UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E ... · do país para maior inserção no...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA
Política externa russa: caminhos para a Guerra da Geórgia.
DAVI ALBERTO LUZ DA SILVA
Recife
2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA
Política externa russa: caminhos para a Guerra da Geórgia.
DAVI ALBERTO LUZ DA SILVA
Dissertação de Mestrado apresentada como requisito obrigatório para obtenção do título de Mestre em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Borges.
Recife
2012
S586p Silva, Davi Alberto Luz da Política externa russa: caminhos para a guerra da Geórgia / Davi Alberto Luz da Silva. – Recife: O autor, 2012.
100 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Borges. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, 2012.
Inclui bibliografia.
1. Ciência Política. 2. Política internacional. 3. Economia. 4. Regionalismo. I. Borges, Ricardo. (Orientador). II. Titulo.
320 CDD (22.ed.) UFPE
(BCFCH2012-86)
Ata da reunião da Comissão Examinadora para julgar a Dissertação do aluno Davi Alberto
Luz da Silva intitulada: Política Externa Russa: caminhos para a Guerra da Geórgia, para
obtenção do grau de mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.
Às 11hs do dia 10 de agosto de 2012, no Auditório do Programa de Pós-graduação em
Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, reuniram-se os membros da
Comissão Examinadora da Dissertação intitulada: Política Externa Russa: caminhos para a
Guerra da Geórgia, composta pelos professores doutores: Ricardo Borges Gama Neto
(Orientador) UFPE, Marcelo de Almeida Medeiros (Examinador Interno) UFPE, e Thales
Cavalcanti Castro (Examinador Externo) UFPE. Sob a presidência do primeiro, realizou-se a
argüição do candidato Davi Alberto Luz da Silva. Cumpridas todas as disposições
regulamentares, a Comissão Examinadora considerou o candidato aprovado por unanimidade.
Nada mais havendo a tratar, eu, Quezia Cristina Cavalcanti de Morais, secretária da Pós-
graduação em Ciência Política, lavrei a presente Ata que dato e assino com os membros da
Comissão Examinadora. Recife, 10 de agosto de 2012.
_____________________________________________
Quezia Cristina Cavalcanti de Morais (Secretária)
_____________________________________________
Prof° Dr. Ricardo Gama Borges Neto (Orientador) UFPE
_____________________________________________
Prof° Dr. Marcelo de Almeida Medeiros (Examinador Interno) UFPE
_____________________________________________
Prof° Dr. Thales Cavalcanti Castro (Examinador Externo) UFPE
_____________________________________________
Davi Alberto Luz da Silva (Mestre)
Resumo
A Rússia empreendeu um processo de modernização das suas relações internacionais após o fim do período soviético. A transição democrática e econômica do país para maior inserção no sistema internacional do pós-Guerra Fria condicionou o processo de reformulação da posição russa no seu entorno e nas áreas consideradas estratégicas por Moscou. Na política externa, o entrave decorrente do condicionamento estrutural desfavorável levou à modificação na política externa, especialmente no governo Putin. Houve, por conseguinte, a transição de um momento de concessões e adequação à hegemonia estratégica americana, permeado por concepções liberais; para haver, posteriormente, um condicionamento reativo, com amadurecimento da postura perante a esfera internacional, após a constatação de um ambiente negativo, no qual o retraimento da assertividade na política externa, uma vez intensificado, constituiria ameaça aos interesses russos, principalmente no Cáucaso. A Geórgia tornou-se essencial nesse caminho russo de restabelecimento da esfera de influência no entorno. O posicionamento geográfico estratégico desse país transforma-o em ponto de transição e de conflito entre os interesses russos e de outros países. A efetivação da dependência econômica e política na Geórgia consubstanciaram a tentativa russa para o restabelecimento de zona de influência próxima àquela que outrora fora soviética. Os padrões utilizados pela política externa, contudo, revelam inovação no conteúdo e na forma de conduta externa, ao utilizar incisivamente instrumentos de poder duro e brando, ao retomar gradualmente a posição russa de grande potência no sistema internacional.
Palavras-chave: sistema internacional; política externa; economia;
regionalismo; estratégia.
Abstract
Russia undertook a process of modernization of its foreign affairs after the Soviet period. The democratic and economic transition of the country to achieve greater economic integration in the international system of post-Cold War conditioned the process of recasting the Russian position and its surroundings areas considered strategic by Moscow. In foreign policy, the barrier created due to structural conditions led to an unfavorable change in foreign policy, especially in the Putin administration. There was, therefore, the transition from a time of compromise and adaptation to American strategic hegemony, permeated by liberal views; to be, then, a condition reaction, with the maturing of attitudes towards the international arena, after the confirmation of a negative environment, in which the withdrawal of assertiveness in foreign policy, since intensified, would constitute a threat to Russian interests, especially in the Caucasus. Georgia has become essential in the way of restoring the Russian sphere of influence in the environment. The strategic geographical position of that country becomes the point of transition and conflict between the interests of Russia and abroad. The realization of economic and political dependence in Georgia substantiates the attempt to restore Russian influence zone next to what was once the Soviet Union. The standards used for foreign policy, however, reveal innovation in content and form in its outward conduct, pointedly using the instrument of hard and soft power, which intends to gradually resume the Russian position of a great power in the international system.
Key words: international system; foreign policy; economy; regionalism; strategy.
Lista de siglas
CEI – Comunidade de Estados Independentes
OCX – Organização de Cooperação de Xangai
OSCE – Organização para Segurança e Cooperação na Europa
OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte
SI – Sistema Internacional
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
Lista de gráficos e tabelas
Gráficos:
Gráfico 1 Índice de Gini na Rússia entre 1990 e 2000 p. 40
Gráfico 2 Evolução do PIB real russo entre 1990 e 1998 p. 48
Tabelas:
Tabela 1 Investimentos da Rússia em países da CEI entre 2000 e 2010 p. 45
Tabela 2 Exportações russas de commodities entre 1995 e 2010 p. 51
SUMÁRIO
1. INTRODUÇAO ....................................................................................................... 9
2. ALTERAÇÃO SISTÊMICA PÓS-GUERRA FRIA: PILARES TEÓRICOS NORMATIVOS ......................................................................................................... 16
2.1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 16
2.2 TEORIAS SISTÊMICAS E REDUCIONISTAS ................................................. 19
2.3 MUDANÇA SISTÊMICA NO FINAL DO SÉCULO XX .................................... 22
3. GOVERNO E DINÂMICAS TERRITORIAIS: DETERMINANTES DE POLÍTICA EXTERNA ................................................................................................................. 29
3.1 DEFICIÊNCIAS INSTITUCIONAIS NA ESTRUTURA DOMÉSTICA RUSSA 29
3.2 POLÍTICA EXTERNA E REGIONALISMO ....................................................... 33
3.3 RETORNO DE INSTRUMENTOS DE PRESSÃO POLÍTICA: A “FUSÃO” NOS PAÍSES FRONTEIRIÇOS ............................................................................... 38
4. ECONOMIA E DEPENDÊNCIA ENERGÉTICA ................................................. 46
4.1 TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS NA RÚSSIA: BASES DE UMA POLÍTICA EXTERNA ENERGÉTICA ..................................................................... 46
4.2 SUPERPOTÊNCIA ENERGÉTICA ................................................................... 51
4.3 POLÍTICA EXTERNA ECONÔMICA RUSSA NA GEÓRGIA ......................... 56
5. GEOPOLÍTICA NO CÁUCASO: RELEVÂNCIA ESTRATÉGICA DA GEÓRGIA .................................................................................................................................. 63
5.1 REALISMO PRAGMÁTICO .............................................................................. 63
5.2 EVOLUÇÃO NA COMPREENSÃO PÓS-SOVIÉTICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS .................................................................................................. 70
5.3 AÇÕES RUSSAS NA GEÓRGIA ...................................................................... 76
5.4 DINÂMICA ENTRE A GEÓRGIA E O OCIDENTE: PONTOS DE ATRITO COM MOSCOU ........................................................................................................ 79
6. CONCLUSÃO ...................................................................................................... 85
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 93
ANEXOS ...................................................................................................................99
9
1. INTRODUÇÃO
A adequação aos novos aspectos do sistema internacional, provocados
principalmente pela derrocada da bipolaridade do período soviético, permite analisar
a política externa russa em decorrência das mudanças estruturais no sistema
internacional, especificamente no caso da Geórgia.
A transmutação da política externa russa apresenta características
específicas. Ela é determinada pela autonomia e a concomitante alteração estrutural
geopolítica presente após o fim da Guerra Fria (Sakwa; 2008; p. 241). O governo
Putin exemplifica essa tentativa. Putin buscou desenvolver uma nova abordagem
para as relações internacionais, ao combinar a tendência russa a uma política de
poder com o reconhecimento de certo nível de interdependência entre os países e a
prioridade de integração ao sistema financeiro e econômico internacional. Segundo
Sakwa (2008, p. 242), procurou-se cunhar uma política internacional que
reafirmasse os interesses nacionais, enquanto a Rússia se integrava à sociedade
internacional.
A compreensão da Rússia como uma grande potência, em um mundo em
transformação, significaria reforçar a autonomia, com concessões a conjuntura
externa. Desse modo, o país estaria numa condição bem diferente dos demais ex-
países comunistas da Europa e, portanto, rejeitaria a tutela por instituições
internacionais que reduzissem a capacidade de ação em suas relações
internacionais. Putin procurou recolocar a Rússia no centro da política internacional,
sem perder o poder decisório perante outras grandes potências. Haveria, assim,
uma integração à comunidade internacional, porém que atendesse aos desígnios e
às premissas russos.
A tipologia de Ambrósio (2005) pode ajudar a compreender o “novo
realismo” – termo cunhado por Sakwa – utilizado pela Rússia do século XXI. Para
aquele, há três parâmetros de percepções de política internacional desenvolvidos
por Moscou: os atlanticistas, que pretendem maior alinhamento com os Estados
Unidos e o Ocidente (bandwagoning); os imperialistas, que defendem a
reconstrução ou reafirmação do poder imperial russo em contraponto ao poder do
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Ocidente (uma política de equilíbrio de poder); e os neo-eslavistas, que
compartilham as pretensões imperiais, mas prezam primordialmente o
desenvolvimento da identidade do país (dificuldade enfrentada desde cedo, vide as
reformas empreendidas por Pedro, o Grande, no século XVII). A política de Putin,
expoente do novo realismo, enquadrar-se-ia como neo-eslavista, mas com
elementos de concordância com os atlanticistas, como a adesão a normas e a
alguns regimes internacionais. A configuração de parâmetros da política russa é
condicionada pela nova realidade internacional, adequando-se às novas interações
e, dessa forma, tornando-se também transicional.
Para Trenin (2001; p. 260), o futuro russo reside no Ocidente. A
instabilidade do sul do território, consubstanciado pela fragilidade dos países
islâmicos fronteiriços, aproximaria os interesses geopolíticos russos aos interesses
do ocidente. A Rússia, conseqüentemente, atuaria como agente do status quo,
cooperando com os países europeus e com os Estados Unidos ao invés de colocar-
se como competidor na região. Sakwa (2008, p. 246), no entanto, afirma que traços
do imperialismo russo não desapareceram completamente quando a busca de
autonomia dos estados do entorno russo recrudescem, especialmente quando os
Estados Unidos se arvoram de protetores do “pluralismo geopolítico” de países na
área de influência russa.
Esse óbice decorre da incompatibilidade de elementos assimétricos na
elaboração da política internacional russa. As dificuldades de lograr integração com
os valores do ocidente sem obter uma condição de membro pleno nas instituições
internacionais, degradam as relações com os países ocidentais. Por um lado, houve
melhora nas relações com a União Européia e com a OTAN – Organização do
Tratado do Atlântico Norte –, contudo, sem obter vantagens significativas em troca1.
Assim, tais relações provaram-se incapazes de atender às pretensões russas de
segurança coletiva. Por outro lado, o crescimento da economia demonstrado pela
Rússia nos últimos anos – especialmente durante o governo Putin – e da
autoconfiança, fizeram ressurgir temores de imperialismo e oposição por parte dos
países ocidentais.
1 Em 1996, o Fundo Monetário Internacional emprestou USS 10,2 bilhões de dólares com a finalidade
de incentivar reformas fiscais, monetárias e bancárias no país durante a transição para a economia de mercado. O repasse desses recursos financeiros, apesar do interesse em motivar o desenvolvimento do capitalismo russo, foi
retardado por duas vezes – em 1997 e em 1999 -, devido a alegações do FMI relativas à fragilidade
macroeconômica e à falta de agilidade nas reformas empreendidas.
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Na política externa, o entrave decorrente do condicionamento estrutural
desfavorável levou à modificação da percepção de política externa de Putin. Passou-
se de um momento de concessões e de adequação à unipolaridade estratégica
americana para, posteriormente, um momento de amadurecimento, no qual o
comportamento hegemônico, uma vez intensificado, constituiria ameaça aos
interesses russos, principalmente na Ásia central.
A compreensão da situação russa na Geórgia permitir-nos-ia um quadro
relevante para prognósticos futuros acerca da Ásia Central. A política externa russa,
presa entre o dualismo da integração ao ocidente e da autonomia de reafirmação de
grande potência encontra-se presente nas ex-repúblicas soviéticas, apesar de não
apresentar a mesma magnitude.
Para algumas das ex-repúblicas, como a Geórgia, a adesão aos valores
de instituições internacionais ocidentais associa-se à manutenção da integridade
territorial e à liberação do passado de dependência da Rússia, enquanto que para a
Rússia significa exatamente o oposto. No campo econômico, o fluxo de
investimentos russos determinaria a retomada de capitais perdidos durante a queda
da União Soviética, enquanto que para esses países, haveria receio de que esses
investimentos impliquem dificuldades na transição para uma economia de mercado
internacionalmente competitiva, uma vez que haveria reforço da dependência
econômica com o mercado russo.
A teoria realista sistêmica2, empregada nos capítulos subseqüentes,
implica que a Rússia em virtude da incerteza acerca das ações condicionantes dos
demais atores buscou procurar maximizar a sua segurança. O sistema apresenta-se,
portanto, com uma estrutura competitiva. O destino de cada Estado depende das
respostas às ações dos outros Estados, segundo preconiza Waltz, (1979; p. 127).
Contudo, as respostas às contingências externas não estão limitadas ao âmbito
militar. Há outros mecanismos para atuar na defesa do interesse nacional, ainda que
limitados pelas restrições estruturais.
Nesse sentido, a teoria elaborada por Mearsheimer, como descreve Jervis
(2003; p. 288), que divide o realismo na forma ofensiva provê um adendo teórico
importante explorado nos capítulos vindouros. O realismo ofensivo caracteriza-se
2 O neorrealismo, nos termos desta dissertação, é considerado no contexto do realismo estrutural, bem como dos
desenvolvimentos recentes do realismo ofensivo e realismo defensivo – conseqüências do desenvolvimento
teórico das relações internacionais sob o paradigma de Waltz.
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pelo pensamento de que poucas situações são consideradas como “dilemas do
prisioneiro”, a maioria consistindo em jogos de soma zero. A competição
estabeleceria, portanto, o paradigma da maioria das relações entre países. Isto
ocorreria em situações em que ganhos para um lado constituem prejuízo para o
outro. Dessa forma, quando o Estado encontra-se em um jogo de soma zero, o
objetivo primordial de segurança prevalece e, conseqüentemente, não há
possibilidade de cooperação efetiva entre os países3.
Um equilíbrio próximo ao ótimo de Pareto, assim, seria impossível de se
obter mesmo com a participação dentro de instrumentos de governança global ou
regimes internacionais. Ainda que houvesse determinado nível de integração
institucional, os interesses divergentes entre os Estados impedem uma interação
satisfatória (sub-ótima), uma vez que se afetam elementos estruturais que
influenciam na segurança ou nos benefícios associados ao status de país
dominante.
A perspectiva do realismo defensivo completaria uma análise prudente das
interações sistêmicas russas. Ao considerar que, em apenas algumas situações, o
Estado se encontra constrangido pela ameaça imediata da segurança, os teóricos
dessa vertente consideram que há grandes possibilidades de cooperação quando
interesses essenciais não estão em jogo. Tal concepção prevalece na configuração
de determinados fenômenos. Assim, a percepção estrutural e as causas das
interações entre as unidades permitiriam distinguir as situações e qual conduta deve
ser adotada pelo Estado no caso específico, ou seja, busca de status quo ou
reformismo. As posições de conflito ficariam restritas a apenas alguns elementos da
política internacional.
O tema da dissertação consiste na comparação entre as duas propostas
de pacificação, tanto a política tradicional4 quanto a verificada na Geórgia, enquanto
dificuldade geopolítica russa de inserção no sistema internacional contemporâneo. E
3 O realismo ofensivo consiste no desenvolvimento teórico do realismo estrutural de Kenneth Waltz
realizada por John Mearsheimer, no livro The tragedy of great power politics. Esse realismo coaduna as ações do
Estado ao interesse de obter hegemonia, sendo esta a melhor conduta diante do sistema anárquico decorrente da
própria estrutura do sistema internacional. Desse modo, a cooperação entre Estados é considerada falha, uma vez
que o interesse em obter vantagens sobre outras unidades do sistema tende a minar a confiança mútua, ao reduzir
a capacidade de obter acordos benéficos para ambos. Isso leva à retomada do padrão de competição e de
desconfiança entre os países, renovando a insegurança nas relações estatais. 4 A tradicional política externa russa – ou, ao se falar no período da União Soviética, um programa
interno - para as repúblicas soviéticas baseava-se no controle por intermédio de mecanismos de poder duro para
a região, associado com algumas formas de manutenção de símbolos identitários – bandeiras e assembléias
locais, língua nacional etc.
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que produz incoerências nas perspectivas de política externa que delimitam as
relações com países de proximidade geográfica. Os conflitos russos, portanto,
tendem a demonstrar singularidades em relação aos de outras nações. Assim, a
estrutura da região caucasiana condiciona os interesses nacionais russos a medidas
que, defensivas em sua origem, imperceptíveis e sem intenção, por parte dos
políticos moscovitas, se tornam guerras de agressão, como descreve Kissinger
acerca da política externa russa (1994); e como ocorreu, por exemplo, em 2008, na
Ossétia do Sul.
A expressividade do poderio geopolítico russo, no pós-Guerra Fria, sugere
alteração nos desígnios da política externa do governo moscovita. Há, em função
do enfraquecimento militar e econômico da década de 1990, incorporação de
elementos da perspectiva estrutural e liberal do sistema internacional na atuação
regional e mundial da Rússia. Agregam-se, então, aos instrumentos tradicionais do
poder bruto (hard power) a capacidade de persuasão mediante inversões
econômicas, bem como mediante a promoção de idéias e de valores ocidentais,
denominado poder brando (soft power). A definição de poder adotada, portanto,
torna-se mais ampla, englobando elementos como poder econômico, influência
cultural.
O paradoxo que regula a diplomacia russa com os seus vizinhos
determina diretamente as últimas intervenções moscovitas no Cáucaso. A
instabilidade na condução da política externa, fato recorrente na história russa,
decorre da incapacidade das fronteiras territoriais se ajustarem aos limites da
fronteira geopolíticas do país. A extensão transcontinental da Rússia tende a obstar
a efetivação da soberania em algumas regiões que, diante da presença de minorias
étnicas, resulta na formação de atritos entre populações locais, de etnias diversas, e
as de origem russa. Desse modo, surgem elementos que justificam uma
incorporação mais assertiva nas unidades federativas e na fronteira do país, como é
observado no terceiro capítulo. Verifica-se a transferência parcial da política de
“ukrupnenie” (fusão) - que busca aumentar o controle do Kremlin na periferia do país
por intermédio do aumento na qualidade de vida e desburocratização da
administração – para áreas fora das fronteiras territoriais russas. A política de fusão
e a troca de favores políticos estabelecem, portanto, vínculos diretos entre o Kremlin
e as diversas pessoas jurídicas da federação russa.
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Os conflitos na Geórgia demonstram essa nova abordagem que busca
lograr equilíbrio entre intervenções militares e programas econômicos. Por um lado,
o conflito nas regiões da Ossétia do Sul e Abecásia representa o receio russo de
perda da influência no Exterior Próximo em virtude da ampliação da OTAN
(Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Cáucaso, analisado no quinto
capítulo. Desse modo, a guerra insere-se nos paradigmas geopolíticos russos de
manutenção da esfera de influência nos países fronteiriços. Por outro lado, o apoio
aos países fronteiriços, como é perscrutado no quarto capítulo, foi seguido por
grandes fluxos financeiros providos por bancos e empresas russas, com fim de
prover recursos para projetos de infraestrutura, designados a manter o predomínio
de empresas russas na distribuição de fontes energéticas, ao aumentar a
dependência crônica da região – especialmente durante o inverno.
A dissertação busca compreender essa atuação da política externa russa
no pós-Guerra Fria, especificamente do caso georgiano, e suas modificações no
Cáucaso. Logo, a pergunta que estimularia a pesquisa seria “Em que ponto as
intervenções mais recentes da Rússia na Geórgia são diferentes das demais?”. Cria-
se, então, um ponto de partida para decidir o que e como comparar a situação posta
em análise.
Neste sentido, o tema, isto é, a proposição que vai ser tratada na
dissertação, concerne à política externa russa pós-Guerra Fria. E o fenômeno
adstringe-se à política moscovita pós-soviética – de 2000 a 2008 para a região -,
concentrando-se, contudo, nas causas para o conflito russo-georgiano de 2008.
Assim, a hipótese consiste em comprovar que “a guerra na Geórgia indica
adequação da política externa russa ao condicionamento estrutural do sistema
internacional do pós-Guerra Fria”. É uma hipótese que estabelece relações entre as
variáveis. Assume-se, portanto, a existência de duas variáveis: a política externa
russa, que pode se delinear mediante adequação a ordem ocidental ou coadunar-se
com princípios das nações ocidentais; e estrutura, termo relativo à ordem das partes
de um sistema que, ao interagir, podem produzir resultados diversos, conforme
prescreve Waltz (1979, p. 81).
A relação de causalidade definida pela hipótese permite uma classificação
das duas variáveis. A primeira variável – política externa -, por delimitar a esfera de
atuação do Estado russo na seara internacional é uma variável dependente,
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enquanto que a estrutura, por condicionar o comportamento da política externa
russa, é variável independente da primeira. Há, portanto, relação de dependência
entre as variáveis elencadas, em que a primeira variável é explicada pela segunda
variável. Procura-se, então, verificar os efeitos das alterações na estrutura do
sistema internacional para melhor análise da origem da reformulação da política
russa contemporânea na região. O estudo possibilita, portanto, utilizar diversas
variáveis para identificar possíveis causas para o fenômeno estudado.
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2. PARADIGMA SISTÊMICO NO PÓS-GUERRA
FRIA: PILARES TEÓRICO-NORMATIVOS
2.1 INTRODUÇÃO
As interações entre os Estados constituem reflexo da estrutura do sistema
internacional. Ao explicar resultados e expectativas da seara internacional é
necessário examinar as condições relativas dos Estados, bem como as suas
características internas, em função dos constrangimentos oferecidos pelo sistema no
qual se inserem.
O equilíbrio de poder, neste sentido, resulta da condição na qual os
Estados existem dento do sistema. Ainda que um Estado deseje permanecer em
paz, deve considerar a necessidade de guerrear, uma vez que a correlação de
forças se altere essencialmente, ele pode decidir reverter uma vantagem subjacente
a seu favor, enquanto há tempo. Segundo Waltz (2001; p. 7) essa é a base analítica
para as percepções das relações internacionais centradas no equilíbrio de poder. O
conflito, portanto, decorre da competição e da atividade social dos países em
relação aos demais agentes das relações internacionais.
