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Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Literatura CONDIÇÕES PARA A PRODUÇÃO DE CIBERNARRATIVAS A PARTIR DO CONCEITO DE IMERSÃO Carlos Henrique Rezende Falci Florianópolis 2007

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Universidade Federal de Santa Catarina

Programa de Pós-Graduação em Literatura

CONDIÇÕES PARA A PRODUÇÃO DE CIBERNARRATIVAS A

PARTIR DO CONCEITO DE IMERSÃO

Carlos Henrique Rezende Falci

Florianópolis 2007

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Carlos Henrique Rezende Falci

CONDIÇÕES PARA A PRODUÇÃO DE CIBERNARRATIVAS A

PARTIR DO CONCEITO DE IMERSÃO

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para obtenção do título de Doutor em Literatura – Teoria Literária.

Orientador: Alckmar Luiz dos Santos

Florianópolis 2007

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Carlos Henrique Rezende Falci

Condições para a produção de cibernarrativas a partir do conceito de imersão

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Literatura – Teoria Literária, em 22 de novembro 2007.

Alckmar Luiz dos Santos

__________________________________________________________ Alckmar Luiz dos Santos – Doutor em Literatura (orientador) – (UFSC)

Maria Lucia Santaella Braga __________________________________________________________ Maria Lucia Santaella Braga – Doutora em Literatura - (PUC SP)

Gilbertto dos Santos Prado __________________________________________________________ Gilbertto dos Santos Prado – Doutor em Artes e Ciências da Arte – (USP)

Marcos José Muller __________________________________________________________ Marcos José Muller – Doutor em Filosofia – (UFSC)

Walter Carlos Costa __________________________________________________________ Walter Carlos Costa – Doutor em Inglês – (UFSC)

Susana Célia Leandro Scramim

Susana Célia Leandro Scramim – Doutora em Letras – (UFSC) (suplente)

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Para meus pais e minha filha, distensões da minha alma.

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AGRADECIMENTOS

Essa tese surgiu em conversas várias, mas quero aqui lembrar de uma muito especial, que

simboliza todos os encontros que me trouxeram até esse momento. Estive um dia na casa de Vera

Casa Nova, num feriado em Belo Horizonte, e conversamos (ela falou mais que eu, o que é uma

proeza) durante toda a tarde sobre idéias ainda muito desconexas que eu tinha para uma tese. Nesse

dia a Vera me fez perceber que eu tinha uma inquietação boa, e que aquilo podia virar uma tese.

Depois, em 2002, ela me convidou para integrar uma mesa na Abralic, e lá encontrei o Alckmar. Fica

aqui, assim, meu carinho para com a Vera, sempre.

Antes de agradecer ao Alckmar, fica aqui meu agradecimento à moça que o convidou para

assistir a minha mesa. Se não me engano, o nome dela era Janaína, do Rio de Janeiro. Ela esteve

numa mesa da Abralic no dia anterior, onde todos aqueles que pesquisavam a relação entre literatura

e meios digitais estavam presentes. Não fosse por esse convite também sem quê nem porquê, não

teria sido interrogado duramente pelo Alckmar após a minha apresentação. Afinal, achava então que

ninguém da mesa anterior apareceria naquele outro dia.

Assim, chego ao Alckmar, que tem um estilo muito próprio de ser. Esse estilo se revela, penso

eu, na vontade de produzir e na vontade do risco. Risco que assumiu ao me convidar para

estendermos a conversa da mesa, e que se traduziu depois na orientação dessa tese. Desde o início

me fez perceber que caminharia ao meu lado, evitando definir caminhos. Antes, preferiu apostar

naqueles que sugeri, sem descuidar de discutir rotas, atalhos, caminhos mais longos, desvios.

Orientou-me não no sentido de me levar pelo caminho, mas de apoiar-me em todos os meus passos,

mesmo quando incertos.

Deixo aqui também para Taís e Alckmar, e para os seus filhos, o meu muito, muitíssimo

obrigado pelo acolhimento em sua casa, quando comecei a tese e não sabia direito nem como

começar a andar em Florianópolis. Eles não me hospedaram simplesmente: me receberam como um

amigo de muito tempo, com quem se compartilha uma amizade sem reservas. Assim, sem reservas,

paro aqui também sem palavras para dizer de uma gratidão que deixa o coração sempre cheio.

Na caminhada toda nem sempre escolhi os melhores caminhos, nem sempre escolhi os piores.

E assim, cheguei até aqui não conseguindo preservar todos os encontros da minha vida. Mas fica

aqui registrado o encontro com a Patrícia, que um dia me fez entender melhor a literatura e a vida, e

me fez perceber que eu podia caminhar por ali. Ainda que a gente não se encontre mais, no meu

caminho tem a presença dela, e isso é bom de saber e de ter.

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Para minha família de Santa Tereza, que me acolheu numa hora difícil, em que não havia muito

rumo em nada, e em que essa tese parecia não querer existir mais. Vocês todos, Cássia, Jardel, Malu,

Augusto, Matilde, Gustavo, Levindo, Gustavo (é outro, é outro) e outros que habitam essa “casa” me

lembram sempre de ser um pouco mais leve, de buscar mais o encontro, de me fazer no meio das

gentes todas, das coisas inteiras. Vocês me lembram um adesivo de carro “Olhe bem as montanhas”,

e não me deixam esquecer que, quando a gente se sente muito pequeno, é bom olhar pro horizonte,

porque a gente sabe olhar grande, é só desejar.

Quando comecei a tese, minha vida mudou muito, em função de muitas outras coisas. Em

2003 havia muita confusão à minha volta, e não conseguia organizar uma linha de ação clara.

Quando convidei a Daniela Serra para me auxiliar em um trabalho mais que árduo na PUC, não

imaginava que isso seria o mínimo que ela faria no meio da minha caminhada. E isso não é pouco,

definitivamente. Dividir com ela esse trabalho me fez perceber como é fundamental buscar um

pouco de equilíbrio, como é necessário comemorar as conquistas e viver as realizações, porque isso

não é se acomodar, é se preparar para viver feliz, todo dia. Para a Dani, para o Edu e para o Artur

que são uma família muito bacana, fica aqui meu carinho também.

Tive a alegria de poder dividir com a Elisa angústias de trabalho, de filhos, de orçamentos, de

decisões ruins e boas, de grandes acertos, de projetos muito bacanas, mesmo que não sejam

exatamente frutos para essa tese ou dessa tese. Há nela uma calma e um cuidado que fazem entender

que a pressa é realmente inimiga da perfeição. E que é possível andar rápido, sabendo dar os passos

na hora certa. Assim faço presente essa figura de riso fácil, de amizade leve e intensa.

Edu, Geane e André, vocês dividem comigo conversas muitas, textos longos, caminhos nem

sempre prontos. Para cada um há um jeito de falar, um jeito de encontrar. Do Edu tiro aqui uma

“orientação” conjunta num quarto de hospital, uma conversa em que falei muito, mas o pouco que

ouvi foi da intensidade que só o Edu sabe dar para as coisas. Geane, fazemos parcerias muito boas,

mesmo sem planejar. Isso é a marca dos nossos encontros para mim: o caminho conceitual não

precisa ser o mesmo, ele se cruza porque é caminho de andar junto mesmo. Do André deixo aqui o

jeito sossegado e tranqüilo de quem sabe lidar com as palavras, com a fluidez, com a rapidez sem se

deixar levar. Deixo o jeito franco de conversar, sempre se investigando quando fala com a gente,

pessoa sempre em estado de construção.

Para a moçada do Nupill com quem, infelizmente, convivo muito menos que gostaria, mas que

está sempre por perto. Quando estive aí pela primeira vez senti um jeito bom de ficar em casa; afinal,

tinha até café de tarde no Nupill. Vocês me receberam de um jeito muito mineiro de ser, e isso pra

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gente daqui conta muito mesmo. Há muitas pessoas, muito bom humor e não vou lembrar de todos

os nomes. Deixo aqui registrada a risada da Verônica, o olhar sempre perscrutador do Rico, o jeito

“bon vivant” do Cristiano, a risada grave do Otávio, o meu espanto de descobrir que o Rodrigo era

irmão gêmeo (é isso mesmo?) do Cristiano, a ansiedade do Victor. E deixo também o desejo de

parcerias conceituais mais intensas.

Saulo, deixo aqui dois registros. O primeiro, de quando estivemos no Recife e você nos

acolheu na “sua” cidade, e na sua casa. E me acolheu de uma maneira muito especial, em um

momento muito difícil da minha vida e da tese também. Ao me apresentar para sua família fez

questão de dizer que eu era o Cacá, de quem você tanto falava. E fui, assim, recebido com glórias e

alvíssaras por toda a família. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir o nome do meu pai

compartilhado pelo seu pai e também pelo seu filho. Me senti irmão, filho e companheiro. E um

segundo registro, quando você viu a minha apresentação na Abralic em 2006 e, ao final, fez um

comentário fundamental para que essa tese viesse a um termo. Disse-me você, então, palavras

parecidas com essas: hoje entendo o que você está discutindo e sinto que houve um progresso

enorme em relação ao que apresentou lá em Recife. Sua tese é porreta e você não só tem algo a

discutir como está sabendo discutir muito bem. Dito isso, compartilho também com você o mérito

de estar aqui hoje, escrevendo essas linhas. Os deméritos deixa que eu resolvo.

Deixo aqui os méritos de um texto bem cuidado, bem revisado e com as filigranas que só o

Mário sabe encontrar e resolver. Obrigado, Mário, você que está aí para me lembrar sempre dos

momentos lá da Fafich, está aí para ser lembrança e presença. Sem você não haveria normas, e não

haveria transgressões.

Já falei dela e deles (meus pais) na dedicatória, mas fecho aqui os agradecimentos dizendo

principalmente da Luiza, minha filha. Você sabe me perceber de um jeito que não vou aprender

nunca, e é por isso que quero ser pai e companheiro para o resto da vida, porque é bom encontrar e

ser encontrado por quem a gente ama, todo dia.

Essa tese foi realizada com recursos do programa Rumos Pesquisa do Itaú Cultural, de cuja

instituição recebi uma bolsa durante o segundo semestre de 2003 para desenvolver minha pesquisa.

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“Em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo é, ao contrário, o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne”. (Merleau-Ponty)

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RESUMO

Essa tese tem como objetivo investigar de que forma a imersão pode ser considerada condição para a produção de cibernarrativas. Nesse sentido, utilizam-se aqui, como conceitos-chave para discutir a imersão, aqueles trabalhados por Iser na teoria do efeito estético; as relações estabelecidas por Paul Ricoeur entre tempo e narrativa; as discussões sobre imersão na arte virtual; a relação entre imersão e interatividade, conforme Marie-Laure Ryan e o conceito de cibertexto, em Espen Aarseth. A fenomenologia do ato de leitura permite discutir o texto como acontecimento e essa questão é interligada à visão de Ricoeur para pensar a narrativa, uma vez que o autor francês compreende que toda narrativa é relação entre três mimeses e que não encontra um término em si mesma, mas um termo com a participação do leitor. A partir desses referenciais, propõe-se discutir a imersão, primeiramente vista como a entrada em um ambiente já definido, para depois ampliar essa definição e apresentar a imersão como condição para a própria criação do ambiente imersivo. É a partir dessa última visada sobre o conceito de imersão que a tese propõe uma tipologia para os processos cibernarrativos, compreendendo como fundamentais, nesses processos: o acesso ao tempo pré-figurado da narrativa; a possibilidade de interferência física no código de programação e nas regras das cibernarrativas, por parte dos receptores-participantes e, por fim, a possibilidade de acessar e modificar as “leituras” feitas por outros receptores-participantes, quando se acessa uma cibernarrativa. Palavras-chave: cibernarrativas; imersão; produção colaborativa; tempo

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ABSTRACT

This thesis has as aim investigate how immersion can be considered a condition to produce cybernarratives. In this sense, this work uses as key concepts to discuss immersion: concepts used by Wolfgang Iser in the aesthetics effect theory; relationships established by Paul Ricoeur between time and narrative; discussions about immersion on virtual art, relationship between immersion and interactivity, as used by Marie-Laure Ryan, and the concept of cybertext, by Espen Aarseth. The phenomenology of reading act lets discuss text as event and this question is interconnected to Ricoeur’s vision of narrative, since the french author understands that all narrative is a relationship between three mimesis, and it doesn’t encounter an end by itself, but a term with reader’s participation. From these benchmarks, we propose discuss immersion, first, as an entry into an environment already constructed, and enlarge this definition presenting immersion as a condition for the creation of immersive environment itself. From this last perspective about immersion this thesis proposes a tipology for cybernarratives processes, understanding as fundamental concepts about these processes: access to a pre-narrated time; possibility to modify fisically programmation code and cybernarratives rules, by participant-readers and, at last, possibility to access and modify “readings” done by others participant-readers, when accessing a cybernarrative. Key-words: cybernarratives; immersion; collaborative production; time;

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: uma das obras derivadas de PiazzaVirtuale ............................................. 105

Figura 2: snapshot da tela principal de Oulipoems .................................................. 180

Figura 3: snapshot da tela principal de Sundays in the park .................................. 181

Figura 4: snapshot da tela principal de Morningside Vector Space ........................ 183

Figura 5: snapshot da tela principal de The Electronic Muse.................................. 185

Figura 6: snapshot da tela principal de Trace ........................................................... 189

Figura 7: um snapshot de uma das páginas de kollabor8 ........................................ 191

Figura 8: snapshot da tela principal de Code_UP .................................................... 195

Figura 9: snapshot de uma das telas em movimento em Zoom_RGB_UP .............. 198

Figura 10: tela principal de Circ_lular, captada em um snapshot .......................... 199

Figura 11:snapshot de uma das telas principais de Pianographique ...................... 204

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13

2 ESCRITA E LEITURA: ENTRELAÇAMENTOS POSSÍVEIS .................................... 18 2.1 O ato da escrita ................................................................................................................... 18 2.2 O ato da leitura ................................................................................................................... 27

3 TEMPO, ESPAÇO E NARRATIVA ................................................................................. 50 3.1 A experiência com o tempo e com o espaço ...................................................................... 50 3.2 A relação entre tempo e narrativa ....................................................................................... 58 3.3 Os elementos do jogo temporal na narrativa ...................................................................... 67

4 DO HIPERTEXTO AO CIBERTEXTO: UMA PROPOSTA PARA A CIBERNARRATIVA ............................................................................................................. 86 4.1 O texto como produtividade ............................................................................................... 86 4.2 A materialidade do objeto artístico em meio digital........................................................... 93 4.3 O cibertexto: processos de comunicação em textos dinâmicos ........................................ 107

5 IMERSÃO: UM CONCEITO RELACIONAL .............................................................. 121 5.1 Ilusão e imersão na arte virtual ......................................................................................... 121 5.2 Primeiras aproximações entre fenomenologia da leitura e imersão ................................. 131 5.3 Uma poética da imersão ................................................................................................... 138

6 DAS RELAÇÕES ENTRE CIBERNARRATIVAS E IMERSÃO ............................... 160 6.1 Uma tipologia para cibertextos ......................................................................................... 160 6.2 Uma tipologia para narrativas interativas ......................................................................... 166 6.3 A imersão como condição para a produção de cibernarrativas ........................................ 171

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 212

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1 INTRODUÇÃO

A literatura em meio eletrônico é um campo tão instável quanto o próprio campo da

literatura. Há diversas definições para tentar caracterizar o que sejam hipertextos, cibertextos,

textos em meio eletrônico, hiperficções e tantos outros conceitos que não cabe aqui enumerá-los à

exaustão. As abordagens conceituais parecem procurar nas obras o que poderia fazer surgir um

conceito minimamente estruturado, ao mesmo tempo em que apontam para a necessidade de se

olhar para o processo de construção dessas obras como o objeto a ser prioritariamente

investigado.

As obras em meio eletrônico são instáveis em função de o seu próprio suporte ser baseado

no fluxo de informações e não na apresentação em algum tipo de material pronto e contido pelo

suporte que as apresenta. E aqui se está falando de obras que trazem imagens, sons, por exemplo,

e não em obras cujo conteúdo é somente verbal. O meio eletrônico é um suporte que

desmaterializa o conteúdo, no sentido físico desse termo, porque o transforma em sinais

eletrônicos a serem transmitidos. A característica central desse suporte é justamente o fato de ser

um mecanismo de transmissão, mas também poder ser utilizado como um mecanismo de

comunicação efetiva, de diálogo, de participação colaborativa em processos artísticos a distância,

por exemplo. De certa maneira, o suporte eletrônico prepara o surgimento das obras em formato

digital, meio no qual há uma extrema flexibilidade do material, que pode ser transformado de

palavras em imagens, de sons em cores e vice-versa.

A flexibilidade do suporte, característica tanto dos meios eletrônicos quanto dos meios

digitais, é como uma intensificação de processos de criação experimentados em outros meios ou

em outras áreas de criação, notadamente na literatura, objeto de discussão nessa tese. Afinal, a

criação literária seria uma forma de perceber a “carne”, o Ser no qual tanto obra quanto autor se

entrelaçam. Através da produção de uma obra, aquele que a escreve experimenta a

reversibilidade, o quiasma, que é “a idéia de que toda percepção é forrada por uma

contrapercepção (oposição real de Kant), é ato de duas faces, não mais se sabe quem fala e

quem escuta”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 238). A obra é capaz de modificar a percepção do

autor, uma vez que este enxerga a existência de uma relação entre si mesmo e a obra, nas

palavras que deposita no papel. A criação não é mero ato reflexivo, mas movimento entre

consciência e coisa, ambos fundantes e fundados na relação intersubjetiva. Nesse momento de

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troca, o autor percebe que algo está a acontecer e utiliza as palavras para se aproximar dessa

troca, sem nunca chegar exatamente ao lugar onde ela acontece. Há, então, na experiência da

criação da obra, entrelaçamento entre a narrativa e o tempo em que esse entrelaçamento acontece.

Segundo Paul Ricoeur (1994), os processos de construção narrativa permitem ao homem

perceber o tempo e, dessa forma, conseguir falar sobre o tempo, categoria fundante da

experiência. Isso se deve ao fato de que as narrativas permitem estruturar o tempo numa

configuração em que os fatos aparecem ordenados de determinada maneira, de modo a poderem

ser contados com um determinado sentido. Entretanto, as narrativas só se completam quando há a

presença do leitor, que se confronta com a organização narrativa sugerida e a reconfigura

segundo a sua própria percepção, o que confere a essa relação o caráter de intersubjetividade.

Assim, o ato de criação de uma narrativa é também um ato baseado na criação de um processo

que exige, em alguma medida, o contato de autores e leitores em partes e momentos distintos,

para que a narrativa apresente completudes, mesmo que temporárias. E é justamente a partir

desse contato que se pretende analisar o processo de construção de cibernarrativas.

A discussão sobre esse tipo de narrativa baseia-se numa análise que conjuga os processos

de construção narrativa, a teoria do efeito estético, o conceito de cibertexto e o conceito de

imersão. O que se pretende é enfatizar o fato de que as cibernarrativas não são uma nova forma

de literatura, ontologicamente falando, mas sim intensificam o tipo de experiência que já se pode

ver em narrativas presentes em outros meios. Para tanto, o foco de análise se faz sobre processos

de escrita e leitura, como os responsáveis pela efetivação do processo que leva ao surgimento de

uma narrativa.

A conjunção entre meios eletrônicos, meios digitais e processos de criação literária sugere,

como já dito, outro tipo de experiência com as narrativas. Ainda que essa experiência não seja

ontologicamente diferente de experiências em outros meios, o que nunca é demais reafirmar, há

novas questões em jogo quando as obras derivadas das cibernarrativas se apresentam como um

híbrido de obras acabadas e processos em construção incessante. É como se a materialidade

dessas narrativas apontasse para um tipo de percepção em que tanto autores quanto leitores se

aproximassem das camadas temporais que fundam a percepção do mundo. Entretanto, o que se

afirma aqui também poderia ser afirmado sobre outras formas narrativas. Afinal, quando um

leitor interpreta uma obra, o que ele faz é justamente colocar em contato camadas temporais

diversas, numa tentativa de perceber o tempo, através da forma como se conta esse tempo. O que

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parece ser um elemento a mais no caso das cibernarrativas é a possibilidade de entrada na

materialidade das obras, no momento mesmo em que elas ainda não estão estruturadas, em que as

narrativas em si ainda não foram construídas. Ou seja, parece haver aqui a possibilidade de

transportar os atos interpretativos para os processos de construção física das narrativas. E essa

transposição seria possível a partir do tipo de imersão derivado da conjunção entre suportes

materialmente instáveis, como é o caso dos suportes digitais, e processos de construção narrativa

baseados na construção de obras processuais. É a partir de tal conjunção que esta tese pretende

mostrar de que forma a imersão pode ser vista como uma condição para a construção de

cibernarrativas.

No primeiro capítulo são discutidos os processos de escrita e leitura a partir,

principalmente, da teoria do efeito estético elaborada por Wolfgang Iser (1996). Com essa

abordagem pretende-se enfatizar os processos comunicativos experimentados por autores e

leitores na produção de uma obra. A teoria do efeito estético permite perceber que as obras são

sempre arranjos de camadas temporais, cuja mobilidade é resultado justamente dos processos de

contato com essas camadas.

Analisar os conceitos de espaço e tempo a partir de uma abordagem fenomenológica, com

base nas discussões empreendidas por Maurice Merleau-Ponty, é o propósito do segundo

capítulo. O conceito de tempo também será discutido em função de estruturas narrativas

ficcionais, tomando como base a discussão de Paul Ricoeur (1994) em “Tempo e narrativa”. A

idéia de tempo aqui se liga à noção de que em toda obra há várias camadas temporais que

estruturam a narrativa. Nesse capítulo a definição de camadas temporais será relacionada tanto à

obra de Paul Ricoeur (1994) quanto à discussão que Iser (1996) empreende sobre a teoria do

efeito estético.

O conceito de espaço será trabalhado a partir da discussão que Barthes (2004) realiza sobre

a escrita e sobre a noção de obra e texto. Essa análise permitirá, no capítulo sobre imersão,

compreender em que medida esse conceito relaciona-se com a experiência de escrita ou leitura e

não se reduz a pensar um espaço fixo em que a obra seria alocada, ou a uma pura experiência

temporal. Há sempre um equilíbrio entre espaço e tempo, assim como há reversibilidade entre os

dois, principalmente nas experiências de imersão em cibertextos.

Pretende-se, no capítulo três, discorrer sobre o conceito de hipertexto e cibertexto,

atravessando as diversas acepções que os termos adquirem quando se referem à literatura em

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meio digital. Espera-se que essa análise permita compreender melhor o conceito de cibertexto,

desenvolvido por Espen Aarseth (1997) e que se aproxima do conceito de texto como

produtividade, desenvolvido por Julia Kristeva, por Barthes (2004) e também por Pierre

Macherey (1966). O conceito de cibertexto será analisado detalhadamente, procurando

compreender em que medida as obras cibertextuais, em tese, podem se aproximar da hipótese

principal desse estudo, qual seja, a de que um tipo específico de imersão é condição para a

existência de obras que possam ser chamadas de cibernarrativas.

Para o capítulo quatro, em que se discute a imersão como um conceito relacional, entende-

se fundamental um histórico sobre o conceito de imersão e a relação com as artes de ilusão e

criação de espaços ilusórios. A obra de Oliver Grau (2003) permite discutir a evolução do

conceito desde o período medieval até o momento em que se pode falar de uma telepresença e de

espaços virtuais.

Em seguida, pretende-se discutir outra maneira de trabalhar o conceito de imersão, a partir

da fenomenologia da leitura e da visada fenomenológica de Merleau-Ponty (1999) sobre espaço e

tempo. Essa abordagem será feita a partir do trabalho de Marie-Laure Ryan (2001) sobre imersão

e interatividade nas narrativas virtuais. A discussão que Iser (1996) realiza sobre o efeito estético

e as relações entre o pólo do leitor e o pólo do texto será também utilizada para definir a idéia de

imersão a partir das experiências de escrita e leitura, como um fenômeno que se dá a perceber e

permite a percepção da obra e do texto. Assim, imersão não será considerada como um conceito

em que primeiro se define um espaço para a obra existir e só então ela pode ser alocada nesse

espaço, no caso de obras em meio digital. É a própria construção da obra e também do texto que

irão permitir a experiência de uma imersão. E esta, por sua vez, será fundamental para se definir

condições para a criação de cibernarrativas.

No quinto e último capítulo dessa tese verifica-se em que medida o conceito de imersão

elaborado no capítulo anterior aplica-se à análise de cibernarrativas. Para tanto, será criada uma

tipologia que funcionará como instrumento analítico de obras cujos artistas transitam entre a

literatura, a programação em computadores e obras que podem ser chamadas de verbo-voco-

visuais, com uso de códigos digitais. A análise será trabalhada a partir, principalmente, da

experiência de produção dessas obras e de algumas experiências de leitura, uma vez que a tese se

baseia nessas duas possibilidades de contato com as cibernarrativas. Na análise será considerado

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de que maneira a relação entre imersão, espaço, tempo, escrita e leitura podem definir

características específicas das obras em questão.

À guisa de conclusão, pretende-se sugerir algumas condições associadas à produção de

cibernarrativas. Ainda que o estudo em questão não deseje, de forma alguma, determinar um

gênero específico a partir das condições de produção, é objetivo desta tese defender a existência

de determinadas condições para que se possa falar de cibernarrativas. A definição dessas

condições virá da análise da experiência de escrita e leitura em obras cibertextuais. Essa análise

deve permitir verificar condições similares nas obras e na forma que tomam quando produzidas.

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2 ESCRITA E LEITURA: ENTRELAÇAMENTOS POSSÍVEIS

2.1 O ato da escrita

A escrita de uma obra1 transforma-se em um caminho que, freqüentemente, ultrapassa o

primeiro ímpeto criativo, a primeira idéia esboçada. É como se a obra tomasse as primeiras

palavras do autor e imprimisse a elas um movimento que não é mais possível prender em

fronteiras definidas. Uma obra, assim que começa, não seria mais propriedade privada. Ainda que

essa visão se assemelhe muito a uma percepção romântica do ato de escrita, o que se deseja

enfatizar é o envolvimento entre aquele que escreve e a obra que é escrita. Ou seja, desde o início

uma obra apresenta-se como uma relação em que o autor manipula condições de produção que,

por sua vez, apresentam perspectivas com as quais ele mesmo irá trabalhar. As obras deixariam,

então, de ser posse do mundo por uma consciência instalada naquele que cria a obra, para tornar-

se criação intersubjetiva, em que diversas vozes já se manifestam e o autor experimenta a própria

escrita no papel: experiência do que foi pensado, mas presa ao corpo que esboça as letras, que

escolhe as teclas do computador e sente, em cada uma delas, a letra que surge fugaz e efêmera na

tela. Como bem diz Rancière,

“Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os quais ele forma uma comunidade, dessa comunidade com a sua própria alma”. (RANCIÈRE, 1995, p. 7).

O ato da escrita é o seu próprio constituinte como experiência e como possibilidade de

materialização do escrito. O espaço escrito surge sempre no instante do contato material com o

que se deseja escrever e não é, então, um espaço fixo, mas sujeito ao fluxo temporal da escrita.

1 Nessa tese, será considerada como obra a parte material, impressa ou digital, com que tem contato o leitor. Já o texto será considerado como o resultado da ação sobre a obra. Ou seja, uma mesma obra pode dar origem a diversos textos, de acordo com as leituras que recebe. Essa terminologia já foi utilizada por Barthes em sua teoria do texto. Não obstante essa ressalva, quando se discutir a teoria do efeito estético a terminologia utilizada por Iser será mantida, para melhor efeito de compreensão das idéias do autor. Nessa parte, o texto poderá ser entendido tanto como a parte material como quanto aquilo que é derivado do ato interpretativo do leitor.

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Barthes (2004) indica já esse duplo equilíbrio a que está sujeito todo ato de escrita. Nesse

momento é possível pensar a imersão como produzida pela própria inscrição. O conceito de

ductus parece bem apropriado para se compreender a relação entre espaço e tempo no momento

da escrita. Segundo Barthes, o ductus relacionar-se-ia ao movimento, e só poderia ser captado

quando se capturasse a escrita em vias de fazer-se. Além disso, o ductus manifestaria a natureza

manual da letra ao mesmo tempo em que indicaria a temporalidade que caracteriza a escrita como

produção. A relação estabelecida por Barthes permite verificar que o ato de escrever carrega

consigo uma forte carga de imersão numa materialidade criada pela própria ação, para pensar

numa relação inicial entre imersão e processos de escrita.

No momento da escrita, cada frase revela a procura pelo entrelaçamento mais completo de

forma incessante, numa busca do olho à volta das palavras, procurando encontrar sob elas o

fundo no qual surgem. Merleau-Ponty diz que Matisse

“Não examinou, sob o olhar do espírito, todos os gestos possíveis, nem lhe foi preciso eliminá-los todos, exceto um, para fundamentar sua escolha. É a câmera lenta que enumera os possíveis. Matisse, instalado num tempo e numa visão humanos, olhou o conjunto aberto da tela iniciada e conduziu o pincel ao traçado que o chamava para que o quadro fosse por fim o que estava em vias de se tornar”.(MERLEAU-PONTY, 1980, p. 146).

O que o quadro se torna é também o fundo sobre o qual aparece, é o que a citação parece

dizer. A pintura seria então o encontro do pintor com um momento que ainda viria a surgir e que

desperta quando ele, pintor, cria a paisagem que irá se tornar um quadro.

No momento em que escreve, um escritor participa do jogo entre uma suposta

incompletude que é quase explícita, percebida no meio das palavras, e as significações visíveis,

implicações temporais da percepção desse autor da carne2 na qual se encontra incrustado. O

escritor veria, de relance, então, uma plasticidade imaterial da linguagem, quase como se as

palavras permitissem serem tocadas para que aquele que as escreve sentisse o seu caráter físico.

“A intenção do autor não implica uma consciência de todos os detalhes que a escritura realiza, nem constitui um acontecimento separado que precederia ou acompanharia a performance, conforme a dualidade falaciosa do pensamento e da linguagem”. (COMPAGNON, 2001, p. 91).

2 Sobre o conceito de carne, mais adiante nesse estudo tal termo será discutido, em relação aos processos de escrita e leitura. Evita-se, nesse momento, uma explicitação maior, em prol de um desenvolvimento do texto em direção ao próprio conceito.

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Uma vez que a intenção do autor não implica uma consciência pura sobre a obra, antes

mesmo que ela exista, é possível então dizer que a escritura permite a esse autor perceber a

porosidade do que escreve, o surgimento da obra por entre os seus dedos e as palavras que

surgem no papel, um acontecimento que acompanha a performance da própria escrita.

“O impensado diferencia internamente escrita e leitura, mantém uma obra aberta, sustenta

sua temporalidade e cria seu porvir na posteridade dos que irão retomá-la”. (CHAUÍ, 2002, p.

39,40). Aqui aparece, então, a carne, sempre de forma oblíqua, quando tanto autor quanto leitor

percebem esse processo de diferenciação que experimentam nos atos de manuseio da obra, cada

qual à sua maneira. Da diferenciação entre os dois (obra e autor ou leitor) surge o quiasma, que

tem como fundo o impensado, que não é jamais um vazio, uma incompletude, mas o que permite

que a obra apareça.

“Não é buraco. É poro. Não é lacuna que preenchemos, mas trilha que seguimos. Ausente estando presente na trama cerrada de um discurso, sem, entretanto oferecer-se sob a forma de teses completamente determinadas, é aquilo que sem o tecido atual desse discurso não poderia vir a ser pensado por um outro que o lê”. (CHAUÍ, 2002, p. 40).

Mais do que a busca por uma definição do impensado, o que interessa nessa passagem é

procurar compreender como o impensado poderia constituir a experiência da escrita. Uma trilha

que se escolhe irá sempre revelar novas significações e é impossível ao autor desvelar todos os

pequenos detalhes da obra que produz. Assim, no entrelaçamento entre o escrito e aquilo que se

lê, há sempre uma parte que escapa, um texto que ninguém fez, mas que se entranha no que o

autor deseja, mesmo que não consiga se fazer escritura física no papel. É como se, a partir da

impossibilidade de encontrar o invisível, o autor conseguisse criar uma visibilidade sempre

opaca, sempre prenhe de significado. E não seria preciso esperar a presença do leitor, já que basta

olhar novamente para a obra que escreveu para reconhecer que alguma coisa falta e não significa

que precisa ser dito.

Quando Merleau-Ponty (1980) discute em “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” o

surgimento das formas gramaticais, ou melhor, o processo que as faria aparecer, pode-se perceber

aí uma relação com o ato da escrita. Escrever não seria a busca da expressão daquilo que

incomoda o escritor, daquilo que ele já sente em si e que desejaria perceber também no mundo? E

que já o percebe, pois está no meio dessas mesmas inquietações? Mesmo antes das formas

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gramaticais começarem a ser sistematicamente empregadas, elas já permeariam as relações de

uso da língua. De forma semelhante, aquilo que é escrito no papel não é algo já sistematicamente

utilizado. É como se a escrita permitisse chegar ao limite da experiência, um desafio que o

escritor propõe, antes de tudo, a si mesmo: experimentar a criação do ser, no momento em que

ele se faz. Encontrar o momento em que a linguagem se engravida do sentido que incomoda o

escritor, sabendo, talvez, que o incômodo poderá cessar, mas que a linguagem continuará prenhe

das novas transformações que virão (Merleau-Ponty, 1980).

Ao desenhar as palavras no papel, ou digitá-las na tela, ou ainda, ao construir paisagens

textuais, não é de um mundo fora de si ou fora das palavras de que trata o escritor. É de algo que

permeia e perpassa a linguagem e o mundo percebido. Lugar onde, de forma indireta, se encontra

a plasticidade da literatura, o ser viscoso que se entranha naquilo que ainda será escrito. Porque

as frases não resistem sozinhas depois de escritas, nem a paisagem consegue se fazer inabitada.

Não é na paisagem textual que opera o escritor o lugar onde se encontra o sentido completo. Se

“a palavra se desenrola sobre fundo de palavra, nada sendo senão uma dobra no imenso tecido da

fala” (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 143) é possível imaginar a paisagem textual como a

abertura de um caminho entre as palavras, como a experiência de se sentir na e a carne do mundo.

Tocar a si mesmo enquanto toca o que o rodeia, seria essa uma possibilidade da literatura.

O escritor que já não controla os seus personagens não seria, então, aquele que perdeu o

sentido do que escreve, mas aquele que percebe que a linguagem só faz sentido no excesso, além

das fronteiras que se opõem ao conjunto de relações estabelecidas pelo próprio texto. Não se

entenda aqui a oposição em relação às fronteiras como impedimento, mas como possibilidade de

diferenciação.

“O sentido é o movimento total da fala, eis porque o pensamento arrasta-se na linguagem. Por isso, também ela o atravessa como o gesto ultrapassa seus pontos de passagem. No instante primeiro em que sentimos o espírito repleto de linguagem, quando todos os pensamentos são tomados por sua vibração e justamente na medida em que nos abandonamos a ela, passa além dos ‘signos’ para seu sentido”. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 144).

O sentido ou o significado deve ser criado entre o que se escreve, no momento em que está

aparecendo. Não haveria um significado pronto nos signos. Ou melhor, não seria o encontro

desse significado um ato que permitiria a percepção da carne. Porque esta não está definida nem

dentro nem fora das palavras. Encontrar-se-ia nos traços incertos além da linha, no instante de

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silêncio em que se pode pensar que só há um vazio. Há, talvez, porosidade, mas as ranhuras

desses mesmos poros são o que se manifesta no ato da escrita.

“Ora, se expulsarmos do espírito a idéia de um texto original, do qual a linguagem seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a idéia de uma expressão completa é um contra-senso, que toda a linguagem é indireta ou alusiva e, se quisermos, silêncio”. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 144).

A linguagem permite, assim, uma ação de atravessar e ser atravessado. Não é um meio por

onde os pensamentos escoam, nem lugar vazio a ser habitado. Não é dela que se faz o que se

escreve, mas com ela, entre as palavras que são escritas. O texto é sempre originário de dentro de

si mesmo e daquilo que o faz de fora. Um texto escrito poderia até se pretender completo, mas

seria então buscar aquilo que é o não-sentido, o que ele, neste instante, não diria mais. Quando

Merleau-Ponty convida a investigar a obra que existe não como coisa, mas como o que atinge o

espectador, há aqui uma forma de instigar leitor e escritor ao incômodo, ao descentramento. O

escritor não realiza este deslocamento, na produção do texto, de forma completamente

consciente. Percebe-se no caminho das palavras que põe no papel, porque já aí opera a obra que

virá a existir.

A relação proposta por Merleau-Ponty (1980) assemelha-se ao que Wolfgang Iser (1999)

denomina caráter imagístico da representação. Segundo Iser, os atos de apreensão do ponto de

vista em movimento empregado pelo leitor dão origem a uma realidade complexa, em que

desaparece a diferença entre sujeito e objeto. Ou seja, o texto não pode ser percebido como uma

síntese objetivada e sim, como movimento entre expectativa e memória, entre diacronia e

sincronia, entre o que está por vir e o que já foi, (e já antecipando a discussão de Ricoeur sobre

tempo e narrativa, a ser detalhada mais adiante). As sínteses responsáveis pelo surgimento de

uma representação são denominadas de sínteses passivas, porque acontecem por baixo do limiar

da conscientização e continuam a ser produzidas durante a leitura. Elas seriam pré-predicativas e

por isso estariam ligadas à noção de imagem. Daí adviria também o seu caráter de instabilidade,

de fluxo e de movimento temporal.

“A imagem traz à luz o que não é idêntico a um objeto empírico, nem ao significado de um objeto representado. A mera experiência do objeto é transgredida pela imagem, sem todavia ser predicado para o que a imagem mostra.” (ISER, 1999, p. 56).

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O ato da escrita e o seu desdobramento, que é o surgimento da palavra, são também nós da

trama entre o simultâneo e o sucessivo? Como diz ou sugere Merleau-Ponty (2003), no início do

texto sobre o entrelaçamento e o quiasma, a escrita que permite entrever a carne se faria como

recomeço incessante, a partir de um lugar onde há experiências não “trabalhadas”. Entretanto, ao

escrever aparecem também “falas faladas”, retomam-se trechos e significações percorridas

anteriormente. No momento em que o escritor investe em direção às palavras já ditas, para

encontrá-las, há uma possibilidade de fazer surgir uma “fala falante”. Porque para as palavras que

são escritas, ainda que não necessariamente em busca de novos significados, o escritor é

investido por elas, instigado a redescobri-las, tocado por aquilo que desvela seu próprio olhar.

Há, então, um mundo que o ato da escrita revela e do qual também faz parte?

“Uma vez que vejo, é preciso (como tão bem indica o duplo sentido da palavra) que a visão seja redobrada por uma visão complementar ou por outra visão: eu mesmo visto de fora, tal como se outro me visse, instalado no meio do visível, no ato de considerá-lo de certo lugar”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 131).

É preciso investigar a relação entre o ato da visão e o ato de escrever, na forma como

Merleau-Ponty descreve acima. Ao falar da visão, ou melhor, ao utilizar nessa tese a citação

acima, não se está em busca de uma completa conjunção entre escrita e visão. Diferentemente, o

que se pretende é propor trilhas, saídas, entradas, recuos. E a proposição não se faria através de

conceitos que explicassem o como fazer as trilhas, mas, sim, através do resgate da criação,

experimentando o próprio ato que o origina.

Ao tratar do visível total, Merleau-Ponty (2003) indica que o nosso corpo domina o visível

concentrando a sua visibilidade esparsa. Parece surgir aqui uma abertura para pensar escrita e

leitura como esses momentos de concentração, de experiência de conhecimento através do

sensível, sem que seja necessário descobrir a resposta certa para a sensação, ou melhor, sem que

seja necessário criar a ilusão de que essa sensação pode ser nomeada e concretizada em um único

objeto. Através da relação com a obra, com essa visibilidade concentrada, ao descobrir o

entrelaçamento entre o escrito e o que se desejava escrever, é possível perceber um fundo de não-

dito, um espaço que preenche a figura que se forma, sem se igualar a ela. É possível sentir a carne

do mundo que habita o escritor e que também é habitada por ele. O texto fica preso às palavras

porque o seu sentido deve ser escrito ou lido para que dele se perceba, indiretamente, o que tem

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de invisível. Não parece, aqui, que Merleau-Ponty trataria da materialidade das palavras, nem de

um sentido que está além delas somente, mas justamente do contato entre essas duas percepções,

que produz instantaneamente a visibilidade de um texto e que provoca a carne. Nas relações é que

se percebe o Ser, que sempre escapa a estas mesmas relações, que não é fundado pelas palavras,

mas que se faz no meio delas, no quiasma. Não há, dessa maneira, texto que o escritor retira de si,

mas texto que o autor percebe, porque é com o mundo, porque vive em relação. O texto escrito

não seria, ao contrário, leitura de um mundo à parte, onde se encontram as coisas. No ato de uma

escrita que se indaga todo o tempo, haveria entrelaçamento, haveria a experiência indireta da

carne.

Esse entrelaçamento a que alude Merleau-Ponty parece intimamente relacionado ao

momento de imersão, ao menos na maneira como se pretende tratar dele. Tal momento pode ser

relativo àquilo que se pensou em escrever, ou às palavras que tomam corpo no papel, ou ainda ao

que despertou a percepção daquele que escreve. Essa distinção de três momentos de imersão não

aparece nitidamente no momento da escrita, assim como as diversas camadas que o leitor

encontra em uma obra não surgem separadas, embora possam ser diferentes entre si. Há diversos

pontos de contato entre os momentos de imersão citados e, em cada um desses pontos, manifesta-

se uma tensão que faz surgir a escrita de dentro dessa mesma rede. Aquele que escreve

experimenta a resistência material das palavras, a fluidez do pensamento e o arrebatamento da

percepção. Qualquer que seja a escolha do meio de expressão, já há aqui um distanciamento da

materialidade das coisas, embora elas continuem a ecoar no que está expresso, seja verbalmente,

seja em imagens, seja em pontos na tela. Para cada forma de expressão há, claro, diferenças de

materialidade do suporte. No entanto, o ato de expressão, não é um preenchimento desse suposto

“vazio” entre as palavras (quando se trata de uma escrita eminentemente verbal) e as coisas.

Trata-se de um movimento de imersão em uma rede de pontos que se agitam incessantemente,

cujos choques nem sempre produzem visibilidades. É como se o movimento do escritor tornasse

perceptível o fenômeno de uma rede, que antes parecia não existir, e que talvez não existisse

como forma atual, mas como virtualidade. Assim, a escrita exige um grau de imersão, ainda que

não se possa distinguir exatamente um “local” em que essa imersão se dá. É nesse sentido que a

imersão será discutida no quarto capítulo 4, como um conceito relacional.

“Ora, a escrita é aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o enuncia legitimamente e o leva a destino legítimo, vem embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e do dizer”. (RANCIÈRE, 1995, p. 9).

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Quando a escrita separa o enunciado da voz que o enuncia, ela opera uma dupla relação, ou

melhor, uma disjunção: o escrito surge como a espacialização do que foi dito, mas garante

também sua virtualização e capacidade de re-inscrição em outros fluxos temporais que não se

ligam mais somente a uma cronologia dos enunciados. Simultaneamente, o tempo da fala pode

ser deslocado para um espaço que é instável, mas surge agora separado da exigência de um fluxo

contínuo de ação.

Luiz Costa Lima afirma que “na verdade, não apenas a obra moderna, mas a obra (no

sentido absoluto: a obra forte, marcante), não ‘preenche’ uma forma predeterminada, preexistente

– ela a cria.” (COSTA LIMA, 2002, p. 47). Tomando a citação como base, a elaboração de uma

obra enseja o seu próprio espaço de imersão, o lugar onde ela irá mostrar as suas tensões e

vibrações, não em relação a um fator exterior, mas em relação ao seu próprio conjunto e em

relação às redes das quais pode participar. No caso de uma obra em meio digital, como todos os

espaços narrativos parecem demandar a mesma importância na construção da obra, a tensão

parece originar-se justamente de uma não-necessidade de escolha da estrutura. Ainda assim, é

possível observar que nem todas as obras existentes em meio digital apresentam estruturas

narrativas ainda não construídas. Tais obras não utilizariam todo o potencial do código digital do

qual se apropriam e poderiam ser vistos como obras disponibilizadas em meio digital, mas não

necessariamente cibernarrativas.

No caso dos cibertextos, pode-se perceber uma materialidade mais fluida da obra que se

constrói e da obra que se lê. O autor se vê envolvido, em vários momentos, com caminhos que

não irá realizar, mas que suscitam uma abertura, através de um link explicativo, uma nota, uma

imagem. Se a função “autor”, como a define Foucault (1969), citado por Barros da Costa (2001)

pode ser caracterizada a partir de traços comuns, de marcas similares encontradas em diferentes

obras, de continuidades entre as obras, fica a pergunta sobre como essas características surgem

em obras cibertextuais. Porque se a imersão for considerada como uma manifestação da obra, de

que maneira garantir que ela acontecerá sempre no mesmo local e da mesma forma? E, assim,

como perceber as marcas comuns a obras diferentes, de modo a distinguir a função “autor”?

Talvez o que Foucault não possa dizer é que essa função, em suportes mais fluidos, se desloca

muito rapidamente. É a possibilidade de criação de novos caminhos, aparentemente infinita, que

permite falar de uma obra materialmente em fluxo, de maneira mais intensa, considerando o

aspecto material, que uma obra impressa. A imersão, nesse caso, assemelha-se mais a uma

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entrada em um fluxo do que a uma interpretação que crie uma espacialização momentânea da

obra.

Jacques Rancière (1995) permite uma reflexão importante sobre a inversão entre tempo e

espaço permitida pela escrita. Ao afirmar que a escrita é o regime errante da letra órfã e também a

garantia de uma inscrição imutável, permite dizer que a escrita tenta espacializar o tempo, mas,

paradoxalmente, se aproxima muito mais de uma apresentação de um tempo liberto de qualquer

fluxo determinante externo ao seu próprio funcionamento.

O caráter processual do ato da escrita como fenômeno pode ser explorado mais

intensamente quando se pensa em suportes mais fluidos, mais instáveis e quase que criados para

serem indeterminados. Em suportes digitais não se pratica outro tipo de literatura, ou talvez não

se deva pensar em outro tipo de literatura. Pode-se dizer que acontece um aumento da intensidade

experimentada na ação da escrita sobre suportes mais instáveis e uma percepção mais acurada do

caráter temporal de toda e qualquer forma de expressão. A imersão experimentada em suportes

digitais pode aproximar-se mais de uma instabilidade que já se encontra em outros suportes, mas

que nas cibernarrativas deveria ser pensada como condição primordial para a criação da obra.

“Aquilo que virá a ser recoberto pelo nome ‘indeterminado’ de literatura poderia então ser o redesdobramento daquilo que aqui está fechado, o conjunto aberto e sem lei das aventuras da letra com falta de um corpo, onde a delimitação dos discursos não pára de se apagar, voltando a tomar figura sem cessar, onde qualquer distribuição legítima das posições de enunciação desaparece na comunidade sem contornos dos seres falantes”. (RANCIÈRE, 1995, p. 28).

Rancière parece falar ou tratar das posições paradoxais que ocupam a “fala falada” e a “fala

falante”. A distribuição legítima das posições de enunciação desaparece na comunidade dos seres

falantes, porque esse é um movimento normal de reapropriação do discurso em um fluxo

temporal novo. Ainda que exista uma resistência, que aparece sob forma espacializada com a

escrita em um determinado suporte, é essa mesma resistência que engendra a sua supressão pela

sua ultrapassagem. E no caso de suportes mais fluidos, como a escrita em meio digital, há um

aumento da intensidade desse fluxo.

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2.2 O ato da leitura

“O que interpretamos quando lemos um texto é, indiferentemente, tanto o sentido das

palavras quanto a intenção do autor.” (COMPAGNON, 2001, p. 92). De certa maneira, o ato de

leitura não deixa de ser um entrelaçamento, um encontro entre invisíveis, um momento que faz

surgirem figuras e que deriva do quiasma. Há algo que fica sempre além do percebido, que se

encontra nas entrelinhas, que parece ser o que dá consistência à obra que se lê. O mesmo

Compagnon irá dizer que é próprio da obra literária significar fora de seu contexto original.

Poderia ser dito que é próprio desse tipo de obra significar fora de seu contexto aparentemente

original, uma vez que já há uma retomada quando o autor escreve. Na leitura haveria a

experiência do encontro de diferenças, gerando novas significações.

A leitura, como sugere Chauí, “não é inspeção intelectual do pensamento de um outro, nem

coincidência com ele. É manter a distância deslizando para o interior de uma obra a fim de

aprender a pensar nela e com ela, aprendendo seu jeito de falar.” (CHAUÍ, 2002, p. 23). Ler seria,

então, um ato de descentramento, assim como a escrita o é, um ato de criação. Nesse ato, aquele

que lê percebe-se mais que o leitor considerado passivo; ele age sobre o que lê e, assim, age sobre

si mesmo, pois se percebe experimentando o que o seu olhar constrói e aquilo que constrói o seu

olhar.

“É preciso, pois reconhecer sob o nome de olhar, de mão e de corpo em geral um sistema de sistemas voltado para a inspeção de um mundo, capaz de compassar distâncias, germinar o futuro perceptivo, desenhar na unidimensionalidade inconcebível do ser côncavos e relevos, distâncias e aberturas, um sentido...” (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 162).

Embora Merleau-Ponty se refira aqui ao gesto do artista, é perfeitamente possível e até

mesmo instigante tomar a citação acima para pensar a experiência da leitura. São as aberturas e as

distâncias os locais por onde o leitor percebe a carne do mundo? Talvez não sejam exatamente

locais, mas momentos em que essa experiência do sensível acontece, em que se dá o

conhecimento, não havendo um local predefinido para designar tal acontecimento. Ao dizer que

os gestos humanos significam sempre para além da sua existência de fato, parece que Merleau-

Ponty também indica essa inesgotabilidade do ato da leitura em uma obra como possibilidade.

