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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA
A INVENO DE CAIC CARNAVALESCA NAS BATALHAS DA MEMRIA (1980-2009)
Lydiane Batista de Vasconcelos
RECIFE 2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA
A INVENO DE CAIC CARNAVALESCA NAS BATALHAS DA MEMRIA
(1980-2009)
Lydiane Batista de Vasconcelos
Trabalho de Dissertao apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco para obteno de ttulo de Mestre em Histria Regional do Brasil na Linha Cultura e Memria, sob orientao da Professora Dra. Isabel Cristina Martins Guillen.
RECIFE 2010
Vasconcelos, Lydiane Batista de A inveno de Caic carnavalesca nas batalhas da memria (1980-2009) / Lydiane Batista de Vasconcelos. -- Recife: O Autor, 2010. 207 folhas, il., fotos. Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Histria, 2010.
Inclui bibliografia.
1. Histria. 2. Caic (RN) Histria social. 3. Carnaval. 4. Memria. 5. Anlise do discurso. I. Ttulo.
981.31 981
CDU (2. ed.) CDD (22. ed.)
UFPE BCFCH2010/144
AGRADECIMENTOS
As dificuldades que uma pesquisa acadmica impe a quem se propem realiz-
la, apenas se tornam transponveis com a ajuda, compreenso e pacincia das pessoas
com quem o pesquisador convive.Assim, aps rdua, porm prazerosa tarefa, gostaria
de agradecer a todos aqueles que indireta ou indiretamente, contriburam para a
realizao dessa pesquisa. certo que no decorrer do tempo que estive envolvida com
este trabalho, tive a colaborao de muitas pessoas, o que torna impossvel mencionar
aqui todos os nomes.A esses, minhas desculpas e meus agradecimentos.
Comeo agradecendo a minha famlia pelo apoio e incentivo de toda a vida, a
meu pai primeiro historiador que tive contato, a minha me por sua calma em repetir
sempre que apesar de tudo que passamos tudo daria certo.A minha irm Julyana pelo
amor as manifestaes carnavalescas e a minha irm Polyana que ajudou nas
transcries das fitas.A minha tia Graa que me abrigou na casa dela em Recife at o
perodo de concesso da bolsa, meu muito obrigada.
Agradeo profundamente a minha querida orientadora Isabel Cristina Martins
Guillen que com toda pacincia, me apoiou desde o inicio.Em meio a tantas tormentas
pessoais, Isabel esteve presente de alguma forma.
Agradeo a Elisa Mariana Medeiros pelo carinho e amizade durante os anos da
minha graduao, pelos ensinamentos e conselhos sobre a academia mais, sobretudo
sobre a vida. E a todos os amigos que conheci durante longas viagens at chegar no
Campus.
Agradeo imensamente a Erivan Ribeiro por me acolher em sua casa na cidade
de Caic todas as vezes que fui a campo, muito obrigada meu amigo. Meu carinho ao
meu amigo e historiador Larcio Teodoro que esteve sempre comigo, me acompanhou
na pesquisa e que simboliza em seus gestos o sinnimo da palavra amizade.
Agradeo aos amigos do Mestrado, especialmente a amiga Patrcia Alcntara,
que surgiu como um presente, com a qual dividi o apartamento, segredos, lgrimas,
sorrisos e sonhos muitos sonhos e com a convivncia tornou a solido de viver em
Recife mais agradvel. A ris Melo, amiga que propiciou conversas leves construdas
sempre com alegorias cinematogrficas ou literrias, a convivncia com ris foi acima
de tudo um carinho dirio. A Rogrio Frana amigo que me fez rir muito ao gosto de
cervejas e ao som de vrias msicas desencontradas nos bares Bigode e Cavanhaque,
com Rogrio vieram a Lela e o Jairo, pessoas as quais tenho um carinho enorme.
Agradeo a Joo conterrneo das bandas da Paraba, pelo carinho expressos nos abraos
e conversas, sobretudo quando pegvamos o Rio Doce CDU juntos.
Agradeo a professora da UFRPE ngela Grillo pelas indicaes e orientaes
ao trabalho durante as argies na banca de qualificao.
Agradeo aos professores do Programa de Ps Graduao em Histria, em
especial a Antonio Paulo Rezende pelas aulas prazerosas, pelas leituras indicadas e
pelas argies na qualificao e a Antonio Torres Montenegro pelas leituras intensas
nas aulas, por criar o hbito constante de escrita. Aos Antonios nas suas diferenas meu
muito obrigado.
Agradeo a todos os funcionrios dos arquivos da Tribuna do Norte que me
atenderam com tanto carinho, a Zez da Rdio Rural que conseguiu uma parte do
arquivo na rdio. Agradeo aos secretrios da Ps Graduao em especial a Carmen e
Sandra Regina que se fizeram presentes pessoalmente e via email, nos ajudando sobre
os prazos.Agradeo ao CNPQ por ter incentivado este trabalho, fomentando-o
financeiramente com a concesso de bolsa para que me mantivesse durante alguns
meses de minha pesquisa.
RESUMO
O presente estudo objetiva historicizar um problema, qual seja: como foi possvel que Caic passa se a ser nomeada como Cidade Carnavalesca num curto perodo de tempo que compreende dos anos finais da dcada de 80 do sculo passado ao ano 2009 deste sculo? Neste sentido, o presente trabalho busca apresentar quais foram as condies histricas de possibilidade deste deslocamento. Os festejos carnavalescos da cidade, a partir de um determinado momento da histria de Caic passam a ser apresentadas como acontecimentos espetaculares da e na histria da cidade, ou pelo menos isto que alguns discursos querem fazer crer. Buscamos, portanto, historicizar a inveno desta festa, tentando mostrar as relaes de e entre poder e saber que se encontram na sua fundao. Buscando mostrar que so produtos de interesses polticos, econmicos, sociais e culturais de variadas instituies e segmentos da sociedade local, que so efeitos de relaes de foras que pe em jogo e movimentam estratgias que tentam articul-las ao nome e a imagem da prpria cidade. E que para se institurem tentam a todo custo silenciar, mascarar, embotar ou at mesmo matar aqueles que se colocam como o outro nas correlaes de fora com que se defrontam. Analisamos os discursos, os agentes e as instituies que disputam a produo de uma memria hegemnica sobre os festejos da cidade. Palavras-chaves: carnaval, inveno, Caic, memria.
ABSTRACT This study aims to historicize a problem, which is: how could Caic going to be named as Carnival City in a short period of time that covers the final years of the 80s of last century to the year 2009 this century? In this sense, this paper aims to show what were the historical conditions of possibility of this shift. The Carnival festivities in the city, from a certain moment of history Caic become presented as spectacular events and history of the city, or at least that is what some of the speeches would have you believe. We seek, therefore, historicizing the invention of this party, trying to show the relationships of and between power and knowledge that lie at its foundation. Seeking to show that they are products of political, economic, social and cultural institutions and various segments of local society, which are effects of relations of power that brings into play and move strategies that attempt to articulate them to the name and image of the city itself. And that to establish attempt to silence at all costs, masking, dull or even kill those who stand as the other in the correlation of forces faced. We analyzed the speeches, the actors and institutions vying for the production of a hegemonic memory about the celebrations of the city. Keywords: Carnival, invention, Caic, memory.
SUMRIO
Introduo ou Concentrao___________________________________________10 Cap.1. Fazer chover com confetes: os discursos sobre os festejos carnavalescos nos clubes e na rua _______________________________________________________24 1.1.Costurando retalhos: as produes locais sobre os Clubes Carnavalescos______24 1.1.2. Abram alas para os clubes de carnaval: as narrativas sobre os clubes caicoenses____________________________________________________________33 1.1.3. Mscaras no! : as proibies carnavalescas__________________________ 43
1.1.4.Do alto de seus carros: os corsos carnavalescos________________________ 52 Cap.2. Ndoas de Imagens: carnaval, espaos e memrias___________________67
2.1.A institucionalizao do Carnaval de Rua em Caic: o QG da folia_________72
2.1.1.(Re)vivendo carnavais: a Ala Ursa do Poo de SantAnna_________________77
2.1.2. -Re(afirmando) um bloco popular para a cidade: outras narrativas sobre a Ala
Ursa do Poo de SantAnna______________________________________________93
2.2. A inveno de um carnavalesco:nasce Mago _________________________105
2.2.1. Eu tenho fotografias de tudo sobre o carnaval: arquivo pessoal uma
evidncia de si__________________________________________________ 120
Cap.3.Salve o Samba!: As escolas de samba entre passos e(des)compassos___ 132 3.1.Entre sambas e enredos: a trajetria da escola Vila do Prncipe___________134
3.1.1. A populao se amontoava nas caladas para ver os desfiles: as narrativas
sobre os desfiles da Escola de Samba_____________________________________ 149
3.1.2. Entre tramas e sensibilidades: a trajetria da Unidos da Vila do Prncipe nas
vozes dos mais velhos__________________________________________________160
3.2.Remexo nessa caixa de bagunas, bagunas das minhas memrias: as narrativas
sobre a Escola de Samba Nova Portela____________________________________ 169
3.2.1. Eu quero muito ver, antes de eu morrer minha Escola de Samba na
Avenida____________________________________________________________ 184
Apoteose?ou Consideraes Finais?_____________________________________194 Arquivos___________________________________________________________199 Referencias Bibliogrficas____________________________________________200
10
Introduo ou Concentrao
Reinado de Momo, carnaval do interior, burrinhas, assaltos, clubes, corso, escolas
de samba, loucos, Ala Ursa, folia do povo...Tantos nomes adjetivaram nas narrativas,
fossem elas orais ou escritas, os festejos carnavalescos de uma cidade do Serid. O
visitante, que porventura viesse a assistir a um desfile de um bloco carnavalesco nesta
cidade, estranharia a quase ausncia de msica durante o cortejo, pois h apenas dois
carros improvisados um que conduz a orquestra de metais e outro que serve de
amplificador deste primeiro carro. A marcha carnavalesca que est sendo tocada,
geralmente ecoada atravs dos folies que cantarolam as msicas durante o percurso.