Na anarquia presente nas relações internacionais, não há harmonia
natural de interesses. Um Estado pode buscar lograr resultados favoráveis mediante
sua própria capacidade seja militar, econômica ou política, aumentando a eficiência
das políticas que adota para obter seus objetivos. As desavenças entre liberais e
realistas clássicos nesse ponto concernem não às características do sistema
internacional, segundo Jervis (2003; p. 279), mas se os conflitos são necessários à
obtenção dos objetivos dos Estados. Para os realistas, quando cada Estado é
capaz de definir políticas próprias, independentemente da submissão aos demais,
qualquer ator pode utilizar a força para atingir suas metas. Assim, quando os
benefícios superarem os custos de uma ação militar, surgiria o conflito. Já os
neoliberais, adotando posição diversa, acreditam que há grande potencial para
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cooperação na interação entre Estados e, que enquanto esse conjunto de vertentes
para negociação e benefício mútuo existir, os conflitos serão evitados.
O otimismo dos liberais não corresponde a algumas dificuldades presentes
no sistema internacional. As análises tendem a focar na possibilidade de uma
melhora ética interna dos Estados, ou na possibilidade da regulação por meio de
normas internacionais. Esses dois elementos seriam complementares, a execução
da lei estaria submetida à adequação voluntária dos Estados em busca de
compreender valores morais às ações estatais. Por conseguinte, as variações de
capacidade entre as nações não apresentariam maior grau de conflitos, se
concebidas dentro dos paradigmas liberais. Os Estados buscariam atingir seus
interesses dentro do conjunto de limitações impostos por esses dois elementos.
A perspectiva liberal apresenta, por outro lado, seu valor sob a condição
de racionalidade do sistema internacional. Se a cooperação é definida como análise
racional de perdas e ganhos, havendo grande potencial de ajuda mútua entre os
países não explorada, os conflitos devem ser considerados como irracionais,
argumenta Waltz (2001; p. 169). No entanto, uma ação completamente racional
implicaria reconhecer que o bem estar individual depende do sucesso dos demais
atores, bem como decorre do reconhecimento suficiente das ações dos outros
atores dentro de um sistema.
As dificuldades não concernem exclusivamente à ação dos atores
individuais, mas também da capacidade de avaliar as perspectivas da estrutura do
sistema e as possibilidades derivadas da interação entre Estados. O paradigma
liberal, portanto, adéqua-se a uma condição de benefícios recíprocos, ainda que
algum agente receba mais que os demais. Entretanto, num jogo de soma zero, a
perspectiva liberal torna-se precária ao tentar delimitar as expectativas estruturais
dos atores.
Na anarquia, não há harmonia de interesses automática. A ausência de
uma autoridade para prevenir e ajustar os problemas decorrentes de choques de
interesses significa que a guerra é, em algumas conjecturas, instrumento inevitável
para a ação estatal. A conduta do Estado pauta-se pelo aumento do seu bem-estar.
As ações racionais de um Estado buscam, portanto, legitimar os objetivos
perseguidos, o que levaria a uma diminuição dos níveis sócio-econômicos dos
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demais países. Uma vez que a competição tenha início, as partes vincular-se-iam
aos seus interesses, reduzindo as possibilidades de cooperação.
Neste sentido, um tipo de ato estatal racional, portanto, segundo Waltz
(2001; p. 192) pode ser considerado de duas formas: 1) um ato é racional quando
produz um resultado satisfatório no longo prazo; 2) um ato que é baseado no cálculo
de fatores, incluindo as ações dos demais atores, é racional. Assim, um ato que
possa ser previsto nas suas possibilidades erroneamente, mas que acarrete
benefícios ao estado pode ser considerado equivocado, mas racional. A recíproca
também é verdadeira. Uma conduta estatal, apreciada como racional, pode implicar
resultados deletérios à nação, quando a estrutura do sistema influenciar em
conjecturas diversas das previstas pelo agente.
Uma solução imperfeita pode surgir, ainda que represente valor abaixo do
ótimo possível de ser obtido pelos atores internacionais. Numa situação de anarquia,
ganhos relativos são mais importantes que ganhos absolutos. O dilema da
segurança, em conjunto com as condições sob as quais os estados se inserem no
sistema internacional, impõe constrangimentos a uma política externa considerada
racional. A sanção para aqueles que olvidam as restrições estruturais, conforme
Waltz (2001; p. 201), é a própria sobrevivência do Estado.
Logo, a liberdade de ação de um Estado é delimitada pela conduta de
outros Estados. Os fatores que distinguem a política internacional de outras
espécies de jogos são: os riscos dos Estados considerados de importância primeva;
a anarquia do sistema internacional; os recursos militares e econômicos disponíveis
aos Estados; e a condição de que o uso da força política não exclui outros meios de
obter os resultados. A regra principal seria, segundo Waltz (2001; p. 205): faça o
necessário para vencer. Quando Estados agem segundo essa política, outros
Estados podem ajustar sua conduta conforme as interações dos demais. As
oportunidades e vantagens da estrutura delimitam o âmbito de ação dos Estados no
sistema internacional.
A existência de um comportamento moral dos Estados queda, portanto,
condicionada pela previsibilidade de conduta e segurança transmitida pelo sistema.
Em um sistema anárquico, onde tal segurança é ameaçada, a moralidade torna-se
submetida à necessidade de assegurar a sobrevivência do Estado. As
circunstâncias impostas pela realidade alteram os caminhos possíveis à obtenção da
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melhora de bem-estar desejado. Assim, o equilíbrio de poder é resultado da
condição de anarquia e, subseqüentemente, das relações empreendidas entre
Estados com esse objetivo como constrangimento às suas ações.
2.2 TEORIAS SISTÊMICAS E REDUCIONISTAS
Uma teoria organiza fenômenos para que eles sejam vistos como
mutuamente dependentes. Segundo Waltz (1979; p. 10), a dificuldade de relacionar
fatos em perspectivas isoladas para produzir formulações teóricas envolve observar
um padrão até então não visto. Nesse sentido, as teorias são um exercício de
criatividade associada à realidade. Uma vez que se compreenda a dinâmica
subjacente aos fenômenos, definem-se as operações verificadas no elemento
empírico para produzir axiomas. Destaca-se, portanto, os princípios causais que
influenciam ou formam a matéria estudada.
Para facilitar tal empresa, segundo Waltz, seriam necessários alguns
requisitos de ação: isolar, ou seja, observar as ações e interações de um pequeno
número de fatores e forças; abstrair, deixando de lado coisas para focar em outras
de maior relevância; agregar, juntar elementos díspares de acordo com um critério
derivado do propósito teórico; idealizar, agir como se fosse possível atingir um nível
de perfeição ainda que tal seja impossível. Dessa forma, construir-se-ia um
arcabouço lógico capaz de evitar incertezas e impressões distantes do rigor
científico.
As teorias indicam os conectores, o que é conectado; e, como esse
vínculo é realizado. Para Waltz, como afirma Schweller (2003; p. 319), teorias que
combinam variáveis causais sub-sistêmicas tendem a ser reducionistas, pois
dependem de atributos nacionais ou subnacionais para explicar resultados na esfera
internacional. Ainda que tal percepção fosse afim com a realidade, seria
inconcebível explicar fenômenos internacionais apenas com fatores internos dos
Estados. Haveria, portanto, um determinismo miniminalista das interações
internacionais.
Com uma abordagem reducionista, declara Waltz (1979; p. 18), o todo é
compreendido mediante o conhecimento dos atributos e interações de suas partes.
20
No campo internacional, seria buscar compreender a política internacional por
intermédio dos processos decisivos e da burocracia nacional. Definir a estrutura do
sistema internacional, portanto, consistiria em identificar características nacionais
com os atributos que a teoria busca explicar. Assim, as teorias podem pecar por
transmitir uma percepção demasiado simplista e parcial da seara internacional.
Uma teoria sistêmica, por outro lado, demonstra como dois níveis operam
e interagem, diferenciando-os. Esse tipo de abordagem separa a estrutura dos
aspectos internos das unidades do sistema. A delimitação da estrutura
necessariamente omite as características e os atributos das unidades, preservando
os princípios que regem o centro do sistema. Desse modo, é possível distinguir
mudanças de estrutura que transformam o espaço dentro das unidades que
compõem o sistema.
Logo, as preocupações primordiais da política internacional, e possíveis
ganhos com uma teoria sistêmica são dois, como expressa Waltz (1979; p. 40):
primeiro, traçar os caminhos de sistemas internacionais diferentes, por exemplo, ao
indicar provável durabilidade e possibilidade de conflito; segundo, demonstrar como
a estrutura do sistema afeta as unidades que interagem e como essas afetam a
própria estrutura do sistema. Estruturalmente, uma teoria sistêmica descreve e
compreende as pressões a que os Estados estão submetidos (1979; p. 71) e como
reagem aos constrangimentos dentro das idiossincrasias de cada Estado, isto é,
como reagem aos incentivos recebidos da estrutura do sistema.
O conceito de estrutura do sistema age como constrangimento aos atores,
uma restrição que pode produzir diversos efeitos nos Estados conforme as
características singulares de cada sistema. A estrutura conduz os atores a agirem de
certas formas, não de outras, produzindo possibilidades de ação que serão
escolhidas pelas burocracias dos países. Criam-se, assim, padrões de
comportamento dos Estados, que serão alterados conforme as características dos
países e a busca de obtenção de resultados mais eficientes.
Teorias sistêmicas, portanto, como argumenta Schweller (2003; p. 320),
explicam por que unidades diferentes se comportam e, apesar das variações,
produzem resultados que recaem dentro de expectativas prováveis. Causas no nível
das unidades e do sistema interagem, e porque assim o fazem, explicações ao nível
das unidades apenas são errôneas. Então, se a teoria permite o manuseio desses
21
dois níveis, a explicação adotada assegura a compreensão de mudanças e de
continuidades num sistema.
A incorporação das restrições impostas pela estrutura do sistema permite
demonstrar que mudanças no nível das unidades têm menor tendência de mudar a
obtenção de resultados do que uma alteração nas características essenciais do
próprio sistema. Assim, o conceito de estrutura apresenta-se não estático, porém
afim às mudanças durante o tempo. As estruturas são dinâmicas em virtude do
efeito de cambiar o comportamento dos atores e afetar o resultado das interações
entre eles. Dessa forma, dada circunstâncias similares pode haver comportamento
consoante a estrutura entre diversas unidades que, portanto, demonstrarão ações
similares no sistema internacional.
No entanto, não é possível prever como as unidades irão reagir às
pressões do sistema sem conhecimento prévio das suas disposições internas. As
teorias sistêmicas explicam o entorno no qual os países se inserem e as condições
sob as quais as unidades interagem entre si para obter maior bem estar, ou maior
eficiência das suas políticas. Tampouco uma teoria com esses predicativos torna-se
mera repetição de paradigmas, uma vez que descontinuidades podem ocorrer
devido a mudanças na estrutura ou na disposição internas dos estados.
Teorias sistêmicas, por conseguinte, explicam como a organização de um
campo age como constrangimento e distribuição de forças nas unidades que
interagem entre si. Há uma descrição das forças as quais as unidades se
submetem. Dessas inferências é possível especular acerca das ações e o destino
das unidades, isto é, como elas competem e se ajustam ao convívio uma das outras,
se sobrevivem ou perecem no sistema internacional. Logo, segundo Waltz (1979; p.
72), as dinâmicas de um sistema limitam a liberdade das unidades, seu
comportamento e os resultados do seu comportamento tornam-se mais previsíveis.
Ainda que as interações mais freqüentemente ocorram ao nível das
unidades, as implicações das interações não podem ser compreendidas sem o
conhecimento da situação na qual tais relações ocorrem. O destino dos Estados é
estritamente vinculado à conjectura estrutural sobreposta. A análise dos Estados no
seu entorno, portanto, deve abranger a percepção dos princípios que regem o
sistema, bem como das expectativas de alteração das estruturas em que se
inserem.
22
Assim, grande parcela da eficácia explicativa da teoria encontra-se na
capacidade do sistema de delimitar as oportunidades e riscos da conduta estatal
diante dos constrangimentos emanados da estrutura internacional. A estrutura age,
por conseguinte, como seletor das ações proferidas pelos Estados. As intenções e
comportamentos adéquam-se as premissas definidas pelos parâmetros do sistema.
Por si própria, a estrutura não provoca nenhum resultado específico, como afirma
Waltz (1979; p. 74), mas afeta os Estados indiretamente, mediante alteração das
políticas adotadas na seara internacional. Os efeitos podem ser de dois tipos:
socialização dos atores ou competição entre eles. Apesar disso, a estrutura do
sistema afeta diretamente a relevância desses efeitos na sociedade internacional.
2.3 MUDANÇA SISTÊMICA NO FINAL DO SÉCULO
XX
Para definir uma estrutura é necessário desconsiderar como as unidades
interagem umas com as outras e concentrar em como elas se diferenciam em
relações às demais. Waltz (1979; p. 80) descreve que a forma como as unidades
estão posicionadas ou circunscritas é essencial à definição das características de
um sistema. A disposição da estrutura é, portanto, uma propriedade do sistema.
Assim, apenas mudanças no concerto do sistema causam alterações sistêmicas.
Dessa forma, surgem três aspectos de uma perspectiva sistêmica da
sociedade internacional. Primeiro, as estruturas persistem enquanto que a
personalidade, comportamento dos governantes, bem como as interações entre os
Estados podem variar amplamente. Uma estrutura logra, por conseguinte, separar-
se das ações e das interações dos Estados. Assim, demonstra maior estabilidade de
previsibilidade, uma vez que se distingue de alterações aleatórias e irracionais dos
Estados e dos indivíduos.
Segundo, uma definição de estrutura aplica-se a âmbitos de diferentes
áreas, se o arranjo entre as partes é similar. A efetividade de um sistema, quando os
elementos se conjugam de forma similar, pode ser transferida para fenômenos
diferentes. Dessa forma, uma análise sistêmica de um fato social pode ser utilizada
23
em outra matéria empírica quando a disposição entre as relações das unidades é
congênere ao fato principal. Uma análise sistêmica, portanto, apresenta maior
abrangência analítica do que outras perspectivas teóricas.
Terceiro, as teorias sistêmicas podem, com alguma alteração, serem
aplicadas a outras áreas da ciência. A análise de um fato, não obstante poder
apresentar similaridades com outros fenômenos, não apresenta congruência
perfeita. Assim, é imprescindível adequar o fato à teoria aplicada. Os parâmetros
sistêmicos, ainda que expliquem satisfatoriamente as questões levantadas, devido a
sua organicidade preservam as características essenciais do fenômeno na
explicação epistemológica.
Ainda que um sistema seja formado por uma estrutura e unidade que
interagem, não há completa relação, ou melhor, identidade com os verdadeiros
agentes e unidades. Aqueles são conceitos abstratos, enquanto que esses são
concretos. Uma estrutura não pode, quando se busca maior verossimilhança,
circunscrever-se apenas aos elementos materiais do sistema, mas também deve ser
concebida como o arranjo das unidades dentro da estrutura do próprio sistema e dos
constrangimentos impostos aos atores/agentes.
O conceito de estrutura, portanto, é baseado no fato de que unidades
diversamente justapostas e combinadas comportam-se diferentemente e, ao
interagir, produzem resultados dispares. A estrutura, nesse contexto, define-se
conforme a ordenação das partes do sistema ocorre. Não obstante, atores políticos
agem e comportam-se peculiarmente conforme as suas funções no sistema
encontram-se pré-determinadas. As suas ações, portanto, decorrem de
constrangimentos enfrentados consoante as interações dentro da estrutura do
sistema.
A política doméstica permitiria elucidar alguns pontos dessa definição e
transição entre estruturas do sistema. Segundo Waltz (1979, p. 81), no âmbito
interno, as unidades – instituições e agências – colocam-se em relações de
superordenação e subordinação. Os atores políticos diferenciam-se consoante os
níveis de autoridade e as competências que exercem dentro da unidade
governamental. Portanto, a especificidade de funções e papéis dentro de um
sistema ressalta o desenvolvimento de um Estado, aferindo conteúdo diferente a
cada elemento da estrutura conforme as informações designadas pelo sistema.
24
Estruturas políticas modelam os processos políticos. Em resumo, uma
estrutura doméstica, por exemplo, define-se consoante três fatores: inicialmente,
pelos princípios pelo qual é ordenada; segundo, pela especificação de funções de
unidade formalmente diferentes; e, terceiro, pela distribuição de capacidade entre as
unidades.
Assim, uma estrutura política produz similaridades no processo e no
desempenho da ação do Estado, enquanto tal estrutura permaneça ativa.
Similaridade, contudo, não é uniformidade. A estrutura atua como uma causa das
ações e condutas futuras dos Estados, mas não é o único fator relevante nos
resultados vindouros. As partes de um governo apresentam comportamentos bem
diferentes devido ao efeito da estrutura política sobre suas ações. A autoridade
soberana interna reduz essa diversidade de perspectivas sobre a capacidade de
conduta estatal na sociedade internacional. Assim, o sistema estatal interno é
ordenado, diferenciando-se da sociedade internacional caracterizada pela anarquia.
O sistema político internacional é formado pela coação de unidades em
um sistema de auto-ajuda. A estrutura internacional é formada pela conjuntura
política (Carr; 1981) de um período histórico determinado, sejam sistemas de
cidades-estados, Estados-nacionais ou impérios. Esse tipo de estrutura origina-se
da coexistência entre as unidades políticas. O sistema internacional, por
conseguinte, constrói-se naturalmente, uma vez que as unidades atuam buscando
satisfazer seus interesses. Dessa forma, a interação dessas condutas constrangidas
pela estrutura implica a formação subseqüente do sistema internacional.
Nesse sentido, a inexistência de um sistema internacional organizado
seria vantajosa para a maioria dos países, pois evitaria resistências a pretensões
decorrentes das ações de outros atores. A coação das unidades, portanto, produz
um cenário dinâmico abaixo do equilíbrio de Pareto, derivado da atuação dos
estados na obtenção de seus desígnios.
Os Estados têm a intenção precípua de submeter suas perspectivas de
ganhos e vantagens a outros atores. A formação do sistema, contudo, é resultado da
interação necessária entre condutas de unidades que agem egoisticamente. Assim,
a estrutura sistêmica constrói-se pelos constrangimentos causados pelas relações
mútuas entre as nações.
25
Os objetivos buscados pelas unidades são diversos, variando da intenção
de reforma da estrutura à manutenção do status quo, conforme a análise feita pelos
países dos aspectos do sistema internacional. Não obstante isso, a sobrevivência é
um pré-requisito para qualquer caminho tomado pelos Estados. A necessidade de
manter a sobrevivência no sistema é o campo de ação, dentro de um mundo no qual
a segurança não é devidamente assegurada, do jogo na esfera internacional.
Todavia, o sistema não se resume a essas condutas. Estados podem preferir agir
consoante a proteção de outros Estados ou preferir demonstrações de poder brando
ao cooptar parceiros potenciais dentro da estrutura.
A estrutura, porém, possibilita selecionar os comportamentos que devem
ser determinantes para os Estados. Dentre as interações entre as partes,
desenvolvem-se estruturas que recompensam ou punem certas condutas que
aceitam ou não as condições contidas nas premissas do sistema. Isso ocorreu, por
exemplo, com a Rússia logo após o fim da Guerra Fria, como será visto mais
adiante. Assim, diz Waltz (1979; p. 92), a estrutura condiciona os meios para que
aqueles que agem conforme ou contra os constrangimentos da estrutura ascendam
ou pereçam na tentativa de atingir o topo do sistema e permaneçam nessa condição
por muito tempo. Os jogos criados pelo sistema constituem-se pela estrutura que
define qual unidade tem mais possibilidade de prosperar, ou qual a conduta é
necessária para tal êxito.
Vale ressaltar que os Estados não são os únicos atores internacionais,
porém são aqueles que alteram, mais freqüentemente, a ordem internacional. As
estruturas, portanto, não são delimitadas por todos os atores igualmente. Alguns têm
maior relevância na construção dessa dinâmica, principalmente aqueles com maior
capacidade ou habilidade para atuar dentro do enquadramento sistêmico. Assim,
apenas algumas unidades apresentam-se com relevância maior nas interações
decorrentes da estrutura do sistema.
Tal referência não exclui a assertiva de que os Estados são unidades
dentro de um sistema. A acepção dos Estados na estrutura sistêmica significa dizer
que eles são unidades políticas autônomas. Os Estados, portanto, constroem a
dinâmica de interação a partir das estruturas domésticas e das expectativas
internacionais dos demais Estados. Esse cenário deve continuar no longo prazo,
26
uma vez que as organizações internacionais ainda carecem de supranacionalidade,
bem como os Estados ainda apresentam uma taxa de mortalidade pequena.
Não obstante isso, o conceito de soberania adquire conteúdo diverso
numa teoria sistêmica. A soberania revela uma dualidade entre independência e
dependência. Ser soberano não implica estar alheio a qualquer tipo de limitações ou
constrangimentos em suas ações, especialmente no sistema internacional. Isto
conduz à acepção do Estado como unidade racional que pode escolher, verificados
os constrangimentos, como enfrentar os seus problemas externos e internos. Há,
dessa forma, dependência da disposição da estrutura imposta pelo sistema, sem
haver estrita ligação entre os constrangimentos e os resultados. Já que o Estado
pode escolher os meios, considerados mais eficazes, para a obtenção de seus
interesses.
A possibilidade de escolha de ação é determinada, a partir de então, pela
distribuição de capacidades entre as unidades do sistema. Como o aspecto
funcional, delimitado pela noção de soberania é formalmente similar a todos os
Estados, a disparidade de poderio restringe a conduta dos Estados mais fracos,
além de reforçar a atuação das nações maiores. As grandes potências, por exemplo,
circunscrevem as nações maiores em estruturas, amiúde, por elas elaboradas. A
capacidade de realizar ações relevantes, portanto, é essencial à consolidação dos
aspectos do sistema internacional.
A estrutura, como afirma Waltz (1979; p.97), muda com as alterações na
distribuição de capacidades por intermédio das condições distribuídas no sistema;
bem como as mudanças na estrutura influenciam as expectativas de todos os atores
no sistema internacional e a forma com a qual os resultados serão obtidos. O
conteúdo da noção de estrutura é, assim, constituído pelas relações entre unidades
decorrentes de suas capacidades diferentes. As relações entre Estados são
definidas pelo poder que exercem entre si. Assim, a noção de poder é um atributo
relacional, uma vez que deve ser aferido em função do conjunto de unidades de um
sistema, apenas conforme a distribuição de suas capacidades.
Da mesma forma que as relações unicamente baseadas na expectativa de
interação com outras unidades, conforme Waltz (1979; p. 98), não devem ser
consideradas para conceitos estruturais; as relações entre um grupo de países em
âmbito regional pode revelar algo acerca da disposição de poder entre os países
27
devido a sua relevância estrutural. Assim, podem-se definir as características da
estrutura e do poder do país dominante perante a área de influência e os demais
países do sistema, como um todo.
Uma estrutura de política internacional é definida conforme agrupamentos
de nações. Logo, um mundo multipolar em que poucas potências se separam em
duas alianças, não deixa de ter uma estrutura de compartilhamento de poder por
vários países. Contudo, o fim de uma estrutura bipolar, pela decadência de uma das
potências tem efeito na remodelação que ocorrerá na estrutura do sistema, porque a
distribuição de poder não corresponde à estrutura anterior do sistema internacional,
como ocorreu no final do século XX.
