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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA Política externa russa: caminhos para a Guerra da Geórgia. DAVI ALBERTO LUZ DA SILVA Recife 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA

Política externa russa: caminhos para a Guerra da Geórgia.

DAVI ALBERTO LUZ DA SILVA

Recife

2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA

Política externa russa: caminhos para a Guerra da Geórgia.

DAVI ALBERTO LUZ DA SILVA

Dissertação de Mestrado apresentada como requisito obrigatório para obtenção do título de Mestre em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Borges.

Recife

2012

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S586p Silva, Davi Alberto Luz da Política externa russa: caminhos para a guerra da Geórgia / Davi Alberto Luz da Silva. – Recife: O autor, 2012.

100 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Borges. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, 2012.

Inclui bibliografia.

1. Ciência Política. 2. Política internacional. 3. Economia. 4. Regionalismo. I. Borges, Ricardo. (Orientador). II. Titulo.

320 CDD (22.ed.) UFPE

(BCFCH2012-86)

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Ata da reunião da Comissão Examinadora para julgar a Dissertação do aluno Davi Alberto

Luz da Silva intitulada: Política Externa Russa: caminhos para a Guerra da Geórgia, para

obtenção do grau de mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.

Às 11hs do dia 10 de agosto de 2012, no Auditório do Programa de Pós-graduação em

Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, reuniram-se os membros da

Comissão Examinadora da Dissertação intitulada: Política Externa Russa: caminhos para a

Guerra da Geórgia, composta pelos professores doutores: Ricardo Borges Gama Neto

(Orientador) UFPE, Marcelo de Almeida Medeiros (Examinador Interno) UFPE, e Thales

Cavalcanti Castro (Examinador Externo) UFPE. Sob a presidência do primeiro, realizou-se a

argüição do candidato Davi Alberto Luz da Silva. Cumpridas todas as disposições

regulamentares, a Comissão Examinadora considerou o candidato aprovado por unanimidade.

Nada mais havendo a tratar, eu, Quezia Cristina Cavalcanti de Morais, secretária da Pós-

graduação em Ciência Política, lavrei a presente Ata que dato e assino com os membros da

Comissão Examinadora. Recife, 10 de agosto de 2012.

_____________________________________________

Quezia Cristina Cavalcanti de Morais (Secretária)

_____________________________________________

Prof° Dr. Ricardo Gama Borges Neto (Orientador) UFPE

_____________________________________________

Prof° Dr. Marcelo de Almeida Medeiros (Examinador Interno) UFPE

_____________________________________________

Prof° Dr. Thales Cavalcanti Castro (Examinador Externo) UFPE

_____________________________________________

Davi Alberto Luz da Silva (Mestre)

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Resumo

A Rússia empreendeu um processo de modernização das suas relações internacionais após o fim do período soviético. A transição democrática e econômica do país para maior inserção no sistema internacional do pós-Guerra Fria condicionou o processo de reformulação da posição russa no seu entorno e nas áreas consideradas estratégicas por Moscou. Na política externa, o entrave decorrente do condicionamento estrutural desfavorável levou à modificação na política externa, especialmente no governo Putin. Houve, por conseguinte, a transição de um momento de concessões e adequação à hegemonia estratégica americana, permeado por concepções liberais; para haver, posteriormente, um condicionamento reativo, com amadurecimento da postura perante a esfera internacional, após a constatação de um ambiente negativo, no qual o retraimento da assertividade na política externa, uma vez intensificado, constituiria ameaça aos interesses russos, principalmente no Cáucaso. A Geórgia tornou-se essencial nesse caminho russo de restabelecimento da esfera de influência no entorno. O posicionamento geográfico estratégico desse país transforma-o em ponto de transição e de conflito entre os interesses russos e de outros países. A efetivação da dependência econômica e política na Geórgia consubstanciaram a tentativa russa para o restabelecimento de zona de influência próxima àquela que outrora fora soviética. Os padrões utilizados pela política externa, contudo, revelam inovação no conteúdo e na forma de conduta externa, ao utilizar incisivamente instrumentos de poder duro e brando, ao retomar gradualmente a posição russa de grande potência no sistema internacional.

Palavras-chave: sistema internacional; política externa; economia;

regionalismo; estratégia.

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Abstract

Russia undertook a process of modernization of its foreign affairs after the Soviet period. The democratic and economic transition of the country to achieve greater economic integration in the international system of post-Cold War conditioned the process of recasting the Russian position and its surroundings areas considered strategic by Moscow. In foreign policy, the barrier created due to structural conditions led to an unfavorable change in foreign policy, especially in the Putin administration. There was, therefore, the transition from a time of compromise and adaptation to American strategic hegemony, permeated by liberal views; to be, then, a condition reaction, with the maturing of attitudes towards the international arena, after the confirmation of a negative environment, in which the withdrawal of assertiveness in foreign policy, since intensified, would constitute a threat to Russian interests, especially in the Caucasus. Georgia has become essential in the way of restoring the Russian sphere of influence in the environment. The strategic geographical position of that country becomes the point of transition and conflict between the interests of Russia and abroad. The realization of economic and political dependence in Georgia substantiates the attempt to restore Russian influence zone next to what was once the Soviet Union. The standards used for foreign policy, however, reveal innovation in content and form in its outward conduct, pointedly using the instrument of hard and soft power, which intends to gradually resume the Russian position of a great power in the international system.

Key words: international system; foreign policy; economy; regionalism; strategy.

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Lista de siglas

CEI – Comunidade de Estados Independentes

OCX – Organização de Cooperação de Xangai

OSCE – Organização para Segurança e Cooperação na Europa

OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte

SI – Sistema Internacional

URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

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Lista de gráficos e tabelas

Gráficos:

Gráfico 1 Índice de Gini na Rússia entre 1990 e 2000 p. 40

Gráfico 2 Evolução do PIB real russo entre 1990 e 1998 p. 48

Tabelas:

Tabela 1 Investimentos da Rússia em países da CEI entre 2000 e 2010 p. 45

Tabela 2 Exportações russas de commodities entre 1995 e 2010 p. 51

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇAO ....................................................................................................... 9

2. ALTERAÇÃO SISTÊMICA PÓS-GUERRA FRIA: PILARES TEÓRICOS NORMATIVOS ......................................................................................................... 16

2.1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 16

2.2 TEORIAS SISTÊMICAS E REDUCIONISTAS ................................................. 19

2.3 MUDANÇA SISTÊMICA NO FINAL DO SÉCULO XX .................................... 22

3. GOVERNO E DINÂMICAS TERRITORIAIS: DETERMINANTES DE POLÍTICA EXTERNA ................................................................................................................. 29

3.1 DEFICIÊNCIAS INSTITUCIONAIS NA ESTRUTURA DOMÉSTICA RUSSA 29

3.2 POLÍTICA EXTERNA E REGIONALISMO ....................................................... 33

3.3 RETORNO DE INSTRUMENTOS DE PRESSÃO POLÍTICA: A “FUSÃO” NOS PAÍSES FRONTEIRIÇOS ............................................................................... 38

4. ECONOMIA E DEPENDÊNCIA ENERGÉTICA ................................................. 46

4.1 TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS NA RÚSSIA: BASES DE UMA POLÍTICA EXTERNA ENERGÉTICA ..................................................................... 46

4.2 SUPERPOTÊNCIA ENERGÉTICA ................................................................... 51

4.3 POLÍTICA EXTERNA ECONÔMICA RUSSA NA GEÓRGIA ......................... 56

5. GEOPOLÍTICA NO CÁUCASO: RELEVÂNCIA ESTRATÉGICA DA GEÓRGIA .................................................................................................................................. 63

5.1 REALISMO PRAGMÁTICO .............................................................................. 63

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5.2 EVOLUÇÃO NA COMPREENSÃO PÓS-SOVIÉTICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS .................................................................................................. 70

5.3 AÇÕES RUSSAS NA GEÓRGIA ...................................................................... 76

5.4 DINÂMICA ENTRE A GEÓRGIA E O OCIDENTE: PONTOS DE ATRITO COM MOSCOU ........................................................................................................ 79

6. CONCLUSÃO ...................................................................................................... 85

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 93

ANEXOS ...................................................................................................................99

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1. INTRODUÇÃO

A adequação aos novos aspectos do sistema internacional, provocados

principalmente pela derrocada da bipolaridade do período soviético, permite analisar

a política externa russa em decorrência das mudanças estruturais no sistema

internacional, especificamente no caso da Geórgia.

A transmutação da política externa russa apresenta características

específicas. Ela é determinada pela autonomia e a concomitante alteração estrutural

geopolítica presente após o fim da Guerra Fria (Sakwa; 2008; p. 241). O governo

Putin exemplifica essa tentativa. Putin buscou desenvolver uma nova abordagem

para as relações internacionais, ao combinar a tendência russa a uma política de

poder com o reconhecimento de certo nível de interdependência entre os países e a

prioridade de integração ao sistema financeiro e econômico internacional. Segundo

Sakwa (2008, p. 242), procurou-se cunhar uma política internacional que

reafirmasse os interesses nacionais, enquanto a Rússia se integrava à sociedade

internacional.

A compreensão da Rússia como uma grande potência, em um mundo em

transformação, significaria reforçar a autonomia, com concessões a conjuntura

externa. Desse modo, o país estaria numa condição bem diferente dos demais ex-

países comunistas da Europa e, portanto, rejeitaria a tutela por instituições

internacionais que reduzissem a capacidade de ação em suas relações

internacionais. Putin procurou recolocar a Rússia no centro da política internacional,

sem perder o poder decisório perante outras grandes potências. Haveria, assim,

uma integração à comunidade internacional, porém que atendesse aos desígnios e

às premissas russos.

A tipologia de Ambrósio (2005) pode ajudar a compreender o “novo

realismo” – termo cunhado por Sakwa – utilizado pela Rússia do século XXI. Para

aquele, há três parâmetros de percepções de política internacional desenvolvidos

por Moscou: os atlanticistas, que pretendem maior alinhamento com os Estados

Unidos e o Ocidente (bandwagoning); os imperialistas, que defendem a

reconstrução ou reafirmação do poder imperial russo em contraponto ao poder do

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Ocidente (uma política de equilíbrio de poder); e os neo-eslavistas, que

compartilham as pretensões imperiais, mas prezam primordialmente o

desenvolvimento da identidade do país (dificuldade enfrentada desde cedo, vide as

reformas empreendidas por Pedro, o Grande, no século XVII). A política de Putin,

expoente do novo realismo, enquadrar-se-ia como neo-eslavista, mas com

elementos de concordância com os atlanticistas, como a adesão a normas e a

alguns regimes internacionais. A configuração de parâmetros da política russa é

condicionada pela nova realidade internacional, adequando-se às novas interações

e, dessa forma, tornando-se também transicional.

Para Trenin (2001; p. 260), o futuro russo reside no Ocidente. A

instabilidade do sul do território, consubstanciado pela fragilidade dos países

islâmicos fronteiriços, aproximaria os interesses geopolíticos russos aos interesses

do ocidente. A Rússia, conseqüentemente, atuaria como agente do status quo,

cooperando com os países europeus e com os Estados Unidos ao invés de colocar-

se como competidor na região. Sakwa (2008, p. 246), no entanto, afirma que traços

do imperialismo russo não desapareceram completamente quando a busca de

autonomia dos estados do entorno russo recrudescem, especialmente quando os

Estados Unidos se arvoram de protetores do “pluralismo geopolítico” de países na

área de influência russa.

Esse óbice decorre da incompatibilidade de elementos assimétricos na

elaboração da política internacional russa. As dificuldades de lograr integração com

os valores do ocidente sem obter uma condição de membro pleno nas instituições

internacionais, degradam as relações com os países ocidentais. Por um lado, houve

melhora nas relações com a União Européia e com a OTAN – Organização do

Tratado do Atlântico Norte –, contudo, sem obter vantagens significativas em troca1.

Assim, tais relações provaram-se incapazes de atender às pretensões russas de

segurança coletiva. Por outro lado, o crescimento da economia demonstrado pela

Rússia nos últimos anos – especialmente durante o governo Putin – e da

autoconfiança, fizeram ressurgir temores de imperialismo e oposição por parte dos

países ocidentais.

1 Em 1996, o Fundo Monetário Internacional emprestou USS 10,2 bilhões de dólares com a finalidade

de incentivar reformas fiscais, monetárias e bancárias no país durante a transição para a economia de mercado. O repasse desses recursos financeiros, apesar do interesse em motivar o desenvolvimento do capitalismo russo, foi

retardado por duas vezes – em 1997 e em 1999 -, devido a alegações do FMI relativas à fragilidade

macroeconômica e à falta de agilidade nas reformas empreendidas.

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Na política externa, o entrave decorrente do condicionamento estrutural

desfavorável levou à modificação da percepção de política externa de Putin. Passou-

se de um momento de concessões e de adequação à unipolaridade estratégica

americana para, posteriormente, um momento de amadurecimento, no qual o

comportamento hegemônico, uma vez intensificado, constituiria ameaça aos

interesses russos, principalmente na Ásia central.

A compreensão da situação russa na Geórgia permitir-nos-ia um quadro

relevante para prognósticos futuros acerca da Ásia Central. A política externa russa,

presa entre o dualismo da integração ao ocidente e da autonomia de reafirmação de

grande potência encontra-se presente nas ex-repúblicas soviéticas, apesar de não

apresentar a mesma magnitude.

Para algumas das ex-repúblicas, como a Geórgia, a adesão aos valores

de instituições internacionais ocidentais associa-se à manutenção da integridade

territorial e à liberação do passado de dependência da Rússia, enquanto que para a

Rússia significa exatamente o oposto. No campo econômico, o fluxo de

investimentos russos determinaria a retomada de capitais perdidos durante a queda

da União Soviética, enquanto que para esses países, haveria receio de que esses

investimentos impliquem dificuldades na transição para uma economia de mercado

internacionalmente competitiva, uma vez que haveria reforço da dependência

econômica com o mercado russo.

A teoria realista sistêmica2, empregada nos capítulos subseqüentes,

implica que a Rússia em virtude da incerteza acerca das ações condicionantes dos

demais atores buscou procurar maximizar a sua segurança. O sistema apresenta-se,

portanto, com uma estrutura competitiva. O destino de cada Estado depende das

respostas às ações dos outros Estados, segundo preconiza Waltz, (1979; p. 127).

Contudo, as respostas às contingências externas não estão limitadas ao âmbito

militar. Há outros mecanismos para atuar na defesa do interesse nacional, ainda que

limitados pelas restrições estruturais.

Nesse sentido, a teoria elaborada por Mearsheimer, como descreve Jervis

(2003; p. 288), que divide o realismo na forma ofensiva provê um adendo teórico

importante explorado nos capítulos vindouros. O realismo ofensivo caracteriza-se

2 O neorrealismo, nos termos desta dissertação, é considerado no contexto do realismo estrutural, bem como dos

desenvolvimentos recentes do realismo ofensivo e realismo defensivo – conseqüências do desenvolvimento

teórico das relações internacionais sob o paradigma de Waltz.

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pelo pensamento de que poucas situações são consideradas como “dilemas do

prisioneiro”, a maioria consistindo em jogos de soma zero. A competição

estabeleceria, portanto, o paradigma da maioria das relações entre países. Isto

ocorreria em situações em que ganhos para um lado constituem prejuízo para o

outro. Dessa forma, quando o Estado encontra-se em um jogo de soma zero, o

objetivo primordial de segurança prevalece e, conseqüentemente, não há

possibilidade de cooperação efetiva entre os países3.

Um equilíbrio próximo ao ótimo de Pareto, assim, seria impossível de se

obter mesmo com a participação dentro de instrumentos de governança global ou

regimes internacionais. Ainda que houvesse determinado nível de integração

institucional, os interesses divergentes entre os Estados impedem uma interação

satisfatória (sub-ótima), uma vez que se afetam elementos estruturais que

influenciam na segurança ou nos benefícios associados ao status de país

dominante.

A perspectiva do realismo defensivo completaria uma análise prudente das

interações sistêmicas russas. Ao considerar que, em apenas algumas situações, o

Estado se encontra constrangido pela ameaça imediata da segurança, os teóricos

dessa vertente consideram que há grandes possibilidades de cooperação quando

interesses essenciais não estão em jogo. Tal concepção prevalece na configuração

de determinados fenômenos. Assim, a percepção estrutural e as causas das

interações entre as unidades permitiriam distinguir as situações e qual conduta deve

ser adotada pelo Estado no caso específico, ou seja, busca de status quo ou

reformismo. As posições de conflito ficariam restritas a apenas alguns elementos da

política internacional.

O tema da dissertação consiste na comparação entre as duas propostas

de pacificação, tanto a política tradicional4 quanto a verificada na Geórgia, enquanto

dificuldade geopolítica russa de inserção no sistema internacional contemporâneo. E

3 O realismo ofensivo consiste no desenvolvimento teórico do realismo estrutural de Kenneth Waltz

realizada por John Mearsheimer, no livro The tragedy of great power politics. Esse realismo coaduna as ações do

Estado ao interesse de obter hegemonia, sendo esta a melhor conduta diante do sistema anárquico decorrente da

própria estrutura do sistema internacional. Desse modo, a cooperação entre Estados é considerada falha, uma vez

que o interesse em obter vantagens sobre outras unidades do sistema tende a minar a confiança mútua, ao reduzir

a capacidade de obter acordos benéficos para ambos. Isso leva à retomada do padrão de competição e de

desconfiança entre os países, renovando a insegurança nas relações estatais. 4 A tradicional política externa russa – ou, ao se falar no período da União Soviética, um programa

interno - para as repúblicas soviéticas baseava-se no controle por intermédio de mecanismos de poder duro para

a região, associado com algumas formas de manutenção de símbolos identitários – bandeiras e assembléias

locais, língua nacional etc.

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que produz incoerências nas perspectivas de política externa que delimitam as

relações com países de proximidade geográfica. Os conflitos russos, portanto,

tendem a demonstrar singularidades em relação aos de outras nações. Assim, a

estrutura da região caucasiana condiciona os interesses nacionais russos a medidas

que, defensivas em sua origem, imperceptíveis e sem intenção, por parte dos

políticos moscovitas, se tornam guerras de agressão, como descreve Kissinger

acerca da política externa russa (1994); e como ocorreu, por exemplo, em 2008, na

Ossétia do Sul.

A expressividade do poderio geopolítico russo, no pós-Guerra Fria, sugere

alteração nos desígnios da política externa do governo moscovita. Há, em função

do enfraquecimento militar e econômico da década de 1990, incorporação de

elementos da perspectiva estrutural e liberal do sistema internacional na atuação

regional e mundial da Rússia. Agregam-se, então, aos instrumentos tradicionais do

poder bruto (hard power) a capacidade de persuasão mediante inversões

econômicas, bem como mediante a promoção de idéias e de valores ocidentais,

denominado poder brando (soft power). A definição de poder adotada, portanto,

torna-se mais ampla, englobando elementos como poder econômico, influência

cultural.

O paradoxo que regula a diplomacia russa com os seus vizinhos

determina diretamente as últimas intervenções moscovitas no Cáucaso. A

instabilidade na condução da política externa, fato recorrente na história russa,

decorre da incapacidade das fronteiras territoriais se ajustarem aos limites da

fronteira geopolíticas do país. A extensão transcontinental da Rússia tende a obstar

a efetivação da soberania em algumas regiões que, diante da presença de minorias

étnicas, resulta na formação de atritos entre populações locais, de etnias diversas, e

as de origem russa. Desse modo, surgem elementos que justificam uma

incorporação mais assertiva nas unidades federativas e na fronteira do país, como é

observado no terceiro capítulo. Verifica-se a transferência parcial da política de

“ukrupnenie” (fusão) - que busca aumentar o controle do Kremlin na periferia do país

por intermédio do aumento na qualidade de vida e desburocratização da

administração – para áreas fora das fronteiras territoriais russas. A política de fusão

e a troca de favores políticos estabelecem, portanto, vínculos diretos entre o Kremlin

e as diversas pessoas jurídicas da federação russa.

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Os conflitos na Geórgia demonstram essa nova abordagem que busca

lograr equilíbrio entre intervenções militares e programas econômicos. Por um lado,

o conflito nas regiões da Ossétia do Sul e Abecásia representa o receio russo de

perda da influência no Exterior Próximo em virtude da ampliação da OTAN

(Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Cáucaso, analisado no quinto

capítulo. Desse modo, a guerra insere-se nos paradigmas geopolíticos russos de

manutenção da esfera de influência nos países fronteiriços. Por outro lado, o apoio

aos países fronteiriços, como é perscrutado no quarto capítulo, foi seguido por

grandes fluxos financeiros providos por bancos e empresas russas, com fim de

prover recursos para projetos de infraestrutura, designados a manter o predomínio

de empresas russas na distribuição de fontes energéticas, ao aumentar a

dependência crônica da região – especialmente durante o inverno.

A dissertação busca compreender essa atuação da política externa russa

no pós-Guerra Fria, especificamente do caso georgiano, e suas modificações no

Cáucaso. Logo, a pergunta que estimularia a pesquisa seria “Em que ponto as

intervenções mais recentes da Rússia na Geórgia são diferentes das demais?”. Cria-

se, então, um ponto de partida para decidir o que e como comparar a situação posta

em análise.

Neste sentido, o tema, isto é, a proposição que vai ser tratada na

dissertação, concerne à política externa russa pós-Guerra Fria. E o fenômeno

adstringe-se à política moscovita pós-soviética – de 2000 a 2008 para a região -,

concentrando-se, contudo, nas causas para o conflito russo-georgiano de 2008.

Assim, a hipótese consiste em comprovar que “a guerra na Geórgia indica

adequação da política externa russa ao condicionamento estrutural do sistema

internacional do pós-Guerra Fria”. É uma hipótese que estabelece relações entre as

variáveis. Assume-se, portanto, a existência de duas variáveis: a política externa

russa, que pode se delinear mediante adequação a ordem ocidental ou coadunar-se

com princípios das nações ocidentais; e estrutura, termo relativo à ordem das partes

de um sistema que, ao interagir, podem produzir resultados diversos, conforme

prescreve Waltz (1979, p. 81).

A relação de causalidade definida pela hipótese permite uma classificação

das duas variáveis. A primeira variável – política externa -, por delimitar a esfera de

atuação do Estado russo na seara internacional é uma variável dependente,

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enquanto que a estrutura, por condicionar o comportamento da política externa

russa, é variável independente da primeira. Há, portanto, relação de dependência

entre as variáveis elencadas, em que a primeira variável é explicada pela segunda

variável. Procura-se, então, verificar os efeitos das alterações na estrutura do

sistema internacional para melhor análise da origem da reformulação da política

russa contemporânea na região. O estudo possibilita, portanto, utilizar diversas

variáveis para identificar possíveis causas para o fenômeno estudado.

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2. PARADIGMA SISTÊMICO NO PÓS-GUERRA

FRIA: PILARES TEÓRICO-NORMATIVOS

2.1 INTRODUÇÃO

As interações entre os Estados constituem reflexo da estrutura do sistema

internacional. Ao explicar resultados e expectativas da seara internacional é

necessário examinar as condições relativas dos Estados, bem como as suas

características internas, em função dos constrangimentos oferecidos pelo sistema no

qual se inserem.

O equilíbrio de poder, neste sentido, resulta da condição na qual os

Estados existem dento do sistema. Ainda que um Estado deseje permanecer em

paz, deve considerar a necessidade de guerrear, uma vez que a correlação de

forças se altere essencialmente, ele pode decidir reverter uma vantagem subjacente

a seu favor, enquanto há tempo. Segundo Waltz (2001; p. 7) essa é a base analítica

para as percepções das relações internacionais centradas no equilíbrio de poder. O

conflito, portanto, decorre da competição e da atividade social dos países em

relação aos demais agentes das relações internacionais.

