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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao Em Histria (Strictu Sensu)
DISSERTAO DE MESTRADO
A HISTORIOGRAFIA DAS INTERAES GRECO-SCELAS, DO SCULO VIII AO V: novas
identidades no mundo polade ocidental?
Marcello de Albuquerque Maranho
PELOTAS, 2015
Marcello de Albuquerque Maranho
A HISTORIOGRAFIA DAS INTERAES GRECO-SCELAS, DO SCULO VIII AO V: novas
identidades no mundo polade ocidental?
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Histria do Instituto
de Filosofia e Cincias Humanas da
Universidade Federal de Pelotas, como
requisito parcial obteno do ttulo de
Mestre em Histria.
Orientador: Prof. Dr. Fabio Vergara Cerqueira.
Pelotas, 2015
MARCELLO DE ALBUQUERQUE MARANHO
A HISTORIOGRAFIA DAS INTERAES GRECO-SCELAS, DO SCULO VIII AO V: novas
identidades no mundo polade ocidental?
Dissertao aprovada, como requisito parcial, para obteno do grau de Mestre em
Histria, Programa de Ps-Graduao em Histria, Instituto de Filosofia e Cincias
Humanas, Universidade Federal de Pelotas.
Data da Defesa: 23 de Abril de 2015
Banca examinadora:
.............................................................................................................................................
Prof. Dr Fabio Vergara Cerqueira (Orientador)
Doutor em Antropologia Social (Cincia Social) pela Universidade de So Paulo
............................................................................................................................................
Profa. Dra Imgart Grtzmann.
Doutora em Lingstica e Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande
do Sul.
.............................................................................................................................................
Profa Dra. Carolina Kesser Barcellos Dias
Doutora em Arqueologia pela Universidade de So Paulo
.............................................................................................................................................
Prof. Dr.Francisco Marshall
Doutor em Histria Social pela Universidade de So Paulo
Se os gregos inventaram alguma coisa, foi antes o
historiador do que a Histria.
Schepens.
enganoso ver uma analogia entre o debate
erudito e a lei criminal. Nesta, como a condenao de
um inocente muito pior do que absolvio de um
culpado, so exigidas provas para alm de dvidas
racionais. Mas nem o saber convencional nem o debate
acadmico tem os direitos morais de um acusado.
Portanto debates nestas reas no devem ser julgados
baseados em provas, mas simplesmente em
plausibilidade concorrente.
Martin Bernal, The Black Athena.
RESUMO
Esta dissertao discorre sobre como as relaes entre os gregos e os
scelos foram representadas na historiografia grega antiga. O debate limita-se
ao perodo de tempo entre a fundao dos primeiros povoamentos gregos na
Siclia e as ltimas operaes atenienses naquela ilha sculos VIII ao V
AEC1. Examinamos alguns problemas da representao historiogrfica alm de
algumas questes propostas pela Arqueologia. Abordamos os limites da
utilizao de fontes literrias bem como os da Arqueologia para representar a
antiguidade. E debatemos o julgamento atual da historiografia do sculo XIX
sobre a antiguidade e sobre a proposio e percepo de problemas histricos.
Expomos em carter hipottico o problema da construo e percepo de
uma nova identidade tnico-cultural na Siclia.
Palavras-chave: Grcia Antiga, Historiografia Grega, Scelos, Identidade,
Percepo tnico-cultural
1 AEC - Antes da Era comum / EC Era Comum equivalente a Antes de Cristo/Depois de Cristo.
ABSTRACT
This paper discusses how relations between the Greeks and the sikeloi
were drawed in ancient Greek historiography. The discussion is limited to the
time period between the foundation of the first Greek settlements in Sicily and
the latest Athenians operations on the island - the centuries VIII V BCE. We
examine the problems of historiographical representation plus some questions
posed by Archaeology. We also address the limits of the use of literary sources
and of the Archaeology to represent antiquity. And we debate the current
judgment about the historiography of the nineteenth century production about
ancient times and on XIXths proposition and perception of historical problems
of that distant age . We expose - in hypothetical character - the problem of
construction and perception of a new ethnocultural identity in Sicily.
SUMRIO
Introduo .................. 8
I Literatura, Arqueologia: delineando usos e limites ................................................. 12
I.1 Observaes gerais sobre Historiografia Grega ................................................ 14
I.1.1 O lugar da Historiografia na Grcia Antiga ...................................................... 22
I.2 Um pouco de Arqueologia: vasos, cemitrios, ossos e relquias ....................... 30
I.2.1 Cermica ......................................................................................................... 30
I.2.2 Cemitrios e enterramentos ............................................................................ 31
II As Colnias gregas apoikas, emprios e clerquias ...................................... 36
II.1 As colnias em Tucdides................................................................................ 43
III A Siclia Grega ou os gregos na Siclia................................................................. 45
III.1 Os Povoamentos gregos entre os sculos VIII e V AEC ................................. 48
III.2 Scelos .............................................................................................................. 53
IV A fundao dos povoamentos gregos e as interaes Greco-Scelas ................ 59
IV.1 O Grego e O Outro ........................................................................................... 59
IV.2 Os povoamentos gregos ante os Scelos ........................................................ 60
IV.3 O perodo intermedirio - das fundaes at as invases atenienses............ 69
IV.3.1 A expanso gelana ............................................................................ 69
IV.3.2 A revolta de Ducetius ........................................................................ 71
V As Intervenes atenienses (428-413) ................................................................. 73
V.1 No contexto da lgica da guerra contra os peloponsios .............................. 73
V.2 A grande campanha de 415-413 .................................................................. 75
V.2.1 Antecedentes .................................................................................. 76
V.2.2 A Assemblia e os preparativos para a expedio ........................... 77
V.3 A dinmica da invaso e os scelos ............................................................. 79
Concluso .................................................................................................................... 81
Referencial Bibliogrfico .............................................................................................. 84
Anexo Mapas da Siclia ............................................................................................ 93
8
INTRODUO
O estilo deste texto e a ideia que lhe deu forma bem kamikaze,
mas se quisermos adaptar esta imagem mais reconhecida do no tomorrow ao
universo grego, este texto mais o Lonidas de Plutarco: Almoo aqui, jantar
no Hades. E por que motivo? Por este texto se aventurar no universo grego
antigo de forma restrita, sem usar tanto sejam as fontes arqueolgicas, sejam
diversos tipos de fontes literrias para discutir apenas alguns textos escritos
com um fundo comum que identificamos adiante2. Embora, obviamente, ambos
Arqueologia e Fontes Literrias apaream no texto, incorri no risco de
talvez desagradar quer a arquelogos quer a literatos, para limitar o escopo
deste texto a uma dissertao, e no estend-lo a um tratado.
Utilizo autores que foram bastante crticos, quer dos limites da
Arqueologia, quer dos limites de alguns tipos de fontes literrias. Penso que
estas crticas entram antes como pedidos de desculpas, explicaes por no
utilizar em bons nmeros embora ambos apaream no interior do texto seja
uns seja outros. Gostaria que os argumentos fossem pensados antes como
marcos que delimitam o terreno por onde me movo, as trilhas que percorro,
bem prximas de ser the tracks of my tears a la Johnny Rivers.
Logo, um dos primeiros pedidos ao leitor se que um escritor pode
pedir algo a quem j lhe concedeu ateno e um tempo que talvez ele leitor,
no tenha ou o tenha de forma muito escassa um dos primeiros pedidos ao
leitor deste texto que tenha muita pacincia, pois algumas afirmaes
aparentemente chocantes e suicido-motivadoras so seguidas das explicaes
e pomadinhas para suavizar o choque logo adiante, s vezes no prprio
pargrafo. Recurso estilstico talvez um tanto batido, mas que funciona para
acordar o leitor e faz-lo em sua indignao ir ao pargrafo seguinte. Ainda que
ao risco de custar ao escritor uma boa dose de m-vontade da sua audincia.
Podemos dividir os textos em inmeras categorias conforme a
taxonomia ao gosto do examinador. A minha simples: divido-os entre textos
que eu leria com mais ou menos interesse. Um texto pode ser todo
fechadinho, seguindo mtricas e rtricas conforme os modelos do momento,
2 Ver pp. 23-6.
9
levando a uma concluso enfadonha que poderia advir de quaisquer outras 50
linhas de argumentao diferentes (por exemplo, falar de modo de produo
genericamente quando se pede falar de modo de produo Feudal para no
se incorrer no risco de falar-se mal do que pouco se conhece). Ou um autor
pode arriscar-se, com ncoras leves ou at sem elas, batalhando para
sobreviver no mar bravio. Prefiro os riscos, nunca me senti vivo sem eles, e
este texto ao menos intenta ser o reflexo desta escolha.
Isto tudo apenas considerando a metodologia, eterno terror/tdio dos
trabalhos acadmicos, mas como sempre pode haver algo ainda pior, nada do
descrito acima se compara normatizao do trabalho cientfico. Verdadeiro
calvrio para quem se joga no campo das ideias, burocracia do pensamento
acadmico: em nenhuma hiptese descartvel, mas to agradvel quanto
acordar com dores abdominais no meio da madrugada: uma coisa que voc s
quer que passe. Morte da criatividade e do entusiasmo, deveria ser encargo de
profissionais dedicados apenas a ela. Cada vez que penso em escrever um
artigo, j sei que vou levar duas horas escrevendo o artigo e duas semanas na
normatizao! No acredito muito em qualquer coisa de sobrenatural, mas a
melhor descrio que encontro aps normatizar um texto que ele perdeu
quase por completo sua alma. (Aqui, pobre de mim, o artista lamentando ter
suas asinhas cortadas, mais do que o acadmico falando. A revolta do gnio
contra a labuta diria do operrio, dois perfis cuja mistura desejvel tanto ao
acadmico quanto ao artista, embora a dose diria de um e outro em cada
mtier sejam objeto de eterno debate).
