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Programa de Pós-Graduação em Genética Universidade Federal de Pernambuco Centro de Ciências Biológicas Departamento de Genética Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio cholerae O26, Isoladas de Processos Entéricos Humanos no Nordeste do Brasil Francisco André Marques de Oliveira Cariri RECIFE – PE 2008

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  • Programa de Pós-Graduação em Genética Universidade Federal de Pernambuco

    Centro de Ciências Biológicas Departamento de Genética

    Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio cholerae O26, Isoladas de Processos Entéricos Humanos no

    Nordeste do Brasil

    Francisco André Marques de Oliveira Cariri

    RECIFE – PE 2008

  • Francisco André Marques de Oliveira Cariri

    Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio cholerae O26, Isoladas de Processos Entéricos Humanos no Nordeste do Brasil

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

    Graduação em Genética da Universidade Federal

    de Pernambuco, como parte dos requisitos

    necessários para a obtenção do grau de Mestre em

    Genética.

    Orientador: Prof. Dr. Osvaldo Pompílio de Melo

    Neto, Depto. de Microbiologia, Centro de Pesquisas

    Aggeu Magalhães, CPqAM – FIOCRUZ.

    Co-Orientadora: Profa. Dra. Nilma Cintra Leal ,

    Depto. de Microbiologia, Centro de Pesquisas Aggeu

    Magalhães, CPqAM – FIOCRUZ.

    RECIFE – PE ABRIL, 2008

  • Cariri, Francisco André Marques de Oliveira

    Caracterização molecular de cepas de Vibrio

    cholerae O26, isoladas de processos entéricos

    humanos no nordeste do Brasil. / Francisco André

    Marques de Oliveira Cariri. – Recife: O Autor, 2008.

    90 fls. .: il.

    Dissertação (Mestrado em Genética) – UFPE. CCB

    1. Vibrio cholerae 2. Filologia 3. Cólera

    I.Título

    575.86 CDU (2ª. Ed.) UFPE

    576.88 CDD (22ª. Ed.) CCB – 2008 –065

  • Universidade Federal de Pernambuco Programa de Pós-Graduação em Genética

    PARECER DA COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE FRANCISCO ANDRÉ MARQUES DE OLIVEIRA CARIRI

    “Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio cholerae O26, Isoladas de Processos Entéricos Humanos no Nordeste do

    Brasil”

    Área de Concentração: BIOLOGIA MOLECULAR

    RECIFE - PE 2008

  • DEDICATÓRIA

    Aos meus pais, Abidias e Maria, queAos meus pais, Abidias e Maria, queAos meus pais, Abidias e Maria, queAos meus pais, Abidias e Maria, que,,,,

    acreditando no meu potencial, me prepararam acreditando no meu potencial, me prepararam acreditando no meu potencial, me prepararam acreditando no meu potencial, me prepararam

    para a vida. Elespara a vida. Elespara a vida. Elespara a vida. Eles são exemplos e são exemplos e são exemplos e são exemplos e estímuloestímuloestímuloestímulossss

    paraparaparapara a longa a longa a longa a longa e contínua e contínua e contínua e contínua caminhadacaminhadacaminhadacaminhada;;;;

    E à Carol E à Carol E à Carol E à Carol por todo carinho, apoio e por todo carinho, apoio e por todo carinho, apoio e por todo carinho, apoio e

    compreensãocompreensãocompreensãocompreensão, aceitando ter, aceitando ter, aceitando ter, aceitando ter----memememe pela metade pela metade pela metade pela metade

    durante durante durante durante a realização deste trabalhoa realização deste trabalhoa realização deste trabalhoa realização deste trabalho....

  • Sonhar, Sonhar, Sonhar, Sonhar, mmmmais um sonho impossível,ais um sonho impossível,ais um sonho impossível,ais um sonho impossível, Lutar, Lutar, Lutar, Lutar, qqqquando é fácil ceder,uando é fácil ceder,uando é fácil ceder,uando é fácil ceder, Vencer, Vencer, Vencer, Vencer, oooo inimigo invencível. inimigo invencível. inimigo invencível. inimigo invencível. Negar, Negar, Negar, Negar, qqqquanuanuanuando a regra é vender...do a regra é vender...do a regra é vender...do a regra é vender... Voar, Voar, Voar, Voar, nnnno limite improvável.o limite improvável.o limite improvável.o limite improvável. Tocar o inacessível chão...Tocar o inacessível chão...Tocar o inacessível chão...Tocar o inacessível chão... E assim seja lá como for,E assim seja lá como for,E assim seja lá como for,E assim seja lá como for, Vai ter fim a infinita afliçãoVai ter fim a infinita afliçãoVai ter fim a infinita afliçãoVai ter fim a infinita aflição E o mundo vai ver uma florE o mundo vai ver uma florE o mundo vai ver uma florE o mundo vai ver uma flor BrotarBrotarBrotarBrotar d d d do impossível chão.o impossível chão.o impossível chão.o impossível chão. iiiin: n: n: n: Sonho Impossível de Chico Buarque e Rui Guerrade Chico Buarque e Rui Guerrade Chico Buarque e Rui Guerrade Chico Buarque e Rui Guerra

    ... ... ... ... Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabeHoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabeHoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabeHoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe Só levo a certeza de que muito pouco eu seiSó levo a certeza de que muito pouco eu seiSó levo a certeza de que muito pouco eu seiSó levo a certeza de que muito pouco eu sei Ou nada seiOu nada seiOu nada seiOu nada sei Penso que cumprir a vida seja simplesmentePenso que cumprir a vida seja simplesmentePenso que cumprir a vida seja simplesmentePenso que cumprir a vida seja simplesmente Compreender a marcha e ir tocando em frente...Compreender a marcha e ir tocando em frente...Compreender a marcha e ir tocando em frente...Compreender a marcha e ir tocando em frente... ... Cada um de nós compõe ... Cada um de nós compõe ... Cada um de nós compõe ... Cada um de nós compõe a sua históriaa sua históriaa sua históriaa sua história Cada ser em si carrega o dom de ser capazCada ser em si carrega o dom de ser capazCada ser em si carrega o dom de ser capazCada ser em si carrega o dom de ser capaz E ser felizE ser felizE ser felizE ser feliz ... É preciso amor pra poder pulsar,... É preciso amor pra poder pulsar,... É preciso amor pra poder pulsar,... É preciso amor pra poder pulsar, É preciso paz pra poder sorrir,É preciso paz pra poder sorrir,É preciso paz pra poder sorrir,É preciso paz pra poder sorrir, É preciso a chuva para florirÉ preciso a chuva para florirÉ preciso a chuva para florirÉ preciso a chuva para florir in: in: in: in: Tocando em Frente Almir Sater e Renato TeixeiraAlmir Sater e Renato TeixeiraAlmir Sater e Renato TeixeiraAlmir Sater e Renato Teixeira

    “O processo criativo científico não é assim tão diferente do processo criativo das artes“O processo criativo científico não é assim tão diferente do processo criativo das artes“O processo criativo científico não é assim tão diferente do processo criativo das artes“O processo criativo científico não é assim tão diferente do processo criativo das artes, isto é, um veículo , isto é, um veículo , isto é, um veículo , isto é, um veículo de autodescoberta que se manifesta ao tentarmos capturar a nossa essência e lugar no universo.” de autodescoberta que se manifesta ao tentarmos capturar a nossa essência e lugar no universo.” de autodescoberta que se manifesta ao tentarmos capturar a nossa essência e lugar no universo.” de autodescoberta que se manifesta ao tentarmos capturar a nossa essência e lugar no universo.” in: in: in: in: A Dança do Universo Marcelo GleiserMarcelo GleiserMarcelo GleiserMarcelo Gleiser

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus pela minha saúde, pela minha família, pelos meus amigos e por permitir que eu realize meus sonhos;

    Aos meus orientadores, Dr. Osvaldo Pompílio de Melo Neto e Dra. Nilma Cintra Leal, pela oportunidade, pela confiaça, pela paciência, pelo incentivo, pelos ensinamentos, pelos conselhos e, sobretudo, pela amizade. Por eles tenho a mais sincera admiração pelo brilhantismo acadêmico e um profundo respeito. Serei sempre grato pelas orientações científicas criteriosas e críticas que muito contribuíram para a minha formação.

    Às doutoras Alzira, Cris e Marise (mãe de Luise) pela consideração, pela amizade e pelos ensinamentos diários;

    Aos colegas de bancada (Alexandra Farias, Ana Paula Campos, Betânia, Bruna Caiado, Carlos Júnior, Érika Costa, Gerlane Souza, Maria Adelaide Barbosa, Maria Paloma Barros, Mirele Araújo, Patrícia Rosa, Rosanny Benevides e especialmente à Ana Paula Costa, Camylla Melo, Carina Mendes, Christian Reis - Negão, Danielle Moura - Danona, Éden Freire, Eduardo Nunes, Dr. Franklin Magalhães, Isabelle Luz, Dr. José Ronnie Vasconcelos, Larissa Nascimento, Mariana Andrade, Mariana Marques Pereira [companheira de disciplinas do mestrado], Mariana Palma, Marília Nascimento, Patrícia Toniolo, Rafaela Andrade, Rodrigo Lima, Tamara De' Carli Lima, Vladimir Silveira Filho, Wagner Oliveira e Wellington Silva) pelas experiências trocadas e por compartilharmos o dia-a-dia. Aos amigos do Departamente de Entomologia;

    À Dra. Cássia Docena pela ajuda com o seqüenciamento e pela constante troca de idéias; e ao Dr. Valdir Balbino pelas valiosas dicas de bioinformática;

    Aos funcionários do Departamento de Microbiologia (Bruna Lima, Cláudio Araújo, Edson Dantas, Fernanda Melo, Isaac Martins - Martináutico, José Dantas, Kátia Farias, Marcos Marques, Nélson Santos, Patrícia Silva, Tarcísio Oliveira, Rita Silva, Silvana Santos e Yara Nakazawa) pela ajuda substancial e pela paciência. À Bruna e Raimundo pelo suporte técnico fotográfico.