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Haveria sempre princípio e seqüência em cada gesto, a reversibilidade entre diacronia e sincronia,

entre escrita e leitura, tornando os gestos comparáveis e também generalidades? Se assim é,

também é possível entender que todo gesto é cúmplice de outras tentativas de expressão,

permitindo à leitura se fazer como criação, como diferença, mas não igual à escrita. Seriam

visível e invisível, fundo e figura que nunca entram em síntese?

A experiência da leitura permite uma visada mais geral de uma obra, como se fosse

impossível fazer deste ato um processo contínuo. E, no entanto, é sempre em seqüência que

lemos, sempre após algo que já foi lido, e que pode ou não ser retomado. Qual seria o sentido de

reorganizar as páginas já lidas, senão aquele de buscar entrelaçamentos cada vez mais complexos,

como se o todo pudesse ser composto de sobreposições finitas? Nesse ponto é possível resgatar

Merleau-Ponty quando afirma que “não é menos certo, porém, que a linguagem só poderia deixar

transparecer a coisa em si mesma deixando de estar no tempo e na situação.” (MERLEAU-

PONTY, 1980, p. 174). Mas não é isso que permite a linguagem, se for pensada como

possibilidade de resgate da experiência do sensível? A leitura pode fazer com que o leitor consiga

se sentir estranho consigo mesmo, buscando sentidos que considera incompletos, com o desejo de

continuar estes caminhos.

No início de “Se um viajante numa noite de inverno”, de Ítalo Calvino (1999), há como que

uma tentativa de enumerar e esgotar possibilidades de leitura de todo e qualquer livro. O autor

indica diversas modalidades de livros, de leituras, de entrelaçamentos, de diferenciação. Aparece,

nesse primeiro capítulo da obra de Calvino, uma sensação de que seu livro será tudo aquilo que

os outros não puderam ser. Mas, logo surge também a percepção de que o livro que se lê é feito,

na verdade, dos livros que se deixou para trás na livraria, das relações que serão estabelecidas

pela metade na leitura, pelo que o autor deixará para ser dito. Uma provocação ao leitor que

procura, em cada página, o sentido da anterior e espera que o fim seja realmente capaz de

engendrar um pensamento que o livro carregaria sozinho. Cada página significa consigo mesma,

com as anteriores e com as que virão, embora o leitor não se aperceba completamente disso.

Cômodo seria, realmente, descobrir que a obra é completa, que pode ser fechada ao final, que

restará na estante como mais um dos livros lidos.

Logo na introdução do primeiro volume de sua teoria do efeito estético, Iser destaca o

caráter de acontecimento do texto literário. Ao fazê-lo, o autor demonstra já a inclinação

fenomenológica de sua proposição teórica, o que permite tentar aproximá-la dos estudos de

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Merleau-Ponty e, a partir daí, do que acontece na experiência do mundo. Como a tese presente

busca compreender as cibernarrativas e, mais especificamente, os processos de criação aí

experimentados (relacionados tanto à escrita quanto à leitura), a partir de um ponto de vista

fenomenológico, parece bastante pertinente tomar a teoria do efeito estético como uma das

visadas que movimentam as indagações aqui expostas. Maria Antonieta Jordão Borba (2003), ao

discutir a teoria do efeito estético, propõe algumas relações com perspectivas teóricas derivadas

da sociologia do conhecimento. Elas podem trazer novos elementos para o que se denomina a

experiência de deslocamento com o uso da linguagem. Uma noção fundamental na sociologia do

conhecimento é aquela relacionada à institucionalização das relações sociais, a partir do estudo

de situações cotidianas que envolvem o contato entre indivíduos. Seria a partir dessas situações

que um indivíduo produz conhecimento e, através da linguagem, institucionaliza esse

conhecimento de maneira a poder transmiti-lo para outros.

“A estabilização da experiência com a família dá-se com a linguagem, através da qual a criança toma conhecimento não só deste fato específico, como também de um amplo conjunto de normas: o papel desempenhado pelos membros em sociedade; seus padrões de conduta; a estratégia para se agir em situações similares; a identificação social; a possibilidade de um mesmo papel ser exercido por indivíduos diferentes”. (BORBA, 2003, p. 23).

Ao tratar a instituição como concebida a partir de relações biunívocas que envolvem sujeito

e sociedade, percebe-se como o indivíduo, ao fazer uso da linguagem em uma relação social, já o

faz de uma perspectiva, ao mesmo tempo, interna e externa. Ele está dentro da linguagem, mas

não completamente imerso e também é capaz de transformar a percepção externa dessa

linguagem no seu uso social. O ato de comunicação da experiência de um indivíduo sobre o

mundo pode criar novos deslocamentos no uso da linguagem. Assim, o sentido seria sempre um

processo em construção, porque no ato de sua comunicação já não se trata mais puramente de

uma revelação de procedimentos institucionalizados que regem o real, mas de colocar a

linguagem em movimento. “Como a realidade da literatura manifesta-se segundo os conceitos de

repertório e estratégias, a linguagem, então, deixa de ser vista como transmissora de mensagem,

para ser compreendida como meio pelo qual se fala da realidade.” (BORBA, 2003, p. 28).

A linguagem instaura, dessa maneira, as condições para o leitor se comunicar com o texto e

construí-lo, mas é também a própria estrutura da linguagem que pode ser modificada pelo ato de

comunicação do texto literário. Ou seja, é possível pensar que o próprio meio sugere as condições

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para a sua alteração, para o seu deslocamento. E é nesse momento, em que o sujeito percebe a

linguagem como instauradora de condições e, simultaneamente, como a sua própria possibilidade

de ser modificada, que pode acontecer uma experiência estética.

Iser se pergunta de que maneira um texto literário se deixa apreender como um

acontecimento e até que ponto as elaborações provocadas pelo texto são previamente estruturadas

por ele. Os processos que envolvem a interação entre texto e leitor recebem, nesse sentido,

especial atenção, mas é preciso também investigar de que modo o texto acontece para o autor.

Afinal, o acontecimento tem uma forte presença também nesse momento. Como o próprio Iser

afirma, “o texto literário se origina da reação de um autor ao mundo e ganha o caráter de

acontecimento à medida que traz uma perspectiva para o mundo presente que não está nele

contida.”(ISER, 1996, p. 11).

Ou seja, o surgimento do texto literário provoca um descentramento em relação ao contexto

a que se refere o texto e isso é fato tanto para o leitor quanto para o autor. O texto não diz respeito

somente ao real do qual supostamente provém e ao qual deve prestar contas, mas ele origina a sua

própria realidade nesse primeiro deslocamento. Por que é possível fazer tal afirmação? Porque no

texto literário a linguagem é posta em movimento e, nesse momento, pode ser deslocada do seu

uso consolidado, através de novas combinações propostas, em primeiro lugar, pelo autor. Ora, tal

ação não acontece somente no texto literário, mas o destaque dado se justifica em razão das

possibilidades que esse tipo de texto cria, qual seja, o de fazer tanto autor quanto leitor

experimentarem o deslocamento temporal do uso da linguagem, através de novas ordenações

espaciais de seus significantes. Autor e leitor podem perceber, no acontecimento do texto, as

perspectivas de tempo e espaço que acompanham a sua experiência.

A teoria do ato de leitura, ao encarar o texto como um acontecimento, o entende como um

processo integral e incessante, que indica as fases que atravessa, mas não pode ser capturado

totalmente em nenhuma delas. Há a reação do autor ao mundo, a interpretação do texto, os

processos de seleção e combinação da linguagem e vários outros momentos que, embora

somados não compreendam toda a obra, juntos podem ultrapassá-la, quando entendidos como

partes de um processo. Essa noção processual vinculada ao texto é fortemente marcada, na teoria

do efeito estético, pela percepção de que o texto literário é comunicação, porque se realiza na

interação entre o pólo do texto e o pólo do leitor.

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Segundo Iser (1996), a interpretação universalista parte do princípio de que todo texto

possui um segredo escondido, que pode ser fixado e acessado através das ferramentas da análise

discursiva. Mas, se o texto é entendido como um processo resultante da interação entre texto e

leitor, o sentido é também algo movente, sujeito às diversas interações que o texto e o leitor

podem produzir. O sentido não poderia ser reduzido a algo fixo e imutável, que independe do

texto. Iser defende a noção de que o sentido possui um caráter imagético e o texto, antes de

possuir ou ter que revelar um significado referencial, apresenta, na verdade, indicações que

sugerem ao leitor o sentido como imagem. Dessa maneira, o sujeito não pode ser retirado da

relação através da qual o texto recebe um significado. O leitor irá relacionar o texto “a uma

situação pela atividade nele despertada; assim estabelece as condições necessárias para que o

texto seja eficaz.” (ISER, 1996, p. 33). O processo de criação, nesse caso, esteja ele relacionado à

escrita ou à leitura, aparece como um momento em que os significados imagéticos surgem

agarrados nas dobras temporais, os quais podem ser percebidos de maneira espacializada. Não

significa dizer que tais significados já estão presentes, bastando ao sujeito encontrá-los e, sim,

que, de acordo com os movimentos ensejados pelo sujeito no seu contato com a obra, criam-se

combinações que só existem no momento dessa relação. A obra não irá carregar sempre tais

combinações fora da relação que as criou. Ela apenas tem o efeito de ensejar a relação entre autor

ou leitor e o texto. São as relações e as condições para que ela se estabeleça que interessam como

foco de análise.

Iser, ao discutir o ato da leitura, afirma que “a obra é o ser constituído do texto na

consciência do leitor.” (ISER, 1996, p. 51). Entretanto, para chegar a essa constatação, afirma

também que a obra literária não pode ser reduzida nem à realidade do texto, nem somente à

forma como o leitor a percebe. A obra é a constituição, através da leitura, de um caráter próprio

do texto. Por isso, o texto para Iser é denominado, nesse estudo, de obra: ou seja, a estrutura

criada pelo autor. E texto, nesse estudo, é a concretização produzida pelo leitor. Nesse ponto

encontra-se um paralelo com o entrelaçamento, pois a obra poderia ser a relação entre o texto

escrito e a percepção do leitor, sem ser síntese realizada em qualquer um dos pólos. A obra seria,

então, o entrelaçamento desses dois invisíveis, a diferenciação entre texto e leitor, que permitiria

a percepção da carne do mundo.

“Com a primeira visão, o primeiro contato, o primeiro prazer, há iniciação, isto é, não posição de um conteúdo, mas abertura de uma dimensão que não poderá mais vir a ser

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fechada, estabelecimento de um nível que será ponto de referência para todas as experiências daqui em diante.” (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 146).

O contato com o texto compreendido como abertura faria o leitor sentir a vibração temporal

daquilo que lê. Seria a possibilidade de ver que a leitura não deve buscar o sentido final do texto,

mas sim, ser conduzida pelas significações que encontra. Aqui aparece uma pergunta: a condução

da leitura indica que o leitor deve ser passivo? Novamente Iser sugere uma abertura para se

investigar a pergunta, ao afirmar que “o sentido não é mais algo a ser explicado, mas sim um

efeito a ser experimentado.”(ISER, 1996, p. 34). A idéia de efeito a ser experimentado remete a

uma relação que necessita do reconhecimento da indissociabilidade entre sujeito e objeto, do

reconhecimento de uma intersubjetividade, que é responsável pela percepção do texto tal qual ele

aparece no ato da leitura. O texto não está pronto à espera do seu leitor ideal, nem é mera cesta

onde o leitor despeja suas idéias. Se o texto pode levar à percepção oblíqua da carne, melhor para

o leitor é entendê-lo como revestimento, como pele que não pode ser separada nem das palavras,

nem de si mesmo. Não significa demonstrar passividade diante da leitura que se apresenta, mas

talvez querer a experiência. Agir em direção à obra, para ser também investido por ela.

Iser critica a noção de interpretação de uma obra no sentido conferido a esta pela crítica

tradicional. Enquanto interessada em fazer a obra de arte representar testemunhos fiéis de uma

época ou revelar significados ocultos em si mesma, a interpretação esvaziaria a noção de

experimentar a obra naquilo que ela pode dizer.

“Pois é característico dos textos literários que não percam sua capacidade de comunicação depois que seu tempo passou; muitos deles ainda conseguem ‘falar’ mesmo depois que sua ‘mensagem’ se tornou histórica e sua ‘significação’ se trivializou”. (ISER, 1996, p. 40).

Encontra-se nessa passagem uma relação com a noção de reversibilidade entre diacronia e

sincronia. Se o texto pode falar mais do que a interpretação clássica mostra, cabe também ao

leitor ser parte ativa nesse processo. Merleau-Ponty (2003) sugere cuidado nesse movimento, já

que haveria a tentação de construir a percepção como o que já se conhece do mundo. É como se o

contato com a obra enviasse ao leitor o que ele já conhece, com a ilusão de que ali está a

experiência. A proposta é justamente se deixar interrogar, no ato da leitura, não só pelo texto,

mas pela própria experiência. Para permitir o entrelaçamento de invisíveis, cabe ao leitor

perceber o que o modifica e, ao mesmo tempo, o constitui.

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Merleau-Ponty diz que a carne é

“... no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espácio-temporal e a idéia, espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. (...) Não fato ou soma de fatos e, no entanto, aderência ao lugar e ao agora. Ainda mais: inauguração do onde e do quando, possibilidade e exigência do fato, numa palavra, facticidade, o que faz com que o fato seja fato”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 136).

Ao se interrogar sobre o momento da leitura e a experiência do texto, o leitor poderia

perceber a ‘carne’ de que fala Merleau-Ponty. O leitor perceberia, então, que faz parte daquilo

que lê? Que o texto não é um objeto que ele manipula, nem que ele, leitor, é manipulado pelo

texto?

A carne apareceria na intercorporeidade, não como visível, mas estando aí constituída. O

leitor perceberia a reversibilidade entre visível e vidente ao realizar a experiência da leitura sem

buscar a si mesmo ou ao texto, mas se deixando tomar pelo corpo em geral, por aquilo que torna

o texto generalidade, reconhecível como experiência de conhecimento através do sensível. Coisa

entre coisas, vidente e visível, tangente e tangível, o leitor poderia então abandonar a noção de

uma interpretação última, o encontro com o ‘texto’, nele ou em si mesmo? O que aparece

novamente é a dificuldade em não se deixar levar pela definição do processo correto de leitura,

pois seria contradizer a própria sugestão de Merleau-Ponty, quando afirma que

“Este hiato entre minha mão direita apalpada e a mão esquerda palpante, entre minha voz ouvida e minha voz articulada, entre um momento de minha vida táctil e o seguinte, não é, porém, um vazio ontológico, um não-ser: está dominado pelo ser total de meu corpo e do mundo, e é o zero de pressão entre dois sólidos que faz com que ambos adiram um ao outro”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 143).

A forma correta de leitura permitiria ao leitor livrar-se do texto que o instiga e encontrar o

texto ideal, harmônico, completamente equilibrado consigo mesmo. Só que, nesse ponto, tal leitor

encontraria somente o não-sentido e deixaria de aceder à experiência do sensível que percorre o

texto incrustado nas palavras.

A leitura de uma obra poderia ser pensada como se vermelho e amarelo pudessem ser

jogados um contra o outro e as duas cores sentissem essa mistura. Como se elas sentissem a

impossibilidade de saírem dessa experiência como simples vermelhos e amarelos e soubessem

ainda que a mistura total é impossível. É a experiência do leitor quando se depara com a obra

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literária, que não deixa marcas aparentes, mas que irá constituir toda a sua experiência posterior.

Seria como encontrar as palavras em estado de pré-dicionário: prontas, porém sempre

incompletas, vivas, saltando aos olhos, entrando pelos poros, tomando o leitor de assalto, ou de

sobressalto. Quando se mistura à sua leitura, o leitor encontra o texto que procurou sempre ler.

Talvez a leitura em voz alta faça ou permita uma aproximação desse gesto. O leitor não deveria

esquecer que, ainda que se misture ao texto, não chegará à sobreposição total através da leitura.

Se assim fosse, o texto não diria mais nada depois que fosse lido. Ou a leitura não seria, nesse

sentido, intencionalidade operante, facticidade. Quando o leitor se mistura ao que o texto “fala”,

encontra o texto que realmente lê, no qual está imerso e do qual não poderá ser tudo que é o

texto. A ‘fala’ que preenche não completa, tem um quê de inesgotabilidade. “A obra literária se

realiza então na convergência do texto com o leitor; a obra tem forçosamente um caráter virtual,

pois não pode ser reduzida nem à realidade do texto, nem às disposições caracterizadoras do

leitor.”(ISER, 1996, p. 50).

Com a ressalva sobre o termo convergência, que indica uma possível síntese, Iser posiciona

a obra no “entre” da leitura e da escrita. Parece haver aproximação ainda maior com o

pensamento de Merleau-Ponty quando o autor alemão diz que as estruturas do texto fundam a

obra literária, mas que a função das estruturas deve ser preenchida pelo leitor. É no encontro dos

dois pólos que acontece a percepção de que algo se deu a conhecer. E o fenômeno não pode ser

separado dessas duas subjetividades. Nesse sentido, a leitura e a escrita vivem a reversibilidade e

permitem a diferenciação. Assim, trata-se não de discutir como se deve ler ou escrever, mas do

que acontece quando formas de escrita se encontram com tipos de leitura. É ainda Iser que

reforça a significação com caráter de evento ao tratar do efeito estético, que é caracterizado pelo

autor como “o não-idêntico ao de antemão existente no mundo.” (ISER, 1996, p. 53). Aqui

aparece a noção de diferenciação como possibilidade da experiência de uma obra literária, tal

como discute Merleau-Ponty.

“... as idéias são este afastamento, esta diferenciação nunca acabada, abertura sempre a refazer entre signo e signo, como a carne, dizíamos nós, é a deiscência do vidente em visível e do visível em vidente. E tal como meu corpo só vê porque faz parte do visível onde eclode, o sentido tomado pelo arranjo dos sons nele repercute.” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 148).

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A leitura deveria ser sentida, como os sons são também sentidos quando repercutem? O

olhar se faz, então, possuidor do sensível e não só veículo de representações que estariam fora do

texto? O encontro do sentido estaria na relação que existe entre texto e leitor, na deiscência entre

visível e vidente, entre vidente e visível. A linguagem permitiria esse encontro quando se

apresenta em sua forma criadora. Ao leitor caberia não reduzi-la à fala falada, ao que já foi dado

e, sim, permitir-se viver o sentido no momento em que ele surge.

Iser descreve essa interação a partir das noções de pólo artístico (as estruturas criadas pelo

autor) e pólo estético (a concretização produzida pelo leitor). Segundo o autor, há uma interação

entre os dois pólos que é responsável pela constituição de um sentido. Seria com a participação

do leitor que o texto poderia se constituir. Entretanto, as condições para o surgimento dessa

interação estão presentes na estrutura do texto criado pelo autor. Assim, Iser afirma que os textos

literários são, ao mesmo tempo, constituídos por uma estrutura verbal e uma estrutura afetiva.

Pode-se perceber o caráter de reversibilidade que acompanha, então, uma obra literária, ou

melhor, que caracteriza a experiência de e com uma obra literária. A primeira característica

relaciona-se ao fato de que essa experiência não se cristaliza em algo existente. Ela tem a forma

de um evento, que é também a maneira pela qual Iser descreve a significação. Entretanto, se a

experiência com a obra reduzir-se somente ao seu caráter de evento, a própria noção de que as

estruturas criadas pelo autor são condições elementares para a interação entre obra e leitor

termina por se esvaziar. Isso porque se a obra está em condições de receber qualquer significação,

não importando mais o que ela apresenta como estrutura, é essa estrutura que não tem razão de

existir. Ela apareceria apenas como um sustentáculo vazio onde o leitor deposita a sua

consciência. Entretanto, ao experimentar esse “evento”, o leitor não completa necessariamente o

texto, mas antes percebe novas possibilidades em função do seu próprio movimento em relação à

estrutura da obra. Barthes (2004) enxerga nessa desvinculação uma potencialidade para libertar a

obra do suporte verbal, conferindo a outras linguagens a capacidade de gerarem textos.

Em suma, quando o leitor percebe o efeito estético do texto, parece que ele se vê diante de

uma experiência contínua, sujeita a constantes desdobramentos, reorganizações de significados,

interpretações renovadas. Assim, a experiência estética engendra a sua própria continuidade, uma

vez que é constituída e constitui o próprio processo de sua comunicação, os seus próprios atos

intersubjetivos. Esse equilíbrio dinâmico entre estrutura verbal e estrutura afetiva, na forma de

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um evento, pode ser percebido quase que como condição estrutural para a criação de um

cibertexto, como será discutido posteriormente nesse estudo.

Uma segunda característica da experiência com uma obra literária é que ela é altamente

instável, no que diz respeito aos efeitos da experiência. Estes não são realizados somente pelo

leitor e tendem a converter-se em referências de significação que poderão ser utilizadas em novas

estruturas criadas por outros autores. Afinal, na experiência com a linguagem, o homem pode

experimentar deslocamentos através de processos de seleção que reposicionam significados

referenciais. Entretanto, após o deslocamento, aquilo que foi experimentado como efeito tende a

assumir o lugar de referência, se for aceito por quem experimentou o deslocamento. Ou tende, ao

menos, a se tornar mais um significado referencial. Na criação de uma obra, o autor produz

estruturas textuais que sugerem novos deslocamentos, estruturas que contêm elementos de

indefinição. No momento em que o leitor se depara com tais proposições, pode operar a

experiência estética provocada pela obra e pela maneira como, ali, os significados referenciais

propõem a sua própria atualização pelo pólo estético. Aqui se verifica a reversibilidade entre

espaço e tempo que acompanha a relação com uma obra. A linguagem, em sua forma

espacializada, aponta para o seu fundo temporal.

A atualização provocada pelo leitor, e na qual se pode perceber o efeito estético, tenderia a

tornar-se um produto não-estético, ou uma nova obra, ainda que a interpretação em si não gere

uma nova estrutura física. O deslocamento inicial operado pela leitura ou pela escrita tende a

estabilizar-se no seio dos significantes escolhidos e mesmo a incorporar-se a um conjunto de

significados referenciais. Entretanto, não reside aí o ponto final do processo de constituição de

sentido de um texto. Pelo contrário, cada uma das fixações que uma obra recebe e carrega são

como instantâneos que buscam neutralizar a força do movimento temporal que sustenta a

constituição incessante de sentidos que uma obra pode gerar.

No momento da leitura, o leitor se depara com uma determinada estrutura, um dos muitos

instantâneos que uma obra carrega no seu interior. Como esse instantâneo não comporta todas as

possíveis significações da obra, ela comporta indeterminações, que podem ser percebidas na

leitura e funcionarem como o momento em que o leitor experimenta o efeito estético. Nesse

momento, o leitor experimenta a intersubjetividade, porque sente o confronto entre as diversas

significações que a obra já parece carregar, construídas a partir de sentidos vivenciados por

leitores diversos e que aparecem fixados na escolha do autor, e a sua própria subjetividade, que

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sofre um deslocamento em função da experiência da leitura. Assim, o papel do leitor se define

como estrutura do texto3 e estrutura do ato de leitura.

Em relação à estrutura da obra, Iser afirma que esta constrói um mundo a partir do material

que lhe é dado e nesse modo de constituição se manifesta a perspectiva do autor. A experiência

da leitura manifesta-se como uma experiência dinâmica e de criação porque ao leitor não cabe

reconstituir o mundo imaginado pelo autor. Iser afirma que

“... o texto literário não apresenta apenas uma perspectiva do mundo de seu autor,ele próprio é uma figura de perspectiva que origina tanto a determinação dessa visão, quanto a possibilidade de compreendê-la”. (ISER, 1996, p. 74).

Compreendida dessa forma, a obra literária é composta de várias camadas temporais que

surgem numa determinada configuração espacial aos olhos do leitor. Tal configuração não

impede que o leitor perceba outros possíveis movimentos ou perspectivas que a obra poderia

mostrar, ou seja, que também a compõem. E qualquer que seja a configuração escolhida pelo

leitor, nenhuma delas terá completa identificação com o sentido do texto. Por isso é possível dizer

que a estrutura verbal do texto é condicionante do seu caráter perpétuo de não acabamento, de

instabilidade. O sentido do texto poderá ser atualizado no ato de leitura e, nesse instante, o leitor

experimentará a reversibilidade entre espaço e tempo, mas não poderá realizar todo o sentido

porque o caráter de reversibilidade se esgotaria e um dos elementos que compõem a experiência

não precisaria, então, existir. Um sentido que pode ser atualizado é apenas imaginável, pois

aparece sempre preso nas dobras do texto e não pede jamais para ser decifrado por completo.

Quando um conjunto de frases se torna uma enunciação verbal, tais frases são ou estão sempre

relacionadas a contextos determinados. Porém, tais enunciações só adquirem sentido quando são

comunicadas e, por isso, dependem do contexto ao qual se relacionam. Nesse sentido, o texto

literário, enquanto um dos muitos exemplos de criação artística, ultrapassaria o mero conjunto

das frases dispostas porque comunicaria sempre algo a mais do que a disposição física dos seus

significantes. Talvez se possa dizer que, ao tomar o conjunto das enunciações verbais de um texto

como uma significação estanque, espacializada, o texto perde a sua força dinâmica, sua

capacidade de comunicar algo, que remete sempre à sua própria instabilidade. Entender as

3 Apenas para lembrar que o que Iser denomina texto é a estrutura criada pelo autor. Em função disso, no início do próximo parágrafo, o que se lê é a estrutura da obra, em função da compreensão de obra presente nesse estudo, diretamente associada à estrutura criada pelo autor.

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estratégias textuais como capazes de realizar a mediação entre o leitor e um determinado contexto

significa compreender que qualquer sentido do texto não só é transitório, mas que também escapa

ao próprio conjunto ou seleção de significantes feita pelo autor ou pelo leitor. Experimenta-se,

dessa maneira, a percepção de que toda obra é um momento do tempo capturado precariamente

numa estrutura frágil, que cede ao menor olhar desviante que o leitor ou o autor lhe dirigem.

No caso dos cibertextos, a transitoriedade aparece como condição para sua própria

produção e não somente como uma percepção pós-leitura. Há como que um aumento da

intensidade ou da importância da instabilidade para a existência do cibertexto. Essa hipótese

orienta a discussão que se fará sobre a escrita e a leitura nos cibertextos. É em função da

exigência de uma instabilidade que talvez se possa dizer que o cibertexto cria o seu próprio

ambiente de imersão, que é também temporário e se modifica junto com os deslocamentos

provocados por aqueles que experimentam a obra.

As idéias de imersão e de instabilidade como condições para a produção de um cibertexto

podem ser associadas à construção de situações nos textos literários, conforme a visão de Iser. O

texto literário engendraria as suas próprias condições de existência, uma vez que ele mostra,

através de sua constituição, os limites da estrutura da qual deriva. Segundo Iser, os símbolos

utilizados no texto literário não fazem referência a um contexto real, mas ainda assim conseguem

constituir um mundo perceptível. Essa seria a característica do texto literário: construir a sua

própria possibilidade de existência. E não significa dizer que o texto literário determina o mundo

que virá a existir em função da organização de seus significantes, mas sim que servirá “para

apresentar as instruções para a produção de significados.” (ISER, 1996, p. 122).

Na relação entre texto e leitor não haveria uma situação anterior à “entrada” do leitor no

texto. Iser sugere haver, nesse sentido, um vazio provocador das condições de comunicação do

texto.

“O que é dado ao uso cotidiano da fala aqui deve ser primeiro produzido; isso pode ter a desvantagem de que a comunicação não chega a se realizar, e pode ter a vantagem de que o leitor se comunica com o texto por meio de ações verbais que não são apenas pragmáticas.” (ISER, 1996, p. 124).

Cabe ao leitor produzir as significações relativas a uma situação em que há o encontro entre

ele próprio e o texto. A produção é uma constante no ato de leitura e é esse acontecimento o

responsável pelo grau de abertura de um texto, pelo seu grau de realização de uma situação.

Entretanto, como alerta Iser, a convergência entre texto e leitor não é uma realização exclusiva no

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ou do ato de leitura. O texto deve apresentar também elementos suficientes para permitir o

desenrolar da situação. Iser define três elementos centrais em um texto literário que seriam

responsáveis por esse processo: o repertório, relativo às convenções necessárias para a produção

de uma situação; as estratégias textuais, como os procedimentos que estruturam o repertório; e a

realização, relativa ao momento de participação do leitor.

De que maneira o repertório se apresenta no texto? Através da recorrência a normas e

padrões sociais relativos ao qual o texto emergiu, mas dos quais também consegue se destacar.

Tal recorrência não significa que os textos copiam e reproduzem simplesmente as convenções

institucionalizadas às quais se referem. Iser afirma que as convenções, ao serem separadas do seu

contexto original e entrarem num texto literário, podem assumir outras relações sem deixar de

fazer referência ao seu contexto inicial. Em função desse duplo movimento, o repertório pode

constituir-se num pólo de mediação da experiência de leitura de um texto literário. É justamente

nesse momento que o texto revela seu caráter individual, ao provocar no leitor uma

desfamiliarização em relação às normas e convenções às quais faz referência. Para melhor

compreender tal modo de funcionamento, parece conveniente retomar alguns conceitos derivados

da sociologia do conhecimento, relativos à maneira como se criam convenções sociais

institucionalizadas a partir de interações sociais ainda não padronizadas.

Berger e Luckmann (1985) afirmam, em “A construção social da realidade”, que a

realidade é construída socialmente e o objetivo da sociologia do conhecimento é justamente

explicitar os mecanismos que levam a essa afirmação. Interessam para os propósitos desse estudo

a maneira como os dois autores articulam a relação entre a complexidade da vida cotidiana, o uso

da linguagem e a institucionalização de normas em uma determinada sociedade. A relação com a

realidade se dá, segundo os autores, preferencialmente, através do contato com a realidade da

vida cotidiana. Essa, por sua vez, é duplamente marcada: por um lado, aparece já ordenada,

constituída por objetivações que fornecem sentido e ordem ao mundo; por outro, pela relação

com outros homens, através das quais o homem percebe os seus próprios atos, porque entra em

contato com os atos de outros homens. A realidade da vida cotidiana é marcada pelos

conhecimentos que os homens compartilham entre si, mas também pelas situações de

excepcionalidade, pelo não familiar, pelo não institucionalizado em normas ou padrões. Como

surgem as institucionalizações que objetivam o mundo e o fazem aparecer ordenado e dotado de

sentido? Segundo Berger e Luckmann (1985), através das interações face a face, o homem

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apreende que a realidade da vida cotidiana é construída intersubjetivamente, através do confronto

entre a sua percepção e a percepção dos outros. Tais percepções são, progressivamente,

institucionalizadas através do uso de sistemas de expressão, dos quais a linguagem seria aquele

capaz de expressar as situações mais complexas. A criação de tais sistemas permite ao homem

reduzir a complexidade da vida cotidiana e estabilizar certas relações sociais, tipificando-as.

Assim, o homem consegue criar certa estabilidade diante da complexidade do real, o que

permitirá a esse mesmo homem ampliar o seu grau de conhecimento, através de uma atenção

especial ao que não é familiar ao sistema de convenções que utiliza para mapear a vida social. Ou

seja, é a estabilização do sistema, através das convenções, que permite ao homem perceber o que

está fora das convenções, no limite do sistema e o que pode provocar uma atualização das

próprias convenções. Assim, o uso de estruturas de criação de sentido na institucionalização das

relações sociais aponta para o próprio limite do sentido criado.

Esse é o mesmo movimento que Iser utiliza para descrever o modo de seleção do repertório

de um texto ficcional, bem como o seu funcionamento.

“A realidade como pura contingência não pode servir como campo de referências para o texto ficcional. Ao contrário, esses textos já se referem a sistemas em que a contingência e a complexidade do mundo são reduzidas e é produzida em cada caso específico uma construção de sentido do mundo.” (ISER, 1996, p. 132,133).

Ou seja, o repertório não se refere à totalidade do mundo, nem mesmo aos desvios em

relação a normas já conhecidas, mas sim aos sistemas de sentido dominantes à época da sua

produção. E se assim o faz, é justamente para engendrar o próprio movimento de superação das

convenções sociais em que surge, pois se refere ao que os sistemas de sentido dominante

excluem, ao mostrar a forma de funcionamento dessa estruturação de maneira organizada e ao

explicitar, assim, as possibilidades negadas pelas convenções usuais. O texto literário apresenta a

realidade de uma maneira não usual ao leitor, embora não faça isso explicitamente. Ele se refere

ao que não está dentro do sistema dominante, mas que se atualiza como seu limite. Em função

desse modo de funcionamento é que se pode afirmar que os textos literários criam a sua própria

existência, já que se referem, concomitantemente, ao sistema de sentido dominante do qual são

parte e também ao limite desse sistema de sentido.

O repertório é, então, selecionado entre o sistema de valores dominantes em uma

determinada época, e é também o que indica, no texto literário, os limites desse sistema.

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Entretanto, essa indicação não é feita de forma explícita. Cabe ao leitor verificar, no texto

literário, os valores que conhece e transcodificar de que maneira o repertório selecionado se

diferencia dos valores institucionalizados. Nesse ato se realiza a comunicação desse tipo de texto.

Iser trata ainda de outro elemento presente no repertório dos textos literários: além de

normas extra textuais, os textos literários também incorporam, segundo o autor, elementos

literários do passado. A função do resgate de referências literárias passadas seria tornar mais

evidente a maneira como o texto sugere respostas para os limites dos sistemas de sentido do qual

faz parte. As alusões literárias não funcionam como meras reproduções de esquemas

consolidados, uma vez o contexto em que tais normas possuíam valor já é de antemão negado.

Ao retirar as referências literárias do seu contexto, o texto literário propõe também um novo

sentido para elas, à luz do repertorio que as estrutura. O sentido anterior não desaparece, pois é

sobre ele que o texto literário sugere ao leitor o deslocamento das normas consolidadas em

direção aos seus limites.

Ao conjugar alusões literárias consolidadas com normas selecionadas de realidades extra

textuais, o texto literário cria o seu próprio sistema de equivalências, derivado de uma mútua não

familiaridade entre elementos de sistemas diferentes. Há, no dizer de Iser, uma deformação

coerente dos dois sistemas. Basta pensar na estrutura de um romance do séc. XIX para narrar a

realidade fragmentada do presente século. Do encontro de dois sistemas que podem ser

reconhecidos como familiares em si mesmos, há uma não familiaridade derivada da não-

equivalência dos próprios sistemas. Dessa deformação resultaria o valor estético do texto,

constituído pela própria seleção do repertório do texto.

“1. É através da desvalorização do familiar que o leitor se torna consciente da situação familiar que orientava a aplicação da norma agora desvalorizada. 2. A desvalorização do familiar marca um ponto culminante, que introduz o familiar na memória, que orienta a busca pelo sistema de equivalência do texto à medida que esse sistema deve ser constituído em oposição à memória, ou diante dela.” (ISER, 1996, p. 152).

O processo de comunicação de um texto literário se baseia, assim, na relação entre os

elementos do repertório textual e os elementos do leitor. Essa seria a perspectiva externa à qual o

texto permite o acesso. Quando o texto reproduz, em seu repertório, elementos já bastante

familiares ao leitor, a demanda pela sua participação no processo de construção de sentido é

pequena; ao contrário, quanto mais o texto apresenta um repertório não familiar ao leitor, maior

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deve ser a sua participação na construção do sentido. O movimento descrito aqui é denominado

por Iser como uma relação entre o primeiro e o segundo plano do texto. O segundo elemento

responsável pelo processo de comunicação em um texto literário, segundo Iser, seriam as

estratégias textuais. As estratégias têm duas tarefas primordiais, segundo o autor: criar relações

entre o contexto de referência do repertório por elas organizado e o leitor do texto; e esboçar as

relações internas entre os elementos do repertório. Interessa agora compreender de que maneira

as estratégias organizam as relações entre os elementos do repertório, pois tais elementos serão

trabalhados posteriormente quando da discussão sobre tempo, narrativa e imersão.

As relações internas entre os elementos do repertório devem ser combinadas de tal maneira

que permitam ao leitor a compreensão do texto. Antes da compreensão, entretanto, o leitor deve

ter acesso ao mundo do texto, tarefa que é cumprida, segundo Iser, pela seleção dos elementos do

repertório, já discutida aqui anteriormente. A combinação dos elementos selecionados entre si é

que fornecerá ao leitor pistas para compreender o objeto estético do texto. Em função disso, Iser

afirma que a organização interna do texto é baseada em um sistema de perspectivas. Somente

assim seria possível, segundo o autor, “combinar as visões perspectivísticas de um objeto

intencionado de tal modo que esse objeto, que não é dado enquanto tal, é representável.” (ISER,

1996, p. 179). O texto é composto pela conjugação de várias perspectivas e Iser designa quatro

delas como as principais na combinação dos elementos do repertório: a perspectiva do narrador, a

perspectiva dos personagens, a perspectiva da ação ou enredo e a perspectiva da ficção marcada

do leitor. Cada uma permite um acesso distinto ao repertório do texto, permite uma visão

específica sobre a intenção comunicativa esboçada no texto. A intenção total do texto aparece

apenas nas relações entre as quatro perspectivas. Não há uma sobreposição dessas camadas e sim

uma co-ocorrência dentro do texto. A forma como se relacionam as perspectivas permite discuti-

las como estruturas dinâmicas que, ao mesmo tempo que oferecem acesso ao objeto estético

esboçado pelo texto, não podem ser reduzidas a esse objeto, nem ele a elas separadamente,

porque há sempre uma ultrapassagem mútua nesse movimento relacional das perspectivas.

No fluxo de leitura, o leitor se vê em um movimento constante entre as várias perspectivas

internas ao texto. A cada tomada de posição, correspondente à adoção de uma determinada

perspectiva, o lugar ocupado pelo leitor revela o limite da sua posição em função daquelas

perspectivas não assumidas naquele momento. Ou seja, ao assumir, por exemplo, o ponto de vista

do narrador, o leitor transforma a visão que tem das outras perspectivas e lê o texto a partir desse

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ponto de vista. Entretanto, como a esse tema faltam os outros pontos de vista, o leitor não

descortina nunca o objeto total do texto ao assumir somente uma perspectiva. Antes, o que lhe é

dado a perceber é também o limite do ponto de vista no qual está situado. Ou seja, o tema em que

o leitor se situa mostra a ele: o horizonte, definido pelas demais perspectivas não adotadas, e a

necessidade de reavaliar o ponto de vista adotado temporariamente. O duplo movimento entre

tema e horizonte indica que o objeto estético do texto transcende o próprio texto, uma vez que só

aparece na relação entre todos os elementos, mas não é jamais a soma de todos eles. Há aqui

vários pontos de contato com a maneira como Merleau-Ponty discute a percepção de um

fenômeno.

O equilíbrio entre as perspectivas explica porque o texto não pode ser reduzido às

combinações que o estruturam, porque o objeto estético transcende o texto. “(...) cada segmento

ganha sua significação apenas por meio das relações recíprocas que consegue desenvolver no

texto, através da estrutura de tema e horizonte. O objeto estético se constrói através da rede

dessas relações.” (ISER, 1996, p. 183).

Propõe-se considerar as perspectivas como camadas temporais que estruturam o texto. A

correlação baseia-se no fato de que as perspectivas são linhas de visão de um determinado objeto,

que sofrem alterações constantes no processo de leitura, ainda que não sejam alterações físicas. A

posição do narrador não é fixa, por exemplo, uma vez que a percepção sobre o que essa posição

significa é constantemente alterada em função da perspectiva da qual é observada ou que permite

observar. Novamente, há o retorno à estrutura de tema e horizonte em Iser. Quando uma posição

é adotada como tema, ela muda o horizonte do texto. A mudança do horizonte modifica a própria

perspectiva utilizada como tema, porque permite percebê-la como tal, não como valor fixo e

imutável. Assim, se o valor de cada perspectiva é modificado pela relação com as demais, essas

estruturas funcionam como fluxos temporais que percorrem o texto.

A forma como Iser enxerga a construção de sentido no mundo ficcional permitirá a ele

afirmar o caráter de comunicação, principalmente, do texto literário, e a leitura como uma relação

dialógica. Para o âmbito desse estudo, essa conceituação do texto literário ecoa, hoje, no modo de

produção das cibernarrativas.

O caráter dinâmico das cibernarrativas intensifica o que o texto literário exige no momento

da leitura e transfere essa exigência também para o momento da primeira escrita do texto

eletrônico. Assim, é a existência física da cibernarrativa que já deve ser criada de maneira a

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estimular não somente as condições de produção de significação, mas também as próprias

mudanças estruturais que a obra deverá sofrer para ser percebida como cibernarrativa. O leitor

deve poder atravessá-la fisicamente, intensificando a experiência de comunicação texto-leitor

através de uma experiência de reconstituição física da obra. As mudanças podem ser diretamente

no código de programação, na criação de novos caminhos de leitura com abertura de novos

hipertextos e em recombinações variadas. Para cada possibilidade de mudança é possível pensar

em um nível de imersão específico. Por exemplo, no caso da obra “Cinco cidades”4, há um

convite para aqueles que navegam pela obra para recombinarem os sons gravados pela equipe

que produziu o projeto. Trata-se de uma obra que apresenta sons de lugares variados, gravados

em cinco cidades de Portugal. A obra permite que os sons gravados sejam recombinados pelos

leitores, com modificações no volume das reproduções, modificações na mistura dos sons que

aparecem a cada vez na tela, escolha dos sons que comporão a mistura em um banco de dados.

Aqui não se trata apenas de permitir ao leitor novos caminhos de leitura, mas de deixá-lo criar o

mapa sonoro que depois será ouvido por ele mesmo e/ou por outros leitores da obra. A imersão

na obra transforma fisicamente a própria estrutura com a qual o leitor entra em contato.

A partir da estruturação que Iser propõe para o texto literário, é possível dizer que, nele, o

leitor imerge em um conjunto de significados produzidos pela sua relação com o texto. E tal

processo é dinâmico, porque ao avançar na leitura, o “local” inicial da imersão se transforma. No

texto eletrônico, o processo de leitura já é revestido de uma ação física sobre o próprio

“ambiente” de leitura e, em função disso, pode-se pensar que o leitor reconstrói, incessantemente,

o espaço que irá ler, de modo que esse espaço torna-se mais temporal, mais fluido; mais fluxo e

menos permanência. Iser situa esse processo no momento da leitura quando diz que “como a

leitura desenvolve o texto enquanto processo de realização, ela o constitui como realidade, pois,

qualquer que seja o caráter da realidade, ela o é porque sucede.” (ISER, 1996, p. 127).

A análise sobre o processo de leitura indica que ele pode ser visto como um momento de

criação, já que é justamente entre os atos estimulados pelo texto e o contato com o leitor que se

origina a criatividade da recepção. A leitura pede uma ação de querer ir de encontro ao texto, que

ainda não está completo. É preciso desejar a experiência do deslocamento. Dito de outra maneira,

a criatividade da recepção sugere e, talvez se possa dizer, exige movimento. Este, por sua vez,

relaciona-se com o movimentar lugares ou signos que parecem possuir sentidos dados e

4 Disponível em http://www.cincocidades.com/. Acesso em 11 de outubro de 2007.

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consolidados. É como se a experiência da leitura solicitasse do leitor a motivação para

experimentar outras configurações para o conjunto de estratégias textuais que se lhe apresentam.

Novamente, tempo e espaço surgem, mas também a percepção de que as obras possuem uma

característica processual, de que são obras em construção. No caso da cibernarrativa, pode-se

dizer que a experiência do deslocamento não modifica mais somente o texto, mas enseja a

produção de novas obras e pode aproximar essa vontade em direção a uma experiência

colaborativa. A proximidade entre autor e leitor, verificada por Iser, permite imaginar de que

maneira a colaboração pode acontecer. “O autor e o leitor participam, portanto, de um jogo de

fantasia; jogo que sequer se iniciaria se o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra do

jogo.” (ISER, 1999, p. 10).

Em uma obra o mais aberta possível, o que o seu autor pode sugerir é um pouco mais que

uma regra de jogo; são as condições para que o leitor crie primeiro as enunciações, que farão o

papel de estratégias textuais. O texto surge no momento quase em que já irá transformar-se

novamente em obra, a qual, por sua vez, poderá ensejar outras obras. O que se apresenta para o

leitor, numa obra extremamente dinâmica, não são somente as regras do jogo, mas a necessidade

de pensar, inicialmente, em quais serão as condições para que se crie a regra do jogo. E mesmo

quais serão as regras do jogo. Nesse momento, o leitor experimenta o ato de criação com a

cibernarrativa.

Ao analisar as operações da frase em textos literários, Iser permite dizer que a

fenomenologia do ato de leitura já apresentava discussões que são realizadas hoje sobre o caráter

do texto eletrônico. O autor sugere que o “mundo” que surge com a “obra” se constitui a partir de

correlatos intencionais de enunciação. Ou seja, se uma obra é composta de enunciações e se estas

podem combinar-se de diversas formas, o que interessa no ato de apreensão da obra é o momento

em que as correlações são estabelecidas. As enunciações sugerem os seus movimentos no tempo,

que serão estabelecidos pelos atos do leitor. As sugestões contidas nas enunciações funcionariam,

dessa maneira, como os poros da obra, os locais instáveis em que ela indica as suas próprias

possibilidades de ultrapassagem. O leitor, ao se situar dentro do texto, abre ou tem à sua

disposição, duas possibilidades de movimento: ele pode satisfazer-se com as expectativas

sugeridas ou perceber que o movimento que experimenta ao direcionar-se a um horizonte

escolhido o faz reavaliar e reconfigurar as expectativas geradas anteriormente. Em cada um

desses momentos o leitor experimenta um movimento de criação com o texto. Isso porque os

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correlatos de enunciações não fazem referência a algo dado, mas a algo que ainda não foi

produzido. Dessa maneira, o horizonte de leitura não é uma estrutura empírica de referência, mas

é resultante dos processos de interação e de criação entre texto e leitor.

A abordagem de Iser sobre as perspectivas textuais sugere que a experiência de criação com

o texto acontece justamente na percepção das diferenças entre as perspectivas. O fluxo temporal

linear de uma leitura permite perceber essas diferenças como camadas temporais que funcionam

concomitantemente, sem se sobreporem, se anularem ou se englobarem. Não se trata de um

acesso à pura instabilidade das combinações realizadas com as variadas camadas temporais, mas

sim de um momento de aproximação desse fluxo temporal e de um desdobramento das muitas

relações entre espaço e tempo que uma obra pode oferecer. A citação a seguir oferece um bom

exemplo sobre as possibilidades aludidas aqui.

“Desse modo, o ponto de vista em movimento pode desenvolver uma rede de relações, a qual, nos momentos articulados da leitura, mantém potencialmente aberto e disponível todo o texto. Essa rede relacional nunca poderá ser de todo realizada, mas ela oferece a base para as decisões seletivas a serem tomadas durante o processo da leitura.” (ISER, 1999, p. 27).

Segundo Maria Antonieta Jordão Borba (2003), esse movimento corresponde ao ponto de

vista nômade do leitor, que transita pela obra, reorganizando as variadas perspectivas textuais e, a

cada movimento, modificando também a perspectiva sobre o ponto de onde todas as perspectivas

textuais convergem para conferir um significado ao texto. Ou seja, o significado é sempre

derivado da relação comunicativa que o leitor estabelece com a obra. Nesse sentido, o significado

seria um efeito a ser experimentado, ou seja, uma experiência estética. Iser denomina também

esse momento como aquele da atribuição, pelo leitor, de uma significação a um significado.

A passagem à significação, segundo a teoria do efeito estético, é um ato permeado também

pelas intersubjetividades que o leitor experimenta. Na passagem, através do texto, o leitor ativa

tanto as estruturas textuais que formam a obra quanto as suas vivências cotidianas, tensionadas

pela proposta contida no discurso ficcional. O leitor não se detém ou não encontra a resposta em

um dos dois lados, mas, sim, experimenta a tensão entre os dois: aí aparece o significado

imagético, em que a experiência estética ainda não se conceitualizou. É possível pensar, segundo

essa formulação, na experiência estética como um processo de equilíbrio instável, que ora tende

ao conceitual, ora ao sensorial, mas que não se define somente em um desses pólos. As sínteses

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predicativas, evocadas por Maria Antonieta Borba, segundo esse mesmo raciocínio, seriam uma

tentativa de resistir à natureza estética do significado, altamente instável, e que caminha em

direção a uma significação, sem, no entanto, se esgotar nela. Afinal, como as significações são

rearticulações de uma intersubjetividade, elas engendrariam o seu próprio processo de

questionamento. Com a construção de sínteses predicativas, o leitor é remetido para “uma

instância em que ele formula significações, sujeitos, como vimos, às impregnações do mundo das

subjetividades.” (BORBA, 2003, p. 33). Segundo Iser, é o ponto de vista nômade do leitor que

permite desdobrar o texto em estruturas interativas. Ou seja, o texto não se desdobra em pontos

fixos que demarcarão, por exemplo, o movimento da leitura. Esta ação faz perceber as estruturas

interativas, que são também atos de agrupamento das perspectivas do texto.