Afinal, o texto...voltamos a ele. No cap. I delineio alguns limites
possveis para se operar a histria das relaes entre gregos e scelos nos
sculos VIII a V AEC com fontes literrias gregas e no com todas as fontes,
mas com aquelas que quiseram se notabilizar por serem investigativas, as
precursoras da Histria. Discorro sobre os motivos de se fazer isso e inicio uma
reflexo sobre o deslocamento de autoridade. Aproveito a crtica que envolve
dois dos meus principais autores, Baron e Pearson. A crtica do primeiro, uma
gerao mais novo, ao segundo serve como modelo para perceber o confronto
entre o sc. XIX EC que para Baron, ainda orientaria Pearson escrevendo no
final da dcada de 80 do sculo XX e o prprio sculo XXI de Baron. Estendo
as crticas para a adoo da teoria ps-colonial enquanto modelo para
10
percepo das relaes entre dominados e dominadores. Uma discusso
sobre os mtodos dos principais historiadores gregos encerrada com uma
extensa descrio do mtodo da minha principal fonte, Tucdides. Encerro este
captulo com um artigo de Shepherd para percepo da Arqueologia funerria
ao se compor um quadro das relaes entre gregos e scelos.
No captulo II, entramos no problema da natureza dos povoamentos
estabelecidos pelos migrantes gregos na Siclia, estabelecendo antes a
diferena entre os diversos tipos de povoamentos gregos. Procuro deixar claro
porque no utilizo o termo colnias embora use autores que o utilizam.
Baseio-me na ideia de que eram empreendimentos com relaes bem
diferenciadas com a plis original em relao ao que sabemos sobre Colnias
na acepo da palavra, aquelas da relao da Europa com os outros
continentes a partir do sculo XV EC.
No captulo III entramos no problema da Siclia Grega. E retornamos a
algumas das discusses do incio ao discutirmos como essa entrada dos
gregos na Siclia foi e vem sendo descrita nos sculos XIX e XXI EC e como o
XXI descreveu o que o XIX disse a respeito. Comeamos tambm a definir
melhor quem seriam os scelos e como aparecem na literatura historiogrfica
grega.
No captulo IV discuto as interaes Greco-scelas. Explano como nem
sempre so descritas como conflituosas e como se deram no momento das
fundaes dos povoamentos gregos. Uso como exemplo alguns dos principais
povoamentos gregos, descritas a partir do ensaio de Benjamin (2006). A seguir
h a explanao de momentos do perodo intermedirio entre os marcos
temporais deste texto: a expanso de Gela e a revolta do scelo Ducetius. E
como estes momentos foram importantes para compor a nossa viso de uma
Siclia Greco-Scela como algo mais que uma zona geogrfica.
Finalmente no captulo V h uma utilizao bastante extensa da
narrativa de Tucdides, responsvel, como Loraux (1994) exps, no s por
muito do que sabemos sobre Atenas, mas tambm sobre a Grcia e sobre os
prprios gregos. E mais ainda sobre como os vemos fator mais importante
ainda neste texto. Na invaso ateniense que Tucdides descreve em dois
extensos livros de sua obra, a percepo da participao scela nos conflitos
gregos um depoimento quase extemporneo e tanto mais revelador, por
11
esse motivo de como os scelos estavam integrados aps trs sculos, nas
sociedades gregas e em seus conflitos. (No resisto a uma reflexo anedtica:
ora se os scelos chegaram antes, no seriam os gregos a estarem finalmente
integrados? As narrativas nos do a impresso contrria, mas enfim so elas
que analisamos e suas impresses).
Assim, se nos parece que a Histria Antiga sempre se nos afigurou
como uma aventura, a Academia nos a deu numa forma sensacional mas
tambm pode faz-la parecer uma coisa bem chata. E olhem que sou
daqueles que se bate pela Academia em qualquer lugar (embora c entre ns,
no penso que a Academia faa o mesmo por mim).
Embarcamos, nau quase sem rumo exceto as marcaes de ritmo do
tambor do orientador (e uma ou outra chicotada), para tentar singrar estas
guas turbulentas que foram as das relaes entre os gregos e os scelos,
grupamento tnico mais importante da ilha siciliana entre meados do sculo
VIII e o V AEC. Pobre orientador, o qual inquirimos a qualquer hora do dia ou
da noite, sem respeitar fusos horrios graas a esta desgraa que o
Facebook. E que mesmo assim, desdobrou-se para nos auxiliar em nossa
tarefa, ainda que tivesse outras muito mais complexas. No gostaria jamais de
trocar de lugar com ele, e penso que muitos dos que lerem este texto tambm
no.
Esta uma das formas que encontrei de agradecer ao meu orientador.
Mas tambm quero agradecer aos membros da banca pelas valiosas
sugestes e aos colegas da UFPel e classicistas de outras instituies pelo
apoio, estmulo e troca de ideias. A frmula batida, mas verdadeira: os erros
no texto a seguir so todos meus, e alguns acontecem apesar de inmeros
pedidos contra, pela velha questo de se manter um estilo, ftil que seja.
E assim, pensando tanto no escopo deste texto quanto no de uma vida,
racionalizo que Teodora estava errada: a Prpura no a mais bela das
mortalhas, a Liberdade que .
12
Captulo I Literatura, Arqueologia: delineando usos e limites
Estudos sobre a Antiguidade Clssica apoiaram-se desde o comeo
num trip formado pela Arqueologia, pela Literatura e pela Histria da Arte
(AUDOUZE e LEROI-GHOURAN, 1981, p.173). A abordagem que adotamos
para divergncias entre os dois primeiros componentes a definida por
Graham (1982, p.92) 3: O nico procedimento seguro [para as divergncias]
usar as fontes literrias, embora exguas, simplesmente porque so explcitas,
e interpretar a evidncia material muito mais abundante, mas inarticulada sob a
diretriz das fontes literrias. Tambm observado em Finley (1989, p. 97).
Quanto aos primeiros perodos histricos, a tradio oral e as lendas
histricas deram origem a uma complicao extraordinria. Portanto, a
questo no simplesmente correlacionar provas arqueolgicas e literrias,
mas usar a arqueologia para avaliar se, e at que ponto, a literatura tem
algum valor.
Isto no , nunca foi e nem pretende ser, a velha postura XIXviana de
Arqueologia como Cincia Auxiliar da Histria. meramente um mtodo de
abordagem para perodos confusos, onde tradio, mito e relato escrito se
misturam s evidncias materiais, mas nos quais, ao mesmo tempo, nada
consegue ser definido muito bem.
O terceiro componente, a Histria da Arte, nos ps diante de problemas
intrnsecos Literatura, talvez menos controversos, mas igualmente
complexos: nosso princpio bsico de abordagem aos textos antigos foi o
descritivo usado por Hanson (2000), um modelo de trabalho em que analisa
fontes clssicas quase de modo pictrico, usando o que as descries das
narrativas antigas diziam ou deixavam entrever quanto ao objeto que ele
Hanson se props, a batalha antiga entre hoplitas gregos. Em nosso caso, as
evidncias da literatura histrica, ou historiografia grega deixada acerca dos
povoamentos gregos na Siclia no perodo do nosso recorte.
3 The only safe procedure is to use first the literary sources, however exiguous, simply because
they are explicit, and to interpret the much more abundant, but inarticulate, material evidence under their guidance. Esta e outras citaes em ingls: traduo nossa.
13
Neste texto interessa menos o que os gregos fizeram na sua relao
com os povos que encontraram ao chegar na Siclia Oriental, mas antes como
outros gregos representaram estes encontros em obras que hoje constituem
nossas fontes literrias sobre o mundo clssico. E tambm algumas influncias
que essas representaes tiveram sobre os prprios gregos e alm, para a
nossa poca.
O Prof. Pedro Sanchez raciocina que Representao para o grego
Apresentao4. O que para ns representao para o grego podia no ser.
A mimese grega outra. No imitao. Raciocnio anlogo ao que se v em
Ankersmith (2012, pp.185-194).
O conceito de Representao por si traz uma discusso importante:
Para Ankersmith, Baron e Ricoeur, a prpria Histria j uma representao,
uma mediao entre os fatos, entre quem os descreve/analisa e um pblico
consumidor para quem o texto feito5.
Quisemos significar Representao neste texto como o duplo da
imagem, o equivalente escrito da representao pictrica6. Redimensionamos
esta concepo inicial com o uso de Ricoeur, Conte e Baron como uma
mediao entre algo representado (relaes Greco-scelas) e como as coisas
eram em si a Histria destas relaes. Histria que s vem a ser para ns e
outros psteros como representao a partir de percepes/verses
elaboradas sobre o que aconteceu7.
4 Observao emitida pelo Prof. Pedro Sanchez em aula e aqui reproduzida mediante sua
autorizao. 5 Acrescento: tambm o pblico para quem o texto no feito mas interessa-se pelo tema a
partir de uma obra de maior repercusso ou simplesmente por ser um texto de um autor j conhecido pelo pblico. E respostas muito interessantes a um texto so produzidas por um pblico no cativo ou fora do pblico-alvo (a audincia). Sartre (1975) comentou que escrevia para leitores em seu prprio pas, pensando em uma tiragem de 3 mil exemplares. Mas quando se viu lido em toda a Frana, na Europa e at na Amrica do Sul, em tiragens de 10 mil e mais exemplares, comearam a surgir um, dois, trs Sartres que eu no conhecia. Caracterizo aqui a diferena entre Audincia e Pblico. 6 Conceito delineado por Loraux de forma complexa, mas exaustiva acerca de Tucdides como
o responsvel por muito do que pensamos dos lderes atenienses, da prpria Atenas e at mesmo dos gregos nos dias de hoje. 7 Reflexo sobre Ranke e seu Wie es eigentlich gewesen nunca possvel, se a Histria for
sempre uma representao: h os fatos e h as anlises com seus valores intrnsecos e adotadas por cada indivduo, tanto os que escrevem/contam como os que so receptores dos
14
Ento na dicotomia entre evento e relato, interessa-nos mais este ltimo,
pois embora o documento no esteja ausente da poca e regio consideradas,
os poucos relatos que nos chegaram todos gregos mostram como o grego8
pensava esta relao, mais do que como a mesma se dava. E este
pensamento sobre esta representao/apresentao, o objeto do nosso exame
aqui.
O objetivo deste arrazoado inicial acerca de representaes esclarecer
o modo como opero com minha principal fonte antiga, Tucdides. E mostrar
que ele, mais que eu, tinha concepes misturando etnia e alinhamento
poltico, que sero importantes para minha concluso neste texto (pp. 81-3).
Quando digo mostrar, no guisa de novidade, intento que no busco neste
texto por ser uma mera dissertao, no uma tese9.