    Ao Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães – FIOCRUZ por ser minha segunda casa, durante esses nove anos, onde encontrei minha vocação e aprendi que vale a pena investir cada segundo naquilo que gostamos de fazer;

    Aos órgãos de fomento (CNPq, CAPES, FACEPE e FIOCRUZ), pela bolsa concedida e pelo apoio financeiro para realizar os nossos experimentos;

    Aos doutores Antonio Carlos e Valdir Balbino, membros da pré-banca, pelas sugestões dadas à esta dissertação;

    Aos amigos do CCB, em especial, Adri, Airton, Plínio, Pabyton e Wal;

    À minha família e à “Carolinda” pelo apoio incondicional, pelo incentivo e pelos conselhos, quando necessário;

    E a todos que não foram citados, mas que foram igualmente importantes nesta jornada.

  • ÍNDICE

    TABELA.....................................................................................................................VIII

    LISTA DE FIGURAS................................................................................................... IX

    LISTA DE ABREVIATURAS.......................................................................................X

    RESUMO GERAL ....................................................................................................XIII

    ABSTRACT ............................................................................................................... XIV

    1 – INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 15

    2 – OBJETIVO GERAL .............................................................................................. 17

    2.1 – OBJETIVOS ESPECÍFICOS............................................................................. 17

    3 – REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................. 18

    3.1 – CÓLERA............................................................................................................ 18

    3.1.1 – SINTOMAS, TRANSMISSÃO E TRATAMENTO ................................ 18

    3.1.2 – EPIDEMIOLOGIA DA CÓLERA............................................................ 19

    3.1.3 – HISTÓRICO DA CÓLERA...................................................................... 20

    3.1.4 – DIAGNÓSTICO DA CÓLERA................................................................ 23

    3.2 – AGENTE ETIOLÓGICO................................................................................... 25

    3.2.1 – ECOLOGIA DO Vibrio cholerae.............................................................. 25

    3.2.1.1 – RESERVATÓRIO AMBIENTAL ...................................................... 26

    3.2.1.2 – ESTADO VIÁVEL MAS NÃO CULTIVÁVEL................................ 27

    3.2.2 - FATORES DE VIRULÊNCIA .................................................................. 29

    3.2.2.1 – A VPI................................................................................................... 29

    3.2.2.2 – O PROFAGO CTXφ............................................................................ 30

    3.2.2.3 – OUTROS FATORES DE VIRULÊNCIA........................................... 32

    3.2.3 – TAXONOMIA DO DOMÍNIO BACTÉRIA............................................ 33

    3.2.3.1 – FAMÍLIA VIBRIONACEAE ............................................................. 33

    3.2.3.2 – GÊNERO Vibrio.................................................................................. 34

    3.2.4 – ESPÉCIE Vibrio cholerae......................................................................... 35

    3.2.4.1 – CLASSIFICAÇÃO ANTIGÊNICA .................................................... 35

    3.2.4.2 – Vibrio cholerae O1 .............................................................................. 37

    3.2.4.3 – Vibrio cholerae O139 .......................................................................... 37

  • 3.2.4.4 – Vibrio cholerae NÃO-O1/ NÃO-O139 ............................................... 38

    3.2.4.5 – Vibrio cholerae O26 ............................................................................ 38

    3.2.5 – MÉTODOS MOLECULARES USADOS NA CLASSIFICAÇÃO

    BACTERIANA ......................................................................................... 39

    3.2.6 – OS GENES DE rRNA COMO MARCADORES MOLECULARES....... 39

    3.2.7 – REGIÃO ESPAÇADORA INTERGÊNICA DO rRNA 16S-23S ............ 41

    4 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 44

    5 – ARTIGO CIENTÍFICO A SER SUBMETIDO................................................... 56

    RESUMO ................................................................................................................... 57

    INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 58

    MATERIAL E MÉTODOS ........................................................................................ 60

    RESULTADOS .......................................................................................................... 63

    DISCUSSÃO.............................................................................................................. 68

    TABELAS .................................................................................................................. 71

    FIGURAS ................................................................................................................... 72

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 79

    6 – INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES........................................................... 83

    7 – CONCLUSÕES....................................................................................................... 84

    8 – ANEXO.................................................................................................................... 85

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... VIII

    TABELA

    Página

    Tabela 1 – Métodos moleculares usados para classificar Vibrio cholerae............................................................................................................................... 40

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... IX

    LISTA DE FIGURAS

    Página

    Figura 1 – Paciente apresentando sinais típicos da forma grave da cólera ......................... 18

    Figura 2 – Esquema evidenciando: A - A secreção da CT no lúmen intestinal; B - O aumento da concentração intracelular de cAMP; C - A secreção de sódio, cloro e água do meio intracelular para o lúmen ....................................................................................... 19

    Figura 3 – Número de casos de cólera no Mundo e taxa de mortalidade, entre 1991 e 2006 ..................................................................................................................................... 21

    Figura 4 – Distribuição da cólera no Brasil, entre 1990 e 1996, evidenciando a rota da epidemia ............................................................................................................................... 22

    Figura 5 – Número de casos de cólera em Brasil e taxa de mortalidade, entre 1991 e 2006 …................................................................................................................................. 23

    Figura 6 – Bacias hidrográficas do Estado de Pernmbuco – Brasil ................................... 23

    Figura 7 – Esquema do método tradicional de diagnóstico ............................................... 24

    Figura 8 – Esquema da Ilha de Patogenicidade evidenciando o conjunto de genes TCP, responsável pela expressão do fator de colonização, e demais genes envolvidos com a regulação .............................................................................................................................. 29

    Figura 9 – A - Esquema representativo da cascata regulatória que controla a expressão da toxina colérica (CT), evidenciando a ativação do gene ctxA pelo ToxT e a síntese da CT. B - Região intergênica onde se encontra as sequências repetidas de heptanucleotídeos. C - Seqüências parciais de nucleotídeo a montante do gene ctxA das cepas 0395 (Vibrio cholerae O1 Clássico) e 10259 (V. cholerae não-O1/não-O139) ........ 30

    Figura 10 – Esquema do profago CTXφ evidenciando a região central e a região RS2 .... 31

    Figura 11 – Fotomicrografia eletrônica evidenciando a morfologia do V. cholerae .......... 35

    Figura 12 – Esquema da região intergênica do rDNA (rrn), evidenciando a região espaçadora intergênica (ISR) composta de genes de tRNA e regiões não codificadores .... 41

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... X

    LISTA DE ABREVIATURAS

    µm Micrômetro

    °C Grau Celsius

    A Adenina

    AFLP Amplified Fragment Length Polymorphism – Polimorfismo do Comprimento dos Fragmentos Amplificados

    Ágar TCBS Ágar Tiossulfato/Citrato/Bile

    APA Água Peptonada Alcalina

    ARDRA Amplified Ribosomal DNA Restriction Analysis – Análise de Restrição do DNA Ribossomal Amplificado

    C Citosina

    cAMP Cyclic Adenosine Monophosphate – Adenosina Monofosfato Cíclico

    CT Cholera Toxin – Toxina Colérica

    DNA Deoxyribonucleic Acid – Ácido Desoxirribonucléico

    G Guanina

    gap gene da gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase

    gyrB gene da subunidade B da DNA Girase

    HSP Heat Shock Protein - Proteínas de Choque Térmico

    ISR Intergenic Spacer Regions – Região Espaçadora Intergênica

    LPS Lipopolissacarídeo

    MLEE Multilocus Enzyme Electrophoresis – Eletroforese de Enzima Multilocus

    MLST Multilocus Sequence Typing – Tipagem por Seqüenciamento de Multilocus

    mM Milimolar

    NaCl Cloreto de Sódio

    NaHCO3 Bicarbonato de Sódio

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... XI

    NH4Cl Cloreto de Amônio

    ORF Open reading frame – Região gênica codificadora

    pb Pares de Base

    PBS Phosphate Buffered Saline - Tampão Fosfato-Salino

    PCR Polymerase Chain Reaction – Reação em Cadeia da Polimerase

    pH Potencial hidrogeniônico

    PVDF Polyvinylidene Difluoride Membrane - Membranas de Polifluoreto de Vinilideno

    RAPD Random Amplified Polymorphic DNA – DNA Polimórfico Amplificado Aleatoriamente

    rDNA Ribosomal DNA – DNA Ribossomal

    recA gene da Recombinase A

    REP Repetitive Extragenic Palindromic – Palíndromos Repetitivos Extragênicos

    RFLP Restriction Fragment Length Polymorphism – Polimorfismo do Comprimento dos Fragmentos de Restrição

    RNA Ribonucleic Acid – Ácido Ribonucléico

    rpoB gene da subunidade beta da RNA polimerase

    rrn operon de RNA ribossomal

    rRNA Ribosomal RNA – RNA Ribossomal

    RS Repeats Sequences – Seqüências Repetidas

    RTX Repeat in toxin – Toxina em repetição

    TCA Trichloroacetic Acid - Ácido Tricloroacético

    TCBS Agar Thiosulfate Citrate Bile Salts Sucrose Agar – Agar Tiossulfato Citrato Bile Sacarose

    TCP Toxin-Coregulated Pilus – Pílus Corregulador de Toxina

    tRNA Transfer RNA – RNA Transportador

    tRNAAla tRNA que transporta o aminoácido Alanina

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... XII

    tRNAGlu tRNA que transporta o aminoácido Ácido glutâmico

    tRNAIle tRNA que transporta o aminoácido Isoleucina

    tRNALys tRNA que transporta o aminoácido Lisina

    tRNAVal tRNA que transporta o aminoácido Valina

    U Uracila

    VNC Viable but Nonculturable – Viável mas não Cultivável

    VPI Vibrio Pathogenicity Island – Ilha de Patogenicidade de Vibrio

    VSP Vibrio seventh pandemic island – Ilha de patogenicidade do Vibrio da sétima pandemia

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... XIII

    RESUMO GERAL

    A emergência do Vibrio cholerae sorogrupo O139 como um segundo agente

    etiológico da cólera serviu de alerta para o surgimento de outros clones epidêmicos que

    possam passar despercebidos pelos métodos tradicionais de diagnóstico da cólera,

    geralmente baseados no uso de antissoro contra o sorogrupo O1 tradicional. Em estudos

    prévios, a partir da análise de 179 cepas de V. cholerae não-O1/não-O139 isoladas de

    casos clínicos de cólera no Brasil, foram selecionadas sete cepas de V. cholerae O26, e

    outra cepa de sorogrupo não tipável (17155), que possuíam genes de virulência

    associados ao desenvolvimento desta enfermidade. Destas, duas cepas (4756 e 17155)

    possuíam o gene rfb, específico do sorogrupo O1, sugerindo serem genotipicamente

    deste sorogrupo, e também expressaram a toxina colérica (CT) em cultura. Este trabalho

    buscou uma análise genética mais detalhada destas oito cepas comparando a

    classificação sorológica com outros marcadores moleculares. Neste sentido foi realizada

    a amplificação, clonagem e seqüenciamento da região espaçadora ribossomal 16S-23S

    (ISR) de diferentes operons de V. cholerae. A partir da análise da seqüência de cinco

    grupos de operons distintos (de um total de 210 clones seqüenciados), foram

    construídas três árvores filogenéticas em que as cepas 4756 e 17155 ficaram agrupadas

    no mesmo clado com cepas O1 controle, e as demais cepas O26 foram agrupadas

    separadamente. Conclui-se, desta forma, que as cepas 4756 e 17155 são

    filogeneticamente do sorogrupo O1 e a diferença nos resultados de sorologia pode ser

    uma conseqüência de soroconversão provocada por mudanças em genes de biossíntese

    do antígeno O.