Como foi dito já na introdução, se a teoria do efeito estético permite discutir uma obra

como um arranjo das camdas temporais que a compõem, sem que isso signifique uma

reversibilidade do tempo em direção ao espaço, a razão principal parece assentar na perspectiva

de interação entre escrita e leitura proposta por Iser. As relações analisadas por esse autor

enfatizam fortemente os processos de construção da narrativa de um texto literário, deixando

claro que essa narrativa não se esgota, em momento algum, no texto dado, mas existe justamente

porque o texto não deve ter a pretensão de terminar o processo narrativo, e sim fundá-lo e ser

fundado por esse mesmo processo. De que forma isso pode ser sugerido pela fenomenologia e

pela teoria do efeito estético? O primeiro ponto que justifica o processo narrativo como algo que

constrói o texto e não simplesmente é dado a ver através do texto conjuga-se com a perspectiva

fenomenológica de Merleau-Ponty, ao compreender o texto enquanto algo que atinge o leitor, ao

sugerir que a linguagem permite a ação de atravessar e ser atravessado. Ou seja, o processo de

escrita como processo narrativo é sempre já aberto, porque feito de dentro da própria linguagem,

mas também com ela. Não há, então, uma narrativa acabada pela e na obra, mas um arranjo do

que Iser chama de perspectivas textuais O ato da escrita é um ato de concentração da visibilidade

esparsa, e não um esgotamento do caráter do visível. Essa concentração, por seu turno, só pode

ser percebida na relação com o que a produz, o que significa pensar que a narrativa surge ao se

fazer, e não após ser completamente realizada.

Há, então, uma narrativa que termina de ser reailzada e se isola do processo que a

construiu? Aqui é possível falar de um segundo ponto na relação entre processo narrativo,

fenomenologia e teoria do efeito estético. Esse aspecto diz respeito ao movimento da escrita

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como um movimento de imersão em uma rede temporal, de modo a fazê-la vibrar e, dessa

vibração, fazer surgir uma configuração específica, que Paul Ricoeur irá chamar de mimese II, ou

de narrativa configurada. A escrita parece poder espacializar o tempo, mas é Jacques Rancière

que indica o caráter contraditório desse movimento, ao afirmar que a reapropriação do discurso é

conseqüência da sua própria estruturação em uma forma temporariamente instável. Assim, o

discurso estruturado em uma narrativa é apenas uma das visões possíveis dessa mesma narrativa,

que não cessará de poder ser reconfigurada pela leitura.

A teoria do efeito estético destaca o texto como acontecimento e o mesmo acontecimento

como condição para perceber que o texto não pode se limitar à obra estruturada fisicamente. Esse

seria um terceiro ponto de contato entre essa teoria e os processos de construção narrativa. Para o

que texto possa ser visto como acontecimento, ele deve ser criado de modo a provocar um

descentramento em relação ao próprio contexto de onde surge. Ou seja, a narrativa deve ser capaz

de sugerir o seu próprio questionamento enquanto estrutura fechada fisicamente. E também

enquanto coisa, nesse sentido. Além disso, é o processo de leitura que irá concretizar o texto

produzido pelo leitor. Ou seja, não se trata de igualar o texto à narrativa que o constrói, nem de

compreender aquela como resultado de um texto dado. A narrativa é a indicação da relação entre

autor, texto e leitor e, como tal, é sempre processual. A leitura, então, não é o lugar onde o texto

se esgota, onde termina o seu sentido, mas justamente momento de embate entre as perspectivas

textuais sugeridas por um autor e as concretizações percebidas pelo leitor. Nesse sentido, a

narrativa aparece como escolha de determinadas perspectivas textuais, processo que irá indicar os

seus próprios limites, já que se trata de uma escolha específica de como configurar e reconfigurar

o texto.

Enquanto evento, o texto sempre exige uma seleção dentre todas as possíveis. É justamente

a não-seleção das outras possibilidades que faz com que a leitura se descubra como momentânea.

Nesse sentido, o texto eletrônico não deve ser configurado como a mera possibilidade de

experimentação de todas as formas fechadas de Gestalt permitidas pela seleção e combinação das

estratégias textuais. Haveria o risco, a se adotar esse procedimento, de oferecer todas as

possibilidades de maneira física, programada, o que levaria ao não-sentido e, talvez, à não-

percepção do efeito estético. O caráter de evento, no caso das cibernarrativas, parece associar-se

tanto ao não-fechamento material da programação quanto ao incentivo à participação física do

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leitor na construção de novas possibilidades de produção de possibilidades. Para melhor

compreender de que maneira a teoria do efeito estético sustenta essa visão, basta notar que

“no plano de sentido, porém, são tomadas de decisões seletivas que não são subjetivas porque sejam arbitrárias, mas porque a Gestalt só se deixa fechar quando uma das possibilidades é selecionada, e não quando todas elas se realizam ao mesmo tempo.” (ISER, 1999, p. 35,36)

É importante perceber que as não-escolhas de que fala Espen Aarseth (1997), ao tratar da

navegação ou da experiência com cibertextos, estão presentes na formação de sentido dos textos

literários. Embora Aarseth não afirme o contrário, como se verá adiante nesse estudo, cabe

ressaltar que o cibertexto de caráter mais dinâmico talvez consiga apenas intensificar o que um

texto literário já faça, independentemente do suporte utilizado. Afinal, como afirma o próprio

Iser, ao dotar uma Gestalt de sentido, restam ainda possibilidades despertadas pela seleção de

determinadas estratégias textuais, ainda que não escolhidas na configuração da narrativa. Ao

configurar uma narrativa, o autor dessa narrativa propõe ao leitor uma determinada configuração

temporal, que surge espacializada em forma de obra, ainda que não esteja toda contida nessa

forma. O capítulo a seguir trata das relações entre espaço, tempo e narrativa, a partir das

discussões realizadas até esse ponto.

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3 TEMPO, ESPAÇO E NARRATIVA

3.1 A experiência com o tempo e com o espaço

De que maneiras se relacionam tempo, espaço e narrativa e como essa relação acontece

quando se fala de cibernarrativas? Discutir essas duas questões é um projeto bastante amplo e não

será respondido de todo nesse capítulo. Entretanto, pretende-se apresentar aqui algumas relações

possíveis entre três termos: tempo, espaço e narrativa.

A relação entre tempo e narrativa baseia-se na tese defendida por Paul Ricoeur em “Tempo

e narrativa”, qual seja, a de que o tempo é um tempo humano, à medida que é articulado de modo

narrativo. E “a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência

temporal.” (RICOEUR, 1994, p.15). A noção de que o tempo torna-se humano somente quando é

narrado aproxima-se bastante da discussão que Merleau-Ponty empreende sobre o tempo e o

tempo percebido.

Sobre o tempo, Merleau-Ponty afirma:

“Os ‘acontecimentos’são recortados, por um observador finito, na totalidade espaço-temporal do mundo objetivo. Mas, se considero este próprio mundo, só há um único ser indivisível e que não muda. A mudança supõe um certo posto onde eu me coloco e de onde vejo as coisas desfilarem; não há acontecimento sem alguém a quem eles (sic) advenham, e do qual a perspectiva finita funda sua individualidade. O tempo supõe uma visão sobre o tempo”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 551).

O tempo, segundo a citação acima, seria o tempo percebido, embora exista o tempo como

fundo desse tempo experimentado. Como fundo, ele não é percebido de forma direta. Nesse

tempo de fundo já existiram o passado e o futuro, pois segundo Merleau-Ponty, eles já existem

em demasia no presente. O mundo objetivo seria excessivamente plano para que nele houvesse

tempo. E por essa razão o mundo objetivo parece trazer um tempo distendido, em que tudo se

encontra num mesmo patamar temporal e o tempo que não é não se deixaria perceber.

“Se separamos o mundo objetivo das perspectivas finitas que dão acesso a ele e o pomos em si, em todas as suas partes só podemos encontrar ‘agoras’. Mais ainda, esses

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agoras, não estando presentes a ninguém, não tem nenhum caráter temporal e não poderiam suceder-se”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 552).

Nesse sentido, não haveria como se pensar em uma espacialização do tempo, posto que esta já

excluiria de si mesma o caráter fundante da relação temporal que o homem estabelece com o

mundo objetivo. Na discussão sobre temporalidade, Merleau-Ponty apresenta o tempo pensado

pelo homem como algo que surge antes das partes do tempo. Isso significa dizer que as noções de

passado, presente e futuro não são naturalmente lineares e que a sucessão temporal é já uma

relação com o tempo, um acesso indireto a esse tempo de fundo, invisível que sustenta as

relações de visibilidade constituídas na e com a experiência do mundo objetivo. O tempo

percebido seria, então, aquilo que nasce da relação do sujeito com as coisas (Merleau-Ponty,

1999). Há nessa afirmação um caráter de intersubjetividade que impossibilita o acesso a um

tempo puro de maneira espacializada e independente de uma relação. O caráter temporal do

mundo objetivo aparece nas relações estabelecidas entre um passado e um porvir que não se

deixariam capturar por completo no presente, ou numa ordem sucessiva de “agoras”. O que

equivale dizer que o tempo não se situa do outro lado do mundo objetivo, construído somente na

consciência. Se há alguma forma de alcançar o tempo, ela se relaciona com o desdobramento da

consciência no momento em que esta constitui o tempo do mundo objetivo. Tal desdobramento

não pode, entretanto, equivaler a um nivelamento do tempo como o objeto imanente de uma

consciência. O caráter temporal do mundo objetivo exige que o tempo esteja sempre sendo feito.

“É essencial ao tempo fazer-se e não ser, nunca estar completamente constituído. O tempo constituído, a série de relações possíveis segundo o antes e o depois não é o próprio tempo, é seu registro final, é o resultado de sua passagem que o pensamento objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 556).

A experiência do tempo exige que ele passe, para que possa ser percebido o seu caráter

temporal. O tempo, constituído como uma espécie de eternidade, deve ser percebido no cerne da

experiência do tempo e não por um sujeito atemporal situado fora dessa experiência (Merleau-

Ponty, 1999). O tempo está sempre em estado nascente e a eternidade a que alude Merleau-Ponty

relaciona-se com a invisibilidade do tempo. Ao afirmar que o tempo é uma dimensão do ser, esse

autor sugere a impossibilidade de uma constituição espacial do tempo, ou a impossibilidade de

uma reversibilidade que levasse o tempo a ser espacializado completamente, porque esta exigiria

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uma separação entre o ser e uma de suas dimensões fundantes. Isso não significa afirmar que o

tempo não pode ser percebido. O tempo em estado nascente é um tempo prestes a aparecer e que

“some” no momento mesmo de sua aparição. É tanto a passagem quanto a percepção dessa

passagem. Na relação com o que passa e entre o que passa, percebe-se o tempo em constituição

ininterrupta, um fazer-se do tempo e não um ser do tempo.

O tempo seria não uma linha, mas uma rede de intencionalidades, no sentido trabalhado por

Husserl. O contato com o tempo é o contato com o curso do tempo, com as ações que fazem o

tempo passar. As intencionalidades estariam relacionadas ao próprio campo perceptivo de um

sujeito, “que arrasta atrás de si seu horizonte de retenções e por suas protensões morde o porvir”.

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 558). Dito dessa maneira, o tempo se configura não como uma

série de momentos lineares a serem atravessados por um sujeito; antes, os momentos são

constituídos e manipulados pelo próprio ato de realizá-los. A passagem do tempo é construída

pela própria experiência que alguém tem do tempo e não cessa jamais de se fazer. O tempo é em

estado nascente incessantemente. Ele não pode ser reduzido somente a uma síntese momentânea

dos diversos momentos atravessados. O tempo é, então, um movimento, uma passagem em si

mesmo e não um conjunto de pontos objetivos através dos quais alguém passa. “Meu presente se

ultrapassa em direção a um porvir e a um passado próximos e os toca ali onde eles estão, no

próprio passado, no próprio porvir.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 561). O tempo se põe a

mover como um todo, como uma rede de intencionalidades operantes, em que um determinado

ponto qualquer do tempo permite a reabertura de um passado ou o surgimento de um porvir que

aparecem sempre em conexão com o movimento que os recuperou. O movimento do tempo é a

própria condição de sua percepção como constituinte da experiência que o sujeito tem do tempo.

Por essa razão, as intencionalidades são operantes, pois tornam possível ao tempo o seu

movimento. O que há, então, na experiência do tempo, é um fenômeno de escoamento e não uma

reconstituição de posições objetivas pelas quais o sujeito passou.

“Em suma, como no tempo ser e passar são sinônimos, tornando-se passado o acontecimento não deixa de ser. A origem do tempo objetivo, com suas localizações fixas sob nosso olhar, não deve ser procurada em uma síntese eterna, mas no acordo e na recuperação do passado e do porvir através do presente, na própria passagem do tempo”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 563).

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Merleau-Ponty estabelece, assim, que o presente reafirma todo o passado e antecipa todo

porvir, um tempo que se confirma a si mesmo. Se pensarmos em camadas temporais, presente,

passado e futuro não aparecem sobrepostos, mas entrelaçados, uma vez que cada uma dessas

camadas é a outra antecipada ou expulsa de uma delas em direção a um não-ser. As camadas

temporais só são percebidas quando uma subjetividade introduz entre elas uma perspectiva, um

não-ser. Como, para o tempo, ser e passar são sinônimos, a percepção do tempo é a sua condição

de existência. A temporalidade é acessível de maneira intersubjetiva, quando o sujeito se instala

entre as camadas temporais com o intuito de vivê-las e não de reuni-las numa síntese exterior a si

mesmo. Da maneira como Merleau-Ponty define o tempo, o sujeito está sempre envolvido nesse

tempo que percebe; não há como perceber a existência do tempo sem já estar instalado nele.

Nesse sentido, o tempo pode ser percebido, mas não pode ser tomado e visto em sua totalidade

porque ele só existiria de maneira perceptível enquanto estivesse sendo constantemente criado e

percebido em sua criação.

“(...)a ‘síntese’ do tempo é uma síntese de transição, ela é o movimento de uma vida que se desdobra, e não há outra maneira de efetuá-la senão viver essa vida, não há lugar do tempo, é o próprio tempo que se conduz e torna a se lançar.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 567).

Se a maneira de efetuar a síntese do tempo é viver o movimento de uma vida e não

necessariamente pensá-la, o tempo não pode ser separado do próprio ato de percebê-lo. Nesse

sentido, a narrativa de uma vida, mesmo que ficcional, é já uma maneira de vivenciar o tempo e,

talvez, a única maneira de fazê-lo aparecer. E, ao mesmo tempo, de compreender o movimento

dessa vida. “O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do

mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta.”

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 576).

O acesso ao tempo é sempre indireto, uma vez que o movimento em direção a ele já o

transforma, pois esse movimento implica estar situado no próprio tempo como passagem. O

tempo é modificado por si mesmo à medida que se desenvolve e também a partir de uma

consciência instalada no tempo. E como a consciência é a consciência do fluxo, ela encontra-se

desde sempre imersa no tempo, mas não completamente envolvida por ele e, sim, constituindo-o

e sendo por ele constituída. Ao pensar o tempo como constituinte e constituído pela própria

experiência que o engendra como movimento, abre-se uma possível questão relacionada às

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características dessa experiência. Merleau-Ponty parece empreender essa mesma busca em “A

linguagem indireta”. Ao afirmar que um escritor ou um pintor compõe certa forma com o que lhe

é dado em termos de materiais, o filósofo francês percebe a condição para a manifestação de um

sentido sobre e com o mundo.

“Dadas, por outro lado, as cores e uma tela que fazem parte do mundo, ele subitamente as priva de sua inerência: a tela, as próprias cores, porque foram escolhidas e compostas segundo um certo segredo, deixam de estar, para nosso olhar, ali onde estão, abrem um buraco no pleno do mundo, tornam-se, como as fontes ou as florestas, o lugar de aparição dos Espíritos, estão ali apenas como o mínimo de matéria de que um sentido precisava para se manifestar”.(MERLEAU-PONTY, 2002, p. 73).

O mínimo de matéria a que alude Merleau-Ponty é o que permitiria o surgimento do texto

como o impensado. Quando o autor afirma que um pintor ou um escritor cria determinadas

relações entre as coisas, privando-as de sua inerência, é como dizer que a obra materialmente

criada carrega em si as relações que poderiam antecedê-la, mas não representa todas essas

relações, que são temporais. Se o pintor ou o escritor busca um corpo mais ágil, não é uma busca

por uma representação do tempo que está em jogo aqui? Não é uma determinada configuração do

tempo que aparece nesse momento? Nesse sentido, há uma similaridade com a noção de mimese

como configuração do tempo preconcebido. Na experiência com a narrativa, o escritor desdobra o

tempo sem, no entanto, alcançá-lo, pois realiza tal desdobramento a partir de uma configuração

particular das camadas temporais que compõem a experiência vivida. Não haveria, desse modo,

um retorno completo do escritor à experiência vivida, mas o engendramento de um para-além da

experiência de dentro dela mesma, uma transcendência imanente à narrativa. Esta seria uma

forma de perceber o caráter temporal dos acontecimentos, mas não necessariamente de maneira

cronológica, uma vez que se trata de configurar o tempo de uma forma específica, humana. Como

afirma Merleau-Ponty (2002), o mundo não exige nenhuma forma em particular.

“Meu olhar, percorrendo livremente a profundidade, a altura e o comprimento, não estava submetido a nenhum ponto de vista, porque os adotava e os rejeitava a todos sucessivamente, ao passo que agora renuncio a essa ubiqüidade e convenho só fazer figurar em meu desenho o que poderia ser visto de um certo ponto de observação por um olho imóvel fixo num certo ‘ponto de fuga’, de uma certa ‘linha de horizonte’ escolhida de uma vez por todas”.(MERLEAU-PONTY, 2002, p. 79).

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Merleau-Ponty parece retomar assim o que já falava sobre a temporalidade em “A

fenomenologia da percepção”; ou seja, o fato de que o tempo nasce da relação de um sujeito com

as coisas e da maneira como este sujeito se coloca junto a elas. Assim, há uma temporalidade

fundante e um tempo associados ao mundo objetivo. Não seria o tempo espacializado, mas antes

uma perspectiva do tempo, uma das diversas camadas temporais que compõem, como uma rede

de invisíveis, o tempo.

Em “A linguagem indireta”, o filósofo francês afirma que a percepção jamais é acabada.

Ela seria o reconhecimento de uma significação que não visa o objeto já dado, mas o constitui e o

inaugura. Isso não significa um retorno à consciência ou uma preferência pelo indivíduo em

detrimento do mundo. Antes, o autor parece afirmar aqui justamente a idéia de que o percebido

sempre se faz sobre um fundo de percepção. Há uma invisibilidade que o sustenta, um mundo

ainda pré-configurado. E seria na relação com esse mundo, através da narrativa como

configuração do tempo, que o tempo percebido se deixaria à mostra, ainda que tal configuração

aponte sempre para além e para aquém de si própria, no que diz respeito ao mundo que dá a

perceber. A narrativa mostraria perspectivas parciais que o mundo ultrapassaria por todos os

lados. Não se poderia falar, então, de uma reversibilidade do tempo no espaço de uma obra, uma

vez que o tempo sempre ultrapassaria as perspectivas pelas quais se deixa perceber.

“Sem se voltarem para suas primeiras obras, e pelo simples fato de terem efetuado certas operações expressivas, o escritor e o pintor são dotados como que de novos órgãos e, experimentando, nessa nova condição que se deram, o excesso do que há por dizer sobre seus poderes ordinários, são capazes – a menos que um misterioso esgotamento ocorra, do qual a história oferece exemplos – de ir no mesmo sentido ‘mais longe’, como se, alimentados da substância desses poderes, crescessem com seus dons, como se cada passo exigisse e tornasse possível um outro passo, como se, enfim, cada expressão bem sucedida, prescrevesse ao autômato espiritual uma outra tarefa ou ainda fundasse uma instituição cujo exercício ele jamais terá terminado de verificar.” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 84).

É como se cada nova expressão suscitasse a sua própria falta, aquilo que não foi exprimido,

e que funciona como um impulso para uma nova criação. Essa criação não seria um retorno à

consciência, mas um retorno ao mundo a partir de uma expressão sobre ele. Uma volta que não

irá completar a expressão sobre o mundo e, sim, um movimento que é a própria condição de

relação com o mundo. Não uma circularidade exata, que separaria o dentro e o fora, mas uma

espiral infinita que se refaz incessantemente, como uma curva de Moebius. É no momento de

contato com o mundo que este passa a significar, mas não se deve entender, a partir dessa

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afirmação, que o mundo seja vazio. Antes, não havia uma relação, uma tomada de posição em

relação ao mundo que permitisse a sua expressão. Enquanto invisível, a temporalidade é sempre o

ainda não-percebido, o não contado. A tomada de posição e a expressão sobre o mundo

acontecem de forma simultânea. Ou seja, não há um causa anterior nessa relação. Há o

surgimento da expressão porque há a tomada de posição e há a tomada de posição, porque há

uma expressão com o mundo. Isso é o que Merleau-Ponty diz ao afirmar que o homem e a

significação surgem do fundo do mundo pela operação do estilo. O estilo é o que surge quando

aparecem figuras e fundos, altos e baixos, quando alguns elementos do mundo adquirem uma

dimensão pela qual todo o resto passa a ser medido (Merleau-Ponty, 2002). Pode-se relacionar

essa caracterização como equivalente a habitar uma das camadas temporais que compõem o

invisível e, com ela e a partir dessa localização provisória, produzir uma objetivação do mundo.

Ou seja, o mundo objetivo é o que surge com o estilo, com a criação de um sentido, com a

percepção de um sentido da temporalidade. O sentido seria referente, nessa passagem, à

disposição das camadas temporais em uma determinada relação, à configuração de uma narrativa

sobre e a partir de um tempo pré-percebido, ainda não-configurado.

“O sentido se afunda no quadro, habita ou freqüenta o quadro, estremece a seu redor ‘como uma bruma de calor’, em vez de ser manifestado por ele. É como ‘um esforço imenso e vão, sempre detido a meio caminho do céu e da terra’ para exprimir o que a natureza do quadro lhe proíbe exprimir”. (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 88).

Se o sentido habita o quadro é justamente porque somente de dentro da própria forma de

expressão é que o sentido acontece. É somente dentro do próprio tempo que o homem percebe a

sua passagem, o ser do tempo, mas já de passagem, sempre como um estremecimento, como uma

sensação de algo que o envolve e onde também ele não cabe completamente. A partir da

narrativa, já que se trata aqui de discutir a relação entre temporalidade e tempo narrado, o homem

expressa o que há de si no mundo e o que há do mundo em si, um indivisível distinto. O sentido

não é o dado de uma vez, mas a passagem em direção a, a vibração das relações que compõem o

mundo construídas naquele que conta o próprio mundo. Merleau-Ponty refere-se, num

determinado momento, à tríplice retomada através da qual o pintor infunde um sentido novo ao

que antes convocava esse sentido. É como se um autor estivesse constantemente criando a partir

da destruição, conservando a partir de uma ultrapassagem. Tal proposta se assemelha à noção de

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tríplice presente em Santo Agostinho, cuja idéia é a de uma distensão da alma em direção tanto

ao futuro quanto ao passado, a partir da percepção de que o tempo é o tempo que passa.

Em relação ao sentido de um texto, a relação entre os objetos da representação, sua

modificação durante a leitura e entre as várias leituras permite pensar que a leitura ativa camadas

temporais distintas na realização do sentido. A cada nova leitura, os objetos de representação se

diferenciam de maneira distinta da anterior e se combinam de forma individual. Essa combinação

não exclui a de uma primeira leitura, nem se sobrepõe a ela. A formulação de Iser sobre os

processos de representação não defende uma acumulação entre as diversas camadas temporais e,

sim, combinações temporais distintas em função de formas de organização também distintas. Iser

afirma

“Pois inexiste para esse momento temporal qualquer padrão de referências, de modo que, em cada leitura, os objetos de representação se iluminam de maneira diferente. Já que o momento temporal não é determinado em si, ele se define por meio da individualidade do sentido realizado, individualidade que ele mesmo produz.” (ISER, 1999, p. 79).

O tempo, segundo Merleau-Ponty (2003), é algo que deve constituir-se, que deve ser visto

da perspectiva de quem está nele. Tal perspectiva, entretanto, não significa uma co-incidência do

homem com o tempo presente em que vive. Este não é um tempo dado, fixo, conquanto seja

constantemente percebido. O tempo presente está aqui, agora, mas não possui contornos

definidos. Isso porque se baseia numa linha de fuga, que pode ser retomada (a recuperação de um

tempo já vivido) ou pode ser um caminho em direção a uma diferença que ainda virá a ser. O

tempo seria o fundo sobre o qual surgem figuras momentâneas que podem ser percebidas como

co-relacionadas a este fundo que não aparece, mas se dá a perceber de forma indireta.

Se o Ser é aquilo que de nós exige criação, para que possamos experimentá-la (Merleau-

Ponty, 2003), ou experimentá-lo (o Ser) (Marilena Chauí, 2002), o tempo é a linha de força com a

qual acontece a criação; é uma condução em direção ao Ser; mas como condução, é sempre

movente do seu próprio caminho e objetivo.

O tempo comporta-se como um invisível para o espaço, que só pode ser percebido em co-

operação com este, não como subordinado ou superior. Para cada percepção, há camadas

temporais que a sustentam e estas camadas não funcionam como uma linha retrospectiva ou

prospectiva linear. As diferenças entre as coisas sugerem a existência, como fundo das

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diferenças, de uma dimensão temporal que pode se desdobrar em várias camadas. Como já dito

anteriormente, o tempo é um movente, mas não em uma única linha tensionada, senão como

diferença entre as várias linhas de força que se dão a perceber em uma experiência.

Deseja-se enfatizar aqui o fato de que talvez o tempo deva ser percebido a partir de outras

formas e não somente a cronológica. Segundo Márcio Tavares d’Amaral (2003), os gregos

possuíam diversas intuições sobre o tempo e procuraram exprimir tais intuições através de

diversas palavras: aiôn, que seria o acaso, o jogo, o inesperado; kairós, cuja relação mais próxima

seria estabelecida com a idéia de momento oportuno, oportunidade; khronos, ou a duração de

alguma coisa; e ethos, cujo significado estaria relacionado à idéia de moradia, ou demora no lugar

próprio, que é seu. Assim, não haveria para o tempo um ritmo único, como o cronológico

(passado, presente e futuro nessa ordem), mas várias temporalidades. Ao ser descrito a partir de

pelo menos quatro percepções distintas, o tempo aparece como ritmo em função das próprias

diferenças de percepção, e não como uma linha contínua em direção ao infinito, como se as

relações temporais não fossem também intersubjetivas. Segundo Amaral (2003), o acaso seria a

irrupção do inesperado que permite ao homem perceber um ritmo, denominado tempo. Segundo o

autor, o tempo é

“... a nossa perspectiva de que o que é é originariamente, quer dizer, provém de uma origem que nunca cessa, como uma fonte que provém da incessância da origem, mas que não se dá linearmente como uma reta sem interrupção, mas segundo ritmos, diferenças, ao acaso, afirmando a máxima potência do poder não ser.” (AMARAL, 2003, p. 32).

3.2 A relação entre tempo e narrativa

Em “Tempo e narrativa”, Paul Ricoeur afirma que o tempo humano é o tempo narrado. E “a

narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal.”

(RICOEUR, 1994, p.15). Ao desenvolver essa relação, Ricoeur permite realizar uma

aproximação entre o tempo em Merleau-Ponty, o tempo narrado e o conceito de imersão.

Interessa aqui justamente essa relação, conquanto seja necessário, antes, detalhar a discussão

empreendida por Paul Ricoeur.

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A narrativa, segundo Ricoeur, seria a forma de perceber o tempo, porque através dela o

sujeito poderia experimentar o tempo pré-figurado, um tempo semelhante à temporalidade pura,

ao se deparar com este mesmo tempo já configurado pela narrativa.

Ricoeur propõe pensarmos um vínculo entre narrativa e temporalidade, como já dito acima.

Em sua discussão retoma a teoria do tempo em Santo Agostinho e a teoria da intriga em

Aristóteles. O autor afirma, a partir da argumentação de Santo Agostinho sobre a medida do

tempo, que o que se mede não são as coisas passadas ou futuras, mas a recordação que se têm

delas (no caso do passado) e a espera do que virá (futuro) através de uma atenção constante

(presente). Ele articula a noção de um tríplice presente com a noção de distentio animi,

desenvolvida por Santo Agostinho.

O conceito de tríplice presente é desenvolvido como contraponto ao ceticismo de se medir

o tempo, algo que não é. Afinal, se o futuro ainda não é, se o passado já não é mais e se o

presente não permanece, o tempo não teria extensão e, por conseguinte, não poderia ser medido.

Ricoeur contrapõe ao argumento cético o fato de que o tempo é falado como tendo ser, é narrado.

Nesse sentido, através da linguagem, do ato de narrar coisas passadas e futuras, o tempo adquire a

consistência suficiente para ser medido. “Narramos as coisas que consideramos verdadeiras e

predizemos acontecimentos que ocorrem tal como os havíamos antecipado.” (RICOEUR, 1994,

p. 26).

Através da narrativa, passado e futuro tornam-se qualidades temporais que podem existir no

presente, sem que tenham ainda, necessariamente, existência física. Passado e futuro surgem,

assim, como impressões, como imagens que compõem a própria experiência com o tempo. Ou

seja, as coisas passadas e futuras existem e são enquanto há a experiência com elas. E essa

experiência acontece na e através da narrativa. Entretanto, aqui se enuncia o enigma que sustenta

a tese do tríplice presente: como a narrativa pode compreender, ao mesmo tempo, imagens que

remetem à memória, mas também ao que virá e ao que passa, sem que uma dessas imagens seja

exatamente a outra, mas considerando que elas são concordantes? Santo Agostinho dirá que os

três tempos (presente do passado, presente do presente e presente do futuro) existem na alma. O

presente encontra-se ampliado com a experiência da e na narrativa. As coisas futuras encontram-

se no presente como que pré-anunciadas ou pré-percebidas. Há uma espera, no presente, pelo que

virá. E as coisas passadas surgem na narrativa após a passagem do que virá em direção ao

passado. Elas são aquilo que se encontrava em estado de espera, mas são também o que já

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passou, de acordo com a narrativa que se produz com elas. Entretanto, como o próprio Ricoeur

afirma, ao desenvolver a noção de distentio animi, os três modos do tempo não se misturam na

própria percepção do tempo. É, antes, a diferenciação entre eles que permite a experiência com o

tempo.

A noção de distentio animi baseia-se na seguinte proposição: o tempo pode ser medido e,

por conseqüência, experimentado, porque o tríplice presente é uma distensão do espírito em

direção ao futuro e ao passado (Agostinho, 1998). Ricoeur afirma, baseado em Santo Agostinho,

que é quando os tempos passam é que podem ser medidos. Mas essa passagem não implica uma

passividade em relação ao movimento e sim uma atividade em direção às coisas futuras e às

coisas passadas. Tal atividade pode ser realizada na construção de uma narrativa. Há uma espera

inicial em relação ao que será narrado, uma atenção em relação ao todo da narrativa que ainda se

encontra em estado latente e um movimento da consciência para que a narrativa se inicie. Após

essa primeira distensão da alma em direção ao futuro, os elementos que significavam as coisas

futuras passam a pertencer a uma camada temporal de coisas já passadas e a alma se distende em

direção a eles através da memória, para que possam ser contados. São, aqui, os mesmos

elementos que se apresentam como coisas futuras e coisas passadas, mas em camadas temporais

distintas e com qualidades distintas ao longo da narrativa. Esse movimento requer uma atenção

constante, que Ricoeur identifica com o presente. É através do presente que a alma percebe a

passagem e faz passarem as coisas futuras em direção às coisas passadas. Dessa maneira, há uma

distensão da alma que origina uma extensão do presente. A distensão da alma relaciona atividade

e passividade, sem nunca confundi-las ou reduzi-las uma à outra. É na diferença entre a espera e

a memória que a consciência percebe a passagem do tempo e cria a própria experiência do tempo.

A noção de distentio animi parece bastante apropriada para discutir a importância da imersão

para a experiência do tempo na e com a narrativa. “É, pois, na alma, a título de impressão, que a

espera e a memória têm extensão. Mas a impressão só está na alma enquanto o espírito age, isto

é, espera, está atento e recorda-se.” (RICOEUR, 1994, vol. I, p. 39).

A ação do espírito será tratada, nessa tese, como o movimento de imersão no e com o

tempo, através da narrativa e com a narrativa. A imersão é o movimento que interrelaciona a

espera com a memória, através da atenção. Não há concordância total entre memória, espera e

atenção, mas sempre falha, sempre algo que falta e que se encontra além de uma ou outra

qualidade temporal. Dessa falha e nessa falha surge a experiência com o tempo.

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A impressão do que passou não é a mesma impressão do que virá, embora a segunda

engendre a primeira. As coisas passadas, ao serem recordadas, não são o que eram antes de

passarem, porque nesse momento a narrativa era ainda pré-percebida. Como tal, não se

assemelhava à narrativa contada. O movimento de imersão, a ação do espírito em direção ao

tempo, oscila sempre entre o pré-percebido e o que é lembrado, nunca sobrepondo essas duas

camadas temporais. O tempo se desdobra sempre na relação entre o que se passa na alma e no

mundo objetivo, seja ele ficcional ou não. Se há algum “lugar” para esse desdobramento, ele está

associado à própria passagem do tempo enquanto esta é empreendida por uma consciência,

através de uma narrativa. Ricoeur toma como exemplo desse desdobramento o conceito de intriga

da Poética de Aristóteles.

A tessitura da intriga, própria do modelo da tragédia, e que Ricoeur sugere como modelo de

qualquer narrativa, é o que permite conferir à ação um contorno, uma totalidade (Aristóteles,

1993). Ou seja, é o que conferiria ao tempo dos acontecimentos do mundo, uma vez narrados, a

possibilidade de serem percebidos como tendo uma extensão. Extensão esta que não está ligada

ao caráter cronológico, mas à idéia de lógica. Uma narrativa possui início, meio e fim de maneira

lógica e não simplesmente como encadeamento de “agoras sucessivos” sem causa e

conseqüência. Dessa maneira, não se trata aqui simplesmente de organizar cronologicamente a

temporalidade, mas de conferir-lhe um contorno, de percebê-la. Através da narrativa, passado e

futuro tornam-se qualidades temporais que podem existir no presente, sem que tenham ainda ou

necessariamente existência física. Passado e futuro surgem, assim, como impressões, como

imagens que compõem a própria experiência com o tempo. Ou seja, as coisas passadas e futuras

existem e são enquanto há a experiência com elas. E essa experiência acontece na e através da

narrativa.

O modelo da tessitura da intriga discordante permitiria a percepção da distensão da alma ao

realizar, através da narrativa, a configuração de um tempo pré-figurado, ou a concordância das

diferenças entre futuro, presente e passado. É preciso ressaltar, com Paul Ricoeur, que o modelo

de tessitura da intriga não significa que a narrativa fornece acesso ao tempo, mas que ela o

configura. Ou seja, a mimese não seria a imitação dos fatos, mas a imitação do agenciamento dos

fatos, um “como se” que não esgota a ação, mas cria uma configuração dessa ação.

Ricoeur destaca o fato de que a atividade mimética é o cerne da relação entre mimese e

muthos. Segundo o autor francês, a mimese deve ser compreendida em seu sentido dinâmico,

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como o processo ativo de representação do agenciamento dos fatos. Ou seja, a mimese produz a

imitação da disposição dos fatos, da maneira de agenciá-los, a imitação da tessitura da intriga,

que Aristóteles denomina muthos. Ricoeur sugere, entre mimese e muthos, uma ação criadora, em

que a atividade mimética reproduz não uma ação, mas o modo com que essa ação pode se

desenvolver. Assim, a narrativa é uma ação criadora de possíveis agenciamentos entre os fatos.

Mas a questão é investigar de que maneira a narrativa permite a percepção da medida do tempo,

conforme proposto anteriormente. A percepção da medida do tempo acontece quando os três

modos do tríplice presente são percebidos pela consciência e com a consciência. Ou seja, trata-se

aqui de uma percepção completa, mas não fechada. Ricoeur utiliza o modelo da tragédia como

aquele que melhor pode explicar a capacidade da narrativa de realizar uma concordância

discordante. Essa relação é a que serve de base para o conceito de distensão da alma e

conseqüente extensão do presente.

A configuração poética da narrativa, proposta por Paul Ricoeur, se desdobra em três

mimeses: mimese I, mimese II e mimese III. Através da inter-relação entre as três mimeses a

narrativa tornaria o tempo um tempo humano e o tornaria ser, porque passível de ser percebido.

Note-se que, quando se menciona a narrativa como a estratégia para tornar o tempo ser, não

significa dizer que a narrativa permite o acesso direto ao tempo, mas que ela permite a percepção

do tempo como ser, porque ela confere acesso à passagem do tempo.

“Não se permite mais a dúvida; o tipo de universalidade que a intriga comporta deriva de sua ordenação, a qual constitui sua completitude e sua totalidade. Os universais que a intriga engendra não são idéias platônicas. São universais parentes da sabedoria prática, portanto, da ética e da política. A intriga engendra tais universais que a estrutura da ação repousa sobre a articulação interna à ação e não sobre acidentes externos. A conexão interna como tal é a isca da universalização. Seria um traço de mimese visar no muthos não seu caráter de fábula, mas seu caráter de coerência”. (RICOEUR, 1994, p. 70).

A mimese, base estrutural da narrativa, é uma ação de estruturar os fatos, mas ela começa

com a disposição prática dos fatos e a percepção dessa disposição e termina com a leitura. Por

isso Ricoeur instiga a pensar a mimese a partir do seu caráter de coerência. Trata-se de investigar,

na relação entre as três mimeses, a forma do agenciamento dos fatos. A narrativa estrutura a

experiência do tempo a partir da rede de acontecimentos que são engendrados por

verossimilhança ou por necessidade. É a forma da rede que deve ser investigada, e não seus nós

separadamente ou em repouso. Assim, entre as três mimeses estabelece-se uma relação em

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constante movimento, em que mimese II realiza a mediação entre mimese I e mimese III. Mas o

que são as três mimeses propostas por Paul Ricoeur?

A mimese I é equivalente a um tempo pré-figurado, que será posteriormente configurado

pela mimese II. Compreender mimese significa compreender a ação em geral pelos seus traços

estruturais. É somente a partir dessa compreensão que se poderá operar, na mimese II, a

configuração dessa mesma ação. Ou seja, se a tessitura da intriga é uma imitação da ação, é

fundamental compreender quais são os traços componentes dessa ação. Ricoeur define três traços

fundamentais como componentes da mimese I: os traços estruturais, os simbólicos e os temporais.

Segundo o autor, toda ação possui traços estruturais relacionados aos agentes da ação, aos

motivos da execução da ação e aos fins da ação. Entretanto, compreender esses traços é já ligá-

los de alguma maneira, é possuir a competência do que se chama compreensão prática. A

compreensão prática seria uma pré-compreensão narrativa, porque ligada à capacidade de

acrescentar à estrutura prática da ação, ainda que minimamente, traços discursivos que ligariam

logicamente os seus elementos. Para realizar a composição narrativa, seria preciso entender

também as características simbólicas da ação. Ou seja, toda ação, se pode ser narrada, é porque já

está articulada em signos, ou melhor, em símbolos. Aqui se encontram as características

simbólicas da ação, que serão depois traduzidas na narrativa em termos de discurso. E, por fim,

os traços temporais da ação estariam ligados ao ato de construir a ação como um todo, a partir da

noção de tríplice presente em Santo Agostinho. A característica temporal da ação só seria

percebida a partir de uma intratemporalidade, de uma construção do tempo da ação a partir de

dentro da própria ação. Tais traços preparariam o sujeito para empreender a mimese II, a

configuração da ação através da narrativa, a mediação da ação prática em direção à mimese III,

que seria refiguração dessa mesma narrativa pelo leitor.

“Seguir uma história é avançar no meio de contingências e de peripécias sob a conduta de uma espera que encontra sua realização na conclusão. Essa conclusão não é logicamente implicada por algumas premissas anteriores. Ela dá à história um ‘ponto final’, o qual, por sua vez, fornece o ponto de vista do qual a história pode ser percebida como formando um todo”. (RICOEUR, 1994, p. 105).

Seguir uma história é uma experiência de imersão, porque exige justamente o trabalho de

deslocamento no tríplice presente a partir de sua própria construção. Ou seja, há uma ação que

faz a história se encaminhar para o passado, há um atravessamento de dimensões temporais que

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será empreendido pelo leitor. Discutir-se-á, no caso da cibernarrativa, a possibilidade de retomar

o passado não só para ler o futuro, mas para iniciar novamente uma pré-figuração, anterior à

configuração da narrativa.

Através da tessitura da intriga, os acontecimentos do campo da ação são constituídos como

uma história. E a concordância discordante entre passado, presente e futuro encontra seu termo

em um todo que é dado pela própria tessitura. A idéia de todo aqui se relaciona com uma ação

narrada com princípio, meio e fim lógicos e não necessariamente cronológicos. O ato de narrar

coloca em movimento os traços componentes do tríplice presente e propõe uma configuração

para a ação percebida em mimese I. A narrativa é menos a seqüência de acontecimentos lineares e

mais a configuração de um processo entre os acontecimentos que se encontravam ainda

precariamente interligados em mimese I. A tal processo Ricoeur o denomina tessitura da intriga e

não intriga. A noção de tessitura é empregada para enfatizar o caráter de mediação de mimese II,

o seu caráter processual. É somente em mimese III que a narrativa permitiria compreender que o

tempo percebido é sempre o tempo narrado, o tempo tornado humano na e com a narrativa.

A mimese III é a ação que reconfigura o tempo pré-figurado da mimese I, através da

experiência de mimese II. Tal reconfiguração não se dá apenas em função de uma suposta

ordenação dos traços temporais que apareciam de maneira desordenada em mimese I. A

configuração proposta em uma tessitura da intriga é apenas uma proposição e, como diz o próprio

Paul Ricoeur, é o começo de um processo que encontra um termo em mimese III, e não

necessariamente o seu término.

A narrativa é uma entre as várias configurações que se encontram ainda não contadas. As

histórias não contadas estariam em estado de potência enquanto situam-se em mimese I. O

processo levado a um termo em mimese III é aquele de fazer emergir, através da imersão em

mimese II (a tessitura da intriga), tanto o sujeito implicado nessa imersão quanto uma

temporalidade própria desse conflito, que é característico da mimese III e uma das possíveis

histórias ainda não contadas em mimese I.

“O emaranhamento aparece antes como a pré-história da história narrada da qual o começo permanece escolhido pelo narrador. Essa ‘pré-história’ da história é o que a vincula a um todo mais vasto e dá-lhe um ‘pano de fundo’. Esse pano de fundo é feito pela ‘imbricação viva’ de todas as histórias vividas umas nas outras. É preciso pois que as histórias narradas ‘emerjam’ desse pano de fundo”. (RICOEUR, 1994, p. 115,116).

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A experiência da leitura, própria do momento da mimese III, é aquela em que o pólo do

texto e o pólo do leitor são imbricados em um sujeito que opera as três mimeses. Através dessa

operação, o leitor constitui um texto, apreende o que a obra comunica, mas também o mundo que

ela projeta e que constitui seu horizonte. O que permite dizer que a experiência do tempo narrado

é uma experiência de construção desse próprio tempo e do seu horizonte. A relação entre tempo e

narrativa parece apontar sempre para uma dupla organização: a estrutura de uma narrativa

permite um determinado tipo de percepção temporal sobre o que se conta e a perspectiva adotada

ao se contar uma história permite perceber como as camadas temporais da história podem se

relacionar. Dessa maneira, narrativas com propósitos diferentes sugerem relações diferentes entre

as várias camadas temporais. Ao se adotar a análise da narrativa ficcional para discutir a estrutura

temporal em uma tese sobre cibernarrativas, pretende-se seguir também a definição que Paul

Ricoeur utiliza para o termo ficcional, qual seja, o de uma narrativa que não ambiciona ser uma

narrativa verdadeira. Ao fazê-lo, essa tese enfatiza o caráter de possibilidade da narrativa

ficcional como estrutura de base, o que parece ser o mais apropriado para tratar do caráter das

cibernarrativas. Ricoeur defende uma experiência fictícia do tempo.

“por um lado, de fato, as maneiras temporais de habitar o mundo permanecem imaginárias, na medida e que só existem no texto e através dele; por outro, constituem uma espécie de transcendência na imanência, que permite precisamente o confronto com o mundo do leitor.” (RICOEUR, 1994, vol. II, p. 13).

Ricoeur considera importante definir os limites do conceito de intriga como base para se

pensar as narrativas ficcionais, em função do seu caráter integrador, da sua capacidade de

originar uma história única e completa. Independentemente do desenvolvimento da argumentação

do autor, salta aos olhos o caráter sempre mais completo dessas formas na linha temporal, em

relação às metamorfoses do conceito de intriga, ao longo de sua história e do desenvolvimento

das formas narrativas. Novas formas narrativas sugerem explorar ao limite máximo a tensão entre

os possíveis componentes da intriga, como se para cada novo componente surgisse uma linha de

força atravessando a narrativa. Tais linhas de força serão consideradas como camadas temporais

cujo caráter não é espacial, mas sim de movimento, de sentido em direção a. À crescente

complexidade das estruturas narrativas, Paul Ricoeur contrapõe o movimento das narrativas

ficcionais romanescas modernas de dar conta do real e suas variações.

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“Se, de fato, o verossímil não passa da semelhança do verdadeiro, o que é então a ficção, sob o regime dessa semelhança, senão a habilidade de um fazer-acreditar, graças ao qual o artifício é tido por um testemunho autêntico sobre a realidade e sobre a vida?” (RICOEUR, 1994, vol. II, p. 24,25).

Ou seja, a narrativa, ao se aproximar de uma suposta representação do real, se multiplica

em convenções narrativas, o que termina por mostrar o seu caráter altamente construído e não-

natural. Esse paradoxo parece funcionar como aquele presente na reversibilidade entre tempo e

espaço. Se o tempo é tido como fundante, as configurações espaciais cujo objetivo é representar

um determinado fluxo temporal mais não fazem do que destacar a sua instabilidade, em função

de articulações convencionais e parciais sobre o tempo que procuram exprimir. Nesse sentido,

quanto mais complexa uma determinada organização espacial, mais clara se torna a maneira pela

qual a sua estrutura funciona como uma simples replicação do real, reduzindo essa representação

a uma cópia sempre muito menor em termos de complexidade estética. A questão, então, não

seria converter as camadas temporais em estruturas espaciais, mas trabalhar com o intuito de

explorar a instabilidade de qualquer configuração espacial, em função das camadas temporais que

fundam a sua organização frágil. Não se trata, no entanto, de fragmentar a estrutura narrativa de

modo a copiar o real, mas de destacar os componentes dessa estrutura, de torná-los claros para o

leitor e, talvez, até mesmo, manipuláveis por ele. A seguir esse raciocínio, o leitor seria capaz de

entrar na obra não em razão do seu envolvimento emocional unicamente, mas em razão de uma

demanda da própria configuração da obra, apresentada em seu momento de pré-figuração; ou

seja, uma aproximação entre mimese I e mimese II. A aproximação aludida encontra ressonância

no modo como Ricoeur enfrenta os limites do conceito de intriga, no tocante ao que denomina a

arte de contar. Afinal, se a estrutura narrativa baseada na intriga pareceria dar sinais de

esgotamento, argumenta ele, a própria idéia de uma obra completa não faria mais sentido. A

solução proposta por ele baseia-se na proposição de Frank Kermode, cuja enunciação é a

seguinte:

“A Crise não assinala a ausência de qualquer fim, mas a conversão do fim iminente em fim imanente. Não se pode, segundo o autor, afrouxar a estratégia da infirmação e da peripeteia até o ponto em que a questão do encerramento, da conclusão, perderia qualquer sentido. Mas cabe a pergunta, o que é um fim imanente, quando o fim não é mais uma conclusão, um encerramento?” (KERMODE apud RICOEUR, 1994, vol. II, p. 40).

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O fim imanente apontaria para uma perspectiva mais flexível de uma possível unidade da

obra literária? Ou seja, haveria diversas unidades completas nas obras literárias contemporâneas

e, por essa razão, o fim se tornaria algo imanente? Paul Ricoeur afirma que a dissolução da

intriga seria um indicativo da necessidade de entrada do leitor na obra. Posteriormente, nessa

tese, esse argumento servirá para mostrar de que maneira a imersão é uma demanda criada pelas

próprias obras ficcionais contemporâneas e, no caso das cibernarrativas, torna-se uma exigência.

A concepção do fim imanente relaciona-se com a realização da completude da obra pelo leitor. É

o leitor, ao assumir a intriga como uma construção ainda a ser feita, que reconfigura a narrativa e

confere à obra o seu caráter mesmo de ordem.

A desestruturação da obra já faria parte do contrato entre autor e leitor e isso exigiria do

leitor uma disponibilidade para refazer a obra. Aqui a imersão é crucial para que se possa falar de

uma narrativa; no caso das cibernarrativas parece haver uma intensificação dessa exigência, pois

se trata não de perceber uma narrativa em meio a um suposto caos, mas de trabalhar no nível

físico da obra. Há, assim, não uma dissolução da ordem da narrativa, mas talvez o encontro que

permite a reversibilidade entre espaço e tempo. A noção de fim imanente indicaria justamente o

caráter temporal do espaço, e a vibração desse espaço em direção às camadas temporais que o

compõem. O espaço da obra, ao apresentar uma estrutura cronológica, não seria capaz de encerrar

em si todas as articulações possíveis entre as diversas camadas temporais. Antes, apontaria o

caráter provisório dessa cronologia e uma abertura para outras formas de investida sobre o tempo

da narrativa. Cabe aqui perguntar se essa abertura poderia ser realizada tomando como base uma

análise estrutural da narrativa, ou mesmo as figuras temporais de Gérard Genette.

3.3 Os elementos do jogo temporal na narrativa

Em “Discurso da narrativa” (1970), de Genette, encontra-se um conjunto de elementos que

estruturam a presença do jogo temporal na narrativa. Ainda que as categorias encontradas nessa

obra pareçam ser de difícil relacionamento com o tipo de narrativa característica das

cibernarrativas, não se pode deixar de notar que tais categorias podem aparecer nas

cibernarrativas, mesmo que não se constituam em elementos exclusivos das obras e possam ser

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associadas ao processo de produção delas. A abordagem desses elementos pode fornecer pistas

para pensar o próprio desafio de criação de uma cibernarrativa, no que diz respeito ao tipo de

temporalidade presente nessas obras.