I.1. Observaes gerais sobre historiografia grega
O valor da Historiografia Antiga para a Historiografia Moderna pode ser
sintetizado em Graham (2001, p. 6) 10: (...) a evidncia arqueolgica tende a
demonstrar que o registro literrio em seu todo geralmente confivel
A Histria enquanto mtodo, enquanto ferramenta humana para
compreender problemas humanos, tendo o humano como medida uma
criao grega11 (FINLEY, 1960, p. 60). Nada do que se fez antes fossem
discursos e os reproduzem de acordo com seu entendimento e seus prprios valores. Debate impossvel de ser esgotado e que no cabe estender aqui. 8 Sem nos aprofundarmos demais no segmento social: alguns gregos letrados das elites, etc.
Seus relatos historiogrficos certamente ajudaram a formar mentalidades na medida em que os elaboram sobre determinados assuntos e divulgam seu pensamento. Nesta medida, foram e so formadores de opinio assim como os que lidaram diariamente com as mesmas questes de modo prtico (ex: negociar com os scelos). Se mais, se menos, no nos cabe definir, nem nosso intento. 9 Estou bem consciente do muito que foi escrito antes de mim, alis mais do que muitos textos
que tenho lido mostram seus autores estarem. Ento sempre fujo da sfrega busca pela novidade que embora necessria Cincia progresso ou no Cincia pode ser prejudicial a muitas condues e concluses textuais. No Doutorado terei de encarar a tarefa de expelir uma novidade. Mas h maneiras de se fazer um Doutorado vlido e significante sem enveredar pelo ineditismo. Se encontrado neste texto, acidental, pois que fujo dele e espero que a palavra novidade no seja encontrada em parte alguma adiante. Se o for, o autor cometeu um deslize. 10
(...) archaeological evidence is marshalled to demonstrate that the literary record is on the whole thoroughly trustworthy 11
Mesmo um raciocnio cuidadoso como o de Momigliano (1977, p. 25-35; 1993, pp 23-42, mas ver com ateno a p. 37), que busca no oriente alguns componentes para a origem da Histria
15
relatos de epopeias da criao do mundo, ou relatos edificantes dos feitos dos
monarcas orientais tomou o rumo que o mtodo grego de investigao iria
tomar. Mtodo que plantou as razes da Histria disciplina moderna,
recuperadas a partir de reflexes dos filo-helenos do sc. XIX EC, mas j
seguindo uma tradio Classicista que vinha desde o Empirismo e talvez antes
com a erudio italiana do Seicento. (MOMIGLIANO, 1990, pp. 54-79)
A origem da Histria talvez tivesse um sentimento religioso12 como
tudo o mais que os gregos, e os demais povos antigos faziam mas no mundo
helnico praticamente tudo era racionalizado a partir das possibilidades e
agncia dos humanos, deixando os deuses numa esfera prpria, embora
permeando a tudo.
Embora deuses estivessem em tudo, as explicaes caminhavam at
prescindir-se deles, at ao ponto em que homens pudessem compreender e
at mesmo reproduzir fenmenos e possibilidades. Os gregos no mostraram
conforto em repetir que os eventos se davam por que assim era a vontade dos
deuses ou em interromper seus questionamentos neste ponto. Parece antes
que a situao confortvel para os gregos era conseguir descobrir de que
modo poderiam influenciar ou ao menos minimizar as consequncias de
eventos da natureza (que no controlavam) e eventos humanos, sobre os quais
demonstraram sentir ter um grau maior de controle. Ou ao menos
possibilidades de controle, quando se tratava de grandes massas humanas
como exrcitos ou grandes empreendimentos coletivos como o Estado.
O homem de Estado, general-guerreiro da poca das formaes
hoplticas, compreendia que mesmo os eventos humanos aparentemente
mais fceis de controlar do que a Natureza quando considerados em sua
magnitude (para usar uma expresso de Tucdides13) podiam envolver foras
muito alm do controle de um nico homem. E talvez esta compreenso tenha
e principalmente do subgnero Biografia, termina por definir a Histria como a conhecemos, como tendo se originado entre os gregos. 12
Inicialmente cumprindo o papel de evocao pica, em Herdoto e nunca abandonando de todo referncias mitolgicas, pois que o Mito constitua parte integrante da educao grega. Retornaremos a isto mais adiante. 13
I, 22. Cf. tambm Finley (1960, p. 60). Obs: Cf. encontramos como conferir e confrontar. Neste texto sempre conferir.
16
engendrado nos historiadores antigos homens de Estado em exlio, em
muitos casos o projeto de simplificar a complexidade dos eventos humanos
atravs da observao, reunio, estudo e anlise desses eventos humanos.
As intenes declaradas para explicar a motivao inicial das obras dos
historiadores gregos foram muitas. No deixar que se apaguem da memria os
feitos maravilhosos dos gregos e dos brbaros14 (Hdt. I. 1). Construir um
patrimnio sempre til (enquanto a natureza humana no mudar) para lidar
com eventos humanos (Tud. I. 22). Compreender como os romanos no espao
de uma gerao assumiram o controle do mundo (Pol. I. 1) e dar suporte a um
certo Pragmatismo existencial (Pol. I. 35). Como praticamente todo grego
antigo adulto do sexo masculino, estes autores foram combatentes
experimentados e pelo menos dois deles em postos de comando. E parece que
escreviam para homens de Estado como eles mesmos foram. A Histria e a
histria era um manual orientador do homem de Estado ou uma ferramenta
para a Retrica (BARON, 2013, pp. 2; 173), que por sua vez era uma
ferramenta para a conduo dos negcios pblicos na Assembleia. A relao
com a Retrica pode explicar a) alguns problemas de impreciso descuidada
que a Histria tinha em seus princpios e b) o efeito do maravilhoso to
presente e buscado em Herdoto e vrios imitadores, e ao mesmo tempo
to criticado por sucessores de Herdoto e mesmo por seus admiradores.
Os mtodos dos gregos antigos ao escrever relatos com pretenses
histricas variavam e foram objeto de apaixonadas defesas e ataques entre
os historiadores daquela, desta e de todas as pocas. Da superioridade da
psis (olhar, testemunho direto) sobre o Ako (ouvir relatos de testemunhas)
at a cultura livresca (bibliak): de Herdoto a Timeu, passando por Tucdides.
No ensaio de Schepens (2011, cap.3), esta questo posta como uma das
grandes guinadas do mtodo histrico na antiguidade15.
Tucdides procurou deslocar Herdoto de sua posio de autoridade
criticando aqueles que davam crdito a relatos de segunda mo (I, 20) ao
14
A expresso brbaro neste texto usada na acepo grega: aquele que um no-grego. Sem os juzos de valor inerentes expresso, que os gregos lhe atribuam. 15
Tambm em Hartog (1999, p.34): A histria da historiografia ocidental pode ser descrita como um contraponto de uma histria do olhar e da audio.
17
invs de verificar por si mesmos, coisa que ele Tucdides alegava ter feito a
maior parte do tempo ao compor sua obra. Polbio, no sculo II AEC, fez a
mesma carga sobre Timeu para a histria da Siclia 16 . Timeu em seu tempo,
mais de 100 anos antes de Polbio, buscou e inclusive gabou-se de ter
conseguido (BARON, 2013, p. 82) reunir o maior nmero possvel de livros
para compor certos trechos de sua obra. Para Timeu ao contrrio de
Tucdides antes e Polbio depois este se tornara o verdadeiro valor de um
relato histrico, especialmente sobre tempos antigos: reunir o maior nmero de
obras sobre o assunto, numa espcie de anncio da filologia comparada.
Schepens nos diz que a preocupao de Timeu em reunir obras escritas
era reflexo de sua poca, cujos parmetros intelectuais eram definidos pela
Biblioteca de Alexandria. Uma poca em que a cultura escrita j tinha
claramente substitudo a oral ao contrrio da poca de Herdoto e Tucdides,
intermediria. Herdoto por exemplo, comps sua obra para ser apresentada
oralmente, em pblico. Portanto, dois sculos mais tarde, no sc. III AEC, o
livro era um valor em si, superior a relatos testemunhais, porque acima das
limitaes trazidas pela memria humana17.
Polbio, de uma gerao posterior de Timeu, nos d a impresso de
ser da corrente majoritria se pegamos o seu relato e o de Tucdides, seu
modelo. Mas o prprio Polbio declara ser da minoria metodolgica em sua
poca, crente na superioridade da psis sobre o ako, na acuidade da
informao documentada, na rejeio do mito. Declara-se minoria e inclusive
declara-se orgulhoso disso: Polbio reconhece seu relativo isolamento, mas
longe de lament-lo, ao contrrio, o celebra 18 (SCHEPENS, 2011, cap. 3)19.
Estas noes metodolgicas sobre quais os melhores tipos de fonte,
propuseram um problema no encerrado ainda hoje e seguidores de cada
abordagem j travavam cido debate nos scs. V-III AEC: o perodo que vai da
16
Aproximamo-nos de nosso objeto. 17
Um pouco guisa de chiste, desenvolvi a noo de que o relato escrito foi a coisa mais prxima de um gravador da voz humana antes deste ser inventado. 18
Polybius recognizes his relative isolation, but far from lamenting it, he embraces it: his aspiration is to emulate Thucydides (...) 19
Livro formato kindle.
18
formao do gnero literrio Histria at o momento em que podemos declar-
lo consolidado (BARON 2013, p. 93; SCHEPENS, 2011, cap. 3).
A tentativa de deslocamento de obras estabelecidas, para fora de suas
posies de autoridade e reconhecidas como tal, parece ser uma das
caractersticas mais presentes dos textos de Histria, no s entre os gregos
como hoje, mas o era marcadamente entre os gregos. Um exemplo til com
dois autores que so cruciais para este texto: A controvrsia Pearson-Baron
BARON (2013, p. 52) reconhece dois grandes estudos sobre Timeu20 em
lngua inglesa: Tuesdell Brown, de 1958 e Pearson (1988).
S que para Baron, o texto de Pearson teria sido um retrocesso
(BARON, 2013, p. 14). E prossegue referindo-se a Pearson do mesmo modo
em vrias partes de seu prprio texto, como que fazendo um negativo da
pesquisa de Pearson. A atitude de Baron para com Pearson lembra muito a de
Tucdides para com Herdoto e a de Polbio ou a de Plutarco (BARON, 2013,
p. 77), para com o prprio Timeu, os quais Baron procura desautorizar na
tentativa de reabilitar Timeu.