    Palavras-chaves: Vibrio cholerae não-O1/ não-O139, conversão sorológica, região

    espaçadora intergênica rRNA16S-23S, sistemática molecular

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... XIV

    ABSTRACT

    The emergence of the Vibrio cholerae O139 serogroup as a second ethiologic

    agent for cholera served as an alert to the rise of other epidemic strains that may pass

    unnoticed by traditional methods of diagnosis, usually based on the use of antiserum

    directed against the traditional O1 serogroup. In previous studies, out of 179 non-O1/

    non-O139 V. cholerae strains isolated from clinical cases during the cholera outbreak in

    Brazil, seven strains classified as V. cholerae O26 and one strain defined as not-typable

    (17155) were selected which contained virulence genes associated with the development

    of this disease. Two strains (4756 and 17155) contained the gene rfbN specific to the

    O1 serogroup, suggesting that genotypically they belonged to this serogroup, and were

    also able to express the cholera toxin in culture. Here a more detailed genetic analysis of

    these eight strains was carried out comparing the serological classification with other

    molecular markers. In this respect the 16S-23S rRNA intergenic spacer regions (ISRs)

    from the various V. cholerae operons were amplified, cloned and sequenced from each

    strain. From the analysis of the sequence of five operons (totalizing 210 sequenced

    clones), three phylogenetic trees were built in which strains 4756 and 17155 always

    clustered with control O1 strains, whilst the remaining O26 strains clustered separately.

    Thus, the two strains 4756 and 17155 phylogenetically belong to the O1 serogroup and

    the difference in the serological results may be a consequence of seroconversion caused

    by changes in the genes required for the biosynthesis of the antigen O.

    Keywords: Vibrio cholerae non-O1/ non-O139, serological conversion, 16S/23S rRNA intergenic spacer regions, Molecular systematic

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 15

    1 – INTRODUÇÃO

    A cólera é uma doença infecciosa intestinal exclusiva dos seres humanos (Kaper

    et al., 1995). O seu agente etiológico é o Vibrio cholerae, que foi identificado por Koch,

    a partir da correlação entre a etiologia e a transmissão da doença (Sack et al., 2004).

    A espécie Vibrio cholerae Pacini, 1854 utiliza a glicose, sacarose e manitol nas

    suas vias metabólicas anaeróbicas. A base da identificação e da classificação sorológica

    desta espécie é o antígeno “O”, um polissacarídeo termoestável integrante do

    lipopolissacarídeo (LPS) de superfície que apresenta uma enorme diversidade (Yamai et

    al., 1997). Os determinantes antigênicos do LPS são aglutinados com antissoro para o

    antígeno “O” específico. Desta forma, mais de 200 sorogrupos de V. cholerae foram

    identificados (Sack et al., 2004) e o primeiro deles foi denominado de V. cholerae

    sorogrupo O1.

    Os genes de biossíntese do antígeno O estão localizados no conjunto de genes

    wbe, que apresenta entre outras características, regiões conservadas nas suas

    extremidades. Isso permite que cepas de diferentes sorogrupos possam ser

    soroconvertidas em outro sorogrupo após a recombinação homóloga desta região,

    aglutinando assim com o mesmo antissoro O (Colwell, 1996). Desta forma, é destacado

    o caráter falho da classificação sorológica, que não é coerente com aspectos

    filogenéticos.

    Historicamente, as cepas de V. cholerae O1 têm sido responsabilizadas pelas

    sete pandemias ocorridas (Karaolis et al., 1995). No entanto, em 1992, com a

    emergência do novo clone epidêmico, o V. cholerae O139, surgiu um novo modelo de

    classificação epidemiológica: V. cholerae O1, V. cholerae O139 e V. cholerae não-

    O1/não-O139 (Nair, 1994). O interesse na estrutura patogênica dos sorogrupos de V.

    cholerae não-O1/não-O139 só foi concretizado com a emergência deste novo

    sorogrupo, que funcionou como um alerta para o surgimento de outros clones

    epidêmicos.

    A patogenicidade de V. cholerae, em nível molecular, é um processo

    multifatorial, que envolve diversos genes que codificam os fatores de virulência,

    permitindo sua colonização no intestino (gene tcpA), a expressão coordenada destes

    fatores e a secreção da toxina colérica - CT (genes ctxAB). Os principais genes de

    virulência estão localizados em duas regiões distintas do cromossomo maior do V.

    cholerae: a Ilha de Patogenicidade de Vibrio (VPI - Vibrio Pathogenicity Island) e o

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 16

    profago CTXφ. Tais regiões podem propagar-se horizontalmente e dispersar-se entre

    diferentes cepas (Waldor e Mekalanos, 1996), permitindo, assim, que cepas de V.

    cholerae não-O1/ não-O139 possuam genes de virulência.

    Theophilo e colaboradores (2006), a partir da análise de 179 amostras de V.

    cholerae não-O1/não-O139, isoladas de casos clínicos e ambientais durante surto de

    cólera ocorrido no Brasil (entre 1991 a 2000), destacam 14 cepas de V. cholerae do

    sorogrupo O26 e uma cepa de V. cholerae não-O1/não-O139 por possuirem genes do

    profago CTXφ. Destas, oito cepas que apresentaram o profago completo foram

    selecionadas para o presente trabalho.

    Uma vez que a classificação sorológica, utilizada como um importante critério

    epidemiológico, não permite a inferência do grau de parentesco entre diferentes

    sorogrupos, este trabalho buscou uma análise genética mais detalhada de cepas de V.

    cholerae não-O1/não-O139, abordando a região espaçadora intergênica 16S-23S (ISR)

    presente nos operons de rRNA. Neste contexto, a região espaçadora se enquadra por ser

    um marcador filogenético robusto, diante da possibilidade de soroconversão de uma

    cepa de sorogrupo O1 em outro sorogrupo, mantendo, contudo, o potencial de

    virulência do V. cholerae O1.

    Este trabalho teve então como objetivo principal analisar região espaçadora

    intergênica 16S-23S do rDNA, a fim de estabelecer uma relação de parentesco entre as

    cepas de V. cholerae O26 e compará-las com o sorogrupo O1.

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 17

    2 – OBJETIVO GERAL

    Analisar região espaçadora intergênica 16S-23S do rDNA, a fim de estabelecer

    uma relação de parentesco entre as cepas de V. cholerae O26 e compará-las com o

    sorogrupo O1.

    2.1 – OBJETIVOS ESPECÍFICOS

    � Amplificar as oito regiões espaçadoras 16S-23S de cepas de V. cholerae não-

    O1/não-O139 e V. cholerae O1;

    � Clonar e sequenciar os fragmentos amplificados.

    � Analisar as seqüências obtidas, comparando-as com aquelas disponíveis de

    genomas seqüenciados de V. cholerae e outras bactérias;

    � Correlacionar os resultados obtidos com a presença ou não de fatores de

    virulência e a proximidade destas cepas com o sorogrupo O1.

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 18

    3 – REFERENCIAL TEÓRICO 3.1 – CÓLERA 3.1.1 – SINTOMAS, TRANSMISSÃO E TRATAMENTO

    A cólera é uma doença infecciosa intestinal aguda de transmissão fecal-oral, que

    acomete os seres humanos (Kaper et al., 1995). Essa infecção é causada pela

    enterotoxina do Vibrio cholerae dos sorogrupos O1 e O139, podendo apresentar

    manifestações clínicas diversas, que variam da forma branda, que se manifesta com

    diarréia leve, à forma grave com diarréia aquosa e profusa, com ou sem vômitos, dor

    abdominal e câimbras, que pode evoluir para desidratação, podendo levar a morte em

    horas (Nitrini et al., 1997; Fundação Nacional de Saúde, 2002) (Figura 1).

    Figura 1 – Paciente apresentando sinais típicos da forma grave da cólera com severa desidratação. Adaptado de Sack et al., 2004.

    A infecção começa com a ingestão de água ou alimentos contaminados com o V.

    cholerae. Após atravessar a barreira ácida do estômago, o V. cholerae coloniza o

    epitélio do intestino delgado, por meio do Pílus Corregulador de Toxina (TCP) e outros

    fatores de colonização, que ainda não estão bem conhecidos, multiplica-se no intestino

    delgado proximal e produz enterotoxina. A Toxina Colérica (CT) secretada age sobre o

    mecanismo fisiológico de transporte de íons nas células do epitélio intestinal, elevando

    a concentração intracelular de cAMP, o qual aumenta a secreção do íon cloro (Cl-) e

    diminui a absorção do íon sódio (Na+) pelas células das vilosidades (Field, 1980),

    formando um gradiente osmótico que contribui para perda de água intracelular e resulta

    na diarréia característica (Figura 2). O vibrião não é invasivo e permanece no lúmen do

    intestino durante toda a progressão da doença.

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 19

    AA B

    C

    Figura 2 – Esquema do mecanismo de ação da toxina colérica (CT) nos enterócitos: A - Secreção da CT no lúmen intestinal; B - Aumento da concentração intracelular de cAMP; C - Secreção de sódio, cloro e água do meio intracelular para o lúmen. Adaptado do site , acesso 28 abr 2008.