Na anarquia presente nas relações internacionais, não há harmonia

natural de interesses. Um Estado pode buscar lograr resultados favoráveis mediante

sua própria capacidade seja militar, econômica ou política, aumentando a eficiência

das políticas que adota para obter seus objetivos. As desavenças entre liberais e

realistas clássicos nesse ponto concernem não às características do sistema

internacional, segundo Jervis (2003; p. 279), mas se os conflitos são necessários à

obtenção dos objetivos dos Estados. Para os realistas, quando cada Estado é

capaz de definir políticas próprias, independentemente da submissão aos demais,

qualquer ator pode utilizar a força para atingir suas metas. Assim, quando os

benefícios superarem os custos de uma ação militar, surgiria o conflito. Já os

neoliberais, adotando posição diversa, acreditam que há grande potencial para

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cooperação na interação entre Estados e, que enquanto esse conjunto de vertentes

para negociação e benefício mútuo existir, os conflitos serão evitados.

O otimismo dos liberais não corresponde a algumas dificuldades presentes

no sistema internacional. As análises tendem a focar na possibilidade de uma

melhora ética interna dos Estados, ou na possibilidade da regulação por meio de

normas internacionais. Esses dois elementos seriam complementares, a execução

da lei estaria submetida à adequação voluntária dos Estados em busca de

compreender valores morais às ações estatais. Por conseguinte, as variações de

capacidade entre as nações não apresentariam maior grau de conflitos, se

concebidas dentro dos paradigmas liberais. Os Estados buscariam atingir seus

interesses dentro do conjunto de limitações impostos por esses dois elementos.

A perspectiva liberal apresenta, por outro lado, seu valor sob a condição

de racionalidade do sistema internacional. Se a cooperação é definida como análise

racional de perdas e ganhos, havendo grande potencial de ajuda mútua entre os

países não explorada, os conflitos devem ser considerados como irracionais,

argumenta Waltz (2001; p. 169). No entanto, uma ação completamente racional

implicaria reconhecer que o bem estar individual depende do sucesso dos demais

atores, bem como decorre do reconhecimento suficiente das ações dos outros

atores dentro de um sistema.

As dificuldades não concernem exclusivamente à ação dos atores

individuais, mas também da capacidade de avaliar as perspectivas da estrutura do

sistema e as possibilidades derivadas da interação entre Estados. O paradigma

liberal, portanto, adéqua-se a uma condição de benefícios recíprocos, ainda que

algum agente receba mais que os demais. Entretanto, num jogo de soma zero, a

perspectiva liberal torna-se precária ao tentar delimitar as expectativas estruturais

dos atores.

Na anarquia, não há harmonia de interesses automática. A ausência de

uma autoridade para prevenir e ajustar os problemas decorrentes de choques de

interesses significa que a guerra é, em algumas conjecturas, instrumento inevitável

para a ação estatal. A conduta do Estado pauta-se pelo aumento do seu bem-estar.

As ações racionais de um Estado buscam, portanto, legitimar os objetivos

perseguidos, o que levaria a uma diminuição dos níveis sócio-econômicos dos

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18

demais países. Uma vez que a competição tenha início, as partes vincular-se-iam

aos seus interesses, reduzindo as possibilidades de cooperação.

Neste sentido, um tipo de ato estatal racional, portanto, segundo Waltz

(2001; p. 192) pode ser considerado de duas formas: 1) um ato é racional quando

produz um resultado satisfatório no longo prazo; 2) um ato que é baseado no cálculo

de fatores, incluindo as ações dos demais atores, é racional. Assim, um ato que

possa ser previsto nas suas possibilidades erroneamente, mas que acarrete

benefícios ao estado pode ser considerado equivocado, mas racional. A recíproca

também é verdadeira. Uma conduta estatal, apreciada como racional, pode implicar

resultados deletérios à nação, quando a estrutura do sistema influenciar em

conjecturas diversas das previstas pelo agente.

Uma solução imperfeita pode surgir, ainda que represente valor abaixo do

ótimo possível de ser obtido pelos atores internacionais. Numa situação de anarquia,

ganhos relativos são mais importantes que ganhos absolutos. O dilema da

segurança, em conjunto com as condições sob as quais os estados se inserem no

sistema internacional, impõe constrangimentos a uma política externa considerada

racional. A sanção para aqueles que olvidam as restrições estruturais, conforme

Waltz (2001; p. 201), é a própria sobrevivência do Estado.

Logo, a liberdade de ação de um Estado é delimitada pela conduta de

outros Estados. Os fatores que distinguem a política internacional de outras

espécies de jogos são: os riscos dos Estados considerados de importância primeva;

a anarquia do sistema internacional; os recursos militares e econômicos disponíveis

aos Estados; e a condição de que o uso da força política não exclui outros meios de

obter os resultados. A regra principal seria, segundo Waltz (2001; p. 205): faça o

necessário para vencer. Quando Estados agem segundo essa política, outros

Estados podem ajustar sua conduta conforme as interações dos demais. As

oportunidades e vantagens da estrutura delimitam o âmbito de ação dos Estados no

sistema internacional.

A existência de um comportamento moral dos Estados queda, portanto,

condicionada pela previsibilidade de conduta e segurança transmitida pelo sistema.

Em um sistema anárquico, onde tal segurança é ameaçada, a moralidade torna-se

submetida à necessidade de assegurar a sobrevivência do Estado. As

circunstâncias impostas pela realidade alteram os caminhos possíveis à obtenção da

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19

melhora de bem-estar desejado. Assim, o equilíbrio de poder é resultado da

condição de anarquia e, subseqüentemente, das relações empreendidas entre

Estados com esse objetivo como constrangimento às suas ações.

2.2 TEORIAS SISTÊMICAS E REDUCIONISTAS

Uma teoria organiza fenômenos para que eles sejam vistos como

mutuamente dependentes. Segundo Waltz (1979; p. 10), a dificuldade de relacionar

fatos em perspectivas isoladas para produzir formulações teóricas envolve observar

um padrão até então não visto. Nesse sentido, as teorias são um exercício de

criatividade associada à realidade. Uma vez que se compreenda a dinâmica

subjacente aos fenômenos, definem-se as operações verificadas no elemento

empírico para produzir axiomas. Destaca-se, portanto, os princípios causais que

influenciam ou formam a matéria estudada.

Para facilitar tal empresa, segundo Waltz, seriam necessários alguns

requisitos de ação: isolar, ou seja, observar as ações e interações de um pequeno

número de fatores e forças; abstrair, deixando de lado coisas para focar em outras

de maior relevância; agregar, juntar elementos díspares de acordo com um critério

derivado do propósito teórico; idealizar, agir como se fosse possível atingir um nível

de perfeição ainda que tal seja impossível. Dessa forma, construir-se-ia um

arcabouço lógico capaz de evitar incertezas e impressões distantes do rigor

científico.

As teorias indicam os conectores, o que é conectado; e, como esse

vínculo é realizado. Para Waltz, como afirma Schweller (2003; p. 319), teorias que

combinam variáveis causais sub-sistêmicas tendem a ser reducionistas, pois

dependem de atributos nacionais ou subnacionais para explicar resultados na esfera

internacional. Ainda que tal percepção fosse afim com a realidade, seria

inconcebível explicar fenômenos internacionais apenas com fatores internos dos

Estados. Haveria, portanto, um determinismo miniminalista das interações

internacionais.

Com uma abordagem reducionista, declara Waltz (1979; p. 18), o todo é

compreendido mediante o conhecimento dos atributos e interações de suas partes.

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20

No campo internacional, seria buscar compreender a política internacional por

intermédio dos processos decisivos e da burocracia nacional. Definir a estrutura do

sistema internacional, portanto, consistiria em identificar características nacionais

com os atributos que a teoria busca explicar. Assim, as teorias podem pecar por

transmitir uma percepção demasiado simplista e parcial da seara internacional.

Uma teoria sistêmica, por outro lado, demonstra como dois níveis operam

e interagem, diferenciando-os. Esse tipo de abordagem separa a estrutura dos

aspectos internos das unidades do sistema. A delimitação da estrutura

necessariamente omite as características e os atributos das unidades, preservando

os princípios que regem o centro do sistema. Desse modo, é possível distinguir

mudanças de estrutura que transformam o espaço dentro das unidades que

compõem o sistema.

Logo, as preocupações primordiais da política internacional, e possíveis

ganhos com uma teoria sistêmica são dois, como expressa Waltz (1979; p. 40):

primeiro, traçar os caminhos de sistemas internacionais diferentes, por exemplo, ao

indicar provável durabilidade e possibilidade de conflito; segundo, demonstrar como

a estrutura do sistema afeta as unidades que interagem e como essas afetam a

própria estrutura do sistema. Estruturalmente, uma teoria sistêmica descreve e

compreende as pressões a que os Estados estão submetidos (1979; p. 71) e como

reagem aos constrangimentos dentro das idiossincrasias de cada Estado, isto é,

como reagem aos incentivos recebidos da estrutura do sistema.

O conceito de estrutura do sistema age como constrangimento aos atores,

uma restrição que pode produzir diversos efeitos nos Estados conforme as

características singulares de cada sistema. A estrutura conduz os atores a agirem de

certas formas, não de outras, produzindo possibilidades de ação que serão

escolhidas pelas burocracias dos países. Criam-se, assim, padrões de

comportamento dos Estados, que serão alterados conforme as características dos

países e a busca de obtenção de resultados mais eficientes.

Teorias sistêmicas, portanto, como argumenta Schweller (2003; p. 320),

explicam por que unidades diferentes se comportam e, apesar das variações,

produzem resultados que recaem dentro de expectativas prováveis. Causas no nível

das unidades e do sistema interagem, e porque assim o fazem, explicações ao nível

das unidades apenas são errôneas. Então, se a teoria permite o manuseio desses

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21

dois níveis, a explicação adotada assegura a compreensão de mudanças e de

continuidades num sistema.

A incorporação das restrições impostas pela estrutura do sistema permite

demonstrar que mudanças no nível das unidades têm menor tendência de mudar a

obtenção de resultados do que uma alteração nas características essenciais do

próprio sistema. Assim, o conceito de estrutura apresenta-se não estático, porém

afim às mudanças durante o tempo. As estruturas são dinâmicas em virtude do

efeito de cambiar o comportamento dos atores e afetar o resultado das interações

entre eles. Dessa forma, dada circunstâncias similares pode haver comportamento

consoante a estrutura entre diversas unidades que, portanto, demonstrarão ações

similares no sistema internacional.

No entanto, não é possível prever como as unidades irão reagir às

pressões do sistema sem conhecimento prévio das suas disposições internas. As

teorias sistêmicas explicam o entorno no qual os países se inserem e as condições

sob as quais as unidades interagem entre si para obter maior bem estar, ou maior

eficiência das suas políticas. Tampouco uma teoria com esses predicativos torna-se

mera repetição de paradigmas, uma vez que descontinuidades podem ocorrer

devido a mudanças na estrutura ou na disposição internas dos estados.

Teorias sistêmicas, por conseguinte, explicam como a organização de um

campo age como constrangimento e distribuição de forças nas unidades que

interagem entre si. Há uma descrição das forças as quais as unidades se

submetem. Dessas inferências é possível especular acerca das ações e o destino

das unidades, isto é, como elas competem e se ajustam ao convívio uma das outras,

se sobrevivem ou perecem no sistema internacional. Logo, segundo Waltz (1979; p.

72), as dinâmicas de um sistema limitam a liberdade das unidades, seu

comportamento e os resultados do seu comportamento tornam-se mais previsíveis.

Ainda que as interações mais freqüentemente ocorram ao nível das

unidades, as implicações das interações não podem ser compreendidas sem o

conhecimento da situação na qual tais relações ocorrem. O destino dos Estados é

estritamente vinculado à conjectura estrutural sobreposta. A análise dos Estados no

seu entorno, portanto, deve abranger a percepção dos princípios que regem o

sistema, bem como das expectativas de alteração das estruturas em que se

inserem.

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22

Assim, grande parcela da eficácia explicativa da teoria encontra-se na

capacidade do sistema de delimitar as oportunidades e riscos da conduta estatal

diante dos constrangimentos emanados da estrutura internacional. A estrutura age,

por conseguinte, como seletor das ações proferidas pelos Estados. As intenções e

comportamentos adéquam-se as premissas definidas pelos parâmetros do sistema.

Por si própria, a estrutura não provoca nenhum resultado específico, como afirma

Waltz (1979; p. 74), mas afeta os Estados indiretamente, mediante alteração das

políticas adotadas na seara internacional. Os efeitos podem ser de dois tipos:

socialização dos atores ou competição entre eles. Apesar disso, a estrutura do

sistema afeta diretamente a relevância desses efeitos na sociedade internacional.

2.3 MUDANÇA SISTÊMICA NO FINAL DO SÉCULO

XX

Para definir uma estrutura é necessário desconsiderar como as unidades

interagem umas com as outras e concentrar em como elas se diferenciam em

relações às demais. Waltz (1979; p. 80) descreve que a forma como as unidades

estão posicionadas ou circunscritas é essencial à definição das características de

um sistema. A disposição da estrutura é, portanto, uma propriedade do sistema.

Assim, apenas mudanças no concerto do sistema causam alterações sistêmicas.

Dessa forma, surgem três aspectos de uma perspectiva sistêmica da

sociedade internacional. Primeiro, as estruturas persistem enquanto que a

personalidade, comportamento dos governantes, bem como as interações entre os

Estados podem variar amplamente. Uma estrutura logra, por conseguinte, separar-

se das ações e das interações dos Estados. Assim, demonstra maior estabilidade de

previsibilidade, uma vez que se distingue de alterações aleatórias e irracionais dos

Estados e dos indivíduos.

Segundo, uma definição de estrutura aplica-se a âmbitos de diferentes

áreas, se o arranjo entre as partes é similar. A efetividade de um sistema, quando os

elementos se conjugam de forma similar, pode ser transferida para fenômenos

diferentes. Dessa forma, uma análise sistêmica de um fato social pode ser utilizada

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23

em outra matéria empírica quando a disposição entre as relações das unidades é

congênere ao fato principal. Uma análise sistêmica, portanto, apresenta maior

abrangência analítica do que outras perspectivas teóricas.

Terceiro, as teorias sistêmicas podem, com alguma alteração, serem

aplicadas a outras áreas da ciência. A análise de um fato, não obstante poder

apresentar similaridades com outros fenômenos, não apresenta congruência

perfeita. Assim, é imprescindível adequar o fato à teoria aplicada. Os parâmetros

sistêmicos, ainda que expliquem satisfatoriamente as questões levantadas, devido a

sua organicidade preservam as características essenciais do fenômeno na

explicação epistemológica.

Ainda que um sistema seja formado por uma estrutura e unidade que

interagem, não há completa relação, ou melhor, identidade com os verdadeiros

agentes e unidades. Aqueles são conceitos abstratos, enquanto que esses são

concretos. Uma estrutura não pode, quando se busca maior verossimilhança,

circunscrever-se apenas aos elementos materiais do sistema, mas também deve ser

concebida como o arranjo das unidades dentro da estrutura do próprio sistema e dos

constrangimentos impostos aos atores/agentes.

O conceito de estrutura, portanto, é baseado no fato de que unidades

diversamente justapostas e combinadas comportam-se diferentemente e, ao

interagir, produzem resultados dispares. A estrutura, nesse contexto, define-se

conforme a ordenação das partes do sistema ocorre. Não obstante, atores políticos

agem e comportam-se peculiarmente conforme as suas funções no sistema

encontram-se pré-determinadas. As suas ações, portanto, decorrem de

constrangimentos enfrentados consoante as interações dentro da estrutura do

sistema.

A política doméstica permitiria elucidar alguns pontos dessa definição e

transição entre estruturas do sistema. Segundo Waltz (1979, p. 81), no âmbito

interno, as unidades – instituições e agências – colocam-se em relações de

superordenação e subordinação. Os atores políticos diferenciam-se consoante os

níveis de autoridade e as competências que exercem dentro da unidade

governamental. Portanto, a especificidade de funções e papéis dentro de um

sistema ressalta o desenvolvimento de um Estado, aferindo conteúdo diferente a

cada elemento da estrutura conforme as informações designadas pelo sistema.

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24

Estruturas políticas modelam os processos políticos. Em resumo, uma

estrutura doméstica, por exemplo, define-se consoante três fatores: inicialmente,

pelos princípios pelo qual é ordenada; segundo, pela especificação de funções de

unidade formalmente diferentes; e, terceiro, pela distribuição de capacidade entre as

unidades.

Assim, uma estrutura política produz similaridades no processo e no

desempenho da ação do Estado, enquanto tal estrutura permaneça ativa.

Similaridade, contudo, não é uniformidade. A estrutura atua como uma causa das

ações e condutas futuras dos Estados, mas não é o único fator relevante nos

resultados vindouros. As partes de um governo apresentam comportamentos bem

diferentes devido ao efeito da estrutura política sobre suas ações. A autoridade

soberana interna reduz essa diversidade de perspectivas sobre a capacidade de

conduta estatal na sociedade internacional. Assim, o sistema estatal interno é

ordenado, diferenciando-se da sociedade internacional caracterizada pela anarquia.

O sistema político internacional é formado pela coação de unidades em

um sistema de auto-ajuda. A estrutura internacional é formada pela conjuntura

política (Carr; 1981) de um período histórico determinado, sejam sistemas de

cidades-estados, Estados-nacionais ou impérios. Esse tipo de estrutura origina-se

da coexistência entre as unidades políticas. O sistema internacional, por

conseguinte, constrói-se naturalmente, uma vez que as unidades atuam buscando

satisfazer seus interesses. Dessa forma, a interação dessas condutas constrangidas

pela estrutura implica a formação subseqüente do sistema internacional.

Nesse sentido, a inexistência de um sistema internacional organizado

seria vantajosa para a maioria dos países, pois evitaria resistências a pretensões

decorrentes das ações de outros atores. A coação das unidades, portanto, produz

um cenário dinâmico abaixo do equilíbrio de Pareto, derivado da atuação dos

estados na obtenção de seus desígnios.

Os Estados têm a intenção precípua de submeter suas perspectivas de

ganhos e vantagens a outros atores. A formação do sistema, contudo, é resultado da

interação necessária entre condutas de unidades que agem egoisticamente. Assim,

a estrutura sistêmica constrói-se pelos constrangimentos causados pelas relações

mútuas entre as nações.

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25

Os objetivos buscados pelas unidades são diversos, variando da intenção

de reforma da estrutura à manutenção do status quo, conforme a análise feita pelos

países dos aspectos do sistema internacional. Não obstante isso, a sobrevivência é

um pré-requisito para qualquer caminho tomado pelos Estados. A necessidade de

manter a sobrevivência no sistema é o campo de ação, dentro de um mundo no qual

a segurança não é devidamente assegurada, do jogo na esfera internacional.

Todavia, o sistema não se resume a essas condutas. Estados podem preferir agir

consoante a proteção de outros Estados ou preferir demonstrações de poder brando

ao cooptar parceiros potenciais dentro da estrutura.

A estrutura, porém, possibilita selecionar os comportamentos que devem

ser determinantes para os Estados. Dentre as interações entre as partes,

desenvolvem-se estruturas que recompensam ou punem certas condutas que

aceitam ou não as condições contidas nas premissas do sistema. Isso ocorreu, por

exemplo, com a Rússia logo após o fim da Guerra Fria, como será visto mais

adiante. Assim, diz Waltz (1979; p. 92), a estrutura condiciona os meios para que

aqueles que agem conforme ou contra os constrangimentos da estrutura ascendam

ou pereçam na tentativa de atingir o topo do sistema e permaneçam nessa condição

por muito tempo. Os jogos criados pelo sistema constituem-se pela estrutura que

define qual unidade tem mais possibilidade de prosperar, ou qual a conduta é

necessária para tal êxito.

Vale ressaltar que os Estados não são os únicos atores internacionais,

porém são aqueles que alteram, mais freqüentemente, a ordem internacional. As

estruturas, portanto, não são delimitadas por todos os atores igualmente. Alguns têm

maior relevância na construção dessa dinâmica, principalmente aqueles com maior

capacidade ou habilidade para atuar dentro do enquadramento sistêmico. Assim,

apenas algumas unidades apresentam-se com relevância maior nas interações

decorrentes da estrutura do sistema.

Tal referência não exclui a assertiva de que os Estados são unidades

dentro de um sistema. A acepção dos Estados na estrutura sistêmica significa dizer

que eles são unidades políticas autônomas. Os Estados, portanto, constroem a

dinâmica de interação a partir das estruturas domésticas e das expectativas

internacionais dos demais Estados. Esse cenário deve continuar no longo prazo,

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26

uma vez que as organizações internacionais ainda carecem de supranacionalidade,

bem como os Estados ainda apresentam uma taxa de mortalidade pequena.

Não obstante isso, o conceito de soberania adquire conteúdo diverso

numa teoria sistêmica. A soberania revela uma dualidade entre independência e

dependência. Ser soberano não implica estar alheio a qualquer tipo de limitações ou

constrangimentos em suas ações, especialmente no sistema internacional. Isto

conduz à acepção do Estado como unidade racional que pode escolher, verificados

os constrangimentos, como enfrentar os seus problemas externos e internos. Há,

dessa forma, dependência da disposição da estrutura imposta pelo sistema, sem

haver estrita ligação entre os constrangimentos e os resultados. Já que o Estado

pode escolher os meios, considerados mais eficazes, para a obtenção de seus

interesses.

A possibilidade de escolha de ação é determinada, a partir de então, pela

distribuição de capacidades entre as unidades do sistema. Como o aspecto

funcional, delimitado pela noção de soberania é formalmente similar a todos os

Estados, a disparidade de poderio restringe a conduta dos Estados mais fracos,

além de reforçar a atuação das nações maiores. As grandes potências, por exemplo,

circunscrevem as nações maiores em estruturas, amiúde, por elas elaboradas. A

capacidade de realizar ações relevantes, portanto, é essencial à consolidação dos

aspectos do sistema internacional.

A estrutura, como afirma Waltz (1979; p.97), muda com as alterações na

distribuição de capacidades por intermédio das condições distribuídas no sistema;

bem como as mudanças na estrutura influenciam as expectativas de todos os atores

no sistema internacional e a forma com a qual os resultados serão obtidos. O

conteúdo da noção de estrutura é, assim, constituído pelas relações entre unidades

decorrentes de suas capacidades diferentes. As relações entre Estados são

definidas pelo poder que exercem entre si. Assim, a noção de poder é um atributo

relacional, uma vez que deve ser aferido em função do conjunto de unidades de um

sistema, apenas conforme a distribuição de suas capacidades.

Da mesma forma que as relações unicamente baseadas na expectativa de

interação com outras unidades, conforme Waltz (1979; p. 98), não devem ser

consideradas para conceitos estruturais; as relações entre um grupo de países em

âmbito regional pode revelar algo acerca da disposição de poder entre os países

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27

devido a sua relevância estrutural. Assim, podem-se definir as características da

estrutura e do poder do país dominante perante a área de influência e os demais

países do sistema, como um todo.

Uma estrutura de política internacional é definida conforme agrupamentos

de nações. Logo, um mundo multipolar em que poucas potências se separam em

duas alianças, não deixa de ter uma estrutura de compartilhamento de poder por

vários países. Contudo, o fim de uma estrutura bipolar, pela decadência de uma das

potências tem efeito na remodelação que ocorrerá na estrutura do sistema, porque a

distribuição de poder não corresponde à estrutura anterior do sistema internacional,

como ocorreu no final do século XX.