Baron faz uma desconstruo do texto de Pearson to profunda e
invectiva quanto Polbio faz com Timeu, ressalvando-se ataques pessoais que
Baron evita. como se o exame em detalhe das acusaes exageradas e da
polmica pessoal dos historiadores antigos, tivessem dirigido Baron a fazer o
mesmo com relao a seu antecessor. O que Baron condena em Polbio, ele
Baron o faz, aparentemente de modo inconsciente, com Pearson.
O padro do deslocamento de autoridade ao se estudar o Classicismo
nos dias de hoje, faz uma crtica ao sculo XIX EC, o perodo que estabeleceu
os cnones de estudo do Classicismo atual, alguns dos mtodos e mesmo
temticas ainda populares entre os classicistas e historiadores de hoje. A
crtica aos filehelenos do sc. XIX especialmente os Britnicos tem
basicamente duas vertentes: ora os reporta como sexistas, racistas,
20
Timeu era, j na antiguidade, a mais reputada autoridade sobre os gregos ocidentais, sejam siceliotas ou italiotas, e qual muitos escritores gregos posteriores aos sec. III AEC se referem.
19
imperialistas (que eram para os nossos padres21) ora como
metodologicamente deficientes ou contaminados em virtude dessa
Weltanschauung (coisa que nem sempre eram ou deixavam transparecer em
suas obras; ou no eram mais que os historiadores de hoje, cada um e cada
poca com suas concepes e preconceitos) 22.
Entre os gregos, no prprio nascimento da Histria tal operao tornou-
se padro na crtica velada e por isso mesmo, elegante de Tucdides a
Herdoto. O texto de Tucdides como um todo seguiu o conceito de ser uma
crtica, embora nem por isso perdesse sua criatividade ou deixasse de trazer
propostas metodolgicas para melhorar o autor criticado e o
gnero/disciplina/campo do conhecimento nascente. Mais tarde vemos o
padro deslocamento de autoridade repetir-se claramente em Polbio ao
criticar Timeu, j sem a menor discrio, mas seguindo um padro de
invectivas laborais e pessoais, o mesmo padro que o prprio Timeu usava
contra seus antecessores. O que explica tal mudana de padro na crtica,
que este seria o padro da Escola Alexandrina do sc. III (BARON, 2013, pp.
93, 256), corrente em Atenas onde Timeu vivia e possivelmente se educara.
A ironia nisso tudo? Tucdides e Polbio, e sua legio de seguidores ps-
sculo XIX EC, o classicista/historiador de campo, o prprio Herdoto em certa
medida... todos propem que o verdadeiro conhecimento s vem a partir da
observao pessoal, mais confivel do que relatos. No entanto, o que
apresentam a seu pblico? Relatos.
21
Pensar que Racismo, Sexismo e Imperialismo so expresses e ideias que no dizem nada para os valores culturais da maioria das sociedades de todas as pocas, e menos ainda para os valores das sociedades antigas pode mostrar o quanto limitante pensar nos classicistas do XIX nestes termos. No so termos inteis, mas dizem respeito nossa prpria poca: no operam com o conceito dos prprios antigos e seus valores majoritrios, que eram opostos aos nossos em muitos sentidos. Servem mais como inteno poltica, do que como reflexo acadmica sobre a antiguidade ou sociedades pr-industriais. Se valores acadmicos e polticos so indissociveis, coisa que no concordo, ainda assim preciso a dose certa para o momento certo. O Maio Francs e os anos acadmicos posteriores produziram boas reflexes a esse respeito. 22
No se trata de crtica de fundo nacional ou terceiro-mundista/ps-colonial como poderamos pensar ao ler textos que, por exemplo, criticam a noo centro-periferia em Jonathan Hall (HIRATA, 2012). No, pois a crtica ao filo-helenismo britnico do sc. XIX EC hoje frequente entre os prprios historiadores britnicos. Mesmo nestes ltimos casos ainda pode ser uma crtica terceiro-mundista, s que feita a partir de outros loci e isso pe toda a diferena.
20
Ento esse um problema da Histria ainda no superado: esperamos
que nossos leitores e ouvintes nos atribuam um grau maior de confiana em
nosso trabalho, do que fazemos quando criticamos nossas fontes (e mais ainda
quando rejeitamos o que no consideramos fontes acuradas). De certo modo
estamos dizendo que nossas pesquisas so melhores do que as realizadas
pelos nossos antecessores (incluindo nossas fontes) 23.
Mesmo Bernal, cujo problema central no o da objetividade histrica,
toca nessa questo cada vez mais evidente (1991, p. 218).
O perigo advm de uma falta de autoconscincia, e de estar alerta para o
fato de que negar ou rejeitar certas fontes porque elas esto supostamente
fora de tom com a poca, uma operao que permite ao historiador impor
qualquer padro que deseje. Isto aumenta o elemento de histria que
meramente reflete a poca e as preocupaes do historiador. No caso do
sc. XVIII, a situao foi tornada pior pela confiana dos historiadores
modernos de que eles conhecem melhor [os objetos]. Eles esto
convencidos de que, ao contrrio dos estudiosos de geraes passadas,
eles [os modernos] esto escrevendo objetivamente.24
(Grifo do autor).
No raro, o historiador/classicista/pesquisador reconhece que tem
preconceitos, mas no os detalha ou o faz apenas en passant, e no menciona
mais o assunto, voltando carga contra seus antecessores, em tentativa de
sobrelevar o prprio trabalho custa dos demais. Tendncia em nada nova,
mas j presente no prprio Herdoto em relao a Hecateu, em Tucdides para
com Herdoto e Polbio com Timeu, se ficarmos apenas com binrios famosos
da antiguidade.
23
Neste ponto nos deparamos com a questo utilitarista de tais crticas, proposta por Baron (2013) para explicar a rejeio dos romanos (por exemplo) a grande parte da historiografia grega que no nos chegou: para que ler um texto novo sobre o mesmo assunto se j h um bom texto sobre ele? Era preciso para ter seu trabalho reconhecido, ao menos chamar a ateno sobre ele deslocar a autoridade de textos anteriores, mostrar que se acrescentava alguma coisa, que se fazia um relato melhor. 24
The danger arises from a lack of self-consciousness and the awareness that by neglecting or rejecting certain sources because they are supposed to be out of tune with the age concerned, the historian can impose almost any pattern he chooses. This increases the element of history that merely reflects the age and concerns of the historian. In the case of 18
th century, the
situation was made worse by modern historians confidence that they knew better. They were convinced that, unlike earlier scholars, they were writing objectively
21
No sculo XXI no Brasil, intenta-se esse mesmo deslocamento de
sentido coletivamente, no de um historiador/classicista especfico em relao
a outro. Mas de um modo quase inconsciente, projetamos crticas ao sculo
XIX Britnico tambm pelos motivos que falamos acima para que sobreleve
nossa prpria abordagem. O sucesso disto relativo e inconsistncias sempre
surgem, algumas das quais apontamos neste texto25.
Sad (2011) traa um panorama que vai do mito historiografia e pensa
o sc. V AEC como historiografia cientfica 26. Concordamos que os mtodos
e objetivos so o embrio da Histria enquanto Cincia, mas preferimos no
nomear nada cientfico antes do sc. XIX EC, assim como o termo
Imperialismo nos parece muito deslocado para a Antiguidade, mesmo para
falar de Imprio Romano uso constante em textos acadmicos como Campos
(2013), que esclarece que usa o termo a partir de um conceito moderno
projetado na antiguidade para dimensionar uma dada situao. Destarte,
preferimos falar de Imperialismo seguindo a mtrica de Lnin, que o
popularizou enquanto conceito e de Hobson que o criou, um processo situado
em finais do XIX EC-incio do XX. Perodo para o qual o termo foi criado.
No cremos que haja termo substituto. Por exemplo, os atenienses no
usam nem poderiam a expresso Imprio em parte alguma quando se
referem ao conjunto das pleis que dominavam. Em Tucdides, a expresso
traduzida como nosso Imprio nas edies brasileiras, sempre aparece no
original grego como nosso comando nossa autoridade nosso domnio e
principalmente nossa hegemonia (I. 75; II. 62; III. 46-47; V. 91, 97, 99; VI. 18,
82, 90; VII. 63, 75).
A denominao deve ser conforme o caso e no seguindo conceitos
modernos para situaes aparentemente similares que no o eram.
Considerando toda a sua histria, nunca ficou claro que mesmo o Imprio
Romano tenha surgido a partir de um projeto ou um sistema como o expresso
nas teorias do sec. XIX AEC. Era uma questo de dominar os vizinhos para
25
Marcadamente a recusa em situar na prpria antiguidade muitos dos preconceitos que localizamos nas abordagens britnicas, conforme j destacamos. 26
Caracterizada por Anlise Crtica e Conscincia Autoral. Esta ltima em oposio ao relato mtico, de carter coletivo e cultural.
22
no ser dominado, e medida que as fronteiras se expandiam, dominava-se
mais e mais vizinhos at o limite de sua capacidade administrativa/recursos.
Nem parece tambm que os romanos tenham atrelado produo material e
economia conceito ainda incipiente na antiguidade a um suposto projeto de
dominao.
I.1.1 O lugar da Historiografia na Grcia Antiga
Por que escolher os homens que se propuseram escrever a Histria da
Siclia para retratar estas relaes entre gregos e no-gregos na ilha? Decerto
relatos literrios27, poticos, filosficos tambm compem uma teia de
observaes, informaes e anlises para o conhecimento de um perodo da
antiguidade em um dado lugar. Nossa escolha deriva de dois problemas: a) O
interesse que temos em perceber os processos de construo do gnero
Histria to grego em suas origens consoante com o objetivo de elucidar os
processos histricos e sociais de uma rea geogrfica bem menos explorada e
documentada do que a Grcia Heldica28. Especialmente quanto s interaes
de gregos e no-gregos, destes os scelos, em especial. b) O fato de que o
gnero Histria se definia por ser aquele que objetivava traduzir o Real em
termos humanos, construir uma inteligibilidade humana para eventos e
problemas humanos, singularidade da Histria em relao a outras
composies escritas.
