil aos cinco proponentes da Ação, através da divulgação de

seus nomes em um jornal local e sua associação com a paralização da empresa e,

consequentemente, uma possível demissão de funcionários, fazendo com que cinco

atingidos se tornassem vítimas de diversas ameaças30.

Ainda em 2017, após uma audiência realizada na comunidade de São José do

Jassém, devido à intensa articulação dos moradores localizados abaixo da barragem de

rejeitos do empreendimento principalmente após o rompimento da barragem de rejeitos

30 O clima de ameaças e hostilidade se intensificou de tal forma que os cinco proponentes da Ação Popular

tiveram que ser incluídos no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, da Secretaria

Nacional de Cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, para que fosse garantida a sua segurança.

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

95

de Fundão, em Mariana, foi expedida uma Recomendação Ministerial Conjunta, assinada

pelos MPF e MPE na qual se sugere o reassentamento, através do PNF, das comunidades

localizadas na zona de auto salvamento do empreendimento, a saber, as comunidades do

Jassém, Passa Sete e Água Quente.31

O “atraso” no cronograma do empreendedor teve como um de seus

desdobramentos a votação, no mesmo ano, concomitantemente, as licenças prévia e de

instalação, em janeiro; e a licença de operação em dezembro de 2018, nas 20ª e 28ª

Reuniões da CMI. Segundo Parecer Único relativo à LP + LI, a totalidade das

propriedades localizadas na ADA do empreendimento já estariam em análise ou

pertenceriam à Anglo American, sendo que vinte e seis propriedades já teriam sido

adquiridas, segundo o PNF, dez estariam em processo de “negociação” e sete ainda não

teriam sido alvo de “negociações”. Novamente, o critério de “vulnerabilidade” foi

utilizado para estabelecer famílias que seriam priorizadas no atendimento das ações por

parte da empresa. Segundo o documento da SEMAD:

Em todas as situações, a classificação como não vulnerável teve

como fatores determinantes, sobretudo, o acesso a níveis de renda

satisfatórios para o sustento do núcleo familiar – mesmo naqueles

casos em que os níveis de escolaridade dos membros responsáveis

eram mais baixos – o acesso facilitado a serviços e equipamentos

públicos – sobretudo de saúde – a ausência de indivíduos com

doenças crônicas ou deficiências graves e a facilidade de locomoção

– quase sempre por se possuir veículos ou motos. (PU SEMAD,

2018, p. 143)

Com o pretexto de resolução dos conflitos em relação a implantação e operação

do empreendimento, em todas as suas fases, a empresa apresentou um Programa de

Negociação Opcional (PNO)32para as comunidades de São Sebastião do Bom Sucesso,

Turco, Cabeceira do Turco, Beco e, posteriormente, Água Quente e Passa Sete. A lógica

de mitigação de impactos e a aceitação das condicionantes, bem como no PNO, implicam

em um cenário de aprofundamento e de novas violências sobre as comunidades, alterando

profunda e permanentemente as condições de existência dos atingidos e configurando um

quadro de deslocamento in situ (ZHOURI et al, 2013). A concessão da LO do Step 3 do

31 O contexto específico das comunidades localizadas na zona de auto salvamento do empreendimento

Minas-Rio foi discutido na dissertação de mestrado “Efeitos Derrame da mineração, violências cotidianas

e resistências em Conceição do Mato Dentro-MG.”, defendida pela mestra Clarissa Godinho Prates no

âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Ambiente e Território, UFMG. 32 O Programa de Negociação Opcional será melhor analisado no seguinte tópico

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

96

empreendimento, até a data de defesa do presente trabalho, foi a última reunião em que

foi pautado o caso da Anglo American nas reuniões da CMI.

O presente tópico teve como objetivo tentar refletir sobre alguns problemas

técnicos, políticos e metodológicos do licenciamento do empreendimento Minas-Rio,

com o recorte de como foi compreendida a questão fundiária no processo e os embates

entorno do conceito de atingido. Contudo, sabemos da limitação de tentar colocar, em um

curto espaço as práticas cotidianas da empresa e alguns dos seus efeitos nos modos de

ser, fazer e viver das comunidades que foram sistematicamente “massacradas” ao longo

desse processo. É importante ressaltar que, considerando os relatos e as reflexões, é

possível perceber que todas as falhas e lacunas metodológicas apontadas fazem parte de

uma trama de arranjos que perpassam a desconsideração e o subdimensionamento de

efeitos do empreendimento, a fim de desresponsabilizar o empreendedor e permitir a

continuidade das licenças vis-à-vis os direitos e danos sobre as comunidades.

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

97

CAPÍTULO 4

“Eu já fui arrancado de vários lugares. ARRANCADO. E ainda resta

um pedacinho e para eu sair de lá eu vou ter que sair arrancado

também.”

Planos de Negociação Fundiária, narrativas de extrahección e resistência

O capítulo anterior buscou identificar e criticar como foi tratada a questão

fundiária ao longo dos dez anos de licenciamento do empreendimento Minas-Rio. A partir

dos levantamentos documentais foi possível observar uma série de violações que

reverberam sobre as próprias condições de existência dos atingidos. Dessa forma, uma

escolha metodológica do presente trabalho é demonstrar, também, como o silenciamento

sistêmico, ao longo de todo o processo, foi materializado no lugar. Buscaremos, portanto,

através de duas narrativas, demonstrar como as estratégias de aquisição de territórios

operadas pela empresa se utilizaram de estratégias que demonstram que a “negociação”

foi e é, na verdade, um ato compulsório e violento.

Os dois “agentes-chave” entrevistados são nascidos e criados na zona rural do

município de Conceição do Mato Dentro e, a partir de sua trajetória, podem ser

enquadrados na categoria que Brandão (2007, p.21) define como informantes

especialistas. Os informantes especialistas são aqueles que não só “produzem dados

populares com muita precisão como também são aqueles que entendem profundamente

da coisa”. Dessa forma, ambos enfrentaram diferentes práticas cotidianas da empresa com

fins de aquisição de territórios e estiveram engajados no movimento de resistência dos

atingidos, possuindo assim, grande bagagem quanto ao modus operandi da empresa e os

efeitos sobre os seus modos de vida e reprodução.

Ainda que consciente que os casos não abarcam a totalidade dos efeitos da

empresa na região e que os relatos, não necessariamente, se repitam em outras famílias,

são dois casos representativos que conseguem englobar diferentes denúncias recorrentes

entre os atingidos, entre elas: as estratégias violadoras de aquisição de territórios e o

desrespeito pelos modos de vida territorializados; a fragilização dos laços familiares e da

relação entre as comunidades e, consequentemente, a perda de vizinhos e costumes; as

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

98

violações de propriedades e do direito de ir e vir; as estratégias de intimidação do

empreendedor e, por fim; a desmobilização produtiva e os transtornos ocasionados pela

instalação e operação do empreendimento.

4.1 ATUAIS CONTORNOS DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL: O

PLANO DE NEGOCIAÇÃO OPCIONAL

A recomendação ministerial conjunta, expedida em 2017 e que tratava do

reassentamento das três comunidades localizadas à jusante da barragem de rejeitos do

empreendimento Minas-Rio, estabelecia, também, que o processo de aquisição dos

territórios deveria ter como parâmetros o PNF, discutido no licenciamento ambiental.

Além disso, as “negociações” deveriam ser intermediadas por uma assessoria técnica

independente, multidisciplinar, da escolha das comunidades atingidas e custeada pelo

empreendedor e que pudesse ser capaz de fiscalizar o cumprimento do PNF ao mesmo

tempo em que fizesse um diagnóstico das famílias contempladas.

A medida de cumprimento da recomendação, após a concessão da licença

conjunta da LP e LI do “Step 3”, em um primeiro momento, foi articulação de medidas

através de Comitê de Convivência, que atuava desde 2017, firmado entre a mineradora e

alguns moradores das comunidades de São Sebastião do Bom Sucesso (Sapo), Turco,

Cabeceira do Turco e Beco. O objetivo do programa seria a melhoria do relacionamento

entre a mineradora e as comunidades através de um espaço de “diálogo” onde seriam

debatidas medidas mitigadoras para os danos sofridos ao longo do processo bem como

esclarecer questões relativas aos impactos da instalação e operação do “Step 3”. Contudo,

assim como o PNF segundo o TAC de Irapé, as fragmentações e a criação de categorias

como “atingidos emergenciais”, atuou como uma ferramenta para que o processo de

licenciamento ambiental seguisse sem embargos. Segundo a Anglo American, o objetivo

geral do programa é:

Dar continuidade à gestão participativa para discussão sobre a

convivência das comunidades de São Sebastião do Bom Sucesso,

Beco, Cabeceira do Turco e Turco e estendê-la às comunidades de

Água Quente e Passa Sete. O principal tema de debate e constante

construção participativa é a qualidade de vida e seus

desdobramentos na rotina dessas comunidades. O cerne da

realização do Programa é a criação e constante atuação de Comitês

de Convivência, em que os integrantes apresentam demandas e ,

junto de representantes da Anglo American, buscam

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

99

encaminhamentos consensados que podem ser em relação ao

Sistema Minas-Rio, seus impactos e ações de controle e mitigação,

ou destinados a outras instituições que atuam nos territórios, como,

por exemplo, o poder público local. (PROGRAMA DE

CONVIVÊNCIA, 2017, p. 10)

Contudo, os Comitês de Convivência se restringiram às comunidades que estão

mais próximas, geograficamente, das áreas de expansão das estruturas do

empreendimento, recortando mais uma vez o universo de atingidos conforme os

interesses da própria empresa, já que as quatro comunidades foram reconhecidas no EIA

do “Step 3” como as que seria “mais afetadas” pela nova etapa do empreendimento. Além

disso, muitas são as denúncias do modelo estabelecido para a configuração das relações

dentro dos comitês. De acordo com alguns moradores, foram escolhidas “lideranças” que

coadunam com as práticas da empresa e que, muitas vezes, não representam as

necessidades de todos os atingidos da comunidade, permanecendo esses, isolados do

processo.

Segundo a empresa, um dos resultados das trocas entre a mineradora e dos

representantes das quatro comunidades foi o levantamento da insatisfação dos moradores

em permanecer vivenciando, cotidianamente, os efeitos da mineração sobre suas vidas e,

portanto, a demanda por alternativas de realocação. Para isso, com auxílio da consultoria

Ferreira Rocha – Gestão de Projetos Sustentáveis (a mesma consultoria que realizou o

contra estudo do Relatório da Diversus), a Anglo American, junto com os representantes

do Comitê de Convivência, formulou um Plano de Negociação Opcional. O objetivo

geral do programa, segundo relatório apresentado à SUPRAM, é “sistematizar a aplicação

do conjunto de premissas, metodologia e critérios para o processo de negociação

opcional, respeitando as decisões construídas em processo participativo” (PLANO DE

NEGOCIAÇÃO OPCIONAL, 2017, p. 6). Na prática, a medida atua como uma

desconstrução do PNF e retrocede quanto aos direitos adquiridos pelos atingidos ao longo

do processo.

Ao enfatizar o caráter “participativo” do programa, o empreendedor busca

legitimar um processo que reafirma incorreções denunciadas desde a primeira LP.

Primeiro, porque permanece o recorte territorial da ADA; segundo porque é mais uma

manobra para flexibilizar direitos garantidos pelo próprio licenciamento que estabeleceu

que o processo de aquisição de territórios deveria assumir os parâmetros estabelecidos

pelo TAC de Irapé, através do PNF. Transformar o realocamento em algo “voluntário”,

além de desresponsabilizar o empreendedor, permite que todo e qualquer parâmetro possa

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

100

ser validado para a aquisição dos territórios, em condições de extrema assimetria e onde,

a falta de um estudo aprofundado sobre as condições socioeconômicas, aprofunda o

contexto de vulnerabilidade experenciado por essas famílias desde a chegada da empresa.

O PNO é, ainda, apresentado como uma medida de “favorecimento” aos atingidos

já que, segundo a lógica do empreendedor, este só seria obrigado a reassentar ou indenizar

os moradores localizados na ADA do empreendimento. A falsa aparência do programa

foi confrontada nas falas dos atingidos na 38ª Reunião da CMI:

(...) hoje nós estamos vendo aqui a tentativa da empresa de imputar

a essas pessoas um voluntarismo, a questão de opcional, como se

elas fossem merecedoras de benesses da empresa. De todas essas

pessoas. Eu não estou negando direito de ninguém aqui. O que nós

temos aqui são direitos e não são benesses, o que a empresa está

fazendo é cumprindo a obrigação dela, e não é obrigação social, é

obrigação decorrente do Código de Mineração, é obrigação

econômica decorrente do licenciamento e da legislação como um

todo. Então, não vamos confundir isso, não vamos confundir as

amputações, as destruições que a empresa está fazendo com

qualquer tipo de ação que ela é obrigada a fazer com benesses. E

nem isso pode ser considerado como voluntariado, como opcional,

é obrigação. Então, nós precisamos também de rever essas

terminologias para não colocar na cabeça das pessoas e tirar da

cabeça das pessoas também o juízo de valor que elas precisam ter.

Senão nós teremos mentes e terras ocas em Conceição do Mato

Dentro. (ATA DA 38ª REUNIÃO DA CMI, 2018)

Como podemos observar no relato, os atingidos possuem profunda reflexão sobre

o processo e compreendem, assim como analisam, as manobras utilizadas pela empresa

para seguir com o licenciamento conforme seu próprio cronograma. O entendimento de

que nenhum ato da empresa corresponde a medidas de “caridade” demonstra o descrédito

no empreendedor e a consciência de que nenhuma de suas ações ocorre sem que haja

danos para os moradores. Através do PNO, o Estado delega à Anglo American e as

comunidades, representadas no Comitê de Convivência, os parâmetros da compra e venda

dos territórios, o que vai de encontro com todas as discussões, que perduraram mais de

dez anos, sobre a efetivação e implementação do PNF, que deveria representar o

parâmetro mínimo a ser considerado. Uma vez deliberado o PNO abre-se brechas para

aquisições que não passam pelo crivo da SUPRAM ou por qualquer

fiscalização/regulamentação, retomando falhas que remontam à chegada da Borba Gato

Agropastoril na região. Ademais, a nova categoria “negociação voluntária”, escamoteia

o fato de que a adesão ao programa se deve, sobretudo, à falta de alternativa de ficar, já

que a intensificação dos efeitos do empreendimento foi responsável pela alteração

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

101

profunda as próprias condições de existência dessas comunidades, não um livre exercício

da vontade individual dos atingidos.