Ao definir as características e moldura do sistema, torna-se imprescindível
compreender a distribuição de capacidades internas e externas que possibilitem a
tomada de ações quando houver interação com as outras unidades do sistema na
seara internacional. No entanto, apesar de Waltz desconsiderar a unicidade entre
mudanças na seara interior dos Estados com mudanças no interior das nações, a
transição verificada com a queda da União Soviética revela um fenômeno híbrido.
Uma alteração nas características domésticas de um dos países (desmantelamento
do vínculo federativo entre os países soviéticos) provocou alteração na distribuição
de poder no nível internacional. A desfragmentação da estrutura de poder interno
implicou alterações significativas em uma das potências relevantes do sistema
internacional. Dessa forma, o sistema internacional teve alterada a correlação de
capacidades entre os países, acarretando renovação da estrutura do sistema.
A queda do poder econômico e do poder político do gigante soviético
ocasionou mudança significativa no equilíbrio de poder mundial, resultando em nova
configuração das relações internacionais. Nas últimas duas décadas, a Federação
Russa empreendeu um processo de modernização das suas relações internacionais.
A transição democrática e econômica do país soviético para a inserção na
sociedade internacional do pós-Guerra Fria condicionou o processo de reformulação
da perspectiva dos interesses russos no seu entorno e nas áreas consideradas
estratégicas. Uma nova relação com os países ocidentais e com os países do
Exterior Próximo tornava-se, portanto, essencial para adequar a política externa às
transformações do sistema internacional.
28
Assim, pode-se compreender a política externa russa conforme a teoria de
Waltz, especificando-se na perspectiva ofensiva ou defensiva conforme a aferição
pragmática dos constrangimentos estabelecidos pelo sistema internacional.
Construindo uma perspectiva de adequação ao ambiente internacional consoante as
perspectivas, interesses e tipos de jogos enfrentados pelo país durante a transição
da política externa, que levariam a alterações pragmáticas, culminando na guerra da
Geórgia. A política externa russa encontrava-se, portanto, em um período de
redefinição do seu lugar no mundo das relações internacionais.
O realismo estrutural de Waltz implica que os países em virtude da
incerteza acerca das ações condicionantes dos demais atores devem procurar
maximizar a sua segurança. O sistema apresenta-se, portanto, com uma estrutura
competitiva. O destino de cada Estado depende das respostas as ações dos outros
Estados, segundo Waltz (1979; p. 127). Contudo, as respostas às contingências
externas não estão limitadas ao âmbito militar. Há outros mecanismos para atuar na
defesa do interesse nacional, ainda que sejam limitados pelas restrições estruturais.
A perspectiva de Waltz, portanto, permite compreender o fenômeno russo
dentro de uma sociedade internacional modificada após o fim da Guerra Fria, em
função do condicionamento externo e da adoção de políticas, hoje denominadas
como poder brando, na região do Cáucaso. A teoria realista permite analisar o
comportamento da política externa russa sem alijar alterações perceptíveis na
realidade contemporânea, reforçando a validade interna e externa da análise
acadêmica.
Assim, a discrepância entre as ambições russas e a capacidade efetiva do
país de inserir-se dentro de um sistema internacional transicional do pós-Guerra Fria
consubstanciam os limites e expectativas de política externa no período recente. A
atuação na Geórgia é significativa em virtude das características do país como
região de transição tanto entre Europa e Ásia, mas também como delimitador do
modus operandi para os demais países do Cáucaso.
29
3. GOVERNO E DINÂMICAS TERRITORIAIS:
DETERMINANTES DE POLÍTICA EXTERNA
3.1 DEFICIÊNCIAS INSTITUCIONAIS NA
ESTRUTURA DOMÉSTICA RUSSA
A Federação Russa, nos anos 2000, era composta por uma estrutura
política peculiar próxima ao modelo democrático. Em grande monta, tal distribuição
remonta ao legado deixado pela União Soviética. A transformação das
características do Estado soviético para a formação de um país vinculado aos
parâmetros do federalismo ocidental realizou-se insatisfatoriamente.
Progressivamente, o aparato governamental não logrou estabelecer instituições
representativas da soberania estatal nas diversas regiões do país. Fato que, por si,
influenciará a conduta russa no seu entorno, bem como revela uma das causas para
a desagregação da nação soviética e as modificações do sistema internacional.
A estrutura e problemas enfrentados com a integração do país indicam
elementos empíricos essenciais para compreender a interação da Rússia ao sistema
e a delimitação imposta pelos constrangimentos às escolhas realizadas pelo centro
de poder moscovita.
A composição das unidades de federação do Estado russo, após o fim da
União Soviética, incluía 89 unidades da federação. Tais organizações políticas não
apresentam homogeneidade na aferição de competências e direitos, sendo divididos
entre: (21) repúblicas; (6) territórios; (49) regiões; (1) região autônoma; (10) distritos
autônomos; e cidades de importância federal (Moscou e São Petersburgo), que são
administradas pela Federação (art. 5 da Constituição da Federação Russa)5. A
legislação confere às repúblicas maior autonomia do que os demais entes, pois lhes
é facultado ter sua própria constituição e assembléia. Enquanto que as demais
entidades podem ter apenas uma legislação destinada a elementos locais.
5 Em russo, as unidades são denominadas como: krais (territórios); oblasts (regiões); e okrugs (distritos
autônomos).
30
Essa idéia de hierarquia das unidades constituintes do Estado remonta,
como afirma Matthew Derrick (2009; p. 318), à Revolução Comunista de 1919, que
consagrava a separação entre nação e nacionalidade. A primeira compreendida
como uma entidade cultural mais desenvolvida do que a percepção de nacionalidade
e subjacente aos vínculos culturais e sociais à terra pátria. Já a nacionalidade, seria
alheia à idéia de subsumir-se a uma localidade e, conseqüentemente, afeita à
internacionalidade comunista, ao implicar um exercício maior de autogoverno de um
território. Dessa forma, permitiu-se uma função dual na esfera de organização
estrutural russa entre liberdade de cultura e integração nacional. Por exemplo, ainda
conforme Derrick (2009), as Repúblicas étnicas russas, durante o período Yeltsin,
tinham a faculdade de manter seus próprios presidentes e símbolos nacionais, bem
como a possibilidade de manter o idioma local – ou seja, características peculiares
de identidade. Assim, preservavam-se os aspectos locais, ainda que as unidades
formalmente pertencessem à Federação Russa.
Essa estrutura federal permeada por diferenças étnicas constitui o legado
soviético para a nação russa, ao assegurar amiúde aos entes regionais poderes
superiores aos da Federação. Os bolcheviques garantiam às minorias nacionais
mais relevantes unidades federativas consideradas como repúblicas autônomas,
distinguindo-se das demais 15 repúblicas soviéticas, com a intenção de delegar às
minorias papéis de competência do Estado. Assim, na maioria do período de
existência da União Soviética, os governos locais poderiam realizar ingerências no
âmbito político, econômico e social de sua jurisdição, sem requisitar anuência do
poder central.
Uma análise da estrutura político-territorial russa revela as inconsistências
na efetividade da soberania russa na amplitude do país. A Federação Russa é
composta, segundo Derrick (2009; p.318), por uma hierarquia entre unidades
divididas em duas categorias básicas: unidades étnicas e não-étnicas. As primeiras
designam as áreas de ocupação histórica de populações não russas,
compreendendo importantes minorias étnicas com determinados privilégios, tais
como a preservação de símbolos nacionais. As últimas, habitadas quase
31
exclusivamente por russos étnicos, têm uma tradição de não apresentar privilégios,
ou status federativo especial.6
Esse sistema, não obstante o desmantelamento da capacidade física e
política do Estado russo pós-União Soviética, provocou a utilização dos privilégios
concedidos às unidades étnicas como instrumento para alcançar maior autonomia
das regiões autônomas, inclusive à busca de secessão pelos Estados
independentes. Introduziu-se, portanto, de forma mais aguda a dualidade ínsita ao
federalismo russo, entre a unidade do país (resultado da acomodação de diversas
etnias no seu território) e a autonomia (garantindo determinada independência,
porém criando os incentivos para pretensões separativas das repúblicas étnicas
mais importantes). A regionalização, portanto, segundo Sergunin (2000; p. 73),
constitui um elemento contraditório da Rússia, uma vez que é essencial para o
Estado e, ao mesmo tempo, constitui um desafio constante à preservação da
unidade territorial, ao designar alguma autonomia às regiões enquanto deve
preservar a soberania do Estado russo.
Tal dilema, conforme Soderlund (2006; p. 61), é concebido em dois
paradigmas teóricos pelo governo russo: a escola primordialista e a escola
instrumentalista. A vertente primordialista (também conhecida como essencialismo)
coloca ênfase na consciência étnica e na prevalência do sentimento de identidade
nacional. A identidade étnica é vista como dado da existência social modelado pela
memória histórica, lingüística, religiosa e geográfica de um povo. A politização do
contingente populacional, dessa forma, compreende-se no exercício de
autodescobrimento e reafirmação das características identitárias do povo russo.
A escola instrumentalista (ou estruturalista), por outro lado, reforça a
mobilização política dos grupos étnicos como parte do processo de barganha, no
qual as elites políticas buscam extrair benefícios (recursos econômicos e autonomia
política do poder central). A politização da etnicidade compreende-se como
decorrente dos papéis contingentes e de auto-afirmação com finalidades
instrumentais específicas. Assim, a identidade étnica apenas torna-se uma base
para a ação coletiva quando há vantagens comparativas a serem ganhas pelo grupo
étnico.
6 As dificuldades de gerenciamento do extenso território russo remontam ao período de expansão do
Império, principalmente nos períodos de Pedro, o grande, e Catarina, nos séculos XVII e XVIII.
32
Nesse sentido, a escola instrumentalista coaduna-se efetivamente aos
fenômenos verificados no período pós-União Soviética. As elites regionais da
Rússia, durante a década de 1990, adotaram diversas posições de barganha
utilizando o argumento do separatismo ou uma postura mais pró Federalismo para
obter ganhos econômicos ou sociais. O emprego desses fatores ocorria consoante a
credibilidade da ameaça. Segundo Soderlund (2006; p.62), líderes com recursos,
poder e habilidades adequadas possuem maior poder de barganha para exigir maior
autonomia do centro. A variação entre autonomia e unidade dependeria
essencialmente do nível de poder de barganha das unidades regionais dentro do
complexo sistema federativo russo. As capacidades respectivas de cada uma das
unidades auxiliariam, portanto, na barganha política para obter maior independência
de Moscou.
No período de 1991-1993, as repúblicas empregaram seus esforços para
conseguir concessões de poder do poder central. Tal estratégia aproveitava o
cenário de virtual ausência de poder político e militar decorrente do
desmantelamento do Estado soviético. A onda de declarações de independência
pelas repúblicas soviéticas inseria-se nessa perspectiva de obter mecanismos de
barganha com o poder central. Dessa forma, as regiões autônomas lograram
diminuir a influência do poder central nos seus territórios, induzindo ameaças ou
expectativas de liberação do controle russo, até mesmo quando não existiam
condições materiais de independência do poder central.
As reformas do período 1993-1994, segundo Libman (2009; p. 5),
marcaram uma nova etapa no desenvolvimento do federalismo russo. A nova
constituição russa tinha por objetivo igualar os poderes das regiões da Rússia
(étnicas e não-étnicas), bem como a legislação central determinava uma hierarquia
na distribuição de competências entre a União e as demais unidades da federação.
Assim, a descentralização política foi substituída pela concentração e transferência
de renda da União para as unidades, com o auxílio econômico buscava-se reduzir a
autonomia e o poder de barganha das unidades.
No âmbito jurídico, houve concentração de competências em favor da
União. A nova constituição buscou delimitar o Poder Judiciário como instituição
central do Estado russo, uma vez que até então havia dispersão do poder jurídico
vinculado economicamente e politicamente às repúblicas e regiões autônomas.
33
Mediante delegação do orçamento do Poder Judiciário à União, aumentava-se o
poder das regiões. A concentração dessa atribuição buscava adensar a
independência do judiciário perante as autoridades locais, ao concentrar o poder
econômico em apenas um agente – o governo central. Procurava-se, portanto,
reduzir intervenções contrárias ao poder russo nas unidades da federação
decorrentes da influência ocasionada pelo financiamento regional das atividades das
cortes jurisdicionais.
A reestruturação da integração regional russa ganhou maior vigor com o
governo Putin. O governo, a partir de então, passou a limitar a autonomia de regiões
e a restringir a descentralização regional, bem como a influência das regiões no
governo central. Diversos elementos do pacto federal foram modificados com a
intenção de reforçar o poder de Moscou sobre as diversas unidades da federação.
Conforme Libman (2009; p. 6) descreve, houve a criação de distritos federais,
reforma da Duma (Câmara baixa do Parlamento) – pois havia grande poder dos
líderes regionais no destino das votações – e uma revisão da legislação acerca das
competências das unidades regionais.
Logo, segundo Libman (2009; p. 6), a dinâmica do federalismo russo
passou a constituir-se em um ciclo de descentralização-recentralização. No período
imediatamente após o fim da União Soviética, instaurou-se um sistema de barganha
e autonomia crescente das regiões, enquanto que durante o governo Putin houve
uma maior convergência bilateral e retomada do controle federal sob diversas
regiões. Tal padrão de relações entre centro e periferia foi expandido para a política
externa de Moscou, não apenas para as ex-repúblicas soviéticas, principalmente na
Ásia Central e no Cáucaso, mas também para restringir a autonomia expressa pela
paradiplomacia exercida por diversas regiões, à revelia de Moscou7.
3.2 POLÍTICA EXTERNA E REGIONALISMO
7 Há diversos exemplos de restrições russas à paradiplomacia. Um dos casos mais relevantes consiste
nos acordos assinados entre Rússia e Polônia acerca do trânsito de bens e pessoas em Kaliningrado, com a
finalidade de diminuir a perspectiva de adesão do enclave à União Européia. A integração do único porto que permanece descongelado durante todo o ano ao projeto europeu consistiria perda geopolítica relevante para
Moscou. As tratativas com a Polônia para obtenção de trânsito livre e a ausência da necessidade de visto
conformam-se à recentralização da política externa promovida pelo governo Putin.
34
A regionalização como característica de política externa é marcante na
Rússia pós-soviética. A autonomia das regiões reflete-se na capacidade de interagir
com outros países ainda que, em determinados casos, contra os interesses do
Estado russo. De modo geral, conforme Sergunin (2000; p. 73), existem dois tipos
de interações de política internacional decorrentes do regionalismo russo. Em
primeiro lugar, o desenvolvimento de relações internacionais próprias pelas
unidades da federação, independentes do controle de Moscou. E, em segundo lugar,
a influência exercida pelas unidades autônomas sobre o governo central para a
execução de uma política externa que lhes seja favorável.
A diversidade de políticas externas decorre da fragilidade institucional e da
incapacidade do Estado de atuar efetivamente por todo o território nacional. A
legislação das regiões tem como objetivo legitimar as políticas externas das
unidades da federação. Ao definir sua competência para tratar de acordos
internacionais nas constituições locais, os governos dessas áreas reafirmam o
caráter de autonomia perante Moscou8.
Na década de 1990, as regiões assinaram mais de 300 acordos
internacionais, muitas vezes sem a aprovação prévia do governo russo, segundo
Sergunin (2000). Além disso, algumas regiões possuem representações próprias em
Estados estrangeiros, definindo uma política externa completamente indiferente aos
preceitos da Chancelaria russa. Dessa forma, a aproximação a outras nações
buscou, nesse período, aumentar os vínculos das regiões com outros países,
evitando a intermediação do governo central9.
A atração de investimentos estrangeiros também constitui um elemento da
política externa das regiões russas. Economias de escala nas regiões mais pobres
representaram um alto atrativo para o mercado financeiro internacional no período
anterior à crise de 2008. O desenvolvimento associado tornou-se um instrumento
para o crescimento de regiões com pouco apoio financeiro do governo central ou
destinadas à produção de matérias-primas.
8 A Constituição russa determina, no art. 71, b, que as relações internacionais do país devem ser
realizadas pela Federação russa. Não obstante a reserva de competência para a União, as unidades da federação
podem efetuar tratados, se houver coordenação com o governo central, conforme determina o art. 72, n, da Carta Magna russa.
9 Podem ser consideradas unidades federativas com ativa paradiplomacia: as repúblicas de Tatarstan,
Sakha e Carélia.
35
Tal esforço implica também um exercício de diplomacia cultural, com a
participação de algumas regiões em exposições e feiras internacionais com a
finalidade de divulgar o turismo e a cultura dos diversos contingentes étnicos
presentes em território russo. Estabelecem-se, portanto, vínculos internacionais com
empresas transnacionais para a exploração do potencial econômico dessas regiões
em substituição à decadência econômica da nação russa. Assim, a dependência
econômica das unidades da federação é reduzida não apenas pela queda
acentuada do PIB russo10 após a desfragmentação da União Soviética, bem como
pelo esforço dos líderes locais em diversificar as parcerias em busca de
desenvolvimento autônomo.
Ao reforçar o papel de atores regionais, explica Sergunin (2000; p.77),
diversas unidades buscaram estabelecer relações com organizações internacionais.
A integração à Organização do Tratado do Atlântico Norte, à União Européia e a
pessoas jurídicas vinculadas à Organização das Nações Unidas inserem-se nesse
contexto de redução de vulnerabilidade ao controle russo. Dessa forma, as unidades
diminuem a dependência da Rússia, enquanto que reforçam o poder de barganha ao
negociar maiores recursos financeiros do governo central. O aprofundamento da
paradiplomacia, portanto, é essencial para o desenvolvimento e sobrevivência da
autonomia dessas regiões, bem como se torna um desafio para a predominância
russa.
A política externa dessas unidades é, portanto, relativamente complexa.
As unidades devem harmonizar, amiúde, interesses divergentes dos demais países.
A adequação à nova realidade depois da alteração do sistema internacional com o
final da disputa entre as duas potências, dessa forma, implica uma adequação ao
processo de globalização e regionalização, sem olvidar as perspectivas prementes
de segurança na relação com a Rússia.
As legislações regionais, por outro lado, podem ser utilizadas como
subsídios para a elaboração de leis federais, como ocorreu com a legislação de
Novgórod, que serviu de base para a legislação concernente à coordenação das
10 Entre 1992 e 1997 os PIBs da Rússia, países do Cáucaso e ex-repúblicas soviéticas caíram
aproximadamente 40%, segundo dados do Fundo Monetário Internacional, conforme cita Dolinskaya (2002; p.
155).
36
relações internacionais da federação, como explica Sergunin (2000; p.78)11. A
atuação das elites regionais pode tornar-se aprazível ao governo russo quando
legitima a ação internacional russa, auxiliando na concretização dos tratados
assinados. A presença de líderes regionais nas tratativas com outros países,
portanto, conduz a maior efetividade dos acordos realizados, uma vez que há
convergência políticas das regiões que vão ser diretamente afetadas pelas tratativas
efetuadas, como ocorreu, por exemplo, com a participação da Carélia em acordos
com a Finlândia12.
Tal participação estende-se aos países do Exterior Próximo. Acordos
encetados por Rússia e China contam com a participação de países da Ásia Central,
como ocorre com a Organização para Cooperação de Xangai. Dessa forma,
pretende-se a participação dos países da região na concretização dos objetivos
almejados pelas duas potências para a região, com maior estabilidade política,
crescimento econômico e controle do fluxo de pessoas. A regionalização, portanto,
constitui-se como instrumento útil para obtenção dos interesses da Rússia nos
países vizinhos, ao mesmo tempo em que provê considerável poder de barganha
para as regiões e países fronteiriços de lograr vantagens e auxílios frente ao
governo russo.
A coordenação entre Finlândia e Carélia, como ressalta Sergunin (2000; p.
79), diminuiu as tensões entre a Rússia e a Finlândia em relação à própria Carélia.
As relações entre China e Rússia, buscadas mediante convergência política na
Organização para Cooperação de Xangai13, incluem outros países também
interessados na resolução de problemas comuns. Essas associações permitem aos
países menores exigirem compromissos das potências regionais, ao reforçar a
transferência de recursos destinados ao desenvolvimento e o respeito às fronteiras.
O interesse russo de evitar a proliferação de movimentos islâmicos radicais na sua
fronteira sul, visão compartilhada pela China (observada na repressão ao movimento
11 Segundo Sergunin (p.77), as discussões dos legisladores regionais de Novgórod a respeito de acordos
internacionais foram levadas em conta na elaboração da legislação federal russa acerca da coordenação entre
União e unidades da federação em assuntos relativos a relações internacionais. 12 A Carélia é uma região dividida entre a Rússia e a Finlândia que é objeto de litígios territoriais até
hoje. 13 Essa organização (OCX), fundada em 2001, inclui China, Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão,
Tadjiquistão e Quirguistão, com temática centrada em cooperação em segurança na Ásia Central. Outros países
participam como observadores, como Irã e Índia.
37
Uigur), permitiria a manutenção da autonomia das regiões e países, sem obstar
determinado grau de influência exercida pelas potências mais fortes nesses países.
Outro mecanismo utilizado amiúde pelas unidades da federação e países
próximos à Rússia consiste na aproximação a organizações internacionais, como já
foi dito acima. Os governos de algumas unidades utilizam-se da credibilidade e do
poder monetário das organizações internacionais, como alternativa à Rússia,
principalmente quando há interesses divergentes com os propugnados pelo Kremlin
de modo a obter maior poder de barganha nas relações com o Estado federal
russo14.
A União Européia torna-se um agente de peso nessas circunstâncias,
mediante cooperação com as ex-repúblicas soviéticas fronteiriças ao bloco. Procura-
se, então, estreitar os convênios econômicos com regiões e países próximos ao
território russo, aumentando os intercâmbios com a Rússia. E, ao mesmo, tempo
funciona como instrumento de reforço de reivindicações das áreas agraciadas, que
podem requerer auxílio ao governo russo para complementar ou suplantar a
influência européia. Tais reivindicações sempre remontam à possibilidade de
redução das relações em caso de negativa do Kremlin. Assim, as relações diretas
com a Europa provocam temor em Moscou da possível independência desses
Estados, caso a integração com o bloco europeu seja mais proveitosa do que a
permanência na esfera de influência da federação russa.
A temática da integração, no caso da maioria dos países ex-soviéticos,
produziu um aumento na cooperação entre os países da área de influencia soviética,
buscando não apenas associar-se a outras organizações internacionais, mas
também formar organizações afeitas às suas realidades. A elaboração de acordos
internacionais na segunda metade dos anos 1990 procurou criar uma alternativa à
ausência de capacidade russa para atender às demandas desenvolvimentistas
locais. Países da Comunidade dos Estados Independentes15 formaram, por
exemplo, a Comunidade Eurasiana do Carvão e do Aço com o intento de reproduzir
14 Tal prática consistiu em forma de barganha com a Rússia, especialmente das regiões fronteiriças ou
enclaves, como Kaliningrado e Sverdlovsk, mas também países do Exterior próximo, como Ucrânia e Geórgia
fizeram, nas décadas de 1990 e 2000, desse expediente moeda de troca nas relações com o gigante eslavo. 15 A Comunidade dos Países Independentes foi criada em dezembro de 1991, sendo formada pelas ex-
repúblicas soviéticas mais Rússia, exceto os três países bálticos – que não aceitaram aderir à comunidade. A
Geórgia entrou na organização apenas em 1992. A CEI inclui diversos acordos econômicos, militares e de pesquisa espacial. Apesar da diversidade de temas comuns, o principal objetivo da comunidade consiste na
cooperação militar, consubstanciada no Tratado de Segurança Coletiva, ao descrever que um ataque realizado
contra um dos signatários será considerado uma agressão a todos os componentes do acordo.
38
a experiência européia, aumentando a independência da Rússia e diminuindo as
vulnerabilidades econômicas decorrentes do processo de transição ao capitalismo.