Ao definir as características e moldura do sistema, torna-se imprescindível

compreender a distribuição de capacidades internas e externas que possibilitem a

tomada de ações quando houver interação com as outras unidades do sistema na

seara internacional. No entanto, apesar de Waltz desconsiderar a unicidade entre

mudanças na seara interior dos Estados com mudanças no interior das nações, a

transição verificada com a queda da União Soviética revela um fenômeno híbrido.

Uma alteração nas características domésticas de um dos países (desmantelamento

do vínculo federativo entre os países soviéticos) provocou alteração na distribuição

de poder no nível internacional. A desfragmentação da estrutura de poder interno

implicou alterações significativas em uma das potências relevantes do sistema

internacional. Dessa forma, o sistema internacional teve alterada a correlação de

capacidades entre os países, acarretando renovação da estrutura do sistema.

A queda do poder econômico e do poder político do gigante soviético

ocasionou mudança significativa no equilíbrio de poder mundial, resultando em nova

configuração das relações internacionais. Nas últimas duas décadas, a Federação

Russa empreendeu um processo de modernização das suas relações internacionais.

A transição democrática e econômica do país soviético para a inserção na

sociedade internacional do pós-Guerra Fria condicionou o processo de reformulação

da perspectiva dos interesses russos no seu entorno e nas áreas consideradas

estratégicas. Uma nova relação com os países ocidentais e com os países do

Exterior Próximo tornava-se, portanto, essencial para adequar a política externa às

transformações do sistema internacional.

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28

Assim, pode-se compreender a política externa russa conforme a teoria de

Waltz, especificando-se na perspectiva ofensiva ou defensiva conforme a aferição

pragmática dos constrangimentos estabelecidos pelo sistema internacional.

Construindo uma perspectiva de adequação ao ambiente internacional consoante as

perspectivas, interesses e tipos de jogos enfrentados pelo país durante a transição

da política externa, que levariam a alterações pragmáticas, culminando na guerra da

Geórgia. A política externa russa encontrava-se, portanto, em um período de

redefinição do seu lugar no mundo das relações internacionais.

O realismo estrutural de Waltz implica que os países em virtude da

incerteza acerca das ações condicionantes dos demais atores devem procurar

maximizar a sua segurança. O sistema apresenta-se, portanto, com uma estrutura

competitiva. O destino de cada Estado depende das respostas as ações dos outros

Estados, segundo Waltz (1979; p. 127). Contudo, as respostas às contingências

externas não estão limitadas ao âmbito militar. Há outros mecanismos para atuar na

defesa do interesse nacional, ainda que sejam limitados pelas restrições estruturais.

A perspectiva de Waltz, portanto, permite compreender o fenômeno russo

dentro de uma sociedade internacional modificada após o fim da Guerra Fria, em

função do condicionamento externo e da adoção de políticas, hoje denominadas

como poder brando, na região do Cáucaso. A teoria realista permite analisar o

comportamento da política externa russa sem alijar alterações perceptíveis na

realidade contemporânea, reforçando a validade interna e externa da análise

acadêmica.

Assim, a discrepância entre as ambições russas e a capacidade efetiva do

país de inserir-se dentro de um sistema internacional transicional do pós-Guerra Fria

consubstanciam os limites e expectativas de política externa no período recente. A

atuação na Geórgia é significativa em virtude das características do país como

região de transição tanto entre Europa e Ásia, mas também como delimitador do

modus operandi para os demais países do Cáucaso.

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3. GOVERNO E DINÂMICAS TERRITORIAIS:

DETERMINANTES DE POLÍTICA EXTERNA

3.1 DEFICIÊNCIAS INSTITUCIONAIS NA

ESTRUTURA DOMÉSTICA RUSSA

A Federação Russa, nos anos 2000, era composta por uma estrutura

política peculiar próxima ao modelo democrático. Em grande monta, tal distribuição

remonta ao legado deixado pela União Soviética. A transformação das

características do Estado soviético para a formação de um país vinculado aos

parâmetros do federalismo ocidental realizou-se insatisfatoriamente.

Progressivamente, o aparato governamental não logrou estabelecer instituições

representativas da soberania estatal nas diversas regiões do país. Fato que, por si,

influenciará a conduta russa no seu entorno, bem como revela uma das causas para

a desagregação da nação soviética e as modificações do sistema internacional.

A estrutura e problemas enfrentados com a integração do país indicam

elementos empíricos essenciais para compreender a interação da Rússia ao sistema

e a delimitação imposta pelos constrangimentos às escolhas realizadas pelo centro

de poder moscovita.

A composição das unidades de federação do Estado russo, após o fim da

União Soviética, incluía 89 unidades da federação. Tais organizações políticas não

apresentam homogeneidade na aferição de competências e direitos, sendo divididos

entre: (21) repúblicas; (6) territórios; (49) regiões; (1) região autônoma; (10) distritos

autônomos; e cidades de importância federal (Moscou e São Petersburgo), que são

administradas pela Federação (art. 5 da Constituição da Federação Russa)5. A

legislação confere às repúblicas maior autonomia do que os demais entes, pois lhes

é facultado ter sua própria constituição e assembléia. Enquanto que as demais

entidades podem ter apenas uma legislação destinada a elementos locais.

5 Em russo, as unidades são denominadas como: krais (territórios); oblasts (regiões); e okrugs (distritos

autônomos).

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Essa idéia de hierarquia das unidades constituintes do Estado remonta,

como afirma Matthew Derrick (2009; p. 318), à Revolução Comunista de 1919, que

consagrava a separação entre nação e nacionalidade. A primeira compreendida

como uma entidade cultural mais desenvolvida do que a percepção de nacionalidade

e subjacente aos vínculos culturais e sociais à terra pátria. Já a nacionalidade, seria

alheia à idéia de subsumir-se a uma localidade e, conseqüentemente, afeita à

internacionalidade comunista, ao implicar um exercício maior de autogoverno de um

território. Dessa forma, permitiu-se uma função dual na esfera de organização

estrutural russa entre liberdade de cultura e integração nacional. Por exemplo, ainda

conforme Derrick (2009), as Repúblicas étnicas russas, durante o período Yeltsin,

tinham a faculdade de manter seus próprios presidentes e símbolos nacionais, bem

como a possibilidade de manter o idioma local – ou seja, características peculiares

de identidade. Assim, preservavam-se os aspectos locais, ainda que as unidades

formalmente pertencessem à Federação Russa.

Essa estrutura federal permeada por diferenças étnicas constitui o legado

soviético para a nação russa, ao assegurar amiúde aos entes regionais poderes

superiores aos da Federação. Os bolcheviques garantiam às minorias nacionais

mais relevantes unidades federativas consideradas como repúblicas autônomas,

distinguindo-se das demais 15 repúblicas soviéticas, com a intenção de delegar às

minorias papéis de competência do Estado. Assim, na maioria do período de

existência da União Soviética, os governos locais poderiam realizar ingerências no

âmbito político, econômico e social de sua jurisdição, sem requisitar anuência do

poder central.

Uma análise da estrutura político-territorial russa revela as inconsistências

na efetividade da soberania russa na amplitude do país. A Federação Russa é

composta, segundo Derrick (2009; p.318), por uma hierarquia entre unidades

divididas em duas categorias básicas: unidades étnicas e não-étnicas. As primeiras

designam as áreas de ocupação histórica de populações não russas,

compreendendo importantes minorias étnicas com determinados privilégios, tais

como a preservação de símbolos nacionais. As últimas, habitadas quase

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exclusivamente por russos étnicos, têm uma tradição de não apresentar privilégios,

ou status federativo especial.6

Esse sistema, não obstante o desmantelamento da capacidade física e

política do Estado russo pós-União Soviética, provocou a utilização dos privilégios

concedidos às unidades étnicas como instrumento para alcançar maior autonomia

das regiões autônomas, inclusive à busca de secessão pelos Estados

independentes. Introduziu-se, portanto, de forma mais aguda a dualidade ínsita ao

federalismo russo, entre a unidade do país (resultado da acomodação de diversas

etnias no seu território) e a autonomia (garantindo determinada independência,

porém criando os incentivos para pretensões separativas das repúblicas étnicas

mais importantes). A regionalização, portanto, segundo Sergunin (2000; p. 73),

constitui um elemento contraditório da Rússia, uma vez que é essencial para o

Estado e, ao mesmo tempo, constitui um desafio constante à preservação da

unidade territorial, ao designar alguma autonomia às regiões enquanto deve

preservar a soberania do Estado russo.

Tal dilema, conforme Soderlund (2006; p. 61), é concebido em dois

paradigmas teóricos pelo governo russo: a escola primordialista e a escola

instrumentalista. A vertente primordialista (também conhecida como essencialismo)

coloca ênfase na consciência étnica e na prevalência do sentimento de identidade

nacional. A identidade étnica é vista como dado da existência social modelado pela

memória histórica, lingüística, religiosa e geográfica de um povo. A politização do

contingente populacional, dessa forma, compreende-se no exercício de

autodescobrimento e reafirmação das características identitárias do povo russo.

A escola instrumentalista (ou estruturalista), por outro lado, reforça a

mobilização política dos grupos étnicos como parte do processo de barganha, no

qual as elites políticas buscam extrair benefícios (recursos econômicos e autonomia

política do poder central). A politização da etnicidade compreende-se como

decorrente dos papéis contingentes e de auto-afirmação com finalidades

instrumentais específicas. Assim, a identidade étnica apenas torna-se uma base

para a ação coletiva quando há vantagens comparativas a serem ganhas pelo grupo

étnico.

6 As dificuldades de gerenciamento do extenso território russo remontam ao período de expansão do

Império, principalmente nos períodos de Pedro, o grande, e Catarina, nos séculos XVII e XVIII.

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32

Nesse sentido, a escola instrumentalista coaduna-se efetivamente aos

fenômenos verificados no período pós-União Soviética. As elites regionais da

Rússia, durante a década de 1990, adotaram diversas posições de barganha

utilizando o argumento do separatismo ou uma postura mais pró Federalismo para

obter ganhos econômicos ou sociais. O emprego desses fatores ocorria consoante a

credibilidade da ameaça. Segundo Soderlund (2006; p.62), líderes com recursos,

poder e habilidades adequadas possuem maior poder de barganha para exigir maior

autonomia do centro. A variação entre autonomia e unidade dependeria

essencialmente do nível de poder de barganha das unidades regionais dentro do

complexo sistema federativo russo. As capacidades respectivas de cada uma das

unidades auxiliariam, portanto, na barganha política para obter maior independência

de Moscou.

No período de 1991-1993, as repúblicas empregaram seus esforços para

conseguir concessões de poder do poder central. Tal estratégia aproveitava o

cenário de virtual ausência de poder político e militar decorrente do

desmantelamento do Estado soviético. A onda de declarações de independência

pelas repúblicas soviéticas inseria-se nessa perspectiva de obter mecanismos de

barganha com o poder central. Dessa forma, as regiões autônomas lograram

diminuir a influência do poder central nos seus territórios, induzindo ameaças ou

expectativas de liberação do controle russo, até mesmo quando não existiam

condições materiais de independência do poder central.

As reformas do período 1993-1994, segundo Libman (2009; p. 5),

marcaram uma nova etapa no desenvolvimento do federalismo russo. A nova

constituição russa tinha por objetivo igualar os poderes das regiões da Rússia

(étnicas e não-étnicas), bem como a legislação central determinava uma hierarquia

na distribuição de competências entre a União e as demais unidades da federação.

Assim, a descentralização política foi substituída pela concentração e transferência

de renda da União para as unidades, com o auxílio econômico buscava-se reduzir a

autonomia e o poder de barganha das unidades.

No âmbito jurídico, houve concentração de competências em favor da

União. A nova constituição buscou delimitar o Poder Judiciário como instituição

central do Estado russo, uma vez que até então havia dispersão do poder jurídico

vinculado economicamente e politicamente às repúblicas e regiões autônomas.

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33

Mediante delegação do orçamento do Poder Judiciário à União, aumentava-se o

poder das regiões. A concentração dessa atribuição buscava adensar a

independência do judiciário perante as autoridades locais, ao concentrar o poder

econômico em apenas um agente – o governo central. Procurava-se, portanto,

reduzir intervenções contrárias ao poder russo nas unidades da federação

decorrentes da influência ocasionada pelo financiamento regional das atividades das

cortes jurisdicionais.

A reestruturação da integração regional russa ganhou maior vigor com o

governo Putin. O governo, a partir de então, passou a limitar a autonomia de regiões

e a restringir a descentralização regional, bem como a influência das regiões no

governo central. Diversos elementos do pacto federal foram modificados com a

intenção de reforçar o poder de Moscou sobre as diversas unidades da federação.

Conforme Libman (2009; p. 6) descreve, houve a criação de distritos federais,

reforma da Duma (Câmara baixa do Parlamento) – pois havia grande poder dos

líderes regionais no destino das votações – e uma revisão da legislação acerca das

competências das unidades regionais.

Logo, segundo Libman (2009; p. 6), a dinâmica do federalismo russo

passou a constituir-se em um ciclo de descentralização-recentralização. No período

imediatamente após o fim da União Soviética, instaurou-se um sistema de barganha

e autonomia crescente das regiões, enquanto que durante o governo Putin houve

uma maior convergência bilateral e retomada do controle federal sob diversas

regiões. Tal padrão de relações entre centro e periferia foi expandido para a política

externa de Moscou, não apenas para as ex-repúblicas soviéticas, principalmente na

Ásia Central e no Cáucaso, mas também para restringir a autonomia expressa pela

paradiplomacia exercida por diversas regiões, à revelia de Moscou7.

3.2 POLÍTICA EXTERNA E REGIONALISMO

7 Há diversos exemplos de restrições russas à paradiplomacia. Um dos casos mais relevantes consiste

nos acordos assinados entre Rússia e Polônia acerca do trânsito de bens e pessoas em Kaliningrado, com a

finalidade de diminuir a perspectiva de adesão do enclave à União Européia. A integração do único porto que permanece descongelado durante todo o ano ao projeto europeu consistiria perda geopolítica relevante para

Moscou. As tratativas com a Polônia para obtenção de trânsito livre e a ausência da necessidade de visto

conformam-se à recentralização da política externa promovida pelo governo Putin.

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A regionalização como característica de política externa é marcante na

Rússia pós-soviética. A autonomia das regiões reflete-se na capacidade de interagir

com outros países ainda que, em determinados casos, contra os interesses do

Estado russo. De modo geral, conforme Sergunin (2000; p. 73), existem dois tipos

de interações de política internacional decorrentes do regionalismo russo. Em

primeiro lugar, o desenvolvimento de relações internacionais próprias pelas

unidades da federação, independentes do controle de Moscou. E, em segundo lugar,

a influência exercida pelas unidades autônomas sobre o governo central para a

execução de uma política externa que lhes seja favorável.

A diversidade de políticas externas decorre da fragilidade institucional e da

incapacidade do Estado de atuar efetivamente por todo o território nacional. A

legislação das regiões tem como objetivo legitimar as políticas externas das

unidades da federação. Ao definir sua competência para tratar de acordos

internacionais nas constituições locais, os governos dessas áreas reafirmam o

caráter de autonomia perante Moscou8.

Na década de 1990, as regiões assinaram mais de 300 acordos

internacionais, muitas vezes sem a aprovação prévia do governo russo, segundo

Sergunin (2000). Além disso, algumas regiões possuem representações próprias em

Estados estrangeiros, definindo uma política externa completamente indiferente aos

preceitos da Chancelaria russa. Dessa forma, a aproximação a outras nações

buscou, nesse período, aumentar os vínculos das regiões com outros países,

evitando a intermediação do governo central9.

A atração de investimentos estrangeiros também constitui um elemento da

política externa das regiões russas. Economias de escala nas regiões mais pobres

representaram um alto atrativo para o mercado financeiro internacional no período

anterior à crise de 2008. O desenvolvimento associado tornou-se um instrumento

para o crescimento de regiões com pouco apoio financeiro do governo central ou

destinadas à produção de matérias-primas.

8 A Constituição russa determina, no art. 71, b, que as relações internacionais do país devem ser

realizadas pela Federação russa. Não obstante a reserva de competência para a União, as unidades da federação

podem efetuar tratados, se houver coordenação com o governo central, conforme determina o art. 72, n, da Carta Magna russa.

9 Podem ser consideradas unidades federativas com ativa paradiplomacia: as repúblicas de Tatarstan,

Sakha e Carélia.

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35

Tal esforço implica também um exercício de diplomacia cultural, com a

participação de algumas regiões em exposições e feiras internacionais com a

finalidade de divulgar o turismo e a cultura dos diversos contingentes étnicos

presentes em território russo. Estabelecem-se, portanto, vínculos internacionais com

empresas transnacionais para a exploração do potencial econômico dessas regiões

em substituição à decadência econômica da nação russa. Assim, a dependência

econômica das unidades da federação é reduzida não apenas pela queda

acentuada do PIB russo10 após a desfragmentação da União Soviética, bem como

pelo esforço dos líderes locais em diversificar as parcerias em busca de

desenvolvimento autônomo.

Ao reforçar o papel de atores regionais, explica Sergunin (2000; p.77),

diversas unidades buscaram estabelecer relações com organizações internacionais.

A integração à Organização do Tratado do Atlântico Norte, à União Européia e a

pessoas jurídicas vinculadas à Organização das Nações Unidas inserem-se nesse

contexto de redução de vulnerabilidade ao controle russo. Dessa forma, as unidades

diminuem a dependência da Rússia, enquanto que reforçam o poder de barganha ao

negociar maiores recursos financeiros do governo central. O aprofundamento da

paradiplomacia, portanto, é essencial para o desenvolvimento e sobrevivência da

autonomia dessas regiões, bem como se torna um desafio para a predominância

russa.

A política externa dessas unidades é, portanto, relativamente complexa.

As unidades devem harmonizar, amiúde, interesses divergentes dos demais países.

A adequação à nova realidade depois da alteração do sistema internacional com o

final da disputa entre as duas potências, dessa forma, implica uma adequação ao

processo de globalização e regionalização, sem olvidar as perspectivas prementes

de segurança na relação com a Rússia.

As legislações regionais, por outro lado, podem ser utilizadas como

subsídios para a elaboração de leis federais, como ocorreu com a legislação de

Novgórod, que serviu de base para a legislação concernente à coordenação das

10 Entre 1992 e 1997 os PIBs da Rússia, países do Cáucaso e ex-repúblicas soviéticas caíram

aproximadamente 40%, segundo dados do Fundo Monetário Internacional, conforme cita Dolinskaya (2002; p.

155).

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36

relações internacionais da federação, como explica Sergunin (2000; p.78)11. A

atuação das elites regionais pode tornar-se aprazível ao governo russo quando

legitima a ação internacional russa, auxiliando na concretização dos tratados

assinados. A presença de líderes regionais nas tratativas com outros países,

portanto, conduz a maior efetividade dos acordos realizados, uma vez que há

convergência políticas das regiões que vão ser diretamente afetadas pelas tratativas

efetuadas, como ocorreu, por exemplo, com a participação da Carélia em acordos

com a Finlândia12.

Tal participação estende-se aos países do Exterior Próximo. Acordos

encetados por Rússia e China contam com a participação de países da Ásia Central,

como ocorre com a Organização para Cooperação de Xangai. Dessa forma,

pretende-se a participação dos países da região na concretização dos objetivos

almejados pelas duas potências para a região, com maior estabilidade política,

crescimento econômico e controle do fluxo de pessoas. A regionalização, portanto,

constitui-se como instrumento útil para obtenção dos interesses da Rússia nos

países vizinhos, ao mesmo tempo em que provê considerável poder de barganha

para as regiões e países fronteiriços de lograr vantagens e auxílios frente ao

governo russo.

A coordenação entre Finlândia e Carélia, como ressalta Sergunin (2000; p.

79), diminuiu as tensões entre a Rússia e a Finlândia em relação à própria Carélia.

As relações entre China e Rússia, buscadas mediante convergência política na

Organização para Cooperação de Xangai13, incluem outros países também

interessados na resolução de problemas comuns. Essas associações permitem aos

países menores exigirem compromissos das potências regionais, ao reforçar a

transferência de recursos destinados ao desenvolvimento e o respeito às fronteiras.

O interesse russo de evitar a proliferação de movimentos islâmicos radicais na sua

fronteira sul, visão compartilhada pela China (observada na repressão ao movimento

11 Segundo Sergunin (p.77), as discussões dos legisladores regionais de Novgórod a respeito de acordos

internacionais foram levadas em conta na elaboração da legislação federal russa acerca da coordenação entre

União e unidades da federação em assuntos relativos a relações internacionais. 12 A Carélia é uma região dividida entre a Rússia e a Finlândia que é objeto de litígios territoriais até

hoje. 13 Essa organização (OCX), fundada em 2001, inclui China, Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão,

Tadjiquistão e Quirguistão, com temática centrada em cooperação em segurança na Ásia Central. Outros países

participam como observadores, como Irã e Índia.

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37

Uigur), permitiria a manutenção da autonomia das regiões e países, sem obstar

determinado grau de influência exercida pelas potências mais fortes nesses países.

Outro mecanismo utilizado amiúde pelas unidades da federação e países

próximos à Rússia consiste na aproximação a organizações internacionais, como já

foi dito acima. Os governos de algumas unidades utilizam-se da credibilidade e do

poder monetário das organizações internacionais, como alternativa à Rússia,

principalmente quando há interesses divergentes com os propugnados pelo Kremlin

de modo a obter maior poder de barganha nas relações com o Estado federal

russo14.

A União Européia torna-se um agente de peso nessas circunstâncias,

mediante cooperação com as ex-repúblicas soviéticas fronteiriças ao bloco. Procura-

se, então, estreitar os convênios econômicos com regiões e países próximos ao

território russo, aumentando os intercâmbios com a Rússia. E, ao mesmo, tempo

funciona como instrumento de reforço de reivindicações das áreas agraciadas, que

podem requerer auxílio ao governo russo para complementar ou suplantar a

influência européia. Tais reivindicações sempre remontam à possibilidade de

redução das relações em caso de negativa do Kremlin. Assim, as relações diretas

com a Europa provocam temor em Moscou da possível independência desses

Estados, caso a integração com o bloco europeu seja mais proveitosa do que a

permanência na esfera de influência da federação russa.

A temática da integração, no caso da maioria dos países ex-soviéticos,

produziu um aumento na cooperação entre os países da área de influencia soviética,

buscando não apenas associar-se a outras organizações internacionais, mas

também formar organizações afeitas às suas realidades. A elaboração de acordos

internacionais na segunda metade dos anos 1990 procurou criar uma alternativa à

ausência de capacidade russa para atender às demandas desenvolvimentistas

locais. Países da Comunidade dos Estados Independentes15 formaram, por

exemplo, a Comunidade Eurasiana do Carvão e do Aço com o intento de reproduzir

14 Tal prática consistiu em forma de barganha com a Rússia, especialmente das regiões fronteiriças ou

enclaves, como Kaliningrado e Sverdlovsk, mas também países do Exterior próximo, como Ucrânia e Geórgia

fizeram, nas décadas de 1990 e 2000, desse expediente moeda de troca nas relações com o gigante eslavo. 15 A Comunidade dos Países Independentes foi criada em dezembro de 1991, sendo formada pelas ex-

repúblicas soviéticas mais Rússia, exceto os três países bálticos – que não aceitaram aderir à comunidade. A

Geórgia entrou na organização apenas em 1992. A CEI inclui diversos acordos econômicos, militares e de pesquisa espacial. Apesar da diversidade de temas comuns, o principal objetivo da comunidade consiste na

cooperação militar, consubstanciada no Tratado de Segurança Coletiva, ao descrever que um ataque realizado

contra um dos signatários será considerado uma agressão a todos os componentes do acordo.

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38

a experiência européia, aumentando a independência da Rússia e diminuindo as

vulnerabilidades econômicas decorrentes do processo de transição ao capitalismo.