A primeira questão abordada por Genette já trata do tipo de temporalidade que se pode

associar ao termo narrativa, pois discute o conjunto da narrativa e não somente a configuração de

seus elementos internos. Como se verá no momento de investigar exemplos específicos de

cibernarraativas, as análises são, também em sua maioria, sobre as obras consideradas no todo,

ainda que em alguns casos essa análise desça ao nível dos elementos presentes na configuração

narrativa. O autor destaca três sentidos para o termo narrativa, quais sejam: “a narrativa designa o

enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de

uma série de acontecimentos” (GENETTE, 1970, p.23); um segundo sentido, em que a narrativa

relaciona-se a uma sucessão de eventos que são o objeto desse discurso; e um terceiro sentido em

que a narrativa significa o ato de narrar em si mesmo, aquele que consiste em que alguém conta

qualquer coisa. O primeiro sentido diria respeito ao discurso narrativo, ao texto narrativo, aos

significantes; o segundo sentido diria respeito ao significado e o terceiro sentido diria respeito à

narração, ao ato narrativo produto do discurso.

Os três sentidos empregados por Genette não aparecem dissociados entre si e não se

constituem em unidades independentes da sua própria relação. Entretanto, é possível concordar

com o autor quando afirma certa primazia de análise do discurso narrativo (o primeiro sentido)

como mediador da visão sobre como os três processos estruturam uma obra. Se essa é uma visão

ainda muito centrada na estrutura dos significantes e, talvez por isso, passível de críticas, não é

menos verdade que a “separação” empregada por Genette é de grande utilidade para discutir todo

o processo de construção de uma narrativa. A análise do autor permanece focalizada no discurso

da narrativa, na forma como a obra está estruturada, mas não desconsidera os demais níveis, em

termos de importância. Apenas afirma que a melhor forma de mediação é a obra estruturada e não

os outros significados do termo narrativa. À medida que se realiza uma aproximação com as

cibernarrativas pode-se perceber que as demais partes componentes do processo surgem com

mais intensidade justamente com a obra, que parece compartilhar melhor o seu lugar com as

outras instâncias de sentido. Afinal, a narração, nas cibernarrativas, é bastante evidente, uma vez

que a obra não aparece ainda contada para o leitor. Assim, cabe a este não só participar mais

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ativamente do momento de mimese III, mas vivenciá-lo quase que diretamente a partir de mimese

I.

O conteúdo narrado, em cibernarrativas, pelo fato de poder sempre sofrer acréscimos por

parte do leitor, mostra-se também em caráter sempre latente, sempre em estado de incômodo. A

história, para empregar um termo utilizado por Genette, pode constantemente receber novos

componentes, o que faz da cibernarrativa uma estrutura processual, inacabada, como condição de

existência, e que exige uma participação (imersão) do leitor em sua estrutura física.

As relações entre os três termos empregados por Gérard Genette permitem a visualização

de todo o processo de construção da narrativa. Além disso, o autor deriva também desse

relacionamento uma maneira de abordar o tempo na narrativa que é de grande auxílio para as

análises aqui presentes. Genette afirma que “a análise do discurso narrativo será, pois, para nós,

essencialmente o estudo das relações entre narrativa e história, entre narrativa e narração, e

(enquanto se inscrevem no discurso da narrativa) entre história e narração.” (GENETTE, 1970, p.

27).

Mesmo considerando o débito dessa proposta para com uma visão estruturalista, não se

pode deixar de lado o caráter processual também evidente quando da utilização dessas relações

para definir os problemas da narrativa, quais sejam: a questão do tempo, derivada da relação entre

tempo do discurso e tempo da história; a questão do aspecto, relacionada à forma como a história

é percebida pelo narrador; a questão do modo, ou o tipo de discurso utilizado pelo narrador. São

evidentes, nessa formulação, as imbricações entre obra, texto, autor e leitor. Deseja-se trabalhar

com tais categorias para discutir elementos associados à temporalidade e às camadas temporais

presentes em uma narrativa, num primeiro momento; num segundo momento, associar-se-á essas

camadas com formas de participação no processo de construção de uma narrativa (se são mais

próximas da escrita ou da leitura) e como essa relação indica as formas de imersão na narrativa.

As figuras presentes na narrativa como componentes são cinco: ordem, duração, freqüência,

modo e voz. A ordem expressa a dualidade temporal de uma narrativa, dividida em tempo da

coisa-contada e em tempo da narrativa, ou o tempo da ação prática e o tempo em que essa ação

surge configurada. Genette utiliza uma afirmação de Christian Metz para indicar uma das funções

da narrativa: “cambiar um tempo num outro tempo” (METZ apud GENETTE, 1970, p. 31). A

interpenetração entre essas duas temporalidades já demonstra que a experiência do tempo, na

narrativa, é aquela da percepção do entrecruzamento de várias camadas temporais. No caso da

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figura “ordem”, o jogo se dá entre o tempo contado e o tempo prático, o que permite diversas

variações de movimento dentro da própria narrativa.

“a sua temporalidade é, de alguma maneira, condicional e instrumental; produzida, como todas as coisas, no tempo, existe no espaço e como espaço, e o tempo necessário para a ‘consumir’ é aquele que é preciso para a percorrer ou atravessar, como uma estrada ou um campo. O texto narrativo, como qualquer outro texto, não tem outra temporalidade senão aquela que toma metonimicamente de empréstimo à sua própria leitura”. (GENETTE, 1970, p. 32,33).

Ao se aceitar o argumento acima, é preciso tomar cuidado para não adotar a narrativa

espacializada em sua forma escrita como aquela que dá acesso à temporalidade pura presente na

narrativa. Afinal, como diz o próprio autor, há uma relação metonímica entre a temporalidade do

texto na narrativa e a temporalidade da leitura.

A temporalidade da narrativa é uma temporalidade criada pelo confronto entre o tempo da e

o tempo da história. O estudo dessa temporalidade e a percepção dela são o resultado desse

confronto, o que significa dizer que tanto autor quanto leitor precisam se deslocar entre as duas

camadas temporais, a fim de compreender as relações entre elas. A temporalidade da narrativa é,

assim, uma intratemporalidade, mas também se refere a uma extratemporalidade: aquela do

tempo da ação prática. Se a imersão aqui acontece em uma narrativa configurada, no caso das

cibernarrativas, o leitor se vê diante de uma situação em que a relação de ordem encontra-se não

estabelecida, ou seja, uma situação em que o intratemporal deverá ser criado fisicamente pelo ato

de leitura. Assim, a imersão se fará na pré-figuração da obra, em contato bastante próximo com a

ordem prática dos acontecimentos. A ordem é criada pela imersão do leitor na obra, e não

somente no texto.

Tendo em mente a estrutura dual da temporalidade da narrativa, as diferenças ou

concordâncias entre as suas camadas temporais constituem a base da configuração da

temporalidade dessa narrativa (Genette, 1970). Num grau de concordância total entre a

temporalidade da narrativa e a temporalidade da história situa-se um tempo puro expresso pela

narrativa, o que parece mais um estado ideal ou improvável. Ou seja, se há a concordância total

entre uma e outra temporalidade, a narrativa permitira acesso a um tempo puro. Se o tempo

narrado já é um tempo configurado de maneira específica, como afirmá-lo enquanto tempo puro?

As anacronias, como Genette denomina as diferenças entre os dois tempos mencionados, são

indicativas desses movimentos entre as camadas temporais e podem ser subdivididas em várias

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estruturas menores. As manobras narrativas, próprias de uma análise da narrativa configurada,

parecem, em princípio, não servir como operadores para a discussão sobre a configuração das

cibernarrativas. Por outro lado, o jogo entre os elementos permite a Genette nomear alguns

elementos macro, com os quais se pode perceber que o movimento temporal presente nas

cibernarrativas é uma intensificação do que já acontece em outras formas narrativas.

Sobre a relação entre as anacronias, Genette afirma que uma anacronia se constitui sempre

em função da narrativa na qual se insere. Assim, quando em uma determinada narrativa há uma

evocação de um fragmento anterior da história, uma analepse, essa anacronia será compreendida

como uma narrativa segunda, subordinada à narrativa principal. Os desdobramentos anacrônicos

podem ir em direção ao passado ou ao futuro, em relação ao presente da narrativa; quando uma

anacronia surge em uma narrativa primeira, ela faz aparecer outra camada temporal dentro da

primeira narrativa e sugere também que a composição espacial que aparece ao leitor é somente

uma ordenação específica da temporalidade da narrativa, e não a espacialização de todas as

camadas temporais que podem ser exploradas. À medida que Genette desenvolve sua

categorização, parece cada vez mais claro que há uma rede constituída pelos movimentos

temporais propostos pela configuração narrativa. Quando um autor escolhe um determinado

movimento, ele confere um sentido à narrativa, um modo de atravessar a narrativa a partir de uma

perspectiva temporal específica, ao contrário de sentido como o significado acabado de uma

história. Ou seja, o sentido da narrativa faz perceber como as camadas temporais estão ordenadas,

e essa mesma ordem é que produz o sentido.

A figura de ordem apresenta duas camadas temporais macro: o tempo da história e o tempo

da narrativa. Da inter-relação entre tais temporalidades surge uma tipologia para os movimentos

entre as duas camadas temporais. Essas, por sua, vez, são mais diretamente associadas à narrativa

configurada. Nesse sentido, a imersão do leitor já encontra uma configuração temporal

estruturada, mesmo que essa se aproxime da ubiqüidade espacial ou de uma omnitemporalidade.

A ordem temporal comporta, na tipologia empregada por Gérard Genette, os seguintes elementos

principais: analepses e prolepses; externas, internas ou mistas, este último caso apenas para as

analepses. Mais que uma tipologia restritiva, a combinação desses recursos demonstra que, em

uma narrativa, há sempre um retorno ao tempo, a partir da configuração espacial da obra. Se

fisicamente parece haver uma espacialização da temporalidade, a reversibilidade é, na verdade,

do espaço em direção ao tempo. Genette enxerga em “Em busca do tempo perdido” uma

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ubiqüidade espacial, mas também uma omnitemporalidade, e trata os dois conceitos a partir das

redes de relações temporais ou espaciais que podem ser traçadas ao longo da obra de Proust.

Reforça-se, assim, a noção de uma imersão que se faz cada vez mais temporal sobre o caráter

físico das obras em suportes digitais. Não que o suporte digital inaugure ou seja condição para a

imersão temporal, mas talvez o contrário. A imersão temporal é que seria condição para se falar

de uma imersão na cibernarrativa. Se não houver uma possibilidade de imersão temporal, a

dinamicidade do caráter ciber encontra-se comprometida. Tratar-se-ia, nesse caso, de um tipo

distinto de imersão temporal, nem pior, nem melhor, mas atuando sobre outros elementos da

obra. É o que se pode perceber em “Pianographique”5, cuja proposta central é a de realizar uma

performance com o teclado e o mouse, que ativam sons e imagens armazenados em uma base de

dados. Aqui a leitura é também execução da obra que aparecerá fisicamente diante do leitor, uma

vez que o acesso imediato deste à obra é feito através dos dados ainda não organizados

completamente em uma configuração narrativa.

A segunda figura utilizada por Genette é a duração, cuja medida não pode ser tomada, nas

palavras do autor, a partir de uma confrontação entre o tempo da história que se conta e o tempo

da narrativa. A duração varia de acordo com o tempo da leitura e também de acordo com os

efeitos de variação temporal presentes na própria obra. Se não é possível definir a medida da

duração de uma narrativa, ao menos fica claro o seu caráter relacional, derivado do contato do

leitor com a obra. Uma narrativa sugere um ritmo de contato com o leitor, um ritmo de “entrada”

e também de “permanência” na história, seja através de analepses, prolepses, elipses, variações na

pontuação etc. Genette sugere trabalhar com quatro movimentos fundamentais da estrutura

narrativa, relativos ao confronto entre tempo da narrativa e tempo da história, ainda que esse

confronto não defina a medida de duração de uma história: a elipse, a pausa descritiva, a cena e o

sumário. Cada movimento pode ser descrito pela comparação aos tempos já aludidos, referindo-

se ora a um tempo narrativo maior que o tempo da história, ora a uma suposta igualdade entre os

dois tempos, ora a um tempo da história maior que o tempo da narrativa. Se em uma narrativa em

suportes menos maleáveis, do ponto de vista físico da obra, os movimentos são disponibilizados

ao leitor já em estado de mimese II, no caso das cibernarrativas o leitor pode alterar os

movimentos e cruzar as fronteiras entre eles de maneira física. No capítulo sobre imersão e

cibernarrativas, esses movimentos de alteração física serão descritos com mais detalhes. Nesse

5 Disponível em http://www.pianographique.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.

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ponto do trabalho cabe, de modo resumido, discutir os quatro movimentos temporais relativos à

duração da narrativa, mesmo que sob o risco de não se encontrar algo paralelo nas

cibernarrativas.

O sumário corresponde a uma relação em que o tempo da narrativa é menor que o tempo da

história, ou seja, a um tipo de efeito de duração em que a história aparece “acelerada” pela

narrativa. Geralmente os sumários podem encobrir acontecimentos de menor importância para o

andamento da narrativa e que, por essa razão, podem ganhar um rápido resumo, a título de

ligação entre segmentos narrativos, por exemplo.

As pausas descritivas surgem quando o tempo da narrativa é superior ao tempo da história,

em termos de duração. A pausa descritiva corresponde a um momento da narrativa em que o

tempo da história seria praticamente anulado, em função de uma descrição narrativa que paralisa

a história em um determinado momento sem, no entanto, elidi-lo, como no caso das elipses.

Segundo Genette, a pausa descritiva não deve ser confundida com interrupções do autor, a título

de explicação de um determinado ponto da história. Trata-se de um recurso narrativo interpolado

no universo espaço-temporal da história, a exigir do leitor uma imersão mais demorada num

determinado ponto da narrativa.

A elipse compreende tanto a ausência da narrativa sumária quanto da pausa descritiva, no

momento em que há um salto temporal que permanece elidido. Pode ser dividida em elipse

explícita ou implícita, quando há ou não referência ao tempo da história que foi elidido.

Por último, a cena é o movimento em que o tempo da narrativa corresponde ao tempo da

história, mesmo que não diretamente. O caráter indireto dessa correlação diz respeito ao próprio

fato de que o acesso à cena é feito sempre de uma perspectiva específica, do narrador, do

personagem, do personagem-narrador, e nem sempre é possível descrever todos os momentos de

uma cena simultaneamente. Ora, a narrativa é uma configuração específica do tempo de uma

cena, que é sempre múltiplo e inter-relacionado. A descrição detalhada de uma cena configura

uma espacialização de um ponto da história, mas evoca sempre a temporalidade que funda esse

caráter espacial. Daí as alterações de ritmo e de duração, presentes nas cenas, alterando o seu

caráter espacial e convocando o leitor a uma imersão no tempo da narrativa. No caso das

cibernarrativas, parece-nos que a imersão cria o tempo da narrativa e essa prerrogativa também

está disponível para o leitor, no sentido de modificação física da obra. Esse é o caso, por

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exemplo, da obra “circ_lular”6, na qual o leitor estrutura fisicamente o tempo da narrativa ao

combinar conjuntos sonoros, visuais, textuais, dispostos em uma base de dados, e cuja

combinação será realizada a partir da simulação de uma mesa de edição não-linear em rede. Há

várias imagens, textos, fotos, vídeos, exertos sonoros e o leitor deve colocá-las em uma área de

edição, para criar uma narrativa específica. Trata-se, aqui, não somente de entrar em contato com

uma duração específica do tempo da história e do tempo contado, mas sim de criar tanto o tempo

da história quanto o tempo contado.

Os quatro movimentos, da maneira como foram tratados, dizem respeito a configurações

narrativas com as quais o leitor se confronta quando da relação entre mimese II e mimese III.

Resta perguntar o efeito que tais movimentos provocam ou podem provocar quando ainda não

configurados numa narrativa. Uma das possibilidades presentes na cibernarrativa sugere que o

código disponível para o leitor não é somente o código de programação, mas também as regras de

configuração da narrativa. Produzir uma obra cibernarrativa seria, então, permitir ao leitor não

somente a imersão em mimese II, mas a construção física de mimese II, através da

disponibilização, por exemplo, do conjunto de relações que compõem a duração. Se o efeito

estético, em um meio menos maleável, é derivado do embate entre o pólo do texto e o pólo do

leitor, nas cibernarrativas ele poderia ser derivado também do embate entre os vários pólos de

leitores, derivado dos diversos processos de leitura, agora disponíveis fisicamente. Assim, abrir

as categorias de duração para o leitor alterá-las significa configurar um outro tipo de estrutura

narrativa, capaz de fazer o leitor imergir no e com o seu código de existência, com e no seu

código temporal. Nesse sentido, os movimentos de duração seriam referentes aos movimentos do

leitor quando se depara com uma obra em estado de mimese I. A cena corresponderia ao

movimento do leitor de elaboração ou configuração da narrativa; a elipse seria equivalente àquilo

que se descarta da configuração, podendo ser indicado através de links ou não; a pausa descritiva

poderia corresponder ao que se denomina a obra configurada, pois “explica” o processo que o

leitor está vivenciando, apresentando-o de modo espacializado; e o sumário corresponderia aos

procedimentos adotados para se chegar à obra. Ainda que as correlações demandem uma

discussão com mais vagar, o objetivo aqui é indicar que aquilo que em Genette se refere à

configuração da narrativa e, portanto, da obra acabada fisicamente, aqui será considerado como

referente também ao processo de leitura, mas como um ato físico de construção da obra. Não se

6 Disponível em http://www.pfebril.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.

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deseja encerrar o caráter processual da cibernarrativa em uma estrutura que defina todos os

passos para sua elaboração, mas discutir como esses elementos compõem alguns dos movimentos

possíveis do leitor.

A temporalidade narrativa se faz, também, a partir da categoria de freqüência (Genette,

1970). Essa figura diz respeito à repetição ou iteração que acompanham: o número de vezes que

um acontecimento se repete na narrativa, ou o número de vezes que um acontecimento é

enunciado na narrativa. Das relações entre o tempo do acontecimento e o tempo narrado se pode

falar de quatro tipos de freqüência: contar uma vez o que aconteceu uma vez; contar n vezes o

que aconteceu n vezes; contar n vezes o que aconteceu uma vez ou contar uma vez o que se

passou n vezes. Em relação aos dois últimos tipos, Genette os denomina, respectivamente,

narrativa repetitiva e narrativa iterativa. É sobre esses dois aspectos das narrativas que Alckmar

Luiz dos Santos também se debruça para analisar o texto eletrônico. Nos exemplos operados por

Genette, a narrativa repetitiva e a narrativa iterativa funcionam como aspectos da disposição das

camadas temporais em relação à sua aparição e permanência no texto. A freqüência pode marcar

a importância de um determinado episódio dentro da narrativa configurada. Várias obras em

formato eletrônico hipertextual dispõem da freqüência para também propor ao leitor uma

determinada forma de perceber os episódios dentro da narrativa que apresentam. Assim, em

“Grammatron”7, de Mark América, para citar um exemplo sobejamente conhecido, não só a

freqüência é de um acontecimento contado uma única vez como o tempo desse enunciado não é

controlado pelo leitor e, muitas vezes, um desses enunciados não se permite ler, tal a sua rapidez.

Quando é esse o caso, é preciso começar novamente a leitura de toda a obra, até que o ritmo de

leitura se equipare à velocidade das mudanças de telas, pois o leitor chegou ao ponto em que

havia “perdido” o enunciado. Acontece, dessa maneira, uma narrativa singulativa que se repete n

vezes em função da própria história se repetir n vezes. Entretanto, é possível pensar que a cada

entrada na obra, o leitor “inicia” sua leitura atenta de um novo ponto. A freqüência com que a

narrativa se repete para que se possa lê-la parece, progressivamente, apagar o que foi lido e surge

repetidamente na tela. A obra, assim, se reduz a cada tela, em função da velocidade com que se

atravessa a história.

Contrariamente ao estilo de “Grammatron”, obras cibernarrativas parecem deslocar a

freqüência do âmbito do que se apresenta na tela somente, para o modo como o leitor fará a

7 Disponível em http://www.grammatron.com/. Acesso em 04 de junho de 2007.

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narrativa surgir na tela. É o caso novamente de circ_lular8, já citada aqui, pois nessa obra é o

leitor que deve criar a conjunção entre os elementos da base de dados. Os aspectos da obra se

tornam os aspectos do processo de imersão na construção física da própria obra. A freqüência,

nesses casos, relaciona-se com os modos como o leitor constrói a obra. Além disso, ela permite

ao autor marcar perspectivas temporais capazes de ordenar a configuração narrativa em torno de

si, dependendo da maneira como aparecem na obra. Um acontecimento contado várias vezes

pode demarcar, quando combinado com pequenas variações na forma ou no conteúdo, a

temporalidade múltipla que reside por trás de uma determinada cena, como que a sugerir a

impossibilidade de captar no enunciado o tempo da história. Quando esse tipo de narrativa,

repetitiva, é utilizada no hipertexto, pode originar ligações randômicas entre partes da narrativa.

Assim, um mesmo processo, por parte do leitor, multiplica-se em nuances diferentes, até que o

efeito repetitivo não possa mais ser constatado, devido à enorme variação de efeito.

A categoria de modo narrativo associa-se muito intimamente à idéia de perspectiva adotada

em relação à narrativa. De acordo com o modo como o autor configura a narrativa, franqueia o

acesso do leitor a camadas temporais específicas da obra, podendo mesmo multiplicar esse acesso

com a variação dos modos. Segundo Genette, “com efeito, pode-se contar mais ou menos aquilo

que se conta e contá-lo segundo um ou outro ponto de vista; e é precisamente tal capacidade, e as

modalidades do seu exercício, que visa a nossa categoria do modo narrativo.” (GENETTE, 1970,

p. 160)

O modo funciona como um regulador da informação narrativa, ora permitindo ao leitor

situar-se mais ou menos próximo do fato narrado e com maior ou menor grau de conhecimento

sobre o que se conta. A essas duas variações Genette dá o nome de distância e perspectiva. É

possível, de acordo com o modo, situar o leitor no centro da narrativa, mas privá-lo da capacidade

de perspectiva sobre a história. Inversamente, pode-se fornecer ao leitor todas as perspectivas

sobre a história, mas impedir-lhe o acesso distanciando-o do acontecido ou do que está

acontecendo. Nos dois casos, estão em jogo as camadas temporais e o acesso a essas camadas,

bem como o trânsito que elas permitem dentro da narrativa.

No tocante à distância, Genette opõe dois tipos de narrativas: a narrativa de acontecimentos

e a narrativa de falas, sendo a primeira uma narrativa mais mediada e mais distante, e a segunda

uma narrativa mais direta, porque é “contada” por quem a vive no momento em que ela acontece.

8 Disponível em http://www.pfebril.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.

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A narrativa de acontecimentos é decomposta em quantidade de informação narrativa e

ausência ou presença do narrador. Da relação entre esses dois conceitos Genette sugere

caracterizar a mimese e a diegese. A primeira seria composta por um máximo de informação e um

mínimo de presença do narrador; a segunda pela relação inversa. Pode-se pensar, dessa maneira,

em como se dá a imersão a partir do modo como a narrativa se configura, ou melhor, como

aparece configurada, de acordo com a velocidade da narrativa ou o grau de presença da instância

narrativa, o que Genette denomina de um fato de voz. Um acontecimento descrito

pormenorizadamente diminuiria a velocidade da narrativa, evocando a presença de um narrador

muito próximo do fato, considerando-se a oposição entre mimese e diegese como norma, e tal

descrição configuraria a diegese. A imersão aqui se aproxima de uma entrada do leitor no texto

pela via da mediação intensa, em que o cenário parece muito mais pronto antes da entrada do

leitor na obra. No caso inverso, em que o acontecimento é narrado como se estivesse sendo

vivido, aumentaria a velocidade da narrativa, à medida que se diminui a presença da instância

narrativa, e a sensação é a de uma imersão marcadamente mais instável, em que a camada

temporal ocupada pelo leitor não surge toda descrita, mas como linha de força a atravessar o

espaço da narrativa, composto por diversas outras camadas temporais. A imersão é, nesse caso,

um componente mais forte da configuração narrativa e não somente uma constatação de um

acontecimento.

A narrativa de falas permite, segundo Genette, três tipos de discurso: o discurso

narrativizado ou contado, que se assemelha muito à narrativa de acontecimentos, mas que é feito

a partir da assunção do ponto de vista de um personagem; o discurso transposto, em que há uma

aproximação maior com o fato no seu acontecimento, e o discurso em que o narrador “finge ceder

literalmente a palavra à sua personagem”.(GENETTE, 1970, p. 170). Os três tipos aludidos são,

ainda, categorias relacionadas à distância narrativa e indicam também de que maneira o leitor

será situado na narrativa. Em cada discurso propõe-se a leitura de toda uma obra a partir de uma

camada temporal específica, desde uma visão mais panorâmica do entrelaçamento das diversas

camadas até a completa imersão em uma só camada, como no caso do discurso baseado

diretamente num diálogo, ou em que as marcas do narrador somem. Nesse último caso, as

conexões entre as várias camadas temporais não surgem de imediato, pois o leitor acompanha a

história pelos olhos de um personagem, com a sua visão. O jogo entre os vários discursos

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dinamiza a narrativa, pois mistura as distâncias relativas às camadas temporais e impede uma

estabilidade do leitor frente à narrativa.

A categoria de modo é analisada também a partir da perspectiva adotada para se contar a

história. Genette distingue três perspectivas possíveis em uma narrativa, segundo o modo como a

história é focalizada: a narrativa de focalização zero, em que o narrador sabe mais que a

personagem ou diz mais que qualquer personagem sabe; a narrativa de focalização interna,

podendo ser fixa ou variável, de acordo com o número de personagens que contam a história; e a

narrativa de focalização externa, em que o narrador diz menos do que sabe à personagem. Cada

forma de focalização pode ser combinada com as outras dentro de uma mesma obra e cada um

desses tipos pode engendrar narrativas muito diferenciadas, o que parece óbvio.

A última das figuras discutidas por Genette, a da voz, é relacionada à instância narrativa, ou

seja, ao sujeito que conta a história e a todos os que participam da atividade narrativa. A voz

aproxima-se não necessariamente da escrita, mas do modo como se configura uma narrativa,

dependente do tempo da narração, do nível narrativo e da pessoa que conta.

As figuras associadas ao discurso da narrativa marcam a imersão em narrativas

configuradas, às quais o leitor só tem acesso como já dadas fisicamente. Ainda que a análise de

Genette se relacione a essas estruturas, a tentativa empreendida aqui é a de associar as figuras da

narrativa ao processo de construção de uma obra cibernarrativa. Como dito no início dessa

digressão sobre a obra de Genette, o que se percebe nas obras ficcionais contemporâneas é uma

abertura da narrativa cada vez mais ampla, de modo a complexificar as relações entre as camadas

temporais e sugerir um não-encerramento da narrativa em si mesma, mas uma incompletude

incessante. Cabe ao leitor não somente se confrontar com essa incompletude e, ainda, não

simplesmente completá-la, mas compreender que as obras apresentam-se como fluxo, sempre, e

no caso das cibernarrativas, em nível físico de modificação também. O contraponto fornecido por

Genette pode fornecer indicativos importantes para se pensar em que medida as cibernarrativas

apresentam um caráter de fluxo.

Paul Ricoeur (1994), ao enunciar uma lógica da narrativa, busca um caminho em direção a

uma abordagem mais flexível e menos intemporal que aquela relacionada a uma pura logicização

da narrativa, ao que parece. Ao procurar associar as análises estruturalistas da narrativa com uma

lógica da ação, em que o movimento em uma camada temporal não pode ser desconsiderado,

Ricoeur parece afirmar o mesmo que Espen Aarseth (1997) quando trata do cibertexto. A escolha

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de uma lógica de encadeamento entre perspectivas temporais, assumidas por diferentes

personagens, é também a não-escolha de outras configurações possíveis. E é justamente desse

embate que deriva o efeito estético conforme preconizado por Iser (1996); em função da escolha

de um tema perspectivado por um horizonte. Dessa forma, a lógica de uma narrativa se fundaria

em uma tensão entre o espaço configurado dessa narrativa e as diversas camadas temporais que a

sustentam. Como é possível transitar nessas camadas temporais? No caso das cibernarrativas, a

defesa dessa tese é que esse trânsito chega ao nível do componente físico da obra, pelo leitor, o

que Pedro Barbosa chama de texto-ovo ou texto-semente (Barbosa, 1996). Mas as cibernarrativas

parecem ser o desdobramento mais intenso de jogos com o tempo em outros níveis.

Além das camadas temporais internas da narrativa, Paul Ricoeur (1994) procura demonstrar

que a análise do sistema de tempos da narrativa comporta uma discussão outra, qual seja,

“A necessidade de separar o sistema dos tempos do verbo da experiência viva do tempo e a impossibilidade de separá-los completamente me parecem ilustrar maravilhosamente o estatuto das configurações narrativas, ao mesmo tempo autônomas com relação à experiência cotidiana e mediadoras entre o antes e o depois da narrativa.” (RICOEUR, 1994, vol. II, p. 111).

Assim, é possível afirmar que a experiência de uma narrativa, ao propor uma configuração

temporal específica para o leitor, sugere também uma nova percepção com relação à experiência

cotidiana do tempo. Ou seja, não há uma separação completa entre o tempo da ficção e o tempo

da história. Não há subordinação de um tempo pelo outro, mas possibilidades de relacionamento

entre o tempo narrado e o tempo vivenciado, que parece ser a tese de Ricoeur quando trata das

relações entre mimese I e mimese II. O tempo narrado não cria “a” estrutura sobre o tempo da

ação prática, mas sugere uma linha temporal, um vetor de leitura, um sentido de leitura e entrada

na obra. A imersão surge, então, como condição para a configuração da narrativa e também para

sua reconfiguração, no caso das narrativas literárias.

A narrativa, ao sugerir uma atitude de deslocamento do leitor, em função da forma como

apresenta uma temporalidade configurada, propõe a esse leitor a entrada em um tempo construído

pela narrativa. O que parece diferente, em termos epistemológicos, nas cibernarrativas, é que a

entrada do leitor na obra é uma entrada no estado pré-figurado dessa obra. Tal conclusão não

deve, entretanto, levar à assertiva de que as cibernarrativas conferem acesso ao tempo em seu

estado puro. Afinal, para que o tempo possa ser “experienciado” é preciso que ele passe e, na

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narrativa, isso começa a acontecer quando o tempo surge configurado em uma perspectiva

temporal dentre as várias possíveis. A análise empreendida por Ricoeur (1994) ressalta a sua não-

concordância com a possibilidade de se considerar os tempos verbais completamente dissociados

do tempo vivido, do tempo cotidiano. O que se pretende nessa parte do texto é apenas elencar

algumas das possíveis camadas temporais que se apresentam e que constituem uma narrativa

configurada, a mimese II.

De que maneira a narrativa configurante permite perceber suas camadas temporais, que a

constituem e são por ela constituídas como percepção da temporalidade? Há, segundo Paul

Ricoeur, uma primeira forma, baseada na distinção entre contar e comentar, ou debater.

Pode-se pensar aqui em duas camadas temporais iniciais: o mundo comentado é mais

próximo da ação, exibe um caráter de tensão mais acentuado na narrativa; o mundo contado se

liberta da tensão da ação e permite um distanciamento temporal do movimento. As diferenças de

perspectiva temporal permitem movimentos também distintos com e em relação ao tempo da

narrativa. Ao dividir a narrativa entre comentário e mundo contado, propõe-se ao leitor um

deslocamento entre camadas temporais e uma constante reflexividade sobre a obra que lê e sobre

o modo como tal obra cria e apresenta a sua própria temporalidade. Uma segunda forma através

da qual as camadas temporais de uma obra podem ser percebidas diz respeito às diferenças entre

o tempo do ato e o tempo do texto. Segundo Weinrich, citado por Ricoeur (1994), a diferença

entre o tempo do ato e o tempo do texto marca a perspectiva temporal assumida pelo narrador em

relação ao que ele conta. Assim esse narrador pode se antecipar ao que será contado, pode contar

retrospectivamente ou pode ocupar o local da ação que está sendo contada. Há, novamente, em

jogo, camadas temporais distintas, componentes da narrativa configurada.

Uma terceira forma de trabalho com as camadas temporais baseia-se na idéia de deslocar

para o centro da narrativa, ou melhor, para o primeiro plano, um determinado evento, enquanto

outros eventos compõem o plano de fundo para esse evento principal. Dessa forma, aqueles

processos em primeiro plano ocupam a primazia, para o leitor, em relação à temporalidade da

narrativa.

Ricoeur (1994) defende a impossibilidade de dissociar uma fenomenologia do tempo e a

noção de tempo narrado, com base somente na relação entre as três mimeses. Para o autor, “a

ficção não apenas conserva o vestígio do mundo prático, do fundo do qual ela se destaca, mas

reorienta o olhar para os traços da experiência que ‘inventa’, isto é, ao mesmo tempo descobre e

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cria.” (RICOEUR, 1994, vol. II, p. 130). Mesmo com essa ressalva, a análise proposta por

Ricoeur permite discutir algumas camadas temporais e suas relações, quando se trata de

estruturar a narrativa em seu estado de mimese II. O propósito aqui é discriminar tais camadas e

retomar essa discriminação quando se abordar o tipo de configuração próprio das cibernarrativas.

Em relação às camadas temporais, a análise empreendida por Paul Ricoeur distingue, além

das camadas internas à mimese II, aquelas relativas ao tempo do contar e ao tempo contado. Se

contar é tornar presente algo que não era ainda uma narrativa, o contar pode ser compreendido

como configurar um tempo próprio que não é exatamente igual ao tempo daquilo que ainda não

foi contado. Se o contar é, ainda, um processo de vida, é esse mesmo contar que configura uma

temporalidade para os fatos contados. Entretanto, o tempo do contar relaciona-se ao conjunto

físico da obra, que exige um tempo para ser percorrida. Esse tempo não é equivalente ao tempo

contado, que trata da experiência de embate com a narrativa configurada. No caso das

cibernarrativas, parece haver uma aproximação entre o tempo do contar e o tempo contado. Ou

seja, ainda que não se possa falar exatamente de coincidência entre as duas camadas, é possível

dizer que o tempo contado depende, mais intensamente, de como o leitor irá configurar a

narrativa, o que significa estar a um passo adiante da reconfiguração da narrativa. Tome-se o

exemplo de circ_lular9 e a visualização dessa afirmação se faz mais clara. Como a parte principal

da obra diz respeito ao uso de um simulador de uma ilha de edição não-linear para criar uma

narrativa, o tempo do contar é de responsabilidade do leitor, bem como o tempo contado. A

“autora” da obra não estrutura completamente o tempo contado, uma vez que os elementos estão

ainda não organizados. Se a percepção do tempo contado trata do embate com a narrativa

configurada, ou seja da reconfiguração da narrativa, no caso da obra em questão o embate se faz

no momento de configuração da narrativa. Significa dizer que, aqui, o leitor aproxima-se mais da

mimese I, porque ocupa o lugar daquele que irá contar a narrativa.

Ricoeur analisa a relação da estrutura narrativa com outros dois elementos, próximos do

discurso da narrativa: o ponto de vista e a voz narrativa. O ponto de vista compreenderia a

“orientação do olhar do narrador em direção a seus personagens e dos personagens entre si.”

(RICOEUR, 1994, vol. II, p. 154). Ao apresentar ao leitor diferentes momentos e locais a ocupar

na narrativa, o ponto de vista do narrador se configura como uma camada temporal com que o

autor sugere os jogos com os tempos presentes na narrativa. O ponto de vista do narrador pode

9 Disponível em http://www.pfebril.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.

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ser similar à voz narrativa, identificada por Ricoeur como pertencente ao discurso dos

personagens; pode, ainda identificar uma percepção “externa” sobre a história contada, ou mesmo

sobre o estado psicológico dos personagens. Qualquer que seja a perspectiva indicada pelo ponto

de vista, ela apresenta uma perspectiva para o leitor e se configura em torno de uma coerência

espaço-temporal em relação à narrativa. O narrador, ao ocupar uma determinada camada

temporal da narrativa e fazer o leitor acompanhá-lo nesse movimento, deve manter a coerência

desse ponto de vista, sob pena de embaralhar de tal maneira as múltiplas camadas temporais a

ponto de o leitor não conseguir, minimamente, perceber em que camada está em cada momento

da leitura. O que pode funcionar como recurso de composição pode também impedir o leitor de

reconhecer seus próprios movimentos na narrativa. Pelo caráter de narrativa não-configurada de

uma cibernarrativa, esse desafio é ainda mais intenso nela, pois o leitor não tem camadas

temporais configuradas à disposição para leitura. Não se trata, assim, apenas de se movimentar

numa configuração, mas de construir as relações entre as camadas temporais que irão tornar

perceptível uma determinada configuração narrativa.

A voz narrativa difere do ponto de vista na medida em que apresenta o mundo do texto ao

leitor e não é apenas um convite ao olhar, um direcionamento do olhar do leitor. Mais que buscar

uma diferença cabal entre ponto de vista e voz narrativa, o que se pretende com a referência a

esses dois elementos é ampliar a discussão sobre os vários entrecruzamentos temporais relativos

aos papéis de autor e leitor na experiência narrativa ficcional. São essas várias maneiras de

ocupar camadas temporais nas narrativas um dos motivos, também, para se relacionar escrita e

leitura no capítulo inicial dessa tese. A questão não é investigar o estatuto de uma ou outra forma

de produção de sentido, mas indagar as relações estabelecidas entre escrita e leitura em virtude do

processo de comunicação que estabelecem entre si.

A experiência do e com o tempo ficcional é também uma experiência relacional,

considerada a visão de Paul Ricoeur sobre o caráter de transcendência imanente da narrativa

ficcional.

“Uma obra pode estar, ao mesmo tempo fechada, sobre si mesma quanto à sua estrutura e aberta para o mundo à maneira de uma ‘janela’, que recorta a perspectiva fugidia de uma paisagem oferecida. Essa abertura consiste na pro-posição de um mundo suscetível de ser habitado.” (RICOEUR, 1994, vol. II., p. 182).

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A experiência temporal na narrativa literária é a experiência de construção do tempo da

narrativa, que pode acontecer no contato entre mimese II e mimese III. Em cibernarrativas, o

contato também pode ser iniciado em mimese I, pois o leitor terá acesso a um tempo ainda não-

contado. Esse estado é que será investigado na discussão sobre as obras cibertextuais e a

produção colaborativa com o cibertexto. “O corpo, que não é coisa nem idéia, mas espacialidade

e motricidade, recinto ou residência e potência exploratória, não é da ordem do ‘eu penso’, mas

do ‘eu posso’”.(CHAUÍ, 2002, p. 68).

Espaço e tempo podem ser compreendidos como elementos entrelaçados, sujeitos à

constante vibração. Trata-se, então, de discutir a visibilidade do tempo e do espaço a partir de

como se manifestam na experiência e como constituem a experiência em que se manifestam;

como, por exemplo, na escrita, na produção de uma obra literária em meio digital, na produção de

imagens em vídeo etc. Os dois termos não existem em si como idéia ou coisa, mas de forma

conjunta, sustentados um pelo outro, assim como o visível é sustentado pelo invisível, que é o

fundo sobre o qual acontece a visibilidade. Espaço e tempo surgem na experiência da qual são

também condições fundadoras.

O espaço acontece na relação entre o corpo e o mundo, entre a obra e aquele que a

experimenta. E o mais importante aqui é a relação, o entre, e não um dos dois pólos, uma vez

existem somente no contato e pelo contato. Nesse sentido, o espaço pode ser entendido como o

que se manifesta no momento em que há uma experiência. De maneira mais específica, não

interessa aqui discutir o espaço físico, mas a percepção deste espaço em manifestações artísticas,

principalmente naquelas relacionadas ao cibertexto. Perceber o espaço de uma obra, ou o espaço

em uma obra exige, em primeiro lugar, perceber que a obra é o espaço que a cria. Essa relação

implica uma postura diante do fenômeno, postura essa que, ao ser alterada, altera também o

espaço percebido. A modificação a que se alude aqui possui forte relação com o tempo e com o

momento em que se adota uma posição.

Buscar uma entrada em uma obra é buscar uma relação com o fenômeno, fato este que se

dá a partir de um movimento. Esse movimento acontece fundamentalmente no tempo, mas não

pode ser decomposto como a soma de todos os movimentos ou posições adotadas diante de um

fenômeno. Cada posição indica uma relação, a ocupação de um lugar entre o olhar e o fenômeno

observado que não é congelado eternamente no espaço ocupado, que permite esse olhar. O

espaço, para ser percebido e para conceder a percepção, precisa ser tomado por um olhar, um

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gesto, uma ação. Essa ação não permanece a mesma depois que o espaço é ocupado e recebe um

outro movimento. Assim, cada movimento entre uma obra e aquele que a percebe se dá em

função de um espaço ocupado num determinado instante. A sucessão desses movimentos não

constitui todo o fenômeno porque o espaço só é percebido ao ser ocupado, ele não retém a

relação ali acontecida. O espaço é, então, o emaranhado de relações temporais realizadas na

percepção de um fenômeno.

O espaço seria sempre atravessado pelo tempo de maneira transversal, quando se considera

a relação entre diacronia e sincronia. O tempo como simultaneidade aparece na fala falante que,

ao mesmo tempo, implica a retomada de uma fala falada, um atravessamento em perspectiva

diacrônica. O espaço é, numa relação de simultaneidade, trespassado pelo tempo, para que essa

mesma relação possa existir. A relação que acontece na percepção de uma obra coloca em

movimento tanto o simultâneo quanto o sucessivo, de forma indissociável, porém distinta. O

simultâneo não significa, assim, o esgotamento da vibração temporal num suposto espaço que

retém todas as relações. Antes, ele é a velocidade infinita, a não rigidez e a não cristalização;

exige, ao mesmo tempo, uma imersão em si mesmo para que seja percebido. O movimento de

imersão é sempre transversal, considerando-o como uma retomada de relações temporais distintas

não em sua totalidade, mas nos pontos que o movimento faz vibrar. No momento em que se

experimenta um fenômeno, ou melhor, uma obra, o que se faz é colocar em contato sentidos

cristalizados no tempo, em alguma relação temporal, em direção a um movimento de

reorganização dessa fala falada. É a ação da fala falante que atravessa, como o tempo, os espaços

que a constituem, para sugerir uma outra relação.

O tempo e as relações que acontecem entre as várias camadas temporais que surgem e

constituem um fenômeno fazem vibrar o espaço, o que o transforma a cada momento ou a cada

movimento imersivo. O espaço seria percebido, dessa forma, como uma vibração decorrente do

contato entre camadas temporais, vibração sempre transitória, lugar instável, abertura, poro,

visível e invisível. Interessa, na perspectiva aqui adotada, compreender as manifestações e

relações entre espaço e tempo, mais que buscar uma ou a experiência em que se possa apreender

o tempo ou o espaço diretamente.

Se o espaço é co-operativo com o tempo ou momento em que o olhar “toca” em algo a ser

visto, em alguma medida esse olhar já está imerso na “carne” do mundo. Entretanto, tal fato não

significa uma imersão total, uma vez que, então, haveria um espaço do qual o olhar pode se

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desligar, ou mesmo o olhar poderia ser desligado desse espaço. Antes, é uma perspectiva de

imersão no espaço, passível de transformação à medida que aquilo que se olha também modifica

a experiência do olhar. Podem-se construir espaços diferentes entre o olhar e o que se olha,

considerando modos de mediação distintos e posições distintas ocupadas em relação ao visível.

Se o visível não é idêntico a si mesmo, conforme Merleau-Ponty (2003) sugere, e uma vez

que o olhar, ao desvelar esse visível, também já o envolve, a experiência da visibilidade é sempre

uma percepção daquilo que acontece no contato entre as coisas e o olhar. No cruzamento entre o

que se vê e aquele que olha para essa visão, há um “espaço” visível. Entretanto, não se trata aqui

de um lugar como espaço ocupado por um corpo (Lalande, 1999), mas de uma relação em que a

visibilidade do espaço acontece no momento do cruzamento entre o visível e o vidente. Nesse

sentido já é possível tratar o espaço como co-ordenado com o tempo, uma vez que a percepção de

um “objeto” seria também a percepção do olhar que desvela e cobre esse “objeto”.

Os modos de mediação utilizados para perceber o espaço modificam a própria visualização

deste, tornando tal contato uma forma indireta de percepção. Indireta porque o encontro com esse

espaço seria sempre o encontro com as diferenças entre as partes que compõem o espaço e este

escaparia entre um e outro movimento do olhar em direção a si mesmo. A perspectiva sugerida

pela análise da relação da experiência da visibilidade parece apontar na direção dos processos

envolvidos nessa relação, e não simplesmente na direção de quem vê ou daquilo que se vê,

tomados de forma isolada. Se é a experiência que permite e constrói a percepção do espaço e do

tempo, de que experiência se trata aquela relativa à cibernarrativa? Em linhas gerais, a

experiência relativa à cibernarrativa é, principalmente, uma experiência processual, em que

importa muito mais investigar a obra como uma estrutura aberta, ou se preferir-se, o texto

enquanto processo de significação, nunca permanente e acabado. É sob essa perspectiva que o

capítulo seguinte posiciona a discussão sobre hipertexto, cibertexto e cibernarrativa.

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4 DO HIPERTEXTO AO CIBERTEXTO: UMA PROPOSTA PARA A CIBERNARRATIVA

4.1 O texto como produtividade

A escrita em meio digital é marcada, atualmente, por uma multiplicidade de termos que

procuram dar conta de características presentes em cada tipo de obra e, a partir daí, se definirem:

hipertexto, hipermídia, games, obras colaborativas, cibertextos etc. A escolha desses termos e a

sua utilização nem sempre consensual entre vários autores torna mais claro o porquê de se pensar

o termo cibertexto como uma proposta para a cibernarrativa e o porquê dessa aproximação. Chris

Joseph10 (2005) procurou traçar um estado da arte sobre o que seria a escrita digital e é bastante

sintomática a primeira observação do seu texto, quando afirma ser praticamente impossível

sumarizar o campo da escrita digital e todas as terminologias. Não se pretende, aqui, utilizar tal

argumento para escapar à discussão, mas atentar para o fato de que a escrita em meio digital

apresenta um caráter de fluxo constante, como bem o diz Sarah Boland, citada pelo mesmo Chris

Joseph. Ou seja, os conceitos ou tipologias apontam para uma tentativa de dizer o que são as

obras, quando talvez a principal característica de cada uma delas seja o seu desdobramento em

obra-processo. O caráter de obra-processo não é, de forma alguma, inaugurado pela literatura em

meio eletrônico, no entanto. Entre os vários comentários sobre o que é a escrita digital, presentes

no texto de Chris Joseph, não parece haver uma percepção clara sobre a questão da obra-processo

e a sua relação com a escrita em meio digital. Talvez o primeiro conceito relacionado a esse tipo

de escrita seja o conceito de hipertexto, ainda que tal termo já tenha sido utilizado por Gérard

Genette (1982) para descrever um texto segundo derivado de um primeiro, um texto para o qual o

leitor é remetido em função de conexões com o texto primeiro que está lendo. E a remissão aqui

não é aquela das notas de rodapé, que seriam paratextos, na terminologia de Genette. O texto

segundo é um texto que aparece na leitura de um texto primeiro, à maneira de um intertexto. E

Genette não estava tratando, nesse caso, de escrita em meio digital, mas de elementos que

compõem um texto escrito.

10 Disponível em http://tracearchive.ntu.ac.uk/process/index.cfm?article=131. Acessado em 27/03/2007.

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Em várias compilações sobre obras em meio digital fica patente que a escolha de um

conceito não é consensual e os próprios projetos indicam o desafio e a aparente falta de sentido

em delimitar uma categoria para as obras. Assim, não parece prudente aqui tomar o mesmo rumo,

ainda que o caminho a ser adotado se cruze com as discussões atuais. Considerando a discussão

já empreendida sobre escrita e leitura, a partir da teoria do efeito estético, deseja-se adotar uma

visada transversal sobre o tópico, de modo a procurar em que medida a não definição consensual

aponta para uma relação mais ampla, e não apenas delimitada ao terreno da escrita em meio

digital. Trata-se de adotar um ponto de vista que terá, à partida, a discussão realizada por Barthes

sobre obra e texto; discussão essa devedora, sem dúvida, de vários outros momentos em que se

procurou compreender o estatuto da obra de arte reproduzida tecnicamente. Há aqui, claro, uma

explícita referência ao texto de Walter Benjamim (1986), “A obra de arte na época da sua

reprodutibilidade técnica”, e à sua noção de valor de exposição para se pensar a reprodução

técnica dos objetos artísticos. Ainda que Benjamim tenha feito um ensaio em que ora critica a

reprodução técnica, ora afirma que ela cria condições que modificam a noção de objeto artístico,

o autor alemão já indicava, em seu texto, tanto a característica processual dos objetos

reproduzidos quanto a mudança nas relações entre autor e leitor. Apontava, então, para a relação

entre a obra reproduzida tecnicamente e os seus modos de reprodução como uma nova área de

investigação no campo artístico. Para pensar o cibertexto adotar-se-á uma perspectiva também

relacional, em que os termos da relação são a obra, fisicamente produzida, e os diversos textos

que podem ser produzidos a partir da existência dessa obra. Espera-se, dessa maneira, evitar o

terreno infértil de um puro relativismo e, ao mesmo tempo, a imobilidade que podem produzir

categorias rigidamente estabelecidas que desconsiderem a fluidez dos materiais reproduzidos

tecnicamente, ao apelarem para uma definição excessivamente rigorosa de um conceito em

função do suporte que ele habita. Em última análise, será dado destaque às relações entre obra e

texto em seus embates constantes, em função dos seus próprios modos de existência, em função

do seu caráter de fenômeno. Isso significa resgatar também as relações entre escrita e leitura e

como essas relações constroem obras e textos e são também por eles modificadas.