O desenvolvimento desses mecanismos de cooperação interestatal, às
vezes, inclusive com instituição de elementos supraestatais, acarretou novas
perspectivas de aproximação e de acordos internacionais. Não obstante o progresso
realizado, conforme afirma Libman (2009; p.7), tais estruturas nunca foram
efetivamente implementadas16, constituindo-se em um instrumento de aumentar o
poder de barganha. A tentativa de criação de um regionalismo assimétrico decaiu
em virtude das pressões de interesses divergentes e da prevalência do princípio da
igualdade soberana entre os estados.
O crescimento econômico russo nos anos 200017, por outro lado, reduziu a
capacidade de resistência à influência russa no Exterior Próximo. Houve um
processo de redefinição do regionalismo pretendido pelo Kremlin, uma vez que a
consolidação política da Rússia, mediante a reforma de suas instituições internas e
os altos preços externos das commodities, estabeleceu os pilares para a reinserção
da política externa russa na região. Torna-se, portanto, tema central da política
externa nesse período retomar a influência russa nos países fronteiriços. Tal,
reafirmação do poder será realizada, dentro da dicotomia descentralização-
recentralização pela transferência de políticas de regionalismo doméstico para os
países pós-soviéticos.
3.3 INSTRUMENTOS DE PRESSÃO POLÍTICA: A
“FUSÃO” NOS PAÍSES FRONTEIRIÇOS
A decadência da União Soviética, como foi visto acima, resultou no
enfraquecimento do poder russo nas suas unidades federativas. O desmantelamento
do controle soviética, da mesma forma, introduziu um conjunto de países originados
16 Os acordos que permitiriam a formação de uma união aduaneira na CEI, por exemplo, nunca se
tornaram realidade, uma vez que falta interesse político de Moscou em modificar o grau de dependência dos
países fronteiriços, bem como de adotar a posição de garantidor do processo de interação regional (paymaster). 17 O crescimento do PIB russo foi contínuo nos anos 2000 até o colapso causado pela crise de 2008.
Segundo dados do Banco Mundial, as taxas de crescimento de 2002, 2003, 2004, 2005, 2006 e 2007
correspondem respectivamente a: 4,7%; 7,3%; 7,2%; 6,4%; 8,2%; e 8,5%. Disponível em:
http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG. Acesso em: 30/04/2012.
39
das ex-repúblicas numa nova conformação de influência moscovita, mas que, ao
mesmo tempo, procuravam criar estruturas para a manutenção de suas
independências diante do gigante regional. As interações entre a Rússia e os novos
países, num primeiro momento, cercearam-se dentro de um jogo de barganhas
decorrente da fragilidade do Estado russo naquele período.
Assim, os conflitos étnicos no nível doméstico russo e a crise econômica
provocada pela integração da economia russa ao sistema econômico mundial
permitiram o reforço da capacidade de barganha das unidades e dos países do
Exterior próximo. Esse contexto, contudo, foi revertido com a eleição do governo
Putin. A administração central procurou, desde então, tornar efetiva a supremacia
jurídica gozada pela União perante os estados. Com Putin, como afirma Libman
(2009; p. 20), a centralidade jurídica federal foi executada na prática e foram criados
novos mecanismos de controle da União sobre as unidades da Federação.
Perspectiva aplicada, consoante o realismo pragmático da política externa russa,
também aos países do exterior próximo.
A política regional russa adstringe-se, portanto, à assimetria entre as
unidades da federação e os países sobre os quais exerce influência. Dentro do
território russo, apesar da utilização constante da ameaça de separação, poucas
unidades da federação possuem população, território e recursos suficientes para
constituir um novo país18. Há, não obstante, regiões com capacidade de organização
política e desenvolvimento econômico suficiente para seccionar-se do poder central.
A capacidade de separação determina, dessa forma, o padrão das relações com o
poder central.
A política de ukrupnenie (“fusão”, em russo), adotada no governo Putin,
objetivou criar dependência econômica e política sobre os estados da federação,
conforme o grau de autonomia que eles possam demonstrar. O objetivo principal
seria melhorar o crescimento econômico das regiões mais pobres da Rússia com a
associação de unidades da federação com poucas possibilidades de crescimento às
regiões mais prósperas do país, uma vez que a desigualdade tornou-se crescente
após o fim da URSS, como demonstra o aumento do índice de Gini nos anos 1990
(gráfico encontra-se abaixo). A fusão dessas unidades seria acompanhada, portanto,
18 A Chechênia poderia ser incluída nesse grupo, já que, se houvesse separação da Federação Russa,
haveria grande possibilidade de surgir um Estado falido.
40
de instrumentos de melhorias de infra-estrutura e transferência de recursos
governamentais, reforçando as ligações com o Kremlin.
Gráfico 1 – Índice de Gini na Rússia entre 1990 e 2000
Fonte: Gerardo Bracho, C. ; López, G. (2005) The Economic Collapse of
Russia, Quarterly Review Banca Nazionale del. Lavoro, Roma, n° 232. Retirado do
site: http://criticaeconomica.wordpress.com/2008/02/26/a-russia-dos-anos-90-cronica-de-um-
desastre-anunciado/. Acesso em: 30/04/2012.
O aumento da desigualdade entre os Estados mais ricos e os mais pobres
seria o argumento principal para manter a proposição da fusão. O crescimento das
dez unidades com maior produção industrial em comparação com as dez com menor
produto, conforme Derrick (2008; p. 320), apresentou altas entre 2006 e 2007,
demonstrando o aumento da concentração de renda na Federação Russa19. Assim,
19 Os números revelados por Derrick (2009), com base em relatório divulgado pelo Ministério do
Desenvolvimento Regional russo descrevem que as 10 regiões com maior produção industrial superaram em
33.5 vezes a produção das 10 piores regiões, em 2006. Tais valores atingiram a proporção de 39.1, em 2007.
Dessa forma, houve aumento na desigualdade regional, mesmo com os esforços do governo central russo.
41
a redução dessa desigualdade, para o governo russo, permitiria lograr
homogeneidade e diminuir a pobreza da população de regiões mais afetadas pela
falta de recursos ligando-as às regiões mais prósperas da Federação.
Essa política também incluiu a substituição de elementos da burocracia
local por funcionários federais que devem ser responsáveis pela administração dos
recursos financeiros recebidos pelas unidades da federação. Realizou-se, portanto,
um trade-off quanto ao recebimento de auxílio do governo central. As unidades
perdem parte da independência de suas burocracias, reduzindo o poder de
autonomia frente a Moscou, em troca do recebimento de benefícios financeiros. Os
estados mais ricos, da mesma forma, tornam-se atingidos pela estratégia centralista,
uma vez que são associados a unidades fragilizadas, aumentando as
vulnerabilidades econômicas e políticas, ao mesmo tempo em que permitem maior
controle do governo russo.
A fusão implica reforçar as ligações com o poder central, inclusive quanto
às expectativas de promoções políticas futuras aos líderes locais. No longo prazo,
líderes regionais podem esperar mover-se para o âmbito federal, ao aceitar
subjugar-se aos interesses políticos da União. Se essas esperanças são
consideradas realistas, por um lado, devido ao controle de Moscou sobre o aparato
estatal; os políticos podem enfrentar outro trade-off, segundo Libman (2009; p. 13),
se buscarem aumentar a autonomia regional, podem obter vantagens econômicas
imediatas e ganhos políticos junto à população local, porém diminuem o valor que
possuem para a esfera federal.
A redução do poder desses líderes, mediante a homogeneização da
burocracia estatal consoante os desígnios de Moscou com a fusão, implica aumento
do poder russo tanto na periferia do território quanto permite obter grande
quantidade de votos nas eleições locais mediante a atuação desses agentes
estatais. Essa lógica associa a integração das entidades federais à utilização da
burocracia como importante angariador de votos no jogo da sucessão russa. A
reiterada eleição de políticos vinculados ao Kremlin (Yeltsin; Putin; e Medvedev) no
período pós-soviético demonstra a eficácia do aparato estatal russo, ao prover votos
aos preferidos pelo governo central. Dessa forma, a possibilidade de autonomia
torna-se restrita em virtude da substituição dos administradores políticos causada
pela “fusão” de unidades da federação.
42
No âmbito econômico da política russa (vista com maior profundidade no
próximo capítulo), as premissas da “fusão” demonstram a distância entre a retórica
de Moscou e a pretensão de centralização das regiões. O regionalismo russo não
inclui, necessariamente, as unidades que estão entre as mais pobres do país. Se a
política de ukrupnenie, como afirma Derrick (2009; p. 320), buscasse melhorar a
condição socioeconômica das regiões mais pobres, orientar-se-ia pelo nível de
pobreza e pelo contingente populacional carente do país.
Tal condição não foi seguida por Putin em nenhum momento. Unidades
com elevado grau de desindustrialização, decorrente da queda de incentivos do
governo central, foram relegadas ao esquecimento, enquanto que outras regiões,
consideradas estratégicas tanto do ponto de vista militar quanto econômico foram
incluídas na política de agregar regiões. A redução da autonomia de povos étnicos,
para reduzir a possibilidade de conflitos de secessão nas fronteiras russas, é o
princípio basilar que rege a política do Kremlin nesse diapasão.
As repúblicas étnicas autônomas20, então, seriam progressivamente
eliminadas, reforçando o controle russo sobre fronteiras estratégicas do país.
Aquelas menos prósperas já foram, em sua maioria, incorporadas a unidades de
maioria étnica russa; e a continuidade da política pretende reduzir o número de
regiões de etnias contrárias ao controle central. Por conseguinte, a ukrupnenie,
segundo Derrick (2009; p. 322) deve ser considerada como a uma política de
restrição da autonomia regional das unidades internas. Assim, os mesmos princípios
que regulavam as ações do Estado durante o império czarista e o período soviético
são retomados na forma retórica de redução da desigualdade e integração
econômica do país.
No entanto, os efeitos dessa política, expandida aos países do espaço
pós-soviético apresentam algumas características peculiares. A assimetria de
capacidades, nesse caso, revela-se na alteração pragmática de conduta de Moscou
com cada um dos países de sua área de influência.
A estabilidade das regiões no panorama externo é vista como essencial
para Moscou. Não obstante, as ações empregadas para manter esse status quo
diferem conforme o grau de poder real de cada país da esfera pós-soviética. As
diferenças entre população e nível de renda associam-se as perspectivas de
20 A República da Carélia e da Ossétia do Norte são, por exemplo, repúblicas étnicas autônomas.
43
centralização e descentralização na perspectiva russa, permitindo adequar-se às
pretensões de autonomia da região.
Segundo Libman (2009; p. 16), há dois problemas nas alianças
assimétricas entre a Rússia e os países de seu entorno: primeiro, os países
pequenos podem esperar impacto substancial na capacidade de legislar e efetuar
políticas, bem como maiores riscos políticos decorrentes da cooperação (como por
exemplo, aumentar a vulnerabilidade ao permitir que as relações econômicas russas
predominem nas economias nacionais, como foi o intento russo na Geórgia até
2008); ou, os ganhos da cooperação podem ser redistribuídos entre os países
pequenos e médios, fomentando uma contenda acerca da obtenção desses
recursos, estimulando a competição entre os atores e diminuindo a capacidade de
colaboração entre países de interesses semelhantes.
A relação dos países com a Rússia, no âmbito econômico delimita-se
pelos investimentos russos na transição dos países para a economia capitalista e na
privatização de empresas de infraestrutura21. O interesse na expansão da
exploração de commodities implica a manutenção dos fluxos de exportação e das
áreas de exploração de matérias-primas nos países do Cáucaso. A retomada do
controle sobre as economias dos países, portanto, insere-se no objetivo de
impulsionar o crescimento econômico do Estado russo mediante a utilização da
renda das commodities. Assim, a estabilidade econômica desses países torna-se
essencial à manutenção do progresso russo.
Não obstante o incremento de relações econômicas com os países do
entorno, as inversões subjazem a interesses políticos. Dessa forma, a influência
econômica na região consagra a aplicação de instrumento de poder brando na
obtenção de administradores e aparato jurídico favorável aos interesses moscovitas.
A atuação do estado russo, por sua vez, imiscui-se nos projetos de empresas e
bancos russos com finalidade de restringir as liberdades da população local. A
assimetria entre a cooperação permitiu um aprofundamento da dependência das
populações autóctones a instituições russas, diminuindo o poder de barganha
desses estados em negociações com o Estado russo22.
21 Abaixo, há gráfico com os investimentos russos nos países da CEI. 22 A compra de bancos da Geórgia por empresas estatais russas demonstra, por exemplo, a
vulnerabilidade econômica desse país com a Rússia. Esse exemplo será melhor analisado nos capítulos
vindouros.
44
A nova política quanto à burocracia estatal também se aplica aos países
da Comunidade dos Estados Independentes. Segundo Libman (2009; p. 8), há
financiamento russo das campanhas das elites políticas tanto da situação quanto da
oposição nos países da CEI. Em uma política clara de dividir para governar, o
governo repassa recursos para ambas as elites, bem como promove intercâmbio
regular entre os governantes de outros países com os da Rússia. O
desenvolvimento de organizações regionais no período recente pautou-se pela idéia
de soberania, com estrutura sem instituições com poderes supranacionais ou
repartição de competências entre as nações. Adotava-se, portanto, um modelo que
permitia a utilização pragmática dos recursos financeiros conforme a percepção
realista dos interesses russos nos países do Cáucaso.
As revoluções das cores - ou revoluções coloridas, para alguns - tornaram-
se entrave relevante para esse tipo de abordagem das relações internacionais pela
Rússia. As reformas adotadas pelos governantes, de Ucrânia e Geórgia, por
exemplo, empregando um modelo mais democrático de governo e política
internacional, diminuíram a possibilidade de influência russa nos ditames desses
países. Especialmente nos países onde o reforço do poder central, inclui a redução
dos poderes dos governantes locais – “senhores da guerra”23 - de regiões
autônomas apoiadas pela Rússia. A redução do predomínio russo no sistema
tributário e nas administrações domésticas, bem como as reformas das legislações,
atuou na perspectiva de aumentar a autonomia desses países. Nesse sentido, a
querela entre Moscou e Tbilisi encontrou um de seus pontos de conflito na maior
independência burocrática e jurídica do país frente à Rússia.
O estímulo de governos pró-Rússia, como na Armênia e Moldávia,
mediante investimentos financeiros e auxílio militar estabeleceu uma situação de
isolamento georgiano na região (ponto que será abordado mais profundamente no
quarto capítulo). A expectativa de fomentar a divisão entre os países da região em
suas empreitadas regionais visava a reduzir as possibilidades de ajuda externa.
Dessa forma, tornando a Rússia o único país capaz de prover a ajuda econômica
necessária ao fomento do crescimento dos países mais pobres do Cáucaso. A
distribuição dos recursos financeiros demonstra a discrepância entre os repasses de
inversões.
23 Por exemplo, Aslan Abashidze, de Adjara, na Geórgia.
45
Tabela 1 – Investimentos da Rússia em países da CEI entre 2000 e 201024
2000 (U$$/ %) 2005 (U$$/ %) 2009 (U$$/ %) 2010 (U$$/ %)
Investimentos totais 130981/ 100% 620522/ 100% 9213953/ 100% 7497920/ 100%
Azerbaijão 26/ 0.0% 6734/ 1.1% 91974/ 1% 39713/ 0.5%
Armênia 5/ 0.0% 138185/ 22.3% 192205/ 2.1% 108395/ 1.5%
Bielorrússia 77238/ 59% 102438/ 16.5% 6542488/ 70.9%
4125440/ 55%
Geórgia 133/ 0.1% 60/ 0.0% - -
Cazaquistão 3453/ 2.6% 204314/ 32.9% 388741/ 4.2% 1205872/ 16.1%
Quirguistão 7/ 0.0% 1247/ 0.2% 200535/ 2.2.% 210237/ 2.8%
República da Moldávia 31224/ 23.8% 4904/ 0.8% 26733/ 0.3% 26649/ 0.4%
Tadjiquistão - 496/ 0.1% 111954/ 1.2% 182846/ 2.4%
Turcomenistão 2934/ 2.6% - 6205/ 0.1% 1616/ 0%
Uzbequistão 929/ 2.7% 6968/ 1.1% 87118/ 1.0% 204039/ 2.7%
Ucrânia 15032/ 11.5% 155176/ 25.0% 1565960/ 17% 1393113/ 18.6%
Fonte: Federal Statistics Service – Rússia (2011)
A integração da CEI, portanto, nunca foi efetivamente desejada pela
contraparte russa. As tentativas de transformar a integração jurídica em uma
cooperação de fato foram obstadas pela atuação da Rússia no estímulo de
desentendimentos entre os países da comunidade como, por exemplo, os conflitos
entre Geórgia e Armênia acerca dos preços de compra de óleo. A retórica da
associação assimétrica implicava a submissão dos países às veleidades moscovitas
em troca de apoio econômico e político.
As tentativas de cooperação entre os países do Cáucaso e a Rússia
encontram-se revestidas da ameaça de um conflito com o parceiro maior,
indesejável pela maioria dos países (vale ressaltar, a relutância da Geórgia em
aderir à OTAN ainda hoje, mesmo com várias declarações nesse sentido). Há um
aumento na consciência da vulnerabilidade administrativa e social empreendida pelo
regionalismo russo. A percepção de que a cooperação concebe uma política de
dependência assimétrica do entorno russo aos desígnios do Kremlin é um valor
compartilhado pelos países do Cáucaso.
24 Em agosto de 2009, a Geórgia retirou-se da CEI.
46
4. ECONOMIA E DEPENDÊNCIA ENERGÉTICA
4.1 TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS NA
RÚSSIA: BASES DE UMA POLÍTICA EXTERNA
ENERGÉTICA
O processo de transição do sistema econômico comunista para o
capitalismo provocou diversas alterações na forma como a Rússia se relaciona com
os demais países de sua esfera de influência. A adequação aos parâmetros de uma
economia de mercado implicou a realocação de recursos associados ao Estado para
a iniciativa privada. Tal redistribuição de riqueza provocou a alteração das relações
de poder, bem como o aumento da dependência dos países fronteiriços com a
economia russa no período mais recente.
As mudanças sistêmicas ocorridas na Rússia circunscreveram-se à
integração da antiga economia soviética ao sistema econômico capitalista. Havia,
portanto, necessidade de adequar os fatores de produção domésticos à
concorrência e às inovações da economia globalizada. A Perestróica, programa
aplicada para promover a modernização da produção soviética, iniciou esse
processo. Não obstante a tentativa de incremento nas reformas, a tendência de
abertura a iniciativa privada da Perestróica esbarrou na incapacidade do arcabouço
institucional de adequar-se às transformações empreendidas. Apenas com a
dissolução da União Soviética, um processo mais amplo de alterações seria
empreendido pelo Estado russo na superação dos entraves ao crescimento
econômico.
Para as demais repúblicas originárias da URSS, a dissolução do país
representou uma encruzilhada devido ao fim das inversões financeiras da
administração central às regiões autônomas, corroborado com a crescente
dificuldade em obter recursos externos no mercado internacional. A queda de
produção, provocada pela Perestróica no período anterior, já desestabilizara as
antigas repúblicas socialistas. Assim, a dissolução da estrutura comunista agravou
47
ainda mais a situação de desajuste econômico desses países como demonstram os
gráficos abaixo.
Gráfico 2 – Evolução do PIB real russo entre 1990 e 1998
Fonte: Federal Statistics Service. Retirado do site:
http://criticaeconomica.wordpress.com/2008/02/26/a-russia-dos-anos-90-cronica-de-um-
desastre-anunciado/. Acesso em: 30/04/2012.
As políticas empregadas por Moscou para sanar esse cenário deletério
encontram-se em duas perspectivas, segundo Pomeranz (2000). O ajustamento
econômico, com programas e instrumentos para superar o desequilíbrio na balança
comercial. E, por outro lado, um programa de reformas estruturantes consagrado na
privatização das maiores empresas estatais e na liberação progressiva da ação da
iniciativa privada na economia.
O ajustamento econômico implicou uma ação rápida para impedir o
recrudescimento no decréscimo da produção. O início das reformas ocorreu com a
liberação de praticamente todos os preços, a partir de 1992, mas também o
congelamento de bens essenciais à população, como pão, leite, carne e
combustíveis. Houve também compromissos assumidos com a comunidade
financeira internacional. A assinatura de um memorando de intenções com o FMI,
demonstrando o compromisso de estabilização macroeconômica para a comunidade
internacional, objetivava angariar recursos financeiros para a modernização da
economia.
48
Tais medidas foram seguidas por uma política monetária contracionista. O
governo liberalizou o comércio exterior e o mercado de câmbio, além da preparação
do programa de privatizações. Esse conjunto de reformas implicou na redução
gradual do produto interno do país até 1999. Primeiro ano de crescimento
consolidado pós a adoção das medidas. Assim, ao contrário do pretendido por
Moscou, a adequação às políticas macroeconômicas de livre mercado não
assegurou a atração do investimento necessário para alavancar o crescimento do
país25. A situação crítica da economia agravou-se com as sucessivas crises de
países em desenvolvimento, resultando no empobrecimento da população e no
aumento da vulnerabilidade e dependência do país ao fluxo financeiro internacional.
A redistribuição de renda, decorrente do processo de transição para a
economia de mercado, produziu alteração nas classes possuidoras das riquezas no
país. A introdução da legislação sobre o funcionamento de empresas, o trabalho
individual, propriedade estatal e a formação de joint ventures permitiram, num
primeiro momento, o surgimento de pequenas empresas no setor de serviços e a
criação de empregos na área privada.
Até então, o processo de desestatização dirigia-se para um sistema
econômico com riqueza desconcentrada, formada por pequenas e médias empresas
e com a formação de um Estado com papel meramente logístico e regulador. No
entanto, tal projeto não subsistiu.
As leis que orientavam esse processo iam de encontro à expectativa dos
“siloviki” (burocratas de alto escalão relacionados a órgãos de espionagem da União
Soviética que se tornariam, posteriormente, a elite política da Rússia). O projeto
desse grupo social, segundo Pomeranz (2000; p. 37), direcionava-se em três
sentidos. Primeiro, a transformação de cooperativas em joint ventures que dariam
origem a grandes empresas. A criação de grandes grupos econômicos, a partir de
bancos setoriais dos quais eram encarregados, durante o processo de
desestatização. E, por último, a criação de unidades comerciais independentes,
como marketing e vendas, pelas quais as empresas podiam vender produtos acima
dos valores estabelecidos pelo governo. Assim, forjou-se a base para a
concentração da propriedade no período posterior às reformas econômicas. Os
25 Vide a dificuldade de liberação dos recursos associados aos empréstimos obtidos junto ao FMI para a
transição de mercado, durante os anos 1990, como já afirmado anteriormente.
49
siloviki agregaram grande parte dos fatores produtivos durante o período de
adaptação do país à economia de mercado.
A etapa seguinte da modernização, representada pela privatização do
dinheiro, reforçou a concentração de renda que se colocava sobre a sociedade.
Nessa fase, foram colocadas à venda, por intermédio de leilões, as empresas
estatais mais lucrativas do país. Essas ações foram arrematadas pelos maiores
bancos da Rússia, em sua maioria, controlados pelos siloviki. Assim, o controle
acionário das empresas russas passa ao domínio da elite burocrática próxima ao
Kremlin. Forma-se, então, um vínculo permanente entre a elite econômica e o centro
político da Rússia.