    3.1.2 – EPIDEMIOLOGIA DA CÓLERA

    A cólera, sendo uma doença de veiculação hídrica, apresenta uma disseminação

    influenciada pelos aspectos climáticos que afetam a disponibilidade de água. Nas áreas

    endêmicas, as taxas anuais de indivíduos com cólera variam de acordo com as

    mudanças ambientais e climáticas (Pascual et al., 2000). Tal comportamento sazonal

    pode ser observado em Bangladesh, local endêmico, em que ocorrem anualmente dois

    surtos de cólera: um registrado antes da estação quente e o outro depois das monções

    chuvosas (Siddique et al., 1992; Sack et al., 2003). No Peru, as epidemias de cólera são

    restritas às estações quentes (Tauxe et al., 1995). Esta sazonalidade pode estar

    relacionada à habilidade do gênero Vibrio em crescer rapidamente sob elevadas

    temperaturas ambientais (Faruque et al., 1998a; Pascual et al., 2000). O registro de

    casos de cólera, no Brasil, foi maior nos períodos mais secos do ano, quando registrado

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 20

    um baixo volume de água nos reservatórios e mananciais, proporcionando a

    concentração de vibriões. A elevação da temperatura da água neste período favorece o

    rápido crescimento da população de V. cholerae (Sack et al., 2004).

    Em algumas áreas, as condições sócio-econômicas e ambientais favorecem a

    instalação e rápida disseminação do V. cholerae. Assim, a deficiência do abastecimento

    de água tratada, destino inadequado dos dejetos, alta densidade populacional, carências

    de habitação, higiene, alimentação e educação, favorecem a ocorrência da doença

    (Fundação Nacional de Saúde, 2002; Gonçalves e Hofer, 2005). Outro aspecto que

    favorece a disseminação da doença é a forma atenuada da virulência do V. cholerae O1

    biotipo El Tor, que apresenta um elevado número de portadores assintomáticos. O

    quadro clínico da cólera provocada pelo V. cholerae O1, biotipo El Tor, responsável

    pela pandemia atual, é uma síndrome diarréica mais branda do que a provocada pelo

    biotipo Clássico, responsável pelas outras seis pandemias (Kaper et al., 1995).

    Para causar a cólera em voluntários saudáveis é necessária a ingestão de uma

    elevada dose infecciosa (108 bactérias), porém uma dose baixa (105) pode ser suficiente

    para causar os mesmos sintomas, se for associada com antiácido ou bicarbonato de

    sódio (NaHCO3), que neutralizaram a acidez gástrica dos indivíduos. Logo, a

    suscetibilidade do indivíduo aumenta elevando-se o pH gástrico. Ainda assim, sob

    circunstâncias naturais, um inóculo menor que 108 bactérias pode causar a doença, visto

    que outros fatores interferem na infecção (Sack et al., 1998; Fundação Nacional de

    Saúde, 2002).

    3.1.3 – HISTÓRICO DA CÓLERA

    As seis primeiras pandemias da cólera se originaram na Índia, considerada o

    “Berço da cólera”, tendo como agente etiológico o V. cholerae O1 biotipo Clássico. A

    disseminação destas pandemias foi associada às peregrinações, às guerras e às rotas

    comerciais e migratórias entre os continentes europeu, asiático e americano (Lacey,

    1995). Já a atual pandemia, a sétima, com quase cinco décadas de duração, atingiu mais

    de 130 países, tendo como agente etiológico o V. cholerae O1 biotipo El Tor (Kaper et

    al., 1995; Karaolis et al., 1995). Esta pandemia, originária da Indonésia em 1961,

    atingiu a Ásia em 1964, a África e o sul da Europa em 1970, e América do Sul em 1991.

    A doença tornou-se agora endêmica em muitos destes lugares, particularmente no sul da

    Ásia e na África (Shears, 1994; Faruque et al., 1998a; Sack et al., 2004).

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 21

    Em janeiro de 1991, após uma ausência de quase 70 anos na América Latina,

    uma grande epidemia de cólera desenvolveu-se no Peru, caracterizada por elevados

    números de casos e rápida disseminação, nunca vista igual nas outras epidemias (Nitrini

    et al., 1997). Estima-se que, no período de 1991 até 1999, o continente americano

    notificou 44% dos casos ocorridos mundialmente e no período de 2000 até 2003, apenas

    0,65% dos casos (Griffith et al., 2006; World Health Organization, 1992, 1993, 1994,

    1995).

    Griffith e colaboradores (2006) constataram que, entre o período de 1995 a

    2005, 66% dos casos de cólera tiveram origem na África subsaariana, seguido pelos

    16,8% originados do sudeste asiático. Os casos de cólera notificados na África tendem a

    apresentar grandes proporções, devido às precárias condições sócio-econômicas da

    população. O número de casos notificados de cólera em 2006 aumentou

    consideravelmente, assumindo proporções típicas de surto da doença (Figura 3). Foram

    notificados na África aproximadamente 99% dos casos mundiais. Os três países

    africanos mais atingidos não tiveram casos de cólera registrados em 2005 (World Health

    Organization, 2007).

    Figura 3 – Número de casos de cólera no Mundo e taxa de mortalidade, entre 1991 e 2006. Adaptado da

    World Health Organization, 1993 – 1995, 2007 e de Griffith et al., 2006.

    A re-introdução da cólera no Brasil, em 1991, aconteceu pela selva amazônica,

    na fronteira com o Peru e a Colômbia. A partir daí, alastrou-se progressivamente pela

    região Norte, seguindo o curso do Rio Solimões/Amazonas e seus afluentes, principal

    via de deslocamento de pessoas na região; e para as regiões Nordeste em 1992 e Sudeste

    e Sul em 1993, através dos principais eixos rodoviários (Figura 4). Na região Nordeste,

    216.

    555

    143.

    349

    137.

    071 1

    84.3

    11

    142.

    311

    111.

    575

    101.

    383

    131.

    943

    236.

    896

    208.

    755

    172.

    790

    277.

    056

    180.

    348

    293.

    121

    254.

    310

    147.

    425

    0

    50.000

    100.000

    150.000

    200.000

    250.000

    300.000

    1991

    1992

    1993

    1994

    1995

    1996

    1997

    1998

    1999

    2000

    2001

    2002

    2003

    2004

    2005

    2006

    Ano

    Núm

    ero

    de c

    asos

    0

    3.000

    6.000

    9.000

    12.000

    15.000

    18.000

    21.000

    24.000

    27.000

    30.000

    Núm

    ero

    de ó

    bito

    sNº de Casos

    Nº de Óbitos

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 22

    a epidemia assumiu um caráter acelerado disseminando-se por todos os estados da

    região até o fim de 1993 (Hofer, 1993; Toledo, 1993). A chegada desta doença em áreas

    indenes e com precárias condições de vida, teve quase sempre características

    explosivas, o que justifica esse rápido avanço da cólera no Nordeste.

    Figura 4 – Distribuição da cólera no Brasil, entre 1990 e 1996, evidenciando a rota da epidemia. Adaptado da World Health Organization (1993 - 1997).

    A epidemia atingiu o ápice em 1993 com 60.340 casos notificados (Figura 5).

    Foi desenvolvida uma campanha nacional de combate à cólera e, em 1994, a doença

    começou a retroceder (Guthmann, 1995; Nitrini et al., 1997). A partir de 1995 reduziu-

    se significativamente, tendendo a limitar-se às regiões Nordeste e Norte, onde

    prevalecem condições sócio-econômicas menos satisfatórias, sugerindo a tendência de

    endemização da doença (Brasil, 2000). Em 1998 e 1999, a seca no Nordeste provocou

    uma severa crise de abastecimento de água, favorecendo ao aumento de número de

    casos (Figura 5). Em 2004, ocorreu um pequeno surto em Pernambuco, no município de

    São Bento do Una, onde foram notificados 21 casos; e no ano seguinte, foram

    confirmados mais quatro no mesmo município e um caso no município de Recife

    (Figura 6) (Brasil, 2005).

    A doença, atualmente, está sendo detectada pela presença do V. cholerae em

    águas ambientais em localidades do estado de Pernambuco monitoradas pela Secretaria

    estatual de Saúde. Este monitoramento isolou em 2006 uma cepa ambiental toxigênica e

    em 2007, quatro cepas de V. cholerae O1 biotipo El Tor (uma no rio Una, duas no rio

    Ipojuca e outra no rio Bituri, afluente do rio Ipojuca) (Figura 6). É sempre preocupante

    a possibilidade de recrudescimento da epidemia, já que as dimensões continentais do

    país, as deficiências de saneamento básico e a precária situação sócio-econômica de

    grande parcela da população constituem-se elementos propícios à disseminação e à

    persistência da cólera (Brasil, 1992; Gonçalves e Hofer, 2005).

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 23

    37.5

    72

    60.3

    40

    51.3

    24

    15.9

    15

    4.63

    4

    2.88

    1

    2.57

    1

    3.23

    3

    715

    7 0 0 21 5 0

    2.10

    3

    0

    10.000

    20.000

    30.000

    40.000

    50.000

    60.000

    70.000

    1991

    1992

    1993

    1994

    1995

    1996

    1997

    1998

    1999

    2000

    2001

    2002

    2003

    2004

    2005

    2006

    ano

    Núm

    ero

    de c

    asos

    0

    100

    200

    300

    400

    500

    600

    700

    800

    900

    1000

    Núm

    ero

    de ó

    bito

    sNº de CasosNº de Óbitos

    Figura 5 – Número de casos de cólera em Brasil e taxa de mortalidade, entre 1991 e 2006. Adaptado da

    World Health Organization, 1993 – 1995; 2007 e de Griffith et al., 2006.

    Figura 6 – Bacias hidrográficas do Estado de Pernmbuco – Brasil. Adaptado de Leal et al., 2008.