Em um artigo sobre a teoria do texto11, Barthes (2004) antecipa a proposição, que aqui se

faz, de compreender o cibertexto como um processo ou como característica presente em obras de

teor diverso. A crítica feita por Barthes à noção clássica de texto, como aquele habitado por um

11 Barthes, Roland. Inéditos – vol. 1: teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 261-289.

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sentido “verdadeiro”, indicava já o caminho para se pensar o cibertexto como fenômeno ligado às

experiências de escrita e leitura, ligado às relações de comunicação que o cibertexto enseja e das

quais também deriva. Obviamente, o autor não discutiu, em seu artigo, o termo cibertexto; essa

sugestão é propriedade dessa tese. Ao afirmar o texto como uma prática significante, Barthes

enfatiza o investimento sobre o mesmo, por parte de um sujeito e por parte de um Outro a quem

esse sujeito se dirige, como uma característica definidora e responsável por situar o texto fora da

alçada de possíveis classificações ou de atos de entendimento capazes de descortinar um sentido

transcendental no contato com o que está escrito. Se, como prática, a produção textual ocorre “ao

sabor de uma operação, de um trabalho no qual se investem ao mesmo tempo e num único

movimento o debate entre o sujeito e o Outro e o contexto social” (BARTHES, 2004, p. 270), é

através da imersão que o texto surge, através do contato com o que será dito no momento de dizê-

lo. Tal ato configura-se tanto na escrita quanto na leitura do que foi produzido. Um texto é criado

em uma relação, embora não possa ser visto como o produto dessa relação, já que não a esgota,

mas apenas sugere perspectivas sobre o contato entre aquele ou aqueles que o enunciam e os que

o tomam para ler. Tal caráter relacional permite afirmar o hipertexto como continuação de um

modo de pensar o texto como produtividade e não como produto de um trabalho.

Ao afirmar o texto como produtividade, o desejo é situá-lo a partir do conceito de imersão,

ainda que essa definição só venha a aparecer num capítulo posterior desta tese. Portanto,

procurando evitar a antecipação, outros termos podem auxiliar na definição que se pretende fazer.

O texto não é o objeto sobre o qual se trabalha, mas aquilo que trabalha a língua, que reúne autor

e leitor e que surge justamente porque estes se dispõem a jogar com os significantes, inventar

sentidos múltiplos, produzir jogos de palavras (Barthes, 2004). O texto não deve ser enquadrado

numa moldura ou numa figura, mas ser percebido como espaço infinito. Ora, dessas afirmações é

possível dizer que o texto propõe, como movimento de sua própria construção, a reversibilidade

do espaço em tempo. E, ainda, que o texto se constrói e se reconstrói incessantemente como

resultado, sempre transitório, da “entrada” de autor e leitor naquilo que será o seu “espaço” de

existência. As aspas nas palavras da frase anterior se justificam pelo caráter de construção

permanente desses termos na relação de produtividade. Autor e leitor “entram” no texto que estão

construindo, mesmo que em momentos distintos, o que significa também afirmar a efemeridade

do espaço construído, porque é sempre inacabado. A imersão é, então, o que produz e dá a existir

o texto, a partir da construção conjunta de autor e leitor. Como se verá no capítulo sobre

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cibernarrativas e imersão, o processo acontecerá relacionado à própria existência física da

cibernarrativa, fazendo com que a significância se associe à obra, e não mais somente ao texto.

“Com mais razão, quando o texto é lido (ou escrito) como um jogo móvel de significantes, sem referência possível a um ou a vários significados fixos, torna-se necessário distinguir bem a significação, que pertence ao plano do produto, do enunciado, da comunicação, e o trabalho significante, que, por sua vez, pertence ao plano da produção, da enunciação, da simbolização: é esse trabalho que se chama significância.” (BARTHES, 2004, p. 273).

A significância é como a reverberação do texto sobre aquele que investe em direção a esse

texto, é o deslocamento a que o texto submete o sujeito que procura reconfigurar ou configurar o

texto. Como a significância se associa à enunciação, ao movimento, é um conceito relativo

também à necessidade de imersão no texto, para que ele surja. Faz-se presente aqui a percepção

da importância do contato entre texto, autor e leitor, como que a corroborar, por exemplo, com o

conceito de cibertexto, cuja base está também nas relações estabelecidas com e através do texto.

O texto não é apenas um fenômeno em que se envolvem sujeitos produtores de enunciados,

mas também o processo que movimenta a própria língua, os textos outros que compõem essa

língua. Na base do conceito de texto estão os intertextos, ou a presença de textos anteriores em

sua trama. O texto movimenta a linguagem e é colocado em movimento também por essa mesma

linguagem. Assim, apresenta-se tanto no lado interno da linguagem quanto no lado externo. Pode

ser tanto fala falada quanto fala falante. Ao organizar-se e ser organizado, o texto reposiciona as

perspectivas textuais das quais é apenas uma das várias derivações, mesmo que tal

reposicionamento seja de grau ínfimo. O texto aponta, então, para a prática textual que o

engendra, fazendo de si mesmo objeto e processo, sempre um entre lugar, forjado através do

contato e mediador desse mesmo contato, como campo de tensão e não como campo de

conciliação.

Assumir o texto como relacionado a uma prática textual, para daí derivar uma possível

teoria do texto, significa, em conjunto com Barthes, dizer que os textos não são produtos de uma

ordem material verbal ou visual ou relacionada a um suporte específico e, logo, podem ser

associados a produções em suportes físicos variados, pois dizem respeito a enunciações e não a

enunciados. A prática textual é a significância, cuja pedra fundamental é compreender o texto em

ação. “A significância depende da matéria (da ‘substância’) do significante apenas em seu modo

de análise, não em seu ser.” (BARTHES, 2004, p. 281) Propor os textos como produções

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perpétuas, como enunciações significa também focalizar o envolvimento e a tensão que se

processam entre autores e textos, mas também entre leitores e textos.

Ao longo de toda a sua teoria do texto, Barthes destaca o movimento de um sujeito que se

envolve com o texto. Seja com os conceitos de significância ou produtividade, seja ainda com a

discussão sobre intertexto, a cada momento é mais intensa a questão sobre o relacionamento entre

o texto e aqueles que se envolvem com e de dentro dele. A análise textual não deveria se

restringir, dessa forma, à busca de um significado último, escondido na obra e cujo texto daria a

luz ao seu significado. Antes, é preciso considerar as obras como não-fechadas e mais, pensar que

o devir da teoria do texto surge como um outro texto, que a prática textual se destina mais “aos

sujeitos produtores de escrita que aos críticos, aos pesquisadores, aos estudantes.” (BARTHES,

2004, p. 287). É da sua configuração e de uma análise feita sobre a sua configuração que o texto

se mostra irredutível a qualquer análise de si como contido no objeto da obra. Se há uma

permanência do texto na obra, ela acontece pela necessidade de dar forma ao que é fluido, ao que

é temporal, e, portanto, ao que só se deixa perceber quando escoa. Não há como captar o texto

inteiro a partir de somente um movimento em uma camada temporal. Nietzsche, citado por

Barthes, elucida melhor essa questão, ao afirmar

“não somos bastante sutis para aperceber o escoar provavelmente absoluto do devir; o permanente só existe graças a nossos órgãos grosseiros que resumem e reduzem as coisas a planos comuns, ao passo que nada existe sob essa forma. A árvore é a cada instante uma coisa nova, nós afirmamos a forma porque não captamos a sutileza de um movimento absoluto. (NIETZSCHE, apud BARTHES, 2004, p. 289).

A teoria do texto proposta por Barthes reverbera discussões sobre o estatuto da autoria e da

leitura, bem como o estatuto da obra de arte, já realizadas por autores como Foucault, Eco,

Couchot, entre outros. Há diversas possibilidades de entrada nesse debate e deseja-se aqui apenas

indicar a forma como Foucault e Eco trabalham, respectivamente, a noção de autoria e a noção de

obra aberta para, em seguida, analisar mais detidamente as propostas de Edmond Couchot (2003)

e Cláudia Giannetti (2002) sobre a relação entre tecnologia e arte.

Sobre o autor, Foucault (1969) citado em Barros da Costa (2001) o pensa como uma função

do texto e não mais associado a uma pessoa física, externa à obra. Essa função seria aquilo que

atravessa os textos, que os recorta, que manifesta o modo de ser desses textos. Foucault permite

pensar, então, que um texto é recortado e construído por diversas possibilidades de imersão,

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sendo a função autor uma dessas possibilidades. Ou seja, o conceito de imersão pode ser utilizado

para pensar que o autor já se faz no meio de um texto. Assim, aqui está também uma das

maneiras pela qual se pode pensar o conceito de imersão: é o aparecimento de uma função da

própria obra, ou uma manifestação da obra e do seu modo de funcionamento. Em relação à noção

de obra, o filósofo francês sugere pensá-la como toda a produção de um indivíduo. Assim

considerada, a obra aparece como um ponto dentro de uma rede em que não se pode precisar um

único atravessamento ou caminho ao qual esta obra pertenceria. De acordo com o tipo de

abordagem feita à obra, ela pode se mostrar como pertencente a conjuntos diferentes de

significação, a redes diferentes de sentido.

A visão de obra aberta sugerida por Eco (1976) encontra-se entre as várias raízes utilizadas

por Edmond Couchot (2003), ainda que não diretamente, para analisar os entrecruzamentos da

tecnologia com a arte. Couchot defende uma maneira plural de percepção do objeto artístico,

baseada em dois conceitos: o sujeito-eu e o sujeito-nós. Atente-se aqui para a base

fenomenológica também utilizada pelo autor na elaboração dos conceitos. A percepção dos

objetos, que coloca em jogo a subjetividade do observador e a objetividade do que se observa, é

produto do encontro de intersubjetividades. E o produto desse ato é definido processualmente, e

não retido pelo que se observa.

“A atividade artística colocaria então em jogo dois componentes do sujeito. Um sujeito-nós modelado pela experiência tecnestésica e um sujeito-eu que resgataria a expressão de uma subjetividade irredutível a todos os mecanismos técnicos e a todo habitus perceptivo, singular e móvel, própria ao operador, à sua história individual, a seu imaginário.” (COUCHOT, 2003, p. 17).

A experiência tecnestésica diz respeito à relação do sujeito com as técnicas, tanto no modo

de produção quanto no modo de percepção de um objeto construído tecnicamente. Como modos

de produção e percepção, as técnicas não modelam o mundo, mas propõem opções de

configuração do percebido, sugerem sentidos, pontos de vista, narrativas contra e no seio das

quais se debate a subjetividade do indivíduo. A presença da técnica na produção de um objeto

artístico é a presença do sujeito-nós, de um conjunto de usos possíveis de mediações

sociotécnicas pertencentes a uma subjetividade coletiva, conjunto este traduzido nos modos como

a técnica permite a manipulação do real. Junto a esse sujeito-nós, há o sujeito-eu, que procura

expressar uma singularidade no seio dos aparatos técnicos, na criação do objeto artístico. Como

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afirma Couchot, “cada obra, corresponde a uma associação distintiva destes dois componentes do

sujeito, uma tecnicidade figurativa e uma figura da subjetividade.” (COUCHOT, 2003, p. 17). O

sujeito-nós e o sujeito-eu são figuras pertencentes ao campo da autoria e também ao campo da

leitura. Tanto autores como leitores percebem, na fruição de uma obra, o embate entre os dois

modos de percepção, que não se resolve na forma que a obra assume, que não se resolve de forma

dialética nessa forma. Ao lidar com uma determinada técnica ou aparato técnico, que aqui será

denominado também de mediação sociotécnica, o autor de uma obra se depara com o sujeito-nós

despersonalizado e materializado nos procedimentos permitidos pela mediação sociotécnica. Na

história da arte é possível visualizar o constante desafio de confrontar tais procedimentos, em

maior ou menor escala, de acordo com a época que se deseje analisar. Esse desafio parece ser

justamente o indicador do atrito entre o sujeito-nós e o sujeito-eu, o choque da singularidade do

autor na tentativa de expressá-la através de uma mediação sociotécnica. A abertura do objeto

artístico deriva também dessa não-resolução do atrito, dos transtornos oriundos de uma

experiência de percepção que acontece sempre no interior da relação entre o indivíduo e o mundo

que ele constrói através da sua percepção, e que é também construído por técnicas impessoais,

anônimas. É a abertura do objeto o que permite ao leitor criar a sua própria percepção da obra,

mas também sujeita ao uso das mediações sociotécnicas escolhidas por um determinado autor.

Assim como uma obra soluciona apenas temporariamente o atrito entre o sujeito-nós e o sujeito-

eu, a interpretação de um leitor está também condicionada pelo encontro desses dois modos de

percepção. A maneira como o objeto artístico dá a conhecer as mediações sociotécnicas que o

originam posiciona o leitor, ao mesmo tempo, no entre o sujeito-nós e o sujeito-eu. O leitor se

move entre o modo como o autor configura a obra que deseja criar, o uso das mediações

sociotécnicas e a obra que realmente ele pode operar. Longe de qualquer romantismo, de um

autor dominado pelo desejo. O que o leitor encontra é um processo em andamento, do qual a obra

é a parte visível do contato. Também o leitor habita o sujeito-nós, pois o objeto artístico apresenta

uma determinada experiência vivida com a técnica. E habita esse leitor o sujeito-eu, pois a

presença do autor surge nos usos específicos de cada mediação sociotécnica ou procedimento

utilizado dentro do aparato técnico. Há, ainda, a própria singularidade do leitor, relativa à sua

interpretação, aos pontos de vista que adota ou imagina em relação à obra configurada com a qual

tem contato.

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Da relação entre sujeito-nós e sujeito-eu pode-se perceber o movimento com as mediações

sociotécnicas, vivenciado por autores e leitores nos processos de autoria e leitura. A manipulação

da técnica, na busca por explorar todas as suas possibilidades, parece indicar uma tentativa de

aproximação entre sujeito-nós e sujeito-eu, um esforço para conferir visibilidade total à

experiência do mundo. Como afirma o próprio Merleau-Ponty “é preciso reconhecer como

irredutível o movimento pelo qual me empresto ao espetáculo, me junto a ele em um tipo de

reconhecimento cego que precede a definição e a elaboração intelectual do sentido.”

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 252).

Ou seja, é a própria irredutibilidade da experiência à obra que lhe confere a percepção, a

origem do movimento incessante que coloca em contato o sujeito-nós e o sujeito-eu. O que se

percebe é sempre uma tentativa inacabada de sobreposição dos dois modos de percepção

discutidos por Couchot (2003). Não obstante a irredutibilidade de que fala Merleau-Ponty (1999),

as confrontações com os aparatos de mediação sociotécnica se constituem também em atos de

alargamento da subjetividade, em atos de desconstrução das próprias mediações e em atos que

buscam aproximar todos os indivíduos envolvidos na fruição do objeto artístico. A arte digital

pode ser vista, nesse sentido, como um processo caracterizado tanto pela fluidez da materialidade

das obras quanto pela aproximação do espectador da elaboração dessas mesmas obras.

4.2 A materialidade do objeto artístico em meio digital

A desmaterialização do objeto artístico não interfere somente no tipo de suporte que dá

forma a esse objeto, mas também na relação entre a obra e o espectador. Se em movimentos

como o expressionismo, na pintura, ou na obra de alguns pintores, como no quadro “As

meninas”, de Velásquez, já se percebe o desejo de colocar o olhar do espectador “dentro” da

obra, as mediações sociotécnicas (fotografia, cinema, imagem eletrônica, informação digital) que

permitem registrar o tempo e deformá-lo parecem intensificar essa aproximação entre o processo

de autoria da obra, a obra em si e aquele que irá receber a obra, lê-la ou vê-la. (Foucault, 1981)

Ao longo do século XX é possível perceber, em movimentos artísticos variados, a indagação

sobre o que é uma obra de arte, seja na relação com o seu modo ou tempo de existência, seja na

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relação com a sua proposta política, seja na relação com o suporte que a obra habita, entre outras

questões. As mediações sociotécnicas propiciam condições para posicionar o objeto artístico em

locais “não-autorizados”, bem como para enfatizar o caráter processual relacionado à criação das

obras. Não é um privilégio da arte em meio digital realizar tal aproximação. Antes, a

multiplicação de interpretações que uma obra pode gerar parece agora habitar o próprio existir do

objeto tornando-se, em muitos casos, condição para que se possa afirmar, inclusive, que há uma

obra.

As instalações e performances artísticas, presentes em diversas exposições e eventos a

partir do final dos anos 50, começo dos anos 60, são bons exemplos de como o espectador

compõe a obra ao ter que entrar num espaço e, a partir dessa entrada, fazer surgir um processo

artístico. Tal é o caso de MovieMovie12, uma espécie de obra multimídia, criada por Jeffrey Shaw,

Theo Botschuijver, Tjebbe van Tijen e Sean Wellesley-Miller, e apresentada em 1967. A obra

consistia de uma superfície inflável branca sobre a qual se projetavam slides de filmes e efeitos

luminosos. Os criadores da obra, no papel de performers, podiam entrar na superfície, ou se

mover sobre ela, e modificar a sua estrutura arquitetônica, fazendo da “tela” um espaço

tridimensional e não mais somente bidimensional como a tela convencional do cinema. Ao

alterarem a superfície de projeção, alteravam também a imagem do que era projetado, colocando

em questão justamente a materialidade da obra vista pelos espectadores. Esses, por sua vez,

também podiam participar da performance, pulando na superfície de projeção e alterando-a com

o próprio movimento dos seus corpos. Uma característica marcante em MovieMovie é o fato do

corpo dos espectadores se transformar na e transformar a própria obra, num movimento de

imersão bastante diferente da imersão psicológica proposta por um tipo de cinema, por exemplo,

e mesmo pela literatura. No caso da literatura, sem tentar estabelecer um paralelo cronológico,

vários artistas, escritores, críticos, ao longo do século XX, colocam em discussão a presença do

leitor na criação de uma obra, seja ao desestruturarem (os escritores) os esquemas de composição

relacionados aos gêneros literários, seja ao “discutirem” com o leitor o processo de criação que

enfrentaram, seja ao questionarem o leitor sobre o que ele está fazendo na leitura de uma obra.

“As obras são suscetíveis a diferentes solicitações, manipulações, operações, desencadeadas

pelo observador. Pode-se falar de participação real e não mais mental.” (COUCHOT, 2003, p.

107). Ainda que se possa questionar o contraponto entre participação real ou mental, a afirmação

12 Disponível em http://www.medienkunstnetz.de/works/movie-movie/. Acessado em 24/05/2007.

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de Couchot enfatiza a abertura do objeto não só em termos de sua estrutura, mas em relação à sua

estruturação. É o processo que ocupa o lugar central da produção artística, a ponto de se poder

dizer de uma obra que o que interessa nela são as regras ou os modos de composição que a fazem

existir. Como conseqüência desse movimento, pode-se perceber também uma preocupação da

criação artística com a sua própria linguagem e, assim, uma intensificação das obras voltadas

para o meta-discurso. Desmaterializar o objeto artístico e voltar-se para a linguagem, para a

combinatória dos elementos que compõem o objeto, esse parece ser um sentido bastante forte da

criação artística contemporânea. As práticas artísticas com meios eletrônicos debruçam-se sobre

o processo de contato entre emissores e receptores, posicionando no centro da discussão a

questão da comunicação entre obra e espectador. À medida que os suportes tornam-se mais

fluidos e manipuláveis, parece cada vez mais evidente o caráter efêmero das obras de arte, até

mesmo em função do tipo de registro que produzem sobre o real. Não se trata mais de elaborar

uma narrativa somente, mas de poder captar, no momento em que acontecem, as ações da vida

cotidiana, como no caso da transmissão ao vivo via satélite. Se no cinema a imagem está em

movimento, a imagem transmitida via satélite para dentro das casas apresenta o próprio mundo

em movimento, numa narrativa que é configurada ao mesmo tempo em que acontece. O caráter

provisório de qualquer interpretação parece, nos meios eletrônicos e digitais, constituir a estrutura

mesma dos aparatos técnicos. A instabilidade do real entranha-se, nesse sentido, nos mecanismos

de mediação sociotécnica, pois são também, potencialmente, mecanismos de comunicação e não

somente de registro e transmissão de informação. Couchot (2003) expõe questões intimamente

relacionadas ao contato entre obra e espectador quando analisa a arte cinética. Para ele, esse tipo

de arte busca ser uma arte do real, conjugada no presente, e que faz com que a obra se transforme

em acontecimento. Essa é a mesma visão de Iser (1996) quando analisa o efeito estético a partir

da recepção da obra literária. A conexão entre arte e comunicação enfatiza características que

Cláudia Giannetti (2002) associa com o surgimento de novos métodos e formas de expressão, no

que ela propõe como paradigmas estéticos da media art. A primeira dessas mudanças diz respeito

aos conceitos de plurimedialidade e interdisciplinariedade, relacionados às obras baseadas em

instalações audiovisuais. Segundo a autora, tais procedimentos artísticos enfatizam as seguintes

características: a ruptura com as formas fechadas para objetos artísticos; a investigação da relação

entre contexto, tempo e partes componentes da obra; a multiplicidade e a inter-relação de

elementos ou materiais; a preocupação com o papel desempenhado pelo receptor; a atenção ao

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processo, em contraposição à idéia de obra única, permanente e acabada; a potencialização da

polisensorialidade das obras. As características enunciadas indicam, no aspecto dos suportes, uma

busca também pela ruptura da distância entre os que se envolvem com as obras. Nesse sentido,

tanto a imagem eletrônica quanto os suportes digitais podem ser vistos como respostas às

demandas feitas por artistas e movimentos de vanguarda artística, ao longo do século XX. As

instalações audiovisuais surgidas entre os anos 50/60 combinavam elementos audiovisuais com o

estabelecimento de redes comunicativas entre artistas, ou entre artistas e público. São questões

similares àquelas que Couchot aborda em “A tecnologia na arte”, quando defende uma

associação do espectador com o ato de criação. Giannetti cita vários coletivos de artistas surgidos

no final dos anos 50, começo dos anos 60, entre os quais pode-se destacar também o OULIPO, os

integrantes do movimento Fluxus e até mesmo os integrantes do movimento de poesia concreta

paulista. O que movia tais grupos: a idéia de processo, o uso de tecnologias na produção das

obras, o desenvolvimento de formatos expandidos, que se aproximam da instalação ou da criação

de um ambiente; além disso, os jogos combinatórios do OULIPO, as obras em rede ou em

colaboração com a platéia, do Fluxus, e as discussões sobre a materialidade dos suportes, no caso

dos livros de artista e também no caso do movimento concretista.

Décio Pignatari (1975), ao discorrer sobre as semelhanças e diferenças entre poesia oral e

escrita sugere que o papel torna-se o público do poeta e este lança mão de todos os recursos

gráficos e tipográficos para tentar a transposição do poema oral para o escrito. Entre o poema oral

e o escrito encontra-se o suporte material do próprio poema, que não pode ser separado deste. O

tempo da declamação será transposto através do espaço das palavras no papel, numa tradução

sempre incompleta, em que será possível perceber o trabalho sobre a materialidade do código.

Parece ser essa a indicação do autor nesse trecho. A poesia concreta não será aquela que tenta

encontrar a melhor tradução, mas, sim, a que reforça justamente o seu caráter de trabalho físico

sobre o código, de modo a fazê-lo pertencer ao poema.

E é também sobre materialidade que Augusto de Campos baseia sua digressão sobre Un

Coup de Dés, de Mallarmé. Há várias questões para reflexão quando se afirma que o método de

Mallarmé exige uma tipografia funcional, que espelhe com real eficácia as metamorfoses, os

fluxos e refluxos do pensamento. (Campos, 1975). O primeiro ponto que interessa aqui é a

possibilidade de espelhamento total do pensamento. Não parece ser factível a representação pura

do pensamento através de uma dada interface ou suporte, se for pensado que qualquer interface

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estabelece um ritmo e um lugar para contato, sendo o tempo e o espaço do suporte criados por ela

mesma. O uso da tipografia irá criar seu próprio espaço-tempo de percepção, que é diverso

daquele do pensamento que originou um poema, não? Ao mesmo tempo, Mallarmé indica que a

materialidade é um componente fundamental no processo de construção da poesia, sendo,

simultaneamente, um mecanismo de mediação e uma criação do próprio poema. Como afirma

Augusto de Campos, “a própria pontuação se torna aqui desnecessária, uma vez que o espaço

gráfico se substantiva e passa a fazer funcionar com maior plasticidade as pausas e intervalos da

dicção.”(CAMPOS, 1975, p. 18).

Há, nesta citação, um paradoxo, pois é preciso libertar-se da pontuação para fazer com que

o material se solte em relação à página, para que as formalidades da regra gramatical dêem lugar

a uma outra materialidade. A plasticidade das palavras poderá, dessa forma, ser testada pelo

poeta, na sua tentativa de transgressão em direção a um diálogo mais múltiplo. Entretanto, resta

ainda a palavra, o verbo, a entonação como que a dizer de um suporte que não pode ser separado

daquilo que se pretende significar.

A análise esquemática empreendida por Augusto de Campos sobre Un Coup de Dés retoma

o que já foi discutido anteriormente. Mallarmé cria uma estrutura em temas e, de acordo com a

tipografia das palavras, executa a distribuição dos versos nas páginas. Utiliza a materialidade da

palavra para libertá-la de uma estrutura conceitual que considera apenas a organização sintática e

semântica formal. Ainda que não se possa falar de uma desmaterialização do código, o interesse

por uma nova forma de materialidade e plasticidade é evidente. O espaço e o tempo da leitura não

se reduzem mais somente ao ato interpretativo do leitor, mas devem ser encontrados no esforço

físico de lidar com a plasticidade sugerida. E não se trata de uma estrutura que se abata sobre as

palavras para formá-las à imagem exata do que será representado. Augusto de Campos salienta

que “os melhores efeitos gráficos de Cummings, almejando a uma espécie de sinestesia do

movimento, emergem das palavras mesmas, partem de dentro para fora do poema.” (CAMPOS,

1975, p. 22). Não é a busca de uma representação exata que moverá o interesse dos concretistas,

mas uma alteração da forma material como que a sugerir a atenção para a composição espacial do

poema e sua relação em processo com o nível semântico da obra. Não mais somente a

composição linear em que o tempo aparece como interpretação da ordem sintático-semântica,

mas a exposição mesma da impossibilidade da palavra representar uma só interpretação.

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Exigência do poeta ao leitor, a de penetrar no espaço material da obra e descobrir suas diversas

materialidades e temporalidades.

As palavras, no dizer de Augusto de Campos, são dúcteis, moldáveis, amalgamáveis. A

estrutura verbivocovisual carrega em si vários tempos, mas não como colagem e sim como

relação que não esgota, no seu uso, nem o verbal, nem o vocal, nem o visual. Embora esse todo

dinâmico não seja a soma de suas partes, tampouco é maior que elas. Se o tempo e o espaço são

condições e condicionados pela experiência que temos deles, no caso da poesia concreta a

experiência se faz do meio das palavras, que não completam jamais o todo que se deseja

exprimir. A poesia concreta enfrenta a questão do movimento a partir não mais da figuração ou

representação do objeto através do símbolo verbal, mas a partir das palavras como coisas delas

mesmas. A composição concreta seria uma estrutura espacial, em que o ritmo não é mais o dos

símbolos verbais, mas o do movimento entre as palavras, que se referem à experiência de si

mesmas. Talvez a melhor tradução seja como afirma Augusto de Campos “POESIA

CONCRETA: TENSÃO DAS PALAVRAS-COISAS NO ESPAÇO-TEMPO” (CAMPOS, 1975,

p. 45).

Se a experiência do espaço-tempo se faz do meio das coisas, se o que vemos é o que

também compõe os nossos olhos, (DIDI-HUBERMAN, 1998) a materialidade da poesia concreta

aponta para as palavras como relação entre coisas a partir de dentro de cada significante no seu

contato com os demais.

Na visão dos concretistas, a palavra possui uma dimensão gráfico-espacial, uma dimensão

acústico-oral e uma dimensão conteudística. Da relação entre essas múltiplas materialidades, o

poeta exige do leitor uma leitura concreta, não do objeto representado, mas apresentado. A poesia

concreta talvez leve ao máximo a tensão material da palavra, ao exigir dela uma vida própria, não

mais colada a um objeto, a um conteúdo externo, mas como o próprio conteúdo de si mesma.

Exige transcender a materialidade aparente do verbal para esgarçar a palavra até seus liames: suas

relações em camada com o visual e com o sonoro. Mas, para tanto, reconfigura o tempo e o

espaço de cada obra, e exige uma ação sobre o material que o leve além da pura representação.

Nas obras de poesia concreta é visível a força do processo de experimentação constante da

obra em detrimento do encontro dos seus diversos textos. É como se a cada leitura surgisse um

novo material que irá prestar-se a novos textos. Assim, a verdadeira obra é a possibilidade de

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produção de obras e formas e não a obra em si ou os resultados dos diversos rearranjos do

material.

No caso dos livros de artista, o tipo de materialidade está mais voltado para a estrutura

física do livro e seus componentes, mas também se pode falar de uma convocação do leitor para a

participação no processo de escrileitura da obra. Nos diversos conceitos trazidos à luz por Paulo

Silveira (2001) salta aos olhos a concepção da página como “matéria plasmável por sua interação

positiva com o texto e a imagem, e também porque é rasgada, furada, colada, feita, desfeita ou

refeita, por mutilação ou reciclagem.” (SILVEIRA, 2001, p. 23). Na introdução do seu livro

sobre o livro de artista e o livro-objeto, o autor salienta que a página será considerada como a

menor unidade possível do suporte livro. Seu interesse está voltado para o volume, mais que para

o texto impresso, como material expressivo no livro. Mesmo nesse sentido, em que o texto vira

contexto, há ligação com a poesia concreta. A poesia concreta utiliza a materialidade da palavra,

mas enfatiza também a relação desta com o espaço em branco da página, com a distribuição dos

caracteres pelo suporte. O livro de artista confere valor central à página e valor secundário à

palavra, até em função de trazer para o suporte outros materiais como a composição em cores, o

recorte do papel, outros materiais colados sobre o papel. Nos dois casos busca-se uma outra

sintaxe do material, em que o processo de manipulação do suporte cria um espaço-tempo que

ultrapassa aquele da ficção literária e se posiciona por entre os objetos concretos manipulados

pelo leitor. É necessário um esforço físico daquele que entra em contato com a obra, numa

aproximação com a idéia de literatura ergódica de Aarseth (1997), ao caracterizar o cibertexto.

Na discussão sobre o que seja o livro de artista, surgem definições com pontos comuns

direcionados para uma busca de ruptura do formato livro como mero veículo de uma expressão

que não considera a materialidade do volume e das próprias palavras. O suporte não é só

mediação vazia, é também criador da experiência de leitura e da experiência espaço-temporal

desta leitura. A discussão evoca, a despeito de conceitos por vezes muito abrangentes, o livro

como forma mutável, como material que pode superar o isolamento das palavras dispostas em

uma obra e transmitir outros significados que incorporem a concretude com que o suporte se

apresenta. Silveira destaca ainda a seqüência de leitura proposta como parte da obra e do seu

significado, procurando compreender qual é a relação entre o material do livro de artista e o

espaço-tempo da obra. Essa opção torna-se ainda mais clara no momento em que o autor cita

Júlio Plaza e sua concepção sobre o livro.

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“O texto verbal contido num livro ignora o fato que o livro é uma estrutura autônoma espaço-temporal em seqüência. Uma série de textos, poemas ou outros signos, distribuídos através do livro, seguindo uma ordem particular e seqüencial, revela a natureza do livro como estrutura espaço-temporal. Essa disposição revela a seqüência, mas não a incorpora, não a assimila. (....).’”(PLAZA apud SILVEIRA, 2001, p. 60).

Há nessa citação um interesse específico pela estrutura espaço-temporal, pela disposição

dos textos em cada página; há uma interrogação sobre o dinamismo da materialidade do suporte e

suas conseqüências no processo de apreensão da obra. Tais questões aparecem na poesia concreta

quando seus expoentes investigam a palavra-coisa e a tensão de pensá-la e trabalhá-la como

objeto. No livro de artista, é o próprio suporte que é tensionado, mas a preocupação sobre os

limites do suporte e da materialidade dos códigos permanece.

Ao esmiuçar os diversos exemplos dados para cada conceito relacionado ao livro de artista,

Paulo Silveira o situa como objeto em processo, sujeito às marcas tanto de autor quanto de leitor,

volume em permanente movimento de transformação, seqüência espaço-temporal que não

permanece inócua, mas que acusa as marcas de seu manuseio e utiliza as mesmas marcas como

material expressivo da própria obra.

O autor procura aproximar-se desse processo através de uma investigação sobre o espaço e

o tempo do livro de artista e também do livro tradicional. Há, segundo Silveira, diversos tempos

envolvidos no livro e pelo livro: o tempo de sua criação e os diversos tempos de leitura. Há várias

maneiras de se percorrer um livro e, para cada uma delas, surge um tempo distinto. No entanto,

todos os tempos do livro aparecem entrelaçados e em relação íntima como o espaço material onde

se situam os seus códigos. Há o tempo da seqüencialidade das páginas; o tempo de perceber a

visualidade dos elementos dispostos através das manchas de texto; o tempo da sua própria estória,

mediado pelas palavras; o tempo de cada palavra como estrutura visual e sonora que evoca a

memória do leitor para outros suportes, entre outras temporalidades.

Nas diversas acepções acima, a ênfase está na idéia de tempo como algo que surge no

processo de comunicação da obra. Não é outra a definição que Aarseth (1997) utiliza para

delimitar ou libertar o cibertexto: a qualidade comunicativa de textos dinâmicos. Assim, aqui já é

possível perceber antecedentes de conceitos relacionados, comumente, ao suporte digital.

O tempo, no livro de artista, pode ser trabalhado a partir de variadas combinações. A

narrativa pode trazer em cada nova página uma movimentação temporal através de marcas no

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espaço da página, como no exemplo de Markischer Sand V, de Anselm Kiefer. O livro inicia-se

com fotos de trigais e, a cada página subseqüente virada pelo leitor, uma parte da imagem ganha

marcas físicas de areia e pedra, até que não reste mais nada das imagens, soterradas pelas marcas

de sua leitura. O tempo aqui é representado pela alteração espacial sofrida pelo livro, mas esta

alteração não pode ser entendida se o leitor tomar páginas alternadas soltas. É preciso

experimentar a passagem das páginas para que o tempo possa converter-se em movimento, em

duração. Não é na materialidade de cada página que se encontra a experiência de um novo

espaço-tempo, mas na relação entre a materialidade e a experiência do leitor de interrogá-la, de

querer saber o que acontece com tal disposição do suporte. Outra forma de trabalhar o tempo na

relação com o material é dispor o livro como simultaneidade, através de dobraduras e disposições

que expõem todo o espaço material do volume de uma só vez, sem uma distinção seqüencial

imperiosa organizada pelo volume. O “Livro-obra”, de Lygia Clark, funciona sob esse regime de

jogo, de manipulação dos objetos para descoberta de suas relações. É o processo em si que

importa e a materialidade do livro deve prestar-se a esse jogo, mais do que realizá-lo no seu

interior. A informação contida no livro só se apresenta a partir de uma performance executada

pelo leitor. Aqui aparece novamente uma idéia próxima do cibertexto, de pensar este como

relação entre partes componentes do texto, em que a materialidade não é definidora de nada

exclusivamente, mas apenas em relação a outros elementos. Em cada tipo de obra é preciso ativar

o processo de contato dessas temporalidades, é preciso investir sobre o código de modo a

experimentá-lo, pois a cada momento ele pode se renovar numa nova tensão derivada da relação

com o seu suporte material.

Paulo Silveira (2001) destaca um outro conjunto de livros de artista, em que o objetivo

principal é o registro personificado do tempo, a materialidade da obra como registro físico do seu

manuseio. Nos vários exemplos indicados, é o desgaste do material ou sua transformação com o

passar do tempo que surgem como a verdadeira obra. Se na literatura o tempo é ficcional, no livro

de artista são os próprios objetos que o compõem os responsáveis pela percepção da mudança

temporal. Neste caso, o suporte é sempre sujeito ao processo de manipulação, o que confere a

este tipo de obra a proximidade com o dinamismo do cibertexto.

Em relação ao espaço, o livro de artista também procura enfatizar o volume trabalhado

como peça central na significação de toda a obra. O livro Exhibition Space, realizado pelos

alunos do California Institute of the Arts, exemplifica bem a afirmação anterior. O livro foi

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concebido de modo que todas as suas páginas, que são o catálogo de uma exposição, possam ser

arrancadas e montadas da maneira que o comprador desejar. O espaço material da obra só passa a

existir em contato com aquele que resolve montá-lo e esta montagem pode ser feita de formas

muito particulares. Assim, o suporte passa a ser quase que todo o material expressivo da obra e

esta se transforma em um jogo de brincar com o material que se tem em mãos. Como um castelo

de areia, a grande transformação é a criação do castelo e não o castelo pronto em si mesmo.

Novamente, investiga-se aqui o suporte como objeto dinâmico, a sua possibilidade comunicativa.

A partir da percepção do espaço como material a ser trabalhado, o livro e a experiência com o

livro ganham novos contornos e é preciso alargar as definições tradicionais. Não se trata mais de

pensar no suporte como mediação entre espaço e tempo ou como mediação para o pensamento,

mas ir além dos limites do material como veículo. Maurice Blanchot (1984) propõe dois pontos

de apoio para essa questão ao afirmar que o tempo da obra é formado pela obra em si e que com

Mallarmé (1994) o espaço interior do pensamento tornou-se palpável na própria página. Através

da torção de todos os materiais à disposição, a poesia concreta, o livro de artista e o cibertexto

investigam como tempo e espaço são construídos pelo e com o suporte e qual é a experiência que

este suporte proporciona. Em alguns casos, a aproximação maior se faz com o tempo, em outros

com o espaço, mas esses dois elementos não deixam jamais a experiência e o suporte a partir do

qual são percebidos.

“A intenção do livro-poema não e a produção de um objeto acabado, mas, através de sua lógica interna, formar o poema durante o uso do livro, que funciona como um canal que, no seu manuseio, ‘limpa’ a leitura fornecendo a informação, possibilitando assim um novo explorar em nível já de ‘escrita’ sobre o livro ‘limpo’: recuperação criativa dos dados informativos (versão).” (SILVEIRA, 2001, p. 166).

O poema é formado pelo processo de manipulação do material e, assim, surge a obra. A

presença física ativa do leitor é exigida para interrogar o suporte e, com isso, criar um espaço e

um tempo de leitura próprios. A diferença aqui é que o espaço e o tempo não são representados

de forma ficcional pelo encadeamento discursivo somente, mas são apresentados pelo espaço em

branco da página, pela corrupção da leitura através da torção da tipografia, da invenção de

palavras. E, no caso dos livros-objeto, é a corrupção da página, a sua forma traduzida em obra

que sugere uma outra leitura. Cada um dos livros-objeto interroga o leitor sobre o seu próprio

material e qual pode ser a experiência dali derivada. A obra “Transparências”, de Neide Dias de

Sá, é um exemplo marcante da idéia de processo de construção espaço-temporal exigida pelo

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livro-objeto. O que é a obra? A sua necessidade de experimentação, de posicionar-se frente ao

material exposto, de construir o espaço e o tempo ainda à espera. Ou seja, evidencia-se aqui a

demanda ao leitor de interagir com a obra ainda não construída, como as tentativas em outros

campos artísticos, conforme discutido por Couchot (2003).

Ainda como conseqüência da busca por novas formas de expressão, pode-se citar uma outra

característica discutida por Cláudia Giannetti (2002), denominada ubiqüidade. A ubiqüidade

aponta para uma fluidez tal do suporte artístico que já não importa mais o espaço físico em que a

obra se materializa, uma vez que o conceito trata de uma expansão temporal em que a obra não

necessita mais ser congelada no tempo, ou no espaço de uma estrutura; ela só existe no tempo, no

movimento, no uso contínuo. Obras hipertextuais como “afternoon, a story”(1990), ou “Victory

Garden” (1991) demonstram de forma bastante clara a experimentação da idéia de ubiqüidade e

também de desmaterialização. As duas obras compõem-se de ligações que podem ser seguidas

indefinidamente, sem que seja sugerido ao leitor em que ponto a história termina. Tampouco são

hipertextos circulares, em que depois de um certo número de ligações volta-se ao início da

história. Nesses exemplos, a distensão temporal é física, pois a obra não apresenta um término

materialmente definido. Nesse aspecto, há uma diferença em relação a obras construídas em

suportes menos fluidos materialmente, pois nestas há um fechamento físico visível para o leitor.

A distinção, entretanto, não permite dizer ou afirmar uma experiência ontologicamente diversa

entre os dois tipos de suporte. Tome-se o caso de “O jogo da amarelinha”, de Júlio Cortazar

(1974), ou de “O dicionário Kazar”, de Milorad Pavitch (1989) em comparação com os

hipertextos mencionados. “O jogo da amarelinha” é uma obra dividida em capítulos e em que o

autor convida o leitor a montar a seqüência dos capítulos e, de sua própria montagem, configurar

uma narrativa. Há também a possibilidade de seguir a numeração dos capítulos em ordem

crescente ou ainda seguir uma ordem sugerida pelo autor. O livro de Cortázar apresenta jogos

combinatórios à maneira das obras performáticas, das instalações em que o interagente deve

combinar materiais para fazer surgir a obra, e pode ser relacionado com os jogos combinatórios

do OULIPO, para tomar apenas um caso muito conhecido de experimentação com jogos

literários. “O dicionário Kazar” possui uma lógica combinatória, uma vez que uma mesma

história é dividida em quatro maneiras diferentes e, em cada uma, as narrativas não estão ainda

estruturadas. Como indica o nome do livro, trata-se de um dicionário, com verbetes, cuja

explicação é dada em quatro versões diferentes. A obra gira em torno de uma disputa religiosa e

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cada seção do dicionário apresenta os verbetes segundo uma vertente religiosa. De acordo com o

processo de leitura escolhido pelo leitor, é possível vivenciar uma estrutura física diferente da

obra, ainda que a obra como um todo apresente suas limitações físicas. O leitor pode optar por ler

os verbetes dentro de uma mesma seção, ou seguir links dentro de cada verbete, o que cria uma

inter-relação com outro verbete, mas não necessariamente dentro da mesma seção. Se não há uma

desmaterialização do suporte nos exemplos citados, é inegável perceber uma tentativa de trazer

para a estrutura física da obra processos mais fluidos, geralmente relacionados às múltiplas

interpretações, ou ao surgimento dos textos. Por essa razão é que se defende, nessa tese, a noção

de que os suportes digitais intensificam a experiência que pode ser vivenciada em suportes

materialmente menos maleáveis. Essa intensificação acontece em função do tipo de imersão

permitida e exigida pela cibernarrativa, qual seja, a de entrada e de jogo com os códigos físicos

das obras. E é também com base nas discussões já realizadas que se afirma aqui o hipertexto

como um dos momentos relativos aos processos de escrita e leitura.

O conceito de ubiqüidade baseia-se também no uso de sistemas de telecomunicações como

meios efetivamente participativos e não somente transmissivos. Não interessa exatamente discutir

essa oposição, mas pensar de que maneira as redes de comunicação demandam processos

colaborativos, nos quais a definição fixa dos papéis dos participantes entra em crise e abrem-se

novas possibilidades para nomear, por exemplo, autores e receptores. Como bem afirma

Giannetti,

“é sem dúvida com o emprego dos chamados novos meios, como os sistemas de telecomunicações, que essa dilatação espaço-temporal e material assume os sentidos mais amplos da ubiqüidade (a possibilidade de estar em todas as partes, em qualquer tempo ou simultaneamente), de desmaterialização (a independência da existência física/material do objeto) e de participação (a utilização dos recursos interativos que a rede permite).” (GIANNETTI, 2002, p. 85).

A desmaterialização indica uma ênfase no processo de comunicação, no contato entre os

participantes da experiência com a criação artística. A lógica de participação e colaboração, por

sua vez, sugere tanto uma horizontalização da relação de comunicação quanto uma imersão no

momento de produção da obra, no momento de definição dos elementos que irão compor a obra,

bem como na definição de como tais elementos serão combinados. Há assim, uma demanda pela

imersão no momento de mimese I, em que as narrativas encontram-se ainda pré-figuradas.

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A obra Piazza Virtuale13 possui várias características que antecipam o que será denominado

aqui como cibernarrativa, ainda que não se faça uso, nessa obra, dos códigos de programação da

web. Piazza Virtuale, projeto desenvolvido pelo laboratório europeu de media art Ponton,

ocorreu em 1992, durante a IX Documenta de Kassel, e permaneceu no ar durante 100 dias. A

instalação era uma tv interativa que podia ser recebida em toda a Europa através de quatro

satélites. Os visitantes da instalação podiam usar videofones e câmeras para entrarem na

programação, diretamente de Kassel e ainda de outras cidades em que aparelhos dessa natureza

foram instalados. De casa, os usuários podiam transmitir informações para a estação de

transmissão via telefone, fax ou modem, invertendo o processo tradicional de comunicação de

massa, em que há um centro transmissor e milhares de centros receptores. As transmissões de

vários lugares terminaram por virar performances com o uso de transmissão via satélite, no que

se poderia considerar uma interferência do receptor na estrutura dos programas em transmissão.

Um dos “programas” consistia numa imagem de Van Gogh que podia ser alterada por usuários

via satélite, através da transmissão, com o uso do teclado ou com o uso de voz, como pode ser

visto na imagem 1.

Figura 1: uma das obras derivadas de Piazza Virtuale

13 Disponível em http://www.medienkunstnetz.de/works/piazza-virtuale. Acessado em 24/05/2007.

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Aqui já se pode notar uma narrativa em que o telespectador não apenas se depara com uma

narrativa já configurada, mas pode alterar fisicamente essa narrativa, antes que ela seja contada.

Assim, o telespectador poderia acessar o estado de mimese I, conforme conceito desenvolvido por

Paul Ricoeur e já apresentado nessa tese. Não se tratava, nesse caso, de apenas seguir ligações já

preestabelecidas, como em hipertextos complexos, mas de organizar a estrutura da narrativa, ao

vivo, à distância. O processo apresentando pelo projeto Piazza Virtuale pode ser encontrado em

outras obras que serão objeto de análise dessa tese, em que há a mescla de imagens em

movimento, textos, uso do código de programação e participação efetiva do leitor na

configuração da narrativa. A performance vista em Piazza Virtuale é denominada de

metaformance por Cláudia Giannetti, e pode ser caracterizada pelos seguintes elementos: uma

tendência geral dos media para potencializar o desenvolvimento da interface entre obra e

espectador, que permitirá a comunicação dialógica entre ambos; o processo de interação entre

máquina e performers passa a ser um elemento inerente à própria obra; o emprego da técnica

permite ao artista/performer e também aos leitores/telespectadores prescindirem da sua presença

física no espaço da ação; a possibilidade de convidar o leitor/espectador a assumir o seu lugar na

consumação da interação.

O que parece ficar evidente tanto na obra apresentada quanto no conceito desenvolvido pela

autora é a modificação das relações entre autoria e leitura, processo não exclusivo dos meios

eletrônicos ou digitais, mas que ganha uma intensidade diferente nesses casos. A quase superação

total do material com que se cria o objeto desloca os papéis de autor e leitor. O autor passa a ser

entendido como parte intrínseca da obra, o que já era dito por Foucault (1969), e, portanto, e o

processo de autoria reverbera também no momento de recepção por parte do leitor. No caso do

leitor, se como bem diz Paul Ricoeur (1994), é quando a obra encontra o leitor, em mimese III,

que se pode dizer que ela completa o seu ciclo; no caso dos meios eletrônicos ou digitais, esse

processo se intensifica e pode ser visto também na modificação física da própria obra. A

discussão sobre os lugares de autor e leitor também é realizada por Iser (1996), na teoria do efeito

estético, bem como por Alckmar Luiz dos Santos (2003), quando sugere o termo zonas de autoria

compartilhadas para pensar tais relações. Cláudia Giannetti (2002) propõe os conceitos de meta-

autor e receptor-participante nos lugares de autor e leitor, respectivamente. Para sustentar sua

tese, a autora diz que as obras participativas permitem o acesso do observador à experiência

criativa de um modo que não é só meramente mental, mas também factual e explícito. Dito de

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outra maneira, o tipo de imersão permitido pelas obras participativas é uma imersão que não é

mais meramente emocional, mas também física, como será visto no caso dos cibertextos.

“Os sistemas interativos digitais são sistemas abertos, complexos e pluridimensionais, nos

quais o receptor, além de atuar mentalmente, desempenha um papel prático fundamental na

efetivação física das obras.” (GIANNETTI, 2002, p. 105). Esse receptor é o que Giannetti chama

de receptor-participante, pois atua na obra, freqüentemente, de maneira intuitiva e funcional,

contribuindo para a existência física dela. O meta-autor seria aquele que produz as condições

iniciais para que uma obra possa gerar novas obras, a partir da interferência dos receptores-

participantes, ou das próprias estratégias do meio em que a narrativa foi produzida. Ou seja, seria

aquele que cria as regras pelas quais a narrativa pode ser configurada pelo leitor, e não somente

reconfigurada. Nas obras participativas é preciso criar um canal de intercâmbio de informações

entre a obra, o espectador e o entorno, que possa ser configurada como uma rede dialógica

suficientemente aberta, pela qual aconteça um processo real de comunicação. A visão de Cláudia

Giannetti sobre os sistemas interativos parece ser a mesma que Espen Aarseth (1997) possui

sobre os cibertextos, quando trabalha com o conceito de uma perspectiva relacional. O desejo de

criar sistemas interativos digitais acompanha os desenvolvimentos em hipertextos ao longo da

história dessas obras, o que permite dizer que eles não deveriam ser vistos como obras

fisicamente prontas, mas como processos que estimulam a produção através de zonas de autoria

compartilhadas.