Nesse sentido, se destaca a situação das comunidades à jusante da barragem de

rejeitos do empreendimento que, após os desastres tecnológicos (ZHOURI et al, 2016)

de Fundão, em Mariana, no ano de 2015, e o de Brumadinho, em janeiro de 2018, tiveram

como única medida adotada pela empresa a sua inclusão no PNO. Se utilizando do temor

do rompimento da barragem e ao risco concreto a que são submetidos, as três

comunidades veem suas condições de “negociação” inviabilizadas pelo conhecimento da

empresa do risco de permanecer. Durante o trabalho de campo realizado para a construção

dessa dissertação, me foram denunciadas atividades nas comunidades em que “pessoas

de fora” estariam percorrendo o lugar pressionando os moradores a buscar a empresa e

aceitar o que fosse oferecido “antes que todos morressem com a boca cheia de lama”.

Eu estive na comunidade há uns dias, lá em Água Quente, Passa

Sete, Jassém, e vi vários depoimentos dizendo de como técnicas da

empresa, pessoas da empresa, vão de casa em casa pressionando as

pessoas, ameaçando, dizendo argumentos falsos, argumentos, por

exemplo, que fazem as pessoas terem medo dos impactos dos quais

vão ser vítimas se não aderirem àquela lógica de negociação

opcional daquele comitê de convivência. Enquanto a própria ordem,

a própria lei institucional, era no sentido de que houvesse assessoria

técnica para que os atingidos negociassem as suas condições de

reassentamento. A individualização das soluções é mais um fator de

fragilização das condições sociais e das condições ambientais, que,

por direito, deveriam ser reconhecidas também. (ATA DA 38ª

REUNIÃO DA CMI, 2018)

As atividades envolvendo ameaças e pressões sobre os moradores, sobretudo os

localizados à jusante da barragem de rejeitos, não foram noticiados apenas a mim, como

pode ser observado no relato acima. Durante uma reunião realizada na comunidade de

São José do Jássem, aproximadamente um mês após a concessão da L.O. do Step 3, a

presença de “pessoal” anunciando a necessidade de negociações rápidas devido ao risco

e o avanço de casos de moradores “negociando” seus terrenos se desdobrou em uma

exigência de moradores, representantes da Câmara Municipal de Conceição do Mato

Dentro e Alvorada de Minas, Ministério Público e SEMAD para que se fossem

investigadas as relações estabelecidas entre a Anglo American e o Defesa Civil dos dois

municípios. Também após essa reunião, até a apresentação deste trabalho, o MPE, através

da CIMOS, acompanhava a contratação de Assessoria Técnica Independente, escolhida

pelos atingidos, para atuar nas comunidades de São Sebastião do Bom Sucesso (Sapo),

Turco, Cabeceira do Turco e Beco e implementar o PNO. Contudo, como podermos

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

102

avaliar, o PNO atua como mais um mecanismo de exclusão e violência sobre os atingidos

que permearam todo o licenciamento e os processos de aquisição dos territórios.

Assim, considerando, como exposto, a complexidade do caso e, na tentativa de

aprofundar, sem que se almeje tratar o universo das violações vivenciadas pelos atingidos,

busquei algumas situações familiares capazes de exemplificar o contexto de extrahección

configurado em Conceição do Mato Dentro a fim de que se enriquecer, através de

narrativas, como todo o processo descrito nos tópicos anteriores se fizeram concretos na

vida e trajetória de dois agentes locais.

4.2 CARACTERIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS E DO LUGAR: A VIDA

ANTES DA CHEGADA DA EMPRESA

Os documentos produzidos, notadamente os EIA/Rima’s e relatórios enviados à

SUPRAM Jequitinhonha, bem como as práticas cotidianas da empresa, ao longo do

processo de licenciamento ambiental e dos seus efeitos sobre o lugar demonstram lacunas

e, por vezes, total desconsideração sobre os espaços de trabalho e de vida dos moradores

da região promovendo processos de extrahección nesses territórios assim como “a morte

de formas de ser, fazer e viver territorializadas” (ZHOURI & VALÊNCIO, 2014.

Conforme discutido ao longo do trabalho, uma característica comum na zona rural

de Conceição do Mato Dentro e adjacências é o que a literatura antropológica define como

terras de herdeiros, uma modalidade de uso da terra que define condições específicas

quanto ao modo de apropriação do território. De acordo com Almeida (1987), as terras

de herdeiros são aquelas em que os espólios permanecem indivisos, ou seja, casos em que

não se procede a formal de partilha por gerações e, por tanto, são desenvolvidas formas

próprias de utilização da terra e de sua manutenção no bojo da família. A principal forma

de aquisição de terra é, portanto, através do parentesco. Nesse sentido, a noção de terra

se expande para a noção de território. Ali é onde se estabelecem as casas, os quintais, os

vínculos de trabalho, lazer e os costumes, princípios que vão de encontro com o

entendimento da terra enquanto mercadoria, passível de negociação, sustentados tanto

pela empresa quanto pelo próprio Estado.

Woortmann (1990), a partir da etnografia do campesinato brasileiro, ao tratar da

ética camponesa enquanto constitutiva de uma “ordem moral”, e, portanto, a forma

diferenciada de perceber as relações entre os homens e as coisas, revela que, no caso

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

103

específico da terra, essa é muito mais que um objeto de trabalho é, também, o espaço

social da família, é um valor moral. Essa condição pode ser observada em diversas

passagens das entrevistas, como a seguinte:

Então, meu pai mesmo comprou, adquiriu e tinha o terreno dele lá.

Nós fomos todos criados lá, plantando, fazendo farinha, plantando

roça, mandiocal, horta, tudo, enfim. Criava muito porco, tinha muita

criação, só boi que a gente não tinha. Mas tinha cavalada, égua,

burro, tudo. E nesse meio de tempo, tinha também os porcos, que

tinha muito porco, criava muita galinha. Plantava muita mandioca

dentro desse terreno, que a gente fazia farinha pra vender e levava

até no cargueiro pro ponto, né? Pôr no ônibus pra trazer pra cidade

pra vender. E dessa farinha a gente comprava mantimento e o que

sobrava comprava uma roupa, um remédio. Era muito bonito, né? E

a gente, pra plantar, trocava o dia com as pessoas, um com o outro,

aí trabalhava um pro outro, outro pro outro, até plantar tudo. (D.

Luzia, sobre o território onde passou a infância)

Neste sentido, é importante ressaltar que o patrimônio extrapola a noção de

propriedade privada. A terra, não é avaliada pelo seu valor de troca, estabelecido pelos

valores do mercado englobante, e sim pelo valor de uso, sendo seu acesso e transmissão

regulados pelos valores morais constitutivos dessas comunidades, valores esses que

asseguram sua reprodução material, social e simbólica.

Notamos, ainda, que na fala de Luzia, não existe uma dissociação entre terra,

trabalho e família. Woortmann (1990) estabelece nestes três traços nucleantes específicos

a categoria “camponês”33. O autor marca o fato de que cada uma delas não existe sem a

outra, sendo impossível, portanto, nessas comunidades, se pensar a terra sem se pensar a

família e o trabalho, ou o trabalho sem se pensar a terra e a família. O grupo doméstico é,

assim, unidade de produção, consumo e fonte da mão de obra na terra, sendo o uso de

assalariados restrito a situações específicas e de caráter temporário. Falar da vida antes

da chegada da empresa é, portanto, falar sobre as plantações, sobre a vida na roça, o

quintal e o trabalho.

33 Queiroz (1976) define o camponês como “Um trabalhador rural cujo produto se destina

primordialmente ao sustento da própria família, podendo vender ou não o excedente da colheita, deduzida

a parte de aluguel da terra quando não é proprietário; devido ao destino da produção, ele é policultor. O

caráter essencial da definição de camponês é, pois, o destino dado ao produto, pois este governa todos os

outros elementos com ele correlatos. Assim, dificilmente cultivará grandes extensões de terra; por outro

lado, não sendo a colheita destinada a obtenção de lucro, não deve ela ultrapassar certo nível de gastos a

fim de não onerar a disponibilidade econômica familiar - de onde se empregar preferencialmente sistema

de cultivo e instrumentos rudimentares, e se utilizar a mão-de-obra familiar. De forma geral, o destino da

produção define a organização do trabalho no interior da família.” (Queiroz, 1976, p. 29-30).

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

104

Com essa herança que o meu avô deixou, nós tínhamos, todos os

irmãos...quando vendia lá, vendia de um irmão para o outro. Um

irmão vendia a parte para o outro. O meu pai vendeu a herança da

mãe dele pro meu tio, aí o outro comprava do outro irmão, o outro

comprava do outro, mas ficava tudo entre família. Mas a viúva do

meu avô vendeu para uma pessoa de fora, aí já começou a ter

divisão, fazer cerca. Divisão de cerca, não divisão demarcada. Mas

um fechava um pedaço, "ah, eu comprei aqui de fulano, vou fechar

um pedaço aqui, vou ficar de posse aqui". Aí nós continuamos, toda

a família. Usávamos o mato para tirar madeiras, usava as terras para

plantar, para colocar animais e lá era bem apropriado para criar égua

e burro. Toda vida eles criavam mais animal cavalar, égua, burro,

tinha as éguas com jumento para tropa de burro, porque naquela

época o burro era hoje os caminhões, os vagões de trem que vai hoje

daqui para o Rio de Janeiro (Sr. Joel, sobre as estratégias de

manutenção do território)

Já na fala de Joel podemos observar uma das estratégias de manutenção do

território pelos moradores da região: a migração de familiares e a venda apenas para

“família”. Essas estratégias contribuíam para que os terrenos de herança permanecessem

indivisos e no seio da própria família. Woortmann (1985), através da análise do

campesinato brasileiro, analisa a dimensão do parentesco enquanto princípio organizativo

fundamental para a reprodução social das condições de campesinidade. Segundo a autora,

a restrição da venda é um dos princípios fundamentais para a manutenção do território e

preservação do patrimônio coletivo, associando-se a restrição no número de filhos, a

migração, a exclusão de mulheres na herança enquanto estratégias que tem como objetivo

minimizar o parcelamento dos sítios, momento onde se privilegia a perpetuação do

patrimônio da família e não a reprodução social do indivíduo.

Ainda, de acordo com Woortmann (1985), a terra, enquanto patrimônio, é

transmitida a partir de regras definidas, seja pelas regras de matrimônio, descendência e

filiação, que visam minimizar a partilha do território e garantir as condições de

reprodução das famílias. O matrimônio entre diferentes grupos domésticos, ao longo do

tempo, constitui comunidades de parentesco com bases territoriais. “Sendo a terra “aquilo

que passa do pai para o filho” (sentido original do termo patrimônio), e não pertencendo

nem ao pai nem ao filho, mas ao todo expresso pela família, é o patrimônio que

materializa a honra da família” (K. WOORTMANN, 1990, p.62) traços que podem ser

observados na seguinte passagem da entrevista com Sr. Joel:

Eu vim de uma família que eu me considero uma família apegada,

de um vínculo de parentesco e inclusive de até parente casar com

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

105

primo, né, dessa mesma região, os familiares paternos e maternos.

(...) Nós somos uma família de oito irmãos e vivemos da plantação,

da cultura. Meu pai era peão, né? Ele amansava, domava burro

bravo e minha mãe era do lar e da plantação. Então nós fomos

criados na plantação. Nós fomos criados no vínculo da plantação e

para plantação a gente plantava, mas na hora de trabalhar a gente

unia as famílias, os primos, as pessoas de outra comunidade. Às

vezes a gente plantava em outras terras de outras pessoas e tinha

esse vínculo que não envolvia dinheiro. Era troca. Trocava o dia de

serviço, quando a pessoa precisava ele trabalhava, ele levava a

mercadoria que ele precisava - o feijão, a farinha, o arroz- em troca.

Então, era muito difícil o dinheiro. As pessoas não preocupavam

com o dinheiro. Nós trabalhávamos, plantávamos e trazíamos o

mantimento pra dentro de casa - o feijão, o milho, a mandioca.

Plantava o mandiocal, fazia farinha. E isso que a gente produzia era

para comer e quando sobrava, às vezes, a gente levava para o

mercado para vender também. Quando sobrava. (Sr. Joel, sobre a

vida na roça)

E. Woortmann (1985) aponta que, para o campesinato regional, é o trabalho sobre

a terra que garante a sua “propriedade”. K. Woortmann (1990) reafirma essa condição

quando diz que o significado da terra é o significado do trabalho e esse, da família. Você

se torna dono da terra não por tê-la comprado, mas por se ter trabalhado nela. O trabalho

é o que transforma a terra de Deus em patrimônio da família e é ele quem fecunda a terra

e a faz se transformar em “morada da vida” (HEREDIA, 1979). Ser “dono” de um espaço

constitui-se como uma categorial moral, onde o acesso à terra é dado por vias de

parentesco, de geração em geração e seguindo padrões de herança acordados socialmente

(CÂNDIDO, 1975; COMERFORD, 2003; GALIZONI, 2002; SEYFERTH, 1985;

TEIXEIRA, 2008; WOORTMANN, 1985). A terra se configura, então, como o espaço

da família.

Outra importante observação presente nos relatos é da importância dos quintais e

das plantações para a reprodução social desses grupos. Na roça se cultivava, sobretudo, a

mandioca, para produção de farinha e polvilho; o milho, utilizado tanto para a produção

de biscoitos, bolos e outras quitandas quanto para a alimentação das criações e o feijão,

utilizado, principalmente, para a alimentação do grupo. Os excedentes do consumo

familiar eram vendidos no Mercado Municipal de Conceição do Mato Dentro e permitiam

que as famílias adquirissem elementos que não se eram possíveis produzir. Elementos

como sal e óleo eram trocados entre as próprias famílias. As hortas e árvores frutíferas,

presentes nos quintais das famílias, complementavam e diversificavam a alimentação.

Os relatos demonstram como não existe, para os entrevistados, a desvinculação

entre família, terra e trabalho, além de precisar estratégias para não repartição do território

e a existência de áreas comuns, utilizadas para a solta do gado, para a plantação e para a

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

106

retirada de lenha. Outra estratégia comumente relatada durante as conversas no campo

foram a presença de “terras no bolo”, regimes onde não existe uma formalização das

terras, onde as posses são definidas pelo trabalho da família e, não necessariamente, são

limítrofes à casa e ao quintal dos núcleos familiares (GALIZONI, 2002).