Sobre esse grupo de homens que modernamente, os ltimos sculos
convencionaram chamar historiadores gregos, talvez um trao comum os
rena: muitos foram os que, no mundo antigo, comearam a escrever sobre
outras coisas e terminaram fazendo uma Histria incidental, como Aristteles,
27
Referimo-nos aqui a outros gneros literrios diversos do gnero Histria. 28
Hlade, heldico Regio e gentlico; referem-se parte do Mundo Grego considerada historicamente a matriz do restante, localizada no sul da pennsula dos Blcs. Dali partiram os movimentos migratrios para as demais regies do mundo mediterrnico e euxnico. HALL (2000, pp. 6; 90-124) pensa que a chegada dos gregos na Hlade e suas migraes entre os sculos VIII e VI AEC so parte de uma mesma dinmica, sem hiatos.
23
Luciano de Samosta e o prprio Plutarco em certa medida, que para meus
objetivos, trato aqui como historiador.
O que diferenciava o grupo maior de escritores que acabam fazendo
investigaes sobre origens para expor seus objetos, daquele seleto grupo que
se dedicou apenas ao relato e anlise das relaes humanas, precisamente
isto: a dedicao. E um pouco mais, a concepo: eles se preparam para
escrever Histria, definiram-na como seu objeto desde antes do seu trabalhado
comeado, ou talvez mesmo depois que tinham reunido seu material, no
importa. O que importa aqui que o carter da sua produo no compreendia
outro intento botnica, metafsica, comdia de costumes, etc que no fosse
investigao, relato e anlise sobre relaes humanas, especialmente entre
estados. Nem todos foram felizes na tentativa, cito Xenofonte cuja obra carece
da clareza, da objetividade e mesmo da consistncia do antecessor que quis
imitar, Tucdides29. E o prprio Herdoto em alguma medida foi meio
inconsistente na tentativa: compreensvel, pois se no foi o iniciador, foi uma
espcie de pioneiro a inspirar os demais. O insucesso de Herdoto deve-se a
fama exagerada at certo ponto de mentiroso que adquiriu, mesmo entre
seus admiradores (BARON, 2013, pp. 75-7; HARTOG, 1999, pp. 33-4,
MOMIGLIANO, 1990, p. 40). Fama cujo responsvel foi em grande parte,
Plutarco 30.
preciso lembrar que os gneros de escrita no estavam to bem
definidos para os gregos quanto o esto para ns. Apesar de a Histria
inclusive a da Siclia j ter se consolidado enquanto gnero em meados do
sc. III AEC (BARON, 2013, p. 93), vemos Estrabo gestar uma obra intitulada
Geografia no sc. I e na qual constavam muitos apontamentos de Histria
Local (Orografias).
Algumas das observaes de Estrabo sobre histria de pleis helnicas
no so encontradas em outros textos antigos, inclusive naqueles que
29
Tucdides critica tanto Atenas, que nos demoramos at conseguir v-lo como ateniense, e tampouco espartano. Sua identidade fica meio perdida, e isto favorece a viso de seu texto como isento. Pelo menos at que comea a invectiva contra as lideranas do partido popular. Xenofonte ao contrrio, deixa bem claro seu laconismo. 30
Da Malignidade de Herdoto, de fins do sec. I EC teria sido a obra a definir a imagem de Herdoto para as geraes futuras.
24
atriburam a si o gnero Histria. Por outro lado, Plutarco recusa o epteto
historiador no sc. I EC, ao compor sua obra sobre vares ilustres de Grcia e
Roma e at da Prsia dizendo estar escrevendo biografias. De fato est,
mas preciso dar-lhe muito crdito neste momento humilde para no
considerar vrios de seus relatos nesta obra como sendo de Histria. Alguns
deles com informaes sobre personagens e eventos que no se encontra em
qualquer outra obra antiga chegada aos nossos dias. Chialva (2010, pp. 154-
162) aprofunda bastante o debate sobre o carter histrico/biogrfico das Vidas
no interior da discusso lanada por Wiseman 31. Embora se incline para ver
um carter prprio na obra de Plutarco, a qual guardaria uma distncia para as
biografias escritas anteriormente sem chegar a adentrar o gnero Histria.
Finley (1989, p. 14) descartou a poesia como fonte histrica. Para o
grego antigo no era assim to simples 32. A poesia homrica era o parmetro,
o marco fixo para o resgate de eventos passados, talvez mesmo o nico relato
que dispunham acerca de algumas pocas. Nicolai: (...) quando se queria
olhar para a histria mais antiga, no se podia fazer mais do que retornar
poesia pica 33.
A poesia era escolhida pelos gregos antigos como parmetro para
compor parte da Histria de outras culturas e sua relao com a dos gregos em
Herdoto (II. 113-117) ou como padro comparativo em relao importncia
do tema escolhido como em Tucdides (I. 3) ou como recurso para arguir sobre
tempos passados (I. 5, 9, 10, 11, 13, 26; III. 104) ou ainda como recurso de
oratria (II. 41). E talvez porque a poesia pica ocupasse um lugar ainda mais
importante do que apenas ser o relato do passado ou ser fonte de informao,
pois estas no seriam preocupaes da cultura grega: ao invs, o pico
cumpria um papel formador de identidade entre os gregos, fosse da
31
WISEMAN, Timothy P. Lying Historians: Seven types of mendacity in Gill, C and Wiseman, T.P. Lies and fiction in the ancient world.Exeter, 122-146. 32
Cf. p. 27, n. 38. 33
(...) when one wanted to take a look at more ancient history, one could not do more than go back to epic poetry.
25
coletividade, fosse do cl, da gens, da plis (NICOLAI, 2011, cap. 134). Ou
mesmo da formao do indivduo, para que ele fosse um grego, afinal.
Nicolai (2003, pp. 81-109; 2011, cap. 1) exemplifica as mediaes do
pico com a vivncia grega atravs do Catlogo de Naus (Hom. Il. II), que teria
servido de base para resolver algumas questes polticas e territoriais. O pico
seria assim, um documento insubstituvel, espcie de arquivo histrico para
consulta e por vezes, para ser interpolado ou falsificado. A Historiografia ao
ser criada seria a herdeira do pico, assim declarado na inteno original de
Herdoto no preldio de sua obra.
A carncia de material literrio sobre os sculos iniciais de ocupao
grega na Siclia nos permite focarmos em algumas obras. Homens como
Tucdides e tambm seu contemporneo Herdoto no ficaram conhecidos
em seu tempo como historiadores no sentido moderno da palavra apesar do
termo grego (usado primeiro por Herdoto no promio para definir sua
obra) deixar poucas dvidas sobre o que pretendiam. Foram valorizados como
grandes estilistas literrios, no como historiadores (BARON, 2013, p. 2).
Contudo, Timeu j no sculo III no sofreu tanto este estigma, pois que o
gnero se havia firmado dentro da Literatura. Mas permanece a pergunta: Por
que escolher tais narradores e suas obras?
Sempre nos chamou a ateno que qualquer exame mais abrangente de
Teoria da Histria ou de Filosofia da Histria comea exatamente pelos
historiadores gregos. Os exemplos so inmeros, seja em Ginzburg (2003), Le
Goff (1996) ou Borges (2006) toda explicao sobre o devir da Histria, seus
processos, suas divises e caminhos que ela tomou, comea com os gregos.
At mesmo os problemas da Histria, 25 sculos depois, foram definidos por
eles, como lembra Finley (1960, p. 63) falando sobre Tucdides:
As suas dificuldades tinham razes profundas e ainda hoje constituem o
problema essencial de todos os seus escritos histricos, representando a
34
Ver nota 20.
26
marca dgua do seu elevado valor o fato de ter se apercebido delas to
cedo, no prprio incio da historiografia 35.
O exame dos problemas da Histria enquanto ferramenta e enquanto
sistema comea por Herdoto ou mesmo por Helnico e alguns poucos
antecessores. Continua com os gregos que escreveram Histria at Polbio,
passando por Tucdides, Xenofonte e Timeu. E ao adentrarmos no campo da
biografia, passamos tambm por Plutarco, embora ainda mais avanado no
tempo (sec. I-II EC) do que os demais autores citados. Ainda que Plutarco
tenha vivido j sob o domnio de Roma e sido retratado com frequncia como
um grego romanizado (SILVA, 2007, pp. 26-71).
TUCDIDES Principal fonte literria entre os autores clssicos para a
histria dos povoamentos gregos no perodo do nosso recorte (GRAHAM,
1964, p. 9), Tucdides por vezes reputado como tendo feito Histria do
tempo presente (FINLEY, 1960, p. 67; MOMIGLIANO, 1990, p.41). Parece-nos
que a origem dessa viso parte do procedimento de Tucdides descrito na
sua Arqueologia (I, 1-23) em que considera a observao dos costumes de
certas regies da Grcia que ele considera atrasadas como teis para se
conhecer a histria primitiva da Grcia (I, 5). Ao mesmo tempo ele evita ao
mximo embora nem sempre com sucesso conforme j citamos o uso da
Mitologia como fonte, preferindo a observao direta, a analogia e a inferncia
lgica do que depender da tradio 36.
Assim, Tucdides se preocupa menos em fazer Histria do Presente do
que em evitar que a Histria prxima ou distante seja contaminada pelo
mito, ou sequer por verses inverossmeis, ainda que no mticas. Como
quando questiona relatos sobre uma batalha: No curso desta guerra este foi o
pior desastre que uma cidade helnica sofreu sozinha em to poucos dias. No
indico o nmero de mortos porque as verses so inacreditveis em relao
importncia da cidade (Tud. III. 113. Grifo nosso).
35
Embora neste trecho Finley esteja sobrelevando Tucdides por ter percebido os possveis desdobramentos do campo que escolhera. Prefiro sem discordar de Finley quanto percepo de Tucdides pensar de modo reverso: aquilo que os gregos definiram como Histria seria o futuro da disciplina 25 sculos depois. 36
Crtica ao mtodo de Herdoto
27
H alguns problemas em considerar Histria do Presente uma sequncia
de eventos que durou 27 anos, ainda que o narrador/historiador dela tenha
participado. Tucdides quis recuperar o que ainda seria possvel enquanto
testemunhas e documentos estivessem ao alcance. Mas no se absteve de
recuar no tempo, e embora dedicasse basicamente apenas um trecho de uma
(Livro I) das oito partes em que divide sua obra, recuperao de eventos
passados, ele pensa ter explicado seu ponto37. Em outras partes da obra (VI. 2-
5) tambm feito um levantamento de informaes em pocas remotas, sendo
sempre o componente lgico da narrativa sobre os eventos presentes. Se
Tucdides partia do presente para inferir o passado (I. 6), tambm construa a
segurana do que expunha sobre o presente a partir do que conseguia
confirmar no passado (VI. 2-5), mesmo que o fizesse apelando para
informaes colhidas na poesia (I. 3, 5, 13, 21; III. 104; VI. 2). O tipo de
informao cuja utilidade Tucdides questiona em outras passagens (I. 9-11,
21; II. 41) de sua obra 38.