4.3 O cibertexto: processos de comunicação em textos dinâmicos

Parece suficientemente claro o paradoxo contido na afirmativa feita por Theodore Nelson,

ao dizer que o hipertexto é um conjunto de partes textuais conectadas por ligações (Landow,

1997). O próprio George Landow confirma esse paradoxo, ainda que pareça não compreendê-lo,

ao buscar várias definições para o hipertexto que apontam para conceitos reafirmadores da

incapacidade de conter o hipertexto em uma obra. Em várias partes do seu livro “Hypertext 2.0”,

esse autor deixa clara a dificuldade na visualização do hipertexto como um produto. Tentativas de

definição como “o hipertexto oferece um mesmo ambiente para autor e leitor”, ou “o hipertexto

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demanda um leitor ativo”, (LANDOW, 1997, p. 6), ou ainda uma definição discutível como “o

hipertexto tem a capacidade de enfatizar a intertextualidade de uma maneira que os textos

contidos em livros impressos não podem fazê-lo” (LANDOW, 1997, p. 35), mostram o caráter

transitório de um hipertexto, a sua ligação direta com o conceito de intertextualidade e também a

sua base relacional. No tocante à última afirmativa de Landow, parece mais prudente afirmar que

a intensidade contida na intertextualidade, presente num texto impresso, transfere-se, em uma

cibernarrativa, para a possibilidade de modificação física da obra no momento da sua leitura.

A visão que Landow apresenta sobre o hipertexto procura demonstrar como a sua estrutura

libera o texto (a obra, no sentido empregado nessa tese) dos constrangimentos físicos relativos ao

suporte impresso, e consequentemente, permite ao texto libertar-se também de uma suposta

univocalidade. O problema com essa visão é conferir ao surgimento de um novo suporte uma

potência que já se encontra no processo de leitura, conforme já discutido aqui e demonstrado por

Barthes, Eco e tantos outros. Parece mais prudente analisar de que maneira o hipertexto

intensifica o caráter de rede contido em qualquer obra, independentemente do suporte em que

tenha sido produzida. Afinal, como afirma o próprio Landow “Hipertexto, em outras palavras,

fornece um sistema infinitamente recentrável, cujos pontos focais dependem do leitor, que se

torna um leitor verdadeiramente ativo, ainda que em um outro sentido.”14 (tradução nossa)

(LANDOW, 1997, P. 36). Esse sistema que pode comportar diversos centros, de acordo com o

ponto de vista do leitor, remete à teoria do efeito estético, de Iser (1996), quando o autor procura

caracterizar qual é o papel do leitor. O leitor seria aquele que atualiza o texto constantemente, de

acordo com um leque possível de realizações que está contido nas estruturas da obra. Assim, a

materialização episódica do texto permitiria perceber como o leitor utilizou as estruturas gerais

do texto. Entretanto, Iser trata do texto impresso, que fisicamente não irá exibir as atualizações do

leitor. O hipertexto, pelo seu próprio suporte, pode ser modificado fisicamente por qualquer

atualização sobre ele realizada. Sua estrutura material não precisa permanecer a mesma no ato da

leitura. O processo de leitura, dessa maneira, é o responsável por abrir a obra e fazer surgirem

textos variados. O suporte em meio eletrônico permite materializar os textos criados pela leitura,

posicionando a obra dos quais eles derivam num centro provisório de influência, e permitindo ao

leitor perceber tal obra como composta de diversas outras obras, textos, leituras etc. Há a

14 "Hypertext, in other words, provides an infinitely recenterable system whose provisional point of focus depends upon the reader, who becomes a truly active reader in yet another sense."

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intensificação de uma experiência que pode ser realizada também no texto em meio impresso e

não uma mudança radical do processo de leitura no hipertexto em meio eletrônico.

Ainda assim, em vários outros autores pode-se encontrar uma visão do hipertexto como

uma estrutura que irá libertar a obra do poder “tirânico” do autor e permitir que as leituras sigam

um curso mais livre que na obra impressa. A leitura de uma obra impressa já é capaz de abrir o

texto, porque o leitor reconfigura a narrativa que lhe é proposta pelo autor. O que o hipertexto

pode fazer e, por isso, ele é considerado aqui como uma característica das relações entre autoria e

leitura, é estender esse texto derivado da leitura de uma obra para a própria constituição física da

obra. A possibilidade de participação do leitor na estrutura de um hipertexto é vista, por Jean

Clément (2000), como um ato responsável por fazer do hipertexto algo que “não deve ser

construído de acordo com uma única perspectiva que culminaria na última página, ele é arranjado

para ser visitado como uma exibição de pintura ou uma cidade estrangeira” (tradução nossa)

(CLÉMENT, 2000, p. 5)15 . Se é possível fazer tal afirmativa sobre como construir um hipertexto,

tal não parece ser o caso quando se fala do processo de leitura de um texto em meio impresso.

Afinal, os movimentos do leitor podem ser restritos fisicamente ao que a obra apresenta, mas não

são restritos, em termos de interpretação, ao que a obra sugere. A afirmativa de Clément permite

reafirmar o hipertexto com uma estrutura processual, fisicamente aberta para a criação de

ligações pelo leitor, ainda que nem todos os hipertextos se comportem de tal maneira. Susana

Pajares Tosca (1997)16, a esse respeito, defendia, em 1997, a existência de ao menos dois tipos de

ficção hipertextual: a hiperficção explorativa e a hiperficção construtiva. A primeira teria um só

autor, permitindo ao leitor decidir o seu trajeto de leitura, em função da escolha de que ligações

deseja seguir. Entretanto, como afirma a própria autora, não se pode dizer aqui de uma decisão

real do leitor, uma vez que as ligações já teriam sido escritas e pensadas previamente por um

autor, que não perde o controle da narração. No caso da hiperficção construtiva, pode-se falar de

uma autoria colaborativa, uma vez que ela permitiria uma experiência semelhante aos role

playing games.

“Nesse tipo de jogos, o narrador prepara um esquema de uma história e funciona como árbitro, regulando as ações dos jogadores, que atuam como personagens da história. Os

15 “Not being constructed according to a single perspective which would culminate on the last page, it is arranged to be visited like a painting exhibition or a foreign city”. Disponível em http://hypermedia.univ-paris8.fr/anglais/fiction.html. Acessado em 24/05/2007. 16 Disponível em http://www.ucm.es/info/especulo/numero6/s_pajare.htm. Acessado em 11 de outubro de 2007.

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jogadores conversam e solucionam os conflitos propostos pelo narrador, como se fossem atores em um filme, mas que tem que inventar o roteiro a cada passo; (...)deste modo, a história se conta entre todos, ainda que siga um esquema básico de ações possíveis e encontros preparados pelo narrazdor, que controla até certo ponto o desenrolar da história.” (tradução nossa) (TOSCA, 1997, s/p)17

O paralelo com os role playing games, para a autora, mostra um exemplo de autoria

compartilhada que é muito mais lúdica que necessariamente estética, mas o que interessa aqui é a

visão de que não se trata de definir obras construtivas ou exploratórias, mas processos que

atravessam tais obras. E pensar que tais processos podem reposicionar a experiência estética com

obras em rede. Afinal, parece ser exatamente isso que a autora mencionada afirma, ao dizer que o

mundo da hiperficção é um espaço performático, permitindo que múltiplos autores e/ou leitores

ocupem, a cada vez, o palco onde o “jogo” é encenado. Mais que procurar uma associação entre

os hipertextos e a idéia de jogo, aqui encontra-se uma abertura para falar do cibertexto como um

processo em que o leitor pode atuar como receptor-participante, ao manipular as estruturas

elementares da narrativa, como se estivesse em mimese I. O que muda, no caso dos cibertextos, é

que as estruturas elementares não são manipuladas só na reconfiguração da narrativa, como em

textos produzidos para outros suportes, menos maleáveis fisicamente. Não significa dizer que o

cibertexto apresenta uma estrutura esteticamente superior ou inferior, mas que transporta a

experiência estética para outras formas de contato com a obra.

Há obras que parecem se comportar para além do simples processo de ligações entre

conjuntos de textos, conforme a definição mais usual de hipertexto. Em Solitaire18, há indícios do

que se poderia chamar de uma cibernarrativa. Neste jogo transformado, o leitor faz o papel de

autor de uma obra que está contida em um conjunto de cartas. Estas, por sua vez, são

apresentadas em grupos de três por vez ao leitor, que escolhe como irá ordená-las. À medida que

faz as escolhas, o leitor constrói sua própria história e, ao final, pode escolher registrá-la em uma

galeria. A galeria poderia ser mais interessante se fosse aberta para que todos pudessem trabalhar

as histórias ali expostas. Afinal, o texto em cada carta não muda, apenas a posição delas nas

diversas histórias. Ou seja, a recombinação permitida pelo suporte eletrônico transporta para a

17 “En este tipo de juegos, un ‘narrador’ (storyteller) prepara el esqema de una historia y ejerce de árbitro regulando las acciones de los jugadores, que actúan de personajes de la historia. Los jugadores hablan y van solucionando los conflictos que les plantea el narrador, como si fueran actores en una película pero tuvieran que ir inventando el guión a cada paso; (...)de este modo, la historia se cuenta entre todos, aunque siga un esquema básico de posibles acciones e encuentros preparados por el narrador, que controla hasta cierto punto el desarrollo de la historia.” 18 Disponível em http://www.turbulence.org/Works/solitaire/index.html. Acessado em 24/05/2007.

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estrutura física da obra a mesma recombinação que um processo de leitura pode criar, ao se ver

diante das mesmas cartas. Essa é a proposta, por exemplo, de “O castelo dos destinos cruzados”,

de Ítalo Calvino (1991). Várias histórias, contadas com um mesmo baralho, e que podem

inclusive se entrecruzar, como de fato acontece na obra de Calvino. A diferença entre os

processos reside no fato de que em Solitaire são os leitores que criam a obra e, na obra de

Calvino, é ele que estrutura todas as histórias que ali se encontram. O que muda, então, é o modo

de fazer aparecer o que seria próprio de um processo hipertextual, o entrecruzamento de diversas

histórias. Novamente, o hipertexto surge como característica do processo de autoria/leitura da

obra, e não como algo que reside encerrado na obra. Ou seja, o hipertexto pode ser caracterizado

como uma estrutura discursiva multilinear, que aponta para uma multiplicidade de possibilidades

de construção e leitura (Palácios, 1999)19.

Jay David Bolter (2001) discute o hipertexto a partir do conceito de remediação do

impresso, o que parece uma abordagem mais cuidadosa do que aquelas que afirmam o caráter

completamente novo e sem paralelo das obras hipertextuais em relação à literatura em meio

impresso. Ainda que alguns excessos se possam verificar na discussão realizada por Bolter, há

uma tentativa de definir o hipertexto como um processo não diferenciado do que se pode fazer

com a escrita em meio impresso.

“Na sua rivalidade com o impresso, o hipertexto se apresenta como uma intensificação, uma hipermediação de um meio mais antigo. Quando Nelson deu o nome hipertexto ao textos interligados digitalmente, ele queria indicar algo como um ‘ne plus ultra’ do texto. Ao seguir ligações hipertextuais, o leitor torna-se consciente da forma do meio em si e das suas interações com ele. Em contraste, o impresso tem sido reconhecido geralmentecomo um meio que deveria desaparecer das considerações conscientes do leitor.” (tradução nossa) (BOLTER, 2001, p. 43)20 .

O excesso na citação acima parece ser a tentativa de rivalizar o meio impresso com o

hipertexto, mas é inegável considerar que a abordagem de Bolter indica o hipertexto como uma

intensificação do que já acontece no meio impresso. Essa perspectiva não é diferente da que é

adotada nessa tese, qual seja, a de que o hipertexto não deve ser considerado como um produto,

19 Disponível em http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/1999/1999_mp.pdf. Acessado em 11/10/2007. 20 “In its rivalry with print, hypertext presents itself as an intensification, a hypermediation, of the older médium. When Nelson gave the name hypertext to linked digital texts, he meant, something like the ‘ne plus ultra’ of text. In following hypertexual links, the reader becomes conscious of the form of medium itself and of her interaction with it. In contrast, print has often been regarded as a medium that should disappear from the reader’s conscious consideration.”

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mas como um processo que pode ser encontrado em diversas obras, de maneira mais ou menos

intensa. Jane Yellowlees Douglas (1992)21, ao comparar experiências de leitura em textos

impressos e em textos em meio eletrônico, parece indicar o mesmo caminho, ao afirmar que as

narrativas hipertextuais exigem que os leitores realizem uma imersão nas redes de possibilidades

narrativas e consigam se libertar dessas mesmas redes, a fim de compreenderem as narrativas

como uma estrutura de possíveis estruturas.

Jay David Bolter indica ainda uma outra qualidade do processo hipertextual em meio

eletrônico, muito próxima do que Cláudia Giannetti denomina polissensorialidade, bem como

próxima das afirmações de Barthes sobre a relação entre obra e texto. Bolter defende o fato de

que o hipertexto em meio eletrônico promove uma ruptura da hierarquia entre o visual e o verbal

e permite uma reconfiguração da relação entre esses elementos numa obra em meio eletrônico.

Entretanto, mais uma vez o autor posiciona sua argumentação dentro de uma análise mais ampla,

que reconhece o poder do hipertexto em meio eletrônico de resgatar processos antigos de escrita,

em que era possível verificar relações não-hierárquicas entre visual e verbal, ou mesmo relações

em que a hierarquia apareceria invertida (o visual não serviria apenas para ilustrar ou completar o

verbal). “Hipermídia pode ser reconhecida como um tipo de escrita pictórica, que remodela as

qualidades tanto da escrita pictórica quanto da escrita fonética”.(tradução nossa) (BOLTER,

2001, p. 58)22 . Como bem diz Bolter, os manuscritos medievais apresentavam arranjos visuais

bem mais complexos que os primeiros livros impressos. Nesses, a imagem era controlada pelo

verbal e devia funcionar como complemento de uma obra feita, em larga medida, a partir do

verbal. Ao longo do tempo, os livros adquiriram várias marcas visuais para orientar o leitor

através da massa de elementos verbais, mas ainda nesses casos o que se pode constatar é que a

informação visual aparece subordinada à informação verbal, fisicamente. Em termos de

interpretação, a discussão é de ordem completamente diversa da que se realiza aqui. Antes

mesmo de pensar o hipertexto em meio eletrônico, é possível perceber que os livros impressos

atuais buscam também uma reorganização entre os elementos verbais e visuais, talvez buscando

resgatar formas expressivas de outrora. O que parece próprio do meio eletrônico, e nesse sentido

se pode falar de uma intensificação do que acontecia nos manuscritos medievais, é a fluidez do

material digital, de modo que texto e imagem podem se fundir e se metamorfosearem, pois são

21 Disponível em http://web.nwe.ufl.edu/~jdouglas/perforations.pdf. Acesso em 11/10/2007. 22 “Hypermedia can be regarded as a kind of picture writing, which refashions the qualities of both traditional picture writing and phonetic writing.”

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agora dígitos numa memória também digital. Assim, o meio eletrônico parece permitir um tipo de

experiência que remete a formas de “escrita” e “leitura” não mais restritas ao código verbal.

“O uso de imagens para a comunicação cultural não apresenta nada de novo. Mesmo antes da invenção da imprensa escrita, já havia sido desenvolvido, na Idade Média, uma sofisticada iconografia que substituía as palavras para uma audiência, em sua maior parte, iletrada. Uma catedral medieval era realmente um complexo texto hipermidiático, disposto num espaço sagrado para que a comunidade pudesse lê-lo.” (tradução nossa) (BOLTER, 2001, p. 54)23.

O hipertexto em meio eletrônico pode ser visto então como um resgate de experiências

associadas a outros tipos de suporte e mesmo com a experiência de “leitura” de ambientes físicos,

como no caso das igrejas. Tal resgate intensifica a experiência pela desmaterialização do suporte

eletrônico e pelo constante movimento físico do hipertexto na tela do computador. A obra digital

reforça o caráter de rede presente em obras impressas, as quais também fazem parte de um

processo de conexão entre várias obras impressas, mesmo que as segundas obras não sejam

ligações dentro da obra original. O suporte digital pode ser considerado, dessa maneira, uma

estrutura física em rede, nas quais as obras são processuais e não mais produtos acabados em

termos físicos. Ollivier Dyens (2003) considera as obras em rede semelhantes às glosas da Idade

Média, com sua mistura de textos, imagens em formatos alineares e afirma ainda que o suporte

para essas obras é a navegação, e não o livro, a interface, a tela etc. Essa perspectiva permite

afirmar a literatura em meio eletrônico como uma experiência que transporta para a existência da

obra aquilo que acontece quando o leitor produz um texto: a produção de interpretações pode

funcionar para interferir no caráter físico da obra. E mais, a obra em rede possui um caráter

fugidio próprio da construção de textos, como afirma Barthes, em que as interpretações não

reduzem a obra escrita e nem se reduzem a ela. Entender o hipertexto, o cibertexto e as

cibernarrativas como obras em e da rede, sem querer conferir a essa relação uma idéia de

evolução, significa afirmar a efemeridade dos produtos criados com tais processos e, portanto,

reforçar o caráter processual deles.

A efemeridade é uma experiência própria da interpretação, ainda que não se queira afirmar

que as interpretações não possam durar o tempo de uma vida. Antes, por efêmero quer se

23 “The use of images for cultural communication is nothing new. Even before the invention of the printing press, the Middle Ages had developed a sophisticated iconography that served in the place of words for a largely illiterate audience. A medieval cathedral was indeed a complex, hypermediated text displayed in a sacred space for the community to read.”

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enfatizar o caráter não-material de qualquer interpretação e, logo, a sua independência de um

suporte físico. Considerar o hipertexto como uma característica associada ao processo de escrita e

leitura, sem que seja necessário definir um suporte, permite também afirmar a multilinearidade

contida em experiências com hipertextos em meios eletrônicos. Além disso, se em obras em meio

eletrônico é possível registrar as interpretações, ou seja, os textos derivados da leitura de obras, é

preciso discutir também de que maneira o meio eletrônico intensifica a experiência e a presença

do leitor na obra. Nesse sentido, o conceito de cibertexto, conforme desenvolvido por Aarseth

(1997) apresenta-se como uma derivação natural da discussão até aqui empreendida.

Por que pensar o cibertexto a partir da experiência de escrita e leitura? Porque ele não é

uma obra pronta, que pode ser dissecada, ou que dá a ilusão de poder sê-lo. Parte-se aqui da

premissa que considera o cibertexto como processo, como obra sempre em construção, como um

acontecimento. Essa proposição, que pode ser encontrada na discussão que Aarseth realiza sobre

cibertexto, aproxima-se bastante da noção de Iser sobre o texto literário como acontecimento.

O conceito de cibertexto, conforme discutido por Aarseth, baseia-se em uma argumentação

consistente para discutir uma definição mais ampla, qual seja, a do que seria a cibernarrativa. O

autor procura realizar uma aproximação em direção ao cibertexto tomando como premissa a idéia

de uma literatura ergódica. Ou seja, o processo cibertextual exige um esforço de construção física

da própria obra, o que deixa clara a noção de que as características físicas do meio fazem parte da

experiência da obra. Quando Aarseth menciona o termo ergódico, o objetivo é reforçar o ato

físico de construção dos significantes no cibertexto por aquele que irá experimentá-lo. Alckmar

Luiz dos Santos (2003) parece propor o mesmo quando sugere pensar as práticas de arte

contemporâneas – o cibertexto estaria aí incluído – como produção de possibilidades de produção

de materialidades. Trata-se de enfatizar os processos de produção e circulação de significantes, de

negociação entre aqueles que experimentam a obra e podem modificar suas condições de

existência e, portanto, de produção.

Tendo em mente essa proposição, o ato da leitura do cibertexto é o ato de um jogador, de

alguém que aposta em determinadas estratégias de construção topológica da obra; de construção,

em primeiro lugar da materialidade da obra. O cibertexto seria uma máquina de produzir

variedade de expressões (Aarseth, 1997). Se cada escolha de leitura gera um processo de

significância, no cibertexto cada escolha implica uma mudança física da obra que irá gerar o

texto. Dessa maneira, o primeiro processo de significação é aquele em que o leitor escolhe quais

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os significantes farão parte da obra que irá ler. No caso de uma obra em meio digital, os

significantes compreendem desde a palavra na tela até uma animação em que imagens misturam-

se com sons e outras palavras. Essa forma de trabalhar com o cibertexto permite pensar que o tipo

de imersão aqui presente sugere uma entrada na obra, na materialidade do que virá a existir.

Entretanto, tal obra já se transforma quase que instantaneamente em texto, que volta a ser obra e

assim sucessivamente. Aqui parece acontecer a reversibilidade entre obra e texto, como aquela

descrita por Merleau-Ponty (2003) entre visível e invisível e entre espaço e tempo.

Ainda como uma aproximação do que seria o cibertexto, Aarseth (1997) o considera como

uma perspectiva para explorar as estratégias comunicacionais de textos dinâmicos. Tomando tal

conceito como base, pode-se dizer que o cibertexto seria uma relação e não uma forma

espacializada e fixada através de um grupo de significantes.

Se o cibertexto baseia-se nas estratégias comunicativas de textos dinâmicos, já parece ser

possível, ao menos, utilizá-lo para discutir algumas experiências, como os MUDs (ambientes

construídos através de estratégias textuais) e os games de estratégia de última geração. É

necessário não deixar de mencionar formas de cibertexto que não são necessariamente digitais ou

eletrônicas, como Cent mille milliards de poèmmes, de Raymond Queneau. Aarseth acrescenta

um dado importante em relação aos sistemas de formas digitais de textualidade ergódica: a

separação física entre obra armazenada e superfície de leitura. A imersão que o receptor

participante experimenta, na maioria dos casos, não acontece no nível da obra armazenada, mas

numa primeira derivação do código digital. Romper essa distância, permitindo a esse receptor

alterar a obra armazenada, talvez seja o primeiro passo em direção a uma outra possibilidade ou

perspectiva de imersão.

A definição que Aarseth propõe para o cibertexto permite trabalhar textualidades como

estratégias de comunicação,

“Cibertexto é uma perspectiva em todas as formas de textualidade, uma forma de expandir os estudos literários para incluir, no campo da literatura, fenômenos que são percebidos como não pertencentes ao campo, ou marginalizados. (...) eu investigo o comportamento literário de certos tipos de fenômenos textuais e tento construir um modelo de comunicação textual para acomodar qualquer tipo de arte”. (AARSETH, tradução nossa, 1997, p. 18).24

24 “Cybertext is a perspective on all forms of textuality, a way to expand the scope of literary studies to include phenomena that today are perceveid as outside of, or marginalized by, the field of literature – or even in opposition to it, for (as I make clear later) purely extraneous reasons. In this study I investigate the literary behavior of certain

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O forte componente relacional implícito nessa sugestão indica a necessidade de

experimentar a obra para que ela possa ser percebida também como um modo de mediação para

uma experiência. A obra não é somente uma experiência em si, mas é uma relação que permite

estabelecer a experiência, de forma indireta, com o Ser, conforme descrito por Merleau-Ponty.

Considerar uma obra como um modo de mediação, no presente estudo, permite vê-la como capaz

de comportar espaço e tempo conjuntamente, numa relação dinâmica.

O autor também considera o cibertexto como um sistema em que três partes se combinam

para formar vários tipos de texto. Os três elementos seriam: os signos verbais, o meio através do

qual esses signos podem ser trabalhados e o operador humano. As fronteiras entre esses três

elementos são fluidas e podem ser constantemente transgredidas. Mas os textos só se tornariam

visíveis na relação entre os três elementos.

Aarseth utiliza os termos textons e scriptons para detalhar os componentes de um texto.

Segundo sua definição, os scriptons são o que o leitor ideal deve ler se seguir a estrutura

conceitual proposta, embora não sejam aquilo que o leitor realmente lê. Os textons são o conjunto

de significantes que compõem a parte material da obra. Parece ser possível, por analogia,

trabalhar com os textons e scriptons como se fossem obra (parte material) e texto (diversas

leituras que uma mesma obra pode receber), respectivamente. E, mais ainda, com espaço

(textons) e tempo (scriptons). Os textons parecem ser de uma ordem mais próxima da

organização espacial do código, enquanto que os scriptons relacionam-se com o aspecto temporal

de cada obra, com o movimento que os leitores exercem sobre a obra e com os movimentos que a

obra enseja no leitor.

Do cruzamento entre os textons, os scriptons e as funções que o leitor tem à sua disposição,

é possível descrever como o cibertexto funcionaria. Um cibertexto deve permitir que os textons

que o compõem possam ser adicionados ou retirados pelo usuário, além de permitir que os

scriptons a serem criados também sejam parcialmente escolhidos pelo leitor. Além disso, todo e

qualquer cibertexto comportaria também uma função interpretativa, relacionada aos diversos

significados que o leitor pode encontrar no texto. Segundo essa proposta, o cibertexto poderia

comportar códigos verbais, visuais e sonoros e não depender de uma existência eletrônica. Antes,

types of textual phenomena and try to construct a model of textual communication tha will accommodate any type of text”.

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a perspectiva aqui é muito mais próxima dos movimentos que o leitor pode ou não fazer em

conjunto com outros leitores e com a própria obra. Ou seja, o cibertexto seria uma produção que

demandaria uma ação sobre a obra, que possuiria função ergódica. Aarseth (1997) define a

função ergódica como uma situação em que uma cadeia de eventos (um caminho, uma seqüência

de ações) foi produzida por esforços incomuns de um ou mais indivíduos ou mecanismos.

A proposta de Aarseth, de investigar as obras ergódicas como máquinas textuais, as

posiciona como conjunto de relações entre dimensões. Essa aproximação em termos de

dimensões permite trabalhar as cibernarrativas como compostas de n variáveis, que não podem

ser isoladas entre si, embora apresentem diferenças. É possível, também, discutir a relação entre

espaço, tempo e as categorias de Aarseth. Ao aprofundar a análise sobre o controle da obra por

alguma das dimensões tradicionais (autor, texto ou leitor), Aarseth apresenta o exemplo de “Book

Unbound”, em que o texto é controlado pelo equilíbrio das relações entre essas três fontes de

autoridade. Novamente, a dimensão relacional permite perceber que tanto obras quanto textos

não são objetos puros.

Os cibertextos, segundo a proposição de Aarseth, possuiriam dimensões para-verbais, além

de serem considerados “máquinas” para produção de variedades de expressões. Essa segunda

perspectiva permitiria considerar o cibertexto como uma obra em que a imersão se daria sempre

no cruzamento das fronteiras entre os meios (verbal, não-verbal etc). O cibertexto não seria

somente um meio através do qual algo é expresso, mas a própria fundação da possibilidade de

expressão. Mas, em que sentido isso seria possível?

Na experiência de criação do cibertexto, no ato da produção de sua materialidade, o que o

autor produz ou vivencia é uma imersão na obra, mas não na forma que esta irá tomar para o

leitor exclusivamente. O cibertexto possui potência e abertura suficientes para permitir ao autor

criar condições de possibilidades de produção de obras e não somente as obras em si. O autor

pode tornar-se um meta-autor. Nesse sentido, seria o responsável por criar dispositivos de escrita

que podem ser utilizados pelos leitores para modificar a própria obra que ainda não apareceu

como um todo. Talvez possa se pensar aqui em um movimento de imersão que tem sua origem na

obra e tem como um dos resultados as várias possibilidades de obras que os leitores podem

construir. A obra “Paisagem Zero”25, de Giselle Beiguelmann, apresenta uma possibilidade para

pensar a autoria como um estranho atrator, nos dizeres de Alckmar Luiz dos Santos (2003). O

25 Disponível em http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/paisagem0/, acessado em 06 de abril de 2004, às 20:27.

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autor seria metaforizado como um atrator em torno do qual os significantes seriam instalados em

um campo de sentidos possíveis. O que a criadora do sítio faz é propor um trabalho a partir dos

significantes originais, da mesma maneira que Alckmar pontua em sua descrição do autor como

estranho atrator. É como se Giselle houvesse visualizado diversos textos a partir de uma obra

possível e, em vez de terminar a obra, partisse desses textos para propor significantes a serem

trabalhados. Ao leitor/experimentador do sítio é proposto criar obras e não somente textos, ou

ainda, primeiramente criar as obras e depois usufruí-las também como textos. Se os significantes

podem ser relacionados de modo mais próximo com o espaço de onde surgirá o texto, e este pode

ser relacionado com as dimensões temporais que uma obra contém, a meta-autora de “Paisagem

Zero” realiza um movimento que vai do texto à obra e daí aos significantes. Inverte o processo

tradicional de significação, que parte do encontro de significantes já organizados e que sugerem

possíveis significações.

O autor aqui funciona não como uma pessoa empírica, mas muito mais como uma função

da própria obra. E o leitor pode, no cibertexto eletrônico, acessar essa função e dispor dela para

realizar uma leitura que é também criação de uma obra. A instabilidade dos significantes no

cibertexto, como condição fundadora de sua própria materialidade, é uma possibilidade para

pensar que a imersão, em um cibertexto de base eletrônica, acontece no movimento físico entre o

espaço (obra) e o tempo (texto).

No caso da leitura, propõe-se pensá-la como uma experiência relacionada ao processo de

criação de possibilidades de produção em um cibertexto eletrônico. Significa pensar que a leitura,

num cibertexto, cuja característica é a de ser uma obra que exige ação física do leitor, pode

originar outras escritas para a obra e pode, assim, permitir ao leitor realizar um processo de

imersão que é diverso daquele tradicional de encontrar significações em obras já terminadas

materialmente. Aarseth discute essa questão quando defende que

“No cibertexto, entretanto, a distinção é crucial – e muito diferente; quando você lê a partir de um cibertexto, é constantemente lembrado das estratégias inacessíveis e dos caminhos que não seguiu, das vozes que não escutou. Cada decisão tornará algumas partes do texto mais acessíveis e outras menos, e você nunca saberá exatamente o resultado exato de suas escolhas; isso é, o que você perdeu exatamente. Isso é muito diferente das ambigüidades do texto linear. E a inacessibilidade, é preciso reforçar, não implica ambigüidade, mas falta de possibilidade – uma aporia”. (tradução nossa) (AARSETH, 1997, p. 3).26

26 “In a cybertext, however the distinction is crucial – and rather different; when you read from a cybertext, you are constantly reminded of inaccessible strategies and paths not taken, voices not heard. Each decision will make some

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O cibertexto, na visão de Aarseth, leva o leitor a ser um receptor-participante, um

interventor na obra, através do texto que escolhe. E essa obra derivada da experiência não é

somente uma interpretação, é uma intervenção na primeira obra que surgiu. É como se o

cibertexto fizesse o leitor atravessar as várias camadas temporais que repousam no fundo de toda

obra. Ou melhor, experimentasse uma reversibilidade como a que descreve Alckmar Luiz dos

Santos.

“Entre leitor e autor se estabelece uma duplicidade anterior à materialização da linguagem em forma de escrita: o leitor que sou agora de um dado texto busca, num primeiro momento, a perspectiva do autor que eu já era de minhas palavras; já o autor de quem julgo receber o texto não é apenas o outro que produziu esse texto, mas é também uma dada maneira de manifestar a originalidade com que me insiro na língua por meio desse texto e dessa linguagem”. (SANTOS, 2003, p. 77).

À medida que lê, o leitor deve perceber o seu percurso de leitura, a forma como lê, o jeito

de ler. Assim, ele constrói a obra a ser lida e essa construção o torna um pouco autor dessa obra

que ali se oferece para ser experimentada.

Alckmar Luiz dos Santos (2003), ao propor o texto eletrônico como produtividade, parece

falar de uma literatura ergódica. No processo de navegação de um texto a outro, através de

ligações, haveria não um texto primeiro e um texto segundo, fixados como tais, mas uma relação

em que o segundo texto se dá a ler de acordo com o grau em que evoca ou não o primeiro texto.

Do processo de diferenciação e das ações exercidas pelo leitor entre os dois textos surgiria um

texto terceiro, que seria o texto como produtividade, um texto que o próprio leitor se dá a ler,

ainda que tal texto não seja materializado em forma de obra, mas que exista apenas no ato de

transposição entre um e outro texto, seja do primeiro para o segundo ou vice-versa. Ao leitor

compete delinear a fisionomia do texto produzido por sua leitura, de modo também a criar uma

obra que poderá se desdobrar em outros textos, de acordo com os movimentos de outros leitores.

Para pensar a relação entre uma pretensa cibernarrativa, o tempo e espaço, pode-se partir da

proposição esboçada por Alckmar Luiz dos Santos em “Leituras de nós”.

“O que ocorre com a mudança da base material, da página impressa para o meio eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa contaminar

parts of the text more, and other less, accessible, and you may never know the exact results of your choices; that is, exactly what you missed. This is very different from the ambiguities of a linear text. And inaccessibility, it must be noted, does not imply ambiguity but, rather, an absence of possibility – an aporia.”

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pela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela não-linearidade que foram, sempre, as do próprio texto. Aquilo que no texto é intertextualidade, no livro eletrônico encontra correspondência na pluralidade de percursos e na heterogeneidade de materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons etc.)”. (SANTOS, 2003, p. 22).

A fluidez de que se contamina a obra reforça uma possível reversibilidade e co-operação

entre espaço (obra, materialidade do suporte) e texto (percurso derivado da leitura e

experimentação do texto) no cibertexto. Este, por sua vez, seria construído pelo próprio

ciberespaço, por uma base material – o livro eletrônico; e o próprio texto (Santos, 2003). Essa

forma de construção indicaria uma análise da obra digital em seu dinamismo, naquilo que se

refere aos modos de produção de possibilidades de uma obra. Esses modos seriam a ordem plural

de escritas e leituras, a reversibilidade entre o espaço da obra e o tempo do texto, o constante

movimento entre os três elementos sugeridos por Aarseth para discutir a obra em meio eletrônico.

Pensar e produzir um cibertexto relaciona-se, segundo essa proposição, com uma

construção sempre provisória em que os gestos de escrita e leitura são realizados diante de

imagens, ícones, movimentos e processos que podem ser manipulados, de forma a comportarem

também os deslocamentos que autor e leitor realizam durante a construção de um texto. A

criação de um cibertexto, dessa maneira, deveria ser capaz de preservar a intersubjetividade que

existe em todo ato de linguagem, fazendo dela o ponto de equilíbrio inconstante na produção de

um saber internético. (Santos, 2003). O cibertexto intensifica o aspecto relacional existente entre

todo ato de escrita e leitura, transferindo também para a obra a construção de textos, antes restrita

somente a processos interpretativos. Assim, a produção de cibertextos, ou seja, a construção de

cibernarrativas é, antes de tudo, a construção de espaços de imersão similares à imersão

emocional experimentada por um leitor no ato de leitura. Entretanto, as cibernarrativas permitem

deslocar a imersão do seu aspecto puramente emocional e sugerem ao leitor uma imersão física

na obra, mas não no seu caráter de espaço pronto a ser explorado e, sim, no seu caráter temporal,

relacional.

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5 IMERSÃO: UM CONCEITO RELACIONAL

5.1 Ilusão e imersão na arte virtual

O conceito de imersão apresentado procura conjugar quatro aspectos centrais para essa tese:

a fenomenologia do ato de leitura, a relação entre tempo, espaço e narrativa, as noções sobre uma

poética da imersão e a relação entre imersão e arte virtual. Essa última relação terá como base a

experiência de imersão na história da arte até o surgimento da arte virtual, enquanto a noção de

poética de imersão permite relacionar o conceito com narrativas em meio digital. Devido ao

trânsito das cibernarrativas entre os códigos verbais, imagéticos, sonoros e digitais, parece

prudente tentar uma abordagem capaz de conjugar os aspectos indicados, com o objetivo de

retirar desse cruzamento um conceito capaz de fazer jus ao título do capítulo e apresentar a

imersão em seu aspecto relacional (imersão e a relação com o espaço e o tempo; imersão na arte

virtual; imersão na literatura, a partir da teoria do efeito estético e, finalmente, a imersão no

código digital, baseada na manipulação do código e das camadas temporais que compõem a

obra).

A imersão acontece sempre no visível e no invisível, de acordo com as relações que se pode

estabelecer com o espaço e o tempo. Ela possui um forte componente relacional, um caráter de

entrelaçamento que se configura como constituinte do próprio conceito. Tal caráter advém da

própria maneira como espaço e tempo são propostos nessa tese: como relação entre visível e

invisível, como fundo e figura que são indistintos, embora se diferenciem de acordo com a

experiência. A cibernarrativa, ao permitir o acesso a um tempo pré-figurado, coloca em questão

justamente a relação entre tempo e espaço.

Ao discutir a experiência de Matisse na pintura, Merleau-Ponty diz que o pintor não

precisou calcular os gestos possíveis para executar o ato com o pincel. O pintor já estava

instalado na tela aberta, executava-a imerso dentro dela e, ao mesmo tempo, do lado externo da

mesma.

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Quando se pensa em Matisse instalado num tempo e numa visão humanos, é possível

imaginar que a experiência de criação é também uma forma de mediação entre o pintor e o

mundo. É um contato que instaura a possibilidade de percepção da “carne” do mundo, do Ser

selvagem, de maneira sempre inacabada. Há várias formas de experimentar o que o olhar e o

toque humanos percebem, na sua relação constante de formação e de formadores do visível e do

invisível. Não se trata, porém, de igualar tais formas a aparelhos técnico-biológicos que

estabelecem a relação entre sujeito e objeto, mas de compreender que a mediação é inerente à

própria experiência, bem como esta permite compreender o papel dos sentidos como modos de

mediação com a carne do mundo. A aproximação sugerida com o termo “modos de mediação”

permite discutir a escrita e a leitura como mediações correlatas da experiência do sensível.

Mediações que acontecem através do gesto da pena, do gesto do pincel, do surgimento e

desaparecimento dos caracteres na tela do computador.

Em cada uma dessas experiências descritas acima, é possível discorrer sobre como o espaço

e o tempo surgem nas obras e nos textos criados. Ou seja, espaço e tempo servem como

condições para e na percepção da experiência. Como já discutido anteriormente aqui, espaço e

tempo relacionam-se com o suporte numa condição de co-operação e não de subordinação. A

proposta é pensar como espaço e tempo surgem no ritmo da poesia, nas utilizações dos tempos

verbais, na sua presença nos cortes do cinema, no ritmo das imagens em vídeo, nas ligações

realizadas entre palavras e imagens no hipertexto, no som que uma palavra emite ao ser vibrada

pelo mouse. A partir dessa perspectiva é possível pensar de que forma o suporte torna

perceptíveis o espaço ou o tempo, no momento da criação da obra ou do texto. Afinal, se o

tempo sustenta a mobilidade do olhar para as coisas, é porque se encontra sustentado por essa

relação, e não independentemente dela. E a mobilidade do olhar pode processar-se através de

diversos suportes, que irão alterar o modo como o tempo pode ser percebido, mesmo que

indiretamente, pelo olhar. Essa mesma descrição pode ser utilizada para discutir a percepção do

espaço, posto que este coexiste com o tempo na experiência de criação de uma obra.

As formas espaciais que surgem na utilização de um determinado suporte não são puras,

mas possuem uma materialidade mais condensada no terreno do visível (espaço) e menos no

campo do invisível (tempo). No ato da escrita há sempre um movimento de testar a materialidade

do que se tem em mãos para mediar uma experiência sensível. De acordo com os significantes

que se utiliza, é possível perceber uma imersão do escritor mais próxima do espaço ou mais

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próxima do tempo. Essa experiência também estará disponível ao leitor, mas a proposta aqui é

pensar que o primeiro leitor de uma obra é o seu próprio autor, ainda que essa leitura aconteça

porque o autor percebe que já existe um texto que fala através de si. A leitura a que se faz

referência não é ainda aquela que será derivada da ou das revisões a que o autor submete o seu

próprio texto, mas da percepção do autor, no momento mesmo em que escreve, de que há um

texto sendo escrito por entre as palavras que utiliza, um texto que se escreve através do ato desse

autor. O movimento que ele realiza entre os significantes utilizados seria também a razão para

perceber sua obra como uma ação orientada por um motivo, que é “origem” e também

continuidade dessa ação.

A obra criada comporta sempre a sua visibilidade, e também as suas metamorfoses, pois

não se sedimenta indefinidamente em uma de suas representações. Quando um determinado

significante é utilizado, a sensação de cristalização do tempo nesse significante pode se fazer de

forma quase que intransponível, como se o significado de uma palavra estivesse sempre presente

ali, no momento em que ela surge no papel. A “quebra” dessa cristalização pode se produzir de

diversas maneiras: na continuidade do ato de escrever, na torção do material utilizado, na

investigação dos limites espaciais do suporte empregado. Em cada um desses momentos, a escrita

é capaz de conduzir a imersão para sua presença no tempo.

O ato de criação vincula-se tanto à imersão no espaço como à imersão no tempo. Nesse

sentido, a obra será entendida como entrelaçamento, como um visível que está além e aquém do

sujeito, mas que se efetua no e através dele. O que permite dizer que o material que o escritor

encontra como modo de mediação da sua experiência é também a origem da obra.

Para pensar a imersão no espaço ou no tempo, é preciso não perder de vista o caráter

indissolúvel dessas duas experiências, bem como compreender a diferença que existe entre elas.

São dois momentos de uma mesma experiência. No caso de uma obra permitir essa percepção, tal

obra deveria assemelhar-se ao que Merleau-Ponty indica sobre Cézanne. Seria preciso entender a

imersão que surge quando a obra aparece em um dado suporte como apenas um momento da

matéria ao tomar forma, apenas um momento entre a ordem espontânea das coisas e a ordem

humana das idéias e das ciências. A pintura de Cézanne irá buscar justamente os limites do

material à disposição, como que procurando conjugar, na experiência da imersão, o equilíbrio

entre espaço e tempo.

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Na criação de uma obra como modo de mediação da experiência do sensível, o autor

experimenta o aspecto físico do suporte como possibilidade de percepção do tempo, da

experiência. Paradoxalmente, imerge em relações espaciais e não nas coisas espacializadas,

penetra de forma mais aguda no tempo. Entretanto, em cada suporte, esse autor consegue captar

de maneira diferenciada as camadas que irão constituir o simultâneo que vivencia na experiência

do ser.

Ao discutir o ato da criação como possibilidade de contato com o Ser, Chauí diz que se os

trabalhos do artista, do pintor e do escritor são criadores é porque

“... tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes garanta acesso ao Ser, pois é sua ação que abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser”.(CHAUÍ, 2002, p. 152).

Há, então, no ato de criação, uma sempre constante experiência com o tempo, para a qual as

vias de acesso acontecem no próprio caminhar. Ainda que os modos de mediação não se

apresentem de antemão, e tendo essa afirmação como ponto inicial, é possível pensar o suporte

como capaz de realizar essa passagem em direção ao Ser, ainda que de forma indireta. O suporte

não deve ser considerado nem meio de acesso somente, nem condição fundadora da experiência.

É um ponto de contato entre o mundo e aquele que tem a experiência desse mundo, com o texto

em que a obra será desdobrada e, por isso, meio de acesso e condição fundante da percepção,

simultaneamente. Opera no suporte a mesma continuidade-descontinuidade que acontece na

passagem de uma experiência a outra, no dizer de Merleau-Ponty, citado por Chauí: “Nem

simples desenvolvimento de um porvir implicado em seu começo, nem simples efeito de uma

regulação exterior...” (MERLEAU-PONTY apud CHAUÍ, 2002, p. 85).

Nesse sentido, um suporte que permita a conjugação das várias camadas com que a

experiência se dá a perceber seria capaz de uma vibração intensa. Essa experiência, por sua vez,

traria no seu bojo uma possibilidade de imersão cujo contato seria próximo da experiência da

temporalidade, dessa continuidade-descontinuidade incessante presente em toda obra.

Como afirma Marilena Chauí,

“O sentimento de querer-poder e da falta suscita a ação significadora que é, assim, experiência ativa de ação do indeterminado: o pintor desvenda o invisível, o escritor quebra o silêncio, o pensador interroga o impensado. Realizam um trabalho no qual vem exprimir-se o co-pertencimento de uma intenção e de um gesto inseparáveis, de um

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sujeito que só se efetua como tal porque sai de si para ex-por sua interioridade prática como obra. É isso a criação, fazendo vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de experimentá-lo”.(CHAUÍ, 2002, p. 153).

O suporte em si não sustenta a experiência sensível. É através das relações que propõe que

as lacunas podem ser percebidas. Ao mesmo tempo, a fruição ou contato com a obra não deverá

basear-se na concepção de preenchimento. Os textos que uma obra permite não estão desde o

início contidos em sua estrutura. À medida que as diferenças são percebidas, a experiência da

imersão se desloca do espaço para o tempo. Nesses momentos, o Ser Bruto se deixa sentir, tocar

de maneira oblíqua, pois não está ali para ser preenchido, mas sim para sustentar a relação

(Chauí, 2002). É a partir dessa forma de enxergar a imersão que se pretende relacionar a imersão

na arte virtual com a imersão na literatura em meio digital. Entretanto, as perspectivas adotadas

pelos autores escolhidos serão analisadas na tentativa de ultrapassagem da noção de

envolvimento emocional presente em cada uma delas. Ou seja, a imersão a ser considerada como

específica da cibernarrativa é aquela em que autores e leitores constroem o ambiente imersivo

porque estão, simultaneamente, envolvidos por ele e porque conseguem perceber, mesmo que de

maneira indireta, como se dá esse envolvimento. Como afirma Paul Ricoeur (1994), o tempo

percebido é um tempo humano, construído através da narrativa que se cria dele. Autores e leitores

estão instalados no tempo e desse lugar é que constroem uma percepção “externa” do tempo que

passa.

Uma das maneiras de pensar a imersão na arte virtual é baseá-la no envolvimento

emocional completo do espectador em um mundo virtual já pronto. Nas reflexões iniciais sobre

arte virtual e imersão, Oliver Grau (2003) destaca alguns aspectos centrais para a relação desses

dois elementos, quais sejam: a possibilidade de poder “entrar” na imagem e intervir criativamente

no espaço da imagem, em tempo real; a remoção das fronteiras e da distância psicológica entre o

observador e o espaço da imagem; a possibilidade, num espaço interativo virtual, de modificar os

parâmetros de tempo e espaço e, assim, remodelar o próprio ambiente imersivo; a não rigidez do

ponto de vista sobre o ambiente imersivo, composto por inúmeras perspectivas possíveis,

manipuláveis fisicamente pelo observador; e, finalmente, a diminuição da perspectiva crítica e

um aumento do envolvimento emocional sobre o que acontece no ambiente imersivo, na arte

virtual.

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Uma leitura transversal sobre as quatro características anteriores indica um processo em

que a preocupação inicial é aproximar um determinado objeto artístico e aqueles que se colocam

a observá-lo, não apenas com o intuito de trabalhar o aspecto ilusório dessa aproximação, mas

fundamentalmente com o objetivo de permitir a esses observadores fazerem parte daquilo que

experimentam. Antes de iniciar essa abordagem, é bastante sugestivo indicar a visão de Marcos

Novak sobre o ciberespaço como fundamento para a proposta de imersão dessa tese:

“O ciberespaço envolve uma inversão no modo corrente de interação com a informação digitalizada. Até o momento essa informação é externa a nós. A idéia do ciberespaço subverte essa relação; estamos, agora, dentro da informação. A fim de realizar essa transição, precisamos ser reduzidos a bits, representados dentro do sistema e, nesse processo, transformados também em informação.” (tradução nossa) (NOVAK, 1991, p. 225)27

Nessa perspectiva, a imersão relaciona-se ao que é processual em um objeto artístico, ou

àquilo que irá torná-lo um objeto, o próprio projeto da sua elaboração. Isso significa pensar a

imersão como processo de construção do próprio ambiente imersivo.

Em sua análise sobre as relações entre ilusão e imersão, Oliver Grau (2003) sugere pensar a

imersão tanto como uma técnica capaz de criar a ilusão de estar “dentro” de uma imagem, quanto

como uma técnica capaz de envolver emocionalmente o leitor, de tal forma que ele se imagine

parte da história que está lendo ou vendo. O autor destaca as pinturas de aposentos como os

primeiros ambientes imersivos criados no mundo antigo. Um componente importante nas

primeiras experiências de imersão na antiguidade seria o envolvimento emocional do espectador,

através da ilusão de colocá-lo dentro da imagem, integrando-o em uma unidade de espaço-tempo

completa, criando um “local” hermeticamente fechado. Tal é o caso das pinturas em paredes, em

que aposentos eram ornados com pinturas representando cenas que se “deslocavam” fisicamente

pelo ambiente, de modo a construir a ilusão de que se estava dentro de uma cena. O espectador

era circundado pelas imagens, feitas a partir de um metro da base do chão, de modo a intensificar

a sensação de imersão. Essa primeira forma de imersão parece ainda bastante distante das

possibilidades de alteração permitidas pelos ambientes cibernarrativos. O tipo de imersão

associado à cibernarrativa parece apontar para o máximo de possibilidades de alteração das

27 “Cyberspace involves a reversal of the current mode of interaction with computerized information. At present such information is external to us. The idea of cyberspace subverts that relation; we are now within information. In order to do so we ourselves must be reduced to bits, represented in the system, and in the process become information anew.”

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técnicas de construção do ambiente imersivo. A imersão seria a submersão no código, mas sem a

necessidade de ilusão, objetivo das pinturas em aposentos.