O desenvolvimento desses mecanismos de cooperação interestatal, às

vezes, inclusive com instituição de elementos supraestatais, acarretou novas

perspectivas de aproximação e de acordos internacionais. Não obstante o progresso

realizado, conforme afirma Libman (2009; p.7), tais estruturas nunca foram

efetivamente implementadas16, constituindo-se em um instrumento de aumentar o

poder de barganha. A tentativa de criação de um regionalismo assimétrico decaiu

em virtude das pressões de interesses divergentes e da prevalência do princípio da

igualdade soberana entre os estados.

O crescimento econômico russo nos anos 200017, por outro lado, reduziu a

capacidade de resistência à influência russa no Exterior Próximo. Houve um

processo de redefinição do regionalismo pretendido pelo Kremlin, uma vez que a

consolidação política da Rússia, mediante a reforma de suas instituições internas e

os altos preços externos das commodities, estabeleceu os pilares para a reinserção

da política externa russa na região. Torna-se, portanto, tema central da política

externa nesse período retomar a influência russa nos países fronteiriços. Tal,

reafirmação do poder será realizada, dentro da dicotomia descentralização-

recentralização pela transferência de políticas de regionalismo doméstico para os

países pós-soviéticos.

3.3 INSTRUMENTOS DE PRESSÃO POLÍTICA: A

“FUSÃO” NOS PAÍSES FRONTEIRIÇOS

A decadência da União Soviética, como foi visto acima, resultou no

enfraquecimento do poder russo nas suas unidades federativas. O desmantelamento

do controle soviética, da mesma forma, introduziu um conjunto de países originados

16 Os acordos que permitiriam a formação de uma união aduaneira na CEI, por exemplo, nunca se

tornaram realidade, uma vez que falta interesse político de Moscou em modificar o grau de dependência dos

países fronteiriços, bem como de adotar a posição de garantidor do processo de interação regional (paymaster). 17 O crescimento do PIB russo foi contínuo nos anos 2000 até o colapso causado pela crise de 2008.

Segundo dados do Banco Mundial, as taxas de crescimento de 2002, 2003, 2004, 2005, 2006 e 2007

correspondem respectivamente a: 4,7%; 7,3%; 7,2%; 6,4%; 8,2%; e 8,5%. Disponível em:

http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG. Acesso em: 30/04/2012.

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das ex-repúblicas numa nova conformação de influência moscovita, mas que, ao

mesmo tempo, procuravam criar estruturas para a manutenção de suas

independências diante do gigante regional. As interações entre a Rússia e os novos

países, num primeiro momento, cercearam-se dentro de um jogo de barganhas

decorrente da fragilidade do Estado russo naquele período.

Assim, os conflitos étnicos no nível doméstico russo e a crise econômica

provocada pela integração da economia russa ao sistema econômico mundial

permitiram o reforço da capacidade de barganha das unidades e dos países do

Exterior próximo. Esse contexto, contudo, foi revertido com a eleição do governo

Putin. A administração central procurou, desde então, tornar efetiva a supremacia

jurídica gozada pela União perante os estados. Com Putin, como afirma Libman

(2009; p. 20), a centralidade jurídica federal foi executada na prática e foram criados

novos mecanismos de controle da União sobre as unidades da Federação.

Perspectiva aplicada, consoante o realismo pragmático da política externa russa,

também aos países do exterior próximo.

A política regional russa adstringe-se, portanto, à assimetria entre as

unidades da federação e os países sobre os quais exerce influência. Dentro do

território russo, apesar da utilização constante da ameaça de separação, poucas

unidades da federação possuem população, território e recursos suficientes para

constituir um novo país18. Há, não obstante, regiões com capacidade de organização

política e desenvolvimento econômico suficiente para seccionar-se do poder central.

A capacidade de separação determina, dessa forma, o padrão das relações com o

poder central.

A política de ukrupnenie (“fusão”, em russo), adotada no governo Putin,

objetivou criar dependência econômica e política sobre os estados da federação,

conforme o grau de autonomia que eles possam demonstrar. O objetivo principal

seria melhorar o crescimento econômico das regiões mais pobres da Rússia com a

associação de unidades da federação com poucas possibilidades de crescimento às

regiões mais prósperas do país, uma vez que a desigualdade tornou-se crescente

após o fim da URSS, como demonstra o aumento do índice de Gini nos anos 1990

(gráfico encontra-se abaixo). A fusão dessas unidades seria acompanhada, portanto,

18 A Chechênia poderia ser incluída nesse grupo, já que, se houvesse separação da Federação Russa,

haveria grande possibilidade de surgir um Estado falido.

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40

de instrumentos de melhorias de infra-estrutura e transferência de recursos

governamentais, reforçando as ligações com o Kremlin.

Gráfico 1 – Índice de Gini na Rússia entre 1990 e 2000

Fonte: Gerardo Bracho, C. ; López, G. (2005) The Economic Collapse of

Russia, Quarterly Review Banca Nazionale del. Lavoro, Roma, n° 232. Retirado do

site: http://criticaeconomica.wordpress.com/2008/02/26/a-russia-dos-anos-90-cronica-de-um-

desastre-anunciado/. Acesso em: 30/04/2012.

O aumento da desigualdade entre os Estados mais ricos e os mais pobres

seria o argumento principal para manter a proposição da fusão. O crescimento das

dez unidades com maior produção industrial em comparação com as dez com menor

produto, conforme Derrick (2008; p. 320), apresentou altas entre 2006 e 2007,

demonstrando o aumento da concentração de renda na Federação Russa19. Assim,

19 Os números revelados por Derrick (2009), com base em relatório divulgado pelo Ministério do

Desenvolvimento Regional russo descrevem que as 10 regiões com maior produção industrial superaram em

33.5 vezes a produção das 10 piores regiões, em 2006. Tais valores atingiram a proporção de 39.1, em 2007.

Dessa forma, houve aumento na desigualdade regional, mesmo com os esforços do governo central russo.

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41

a redução dessa desigualdade, para o governo russo, permitiria lograr

homogeneidade e diminuir a pobreza da população de regiões mais afetadas pela

falta de recursos ligando-as às regiões mais prósperas da Federação.

Essa política também incluiu a substituição de elementos da burocracia

local por funcionários federais que devem ser responsáveis pela administração dos

recursos financeiros recebidos pelas unidades da federação. Realizou-se, portanto,

um trade-off quanto ao recebimento de auxílio do governo central. As unidades

perdem parte da independência de suas burocracias, reduzindo o poder de

autonomia frente a Moscou, em troca do recebimento de benefícios financeiros. Os

estados mais ricos, da mesma forma, tornam-se atingidos pela estratégia centralista,

uma vez que são associados a unidades fragilizadas, aumentando as

vulnerabilidades econômicas e políticas, ao mesmo tempo em que permitem maior

controle do governo russo.

A fusão implica reforçar as ligações com o poder central, inclusive quanto

às expectativas de promoções políticas futuras aos líderes locais. No longo prazo,

líderes regionais podem esperar mover-se para o âmbito federal, ao aceitar

subjugar-se aos interesses políticos da União. Se essas esperanças são

consideradas realistas, por um lado, devido ao controle de Moscou sobre o aparato

estatal; os políticos podem enfrentar outro trade-off, segundo Libman (2009; p. 13),

se buscarem aumentar a autonomia regional, podem obter vantagens econômicas

imediatas e ganhos políticos junto à população local, porém diminuem o valor que

possuem para a esfera federal.

A redução do poder desses líderes, mediante a homogeneização da

burocracia estatal consoante os desígnios de Moscou com a fusão, implica aumento

do poder russo tanto na periferia do território quanto permite obter grande

quantidade de votos nas eleições locais mediante a atuação desses agentes

estatais. Essa lógica associa a integração das entidades federais à utilização da

burocracia como importante angariador de votos no jogo da sucessão russa. A

reiterada eleição de políticos vinculados ao Kremlin (Yeltsin; Putin; e Medvedev) no

período pós-soviético demonstra a eficácia do aparato estatal russo, ao prover votos

aos preferidos pelo governo central. Dessa forma, a possibilidade de autonomia

torna-se restrita em virtude da substituição dos administradores políticos causada

pela “fusão” de unidades da federação.

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42

No âmbito econômico da política russa (vista com maior profundidade no

próximo capítulo), as premissas da “fusão” demonstram a distância entre a retórica

de Moscou e a pretensão de centralização das regiões. O regionalismo russo não

inclui, necessariamente, as unidades que estão entre as mais pobres do país. Se a

política de ukrupnenie, como afirma Derrick (2009; p. 320), buscasse melhorar a

condição socioeconômica das regiões mais pobres, orientar-se-ia pelo nível de

pobreza e pelo contingente populacional carente do país.

Tal condição não foi seguida por Putin em nenhum momento. Unidades

com elevado grau de desindustrialização, decorrente da queda de incentivos do

governo central, foram relegadas ao esquecimento, enquanto que outras regiões,

consideradas estratégicas tanto do ponto de vista militar quanto econômico foram

incluídas na política de agregar regiões. A redução da autonomia de povos étnicos,

para reduzir a possibilidade de conflitos de secessão nas fronteiras russas, é o

princípio basilar que rege a política do Kremlin nesse diapasão.

As repúblicas étnicas autônomas20, então, seriam progressivamente

eliminadas, reforçando o controle russo sobre fronteiras estratégicas do país.

Aquelas menos prósperas já foram, em sua maioria, incorporadas a unidades de

maioria étnica russa; e a continuidade da política pretende reduzir o número de

regiões de etnias contrárias ao controle central. Por conseguinte, a ukrupnenie,

segundo Derrick (2009; p. 322) deve ser considerada como a uma política de

restrição da autonomia regional das unidades internas. Assim, os mesmos princípios

que regulavam as ações do Estado durante o império czarista e o período soviético

são retomados na forma retórica de redução da desigualdade e integração

econômica do país.

No entanto, os efeitos dessa política, expandida aos países do espaço

pós-soviético apresentam algumas características peculiares. A assimetria de

capacidades, nesse caso, revela-se na alteração pragmática de conduta de Moscou

com cada um dos países de sua área de influência.

A estabilidade das regiões no panorama externo é vista como essencial

para Moscou. Não obstante, as ações empregadas para manter esse status quo

diferem conforme o grau de poder real de cada país da esfera pós-soviética. As

diferenças entre população e nível de renda associam-se as perspectivas de

20 A República da Carélia e da Ossétia do Norte são, por exemplo, repúblicas étnicas autônomas.

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centralização e descentralização na perspectiva russa, permitindo adequar-se às

pretensões de autonomia da região.

Segundo Libman (2009; p. 16), há dois problemas nas alianças

assimétricas entre a Rússia e os países de seu entorno: primeiro, os países

pequenos podem esperar impacto substancial na capacidade de legislar e efetuar

políticas, bem como maiores riscos políticos decorrentes da cooperação (como por

exemplo, aumentar a vulnerabilidade ao permitir que as relações econômicas russas

predominem nas economias nacionais, como foi o intento russo na Geórgia até

2008); ou, os ganhos da cooperação podem ser redistribuídos entre os países

pequenos e médios, fomentando uma contenda acerca da obtenção desses

recursos, estimulando a competição entre os atores e diminuindo a capacidade de

colaboração entre países de interesses semelhantes.

A relação dos países com a Rússia, no âmbito econômico delimita-se

pelos investimentos russos na transição dos países para a economia capitalista e na

privatização de empresas de infraestrutura21. O interesse na expansão da

exploração de commodities implica a manutenção dos fluxos de exportação e das

áreas de exploração de matérias-primas nos países do Cáucaso. A retomada do

controle sobre as economias dos países, portanto, insere-se no objetivo de

impulsionar o crescimento econômico do Estado russo mediante a utilização da

renda das commodities. Assim, a estabilidade econômica desses países torna-se

essencial à manutenção do progresso russo.

Não obstante o incremento de relações econômicas com os países do

entorno, as inversões subjazem a interesses políticos. Dessa forma, a influência

econômica na região consagra a aplicação de instrumento de poder brando na

obtenção de administradores e aparato jurídico favorável aos interesses moscovitas.

A atuação do estado russo, por sua vez, imiscui-se nos projetos de empresas e

bancos russos com finalidade de restringir as liberdades da população local. A

assimetria entre a cooperação permitiu um aprofundamento da dependência das

populações autóctones a instituições russas, diminuindo o poder de barganha

desses estados em negociações com o Estado russo22.

21 Abaixo, há gráfico com os investimentos russos nos países da CEI. 22 A compra de bancos da Geórgia por empresas estatais russas demonstra, por exemplo, a

vulnerabilidade econômica desse país com a Rússia. Esse exemplo será melhor analisado nos capítulos

vindouros.

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44

A nova política quanto à burocracia estatal também se aplica aos países

da Comunidade dos Estados Independentes. Segundo Libman (2009; p. 8), há

financiamento russo das campanhas das elites políticas tanto da situação quanto da

oposição nos países da CEI. Em uma política clara de dividir para governar, o

governo repassa recursos para ambas as elites, bem como promove intercâmbio

regular entre os governantes de outros países com os da Rússia. O

desenvolvimento de organizações regionais no período recente pautou-se pela idéia

de soberania, com estrutura sem instituições com poderes supranacionais ou

repartição de competências entre as nações. Adotava-se, portanto, um modelo que

permitia a utilização pragmática dos recursos financeiros conforme a percepção

realista dos interesses russos nos países do Cáucaso.

As revoluções das cores - ou revoluções coloridas, para alguns - tornaram-

se entrave relevante para esse tipo de abordagem das relações internacionais pela

Rússia. As reformas adotadas pelos governantes, de Ucrânia e Geórgia, por

exemplo, empregando um modelo mais democrático de governo e política

internacional, diminuíram a possibilidade de influência russa nos ditames desses

países. Especialmente nos países onde o reforço do poder central, inclui a redução

dos poderes dos governantes locais – “senhores da guerra”23 - de regiões

autônomas apoiadas pela Rússia. A redução do predomínio russo no sistema

tributário e nas administrações domésticas, bem como as reformas das legislações,

atuou na perspectiva de aumentar a autonomia desses países. Nesse sentido, a

querela entre Moscou e Tbilisi encontrou um de seus pontos de conflito na maior

independência burocrática e jurídica do país frente à Rússia.

O estímulo de governos pró-Rússia, como na Armênia e Moldávia,

mediante investimentos financeiros e auxílio militar estabeleceu uma situação de

isolamento georgiano na região (ponto que será abordado mais profundamente no

quarto capítulo). A expectativa de fomentar a divisão entre os países da região em

suas empreitadas regionais visava a reduzir as possibilidades de ajuda externa.

Dessa forma, tornando a Rússia o único país capaz de prover a ajuda econômica

necessária ao fomento do crescimento dos países mais pobres do Cáucaso. A

distribuição dos recursos financeiros demonstra a discrepância entre os repasses de

inversões.

23 Por exemplo, Aslan Abashidze, de Adjara, na Geórgia.

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Tabela 1 – Investimentos da Rússia em países da CEI entre 2000 e 201024

2000 (U$$/ %) 2005 (U$$/ %) 2009 (U$$/ %) 2010 (U$$/ %)

Investimentos totais 130981/ 100% 620522/ 100% 9213953/ 100% 7497920/ 100%

Azerbaijão 26/ 0.0% 6734/ 1.1% 91974/ 1% 39713/ 0.5%

Armênia 5/ 0.0% 138185/ 22.3% 192205/ 2.1% 108395/ 1.5%

Bielorrússia 77238/ 59% 102438/ 16.5% 6542488/ 70.9%

4125440/ 55%

Geórgia 133/ 0.1% 60/ 0.0% - -

Cazaquistão 3453/ 2.6% 204314/ 32.9% 388741/ 4.2% 1205872/ 16.1%

Quirguistão 7/ 0.0% 1247/ 0.2% 200535/ 2.2.% 210237/ 2.8%

República da Moldávia 31224/ 23.8% 4904/ 0.8% 26733/ 0.3% 26649/ 0.4%

Tadjiquistão - 496/ 0.1% 111954/ 1.2% 182846/ 2.4%

Turcomenistão 2934/ 2.6% - 6205/ 0.1% 1616/ 0%

Uzbequistão 929/ 2.7% 6968/ 1.1% 87118/ 1.0% 204039/ 2.7%

Ucrânia 15032/ 11.5% 155176/ 25.0% 1565960/ 17% 1393113/ 18.6%

Fonte: Federal Statistics Service – Rússia (2011)

A integração da CEI, portanto, nunca foi efetivamente desejada pela

contraparte russa. As tentativas de transformar a integração jurídica em uma

cooperação de fato foram obstadas pela atuação da Rússia no estímulo de

desentendimentos entre os países da comunidade como, por exemplo, os conflitos

entre Geórgia e Armênia acerca dos preços de compra de óleo. A retórica da

associação assimétrica implicava a submissão dos países às veleidades moscovitas

em troca de apoio econômico e político.

As tentativas de cooperação entre os países do Cáucaso e a Rússia

encontram-se revestidas da ameaça de um conflito com o parceiro maior,

indesejável pela maioria dos países (vale ressaltar, a relutância da Geórgia em

aderir à OTAN ainda hoje, mesmo com várias declarações nesse sentido). Há um

aumento na consciência da vulnerabilidade administrativa e social empreendida pelo

regionalismo russo. A percepção de que a cooperação concebe uma política de

dependência assimétrica do entorno russo aos desígnios do Kremlin é um valor

compartilhado pelos países do Cáucaso.

24 Em agosto de 2009, a Geórgia retirou-se da CEI.

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4. ECONOMIA E DEPENDÊNCIA ENERGÉTICA

4.1 TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS NA

RÚSSIA: BASES DE UMA POLÍTICA EXTERNA

ENERGÉTICA

O processo de transição do sistema econômico comunista para o

capitalismo provocou diversas alterações na forma como a Rússia se relaciona com

os demais países de sua esfera de influência. A adequação aos parâmetros de uma

economia de mercado implicou a realocação de recursos associados ao Estado para

a iniciativa privada. Tal redistribuição de riqueza provocou a alteração das relações

de poder, bem como o aumento da dependência dos países fronteiriços com a

economia russa no período mais recente.

As mudanças sistêmicas ocorridas na Rússia circunscreveram-se à

integração da antiga economia soviética ao sistema econômico capitalista. Havia,

portanto, necessidade de adequar os fatores de produção domésticos à

concorrência e às inovações da economia globalizada. A Perestróica, programa

aplicada para promover a modernização da produção soviética, iniciou esse

processo. Não obstante a tentativa de incremento nas reformas, a tendência de

abertura a iniciativa privada da Perestróica esbarrou na incapacidade do arcabouço

institucional de adequar-se às transformações empreendidas. Apenas com a

dissolução da União Soviética, um processo mais amplo de alterações seria

empreendido pelo Estado russo na superação dos entraves ao crescimento

econômico.

Para as demais repúblicas originárias da URSS, a dissolução do país

representou uma encruzilhada devido ao fim das inversões financeiras da

administração central às regiões autônomas, corroborado com a crescente

dificuldade em obter recursos externos no mercado internacional. A queda de

produção, provocada pela Perestróica no período anterior, já desestabilizara as

antigas repúblicas socialistas. Assim, a dissolução da estrutura comunista agravou

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ainda mais a situação de desajuste econômico desses países como demonstram os

gráficos abaixo.

Gráfico 2 – Evolução do PIB real russo entre 1990 e 1998

Fonte: Federal Statistics Service. Retirado do site:

http://criticaeconomica.wordpress.com/2008/02/26/a-russia-dos-anos-90-cronica-de-um-

desastre-anunciado/. Acesso em: 30/04/2012.

As políticas empregadas por Moscou para sanar esse cenário deletério

encontram-se em duas perspectivas, segundo Pomeranz (2000). O ajustamento

econômico, com programas e instrumentos para superar o desequilíbrio na balança

comercial. E, por outro lado, um programa de reformas estruturantes consagrado na

privatização das maiores empresas estatais e na liberação progressiva da ação da

iniciativa privada na economia.

O ajustamento econômico implicou uma ação rápida para impedir o

recrudescimento no decréscimo da produção. O início das reformas ocorreu com a

liberação de praticamente todos os preços, a partir de 1992, mas também o

congelamento de bens essenciais à população, como pão, leite, carne e

combustíveis. Houve também compromissos assumidos com a comunidade

financeira internacional. A assinatura de um memorando de intenções com o FMI,

demonstrando o compromisso de estabilização macroeconômica para a comunidade

internacional, objetivava angariar recursos financeiros para a modernização da

economia.

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48

Tais medidas foram seguidas por uma política monetária contracionista. O

governo liberalizou o comércio exterior e o mercado de câmbio, além da preparação

do programa de privatizações. Esse conjunto de reformas implicou na redução

gradual do produto interno do país até 1999. Primeiro ano de crescimento

consolidado pós a adoção das medidas. Assim, ao contrário do pretendido por

Moscou, a adequação às políticas macroeconômicas de livre mercado não

assegurou a atração do investimento necessário para alavancar o crescimento do

país25. A situação crítica da economia agravou-se com as sucessivas crises de

países em desenvolvimento, resultando no empobrecimento da população e no

aumento da vulnerabilidade e dependência do país ao fluxo financeiro internacional.

A redistribuição de renda, decorrente do processo de transição para a

economia de mercado, produziu alteração nas classes possuidoras das riquezas no

país. A introdução da legislação sobre o funcionamento de empresas, o trabalho

individual, propriedade estatal e a formação de joint ventures permitiram, num

primeiro momento, o surgimento de pequenas empresas no setor de serviços e a

criação de empregos na área privada.

Até então, o processo de desestatização dirigia-se para um sistema

econômico com riqueza desconcentrada, formada por pequenas e médias empresas

e com a formação de um Estado com papel meramente logístico e regulador. No

entanto, tal projeto não subsistiu.

As leis que orientavam esse processo iam de encontro à expectativa dos

“siloviki” (burocratas de alto escalão relacionados a órgãos de espionagem da União

Soviética que se tornariam, posteriormente, a elite política da Rússia). O projeto

desse grupo social, segundo Pomeranz (2000; p. 37), direcionava-se em três

sentidos. Primeiro, a transformação de cooperativas em joint ventures que dariam

origem a grandes empresas. A criação de grandes grupos econômicos, a partir de

bancos setoriais dos quais eram encarregados, durante o processo de

desestatização. E, por último, a criação de unidades comerciais independentes,

como marketing e vendas, pelas quais as empresas podiam vender produtos acima

dos valores estabelecidos pelo governo. Assim, forjou-se a base para a

concentração da propriedade no período posterior às reformas econômicas. Os

25 Vide a dificuldade de liberação dos recursos associados aos empréstimos obtidos junto ao FMI para a

transição de mercado, durante os anos 1990, como já afirmado anteriormente.

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siloviki agregaram grande parte dos fatores produtivos durante o período de

adaptação do país à economia de mercado.

A etapa seguinte da modernização, representada pela privatização do

dinheiro, reforçou a concentração de renda que se colocava sobre a sociedade.

Nessa fase, foram colocadas à venda, por intermédio de leilões, as empresas

estatais mais lucrativas do país. Essas ações foram arrematadas pelos maiores

bancos da Rússia, em sua maioria, controlados pelos siloviki. Assim, o controle

acionário das empresas russas passa ao domínio da elite burocrática próxima ao

Kremlin. Forma-se, então, um vínculo permanente entre a elite econômica e o centro

político da Rússia.