As escolhas de Tucdides nos parecem antes derivar da atitude de
algum preocupado em evitar falar sobre o que desconhece e no tem
possibilidades de conhecer, pela absoluta falta de fontes considerando os
recursos limitados de seu tempo.
Ele deliberadamente evitou verses fantasiosas, sequer citando-as 39,
para eventos muito recuados no tempo. E como ele prprio recorre tradio
admite a Guerra de Tria como verdadeira em bases homricas (I. 3, 8, 10, 11,
12, 14; II. 68; VI. 2) quando o evento muito recuado no tempo, julgou que
fosse melhor no se estender sobre esses assuntos. Os mitos mais antigos j
estavam sob crtica h muito tempo. O prprio Herdoto, a quem se atribui
(com e sem razo, conforme o caso) muito de mitomania, quando fala sobre o 37
Demonstrar que o conflito entre atenienses e peloponsios foi o maior de todos at sua poca (TUCDIDES, I. 21). Provavelmente estava errado, as Guerras Mdicas da obra de Herdoto foram maiores. 38
Donde se infere que a relao do historiador antigo com a poesia, por mais que buscasse o rigor como Tucdides, era de uma crtica construtiva: ao mesmo tempo em que buscava deslocar a Poesia, mesmo a pica, de seu lugar de autoridade sobre eventos passados, via na Poesia mais uma fonte de conhecimento para confirmao daquilo que apurava sobre o passado. Cf. NICOLAI (2003). 39
Ao contrrio do que Herdoto fazia, dando duas ou trs verses de alguns eventos para conhecimento e maravilhamento do pblico, em geral pontuando no saber se a mais fantasiosa era verdadeira. Exemplo: rion e o Delfim (I. 23).
28
Egito (II. 113-120) tenta mostrar a) Que h uma verso do mito na qual Helena
nunca esteve em Tria, mas sim que foi para o Egito com Pris b) Que Homero
sabia dessa verso e o demonstrou em alguns versos do Canto VI (291-292) e
finalmente c) Que Homero escolheu a verso do mito que permitiria um efeito
pico. (FINLEY, 1960, p. 37)
A preocupao de Tucdides que sua Histria no fosse criticada
desse modo. Ele comeou do que lhe era mais fcil, o tempo presente, os
eventos que ele mesmo testemunhara ou sobre os quais entrevistara
testemunhas oculares certamente sua Arqueologia foi composta por ltimo
(FINLEY, 1960, p. 57) e criou um mtodo para se avanar cada vez mais
distante no passado. Melhor do que Histria do Presente seria chama-la
Histria Retrospectiva, parte-se do que se tem, mais visvel e perceptvel, para
ir-se recuando em direo a um passado distante. um tratamento possvel
de se dar Histria, um certo dinamismo, ao invs de fixa-la num tempo
esttico, seja o passado seja o presente.
A principal preocupao de Tucdides parece ser antes com o futuro,
embora sua afirmao de fazer conduza muitos a uma impresso
de seu trabalho guiada pela declarao do prprio autor40. Tucdides parece
querer definir (III. 82-83) o que no futuro seria chamado de Leis de Ferro da
Sociologia pelo weberiano Michels (1982), embora no caso de Tucdides,
circunscrevendo tais axiomas ao universo da Poltica: Aqui em ambos os
sentidos Poltica significando aes polticas e o que se fazia na Plis em seu
tempo, ou ao menos, como Tucdides entendeu e descreveu o que se fazia.
Perguntamo-nos, por que esta preocupao escatolgica que hoje no
pensamos parte do ofcio do Historiador? Parece-nos que Tucdides, ainda
experimentando, nos princpios da Histria, na definio de um relato histrico,
de como este deveria ser, tentou transformar em mtodo a habilidade do
poltico. E como Finley (1960), perguntamo-nos que modelos poderia Tucdides
40
Embora isto seja perdovel, pois aqueles que conhecem o texto de Tucdides, sabem que uma de suas maiores caractersticas querer guiar o leitor, no deixar opes ou sequer impresses de que os eventos narrados se deram de outro modo (FINLEY, 1960, 64-66). Muito mais ento se cr que esse autor defina logo de sada, o carter de sua obra.
29
ter usado. Arriscamos dois: a Agricultura e a Medicina 41, que so atividades
dedicadas a assuntos vitais e dependentes de clculos sobre a evoluo de
eventos (o plantio, a colheita, a evoluo de uma doena ou a cura prescrita) e
o clculo de atividades visando ao futuro, para obterem sucesso. A noo de
que a Medicina tem paralelos com a Histria no nova, recebe bastante
destaque em Ginzburg (2003, pp. 143-179, mas lanado em 1986) quando
monta sua noo de paradigma indicirio em busca de paralelos que a histria
pode haver de outras cincias.
Parece-nos que a Histria Retrospectiva de Tucdides indo do
presente estado de coisas para elaborar uma Arqueologia do Passado foi feita
em relao direta com a suspeio sobre as memrias dos homens. Ele no
criticou Herdoto apenas pela abordagem mtica. No, Tucdides sentia-se
mais seguro para comear a partir do presente e, em seguida, procurar em
comunidades indo para trs um passo semelhante ao que a moderna
Arqueologia chamou de Middle-Range Theory (WATSON, 2008; MARANHO,
2013) algumas semelhanas que levaram aos tempos mais antigos. Isso
pode apontar para alguma pesquisa arqueolgica feita por Tucdides apesar
de consider-la improvvel para confirmar sua hiptese, mas no pensamos
que ele indica isto em sua metodologia (I. 1-23).
Esse, porm, no o ponto que queremos ressaltar aqui. A inteno
apresentar a obra de Tucdides e toda a tradio que ele comeou, seguida
por Polbio, para citar um texto antigo de destaque, entre outros antigos e
modernos como um forte desafio capacidade das pessoas de recolher
dados de suas memrias. Em seu mtodo sobre a apresentao de discursos
essa suspeita tambm est presente - quando Tucdides no consegue se
lembrar do que foi dito, ele tentar reproduzir as palavras apropriadas para o
momento e para o orador. E ele explica que estava falando de discursos que
ouvira pessoalmente ou ouvira de outras pessoas que por sua vez teriam
testemunhado os discursos.
41
Bastante usada em sua obra, especialmente na famosa descrio da Peste em Atenas, 429 AEC. comum (por exemplo, FINLEY, 1960, p. 60) notar em Tucdides uma aproximao com o modelo hipocrtico e arriscam mesmo dizer que havia proximidade entre o historiador e o mdico.
30
Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades
quando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando j estavam
engajadas nela, foi difcil recordar com preciso rigorosa os que eu mesmo
ouvi ou os que me foram transmitidos por vrias fontes. Tais discursos,
portanto, so reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os
diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os respectivos
assuntos e os sentimentos mais pertinentes ocasio em que foram
pronunciados, embora ao mesmo tempo eu tenha aderido to estritamente
quanto possvel ao sentido geral do que havia sido dito. (Tud. I. 22).
Portanto, temos alguns historiadores antigos para lanar dvidas no s
sobre a capacidade das pessoas de reteno na memria e uso de dados42
acerca de eventos em seu prprio tempo, mas toda uma tradio da histria
trabalhada a partir dessa dvida.
I.2 Um pouco de Arqueologia: vasos, cemitrios, ossos e relquias
I.2.1 Cermica Uma das dificuldades no trato com os vasos e
representaes pode ser expressa em Descoeudres (2008, p. 315 n.167) apud
Verdan (2006, p.101. n. 4): A ligao entre os motivos pictricos usados pelos
artesos e a realidade histrica usualmente muito tnue e difcil de definir 43.
Pearson (1988, p. 61, n. 34) se refere a um vaso de figuras negras de
Gela, onde Hracles derrotaria Scanos. Fica o registro, embora eu no tenha
encontrado imagem desse vaso e as referncias de Pearson sejam outros
autores e arquelogos que escreveram sobre a Siclia. Os scanos, scelos e
outros povos no-gregos da Siclia me parecem uma escolha pouco bvia para
os decoradores de vasos gregos. Sobre scelos representados em vasos
gregos no encontrei referncia alguma.
42
Caracterstica que denomino Recursividade 43
The link between pictorial motifs used by craftsmen and historical reality is usually very tenuous and difficult to define.
31
I. 2.2 Cemitrios e enterramentos
Em um pequeno artigo sobre enterramentos na Siclia e Magna Grcia,
SHEPHERD (2005) reflete sobre mtodos de enterramento indgenas nas
reas da Siclia ocupadas pelos gregos: pensa ser altamente provvel que
povoamentos gregos incorporavam populao indgena (p. 115. Traduo
nossa). Outra possibilidade para os enterramentos mltiplos em necrpoles
gregas alm da influncia scela que estes enterramentos sejam de
indivduos scelos. (p. 118). Shepherd pensa, porm, que os enterramentos no
podem ser usados como fonte confivel de identificao da populao indgena
ou de indivduos particulares dentro dessas populaes indgenas.
Shepherd (p. 115) resume seu artigo da seguinte forma: A impresso
geral dada pelos cemitrios da Siclia Grega de uma adeso geral a sistemas
de enterramento coerentes, os quais podem ser vistos como parte de uma
tentativa de forjar uma unidade cultural independente 44. Conflui para algo que
pensamos em nossa prpria concluso neste texto (pp. 81-3): a cultura da
Siclia ps-chegada dos gregos foi se hibridizando e autonomizando a ponto
de, talvez, tornar-se algo com uma marca identificadora prpria.
interessante a lembrana do mito de Aretusa e Alfeu como possvel
aluso miscigenao entre gregos e povos da Siclia, dando suporte ideia
de que gregos e scelos no interagiam apenas como senhores e escravos,
mas tambm como maridos e esposas ou residentes no mesmo povoamento
(p. 116).