A crise de 1998 constituiu, não obstante a deterioração na renda
decorrente da recessão, um divisor de águas nas turbulências pós-fim da Guerra
Fria. A moratória russa, decorrente dos altos valores da dívida externa,
aproximadamente US$ 120 bilhões de dólares, e da dificuldade para obter
financiamento em virtude das crises nos mercados emergentes mostrou-se
favorável, no longo prazo ao país. A desvalorização do rublo, o aumento da
produção industrial, o crescimento do valor das commodities em 1999, e a vitória
eleitoral de Vladmir Putin colocam novo impulso na economia russa.
Nesse sentido, a retomada do crescimento baseou-se essencialmente na
exploração dos recursos obtidos com a exploração de gás e óleo. Atualmente, a
Rússia é um dos mais importantes atores no mercado de energia mundial. As
reservas de gás são estimadas em 23,7% das jazidas mundiais. As reservas de óleo
cru constituem cerca de 5,6% do mundo. A quantidade exportada chega, contudo, a
12,9% no caso de petróleo e de 17,6% de gás natural do nível mundial. A produção
de petróleo é dividida entre seis grandes empresas, enquanto que a exploração
econômica de gás é praticamente monopolizada pela Gazprom, com
aproximadamente 80% da produção russa.
Após a dissolução da União Soviética, a Rússia herdou a maior
quantidade do vasto complexo energético do país, compreendendo gasodutos,
refinarias, e os gigantescos recursos de óleo e gás, presentes na Sibéria oriental,
nas montanhas Urais e no planalto central siberiano. Não obstante o legado
deixado, durante os anos 1990 não houve acréscimo na extração tanto de óleo
quanto de gás, consoante o período de turbulências econômicas. Essa situação
50
continua até a crise de 1998, quando em apenas 2 anos o preço de petróleo
triplicou. A desvalorização do rublo auxiliou no aumento das exportações26, uma vez
que tornava a produção energética russa menos onerosa para outros países.
A incapacidade de explorar eficientemente a produção dessas
commodities e a crise interna do país impediram, durante a década de 1990, a
utilização completa do complexo industrial. Isso decorreu da incapacidade de obter
créditos internacionais no período, em virtude da instabilidade no mercado financeiro
internacional. Assim, a alternativa a esse cenário constituiu na abertura parcial do
mercado de fornecimento de commodities. Houve a tentativa de aumentar a
produção pelo governo russo com os acordos de compartilhamento de produção
(PSA – Production Sharing Agreements), permitindo que empresas transnacionais
explorassem as reservas russas.
O acréscimo no valor das commodities permitiu o avanço da produção de
petróleo e gás no período posterior a 1999. Os recursos obtidos com os lucros da
venda das matérias-primas permitiram o investimento em tecnologia e
desenvolvimento de outros setores mediante subsídios. O aumento de importância
dessas empresas nessa economia demonstra a capacidade de barganha dessas
companhias com o governo russo. As empresas controladas diretamente por
Moscou exercem grande papel na política externa russa.
Tabela 2 – Exportações russas de commodities (minério de ferro, carvão,
petróleo cru, derivados do petróleo, gás natural e energia elétrica) entre 1995 e 2010
26 Em 17 de agosto de 1998, o governo russo adotou diversas medidas para conter a crise, tais como:
adoção do câmbio flutuante, desvalorização do rublo, não pagamento da dívida interna e moratória de 90 dias
concernente a dívidas com bancos privados.
1995 2000 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Minério de Ferro e concentrados 23.1 15.8 47.7 39.3 51.0 89.2 44.5 83.4
Carvão 34.3 26.3 47.2 47.5 54.7 79.6 70.1 79.4
Petróleo cru 107.0 175.0 430.0 412.0 470.0 663.0 407.0 545.0
Produtos derivados de petróleo 105.0 174.0 348.0 429.0 465.0 676.0 387.0 529.0
Gás natural per 61.3 85.9 151.0 216.0 234.0 354.0 249.0 273.0
51
Fonte: Federal Statistics Service – Rússia (2011)
O cenário após a crise de 1998 facilitou a exportação dessas commodities
para os países da Comunidade dos Estados Independentes. À reduzida capacidade
de exportação verificada depois da fragmentação da União Soviética, onde apenas o
Turcomenistão possuía recursos e infra-estrutura necessária para prover os países
do Cáucaso com gás, mesmo no inverno, ocorreu a retomada da capacidade
exportadora. Consolidou-se, então, a Gazprom como fundamental provedora de gás
à maioria dos países do Cáucaso, como a Geórgia.
Essa conjuntura auxiliou as reformas institucionais e econômicas
empreendidas por Putin. O aumento na arrecadação tributária e na retomada do
crescimento assegurou os meios financeiros para a centralização das unidades
federativas e do Judiciário. O governo russo procurou, a partir desse momento,
centralizar a transferência de recursos às unidades da Federação, concentrando os
dispêndios sob os auspícios do governo central. A transferência monetária também
auxiliou o projeto de fusão entre as unidades mais ricas e as menos favorecidas da
federação.
O aumento dos preços das fontes de energias exportadas pela Rússia
estimulou o crescimento do país doravante, que chegou à média de 7% ao ano.
Hoje, o setor energético responde por, aproximadamente, 25% do Produto Interno
Bruto da Rússia. O valor desse setor na balança comercial é ainda maior,
correspondendo a 50% das exportações russas. O setor energético é, portanto, o
mais dinâmico setor da economia.
4.2 SUPERPOTÊNCIA ENERGÉTICA
A alteração da perspectiva econômica, causada pelos lucros com a venda
de petróleo e gás, consubstanciaram o revisionismo da Rússia na esfera
1000 m³
Energia elétrica por 1min./Kwh 23580.0 16855.0 28575.0 36043.0 33907.0 52623.0 44027.0 53923.0
52
internacional. A perda da predominância militar e política, decorrente do nível de
superpotência, reforçou o efeito do crescimento econômico por intermédio da
energia na política externa. Tornou-se, portanto, fundamental a utilização da energia
como elemento instrumental da conduta russa no exterior. O aumento da utilização
de energia como instrumento de político externa explora a interdependência dos
interesses russos com outras regiões e países, como a Europa e os países da
esfera de influência natural russa – isto é, os pertencentes à comunidade de países
independentes e do leste europeu.
O conceito de superpotência energética tem, amiúde, sido empregado
para conceber essa participação internacional permeada pelo controle de recursos
energéticos27. Essa acepção implica o emprego e incentivo de conflitos de
suprimento de energia para a consecução de interesses nacionais russos.
Assim, a política externa russa associa-se ao desenvolvimento da indústria
energética para a obtenção de dois resultados maiores. Revisionismo, por um lado,
com o intento de formar um mundo multipolar, próximo ao tipo presente durante o
concerto europeu, com potências tanto desenvolvidas quanto em desenvolvimento,
obtendo maior destaque na definição dos rumos de política internacional. O Kremlin
busca, dessa forma, reduzir a importância estratégica dos Estados Unidos e reforçar
o poder de barganha dos Estados em foros multilaterais.
E, por outro lado, busca recriar o predomínio na tradicional esfera de
influência no seu entorno. O emprego de práticas envolvendo questões energéticas
é mais intenso nesse âmbito geográfico, uma vez que há o objetivo de manter o
status quo anterior à dissolução da União Soviética nesses países. As premissas de
um jogo de soma zero constituem-se então como válidas, uma vez que qualquer
perda significativa de poder nessas regiões representa perdas razoáveis de poder
de dissuasão para o governo russo. A alternativa de utilização da diplomacia
energética é, nesse cenário, essencial para a integridade dos interesses russos nas
suas fronteiras problemáticas.
27 Trenin e Sakwa, bem como diversos outros autores, utilizam esse termo para relacionar o controle de
reservas energéticas com a teoria de jogos, especialmente ao ressaltar o poder de barganha obtido com a
capacidade energética de países produtores – Irã, Arábia Saudita também costumam ser incluídos nessa
categoria.
53
O Conceito Nacional de Segurança da Federação Russa28, aprovado em
2000, enfatiza a política externa econômica. O emprego de termos ressaltando a
utilização dos recursos naturais para a obtenção dos interesses do Estado ressalta o
convencimento da burocracia russa de que os instrumentos de política energéticos
podem substituir a perda de poder duro em virtude do fim da União Soviética.
Os seis objetivos de política externa levantados por Janusz Bugajski - ao
mencionar Seika (2011; p.8) - proporcionam uma caracterização importante da
política externa russa em função do emprego dos recursos energéticos na política
internacional. Assim, ele descreve os objetivos energéticos russos: 1) a expansão da
influencia de política externa para retomar parte do poder de barganha entre os
países da esfera de influencia; 2) promoção de monopolização do fornecimento de
energia dos países próximos; 3) consolidar dependência política do fornecimento de
energia e investimento de capitais nos países da CEI; 4) limitar a aproximação do
Ocidente com os países da CEI; 5) reconstruir o prestigio global pela liderança dos
países do Exterior Próximo e retomar o status de superpotência; e 6) eliminar a
unipolaridade americana ao restringir a convergência entre Europa e Estados
Unidos.
A expansão do poder de barganha com outros países é um fenômeno
recente, decorrente em grande parte do processo de privatização das ex-repúblicas
soviéticas29 e dos recursos obtidos pelo alto preço das commodities destinados a
esses países. O processo de transição de economia de mercado dos países da CEI
abriu possibilidades de investimentos diretos às grandes empresas estatais russas.
O investimento em infra-estrutura e no setor energético, especialmente na
distribuição de gás e energia elétrica permitiu assegurar maior poder de barganha ao
Estado russo, em virtude da atuação das gigantes estatais.
A utilização da energia para viabilizar os interesses russos é, amiúde,
realizada mediante o expediente de suspensão do fornecimento de energia. Como a
demanda de energia nos países europeus e, mais recentemente – antes da crise
financeira de 2008 -, nos países da Comunidade de Estados Independentes é
crescente, a dependência da fonte russa reforça as possibilidades do governo russo
28 Os documentos basilares da política externa russa citados nessa dissertação podem ser encontrados
em inglês no site do Ministério das Relações Exteriores russo: http://www.mid.ru/ns-osndoc.nsf/osnddeng. Acesso em: 30/04/2012.
29 Empresas estatais russas foram beneficiadas com o processo de privatização em diversas ex-
repúblicas, como ocorreu, por exemplo, no caso da Geórgia.
54
reverter situações desfavoráveis aos seus interesses. As interrupções também são
utilizadas com a finalidade de modificar as tendências políticas domésticas nas ex-
repúblicas soviéticas. Desse modo, afirma Sireika (2011; p. 11) que houve casos de
interrupção de energia na Lituânia (2006), Geórgia (2006) e Ucrânia (2006).
A promoção da monopolização do fornecimento de energia é
conseqüência natural da proximidade geográfica com os países e dos altos custos
relativos das alternativas energéticas existentes. A permanência do crescimento dos
países europeus, até 2008, aumentou o fornecimento de gás para aquela região. A
previsão da União Européia de aumento do uso de energias renováveis (espera-se
que as fontes renováveis sejam responsáveis por 20% da matriz energética européia
em 2020) não afeta as expectativas do governo russo de aumento do consumo de
gás natural no continente europeu. As possibilidades de diversificação das fontes
encontram obstáculo nos altos custos de transporte das matérias-primas, em virtude
da distância entre os centros consumidores e as fontes energéticas; bem como do
alto valor agregado necessário para a construção de gasodutos. Assim, espera-se
maior fortalecimento da participação no mercado europeu da produção russa nos
anos vindouros.
Nos países do Cáucaso, após o desmantelamento da União Soviética,
apenas o Turcomenistão possuía capacidade e mecanismos efetivos de transporte
adequados para o fornecimento de energia para a região. A queda do regime
socialista, bem como as turbulências econômicas já demonstradas, reduziu a
capacidade das empresas russas, que passavam por um processo de reajuste para
integração ao mercado internacional, de fornecer uma oferta suficiente. Não
permitindo, portanto, o fornecimento adequado de energia. Tal situação foi
contornada com a reviravolta ocasionada pelas medidas tomadas para enfrentar a
crise de 1998, o crescimento do país impulsionado pelos altos valores das
commodities e a transição para a economia de mercado dos países do Cáucaso. O
processo de privatização, realizado por esses países, permitiu o investimento dos
recursos obtidos com a venda de commodities no setor energético, ao assegurar
maior parcela de controle das estatais russas sobre a produção e distribuição de
energia na esfera da CEI.
Reforçou-se, portanto, a dependência dos países em função do Estado
russo. O controle do fornecimento de energia constitui um instrumento importante de
55
pressão externa para o entorno da Rússia. As condições climáticas adversas,
principalmente no inverno, permitem ao governo russo manipular o apoio das
populações aos governos locais conforme a capacidade deste prover energia. O
corte ou não de energia no período imediatamente anterior a eleições é um recurso,
amiúde, utilizado para demonstrar o partido associado aos interesses do governo
russo. A dependência é ampliada, de outra forma, pela extensão dos investimentos
russos a outros setores, como por exemplo, o complexo bancário e as empresas de
infra-estrutura. Assegura-se, dessa forma, o controle dos financiamentos e da oferta
monetária, permitindo o controle por Moscou de um elemento desestabilizador dos
governos na região.
A aproximação dos países da CEI com órgãos multilaterais do Ocidente é
vista com suspeição pelo governo russo. Tal estratégia, concebida como forma de
aumentar o poder de barganha das nações da esfera de influência russa, intenta
reforçar uma alternativa ao domínio russo mediante associação com a União
Européia ou com órgãos vinculados ao poder americano. A inclusão dos países do
Leste Europeu à União Européia é percebida por Moscou como uma tentativa de
reduzir a influência em região essencial para os interesses nacionais russos. A
adesão da Ucrânia, por exemplo, constitui entrave à transferência de gás para a
Europa, uma vez que constitui um impedimento à liberdade para a fixação do preço
e para o fornecimento de gás para a Europa.
A adesão de países da esfera natural de influência russa para a
Organização do Tratado do Atlântico Norte, por outro lado, reforça a idéia de
contenção da expansão russa, veiculada no interesse velado de reincorporação de
certas áreas pertencentes a países da CEI. A pretensão da Geórgia de adesão à
OTAN, expressada com força enfática desde a Revolução Rosa de 2003 (melhor
analisado nos capítulos abaixo), possui o intuito de diminuir a possibilidade de
dissolução do país. Os territórios da Abecásia e Ossétia do Sul, já reconhecidos
como países independentes por Moscou, seriam num segundo momento anexados
ao território russo. A integração da Geórgia à OTAN tolheria a possibilidade russa de
obter esses territórios.
A utilização de uma diplomacia energética permitiria, dessa forma, ampliar
os vínculos de dependência das ex-repúblicas soviéticas com a Rússia,
restabelecendo gradualmente o domínio sobre as regiões sob o controle da antiga
56
União Soviética. Assim, restabelecer-se-ia a área de influência russa como
precondição para o ressurgimento russo como superpotência. O conteúdo desse
termo seria, não obstante o antigo poderio militar e político do país,
substancialmente vinculado as perspectivas energéticas. A idéia de estabelecer um
controle econômico sobre esses países, com vistas a estabilizar os conflitos
separatistas da fronteira russa, permitiria restabelecer o prestígio nacional e reformar
a atual posição russa nas relações internacionais.
4.3 POLÍTICA EXTERNA ECONÔMICA RUSSA NA
GEÓRGIA
No período entre 1992-1995, como foi dito acima, o colapso econômico na
Rússia impediu qualquer tipo de fornecimento de energia à Geórgia. A participação
russa limitou-se a permitir o transporte de gás por intermédio dos gasodutos que
passavam no seu país dirigindo-se ao território georgiano. Assim, o Turcomenistão,
único país com condições de exportar gás logo após o fim da União Soviética,
contou com a anuência russa para tratar negócios com a Geórgia. Foram então
assinados, em 1992, dois acordos: um com o Turcomenistão, relativo ao transporte
de gás para a Geórgia; e outro com a Rússia, permitindo o transporte da matéria-
prima ao país do Cáucaso.
Esse cenário razoável para as três partes logo se deteriorou. A Rússia,
necessitando obter maiores recursos para diminuir os efeitos da crise econômica,
determinou o corte de todos os tipos de fornecimentos de energia ainda existentes,
especialmente para os países bálticos. O fim dos contratos, decorrente da reiterada
prática de não pagamento pelo fornecimento de gás e petróleo, foi seguido pela
ameaça do Turcomenistão em interromper a transferência de gás para o Cáucaso e
a Ucrânia. Diante da pressão interna, o governo Shevarnadze30 procurou assegurar
a única fonte existente e, durante visita ao Turcomenistão, em 1993, efetuou acordo
para troca de bens em face de aumento no fornecimento de gás. Contudo, não
30 Shevarnadze foi presidente do Conselho de Estado da Geórgia entre 1992 e 1995. Governou o país
como presidente entre 1995 a 2003, quando foi deposto com um golpe de Estado.
57
obstante a garantia de fornecimento, aumento considerável no preço do gás,
afetando a popularidade doméstica da administração georgiana.
Assim, até 1994, houve o funcionamento desse acordo. Porém, a grave
desestabilização no Turcomenistão31, no período de 1993-1994, impediu
efetivamente a estabilidade dessa transferência. A impossibilidade de contar com a
oferta segura do vizinho do Cáucaso permitiu a assinatura do acordo que previa a
construção do gasoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC) com a finalidade de diversificar o
fornecimento do país por meio do Azerbaijão.
Não obstante os esforços para diminuir a vulnerabilidade externa, o
aumento dos gastos com o gás importado pelo Turcomenistão provocou uma crise
em virtude dos débitos decorrentes do gás. O acordo foi, portanto, cancelado em
1995. Entretanto, a economia da Geórgia iria sofrer ainda mais com a política
monetária contracionista da Rússia, levando a uma queda na oferta de rublos
disponível (moeda ainda largamente utilizada nas ex-repúblicas soviéticas). Tal
política ocasionou o colapso da economia georgiana.
Os problemas de controle efetivo do território enfrentados pelo governo
georgiano, uma vez que decorrentes dos movimentos separatistas na Abecásia e
Ossétia do Sul e do caos econômico proveniente das transformações para a
economia de mercado, tornou possível ataques a vários gasodutos. A dificuldade em
manter a infra-estrutura de distribuição de gás permitiu a manipulação dos preços
pelo Turcomenistão enquanto persistiu o acordo. O governo georgiano não tinha
conhecimento do volume obtido, uma vez que não havia mecanismo de
mensuramento da quantidade de gás, conforme Jervalidze (2006; p. 12), devido à
falta de equipamentos. A crise interna, em virtude dos movimentos de secessão e do
aumento progressivo do déficit público em função da manipulação da dívida de gás,
fez com que a Geórgia se aproximasse da Rússia. A adesão à Comunidade de
Estados Independentes, em 1993, ocorreu nesse contexto de obter uma alternativa
ao gás do Turcomenistão pela compra de energia russa.
Houve, posteriormente, a entrada da empresa privada russa Itera no
mercado energético da Geórgia. Essa empresa é constituída por capital privado da
Rússia e do Turcomenistão, com a GAZPROM possuindo cerca de 20% das suas
ações. A partir de 1995, quando houve o início de comercialização de gás em nível
31 As razões para as instabilidades no Turcomenistão consistem no radicalismo islâmico, escassez
frequente de alimentos, grupos criminoso, ineficiência das instituições formalmente democráticas.
58
individual, a empresa Itera passou a fornecer gás para a Geórgia com preços mais
brandos. No entanto, conforme a política de atualização de preços de petróleo do
Kremlin, a companhia formalmente privada começou a aplicar as interrupções de
fornecimento como forma de pressionar o governo da Geórgia a negociar novos
contratos, ao especular acerca da quantidade de gás transferido ao país, uma vez
que ainda não havia capacidade instalada no território georgiano para aferir os
valores das remessas de gás.
A transição para economia de mercado na Geórgia viria a fortalecer ainda
mais o poder de barganha russo no país. A privatização da distribuição de energia
elétrica por preços abaixo do nível de mercado das empresas estatais possibilitou o
controle russo da distribuição de grande parte da energia interna, inclusive da capital
Tbilisi. Assim, houve o progressivo aumento do poder de mercado das empresas
russas, principalmente daquelas relacionadas ao setor de energia da economia
georgiana. A Itera tornou-se uma empresa com controle monopolístico do setor
energético da Geórgia.
Durante os anos seguintes, a dívida para com a Itera aumentou
progressivamente. Em 2002, o governo da Geórgia iniciou tratativas para realizar um
acordo para solucionar a problema das dívidas. A Itera empregou o instrumento da
interrupção de energia para forçar o governo a negociar a dívida crescente com o
apoio da diplomacia russa. A resolução do impasse incorreu na aquisição de mais
empresas do setor energético pela companhia russa em troca do pagamento das
dívidas. Assim, como está descrito em Jervalidze (2006; p.14), ao invés de encontrar
uma solução viável para a crise energética, a Geórgia logrou aumentar a
dependência como parceira da Rússia.
As críticas a esse acordo, que consolidava a vulnerabilidade energética do
país, provocaram o recuo do governo da Geórgia. Houve, então, a recusa na
assinatura do acordo e a declaração de que o país procurava uma alternativa para o
fornecimento de recursos energéticos provenientes da empresa privada. A
alternativa adotada pelo governo consistiu, não obstante o discurso de redução da
dependência da Rússia, no fornecimento energético por intermédio da gigante
estatal russa Gazprom.
Entre 1995 e 2002, o ressurgimento de conflitos nas regiões da Ossétia do
Sul e Abecásia recrudesceu, na forma de ataques terroristas e sabotagem de
59
gasodutos, a situação já caótica de fornecimento de energia. A ausência de
estabilidade na porção norte da Geórgia acarretou interrupções de energia,
destruição da infra-estrutura precária de transporte de gás e fornecimento
intermitente de gás para a população. O governo russo utilizou tais expedientes,
ainda que decorrentes de querelas domésticas, para pressionar a elite política
georgiana a adotar medidas favoráveis às empresas russas. A oferta de entrada no
mercado de fornecimento de energia para a Gazprom, consoante a análise de
Jevarlidze (2006; p. 27) inseriu-se na perspectiva de associar a fragilidade de infra-
estrutura à necessidade de uma empresa mais apta a prover os investimentos
necessários à reformulação do complexo energético georgiano.
A eleição de 2003 para o Parlamento demonstrou (já após no período da
Revolução Rosa), contudo, a divisão política na sociedade georgiana. Os grupos
dividiam-se entre pró-Ocidente e pró-Rússia. A aproximação da Geórgia com o
Ocidente é a maior fonte de desentendimentos entre os dois países. O início da
construção do oleoduto TBC32, aumentando a possibilidade de autonomia do
fornecimento e aumentando o intercâmbio comercial com a Europa e os Estados
Unidos constitui um desses problemas. A deterioração da relação entre Geórgia e
Rússia encontrou seu ápice, salvo antes do período da Guerra, durante os anos de
2002 e 2003.
A proximidade entre relações entre os dois países após a Revolução Rosa
revelada pelo apoio russo ao movimento, em 2003, não prosseguiu nos anos
vindouros. A perspectiva de uma era de reformas colocada pelas revoluções
coloridas, tanto a georgiana como a ucraniana, criaram uma percepção de que tais
avanços políticos eram contrários aos interesses moscovitas nesses países. A
tentativa de aproximação com o Ocidente, e especialmente com os Estados Unidos,
representados pela busca de alternativas para o escoamento de petróleo e gás do
Azerbaijão e Turcomenistão, bem como a adesão a comunidades ou foros regionais,
como a União Européia e a Organização do Atlântico Norte, reavivaram a noção de
jogo de soma zero na burocracia russa.
32 Esse oleoduto, cujo nome remonta à capital do Azerbaijão (Baku) , da Geórgia (Tblisi) e do porto de
Ceyhan , na Turquia, demonstra o interesse desses países em abrir uma rota alternativa de exportação de gás e
petróleo que não adentre território russo.