Eu plantava lá, saía daqui pra plantar feijão lá, minha filha,

mandioca. Saia daqui e plantava lá, ia lá fazer goma, porque era

mais difícil fazer farinha, as vezes fazia a farinha lá, mas a goma

ainda era mais fácil, e trazia para vender, pra poder ter o dinheiro,

pra fazer biscoito pros meninos. A gente não parava de plantar lá

por causa que saiu de lá não, continuou plantando. Só não fizemos

a casa lá, fizemos aqui, mas continuo plantando. (D. Luzia, sobre o

casamento, a mudança de moradia e a permanência das plantações

nas terras do pai)

Assim como observado por Galizoni (2002) no Alto Jequitinhonha, a legitimidade

da posse aparece como algo fluído, respeitado e mantido por todos os membros da família

onde “camadas de direitos que convivem uns com os outros e se sobrepõem. Idealmente,

todos os irmãos têm direitos iguais, assim como todos os netos e bisnetos” (p.2). As terras

de herdeiros e os seus regimes não são considerados pelo direito positivo, o que implica

em um gama de conflitos quando essas lógicas são confrontadas com o entendimento da

propriedade privada, representado, nesse caso, pelo empreendedor e todo os efeitos do

processo de aquisição de territórios que nega e viola essa forma de apropriação do

território. Algumas dessas práticas serão trabalhadas individualmente nos seguintes

tópicos a partir de relatos de dois agentes chave no processo.

4.3 PRÁTICAS COTIDIANAS DA EMPRESA EM RELAÇÃO AO

TERRITÓRIO

A primeira grande estratégia de aquisição de terras pela mineradora, como

discutido no capítulo 3, em um primeiro momento ainda MMX, foi a atuação da

subsidiária da empresa, Borba Gato Agropastoril S.A. que, com o pretexto da compra de

terrenos para criação de cavalos, adquiriu diversos territórios que, conforme demonstrado

no tópico que trata do licenciamento ambiental, nunca foram reparadas e/ou incluídas nos

Planos de Negociação Fundiária da empresa. Segundo Santos & Milanez (2015) com isso

buscava-se reduzir os custos de aquisição e evitar a resistência dos moradores à venda.

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

107

Foi nesse momento que alguns dos irmãos de um dos entrevistados venderam parte do

território, herança do avô, assim como um primo.

Hoje essa história, ela nunca vai ser apagada, mas depois que

chegou aqui para nós, a Borba Gato né? Chegou comprando terra

para criar cavalo, daí a pouco era a MMX, já negociando com as

pessoas, com a comunidade, que era para minerar, aí já foi aberto

mesmo que era uma mineradora e tal, que era para tirar minério, e o

povo ficou muito alegre, na época, porque falava em dinheiro. Todo

mundo achou que ia ficar rico, milionário e tal. Mas eu sempre

preocupado, sem entender o que estava acontecendo (...) A MMX

alegava que ela comprou de alguns herdeiros lá dentro, que estava

lá dentro, porque meu primo morava lá dentro cuidando do

condomínio todo, que é um condomínio que ele nunca teve divisão.

(Sr. Joel, sobre as primeiras atuações da empresa)

Como podemos observar o relato de Sr. Joel, a princípio, a relação entre a

mineradora e a subsidiária Borba Gato era desconhecida, contudo, já despertava certa

desconfiança entre os moradores e a falta de informação contribuiu para criação de um

contexto que misturava a expectativa da chegada de um grande empreendimento e

consequente melhoria das condições da região com o receio da retirada, da divisão de

famílias e perda das condições de vida.

Da Borba Gato, ela chegou falando que as pessoas, que precisava

da terra pra criar cavalo, né? É onde que os bobos caíram e

venderam baratinho. Ela chegava e falava: “é tanto” e muitos foram

pegando e recebendo aquele valor ali porque não sabia que foi esse

critério... (D. Luzia, sobre a atuação da Borba Gato)

Observamos, também, que já à época muitos moradores venderam seus territórios

sem que houvesse qualquer critério que assegurasse seus direitos. Como relatado no

capítulo anterior, esses casos nunca chegaram a ser incluídos no PNF e, portanto, nunca

receberam qualquer reparação.

Na sequência, prática comum relatada nos dois casos, foi a negociação com apenas

um dos herdeiros. A empresa se aproveitava do fato das terras de herança não possuírem

formal de partilha e estabelecia contratos de compra e venda sem que se pesasse a

totalidade dos herdeiros e direitos costumeiros historicamente estabelecidos. Dessa

forma, os não contemplados pelo contrato, que permaneciam nos territórios adquiridos,

eram expropriados via reintegração de posse ou mesmo através da atuação de

funcionários da própria empresa. Os herdeiros “ausentes” sequer eram considerados. Essa

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

108

estratégia foi responsável pela fragilização de vínculos familiares e entre as comunidades,

gerando danos profundos e irreparáveis nos costumes e tradições.

Quando o meu primo estava negociando eu disse: "você está

vendendo a sua parte, tá, mas nós não estamos vendendo a nossa

não, ninguém procurou nós nem nada", entendeu? (...)Nós somos

donos, não vendemos, fui expulso lá de dentro, com segurança da

MMX. Com segurança armada. Tiraram meu caminhão lá de

dentro, levaram o meu caminhão de dentro do meu terreno para a

Fazenda Jardim aí que entraram com uma liminar e o juiz mandou

recolher meu caminhão para o pátio e está no pátio de Alvorada. Até

hoje. E quem dirigiu meu caminhão foi o segurança da MMX, eu

tenho um B.O. Eles fizeram... Tem um B.O. na polícia militar... Eles

foram lá e relataram que um fulano chegou lá e achou um caminhão,

tentou dirigir meu caminhão até uma certa parte. Um segurança da

Anglo... Da Anglo não, da MMX, antes da Anglo. Aí dessa época

eles já começaram a abrir processo e me chamar de invasor. Das

terras não só do meu pai, do meu pai e dos meus tios, que era

herança do meu avô que, depois que o meu avô faleceu não teve

inventário. Não foi feito inventário do meu avô. Foi feito da minha

bisavó e da minha avó. Mas, do meu avô, quando meu avô faleceu,

não fizeram o inventário. Hoje, a MMX, que transferiu para a

Anglo, me chama de invasor, dentro de terra que nós temos registro

dela no cartório de registro de imóveis do Serro. (Sr. Joel, sobre a

atuação da empresa sob o território de seu avô)

O relato de Sr. Joel sobre a expulsão das terras de seu avô demonstra como as

práticas costumeiras não foram respeitadas seja pelo empreendedor seja pelos agentes do

estado que apenas aturam no sentido de assegurar a posse da empresa. Porções não

inventariadas, negociações com apenas um dos herdeiros e práticas violentas de expulsão

dos territórios se repetem em inúmeras famílias da região. Os moradores, ao verem seus

direitos expropriados buscavam alternativas para manutenção das suas práticas, contudo,

inúmeros são os relatos de respostas violentas, como a condução para delegacia de um

dos membros da família, no caso descrito por Sr. Joel.

A Anglo fez, como diz o Jr., eu lembrei agora, uma grilagem de

terra com nós, pegou essa terra, sendo que nós não assinamos nada,

não negociamos nada até hoje, desde 2010 que ela tirou os meus

irmãos, hoje nós já estamos em 2019 e até hoje não pagou, não fez

nada. Meus dois irmãos ela pagou, usou essa safadeza de pagar pra

usar a barragem, né? E nós estamos com esse trem na defensoria

pública pra ver como que vai resolver, mas até então não resolveu

nada até hoje, porque ela recusa de pagar, ela só quer pagar mesmo

vinte e cinco mil para cada um de nós. E esses vinte e cinco mil é

muito pouco, ela não tá pagando nada, que nós não temos terreno

pra soltar na mão dela. (...) A Diversus (...) fez o trabalho, tudo, mas

também não considerou, né? Porque considerou que a gente só tinha

os dois irmãos lá e nós não éramos mais nada pra eles, porque

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

109

quando cadastrou lá tinha que ter cadastrado nós também, se

cadastrou ou não cadastrou eu não sei. Eu só sei que a empresa não

considerou nós cinco. E outra coisa, minha mãe estava viva quando

a empresa comprou lá, na mão dos meus dois irmãos, e fizeram um

atestado de óbito, como se ela tivesse morrido (...) eles fizeram um

atestado de óbito como se ela tivesse morrido, em 2010, e ela

morreu em 2013. Fez, e a empresa nega tudo. fez um trem feio, né?

Fez um trem muito feio. Aí com essa feiura toda ela passou nós pra

trás e ficou. E a minha mãe morreu contrariada porque falava assim

que ela lutou tanto no terreno pra criar nós, plantou tudo, viveu a

vida inteira lá, depois comprou e não chupou uma bala do terreno

dela, que a Anglo fez a barragem antes dela morrer e não pagou pra

ela um centavo até hoje. (D. Luzia, sobre as estratégias da empresa

para aquisição do território do seu pai)

Na fala de D. Luzia percebemos a repetição da estratégia utilizada para aquisição

do território da família de Sr. Joel: a negociação com um número reduzido de herdeiros.

Conscientes dos seus direitos e com o avançar do processo de licenciamento, foram

comuns os casos de recusa as ofertas da empresa como, no caso de D. Luzia, a negação

da oferta de apenas vinte e cinco mil reais pela herança de seu pai. A medida contraria os

parâmetros do TAC de Irapé que deveriam ter sido considerados em ambos os casos, já

que o documento previa a condição de herdeiros ausentes e mesmo dos regimes de “terra

no bolo”.

Também me foi relatado, nas duas entrevistas, as tentativas de minorar as áreas a

serem utilizadas pelas estruturas do empreendimento bem como de escamotear os efeitos

das atividades de implantação das mesmas estruturas, a fim de, mais uma vez, reduzir os

custos de aquisição dos terrenos e evitar possíveis resistências por parte dos moradores.

Essa negociação do mineroduto é o seguinte: primeiro ela vem e

fala com a pessoa "ah, vai passar um caninho aí e nós pagamos tanto

por isso". Aí comprou o meu cunhado na conversa e ele pegou...diz

que pegou três mil e deu pra ele, mas deu só pra ele lá, que é o que

mora ali, o Henrique e o Fausto, que é dono daqui, desse terreno.

Deu pra eles os dois e quando vai ver que diz que era um caninho,

era um monte de cano, abriu uma cratera tão grande que a água deles

ali até sumiu e passaram os canos. (D. Luzia, sobre as áreas

adquiridas para passagem do mineroduto)

D. Luzia descreve como foram feitas as aquisições das áreas destinadas à

implantação do mineroduto. Tanto no relato quanto nas nossas inúmeras conversas que

tivemos durante os dias que passei em sua casa notei a falta de informação e de noção

sobre o real uso das áreas vendidas, a dimensão das estruturas a serem instaladas e o

subdimensionamento dos efeitos na localidade. Esses fatores facilitaram a ações da

empresa e permitiram, em muitos casos a perpetuação de práticas violadoras. O não

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

110

entendimento da dimensão do empreendimento também foi observada nas falas de Sr.

Joel, que ressalta a falta de discernimento quanto ao que seria uma barragem.

Esse licenciamento, essa barragem e esse mineroduto... quando

falava em uma barragem e em um mineroduto...porque na verdade,

aqui na nossa região não tem nem uma hidrelétrica. As vezes a gente

vai ver uma hidrelétrica longe, lá em outros lugares para a gente

saber o que é o tamanho de uma barragem, o que que é uma

barragem. Quando nós vimos o que que era um mineroduto e o quê

que era uma barragem, deu em nós susto, um choque. O

TAMANHO. O tamanho da coisa. É muito assustador, que a gente

não pensava que era tão gigantesco as coisas, aí veio essas coisas

tudo em cima. (Sr. Joel, sobre a real dimensão das estruturas do

empreendimento)

A percepção dos dois entrevistados demonstra outra falha recorrente no

licenciamento: a falta de informação e de esclarecimentos. O objetivo dos estudos,

relatórios e reuniões com a empresa deveriam ser, justamente, informar a população sobre

o que seria o empreendimento e os seus efeitos. Contudo, na prática, a população se

mantinha desinformada e silenciada nos espaços de reinvindicação.

Outro conflito relatado pelos entrevistados foi a contratação de membros das

próprias comunidades para a realização das “negociações”. A estratégia, por mais que

malvista por muitos do grupo, facilitava a aceitação de valores e termos muito aquém dos

preços praticados na região e/ou rompia com o receio de se estabelecer relações com a

empresa.

Ainda, fica claro pelas entrevistas, a utilização dos discursos de inexorabilidade

da obra e, portanto, a única possibilidade ser a saída das famílias para enfraquecer as

“negociações”; a criação deu uma atmosfera “hostil” entre os moradores que eram

instruídos pelo empreendedor a não revelar os valores recebidos pelos seus territórios;

pressão sobre os herdeiros; estratégias de isolamento e de “encurralamento” (SANTOS,

2014). Essas estratégias foram responsáveis por diversos efeitos sobre a localidade,

sobretudo, nas relações entre os familiares.

4.4 A FRAGILIZAÇÃO DOS LAÇOS FAMILIARES E DAS

RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

A tradição e os costumes foram lembrados, pelos dois entrevistados, com muita

nostalgia. Durante toda nossa conversa, as denúncias de violações da empresa eram

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

111

interrompidas por lembranças dos tempos de roça, da infância, das horas de lazer e das

relações com os vizinhos e outras comunidades, marcadas por relações de reciprocidade

entre os parentes, compadres e amigos. A partir da chegada da empresa, os

reassentamentos e as estratégias de aquisição de terras, esses costumes foram sendo

fragilizados e, por vezes, perdidos, interferindo diretamente no modo de vida tradicional

dessas comunidades. Contudo, é importante ressaltar que, segundo Carvalhosa (2016)

esses sistemas eram muito mais fluídos no tempo e no espaço e que, por mais que possa

se realizar algumas conexões entre a chegada da empresa e a fragilização dos

denominados “movimentos de roça”, não se pode atribuir unicamente ao empreendedor

o cenário hoje percebido na região. Segundo a etnografia realizada pela pesquisadora, as

relações de compadrio, as plantações na meia e na terça e outros regimes já vinham

sofrendo diversos desgastes ao longo do tempo, mesmo antes da chegada da mineração.