A frente do bloco, bonecos gigantes de papel mach marcam a imagem de
andarilhos que povoaram as ruas da cidade durante as dcadas de 1960 a 1980. Os carros
quebram com freqncia, os folies os empurram, o frevo no para. Tudo parece fazer
parte de um grande improviso dos organizadores e dos folies. O estranhamento deste
visitante fictcio pode ser comparado ao que eu mesma experimentei como turista, em
visita a cidade ouvindo as marchas cantadas por folies que se espremiam na Avenida
para brincar o carnaval. Naquele ano de 2005 comecei a me interessar por uma pesquisa
sobre festas populares. Queria saber um pouco mais sobre a cultura daquela cidade,
afinal me impressionava um carnaval no serto. Ao iniciar a pesquisa minha surpresa foi
me deparar no s com a prpria existncia de um carnaval, mas principalmente com
uma quantidade de prticas e significados muito diferentes das formas mais conhecidas
da folia na atualidade.
Existiam clubes carnavalescos da elite caicoense que realizavam bailes
carnavalescos mediante pagamento e que desfilavam em seus carros fantasiados para
serem vistos por outros folies. Que mundo era aquele? Afinal era uma festa popular
ou no? De incio mera curiosidade de uma turista-foli que freqentava o carnaval
daquela cidade, posteriormente, estas perguntas acabaram me levando a presente
pesquisa sobre os discursos que agenciaram Caic como uma cidade promotora de um
carnaval de rua.
Fiz-me uma viajante nesses caminhos traados por passos e palavras, que vo
formando e (de)formando o carnaval da cidade. E de tanto buscar um caminho, querendo
dar conta de sua verdade, deparei-me no com uma histria sobre o festejo, mas com um
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mosaico de poses, um mosaico de gestos, com mltiplas personagens que se imprimem
naquele espao.
E tal como o escritor Bi1, que para salvar a vila de Jav das guas, tinha que por
em papel, as narrativas de origem da cidade, contadas e recontadas inmeras vezes,
juntar as palavras espalhadas nas cabeas e botar as letras no papel. Tambm esta
historiadora quis falar com alguns narradores, saber de suas histrias, para tecer nas
minhas pginas em branco; histrias carnavalescas.
Ao perceber o peso de escrever uma histria cientifica para Jav, Bi folheia as
pginas em branco, do livro posto a sua frente. Pginas brancas que teriam que ser
coloridas com palavras que contassem uma nica verso sobre a grande histria de
Jav.
A cidade que povoa as minhas pginas, colorindo-as outra, assim como os
narradores e as histrias que me foram contadas. No entanto, h algo no fazer dessa
narrativa que me aproxima de Bi. Esta aproximao estaria no processo de cruzar as
diferentes verses e fabricar um texto.
Restando tanto a mim, quanto a personagem apenas os rastros destas histrias,
que postas no texto no pretende dar voz em sua totalidade aos depoentes. Os textos das
entrevistas no habitaro em sua completude as minhas linhas, visto que para compor a
minha narrativa me utilizei de cortes, desfiz as falas, para compor este escrito. 2
Uma vez seguindo estes traados, alguns escritos por jornalistas que procuraram
contar essas histrias carnavalescas, outros desenhados pelas narrativas orais, mltiplas
impossibilidades eram colocadas diante desta historiadora, que ouvindo as narrativas
alheias, passageira do campo dos outros, encontrava em meio a essa pesquisa labirntica,
inmeras falas. No um discurso nico sobre o carnaval de Caic, mas tecidos
discursivos rodos, carcomidos pelas traas do tempo.
E assim como Bi, que vivia atormentado por no encontrar uma nica verso
que desse conta da diversidade de personagens narradas pela comunidade de Jav,
tambm essa historiadora fez com esse emaranhado de verses a escritura deste texto. Foi
1 Refiro me aqui a personagem Antonio Bi, presente no filme: Narradores de Jav, da cineasta brasileira Eliane Caf. Bi funciona no filme como uma espcie de historiador que a partir das narrativas orais da comunidade, tenta escrever a histria da fundao da cidade. 2 ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. Histria: a arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC,2007.
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assim que esta cartgrafa3 de verses se fez presente, unindo essas falas desordenadas,
fazendo-as vibrar no texto. A exemplo desta srie de discursos destacamos:
carnaval para ningum botar defeito.Claro que nada se compara as megafestas de Salvador, Recife ou Rio de Janeiro.Mas guardadas as propores, ningum pode reclamar da falta de opes de carnavais bastante animados no interior do Rio Grande do Norte.Mas do que isso, at.H muito tempo o carnaval potiguar vem sendo marcado mais pela Festa no interior , do que pelos agitos momescos da capital.Cada vez mais Natal vem aumentado suas opes de carnaval este ano, a prefeitura instalou seis plos- na tentativa de segurar os natalenses em casa e impedir que eles fujam em busca das cidades que se localizam Estado a dentro.Mas ainda vai levar tempo para se concretizar.Mais uma vez, os maiores eventos e preferidos pelo povo, so realizados longe da capital.At porque as prefeituras do interior no tem ficado atrs em investimento.Altas quantias so investidas em estruturas gigantescas e inmeras opes de estilos de carnaval so algumas das caractersticas das festas.E interessante notar que, apesar da invaso inexorvel do estilo baiano de pular carnaval, a folia de outros tempos no foi esquecida e o frevo rola solto nos quatro cantos do RN.Resta ao folio escolher a cidade, botar o carro na estrada e ser feliz por quatro dias e quatro noites.4
O artigo acima indicativo da imagem e dos enunciados que a mdia, polticos,
memorialistas e demais segmentos de Caic tentaram construir, se colocando nos lugares
de sujeito deste tipo de discurso para a cidade e sua sociedade ao longo da dcada de
1990. O discurso acima resume e aponta tambm para o enunciado constitudo e
articulado sobre a cidade, qual seja: o de Caic como carnavalesca em todos os aspectos.
Enunciado que tenta produzir a cidade e a regio do Serid5 onde esta se localiza como
3 Uso os conceitos de cartgrafa e cartografia neste texto no sentido em que trabalham Felix Guatarri e Suely Rolnik, cartografia como algo oposto a mapa: cartografia como movimento Ver: Guatarri e Suely Rolnik, Micropoltica : a cartografia do desejo.Petrpolis:Vozes, 1986. 4 Revista: Alegria tambm arte... Ala-Ursa do Poo de SantAna.Digitek Acessrios.Edio n01, Caic-RN,2003. 5Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, IBGE, (BRASIL, 1989) a microrregio do Serid situa-se na poro centro-meridional do Rio Grande do Norte e, atualmente, representado pelos territrios de 17 (dezessete) municpios que so: Acari, Caic, Carnaba dos Dantas, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Ipueira, Jardim de Piranhas, Jardim do Serid, Ouro Branco, Parelhas, Santana do Serid, So Fernando, So Joo do Sabugi, So Jos do Serid, Serra Negra do Norte e Timbaba dos Batistas. Alm da configurao espacial produzida pelo IBGE para o Serid norte-rio-grandense, pode-se considerar uma outra configurao que seria a do Serid historicamente construdo. Este, atualmente, composto pelo territrio de 23 (vinte e trs) municpios que, de forma direta ou indireta, se desmembraram de Caic, primeira municipalidade a se constituir no referido recorte espacial. A reestruturao do Serid, em sua fase recente, foi marcada pelo recrudescimento das manifestaes identitrias. Foi o contedo simblico/subjetivo que a sociedade converteu em argamassa da estrutura regional, ao transformar o seu patrimnio cultural objetos, smbolos, crenas e manifestaes em ncora do processo de reavivamento de sua identidade. A identificao e valorao simblica do espao seridoense pelos seus habitantes projetam-se sobre uma base material que lhe serve de referente. Em decorrncia, as pessoas no s se denominam seridoenses, como os outros as reconhecem como tal. Na esteira da valorizao da cultura e do fortalecimento do discurso-imagtico regional, o Serid foi sendo reinventado e um novo texto,
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um espao atrativo e em desenvolvimento na produo de festejos carnavalescos. Lugar
de fuga para boa parte da populao que no encontra em sua cidade atrativos
carnavalescos.
Uma srie de discursos passa a ser agenciados e passa a apresentar a cidade de
Caic, para aqueles que a habita(va)m e principalmente para os que a visita(va)m, no
como uma cidade qualquer, mas como a cidade que produz o maior carnaval de rua do
Rio Grande do Norte, e que, apesar de ser uma cidade do interior, se destaca pelo seu
carnaval, alegria, hospitalidade, blocos carnavalescos, tradio e, como resultado de tudo
isto, grandiosidade. Contudo, ao que nos parece, estas imagens e discursos articulados
pelo enunciado que busca constituir Caic como carnavalesca produto de inmeras
batalhas e estratgias6, de uma guerra de sentido, de significados postos, repostos,
reproduzidos e atualizados que envolveram as diversas pessoas que vieram ocupar os
lugares de sujeito daqueles discursos e as instituies que lhes deram respaldo e
sustentao ao longo da dcada de 1990 at os dias atuais. Uma batalha que envolve
inmeras disputas de interesses, de espaos e desfiles carnavalescos que se instituem
como campos de combate foram (e ainda so) agenciados pelos beligerantes em luta, na
defesa de seus projetos e interesses, que dependendo do perodo vivido gravitavam em
torno de objetivos diversos.
Neste sentido, o presente trabalho busca apresentar quais foram as condies
histricas de possibilidade da cidade de Caic localizada na regio do Serid do Rio
Grande do Norte passasse a ser nomeada como Cidade Carnavalesca no perodo de 1980
a 2009. O perodo escolhido para anlise constituiu um momento de transio, onde o
carnaval da cidade passa de um evento a ser festejado por poucos a uma festa que passa a
ser associada a folia de todos.Assim, nestas dcadas, inmeros agentes reinterpretaram entremeado s escritas anteriores foi sendo impresso, com especial realce para o avultamento da dimenso cultural e, neste, o poder da identidade. A consistncia e a eficcia desse poder podem ser avaliadas pela forma como se introjetou nas diversas instncias da sociedade regional. Neste processo, possvel que os dispositivos da resistncia tenham adquirido maior visibilidade no cenrio da economia, atravs da projeo da identidade seridoense nos produtos da terra como carne-de-sol, manteiga da terra ou do serto, queijo de coalho, queijo de manteiga, bordados, entre outros. O diferencial qualitativo destes produtos se define nas entrelinhas de um saber-fazer que mescla arte, tradio e inovao, evidenciando que a carga histrica no foi consumida pelo tempo e nem pelas adversidades. Nas entrelinhas das relaes sociais que impulsionaram a reestruturao regional, tambm a instncia poltica serviu de cenrio de resistncia, o que pode ser percebido atravs das manifestaes identitrias que fluram dos discursos e smbolos da representao poltica seridoense. 6 Estou pensando o termo estratgia como o pensa Michel de Certeau, ou seja, como o clculo (ou a manipulao) das relaes de fora que se torna possvel a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exrcito, uma cidade, uma instituio cientfica) pode ser isolado. A estratgia postula um lugar suscetvel de ser circunscrito como algo prprio e ser a base de onde se podem gerir as relaes com uma exterioridade de alvos ou ameaas. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995. _______. A inveno do cotidiano: artes de fazer. Petrpolis: Vozes. 2003.. p 99.