60
As ações do governo de Saakashvili33 resultaram num programa de
privatizações em grande escala. Essa perspectiva era favorável aos investimentos
russos no país, uma vez que a instabilidade regional e jurídica permitiria a compra,
em sua maioria, de ações de empresas georgianas por companhias russas. A
aquisição de ações com poder de voto e o aumento na participação de empresas no
mercado de energia georgiana constituem o principal instrumento da diplomacia
russa para ampliar a dependência da região, em virtude da importância estratégica
do país no escoamento de petróleo e gás para os mercados consumidores. A
compra de empresas nos anos pós-Revolução Rosa por empresas estatais russas
ou suas subsidiárias garantiu o controle de grande parte do complexo energético do
país.
A Gazprom investiu na compra do gasoduto norte-sul, que perpassa
Rússia, Geórgia e Armênia. Assim, permitir-se-ia maior controle sobre a quantidade
de gás exportado para Geórgia, inclusive com o controle do fornecimento de gás
perante o país também transicional que é a Armênia.
A Rússia, de forma a restringir a possibilidade de novos concorrentes na
suas fronteiras estratégicas, concentra o controle de grande parte dos gasodutos e
oleodutos para transporte de gás e petróleo na região da Ásia Central, Cáucaso e
Leste Europeu para exportação. São sete conjuntos de dutos para exportar os
recursos energéticos no total: Yamal-I(Rússia-Polônia); Luzes do Norte (Rússia-
Bielorrúsia); Soyuz (Rússia-Ucrânia); Bratrstvo (Rússia-Ucrânia); Corrente Azul
(Rússia-Turquia); Norte do Cáucaso (Rússia-Cáucaso); e Mozdok-Gazi (Rússia-
Azerbaijão);
Da mesma forma, em 2005, uma empresa estatal russa Vneshtorgbank
comprou ações controladoras do Banco Unido da Geórgia, o terceiro maior banco do
país. Um ano antes, esse mesmo banco russo havia adquirido o controle acionário
no Armnesbank, um banco armênio. Logo, as subsidiárias buscam tomar controle
dos recursos financeiros da região do Cáucaso com a finalidade de incrementar a
dependência financeira dos países. Procura-se, dessa forma, aumentar o poder de
barganha perante os governos locais, bem como a dependência dos ativos russos
para financiar o aumento dos fatores produtivos da região.
33 Presidente eleito da Geórgia desde 2004. Reelegeu-se ao cargo em 2008.
61
A proposição, em 2007, do Conceito de Política Externa da Federação
Russa colocando diversas restrições quanto às ações da Geórgia revelam o nível de
tensão que se colocava entre os países. As tentativas de aproximação com a OTAN
e a proposição de saída da Comunidade dos Estados Independentes desagradam a
Moscou. A cooperação militar com os Estados Unidos demonstrou as expectativas
da Geórgia de contrabalançar o poder russo com o auxílio e a cooperação com o
Ocidente.
Não obstante os conflitos existentes, a política externa econômica russa
atingiu alguns sucessos. O intercâmbio entre os dois países mostrou-se deficitário
para a Geórgia em período recente. A segurança energética da região foi
comprometida pela excessiva dependência da Rússia. A formação de importantes
grupos econômicos associados às elites financeiras dos países do Cáucaso permitiu
a expressão de interesses russos por meio de grupos locais. O lobby das empresas
russas, principalmente após a obtenção do controle acionário de bancos passou a
definir-se por programas de âmbito local que objetivavam angariar apoio político aos
interesses moscovitas. A preservação das dificuldades financeiras dos países
auxiliou na desestabilização da Geórgia, garantindo maior poder político pela
concentração do papel de mediação entre os grupos em conflito por intermédio
russo.
A intenção da Geórgia é, desde a Revolução Rosa, reduzir essa influência
russa na economia. A redução da vulnerabilidade externa permitiria a retomada de
certa autonomia do governo na decisão de assuntos econômicos.
Assim, o governo buscou realizar medidas para limitar a intervenção
russa. A construção de gasodutos fora do alcance territorial e econômico russo,
como o duto BTC tenta diminuir a dependência do petróleo e gás russos. A retirada
das forças militares russas do norte da Geórgia, processo mitigado pela
Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, garante maior segurança
política para a burocracia estatal georgiana, inclusive em assuntos econômicos, uma
vez que uma intervenção militar não se torna uma ameaça constante.
A procura de formalizar novas parcerias energéticas como alternativas à
energia russa constitui-se no pilar essencial da manutenção da independência
econômica georgiana. A princípio, a possibilidade de ligação dos dutos de óleo e gás
com instalações exportadoras iranianas asseguraria a diminuição de importação
62
russa, bem como estabeleceria relação com um país de mesmo nível, formalizando
uma relação mais simétrica34. A exportação de gás pelo oleoduto BTC também
reforça os laços econômicos com a Europa, garantindo certo nível de cooperação
política, mecanismo utilizado para frear as ações mais ousadas da diplomacia russa
na região.
Ainda que essas práticas de utilização da energia tenham sido aplicadas
com certa recorrência, não se verificou correlação efetiva com a conduta russa e
eventuais benefícios decorrentes dessa. As interrupções de fornecimento nos países
bálticos comprovam que a pressão exercida por Moscou apenas incentivou a
integração com o Ocidente. Na região do Cáucaso, as intervenções econômicas
russas proporcionaram reforço do poder político de Saakashvili, que foi reeleito em
2010, e colocaram a Geórgia fora da Comunidade dos Estados Independentes,
desde agosto de 2009.
As justificativas ideológicas do Kremlin para essa política energética, como
afirma Sireika (2011; p. 15), baseiam-se na noção de superpotência energética, na
visão pós-imperialista da burocracia do governo Putin e na ideologia revisionista que
pretende um mundo multipolar; contudo, fracassam por diminuir o prestígio e a
capacidade de legitimar a conduta russa consoante uma atitude responsável na
esfera internacional. A utilização da política energética como instrumento de poder
duro não obtém resultados significativos, além de reduzir a capacidade natural de
liderança exercida pela Rússia dentro da sua esfera de influência. Há, portanto,
maiores perdas do que ganhos na política externa econômica empregada por
Moscou.
34 Tal possibilidade, uma vez que a Geórgia não tem limites com o Irã, implicaria em elevados gastos
financeiros para a construção de um oleoduto entre os dois países.
63
5. GEOPOLÍTICA NO CÁUCASO: RELEVÂNCIA
ESTRATÉGICA DA GEÓRGIA
5.1 REALISMO PRAGMÁTICO
As autoridades russas aplicam uma forma de realismo pragmático na
tentativa de restaurar o domínio de Moscou sobre sua área natural de influência – ou
seja, os países do Exterior Próximo. Tal conceito implica diminuir a importância
americana nas regiões fronteiriças, dividir politicamente os países da Organização
do Tratado do Atlântico Norte, neutralizar a intervenção da União Européia em áreas
de predomínio russo, reduzir o ímpeto de ampliação da OTAN e da União Européia
nas antigas repúblicas soviéticas e restabelecer a esfera de influência econômica e
política na área do antigo império czarista e da União Soviética. A estratégia busca
atuar de forma pragmática e casuística, evitando vinculações ideológicas prévias
que poderiam limitar o âmbito de ação do país na consecução do seu interesse
nacional.
Os objetivos do Kremlin revolvem em torno de uma forma de realismo
pragmático, no qual áreas de conflitos em jogos de soma zero associam-se com
jogos em que a cooperação é considerada mais vantajosa, numa forma de
bangwagoning. A meta primária da política externa moscovita encontra-se na
possibilidade de exercer uma influência predominante na política externa e de
segurança de diversos Estados; e nas alianças com outras potências, buscam
reforçar o multilateralismo com o intuito de reduzir o poderio dos Estados Unidos.
Um mundo de cooperação multipolar é, nesse sentido, essencial para Rússia como
forma de evitar o predomínio estratégico hegemônico dos Estados Unidos nas
relações internacionais.
Quando seus objetivos se encontram em um jogo de soma zero, onde a
perda para uma das partes enceta ganhos para a outra, as estratégias para a
consecução dos desígnios tornam-se pragmáticas. Assim, empregam-se
instrumentos, tanto de poder duro quanto brando, como ameaças, incentivos
64
econômicos ou políticos, e pressões para obter predomínio dos interesses russo no
território das ex-repúblicas. A política externa americana, por sua profunda
agressividade principalmente no governo Bush35, proveu uma oportunidade de
diminuir a influência Ocidental no Cáucaso e reforçar os interesses russos, mediante
investimentos financeiros e reforço do auxílio aos países das fronteiras estratégicas.
A cooperação na Guerra ao Terror permitiu a Moscou executar um jogo de barganha
com os Estados Unidos em troca do apoio militar e político no combate aos grupos
terroristas, bem como aos Estados que apóiam causas islâmicas extremistas. O
ambiente turbulento dessa época ajudou no jogo de barganha realizado por Moscou
com seus aliados externos, ao empreender uma tentativa de alterar as condições
atuais do sistema internacional.
A perspectiva russa, hodiernamente, consiste na formação de um sistema
multipolar, com a Rússia como uma das grandes potências a reger as relações
internacionais no pós-guerra mundial. Dessa forma, haveria um sistema
internacional dominado por um concerto mundial entre as grandes potências,
enquanto que os países menores seriam alocados em áreas de influência entre os
países considerados mais importantes. Estabelecer-se-ia um sistema de controle
entre os países maiores, evitando o surgimento de um grande conflito, como uma
guerra mundial. A alteração da esfera internacional mediante o aumento das
capacidades de alguns países, resultando num equilíbrio entre Estados mais
relevantes, restringiria o poder americano, conferindo maior estabilidade às relações
internacionais contemporâneas.
Assim, Moscou prefere a multipolaridade ao multilateralismo. A percepção
russa é de que organizações globais institucionalizadas teriam suas decisões
estratégicas rejeitadas, uma vez que o resultado político poderia divergir da análise
estritamente militar ou política. A multipolaridade aumenta o poder do Kremlin, pois o
trabalho em foros decisórios ou organizações internacionais com poder de decisão
aferido a alguns membros permite maior poder de barganha com as demais grandes
potências. O multilateralismo, no qual o poder é repartido entre diversas partes,
torna-se apenas um mecanismo para induzir à subseqüente aproximação dos países
mais relevantes, permitindo futuramente a formação de um grupo de nações com
35 George W. Bush governou os Estados Unidos entre 2001 a 2009.
65
predominância nas relações internacionais. O multilateralismo constitui, portanto, um
passo para um sistema internacional pautado pela multipolaridade.
O objetivo predominante de Moscou em relação ao Ocidente consiste em
reduzir a cooperação no âmbito estratégico entre Estados Unidos e União Européia.
Essa estratégia propõe, como afirma Tsygankov (2010; p. 227), limitar a importância
estratégica da Aliança Atlântica, ao sugerir um acordo de segurança regional em
separado, com a ausência dos Estados Unidos e incluindo a Rússia, tornando a
unipolaridade estratégica atual da defesa da Europa em multipolaridade. A
pretensão russa não é substituir o papel dos militares americanos na defesa
européia, mas repartir essa atribuição com os demais países do continente.
Não obstante o interesse em aumentar a autonomia da Europa em relação
aos Estados Unidos, o objetivo primordial consiste em aumentar o poder de
barganha de Rússia com os Estados Unidos. A retirada do complexo militar
americano na defesa do continente, asseguraria maior relevância estratégica do
arsenal nuclear russo em face do poder de dissuasão dos países europeus. Assim,
recrudesceriam as vantagens militares da cooperação militar com os Estados Unidos
para desarmamento, diminuição de auxílio militar às ex-repúblicas soviéticas ou, até
mesmo, diminuição dos gastos com o desenvolvimento de tecnologia bélica.
No caso da OTAN, a perspectiva implicaria a noção de “segurança igual”,
no qual a Rússia manteria um veto sobre qualquer tentativa de alargamento do bloco
atlântico na sua área de influência. A medida visaria evitar a utilização da
organização como seguradora da integridade territorial dos países fronteiriços.
Dessa forma, impedir-se-ia a possibilidade de um conflito entre Rússia e os países
do bloco, uma vez que não haveria capacidade jurídica de invocar a proteção da
carta para reduzir a ameaça de intervenção ou agressão russa nos países de sua
área de influência.
A política do Kremlin não constitui, portanto, uma conduta orientada por
valores ideológicos, mas concebida dentro dos parâmetros fáticos e da consecução
dos objetivos nacionais. Ao tentar construir uma estrutura sistêmica adequada a
suas premissas, a política externa russa aplica instrumentos ecléticos que concebem
objetivos de curto, médio e longo prazo. A manutenção de uma postura incisiva no
período Putin em assuntos estratégicos, não rejeita a utilização de elementos de
poder duro por Moscou quando há incapacidade de resolução por outros meios. O
66
recurso aos conflitos para resolução de problemas aos seus interesses tornou-se,
não obstante, subsidiário de outras formas de relações entre Moscou e os países do
seu entorno.
A alteração na política externa russa, a partir do governo Putin, segundo
Bugajski (2010; p.8) envolve duas razões principais. Primeiro, há uma clara
articulação para a obtenção dos interesses nacionais, com intuito de restaurar a
posição de grande potência no sistema internacional. Segundo, a atenção conferida
por Moscou na consolidação do predomínio sobre as ex-repúblicas soviéticas, visa a
reduzir a importância de outros atores na região, como a China, a União Européia e
os Estados Unidos, ao diminuir a autonomia energética e política desses atores na
proximidade das fronteiras russas.
Ao construir uma nova esfera de influência regional, Moscou emprega uma
estratégia que envolve diversos elementos de poder duro e brando. O crescimento
econômico e as reformas institucionais reforçaram o poder do Estado. Por
conseguinte, a coordenação de políticas pragmáticas na política externa demonstra
o comprometimento russo com a retomada da condição de potência em um sistema
multipolar.
Moscou argüiu-se como defensor do sistema internacional e do direito
internacional, conforme os documentos basilares da política externa russa – o
Conceito da Política Externa (2008) e o Conceito Nacional de Segurança (2000)36.
Dessa forma, ressaltam-se os benefícios do multilateralismo, do respeito às normas
do direito internacional, a prevalência da soberania e da autodeterminação do
estado. A postura de construir uma vertente ideológica, ao advogar a favor da
igualdade e da autonomia dos Estados na unidade internacional, almeja formar uma
alternativa ao intervencionismo dos países ocidentais verificado nos últimos anos,
bem como formar alianças de geometria variável com outras nações em
desenvolvimento.
A pertinência do princípio de autodeterminação dos povos e de não-
intervenção corresponde a outro desígnio coerente com o realismo pragmático do
Kremlin. A alegação de que se deve respeitar a autonomia dos povos para decidir os
rumos políticos do país permite assegurar certa condescendência à repressão dos
movimentos de secessão no Cáucaso e no território russo, uma vez que
36 Disponíveis em: http://www.mid.ru/ns-osndoc.nsf/osnddeng. Acesso: 30/04/2012.
67
corresponderia à resolução de um problema doméstico e ao auxílio à libertação de
povos autóctones.
O conteúdo conferido por Moscou a esses princípios consiste na liberdade
ao reconhecimento da independência de regiões consideradas estratégicas para a
Rússia. Tal postura permite conciliar ideologia com os interesses do Kremlin. A
declaração do reconhecimento do Kosovo, apesar de inicialmente contrária ao
entendimento russo, proveu importante substrato político, pois permitiu que o
Kremlin reconhecesse a Ossétia do Sul e a Abecásia como países independentes. A
atuação dos países ocidentais delegou, nesse caso, relevante instrumento retórico à
política russa no Cáucaso, pois permite a manipulação desses conceitos conforme
os interesses russos. Um processo que, futuramente, permitirá a separação jurídica
do território da Abecásia e Ossétia do Sul com a subseqüente anexação ao território
russo.
A reconstrução da esfera de influência, objetivada pelo Kremlin, efetua-se
mediante o progressivo aumento de dependência econômica e política nas ex-
repúblicas soviéticas. O governo russo obsta-se à formação de governos efetivos,
democráticos e legítimos na região que possam rejeitar os interesses russos em
favor do estabelecimento de regimes mais nacionalistas. As revoluções coloridas
constituem, dessa forma, um óbice aos interesses russos já que, geralmente,
implicam em movimentos nacionais que tentam reduzir a predominância do parceiro
maior na soberania do país, como ocorreu na Ucrânia (Revolução Laranja) e na
Geórgia (Revolução Rosa).
O controle de território dos países do Cáucaso também se insere nesse
paradigma. A política de Moscou utiliza-se dos conflitos étnicos nas regiões dos
países da Comunidade dos Estados Independentes para explorar o papel de
mediador nas resoluções dos litígios territoriais, como ocorreu na Geórgia. A
existência de contrabando e de vínculos estreitos entre as elites étnicas locais com a
burocracia do Kremlin possibilita maior controle da política interna dessas regiões. O
conflito pode, portanto, ser estimulado ou restringido conforme a intenção russa de
manipular o poder de barganha na mediação ao seu favor.
Corolário do emprego do elemento anterior é a estratégia de dividir para
governar adotada pelo Kremlin. O estímulo ou restrição dos problemas étnicos,
como foi descrito acima, permite verificar as reações dos Estados ocidentais e das
68
organizações internacionais diante da manipulação dos conflitos para obter ganhos
políticos no Cáucaso. A divisão política criada em organizações internacionais, como
a OTAN – por exemplo, relativa à adesão de certos países, como a Geórgia-, em
virtude do caráter relevante da Rússia no sistema internacional, garante liberdade
para a ação da política externa russa na região. A ausência de apoio de outras
potências, subseqüentemente, consagra o isolamento da área como esfera de
influência russa, uma vez que ressalta a impossibilidade do Ocidente de oferecer
uma alternativa viável ao predomínio russo.
A formação de disputas por segurança, segundo Bugajski (2010; p. 13),
permite a Moscou obter concessões e vantagens nas suas posições estratégicas.
Tal comportamento decorre da exploração das contendas pelo Kremlin, tornando-as
mais importantes do que são para o sistema internacional. Assim, conseguem-se
benefícios maiores mediante negociações com os Estados Unidos, a OTAN ou, até
mesmo a União Européia. O abandono da proposta de instalação de um sistema de
defesas contra mísseis na Europa central pelo Presidente Obama foi considerado
pela burocracia russa, conforme afimra Bugajski (2010; p.13), como decorrente da
exploração das crises da ampliação da OTAN, da rejeição ao escudo antimíssil e da
independência de Kosovo.
Almejava-se ainda minar qualquer rejeição maior à conduta adotada pela
Rússia mediante o aumento da dependência energética da Europa para com a
produção de recursos energéticos russos. O acréscimo do nível de dispêndio em
gastos de energia, esperado em virtude do crescimento vindouro da economia
européia e pela ausência de fornecedores próximos, garantirá maior poder de
barganha russo nas decisões concernentes à segurança regional. A construção de
outros gasodutos, fora do âmbito territorial ucraniano, visam a reduzir a ingerência
da Ucrânia na política de preço russa para o continente europeu, bem como
aumentar a dependência do fornecimento energético em função da infra-estrutura
russa.
A crescente relevância de Moscou para a resolução de problemas globais
e regionais assegura, progressivamente, maior importância à política externa. A
cooperação com a Rússia torna-se, então, essencial para a consecução de certos
objetivos, como a estabilização do Afeganistão e do Iraque, a resolução do problema
referente ao programa nuclear iraniano e a destruição do arsenal nuclear norte-
69
coreano. Moscou coloca-se, portanto, como parceiro indispensável para a resolução
de temáticas relevantes no âmbito da segurança internacional, algumas das quais a
própria Rússia auxiliou a formar de modo a aumentar a sua importância na regência
da estrutura do sistema internacional.
A criação de divisões políticas internas é freqüentemente utilizada pela
política externa russa para promover um grupo que tenha convergência com os
interesses do Kremlin. O aumento no comércio bilateral, bem como no fornecimento
de energia provêm mecanismos para fomentar a dissociação entre os séquitos
políticos e a população. Na Ucrânia, por exemplo, o periódico desabastecimento de
energia forjou uma divisão entre os que pretendem maior cooperação com a Rússia
e aqueles que desejam aumentar a autonomia do país mediante aproximação com o
Ocidente. A diplomacia do gás pretende, portanto, tornar a energia uma recompensa
pelo bom comportamento consoante os interesses nacionais russos.
O emprego de uma diplomacia eclética, com uso de ameaças e de
mecanismos de cooperação, constitui outro elemento de política externa russa37. A
conjugação de uma postura agressiva com momentos de negociação permite
estimular o diálogo e a concessão de benefícios a Moscou pelas partes envolvidas
durante o processo resolutivo dos conflitos. Essa estratégia objetiva, da mesma
forma, confundir o Ocidente acerca dos objetivos russos no Cáucaso, uma vez que a
retórica russa prega a paz e estabilidade na suas fronteiras, enquanto explora os
conflitos étnicos para obter ganhos territoriais e econômicos.
O Conceito de Política Externa, de 2008, afirma que a Rússia é um país
economicamente emergente, com um ressurgimento como grande potência.
Moscou, segundo Bugajski (2010; p.6), seria regida por cinco princípios nas suas
relações com outros países: a primazia do direito internacional; a multipolaridade; o
fim do isolacionismo; a proteção da população russa no Exterior; e a proteção dos
interesses russos em regiões adjacentes ao território. O documento, portanto,
reafirma os pilares da política externa russa na busca por recuperar a posição
relevante do país na esfera internacional.
37 De forma ampla, a atuação internacional de Moscou pauta-se pelos campos político, estratégico-
militar e econômico. A manipulação dos conflitos internos dos países do Exterior Próximo estaria,
conseqüentemente, vinculada ao âmbito político e estratégico-militar.
70
A Estratégia Nacional de Segurança (2011)38, que substitui o documento
acima referido, retoma as formulações dos princípios, com a referência a guerras
energéticas vindouras nos países da Comunidade dos Estados Independentes. A
perspectiva que se argúi reside na possibilidade de desenvolver o controle da
distribuição e da exploração das jazidas de energias verificadas na própria Rússia,
Turcomenistão outros países da região. Pretende-se, portanto, assegurar o
predomínio energético de Moscou nos países do seu entorno e transformar essa
pujança econômica em ganhos políticos do governo russo.
Por conseguinte, Moscou utiliza-se da divisão política nos países
ocidentais para reduzir a eficácia das instituições internacionais e, se for possível,
neutralizá-las quando contrárias aos interesses nacionais russos. Os instrumentos
de política externa empregados permitem manter uma imagem de adequação ao
sistema internacional pós-soviético, no entanto tal perspectiva imiscui-se na prática
de um realismo pragmático destinada ao revisionismo, obtendo maior papel na
estrutura das relações internacionais. A predominância nos países do Exterior
Próximo, por conseguinte, torna-se precondição para o retorno ao status de grande
potência, num mundo multipolar.
5.2 EVOLUÇÃO NA COMPREENSÃO PÓS-
SOVIÉTICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Após a dissolução da União Soviética criou-se certo otimismo nos centros
diretivos da política externa de Moscou, segundo Thorum (2009; p. 29). A
expectativa concernente ao novo sistema internacional surgido após a superação da
estrutura da Guerra Fria permitiria uma ordem internacional mais justa e equânime.
A inexistência de inimigos ou potências fortes o bastante para ameaçar os Estados
Unidos era vista como garantia de segurança internacional para os anos vindouros.