Houve recentemente algumas sugestes de que tais misturas
tnicas podem ser detectadas em registros arqueolgicos,
especialmente no que toca coabitao Greco-nativa. E a
evidncia dos enterramentos, em particular, citada por vezes
como indicativo de variao tnica nos povoamentos dos
gregos ocidentais. O registro funerrio da Siclia Arcaica
particularmente rico, e revisto aqui em conjunto com alguma
44
The general impression given by Sicilian Greek cemeteries is one of overall subscription to coherent burial systems, which may be viewed as part of an attempt to forge a unified and independent cultural identity.
32
evidncia vinda da Itlia para determinar sua utilidade e
detectar tanto misturas de gregos e nativos quanto a mistura de
gregos de origens diversas em povoamentos gregos. ().45
A necrpole grega em Morgantina apresenta um caso interessante: At
the hellenized Sikel site of Morgantina, for example, the archaic cemetery has
revealed an extraordinary mixture of Sikel and Greek burial customs, including
such oddities as a Greek sarcophagus within a traditional Sikel chamber tomb
(p. 117). A ocorrncia de grupos significativos de vasos caractersticos de
simpsios parece sugerir que havia a adoo de prticas sociais gregas em
Morgantina, e no apenas a simples aquisio dos vasos.
Uma populao mista de gregos e scelos tem sido sugerida como
explicao para a mistura de costumes e artefatos em Morgantina, mas
Shepherd considera difcil determinar se a comunidade apresentava casamento
intertnico ou se era uma comunidade scela fortemente helenizada com
membros que buscavam demonstrar isso visualmente.
As necrpoles nos povoamentos gregos parecem apresentar uma
conformao diferente porque a mistura de costumes funerrios menos
evidente. parte, porm de fbulas e outras peas de metal nativas, a
interpretao estaria aberta a possveis usos mistos. Afinal, os tmulos em si
so de aparncia grega. Os enterramentos mltiplos no eram desconhecidos
na Grcia Arcaica, mas eram pouco usuais. Na Siclia, ao contrrio, eram
extremamente comuns entre as tribos no gregas (SHEPHERD, 2005, p. 118).
As fbulas esto mais presentes em tmulos associados a crianas do que a
adultos mas Shepherd nos avisa sobre o problema de fazer uma equivalncia
entre objetos e pessoas. No entanto, a presena das fbulas em tmulos
associados a homens adultos no oeste e na Hlade, indica que os objetos de
metal encontrados nas tumbas podem significar um uso pelos gregos de
45
There has recently been a number of suggestions that such ethnic mixtures can be detected in the
archaeological record, especially as far as Greek-native cohabitation is concerned, and in particular burial
evidence is often cited as indicative of ethnic variation in the settlements of the Greek West. The funerary
record of archaic Greek Sicily is particularly rich, and is reviewed here in conjunction with some
evidence from Italy in order to determine its usefulness in detecting both mixtures of Greeks and
indigenes in Greek settlements and Greeks of differing origins ().
33
objetos scelos sem a inteno de declarar afiliao tnica. E estes objetos
podem tambm indicar um uso no cotidiano dos gregos.
Os enterramentos em necrpoles gregas da Siclia, porm, no
apresentam como os scelos tumbas projetadas para mais de um indivduo
na maioria dos casos, podendo ter havido reutilizao em perodos prximos
ou no mais que uma gerao de distncia entre o enterramento original e
subsequentes.
O exemplo de Siracusa: a plis-fundadora Corinto no apresentaria
enterramentos mltiplos, mas cerca de 14% dos enterramentos encontrados
em Siracusa at o incio do sc. VI AEC seriam dessa natureza. (SHEPHERD,
2005, p.118). A maioria composta por dois esqueletos num nico receptculo
embora mais esqueletos tambm ocorram. E tambm casos de enchytrismoi
(deposio dos corpos em vasos e enterramento destes).
Como as fbulas os enterramentos mltiplos prevalecem ao longo do
sculo VII e vo escasseando no sculo seguinte e Shepherd supe que isto
uma consequncia da fronteira cultural ter se tornado mais porosa (p.118).
Avento a possibilidade contrria: no me parece que migrantes gregos tenham
abandonado seus costumes para depois tornar a adot-los porque os scelos
os estavam adotando. Sem descartar a elaborao de Shepherd, penso que os
enterramentos mltiplos iniciais podem ter sido simplesmente uma medida
contingente, como a premncia de espao nos comeos do povoamento,
contornada medida que ele foi se expandido.
Outra caracterstica dos enterramentos mltiplos em Siracusa a
associao com sarcfagos. Ao longo do sc. VII AEC os sarcfagos
predominam nestes enterramentos. Shepherd (p.118) pensa que o uso destes
receptculos decorre de prticas scelas e do desejo de demonstrar distino
social. Mas essa estratificao pode ser o resultado da estratificao da prpria
sociedade siracusana que se acentua naquele sculo.
Shepherd (p. 119) observa que em Gela e Mgara Hiblea ocorrem
fenmenos semelhantes. Em Mgara os enterramentos mltiplos ultrapassam
34
40% do que se encontrou para os sculos VII e VI AEC. Aqui arrisco outra
reflexo, baseado no dito arqueolgico de que a destruio recorrente, a
preservao um acidente: possvel que materiais e localizao dos
enterramentos mltiplos, associados s elites, favorecessem sua sobrevivncia
no tempo, havendo ao contrrio, menos restos de tmulos individuais de
pessoas menos abastadas46. Neste perodo tambm em Mgara o sarcfago
se tornou a forma predominante nos enterramentos mltiplos. A maioria
consistindo em dois indivduos dispostos em direes opostas dentro dos
sarcfagos.
Em Gela, apenas 10% dos enterramentos descobertos so mltiplos,
prevalecendo o sarcfago em pedra como em Mgara e Siracusa, sendo
substitudos por sarcfagos de terracota na segunda metade do sc. VI AEC
(SHEPHERD, p. 119).
Em Selinunte, povoamento originado j por siceliotas 47, os tmulos
encontrados vo na direo oposta aos descritos at aqui: sarcfagos so
raridade e enterramentos mltiplos tambm. Na necrpole de Buffa scs. VII
e VI AEC apenas seis de 754 enterramentos so mltiplos. E parecem ser
antes uma reutilizao sem relao com o enterramento original, de acordo
com as dataes de objetos encontrados. No entanto, dois destes seis
enterramentos datados da primeira metade do sc. VI so de duplas de
crianas dispostas em sarcfagos em pedra. Em outra necrpole, a de
46
Sempre uso o exemplo do Egito para este problema: os monumentos ciclpicos em pedra do uma ideia errada do que foi aquela sociedade: tmulos, cabanas e utenslios feitos com vime, madeira, papiro e outros materiais, so menos imponentes visualmente e sobreviveram em escala muito menor quando sobreviveram, havendo ao menos um exemplar de uma dada categoria do que as construes das elites mais abastadas, em material mais resistente. Embora haja variaes deste problema de sociedade para sociedade, regio para regio. O prprio Egito, pelo clima seco desrtico de boa parte do pas, favorecia que se preservassem alguns itens que teriam se decomposto mais rapidamente em outros locais. Ainda assim no em nmero comparvel ao que se preservou de achados arqueolgicos em material mais resistente e dimenses maiores. No Chile j foram encontradas mais de 5 mil mmias no Atacama e proximidades, mais do que em regies mais populosas. Ter-se-ia 1 vista a impresso errada de que o Atacama tinha uma populao maior do que reas mais frteis. De novo, a preservao do clima seco que aumenta a frequncia do que sobreviveu, mas a ausncia e o nmero menor de achados nos arredores no-desrticos no mostra segura do que existiu neles. Na comparao entre as regies podem ocorrer serssimos erros. 47
Os gregos habitantes da Siclia eram chamados pelos prprios gregos de sikelioi Siceliotas. (Tud. III. 90, 115; V. 58; VI. 103; VII. 32, 57; VIII. 26)
35
Manicalunga, apenas um enterramento duplo em 357 enterramentos de um
setor da necrpole e mais trs duplos semelhantes em outro setor.
Neste ltimo, o setor Gaggera, com enterramentos do sc. V AEC, h
porm enterramentos mltiplos pouco usuais e mesmo o enterramento de um
cavalo, alm de urnas com restos cremados. H um tmulo coletivo de grandes
propores (6 x 6) com 26 enterramentos datados de entre 475-450 AEC. Para
Shepherd, portanto, a evidncia indica escassos enterramentos mltiplos, de
data relativamente recente. Evidenciam escassa possibilidade de influncia
nativa, abrindo a possibilidade de serem tumbas de guerra. Vem nossa
memria o tmulo coletivo dos 192 maratonmacos na tica.
No caso dos enterramentos flexionados (p. 120) onde o cadver era
disposto numa posio com membros encolhidos, no-ereto, em geral deitado
sobre um lado do corpo as influncias entre gregos e scelos parecem ter
sido maiores. A frequncia destes enterramentos entre gregos no oeste era
usual. Embora entre centenas de enterramentos apenas poucos do tipo
tenham sido encontrados, todos tem sido conectados com enterramentos
scelos ou itlicos, uma vez que tais enterramentos so comuns em cmaras
tumulares scelas e no sul da Itlia nas mesmas pocas.
Na Siclia o maior grupo de enterramentos flexionados encontrado vem
novamente da Necrpole sul de Mgara Hiblea: seis de cerca de 60. Embora
datem de 640-500 AEC, o descobridor relata o achado de enterramento
flexionado como possvel indcio de prtica scela. Shepherd nota (p.119) que o
enterramento flexionado, porm, no exclusivamente scelo e estava longe
de ser incomum na Hlade. Cita como exemplos enterramentos em Corinto do
geomtrico e do arcaico (embora ressalte que no povoamento corntio de
Siracusa no houve tais enterramentos) e tambm indcios na Mgara da
Hlade. Ento deve ser considerada a hiptese de que tais enterramentos
podem ser uma prtica grega incomum, sem conexo direta com os scelos. E
ressalta que mesmo que haja uma conexo, o nmero reduzido para mostrar
uma conexo significativa com qualquer estrato importante da populao (p.
121).
36
II As colnias gregas apoikas, emprios e clerquias
Nos dias de hoje, h uma certa rejeio ao uso do termo colnia
(BARON, 2013, pp. 94, n. 15; p. 112) para descrever ncleos populacionais
fundados por grupos oriundos da Hlade em regies no-helnicas a partir do
sec. VIII AEC48. A origem do termo colnia aplicado a esses povoamentos
decorreria da mentalidade colonial de acadmicos do sculo XIX EC.