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os sentidos dos festejos na cidade, passando de um espao privado da elite, para uma
festa onde todos pudessem brincar juntos na rua.
Tal construo, porm, no se deu espontaneamente, nem naturalmente. Da
mesma forma, ela no foi uma obra realizada por todos os folies indistintamente; foi
sim um produto de um intenso trabalho poltico, principalmente, pelos poderes pblicos e
pela imprensa. A partir da dcada de 1990 com os investimentos pblicos em carnavais
de rua, foi sendo convencionada e cristalizada uma histria sobre o carnaval de rua de
Caic. Uma histria constantemente capitalizada pelas falas das pessoas que viveram os
carnavais populares, e que atravs de seus relatos, de sua memria oral, transformou-se
em livros memorialistas.
Ao optar por estudar o carnaval necessrio entender o conceito de cultura
popular na atualidade. Se este ainda valido para os estudos histricos, e ainda, como
equacion-lo num mundo em constante transformao, em que a indstria cultural se
apropria dos festejos.
As afirmaes de Roger Chartier7 e Michel de Certeau corroboram para
pensarmos que o conceito de cultura popular ainda valido na medida em que marca o
lugar social onde produzida e permite um revelar das diferenas e dos significados que
as prticas culturais adquirem no seu fazer.
Ao analisar a histria dos blocos carnavalescos deste perodo, percebemos que
esta questo o resultado de um longo processo de disputa entre diferentes atores sociais,
no podendo ser imputada apenas ao recente processo de globalizao e mercantilizao
da cultura. preciso considerar a dinmica da disputa local para se entender
minimamente estes problemas. Em torno desta questo, pretende-se discutir as estratgias
de alguns integrantes de blocos diante das aes de instituies pblicas que financiam e
divulgam o carnaval, bem como dessas prprias instituies e do processo de
massificao da cultura popular e de sua espetacularizao.
Trata-se de um momento histrico em que o erudito e o popular aliados aos
veculos de massa ganham novas feies se interpenetrando, e no mais possvel
perceber o carnaval popular sem perceber as influncias da cultura erudita e da indstria
cultural. O carnaval pode ser entendido como um campo de disputa e subverso
7 CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: DIFEL, 1990.
15
simblica de poder, onde os blocos, desde a sua emergncia, passaram por uma fase de
ressurgimento, marcados pelo surgimento de novos elementos e pela extino de outros.
As narrativas sobre o carnaval esto repletas de historicidades, possveis de serem
problematizadas para dimensionar a (re)inveno dessa tradio.
Uma histria de histrias que, buscando os vrios fragmentos arranjados em torno
da trama do carnaval, tentaremos entender o porqu do seu surgimento como popular.
A partir de que prticas e de que discursos se construram e instituram historicamente a
inveno do carnaval do povo?
As interpretaes apresentadas nesta dissertao foram construdas
majoritariamente a partir de textos publicados nos seguintes peridicos: A Tribuna do
Norte, O Dirio de Natal, A Folha do Serid e o Jornal de Caic.
As notas acerca das festas carnavalescas analisadas sobre a dcada de 1980, da
presente dissertao, no foram predominantemente produzidas pelos jornalistas. Em sua
maioria, eram bilhetes, cartas e informaes fornecidas pelos integrantes dos prprios
grupos de folies, indicando o local das festas e o trajeto das apresentaes pblicas,
convidando clubes vizinhos, anunciando as novas fantasias e concursos, combinando
horrios de ensaios e reunies. Os jornais da cidade eram abertos a divulgao de
informaes fornecidas pelos prprios festeiros. O Dirio de Natal e a Tribuna do Norte
eram os peridicos mais procurados por folies que buscavam publicidade para seus
festejos.
Alm dos textos publicados na imprensa diria, tambm foram utilizadas como
fontes algumas memrias escritas por membros da comunidade de Caic. Em seus
escritos, eles fizeram referncia aos festejos carnavalescos. Essas narrativas so
importantes porque evidenciam as significaes atribudas pelos moradores da cidade ao
carnaval e aos folies.
No entanto, foi a partir dos relatos orais que pude tecer uma histria sobre os blocos
carnavalescos de rua na cidade de Caic, pois a documentao escrita sobre esses blocos
quase inexistente, visto que os jornais no costumavam publicar essas outras formas
de brincar carnaval.
Nesse sentido, tenho por objetivo central compreender os significados da tradio
oral destes grupos carnavalescos, o que pode nos revelar como os narradores
compreendem e (re)constroem o acontecimento do passado, dando relevncia ao
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processo de transmisso oral das memrias, ao contexto em que emergem e ao
imaginrio festivo que constroem e reproduzem, inerentes aos mecanismos que
possibilitam a rememorao. Dessa forma, as narrativas orais da tradio possibilitam
compreender como o passado construdo, processado e integrado vida social. 8
Assim, refletir sobre os festejos e articul-lo ao processo da narrao oral pelos
folies de um espao que rememora aquelas prticas carnavalescas, leva-nos ao alcance
de um olhar para as subjetividades presentes nas narrativas, entendendo estas como
prticas sociais. Desse modo, revelam expresses da experincia vivida, praticada ou
ouvida. Assim sendo, so processadas no cerne do cotidiano social, marcadas pela
dinamicidade vivida. Logo, aquilo que narrado se torna tambm um fato, rememorado e
reinventado em cada narratividade, pois tanto os fatos como as narrativas se engendram e
se processam nas redes de relaes em que esto imersas. 9
Michel de Certeau nos lembra que todo relato uma prtica de espao e so as
narrativas que vo precisar as formas elementares das prticas organizadoras do
espao: a bipolaridade mapa e percurso, os processos de delimitao ou de limitao e
as focalizaes enunciativas. Nesse sentido, procuramos perceber como essas prticas
de espao historicamente institudas pode-nos dar acesso aos trajetos cotidianos e aos
desfiles carnavalescos dos diversos grupos sociais na cidade de Caic, pois os moradores,
apre[e]ndem o espao a partir de sua experincia cotidiana, das suas narrativas.
Parafraseando Certeau, os espaos so plurais porque so plurais as experincias de seus
praticantes. 10
Ao produzir seus mapas cotidianos, os moradores expressam a compreenso, o
uso e a leitura que fazem do territrio. Os mapas cotidianos do carnaval representam
tanto os percursos do festejo, quanto os lugares permitidos para alguns grupos e
interditos para outros. Pois ao caminhar, O caminhante transforma em outra coisa cada
significante espacial. E se, por um lado, ele torna efetivas somente algumas das
possibilidades fixadas pela ordem construda, por outro aumenta o nmero dos possveis
interditos 11
8 CRUIKSHANK, Julie. Tradio oral e histria oral: revendo algumas questes. In: AMADO, Janaina e FERREIRA, Marieta de Morais (Orgs.). Usos e abusos da histria oral. Traduo Luiz Alberto Monjardim et al. 8 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 156. 9 KHUORY, Yara Aun. Muitas memrias, outras histrias: cultura e o sujeito na histria. In: FENELON, Da Ribeiro et al. (Orgs.). Muitas Memrias, outras histrias. So Paulo: Olho Ddagua, 2004, p. 123. 10 CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: artes do fazer. Petrpolis: Vozes, 1994,p.178-201. 11 Ibdem.
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As pesquisas sobre carnaval no Brasil so majoritariamente voltadas a anlise do
carnaval carioca. Por, esse motivo, boa parte da bibliografia a respeito do tema acabou
reafirmando o processo de inveno do carnaval da cidade maravilhosa como algo
representativo de toda a nao.
No Brasil, duas obras clssicas sobre o carnaval foram construdas por cientistas
sociais. Roberto da Matta, antroplogo, autor de Carnavais, malandros e heris. 12 Ao
analisar o carnaval brasileiro (mas baseado exclusivamente no carnaval carioca), Da
Matta defendeu que essa festa uma totalidade abrangente onde todos os brasileiros
se reconhecem e se igualam. Desta forma o autor suprime a possibilidade de
diferentes identidades se constiturem a partir da festa e no se mostra atento, por
exemplo, as especificidades dos carnavais em outras regies do Brasil. 13 A sociloga
Maria Isaura Pereira de Queiroz, na obra Carnaval Brasileiro - o vivido e o mito.14 ,
tambm atribuiu ao carnaval brasileiro um sentido unvoco: festa nacional, com poucas
variaes regionais, transformada ao longo do tempo pelas modificaes estruturais da
sociedade, passando de manifestao burguesa( carnaval veneziano) a manifestao
cultural popular ( blocos e escolas de samba), o que teria ocorrido sem muitas
variaes em todo o Brasil.
A referncia internacional mais conhecida sobre o tema foi realizada pelo lingista
russo Mikhail Bakhtin: A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto
de Franois Rabelais.15 Nesse estudo, a cultura popular e o carnaval foram
compreendidos atravs da sua oposio a cultura oficial (da Igreja e do Estado) e no
a cultura das elites, com a qual estabeleciam trocas e influncias recprocas. de
Bakhtin a noo de circularidade cultural, que permite o entendimento de Rabelais
como um intermedirio entre essas duas culturas (popular e de elite). As interpretaes
do autor sugerem a existncia de uma essncia ou uma inerncia que supostamente
caracterizaria a cultura popular e o carnaval de qualquer poca, em qualquer contexto
12DA MATTA,Roberto.Carnavais, malandros e heris:para uma sociologia do dilema brasileiro.Rio de Janeiro:Zarar,1989. 13 Com algumas variaes seguiram as abordagens e interpretaes de Roberto da Matta as seguintes obras:GOLDWASSER,Maria Jlia.O Palcio do Samba.Rio de Janeiro: Zahar,1975;LEOPOLDI,Jos Svio.Escola de Samba, Ritual e Sociedade.Rio de Janeiro:Zahar,1978;CAVALCANTI,Maria Laura Viveiro de Castro.Carnaval Carioca:dos bastidores ao desfile.Rio de Janeiro:Funarte-UFRJ,1994;Idem.O rito e o tempo:ensaios sobre o carnaval.Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 1999. 14 QUEIRZ,Maria Isaura Pereira de.Carnaval Brasileiro- o vivido e o mito.So Paulo:Brasiliense,1992. 15 BAKHTIN,Mikhail.A cultura popular na Idade Media e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais.Braslia, So Paulo:HUCITEC,1993.