Do mais, lá na Serra, a gente ia em festa, junto com os vizinhos (...)

porque eu morava aqui, mas tinha igreja lá, a gente ouvia missa, no

grupo lá, eu levava meus meninos todos para participar, porque eu

era de lá e porque era muito bonito. Até a minha cunhada levava, a

festa de Nossa Senhora de Aparecida era muito bonita. E nós lá,

menina, era bonito por conta disso, porque quando saia, saía em

grupo(...) se ia em um casamento, ia todo mundo junto. Se ia em

uma missa, ia todo mundo junto. Se ia em uma festa, todo mundo

junto, não separava. Se a pessoa adoecia, a gente ia correndo. Um

ia na casa do outro visitar o outro, todo dia sabia notícia, se fazia

um doce, a gente dividia. Se fazia um biscoito, dividia com os

vizinhos. Os vizinhos mais próximos da gente, aqueles quatro, cinco

ou seis ali, tudo que um vazia dividia com o outro. Matava um

porco, dividia pra doze pessoas, um pedacinho pra um, um

pedacinho pro outro. E hoje nós não temos isso e a amizade é a coisa

melhor que tem. A gente viveu a vida, assim, tranquilo, pra acabar

num sufoco, na amargura. Tudo que nós fazíamos lá, isolou. (D.

Luzia sobre a relação com os vizinhos)

Neste sentido, D. Luzia ressalta a proximidade das comunidades e a importância

das práticas costumeiras para manutenção das relações entre os moradores. No relato

anterior podemos perceber a diferença da terra de direito, dada pelo direito ao uso através

do trabalho, à terra mercadoria.

As festas religiosas, as atividades na roça, a divisão do alimento e tantos outros

costumes eram elementos constitutivos das relações com o território. O mesmo pode ser

observado na fala de Sr. Joel:

Muitas das vezes, quem tem pouco gado, gado de boi, vaca, às

vezes, tem que ter muita vaca para você manter as vacas com cria,

para dar o leite o tempo todo. Às vezes a gente tinha pouca, aí

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

112

quando lá em casa não tinha, a gente buscava leite na casa do

vizinho. Quando não tinha na casa dele, ele buscava lá em casa.

Então, tinha esse vínculo com os parentes e com as outras pessoas

das outras comunidades também.(...) Nos finais de semana nos

íamos para a casa dos nossos tios, nos outros finais eles vinham para

nossa casa. Os outros que mudavam para outro lugar, para longe,

vinham nas férias. Então sempre a gente estava junto. E isso não só

a família, eu tô falando de família, mas as comunidades também.

Nossa comunidade era Água Limpa, aí tinha Água Limpa (...) tinha

Mumbuca, Beco, Córregos, que era um arraial que tinha próximo,

São Sebastião do Bom Sucesso, que é o Sapo... (Sr. Joel, sobre a

relação com os parentes, vizinhos e comunidades próximas)

Conforme os diversos estudos de parentesco empreendidos por Woortmann

(1990), o parentesco desempenha o papel de articulador dos grupos domésticos,

permitindo relação de reciprocidades e um “capital social” mais importante para a

reprodução desse sistema que o “capital econômico”. Para Woortmann (1990) essa noção

de reciprocidade, mais que a noção de troca, são fundamentais para a compreensão da

campesinidade em sua condição mais geral, uma vez que não envolve, necessariamente,

a transição de objetos concretos34. Portanto, as relações descritas, de troca de trabalho na

roça, da divisão do alimento, da relação com vizinhos e parentes ocupam lugar

fundamental para a compreensão das especificidades das práticas presentes no território

e para o entendimento dos efeitos permanentes e profundos da chegada da mineradora.

Dessa forma, a ruptura desses costumes me foram relatadas com muito pesar,

ressaltando o fato de a empresa priorizar a negociação com os herdeiros que viviam nos

terrenos de herança aos herdeiros “presentes” e o enfraquecimento das relações familiares

devido às tensões decorrentes do modelo de “negociação”.

Os “herdeiros ausentes”, que segundo Almeida (1987) são os que não se

apropriam efetivamente das extensões herdadas, quando recebiam algum valor, recebiam

quantias muito inferiores que os irmãos que permaneciam na localidade, gerando conflito

entre os familiares, principalmente pela construção de um ambiente de desconfiança e de

dúvidas quanto às tentativas de benefícios individuais. É importante ressaltar, que o

sentido dos “herdeiros ausentes” é, nesses grupos, uma estratégia de diminuição da

fragmentação do território e, consequentemente, da sobrevivência desses grupos, uma vez

que a migração permite a disponibilização das terras para plantio dos que ficaram e,

34Essa teoria possui forte ligação com o conceito de “dádiva”, estabelecido por Mauss, na qual, a partir dos

estudos sobre as trocas realizadas em comunidades da Polinésia, Melanésia e no noroeste americano, a

economia é alicerçada por um sistema de trocas baseadas no princípio da reciprocidade. Nesses sistemas,

as relações econômicas se perpetuam graças a uma obrigação moral de retribuição aos “presentes” trocados.

Ou seja, as relações não se dão pelo valor “em si”, mas pelo valor simbólico desses bens (MAUSS, 1974)

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

113

portanto, para a manutenção do território e das condições de trabalho, essenciais para sua

perpetuação nos moldes tradicionais.

Nas negociações, muitas das vezes, o irmão que cuidava da mãe

pegou a indenização, levou a mãe... os irmãos já não vão visitar a

mãe mais, porque o outro irmão pegou a indenização da mãe, que

era direito dos irmãos. Isso causou um transtorno que eu tenho

certeza que até hoje tem inimizade na família e, antes, onde família

era unida. Ia lá visitar a mãe, tinha um torrãozinho, um pedacinho

de terra lá. Às vezes, levaram até para uma terra maior, mas pra quê?

A terra maior? (Sr. Joel, sobre os conflitos entre irmãos)

A fala de Sr. Joel reafirma os estudos realizados por Woortmann (1990) quando

reconhece que o capital social, resultado das práticas de reciprocidade são mais valiosos

que quaisquer tamanhos de novos territórios. Para Sr. Joel uma porção de terreno maior

não significa nada se perdida as relações com os familiares.

Os outros que não fizeram a casa, foram pra fora, mas continuavam

sendo herdeiros, que era filho do mesmo pai e da mesma mãe, nós

éramos sete Eu esqueci como que ele fala, mas tirou todo mundo a

força, assim, não negociando direito, né? Porque, igual, eu tenho

dois irmãos lá que dois receberam e nós não recebemos, essa

negociação foi feita assim. Dois irmãos que estavam lá dentro ela

pagou e não considerou nós. (D. Luzia, sobre a aquisição do

território do seu avô)

Já D. Luzia demonstra que para essas comunidades, diferentes da noção de

propriedade sustentada pelo Estado, os herdeiros, mesmo que ausentes, permanecem com

seus direitos sobre o território e, por isso, deveriam ser igualmente considerados, contudo,

respeitadas questões fundamentais para a ordem moral desses grupos, tais como o direito

garantido pelo uso e trabalho na terra.

Eu estou sofrendo, eu estou sofrendo porque hoje os meus próprios

irmãos, né? Eu me dou bem com todos eles porque eu não me

envolvi no que eles fizeram, mas nós éramos unidos, perto,

próximo, ligados. Principalmente quando um morava no lugar e

outro no outro, mas nós tínhamos uma propriedade unificada, junta.

Sempre a gente estava junto. Hoje, a gente passa muito tempo sem

se comunicar, sem ver, cada um está cuidando das suas coisas lá

pras distâncias lá. Isso eu vejo... desintegrou, no caso da minha

família desintegrou nós todos, nós todos. Você vê as pessoas, eles

não têm alegria mais. (Sr. Joel sobre a atual relação com a família)

A fala de Sr. Joel é representativa de inúmeras condições atuais de famílias que

passaram por processos de “aquisição fundiária” por parte da empresa. Além das rupturas

entre familiares, muitos são os casos de novas moradias fisicamente distantes ou de difícil

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

114

acesso, onde as antigas relações não se perpetuam. Essa nova condição finda os costumes

historicamente praticados e impõem um novo contexto onde “não tem alegria mais”. A

nova condição foi reiterada no seguinte trecho que fala sobre a perda dos locais de lazer:

As comunidades foram todas...Próximas, principalmente a Água

Santa e a Mumbuca foram realocadas, né? Tiraram as pessoas...

Hoje onde era a Mumbuca e um pedaço de Água Santa é água, é a

barragem de rejeitos. Pelo que eu vejo, as famílias estão

desintegradas, não tem mais aquele vínculo, aquela história de ir lá

naquele rio nadar, na cachoeira do Passa Sete... Onde era a

cachoeira que foi dinamitada para fazer a barragem. Que era um

ponto de lazer não só da comunidade, mas dos visitantes. Inclusive,

nós temos fotos de muitas pessoas que vinham de Nova Lima, de

Contagem, de vários outros lugares. (Sr. Joel sobre a atual relação

com as comunidades vizinhas)

Acrescenta-se o fato de que após a aquisição do território através de alguns

herdeiros, a empresa tomava posse dos lugares através da implementação de cercas e

placas e impedia qualquer acesso, garantindo através dos contratos, a “posse precária do

imóvel”, muitas vezes antes que os “herdeiros ausentes” pudessem ter sido informados

dos trâmites. A estratégia enfraquecia poder de “negociação” dos demais herdeiros e

gerava graves conflitos entre os familiares, já que conforme os costumes, o seu direito

sobre o território, mesmo que não estivesse ali, seria assegurado, e a venda do território,

pelos irmãos, romperia, dessa forma, com a tradição.

Outra questão colocada foi o fato de que ficaria à cargo dos herdeiros que

assinaram os contratos de compra e venda a distribuição dos valores entre os demais,

gerando processos complexos dentro das famílias que, historicamente, não compreendem

a terra como um “produto” e, portanto, não trabalhavam com partilhas financeiras do

território. A transformação do “direito de uso” em “bem de mercado” e os diversos

murmurinhos das “negociações” fizeram com que herdeiros, muitas vezes, rompessem

suas ligações, dividindo famílias. Essa estratégia beneficiava a empresa no sentido de

sigilo dos valores e consequente asseguração dos preços baixos, fragmentação da

resistência e facilitação das negociações.

Por fim, o reassentamento em áreas não contíguas e por vezes distantes da

localização anterior dificulta a perpetuação das relações de reciprocidade antes

estabelecidas assim como o fato de que, muitas vezes, quem acaba decidindo por sair se

afasta de atingidos ativos nos movimentos de resistência com medo de que o fato

atrapalhe “as negociações”, caso relatado por D. Luzia na seguinte passagem:

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

115

Os vizinhos de lá, nós não temos contato, porque eles tiraram todos

eles e colocaram todos longe, pro lado de Córregos, Ouro Fino...A

gente só vê eles quando vai na cidade. Nós perdemos a grande coisa

que nós tínhamos também: a amizade. Nós temos amizade, mas não

temos vínculos, porque nós não vemos as pessoas, só quando

encontra na cidade. Igual a Geruza falou: " é tão triste, né, um lugar

que você vivia, pra baixo e pra cima e não ter nem o lugar e nem os

vizinhos perto da gente". Eles separaram nós mesmo, de um jeito

que nem meus irmãos não vem aqui. Acabou. E todo mundo que

negocia com a Anglo fica inimigo da gente. Eles não falam por

quanto negociou, nem nada. Faz uma inimizade, a empresa faz uma

inimizade com a gente. E, tipo assim, então, nós até então, e o

Rodolfo e o Emerson, eram muitos vizinhos, eram amigos demais,

vizinhos, amigos, família. Só que depois que eles venderam, eles

afastaram, eles nunca mais vieram aqui, não. O Rodolfo, pra você

ver, já tem menino que já tem um ano, já fez até aniversário, tem

uns três anos que ele mudou, nunca vieram aqui. Ninguém deles

nunca pôs o pé aqui, porque vendeu. O Emerson, também, depois

que vendeu, sumiu. Eles fazem inimizade com a família. Eles não

conseguem deixar a família amigo. A gente não está com raiva

deles, mas eles estão da gente, porque eles acham que a gente não

vendeu e não saiu correndo igual a eles. Aí é isso aí... (D.Luzia,

sobre a atual relação com os vizinhos)

Esse cenário de fragilização tornou ainda mais fácil o processo de aquisição de

terras do empreendedor que, se aproveitando da situação, conseguia adquirir terrenos com

preços inferiores ao preço justo bem como o não fomento de discussões mais profundas

sobre direitos adquiridos pelo PNF, como o reassentamento coletivo, imediatamente

cercando os terrenos, impedindo passagem e encerrando caminhos historicamente

utilizados. O estreitamento das relações entre familiares e vizinhos também foi

responsável pela diminuição das relações de trabalho, como as “trocas” realizadas nos

momentos de plantio e os “mutirões” de capina, contribuindo para a desmobilização

produtiva dos atingidos.

4.5 A DESMOBILIZAÇÃO PRODUTIVA

A desmobilização produtiva também foi uma das consequências das atividades de

aquisição de terras da empresa, ressaltando o fato de que essa não é uma relação de causa

e efeito. A desmobilização produtiva, como defendido por Bittencourt (2017) é,

necessariamente multicausal, contudo, conforme avançavam os reassentamentos e/ou

indenizações, é inegável que a expectativa criada entre os moradores que permaneciam

de que seriam os próximos a serem reassentados acabou por romper com os ciclos

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

116

produtivos antes estabelecidos, já que não faria sentido o investimento financeiro e de

força produtiva por uma colheita que poderia nem chegar.

Segundo pesquisa desenvolvida por Bittencourt (2017, p.86) é evidente a grande

retração no setor. De acordo com o autor, com base nos dados do IBGE, em 2004 eram

produzidas 2.550 toneladas de milho, 1.200 toneladas de mandioca, 430 toneladas de

arroz e 172 toneladas de feijão, em 2015 esses números caíram para 1.200, 300, 20 e 36

toneladas, nas lavouras temporárias. Em relação às lavouras permanentes, “entre 2004 e

2015, a produção de café variou de 180 para 60 toneladas, a de laranja de 630 para 70

toneladas e a de banana de 2340 para 600 toneladas” (p.87).