Com isso em mente, nos parece que o uso do termo aplica-se antes
como uma referncia aos episdios de expulso de povos no-gregos e
ocupao de suas terras de moradia pelos gregos, mas preciso lembrar
que a relao dos povoamentos gregos com os locais de onde estes migrantes
partiram era mais honorfica do que colonial. Em resumo, o termo colnia
serve antes para designar a relao com os povos no-helnicos do que a
relao Ncleo-Fundador X novo Ncleo de Povoamento.
Em Herdoto (I. 19) h um claro exemplo de como a plis fundadora e a
fundada comportavam-se em relao a obrigaes mtuas. A recusa na plis
fundadora em atacar a plis que originou, mesmo que a pedido de um poder
superior, em nada lembrando porm, o Exclusivo Colonial do modelo do
sculo XVI EC. No exemplo em Herdoto so os Fencios que se recusam a
atacar Cartago a pedido de Cambises, Rei da Prsia e dos povos subordinados
ao domnio persa. Graham (1964, pp. 27-8) lembra muito apropriadamente que
no so pleis gregas, mas a descrio de um grego a relatar os eventos.
O estopim da Guerra do Peloponeso para Tucdides foi uma srie de
eventos que configuravam uma disputa entre plis e neoplis, Corinto e Crcira
(I. 24-5, 29, 44, 48, 67). Um dos argumentos usados foi o descumprimento de
obrigaes honorficas. Havia, porm, um histrico de conflito to grande entre
essas duas pleis que as duas levam a fama de ter travado a mais antiga
batalha naval de que se tem notcia", em cerca de 664 AEC (Tud. I. 13).
48
H referncias a ncleos populacionais anteriores, recuando ao sculo X pelo menos, na Jnia da sia Menor costa ocidental da Turquia atual (GRAHAM, 1964, p. 4) e tambm na Siclia at mesmo antes disso (BENJAMIN, 2006, caps. 1 e 2, livro formato kindle).
37
Graham elabora um longo argumento (1964, pp. 29-35) sobre a
possibilidade das colnias serem iniciativas de estado. Tal debate no nos
parece ter muito sentido quando se trata de iniciativas de tiranos como
Periandro de Corinto, pois pensamos que os tiranos tratavam os negcios de
estado como negcios de famlia, quer na plis originadora quer em qualquer
plis que tivessem a iniciativa de fundar. As cerimnias religiosas, porm, se
encarregavam de dar um carter cvico apropriado ao ato, e assim os laos que
estas cerimnias simbolizavam e firmavam tinham continuidade mesmo aps a
queda da tirania.
Atenas, porm, em sua poltica em direo aos estreitos, j no sc. V
parece ter sido outro tipo de caso. Tal poltica visava estender o poderio da
plis rumo a reas de interesse. Mas isto faz com que a relao plis
fundadora-plis originada se aproxime do Exclusivo Colonial do sculo XVI
EC? Pensamos que no, pois que as obrigaes dos habitantes das neopleis
neste caso reduziam-se simaquia permanente com Atenas. o exemplo mais
prximo de relao colonial num sentido moderno, entre plis originria e
neoplis.
Graham (1964, p. 5) frisa o fato de que os principais motivos para a
fundao de colnias eram a) o excesso populacional e b) a demanda por
terras49. E que a viso de colnias gregas fundadas por motivos comerciais
derivada mais do que se sabe sobre os movimentos de colonizao modernos
(a partir do sec. XIV EC europeu) do que sobre a realidade do mundo polade,
onde as colnias seriam fundadas para serem pleis independentes e
autossuficientes (OSBORNE, 1998, p. 251-2). Sobre contestao a motivos
comerciais para as colnias, ver Graham (1964, p. 218-9) e Descoeudres
(2008, p. 293-4). Este ltimo enfatiza particularmente a perspectiva da
motivao comercial como sendo a do modelo europeu do XIX EC, dependente
da inverso de matria-prima das colnias em exportao de manufaturados
49
Outros suportes a esta viso: (...) A. Gwynn (1918), G. Glotz (1926), R.M. Cook (1946), J. Brard (1960), H. Schaefer (1960), C. Moss (1970), O. Murray (1980) () seguindo Julius Beloch que desde 1912 considerava a razo principal do movimento colonizador a superpopulao e a escassez de terra arvel / follow Julius Beloch who, as early as 1912, considered the main reason of the colonization movement to be overpopulation and lack of arable land. Descoeudres (2008, p. 295).
38
de volta. Descoeudres cita vrios textos do XIX EC e recentes a adotarem essa
linha50.
Autores antigos tambm tentaram explicar o movimento migratrio
antigo. Por exemplo, a pletora de motivos de Sneca para movimentos
migratrios, inclusive gregos (Ad Helviam de Consolatione/ A Hlvia: Da
Consolao 7.4):
Nec omnibus eadem causa relinquendi quaerendique patriam fuit; alios
excedia urbium suarum hostilibus armis elapsos in aliena, spoliatos suis,
expulerunt; alios domestica seditio summovit; alios nimia superfl uentis
populi frequentia ad exonerandas vires emisit; alios pestilentia aut
frequentes terrarum hiatus aut aliqua intoleranda infelicis soli vitia eiecerunt.
Nem todos tinham o mesmo motivo para deixar a sua ptria e buscar uma
nova: alguns foram expulsos aps a destruio de suas cidades, tendo
perdido os seus bens, mas escapado de seus inimigos; outros foram
expulsos por guerra civil; outros ainda foram enviados para aliviar um
excedente populacional grande; outros foram expulsos por uma doena
infecciosa, por terremotos frequentes ou por alguma deficincia insuportvel
da terra estril.
A viso platnica (Leis 709b) seguida por alguns51:
No seria igualmente fcil para Estados conduzir povoamentos em outros
casos como naqueles em que, como um enxame de abelhas, um nico cl
sai de uma nica regio e se fixa, como um amigo entre amigos, tendo ou
sido extirpado por falta de espao ou pressionado por algum outro tipo de
necessidade. s vezes tambm a violncia da guerra civil pode compelir
uma parte inteira do Estado a migrar; e numa ocasio um Estado inteiro foi
exilado quando foi totalmente esmagado por um ataque ultrapoderoso.
50
Descoudres (2008): Curtius 1857, G. Busolt (1893). No caminho do famoso `comrcio ante a
bandeira de Blakeway e Os Gregos Ocidentais de Dunbabin, esta opinio tem sido novamente defendida
em anos recentes /In the wake of A. Blakeways famous trade before the flag (1933) and Dunbabins
Western Greeks (1948), this opinion has again been advocated in recent years, notably by L.H. Jeffery,
J.N.. E ainda (DESCOUDRES, 2008, n.31): Boardman 1999b, passim, esp. 162; 2001. Veja tambm
Treister etc etc para mais referncias / See also Treister 1996, 146 with n. 698; Bernstein 2004, 17 n. 17
for further references. 51
HOLLOWAY (1981, pp. 146-9), SNODGRASS (1994, p. 2), TSETSKHLADZE (1994, pp. 122-6),
BERNSTEIN (2004, p. 224)
39
Autores modernos como Descouedres (2008, p. 361), usando extensa
base arqueolgica para diversos stios do incio do Perodo Arcaico (pp. 349-
56) descartam comrcio de metais ou escassez de produtos agrcolas para a
populao na poca do auge da colonizao ao menos para a Grcia
Central.
No h evidncia de qualquer tipo que sugira que as colnias na Siclia e
no Sul da Itlia, fundadas no Geomtrico e no Arcaico inicial provessem
suas cidades-me com quaisquer tipos de produtos, e h ainda menos
evidncia que sugira que a prosperidade ou, na verdade sobrevivncia
da terra natal dependesse de tais suprimentos. 52
E Descouedres contesta (pp. 361-2) a evidncia literria em Antoco
(FGrHist 555 F9), Estrabo (VI. 1.6), Herdoto (IV. 151), Plutarco (Moralia.
772C) e que declaram vrias neopleis terem sido fundadas em decorrncia
desses motivos. O argumento um pouco estranho de que Atenas, a qual
dita ter sofrido um prolongado ou vrios perodos de estiagem severa,
precisamente a nica grande plis que no participou do movimento
colonizatrio inicial 53. O estranho no movimento migratrio inicial em
comeos do sculo VIII AEC, nos parece que seja a ausncia de Atenas neste
movimento. Algo que ainda mais estranho que Eubia, distante meros 10
km de Atenas por mar uma das mais prolficas criadoras de neopleis, tendo
criado mais de 10 delas no perodo 750-729 AEC. Fica a hiptese nossa de
Atenas terceirizar sua colonizao atravs da Eubia. O que no impediria a
plis ateniense de ser vista como um intruso na Siclia quando tentou domin-la
no fim do sculo V AEC. Eubia considerada mais rica que Atenas neste
perodo, mas este argumento ao invs de enfraquecer nossa hiptese, refora-
a: Eubia tinha a riqueza necessria para o empreendimento migratrio:
construo de barcos. Atenas tinha um excedente populacional de pobres. H
52
There is no evidence of any kind to suggest that the colonies in Sicily and southern Italy, founded in the Geometric and early Archaic periods, were providing their mother cities with any goods at all, and even less to suggest that the motherlands prosperityor, indeed, survival depended on such supplies. 53
Athens which is said to have suffered from one prolonged drought or several periods of drough is precisely the one major polis in Central Greece that did not participate in the early colonization movement.
40
uma sugesto de acordo entre ambas, pois difcil crer que uma populao to
prxima ignorasse ou no tivesse envolvimento com um empreendimento
dessa natureza e magnitude ali ao seu alcance.
Descouedres ainda observa (p. 362) sobre Eubia, que: a) Aps uma
gerao criando vrias colnias, se a estiagem fosse o maior fator, seria
estranho o movimento migratrio ter abruptamente parado, como se no
houvessem novos perodos de estiagem e b) A uma distncia to pequena de
Atenas seria difcil no ter sido afetada pelas mesmas secas citadas nos textos
antigos. Confirmada nossa hiptese de terceirizao esta ltima aparente
incongruncia pode ser descartada. Mas a inteno de Descoeudres
descartar o desastre climtico como raiz do movimento migratrio. No o
descartaria de todo, mas o colocaria como uma das causas, sem relevar