A crise de 1998 constituiu, não obstante a deterioração na renda

decorrente da recessão, um divisor de águas nas turbulências pós-fim da Guerra

Fria. A moratória russa, decorrente dos altos valores da dívida externa,

aproximadamente US$ 120 bilhões de dólares, e da dificuldade para obter

financiamento em virtude das crises nos mercados emergentes mostrou-se

favorável, no longo prazo ao país. A desvalorização do rublo, o aumento da

produção industrial, o crescimento do valor das commodities em 1999, e a vitória

eleitoral de Vladmir Putin colocam novo impulso na economia russa.

Nesse sentido, a retomada do crescimento baseou-se essencialmente na

exploração dos recursos obtidos com a exploração de gás e óleo. Atualmente, a

Rússia é um dos mais importantes atores no mercado de energia mundial. As

reservas de gás são estimadas em 23,7% das jazidas mundiais. As reservas de óleo

cru constituem cerca de 5,6% do mundo. A quantidade exportada chega, contudo, a

12,9% no caso de petróleo e de 17,6% de gás natural do nível mundial. A produção

de petróleo é dividida entre seis grandes empresas, enquanto que a exploração

econômica de gás é praticamente monopolizada pela Gazprom, com

aproximadamente 80% da produção russa.

Após a dissolução da União Soviética, a Rússia herdou a maior

quantidade do vasto complexo energético do país, compreendendo gasodutos,

refinarias, e os gigantescos recursos de óleo e gás, presentes na Sibéria oriental,

nas montanhas Urais e no planalto central siberiano. Não obstante o legado

deixado, durante os anos 1990 não houve acréscimo na extração tanto de óleo

quanto de gás, consoante o período de turbulências econômicas. Essa situação

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continua até a crise de 1998, quando em apenas 2 anos o preço de petróleo

triplicou. A desvalorização do rublo auxiliou no aumento das exportações26, uma vez

que tornava a produção energética russa menos onerosa para outros países.

A incapacidade de explorar eficientemente a produção dessas

commodities e a crise interna do país impediram, durante a década de 1990, a

utilização completa do complexo industrial. Isso decorreu da incapacidade de obter

créditos internacionais no período, em virtude da instabilidade no mercado financeiro

internacional. Assim, a alternativa a esse cenário constituiu na abertura parcial do

mercado de fornecimento de commodities. Houve a tentativa de aumentar a

produção pelo governo russo com os acordos de compartilhamento de produção

(PSA – Production Sharing Agreements), permitindo que empresas transnacionais

explorassem as reservas russas.

O acréscimo no valor das commodities permitiu o avanço da produção de

petróleo e gás no período posterior a 1999. Os recursos obtidos com os lucros da

venda das matérias-primas permitiram o investimento em tecnologia e

desenvolvimento de outros setores mediante subsídios. O aumento de importância

dessas empresas nessa economia demonstra a capacidade de barganha dessas

companhias com o governo russo. As empresas controladas diretamente por

Moscou exercem grande papel na política externa russa.

Tabela 2 – Exportações russas de commodities (minério de ferro, carvão,

petróleo cru, derivados do petróleo, gás natural e energia elétrica) entre 1995 e 2010

26 Em 17 de agosto de 1998, o governo russo adotou diversas medidas para conter a crise, tais como:

adoção do câmbio flutuante, desvalorização do rublo, não pagamento da dívida interna e moratória de 90 dias

concernente a dívidas com bancos privados.

1995 2000 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Minério de Ferro e concentrados 23.1 15.8 47.7 39.3 51.0 89.2 44.5 83.4

Carvão 34.3 26.3 47.2 47.5 54.7 79.6 70.1 79.4

Petróleo cru 107.0 175.0 430.0 412.0 470.0 663.0 407.0 545.0

Produtos derivados de petróleo 105.0 174.0 348.0 429.0 465.0 676.0 387.0 529.0

Gás natural per 61.3 85.9 151.0 216.0 234.0 354.0 249.0 273.0

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Fonte: Federal Statistics Service – Rússia (2011)

O cenário após a crise de 1998 facilitou a exportação dessas commodities

para os países da Comunidade dos Estados Independentes. À reduzida capacidade

de exportação verificada depois da fragmentação da União Soviética, onde apenas o

Turcomenistão possuía recursos e infra-estrutura necessária para prover os países

do Cáucaso com gás, mesmo no inverno, ocorreu a retomada da capacidade

exportadora. Consolidou-se, então, a Gazprom como fundamental provedora de gás

à maioria dos países do Cáucaso, como a Geórgia.

Essa conjuntura auxiliou as reformas institucionais e econômicas

empreendidas por Putin. O aumento na arrecadação tributária e na retomada do

crescimento assegurou os meios financeiros para a centralização das unidades

federativas e do Judiciário. O governo russo procurou, a partir desse momento,

centralizar a transferência de recursos às unidades da Federação, concentrando os

dispêndios sob os auspícios do governo central. A transferência monetária também

auxiliou o projeto de fusão entre as unidades mais ricas e as menos favorecidas da

federação.

O aumento dos preços das fontes de energias exportadas pela Rússia

estimulou o crescimento do país doravante, que chegou à média de 7% ao ano.

Hoje, o setor energético responde por, aproximadamente, 25% do Produto Interno

Bruto da Rússia. O valor desse setor na balança comercial é ainda maior,

correspondendo a 50% das exportações russas. O setor energético é, portanto, o

mais dinâmico setor da economia.

4.2 SUPERPOTÊNCIA ENERGÉTICA

A alteração da perspectiva econômica, causada pelos lucros com a venda

de petróleo e gás, consubstanciaram o revisionismo da Rússia na esfera

1000 m³

Energia elétrica por 1min./Kwh 23580.0 16855.0 28575.0 36043.0 33907.0 52623.0 44027.0 53923.0

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internacional. A perda da predominância militar e política, decorrente do nível de

superpotência, reforçou o efeito do crescimento econômico por intermédio da

energia na política externa. Tornou-se, portanto, fundamental a utilização da energia

como elemento instrumental da conduta russa no exterior. O aumento da utilização

de energia como instrumento de político externa explora a interdependência dos

interesses russos com outras regiões e países, como a Europa e os países da

esfera de influência natural russa – isto é, os pertencentes à comunidade de países

independentes e do leste europeu.

O conceito de superpotência energética tem, amiúde, sido empregado

para conceber essa participação internacional permeada pelo controle de recursos

energéticos27. Essa acepção implica o emprego e incentivo de conflitos de

suprimento de energia para a consecução de interesses nacionais russos.

Assim, a política externa russa associa-se ao desenvolvimento da indústria

energética para a obtenção de dois resultados maiores. Revisionismo, por um lado,

com o intento de formar um mundo multipolar, próximo ao tipo presente durante o

concerto europeu, com potências tanto desenvolvidas quanto em desenvolvimento,

obtendo maior destaque na definição dos rumos de política internacional. O Kremlin

busca, dessa forma, reduzir a importância estratégica dos Estados Unidos e reforçar

o poder de barganha dos Estados em foros multilaterais.

E, por outro lado, busca recriar o predomínio na tradicional esfera de

influência no seu entorno. O emprego de práticas envolvendo questões energéticas

é mais intenso nesse âmbito geográfico, uma vez que há o objetivo de manter o

status quo anterior à dissolução da União Soviética nesses países. As premissas de

um jogo de soma zero constituem-se então como válidas, uma vez que qualquer

perda significativa de poder nessas regiões representa perdas razoáveis de poder

de dissuasão para o governo russo. A alternativa de utilização da diplomacia

energética é, nesse cenário, essencial para a integridade dos interesses russos nas

suas fronteiras problemáticas.

27 Trenin e Sakwa, bem como diversos outros autores, utilizam esse termo para relacionar o controle de

reservas energéticas com a teoria de jogos, especialmente ao ressaltar o poder de barganha obtido com a

capacidade energética de países produtores – Irã, Arábia Saudita também costumam ser incluídos nessa

categoria.

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O Conceito Nacional de Segurança da Federação Russa28, aprovado em

2000, enfatiza a política externa econômica. O emprego de termos ressaltando a

utilização dos recursos naturais para a obtenção dos interesses do Estado ressalta o

convencimento da burocracia russa de que os instrumentos de política energéticos

podem substituir a perda de poder duro em virtude do fim da União Soviética.

Os seis objetivos de política externa levantados por Janusz Bugajski - ao

mencionar Seika (2011; p.8) - proporcionam uma caracterização importante da

política externa russa em função do emprego dos recursos energéticos na política

internacional. Assim, ele descreve os objetivos energéticos russos: 1) a expansão da

influencia de política externa para retomar parte do poder de barganha entre os

países da esfera de influencia; 2) promoção de monopolização do fornecimento de

energia dos países próximos; 3) consolidar dependência política do fornecimento de

energia e investimento de capitais nos países da CEI; 4) limitar a aproximação do

Ocidente com os países da CEI; 5) reconstruir o prestigio global pela liderança dos

países do Exterior Próximo e retomar o status de superpotência; e 6) eliminar a

unipolaridade americana ao restringir a convergência entre Europa e Estados

Unidos.

A expansão do poder de barganha com outros países é um fenômeno

recente, decorrente em grande parte do processo de privatização das ex-repúblicas

soviéticas29 e dos recursos obtidos pelo alto preço das commodities destinados a

esses países. O processo de transição de economia de mercado dos países da CEI

abriu possibilidades de investimentos diretos às grandes empresas estatais russas.

O investimento em infra-estrutura e no setor energético, especialmente na

distribuição de gás e energia elétrica permitiu assegurar maior poder de barganha ao

Estado russo, em virtude da atuação das gigantes estatais.

A utilização da energia para viabilizar os interesses russos é, amiúde,

realizada mediante o expediente de suspensão do fornecimento de energia. Como a

demanda de energia nos países europeus e, mais recentemente – antes da crise

financeira de 2008 -, nos países da Comunidade de Estados Independentes é

crescente, a dependência da fonte russa reforça as possibilidades do governo russo

28 Os documentos basilares da política externa russa citados nessa dissertação podem ser encontrados

em inglês no site do Ministério das Relações Exteriores russo: http://www.mid.ru/ns-osndoc.nsf/osnddeng. Acesso em: 30/04/2012.

29 Empresas estatais russas foram beneficiadas com o processo de privatização em diversas ex-

repúblicas, como ocorreu, por exemplo, no caso da Geórgia.

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reverter situações desfavoráveis aos seus interesses. As interrupções também são

utilizadas com a finalidade de modificar as tendências políticas domésticas nas ex-

repúblicas soviéticas. Desse modo, afirma Sireika (2011; p. 11) que houve casos de

interrupção de energia na Lituânia (2006), Geórgia (2006) e Ucrânia (2006).

A promoção da monopolização do fornecimento de energia é

conseqüência natural da proximidade geográfica com os países e dos altos custos

relativos das alternativas energéticas existentes. A permanência do crescimento dos

países europeus, até 2008, aumentou o fornecimento de gás para aquela região. A

previsão da União Européia de aumento do uso de energias renováveis (espera-se

que as fontes renováveis sejam responsáveis por 20% da matriz energética européia

em 2020) não afeta as expectativas do governo russo de aumento do consumo de

gás natural no continente europeu. As possibilidades de diversificação das fontes

encontram obstáculo nos altos custos de transporte das matérias-primas, em virtude

da distância entre os centros consumidores e as fontes energéticas; bem como do

alto valor agregado necessário para a construção de gasodutos. Assim, espera-se

maior fortalecimento da participação no mercado europeu da produção russa nos

anos vindouros.

Nos países do Cáucaso, após o desmantelamento da União Soviética,

apenas o Turcomenistão possuía capacidade e mecanismos efetivos de transporte

adequados para o fornecimento de energia para a região. A queda do regime

socialista, bem como as turbulências econômicas já demonstradas, reduziu a

capacidade das empresas russas, que passavam por um processo de reajuste para

integração ao mercado internacional, de fornecer uma oferta suficiente. Não

permitindo, portanto, o fornecimento adequado de energia. Tal situação foi

contornada com a reviravolta ocasionada pelas medidas tomadas para enfrentar a

crise de 1998, o crescimento do país impulsionado pelos altos valores das

commodities e a transição para a economia de mercado dos países do Cáucaso. O

processo de privatização, realizado por esses países, permitiu o investimento dos

recursos obtidos com a venda de commodities no setor energético, ao assegurar

maior parcela de controle das estatais russas sobre a produção e distribuição de

energia na esfera da CEI.

Reforçou-se, portanto, a dependência dos países em função do Estado

russo. O controle do fornecimento de energia constitui um instrumento importante de

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pressão externa para o entorno da Rússia. As condições climáticas adversas,

principalmente no inverno, permitem ao governo russo manipular o apoio das

populações aos governos locais conforme a capacidade deste prover energia. O

corte ou não de energia no período imediatamente anterior a eleições é um recurso,

amiúde, utilizado para demonstrar o partido associado aos interesses do governo

russo. A dependência é ampliada, de outra forma, pela extensão dos investimentos

russos a outros setores, como por exemplo, o complexo bancário e as empresas de

infra-estrutura. Assegura-se, dessa forma, o controle dos financiamentos e da oferta

monetária, permitindo o controle por Moscou de um elemento desestabilizador dos

governos na região.

A aproximação dos países da CEI com órgãos multilaterais do Ocidente é

vista com suspeição pelo governo russo. Tal estratégia, concebida como forma de

aumentar o poder de barganha das nações da esfera de influência russa, intenta

reforçar uma alternativa ao domínio russo mediante associação com a União

Européia ou com órgãos vinculados ao poder americano. A inclusão dos países do

Leste Europeu à União Européia é percebida por Moscou como uma tentativa de

reduzir a influência em região essencial para os interesses nacionais russos. A

adesão da Ucrânia, por exemplo, constitui entrave à transferência de gás para a

Europa, uma vez que constitui um impedimento à liberdade para a fixação do preço

e para o fornecimento de gás para a Europa.

A adesão de países da esfera natural de influência russa para a

Organização do Tratado do Atlântico Norte, por outro lado, reforça a idéia de

contenção da expansão russa, veiculada no interesse velado de reincorporação de

certas áreas pertencentes a países da CEI. A pretensão da Geórgia de adesão à

OTAN, expressada com força enfática desde a Revolução Rosa de 2003 (melhor

analisado nos capítulos abaixo), possui o intuito de diminuir a possibilidade de

dissolução do país. Os territórios da Abecásia e Ossétia do Sul, já reconhecidos

como países independentes por Moscou, seriam num segundo momento anexados

ao território russo. A integração da Geórgia à OTAN tolheria a possibilidade russa de

obter esses territórios.

A utilização de uma diplomacia energética permitiria, dessa forma, ampliar

os vínculos de dependência das ex-repúblicas soviéticas com a Rússia,

restabelecendo gradualmente o domínio sobre as regiões sob o controle da antiga

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União Soviética. Assim, restabelecer-se-ia a área de influência russa como

precondição para o ressurgimento russo como superpotência. O conteúdo desse

termo seria, não obstante o antigo poderio militar e político do país,

substancialmente vinculado as perspectivas energéticas. A idéia de estabelecer um

controle econômico sobre esses países, com vistas a estabilizar os conflitos

separatistas da fronteira russa, permitiria restabelecer o prestígio nacional e reformar

a atual posição russa nas relações internacionais.

4.3 POLÍTICA EXTERNA ECONÔMICA RUSSA NA

GEÓRGIA

No período entre 1992-1995, como foi dito acima, o colapso econômico na

Rússia impediu qualquer tipo de fornecimento de energia à Geórgia. A participação

russa limitou-se a permitir o transporte de gás por intermédio dos gasodutos que

passavam no seu país dirigindo-se ao território georgiano. Assim, o Turcomenistão,

único país com condições de exportar gás logo após o fim da União Soviética,

contou com a anuência russa para tratar negócios com a Geórgia. Foram então

assinados, em 1992, dois acordos: um com o Turcomenistão, relativo ao transporte

de gás para a Geórgia; e outro com a Rússia, permitindo o transporte da matéria-

prima ao país do Cáucaso.

Esse cenário razoável para as três partes logo se deteriorou. A Rússia,

necessitando obter maiores recursos para diminuir os efeitos da crise econômica,

determinou o corte de todos os tipos de fornecimentos de energia ainda existentes,

especialmente para os países bálticos. O fim dos contratos, decorrente da reiterada

prática de não pagamento pelo fornecimento de gás e petróleo, foi seguido pela

ameaça do Turcomenistão em interromper a transferência de gás para o Cáucaso e

a Ucrânia. Diante da pressão interna, o governo Shevarnadze30 procurou assegurar

a única fonte existente e, durante visita ao Turcomenistão, em 1993, efetuou acordo

para troca de bens em face de aumento no fornecimento de gás. Contudo, não

30 Shevarnadze foi presidente do Conselho de Estado da Geórgia entre 1992 e 1995. Governou o país

como presidente entre 1995 a 2003, quando foi deposto com um golpe de Estado.

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57

obstante a garantia de fornecimento, aumento considerável no preço do gás,

afetando a popularidade doméstica da administração georgiana.

Assim, até 1994, houve o funcionamento desse acordo. Porém, a grave

desestabilização no Turcomenistão31, no período de 1993-1994, impediu

efetivamente a estabilidade dessa transferência. A impossibilidade de contar com a

oferta segura do vizinho do Cáucaso permitiu a assinatura do acordo que previa a

construção do gasoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC) com a finalidade de diversificar o

fornecimento do país por meio do Azerbaijão.

Não obstante os esforços para diminuir a vulnerabilidade externa, o

aumento dos gastos com o gás importado pelo Turcomenistão provocou uma crise

em virtude dos débitos decorrentes do gás. O acordo foi, portanto, cancelado em

1995. Entretanto, a economia da Geórgia iria sofrer ainda mais com a política

monetária contracionista da Rússia, levando a uma queda na oferta de rublos

disponível (moeda ainda largamente utilizada nas ex-repúblicas soviéticas). Tal

política ocasionou o colapso da economia georgiana.

Os problemas de controle efetivo do território enfrentados pelo governo

georgiano, uma vez que decorrentes dos movimentos separatistas na Abecásia e

Ossétia do Sul e do caos econômico proveniente das transformações para a

economia de mercado, tornou possível ataques a vários gasodutos. A dificuldade em

manter a infra-estrutura de distribuição de gás permitiu a manipulação dos preços

pelo Turcomenistão enquanto persistiu o acordo. O governo georgiano não tinha

conhecimento do volume obtido, uma vez que não havia mecanismo de

mensuramento da quantidade de gás, conforme Jervalidze (2006; p. 12), devido à

falta de equipamentos. A crise interna, em virtude dos movimentos de secessão e do

aumento progressivo do déficit público em função da manipulação da dívida de gás,

fez com que a Geórgia se aproximasse da Rússia. A adesão à Comunidade de

Estados Independentes, em 1993, ocorreu nesse contexto de obter uma alternativa

ao gás do Turcomenistão pela compra de energia russa.

Houve, posteriormente, a entrada da empresa privada russa Itera no

mercado energético da Geórgia. Essa empresa é constituída por capital privado da

Rússia e do Turcomenistão, com a GAZPROM possuindo cerca de 20% das suas

ações. A partir de 1995, quando houve o início de comercialização de gás em nível

31 As razões para as instabilidades no Turcomenistão consistem no radicalismo islâmico, escassez

frequente de alimentos, grupos criminoso, ineficiência das instituições formalmente democráticas.

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58

individual, a empresa Itera passou a fornecer gás para a Geórgia com preços mais

brandos. No entanto, conforme a política de atualização de preços de petróleo do

Kremlin, a companhia formalmente privada começou a aplicar as interrupções de

fornecimento como forma de pressionar o governo da Geórgia a negociar novos

contratos, ao especular acerca da quantidade de gás transferido ao país, uma vez

que ainda não havia capacidade instalada no território georgiano para aferir os

valores das remessas de gás.

A transição para economia de mercado na Geórgia viria a fortalecer ainda

mais o poder de barganha russo no país. A privatização da distribuição de energia

elétrica por preços abaixo do nível de mercado das empresas estatais possibilitou o

controle russo da distribuição de grande parte da energia interna, inclusive da capital

Tbilisi. Assim, houve o progressivo aumento do poder de mercado das empresas

russas, principalmente daquelas relacionadas ao setor de energia da economia

georgiana. A Itera tornou-se uma empresa com controle monopolístico do setor

energético da Geórgia.

Durante os anos seguintes, a dívida para com a Itera aumentou

progressivamente. Em 2002, o governo da Geórgia iniciou tratativas para realizar um

acordo para solucionar a problema das dívidas. A Itera empregou o instrumento da

interrupção de energia para forçar o governo a negociar a dívida crescente com o

apoio da diplomacia russa. A resolução do impasse incorreu na aquisição de mais

empresas do setor energético pela companhia russa em troca do pagamento das

dívidas. Assim, como está descrito em Jervalidze (2006; p.14), ao invés de encontrar

uma solução viável para a crise energética, a Geórgia logrou aumentar a

dependência como parceira da Rússia.

As críticas a esse acordo, que consolidava a vulnerabilidade energética do

país, provocaram o recuo do governo da Geórgia. Houve, então, a recusa na

assinatura do acordo e a declaração de que o país procurava uma alternativa para o

fornecimento de recursos energéticos provenientes da empresa privada. A

alternativa adotada pelo governo consistiu, não obstante o discurso de redução da

dependência da Rússia, no fornecimento energético por intermédio da gigante

estatal russa Gazprom.

Entre 1995 e 2002, o ressurgimento de conflitos nas regiões da Ossétia do

Sul e Abecásia recrudesceu, na forma de ataques terroristas e sabotagem de

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gasodutos, a situação já caótica de fornecimento de energia. A ausência de

estabilidade na porção norte da Geórgia acarretou interrupções de energia,

destruição da infra-estrutura precária de transporte de gás e fornecimento

intermitente de gás para a população. O governo russo utilizou tais expedientes,

ainda que decorrentes de querelas domésticas, para pressionar a elite política

georgiana a adotar medidas favoráveis às empresas russas. A oferta de entrada no

mercado de fornecimento de energia para a Gazprom, consoante a análise de

Jevarlidze (2006; p. 27) inseriu-se na perspectiva de associar a fragilidade de infra-

estrutura à necessidade de uma empresa mais apta a prover os investimentos

necessários à reformulação do complexo energético georgiano.

A eleição de 2003 para o Parlamento demonstrou (já após no período da

Revolução Rosa), contudo, a divisão política na sociedade georgiana. Os grupos

dividiam-se entre pró-Ocidente e pró-Rússia. A aproximação da Geórgia com o

Ocidente é a maior fonte de desentendimentos entre os dois países. O início da

construção do oleoduto TBC32, aumentando a possibilidade de autonomia do

fornecimento e aumentando o intercâmbio comercial com a Europa e os Estados

Unidos constitui um desses problemas. A deterioração da relação entre Geórgia e

Rússia encontrou seu ápice, salvo antes do período da Guerra, durante os anos de

2002 e 2003.

A proximidade entre relações entre os dois países após a Revolução Rosa

revelada pelo apoio russo ao movimento, em 2003, não prosseguiu nos anos

vindouros. A perspectiva de uma era de reformas colocada pelas revoluções

coloridas, tanto a georgiana como a ucraniana, criaram uma percepção de que tais

avanços políticos eram contrários aos interesses moscovitas nesses países. A

tentativa de aproximação com o Ocidente, e especialmente com os Estados Unidos,

representados pela busca de alternativas para o escoamento de petróleo e gás do

Azerbaijão e Turcomenistão, bem como a adesão a comunidades ou foros regionais,

como a União Européia e a Organização do Atlântico Norte, reavivaram a noção de

jogo de soma zero na burocracia russa.

32 Esse oleoduto, cujo nome remonta à capital do Azerbaijão (Baku) , da Geórgia (Tblisi) e do porto de

Ceyhan , na Turquia, demonstra o interesse desses países em abrir uma rota alternativa de exportação de gás e

petróleo que não adentre território russo.