    3.1.4 – DIAGNÓSTICO DA CÓLERA

    O diagnóstico da cólera é a peça fundamental para o êxito das atividades de

    prevenção e controle da doença. O diagnóstico laboratorial é o mais indicado para a

    identificação do V. cholerae O1, El Tor, responsável pelos casos de cólera branda. Os

    países recém-afetados pela doença, quando não estabelecem o diagnóstico laboratorial

    nos primeiros casos, prejudicam consideravelmente a implantação de medidas sanitárias

    indispensáveis ao controle da doença (Brasil, 1992). Portanto, este diagnóstico deve ser

    utilizado para investigação de todos os casos suspeitos, principalmente, quando a área é

    considerada livre de circulação do V. cholerae (Fundação Nacional de Saúde, 2002).

    Brasil

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 24

    O V. cholerae pode ser isolado, a partir da cultura de amostras de fezes ou

    vômito de doentes, de fezes de portadores e da cultura de amostras ambientais. Os

    métodos tradicionais de diagnóstico da cólera, tanto em fezes, quanto em material

    proveniente do ambiente (água do mar, de rios e alimentos) consistem em análises

    bacteriológicas que visam isolar e identificar o V. cholerae, baseado nas características

    fenotípicas (Brasil, 1998). As amostras analisadas pelo método tradicional passam por

    dois enriquecimentos sucessivos do vibrião em água peptonada alcalina (APA) e semeio

    em meio seletivo indicador (ágar TCBS - ágar tiossulfato/citrato/bile), conforme a

    Figura 7. Posteriormente, são realizados testes bioquímicos, confirmando a presença de

    características metabólicas e a capacidade de produzir a toxina colérica, e sorológicos,

    soroaglutinações frente aos antissoros polivalentes (O1) e monovalentes (Inaba e

    Ogawa) (Brasil, 1998).

    Figura 7 – Esquema do método tradicional de diagnóstico. Adaptado do Ministério da Saúde (Brasil, 1998).

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 25

    3.2 – AGENTE ETIOLÓGICO

    Em 1883, durante a quinta pandemia, o V. cholerae foi identificado como agente

    etiológico da cólera por Koch, a partir da correlação entre a etiologia e a transmissão da

    doença (Sack et al., 2004). O V. cholerae O1, biotipos Clássico ou El Tor (sorotipos

    Inaba, Ogawa ou Hikojima) e o V. cholerae O139 são os agentes etiológicos de cólera

    epidêmica.

    3.2.1 – ECOLOGIA DO Vibrio cholerae O ciclo de vida do V. cholerae consiste em duas fases: uma fase no hospedeiro

    humano e outra, no ambiente aquático, onde o V. cholerae pode ser encontrado como

    célula de vida livre ou associado ecologicamente com fanerógamas aquáticas, algas,

    zoobentos, fungos, zoo e fitoplânctons (principalmente copépodes, cladóceros, rotíferos,

    clorófitas e cianobactérias), insetos, entre outros organismos (Huq et al., 1984; Islam et

    al., 1990; Tamplin et al., 1990; Islam et al., 1993; Colwell, 1996).

    Acreditou-se por muito tempo que a distribuição global do V. cholerae estivesse

    exclusivamente relacionada à rota da cólera. No entanto, estudos sugerem que o

    deslocamento destas bactérias em associação com plânctons é o principal fator de

    distribuição global (McCarthy e Khambaty, 1994). Assim, o V. cholerae ambiental

    sobrevive e se multiplica em associações ecológicas independentemente do início das

    infecções humanas (Sanyal, 2000; Bartlett e Azam, 2005).

    Estudos do ambiente aquático mostraram que o V. cholerae, incluindo os

    sorogrupos O1 e O139, habita ecossistemas aquáticos, contribuindo para a flora

    bacteriana de vida livre em rios e estuários (Colwell e Spira, 1992). Enquanto que as

    cepas de V. cholerae toxigênicas podem também habitar o trato gastrointestinal, pois

    produzem fatores de colonização que permitem tal feito, as cepas não-O1/não-O139 são

    mais freqüentemente isoladas em habitats ambientais. A maioria das cepas toxigênicas

    ambientais é isolada em regiões que foram contaminados por indivíduos infectados. Já

    as cepas isoladas de ambientes distantes das regiões com casos notificados, geralmente

    não possuem os genes da toxina colérica.

    O V. cholerae ambiental pode formar biofilme (Watnick et al., 2001) e pode se

    apresentar no estado viável mas não-cultivável (VNC), em resposta a um estresse físico

    ou nutricional (Colwell, 2000), facilitando a persistência do V. cholerae, em habitats

    aquáticos durante períodos interepidêmicos (Reidl e Klose, 2002). Islam e

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 26

    colaboradores (1993) verificaram que as cepas de V. cholerae epidêmicas, durante

    períodos interepidêmicos, fazem associações ecológicas com organismos aquáticos, na

    forma VNC, até o próximo período epidêmico, quando os fatores ambientais estimulam

    a multiplicação bacteriana, resultando em um novo surto de cólera.

    Embora não se conheça o que determina a sazonalidade da cólera, acredita-se

    que a sua presença endêmica no subcontinente indiano e sua re-emergência em outros

    continentes pode estar relacionada a fatores ambientais (Pascual et al., 2000; Colwell,

    1996). Estudos associam períodos interepidêmicos à alta concentração de bacteriófagos

    no ambiente aquático. Tais fagos, além de possuírem importantes genes de virulência da

    cólera, como as subunidades da toxina colérica, atuam no controle populacional do V.

    cholerae (Faruque et al., 1998b). Assim, a ausência de fagos no ambiente aquático

    potencializará a cólera epidêmica, em especial, quando o V. cholerae é introduzido pela

    primeira vez em uma dada região. Isso justifica o caráter explosivo das epidemias de

    cólera quando o agente etiológico foi recém introduzido em áreas livre da doença, como

    ocorreu na América Latina e, mais recentemente, na África (Faruque et al., 2005). O

    ciclo de vida do fago pode explicar grande parte da enigmática sazonalidade da cólera

    endêmica.

    Duas hipóteses são sugeridas para justificar a sazonalidade dos surtos em áreas

    endêmicas: seja pelo surgimento periódico das mesmas cepas de V. cholerae, seja pela

    emergência contínua de novos clones toxigênicos (Faruque et al., 1997).

    3.2.1.1 – RESERVATÓRIO AMBIENTAL

    As associações ecológicas prolongam a sobrevivência do V. cholerae, pois são

    importantes fontes de nutrientes para o vibrião. No entanto, ainda não se sabe se tais

    associações são fenômenos gerais para todos os sorogrupos ou são específicas para os

    sorogrupos epidêmicos, tratando-se de um mecanismo seletivo (Bartlett e Azam, 2005).

    A infecção do V. cholerae provocada pelo consumo de frutos do mar, crus ou

    mal cozidos, é um indício do quão diversificados são os reservatórios ambientais deste

    organismo. A ingestão de peixes, ostras, camarões e caranguejos constituem fontes de

    infecção, sendo identificados como causa de epidemias ou casos isolados de cólera nos

    Estados Unidos, Itália, Portugal e Austrália, entre outros países (Feachem, 1982; Lowry

    et al., 1989).

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 27

    O V. cholerae possui vários reservatórios ambientais porque desenvolveu ao

    longo da evolução mecanismos que o permitem sobreviver no ambiente. Pode-se citar

    como exemplo, a produção de quitinase, que permite o uso da quitina como fonte de

    carbono bastante abundante no exoesqueleto dos crustáceos (Colwell e Spira, 1992). A

    adesão direta de V. cholerae a superfícies contendo quitina permite a formação de

    biofilmes favorecendo sua proteção contra os efeitos do pH ácido encontrado

    ocasionalmente no ambiente (Nalim et al., 1979; Faruque et al., 2006).

    É relatado que existe uma seletiva especificidade da quitinase extracelular do V.

    cholerae, contribuindo para a formação preferencial de biofilmes em copépodes (Huq et

    al., 1990). Assim, a produção desta enzima permite a relação ecológica entre o V.

    cholerae e os crustáceos. Estudos mostram que copépodes marinhos albergam uma flora

    bacteriana em seu exoesqueleto e que esta interação pode ser decisiva na sobrevivência

    ambiental do V. cholerae por longo período, visto que o mesmo é transportado para o

    sedimento, sempre que a coluna de água apresenta grande concentração de matéria

    orgânica (Huq et al., 1983; 1984; Araújo et al., 1996; Tamplin et al., 1990). Os víbrios,

    quando associados à copépodes vivos em laboratório, sobreviveram por mais tempo e

    permaneceram cultiváveis (Huq et al., 1983). A concentração de bactérias do gênero

    Vibrio dissolvidas na água estuarina cai consideravelmente na presença de quitina

    particulada (Kaneko e Colwell, 1975), demonstrando o quão benéfica é esta associação

    para o V. cholerae.

    A alta adaptabilidade às variações de temperatura e salinidade favorece a

    ocorrência de elevadas concentrações de víbrios em águas com características estuarinas

    (Colwell, 1996). Outro mecanismo de persistência desta espécie no ambiente é a sua

    capacidade de assumir formas de sobrevivência, como a forma rugosa e o estado viável

    mas não-cultivável.

    3.2.1.2 – ESTADO VIÁVEL MAS NÃO CULTIVÁVEL

    Investigando as condições físico-químicas das regiões estuarinas, verificou-se

    que esses ambientes apresentam características que tornam possível a sobrevivência do

    V. cholerae O1 (Colwell e Spira, 1992; Colwell e Huq, 1994). A forma como irá

    sobreviver pode diferir e a persistência dos fatores envolvidos na conservação dos genes

    de virulência não é certa. A sobrevivência depende de diversos fatores, tais como as

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 28

    propriedades físico-químicas do ambiente e as associações ecológicas específicas das

    bactérias, envolvendo diversos componentes do ambiente aquático. Fatores ambientais,

    como pH, temperatura, salinidade e concentração de nutrientes, exercem importante

    influência nas interações ecológicas do V. cholerae, principalmente se tais condições

    ambientais forem parecidas com as encontradas no estuário (Huq et al., 1984; Patel et

    al., 1995).