O surgimento da perspectiva irá conferir um novo impulso às estratégias de imersão,

principalmente através dos artistas italianos. A descoberta renascentista da perspectiva artificial

ajudará a modificar a percepção, até então orientada em função da natureza representacional dos

objetos. Com o auxílio da perspectiva, os artistas podiam representar a natureza também de

maneira objetiva, como ela aparecia ao olho humano, através de leis matemáticas. Percebe-se,

assim, a perspectiva como uma técnica utilizada para intensificar o efeito ilusório causado pela

sugestão de imersão na imagem. Entretanto, a mesma técnica pode também ser compreendida

como uma linguagem específica para criar tal efeito. Ou seja, a ilusão do ambiente imersivo

poderia ser e era criada por uma técnica com forte referência no real, mas agora visto através de

leis matemáticas, manipuláveis pelo artista. Ao chamar a atenção para a perspectiva como

derivada de uma construção técnica, e não derivada de uma expressão da visão natural, Grau toca

no ponto-chave para a presente tese: a evolução das técnicas de imersão em direção a ambientes

com alto grau de ilusão será marcada, ao mesmo tempo, pelo desenvolvimento de mecanismos

codificadores mais complexos, cujos derivados terminam por estabelecer códigos específicos

para a criação de ambientes ou pinturas que sugerem imersão. E, o mais importante, os códigos

irão se estabelecer como conjuntos de regras para posterior manipulação, mesmo por aqueles que

não forem artistas. Há um descolamento entre as regras e o ambiente representado, de modo a

permitir a criação de modelos de aplicação mais genéricos. Posteriormente, serão esses mesmos

modelos os responsáveis por inserir o ponto de vista do observador na composição do ambiente

imersivo. A imersão criada pela perspectiva já apresentava um grau de modificação, em função

das regras que governavam o seu efeito. Poderia-se falar da perspectiva como uma técnica que

enfatiza uma certa participação do espectador em relação ao objeto artístico. No caso das pinturas

barrocas nos tetos das igrejas, por exemplo, a perspectiva demanda um ponto específico a ser

ocupado pelo espectador para a experiência de um efeito imersivo mais intenso. O deslocamento

espacial na nave da igreja produz alterações no efeito imersivo, ao realçar alguns aspectos do

“ambiente” criado pela pintura. Assim, mesmo antes de se permitir que o observador pudesse

interferir fisicamente na construção de uma obra, o que é claramente possível atualmente, parece

que sua presença já não era ignorada.

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O século XVIII será marcado pelo uso da câmera escura e das técnicas óticas para criar um

novo tipo de representação do real através da imersão. Novamente, pode-se destacar o uso de

técnicas científicas para aprimorar a criação de objetos artísticos com imagens. Grau (2003)

considera a câmera escura uma técnica tão revolucionária quanto a perspectiva, uma vez que

tornou possível a reestruturação das possibilidades até então associadas à experiência visual.

Vilém Flusser (2002), no século XX, parece ter compartilhado essa opinião quando propôs uma

filosofia para as linguagens derivadas dos aparatos óticos relacionados à fotografia e às mídias

audiovisuais.

Após diversas experiências com a câmera escura, o século XVIII traz à luz o surgimento do

panorama, invento patenteado por Robert Barker em 1787, baseado em

“um sistema de curvas numa superfície côncava de uma pintura, de modo que a paisagem pintada, quando vista de uma plataforma central, em uma altura específica, apareceria como verdade e não de maneira distorcida. A aplicação desse invento tornou-se conhecida poucos anos depois sob o neologismo ‘panorama’” (tradução nossa). (GRAU, 2003, p. 56)28.

A aplicação das técnicas derivadas do panorama traz novos elementos a serem utilizados

para provocar o efeito de imersão, como: o tipo de superfície onde seria pintado um determinado

cenário “real”; um local predeterminado, dentro do ambiente, que permitiria uma visão mais

realística e, portanto, mais imersiva. Destaca-se aqui a evolução das formas de imersão em duas

direções complementares: a modificação do ambiente físico para criar um ambiente tecnicamente

mais imersivo; a importância da posição do espectador dentro do ambiente. De técnicas mais

rígidas e sujeitas ao espaço físico utilizado, há uma evolução no sentido de permitir o

deslocamento do ambiente e dentro do próprio ambiente. E a evolução se dá quando esse

movimento é paulatinamente incorporado ao ato de criação. Oettermann, citado por Grau (2003),

afirma que o panorama cria espaços de imagem reais dentro dos quais o observador pode se

mover. O ambiente imersivo torna-se uma construção especificamente elaborada com um só

objetivo: fornecer a ilusão de que se está em um lugar real. A partir do panorama parece possível

transportar o observador para espaços criados artificialmente, ainda que mantenham uma

referência com locais reais. Ao permitir que o observador se desloque em vários sentidos, e mude

28 “a system of curves on the concave surface of a picture so that the landscape, when viewed from a central platform at a certain elevation, appeared to be true and undistorted. The application of this invention became known a few years later under the neologism ‘panorama’”

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sua visão em função desse deslocamento, o panorama intensifica a importância do movimento

dentro do ambiente imersivo.

Oliver Grau (2003) aponta alguns elementos responsáveis pelo efeito ilusionista concedido

ao panorama, citando Hermann Von Helmholtz: as sombras, capazes de formar contornos; as

nuances na gradação de luz; as sensações diferentes de cor e contraste. E destaca a dificuldade do

observador em saber se está olhando para uma profundidade de campo ou para uma tela plana.

Mais uma vez surge aqui o deslocamento do observador, em relação ao panorama, como o

elemento capaz de provocar mudanças espaciais, ainda que utilizando somente ilusões óticas. Na

análise do panorama de “A Batalha de Sedan”, Grau afirma que a obra não torna a situação mais

clara apenas, ela coloca o observador no meio de uma cena. Essa obra é considerada, pelo autor

mencionado, um dos trabalhos que mais se aproximaria daquilo que pode ser gerado em realidade

virtual. Considerado uma das mais exemplares peças de propaganda política do Reich germânico

à época (guerra franco-prussiana entre 1870 e 1871), o panorama de “A Batalha de Sedan”

retrataria um momento específico do campo de batalha, que seria o dia 1º de setembro de 1870, à

uma hora e trinta minutos da tarde. Grau afirma que a imersão provocada pelo panorama seria

capaz de suspender a habilidade para relativizar a percepção do objeto e permitir a reflexão sobre

o que estaria diante dos olhos de um observador. Ou seja, a imersão causada pelos panoramas

seria aquela que apostaria na não percepção dos elementos criadores da imersão. O panorama

contava com uma plataforma de visão rotativa, geradora de um movimento imperceptível capaz

de deslocar o olhar do observador, lentamente, sobre toda a figura. Ao longo de toda sua obra

sobre arte virtual, Grau (2003) afirma sistematicamente que a garantia de imersão reside na

privação de qualquer visão total do ambiente imersivo por parte do observador. O efeito

emocional da imersão foi o ponto central da estética dos panoramas, segundo o autor. A linha de

raciocínio que se pretende desenvolver aqui, em relação à imersão no código digital, diz respeito

justamente à capacidade do observador de manipular os elementos que causam a imersão. Ou

seja, opera-se aqui uma mudança radical em relação à visão de Oliver Grau, o que será

esclarecido na relação entre imersão, literatura eletrônica e a fenomenologia do ato de leitura.

Ao discutir a concepção do panorama de “A Batalha de Sedan”, Oliver Grau produz

considerações sobre os métodos industriais empregados na execução da obra. A equipe envolvida

na produção do panorama foi dividida de acordo com as funções que cada um desempenharia, o

que talvez possa ser considerado como um processo precursor das equipes utilizadas atualmente

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para produzir em hipermídia. Cada pessoa participava de uma parte do processo, o que também

contribuiria para diluir a noção de autoria da obra, provavelmente.

A própria obra exigia um tipo de produção coletiva, em função da sua grandeza. Oliver

Grau compartilha dessa visão, como se pode ver na citação a seguir.

“Como vimos, no panorama havia um sistema complexo responsável por mediar a relação entre o artista e todos os seus elementos, e o objetivo final de ilusão total, de sugestão da conservação de um momento histórico, seria conseguido apenas através de uma coordenação rigorosa e precisa entre todos esses componentes.” (tradução nossa) (GRAU, 2003, p. 122)29.

O conceito por trás do panorama era conferir forma existencial para um período de tempo

dentro de um determinado espaço físico. Grau associa o panorama à obra de arte total, de

Wagner, em que o resultado final deriva de um jogo inter-relacionado de todos os elementos que

compõem a obra. O panorama seria, dessa maneira, o precursor de trabalhos em multimídia e em

hipermídia. A despeito dessa alusão, a configuração da existência formal de um momento em um

espaço interessa para a presente discussão em função das relações entre tempo e espaço aludidas

no capítulo 2. Se o tempo é fundante de qualquer experiência, ele não pode ser revertido em pura

espacialidade, não importa quantos elementos o evoquem simultaneamente. Sem dúvida, há uma

presença espacializada do tempo em um panorama, mas a essa presença faltam componentes

como a ação do próprio observador sobre o tempo que experimenta. A modificação física do

ambiente é restrita para o observador, razão pela qual o tempo não pode ser experimentado de

forma pura dentro do panorama. De fato, é necessário indagar se tal objetivo é válido para a

experiência da imersão em ambientes digitais. E se é válido, como poderia acontecer? A sugestão

dessa tese é que o ambiente imersivo deve funcionar em coordenação com os movimentos

temporais do observador, sofrendo alterações físicas em sua estrutura de acordo com esses

movimentos. Assim, disponibilizar o código que estrutura a obra para manipulação do observador

seria um caminho na tradição encaminhada pelos panoramas e os ambientes imersivos daí

derivados, ainda que não completamente explorado na produção dos panoramas no século XVIII.

29 “As we have seen, in the panorama a complex system intervened between the artist and all components, and the end-goal of total illusion, of seeming to conserve a historic, aureoled moment in time, could be achieved only through rigorous and precise coordination.”

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5.2 Primeiras aproximações entre fenomenologia da leitura e imersão

A fenomenologia da leitura permite uma visão um pouco diferente da noção de

envolvimento emocional como condição para imersão no texto. Ao descrever de que maneira as

estratégias textuais das obras ficcionais contribuem para criar sua própria ambientação, Iser

demonstra como o ambiente imersivo pode ser constantemente reestruturado em função das

próprias possibilidades que desperta e dos movimentos que exige do leitor.

“As estratégias dos textos ficcionais geralmente se organizam de tal maneira que a formação de Gestalt durante a leitura produz ao mesmo tempo possíveis modificações dela mesma. Quando as Gestalten sofrem modificações que são iniciadas pelas possibilidades excluídas, elas tendem a se abrir novamente.” (ISER, 1999, p. 42,43)

Aqui já se pode perceber que o envolvimento é o que garantirá o efeito estético derivado da

experiência de leitura. Não obstante, o envolvimento de que se trata aqui não é total e sequer de

caráter puramente emocional, pois as Gestalten formadas são constantemente afetadas pelas

escolhas não-realizadas. Há uma tensão que faz o leitor mudar de posição entre o envolvimento

total no texto e o distanciamento latente. A imersão pode ser considerada como o envolvimento

descrito por Iser, e trata-se assim não de uma imersão total, em que a transparência do ambiente é

condição para que ela aconteça, mas justamente o contrário. O ambiente criado pelo leitor ao

agrupar as estratégias textuais em uma Gestalt evoca aquelas possibilidades excluídas e que agem

sobre a Gestalt criada anteriormente. A oscilação a que o leitor é submetido pelas suas próprias

escolhas confere à obra o caráter de evento.

“Isso significa que o leitor reage a algo que ele mesmo produzira, e este modo de reação explica porque somos capazes de experimentar o texto como evento real. Não o compreendemos como objeto dado, nem como estrutura determinada por predicados; é antes de mais nada por nossas reações que o texto se faz presente. Dessa maneira, o sentido da obra ganha o caráter de evento, e, já que produzimos o evento como correlato de consciência do texto, experimentamos o sentido do texto como realidade.” (ISER, 1999, p. 45,46).

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Esse fato também reforça a percepção de que a instabilidade presente na cibernarrativa não

é algo que não apareça na obra ficcional, mas sim que essa instabilidade, no caso das

cibernarrativas, se revela na própria materialidade do que se apresenta ao leitor.

As ambigüidades sugeridas pela obra evocam a formação das Gestalten, que são,

entretanto, agrupamentos produzidos pelo leitor. Ao produzir tais agrupamentos, um determinado

leitor faz escolhas e não-escolhas, envolve-se com a obra porque a reconfigura, ao criar dela um

texto. A reconfiguração é um processo de imersão, pois exige que o leitor resolva sugestões dadas

pela obra. Entretanto, à medida que a leitura se desenvolve, surgem novas ambigüidades

derivadas do texto criado e que podem levar o leitor a reavaliar os agrupamentos feitos até ali, à

luz de novos elementos. Assim, o processo de leitura cria o texto como evento, mas só há a

possibilidade de perceber o texto dessa maneira se o leitor se envolve com a obra. Como afirma o

próprio Iser (1999), a leitura cria as discrepâncias na obra, e são essas mesmas discrepâncias que

levarão o leitor a reavaliar o que até ali já foi lido. Como tal movimento se dá na imaginação, o

leitor não pode se excluir totalmente da obra, embora nunca esteja completamente envolvido por

ela. À medida que resolve questões evocadas pelas estratégias textuais, o leitor enquadra as

questões anteriores no novo quadro que surge na leitura. Esse movimento é similar àquele da

distentio animi já descrita nesse texto, conforme discussão realizada por Paul Ricoeur. “Quanto

mais presente o texto se torna para nós, tanto mais se desloca para o passado que somos – ao

menos durante o processo de leitura.” (ISER, 1999, p. 50) É também similar às mudanças de

ordem temporal na narrativa, conforme Genette (1970) afirma na sua análise de “Em busca do

tempo perdido”.

O que garante o caráter de experiência ao processo de leitura é justamente o movimento de

entrar na obra e criar um texto, ainda que a entrada não seja uma imersão total. Ou seja, é preciso

evitar essa imersão, para que a experiência de envolvimento possa ser percebida. A constante

reavaliação dos padrões de representação já criados, por parte do leitor, no momento em que dá

continuidade à leitura e se depara com o não-familiar é a estrutura utilizada por Iser para

descrever a sua fenomenologia da leitura e também esse processo imersivo. Segundo o autor, a

interação com o texto se dá a partir da não-familiaridade proposta por ele ao leitor. Ao mesmo

tempo, a percepção do não-familiar se faz sobre o fundo de experiências já sedimentadas. Assim,

é do meio de padrões de representação já organizados que o leitor consegue fazer emergir uma

nova experiência com o texto. Esse processo só acontecerá, segundo Iser, se o leitor estiver

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imerso no texto e consciente do seu envolvimento. “Perceber-se a si mesmo no momento da

própria participação constitui uma qualidade central da experiência estética; o leitor se encontra

num peculiar estado intermediário: ele se envolve e se vê envolvido.” (ISER, 1999, p. 53). Em

relação a esse ponto se funda a concepção de imersão relacionada à percepção e possibilidade de

mudança dos códigos de programação, quando se trata de cibernarrativas. Se para as narrativas

ficcionais, independentemente do suporte, segundo a fenomenologia da leitura, a imersão

consciente é uma condição, não há porque diferenciar, em termos ontológicos, a cibernarrativa

ficcional como um novo conceito de narrativa. A hipótese proposta é que o tipo de imersão

consciente, na cibernarrativa, será aquela em que o leitor pode interferir no código de

programação do que virá a ser a obra; ou seja, o leitor poderá intervir no tempo pré-figurado da

narrativa. Somente assim se poderia falar de uma narrativa que joga com a principal

potencialidade do prefixo ciber: uma narrativa cuja característica é operatória no sentido físico da

obra, e não somente no caráter imagético dela. Com isso não se deseja afirmar nenhuma

hierarquia entre as narrativas, mas antes buscar uma razão possível para se falar de um texto

eletrônico realmente, de um texto ciber, e não de uma disponibilização, em suportes eletrônicos,

de textos que independem do caráter ciber para proporem uma experiência estética.

Marie-Laure Ryan (2001) desenvolve em seu livro sobre narrativa e realidade virtual uma

espécie de tipologia de formas imersivas presentes na literatura, em diversas épocas, ora optando

por um tipo de imersão, ora destacando a superioridade de um tipo contrário. Logo na introdução

do seu estudo ela apresenta duas direções que, em maior ou menor grau, se farão presentes no

restante da discussão, e que interessam também a essa tese: de um lado, um estilo narrativo que

enfatiza o modo de contar a história, que torna transparente o arranjo do que Iser denomina as

perspectivas textuais; de outro lado, um estilo baseado na criação de um mundo ficcional cujo

intuito é envolver o leitor sem que ele necessariamente se dê conta desse envolvimento e de como

as perspectivas textuais o fazem “jogar” com o texto. A autora procura demonstrar, a título

introdutório, como a evolução das técnicas narrativas fez com que a ênfase na forma se

sobrepusesse sobre o conteúdo, preparando o terreno para a relação entre imersão e

interatividade. Como resultado dessa evolução, não no sentido de melhora, mas de passagem do

tempo e incorporação de novos elementos, Marie-Laure Ryan destaca o conceito de bricolagem,

muito semelhante ao que Iser denomina de “negação como uma das funções do lugar vazio”

(ISER, 1999, p. 7) O conceito de bricolagem baseia-se num processo de constituição dos

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fragmentos verbais, nesse caso, para se chegar a um artefato cuja forma e sentido emergem do

processo de ligação dos elementos. Assim, a leitura não seria, ao utilizar a bricolagem, uma

decodificação das perspectivas textuais, mas antes, e também, uma codificação do que virá a ser

compreendido como a obra, a partir do próprio processo de leitura.

A autora procura descrever uma poética da imersão e parte da metáfora de texto30 como

mundo para analisar os vários tipos de imersão presentes nessa metáfora. Para abordar essa

metáfora, antes de mais nada, Marie-Laure Ryan destaca a distinção entre textos ficcionais e

textos não-ficcionais. Ainda que se possa objetar o fato de um texto ficcional não ser exatamente

separado de um mundo real, a distinção da autora interessa em função da proximidade com

conceitos trabalhados na Poética, de Aristóteles, e também na fenomenologia da leitura em Iser.

Ryan afirma que o mundo textual de uma ficção é um fim em si mesmo, apresenta os seus

próprios horizontes em função da forma como se estrutura; ao contrário, o texto não-ficcional

possui um apelo mais forte em relação a um mundo real que atuaria como o seu principal

referente. Iser discute o texto ficcional a partir das perspectivas textuais, elaboradas pela própria

obra, e Aristóteles fala da mimese como a imitação de agenciamentos dos fatos, a criação de uma

estrutura em que as ligações se fazem pela própria necessidade criada pela obra, um mundo do

“como se” e não um mundo textual que copia o mundo real. Antes de discutir a primeira forma de

imersão preconizada pela autora, faz-se necessário explicar que a distinção acima foi destacada

para evocar o fato de que a imersão, em uma obra como aquela proposta por Iser, é uma relação

responsável pelo estabelecimento dos próprios limites da obra em que se dará tal imersão. Dessa

forma, a imersão é uma relação entre as diversas camadas que compõem uma obra, sendo

também, em alguns momentos, uma camada da própria obra. Por isso também se defende aqui o

caráter temporal para caracterizar a imersão em uma cibernarrativa. É através da imersão que se

estabelecem as conexões entre as camadas, o que significa dizer que o ambiente não está pronto

antes do leitor iniciar uma relação de imersão, através da leitura da obra.

Como desenvolvida até aqui, a hipótese acima se baseia na discussão sobre o ato de leitura

em Iser. Entretanto, Marie-Laure Ryan propõe incorporar outras dimensões para compreender

melhor como o texto pode ser visto como um mundo, quais sejam: a psicologia cognitiva, a

filosofia analítica, a fenomenologia e a psicologia novamente. Para cada dimensão, a autora

30 Nesse capítulo especificamente optou-se por manter a terminologia de texto para a parte física de uma obra, mantendo o significado dado pela autora ao conceito de texto.

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associa um conceito aplicável à teoria literária. O que se pretende a seguir é uma análise

transversal de tais dimensões, de modo a caracterizar a imersão em e com uma cibernarrativa

como um conceito relacional e também como algo que acontece com e no código de

programação.

O primeiro campo explorado pela autora se relaciona com a idéia de perder-se em um livro

e tem como bases conceituais análises da psicologia cognitiva sobre o ato de leitura. Marie-Laure

Ryan (2001) investiga o que denomina uma teoria popular de imersão, descrita por Richard

Gerrig e Victor Nell. De modo resumido, a teoria afirma sobre a imersão que, nesse processo, o

viajante é transportado para um mundo diferente daquele que habita, em que há outras referências

de “leitura” do mundo. Quando esse viajante retorna ao mundo original, de alguma maneira, ele

retorna modificado (Ryan, 2001) .

Para a caracterização do modo de imersão da cibernarrativa, o foco é a afirmativa que

destaca a realização de certas ações. Como a própria autora afirma:

“O objetivo da jornada não é o encontro de um território pré-existente que aguarda o viajante no outro lado do oceano, mas uma terra que emerge no curso da viagem, à medida que o leitor executa as direções textuais dentro do modelo de realidade (termo utilizado por Gerrig para a representação mental do mundo textual). O prazer do leitor depende, então, da sua própria performance.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 93,94)31.

A leitura não se faria sobre um território predefinido; antes, a performance do leitor é que

faria emergir, ao longo de sua viagem, em que trabalha com as perspectivas textuais em direção à

criação de relações entre elas, a superfície de um mundo textual. O que chama a atenção nessa

passagem é o aparente caráter de construção mental de tal mundo. No caso das cibernarrativas, há

dois destaques a serem feitos: a superfície referida acima é apenas um emaranhado temporário

das várias camadas que compõem a obra; e a construção desse mundo seria um ato também

físico, uma performance sobre a materialidade fluida que compõe o código digital, e que fará

emergir uma obra que está em estado de tempo pré-configurado. Quando Gerard Genette (1970)

discute as figuras temporais, em “Discurso da Narrativa”, cabe questionar de que forma elas

31 “The goal of the journey is not a preexisting territory that awaits the traveler on the other side of the ocean but a land that emerges in the course of the trip as the reader executes the textual directions into a ‘reality model’ (Gerrig’s term for the mental representation of a textual world). The reader’s enjoyment thus depends on his own performance.”

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podem aparecer ao leitor da cibernarrativa, já que o acesso desse leitor se faria sempre no

momento de um tempo pré-figurado.

Na análise das relações entre psicologia cognitiva e imersão, Marie-Laure Ryan (2001)

propõe quatro níveis de absorção distintos no ato da leitura. Sem assumir necessariamente uma

posição favorável mais clara a favor de algum dos níveis, o texto da autora reforça pontos de

vista defendidos nessa tese: a imersão não é exclusiva da cibernarrativa; e esse tipo de narrativa

não é ontologicamente distinto de algum outro tipo de narrativa em suportes não-digitais.

Os quatro graus de absorção propostos são, de forma esquemática: concentração;

envolvimento imaginativo; arrebatamento; hábito ou vício.

A imersão demandada pela cibernarrativa parece mais próxima de dois deles: o que exige

extrema concentração e o que demanda envolvimento imaginativo. Por que esses dois? No

primeiro caso, porque a cibernarrativa pede, da parte do leitor, atenção especial na construção

física da própria narrativa. Marie-Laure Ryan define a concentração como o tipo de atenção

demandada por trabalhos não-imersivos, de difícil entrada. A autora, de forma não muito

implícita, associa a imersão a obras que envolvem o leitor emocionalmente, de forma lúdica e de

maneira a tornar a leitura um ato que demande pouco esforço do leitor sobre a forma da obra. Por

forma entendam-se todas as estruturas gramaticais e sintáticas de que se utiliza o autor, e mesmo

a parte semântica da obra, em alguns casos. O que permitiria a imersão de alto grau, por assim

dizer, seria a facilidade de entrar na história que está sendo contada, sem que a maneira de contar

constituísse algum empecilho ao leitor.

No tipo de imersão exigida pela concentração, o mundo textual oferece uma resistência tal

à entrada do leitor que exige deste um alto grau de atenção. A cibernarrativa, ao oferecer-se para

o leitor como ainda pré-figurada, parece capaz também de “resistência” à leitura, já que não

mostra um caminho inicial qualquer, capaz de servir como uma primeira perspectiva textual.

Como o próprio Iser (1999) enxerga no romance moderno, por exemplo, para utilizar uma

aproximação, na cibernarrativa não haveria pistas claras de como descobrir quais são as

perspectivas textuais sugeridas pelo autor. Na cibernarrativa, o leitor se veria frente a um

conjunto de elementos em que o código de programação se mistura a elementos verbais, visuais

ou sonoros, mas não há, necessariamente, perspectivas textuais associadas ao papel de um

narrador, ou de personagens, ou da própria história. Por isso, a concentração própria da

cibernarrativa associa-se à construção física de relações entre os elementos da obra, de maneira a

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iniciar a aparição de perspectivas textuais derivadas das camadas temporais pré-configuradas na

obra. Para criar um paralelo com a definição de Marie-Laure Ryan, a cibernarrativa coloca em

jogo um tipo de atenção próprio de obras cujas perspectivas textuais foram rompidas e/ou são

rompidas a todo momento pelo autor. A diferença de procedimento se dá pelo fato de que, na

cibernarrativa, o rompimento se dá no ato físico de construção das relações entre os elementos da

obra. Nos dizeres de Paul Ricoeur (1994), o leitor se depara com o tempo da ação prática, em que

os acontecimentos da obra não se apresentam numa história contada, e sim numa história não-

contada.

A segunda forma de absorção que também permite associação com a cibernarrativa diz

respeito ao que Marie-Laure Ryan denomina envolvimento imaginativo, o que pode ser

compreendido como a percepção do leitor sobre as possibilidades de criação de possibilidades

relativas ao modo como se apresenta uma cibernarrativa. O envolvimento imaginativo seria a

atitude de se transportar para o mundo do texto sem, no entanto, perder a capacidade de perceber

os atos de fala do narrador ou a performance do autor. O leitor seria capaz de se “dividir” e entrar

no mundo do texto, “criar” o mundo do texto sem deixar de se ver como um agente externo, em

parte, em relação à obra que ele próprio reconfigura. No caso da cibernarrativa, poderia se falar

de uma imersão que exige o envolvimento do leitor, mas como aquele que irá realizar a narrativa

fisicamente, como seu primeiro ato de leitura, e só então poderá se deixar envolver pelo mundo

textual que criou sem atingir uma imersão que o impeça de compreender o seu papel de ator

físico sobre a obra que o envolve. A vinculação com o termo utilizado por Alckmar Luiz dos

Santos (2003) – possibilidades de criação de possibilidades – pode ser feita aqui porque o leitor

deve se perceber como aquele capaz de se dotar de um texto a ler, sem, no entanto, chegar ao

extremo de ignorar as pré-figurações sugeridas pela cibernarrativa. A relação pode ser vista

também como se as camadas temporais que surgem entrelaçadas numa narrativa configurada

estivessem mais distendidas entre si e com um maior número de pontos visíveis. Não se trataria

de um tempo espacializado, posto que o tempo só é porque passa, mas de um espaço

temporalizado de maneira mais intensa, em que a pré-figuração fizesse alusão ao fato de que uma

narrativa configurada é um espaço em que o tempo parece se entrelaçar de maneira a vibrar

menos livremente.

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Os outros dois graus de absorção discutidos por Marie-Laure Ryan parecem possíveis de

acontecer ou não numa cibernarrativa, mas não de maneira a demandarem destaque para essa

discussão.

5.3 Uma poética da imersão

Na elaboração de sua poética da imersão, a autora utiliza alguns aspectos derivados da

teoria dos mundos possíveis, cuja estrutura conceitual resume como sendo

“um conjunto teórico já estabelecido segundo a qual a realidade – a soma total do imaginável – é um universo composto por uma pluralidade de elementos distintos, ou mundos, e isto é hierarquicamente estruturado a partir da oposição de um elemento bem definido, cuja função é atuar como centro do sistema, ao conjunto de todos os outros membros desse mundo. O elemento central é comumente interpretado como o “mundo atual” e os satélites são vistos, meramente, como mundos possíveis. Para que um mundo seja possível ele deve ser ligado ao centro por uma relação chamada de acessibilidade. Mundos impossíveis aglomeram-se na periferia do sistema, sendo conceitualmente partes dele – uma vez que o possível é definido pelo contraste com o impossível – e ainda inalcancáveis.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 99,100)32.

A autora desenvolve sua argumentação demonstrando os limites e possibilidades desse

constructo teórico no que diz respeito à teoria literária. Após a análise dos diversos problemas e

acertos da teoria dos mundos possíveis para se discutir a noção de mundo textual, Marie-Laure

Ryan propõe um modelo para discutir a imersão em mundos textuais. Alguns conceitos desse

modelo serão agora agrupados à discussão anterior, com o intuito de completar a proposta teórica

dessa tese. O modelo apresenta os seguintes elementos, em sua apresentação do que seriam os

mundos possíveis: no centro, um mundo real hipotético, cuja existência independe de alguma

representação mental; superposto a esse mundo de limites incertos, representações de mundo

feitas por diferentes indivíduos de origens culturais distintas. São versões pessoais sobre um

centro absoluto, cujos limites são muito próximos, em função de serem pensados com base no

32 “the set-theoretical idea that reality – the sum total of the imaginable – is a universe composed of a plurality of distinct elements, or worlds, and that it is hierarchically structured by the opposition of one well-designated element, which functions as the center of the system, to all the other members of the set.The central element is commonly interpreted as ‘the actual world’ and the satellites as merely possible worlds. For a world to be possible it must be

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hipotético mundo real; distante das fronteiras desses dois mundos estariam os mundos possíveis

não atuais. Ou seja, mundos aos quais os indivíduos poderiam ter acesso, dependendo do grau de

verossimilhança desses mundos face ao contexto do mundo atual representado por cada

indivíduo.

A questão principal que interessa para a elaboração do conceito de imersão a partir de uma

matriz relacional é o tipo de ligação entre os elementos do modelo apresentado. Ryan explora tais

elementos com base no movimento de recentramento que um texto pode provocar entre os

mundos atuais e possíveis.

Antes de desenvolver a noção de recentramento, faz-se necessário apenas ressaltar que a

teoria dos mundos possíveis, ao ser aplicada à teoria literária, deve considerar o fato de que em

um texto literário é possível encontrar todo um sistema de mundo já criado, sem necessidade de

referência ao mundo real. Ou, melhor dizendo, um texto literário possui o seu mundo real,

hipotético; os vários mundos atuais, conforme a perspectiva que se adote em relação, por

exemplo, a um dos personagens; e os mundos possíveis não atuais.

Ainda que o texto literário possa apresentar ao leitor um mundo textual sem referência

explícita a um determinado mundo real de qualquer época, o mundo textual apresenta regras de

coerência para criar o que se denomina, na teoria dos mundos possíveis, o mundo real hipotético.

O deslocamento aconteceria quando o leitor se deparasse com uma perspectiva textual que

alterasse substancialmente o quadro do mundo real hipotético, a ponto de levar o leitor para

“dentro” do texto, levando-o a habitar uma nova perspectiva textual para continuar a leitura. Isso

pode acontecer em devaneios de personagens, mas pode acontecer também quando o texto

apresenta uma perspectiva textual que o leitor não esperava ser possível. Nesse momento, pode-

se falar dos deslocamentos de tema e horizonte propostos por Iser em sua fenomenologia da

leitura. À medida que o leitor assume lugares vazios diferenciados, reorganiza as perspectivas

textuais e se movimenta entre o mundo atual e os mundos possíveis não atuais. Pode, dessa

maneira, perceber os limites de cada ambiente imersivo criado pela sua própria leitura. Ao se

deslocar entre perspectivas textuais, o leitor pode entrar na camada temporal de um personagem

que apenas devaneia; pode, também, entrar na camada temporal de um narrador que mostra a

história acontecendo de uma perspectiva completamente diferente, a partir da alteração de uma

linked to the center by a so-called accessibility relation. Impossible worlds cluste at the periphery of the system, conceptually part of it – since the possible is defined by contrast with the impossible – and yet unreachable.”

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possibilidade em um fato ficcional. Interessa pensar os mundos possíveis não atuais como

correlatos ao que Iser denomina de horizonte, e o mundo atual em que o leitor se encontra como o

tema daquele momento da leitura. Ao se posicionar em uma ou outra camada temporal do texto, o

leitor sempre provoca um recentramento que atinge o próprio ato de leitura e a forma como

constrói o seu mundo textual.

No universo ficcional, segundo a autora, a realidade objetiva apresentaria um caráter de

provisoriedade mais intensamente percebido, já que as realidades objetivas seriam baseadas em

afirmativas ficcionais correspondentes a escolhas de perspectivas textuais criadas por um autor.

Ao adotar uma determinada perspectiva textual, o leitor poderia perceber o quanto as outras

perspectivas teriam de instabilidade. Esse dinamismo é o que Iser associa ao efeito estético no ato

da leitura e é o que será associado aqui ao conceito de imersão em camadas temporais na

cibernarrativa.

Se no mundo textual a realidade objetiva existe como correspondente de verdades

ficcionais estabelecidas pela autoridade textual, o mundo ficcional surge como relação entre as

diversas perspectivas textuais presentes no texto, sempre em estado constante de construção pelo

leitor. Nas cibernarrativas, a autoria se estabelece também como relação entre os leitores da obra

e a própria obra, ainda em estado pré-figurado. Os deslocamentos entre as perspectivas textuais,

nas cibernarrativas, seriam deslocamentos entre camadas temporais pré-figuradas; o leitor não

teria diante de si o mesmo tipo de mundo atual de uma narrativa já configurada. É essa diferença

que conferiria a uma narrativa seu caráter ciber.

O texto literário envolve também um certo distanciamento do leitor em relação ao mundo

textual ao qual tem acesso. Esse afastamento é provocado pelos deslocamentos realizados pelo

leitor entre as diversas perspectivas textuais. Ryan defende a idéia de que um texto literário incita

o leitor a avaliar a capacidade do autor em criar o mundo ficcional, que possui uma lógica interna

própria. No caso das cibernarrativas, em que a leitura envolve a construção física da obra, o leitor

se vê questionando a sua própria capacidade de organizar um mundo textual com alguma lógica.

Como o leitor não tem diante de si uma narrativa configurada, o seu movimento de entrada no

texto é duplo: a todo instante ele constrói a obra e cria algumas configurações narrativas. Há

sempre uma posição externa e interna ocupada pelo leitor, o que pode fazê-lo perceber mais

intensamente a estrutura temporal da obra em seu estado pré-figurado. No entanto, o acesso a

essa estrutura é sempre indireto, pois tal leitor não trabalha com o tempo espacializado e sim com

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o tempo distribuído em suas várias camadas ou linhas de força. Ao “entrar” em uma camada , o

leitor o faz sempre em relação à configuração entre essa camada e as demais que compõem a

narrativa. Assim, o acesso ao tempo é sempre parcial e o movimento de imersão comporta uma

entrada em um ponto e a percepção externa dos outros pontos da narrativa. Ao aproximar-se de

uma perspectiva textual, as outras se posicionam no horizonte de leitura, como invisíveis que

sustentam a perspectiva atual adotada pelo leitor. Se no caso de textos literários o mundo

referente e o mundo textual são inseparáveis, a imersão pode ser vista como um distanciamento

entre os dois mundos, produzido pelo leitor. A diferença, no caso das cibernarrativas, é que tal

afastamento produz uma obra física, ainda a ser lida e/ou a se tornar texto.

Em sua proposta de pensar o texto como mundo, Marie-Laure Ryan (2001) utiliza alguns

paralelos com o jogo do “faz-de-conta” e, mais amplamente, com a idéia de pensar o texto como

um jogo com regras específicas. Na área de literatura eletrônica essa é uma metáfora recorrente, e

talvez mais, uma abordagem conceitual bastante utilizada por diversos autores. O próprio Espen

Aarseth (1997), do qual se utiliza o conceito de cibertexto, é um autor interessado em tal questão.

Pode-se ainda ressaltar que a relação entre jogos e textos vem de longa data, não sendo

inaugurada, de maneira alguma, pelo surgimento da literatura eletrônica. O ponto que interessa à

discussão presente envolve a ação de participar de um game e como tal ação auxilia o leitor a

perceber o mundo construído pelo texto. Antes de analisar uma das afirmações de Ryan, é

possível pensar de que maneira, em um jogo de simulação, o jogador percebe o mundo do jogo.

Não se trata apenas de explorar a simulação de um ambiente que surge na tela, mas também de

compreender o comportamento de cada personagem ou objeto do jogo. O jogador constrói um

perfil de ação de acordo com os objetos ou personagens com os quais se depara ou através dos

quais se movimenta no jogo. A “leitura” do jogo é construída pelo jogador e o próprio mundo do

game surge com o movimento do usuário. Entretanto, há uma narrativa configurada para cada

elemento e, por mais complexas que sejam as relações entre os personagens, o jogador não acessa

as narrativas pré-figuradas de cada um deles. Esse exemplo funciona muito bem para games de

computador em que o acesso ao código de programação, ou o acesso às partes do jogo ainda não

produzidas é limitado. No caso de jogos com características cibernarrativas, o jogador não

constrói apenas mentalmente o ambiente e apreende os comportamentos de cada objeto: ele pode

também produzir personagens ou objetos. A padronização do jogo está em constante estado de

mudança física, e tais mudanças podem alterar todo o mundo do jogo anteriormente configurado.

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Games baseados em aprendizado a partir de comportamentos emergentes são ambientes dessa

natureza. Steven Johnson (2003) realiza uma análise sobre comportamentos emergentes que pode

ser relacionada ao tipo de alusão que se faz aqui. Um jogo capaz de se modificar a partir de

algoritmos simples combinados é um jogo capaz de apresentar comportamento emergente. É o

caso de SimCity, em que o comportamento do jogador produz alterações no jogo que não foram

programadas. Nesse exemplo, não há ainda a exploração de uma característica cibernarrativa em

toda sua potencialidade, uma vez que o jogo não apresenta ao jogador as opções de programação.

A questão envolvida nos exemplos anteriores relaciona-se, sobretudo, ao modo como a

participação do jogador interfere na construção do mundo do game.

No caso da tese de Marie-Laure Ryan, a participação do leitor no mundo textual é

comparada à participação em um jogo a partir da seguinte perspectiva:

“Participar de um jogo significa entrar em um mundo no qual a proposição pertencente ao mundo real ‘isso é uma madeira’ é substituída pela verdade ficcional ‘isso é um urso’. Toda vez que uma jogadora realiza um movimento legal ela contribui para o conjunto de verdades ficcionais que descrevem o mundo do jogo: ‘Estou atirando num urso’, ‘estou fugindo dele’. Nessa atividade criativa residem o prazer, e a função do jogo.” (tradução nossa) “ (RYAN, 2001, p. 107)33.

À medida que determinados movimentos ou ações se repetem, elas configuram eventos

estruturados como verdades ficcionais quase naturais. Ou seja, é a partir dessa repetição que se

constroem, por exemplo, as características de um personagem. Mas, no caso das cibernarrativas,

a questão que se apresenta é de outra natureza: como, numa narrativa constantemente sujeita ao

retorno a um tempo pré-configurado, se constroem verdades ficcionais? Como se estrutura o

mundo textual, em uma cibernarrativa, se sua configuração temporal é permanentemente latente?

No texto ficcional e no jogo do “faz-de-conta”, segundo Ryan, o leitor deve preencher ou seguir

direções textuais para construir a imagem mental do mundo do texto. No caso das cibernarrativas

ficcionais, o que está em jogo é a capacidade do leitor em criar as direções textuais a partir de um

banco de dados, ou a partir de um conjunto de camadas temporais não configuradas. A imersão

do leitor é, assim, um ato performático capaz de realizar a obra que aparece como uma

cibernarrativa. As experiências imersivas que não envolvem algum tipo de entrada do leitor, no

33 Participating in the game means steping into a world in which the real world proposition ‘There is a stump’ is replaced by the fictional truth ‘There is a bear’. Every time a player performs a legal move, she makes a contribution to the set of fictional truths that describes the game-world: ‘I am shooting a bear’, ‘I am fleeing from it’. In this creative activity resides the pleasure, and the point, of the game.”

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banco de dados que será organizado em uma narrativa, são de uma ordem diversa daquela das

cibernarrativas. Ryan trata essa diferença de ordem como conseqüência da profundidade de

imersão permitida pelo texto e pela disposição do leitor em realizar o jogo proposto. A

profundidade de imersão depende da combinação do que Ryan chama de afirmações miméticas e

também da disposição do leitor. A autora defende a tese segundo a qual apenas os textos que

fazem o leitor se engajar em um mundo criado pela imaginação propiciam uma experiência

ricamente imersiva. Textos dessa natureza demandam, necessariamente, um alto envolvimento do

leitor na construção mental desse mundo imaginário. O ponto de contato com a tese que se

apresenta aqui concerne, justamente, no envolvimento do leitor. Para que uma obra possa ser

considerada como cibernarrativa, é preciso que o leitor se envolva em sua construção física, mas

como se estivesse envolvido em um processo infinito de produção. Ou seja, uma obra

cibernarrativa não se apresenta como um produto a ser elaborado definitivamente pelo leitor. Se

assim fosse, haveria apenas uma transferência do papel do autor para o leitor, o que não é pouco,

mas não demanda nenhum uso do caráter ciber presente no digital. A obra cibernarrativa

apresenta-se como um conjunto de narrativas pré-figuradas à disposição de qualquer leitor. O que

em uma obra em meio impresso acontece de maneira processual na leitura, e na construção de

interpretações ad infinitum, na cibernarrativa acontece na construção incessante de narrativas

configuradas pelo leitor. Assim, quanto ao mundo imaginário de Marie-Laure Ryan, talvez esse

seja somente um aspecto de uma obra cibernarrativa, e não o único. Não se trata de criar um

mundo, mas de lidar com processos de criação de possibilidades de mundos sempre em estado de

construção. No limite da sua potencialidade, a cibernarrativa permite ao leitor interferir nas regras

que orientam a construção da base de dados das narrativas pré-figuradas.

A imersão espacial e temporal é também discutida por Marie-Laure Ryan, quando a autora

associa espaço, tempo e envolvimento emocional com elementos de uma narrativa, a saber: o

espaço seria relativo ao cenário; o tempo, relativo à trama e o envolvimento emocional relativo

aos personagens.

A forma de perceber a imersão espacial proposta pela autora baseia-se, sobretudo, na

capacidade do texto em estimular a criação de imagens mentais de um determinado espaço físico.

Esse espaço seria, entretanto, uma conseqüência da capacidade de ressonância entre o texto e as

memórias pessoais do leitor. A estrutura da narrativa teria um peso menor que as ligações

realizadas pelo leitor com locais particulares pelos quais já passou ou viveu. Ryan ressalta, não

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obstante, que a forma mais completa de imersão seria aquela que agrupa espaço e tempo,

conforme parte da proposta dessa tese, de maneira inseparável. No caso das cibernarrativas, a

intensidade dessa junção é ainda de maior grau, uma vez que cabe ao leitor produzi-la

fisicamente. Paradoxalmente, a ligação espaço-temporal aparece também de maneira bastante

instável aos olhos do leitor na cibernarrativa, pois ainda não foi sequer proposta pelo autor. É o

estado de pré-configuração próprio da imersão em cibernarrativas que surge aqui novamente.

Ryan apóia-se em Bachelard para discutir como se configura o espaço literário e para

contrapor o espaço de narrativas ficcionais modernas com os conceitos relativos à

desterritorialização. O espaço da cibernarrativa se assemelha menos a um espaço descrito e

configurado; antes, está mais próximo da noção de espaço em movimento, de um espaço mais

temporalizado, que surge e existe como fluxo. A autora sugere uma diferenciação entre um

espaço vivo, descrito de maneira detalhada, de forma a situar o leitor “dentro” de um mundo

textual organizado; e um espaço conceitual, relativo a um conjunto de informações frouxamente

conectadas, não contínuas, como se o leitor acessasse um conjunto de dados desmembrados,

altamente abstratos. O espaço vivo seria um espaço mais propício à imersão, em função de uma

possibilidade de experiência com o corpo mais próxima da experiência física de estar em um

lugar; o espaço conceitual seria mais próprio de uma experiência menos corpórea. Por essa razão,

ou talvez por estabelecer tal diferença, a própria autora ressalta aqui uma impossibilidade de

pensar a imersão apenas do ponto de vista espacial. “Espaços textuais envolvem não apenas um

conjunto de lugares distintos, mas uma rede de acessos e relações que agrupa esses locais juntos

numa geografia coerente.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 123) 34 .

De fato, no caso das cibernarrativas, o espaço como movimento não precisa ser concebido

apenas mentalmente, ou de forma conceitual, ele pode ser construído pelo leitor fisicamente

também, e como fluxo. A relação é física, uma vez que, posteriormente, esse espaço será o local

onde acontece o ambiente imersivo. A “leitura” da cibernarrativa configura uma narrativa, para

depois reconfigurá-la, nos termos de Paul Ricoeur. Assim, não parece ser o caso dizer que o

espaço como fluxo barra a experiência imersiva; antes, ele dependeria fundamentalmente da

imersão para poder existir fisicamente. A imersão aconteceria justamente em função da

conjugação entre espaço e tempo permitida pela cibernarrativa, mas não somente por ela. Em

34 “Textual spaces involves not only a set of distinct locations but a network of accesses and relations that binds these sites together into a coherent geography.”

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narrativas diversas é possível fazer o espaço surgir em função da forma como ele aparece, à

medida que a história se desenvolve. A descrição espacial não precisa ser necessariamente

estática, ou somente descontínua, para criar uma sensação de fluxo. É possível, através da

descrição, criar relações entre distintas camadas temporais da narrativa. Essa seria uma maneira

de criar um ambiente imersivo através da relação entre os elementos que podem compor tal

ambiente. É ainda Marie-Laure Ryan que nota essa possibilidade, ao afirmar, sobre um dos

romances de Balzac:

“Quando o romance descreve a casa, como na descrição da pensão de Madame Vauquer em ‘Pai Goriot’, ou da mansão decadente em ‘A grande Bretèche’, o narrador inspeciona a construção de maneira sistemática, aproximando-se dela da rua, examinando o jardim e a fachada, entrando pela porta principal, e caminhando de porta a porta, como se fosse um fiscal ou um possível locatário. Ao final da descrição, o leitor possui a noção precisa da configuração do prédio, do primeiro ao último piso.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 125)35.

A forma de descrever o espaço apresenta-se como uma conjugação entre os diversos locais

e os objetos e características presentes em cada local. É como se o cenário se misturasse à trama

de tal maneira que se tornassem inseparáveis, mas não completamente indistintos. O estilo de

narrativa descrito pode ser encontrado em cibernarrativas que se apresentam como bancos de

dados dispersos, em que os elementos do cenário e da trama ainda não estão organizados. Em

textos baseados em estratégias de links múltiplos em cada palavra, por exemplo, seria preciso

criar várias linhas organizadoras para um mesmo espaço. Nesses casos, seria como desdobrar o

espaço em todas as suas configurações temporais, ou, pelo menos, tentar criar esses

desdobramentos. É como se todas as camadas temporais que compõem a experiência de leitura

distendessem o espaço ao mesmo tempo, através da multiplicação dos links do texto. Não restaria

cenário a ser narrado? Essa pergunta não parece pertinente, porque em textos mais dinâmicos e

menos estruturados o cenário só existiria fisicamente na medida em que fosse configurado pelo

leitor na navegação. Ainda que a descrição que funciona aqui como exemplo não trate de várias

perspectivas textuais ou de várias camadas temporais, é possível pensar numa comparação com o

desdobramento do espaço através da visão de várias camadas temporais. A distensão é espacial,

35 “ When the novel describes a house, such as the boardinghouse of Mme. Vauquer in Père Goriot or the decrepit manor in ‘La Grande Bretèche’, the narrator inspects the building in a systematic manner, approaching it from the street, examining the garden and facade, entering through the main door, and walking from room to rom, as would a real estate agent or a prospective tenant. The reader end up with a precise notion of the configuration of the building, all the way down to the floor plan.”

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não temporal, pois o tempo não deixa de seguir o seu curso quando aparece por breves instantes.

Assim, uma perspectiva textual não oferece senão uma visão do espaço da obra. Quando uma

perspectiva descreve o espaço, ela mostra o seu caráter temporal, o seu caráter de fluxo e de

movimento.

A construção do espaço onde se dará a imersão também pode acontecer gradualmente, por

exemplo, a partir dos movimentos do personagem. Parece que a questão central, nas

cibernarrativas, é o fato da experiência de leitura ser uma experiência com o aspecto físico da

obra. Nesses casos, o leitor deveria ser capaz de organizar um material ainda não estruturado e

que pode ser reestruturado a todo momento. O que contaria não seriam as relações estabelecidas

pelo autor, as camadas temporais já configuradas, mas a capacidade de instalar o leitor nesse

momento em que o tempo está ainda pré-configurado. O desafio da imersão, nas cibernarrativas,

está ligado à criação de uma história ainda não-contada que permita o acréscimo de perspectivas

textuais, ou de camadas temporais pelos leitores, mas de modo a não criar rupturas nas relações

estabelecidas até então na obra. Entretanto, essa premissa pode resultar na criação de um produto

que apenas cresce fisicamente sem, apesar disso, apresentar outros arranjos entre as camadas

temporais. Se a cibernarrativa se orienta através desse caminho, corre-se um sério risco de ver a

intensidade do seu caráter ciber desaparecer. Talvez a melhor solução para uma imersão na

cibernarrativa se baseie na possibilidade de produzir, de forma colaborativa, a concepção da obra

processo. Nos dizeres de Edmond Couchot (2003), isso significaria associar o espectador à

criação. Ainda que não pareça, mesmo em autores distantes cronologicamente desse tipo de

experiência, já é possível encontrar sugestões para tal experiência. Machado de Assis (1959)

convida o leitor a acompanhar o seu processo de produção em “Dom Casmurro”, o que pode ser

considerado um esboço dessa participação do espectador. Aqui entram em jogo camadas

temporais distintas para a configuração de um espaço imersivo. A criação de uma rede

interligando os diversos pontos do espaço não seria justamente a transformação do espaço em

tempo? E, no caso das cibernarrativas, a criação de um cibertempo, que não se estrutura mais

somente de forma mental, mas que aparece fisicamente, no trabalho com o código, por exemplo?