18
histrico: o carter subversivo da festa, sua capacidade de suspenso de valores e normas
sociais dominantes.
Jos Carlos Sebe em Carnaval, carnavais16 se prope a desvelar os primrdios do
carnaval brasileiro. Traando uma espcie de linha evolutiva, que liga os desfiles das
escolas de samba s saturnais gregas e as bacanais romanas, passando pelos festejos
populares na Europa renascentistas e pela animao das ruas no Rio de Janeiro na virada
do sculo, que constantemente afirmada pelo autor.
As obras citadas acima (incluindo as referidas em notas) tratam, em maior ou
menor medida, o carnaval como uma festa portadora de uma essncia, caracterizada
normalmente pela inverso da ordem e dos valores morais, marcada pela continuidade de
certos resqucios de tempos imemoriais (como a Idade Mdia ou a Antiguidade
Clssica) e capaz de sintetizar coletividades inteiras; por vezes, o abordam como uma
prtica atemporal, como algo inerente ao ser humano e, portanto, a-histrico, pois
independe do contexto no qual se realiza.
Na presente dissertao, pretende-se um distanciamento dessas leituras marcadas
por essencialismos, inerncias, permanncias e generalizaes, bem como se evitou as
interpretaes que buscam em um passado perdido as explicaes, os sentidos da festa.
No estudo intitulado A subverso pelo riso, a historiadora Raquel Soihet no rompe
radicalmente com alguns desses pressupostos (como a identificao de certos resqucios
de tempos imemoriais), mas busca compreender os folguedos em seus contextos
especficos, o que lhes confere novos significados. A autora tratou os folies populares
cariocas como sujeitos histricos, que usaram o riso para resistir a situaes opressivas,
mas tambm percebeu a convergncia de interesses entre esses carnavalescos,
dispostos conquista de reconhecimento pblico, e a proposta do Estado Novo de
valorizao da cultura popular, com o intuito de realizar a integrao nacional. A obra
est centrada em dois pressupostos: a resistncia da cultura popular diante de reformas e
presses externas e a circularidade cultural a que est submetida. 17
Um estudo recente sobre o carnaval no Brasil foi realizado por outra historiadora:
Maria Clementina Pereira Cunha: Ecos da Folia18. A autora defende que, se o carnaval
16 No seu ensaio o historiador Jos Carlos Sebe, afirma que, pensando o fio da histria como uma longa serpentina jogada no tempo, um dos extremos do carnaval pode estar na antiguidade egpcia e outro em nossos dias.SEBE,Jos Carlos.Carnaval, carnavais, So Paulo:tica,1986,p.9. 17 SOIHET, Rachel. Subverso pelo riso. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998. 18 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: Uma histria social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
19
foi transformado em um dos smbolos de nacionalidade, convm recuperar o processo
histrico de inveno dessa tradio. A contextualizao dos festejos foi levada ao limite
pela historiadora, no sendo possvel compreend-los como resqucios de tempos
imemoriais. Os mltiplos sujeitos envolvidos no carnaval, atravs de suas tenses e
dilogos, atribuam uma diversidade de sentidos simultneos a festa: o carnaval, nessa
perspectiva, um campo de conflitos. Assim, Cunha rompe com as formas unvocas e
abrangentes de construir outros significados para os folguedos, mostrando-se altamente
crtica a interpretao que trata a festa como expresso da nacionalidade e nisso
reside uma das maiores contribuies para a renovao historiogrfica sobre esse tema.
Outro autor que tambm se mostra crtico a interpretao que toma o carnaval como
expresso nacional Leonardo Pereira em O carnaval das letras19. Este chama a
ateno para o que ele denomina de familiarizao com a loucura carnavalesca. Tal
interpretao para o autor costuma fazer com que a festa seja percebida como um
elemento quase natural do pas. Essa naturalizao sobre as definies dos festejos, no
pode para Pereira esconder que assim como todo ritual, o carnaval tem histria.
As pesquisas acadmicas sobre carnaval no Rio Grande do Norte detm-se,
praticamente, ao caso de Natal. Para o carnaval potiguar, merece destaque o estudo :
Chiclete eu misturo com banana, da historiadora Flvia de S.20 Neste estudo a autora faz
uma abordagem sobre os embates entre os defensores dos iderios modernistas e
regionaltradicionalista, que marcaram os anos de 1920-1930, incorporando-se as
diferentes formas de manifestaes culturais, especialmente as comemoraes
carnavalescas. Atravs das tentativas de se modernizar a festa tradicional e as sadas
apontadas pelos folies de todas as classes para driblar a sua normatizao pelos poderes
pblicos, pode-se delinear algumas das diferenas identitrias, que no se deram
exclusivamente em nvel de distino de nacionalidades.
importante considerar ainda a produo historiogrfica local sobre a experincia
carnavalesca da cidade de Caic: duas monografias da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN).21
19 PEREIRA, Leonardo. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do sculo XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. 20 PEDREIRA, Flvia de S. Chiclete eu misturo com banana: carnaval e cotidiano de guerra em Natal. Natal, RN: EDUFRN- Editora da UFRN, 2005. 21 Sobre as produes locais ver: SALES, R. B. de. Folia Momesca: o Ala Ursa no carnaval de Caic. Caic, Monografia (Graduao em Histria). UFRN, 2000 e LEITE, Elizabeth Maria. Reinado da Alegria: O carnaval caicoense no perodo de 1990 a 2000.Caic.Monografia.(Licenciatura em Histria).UFRN,2000.
20
Esse balano das pesquisas sobre o carnaval da cidade vem elucidar, entre outras
coisas, as semelhanas nas escritas que percebem o carnaval como uma festa linear,
tradio quase que imutvel, em que as suas rupturas esto localizadas nas datas e
mudana dos organizadores dos blocos. Que visam, sobretudo monumentalizar o Bloco
Ala Ursa do Poo de SantAna, como nica possibilidade de instaurao de um carnaval
popular na cidade. No entanto, apesar da pequena produo acadmica existente sobre
essa temtica, pretendemos buscar as intercesses nos textos, produzidos por diferentes
autores. A historiografia local ao produzir esse passado apropriado e originrio, explica a
experincia desse carnaval a partir de uma leitura personalista da histria, como se ao
demonstrar os organizadores dos blocos fosse o suficiente para compreender os discursos
carnavalescos sobre a cidade. Desta forma, os trabalhos participam de um projeto de
silenciamento de outras prticas carnavalescas consideradas populares a exemplo das
Escolas de Samba.
As autoras destas pesquisas, concluem afirmando que seus estudos podem no ter
contemplado tudo que se ouve, l ou se v no carnaval, ainda partindo do pressuposto
que haveria uma histria ou um fazer historiogrfico que abarcaria a totalidade do
festejo, apontando como empecilho a mutabilidade da tradio.
A presente dissertao aponta para a diversidade de relaes sociais estabelecidas
por ocasio dos festejos. Assim, evitou-se ver no carnaval um momento de suspenso
das diferenas, distanciou-se das abordagens que tomam as festas como resqucios de
tempos imemoriais ou que vem na subverso da ordem social uma essncia capaz
de qualificar a festa em qualquer poca ou contexto. Desta forma, algumas produes
sero utilizadas como apoio terico-metodologico para a escrita deste trabalho, a escolha
destas pesquisas que transitam entre a histria e a antropologia no se deu de forma
desinteressada, visto que so trabalhos cujo objeto so festejos sejam eles carnavalescos
ou no, que possuem uma singularidade em relao ao nosso: o recorte temporal. Por
serem trabalhos que problematizam os festejos imersos no tempo presente, estes
trabalhos nos auxiliam, sobretudo nas abordagens a serem feitas com as fontes. 22
22 Estes trabalhos a qual me refiro so os de: LIMA, Elisabeth Cristina de Andrade. A Fbrica dos Sonhos: a inveno da festa junina no espao urbano Joo Pessoa: Idia, 2002.SANTOS,Nilton Silva dos. Carnaval isso ai.A gente faz para ser destrudo! :carnavalesco, individualidade e mediao cultural.Rio de Janeiro, Tese(Doutorado em Antropologia).UFRJ,2006. GOLOVATY, Ricardo Vidal. Cultura Popular: saberes e prticas de intelectuais,imprensa e devotos de Santos Reis,1945-2002 Dissertao (mestrado em Histria),Uberlndia/MG: UFU, 2005.RUBIO,Fernanda Pires.Os negros do Rosrio:memrias, identidades e tradies no congado de Oliveira(1950-2009).Niteri,Dissertao(Mestrado em Histria).UFF,2010.
21
Acreditamos que no h um real para ser desvelado, muito menos um sujeito a ser
desvendado. Na prtica do nosso oficio, compartilhamos a concepo epistemolgica de
Michel Foucault e consideramos que:
A histria mudou de posio acerca do documento: ela considera sua tarefa primordial, no interpret-lo, no determinar se diz a verdade nem qual o seu valor expressivo, mas sim trabalhar no seu interior e elabor-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e repete em vrios nveis, estabelece sries, distingue o que pertinente do que no , identifica elementos, define unidades, descreve relaes. 23
Decidimos estruturar a nossa narrativa em trs captulos. Cada captulo ser
estruturado em torno de um objetivo especfico que se relaciona com o objetivo central
do estudo. Desta forma, o primeiro captulo ser urdido tomando por base o seguinte
objetivo: apresentar as tessituras e as relaes de prticas discursivas e no discursivas
que se colocaram como condio histrica de possibilidade para as mudanas que
redimensionaram e deslocaram, a partir de meados da dcada de 80, para outros
territrios as formas como as elites e boa parte da sociedade local significavam,
imaginavam e adjetivavam a cidade. Realaram-se os discursos produzidos na dcada de
1980 pelos peridicos sobre os festejos carnavalescos da elite caicoense e a constante
busca de representar o carnaval praticado pelos populares como o estranho, o outro que
deveria ser mantido distante dos carnavais de clube e de corso e a redefinio destes
discursos na dcada de 1990, que passavam a exaltar estas formas populares de brincar
carnaval. Tal abordagem permitiu detectar a existncia de fronteiras materiais e
simblicas nada desprezveis, mas que no seriam percebidas se os festeiros dos clubes
elegantes estivessem ausentes desse estudo. A segunda parte enfoca os chamados
corsos, a importncia dos corsos reside no fato de ser um costume festivo que colocava
em contato direto diferentes grupos sociais. Para dar conta deste artesanato elegemos
como fontes bsicas deste captulo os jornais escritos, especificamente o Dirio de Natal
e a Tribuna do Norte, depoimentos orais e as produes de historiadores e memorialistas
locais.