Tampouco a existência de inimigos na região fronteiriça ao território russo, bem
como de países com economias prósperas ameaçava a condição da Rússia como
38 Disponível em: http://www.mid.ru/ns-osndoc.nsf/osnddeng. Acesso: 30/04/2012.
71
maior potência no âmbito regional, mesmo durante as convulsões desestabilizadoras
decorrentes do fim do regime comunista.
A transição interna, com reformas para adaptar o país ao regime de
mercado, compreendia também uma alteração na política externa daquele momento.
Assim, a inexistência de atores contrários e o ambiente de suposta segurança
internacional permitiriam uma postura pró-ativa da Rússia em cooperação com
outros países, seja na esfera política, na econômica ou na estratégica. A mudança
no emprego da teoria realista, utilizada até então tanto pelo Império czarista como
pela União Soviética, representava o compromisso com o princípio da solidariedade
internacional como mecanismo para a obtenção do desenvolvimento do país e
retomada gradual do aspecto de grande potência.
O Kremlin buscava ressaltar o conteúdo pacífico da política externa russa
no mundo pós-soviético, em virtude da ausência de inimigos diretos e de um sistema
internacional mais seguro. Os Estados Unidos e os países ocidentais eram vistos
como parceiros para cooperação no médio e longo prazo. Assim, as concepções
liberais da natureza pacífica da seara internacional e dos valores e interesses
similares dos Estados pautaram a política externa nesse momento. O
recrudescimento das relações entre os países incorreria na aproximação entre o
Ocidente e o Oriente, reduzindo as áreas de conflito de interesses entre ambos.
A Rússia passava a compreender a natureza das relações internacionais,
consoante a teoria liberal, de forma positiva. A cooperação baseada nos interesses
compartilhados e valores comuns asseguraria a aproximação entre os países,
permitindo o crescimento conjunto. Assim, esperavam-se investimentos e apoio
ocidental às mudanças realizadas durante o período de transição para a economia
de mercado. A integração proveria os elementos necessários à prosperidade do país
no novo período.
Tal posição sofreu alteração progressiva durante os anos 1993 e 1994. As
lideranças russas continuariam a considerar o sistema internacional do período mais
seguro, contudo a convicção de que a prosperidade econômica alcançar-se-ia
mediante a cooperação desvaneceu com a grave crise econômica que assolou o
país. O unilateralismo americano nas relações internacionais e a prospecção de
ampliação da OTAN na antiga esfera de influência soviética delimitaram as ações
interventivas do Ocidente para a burocracia russa. O sistema internacional passava,
72
portanto, a apresentar certo grau de imprevisibilidade, com possível exclusão russa
das relações de poder tanto na Europa quanto na Ásia. Assim, a estrutura do pós-
Guerra Fria consolidava-se como prejudicial aos interesses nacionais de Moscou.
A reação da burocracia russa concentrou-se, segundo Thorum (2009; p.
30), na utilização do conceito de multipolaridade para assegurar os interesses
nacionais. Primeiro, haveria possibilidade de limitar o poder americano uma vez que
o sistema internacional seria constituído por diversas potências regionais. Dessa
forma, a constituição de um mundo multipolar permitiria limitar a atuação estratégica
da grande potência hegemônica pela cooperação com outros países relevantes. E,
em segundo lugar, o conceito de multipolaridade contemporâneo seria construído
com a finalidade de caracterizar as relações interestatais, pois os Estados eram
compreendidos numa competição por poder, concretizado na formação de esferas
de influência. A concentração da política externa na análise de competição por poder
aproximou, novamente, a Rússia da vertente realista das relações internacionais.
Entre 1993/1994 e 2000, houve a prevalência da atuação da Rússia como
país de orientação geopolítica. A ação da política externa, como declarava o Ministro
das Relações Exteriores Primakov39, reside na noção de abordagem soberana dos
interesses russos na área de influência. Apesar de não abandonar a aproximação
com o Ocidente, a Rússia adotava posição mais restrita quanto aos interesses nos
territórios das ex-repúblicas soviéticas. A posição de predominância russa, num
período de crise, era enfatizada devido às características naturais do país em
relação ao seu entorno. Por conseguinte, o tamanho do território, o potencial
científico, o nível educacional da população e o legado cultural russo eram baluartes
do predomínio que a Rússia deveria ter sobre os países próximos e nas relações
internacionais.
A multipolaridade, como mecanismo para reduzir as assimetrias deletérias
a Moscou, provou-se na forma de incremento na relação com outros países. A
abertura de embaixadas nesse período buscou fortalecer laços comuns com países
de interesses convergentes. A participação em grupos de geometria variável
fortalecia o poder de barganha russo nas negociações internacionais, bem como
permitia coordenar posições políticas com as demais potências regionais. A
percepção era de que a política externa russa deveria diversificar suas parcerias e
39 Yevgeny Primakov foi diretor do Serviço de Inteligência russo para assuntos internacionais entre
1991 e 1996; entre 1996 e 1998 exerceu o cargo de Ministro de Relações Exteriores da Federação Russa.
73
estabelecer uma conduta ativa, visando a estabelecer-se como um ator global
relevante mediante a manutenção da esfera de influência.
Nos anos 1990, o cenário de concorrência recrudescida na esfera
internacional em virtude das turbulências financeiras, do unilateralismo americano e
da existência de ameaças diretas à zona de influência russa tornou o sistema
internacional coerente com a perspectiva geopolítica. Por conseguinte, a colocação
do Estado russo como nação eurasiana, com interesses distintos na região,
reafirmou o poder interventivo de grande potência regional, ainda que não haja a
consecução de fatores reais de poder que a ratifiquem. O pragmatismo desse
período adequou-se, portanto, aos limites da capacidade de agir moscovita.
A entrada de Putin muda o foco da política externa entre 2000 e 2004. A
ênfase na geopolítica da Eurásia decresceu, mas a relevância do aspecto
econômico ressurgiu. Para os burocratas, incluindo o Ministro do Exterior Ivanov40,
era necessário reafirmar o poder do Estado russo, tanto econômico quanto político,
para restabelecer o papel da Rússia como grande potência no sistema internacional.
As reformas empregadas no âmbito interno consolidariam a capacidade russa de
agir no seara internacional, permitindo maior assertividade no jogo de poder
mundial.
Da mesma forma, buscou-se construir prestígio e previsibilidade nas
relações internacionais, a partir de uma conduta consoante o direito internacional.
Tal liame permitiria maior cooperação com os atores em matérias de relevância
comum. Assim, os instrumentos militares de poder duro constituíram elementos
subsidiários, apesar de sempre implícitos, nas relações de Moscou com os países
do entorno.
A política externa do Ministro Ivanov admitia que os poucos recursos
existentes no país deveriam ser aplicados na modernização interna e não usados
como mecanismo de poder imediato na esfera internacional. Dessa forma, a
construção do Estado após da dissolução da União Soviética permitiria uma
projeção externa, no futuro, mais incidente e coerente com os interesses da Rússia.
O status de grande potência deveria, conseqüentemente, ser merecido pela conduta
externa responsável e pelo crescimento econômico que colocaria a Rússia entre os
maiores países do globo.
40 Igor Ivanov foi Ministro das Relações Exteriores russo entre 1998 e 2004.
74
A interdependência entre as nações permeia esse estágio das relações
internacionais da Rússia com o mundo. Uma competição entre países que
enfrentam problemas e temas comuns pode, sendo relativamente alheio às
temáticas de interesse estratégico nacional, implicar cooperação ativa numa conduta
de bandwagoning. Assim, o crescimento da economia russa, por intermédio do alto
preço do petróleo e do gás, asseguraria os elementos de poder necessários à
consecução de uma política externa mais ativa.
Procurava-se transformar o sistema internacional mediante as vantagens
políticas associadas ao controle de recursos energéticos. O fortalecimento
doméstico consubstanciaria a relevância internacional da Rússia. Visava-se, dessa
forma, defender a posição da Rússia como grande potência no cenário global.
Nos anos 2004 a 2007, segundo Thorum (2009; p. 37), as lideranças
russas conceberam as relações externas do país dentro de perspectivas inerentes
às condições internas do país frente ao sistema internacional. Nesse sentido, o
princípio da soberania revestia-se da tentativa de encontrar uma conduta
internacional condizente com a posição da Rússia no mundo, mas também conforme
as possibilidades garantidas pela capacidade contemporânea da nação russa. O
processo que consolidou o poder do Estado central e a economia capitalista, após
as reformas da era Putin, construiu as condições necessárias para uma atuação
mais ativa. A redução das vulnerabilidades observadas durante o período de
transição para a economia de mercado assegurou condições reais da execução de
uma política externa que locupletasse os interesses nacionais, superando as
adversidades decorrentes da nova estrutura do sistema internacional.
O cenário competitivo, na acepção russa, agrava-se com a contenda na
formação de esferas de influência mediante foros ou organismos internacionais. A
atuação da política externa na consolidação de um controle regional decorreria do
grau de convergência na economia, na política e nos valores culturais comuns no
entorno. Assim, as tradições compartilhadas com as ex-repúblicas soviéticas, o
crescimento econômico e o renascimento da industrial militar auxiliariam no objetivo
de estabelecer uma Rússia como uma grande potência independente, associada
com os países do Exterior próximo por intermédio do adensamento das relações
inter-regionais.
75
A alteração das condições domésticas no período Putin garantiu esse
aumento na capacidade de atuar na esfera internacional e regional. Para Thorum
(2010; p. 37), isso ocorre em dois sentidos. O crescimento econômico, até 2008,
assegura a possibilidade de empregar recursos na consecução de objetivos da
política externa. A compra de empresas energéticas nas ex-repúblicas soviéticas,
por exemplo, buscaria aumentar os laços econômicos com o entorno geográfico,
permitindo diversificar os parceiros econômicos e ampliar a participação russa nos
negócios da esfera de influência. Assegurou-se, portanto, maios dependência com a
Rússia.
A independência econômica e política, decorrente da autonomia provida
pelo crescimento econômico, permitiria a tomada de decisões, amiúde, contrárias
aos interesses dos países ocidentais. Tal condição tornar-se-ia relevante em todos
os aspectos da política externa russa. A independência provê poder de barganha
nos foros internacionais, ao reforçar a reforma do sistema internacional para uma
seara multipolar pretendida por Moscou como forma de reaver sua posição como
grande potência.
Em segundo lugar, há um retorno no emprego da capacidade militar como
elemento de dissuasão. A capacidade nuclear russa41 assegura que a condição
estratégica do país, como uma das maiores potências militares, não deve ser
olvidada na percepção do sistema internacional pós-Guerra Fria. Assim, releva-se a
resposta de que qualquer tentativa de alterar o equilíbrio entre as nações por ações
multilaterais mediante organizações internacionais, uma vez que não solucionada
por meios de resoluções diplomáticos tradicionais, admitiria uma resposta adequada
às ameaças impostas à Rússia.
As possibilidades de cooperar com o Ocidente, não obstante a postura
mais assertiva adotada no segundo mandato de Putin, ainda constituem importante
instrumento da política externa russa. A execução de projetos ou posições em
comum se sujeita, no entanto, à preservação dos interesses nacionais russos.
Quando há tema em que a cooperação é vantajosa à consecução dos objetivos
russos, ocorre a cooperação, ressaltando-se a proteção da soberania e
independência do Estado nacional russo. A participação acionária de investidores
41 Estima-se que, em 2009, as ogivas nucleares russas estariam perto de 2500. Vale ressaltar que o novo
acordo START delimita o número de ogivas em 1550 para os Estados Unidos e a Rússia. Tal meta deve ser
atingida em 2017.
76
estrangeiros nas estatais de energia, por exemplo, corresponde ao modelo de joint-
venture e de manutenção do controle acionária pelo governo russo. Ainda que a
participação de empresas transnacionais no setor de energia afetasse o emprego
instrumental de política externa econômica, a busca de maiores investimentos no
setor constituiu uma etapa importante para a modernização do país. Associaram-se
harmonicamente, então, meios de interação entre os países ocidentais com a
manutenção de aspectos importantes da soberania russa.
A relevância da característica econômica da política atual de Putin induziu,
como explica Thorum (2009), à formação de uma “geoeconômica” que orienta a
política externa russa. O projeto russo consiste em criar um sistema energético para
promover e proteger os interesses econômicos nos outros países. O controle dos
mecanismos de distribuição de energia, os investimentos na infra-estrutura e a
compra de instituições financeiras nos países da Comunidade dos Estados
Independentes consistem na criação de uma liderança e dependência econômica
frente aos países do entorno. A política externa russa contemporânea forma-se,
portanto, por intermédio de um ciclo de vulnerabilidade e dependência com a
finalidade de consagrar vínculos de dominação com os países do entorno.
5.3 AÇÕES RUSSAS NA GEÓRGIA
Após o colapso da União Soviética, o Cáucaso surgiu como uma região de
países independentes. A abertura política permitiu a aproximação dos países
ocidentais de uma área com várias vantagens estratégicas e econômicas
decorrentes da proximidade com territórios em conflito – Afeganistão e Oriente
Médio – e da presença de grandes jazidas de recursos energéticos. A concentração
de reservas energéticas e a proximidade com os países árabes, Afeganistão e
Paquistão tornam o Cáucaso uma esfera relevante nos temas de segurança
internacional e de cooperação econômica, inserindo um padrão de competição entre
os países devido à divergência entre interesses.
As discordâncias com a política externa russa provêm da aproximação
com o Ocidente, especialmente com os Estados Unidos e a Europa. Essas alianças
estratégicas visam a contrapor a influência russa na região e, de certa forma, reduzir
77
a capacidade russa de intervir na política doméstica da Geórgia. Assim, Tbilisi
intenciona evitar a desagregação do país e o predomínio russo sobre a economia e
política interna.
Desde o início do governo Ieltsin (1991-1999), a Geórgia tornou-se a área
de maior apreensão no entorno russo. A razão principal consistia na Abecásia, onde
conflitos armados eram verificados desde 1989 e foram intensificados com a
declaração de independência da Geórgia. O cenário agravou-se com ataques à
capital georgiana Tbilisi. No entanto, os conflitos foram reduzidos com a entrada de
tropas russas para impedir a fragmentação do Estado. As forças russas, nesse
sentido, mantiveram a soberania do governo da Geórgia.
A Ossétia do Sul, outra região envolvida em litígios autonomistas,
empregou uma guerra de secessão após Tbilisi revogar o status autônomo que
possuía, em 1990. Poucos anos depois, em 1992, a população aprovou em um
referendo o pleito pela independência do país em favor da adesão à Federação
russa. A tentativa militar da Geórgia de restaurar o controle sobre a região dissidente
foi obstada pela capacidade militar da Ossétia e o auxílio financeiro e militar da
Rússia, por intermédio do liame fronteiriço com a Ossétia do Norte (unidade
contígua à Ossétia do Sul, mas já no território russo). As tropas russas, da mesma
forma que na Abecásia, permaneceram cumprindo missão de paz no território da
Ossétia do Sul.
De maneira geral, como descreve Nygren (2010; p. 120), a Rússia pôde
influenciar no desenvolvimento dos conflitos na Geórgia. A relação entre os dois
países, em decorrência do apoio aos movimentos de secessão pela Rússia,
deteriorou-se no período do governo Ieltsin. A segunda guerra da Chechênia42 e,
posteriormente, a guerra ao terror empreendida por Washington levaram à redução
das relações diplomáticas ao âmbito bilateral e, posteriormente, a limitação às
conversas na esfera da Comunidade dos Estados Independentes.
A perpetuidade de conflitos de baixa intensidade estimulados por Moscou,
existente até 2003, não resistiu à eleição de Saakashvili em decorrência da
Revolução Rosa. O novo presidente, eleito em 2004, decidiu unificar toda a Geórgia,
com a perspectiva de subjugar militarmente as regiões apoiadas por Moscou. A
postura beligerante de Tbilisi aprofundou a participação russa nos dois conflitos.
42 A partir de 1999. A I Guerra da Chechênia ocorreu entre 1994 e 1996.
78
A proposta de Saakashvili incluiu o reconhecimento constitucional da
autonomia tanto da Abecásia quanto da Ossétia do Sul pela promessa de não
separação do território georgiano. A intenção do presidente implicou no
recrudescimento das relações com as duas regiões. A Abecásia, como descreve
Nygren (2008; p. 142), decidiu entrar em negociações tendo como base a
constituição local da região, não aferindo valor jurídico à Carta Magna da Geórgia. A
partir de então, as conversas foram diminuídas, beirando o impasse entre ambas as
regiões.
Em 2006, a retórica da Geórgia de que grupos armados haviam matado
dezenas de soldados e civis georgianos impulsionou novas críticas. As trocas de
acusações envolvendo conflitos na fronteira da região fizeram com que a Abecásia
dirigisse um pedido à ONU para mediação do conflito, postura apoiada por Moscou,
mas que foi rejeitada peremptoriamente por Tbilisi. A posição adotada por Moscou
passou, em função da relutância à resolução negociada, a rejeitar a intervenção
armada nas duas regiões. E, a condicionar a declaração de independência a
princípios gerais de direito internacional. Assim, caso os direitos humanos de
cidadãos russos fossem desrespeitados ou o território sérvio de Kosovo fosse
considerado uma nova nação, haveria uma reação correspondente russa.
As relações da Ossétia do Sul com a Rússia encontram-se ainda mais
intricadas. O parlamento da Ossétia pediu, ainda em 1992, o reconhecimento da
independência pela Duma. A Federação Russa, desde 1990, denuncia o emprego
de meios militares na tentativa georgiana de retomar o controle territorial do país. A
postura agressiva de Saakashvili, entretanto, impôs a remodelação da vertente de
política externa russa de uma condição neutra e de mediador no conflito para o
suporte da Ossétia do Sul no seu pleito de independência.
Em 2005, o Presidente Kokoity43 reiterou a rejeição de qualquer proposta
política para acordo com a Geórgia, ratificando os termos do referendo de 1992, que
previu a separação do país e integração à Federação Russa. Em 2006, o país
reiterou a rejeição à discussão de seu status jurídico. O governo georgiano, então,
acusou a força de paz russa de convalidar as pretensões tanto de Ossétia quanto de
Abecásia, requerendo a retirada imediata dessas tropas. Conseqüentemente, as
43 Presidente da Ossétia do Sul entre dezembro de 2001 e dezembro de 2011.
79
negociações atingiram um impasse e não houve eventos relevantes até aqueles que
culminaram na guerra de 2008.
Os conflitos nessas regiões incorrem também na limitação da política
externa russa pelos compromissos assumidos com os governos locais e a
responsabilidade de proteger a população russa44, uma vez que a maioria do
contingente populacional das áreas litigiosas também possui nacionalidade russa.
Por conseguinte, a secessão desses territórios incorre em efeitos de popularidade
na opinião pública interna, diminuindo a possibilidade de manejo do conflito por
Moscou. O governo encontra-se, portanto, restrito ao apoio tanto à Ossétia quanto à
Abecásia, em termos de proteção dos direitos humanos do contingente populacional
russo na Geórgia.
5.4 DINÂMICA ENTRE A GEÓRGIA E O
OCIDENTE: PONTOS DE ATRITO COM MOSCOU
As relações entre os Estados Unidos e a Geórgia foram, oficialmente,
estabelecidas em 1992. Desde então, a Geórgia considera os Estados Unidos como
garantidor informal da soberania e integridade territorial do país. Os Estados Unidos
têm consistentemente apoiado, conforme Sadri e Burns (2010), os esforços para
evitar a dissolução do território, em decorrência das três regiões separatistas, e tem
provido auxílio militar, econômico e diplomático nesse período.
Os três objetivos essenciais da diplomacia americana na Geórgia
encontram-se em três pilares, segundo Sadri e Burns (2010; p. 127): energia;
segurança; e democracia. A Geórgia é uma rota essencial no transporte de recursos
energéticos, essencialmente gás e petróleo, para a Europa. O oleoduto BTC e o
gasoduto BTE45 abriram o mercado da Ásia Central para o ocidente, sem a
interferência russa. O interesse americano reside, nesse empreendimento, não na
obtenção de energia mediante compra por essas fontes, uma vez que os Estados
44 Não há estimativas confiáveis quanto ao número de cidadãos russos na Ossétia do Sul. Contudo,
especula-se entre 80% a 90% de cidadãos com nacionalidade russa na Ossétia do Sul. 45 Gasoduto Baku (Arzebaijão)-Tblisi (Geórgia)-Erzurum (Turquia). Corre paralelo ao oleoduto BTC.
80
Unidos possui outros fornecedores, mas no enfraquecimento do monopólio russo do
comércio de energia.
A resistência em aceitar o predomínio russo no setor consiste em duas
razões, conforme Sadri e Burns (2010; p. 128). Moscou pode lograr um controle de
mercado elevado, possibilitando a manipulação do preço. E, segundo, o domínio
energético pode transformar-se em domínio político nas ex-repúblicas soviéticas.
No campo estratégico, a importância da Geórgia resume-se a constituir um
ponto estratégico para o trafego aéreo dos aviões da OTAN com direção ao
Afeganistão e Paquistão. A rota que utiliza aeroportos na Geórgia e Azerbaijão
assegura o suprimento das forças da OTAN nos dois países. Reduzindo os custos
de transporte, uma vez que provê uma alternativa de via aérea mais curta para as
regiões conflituosas46.
Em decorrência da cooperação com a aliança atlântica, a Geórgia logrou
realizar dois programas militares para modernização de suas tropas. O programa
para treinamento e equipamento de tropas (GTEP) e o Programa para manutenção
e estabilidade de operações (SSOP). O primeiro desses programas, estabelecido
em 2002, já investiu mais de sessenta e quatro milhões de dólares no treinamento
das forças armadas georgianas, grande parte dessa soma investida em contra-
terrorismo. Para a Geórgia, construiu-se um vinculo que permitiria diminuir a
dependência russa nos assuntos de segurança regional.
A Geórgia já vinha participando, desde 1994, do Programa Parcerias pela
Paz (PFP), da OTAN. A integração a esse programa possibilitaria a integração
parcial no mecanismo de segurança do bloco atlântico como uma forma de garantir
a independência da Rússia após a dissolução do bloco soviético. O programa
também agia consoante a perspectiva de adesão gradual ao nível de membro pleno
da OTAN, uma vez intensificadas as relações entre o país e o bloco.
Na seara política, a Revolução Rosa projetou uma imagem externa de
progressão gradual para a democracia no governo georgiano. A eleição de
Saakashvili, um defensor da aproximação com o Ocidente, garantiu a oportunidade
de estreitar os laços com os Estados Unidos e a Europa. À cooperação econômica
seguiu-se, posteriormente, o auxílio militar. A boa impressão na comunidade
internacional da revolução democrática incorreu no acréscimo dos investimentos
46 Permitiria conexão com a Europa, principalmente a partir da base aérea de Rammstein, na Alemanha.
81
externos direcionado ao desenvolvimento aos setores de infra-estrutura e
energético.
Da mesma forma que os Estados Unidos, a União Européia compreende a
importância da Geórgia nas esferas de energia, de segurança e de democracia.
Contudo, ao contrário dos americanos, a Europa depende da energia do Cáucaso
para o seu abastecimento. O gasoduto e o oleoduto citados acima, portanto,
constituem-se como mecanismos essenciais para o fornecimento de energia no
continente. A diversificação dos instrumentos de transporte dos recursos energéticos
é essencial para tanto a segurança estratégica quanto econômica do bloco.
A importância da Geórgia, no entanto, não se restringe a isso. O
intercâmbio comercial entre a União Européia e o país caucasiano tem aumentado
com a deterioração das relações com a Rússia. O mercado europeu pode prover
uma alternativa para a exportação de produtos da Geórgia.