O que plantava lá não pagou, porque desde que eles chegaram lá

eles falaram que iam tirar dezoito famílias, aí a gente parou com

tudo. Nós paramos com nossa atividade, porque se plantasse, as

vezes eles não iam pagar, igual não pagou até hoje, e a gente ia ficar

mais no prejuízo. Então, nós colhemos o que tinha e deixamos a

terra lá, uai, confiante que eles iam pagar. Nada, nada, nem uma

janela, nem uma porta de lá, da casa da minha mãe, nós não temos.

(D. Luzia, sobre o abandono de culturas)

Contudo, como pudemos ver ao longo do processo de licenciamento, a

morosidade no reconhecimento dos atingidos e a definição de quem, de fato, seria

reassentado foi responsável pelo abandono de culturas e pela desestruturação alimentar

de famílias que dependiam da agricultura familiar de subsistência. D. Luzia me relatou

inúmeras vezes o seu descontentamento e tristeza pela compra de produtos antes

produzidos nas suas plantações no mercado. Segundo ela, é enorme o desgosto de

comprar farinha de mandioca, uma de suas maiores produções, além do fato de o gosto

dos produtos, de acordo com sua percepção, nunca serem os mesmos dos produzidos na

roça.

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

117

Figura 7- Mudas de D. Luzia, preparadas para a mudança da família

Fonte: Arquivo Pessoal

Outra questão foi a aquisição, por parte da empresa, de fazendas em que as

famílias historicamente trabalhavam nos regimes de “meia ou de terça”, inviabilizando a

produção por falta de áreas de plantio, como mencionado por D. Luzia:

Não tem lugar de plantar mais, até então, antes deles chegarem pra

cá, nós plantávamos com Ronaldo mais a mãe dele, que era a Maria

do Porto, e plantava aqui dentro mesmo. Aí o Silvio vendeu e nós

ficamos presos e não plantamos mais nada, só aquela tirinha ali. A

Maria do Porto, também, que era a mãe do Ronaldo, eles venderam

o terreiro e nós ficamos sem lugar de plantar nada, então, nós

estamos aqui como diz a Patrícia "desatados de pé e mão",

quebrados, sem ter jeito pra nada. (D. Luzia sobre a perda de terras

para plantio)

E, por fim, o abandono de culturas também se deu pela falta de água que, agora

escassa, não permite sua utilização nas plantações, sendo o uso, muitas vezes, insuficiente

até mesmo para as hortas.

Então, minha horta eu ainda planto, porque minha horta, com

aguinha que vem de lá eu jogo nela. Tem que plantar cedo pra

aproveitar toda as aguinhas, mas eu ainda planto meu alho, minhas

verduras todas. Agora, planta, acabou tudo. Nós não plantamos mais

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

118

mandiocal, só um trequinho ali pra comer cozido e aquele

pouquinho de milho. Naquele pouquinho de milho ali, plantamos

um tiquinho de feijão, mas do resto, nós estamos, assim, com pé e

mão quebrados, atados, presos. Sem serviço e sem lugar de plantar

nada. Aquelas mudinhas nós fizemos pra mudar elas estão lá faz uns

três anos, esperando, esperando. (D. Luzia sobre as atuais

condições de plantação)

A produção de culturas, um dos pilares da manutenção da subsistência e das

relações sociais das comunidades foram abandonas devido as novas condições impostas

pela chegada do empreendimento, rompendo com as relações terra, trabalho e família e

gerando mudanças profundas na localidade que vão desde à mudança da própria

alimentação e os encargos financeiros decorrentes à interrupção da transmissão de

conhecimentos tradicionais entre os mais velhos e mais novos.

4.6 VIOLAÇÕES DE PROPRIEDADES E DO DIREITO DE IR E VIR

Além das denúncias do fato de funcionários da empresa transitar, seja a pé ou seja

através de veículos, em terrenos de propriedade particular sem permissão dos moradores,

uma objeção muito presente nos dois relatos foi o fechamento dos caminhos, a que foi

atribuído, inclusive, a perda de relações com comunidades vizinhas. Segundo os relatos,

para além de cercas e a implementação das estruturas, a empresa faz uso de segurança

armada que impede o trânsito dos moradores.

Quando eles foram passar os canos, tirou a minha estrada e aí eu

fiquei sem estrada e até fiz um boletim de ocorrência deles e ainda

cortou o mandiocal meu ali. Aí eles tiraram a estrada... Quando os

meninos iam pra escola, é um cano gigante, você sabe, né? - nem

tinha jeito de passar de baixo, aí tinha que passar era por cima. Aí

quando eu tinha que levar os meninos no ponto eu tinha que pegar

menino e jogar pro outro lado. Ainda chovia e escorregava muito e

era puro barro, porque o menino não conseguia atravessar o cano.

A menina, que ia pra escola, não conseguia. Teve que mudar a rota

da menina, tirar ela do caminho dela e passar pra baixo porque de

noite ela chegava e não tinha jeito de saltar o cano, de dia a gente

ainda saltava. Ainda tirou o meu caminho por vários dias, eu fiz até

boletim de ocorrência, mas não valeu nada. (D. Luzia, sobre a perda

de sua estrada)

O relato de D. Luzia alguns dos efeitos das obras do empreendimento que, devido

a dimensão das estruturas, alteraram não só a vida da família, como a dos vizinhos.

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

119

E, nesse local do meu avô, era a estrada que ligava São Sebastião

do Bom Sucesso à Córregos. Passava na porta da casa do meu avô.

Quando compraram de alguns parentes que moravam lá e que

venderam, aí eles fecharam tudo, me arrancaram o caminhão,

colocaram segurança armada e tiram o direito de ir e vir de todos.

Ninguém passava lá dentro mais. Então, acabou o nosso acesso de

São Sebastião do Bom Sucesso à Córregos, que era a estrada de

tropeiro, a estrada que o pessoal ia para os casamentos, ia fazer

compra em Córregos. (Sr. Joel, sobre o fechamento de importante

caminho na região)

Sr. Joel narra que inúmeras eram as tentativas de barrar os impedimentos da

empresa, como a violação de cercas, o enfrentamento de seguranças e as denúncias

através de boletins de ocorrência, contudo, as medidas eram respondidas com ações mais

violentas por parte da empresa, como o corte de culturas, o cercamento de residências e

atitudes ofensivas por parte dos seguranças privados da empresa.

O fechamento dos caminhos de uso histórico pelos moradores aumentou a

distância entre as comunidades, dificultou os acessos e isolou famílias, rompendo com

relações fundamentais para a manutenção dos grupos, como o acesso à regiões onde eram

realizadas práticas religiosas, áreas de lazer e espaços para coleta de lenha e frutas. Além

disso, foi relatado que as atuais alternativas, como a MG010, por exemplo, são inviáveis

devido à perigos antes não vivenciados pelos moradores, como o medo de assalto,

atropelamentos e a circulação de mulheres desacompanhadas. Soma-se o temor de ações

de retaliação impostas por estratégias de intimidação realizadas sobre os moradores que

se opõem ao empreendimento.

4.7 ESTRATÉGIAS DE INTIMIDAÇÃO

A intimidação também foi denúncia frequente dos dois entrevistados. A ativa

participação dos agentes em reuniões na URC Jequitinhonha, as denúncias feitas nas

reuniões da REAJA, Audiências Públicas, Ministério Público, seja Estadual ou Federal,

e Polícia Militar foram acompanhadas de respostas do empreendedor, como por exemplo,

a não resolução de solicitações dos atingidos, instauração de processos, demissões de

parentes e amigos bem como a sua não contratação.

Esses dois homens, da empresa, pegou pra me ameaçar, gastaram

vir aqui uns policiais par saber, ainda se eles estão me ameaçando

(...) Aí esses dois homens, da empresa, que é o chefão, veio e me

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

120

ameaçaram por causa dessa terra lá e eu ia em reunião, falava, falava

e eles não estavam nem aí e nem aí até hoje ficou. Eu fiquei sem

resultado de nada(...) os homens, minha filha, tudo que eu falava

eles achavam ruim. Eles me puseram insegura, porque eu não sabia

o que eles podiam mandar fazer comigo. Um dia uma menina falou

comigo, uma mulher, que eles não estão chamando os seus filhos

porque quando você chegava em reunião você ficava lá gritando, aí

eles estão com raiva de você, por causa disso. Eu fui e disse que é

capaz de ser mesmo, porque, uai, porque os meus meninos não

podem fichar nessa firma? (Dr. Luzia sobre as estratégias de

intimidação da empresa)

O desemprego dos filhos, a falta de resolução da atual condição da família e o

cercamento das áreas de plantio da família são entendidos por Dr. Luzia como medidas

de retaliação da empresa pelas denúncias por ela realizadas durante as reuniões referentes

ao licenciamento ambiental. A noção de que a ligação com D. Luzia poderia estender para

outras famílias as represálias do empreendedor atua como mais um elemento de

isolamento da atingida, já que inúmeras relações sociais foram cessadas pelo medo de

interrupção das “negociações” de outras famílias.

Eles tentaram me ameaçar o tempo todo e usando tudo quanto é

máquina do governo, né, estadual e municipal, pra intimidar as

pessoas. Mas eu nunca, nunca eles me intimidaram. Claro que eu

não vou agredir ninguém. Às vezes, verbalmente a gente fala algo

que as vezes, que as pessoas as vezes até nem gostam, né? Mas tem

coisa que eu sou obrigado a falar (...) tudo que eles achavam uma

garra eles entravam com uma ação. Da ocupação da terra sempre

como um invasor, que eu era invasor. Lá nas terras do meu avô, que

eu era invasor, nas terras do meu outro avô, eu era invasor. Todas

as ações que eles entravam era de invasor. Todas as ações que eles

entraram e chamaram de invasor, eu tenho registro no cartório de

imóvel. (...) Comigo é PERSEGUIÇÃO, perseguição pra tentar me

intimidar. O judiciário pode não fazer nada, os advogados que eu

contrato, não sei o que eles o que eles vão fazer...mas minha

consciência e a minha mão estão tranquilas, que eles vão fazer não

importa. Eu não estou preocupado com o que eles vão fazer. Se eu

tivesse preocupado em legalizar, em sentar com eles, que é o que

eles tentaram o tempo todo, parece, é sentar com eles e negociar.

(Sr. Joel sobre as retaliações da empresa)

A abertura de processos contra lideranças locais, como descrito por Sr. Joel,

também faz parte das práticas da empresa que buscam silenciar os moradores através de

decisões judiciais ou mesmo do esgotamento físico e mental do acompanhamento das

diversas audiências. Alguns casos chegaram ao limite de inclusão de atingidos no

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

121

Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e instauração de um

Procedimento Investigatório Criminal na Promotoria de Justiça para apurar “autoria e

materialidade das ameaças” realizadas à quatro atingidos que assinaram uma Ação

Popular que resultou no cancelamento da Audiência Pública do “Step 3” do

empreendimento.

Além disso, a divulgação de notícias como a demissão de funcionários e a

necessidade das licenças para a manutenção das atividades da empresa na localidade

criaram clima hostil entre os próprios moradores das diversas comunidades que

acabavam, muitas vezes, por culpabilizar as lideranças locais pela possibilidade de

paralização da mineradora e desemprego de familiares e amigos.

4.8 DOIS DIFERENTES CASOS DE VIOLÊNCIA: A

EXPROPRIAÇÃO VIA SERVIDÃO MINERÁRIA E O

RECONHECIMENTO SEM O REASSENTAMENTO

A trajetória dos dois agentes entrevistados, por mais que possuam pontos em

comum, resultou em desdobramentos distintos. D. Luzia, através do estudo da Diversus

de 2014, foi reconhecida pela empresa e pela URC Jequitinhonha como atingida pelo

empreendimento e constou na lista de atingidos a serem contemplados pelo PNF.

Contudo, até a data da defesa do presente trabalho, quatro anos após a legitimação da lista

em reunião da URC, a família permanece sem respostas. Foram feitas algumas propostas

pela empresa, porém, nenhuma delas atendia as necessidades da família, como, por

exemplo, o reconhecimento dos filhos menores de idade e a disponibilização de veículos

para a mudança.

Nós ficamos numa ilha. No segundo trabalho da Diversus, que com

muita pirraça eles fizeram, deu que nós precisávamos de sair, só que

nós não saímos até hoje, porque eles não concordaram com a gente

sair e além de não concordar de pagar os meus meninos, nem a nós

mais pelas coisas, então, por eles de não concordar de pagar nós os

meninos, e nem pagar mais pelos nossos direitos, nós estamos

aguardando o que eles vão fazer. Além disso tem o mineroduto em

cima e a adutora de água do outro lado e a rede de

transmissão(...)Agora está parecendo que está tudo calmo, né?

Porque tem alojamento lá, mas acabou aquele focão, só tem pouca

gente. Mas, assim, por eles terem respeitado e terem feito o trabalho

e falado que nós tínhamos que ter saído, então eles tinham que ter

tirado. E nós estamos aí, esperando, esperando... Só aguentando as

ignorância deles.(...) E nós estamos aí. Aí nós deixamos, fizemos o

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

122

banheiro, mas diz que 2009, até então não estava assim, nós não

tínhamos esse trabalho ainda que tinha que sair - aí nós resolvemos

não acabar de colocar o chuveiro, ficou o banheiro lá só com a água

fria. Nós... Igual, por exemplo, tudo que nós plantávamos no

quintal... Nosso quintal já não tem mais, só tem pau. Porque diz que

vai sair, que vai sair, que vai sair, que vai sair, então nós resolvemos

não plantar nada. Por esses cinco anos nosso quintal já está

acabando, só tem pé de árvore. (D. Luzia sobre os efeitos do

reconhecimento enquanto atingida sem que medidas fossem

tomadas)

Os principais efeitos do reconhecimento sem a conclusão do reassentamento

foram, sobretudo, a paralização das atividades da família e o aprofundamento das

condições de vulnerabilidade. Com a possibilidade da mudança, D. Luzia e o marido

pararam com as atividades produtivas fundamentais para a manutenção da família, já que

corriam o risco de perder todo o investimento feito nas plantações caso as “negociações”

fossem rapidamente resolvidas. Além disto, os vizinhos foram reassentados e, atualmente,

a casa da família encontrasse “encurralada” por estruturas da empresa: de um lado o

mineroduto, de outro, a linha de transmissão de energia e nos limites da propriedade, áreas

já adquiridas pelo empreendedor. Atualmente não existe sequer estrada que dê acesso à

casa da família, colocando-os em situações limite.