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60

As ações do governo de Saakashvili33 resultaram num programa de

privatizações em grande escala. Essa perspectiva era favorável aos investimentos

russos no país, uma vez que a instabilidade regional e jurídica permitiria a compra,

em sua maioria, de ações de empresas georgianas por companhias russas. A

aquisição de ações com poder de voto e o aumento na participação de empresas no

mercado de energia georgiana constituem o principal instrumento da diplomacia

russa para ampliar a dependência da região, em virtude da importância estratégica

do país no escoamento de petróleo e gás para os mercados consumidores. A

compra de empresas nos anos pós-Revolução Rosa por empresas estatais russas

ou suas subsidiárias garantiu o controle de grande parte do complexo energético do

país.

A Gazprom investiu na compra do gasoduto norte-sul, que perpassa

Rússia, Geórgia e Armênia. Assim, permitir-se-ia maior controle sobre a quantidade

de gás exportado para Geórgia, inclusive com o controle do fornecimento de gás

perante o país também transicional que é a Armênia.

A Rússia, de forma a restringir a possibilidade de novos concorrentes na

suas fronteiras estratégicas, concentra o controle de grande parte dos gasodutos e

oleodutos para transporte de gás e petróleo na região da Ásia Central, Cáucaso e

Leste Europeu para exportação. São sete conjuntos de dutos para exportar os

recursos energéticos no total: Yamal-I(Rússia-Polônia); Luzes do Norte (Rússia-

Bielorrúsia); Soyuz (Rússia-Ucrânia); Bratrstvo (Rússia-Ucrânia); Corrente Azul

(Rússia-Turquia); Norte do Cáucaso (Rússia-Cáucaso); e Mozdok-Gazi (Rússia-

Azerbaijão);

Da mesma forma, em 2005, uma empresa estatal russa Vneshtorgbank

comprou ações controladoras do Banco Unido da Geórgia, o terceiro maior banco do

país. Um ano antes, esse mesmo banco russo havia adquirido o controle acionário

no Armnesbank, um banco armênio. Logo, as subsidiárias buscam tomar controle

dos recursos financeiros da região do Cáucaso com a finalidade de incrementar a

dependência financeira dos países. Procura-se, dessa forma, aumentar o poder de

barganha perante os governos locais, bem como a dependência dos ativos russos

para financiar o aumento dos fatores produtivos da região.

33 Presidente eleito da Geórgia desde 2004. Reelegeu-se ao cargo em 2008.

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61

A proposição, em 2007, do Conceito de Política Externa da Federação

Russa colocando diversas restrições quanto às ações da Geórgia revelam o nível de

tensão que se colocava entre os países. As tentativas de aproximação com a OTAN

e a proposição de saída da Comunidade dos Estados Independentes desagradam a

Moscou. A cooperação militar com os Estados Unidos demonstrou as expectativas

da Geórgia de contrabalançar o poder russo com o auxílio e a cooperação com o

Ocidente.

Não obstante os conflitos existentes, a política externa econômica russa

atingiu alguns sucessos. O intercâmbio entre os dois países mostrou-se deficitário

para a Geórgia em período recente. A segurança energética da região foi

comprometida pela excessiva dependência da Rússia. A formação de importantes

grupos econômicos associados às elites financeiras dos países do Cáucaso permitiu

a expressão de interesses russos por meio de grupos locais. O lobby das empresas

russas, principalmente após a obtenção do controle acionário de bancos passou a

definir-se por programas de âmbito local que objetivavam angariar apoio político aos

interesses moscovitas. A preservação das dificuldades financeiras dos países

auxiliou na desestabilização da Geórgia, garantindo maior poder político pela

concentração do papel de mediação entre os grupos em conflito por intermédio

russo.

A intenção da Geórgia é, desde a Revolução Rosa, reduzir essa influência

russa na economia. A redução da vulnerabilidade externa permitiria a retomada de

certa autonomia do governo na decisão de assuntos econômicos.

Assim, o governo buscou realizar medidas para limitar a intervenção

russa. A construção de gasodutos fora do alcance territorial e econômico russo,

como o duto BTC tenta diminuir a dependência do petróleo e gás russos. A retirada

das forças militares russas do norte da Geórgia, processo mitigado pela

Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, garante maior segurança

política para a burocracia estatal georgiana, inclusive em assuntos econômicos, uma

vez que uma intervenção militar não se torna uma ameaça constante.

A procura de formalizar novas parcerias energéticas como alternativas à

energia russa constitui-se no pilar essencial da manutenção da independência

econômica georgiana. A princípio, a possibilidade de ligação dos dutos de óleo e gás

com instalações exportadoras iranianas asseguraria a diminuição de importação

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russa, bem como estabeleceria relação com um país de mesmo nível, formalizando

uma relação mais simétrica34. A exportação de gás pelo oleoduto BTC também

reforça os laços econômicos com a Europa, garantindo certo nível de cooperação

política, mecanismo utilizado para frear as ações mais ousadas da diplomacia russa

na região.

Ainda que essas práticas de utilização da energia tenham sido aplicadas

com certa recorrência, não se verificou correlação efetiva com a conduta russa e

eventuais benefícios decorrentes dessa. As interrupções de fornecimento nos países

bálticos comprovam que a pressão exercida por Moscou apenas incentivou a

integração com o Ocidente. Na região do Cáucaso, as intervenções econômicas

russas proporcionaram reforço do poder político de Saakashvili, que foi reeleito em

2010, e colocaram a Geórgia fora da Comunidade dos Estados Independentes,

desde agosto de 2009.

As justificativas ideológicas do Kremlin para essa política energética, como

afirma Sireika (2011; p. 15), baseiam-se na noção de superpotência energética, na

visão pós-imperialista da burocracia do governo Putin e na ideologia revisionista que

pretende um mundo multipolar; contudo, fracassam por diminuir o prestígio e a

capacidade de legitimar a conduta russa consoante uma atitude responsável na

esfera internacional. A utilização da política energética como instrumento de poder

duro não obtém resultados significativos, além de reduzir a capacidade natural de

liderança exercida pela Rússia dentro da sua esfera de influência. Há, portanto,

maiores perdas do que ganhos na política externa econômica empregada por

Moscou.

34 Tal possibilidade, uma vez que a Geórgia não tem limites com o Irã, implicaria em elevados gastos

financeiros para a construção de um oleoduto entre os dois países.

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5. GEOPOLÍTICA NO CÁUCASO: RELEVÂNCIA

ESTRATÉGICA DA GEÓRGIA

5.1 REALISMO PRAGMÁTICO

As autoridades russas aplicam uma forma de realismo pragmático na

tentativa de restaurar o domínio de Moscou sobre sua área natural de influência – ou

seja, os países do Exterior Próximo. Tal conceito implica diminuir a importância

americana nas regiões fronteiriças, dividir politicamente os países da Organização

do Tratado do Atlântico Norte, neutralizar a intervenção da União Européia em áreas

de predomínio russo, reduzir o ímpeto de ampliação da OTAN e da União Européia

nas antigas repúblicas soviéticas e restabelecer a esfera de influência econômica e

política na área do antigo império czarista e da União Soviética. A estratégia busca

atuar de forma pragmática e casuística, evitando vinculações ideológicas prévias

que poderiam limitar o âmbito de ação do país na consecução do seu interesse

nacional.

Os objetivos do Kremlin revolvem em torno de uma forma de realismo

pragmático, no qual áreas de conflitos em jogos de soma zero associam-se com

jogos em que a cooperação é considerada mais vantajosa, numa forma de

bangwagoning. A meta primária da política externa moscovita encontra-se na

possibilidade de exercer uma influência predominante na política externa e de

segurança de diversos Estados; e nas alianças com outras potências, buscam

reforçar o multilateralismo com o intuito de reduzir o poderio dos Estados Unidos.

Um mundo de cooperação multipolar é, nesse sentido, essencial para Rússia como

forma de evitar o predomínio estratégico hegemônico dos Estados Unidos nas

relações internacionais.

Quando seus objetivos se encontram em um jogo de soma zero, onde a

perda para uma das partes enceta ganhos para a outra, as estratégias para a

consecução dos desígnios tornam-se pragmáticas. Assim, empregam-se

instrumentos, tanto de poder duro quanto brando, como ameaças, incentivos

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econômicos ou políticos, e pressões para obter predomínio dos interesses russo no

território das ex-repúblicas. A política externa americana, por sua profunda

agressividade principalmente no governo Bush35, proveu uma oportunidade de

diminuir a influência Ocidental no Cáucaso e reforçar os interesses russos, mediante

investimentos financeiros e reforço do auxílio aos países das fronteiras estratégicas.

A cooperação na Guerra ao Terror permitiu a Moscou executar um jogo de barganha

com os Estados Unidos em troca do apoio militar e político no combate aos grupos

terroristas, bem como aos Estados que apóiam causas islâmicas extremistas. O

ambiente turbulento dessa época ajudou no jogo de barganha realizado por Moscou

com seus aliados externos, ao empreender uma tentativa de alterar as condições

atuais do sistema internacional.

A perspectiva russa, hodiernamente, consiste na formação de um sistema

multipolar, com a Rússia como uma das grandes potências a reger as relações

internacionais no pós-guerra mundial. Dessa forma, haveria um sistema

internacional dominado por um concerto mundial entre as grandes potências,

enquanto que os países menores seriam alocados em áreas de influência entre os

países considerados mais importantes. Estabelecer-se-ia um sistema de controle

entre os países maiores, evitando o surgimento de um grande conflito, como uma

guerra mundial. A alteração da esfera internacional mediante o aumento das

capacidades de alguns países, resultando num equilíbrio entre Estados mais

relevantes, restringiria o poder americano, conferindo maior estabilidade às relações

internacionais contemporâneas.

Assim, Moscou prefere a multipolaridade ao multilateralismo. A percepção

russa é de que organizações globais institucionalizadas teriam suas decisões

estratégicas rejeitadas, uma vez que o resultado político poderia divergir da análise

estritamente militar ou política. A multipolaridade aumenta o poder do Kremlin, pois o

trabalho em foros decisórios ou organizações internacionais com poder de decisão

aferido a alguns membros permite maior poder de barganha com as demais grandes

potências. O multilateralismo, no qual o poder é repartido entre diversas partes,

torna-se apenas um mecanismo para induzir à subseqüente aproximação dos países

mais relevantes, permitindo futuramente a formação de um grupo de nações com

35 George W. Bush governou os Estados Unidos entre 2001 a 2009.

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predominância nas relações internacionais. O multilateralismo constitui, portanto, um

passo para um sistema internacional pautado pela multipolaridade.

O objetivo predominante de Moscou em relação ao Ocidente consiste em

reduzir a cooperação no âmbito estratégico entre Estados Unidos e União Européia.

Essa estratégia propõe, como afirma Tsygankov (2010; p. 227), limitar a importância

estratégica da Aliança Atlântica, ao sugerir um acordo de segurança regional em

separado, com a ausência dos Estados Unidos e incluindo a Rússia, tornando a

unipolaridade estratégica atual da defesa da Europa em multipolaridade. A

pretensão russa não é substituir o papel dos militares americanos na defesa

européia, mas repartir essa atribuição com os demais países do continente.

Não obstante o interesse em aumentar a autonomia da Europa em relação

aos Estados Unidos, o objetivo primordial consiste em aumentar o poder de

barganha de Rússia com os Estados Unidos. A retirada do complexo militar

americano na defesa do continente, asseguraria maior relevância estratégica do

arsenal nuclear russo em face do poder de dissuasão dos países europeus. Assim,

recrudesceriam as vantagens militares da cooperação militar com os Estados Unidos

para desarmamento, diminuição de auxílio militar às ex-repúblicas soviéticas ou, até

mesmo, diminuição dos gastos com o desenvolvimento de tecnologia bélica.

No caso da OTAN, a perspectiva implicaria a noção de “segurança igual”,

no qual a Rússia manteria um veto sobre qualquer tentativa de alargamento do bloco

atlântico na sua área de influência. A medida visaria evitar a utilização da

organização como seguradora da integridade territorial dos países fronteiriços.

Dessa forma, impedir-se-ia a possibilidade de um conflito entre Rússia e os países

do bloco, uma vez que não haveria capacidade jurídica de invocar a proteção da

carta para reduzir a ameaça de intervenção ou agressão russa nos países de sua

área de influência.

A política do Kremlin não constitui, portanto, uma conduta orientada por

valores ideológicos, mas concebida dentro dos parâmetros fáticos e da consecução

dos objetivos nacionais. Ao tentar construir uma estrutura sistêmica adequada a

suas premissas, a política externa russa aplica instrumentos ecléticos que concebem

objetivos de curto, médio e longo prazo. A manutenção de uma postura incisiva no

período Putin em assuntos estratégicos, não rejeita a utilização de elementos de

poder duro por Moscou quando há incapacidade de resolução por outros meios. O

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recurso aos conflitos para resolução de problemas aos seus interesses tornou-se,

não obstante, subsidiário de outras formas de relações entre Moscou e os países do

seu entorno.

A alteração na política externa russa, a partir do governo Putin, segundo

Bugajski (2010; p.8) envolve duas razões principais. Primeiro, há uma clara

articulação para a obtenção dos interesses nacionais, com intuito de restaurar a

posição de grande potência no sistema internacional. Segundo, a atenção conferida

por Moscou na consolidação do predomínio sobre as ex-repúblicas soviéticas, visa a

reduzir a importância de outros atores na região, como a China, a União Européia e

os Estados Unidos, ao diminuir a autonomia energética e política desses atores na

proximidade das fronteiras russas.

Ao construir uma nova esfera de influência regional, Moscou emprega uma

estratégia que envolve diversos elementos de poder duro e brando. O crescimento

econômico e as reformas institucionais reforçaram o poder do Estado. Por

conseguinte, a coordenação de políticas pragmáticas na política externa demonstra

o comprometimento russo com a retomada da condição de potência em um sistema

multipolar.

Moscou argüiu-se como defensor do sistema internacional e do direito

internacional, conforme os documentos basilares da política externa russa – o

Conceito da Política Externa (2008) e o Conceito Nacional de Segurança (2000)36.

Dessa forma, ressaltam-se os benefícios do multilateralismo, do respeito às normas

do direito internacional, a prevalência da soberania e da autodeterminação do

estado. A postura de construir uma vertente ideológica, ao advogar a favor da

igualdade e da autonomia dos Estados na unidade internacional, almeja formar uma

alternativa ao intervencionismo dos países ocidentais verificado nos últimos anos,

bem como formar alianças de geometria variável com outras nações em

desenvolvimento.

A pertinência do princípio de autodeterminação dos povos e de não-

intervenção corresponde a outro desígnio coerente com o realismo pragmático do

Kremlin. A alegação de que se deve respeitar a autonomia dos povos para decidir os

rumos políticos do país permite assegurar certa condescendência à repressão dos

movimentos de secessão no Cáucaso e no território russo, uma vez que

36 Disponíveis em: http://www.mid.ru/ns-osndoc.nsf/osnddeng. Acesso: 30/04/2012.

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corresponderia à resolução de um problema doméstico e ao auxílio à libertação de

povos autóctones.

O conteúdo conferido por Moscou a esses princípios consiste na liberdade

ao reconhecimento da independência de regiões consideradas estratégicas para a

Rússia. Tal postura permite conciliar ideologia com os interesses do Kremlin. A

declaração do reconhecimento do Kosovo, apesar de inicialmente contrária ao

entendimento russo, proveu importante substrato político, pois permitiu que o

Kremlin reconhecesse a Ossétia do Sul e a Abecásia como países independentes. A

atuação dos países ocidentais delegou, nesse caso, relevante instrumento retórico à

política russa no Cáucaso, pois permite a manipulação desses conceitos conforme

os interesses russos. Um processo que, futuramente, permitirá a separação jurídica

do território da Abecásia e Ossétia do Sul com a subseqüente anexação ao território

russo.

A reconstrução da esfera de influência, objetivada pelo Kremlin, efetua-se

mediante o progressivo aumento de dependência econômica e política nas ex-

repúblicas soviéticas. O governo russo obsta-se à formação de governos efetivos,

democráticos e legítimos na região que possam rejeitar os interesses russos em

favor do estabelecimento de regimes mais nacionalistas. As revoluções coloridas

constituem, dessa forma, um óbice aos interesses russos já que, geralmente,

implicam em movimentos nacionais que tentam reduzir a predominância do parceiro

maior na soberania do país, como ocorreu na Ucrânia (Revolução Laranja) e na

Geórgia (Revolução Rosa).

O controle de território dos países do Cáucaso também se insere nesse

paradigma. A política de Moscou utiliza-se dos conflitos étnicos nas regiões dos

países da Comunidade dos Estados Independentes para explorar o papel de

mediador nas resoluções dos litígios territoriais, como ocorreu na Geórgia. A

existência de contrabando e de vínculos estreitos entre as elites étnicas locais com a

burocracia do Kremlin possibilita maior controle da política interna dessas regiões. O

conflito pode, portanto, ser estimulado ou restringido conforme a intenção russa de

manipular o poder de barganha na mediação ao seu favor.

Corolário do emprego do elemento anterior é a estratégia de dividir para

governar adotada pelo Kremlin. O estímulo ou restrição dos problemas étnicos,

como foi descrito acima, permite verificar as reações dos Estados ocidentais e das

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organizações internacionais diante da manipulação dos conflitos para obter ganhos

políticos no Cáucaso. A divisão política criada em organizações internacionais, como

a OTAN – por exemplo, relativa à adesão de certos países, como a Geórgia-, em

virtude do caráter relevante da Rússia no sistema internacional, garante liberdade

para a ação da política externa russa na região. A ausência de apoio de outras

potências, subseqüentemente, consagra o isolamento da área como esfera de

influência russa, uma vez que ressalta a impossibilidade do Ocidente de oferecer

uma alternativa viável ao predomínio russo.

A formação de disputas por segurança, segundo Bugajski (2010; p. 13),

permite a Moscou obter concessões e vantagens nas suas posições estratégicas.

Tal comportamento decorre da exploração das contendas pelo Kremlin, tornando-as

mais importantes do que são para o sistema internacional. Assim, conseguem-se

benefícios maiores mediante negociações com os Estados Unidos, a OTAN ou, até

mesmo a União Européia. O abandono da proposta de instalação de um sistema de

defesas contra mísseis na Europa central pelo Presidente Obama foi considerado

pela burocracia russa, conforme afimra Bugajski (2010; p.13), como decorrente da

exploração das crises da ampliação da OTAN, da rejeição ao escudo antimíssil e da

independência de Kosovo.

Almejava-se ainda minar qualquer rejeição maior à conduta adotada pela

Rússia mediante o aumento da dependência energética da Europa para com a

produção de recursos energéticos russos. O acréscimo do nível de dispêndio em

gastos de energia, esperado em virtude do crescimento vindouro da economia

européia e pela ausência de fornecedores próximos, garantirá maior poder de

barganha russo nas decisões concernentes à segurança regional. A construção de

outros gasodutos, fora do âmbito territorial ucraniano, visam a reduzir a ingerência

da Ucrânia na política de preço russa para o continente europeu, bem como

aumentar a dependência do fornecimento energético em função da infra-estrutura

russa.

A crescente relevância de Moscou para a resolução de problemas globais

e regionais assegura, progressivamente, maior importância à política externa. A

cooperação com a Rússia torna-se, então, essencial para a consecução de certos

objetivos, como a estabilização do Afeganistão e do Iraque, a resolução do problema

referente ao programa nuclear iraniano e a destruição do arsenal nuclear norte-

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coreano. Moscou coloca-se, portanto, como parceiro indispensável para a resolução

de temáticas relevantes no âmbito da segurança internacional, algumas das quais a

própria Rússia auxiliou a formar de modo a aumentar a sua importância na regência

da estrutura do sistema internacional.

A criação de divisões políticas internas é freqüentemente utilizada pela

política externa russa para promover um grupo que tenha convergência com os

interesses do Kremlin. O aumento no comércio bilateral, bem como no fornecimento

de energia provêm mecanismos para fomentar a dissociação entre os séquitos

políticos e a população. Na Ucrânia, por exemplo, o periódico desabastecimento de

energia forjou uma divisão entre os que pretendem maior cooperação com a Rússia

e aqueles que desejam aumentar a autonomia do país mediante aproximação com o

Ocidente. A diplomacia do gás pretende, portanto, tornar a energia uma recompensa

pelo bom comportamento consoante os interesses nacionais russos.

O emprego de uma diplomacia eclética, com uso de ameaças e de

mecanismos de cooperação, constitui outro elemento de política externa russa37. A

conjugação de uma postura agressiva com momentos de negociação permite

estimular o diálogo e a concessão de benefícios a Moscou pelas partes envolvidas

durante o processo resolutivo dos conflitos. Essa estratégia objetiva, da mesma

forma, confundir o Ocidente acerca dos objetivos russos no Cáucaso, uma vez que a

retórica russa prega a paz e estabilidade na suas fronteiras, enquanto explora os

conflitos étnicos para obter ganhos territoriais e econômicos.

O Conceito de Política Externa, de 2008, afirma que a Rússia é um país

economicamente emergente, com um ressurgimento como grande potência.

Moscou, segundo Bugajski (2010; p.6), seria regida por cinco princípios nas suas

relações com outros países: a primazia do direito internacional; a multipolaridade; o

fim do isolacionismo; a proteção da população russa no Exterior; e a proteção dos

interesses russos em regiões adjacentes ao território. O documento, portanto,

reafirma os pilares da política externa russa na busca por recuperar a posição

relevante do país na esfera internacional.

37 De forma ampla, a atuação internacional de Moscou pauta-se pelos campos político, estratégico-

militar e econômico. A manipulação dos conflitos internos dos países do Exterior Próximo estaria,

conseqüentemente, vinculada ao âmbito político e estratégico-militar.

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70

A Estratégia Nacional de Segurança (2011)38, que substitui o documento

acima referido, retoma as formulações dos princípios, com a referência a guerras

energéticas vindouras nos países da Comunidade dos Estados Independentes. A

perspectiva que se argúi reside na possibilidade de desenvolver o controle da

distribuição e da exploração das jazidas de energias verificadas na própria Rússia,

Turcomenistão outros países da região. Pretende-se, portanto, assegurar o

predomínio energético de Moscou nos países do seu entorno e transformar essa

pujança econômica em ganhos políticos do governo russo.

Por conseguinte, Moscou utiliza-se da divisão política nos países

ocidentais para reduzir a eficácia das instituições internacionais e, se for possível,

neutralizá-las quando contrárias aos interesses nacionais russos. Os instrumentos

de política externa empregados permitem manter uma imagem de adequação ao

sistema internacional pós-soviético, no entanto tal perspectiva imiscui-se na prática

de um realismo pragmático destinada ao revisionismo, obtendo maior papel na

estrutura das relações internacionais. A predominância nos países do Exterior

Próximo, por conseguinte, torna-se precondição para o retorno ao status de grande

potência, num mundo multipolar.

5.2 EVOLUÇÃO NA COMPREENSÃO PÓS-

SOVIÉTICA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Após a dissolução da União Soviética criou-se certo otimismo nos centros

diretivos da política externa de Moscou, segundo Thorum (2009; p. 29). A

expectativa concernente ao novo sistema internacional surgido após a superação da

estrutura da Guerra Fria permitiria uma ordem internacional mais justa e equânime.

A inexistência de inimigos ou potências fortes o bastante para ameaçar os Estados

Unidos era vista como garantia de segurança internacional para os anos vindouros.

Tampouco a existência de inimigos na região fronteiriça ao território russo, bem

como de países com economias prósperas ameaçava a condição da Rússia como

38 Disponível em: http://www.mid.ru/ns-osndoc.nsf/osnddeng. Acesso: 30/04/2012.

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maior potência no âmbito regional, mesmo durante as convulsões desestabilizadoras

decorrentes do fim do regime comunista.