    Os vibriões coléricos sob circunstâncias de estresse (falta de nutrientes, elevação

    da salinidade ou redução de temperatura) assumem como estratégia de sobrevivência

    um estado de latência. Esta estratégia é conhecida como estado viável mas não

    cultivável (VNC) nos meios de culturas convencionais, impossibilitando seu isolamento

    por técnicas microbiológicas, embora ainda causem a infecção colérica (Colwell e Huq,

    1994). Trata-se, portanto, de uma estratégia da resistência à ambientes aquáticos

    oligotróficos, em que a bactéria reduz de tamanho, torna-se ovóide e entra no estado de

    dormência permitindo a sua sobrevivência nas condições ambientais adversas por

    períodos prolongados (Colwell, 1996). Existe uma hipótese de que o V. cholerae

    sobreviveria no meio ambiente durante períodos interepidêmicos no estado VNC. No

    entanto, como já foi discutido, a sua interação com o plâncton desempenha um papel

    importante na ecologia do microrganismo e facilita a sobrevivência (Lobitz et al.,

    2000).

    O estado viável mas não cultivável pode ser induzido em laboratório, incubando

    a cultura de V. cholerae sob condições de estresse salino a 48 °C, por vários dias.

    Segundo estudos preliminares, estas células podem se tornar viáveis quando ingeridas

    por voluntários humanos (Colwell e Spira, 1992). A manutenção do potencial infeccioso

    da bactéria nessa condição, o torna de grande importância epidemiológica (Colwell,

    1996; Binsztein et al., 2004). O emprego da imunofluorescência indireta para a

    demonstração da bactéria em amostras de água e, posteriormente, a associação com a

    contagem direta de células viáveis permitiu a detecção de formas VNC do vibrião

    colérico em ambientes aquáticos (Colwell et al., 1985; Xu et al., 1984).

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 29

    3.2.2 - FATORES DE VIRULÊNCIA

    No V. cholerae, os principais genes de virulência requeridos para a

    patogenicidade estão agrupados e podem aparentemente propagar-se horizontalmente e

    dispersar-se entre diferentes cepas. Análises genéticas revelaram a presença de duas

    regiões principais que participam diretamente dos mecanismos de virulência: a Ilha de

    Patogenicidade de Vibrio (VPI) e o profago CTXφ (Waldor e Mekalanos, 1996).

    3.2.2.1 – A VPI A VPI (Figura 8) é uma região do DNA adquirida, apresentando o conjunto de

    genes tcpAHP (toxin-coregulated pilus), que codificam o fator de colonização; e genes

    de regulação que atuam em cascata, como o toxR, acfABCD, toxT, aldA e tagAB. A

    expressão de genes de virulência em V. cholerae envolve um grande número de etapas

    que culminam na ativação do promotor do toxR (Skorupski e Taylor, 1997). O ToxR

    liga-se a um motivo de DNA repetido em tandem (TTTTGAT) (Figura 9), localizado

    entre os genes zot e ctxA do profago CTXφ para ativar a transcrição dos genes ctxAB

    (Withey e Dirita, 2006). Cepas epidêmicas dos sorogrupos O1 e O139 possuem três ou

    mais cópias do heptanucleotídeo nessa região. Cepas de V. cholerae que possuem

    apenas duas cópias do heptanucleotídeo não são capazes de expressar a CT (Sarkar et

    al., 2002).

    Figura 8 – Esquema da Ilha de Patogenicidade do Vibrio, evidenciando o conjunto de genes TCP, responsável pela expressão do fator de colonização, e demais genes envolvidos com a regulação. Adaptado de Zhang et al. (2003).

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 30

    Figura 9 – A - Esquema representativo da cascata regulatória que controla a expressão da toxina colérica (CT), evidenciando a ativação do gene ctxA pelo ToxT e a síntese da CT. RNAP, a RNA polimerase. Pequenas setas abaixo das caixas indicam promotores, assim como a direção da transcrição. A linha ondulada grossa indica mRNA. B - Região intergênica onde se encontra as sequências repetidas de heptanucleotídeos. C - Seqüências parciais de nucleotídeo a montante do gene ctxA das cepas 0395 (Vibrio cholerae O1 Clássico) e 10259 (V. cholerae não-O1/não-O139), evidenciando o número de cópias do heptanucleotídeo nessa região presente em cada uma destas. Adaptado de Sarkar et al. (2002) e de Sanchez et al. (2004).

    3.2.2.2 – O PROFAGO CTXφφφφ Os genes ctxAB, que codificam a CT, principal fator de virulência do V.

    cholerae, estão localizados em um bacteriófago lisogênico conhecido como CTXφ ou

    elemento genético CTX (Figura 10). Esse bacteriófago possui uma região central (core),

    que é flanqueada por uma ou múltiplas cópias das seqüências repetidas – RS (Pearson et

    al., 1993). O profago CTXφ compreende a região do core e a do RS presente antes do

    core, denominada RS2. A região central (core) codifica a CT, que não contribui para a

    manuntenção do profago, e outros genes que codificam proteínas, como psh, cep, orfU e

    ace, que atuam no empacotamento e na liberação do fago (Waldor e Mekalanos, 1996).

    C

    A

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 31

    Figura 10 – Esquema do profago CTXφ evidenciando a região central e a região RS2. A região núcleo apresenta genes ctxAB, codificadores da toxina colérica, e outros genes de virulência. A região RS2 codifica proteínas estruturais do profago. Já região RS1, embora não faça parte do profago, o flanqueia nas duas estremidades e possui o gene rstC, que traduz uma proteína anti-repressora do profago. Adaptado de Nandi et al. (2003) e de Maiti et al. (2006).

    A molécula da CT é constituída por cinco subunidades B (codificado pelo gene

    ctxB) e uma subunidade A (ctxA). A subunidade B é responsável pela ligação da toxina

    a um receptor da célula intestinal e a subunidade A é a parte enzimaticamente ativa que

    atua sobre as células da mucosa intestinal provocando desequilíbrio hidroeletrolítico,

    resultando na secreção abundante de líquido isotônico. Outros peptídeos codificados

    pelos genes zot e ace, presentes na região core do CTXφ, também apresentam atividade

    enterotóxica (Fasano et al., 1991). Já a região RS2 codifica proteínas que estão

    envolvidas na regulação (gene rstR), na replicação (gene rstA) e na integração (gene

    rstB) de CTXφ no genoma de V. cholerae (Waldor et al., 1997). A RS1 flanqueia as

    extremidades do profago.

    Embora a forma lisogênica do profago CTXφ seja mantida pela proteína

    repressora fágica RstR, a proteína anti-repressora RstC, que influencia a replicação e

    transmissão do CTXφ, é codificada na RS1, região adjacente ao seu genoma (Davis et

    al., 2002). Por outro lado, a região RS1 necessita de cópias dos genes de manuntenção

    do CTXφ (rstR, rstA e rstB) para produzir partículas RS1 (Figura 10), demonstrando

    que existe uma interação simbiótica e parasitária entre o fago e a região RS1 (Faruque et

    al., 2002). Portanto, a interação entre o profago CTXφ e RS1 promove a eficiente

    propagação dos genes produtores da CT, intensificando a virulência e as relações

    evolutivas das cepas de V. cholerae.

    São relatados diferentes alelos para o gene rstR, estando cada alelo associado a

    um tipo distinto de profago CTXφ. O profago que apresenta o alelo rstR El Tor, típico

    do V. cholerae O1 El Tor, é denominado CTXETφ. Assim, o CTXclassφ é típico do V.

    cholerae O1 Clássico; o CTXCalcφ do V. cholerae O139 (Davis et al., 1999); o CTXEnvφ

    Central

    Profago CTX

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 32

    do V. cholerae não-O1/ não-O139 (Mukhopadhyay et al., 2001); e o CTXvarφ presentes

    nos isolados de V. cholerae El Tor pré-O139 (Nandi et al., 2003).

    O profago CTXφ pode ser encontrado intracelularmente como um plasmídeo ou

    incorporado a um dos cromossomos do V. cholerae. Sob condições apropriadas, as

    cepas toxigênicas do V. cholerae podem ser induzidas a produzir várias partículas do

    CTXφ (Waldor e Mekalanos, 1996; Faruque et al., 1998b). Nas culturas de V. cholerae,

    que apresentam o CTXφ na fase de replicação, são encontradas elevadas concentrações

    deste fago no sobrenadante. As cepas ambientais não toxigênicas podem ser convertidas

    por transdução, surgindo assim novas cepas toxigênicas (Reidl e Klose, 2002).

    3.2.2.3 – OUTROS FATORES DE VIRULÊNCIA

    É evidente o papel crucial desempenhado pelos fagos filamentosos na

    transferência horizontal de genes entre cepas de V. cholerae. Isto não ocorre apenas

    porque alguns fagos possuem em seu genoma grupos gênicos associados à virulência,

    mas também porque a estrutura flexível do capsídeo permite transferir DNA heterólogo

    (Faruque e Mekalanos, 2003).

    Os clones de V. cholerae patogênicos evoluíram, provavelmente, de clones

    aquáticos de vida livre que adquiriram a capacidade de colonizar o intestino humano

    pela aquisição de novas informações genéticas (Colwell e Spira, 1992). A ausência de

    conjuntos de genes associados à virulência nas cepas não patogênicas é uma evidência

    que corrobora a hipótese evolutiva acima. De fato, a análise da estrutura, do conteúdo

    GC e da freqüência de códons (codon usage) da VPI sugere que esta região foi

    recentemente adquirida pelo V. cholerae. O CTXφ, que codifica CT, utiliza a TCP como

    sua receptora para infectar novas cepas (Waldor e Mekalanos, 1996), e, portanto, estes

    dois elementos adquiridos horizontalmente estão ligados evolutivamente.

    Outros conjuntos de genes que têm papéis adicionais hipotéticos na patogênese

    do V. cholerae também foram relatados, e segundo alguns indícios, foram também

    recentemente adquiridos. Estes incluem o conjunto de genes RTX (toxina em repeat)

    (Lin et al., 1999), o novo conjunto de genes pílus tipo IV (Fullner e Mekalanos, 1999) e

    as Ilhas do Vibrio da sétima pandemia (VSP-1 e VPS-2) (O’Shea et al., 2004).

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 33

    3.2.3 – TAXONOMIA DO DOMÍNIO BACTÉRIA

    O Manual de Sistemática Bacteriológica de Bergey descreve 32 agrupamentos

    de bactérias pertencentes ao domínio Bactéria (Eubactéria), compreendendo 384

    gêneros. Segundo Woese (1987), a análise de seqüências de rDNA 16S de organismos

    cultivados permite descrever 12 divisões para o domínio Bactéria. O termo divisão é

    aplicado para um grupo filogenético contendo duas ou mais seqüências de rDNA 16S

    monofiléticas e não similar a outros grupos filogenéticos que integram o domínio.