Já Sr. Joel, não incluído nas listas de atingidos e resistente a qualquer tipo de

“diálogo” com a empresa foi vítima de instrumentos legais para sua desapropriação.

Eles entraram com um processo como se eu fosse invasor, dessa

terra. E apresentaram algum contrato, que tinham comprado de

alguns irmãos e nessa ação, que eles entraram contra mim de invasor

o juiz... eu consegui provar que eu tinha posse e propriedade. Aí o

juiz perguntou para eles: "Porque vocês estão chamando ele de

invasor se ele conseguiu provar que ele tem posse e propriedade,

como que ele é invasor? Aí eles persistiram, ainda, que não era. Aí

depois que eles viram que não tinha jeito, que eu era invasor...o juiz

falou: "Não, aquele menino não é invasor não". Aí eles entraram

com uma ação de servidão. A servidão deu uma liminar e o juiz me

deu quinze dias pra eu sair. Sem eu ter para onde ir. Nos quinze dias

eles não chegaram para me tirar. Nos quinze dias eu não saí. Aí eles

vieram com a polícia para me tirar. Me tirou. Vai fazer um ano agora

em março... (Sr. Joel sobre sua expropriação)

Sr. Joel, além de não ter sido reconhecido como herdeiro nas terras do avô foi

expropriado do território onde morava através de uma ação de servidão minerária. A

retirada, realizada com auxílio de força policial, demonstra o tratamento dado aos

atingidos durante todo o processo de licenciamento ambiental. Nos dias atuais, Sr. Joel

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

123

vive em um terreno também de herança da família, sem água, luz ou condições mínimas

de existência, já que a execução do terreno sem o pagamento por parte da empresa não

deixou a ele diferente alternativa.

Dessa forma, é possível inferir que ambos foram expostos à diferentes processos

de extrahección: um, retirado à força das terras da família através da servidão minerária;

outro, sofre com o deslocamento in situ. Além disso, os dois agentes, assim como demais

atingidos, são forçados a conviver com os demais efeitos do empreendimento, como a

poeira, o barulho, a falta de água, a insegurança, o isolamento, entre diversos outros

efeitos negligenciados ao longo do processo. Todas essas condições, somadas, colocam

os dois atingidos, assim como diversos outros casos semelhantes, em situações de extrema

vulnerabilidade e de mudanças perenes no seu modo de viver e conceber o mundo,

alterando drasticamente o cenário local. Contudo, concomitantemente, os atingidos

respondem e se articulam em movimentos de resistência frente aos danos sofridos.

4.9 A CONTINUAÇÃO DA LUTA

As práticas da Anglo American para aquisição de terras, como pudemos observar,

foram caracterizadas por processos de extrahección, configurando um cenário rotineiro

não só em Conceição do Mato Dentro, mas em todo o país, onde a expansão do capital

está associada, ou melhor, se dá, através da negação e do não reconhecimento de direitos

de como camponeses, pequenos agricultores, pescadores, indígenas, quilombolas e

demais comunidades tradicionais. A chegada de grandes empreendimentos impõe uma

lógica sobre o território através de processos extremamente violentos que, muitas vezes,

acabam por inviabilizar as próprias condições de existência dos atingidos.

Os conflitos ambientais, então, surgem e remetem as disputas entre diferentes

formas de apropriação do espaço em que esses grupos atingidos buscam, sobretudo

assegurar sua reprodução e seus modos de vida frente à logica mercantil estabelecida

pelas grandes empresas. Esses conflitos, como assinalado por Zhouri, Laschefski &

Pereira (2005), denunciam o fato de que as vítimas desses processos não somente são

excluídas dos “bônus” associados a esses grandes empreendimentos, como são a quem é

destinado todo o “ônus” das atividades. Contudo, concomitantemente, são articulados

movimentos contrários, de articulação e reposta frente à esses processos. Dessa forma,

através da mobilização e utilização de diversas estratégias, plataformas de denúncias e

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

124

exigência de cumprimento de direitos, essas populações seguem resistindo ao mesmo

tempo em que apresentam alternativas próprias ao modelo econômico hegemônico.

Rothman (2008), através do resgate histórico da construção de barragens no

Brasil, analisa que a associação entre desinformação, as promessas não cumpridas da

empresa e o contato com entidades de resistência que relatam a repetição do modo de agir

das empresas com outros atores e outras comunidades faz com que nasça um sentimento

de indignação que serve de motor para a articulação e do fomento de uma resistência

organizada, apoiando-se em redes internas e externas de relações de fortalecimento e

denúncia mútuos. No caso de Conceição do Mato Dentro, destacamos a REAJA e a

articulação com movimentos como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e

do Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM). Ao mesmo tempo, as “resistências

cotidianas35” também assumem papel fundamental nesses espaços, atuando através da

valorização dos laços de solidariedade e de família e das relações estabelecidas com o

próprio espaço.

Através desses novos espaços e das novas redes estabelecidas, continuamente os

atingidos denunciam os danos sofridos e respondem aos processos violentos sob os quais

vem sendo vítimas. Conquistas fundamentais foram conquistadas através da luta e

resistência, sendo as mudanças no PNF e a produção de novos documentos que tratassem

o universo dos atingidos, alguns exemplos. Atualmente o caso de Conceição do Mato

Dentro é referência no que tange à movimentos de resistência à mineração justamente

pelas articulações consolidadas ao longo dos dez anos de licenciamento do

empreendimento. Na escala local, os atingidos permanecem questionando, contestando e

cobrando da empresa, do Ministério Público e do Estado melhorias das suas condições e

cumprimento de seus direitos.

Assim, encerro este capítulo com uma citação longa, mas que nos permite

compreender a narrativa de um atingido que permanece firme, mesmo após inúmeras

violências sofridas ao longo de mais de dez anos de luta e que representa, também, a força

dos que continuam na busca por fazer valer seus direitos e na defesa dos seus costumes e

tradições estabelecidos sobre o território:

35 “A resistência cotidiana se distingue mais evidentemente de outras formas de resistência é em sua

implícita negação de objetivos públicos e simbólicos. Enquanto a política institucionalizada é formal,

ostensiva, preocupada com a mudança sistemática e de jure, a resistência cotidiana é informal, muitas vezes

dissimulada, e em grande medida preocupada com ganhos de fato imediatos” (SCOTT 2011:233).

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

125

Eu sinto triste de ver a situação da forma que está acontecendo, que

está sendo conduzida e que as pessoas estão aceitando. E sinto

alegria de não ter assinado documento NENHUM. Nem para Borba

Gato, nem para a MMX e nem para a Anglo. Não assinei e nem vou

assinar. Agora, se a servidão, que é uma lei que tem de servidão, do

governo, quiser dar as minhas terras para a Anglo, ou para a MMX,

ou para quem ele quiser, eles vão me tirar, mas eu não vou assinar

nada, eles vão doar. Porque seria covardia da minha parte... É como

se eu tivesse vendendo a minha mãe para ser estuprada. Eu sinto

dessa forma, da forma que a mineração faz com as terras. Acaba

com as nascentes, acaba com a fauna, com a flora, não respeita as

pessoas, tira o direito de ir e vir. Como que eu vou negociar com

uma empresa dessas? Hoje eu quero...eu não quero morrer... eu

quero viver para sempre, eu quero viver para sempre. Mas, se for

para eu assinar um documento... que se for para qualquer

mineradora, eu vendendo qualquer propriedade que eu tenho para

uma mineradora, para elas tratarem a terra da forma que elas tratam,

eu prefiro que acompanhe o meu enterro. Eu não quero morrer, mas

se for... se me obrigarem a fazer isso, eu prefiro que as pessoas

acompanhem o meu enterro. Mas eu não assino e não concordo com

a forma que eles tratam as coisas. Eu já defini isso a muito tempo.

(...) Eu nunca sentei pra negociar e nem vou sentar. Eu estou

querendo é que eles abram mais processos contra mim ainda, mais

ações. Pode abrir mais, eu vou falar, eu vou continuar falando.

Agora parece que eles esmoreceram, eles pararam. Os processos

podem não andar, pra mim não importa. Hoje, pra mim, se eu não...

se não tivesse nenhum processo contra mim e eu tivesse longe, as

vezes bem com a minha família, o quê que eu teria feito pra

comunidade, pra onde que eu nasci, pra onde que eu vivi, pra onde

que eu tenho uma história? Então é como se eu fosse... eu me

sentiria um covarde, covarde. Hoje o que eu estou fazendo, se

precisar eu vou continuar quantas vezes precisar. Não tenho

arrependimento nenhum das decisões que eu tomei até agora. (Sr.

Joel, fevereiro de 2019)

*

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

126

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O empreendimento Minas-Rio é um caso elucidativo de uma estratégia de

desenvolvimento que se enquadra no que teóricos definiram como modelo

neoextrativista. Essa lógica é responsável por um processo de reprimarização da

economia que, além de tornar os países altamente dependentes das flutuações nos preços

internacionais das commodities, tais como as recentes baixas no preço do minério de ferro

nos últimos anos, determina uma inserção subordinada dos países adotantes do modelo

no mercado internacional. Ainda, esse processo se cumpre através de extrahecciones

sociais e ambientais, rompendo, portando, com marcos de direitos historicamente

conquistados.

O paradigma do desenvolvimento e seus diversos desdobramentos, como a adoção

do modelo neoextrativista, são responsáveis pelo sofrimento e, por vezes, extermínio de

modos de ser, fazer e viver geograficamente localizados, deixando um rastro de violência,

degradação social e ambiental. Os acirramentos dessas condições e dos conflitos

ambientais decorrentes do confronto de duas diferentes lógicas de apropriação do

território são, também, resultado das ações do próprio Estado brasileiro que, através de

um licenciamento ambiental que abre possibilidades para diversas alegalidades,

sucateamento das agências fiscalizadoras e duvidosas relações com o empreendedor,

admitem a instalação de grandes empreendimentos, tais como o Minas-Rio, sem que se

pesem os diversos efeitos a eles associados.

Nesse sentido, o presente trabalho teve como objetivo retomar as discussões

fundiárias desenvolvidas durante os onze anos de licenciamento ambiental do

empreendimento Minas-Rio e levantar, através de entrevistas em profundidade e análise

documental, as práticas cotidianas da empresa bem como suas estratégias para aquisição

de territórios nas regiões de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas.

A análise da questão fundiária, recorte, portanto, estabelecido para a análise, nos

permitiu concluir que existem algumas estratégias adotadas pelo empreendedor que

parecem figurar um modus operandi das empresas no que tange estratégias para sua

implementação, a saber:

a) a utilização de empresas laranja com o objetivo de redução do preço das

aquisições e minimização de resistência à venda por parte dos moradores;

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

127

b) o não reconhecimento do universo de atingidos para além de definições

arbitrárias como ADA e AID que homogeneízam os territórios e só consideram enquanto

atingidos os moradores cuja retirada é essencial para instalação do empreendimento;

c) a desapropriação por suposta utilidade pública daqueles que se recusam a

“negociar”;

d) pressões sobre grupos e famílias realizadas, não só verbalmente por próprios

funcionários da empresa, mas também pela destruição das condições de vida e reprodução

nos moldes específicos historicamente desenvolvidos no lugar;

e) a fragilização de laços familiares e das relações entre os comunitários para

facilitar não só a compra a preços irrisórios, mas, também, a diminuição da resistência e

construção de alternativas de contrapressão sobre o empreendedor;

f) violações de propriedades e do direito de ir e vir que, mais uma vez, impedem

que os atingidos perpetuem práticas sempre praticadas e que mantivessem a relação com

vizinhos, parentes e conhecidos na própria comunidade e nas comunidades adjacentes e,

por fim,;

g) estratégias de intimidação de lideranças locais, ou mesmo de cooptação, com

objetivos de evitar desdobramentos onerosos e fragilizar a imagem da empresa,

provocando a divisão de famílias e comunidades e criação de um ambiente hostil para os

moradores e para a própria resistência como um todo;

h) problemas graves de comunicação e transparência das ações e desdobramento

do empreendimento por parte do empreendedor;

i) processos de negociações diversos e individuais que não cumprem com o

estabelecido no PNF, que deveriam respeitar os parâmetros do TAC de Irapé e, por fim;

j) desconsideração e, por vezes, negação das formas tradicionais de apropriação

do território desenvolvida pelo campesinato livre que na região se desenvolveu e a quem

os efeitos do empreendimento foram minimizados e desconsiderados durante todo o

processo de licenciamento ambiental.

Através da análise das entrevistas realizadas com dois agentes-chave nesse

processo, pude perceber como as práticas cotidianas da empresa se desdobram na

localidade e como são experenciadas pelos moradores. Os dois casos, exemplares do

contexto vivido em toda a região, se reproduzem sistematicamente sobre diversas famílias

que, desde a chegada da empresa, tiveram seus modos de vida drasticamente modificados.

Os relatos, complementados pela análise do campesinato brasileiro, demonstram o modo

específico da relação com o território, com a morada e com o trabalho, expondo a

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

128

negligência da adoção de uma abordagem territorial patrimonialista para análise dos

danos sofridos pelo empreendimento.

D. Luzia e Sr. Joel revelam, em suas narrativas, a profunda relação com o lugar, a

vida antes e após a chegada da empresa e discutem, sobre a ótica dos atingidos, o que é a

empresa e quais seus efeitos sobre os moradores, muitas vezes, contestanto o discurso de

desenvolvimento por ela apresentado. Para além disso, permitem que consigamos ter

noção dos efeitos multidimensionais de um empreendimento como o Minas-Rio.

A definição territorial-patrimonialista da área considerada afetada pelo

empreendimento, associada à desconsideração das dinâmicas próprias e específicas

estabelecidas sob o território, pelos atingidos, são resultado de diversas estratégias

cuidadosamente orquestradas com objetivo de reduzir responsabilizações do

empreendedor e, consequentemente, numa lógica econômica, minimizar os gastos

“sociais do projeto”. Tais ações reproduzem, na localidade, extrahecciones responsáveis

por violências permanentes e profundas, comprometendo todas as dinâmicas

historicamente reproduzias na região.

As práticas do empreendedor para aquisição de territórios são, portanto,

representativas de “novas velhas” práticas expropriadoras e de concentração de terras

necessárias para implementação do modelo de desenvolvimento neoextrativista e que

aprofundam o cenário histórico dos conflitos fundiários presentes no campo brasileiro.