O segundo captulo ter como objetivo central fazer uma descrio/anlise do
Bloco Ala Ursa do Poo de SantAna entre os anos de 1990 a 2009. Pois, acreditamos
que este festejo se constituiu como um evento fundamental e emblemtico daquelas
mudanas, deslocamentos e disputas em torno e sobre os significados, sentidos e imagens
23 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1987.p.07.
22
que se queriam inerentes e constitutivos de Caic como cidade carnavalesca. Buscamos
tambm, neste captulo, descrever/analisar a emergncia, a partir da dcada de 90, de um
discurso que construiu uma memria idealizada para as festas de carnaval da cidade o
que possibilitou a gestao de uma estratgia que visava silenciar os festejos de dcadas
anteriores e buscava forjar as condies de possibilidade para a inveno e emergncia
de novas tradies, a exemplo do Bloco Ala Ursa do Poo de SantAnna e o
carnavalesco Mago. Esmiuamos ainda o trabalho de produo autobiogrfica realizado
por Mago, tanto na escrita de si quanto nos depoimentos veiculados pela mdia.
Investigamos as estratgias utilizadas pelo carnavalesco para enquadrar o passado e
instituir determinada verso para a sua vida, entrelaando os marcos biogrficos da sua
vida. Para a construo deste captulo elegemos como fontes: jornais escritos e o
televisivo, os vdeos produzidos por amadores e membros dos blocos, atas de reunies,
leis oramentrias, depoimentos orais, revistas, folders, planos e guias de divulgao do
carnaval e da Secretria de Turismo que circulavam na cidade e regio no perodo que
antecedia o evento; a fim de problematizar a possibilidade de gestao do carnaval de rua
na cidade, mostrando como este evento foi sendo produzido por mecanismos e
procedimentos que o constitui e institui como um novo espao de investimento social,
poltico, econmico, cultural e discursivo, e as vinculaes polticas que constituem a
inveno desta festa, assim como as relaes de poder, os interesses que se encontram na
fundao deste novo festejo e da imagem e dos discursos que se querem produzidos
sobre e para a cidade.
Problematizamos, no terceiro captulo, as diferentes formas de festejar o carnaval,
por grupos de folies que tomavam outras ruas da cidade. Sobretudo, as Escolas de
Samba, que edificaram historicamente outros festejos e a partir de suas caas no
autorizadas produziram novos lugares, novas formas de vivncia com o carnaval. Desta
forma, a fabricao destes festejos no pode ser entendida como edificao de um
carnaval imvel ou homogneo, pois eles foram resultado de pequenos sucessos, arte de
dar golpes, astcias de caadores, mobilidades de mo de obra, simulaes poliformas,
achados que provocam euforia, tanto poticos como blicos.24 As narrativas orais so
tomadas aqui como possibilidade de emergncia de uma memria subterrnea que
emerge na cidade de Caic e produz outras falas sobre a Ala Ursa do Poo de SantAna e
o carnavalesco Mago.
24 CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1994. p. 47.
23
As prticas das escolas de samba no podem ser nomeadas, facilmente, como algo
referente simplesmente ao universo popular, visto que estes festejos foram vivenciados
por diferentes sujeitos sociais e por vrias instituies polticas, implodindo com a
possibilidade de circunscrev-la como smbolo de uma festa popular, marginalizando-a
assim e legitimando-a como uma esfera especfica de um universo marcado pela pobreza,
pelo misticismo, e ainda que todas essas dimenses estejam presentes nessa histria, no
se resumem nelas.
A ampliao desse passado histrico s foi possvel pelo agenciamento das vrias
tramas experimentadas pelos diferentes sujeitos que a compuseram, pois os seus eventos
no foram criados isoladamente por algum grupo social, possvel de ser nomeado
alegoricamente como povo.
24
Captulo 1
Fazer chover com confetes: as narrativas sobre os clubes carnavalescos caicoenses.
1.1. Costurando retalhos: as produes locais sobre os Clubes Carnavalescos.
s 21 horas, j se podia ouvir os frevos que estavam sendo tocados dentro do
Clube. As moas bem vestidas e recatadas sentavam-se em torno do salo, a espera dos
seus pares para a dana. O salo sempre bem iluminado diferia da imagem escura, a
meia luz do bloco carnavalesco que se aglomerava na rua. O rapaz ou a moa que
desejasse danar ou fazer chover colorido atravs dos confetes no salo precisavam
apresentar a sua procedncia, deveria ficar claro para o porteiro a famlia a qual
pertencia. Logo, no bastava para ingressar no baile, possuir uma boa quantia em
dinheiro, mas pertencer a uma boa famlia.A organizao do baile cabia as senhoras
da sociedade, tudo era controlado por elas inclusive o volume do som, para que a cada
pausa que a banda dava, as pessoas presentes no salo pudessem conversar, a bebida
era regrada: a embriaguez era repudiada nesse ambiente, a mulher no era permitida a
aproximao de nenhuma bebida alcolica. 25
O caso que mereceu destaque nas pginas de um dos mais importantes livros de
memrias da cidade de Caic foi escrito em 1987 tendo como autor o professor Pedro
Diniz. Nesta memria, as narrativas sobre os clubes carnavalescos e blocos de rua
povoam a maioria das pginas. Lidiane Arajo, organizadora e escritora, anuncia no
prefcio algumas das motivaes que a levaram a investir na produo de um livro
voltado para a comunidade de Caic. Associando a histria da criao do livro com a sua
prpria trajetria de vida, onde estavam presentes os loucos, os pedintes, a poltica local,
as festas de Nossa Senhora de SantAnna e o carnaval. Arajo vai remontando uma
postura em relao ao investimento nessa produo literria, colocando que se trata de
25DINIZ, Pedro. Os bailes do Caic Antigo. In: ARAJO, L. Rastros Caicoenses. Mossor: Grfica Trcio Rosado da ESAM, 1987.
25
um livro composto coletivamente que tende a comportar fluxos diferentes de narrao, a
organizadora, no entanto, no procura contrap-los, mas trabalha por uma idia comum,
que move esses textos: a de uma vontade do passado.
Para realizar tal empreitada, Arajo elege alguns moradores que tiveram uma maior
aproximao com estes espaos enquanto folies ou espectadores no reinado de momo.
Nas edies posteriores, os festejos quase no povoam as pginas desta literatura
memorialista. Outras narrativas so escritas nas memrias, outros relatos vo se
delineando, outras personagens vm tona nestes escritos. De qualquer forma, o episdio
do baile da boa famlia do clube caicoense pode servir como pretexto para iniciar uma
anlise sobre as prticas festivas vivenciadas pelos folies que figuravam nestes sales.
Sobre o carnaval de Caic, at meados da dcada de 1980, os jornais costumavam
noticiar os festejos que ocorriam nos clubes carnavalescos. Em recintos fechados foi
praticado o carnaval denominado da sociedade, com forte cunho privado. As notas que
anunciavam os bailes daquela regio deixavam claro o objetivo de estabelecer um
distanciamento entre os de dentro e os de fora. A principal oposio se constitua em
relao massa de folies das ruas, e a preocupao com a lista de convidados. As notas
apontam a rgida preocupao com a exclusividade, estabelecendo uma segregao: entre
a sociedade e o povo. Nesse sentido a nota escrita por um jornalista do Dirio de
Natal em 198326. Dizia o seguinte:
A capital do Serid abre o seu carnaval hoje, com o tradicional Baile Preto e Branco, no clube Corinthians reunindo a sociedade com mais de 40 blocos que fazem o agito da cidade nesta temporada de momo. O Corinthians ser o nico clube a abrir suas portas nesta temporada, mas o Caic Iate Clube promover duas manhs de sol, domingo e tera-feira, reunindo blocos de vrias cidades da regio, com direito a um mergulho nas guas do Aude Itans. A sociedade prefere os clubes, pois atrs de nossos portes no h aqueles folies suspeitos, que ocultos por uma mscara fazem a desordem nas ruas.
Ao referir-se a degenerao de uma festa que teria perdido seu carter
familiar, esse jornalista encontrou um modo metafrico de dizer que as elites no
aceitavam dividir as ruas com outros atores sociais. Uma das sadas era fazer festas em
recintos privados. A anlise do carnaval caicoense revelou elites segregacionistas, cujas
prticas festivas vislumbradas atravs dos anncios da imprensa deixam clara uma 26 Noticia divulgada no Jornal Dirio de Natal. Natal em 17 de Fevereiro de 1983 intitulada: A Capital do Serid abre o seu carnaval hoje!.
26
tendncia a encarar a vida em termos de oposies binrias, tais como alta e baixa
sociedade.
As festas so capazes de estabelecer relativas unificaes, mas tambm de
instituir diferenciaes tanto internas quanto externamente. A distino fundamental
ocorre entre includos e excludos, pois sempre so traadas fronteiras entre os
aptos a participar e os estranhos a elas. Assim, as festas podem estar associadas
produo de identidades. Nesse sentido, os folies das agremiaes do centro da cidade
atriburam a si mesmos o carter das elites. A identidade das elites fica ntida atravs
das suas formas de autoclassificao e dos meios empregados para privar as massas de
suas festas carnavalescas, ou seja, mant-las longe de seus clubes. 27
As prprias pginas dos jornais posicionavam, de um lado, os clubes do centro e,
de outro, os folies das ruas. Entretanto, os mesmos peridicos permitem constatar que o
povo tambm ocupava esses espaos (como se ver adiante). Ainda assim, a concepo
que associava salo as elites e rua aos populares predominaram na imprensa. Tal viso
carrega a pretenso das elites de manter um distanciamento e uma diferenciao rgida
entre o carnaval de salo e o carnaval de rua. Ela deriva da preocupao de garantir a
presena exclusiva de pessoas distintas nas festas em recintos fechados. 28
Nos peridicos pesquisados, como Tribuna do Norte, Dirio de Natal, Tribuna do
Serid, Folha de Caic e Jornal do Serid, o termo elite geralmente aparece nos
peridicos fazendo referncia aos festejos nos clubes privados do centro de Caic.