    Utilizando o mesmo marcador molecular, Hugenholtz e colaboradores (1998),

    acrescentou ao domínio Bactéria 12 novas divisões hipotéticas, descritas em um

    levantamento metagenômico do meio ambiente e outras 12 divisões descendentes

    descritas em outros estudos (Maidak et al., 1999). Assim, este Domínio compreende 36

    divisões.

    A divisão Proteobacteria, também conhecida como bactérias púrpuras, é

    merecedora de destaque por constituir o maior e mais diverso grupo de bactérias

    cultivadas, com cerca de 1.600 espécies descritas (Thompson et al., 2004a). Segundo

    Kersters e colaboradores (2003), a classificação das Proteobactérias na categoria

    taxonômica “divisão” teria caído em desuso, sendo recomendado o uso da categoria

    “filo”. De acordo com esta nova classificação, o filo Proteobacteria é dividido em 5

    classes fenotipicamente indistinguíveis (Thompson et al., 2004a): Alfa (α), Beta (β),

    Gama (γ), Delta (δ) e Epsilonproteobacteria (ε).

    As Proteobactérias apresentam coloração Gram-negativa e uma enorme

    diversidade morfológica e fisiológica (sobretudo metabólica), apesar de estarem no

    mesmo clado. As estratégias para obtenção de energia são variadas, incluindo

    organismos com metabolismo quimiolitotrófico, quimiorganotróficos e fototrófico, além

    de outras vias metabólicas especializadas em organismos adaptados a diversos nichos

    ecológicos. A classe Gamaproteobacteria compreende várias famílias, entre estas

    Aeromonadaceae, Chromatiaceae, Enterobacteriaceae, Legionellaceae, Pasteurellaceae,

    Xanthomonadaceae e Vibrionaceae (Thompson et al., 2004a).

    3.2.3.1 – FAMÍLIA VIBRIONACEAE

    O V. cholerae é uma bactéria Gram-negativa toxigênica pertencente à família

    Vibrionaceae. O gênero-tipo desta família é Vibrio Pacini, 1854 (Baumann e Schubert,

    1984). As espécies pertencentes a esta família são bacilos retos ou curvos, móveis por

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 34

    meio de flagelo polar. Quando cultivadas em meio de cultura sólido apresentam flagelos

    laterais, podendo cada célula possuir até 100 flagelos. Não formam endósporos nem

    microcistos. São organismos quimiorganotróficos e anaeróbios facultativos,

    apresentando metabolismo oxidativo e fermentativo. O oxigênio é o aceptor universal

    de elétrons durante a respiração. A maioria das espécies desta família é oxidase positiva.

    Todos utilizam a D-glicose como principal fonte de carbono e energia. A maioria dos

    indivíduos utiliza sais de amônio como fonte de nitrogênio.

    Originalmente, são habitantes aquáticos encontrados no mar, em água doce e em

    associações ecológicas com seres aquáticos. Algumas espécies são patogênicas para

    vertebrados e invertebrados (Baumann e Schubert, 1984). Uma importante função

    ecológica dessas bactérias é a degradação da quitina, o segundo biopolímero mais

    comum no mundo e o mais abundante no ambiente aquático (Meibom et al., 2004).

    Quando a família Vibrionaceae foi proposta por Véron em 1965, compreendia

    vários gêneros que apresentavam indivíduos oxidase positivos e que se deslocavam por

    meio de flagelo polar. Tais características sinapomórficas não implicam numa relação

    evolutiva entre as espécies, mas foi proposto por conveniência para diferenciação das

    espécies pertencentes à família Enterobacteriaceae, que são, por sua vez, oxidase

    negativas e possuem flagelos peritriquiais. Estudos posteriores de fisiologia e genética

    comparada, com membros das duas famílias, sugerem que evoluíram de um ancestral

    comum próximo (Baumann e Schubert, 1984). A origem evolutiva comum foi

    evidenciada a partir comparação de seqüências 5S do RNA ribossomal e hibridização do

    rRNA utilizando sonda de DNA (Baumann e Baumann, 1981).

    A família Vibrionaceae abriga oito gêneros (Vibrio, Allomonas, Catenococcus,

    Enterovibrio, Grimontia, Listonella, Photobacterium e Salinivibrio), sendo o gênero

    Vibrio o mais abundante (Thompson e Swings, 2006).

    3.2.3.2 – GÊNERO Vibrio

    A espécie-tipo deste gênero é Vibrio cholerae Pacini, 1854 (Baumann et al.,

    1984). As espécies do gênero Vibrio são bacilos com 0,5-0,8 µm de diâmetro e 1,4-2,6

    µm de comprimento. Algumas espécies podem crescer em meio mineral contendo

    apenas D-glicose e NH4Cl. Os íons de sódio estimulam o crescimento de todas as

    espécies e são de extrema importância para algumas. Algumas espécies crescem bem

    em meio à base de água do mar. Todas as espécies utilizam D-glicose, D-frutose,

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 35

    maltose e glicerol. A fermentação de D-glicose, geralmente, não produz gás. A maioria

    das espécies cresce a 20ºC (Baumann et al., 1984).

    Os membros deste gênero são encontrados em associações ecológicas com

    organismos bênticos, fito e zooplâncton e em ambientes marinhos e estuarinos, com

    ampla faixa de variação de salinidade. São encontradas também algumas espécies em

    habitats de água doce. Algumas espécies deste gênero são patogênicas para o homem e

    outras para os animais marinhos (Baumann et al., 1984).

    Este gênero compreende 47 espécies (Euzéby, 1997), entre as quais se destaca o

    V. cholerae por ser o agente etiológico de sete pandemias de cólera. O V. cholerae e o

    V. mimicus são filogeneticamente próximos dentro do gênero Vibrio (Thompson et al.,

    2004a). Estas duas espécies apresentam genomas bastante relacionados, sugerindo um

    ancestral comum recente.

    3.2.4 – ESPÉCIE Vibrio cholerae

    O Vibrio cholerae Pacini, 1854 (Figura 11) utiliza em suas vias metabólicas

    anaeróbicas glicose, sacarose e manitol e é lisina e ornitina descarboxilases positivas.

    Esse organismo é classificado por testes bioquímicos e é subdividido em sorogrupos

    baseados no antígeno somático “O” (Sack et al., 2004).

    Figura 11 – Fotomicrografia eletrônica evidenciando a morfologia do V. cholerae. Adaptado de Albert (1994).

    3.2.4.1 – CLASSIFICAÇÃO ANTIGÊNICA

    O antígeno “O” é um polissacarídeo termoestável integrante do lipolissacarídeo

    (LPS) da parede celular das bactérias Gram-negativas, sendo constituído de três frações

    (“A”, “B” e “C”). Por apresentar uma enorme diversidade, este antígeno é a base da

    identificação e da classificação sorológica da espécie V. cholerae (Yamai et al., 1997).

    Os determinantes antigênicos de superfície são aglutinados com antissoro para o

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 36

    antígeno “O” específico, sendo identificados mais de 200 sorogrupos de V. cholerae

    (Sack et al., 2004). O primeiro a ser identificado foi denominado de V. cholerae

    sorogrupo O1.

    Os diferentes sorogrupos “O” de V. cholerae não podem ser distingüidos

    bioquimicamente, portanto a sua identificação baseia-se no fato de que o sorogrupo O1

    possui apenas um antígeno “O”, o qual reagirá especificamente aglutinando-se com o

    antissoro O1. Epidemiologicamente, a espécie V. cholerae tem sido dividida em cepas

    do sorogrupo O1 e de sorogrupos diversos, denominados não-O1, as quais se imaginou,

    por muito tempo, que tinham diferentes capacidades patogênicas (Colwell, 1996).

    Porém, em 1992, surgiu um novo clone epidêmico, o V. cholerae O139, dando origem a

    um novo modelo de classificação epidemiológica: V. cholerae O1, V. cholerae O139 e

    V. cholerae não-O1/ não-O139 (Nair, 1994, Sack et al., 2004).

    O conjunto de genes wbe de V. cholerae O1, constituído de genes de biossíntese

    do antígeno O (O-PS), está localizado no cromossomo maior, entre as ORFs VC0240

    (gene gmhD) e VC0264 (gene rjg) (Heidelberg et al., 2000). Este conjunto de genes

    consiste em cinco regiões: 1 – biossíntese da perosamina, compreendendo os genes

    manC, manB, gmd e wbeE (Stroeher et al., 1995); 2 – transportador do antígeno O,

    compreendendo os genes wbeG, wzm e wzt (Manning et al., 1994; Manning et al.,

    1995); 3 – biossíntese do tetronato, compreendendo os genes wbeK, wbeL, wbeM,

    wbeN e wbeO (Stroeher et al., 1998); 4 – modificador de antígeno O, compreendendo o

    gene wbeT (Stroeher et al., 1992; Hisatsune et al., 1993); e 5 – genes adicionais,

    compreendendo o gene wbeU, wbeV e wbeW (Fallarino et al., 1997).

    A possibilidade de recombinação homóloga entre o conjunto de genes de

    biossíntese do antígeno O foi testada em 300 cepas de V. cholerae não-O1 e não-O139

    (Li et al., 2002). Destas, quatro cepas não-O1, sorogrupos O27, O37, O53 e O65,

    apresentaram a organização genética similar à do sorogrupo O1, sugerindo a

    recombinação desta região. Yamasaki e colaboradores (1999) sugerem que a

    emergência do sorogrupo O139 é resultado da transferência horizontal de genes do

    sorogrupo O1 e O22.

    O estreito parentesco genético da linhagem ancestral do V. cholerae O1 El Tor

    com o novo serogrupo O139 (Stroeher et al., 1995; Li et al., 2002), a existência de

    diferentes cassetes codificadores do antígeno O presentes no mesmo locus

    cromossômico (Stroeher et al., 1995; Li et al., 2002), bem como a presença de regiões

    similares em ambos os lados deste cluster (Stroeher et al., 1997), apoiam firmemente a

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 37

    hipótese de que algum tipo de transferência horizontal de genes teria ocorrido (Li et al.,

    2002; Mooi e Bik, 1997; Faruque et al., 2003; Chatterjee e Chaudhuri, 2004). No

    entanto, nem o mecanismo de transferência genética, nem o contexto ecológico em que

    este ocorreu foram elucidados (Blokesch e Schoolnik, 2007).