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

129

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Maurício de Almeida. A apropriação do território no Brasil

colonial. Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 197-245, 1997.

ACOSTA, Alberto. Extrativismo e neoextrativismo. Duas faces da mesma maldição In:

Descolonizar o imeginário-Debates sobre o pós-extrativismo e alternativas ao

desenvolvimento, p. 46-85, 2016.

ACSELRAD, Henri et al. As práticas espaciais e o campo dos conflitos

ambientais. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 13-

35, 2004.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de

territorialização e movimentos sociais. Revista brasileira de estudos urbanos e

regionais, v. 6, n. 1, p. 9, 2004.

ALMEIDA, Alfredo Wagner. Terras de preto, terras de santo, terras de índio - posse

comunal e conflito. Humanidades (Brasília), Brasília: UnB, v. 15, p. 42-49, 1987

ARAVENA, Susana. La vivienda, entre el derecho y la mercancía: las formas de

propiedad en América Latina. Ediciones Trilce, 2014.

BARBOSA, W. A. Dicionário Histórico-geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1995

BEBBINGTON, Anthony. Introdução. In: Minería, movimientos sociales y respuestas

campesinas: una ecología política de transformaciones territoriales. Instituto de

Estudios peruanos, Lima: IEP, CEPES, 2011.

BECKER, Luzia Costa; PEREIRA, Denise de Castro. O projeto Minas-Rio e o desafio

do desenvolvimento territorial integrado e sustentado: a grande mina em Conceição

do Mato Dentro (MG). CETEM/MCTI, 2011.

BITTENCOURT, Carlos Alberto. A corporatização do território de Conceição do

Mato Dentro (MG) pela mineradora Anglo American: Estratégia Corporativa e

subordinação do lugar. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, CPDA, 2017

BOURDIEU, Pierre et al. O poder simbólico. 1989.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A comunidade tradicional. Cerrado, Gerais, Sertão:

comunidades tradicionais dos sertões roseanos. Montes Claros, 2010.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Reflexões sobre como fazer trabalho de

campo. Sociedade e cultura, v. 10, n. 1, 2007.

BRANDT MEIO AMBIENTE. Estudo de Impacto Ambiental. MMX - Minas Rio

Mineração e Logística Ltda, 2007.

BRONZ, Deborah. Empreendimentos e empreendedores: formas de gestão,

classificações e conflitos a partir do licenciamento ambiental, Brasil, século XXI.

2011. Tese de Doutorado. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Programa de Pós-graduação em antropologia social. Rio de Janeiro.

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

130

CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a

transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975.

CATANI, Afrânio Mendes; NOGUEIRA, Maria Alice; HEY, Ana Paula; MEDEIROS,

Cristina Carta Cardoso de. (Organização). O Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2017 (400 p.)

CARDOSO, Ruth. “Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das

armadilhas do método”. In: Cardoso, Ruth (org). A Aventura Antropológica: Teoria e

Pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

CARVALHO, David Ferreira; CARVALHO, André Cutrim. Desindustrialização e

reprimarização da economia brasileira contemporânea num contexto de crise financeira

global: conceitos e evidências. Revista Economia Ensaios, v. 26, n. 1, 2011.

CARVALHOSA, Natália. "Fora Daqui Não Sei Andar": Movimentos de Roça,

Transformações Sociais e Resistência da Honra em Comunidades Rurais de Minas

Gerais. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e

Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), 2016.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade (vol. II). São Paulo, Paz e Terra, 1999.

CASTRO, E. M. R.; ALONSO, S. ; NASCIMENTO, S. . Mineração na Pan-Amazônia:

neoextrativismo, colonialidade e lutas territoriais. In: Andrea Zhouri, Paula Bolados e

Edna Castro. (Org.). Mineração na América do Sul. 1ed.Sao Paulo: Annablume, 2016,

v. 1, p. 155-180

CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre" la gran obra de la

propiedad". Grupo Planeta (GBS), 2007.

COSTA FILHO, Aderval. Quilombos e povos tradicionais. Grupo de Estudos em

Temáticas Ambientais, 2011.

COSTA, J. R. Conceição do Mato Dentro: fonte da saudade. Belo Horizonte: Itatiaia,

1975.

DE CASTRO, Edna. Território, biodiversidade e saberes de populações tradicionais.

NAEA, 1998.

DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÃO MINERAL (DNPM). Anuário

Mineral Brasileiro: Principais Substâncias Metálicas, v.1, Brasília, 2017.

DIEGUES, Antônio Carlos Sant'Ana. Repensando e recriando as formas de apropriação

comum dos espaços e recursos naturais. Espaços e recursos naturais de uso comum,

2001.

DIVERSUS. Adendo ao Diagnóstico Socioeconômico Área Diretamente Afetada

(ADA) e Área de Influência Direta (AID) da Mina da Anglo Ferrous Minas-Rio

Mineração S/A - Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Dom

Joaquim/MG. Belo Horizonte, 2012.

DIVERSUS. Diagnóstico Socioeconômico da Área Diretamente Afetada e da Área

de Influência Direta do empreendimento Anglo Ferrous Minas-Rio Mineração S.A.

Lavra a Céu Aberto com Tratamento a Úmido Minério de Ferro - Conceição do

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

131

Mato Dentro, Alvorada de Minas e Dom Joaquim/MG - DNPM Nº: 830.359/2004 -

PA/Nº. 00472/2007/004/2009 - Classe 06. Belo Horizonte, 2011.

ESCOBAR, Arturo; ESCOBAR, Arturo. La invención del Tercer Mundo:

construcción y deconstrucción del desarrollo. Editorial Norma, 1998.

ESTADO DE MINAS. MPs ouvem queixas das comunidades. Disponível em:

https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2012/04/18/internas_economia,289433/m

ps-ouvem-queixas-das-comunidades.shtml. Acesso em: 30/04/2019

ESTEVA, Gustavo. Desenvolvimento. Dicionário do desenvolvimento: guia para o

conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, p. 59-83, 2000.

FERREIRA ROCHA. Projeto de Extensão da Mina do Sapo – Caracterização do

Empreendimento – Áreas de Estudo – Referências Legais, setembro, 2015.

FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas (trad. Roberto Cabral de Melo

Machado e Eduardo Jardim Morais). Rio de janeiro: Nau, 2001.

GALIZONI, Flávia Maria. A terra construída: família, trabalho e ambiente no Alto

Jequitinhonha, Minas Gerais. Banco do Nordeste do Brasil, 2007.

GALIZONI, Flávia Maria. Terra, ambiente e herança no alto Jequitinhonha, Minas

Gerais. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 40, n. 3, p. 77-96, 2002.

GESTA, POEMA, MAM, REAJA & Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular.

Transformações socioambientais e violações de direitos humanos no contexto do

empreendimento Minas-Rio em Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e

Dom Joaquim, Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.

GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social na Zululândia moderna.

Antropologia das Sociedades Contemporâneas. Métodos, 1987, 237-364.

GONÇALVES, Reinaldo. Competitividade internacional e integração regional: a

hipótese da inserção regressiva. Revista de Economia Contemporânea, v. 5, n. 3, 2001.

GUDYNAS, Eduardo. Extractivismos en America del Sur: conceptos y sus efectos

derrame. Mineração na América do Sul: neoextrativismo e lutas territoriais. São

Paulo: Ed. Annablume, p. 23-43, 2016.

GUDYNAS, Eduardo. Extractivismos: ecología, economía y política de un modo de

entender el desarrollo y la naturaleza. CEDIB, Centro de Documentación e

Información Bolivia, 2015.

GÜNTHER, Hartmut. Pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa: esta é a questão.

Psicologia: teoria e pesquisa, 2006, 22.2: 201-210.

GUSTIN, Miracy Barbosa; SANTOS, Boaventura de Sousa. Impactos da Mineração na

região de Conceição do Mato Dentro. Projeto Internacional de Pesquisa Cidade e

Alteridade, iniciativa conjunta da UFMG, da UFV, da UI e do CES/UC. Disponível

em:< http://cimos. blog. br/wpcontent/uploads/2013/08/RELAT% C3% 93RIO-

5_CONCEI% C3, v. 87, p. C3, 2013.

HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à

multiterritorialidade. 1.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 400p.

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

132

HAESBAERT, Rogério. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho

de Geografia, v. 29, n. 1, 2005.

HARVEY, David. Novo imperialismo (O). Edições Loyola, 2004.

INSTITUTO BRASILEIRO DE MINERAÇÃO (IBRAM). Comércio Externo da

Mineração Brasileira – Versão Janeiro de 2019. Brasília, 2019.

INSTITUTO BRASILEIRO DE MINERAÇÃO (IBRAM). Compensação Financeira

pela Exploração de Recursos Minerais – Versão Janeiro de 2019. Brasília, 2019.

INSTITUTO BRASILEIRO DE MINERAÇÃO (IBRAM). Economia Mineral do

Brasil – Setembro de 2018. Brasília 2018.

INSTITUTO BRASILEIRO DE MINERAÇÃO (IBRAM). Informações e análises da

economia mineral Brasileira. Brasília, 2012.

INSTITUTO BRASILEIRO DE MINERAÇÃO (IBRAM). Informações sobre a

Economia Mineral Brasileira – 2015. Brasília, 2015.

INSTITUTO BRASILEIRO DE MINERAÇÃO (IBRAM). Relatório Anual de

Atividades (Julho de 2017-Junho de 2018). Brasília, 2018

INSTITUTO BRASILEIRO DE PESQUISA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo

Agropecuário 2017. Brasília, 2017

LEITE, Luciana. “A empresa que é grande vai só crescendo e nós pequenos só

diminuindo” – Análise da controvérsia das disputas sobre a ‘categoria atingido’ no

caso do empreendimento Minas-Rio. Trabalho de Conclusão de Curos. Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,

2017.

LEOPOLDI, José Sávio. Rousseau-estado de natureza, o “bom selvagem” e as sociedades

indígenas. Obtido via internet: http://www. unioeste.

br/cursos/beltrao/economiadomestica/materiais/rousseu_bom_selvagem. pdf, em, v.

21, 2002.

LEROY, J. P. Justiça Ambiental. FASE, 2011.

LIMA, Marta Goreth Marinho; PEREIRA, Elves Marcelo Barreto. Populações

tradicionais e conflitos territoriais na Amazônia. Revista Geografias, v. 3, n. 1, p. 107-

119, 2007.

LITTLE, Paul E. Territórios socias e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia

da territorialidade. 2002.

MARTÍNES-ALIER, Juan. Correntes do Ecologismo. In: O ecologismo dos pobres:

conflitos ambientais e linguagens de valoração, 2009.

MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1986.

MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca em sociedades arcaicas. In:

Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp, 1974.

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

133

MENDRAS, Henri; DA SILVEIRA LINDOSO, Maria José. Sociedades camponesas.

Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MILANEZ, Bruno. O novo marco legal da mineração: contexto, mitos e riscos. Novo

marco legal da mineração no Brasil. Para quê? Para quem, p. 19-88, 2012.

MILANEZ, Bruno; SANTOS, Rodrigo Salles Pereira dos. Neodesenvolvimentismo e

neoextrativismo: duas faces da mesma moeda. 37o. Encontro Anual da ANPOCS,

2013.

MILANEZ, Bruno; SANTOS, RSP dos. Minería en Brasil: Problemas, perspectivas y

desafios. Extractivismo: nuevos contextos de dominación y resistenciais.

Cochabamba: CEDIB, p. 133-154, 2014.

MOURA, Margarida Maria. Os deserdados da terra. Rio de Janeiro: Bertrand do

Brasil, 1988.

OLIVEIRA, Raquel. Dividir em Comum: práticas costumeiras de transmissão do

patrimônio familiar no Médio Jequitinhonha. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado

em Sociologia, FAFICH-UFMG, 2008.

PAOLIELLO, Renata Medeiros. Estratégias possessórias e constituição de espaços

sociais no mundo rural brasileiro: o contexto da Baixada do Ribeira. NIEMAYER, Ana

Maria & e GODOI, Emília P. de (orgs.). Além dos Territórios. Campinas: Mercado

de Letras, 1998.

PEREIRA, Denise de Castro; BECKER, Luzia Costa; WILDHAGEN, Raquel Oliveira.

Comunidades atingidas por mineração e violação dos direitos humanos: cenários em

Conceição do Mato Dentro. Revista Ética e Filosofia Política, [s.l.], 16.1, p.124-150,

2013.

POLANYI, Karl. A grande transformação. Leya, 2013.

PRATES, C. G. Mineração em Conceição do Mato Dentro: uma análise da REASA

como instância de ‘resolução’ de conflito. Monografia. Curso de Ciências

Socioambientais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de

Minas Gerais: Belo Horizonte, 2014.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre

civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976.

RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do Poder. Ed. Tradução: Maria Cecília França. São

Paulo: Ática, 1993. 266p.

REPRESENTAÇÃO MPF. Violações de Direitos Humanos na ADA e AID – Projeto

Minas-Rio. Conceição do Mato Dentro, 2012

RIBEIRO, E. M. ; GALIZONI, F. M. ; CALIXTO, J. S. ; Assis, T. P. ; AYRES, E.

B.; SILVESTRE, L. H. A. . Gestão, uso e conservação de recursos naturais em

comunidades rurais do Alto Jequitinhonha. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e

Regionais, v. 7, p. 77-99, 2005.

RIBEIRO, Gustavo Lins. Ambientalismo e desenvolvimento sustentado: ideologia e

utopia no final do século XX. Ciência da informação, v. 21, n. 1, 1992.

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

134

ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era

das finanças. Boitempo Editorial, 2017.

ROLNIK, Raquel. Report of the Special Rapporteur on Adequate Housing as a

Component of the Right to an Adequate Standard of Living, and on the Right to

Non-discrimination in this Context, Raquel Rolnik: Addendum: Summary of

Communications Sent and Received from Governments and Other Actors. UN,

2009.

ROTHMAN, Franklin Daniel. Vidas alagadas: conflitos socioambientais,

licenciamento e barragens. Editora UFV, Universidade Federal de Viçosa, 2008.