Queremos destacar que no estamos pensando o termo elites to somente como grupos
ou sujeitos sociais e muito menos como uma classe social, dominante ou no, que se
constituem enquanto tais; mas sim como um lugar ou lugares de enquadramento a
ser(em) ocupado(s), exercido(s) e praticado(s) por sujeitos nomeados, identificados e
classificados, por determinados discursos como pertencentes a estes lugares. So lugares
estratgicos, um poder se exerce neles, sobre eles e a partir deles.
antes uma atribuio do que uma investidura. Ento, neste sentido, elites, como
estamos pensando, so todos os sujeitos ou agentes a quem os discursos atribuem e
enquadram, em meio ao jogo das relaes de fora, nestes lugares discursivamente 27 Ao analisar o carnaval carioca no final do sculo XIX, a historiadora Maria Clementina Pereira da Cunha, aponta o esforo de diferenciao por parte das elites, indicando o quanto era complicada a convivncia social nos dias de festa. Os anncios que as Grandes Sociedades faziam para publicar para divulgar seus bailes evidenciam um esforo explicito de diferenciao e distanciamento em relao aos festejos dos bairros populares. CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: Uma histria social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. So Paulo:Companhia das Letras, 2001. 28 Noticia divulgada no Jornal Tribuna do Norte. Natal em 03 de Fevereiro de 1980 intitulada Carnaval nos Clubes.
27
produzidos e socialmente institudos e colocados como privilegiados nas redes de poder,
predominantes em cada perodo. antes de tudo, um exerccio atravessado por relaes
de fora, poder, saber e desejo. Nestas relaes no existe passividade, todos so ativos,
agindo estratgica ou taticamente nas lutas, disputas e exerccios de fora e poder. uma
batalha, um combate, um jogo com avanos, recuos, acomodaes e deslocamentos de
todos os lados. Neste sentido, estar no lugar de elite hoje no significa ser elite amanh,
o(s) sujeito(s) no se enquadra(m) mais nestes lugares; estar num lugar de elite hoje e
amanh tambm no significa continuar sendo elite, estes lugares se evanescem, deixam
de ser privilegiados e estratgicos em detrimento de outros e a partir de determinadas
condies histricas. Em ambos os casos, os sujeitos so desterritorializados. Assim, elite
um lugar produzido discursivamente nos campos de batalha da histria e colocado
como estratgico e privilegiado socialmente, portanto, so histricos, so lugares
deslocveis, substancial (quanto a seus ocupantes) e espacialmente quanto a fixidez dos
pontos onde se encontravam). 29
Mas, antes de iniciarmos a anlise dos discursos produzidos nos peridicos e na
oralidade sobre os Clubes Carnavalescos de Caic e sua elite foli faz-se necessrio
uma incurso as narrativas produzidas por historiadores locais e memorialistas sobre
estes espaos para que assim possamos visualizar quais prticas e discursos constituem
,no presente, o carnaval dos clubes como um carnaval para a elite e qual o sentido que
o termo adquire nestas produes.
Essas produes gestadas no interstcio de acontecimentos como a
institucionalizao do carnaval de rua, e da multiplicidade de discursos que dizem Caic
como cidade do melhor carnaval do Rio Grande do Norte, terminam por participar,
mesmo que inconscientemente, da instituio e construo deste regime de verdade para
a cidade. Essas esto coladas ao efeito de real e de verdade produzido por aquela
formao discursiva, ou melhor, ela faz parte desta mesma formao discursiva que
busca instituir a cidade como carnavalesca. Pois ela busca produzir a reterritorializao e
o recentramento histrico e temporal da cidade ao inventar um passado para a cidade
que, no por coincidncia, vai ser praticamente o mesmo que o apresentado pelo senso
comum e pela maioria dos discursos institucionalizados pela sociedade local. Portanto,
na sua maioria, esta literatura orbita em torno dos mesmos temas, acontecimentos,
29 Pensamos este conceito com e a partir de: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 1987.______. Microfsica do poder. Petrpolis: Vozes. 1989._______. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola.1996. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995. _______. A inveno do cotidiano: artes de fazer. Petrpolis: Vozes. 2003.
28
pocas, datas e objetos trabalhados e encampados pela Histria Oficial da cidade.
Neste sentido, esta literatura unnime em reafirmar este discurso, medida que coloca
as dcadas 1990 e 2000 como marcos da afirmao dos festejos de rua. Esta literatura
est assim condicionada pelo arquivo que institui a cidade como objeto de saber e
articulada pela mesma rede de poder que a toma como espao estratgico para
consecuo de seus projetos e interesses. E isto se explicita na construo que tal
literatura faz da dcada de 1980, mais especificamente dos carnavais de Clube. Vejamos:
Segundo a historiadora Elizabeth Leite exatamente na dcada de 1980 que os
clubes produzem grandes carnavais:
O Atltico Clube Corinthians, situado no bairro Barra Nova, mais precisamente na zona Oeste da cidade, passou a organizar a festa momesca. O clube entrava em clima carnavalesco j no baile do Reveillon, momento em que se dava o primeiro grito de carnaval, prenncio dos festejos. Desde ento, em todos os sbados antecedentes ao perodo momesco realizavam-se encontros festivos, denominados prvias carnavalescas. Nessas prvias escolhiam-se garotas dotadas de beleza fsica para representarem a garota sexy, a garota molhada, a garota bumbum, como tambm a Rainha do Carnaval e o Rei Momo.30
Este cenrio festivo, vivido no clube desde o Reveillon e as suas prvias
carnavalescas que esta historiadora constri e apresenta como constitutivo da cidade na
dcada de 80, e incio da de 90 se apresentaram a poca como a condio de possibilidade
para que um carnaval deste porte e tamanho luxo se apresentasse na cidade , a
historiadora continua a sua narrativa:
O Clube Corinthians tinha como presidente o sr. Joo Bosco de Medeiros, sendo, no final dos anos 80, o responsvel pela realizao de grandes carnavais de clube em Caic, com atraes vindas de outros estados brasileiros como o cantor Capil de Campina Grande (PB), e a banda de frevo Scorpions de Recife (PE). O grande baile mesmo acontecia na primeira noite de carnaval, sexta-feira, com a Noite do Preto e Branco. Inclusive, esse baile foi implementado por seu Joo quando ele ativou (...) o lado do esporte, criou a noite do preto e branco e ficou tradicional no carnaval de Caic..., ostentando as cores do clube. A indumentria dos folies seguia, rigor, as mesmas.31
30 LEITE, Elizabeth Maria. Reinado da Alegria: O carnaval caicoense no perodo de 1990 a 2000.Caic.Monografia. (Licenciatura em Histria).UFRN,2000.p.03. 31 LEITE, Elizabeth Maria. Reinado da Alegria: O carnaval caicoense no perodo de 1990 a 2000.Caic.Monografia. (Licenciatura em Histria).UFRN,2000.p.04.
29
Segundo a historiadora, a partir de arranjos polticos Joo Bosco tornava-se
poca uma das figuras carnavalescas de maior proeminncia da cidade. Desta maneira,
Caic despontava no centro das atenes dos jornais que noticiavam o carnaval da
cidade:
A partir de 1990, o Atltico Clube Corinthians tornou-se o carro-chefe do carnaval de clube em Caic. O Iate Clube passou a organizar o carnaval diurno, quando o balnerio ainda comportava gua suficiente para banhos, ocorrendo as chamadas Manhs de Sol. Segundo Cludio Sandegi, o tradicional mesmo era a tera-feira (...), no domingo tambm era bastante participativo, mas a tera-feira, mesmo, pela manh era marcante no Caic Iate Clube. Nos anos 90, h um aumento significativo no nmero de blocos carnavalescos na cidade de Caic. Esse nmero j era bastante elevado; entre eles, os mais tradicionais eram: Badalo, Gatorianos, Massa Dura, Baderna, Massa Real, As Cassulas, Os Metralhas, Doce Veneno, Todo Cheiro, Sigilo, Kuxixo, Nu Capricho, Arraso, Alterao, Menina Flor, Pegaki, 100 Comentrios, Movidos a lcool, Os Manicacas, Doce Obsesso, Sabor de Mel, Ki au, Kade Voc, Kalifas, Censura Livre, Seduo. 32
Neste discurso, o Atletico Clube Corinthians e o Iate Clube eram apresentados
como lugares onde eram realizados os festejos tradicionais e o aumento no nmero de
blocos que freqentavam estes espaos se apresenta na narrativa de Leite como uma
crescente. No entanto, a autora ressalta sempre que era um espao onde a elite
caicoense exercia as suas prticas carnavalescas. A historiadora faz uma espcie de
histria do carnaval caicoense por etapas, desta forma at meados da dcada de 1980, o
carnaval caicoense visto como um carnaval apenas praticado pela elite caicoense,
tornando-se popular apenas com a instituio do carnaval de rua na dcada de 1990.
No entanto, a inveno desta memria para a cidade de Caic movida por Leite
no era a nica. Outras memrias vo sendo tecidas sobre a dcada de 1980 neste
perodo. O livro Caic escrito pelo Centro de Pesquisas Juvenal Lamartine, historiciza
a partir de alguns depoimentos com pessoas mais idosas de Caic as atividades de lazer
praticadas na cidade no inicio do sculo XX. Este depoimentos colhidos pelo centro
apontam como atividade de lazer os bailes nas casas de famlia, nos quais eram
convidados os casais amigos dos anfitries.Para os jovens, as opes de lazer se
constituam nas serestas, quadrilhas, banhos em audes ou lagoas, e outros, como
32 Ibidem.
30
casamento oculto, brincadeira do anel que eram realizados ao anoitecer, normalmente nas
caladas.No perodo do Carnaval, os folies saiam s ruas e as casas das famlias onde
realizavam sua festa carnavalesca.As mudanas destas formas de lazer se do segundo a
narrativa tecida pelo Centro a partir do crescimento urbano e a ampliao e expanso dos
meios de comunicao, que geraram novas formas de lazer na cidade. Estes
acontecimentos se colocavam tambm como condio de possibilidade para a
emergncia de outros tipos de espaos e prticas carnavalescas como, por exemplo, as
que levaram a inaugurao de alguns clubes carnavalescos. Como sugere o texto do
centro:
O Atltico Clube Corntians o clube de maior projeo de Caic, graas a boa atuao do seu atual presidente Joo Bosco de Medeiros.Resultou da fuso do antigo Atltico Clube Caic, com o Esporte Clube Corntians, em 25 de janeiro de 1968.33
Soma-se o crescimento urbano a emergncia de uma realidade de tantos rostos
novos pelas ruas da cidade o que provocava uma crescente indiferenciao social,
principalmente aos olhos de uma elite que ao longo dos anos praticava seus festejos
carnavalescos dentro das casas dos amigos. Diante disto, tornava-se urgente e necessrio,
aos olhos destas elites, operarem uma mudana e uma redefinio nas prticas
carnavalescas, instituindo assim espaos para as festas, no entanto, os populares tambm
comearam a utilizar de estratgias para povoar os espaos dos sales. Segundo esta
literatura, alm da presena do Atltico Clube Corntians, Caic adentrava a dcada de
80 contando ainda com outro clube carnavalesco que possibilitou outro espao de lazer
para a cidade. Estes implementos, aos olhos e nos discursos de suas elites da poca,
credenciavam a cidade e lhe dava as condies materiais e objetivas para o grande
momento do carnaval de clubes, uma vez que Caic j tinha inaugurado outro clube: O
Caic Iate Clube, sendo este apresentado como um espao a ser frequentado
principalmente por jovens, na sua maioria, estudantes.