A transição interna, com reformas para adaptar o país ao regime de

mercado, compreendia também uma alteração na política externa daquele momento.

Assim, a inexistência de atores contrários e o ambiente de suposta segurança

internacional permitiriam uma postura pró-ativa da Rússia em cooperação com

outros países, seja na esfera política, na econômica ou na estratégica. A mudança

no emprego da teoria realista, utilizada até então tanto pelo Império czarista como

pela União Soviética, representava o compromisso com o princípio da solidariedade

internacional como mecanismo para a obtenção do desenvolvimento do país e

retomada gradual do aspecto de grande potência.

O Kremlin buscava ressaltar o conteúdo pacífico da política externa russa

no mundo pós-soviético, em virtude da ausência de inimigos diretos e de um sistema

internacional mais seguro. Os Estados Unidos e os países ocidentais eram vistos

como parceiros para cooperação no médio e longo prazo. Assim, as concepções

liberais da natureza pacífica da seara internacional e dos valores e interesses

similares dos Estados pautaram a política externa nesse momento. O

recrudescimento das relações entre os países incorreria na aproximação entre o

Ocidente e o Oriente, reduzindo as áreas de conflito de interesses entre ambos.

A Rússia passava a compreender a natureza das relações internacionais,

consoante a teoria liberal, de forma positiva. A cooperação baseada nos interesses

compartilhados e valores comuns asseguraria a aproximação entre os países,

permitindo o crescimento conjunto. Assim, esperavam-se investimentos e apoio

ocidental às mudanças realizadas durante o período de transição para a economia

de mercado. A integração proveria os elementos necessários à prosperidade do país

no novo período.

Tal posição sofreu alteração progressiva durante os anos 1993 e 1994. As

lideranças russas continuariam a considerar o sistema internacional do período mais

seguro, contudo a convicção de que a prosperidade econômica alcançar-se-ia

mediante a cooperação desvaneceu com a grave crise econômica que assolou o

país. O unilateralismo americano nas relações internacionais e a prospecção de

ampliação da OTAN na antiga esfera de influência soviética delimitaram as ações

interventivas do Ocidente para a burocracia russa. O sistema internacional passava,

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portanto, a apresentar certo grau de imprevisibilidade, com possível exclusão russa

das relações de poder tanto na Europa quanto na Ásia. Assim, a estrutura do pós-

Guerra Fria consolidava-se como prejudicial aos interesses nacionais de Moscou.

A reação da burocracia russa concentrou-se, segundo Thorum (2009; p.

30), na utilização do conceito de multipolaridade para assegurar os interesses

nacionais. Primeiro, haveria possibilidade de limitar o poder americano uma vez que

o sistema internacional seria constituído por diversas potências regionais. Dessa

forma, a constituição de um mundo multipolar permitiria limitar a atuação estratégica

da grande potência hegemônica pela cooperação com outros países relevantes. E,

em segundo lugar, o conceito de multipolaridade contemporâneo seria construído

com a finalidade de caracterizar as relações interestatais, pois os Estados eram

compreendidos numa competição por poder, concretizado na formação de esferas

de influência. A concentração da política externa na análise de competição por poder

aproximou, novamente, a Rússia da vertente realista das relações internacionais.

Entre 1993/1994 e 2000, houve a prevalência da atuação da Rússia como

país de orientação geopolítica. A ação da política externa, como declarava o Ministro

das Relações Exteriores Primakov39, reside na noção de abordagem soberana dos

interesses russos na área de influência. Apesar de não abandonar a aproximação

com o Ocidente, a Rússia adotava posição mais restrita quanto aos interesses nos

territórios das ex-repúblicas soviéticas. A posição de predominância russa, num

período de crise, era enfatizada devido às características naturais do país em

relação ao seu entorno. Por conseguinte, o tamanho do território, o potencial

científico, o nível educacional da população e o legado cultural russo eram baluartes

do predomínio que a Rússia deveria ter sobre os países próximos e nas relações

internacionais.

A multipolaridade, como mecanismo para reduzir as assimetrias deletérias

a Moscou, provou-se na forma de incremento na relação com outros países. A

abertura de embaixadas nesse período buscou fortalecer laços comuns com países

de interesses convergentes. A participação em grupos de geometria variável

fortalecia o poder de barganha russo nas negociações internacionais, bem como

permitia coordenar posições políticas com as demais potências regionais. A

percepção era de que a política externa russa deveria diversificar suas parcerias e

39 Yevgeny Primakov foi diretor do Serviço de Inteligência russo para assuntos internacionais entre

1991 e 1996; entre 1996 e 1998 exerceu o cargo de Ministro de Relações Exteriores da Federação Russa.

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estabelecer uma conduta ativa, visando a estabelecer-se como um ator global

relevante mediante a manutenção da esfera de influência.

Nos anos 1990, o cenário de concorrência recrudescida na esfera

internacional em virtude das turbulências financeiras, do unilateralismo americano e

da existência de ameaças diretas à zona de influência russa tornou o sistema

internacional coerente com a perspectiva geopolítica. Por conseguinte, a colocação

do Estado russo como nação eurasiana, com interesses distintos na região,

reafirmou o poder interventivo de grande potência regional, ainda que não haja a

consecução de fatores reais de poder que a ratifiquem. O pragmatismo desse

período adequou-se, portanto, aos limites da capacidade de agir moscovita.

A entrada de Putin muda o foco da política externa entre 2000 e 2004. A

ênfase na geopolítica da Eurásia decresceu, mas a relevância do aspecto

econômico ressurgiu. Para os burocratas, incluindo o Ministro do Exterior Ivanov40,

era necessário reafirmar o poder do Estado russo, tanto econômico quanto político,

para restabelecer o papel da Rússia como grande potência no sistema internacional.

As reformas empregadas no âmbito interno consolidariam a capacidade russa de

agir no seara internacional, permitindo maior assertividade no jogo de poder

mundial.

Da mesma forma, buscou-se construir prestígio e previsibilidade nas

relações internacionais, a partir de uma conduta consoante o direito internacional.

Tal liame permitiria maior cooperação com os atores em matérias de relevância

comum. Assim, os instrumentos militares de poder duro constituíram elementos

subsidiários, apesar de sempre implícitos, nas relações de Moscou com os países

do entorno.

A política externa do Ministro Ivanov admitia que os poucos recursos

existentes no país deveriam ser aplicados na modernização interna e não usados

como mecanismo de poder imediato na esfera internacional. Dessa forma, a

construção do Estado após da dissolução da União Soviética permitiria uma

projeção externa, no futuro, mais incidente e coerente com os interesses da Rússia.

O status de grande potência deveria, conseqüentemente, ser merecido pela conduta

externa responsável e pelo crescimento econômico que colocaria a Rússia entre os

maiores países do globo.

40 Igor Ivanov foi Ministro das Relações Exteriores russo entre 1998 e 2004.

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A interdependência entre as nações permeia esse estágio das relações

internacionais da Rússia com o mundo. Uma competição entre países que

enfrentam problemas e temas comuns pode, sendo relativamente alheio às

temáticas de interesse estratégico nacional, implicar cooperação ativa numa conduta

de bandwagoning. Assim, o crescimento da economia russa, por intermédio do alto

preço do petróleo e do gás, asseguraria os elementos de poder necessários à

consecução de uma política externa mais ativa.

Procurava-se transformar o sistema internacional mediante as vantagens

políticas associadas ao controle de recursos energéticos. O fortalecimento

doméstico consubstanciaria a relevância internacional da Rússia. Visava-se, dessa

forma, defender a posição da Rússia como grande potência no cenário global.

Nos anos 2004 a 2007, segundo Thorum (2009; p. 37), as lideranças

russas conceberam as relações externas do país dentro de perspectivas inerentes

às condições internas do país frente ao sistema internacional. Nesse sentido, o

princípio da soberania revestia-se da tentativa de encontrar uma conduta

internacional condizente com a posição da Rússia no mundo, mas também conforme

as possibilidades garantidas pela capacidade contemporânea da nação russa. O

processo que consolidou o poder do Estado central e a economia capitalista, após

as reformas da era Putin, construiu as condições necessárias para uma atuação

mais ativa. A redução das vulnerabilidades observadas durante o período de

transição para a economia de mercado assegurou condições reais da execução de

uma política externa que locupletasse os interesses nacionais, superando as

adversidades decorrentes da nova estrutura do sistema internacional.

O cenário competitivo, na acepção russa, agrava-se com a contenda na

formação de esferas de influência mediante foros ou organismos internacionais. A

atuação da política externa na consolidação de um controle regional decorreria do

grau de convergência na economia, na política e nos valores culturais comuns no

entorno. Assim, as tradições compartilhadas com as ex-repúblicas soviéticas, o

crescimento econômico e o renascimento da industrial militar auxiliariam no objetivo

de estabelecer uma Rússia como uma grande potência independente, associada

com os países do Exterior próximo por intermédio do adensamento das relações

inter-regionais.

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75

A alteração das condições domésticas no período Putin garantiu esse

aumento na capacidade de atuar na esfera internacional e regional. Para Thorum

(2010; p. 37), isso ocorre em dois sentidos. O crescimento econômico, até 2008,

assegura a possibilidade de empregar recursos na consecução de objetivos da

política externa. A compra de empresas energéticas nas ex-repúblicas soviéticas,

por exemplo, buscaria aumentar os laços econômicos com o entorno geográfico,

permitindo diversificar os parceiros econômicos e ampliar a participação russa nos

negócios da esfera de influência. Assegurou-se, portanto, maios dependência com a

Rússia.

A independência econômica e política, decorrente da autonomia provida

pelo crescimento econômico, permitiria a tomada de decisões, amiúde, contrárias

aos interesses dos países ocidentais. Tal condição tornar-se-ia relevante em todos

os aspectos da política externa russa. A independência provê poder de barganha

nos foros internacionais, ao reforçar a reforma do sistema internacional para uma

seara multipolar pretendida por Moscou como forma de reaver sua posição como

grande potência.

Em segundo lugar, há um retorno no emprego da capacidade militar como

elemento de dissuasão. A capacidade nuclear russa41 assegura que a condição

estratégica do país, como uma das maiores potências militares, não deve ser

olvidada na percepção do sistema internacional pós-Guerra Fria. Assim, releva-se a

resposta de que qualquer tentativa de alterar o equilíbrio entre as nações por ações

multilaterais mediante organizações internacionais, uma vez que não solucionada

por meios de resoluções diplomáticos tradicionais, admitiria uma resposta adequada

às ameaças impostas à Rússia.

As possibilidades de cooperar com o Ocidente, não obstante a postura

mais assertiva adotada no segundo mandato de Putin, ainda constituem importante

instrumento da política externa russa. A execução de projetos ou posições em

comum se sujeita, no entanto, à preservação dos interesses nacionais russos.

Quando há tema em que a cooperação é vantajosa à consecução dos objetivos

russos, ocorre a cooperação, ressaltando-se a proteção da soberania e

independência do Estado nacional russo. A participação acionária de investidores

41 Estima-se que, em 2009, as ogivas nucleares russas estariam perto de 2500. Vale ressaltar que o novo

acordo START delimita o número de ogivas em 1550 para os Estados Unidos e a Rússia. Tal meta deve ser

atingida em 2017.

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estrangeiros nas estatais de energia, por exemplo, corresponde ao modelo de joint-

venture e de manutenção do controle acionária pelo governo russo. Ainda que a

participação de empresas transnacionais no setor de energia afetasse o emprego

instrumental de política externa econômica, a busca de maiores investimentos no

setor constituiu uma etapa importante para a modernização do país. Associaram-se

harmonicamente, então, meios de interação entre os países ocidentais com a

manutenção de aspectos importantes da soberania russa.

A relevância da característica econômica da política atual de Putin induziu,

como explica Thorum (2009), à formação de uma “geoeconômica” que orienta a

política externa russa. O projeto russo consiste em criar um sistema energético para

promover e proteger os interesses econômicos nos outros países. O controle dos

mecanismos de distribuição de energia, os investimentos na infra-estrutura e a

compra de instituições financeiras nos países da Comunidade dos Estados

Independentes consistem na criação de uma liderança e dependência econômica

frente aos países do entorno. A política externa russa contemporânea forma-se,

portanto, por intermédio de um ciclo de vulnerabilidade e dependência com a

finalidade de consagrar vínculos de dominação com os países do entorno.

5.3 AÇÕES RUSSAS NA GEÓRGIA

Após o colapso da União Soviética, o Cáucaso surgiu como uma região de

países independentes. A abertura política permitiu a aproximação dos países

ocidentais de uma área com várias vantagens estratégicas e econômicas

decorrentes da proximidade com territórios em conflito – Afeganistão e Oriente

Médio – e da presença de grandes jazidas de recursos energéticos. A concentração

de reservas energéticas e a proximidade com os países árabes, Afeganistão e

Paquistão tornam o Cáucaso uma esfera relevante nos temas de segurança

internacional e de cooperação econômica, inserindo um padrão de competição entre

os países devido à divergência entre interesses.

As discordâncias com a política externa russa provêm da aproximação

com o Ocidente, especialmente com os Estados Unidos e a Europa. Essas alianças

estratégicas visam a contrapor a influência russa na região e, de certa forma, reduzir

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a capacidade russa de intervir na política doméstica da Geórgia. Assim, Tbilisi

intenciona evitar a desagregação do país e o predomínio russo sobre a economia e

política interna.

Desde o início do governo Ieltsin (1991-1999), a Geórgia tornou-se a área

de maior apreensão no entorno russo. A razão principal consistia na Abecásia, onde

conflitos armados eram verificados desde 1989 e foram intensificados com a

declaração de independência da Geórgia. O cenário agravou-se com ataques à

capital georgiana Tbilisi. No entanto, os conflitos foram reduzidos com a entrada de

tropas russas para impedir a fragmentação do Estado. As forças russas, nesse

sentido, mantiveram a soberania do governo da Geórgia.

A Ossétia do Sul, outra região envolvida em litígios autonomistas,

empregou uma guerra de secessão após Tbilisi revogar o status autônomo que

possuía, em 1990. Poucos anos depois, em 1992, a população aprovou em um

referendo o pleito pela independência do país em favor da adesão à Federação

russa. A tentativa militar da Geórgia de restaurar o controle sobre a região dissidente

foi obstada pela capacidade militar da Ossétia e o auxílio financeiro e militar da

Rússia, por intermédio do liame fronteiriço com a Ossétia do Norte (unidade

contígua à Ossétia do Sul, mas já no território russo). As tropas russas, da mesma

forma que na Abecásia, permaneceram cumprindo missão de paz no território da

Ossétia do Sul.

De maneira geral, como descreve Nygren (2010; p. 120), a Rússia pôde

influenciar no desenvolvimento dos conflitos na Geórgia. A relação entre os dois

países, em decorrência do apoio aos movimentos de secessão pela Rússia,

deteriorou-se no período do governo Ieltsin. A segunda guerra da Chechênia42 e,

posteriormente, a guerra ao terror empreendida por Washington levaram à redução

das relações diplomáticas ao âmbito bilateral e, posteriormente, a limitação às

conversas na esfera da Comunidade dos Estados Independentes.

A perpetuidade de conflitos de baixa intensidade estimulados por Moscou,

existente até 2003, não resistiu à eleição de Saakashvili em decorrência da

Revolução Rosa. O novo presidente, eleito em 2004, decidiu unificar toda a Geórgia,

com a perspectiva de subjugar militarmente as regiões apoiadas por Moscou. A

postura beligerante de Tbilisi aprofundou a participação russa nos dois conflitos.

42 A partir de 1999. A I Guerra da Chechênia ocorreu entre 1994 e 1996.

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A proposta de Saakashvili incluiu o reconhecimento constitucional da

autonomia tanto da Abecásia quanto da Ossétia do Sul pela promessa de não

separação do território georgiano. A intenção do presidente implicou no

recrudescimento das relações com as duas regiões. A Abecásia, como descreve

Nygren (2008; p. 142), decidiu entrar em negociações tendo como base a

constituição local da região, não aferindo valor jurídico à Carta Magna da Geórgia. A

partir de então, as conversas foram diminuídas, beirando o impasse entre ambas as

regiões.

Em 2006, a retórica da Geórgia de que grupos armados haviam matado

dezenas de soldados e civis georgianos impulsionou novas críticas. As trocas de

acusações envolvendo conflitos na fronteira da região fizeram com que a Abecásia

dirigisse um pedido à ONU para mediação do conflito, postura apoiada por Moscou,

mas que foi rejeitada peremptoriamente por Tbilisi. A posição adotada por Moscou

passou, em função da relutância à resolução negociada, a rejeitar a intervenção

armada nas duas regiões. E, a condicionar a declaração de independência a

princípios gerais de direito internacional. Assim, caso os direitos humanos de

cidadãos russos fossem desrespeitados ou o território sérvio de Kosovo fosse

considerado uma nova nação, haveria uma reação correspondente russa.

As relações da Ossétia do Sul com a Rússia encontram-se ainda mais

intricadas. O parlamento da Ossétia pediu, ainda em 1992, o reconhecimento da

independência pela Duma. A Federação Russa, desde 1990, denuncia o emprego

de meios militares na tentativa georgiana de retomar o controle territorial do país. A

postura agressiva de Saakashvili, entretanto, impôs a remodelação da vertente de

política externa russa de uma condição neutra e de mediador no conflito para o

suporte da Ossétia do Sul no seu pleito de independência.

Em 2005, o Presidente Kokoity43 reiterou a rejeição de qualquer proposta

política para acordo com a Geórgia, ratificando os termos do referendo de 1992, que

previu a separação do país e integração à Federação Russa. Em 2006, o país

reiterou a rejeição à discussão de seu status jurídico. O governo georgiano, então,

acusou a força de paz russa de convalidar as pretensões tanto de Ossétia quanto de

Abecásia, requerendo a retirada imediata dessas tropas. Conseqüentemente, as

43 Presidente da Ossétia do Sul entre dezembro de 2001 e dezembro de 2011.

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negociações atingiram um impasse e não houve eventos relevantes até aqueles que

culminaram na guerra de 2008.

Os conflitos nessas regiões incorrem também na limitação da política

externa russa pelos compromissos assumidos com os governos locais e a

responsabilidade de proteger a população russa44, uma vez que a maioria do

contingente populacional das áreas litigiosas também possui nacionalidade russa.

Por conseguinte, a secessão desses territórios incorre em efeitos de popularidade

na opinião pública interna, diminuindo a possibilidade de manejo do conflito por

Moscou. O governo encontra-se, portanto, restrito ao apoio tanto à Ossétia quanto à

Abecásia, em termos de proteção dos direitos humanos do contingente populacional

russo na Geórgia.

5.4 DINÂMICA ENTRE A GEÓRGIA E O

OCIDENTE: PONTOS DE ATRITO COM MOSCOU

As relações entre os Estados Unidos e a Geórgia foram, oficialmente,

estabelecidas em 1992. Desde então, a Geórgia considera os Estados Unidos como

garantidor informal da soberania e integridade territorial do país. Os Estados Unidos

têm consistentemente apoiado, conforme Sadri e Burns (2010), os esforços para

evitar a dissolução do território, em decorrência das três regiões separatistas, e tem

provido auxílio militar, econômico e diplomático nesse período.

Os três objetivos essenciais da diplomacia americana na Geórgia

encontram-se em três pilares, segundo Sadri e Burns (2010; p. 127): energia;

segurança; e democracia. A Geórgia é uma rota essencial no transporte de recursos

energéticos, essencialmente gás e petróleo, para a Europa. O oleoduto BTC e o

gasoduto BTE45 abriram o mercado da Ásia Central para o ocidente, sem a

interferência russa. O interesse americano reside, nesse empreendimento, não na

obtenção de energia mediante compra por essas fontes, uma vez que os Estados

44 Não há estimativas confiáveis quanto ao número de cidadãos russos na Ossétia do Sul. Contudo,

especula-se entre 80% a 90% de cidadãos com nacionalidade russa na Ossétia do Sul. 45 Gasoduto Baku (Arzebaijão)-Tblisi (Geórgia)-Erzurum (Turquia). Corre paralelo ao oleoduto BTC.

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Unidos possui outros fornecedores, mas no enfraquecimento do monopólio russo do

comércio de energia.

A resistência em aceitar o predomínio russo no setor consiste em duas

razões, conforme Sadri e Burns (2010; p. 128). Moscou pode lograr um controle de

mercado elevado, possibilitando a manipulação do preço. E, segundo, o domínio

energético pode transformar-se em domínio político nas ex-repúblicas soviéticas.

No campo estratégico, a importância da Geórgia resume-se a constituir um

ponto estratégico para o trafego aéreo dos aviões da OTAN com direção ao

Afeganistão e Paquistão. A rota que utiliza aeroportos na Geórgia e Azerbaijão

assegura o suprimento das forças da OTAN nos dois países. Reduzindo os custos

de transporte, uma vez que provê uma alternativa de via aérea mais curta para as

regiões conflituosas46.

Em decorrência da cooperação com a aliança atlântica, a Geórgia logrou

realizar dois programas militares para modernização de suas tropas. O programa

para treinamento e equipamento de tropas (GTEP) e o Programa para manutenção

e estabilidade de operações (SSOP). O primeiro desses programas, estabelecido

em 2002, já investiu mais de sessenta e quatro milhões de dólares no treinamento

das forças armadas georgianas, grande parte dessa soma investida em contra-

terrorismo. Para a Geórgia, construiu-se um vinculo que permitiria diminuir a

dependência russa nos assuntos de segurança regional.

A Geórgia já vinha participando, desde 1994, do Programa Parcerias pela

Paz (PFP), da OTAN. A integração a esse programa possibilitaria a integração

parcial no mecanismo de segurança do bloco atlântico como uma forma de garantir

a independência da Rússia após a dissolução do bloco soviético. O programa

também agia consoante a perspectiva de adesão gradual ao nível de membro pleno

da OTAN, uma vez intensificadas as relações entre o país e o bloco.

Na seara política, a Revolução Rosa projetou uma imagem externa de

progressão gradual para a democracia no governo georgiano. A eleição de

Saakashvili, um defensor da aproximação com o Ocidente, garantiu a oportunidade

de estreitar os laços com os Estados Unidos e a Europa. À cooperação econômica

seguiu-se, posteriormente, o auxílio militar. A boa impressão na comunidade

internacional da revolução democrática incorreu no acréscimo dos investimentos

46 Permitiria conexão com a Europa, principalmente a partir da base aérea de Rammstein, na Alemanha.

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externos direcionado ao desenvolvimento aos setores de infra-estrutura e

energético.

Da mesma forma que os Estados Unidos, a União Européia compreende a

importância da Geórgia nas esferas de energia, de segurança e de democracia.

Contudo, ao contrário dos americanos, a Europa depende da energia do Cáucaso

para o seu abastecimento. O gasoduto e o oleoduto citados acima, portanto,

constituem-se como mecanismos essenciais para o fornecimento de energia no

continente. A diversificação dos instrumentos de transporte dos recursos energéticos

é essencial para tanto a segurança estratégica quanto econômica do bloco.

A importância da Geórgia, no entanto, não se restringe a isso. O

intercâmbio comercial entre a União Européia e o país caucasiano tem aumentado

com a deterioração das relações com a Rússia. O mercado europeu pode prover

uma alternativa para a exportação de produtos da Geórgia.

A relação especial com a União Européia reflete-se também no que

concerne a aspectos estratégicos. Representantes do bloco europeu reconheceram,

em 2006, a integridade territorial georgiana com as regiões da Ossétia do Sul e

Abecásia. Houve também o início de conversas para cooperação na esfera da

monitoração de fronteiras, estabelecimento de dialogo entre as regiões separatistas

e o governo central, bem como oferta de bons ofícios para a consecução de um

acordo entre as partes.