    3.2.4.2 – Vibrio cholerae O1

    O V. cholerae O1 tem sido associado à cólera pandêmica. No entanto, cepas

    ambientais O1, de áreas não epidêmicas, usualmente não produzem a toxina colérica

    (CT), sendo, portanto, consideradas não patogênicas (Levine et al., 1982). Este

    sorogrupo, a depender da constituição antigênica, pode ser subdividido em três

    sorotipos: Inaba, Ogawa e Hikojima. O sorotipo Inaba possui as frações de antígeno

    “A” e “C”; e o Ogawa possui as frações “A” e “B”. O Hikojima é um sorotipo muito

    raro e instável, possuindo as três frações do antígeno “O”, sendo considerado como um

    sorotipo de transição (Manning et al., 1994).

    Além dos sorotipos, o V. cholerae O1 pode ser dividido em dois biotipos: o

    Clássico e o El Tor, que são diferenciados através de características fenotípicas, como a

    sensibilidade ao bacteriófago IV e a polimixina B (Kay et al., 1994). As cepas de cada

    biotipo podem ser Inaba, Ogawa ou Hikojima, elaborando a mesma enterotoxina, de

    forma que o quadro clínico é bastante semelhante. Em uma epidemia, tende a

    predominar um único sorotipo (São Paulo, 2001).

    O biotipo El Tor, isolado por Gotschlich, em 1906, que foi examinado na

    estação de quarentena de El Tor, no Egito, é o agente etiológico da atual pandemia de

    cólera. A virulência deste biotipo é atenuada apresentando um considerável aumento no

    número de portadores sadios. Além disso, a resistência deste biotipo é maior que o

    Clássico, o que lhe confere condições de sobreviver por mais tempo no meio ambiente,

    crescer melhor e mais rápido em meios de cultura, ser menos susceptível aos agentes

    químicos e ter maior tendência à endemização (Fundação Nacional de Saúde, 2002).

    3.2.4.3 – Vibrio cholerae O139

    O V. cholerae O139 foi o primeiro sorogrupo não-O1 identificado, em 1992,

    como agente etiológico de uma grande epidemia no sul da Ásia, com considerável

    mortalidade. Até então, acreditava-se que apenas o sorogrupo O1 era patogênico. As

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 38

    enterotoxinas elaboradas pelo sorogrupo O139 são similares e ocasionam quadros

    clínicos muito semelhantes aos do sorogrupo O1 (Fundação Nacional de Saúde, 2002).

    O V. cholerae O139, também conhecido como Bengal, é um híbrido dos

    sorogrupos O1 El Tor e O22, apresentando características importantes de virulência

    típicas do V. cholerae O1 (Rhine e Taylor, 1994), como os genes da toxina colérica

    (ctxAB) e do pílus corregulador da toxina (tcpA); e a capacidade de expressar um

    cápsula polissacarídica, típica dos sorogrupos não-O1 (Hall et al., 1993).

    3.2.4.4 – Vibrio cholerae NÃO-O1/ NÃO-O139

    Embora a grande maioria das cepas de V. cholerae não-O1/não-O139 não seja

    toxigênica, algumas possuem a capacidade de produzir toxinas e outros fatores

    associados à virulência da espécie. Estas cepas já foram identificadas como

    responsáveis por ocasionar patologias extra-intestinais, diarréias com desidratação

    severa semelhante à cólera, estando associados a casos isolados ou surtos muito

    limitados (Morris Jr. et al., 1990; Sack et al., 2004). A ocorrência de tantos fatores de

    virulência nos diferentes sorogrupos não-O1/não-O139, sugere que a patogenicidade

    destas bactérias seja multifatorial, não dependendo de um único mecanismo para causar

    a doença. O interesse na estrutura patogênica V. cholerae não-O1/não-O139 só foi

    concretizado com a emergência do sorogrupo O139, cuja epidemia funcionou como um

    alerta para o surgimento de outros clones epidêmicos. De forma similar ao sorogrupo

    O1, estas cepas não obedecem a um critério rígido de classificação quanto ao seu poder

    toxigênico.

    3.2.4.5 – Vibrio cholerae O26 Cepas de V. cholerae O26 representaram 7,8% das 179 amostras de V. cholerae

    não O1/ não O139, isoladas de casos clínicos e do meio ambiente, durante o surto de

    cólera no Brasil (1991 a 2000) (Theophilo et al., 2006). Predominantemente, nesse

    sorogrupo (e em outra cepa de V. cholerae de sorogrupo não tipável) foi evidenciado o

    cassete de virulência CTXφ intacto.

  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 39

    3.2.5 – MÉTODOS MOLECULARES USADOS NA CLASSIFICAÇÃO BACTERIANA Uma variedade de técnicas fenotípicas e genômicas tornou-se disponível para a

    identificação do V. cholerae nas últimas três décadas (Thompson et al., 2004a). A

    Tabela 1 apresenta algumas destas técnicas que contribuem com valiosas informações

    sobre a classificação e estrutura populacional do V. cholerae. Diante destas técnicas, o

    seqüenciamento da região espaçadora intergênica de rRNA 16S-23S (ISR) se destaca

    por ter a capacidade discriminatória de classificar níveis taxonômicos inferiores a

    espécie.

    3.2.6 – OS GENES DE rRNA COMO MARCADORES MOLECULARES

    As bactérias apresentam variações morfológicas simples, não sendo, portanto,

    um caráter robusto para a sua classificação filogenética. A fisiologia bacteriana, embora

    limitada com alguns agrupamentos artificiais, auxilia melhor esta classificação, pois

    características fisiológicas são compartilhadas entre grupos próximos de espécies

    bacterianas (Woese, 1987). Com o advento do seqüenciamento de ácidos nucléicos, a

    sistemática molecular bacteriana ganhou a sua principal ferramenta. Na prática, todas as

    relações filogenéticas puderam ser determinadas de forma mais fácil, com maior

    profundidade e riqueza de detalhes (Lane et al., 1985). As moléculas mais úteis para a

    medida filogenética possuem uma alta estabilidade funcional compartilhada entre

    diversos grupos taxonômicos e são conhecidas como marcadores filogenéticos (Gevers

    et al., 2004). Entre os marcadores mais promissores para a inferência filogenética

    bacteriana destacam-se as proteínas de choque térmico HSP60 e HSP70, e os genes

    rRNAs 16S e 23S, recA, gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase (gap), rpoB e gyrB

    (Byun et al., 1999).

    Nas últimas duas décadas, o uso de seqüências codificadoras de rRNAs (5S, 16S

    e 23S), como marcadores para identificação taxonômica, permitiu a restruturação da

    filogenia bacteriana. Em muitos casos, os resultados filogenéticos obtidos pelo

    seqüenciamento de genes de rRNA sugeriram que os agrupamentos de bactérias feitos

    pelos critérios clássicos, aspectos morfológicos e bioquímicos, eram inconsistentes.

    Nesse aspecto, o gene do rRNA 5S, apesar de sua seqüência ter sido utilizada para

    reclassificar algumas espécies da família Vibrionaceae (MacDonell e Colwell, 1985), é

    de uso limitado para reconstruir filogenias, provavelmente devido ao seu pequeno

    tamanho (cerca de 120 pb) (Woese, 1987). Já o gene de rRNA 16S, que apresenta cerca

  • Tabela 1 – Métodos moleculares usados para classificar Vibrio cholerae.

    Método Princípio do método Poder discriminatório Referências

    Hibridação DNA-DNA A região específica do genoma ou o DNA genômico purificado da amostra a ser testada é hibridizado com DNA marcado da linhagem de referência.

    De gênero a sorogrupo Pang et al., (2007)

    RFLP

    Fragmentos de genes amplificados por PCR (rRNA 16S, gyrB e rpoD) ou o DNA genômico é digerido com uma enzima de restrição e, posteriormente, esse material é separado por eletroforese em gel de agarose. Pode-se, hibridizar com sondas marcadas para reduzir o número de bandas.

    De espécie a sorogrupo Qu et al., (2003); Nandi et al., (2003)

    Amplificação de DNA

    (AFLP, ARDRA, ERIC-PCR, RAPD, rep-PCR e Ribotipagem-PCR)

    Amplificação do DNA por PCR, produzindo diferentes perfis associado ou não, a digestão com enzimas de restrição.

    De gênero a sorogrupo

    Singh et al., (2001); Theophilo et al., (2006); Leal et al., (2004); Lee et al., (2006); Chun et al., (1999); Danin-Poleg et al., (2007)

    MLEE Eletroforese de enzimas constitutivas. De gênero a sorogrupo Farfan et al., (2000)

    MLST PCR e seqüenciamento. De gênero a sorogrupo Rivera et al., (1995)

    Seqüenciamento do gene rRNA 16S e recA

    PCR e seqüenciamento. De família a espécie Thompson et al., (2004b)

    Seqüenciamento da região intergênica ribossomal - ISR

    PCR e seqüenciamento. De espécie a sorogrupo Chun et al., (1999); Ghatak et al., (2005)

    Amplificação dos genes rfb PCR com primers específicos para a região do antígeno O1 e O139.

    Sorogrupo Hoshino et al., (1998)

    Micro arranjo de DNA Amplificação de 4.600 cDNA conhecidos e catalogados, posterior fixação destes numa lâmina especial e hibridação com as sondas de interesse.

    De gênero a sorogrupo Pang et al., (2007)

    CA

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    rio... 40

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  • CARIRI, F.A.M.O. Caracterização Molecular de Cepas de Vibrio... 41

    de 1.500 pb, inclui regiões altamente conservadas, que permitem o agrupamento em

    categorias taxonômicas maiores, como classes e filos; e regiões variáveis, que podem

    discriminar espécies dentro do mesmo gênero. Esta característica fez com que as

    seqüências de rRNA 16S fossem amplamente utilizadas como uma ferramenta na

    identificação e como um marcador filogenético (Wiik et al., 1995). Para se ter idéia foi

    criado o projeto Banco de Dados Ribossomal II (Ribosomal Database