A relação especial com a União Européia reflete-se também no que
concerne a aspectos estratégicos. Representantes do bloco europeu reconheceram,
em 2006, a integridade territorial georgiana com as regiões da Ossétia do Sul e
Abecásia. Houve também o início de conversas para cooperação na esfera da
monitoração de fronteiras, estabelecimento de dialogo entre as regiões separatistas
e o governo central, bem como oferta de bons ofícios para a consecução de um
acordo entre as partes.
A reação russa não implicou a contraposição a todas as medidas impostas
pelo Ocidente. Ao contrário, iniciou-se um processo de modernização do estado e da
economia para retomar a assertividade da política externa.
A cooperação com Ocidente, especialmente com os Estados Unidos, no
combate ao terrorismo tornou possível justificar a reação contra a Chechênia
mulçumana nas bases da repressão a células terroristas. A guerra ao terror implicou,
posteriormente, no pedido da Rússia e da Organização para Cooperação de Xangai,
segundo Sadri e Burns (2010; p. 134), para a retirada dessas tropas de territórios de
países da Ásia Central. Na perspectiva russa, esse contingente militar reduzia a
influência do parceiro maior na região, uma vez que reforçava militarmente os
governos aliados de Washington.
A principal ameaça ao predomínio russo deriva, essencialmente, da
condição geográfica de três países. Geórgia, Azerbaijão e Turquia. O corredor
82
energético que permeia o território desses países abre nova oportunidade de
fornecimento de energia além do controle das estatais russas. Assim, a expansão
dos dutos do BTC e do BTE poderia obstaculizar o monopólio russo na distribuição
de recursos energéticos para a Europa.
Para garantir sua condição como uma superpotência energética, como
afirmam Sadri e Burns (2010; p.135), a Rússia precisa recuperar sua posição como
potência dominante nas regiões da Ásia Central e Cáucaso. Tornar o governo
georgiano mais receptivo aos interesses russos é, portanto, essencial. No entanto, o
período pós-soviético e, principalmente após a Revolução Rosa, o governo
Saakashvili adotaram postura anti-russa, particularmente na questão da Abecásia e
Ossétia do Sul.
O nacionalismo das regiões da Geórgia remonta ao período soviético.
Quando a Geórgia foi incorporada ao território da URSS; Abecásia, Ossétia do Sul e
Adjaria foram integrados ao seu território soviético como entidades autônomas,
preservando parte da soberania frente ao governo de Tbilisi. A identidade étnica e
autonomia política dessas áreas foram preservadas. Contudo, com a dissolução da
URSS e a independência do entorno russo, o primeiro presidente da Geórgia, Zviad
Gamsakhurdia47, aproveitando a euforia nacionalista para reduzir as liberdades das
áreas separatistas, com o intuito de unificar o país.
Em 1990, a Ossétia do Sul reagindo contra as medidas destinadas a
aumentar o controle alfandegário na fronteira russa, realizou um referendo que
aprovou a separação da Geórgia e integração ao território russo. A declaração de
independência da Ossétia acarretou graves conflitos entre a Geórgia e a região
dissidente. A violência apenas foi parada com a intervenção militar russa a favor da
Ossétia. O Presidente georgiano, não obstante o desprezo pela diplomacia russa,
não buscou aumentar as relações com países ocidentais, empregando uma política
externa isolacionista.
A eleição de Shevardnaze como Presidente da Geórgia, em 1992, trouxe
esperanças de aproximação com a Rússia e maior possibilidade de pacificação do
país. No entanto, a rejeição da perda de poder por Gamsakhurdia, que acabou por
liderar uma rebelião contra o recém empossado Presidente, provocou o aumento da
turbulência polícia. A Abecásia, aproveitando o período conturbado, declarou sua
47 Presidente da Geórgia de 1991 a 1992.
83
independência, iniciando a secessão da Geórgia. O conflito prosseguiu até que,
novamente, as forças russas interviessem decisivamente, congelando o embate
entre o exército georgiano e os rebeldes.
O estado débil em que se encontrava o governo georgiano proveu a
vantagem necessária a Moscou obter seus objetivos. O governo Shevarnadze,
fragilizado pela derrota militar e pela ameaça representada por Gamsakhurdia,
buscou apoio no Kremlin, ao aderir à Comunidade dos Estados Independentes.
Além disso, a Rússia estabeleceu tropas de manutenção da paz tanto na Ossétia do
Sul quanto na Abecásia.
A intervenção russa logrou, no entanto, preservar a soberania de fato das
duas regiões separatistas, enquanto que a Geórgia contentou-se com a soberania
jurídica sobre os territórios. Contudo, o conflito manteve-se perene durante os anos
vindouros. A manutenção do status quo não resultou no esgotamento dos embates
armados entre milícias georgianas, fomentados pelo ultranacionalismo, e grupos
armados no lado da Ossétia e da Abecásia.
A crise ocasionada pela fraude eleitoral de Shevardnaze, durante a eleição
parlamentar de 2003, ocasionou a perda de poder político do governo. A recessão
econômica, a difusão da pobreza e a corrupção galopante culminaram com a perda
de legitimidade do governo para produzir uma alteração no controle do país. A
Revolução Rosa levou à eleição de Saakashvili, que reiterou a postura de manter a
integridade territorial do país. A redução do contrabando de armas e da
concentração tributária na União, cujo exemplo maior é a submissão da Adjaria48 ao
controle tributário de Tbilisi demonstraram, segundo Nygren (2008), os esforços do
governo em integrar a Ossétia do Sul e a Abecásia à administração central.
A presença de tropas russas impedia, entretanto, as tentativas de
Saakashvili de reduzir o poder dos grupos armados locais. Os constantes fluxos
econômicos com a Rússia e a aquisição de cidadania russa pelos habitantes de
Ossétia e Abecásia aumentaram a preocupação georgiana acerca da separação das
regiões para, posterior, integração ao território russo. A Rússia já havia reiterado
que, caso houvesse reconhecimento da emancipação do Kosovo da Sérvia, em
2008, seria aberto precedente para as duas regiões, aumentando o nível de tensão
militar durante o período.
48 Uma das três regiões com pretensões de separação do território georgiano, juntamente com a Ossétia do Sul e
a Abecásia.
84
A realização de um exercício militar na Ossétia do Norte, um mês antes da
guerra, tinha a intenção de estimular a intervenção georgiana na Ossétia do Sul. A
conduta provocativa russa buscava prover uma justificativa para a guerra, uma vez
que as forças armadas atuariam como protetores dos direitos humanitários da
população residente. A constatação de que cerca de mais de 90% da população da
Ossétia é formada por cidadãos com nacionalidade russa reforçaria a perspectiva de
ingerência humanitária. Colocando, portanto, a intervenção militar em conformidade
com o direito internacional, considerado um dos pilares da política externa russa.
Uma vez que a armadilha havia sido colocada, faltava a ação que
justificasse a intervenção. O receio georgiano de nova declaração de independência
da Ossétia do Sul, com o intuito de desligar-se do território georgiano e integrar-se à
Rússia, bem como os constantes ataques de grupos armados rebeldes ao exército
conduziram aos ataques de 7 de agosto de 2008. A Rússia alegando o dever de
proteger seus cidadãos entra no conflito, dizimando as tropas georgianas em menos
de um mês. Em 26 de agosto, a Duma (câmara baixa do parlamento) reconhece a
independência das duas regiões separatistas. A Geórgia rompeu relações
diplomáticas com Moscou desde então.
85
6. CONCLUSÃO
O entorno russo apresenta características peculiares. A condição
estratégica das repúblicas pós-soviéticas determinará o nível de relações
empreendidas tanto com Moscou quanto com outros parceiros. Esse padrão de
conduta entre as regiões constituiu-se durante o tempo consoante as interações com
o gigante russo. A região caracteriza-se por dois padrões históricos de longo prazo,
conforme Buzan e Weaver (2003): ondas de contração e crescimento da influência
russa; 2) mudanças no grau de envolvimento com outras áreas, i.e., Europa. Assim,
esse paradigma revela uma continuidade nas interações regionais.
Na Guerra Fria, a relação do Kremlin com as regiões que faziam parte do
domínio soviético apresentava uma caracterização problemática da região: teria a
Rússia criado uma forma de império ou o controle tão cerrado sobre as regiões que
haveria apenas uma única unidade política soberana e diversas competências
distribuídas revelando certo grau de autonomia. A história revela que a configuração
atual da Federação Russa demonstra que o controle soviético foi o maior exercido
durante toda a história daquela região, apesar da manutenção das reivindicações de
maior autonomia.
Por outro lado, as condições eram muito mais abertas do que o sistema
comunista pretendia. Pode-se afirmar que a dissolução da União Soviética em
diversos estados, entre 1989 e 1991, decorre em grande parte da política de
controle da região, mediante a submissão das veleidades étnicas. A característica
de dar a cada unidade do país uma autonomia específica possibilitou a formação de
vários Estados independentes, ainda que vários deles não tenham histórias
diferentes da russa.
A política externa dessas unidades tornou-se, no imediato pós-Guerra Fria
preponderante como forma de reafirmar características identitárias e, principalmente,
como expressão de autonomia frente a Moscou. As unidades pretendiam obter
acordos vantajosos, amiúde, contrários ao poder central. A adequação à nova
realidade depois da alteração do sistema internacional com o final da disputa entre
as duas potências, dessa forma, implica uma adequação ao processo de
86
globalização e regionalização, sem olvidar as perspectivas prementes de segurança
na relação com a Rússia.
A reestruturação da integração regional russa ganhou novo sentido com o
governo Putin. O governo, a partir de então, passou a limitar a autonomia de regiões
e a restringir a descentralização regional e a influência das regiões no governo
central. A política de ukrupnenie (“fusão”) almejou criar dependência econômica e
política sobre os estados, conforme o grau de autonomia que eles possam
demonstrar. Perspectiva aplicada, consoante o realismo pragmático da política
externa russa, também aos países do exterior próximo. A política regional russa
adstringe-se, portanto, à assimetria entre as unidades e os países sobre os quais
exerce influência.
A capacidade de manter a autonomia determina o padrão das relações
com o poder central. Há, não obstante, países com capacidade de organização
política e desenvolvimento econômico suficiente para distanciar-se do poder central.
Formou-se, portanto, um sistema de barganha política entre Moscou e os países do
Exterior Próximo, baseada no interesse russo de retomada de predominância na sua
zona natural de influência.
No âmbito doméstico, a segurança doméstica é essencial para a maioria
dos países da Ásia Central e Cáucaso. As elites desses países trocam a autonomia
nacional por apoio externo e a ordem estatal é tão frágil que ameaças à segurança
encetam crises políticas e, até mesmo, guerras civis, conforme afirma Buzan e
Weaver (2003). A “democracia oriental”, definida pelo Presidente Karimov, do
Uzbequistão, é pouco democrática e controlada por círculos familiares das elites
internas.
Para a Moscou, as ex-repúblicas soviéticas inserem-se na sua esfera de
influência pela necessidade de proteger minorias russas nesses países e por um
conjunto de interesses econômicos, sociais e geopolíticos. O termo “Exterior
Próximo” revela a concepção russa para a região, ao combinar o âmbito doméstico
com as relações internacionais.
Na maioria das ex-repúblicas soviéticas, a importância central da
segurança doméstica passa pela viabilidade econômica e política desses países.
Desse modo, seria possível continuar como unidades independentes da Rússia.
Contudo, uma forma de conflito recorrente, reveladora da fragilidade de soberania
87
na região, é o pacote de securitização definida pelo trinômio: minoria seccionista/
Estado/ Rússia. A Rússia atua como mediadora dos conflitos, geralmente mediante
pedido do Estado afligido pela tentativa separatista, buscando congelar os choques
entre governo e rebeldes, como ocorreu na Geórgia. Moscou utiliza esses conflitos
para obter vantagens e poder de barganha, ao evitar solucioná-los por completo,
para continuar como fiel da balança quando houver o reinício dos combates.
As mudanças sistêmicas ocorridas na Rússia circunscreveram-se à
integração da antiga economia soviética ao sistema econômico capitalista. Havia,
portanto, necessidade de adequar os fatores de produção domésticos à
concorrência e às inovações da economia globalizada. Nesse sentido, a retomada
do crescimento baseou-se essencialmente na exploração dos recursos obtidos com
a exploração de gás e óleo. Atualmente, a Rússia é um dos mais importantes atores
no mercado de energia mundial.
A alteração da perspectiva econômica, causada pelos lucros com a venda
de petróleo e gás, consubstanciaram o revisionismo da Rússia na esfera
internacional. A perda da predominância militar e político reforçaram o efeito do
crescimento econômico por intermédio da energia na política externa. Tornou-se,
portanto, fundamental a utilização da energia como elemento instrumental da
conduta russa no exterior. Assim, o aumento da utilização de energia como
instrumento de político externa explora a interdependência dos interesses russos
com outras regiões e países.
O conceito de superpotência energética é empregado, recorrentemente,
para conceber essa participação internacional permeada pelo controle de recursos
energéticos. Essa acepção implica o emprego e incentivo de conflitos de suprimento
de energia para a consecução de interesses nacionais russos.
Assim, a política externa russa associa-se ao desenvolvimento da indústria
energética para a obtenção de dois resultados maiores. Revisionismo, por um lado,
com o intento de formar um mundo multipolar, próximo ao tipo presente durante o
concerto europeu, com potências tanto desenvolvidas quanto em desenvolvimento,
ao obter maior destaque na definição dos rumos de política internacional. O Kremlin
busca, dessa forma, reduzir a importância estratégica dos Estados Unidos e reforçar
o poder de barganha dos Estados em foros multilaterais.
88
E, por outro lado, busca recriar o predomínio na tradicional esfera de
influência no seu entorno. O emprego de práticas envolvendo questões energéticas
é mais intenso nesse âmbito geográfico, uma vez que há o objetivo de manter o
status quo anterior à dissolução da União Soviética nesses países. As premissas de
um jogo de soma zero constituem-se então como válidas, uma vez que qualquer
perda significativa de poder nessas regiões representa perdas razoáveis de poder
de dissuasão para o governo russo. A alternativa de utilização da diplomacia
energética é, nesse cenário, essencial para a integridade dos interesses russos nas
suas fronteiras problemáticas.
A importância do nível global para a reforma do sistema internacional é,
por outro lado, de extrema relevância para a Rússia. A verificação de um cenário
com recrudescimento de conflitos estratégicos no seu entorno, bem como a
aproximação das ex-repúblicas com o Ocidente revelam a preocupação com a perda
de poder na esfera internacional. Daí deriva a pretensão de manter o Estado russo
como uma grande potência no nível mundial. Isso reflete a vontade russa de lutar
pelo seu lugar no mundo, porém, mais precisamente por um mundo multipolar, no
qual a Rússia é uma das grandes potências, do que um mundo unipolar, o qual se
pauta pela ação inconteste do poder hegemônico. O objetivo amplo da política
russa, portanto, é garantir um mundo multipolar e a posição como potência de
âmbito mundial.
Nas últimas duas décadas, conforme foi visto, a federação russa
empreendeu um processo de modernização das suas relações internacionais. A
transição democrática e econômica do país soviético para inserção na sociedade
internacional do pós-Guerra Fria condicionou o processo de reformulação da
perspectiva russa no seu entorno e nas áreas consideradas estratégicas por
Moscou. Uma nova relação com os países ocidentais e com os países do Exterior
Próximo tornava-se, portanto, essencial para essa transformação política
empregada.
A transição russa apresenta características específicas. Ela
consubstanciou-se pela autonomia e a concomitante alteração estrutural geopolítica
presente após o fim da Guerra Fria. O governo Putin exemplificou essa tentativa.
Putin buscou desenvolver uma nova abordagem para as relações internacionais ao
combinar a tendência russa a uma política de poder com o reconhecimento de certo
89
nível de interdependência entre os países, bem como da prioridade de integração ao
sistema financeiro e econômico internacional. Segundo Sakwa (2008; 242),
procurou-se cunhar uma política internacional que reafirmasse os interesses
nacionais, enquanto a Rússia se integrava à sociedade internacional.
Na política externa, o entrave decorrente do condicionamento estrutural
desfavorável levou à modificação da percepção de política externa de Putin, de um
momento de concessões e adequação a unipolaridade estratégica americana para,
posteriormente, um momento de amadurecimento, no qual o comportamento
hegemônico, uma vez intensificado, constituiria ameaça aos interesses russos,
principalmente na Ásia central.
Ao agir conforme as características e moldura do sistema, torna-se
imprescindível compreender a distribuição de capacidades internas e externas que
possibilitem a tomada de ações quando houver interação com as outras unidades do
sistema na seara internacional, conforme a teoria do realismo estrutural de Waltz
(1979). Nesse sentido, a transição verificada com a queda da União Soviética revela
um fenômeno híbrido. Uma alteração nas características domésticas de um dos
países (desmantelamento do vínculo federativo entre os países soviéticos) provocou
alteração na distribuição de poder no nível internacional. Dessa forma, o sistema
internacional teve alterada a correlação de capacidades entre os países devido às
interações políticas internas, ao acarretar renovação da estrutura do SI.
Nas últimas duas décadas, a federação russa empreendeu um processo
de modernização das suas relações internacionais. A transição democrática e
econômica do país soviético para a inserção na sociedade internacional do pós-
Guerra Fria condicionou o processo de reformulação da perspectiva dos interesses
russos no seu entorno e nas áreas consideradas estratégicas. Uma nova relação
com os países ocidentais e com os países do Exterior Próximo tornava-se, portanto,
essencial para adequar a política externa às transformações do sistema
internacional.
Essa política externa decorre da incompatibilidade de elementos
assimétricos na percepção russa do sistema internacional. Na política externa, o
entrave decorrente do condicionamento estrutural desfavorável levou à modificação
da percepção de política externa de Putin, de um momento de concessões e
adequação a unipolaridade estratégica americana para, posteriormente, um
90
momento de amadurecimento, após a invasão do Iraque, em 2003, no qual o
comportamento hegemônico, uma vez intensificado, constituiria ameaça aos
interesses russos, principalmente no Cáucaso e na Ásia central.
A política russa para os Estados da Comunidade dos Estados
Independentes revela a reestruturação da política externa russa diante da
incapacidade de associação com o Ocidente. A retomada do eurasianismo tornou-se
o paradigma adotado. Contudo, há novação no conteúdo dessa perspectiva, com a
preferência por investimentos russos na aquisição e desenvolvimento de
infraestutura, commodities e inversões financeiras nos países da Ásia Central para
instrumentalizar a influência russa (poder brando). A política externa econômica
tornou-se, portanto, o mais relevante instrumento de manutenção da esfera de
influência no Cáucaso.
A Geórgia é paradigmática nessa pretensão russa de restabelecimento da
predominância regional na Ásia central. O posicionamento geográfico estratégico
desse país transforma-o em ponto de transição entre a Europa e a Ásia. As
negociações de acordos comerciais na Geórgia iniciaram as tratativas russas para
estabelecimento de zona de preferências comerciais na região. Igualmente, o
investimento de empresas estatais russas nos processos de privatização das ex-
repúblicas soviéticas, modelo utilizado inicialmente neste país, buscava reforçar a
integração econômica entre os países integrantes da CEI.
Assim, a discrepância entre as ambições russas e a capacidade de inserir-
se dentro de um sistema internacional transicional do pós-Guerra Fria determinam
os limites e as expectativas da política externa russa. Assim, os elementos
levantados – regionalismo, economia energética e geopolítica – quando
correlacionados com a política externa russa contemporânea corroboram a
perspectiva de adaptação ao sistema internacional do século XX. Assim, a hipótese
“a guerra na Geórgia indica adequação da política externa russa ao
condicionamento estrutural do sistema internacional do pós-Guerra Fria” demonstra
verossimilhança com os fenômenos ressaltados na dissertação. A atuação na
Geórgia é significativa em virtude das características do país como região de
transição tanto entre Europa e Ásia, mas também como vinculador do modus
operandi a ser seguido para os demais países do Cáucaso.
91
Para algumas das ex-repúblicas, como a Geórgia, a aproximação com
Ocidente possibilitaria a liberação da vinculação com subserviência à Rússia, bem
como à manutenção da integridade territorial; enquanto que para a Rússia significa
exatamente o oposto. Há, dessa forma, um jogo de soma zero nesse cenário. No
campo econômico, o fluxo de investimentos russos determinaria renacionalização de
capitais perdidos durante a queda da União Soviética, enquanto que para esse país,
haveria receio de que esses investimentos impliquem dificuldades na transição para
uma economia de mercado internacionalmente competitiva, concentrando-se apenas
na exportação de commodities.
Tais conjecturas tornaram-se reforçadas pela conduta assertiva da política
externa russa para a região. O controle do fluxo comercial de bens essenciais para a
manutenção de crescimento econômico dos países da Ásia Central é um
instrumento de poder utilizado recorrentemente por Moscou. O controle da maioria
dos investimentos por empresas estatais russas garante o vínculo com os interesses
estratégicos russos para a região.
Para Wennmann (2004; p. 54), analisando as perspectivas da Geórgia
para o futuro, em 2004, apresentar-se-iam três resultados possíveis decorrentes da
tentativa de harmonização entre premissas tão assimétricas: contra-revolução;
provocação; ou construção de estados nacionais.
O cenário de contra-revolução conecta-se com o problema de expectativas
aumentadas. Os grupos e agentes políticos que perdem poder com as reformas
oriundas das reformas de mercado e política decorrente do fim do período soviético
constituem um amplo número de militantes recrutados com a finalidade de ameaçar
a estabilidade da Geórgia. A manipulação desse contingente humano pode ser
facilitada por um discurso nacionalista e um sentimento de injustiça na repartição do
poder pelo governo reformista.
Numa perspectiva de confrontação, a situação de uma das regiões
autônomas instáveis – a Ossétia do Sul pode ser utilizada pela Rússia como um
conflito de pequena intensidade para restringir a vinculação da Geórgia com o
Ocidente. Grupos nacionalistas e círculos militares opõem-se veementemente à
cooperação estrita do país com a OTAN e os Estados Unidos. Enquanto a cúpula da
OTAN e os EUA têm interesse na Geórgia devido à importância militar da região e à
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necessidade de bases aéreas próximas ao Oriente Médio, mais especificamente
Iraque e Irã.
Na perspectiva de um conflito decorrente da construção dos Estados
nacionais, o Presidente Saakashvili poderia ser pressionado a obter apoio político
com a revitalização de conflitos internos se as reformas empreendidas não
provocassem resultados satisfatórios. Para ganhar apoio, poderia tentar conquistar
tanto a Ossétia do Sul, como a Abecásia, envolvendo o país em uma luta para
construir uma unidade nacional. Assim, o Estado da Geórgia seria o ator principal,
independentemente de conjecturas decorrentes do sistema internacional.
A perspectiva enfática dado ao tema teve repercussão premonitória. A
guerra da Geórgia, em 2008, revestiu-se não de um dos elementos levantados, mas
de todos em algum grau. A guerra revelaria a predominância das assimetrias do
pós-Guerra Fria, e como reverberaria no centro de poder russo. A análise dessas
nuances da política externa russa pôde assegurar melhor compreensão das ações
do Kremlin em direção a sua antiga área de influência.
As causas que levaram à Guerra da Geórgia, nesse sentido, tornam-se
imprescindíveis como constrangimentos estruturais de política externa para todas as
demais repúblicas do Cáucaso, considerando-se a importância geopolítica e
econômica dadas por Moscou para o país na elaboração e difusão das políticas
destinadas a essa região específica. Assim, os caminhos que levaram ao conflito
militar na Geórgia permitiram avaliar a conformidade da política externa russa às
alterações no sistema internacional, e como houve a adequação do Kremlin aos
constrangimentos a atuação internacional durante o período anterior ao embate em
terras caucasianas.
93
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Anexos
Mapas
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