Alm destes aspectos j citados, os Clubes Carnavalescos se constituam, segundo a
historiadora Ione Diniz, como espao de sociabilidade em outros momentos festivos a
exemplo da Festa de SantAna:
33 Centro de Pesquisas Juvenal Lamartine. Caic.Fundao Jos Augusto, Natal-RN.1999.p.59.
31
Durante esses dias, os clubes da cidade promoviam festas danantes com a presena de bandas dos mais variados estilos.O Baile dos Coroas, realizado no Clube Corinthians, na sexta-feira, tornou-se um marco no cenrio social do estado.Neste baile, o mais elitizado, a classe poltica estadual e regional tem presena assegurada.No sbado a vez do Iate Clube de Caic assinalar presena no calendrio festivo com a realizao de duas grandes festas simultaneamente.34
Na fala da historiadora, Caic dispunha das condies objetivas e estruturais para
tal feito. Uma vez que nas dcadas anteriores os clubes j existiam na cidade, s que no
tinham uma organizao forte, alm de ter adquirido e acumulado capital necessrio para
a inaugurao de outros espaos festivos. Alm disso, como exposto na citao acima, o
mais elitizado e os polticos locais frequentavam os festejos realizados nos clubes. Desta
forma, a historiadora auxilia na inveno deste passado sobre os clubes carnavalescos,
marcando os espaos dos sales como um espao de uma elite, onde outros folies no
estavam autorizados a participar.
Estas imagens foram pintadas e grafadas na e pela historiadora, emitida como
signos de industrializao e modernidade que a cidade alcanava, imagem reiterada por
Rodrigues em outro livro publicado no ano de 1999, intitulado Desvendado a cidade:
Caic em sua dinmica espacial, neste a historiadora descreve a cidade de Caic a partir
de suas transformaes espaciais. No capitulo sobre os servios pessoais a autora:
Nesse campo, as mudanas foram de grandes dimenses. No que concerne as atividades desportivas-recreativas, os clubes-associaes existentes em 1980 continuam a funcionar, com funes ligadas a rea de diverso: O Atltico Clube Corinthians e o Caic Iate Clube. 35
Alguns relatos memorialistas presente no livro de memrias Rastos Caicoenses, a
exemplo do texto citado no inicio deste captulo, fazem meno aos Clubes
carnavalescos da cidade de Caic. Em um deles, o Corinthians aparece como um espao
no qual existe um celeiro de artistas que so responsveis por levarem a cultura com
bandeiras de cores bem vivas... que uma vez desfraldadas diante das multides, haja
corao! 36Desta forma, Arizela Cunha acredita que apenas atravs deste tipo de
34 MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Serid norte-rio-grandense: uma geografia da resistncia. Caic: Edio do Autor, 2005.p.328. 35 _________________________. Desvendando a cidade: Caic em sua dinmica espacial. Braslia: Grfica do Senado Federal, 1999.p.259. 36 CUNHA, Arizela.Quem me dera ser poeta ou...como se constri cultura. In: ARAJO, L. Rastros Caicoenses. Mossor: Grfica Trcio Rosado da ESAM, 1987. pp.14-15.
32
produo memorialista pode-se levar o povo a conhecer alguns fatos da cidade, seriam os
autores do livro: os interpretes saudveis da minha lngua, pois traam o perfil do
caicoense do jeito que observo: doador acima de tudo e hospitaleiro seriam estes
escritores no dizer de Cunha os responsveis por reavivar as memrias da cidade,
sobretudo as memrias festivas.
Em outro texto, tecido tambm por Cunha, presente no primeiro volume de Rastos
Caicoense, a escritora traa um pequeno histrico de um clube anterior ao surgimento do
Iate Clube que seria mais popular, chamado de Caic Esporte Clube, como se explicita
no discurso construdo a seguir:
O Caic foi criado por necessidade, mas necessidade maior tiveram os maldosos de acabar com ele.Agora o Caic Esporte Clube, dado a uma decadncia financeira, a queda, em parte, do preconceito racial, a evoluo e outros tipos de mudanas, foi extinto.Decaiu, tombou,morreu.Enganados ou no, os poucos representantes vivos que faziam o Caic venderam seus ttulos de scios proprietrios por quantias irrisrias, cedendo lugar ao Caic Iate Clube.Os menos favorecidos, os mais carentes, no fazem mais parte do Caic, embora quizessem convenc-los de que no houve uma extino, e sim uma fuso.Que tipo de fuso? Se eu no tenho carro, no perteno as rodas dos chamados homens ricos, o que vou fazer, se pra ir at l, mais ou menos uma lgua, eu vou precisar de transporte.E se eu chegar l e s tiver rico, aonde eu vou me encostar? 37
Ao se colocar num curso contrrio ao escrito anterior, Cunha estava procurando
construir um passado elitista para os clubes carnavalescos, s que tentando constituir e
forjar outra trincheira de combate, assim como articular outros meios para compor o
conceito de elite para estes espaos. Para executar tal tarefa, a escritora contribui para
uma srie de enunciados que anuncia o carnaval do passado de Caic como um carnaval
para poucos, no entanto, busca na dcada de 1960, uma possibilidade de um clube onde
em suas festas abrigava-se folies que no compunha uma elite, mas que, no entanto,
foi vencida por ela no seu fechamento e compra do mesmo estabelecimento e mudana
do nome e do local das festas. A prpria localizao geogrfica da nova sede do Iate
Clube na dcada de 1980, impossibilitaria ao povo de participar dos seus festejos.
Todas estas falas sobre os carnavais de clube fazem parte de um projeto de dizer o
carnaval de Caic de dcadas anteriores como um festejo para poucos, veremos como a
documentao presente nos peridicos norte rio grandenses ajudam a legitimar esse
37 CUNHA, Arizela.Caic Esporte Clube, a sede dos morenos. In: ARAJO, L. Rastros Caicoenses. Mossor: Grfica Trcio Rosado da ESAM, 1987.p.113.
33
projeto, visto que em seus discursos apontam o carter elitista dos mesmos e lanaremos
mo de outras documentaes para observarmos outras manifestaes existentes na
cidade, que no faziam parte destes espaos.
1.1.2. Abram alas para os clubes de carnaval: as narrativas sobre os clubes
caicoenses.
Corria o ano de 1983 em Caic. A euforia e o entusiasmo das elites locais e dos
jornalistas eram patentes em seus discursos e nas imagens que eles produziam sobre a
Capital Seridoense, como uma cidade acolhedora e festiva. Este sentimento parecia se
estender tambm produo do carnaval nos clubes, que naquele perodo ainda era visto
por suas elites como a principal manifestao carnavalesca da cidade. E naquela data
tornava-se premente, aos seus olhos, promover uma festa que espelhasse o
desenvolvimento e a grandeza de Caic, como aponta o discurso produzido pelo
Dirio de Natal: o carnaval a festa de todos, onde todos so iguais, fez uma rpida
ressalva: mas a sociedade tambm se diverte. E tratou de esclarecer como ela realiza
essa diverso: leva o carnaval para os clubes, fazendo festas elegantes. Este discurso
enunciado pelo Dirio de Natal emblemtico, pois reproduz todos os dispositivos da
estratgia dos clubes carnavalescos, desde o agenciamento da alteridade Clubes/Rua,
passando pelo acionamento do dispositivo da identidade da sociedade e da oposio entre
os tipos de folies que figuravam nestes espaos. De acordo com o que observou na festa
burlesca de um dos clubes da cidade, O Clube Corinthians, o jornalista concluiu que
estiveram presentes a grande sociedade caicoense com seus polticos, mdicos e
advogados. Com este discurso, o Dirio de Natal buscava legitimar os carnavais
realizados em clubes apontando argumentos que se direcionavam para a construo deste
como algo frequentado pelas elites locais. 38
Nas pginas do Dirio de Natal - mas tambm em outros peridicos - foi possvel
encontrar notas que anunciavam festas bastante seletas. Um desses anncios, para um
baile no Clube Corinthians, segundo este: nos clubes que se renem os blocos da
elite: Aroma, Bafo da Ona, Realce e outros. Assim como nos peridicos, os nomes das
agremiaes da elite, tambm aparecem nos relatos memorialistas sobre a cidade de
Caic, estas aps efetuarem suas inscries participariam dos carnavais nos clubes.
38Noticia divulgada no Jornal Dirio de Natal. Natal em 09 de Fevereiro de 1983 intitulada Festa Elegante.
34
Sero efetuadas inscries de agremiaes para o carnaval (...), citaremos algumas delas: Os Tupinambs, As Columbinas, Bafo de ona, Os Psicodlicos, Zig-Zag, Os Fugitivos, Irmos Metralhas, Topa Tudo, Apaga Fogo, Os Impossveis, Papo Firme, Beatnicks, Garotos da Rural, O Bola Prega, AMC (Associao Mista Caicoense), Caiacs,Os Carrascos, Carcar, Pilantras..39
Com estas aes as elites da cidade, queriam marcar e deixar bem claro para o
restante da populao e, principalmente, para aqueles que visitassem a cidade durante
aquele carnaval quem eram os responsveis diretos pelos festejos realizados nos clubes.
Os festejos carnavalescos eram vistos pelas elites locais como o momento e o lugar mais
oportuno para marcarem as diferenas sociais, tanto no que diz respeito ao uso dos
espaos, como na apresentao de suas prticas diversionais dos demais segmentos que
compunham a sociedade local. Os nomes das agremiaes elegantes se repetiram ao
longo do peridico pesquisado e dos relatos memorialistas, fazendo pressupor que os
participantes daquelas festas no variavam muito: eram clubes que constituam um grupo
fechado.