A reação russa não implicou a contraposição a todas as medidas impostas

pelo Ocidente. Ao contrário, iniciou-se um processo de modernização do estado e da

economia para retomar a assertividade da política externa.

A cooperação com Ocidente, especialmente com os Estados Unidos, no

combate ao terrorismo tornou possível justificar a reação contra a Chechênia

mulçumana nas bases da repressão a células terroristas. A guerra ao terror implicou,

posteriormente, no pedido da Rússia e da Organização para Cooperação de Xangai,

segundo Sadri e Burns (2010; p. 134), para a retirada dessas tropas de territórios de

países da Ásia Central. Na perspectiva russa, esse contingente militar reduzia a

influência do parceiro maior na região, uma vez que reforçava militarmente os

governos aliados de Washington.

A principal ameaça ao predomínio russo deriva, essencialmente, da

condição geográfica de três países. Geórgia, Azerbaijão e Turquia. O corredor

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82

energético que permeia o território desses países abre nova oportunidade de

fornecimento de energia além do controle das estatais russas. Assim, a expansão

dos dutos do BTC e do BTE poderia obstaculizar o monopólio russo na distribuição

de recursos energéticos para a Europa.

Para garantir sua condição como uma superpotência energética, como

afirmam Sadri e Burns (2010; p.135), a Rússia precisa recuperar sua posição como

potência dominante nas regiões da Ásia Central e Cáucaso. Tornar o governo

georgiano mais receptivo aos interesses russos é, portanto, essencial. No entanto, o

período pós-soviético e, principalmente após a Revolução Rosa, o governo

Saakashvili adotaram postura anti-russa, particularmente na questão da Abecásia e

Ossétia do Sul.

O nacionalismo das regiões da Geórgia remonta ao período soviético.

Quando a Geórgia foi incorporada ao território da URSS; Abecásia, Ossétia do Sul e

Adjaria foram integrados ao seu território soviético como entidades autônomas,

preservando parte da soberania frente ao governo de Tbilisi. A identidade étnica e

autonomia política dessas áreas foram preservadas. Contudo, com a dissolução da

URSS e a independência do entorno russo, o primeiro presidente da Geórgia, Zviad

Gamsakhurdia47, aproveitando a euforia nacionalista para reduzir as liberdades das

áreas separatistas, com o intuito de unificar o país.

Em 1990, a Ossétia do Sul reagindo contra as medidas destinadas a

aumentar o controle alfandegário na fronteira russa, realizou um referendo que

aprovou a separação da Geórgia e integração ao território russo. A declaração de

independência da Ossétia acarretou graves conflitos entre a Geórgia e a região

dissidente. A violência apenas foi parada com a intervenção militar russa a favor da

Ossétia. O Presidente georgiano, não obstante o desprezo pela diplomacia russa,

não buscou aumentar as relações com países ocidentais, empregando uma política

externa isolacionista.

A eleição de Shevardnaze como Presidente da Geórgia, em 1992, trouxe

esperanças de aproximação com a Rússia e maior possibilidade de pacificação do

país. No entanto, a rejeição da perda de poder por Gamsakhurdia, que acabou por

liderar uma rebelião contra o recém empossado Presidente, provocou o aumento da

turbulência polícia. A Abecásia, aproveitando o período conturbado, declarou sua

47 Presidente da Geórgia de 1991 a 1992.

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independência, iniciando a secessão da Geórgia. O conflito prosseguiu até que,

novamente, as forças russas interviessem decisivamente, congelando o embate

entre o exército georgiano e os rebeldes.

O estado débil em que se encontrava o governo georgiano proveu a

vantagem necessária a Moscou obter seus objetivos. O governo Shevarnadze,

fragilizado pela derrota militar e pela ameaça representada por Gamsakhurdia,

buscou apoio no Kremlin, ao aderir à Comunidade dos Estados Independentes.

Além disso, a Rússia estabeleceu tropas de manutenção da paz tanto na Ossétia do

Sul quanto na Abecásia.

A intervenção russa logrou, no entanto, preservar a soberania de fato das

duas regiões separatistas, enquanto que a Geórgia contentou-se com a soberania

jurídica sobre os territórios. Contudo, o conflito manteve-se perene durante os anos

vindouros. A manutenção do status quo não resultou no esgotamento dos embates

armados entre milícias georgianas, fomentados pelo ultranacionalismo, e grupos

armados no lado da Ossétia e da Abecásia.

A crise ocasionada pela fraude eleitoral de Shevardnaze, durante a eleição

parlamentar de 2003, ocasionou a perda de poder político do governo. A recessão

econômica, a difusão da pobreza e a corrupção galopante culminaram com a perda

de legitimidade do governo para produzir uma alteração no controle do país. A

Revolução Rosa levou à eleição de Saakashvili, que reiterou a postura de manter a

integridade territorial do país. A redução do contrabando de armas e da

concentração tributária na União, cujo exemplo maior é a submissão da Adjaria48 ao

controle tributário de Tbilisi demonstraram, segundo Nygren (2008), os esforços do

governo em integrar a Ossétia do Sul e a Abecásia à administração central.

A presença de tropas russas impedia, entretanto, as tentativas de

Saakashvili de reduzir o poder dos grupos armados locais. Os constantes fluxos

econômicos com a Rússia e a aquisição de cidadania russa pelos habitantes de

Ossétia e Abecásia aumentaram a preocupação georgiana acerca da separação das

regiões para, posterior, integração ao território russo. A Rússia já havia reiterado

que, caso houvesse reconhecimento da emancipação do Kosovo da Sérvia, em

2008, seria aberto precedente para as duas regiões, aumentando o nível de tensão

militar durante o período.

48 Uma das três regiões com pretensões de separação do território georgiano, juntamente com a Ossétia do Sul e

a Abecásia.

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A realização de um exercício militar na Ossétia do Norte, um mês antes da

guerra, tinha a intenção de estimular a intervenção georgiana na Ossétia do Sul. A

conduta provocativa russa buscava prover uma justificativa para a guerra, uma vez

que as forças armadas atuariam como protetores dos direitos humanitários da

população residente. A constatação de que cerca de mais de 90% da população da

Ossétia é formada por cidadãos com nacionalidade russa reforçaria a perspectiva de

ingerência humanitária. Colocando, portanto, a intervenção militar em conformidade

com o direito internacional, considerado um dos pilares da política externa russa.

Uma vez que a armadilha havia sido colocada, faltava a ação que

justificasse a intervenção. O receio georgiano de nova declaração de independência

da Ossétia do Sul, com o intuito de desligar-se do território georgiano e integrar-se à

Rússia, bem como os constantes ataques de grupos armados rebeldes ao exército

conduziram aos ataques de 7 de agosto de 2008. A Rússia alegando o dever de

proteger seus cidadãos entra no conflito, dizimando as tropas georgianas em menos

de um mês. Em 26 de agosto, a Duma (câmara baixa do parlamento) reconhece a

independência das duas regiões separatistas. A Geórgia rompeu relações

diplomáticas com Moscou desde então.

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6. CONCLUSÃO

O entorno russo apresenta características peculiares. A condição

estratégica das repúblicas pós-soviéticas determinará o nível de relações

empreendidas tanto com Moscou quanto com outros parceiros. Esse padrão de

conduta entre as regiões constituiu-se durante o tempo consoante as interações com

o gigante russo. A região caracteriza-se por dois padrões históricos de longo prazo,

conforme Buzan e Weaver (2003): ondas de contração e crescimento da influência

russa; 2) mudanças no grau de envolvimento com outras áreas, i.e., Europa. Assim,

esse paradigma revela uma continuidade nas interações regionais.

Na Guerra Fria, a relação do Kremlin com as regiões que faziam parte do

domínio soviético apresentava uma caracterização problemática da região: teria a

Rússia criado uma forma de império ou o controle tão cerrado sobre as regiões que

haveria apenas uma única unidade política soberana e diversas competências

distribuídas revelando certo grau de autonomia. A história revela que a configuração

atual da Federação Russa demonstra que o controle soviético foi o maior exercido

durante toda a história daquela região, apesar da manutenção das reivindicações de

maior autonomia.

Por outro lado, as condições eram muito mais abertas do que o sistema

comunista pretendia. Pode-se afirmar que a dissolução da União Soviética em

diversos estados, entre 1989 e 1991, decorre em grande parte da política de

controle da região, mediante a submissão das veleidades étnicas. A característica

de dar a cada unidade do país uma autonomia específica possibilitou a formação de

vários Estados independentes, ainda que vários deles não tenham histórias

diferentes da russa.

A política externa dessas unidades tornou-se, no imediato pós-Guerra Fria

preponderante como forma de reafirmar características identitárias e, principalmente,

como expressão de autonomia frente a Moscou. As unidades pretendiam obter

acordos vantajosos, amiúde, contrários ao poder central. A adequação à nova

realidade depois da alteração do sistema internacional com o final da disputa entre

as duas potências, dessa forma, implica uma adequação ao processo de

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globalização e regionalização, sem olvidar as perspectivas prementes de segurança

na relação com a Rússia.

A reestruturação da integração regional russa ganhou novo sentido com o

governo Putin. O governo, a partir de então, passou a limitar a autonomia de regiões

e a restringir a descentralização regional e a influência das regiões no governo

central. A política de ukrupnenie (“fusão”) almejou criar dependência econômica e

política sobre os estados, conforme o grau de autonomia que eles possam

demonstrar. Perspectiva aplicada, consoante o realismo pragmático da política

externa russa, também aos países do exterior próximo. A política regional russa

adstringe-se, portanto, à assimetria entre as unidades e os países sobre os quais

exerce influência.

A capacidade de manter a autonomia determina o padrão das relações

com o poder central. Há, não obstante, países com capacidade de organização

política e desenvolvimento econômico suficiente para distanciar-se do poder central.

Formou-se, portanto, um sistema de barganha política entre Moscou e os países do

Exterior Próximo, baseada no interesse russo de retomada de predominância na sua

zona natural de influência.

No âmbito doméstico, a segurança doméstica é essencial para a maioria

dos países da Ásia Central e Cáucaso. As elites desses países trocam a autonomia

nacional por apoio externo e a ordem estatal é tão frágil que ameaças à segurança

encetam crises políticas e, até mesmo, guerras civis, conforme afirma Buzan e

Weaver (2003). A “democracia oriental”, definida pelo Presidente Karimov, do

Uzbequistão, é pouco democrática e controlada por círculos familiares das elites

internas.

Para a Moscou, as ex-repúblicas soviéticas inserem-se na sua esfera de

influência pela necessidade de proteger minorias russas nesses países e por um

conjunto de interesses econômicos, sociais e geopolíticos. O termo “Exterior

Próximo” revela a concepção russa para a região, ao combinar o âmbito doméstico

com as relações internacionais.

Na maioria das ex-repúblicas soviéticas, a importância central da

segurança doméstica passa pela viabilidade econômica e política desses países.

Desse modo, seria possível continuar como unidades independentes da Rússia.

Contudo, uma forma de conflito recorrente, reveladora da fragilidade de soberania

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na região, é o pacote de securitização definida pelo trinômio: minoria seccionista/

Estado/ Rússia. A Rússia atua como mediadora dos conflitos, geralmente mediante

pedido do Estado afligido pela tentativa separatista, buscando congelar os choques

entre governo e rebeldes, como ocorreu na Geórgia. Moscou utiliza esses conflitos

para obter vantagens e poder de barganha, ao evitar solucioná-los por completo,

para continuar como fiel da balança quando houver o reinício dos combates.

As mudanças sistêmicas ocorridas na Rússia circunscreveram-se à

integração da antiga economia soviética ao sistema econômico capitalista. Havia,

portanto, necessidade de adequar os fatores de produção domésticos à

concorrência e às inovações da economia globalizada. Nesse sentido, a retomada

do crescimento baseou-se essencialmente na exploração dos recursos obtidos com

a exploração de gás e óleo. Atualmente, a Rússia é um dos mais importantes atores

no mercado de energia mundial.

A alteração da perspectiva econômica, causada pelos lucros com a venda

de petróleo e gás, consubstanciaram o revisionismo da Rússia na esfera

internacional. A perda da predominância militar e político reforçaram o efeito do

crescimento econômico por intermédio da energia na política externa. Tornou-se,

portanto, fundamental a utilização da energia como elemento instrumental da

conduta russa no exterior. Assim, o aumento da utilização de energia como

instrumento de político externa explora a interdependência dos interesses russos

com outras regiões e países.

O conceito de superpotência energética é empregado, recorrentemente,

para conceber essa participação internacional permeada pelo controle de recursos

energéticos. Essa acepção implica o emprego e incentivo de conflitos de suprimento

de energia para a consecução de interesses nacionais russos.

Assim, a política externa russa associa-se ao desenvolvimento da indústria

energética para a obtenção de dois resultados maiores. Revisionismo, por um lado,

com o intento de formar um mundo multipolar, próximo ao tipo presente durante o

concerto europeu, com potências tanto desenvolvidas quanto em desenvolvimento,

ao obter maior destaque na definição dos rumos de política internacional. O Kremlin

busca, dessa forma, reduzir a importância estratégica dos Estados Unidos e reforçar

o poder de barganha dos Estados em foros multilaterais.

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E, por outro lado, busca recriar o predomínio na tradicional esfera de

influência no seu entorno. O emprego de práticas envolvendo questões energéticas

é mais intenso nesse âmbito geográfico, uma vez que há o objetivo de manter o

status quo anterior à dissolução da União Soviética nesses países. As premissas de

um jogo de soma zero constituem-se então como válidas, uma vez que qualquer

perda significativa de poder nessas regiões representa perdas razoáveis de poder

de dissuasão para o governo russo. A alternativa de utilização da diplomacia

energética é, nesse cenário, essencial para a integridade dos interesses russos nas

suas fronteiras problemáticas.

A importância do nível global para a reforma do sistema internacional é,

por outro lado, de extrema relevância para a Rússia. A verificação de um cenário

com recrudescimento de conflitos estratégicos no seu entorno, bem como a

aproximação das ex-repúblicas com o Ocidente revelam a preocupação com a perda

de poder na esfera internacional. Daí deriva a pretensão de manter o Estado russo

como uma grande potência no nível mundial. Isso reflete a vontade russa de lutar

pelo seu lugar no mundo, porém, mais precisamente por um mundo multipolar, no

qual a Rússia é uma das grandes potências, do que um mundo unipolar, o qual se

pauta pela ação inconteste do poder hegemônico. O objetivo amplo da política

russa, portanto, é garantir um mundo multipolar e a posição como potência de

âmbito mundial.

Nas últimas duas décadas, conforme foi visto, a federação russa

empreendeu um processo de modernização das suas relações internacionais. A

transição democrática e econômica do país soviético para inserção na sociedade

internacional do pós-Guerra Fria condicionou o processo de reformulação da

perspectiva russa no seu entorno e nas áreas consideradas estratégicas por

Moscou. Uma nova relação com os países ocidentais e com os países do Exterior

Próximo tornava-se, portanto, essencial para essa transformação política

empregada.

A transição russa apresenta características específicas. Ela

consubstanciou-se pela autonomia e a concomitante alteração estrutural geopolítica

presente após o fim da Guerra Fria. O governo Putin exemplificou essa tentativa.

Putin buscou desenvolver uma nova abordagem para as relações internacionais ao

combinar a tendência russa a uma política de poder com o reconhecimento de certo

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nível de interdependência entre os países, bem como da prioridade de integração ao

sistema financeiro e econômico internacional. Segundo Sakwa (2008; 242),

procurou-se cunhar uma política internacional que reafirmasse os interesses

nacionais, enquanto a Rússia se integrava à sociedade internacional.

Na política externa, o entrave decorrente do condicionamento estrutural

desfavorável levou à modificação da percepção de política externa de Putin, de um

momento de concessões e adequação a unipolaridade estratégica americana para,

posteriormente, um momento de amadurecimento, no qual o comportamento

hegemônico, uma vez intensificado, constituiria ameaça aos interesses russos,

principalmente na Ásia central.

Ao agir conforme as características e moldura do sistema, torna-se

imprescindível compreender a distribuição de capacidades internas e externas que

possibilitem a tomada de ações quando houver interação com as outras unidades do

sistema na seara internacional, conforme a teoria do realismo estrutural de Waltz

(1979). Nesse sentido, a transição verificada com a queda da União Soviética revela

um fenômeno híbrido. Uma alteração nas características domésticas de um dos

países (desmantelamento do vínculo federativo entre os países soviéticos) provocou

alteração na distribuição de poder no nível internacional. Dessa forma, o sistema

internacional teve alterada a correlação de capacidades entre os países devido às

interações políticas internas, ao acarretar renovação da estrutura do SI.

Nas últimas duas décadas, a federação russa empreendeu um processo

de modernização das suas relações internacionais. A transição democrática e

econômica do país soviético para a inserção na sociedade internacional do pós-

Guerra Fria condicionou o processo de reformulação da perspectiva dos interesses

russos no seu entorno e nas áreas consideradas estratégicas. Uma nova relação

com os países ocidentais e com os países do Exterior Próximo tornava-se, portanto,

essencial para adequar a política externa às transformações do sistema

internacional.

Essa política externa decorre da incompatibilidade de elementos

assimétricos na percepção russa do sistema internacional. Na política externa, o

entrave decorrente do condicionamento estrutural desfavorável levou à modificação

da percepção de política externa de Putin, de um momento de concessões e

adequação a unipolaridade estratégica americana para, posteriormente, um

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momento de amadurecimento, após a invasão do Iraque, em 2003, no qual o

comportamento hegemônico, uma vez intensificado, constituiria ameaça aos

interesses russos, principalmente no Cáucaso e na Ásia central.

A política russa para os Estados da Comunidade dos Estados

Independentes revela a reestruturação da política externa russa diante da

incapacidade de associação com o Ocidente. A retomada do eurasianismo tornou-se

o paradigma adotado. Contudo, há novação no conteúdo dessa perspectiva, com a

preferência por investimentos russos na aquisição e desenvolvimento de

infraestutura, commodities e inversões financeiras nos países da Ásia Central para

instrumentalizar a influência russa (poder brando). A política externa econômica

tornou-se, portanto, o mais relevante instrumento de manutenção da esfera de

influência no Cáucaso.

A Geórgia é paradigmática nessa pretensão russa de restabelecimento da

predominância regional na Ásia central. O posicionamento geográfico estratégico

desse país transforma-o em ponto de transição entre a Europa e a Ásia. As

negociações de acordos comerciais na Geórgia iniciaram as tratativas russas para

estabelecimento de zona de preferências comerciais na região. Igualmente, o

investimento de empresas estatais russas nos processos de privatização das ex-

repúblicas soviéticas, modelo utilizado inicialmente neste país, buscava reforçar a

integração econômica entre os países integrantes da CEI.

Assim, a discrepância entre as ambições russas e a capacidade de inserir-

se dentro de um sistema internacional transicional do pós-Guerra Fria determinam

os limites e as expectativas da política externa russa. Assim, os elementos

levantados – regionalismo, economia energética e geopolítica – quando

correlacionados com a política externa russa contemporânea corroboram a

perspectiva de adaptação ao sistema internacional do século XX. Assim, a hipótese

“a guerra na Geórgia indica adequação da política externa russa ao

condicionamento estrutural do sistema internacional do pós-Guerra Fria” demonstra

verossimilhança com os fenômenos ressaltados na dissertação. A atuação na

Geórgia é significativa em virtude das características do país como região de

transição tanto entre Europa e Ásia, mas também como vinculador do modus

operandi a ser seguido para os demais países do Cáucaso.

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91

Para algumas das ex-repúblicas, como a Geórgia, a aproximação com

Ocidente possibilitaria a liberação da vinculação com subserviência à Rússia, bem

como à manutenção da integridade territorial; enquanto que para a Rússia significa

exatamente o oposto. Há, dessa forma, um jogo de soma zero nesse cenário. No

campo econômico, o fluxo de investimentos russos determinaria renacionalização de

capitais perdidos durante a queda da União Soviética, enquanto que para esse país,

haveria receio de que esses investimentos impliquem dificuldades na transição para

uma economia de mercado internacionalmente competitiva, concentrando-se apenas

na exportação de commodities.

Tais conjecturas tornaram-se reforçadas pela conduta assertiva da política

externa russa para a região. O controle do fluxo comercial de bens essenciais para a

manutenção de crescimento econômico dos países da Ásia Central é um

instrumento de poder utilizado recorrentemente por Moscou. O controle da maioria

dos investimentos por empresas estatais russas garante o vínculo com os interesses

estratégicos russos para a região.

Para Wennmann (2004; p. 54), analisando as perspectivas da Geórgia

para o futuro, em 2004, apresentar-se-iam três resultados possíveis decorrentes da

tentativa de harmonização entre premissas tão assimétricas: contra-revolução;

provocação; ou construção de estados nacionais.

O cenário de contra-revolução conecta-se com o problema de expectativas

aumentadas. Os grupos e agentes políticos que perdem poder com as reformas

oriundas das reformas de mercado e política decorrente do fim do período soviético

constituem um amplo número de militantes recrutados com a finalidade de ameaçar

a estabilidade da Geórgia. A manipulação desse contingente humano pode ser

facilitada por um discurso nacionalista e um sentimento de injustiça na repartição do

poder pelo governo reformista.

Numa perspectiva de confrontação, a situação de uma das regiões

autônomas instáveis – a Ossétia do Sul pode ser utilizada pela Rússia como um

conflito de pequena intensidade para restringir a vinculação da Geórgia com o

Ocidente. Grupos nacionalistas e círculos militares opõem-se veementemente à

cooperação estrita do país com a OTAN e os Estados Unidos. Enquanto a cúpula da

OTAN e os EUA têm interesse na Geórgia devido à importância militar da região e à

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necessidade de bases aéreas próximas ao Oriente Médio, mais especificamente

Iraque e Irã.

Na perspectiva de um conflito decorrente da construção dos Estados

nacionais, o Presidente Saakashvili poderia ser pressionado a obter apoio político

com a revitalização de conflitos internos se as reformas empreendidas não

provocassem resultados satisfatórios. Para ganhar apoio, poderia tentar conquistar

tanto a Ossétia do Sul, como a Abecásia, envolvendo o país em uma luta para

construir uma unidade nacional. Assim, o Estado da Geórgia seria o ator principal,

independentemente de conjecturas decorrentes do sistema internacional.

A perspectiva enfática dado ao tema teve repercussão premonitória. A

guerra da Geórgia, em 2008, revestiu-se não de um dos elementos levantados, mas

de todos em algum grau. A guerra revelaria a predominância das assimetrias do

pós-Guerra Fria, e como reverberaria no centro de poder russo. A análise dessas

nuances da política externa russa pôde assegurar melhor compreensão das ações

do Kremlin em direção a sua antiga área de influência.

As causas que levaram à Guerra da Geórgia, nesse sentido, tornam-se

imprescindíveis como constrangimentos estruturais de política externa para todas as

demais repúblicas do Cáucaso, considerando-se a importância geopolítica e

econômica dadas por Moscou para o país na elaboração e difusão das políticas

destinadas a essa região específica. Assim, os caminhos que levaram ao conflito

militar na Geórgia permitiram avaliar a conformidade da política externa russa às

alterações no sistema internacional, e como houve a adequação do Kremlin aos

constrangimentos a atuação internacional durante o período anterior ao embate em

terras caucasianas.

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Anexos

Mapas

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Fonte: SODERLUND, Peter. The dynamics of Federalism in Russia. Abo

Akademi Universisty Press, 2006.

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Fonte: SODERLUND, Peter. The dynamics of Federalism in Russia. Abo

Akademi Universisty Press, 2006.