SACHS, Wolfgang. Dicionário do desenvolvimento: guia para o conhecimento como

poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

SANTOS, Ana Flávia. Relatórios Antropológicos elaborados para o Ministério Público

Federal, acerca do empreendimento minerário em Conceição, 2009/2010

SANTOS, Ana Flávia M. Não se pode proibir comprar e vender terra: Terras de ocupação

tradicional em contexto de grandes empreendimentos. Formas de matar, de morrer e

de resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2014.

SANTOS, Ana Flávia; ZUCARELLI, Marcos Cristiano. Entre o real e o suposto: Pode

um mineroduto operar sem uma mina para a captação do minério? In: 38º Encontro

Anual da ANPOCS, 2014, Caxambu, MG, 2014

SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma cartografia simbólica das representações sociais:

o caso do direito. 1988.

SANTOS, Rodrigo; MILANEZ, Bruno. A RGP da Anglo American e Conflitos

Socioambientais na Mineração de Ferro: valor, poder e enraizamento no Projeto Minas-

Rio. Anais da 39ª Reunião da ANPOCS, 2015.

SCOTT, James C. Exploração normal, resistência normal. Revista brasileira de ciência

política, n. 5, p. 217-243, 2011.

SMITH, Roberto. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade

privada da terra e transição para o capitalismo. São Paulo. Brasiliense, 1990.

SOARES, Luiz Eduardo. Campesinato: ideologia e política. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1981.

STARLING, Heloisa Maria Murgel; RODRIGUES, Henrique Estrada; TELLES,

Marcela. Utopias agrárias. Editora UFMG, 2008.

SVAMPA, Maristella Noemi. Consenso de los Commodities y lenguajes de valoración

en América Latina. 2013.

TCHAYANOV, Alexander V.; CABRAL, Manuel Villaverde. Teoria dos sistemas

económicos não-capitalistas (1924). Análise Social, p. 477-502, 1976.

TEIXEIRA, Raquel Oliveira Santos. Dividir em Comum: Práticas costumeiras de

transmissão do patrimônio familiar no Médio Jequitinhonha-MG. 2008.

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

135

UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. Human Development Indices

and Indicators - 2018 Statistical Update, 2018.

VAINER, Carlos. O conceito de atingido. Uma revisão do debate e diretrizes. Rio de

Janeiro: Mimeo, 2003.

WELCH, Clifford Andrew et al. Camponeses brasileiros: leituras e interpretações

clássicas, v. 1. Editora UNESP; NEAD, 2009.

WOLF, Eric. Tipos de campesinato latino-americano: uma discussão

preliminar. Antropologia e poder, p. 114-117, 2003.

WOORTMANN, E. F. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do sul e sitiantes do

nordeste. São Paulo-Brasília: HUCITEC/Editora da Universidade de Brasília, 1995.

WOORTMANN, Ellen F. O sítio camponês. Anuário Antropológico, v. 81, p. 164-203,

1983.

WOORTMANN, Ellen. Parentesco e reprodução camponesa. Ciências sociais hoje, v.

85, p. 192-219, 1985.

WOORTMANN, Klaas. Com parente não se neguceia: o campesinato como ordem

moral. Anuário antropológico, v. 87, n. 1966, p. 11-73, 1990.

ZHOURI, A., OLIVEIRA, R. MOTTA, L. Deslocamentos Múltiplos e a

compulsoriedade do desenvolvimento: urbanização e barragens em face aos lugares.

Trabalho apresentado no XXXI International Congress of the Latin American Association

(LASA), Washington D.C - EUA, 29 May- 1st June, 2013. Painel: Deslocamentos e

desigualdades no Capitalismo Global Contemporâneo.

ZHOURI, Andréa et al. O desastre da Samarco e a política das afetações: classificações

e ações que produzem o sofrimento social. Ciência e Cultura, v. 68, n. 3, p. 36-40, 2016.

ZHOURI, Andréa. Justiça ambiental, diversidade cultural e accountability. Desafios para

a governança ambiental. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 68, 2008.

ZHOURI, Andrea; BOLADOS, Paola; CASTRO, Edna. Mineração na América do Sul:

neoextrativismo e lutas territoriais. São Paulo: Ed. Annablume, 2016.

ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens; PAIVA, Angela. Uma sociologia do

licenciamento ambiental: o caso das hidrelétricas em Minas Gerais. A insustentável

leveza da política ambiental, p. 89-116, 2005.

ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, KLEMENS; PEREIRA, Doralice Barros. Introdução.

In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, KLEMENS; PEREIRA, Doralice Barros. A

insustentável leveza da política ambiental: desenvolvimento e conflitos

socioambientais. Autêntica Editora, 2005.

ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. Quando o lugar resiste ao espaço: colonialidade,

modernidade e processos de territorialização. Desenvolvimento e conflitos ambientais,

v. 1, p. 439-462, 2010.

ZUCARELLI, Marcos Cristiano., SANTOS, Ana Flávia Moreira. (2016). Mineração e

conflitos sociais no contexto urbano: o caso da mineração Minas-Rio, Brasil. In:

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

136

ZHOURI, Andréa; BOLADOS, Paola; CASTRO, Edna (Org.) Mineração na América

do Sul: neoextrativismo e lutas territoriais. São Paulo: AnnaBlume, 319-340, 2016.

DOCUMENTOS

Ata 38º Reunião da URC Jequitinhonha, 2009

Ata 42º Reunião da URC Jequitinhonha, 2010

Ata 43º Reunião da URC Jequitinhonha, 2010

Ata 77º Reunião da URC Jequitinhonha, 2010

Ata 89º Reunião da URC Jequitinhonha, 2014

Ata 100º Reunião da URC Jequitinhonha, 2016

Ata 28º Reunião da CMI, 2018

Ata 290096/2010

AFB-EXT:004/2010

AFB-EXT: 091/2010

AFB EXT: 102/2010

AFB-EXT 118/2010

Parecer Único SISEMA Nº 001/2008, 2008.

Parecer Único SISEMA, 2013.

Parecer Único SISEMA, 2015.

Parecer Único SISEMA, 2016.

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

137

ANEXOS

CONDICIONANTES LI “STEP 1”

Condicionante 45 : Apresentar versão revisada e definitiva do total de propriedades rurais

a serem impactadas – total e parcialmente – em associação com a localização das

estruturas do empreendimento para a exploração das serras Sapo/ Ferrugem (cava, pilha

estéril, barragem de rejeitos, usina industrial, canteiro de obras, alojamentos, sistema de

captação e adução de água nova, subestação de energia, medida compensatória). A

listagem final deverá conter, no mínimo, para cada propriedade: nome do proprietário,

condição do produtor (proprietário, posseiro, parceiro, arrendatário); benfeitorias

reprodutivas e não-reprodutivas; área total e área atingida; número de famílias e

população residente; atividades econômicas; mão-de-obra empregada

Condicionante 46: Apresentar o levantamento de: - propriedades rurais localizadas nas

áreas necessárias à implantação dos sistemas de captação e adução de água nova para o

empreendimento; - propriedades rurais localizadas na área destinada à implantação

da sub estação que irá fornecer energia para o empreendimento; - pontos e

estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços situados nos trechos que serão

sujeitos a intervenções na MG 010 e demais estradas da área de inserção do

empreendimento. Identificar cada um deles segundo o nome do proprietário e apresentar

proposta de medida mitigadora e compensatória para os proprietários rurais de áreas

afetadas pela implantação dos sistemas de fornecimento de água e de energia elétrica e

para os donos de pontos e estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços a serem

possivelmente desativados devido a intervenções provocadas pelo empreendimento na

rede viária.

Condicionante 55: No âmbito do desenvolvimento Programa de Negociação Fundiária:

55.1 Considerar integralmente todos os pressupostos e diretrizes expressos no documento

“Informações Complementares ao EIA /RIMA” do empreendimento, editado pelo

SISEMA;

55.2 Comprovar a aquisição das áreas necessárias à instalação das estruturas do

empreendimento e a efetivação dos demais ressarcimentos junto aos respectivos

proprietários rurais e demais produtores e moradores - vinculados e envolvidos no

processo negocial das mesmas.

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

138

55.3 Comprovar a aquisição de áreas para reassentamento na região de inserção do

empreendimento e a efetivação dos demais ressarcimentos junto aos demais produtores

atingidos optantes por outras modalidades indenizatórias.

55.4 Apresentar projeto negocial específico e detalhado a ser desenvolvido ou em

desenvolvimento com os seguintes grupos de interesse: - comerciantes e prestadores de

serviços a terem seus estabelecimentos desativados devido à readequação da malha

viária exigida à implantação do empreendimento, - proprietários rurais das áreas onde

serão implantados os sistemas de abastecimento de água nova e de fornecimento de

energia elétrica para o empreendimento.

55.5 Apresentar proposta negocial específica para populações a serem atingidas pela

implementação da medida ambiental compensatória do empreendimento (UC).

55.6 Incluir no público-alvo do programa de reassentamento (direito a terra, moradia e

apoio a produção) os produtores herdeiros que são chefes de família e compartilham

mesma terra e residência com os pais. Comprovar resultados no PCA.

55.7 Apresentar os resultados do Cadastro Patrimonial e Social, as minutas de acordo

com cada categoria de atingidos e os anteprojetos de reassentamento rural, incluindo

alternativas de áreas viáveis à sua implantação na região de inserção do empreendimento.

55.8 Comprovar condução autônoma e livre no processo negocial exercido com os

grupos de produtores rurais não proprietários e de empregados rurais atingidos,

independentemente de realização de consulta obrigatória aos donos da terra. Garantir-

lhes as condições originais (em termos de trabalho, moradia, produção, renda) nos casos

em que não houver possibilidade ou interesse do proprietário de mantê-los na sua nova

propriedade ou na área remanescente. Apresentar os resultados.

55.9 Estruturar os projetos de reassentamento em conformidade, também, com as

diretrizes expressas nos termos dos Anexos II e III da Deliberação Normativa COPAM

nº 88 de 13/9/2005; 55.10 Apresentar os projetos executivos dos reassentamentos;

das relocações internas dos bens afetados para as áreas remanescentes das propriedades

atingidas; e das relocações do sistema viário e de eventuais equipamentos de serviços

sociais básicos e comunitários.

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

139

Condicionante 77: Submeter à aprovação do INCRA o projeto especial de

negociação fundiária com as comunidades afro-descendentes de água Santa e Serra

Ferrugem, incluindo o processo de reassentamento rural.

CONDICIONANTES LI FASE 1 “Step 1”

Condicionante 54: Apresentar ações já desenvolvidas com as comunidades de Água

Santa e Ferrugem pelas equipes de Relações com a Comunidade (RCC) e de Gestão

Fundiária durante as duas primeiras etapas do Programa de Comunicação social

(“De estudos iniciais até a Licença Prévia” e “Da Licença Prévia à Licença de

Instalação”) “evidenciando a linha de conduta do empreendedor em criar condições de

evolução do processo numa base de diálogo e entendimento com as comunidades

afetadas”.

Condicionante 65: Comprovar processo de interação com as comunidades afetadas

durante as negociações fundiárias coletivas a serem realizadas. Essa interação deverá ser

comprovada antes da aquisição de duas propriedades de Ferrugem e uma de Água Santa

necessárias à instalação do empreendimento nessa primeira fase.

Condicionante 68: Garantir a participação de instituição externa representativa das

categorias atingidas, citadas no Programa de Negociação Fundiária, em todas as reuniões

de negociação, especialmente as que envolvam as comunidades de Ferrugem e Água

Santa e na Comissão de Assistência Social.

Condicionante 69: Para as 32 propriedades já adquiridas deverão ser apresentadas

informações acerca da possível situação de vulnerabilidade dos proprietários e não

proprietários, para verificação da necessidade de inclusão ou não no programa de

Negociação Fundiária.

CONDICIONANTES LI FASE II “Step 1”

Condicionante 58: Apresentar análise técnica individualizada da avaliação da viabilidade

da continuidade das atividades econômicas e produtivas e das condições de permanência

das famílias residentes na área remanescente de cada uma das propriedades rurais a serem

parcialmente afetadas pelo empreendimento e, a correspondente análise dos

respectivos proprietários/posseiros/ocupantes.

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

140

Condicionante 60: Apresentar os projetos executivos dos

reassentamentos/remanejamentos individuais/coletivos, bem como das alternativas de

áreas viáveis à sua implantação na região de inserção do empreendimento.

Condicionante 61: Incluir nos Programas de Negociação Fundiária e de

Reestruturação Produtiva, conforme disposto no item 5.1.7 do Termo de Acordo de

Irapé, “parceiros e agregados, juntamente com suas respectivas entidades familiares,

que residam e/ou trabalhem regularmente no espaço diretamente impactado" e item

5.1.8.1 onde determina que “a área de cada lote deverá ser igual a 1 (um ) módulo fiscal

definido pelo INCRA vigente no município onde se dará o reassentamento”.

Condicionante 62: Incluir no Programa de Reestruturação Produtiva os herdeiros

não residentes, contemplados pelo Programa de Negociação Fundiária, que optarem pelo

remanejamento individual/coletivo.

Condicionante 64: Comprovar a contratação dos profissionais (um agrônomo e um

assistente social) para atuação no âmbito do Programa de Negociação Fundiária e

no Programa de Reestruturação Produtiva.

Condicionante 66: Comprovar a aquisição de áreas necessárias ao

remanejamento individual/coletivo.

Condicionante 67: Apresentar relatórios com documentos hábeis a comprovar os

acordos com cada categoria de atingidos contempladas no Programa de Negociação

Fundiária, pertinentes às propriedades/posses a serem adquiridas pelo empreendimento.

Condicionante 70: Incluir, no novo Programa de Negociação Fundiária realizado a partir

da condicionante 91, os moradores considerados diretamente impactados/atingidos pelo

levantamento que está sendo realizado pela empresa Diversus e que não tenham sido

contemplados, até o momento, no Programa de Negociação, garantindo aos mesmos o

direito de optar pelas formas de negociação dispostas no programa, condicionada

a inclusão à aprovação da URC Jequitinhonha.

Condicionante 72: Apresentar, para as 32 propriedades adquiridas antes da apresentação

do Programa de Negociação Fundiária, informações acerca da possível situação de

vulnerabilidade de todos os proprietários e não proprietários, para verificação da

necessidade de inclusão ou não no Programa de Negociação Fundiária.

PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

141

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

142

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS UNIVERSIDADE …£o Final... · agradeço por fortalecer em mim o amor pela antropologia e por ter dividido comigo, com tanta generosidade, seu

143