As matrias deixavam claro o objetivo de estabelecer um distanciamento dos
blocos que se aglomeravam nas ruas. Uma dessas formas de distino era o pagamento
de vultosas entradas, o que restringia a participao aos que pudessem desembolsar a
quantia, os clubes, alm disso, exigem a apresentao de um ou mais scios para a
permisso da entrada de um no-scio. Desta forma, os organizadores dos bailes
estabeleciam listas dos participantes autorizados a frequentar o salo. Figurar nesta lista
algo, que muitos membros almejavam, pois simbolizava que o sujeito pertencia a uma
elite e consequentemente, aps os dias de Momo, seria lembrado, por fazer parte de um
evento social to importante. 40
As preocupaes com custos giravam em torno de dois elementos principais: a
mensalidade e os trajes festivos. Ambos denunciavam a importncia que os prprios
folies atribuam a sua auto-imagem pblica e ao desempenho carnavalesco durante os
desfiles. A preocupao com as verbas, nesse caso, estava associada tambm a auto-
exigncia de desfilar com belas fantasias.
39 ARAJO. E. B. de. Caic ontem, como li. Braslia: [s.n.], p.22-26 , 1991. 40 Sobre os carnavais de clubes no Rio de Janeiro ver: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Carnaval Brasileiro: o vivido e o mito. S. Paulo: editora Brasiliense.
35
Os bailes eram exclusivos dos scios e suas famlias, com exceo de pessoas
polticas e influentes que possam abrilhantar o lugar. Naquele momento, a condio
distinta dos scios se devia a sua separao do resto da populao, que acompanhava os
desfiles que davam voltas na cidade para depois se dirigirem aos sales. No entanto, os
populares que l chegavam acabavam ficando de fora dos portes. As notcias de como
teriam sido os bailes chegariam at os folies populares atravs da Rdio Rural, que
era a responsvel por informar sobre os festejos na cidade. 41
Nos discursos produzidos pelo Dirio de Natal, uma srie de entrevistas com
radialistas foram agenciadas para tematizarem sobre os clubes carnavalescos. Este
depoimento dos jornalistas assumia um carter descritivo do cotidiano dos bailes
carnavalescos. Desta forma, estes construam uma imagem de um baile ideal um paraso
no encontrado nas ruas. Temticas tropicais, a exemplo das escolhidas durante os
bailes do Iate Clube, eram utilizadas pelos radialistas at a exausto. Desta forma ao
narrar esses lugares desconhecidos por muito dos folies que se aglomeravam nas ruas,
os radialistas se valiam dos detalhes como o material utilizado na decorao, a exaltao
da beleza das mulheres, o repertrio tocado pela banda, criando um local que causava nos
ouvintes que no estavam autorizados a frequentar os bailes, fascinao e desejo, para
concluir os radialistas ainda lembravam que Os bailes, hoje e nos trs dias prximos,
sero inmeros!, conforme anunciou o Dirio de Natal. 42
No carnaval de 1982, segundo as matrias publicadas no Dirio de Natal o Iate
Clube abriu seus sales para a realizao de um baile intitulado Bal Masque para o
evento, estavam convidados a Rainha do carnaval: Sheila Costa e o Rei Momo Jocenildo.
Os organizadores do baile organizaram um desfile com 15 fantasias de luxo e
originalidade vindas de varias partes do Nordeste, especialmente de Natal, Campina
Grande e Mossor., conforme a nota de divulgao do evento no Dirio de Natal. Para o
baile Bal Masque, foi contratada a banda Show Scala, alm do show principal, o baile
contaria com a presena de um grupo de passistas e uma bateria para animar os folies,
que preferem sambas ao frevo. 43, conforme anunciado na Tribuna do Norte. 44 Diante
disto, outro discurso vai sendo gestado sobre o carnaval do mesmo ano, tratava-se do
anuncio do baile a fantasia realizado pelo Iate Clube. 41 Noticia divulgada no Jornal Dirio de Natal. Natal em 12 de fevereiro de 1983. intitulada Os grandes bailes. 42 Noticia divulgada no Jornal Dirio de Natal. Natal em 10 de fevereiro de 1983. intitulada As festas se aproximam. 43 Noticia divulgada no Jornal Tribuna do Norte. Natal em 11 de fevereiro de 1982, intitulada Programao. 44 Noticia divulgada no Jornal Tribuna do Norte. Natal em 17 de fevereiro de 1982, intitulada Animao para os folies.
36
Os discursos veiculados pelos jornais, buscavam, atravs destas matrias,
divulgar as festas ocorridas de acordo com a moral e os bons costumes, no sendo
freqentadas por baderneiros ou desordeiros e, justamente por isso, constituam
ambientes familiares. Para aquele mesmo baile, no Iate Clube, outra nota reiterou: No
ser permitida a entrada sem apresentao do convite.45
Por conta de uma concepo fomentada, sobretudo pelos peridicos, que
associava o ato de beber ao de produzir desordens, afirmar que os blocos possuam
integrantes bbados era certamente uma forma de classificao pejorativa evitada por
muitos diretores de clubes carnavalescos e folies. O enquadramento como brios
estava a um passo da classificao como desordeiros ou briges.
Os integrantes dos blocos mostravam-se, pois, muito preocupados em dizer
publicamente que sua conduta estava de acordo com a ordem social que ocupavam; eles
afirmavam ainda estar conscientes de seus deveres. Alm disso, os diretores dos clubes,
atravs das notas enviadas a imprensa, buscavam visibilizar, como a presena feminina
nos bailes exigia dos integrantes masculinos uma conduta consoante com a moralidade e
a respeitabilidade. Eles no queriam, de modo algum, ser enquadrados nem como
bbados, nem como briges, pois conheciam muito bem como era a ao desses folies
que faziam desordens nas ruas.46
Em 1983, como publicou a Tribuna do Norte, o Atltico Clube Corinthians
realizaria um baile no seu salo intitulado: Preto e Branco remetendo as cores do time
que nomeavam o clube. Para fazer jus aquele ambiente seleto, os seus scios se
apresentariam vestindo uma finssima fantasia. A nota que anunciou o evento deixou
claro: no sero permitidas fantasias de outras cores, apenas pretas e brancas. Os
mesmos cuidados aparecem na organizao do baile fantasia do Caic Iate Clube. Para
que a festa ocorresse num ambiente de verdadeira elegncia, ficou estabelecido que o
traje devesse conter motivos hawaianos, visto que o baile temtico se chamava A Noite
do Hawai. Por ltimo, a mesma nota deixou claro: haver rigorosa seleo na
45 Noticia divulgada no Jornal Dirio de Natal. Natal em 21 de fevereiro de 1982, intitulada Bons costumes e tradio. 46 Noticia divulgada no Jornal Dirio de Natal. Natal em 23 de fevereiro de 1982, intitulada Os folies de clubes.
37
freqncia e ser verificado os trajes. Aps a referncia a temtica dos clubes, o
jornalista insiste na descrio das atividades dos bailes: 47
A banda pernambucana Scorpion cuidar da animao no Corinthians durante as cinco noites da folia e a banda Circuito Musical far a alegria nas manhs de sol no Iate Clube. Segundo Joo Bosco de Medeiros, presidente do Corinthians este ser o mais animado carnaval de Caic, apesar da crise que atinge o bolso da populao. Mesmo assim, j foram vendidas todas as mesas e quem quiser brincar o carnaval do Corinthians agora vai ter que esperar para o prximo ano.
Nas pginas do jornal Tribuna do Norte mas tambm em outros peridicos - foi
possvel encontrar notas que anunciavam festas bastante seletas. Um desses anncios
sobre os bailes carnavalescos na cidade de Caic tem como ttulo: Carnaval no
interior, e faz uma propaganda apresentando as opes de clubes:48
Quem preferir, contudo, um carnaval, interiorano, tem duas timas opes: Caic e Macau. Na primeira dois clubes programaram bailes para todos os dias: O Caic Esporte Clube ter festas durante o dia, ao passo que o Atltico Clube Corinthians organizou bailes noturnos.
Desta forma, existiam na cidade, dois carnavais que tinham seus festejos
ocorrendo em espaos diferentes, entretanto, o Jornal Tribuna do Norte ao anunciar os
possveis carnavais do interior potiguar e fazendo assim uma espcie de propaganda
desses carnavais, indicava a cidade de Caic para os seus leitores, especificamente os
carnavais que ocorriam nos clubes, espao onde figuravam os representantes da elite
caicoense.
Fosse nos anncios de seus festejos ou nas colunas a eles destinados pelos jornais
de grande circulao no estado do Rio Grande do Norte, ressaltava-se a primeira vista a
fora que os bailes vinham ganhando entre os habitantes de Caic. Formados por grupos
de classe mdia, estas associaes eram alvos de constantes cuidados e permanente
vigilncia, fosse por parte da policia local ou dos folies que tratavam de policiar a
conduta de outros folies.
Desta maneira, o Dirio de Natal vai construindo uma imagem e um discurso que
tentam representar e nomear o carnaval dos clubes naquele perodo como uma festa de
47 Noticia divulgada no Jornal Tribuna do Norte. Natal em 11de fevereiro de 1983, intitulada A Noite do Hawai. 48 Noticia divulgada no Jornal Tribuna do Norte. Natal em 15 de fevereiro de 1983, intitulada Carnaval no interior.
38
elite, que deveriam representar a sua classe com o uso de trajes elegantes, distintos e
custosos. Isso justificava a proibio de fantasias de suposta falsa elegncia ou quaisquer
outras que aquelas elites associassem aos inferiores folies da rua. As especificaes e
exigncias quanto aos trajes indicavam a preocupao com a exclusividade, com a
restrio e com a diferenciao. Do ponto de vista dos grupos sociais mais privilegiados,
a vestimenta manifestava uma simbolizao da posio social. Alm disso, a fantasia
utilizada era um instrumento de seleo dos convidados. Vestimentas de baixo valor ou
trajes que pudessem ser usados por qualquer bloco poderiam facilitar a invaso de
pessoas indesejadas. O que se percebe, mais uma vez, o compartilhamento da
preocupao em evitar as misturas com outras classes sociais.
Os scios daqueles to seletos clubes, entretanto, no eram os nicos responsveis
pelo carter restrito de suas festas. Em 1985, um grupo de jornalistas da imprensa local
tomou a si a tarefa de organizar os festejos carnavalescos os das elites atravs de
bailes; o