Um outro aspecto na relação entre a imersão espacial de Marie-Laure Ryan e as

possibilidades de imersão em cibernarrativas baseia-se na noção de que memórias pessoais

diretas, quando evocadas em narrativas ficcionais, podem provocar um efeito imersivo mais

intenso. No caso das memórias pessoais diretas, Ryan afirma que elas

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“possibilitam ao leitor construir mapas precisos do mundo textual e visualizar as mudanças ambientais à medida que os personagens se movem entre locais distintos, de forma muito parecida como aquela experimentada por jogadores dos jogos de computador em primeira pessoa, quando vêem a imagem do mundo do jogo evoluir como resultado de seus movimentos.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 128)36

Para além dos jogos em primeira pessoa, em que o leitor “entra fisicamente” na pele de um

personagem, uma cibernarrativa permitiria a esse mesmo leitor combinar memórias pessoais com

a construção de cenários a partir da manipulação de dados digitais em uma base de elementos

pré-figurados. Ou seja, a “leitura” não evolui apenas num território que evoca memórias diretas,

ou mesmo locais estereotipados; o leitor pode criar tais locais fisicamente em jogos onde é

permitido construir o cenário. Efetivamente, a cibernarrativa, nesse caso, surge quando o jogo

baseia-se na construção do cenário como atividade principal. Jogos como Simcity e similares

apresentam como trama narrativa a construção do próprio cenário. De acordo com a forma que o

leitor dá ao seu mundo simulado, a trama se desenvolve num determinado sentido, que deve ser

entendido aqui como sentido temporal, como linha temporal. Novamente, a imersão se baseia na

capacidade da obra em expor as suas possibilidades de criação de narrativas pelo leitor: quanto

maior essa possibilidade, maiores são as alternativas de uma imersão específica da cibernarrativa.

No caso da imersão espaço-temporal, um aparente estágio intermediário entre a imersão

espacial e a imersão temporal, Marie-Laure Ryan questiona a distância entre o narrador e sua

audiência e o tempo e espaço dos eventos narrados. A imersão espaço-temporal aconteceria no

momento em que a distância referida anteriormente fosse igual a zero, ou muito próxima de zero.

A autora analisa algumas técnicas narrativas capazes de deslocar o leitor para “dentro” dos

eventos narrados, enfatizando a idéia de que a melhor maneira de manter o efeito imersivo é fazer

o leitor ocupar pontos diferentes em relação ao tempo e espaço dos eventos narrados. Pretende-se

utilizar essa afirmativa para discutir a imersão nas cibernarrativas como um movimento de idas e

vindas em relação às camadas temporais que configuram tal tipo de narrativas.

As técnicas narrativas podem ser utilizadas para modificar a posição do leitor em relação às

inúmeras variantes espaço-temporais apresentadas ou possibilitadas pela história não-contada. A

narrativa padrão seria aquela caracterizada como a de um contador de histórias: o narrador

36 “enable readers to construct a precise map of the textual world and to visualize the changing environments as the characters move from location to location, much in the way the players of the so-called first-person-perspective computer games see the image of the game-world evolve as a result of their movements.”

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informa a audiência sobre fatos que aconteceram em um local e tempo distantes do local e tempo

em que a história é contada. Segundo Seymour Chatman, citado por Ryan (2001), o narrador

pode apenas, nessa situação, relatar eventos; ele não os vê acontecendo no momento em que fala

deles. A variação das técnicas narrativas pode, no entanto, fazer surgir novas configurações

espaço-temporais. Essas configurações permitem ao leitor imaginar a história a partir de

perspectivas distintas. Para ilustrar as possibilidades, tome-se os exemplos utilizados por Ryan,

relativos a três técnicas narrativas: mudança adverbial dêitica, tempo presente e narração em

segunda pessoa. Ao longo da sua análise, Ryan enfatiza as capacidades imersivas diferenciadas

das três técnicas.

Em relação à dêitica, a análise da autora se detém sobre os modos do discurso relacionados

ao pensamento ou fala dos personagens: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso livre

indireto. Para cada forma sintática haveria um grau de imersão diferenciado, com as camadas

temporais também surgindo de modo distinto para o posicionamento do leitor. Embora a autora

sugira o discurso direto como a forma mais imersiva entre as três citadas, há uma ressalva em

relação ao discurso indireto livre. As duas maneiras possibilitariam imersões distintas, mas não

necessariamente de grau menor ou maior, numa análise comparativa.

“Eu deixo para o leitor decidir o que é mais imersivo: a forma de expressão que nos dá uma completa, mas temporária, realocação na cena narrativa e nos joga dentro e fora desse ponto focal, ou aquela que mantém uma posição de equilíbrio constante entre a localização espaço-temporal do narrador e do personagem.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 135)37.

O discurso direto seria responsável por mudanças mais bruscas, por exemplo, entre a visão

do narrador e a visão do personagem, enquanto o discurso indireto livre apresentaria um

equilíbrio mais suave para o leitor, em relação ao deslocamento entre as camadas temporais. No

caso de uma cibernarrativa, a distinção aplicada pela autora não parece fundamental para a

definição da imersão, uma vez que o tempo narrado ainda aparece em estado pré-figurado. E

mesmo as categorias do discurso literário talvez não possam ser aplicadas aqui diretamente.

Ainda assim, parece suficientemente instigante analisar o que pode acontecer a uma obra

cibernarrativa quando o leitor decide configurá-la a partir de uma aproximação com o discurso

37 “I leave it to the reader to decide what is more immersive: the form of expression that gives us a complete but temporary relocation to the narrative scene and jogs us in and out of this focal point, or the once that maintains a constant position halfway between the narrato’s and the character´s spatio-temporal location.”

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direto. Nesses casos, é como se o leitor se deparasse com um determinado personagem e pudesse

dialogar com ele. Mas isso não pode ser visto como a possibilidade de manipulação do código de

programação que coordena as ações do personagem. O que pode acontecer é uma reação do

personagem às ações do narrador-leitor e o conseqüente surgimento de mudanças físicas na obra.

O discurso indireto livre parece ser uma estrutura mais aberta a alterações diretas na sua própria

estrutura, de modo a fazer com que o leitor seja, quase ao mesmo tempo, narrador e personagem.

Essa característica confere mais suavidade ao processo imersivo, mas não significa que o leitor o

perceba melhor ou pior. Parece que as bases de dados não configurados em uma narrativa é que

serão os termômetros para o tipo de imersão a ser criada pelo leitor.

Uma outra técnica narrativa analisada por Marie-Laure Ryan (2001) relaciona-se ao uso dos

tempos verbais, notadamente o presente. Novamente, como em vários outros pontos em sua obra,

a autora termina por defender um tipo de imersão que envolve emocionalmente o leitor, no caso

em questão, o uso do tempo presente em relação ao uso do tempo passado. Ainda assim, há

novamente uma ressalva quanto à necessidade de contrabalançar o uso dos dois modos

narrativos, conforme a própria autora afirma. “Para que a imersão retenha sua intensidade, ela

necessita do contraste dos modos narrativos, de uma distância constantemente renegociada da

cena narrativa, um perfil feito de picos e vales.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 137)38. A

mudança de modos temporais marca explicitamente a mudança de camadas temporais que, no

caso das cibernarrativas, talvez possa ser experimentada fisicamente pelo leitor. Também por

essa razão não se pode afirmar que a literatura eletrônica seja um tipo distinto de uma literatura

não eletrônica. E por essa razão o conceito de narrativa permita uma amplitude suficiente de

análise, no que diz respeito ao objeto dessa tese, as cibernarrativas. Voltando à última citação

acima, se a intensidade da imersão é proporcional ao contraste entre os modos narrativos, o

paralelo nas cibernarrativas talvez apareça quando há uma escrileitura colaborativa. Ou seja,

quando o receptor-participante se depara com o ambiente imersivo que criou a partir da

modificação feita por um outro receptor-participante, há uma mudança na experiência temporal

relacionada não só à mudança física da obra, mas também à presença de outros leitores na mesma

história. Os demais leitores parecem servir como uma lembrança permanente de que a história

configurada por um leitor é somente uma das configurações possíveis e que as pré-figurações

38 “For immersion to retain its intensity, it needs a contrast of narrative modes, a constantly renegotiated distance from the narrative scene, a profile made of peaks and valleys”.

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ocupam o mesmo patamar de importância no conjunto de toda a obra. Talvez se possa falar aqui

de uma constante pressão do tempo presente sobre a cibernarrativa e, também em função dessa

pressão, de uma reversibilidade quase que demandada do espaço em direção ao tempo. As obras

cibernarrativas demandariam uma reversão do espaço em tempo para alcançarem o seu grau

máximo de caráter ciber.

Ainda no campo das técnicas narrativas, Marie-Laure Ryan analisa a narrativa em segunda

pessoa, ressaltando o seu uso mais intenso a partir da exploração do potencial expressivo da

linguagem em todas as suas formas. A autora cita diversos exemplos para discutir de que maneira

a narrativa em segunda pessoa possui um efeito imersivo, ainda que de caráter momentâneo. E é

justamente a variabilidade no uso de técnicas narrativas, com o intuito de fazer o leitor se

deslocar “dentro” da obra, o que parece mais interessar a autora. Como afirma Ryan

“Essa experiência de ser transportado para dentro da cena narrativa é tão intensa e demanda tanto da imaginação que não pode ser sustentada por muito tempo; um aspecto importante da arte narrativa consiste, além disso, de variar a distância, como um filme sofisticado irá variar a distância focal das lentes da câmera.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 139)39.

A autora sugere que a fenomenologia da narrativa baseia-se em dois descentramentos: o

deslocamento do leitor de um mundo real para um mundo possível não atual, criado pelo texto; o

deslocamento do leitor da periferia para o centro do mundo da história e do tempo da narrativa

para o tempo do narrado. É possível fazer um paralelo aqui com a noção de intensidade de

imersão nas cibernarrativas. Nestas, a variação da distância do leitor em relação à narrativa

parece surgir mais claramente, pois há uma demanda constante para que o leitor participe da

construção física do ambiente imersivo, e não apenas através da imaginação. A característica da

cibernarrativa é justamente exigir do leitor um deslocamento físico na obra, seja ele relacionado

ao tempo verbal, à pessoa que narra, ou mesmo relativo ao uso do código de programação na

configuração da narrativa. Esse deslocamento físico pode, numa obra com características

cibernarrativas, ser registrado e passar a fazer parte da obra. Nesse momento, a cibernarrativa

parece alcançar o máximo de sua intensidade. A experiência de uma leitura registrada ao lado da

obra que se pretende ler é a experiência do contato com dois momentos de mimese, nos termos de

Paul Ricoeur. Há o caráter de mimese III presente, em função de a leitura ser uma reconfiguração

39 “This experience of being transported onto the narrative scene is so intense and demanding on the imagination that it cannot be sustained for a very long time; an important aspect of narrative art consists, therefore, of varying the distance, just as a sophisticated movie will vary the focal lenght of the câmera lens.”

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de uma narrativa configurada. Entretanto, como tal leitura se encontra registrada, ela surge como

mimese II, pois faz parte da nova configuração da obra. É como se o suporte em rede permitisse à

obra, em mimese II, incorporar as experiências que são próprias da mimese III. E ainda, se a

leitura registrada de um determinado leitor for destrinchada em relação às suas camadas

temporais, pode-se dizer que tal obra voltaria ao seu estado de mimese I, de um tempo e uma

narrativa pré-figurados. Estruturada dessa forma, a cibernarrativa permitiria uma reversibilidade

da narrativa espacializada em direção a uma narrativa temporalizada, em que o tempo aparece de

forma pré-figurada. As cibernarrativas colaborativas, em que a produção da base de dados, ou a

produção das perspectivas ou camadas temporais é aberta a vários ou a todos os leitores, parece

ser o estágio mais intenso de imersão próprio desse tipo de narrativa. Ou seja, a cibernarrativa

permitiria e, mesmo, demandaria uma imersão temporal ou de caráter temporal e menos uma

imersão espacial. E não se trata, aqui, do tipo de temporalidade presente numa narrativa

configurada, mas de uma temporalidade que surge ainda não narrada.

De que maneira Marie-Laure Ryan trata a imersão temporal? A discussão realizada pela

autora aborda a imersão temporal a partir da ótica do suspense, como uma metáfora para

descrever a relação entre as escolhas dadas ao leitor no desenrolar de uma história e a sensação

temporal originada dessa atividade.

“Genericamente falando, imersão temporal é o envolvimento do leitor no proceso pelo qual a progressão da narrativa destila o campo dos potenciais, selecionando um ramo como contra-factual, e o resultado dessa seleção continuamente gera novas vistualidades. A passagem do tempo importa para o leitor porque ela não é um processo de mera acumulação de partículas do tempo, mas um processo de descobrimento.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 141)40.

Para a autora, a imersão temporal total só aconteceria no grau máximo de uma situação de

suspense, em que a eliminação gradual das possibilidades de escolha entre as camadas temporais

levaria o leitor ao total envolvimento em relação à camada que resta, ou em relação a duas

últimas escolhas possíveis. O conceito de imersão depende, então, a seguir essa linha de

raciocínio, de um envolvimento emocional intenso do espectador em uma determinada camada

temporal. Esse envolvimento conduz a discussão para um caminho oposto ao que se propõe para

40 “Generally speaking, temporal immersion is the reader’s involvement in the process by which the progression of narrative time distills the field of the potential, selecting one branch as the counterfactual, and as a result of this selection continually generates new ranges of virtualities. The passing of time matters to the reader because it is not a mere accumulation of time particles but a process of disclosure.”

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pensar a imersão temporal na cibernarrativa nessa tese. Defende-se a noção de que a imersão, em

uma cibernarrativa, pressupõe a percepção de que o ambiente ou a camada temporal que envolve

a percepção da narrativa é perfeitamente compreendida como uma escolha, e que as outras

camadas permanecem com o mesmo nível de probabilidade de escolha por parte do leitor. Isso

porque a imersão aqui é aquela relativa à entrada na narrativa pré-figurada, uma imersão em um

tempo ainda não-contado. O fato da imersão temporal na cibernarrativa acontecer no campo das

narrativas pré-figuradas, no momento de sua estruturação física pelo leitor, significa que a noção

de envolvimento emocional proposta pela autora importa menos no caso das cibernarrativas.

Paradoxalmente, o fato do leitor poder produzir novas configurações narrativas fisicamente pode

originar uma maneira de perceber o efeito estético imersivo a partir de novos parâmetros que não

somente o envolvimento emocional.

Mesmo que se considere a ressalva feita à associação entre suspense e imersão espacial, há

uma questão na obra de Ryan que permite discutir a associação entre espectador e criação. A

autora define a intensidade temporal em função dos níveis de suspense propostos em uma

narrativa e descreve o meta-suspense como um tipo que não pertence propriamente à poética da

imersão. Entretanto, afirma que a relação aqui se aproxima da interação com a obra. Para a

presente discussão, o meta-suspense seria o tipo de imersão próprio de uma cibernarrativa. “No

meta-suspense o foco de atenção do leitor não é descobrir o que acontece a seguir no mundo

textual, mas como o autor irá manter juntos todos os fios e dar ao texto uma forma narrativa

apropriada.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 145)41 . A definição acima não explora o máximo

de intensidade ou de análise crítica permitida pelo meta-suspense. No caso das cibernarrativas, tal

envolvimento crítico iria até o ponto de permitir ao leitor experimentar o ato de contar a história,

fisicamente, ao acessar uma espécie de base de dados referentes ao tempo da ação prática, ainda

não estruturados numa narrativa. A cibernarrativa não demandaria uma escolha em detrimento

das outras, mas a presença constante de todas as possibilidades de produção de narrativas em

função do acesso a essa base de dados. Não mais uma imersão emocional como causa de uma

imersão temporal, mas também a abertura para uma imersão quase física num tempo que estaria

deixando de ser representado espacialmente. Nas cibernarrativas o leitor não se vê envolvido

somente pelo tempo da ação configurada, mas sim no trabalho com o código, maleável e

41 “In metasuspense the focus of the reader’s concern is not to find out what happens next in the textual world but how the author is going to tie all the strands together and give the text proper narrative form.”

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manuseável indefinidamente. Nesse caso, pode-se até falar de uma absorção, mas o leitor se vê

diante do tempo distribuído em códigos de programação que não conseguem espacializar o tempo

e, sim, sugerir a presença das diversas camadas temporais que constituirão a obra.

A proposta de Marie-Laure Ryan para definir a narrativa virtual como imersão apresenta

uma similaridade com o tipo de experiência descrita acima, como se pode perceber nesta

descrição.

“Ao descrever o suporte material da representação – um suporte que funciona como um referencial primário do discurso – através de recursos retóricos como a equifrase, paráfrase, ou sumário, o narrador conjura imagens do mundo refletido. Quando essas imagens formam uma história, o narrador indiretamente produz uma narração, ou o efeito de uma, mesmo que o seu discurso seja focado em algo diferente dos eventos narrados.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 164)42.

Não se trata, na narrativa virtual, de contar uma história já acontecida, mas sim de construí-

la à medida que a narrativa evolui. A descrição do suporte material da representação causaria esse

efeito de algo que ainda não aconteceu e que surge porque está sendo contado. Em vários

exemplos, a autora demonstra como é possível envolver o leitor na própria história, de maneira a

fazê-lo se sentir como aquele que constrói a história porque a está lendo. O leitor percebe a obra

em construção pela sua leitura, como em “Se um viajante numa noite de inverno...”, de Ítalo

Calvino (1999). O efeito imersivo conseguido aqui é bastante similar à idéia de acesso ao código

manipulado pelo autor quando produziu a obra. Nesse caso, parece que ela só irá terminar se o

leitor se dispuser a lê-la efetivamente. E, em alguns outros casos, o próprio mundo do texto, ou os

personagens, parecem ter a consciência de que são uma construção da mente do leitor. É como se

o texto fosse produzido já evocando, nos personagens, a consciência de que são parte de uma

história narrada. Um paralelo possível com a cibernarrativa seria pensar os elementos

componentes desse tipo de narrativa como códigos abertos à manipulação física, porque são

estruturados como elementos inconstantes, alteráveis pelo leitor. Ou melhor, apresentados como

elementos que, para poderem ser incorporados à narrativa, deverão ser manipulados fisicamente.

Em relação aos jogos de simulação como, novamente, Simcity, os elementos são apresentados de

maneira a só existirem no cenário se forem construídos para lá estarem.

42 “By describing the material support of the representation – a support that functions as primary discourse referent – through such rethorical devices as ekphrasis, paraphrase, or summary, the speaker conjures images of the reflected world. When these images form a story, the speaker indirectly produces a narration, or the effect of one, even though his discourse is focused on something other than the narrated events.”

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Apesar de todas as possibilidades abertas pela autora em sua análise, novamente há uma

busca por um ponto de equilíbrio entre a imersão em que o leitor percebe claramente as técnicas

imersivas e a imersão emocional sem interferência do suporte ou meio de forma perceptível.

Segundo Marie-Laure Ryan, a imersão não poderia ser percebida de dentro do ambiente imersivo,

pois isso poderia destruí-la. Deveria ser criada uma distância contemplativa para que a imersão

fosse percebida, em que a narrativa virtual seria o ponto de partida e nunca o objetivo final dessa

ação. Embora se possa considerar essa afirmação como um alerta para uma possível perda da

sensação de imersão em uma narrativa, no caso das cibernarrativas seria permitido pensar a partir

de uma outra lógica. Se o sentido, nesses casos, for justamente enfatizar a maleabilidade e a

instabilidade do material utilizado na narrativa, o destino desta não seria só cair numa narração

real, mas talvez se manter sempre como um campo de tensão para a experiência de escrita e

leitura. Ou ainda, o ideal seria a ênfase sempre no processo que se dá entre escrita e leitura, e não

a escolha de um ou outro lado.

Há sempre uma tentativa de equilíbrio entre o ato de leitura como ato de criação relativo à

imagem de um mundo; e o ato de leitura como um ato de estruturação física de uma obra, para

que depois se possa falar da construção do sentido através da leitura. A primeira perspectiva,

relativa à passagem de mimese II para mimese III, não só é discutida aqui, mas também na

abordagem de Marie-Laure Ryan. Já a segunda perspectiva surge, no caso da autora mencionada,

relacionada ao que ela mesma denomina uma poética da interatividade. Como já se destacam

nesse momento do texto características do que se pode compreender como cibernarrativa, em

contraponto à noção de texto como mundo e imersão puramente emocional, parece prudente, no

mínimo, confrontar tais características com a idéia de uma poética da interatividade.

Para pensar a interatividade, Ryan propõe complementar a discussão de imersão baseada na

relação entre as metáforas do texto como mundo e do texto como jogo. Embora o detalhamento

dessa análise pareça um empreendimento pouco útil nessa tese, considerando o conceito de

cibertexto trabalhado por Aarseth (1997), as delimitações da autora podem definir, com maior

precisão, o conceito de cibertexto e também o conceito de cibernarrativa. A primeira observação

sobre o texto como jogo ressalta o caráter vago do paralelo entre texto literário e as definições

relativas aos jogos. A aparente crítica feita por Marie-Laure Ryan prepara, na verdade, uma

discussão mais cuidadosa sobre jogos e textos, nas suas similaridades e diferenças. Nesse sentido,

a autora critica aqueles que vêem similaridades baseados no fato de que tanto em um jogo quanto

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em um texto literário há um prazer desinteressado e que as regras do jogo ou as “regras” da

leitura garantiriam essa participação prazerosa do leitor.

Uma primeira diferença evocada por Ryan já demonstra, paradoxalmente, quão similares

podem ser as cibernarrativas e os games. Segundo a autora, a diferença entre os textos e os jogos

reside no fato de que, enquanto nos primeiros o leitor apreende as regras enquanto lê, nos games

o leitor precisa primeiro conhecer as regras para só então “entrar no campo de jogo”. Ainda que

se possa concordar com essa afirmação, nos jogos multiusuários e nos jogos que permitem ao

jogador alterar elementos ou criá-los, há a possibilidade de mudança das regras em função de se

jogar o jogo. Se as cibernarrativas caracterizam-se por permitir ao leitor acessar o tempo pré-

figurado, então se pode dizer que há mais similaridades que diferenças, nesse caso. As

similaridades acontecem em função do tipo de imersão demandada pela cibernarrativa.

No caso das similaridades, a autora utiliza a tipologia empregada por Roger Caillois (1990),

segundo a qual é possível destacar quatro tipos de jogos: agon, jogos baseados na idéia de

competição; alea, os jogos de “azar”; mimicry, jogos de imitação ou faz-de-conta; e ilinx, jogos

que envolvem a transgressão de barreira, a reversão de categorias estabelecidas e o caos

temporário, porque baseados na idéia de vertigem. A definição de jogo como ilinx se aproxima

bastante do tipo de proposta apresentada para explicar o comportamento das cibernarrativas:

obras processuais, cuja estrutura é questionada o tempo inteiro, em que a própria combinação dos

elementos não é completamente definida e em que a narrativa surge como uma história não-

contada, como um tempo pré-figurado. Ainda que em sua tipologia Caillois enfatize a noção de

vertigem associada à ilinx, o que se percebe ao longo da discussão é que nesse tipo de jogo a

regra parece estar associada fundamentalmente ao ato de começar a jogar, de começar a

experimentar a vertigem. Como se as regras fossem direcionadas justamente para a ação de

iniciar a vertigem, de iniciar a experiência de entrada no jogo.

Marie-Laure Ryan (2001) realiza ainda outras comparações entre textos e jogos e a

metáfora de texto como mundo. Para a autora, alguns elementos são centrais para a realização

desse paralelo. No caso da função desempenhada pela linguagem, um dos elementos analisados, a

autora afirma que o texto como jogo apresenta uma perspectiva aberta, reconfigurável, como se

fosse uma rede de relações entre unidades semi-autônomas e não uma imagem a ser consumida.

O texto é reconfigurável pelo próprio ato de jogar, o que permite vê-lo como uma operação em

que o leitor pode acessar a narrativa em estado de mimese I, ou quase no estado de mimese I. A

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segunda questão que aproxima essa visão da cibernarrativa é a noção de texto como uma rede de

relações entre unidades semi-autônomas. Há duas considerações a se fazer aqui: o texto como

imagem, conforme proposição de Wolfgang Iser (1996), funciona a partir de um princípio

diferenciado nas cibernarrativas, em que o texto não está mais no lugar do que falta e sim como

capaz de construir o seu próprio espaço, através do ato de leitura/escrita, ou melhor, de

escrileitura. A segunda consideração centra-se na visão do texto como recurso renovável e não

como mercadoria consumível. Essa forma de pensar é bastante apropriada ao modo de

comportamento das cibernarrativas, caracterizado por um processo de construção constante de

novas mimeses I, que levam sempre a novas produções de possibilidades de produção.

Em relação a um outro elemento, a concepção de espaço, o texto como jogo é visto como

um espaço bidimensional, em que as palavras são manipuladas e o mapa é uma rede de relações

que conecta unidades textuais, determina padrões de acessibilidade e traça figuras formais. No

caso da metáfora do texto como mundo, o espaço é um ambiente tridimensional em que se é

possível viver “dentro”. Se há nessas definições uma contradição clara, não parece ser necessário,

no caso das cibernarrativas, corroborar essa contradição. Manipular o código de uma

cibernarrativa não exige que esse código exista somente em duas dimensões; é possível criar

ambientes tridimensionais, em que o leitor escreve novos elementos e os incorpora ao ambiente.

De fato, essa parece ser uma evolução natural para a produção colaborativa em cibernarrativas:

buscar conexões cada vez mais complexas, em que os códigos de programação que geram

imagens, sons e signos verbais estejam todos à disposição dos leitores. No tipo de imersão

permitido pela cibernarrativa, o leitor não cria somente um mapa mental do que está diante de si.

Ele pode manipular fisicamente esse texto, ou melhor, essa obra.

Ao final da comparação entre as duas metáforas – o texto como mundo; o texto como jogo

– Marie-Laure Ryan propõe uma oscilação entre imersão e não-imersão como forma de

aproveitar o texto tanto como mundo quanto como jogo. Seriam metáforas complementares para

abarcar o texto como fenômeno. Uma das maneiras de criar essa oscilação é tornar o código da

obra manipulável, ou seja, permitir ao leitor o acesso a esse código no momento e como parte da

sua leitura. A leitura seria vista, dessa forma, como um processo em que a imersão é demandada,

exigida pelo próprio modo como a obra se apresenta. A imersão não seria, em primeiro lugar,

aquela do envolvimento emocional e da transparência do meio, mas aquela própria do ato físico

de construção da obra. O leitor deveria interferir na disposição dos elementos da obra para

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começar não a ler uma narrativa configurada, mas configurar uma narrativa a ser lida. Ou, como

prefere Marie-Laure Ryan, ao falar de interatividade, “no tipo mais completo de interatividade,

finalmente, o envolvimento do usuário é uma ação produtiva que deixa uma marca durável no

mundo textual, seja ao adicionar objetos à sua paisagem, seja escrevendo a sua história.”

(tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 205)43 . Esse tipo de interatividade, em função do seu caráter e

da sua possibilidade de uma experiência imersiva que modifica o próprio ambiente imersivo é o

que parece mais próximo daquele exigido por uma cibernarrativa.

A autora divide o conceito de interatividade em interatividade seletiva ou interatividade

produtiva. A interatividade seletiva, conforme o próprio nome indica, define-se pelas escolhas

que o leitor pode fazer em relação aos textos interativos. Marie-Laure Ryan sugere sete tipos de

escolhas permitidas ao leitor, e que fariam esse leitor, supostamente, querer interferir no texto,

quais sejam: interferir para determinar a trama da história; interferir para mudar a perspectiva do

mundo do texto; explorar todos os campos de possibilidades da obra; manter a máquina textual

em funcionamento; recuperar informações; jogar jogos e resolver problemas e avaliar o texto.

A interatividade produtiva possui todas as características acima, além das duas a seguir: a

possibilidade dada ao leitor de participar na escrita do texto realizando contribuições permanentes

num banco de dados, ou num projeto coletivo; engajar-se em um diálogo e desempenhar funções

no texto. No caso da interatividade produtiva, o envolvimento do usuário leva a uma ação que

deixa marcas permanentes na obra. Essa seria uma das condições para a produção de obras

cibernarrativas: o leitor participa fisicamente do movimento da obra, ao criar mudanças

permanentes nesse ambiente. Marie-Laure Ryan não considera o texto ergódico como capaz,

sozinho, de produzir o tipo de interatividade que ela denomina de interatividade produtiva. Isso

porque o texto ergódico poderia funcionar de forma autônoma, gerando novas combinações, a

partir de um único comando do leitor. Ou seja, esse leitor não precisaria produzir uma narrativa

configurada, mas apenas realizar uma escolha que faria com que a obra gerasse suas próprias

configurações. Se o caráter ciber tem como uma de suas constituintes a possibilidade do leitor

acessar outras leituras de outros leitores como partes da obra, em função da imersão no tempo

pré-figurado da narrativa, parece ser preciso ampliar o conceito de cibernarrativa a partir do seu

pilar básico, qual seja, o conceito de cibertexto. Por que a cibernarrativa permite, ao leitor, o

43 “In the fullest type of interactivity, finally, the user’s involvement is a productive action that leaves a durable mark on the textual world, either by adding objetcts to its landscape or by writing its history.”

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acesso a um tempo pré-configurado? As características utilizadas por Lev Manovich (2001) para

descrever a linguagem da nova mídia permitem uma explicação inicial para a pergunta. Segundo

o autor russo, tal linguagem seria composta por quatro elementos principais: a representação

numérica, a modularidade, a automação e a variabilidade. Essas quatro características servem

aqui para corroborar as várias alusões feitas, ao longo do capítulo, sobre como a imersão pode

acontecer na cibernarrativa. Manovich chama a atenção para o fato de que nem todos os objetos

da nova mídia precisam obedecer aos princípios contidos na explicação de como funcionam as

características. A primeira característica associada à nova mídia, a representação numérica,

permite dizer que um objeto da nova mídia está sujeito à manipulação algorítmica. Ou seja, a

mídia torna-se programável. Se as cibernarrativas baseiam-se nessas características, explica-se

aqui a relação entre o texto enquanto acontecimento, segundo Iser (1996) e o texto programável,

em Manovich (2001). O que Manovich deseja enfatizar é que os dados que configuram um objeto

da nova mídia podem ser manipulados porque são representações numéricas. Isso permite afirmar

que a cibernarrativa pode ser trabalhada a partir de dados pré-figurados, em estado de mimese I,

já que tais dados podem ser transformados em conjuntos numéricos programáveis.

O segundo princípio descrito por Manovich é a modularidade, segundo o qual a nova mídia

possui uma estrutura fractal. Os objetos são modulares e podem ser recombinados

indefinidamente sem perder suas características singulares. Tome-se aqui como exemplo o caso

da obra circ_lular, em que o receptor-participante pode manipular conjuntos de dados

modularizados em uma ilha de edição não-linear. É possível, para qualquer receptor-participante,

acessar o conjunto dos dados agrupados em uma narrativa configurada, mas é possível também

voltar ao conjunto de dados separados e recombiná-los indefinidamente.

A automação, terceiro dos princípios da nova mídia, relaciona-se com a capacidade de criar

algoritmos que corrigem automaticamente determinados comportamentos dentro de um

programa, ou dentro de um jogo. O que se pode dizer aqui é que, ao alterar algoritmos que

regulam comportamentos emergentes (Johnson, 2001), o programador de um jogo está

interferindo nas narrativas que poderão ser criadas automaticamente pelo jogo. Ou seja, em

interfaces interativas, a escrita com o código é verdadeiramente um tipo de escrita com a

estrutura ainda não configurada da obra. Aqui se pode dizer que o meta-autor não configura uma

narrativa ao trabalhar com toda a potência das cibernarrativas. Antes, ele sugere as regras

combinatórias que regularão o contato com a interface. Em jogos como Warcraft, o programador

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escreve as regras que permitem a criação de cenários, de novos personagens, além, é claro, de

criar as narrativas configuradas do jogo. Entretanto, quando esse programador meta-autor se

depara com a escrita de algoritmos que definem de que maneira os cenários podem ser criados,

está utilizando a idéia de que, em uma cibernarrativa é possível deixar que o receptor-participante

acesse as regras da narrativa ainda antes de elas serem combinadas. Mesmo que a possibilidade

de combinação não possa ser total, ou que o receptor-participante não seja ainda livre para definir

como combinar os algoritmos, ele já pode aproximar-se muito do estado de mimese I da obra.

A última das características da nova mídia, a variabilidade, baseia-se no fato de que um

objeto da nova mídia é algo que não está fixo de uma vez por todas, mas que pode existir,

potencialmente, em infinitas versões. Se relacionarmos essa característica com as cibernarrativas,

pode-se perceber que, nesse tipo de narrativas importa investigar os processos que fazem surgir

as diferentes versões. E tais processos relacionam-se a um tipo específico de imersão: aquele em

que o receptor-participante manipula as quatro características indicadas por Manovich. Ou seja,

uma imersão que, para além da “entrada” em um ambiente, compreende que esse ambiente é

programável, porque é modular, e pode dar origem a vários ambientes, de acordo com o grau de

variação das combinações entre os seus elementos. E esse tipo de imersão que se pretende

explorar para identificar como ela condiciona a criação de cibernarrativas.

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6 DAS RELAÇÕES ENTRE CIBERNARRATIVAS E IMERSÃO

6.1 Uma tipologia para cibertextos

As relações propostas nesse capítulo final são um desdobramento das tipologias

desenvolvidas por Espen Aarseth, Marie-Laure Ryan e os conceitos de mimese expostos por Paul

Ricoeur. Se o conceito de imersão é visto a partir de uma perspectiva relacional, parece uma

conseqüência lógica verificar sua presença nas cibernarrativas sob a mesma ótica. Assim, o

objetivo é discutir as tipologias dos dois primeiros autores mencionados na busca de uma

aproximação mais detalhada do processo de construção das cibernarrativas. As análises

realizadas apresentam questões variadas, em função mesmo do caráter de processo das obras, que

se intensifica à medida que elas permitem a participação do receptor-participante e ainda mais

quando as obras exigem essa participação. À guisa de conclusão da tese, pretende-se também

indicar uma tipologia para definir alguns padrões de comportamento dos processos

cibernarrativos, mas também indicar questões suscitadas por essa tese e que não parecem ter

respostas muito claras.

A tipologia desenvolvida por Aarseth sugere propriedades relativas ao modo como os

scriptons são gerados ou revelados ao leitor a partir da configuração dos textons. Segundo

Aarseth, a sua preocupação é gerar um modelo que indique de que maneira os cibertextos podem

ser atravessados. As variáveis expostas por ele, como se verá a seguir, derivam da sua maneira de

encarar os cibertextos: a partir da perspectiva comunicacional de textos dinâmicos. Dessa

tipologia pretende-se utilizar justamente tal percepção, esta que compreende os cibertextos como

sempre em movimento. Já Marie-Laure Ryan procura ampliar um pouco a tipologia de Aarseth

ao agrupar características ergódicas com o tipo de interatividade apresentada por obras variadas.

Sua tipologia baseia-se, principalmente, no tipo de interatividade apresentada pelas obras,

dividida em interatividade seletiva ou produtiva. Aqui o que se percebe é uma atenção maior nas

obras e a classificação parece se aproximar mais de uma análise da obra realizada do que do

processo de construção das narrativas.

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Aarseth (1997) cria uma tipologia para os cibertextos baseada em um conjunto de

características cujo pano de fundo são os movimentos que o operador humano pode fazer em um

cibertexto, considerando o comportamento de textons e scriptons. Apenas para lembrar a

terminologia empregada pelo autor, os textons são considerados, por Aarseth, como a estrutura

física do cibertexto, o arranjo dos significantes dentro dele. Já os scriptons seriam aquilo que um

leitor ideal leria ao seguir as configurações textuais propostas. Esse segundo termo seria mais

próximo daquilo do que se pode chamar de atividade interpretativa do texto. Segundo a tipologia

de Aarseth, os cibertextos podem ser experimentados considerando: a sua dinâmica; o grau de

determinabilidade; a transiency44 presente no cibertexto; a perspectiva; o acesso; o grau de

ligação entre os elementos; e as funções do usuário, divididas em explorativas, configurativas,

interpretativas ou “textônicas”. Cada uma das variáveis indica de que maneira o processo pode

ser mais ou menos cibertextual, conforme a combinação delas. A variação dentro de cada

característica indica o grau de modificação que o cibertexto permite ao leitor e,

conseqüentemente, de que maneira a imersão do leitor na obra pode criar ou não o próprio

ambiente imersivo.

A propriedade de dinamismo relaciona-se ao grau de estabilidade dos scriptons no

cibertexto. Numa obra mais estática, os scriptons são constantes, enquanto em obras mais

dinâmicas pode haver variações entre o número de textons e scriptons. Ou seja, um número fixo

de textons pode gerar vários scriptons, ou o número de textons pode variar também. Isso significa

dizer que nas obras dinâmicas em seu mais alto grau, o cibertexto pode ser construído

indefinidamente, pois ele varia fisicamente também, com o aumento do número de textons. No

exemplo dado por Aarseth para esse último caso, os MUDs, o receptor-participante poderia não

só acessar a configuração da narrativa já construída, mas também construir a continuação da

narrativa. Em relação ao dinamismo do cibertexto, ele seria tanto mais dinâmico quanto mais

permitisse ao receptor-participante se aproximar da mimese I para poder alterá-la.

O grau de determinação do cibertexto varia de acordo com a maneira como os movimentos

do receptor-participante alteram a configuração dos scriptons. Segundo Aarseth,

“um texto é determinado se os scriptons adjacentes de cada outro scripton são sempre os mesmos; se não, o texto é indeterminado. Em alguns jogos de aventura, a mesma

44 Esse termo será discutido um pouco mais adiante no texto. Não parece haver tradução em português para ele. O termo relaciona-se à passagem no e do tempo.

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resposta a uma dada situação irá gerar sempre o mesmo resultado. Em outros jogos, funções randômicas (como o rolar de dados) tornam o resultado imprevisível.”(tradução nossa) (AARSETH, 1997, p. 63)45.

Em obras menos determináveis, a reconfiguração da narrativa através do processo de

navegação pode gerar resultados sempre diferentes, relativos às várias interpretações possíveis de

uma obra. Quando se acrescentam a essas reconfigurações comportamentos emergentes, relativos

às regras da narrativa ou ao código de programação, como parece ser o caso no exemplo dado por

Aarseth, sugere-se ao receptor-participante que sua participação altere a mimese I. Entretanto, as

respostas são ainda programadas, ainda que possam ser randômicas e aparentemente indefinidas

em termos de número. Ou seja, não há realmente uma modificação das regras do cibertexto, mas

uma abertura da leitura para que o receptor-participante perceba mais claramente o

funcionamento das perspectivas textuais, ou o modo como os scriptons surgem.

Uma terceira variável na tipologia de Aarseth é o que o autor denomina “transiency”, um

termo que, aparentemente, não encontra tradução no português e que indica uma impermanência,

a qualidade de ser passageiro. Essa característica indica de que modo a passagem do tempo altera

ou não o cibertexto, no que diz respeito à aparição dos scriptons. Os textos que se alteram e

fazem surgir novos scriptons com o passar do tempo do usuário são considerados transientes,

enquanto aqueles que precisam ser ativados pelos usuários seriam não-transientes. Essa variável

não parece permitir ao leitor um contato com a mimese I ou um tipo de imersão que se relacione à

modificação física na obra. O cibertexto pode simplesmente ser mais ou menos instável,

intensificando a sensação de desmaterialização do suporte digital para o receptor-participante

desse texto.

A variável relacionada à perspectiva indica se o cibertexto possibilita uma perspectiva

pessoal ou impessoal, relativa ao modo como o cibertexto convoca o leitor e o posiciona na

trama. Essa característica interfere mais diretamente no acesso que o receptor-participante pode

ter à mimese I e como esse acesso irá ou não modificar o cibertexto. Se o texto exige do receptor-

participante o desempenho de uma função estratégica como personagem no mundo do texto,

então o cibertexto seria pessoal; caso isso não aconteça, o cibertexto seria impessoal. No caso dos

textos pessoais, o receptor-participante teria um papel fundamental no desenrolar da trama, o que

45 “a text is determinate if the adjacente scriptons of every scripton are always the same; if not, the text is indeterminate. In some adventure games, the same response to a fivem situation will always produce the same result. In other games, random functions (such as the use of dice) make the result unpredictable.”

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permite dizer que os cibertextos pessoais sugerem um acesso à mimese I e um tipo de imersão

capaz de modificar fisicamente a obra. Entretanto, nesse momento da discussão Aarseth não

menciona como os scriptons e textons aparecem ou não nessa variável, o que causa uma certa

dificuldade de análise da própria categoria. Afinal, a tipologia é baseada no comportamento de

scriptons e textons dentro do cibertexto.

O acesso é uma outra variável para categorizar o cibertexto como randômico ou controlado.

Se os scriptons do cibertexto são disponíveis para o leitor em todos os momentos da leitura, o

texto é mais randômico, e Aarseth exemplifica esse caso falando do codex. Ou seja, numa obra

impressa, é possível ler todos os scriptons que a obra poderia gerar, pois a obra não limita o

acesso do receptor-participante em função da sua estrutura. Nesse sentido, ela seria randômica,

pois não haveria uma hierarquia estrutural que o receptor-participante deveria respeitar para lê-la

completamente. A observação importante aqui diz respeito a uma suposta não-linearidade dos

hipertextos em meio eletrônico. Obras como Victory Garden seriam muito mais lineares do que

obras em meio impresso, justamente porque o acesso, nas primeiras, é controlado pela própria

estrutura de links da obra.

Em relação à capacidade de interligação do cibertexto, Aarseth estabelece para essa

categoria três subdivisões: o texto pode conter links explícitos para que o receptor-participante

navegue, os links podem ser disponibilizados para navegação apenas se o receptor-participante

cumprir certas condições ou pode não haver links no cibertexto. Aqui também a capacidade de

alteração do cibertexto não está associada a qualquer tipo de modificação física na obra, mas a

leituras diferentes que mostram partes diferentes da obra, de acordo com os movimentos do

receptor-participante. Há uma sensação de interferência na parte física, que pode ser associada

também a tipos de combinações diferentes escolhidas pelos receptores-participantes, no que diz

respeito às ações que podem fazer aparecer ou não links no seio da obra. Como uma obra

cibertextual é dividida entre o que aparece na tela e o que está no código de programação, mas

que não necessariamente irá aparecer na tela, é preciso ainda pensar de que maneira, aqui, o

receptor-participante escreve ou não com o código. A navegação não parece ser capaz de alterar o

código, mas parece possível afirmar que há uma leitura que depende de que partes do código são

ativadas.

A última categoria da tipologia de Aarseth é aquela relacionada às funções que o usuário

pode desempenhar no cibertexto. Essa é a variável que melhor se aproxima à idéia de imersão

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defendida nessa tese, pois diz respeito, fundamentalmente, ao grau de interferência que o

cibertexto permite ao receptor-participante no que concerne à estrutura física da obra cibertextual.

Como já dito anteriormente, as funções do usuário são divididas em quatro subitens: a função

interpretativa, de nível mais elementar, presente em qualquer obra, relativa à construção de

significados a partir do texto, sem necessariamente criar uma interferência física na obra; a

função exploratória, em que o cibertexto permite ao usuário decidir que caminhos quer seguir na

navegação; a função configurativa, em que os scriptons são escolhidos ou criados, em parte, pelo

usuário; e a função “textônica”, em que os cibertextos permitem que funções transversais ou

textons sejam permanentemente adicionados à obra. Aarseth compara as quatro funções

permitidas ao receptor-participante e indica como cibertextos mais dinâmicos aqueles que

permitem ao receptor-participante desempenhar uma função “textônica”. O grau de dinamismo,

considerando o tipo de alteração física que o cibertexto pode sofrer, diminui quando a função

permitida é somente a de configurar scriptons, e diminui mais ainda se a função permitida é

apenas exploratória. No caso da função interpretativa, Aarseth considera que, nesse caso, o fluxo

de informação é somente da obra para o receptor-participante, uma vez que as interpretações não

podem ser acopladas ao cibertexto dinamicamente e imediatamente. O que Aarseth denomina

como função “textônica” é o que a tipologia a ser demonstrada mais adiante indica como a

possibilidade do receptor-participante alterar a mimese I de uma obra, através da imersão nessa

mesma mimese I.

O que parece ainda confuso na tipologia de Aarseth é a definição entre textons e scriptons.

Em alguns momentos da descrição das propriedades acima, parece haver uma confusão entre os

conceitos, sem que se saiba realmente ao certo qual é a real diferença entre eles. Como o objetivo

do autor é tentar destrinchar o modo de atravessamento dos cibertextos, essa também parece ser a

origem dessa dificuldade de definição, pois é como se Aarseth quisesse conferir aos dois termos

uma presença material quando, na verdade, eles indicam um modo de comportamento relativo

aos movimentos do leitor, aos movimentos do cibertexto e aos movimentos do próprio meio em

que se situa o cibertexto.

Pensar um “local” ou uma obra para criar uma tipologia baseada na imersão parece ensejar

apenas uma relação deste conceito com o espaço. Entretanto, ao se trabalhar aqui a noção de

camadas temnporais, não se trata apenas de pensar o espaço, mas fundamentalmente a relação

entre espaço e tempo no ato de uma escrita que se faz por imersão e que produz o próprio “local”

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onde imerge e onde emerge. Em uma obra literária puramente verbal, ainda que o escritor se

depare com uma delimitação espacial fortemente marcada, qual seja, aquela relativa aos signos

verbais no papel, por exemplo, o que ele, escritor, experimenta é o tensionamento de uma das

linhas de força que compõem a expressão escrita. Dessa maneira, a imersão não é somente

espacial, ou antes, é uma imersão num movimento, que aparece de forma espacializada, mas que

não se reduz ao espaço. É o que Merleau-Ponty parece dizer quando afirma que a obra é o que

atinge o espectador. Pode-se talvez modificar um pouco o enunciado e dizer que a obra atinge e é

atingida pelo espectador, mas não como coisa e sim como movimento.

Ou ainda, retomando a discussão que Iser empreende sobre o ato de leitura, pode-se discutir

a idéia de acontecimento que acompanha a noção de obra. Assim considerada, a cibernarrativa

aparece como um ponto dentro de uma rede em que não se pode precisar um único

atravessamento ou caminho ao qual ela pertenceria. De acordo com o tipo de abordagem a esta

rede, uma cibernarrativa qualquer se mostra ou pode se mostrar como pertencente a conjuntos

diferentes e talvez até mesmo como uma nova narrativa. Assim, talvez não se possa reduzir a

cibernarrativa a uma figura espacializada, mas seja preciso também abordar a dimensão temporal

dessa percepção. Ou seja, a imersão em uma obra é temporal e o tempo aqui diz respeito ao

instante da percepção da obra e do fenômeno textual que surge desse contato. Ao dizer que o

nome de autor atravessa os textos, que os recorta, que manifesta o modo de ser desses textos,

Foucault (1969) permite discutir a idéia de que uma obra é recortada e construída por diversas

possibilidades de imersão e o autor é uma dessas possibilidades. E esta é uma maneira pela qual

se pode pensar o conceito de imersão: é o aparecimento de uma função da própria obra ou uma

manifestação da obra e do seu modo de funcionamento.

Interessa aqui esse não-lugar de imersão em que o signo se choca com outras camadas que

compõem uma expressão. Parece que a imersão a que se sujeita o escritor e a que ele também

funda é justamente aquela que dá acesso ao entrecruzamento do pensamento, da materialidade do

meio de expressão e da percepção sensível. Há, então, um acesso sempre indireto a qualquer uma

das camadas, uma vez que elas também se movimentam e não se reduzem ao espaço em que

aparecem. Dependendo do modo e do momento em que se experimenta tal entrecruzamento,

parecerá que a imersão é, às vezes, mais temporal e instável, e outras vezes, mais espacial e com

uma tendência menor à instabilidade. Assim descrita, a imersão é também o que produz a sua

própria possibilidade de acontecimento, dentro da cibernarrativa.

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6.2 Uma tipologia para narrativas interativas

Marie-Laure Ryan (2001) cria uma tipologia com oito textos diferentes, a partir do fato de

apresentarem as seguintes características: serem ergódicos ou não, serem interativos ou não,

serem produzidos em meio eletrônico ou não. Ao aplicar a relação de tempo e narrativa aos

textos, pode-se perceber que a característica de imersão aparece de maneiras muito distintas em

cada uma delas.

No primeiro caso, os textos não-ergódicos, não-eletrônicos e não-interativos, associados

aos textos literários em papel, o leitor poderia acessar somente o estado de mimese II, de uma

narrativa configurada que permitirá a sua reconfiguração no ato de interpretação por parte do

leitor. A imersão aqui é mais de tipo emocional, prioritariamente, conforme terminologia usada

pela própria Marie-Laure Ryan. Ao aplicar aqui as funções do usuário, conforme a tipologia de

Aarseth, esses seriam os textos em que o usuário teria como função apenas a possibilidade

interpretativa. É sempre importante reafirmar que a função interpretativa não é considerada de

somenos importância nesse estudo; muito pelo contrário, ela é a base de todas as discussões sobre

o efeito estético permitido por um texto e também a base para se pensar de que maneira as

cibernarrativas potencializam a função interpretativa em níveis de modificação física da obra.

O segundo exemplo trabalhado pela autora são os textos interativos, não-eletrônicos e não-

ergódicos. Nessa categoria, Ryan enquadra dois conjuntos: um primeiro, relativo a uma

interatividade seletiva, relacionada ao diálogo entre quem ouve e quem conta uma história; um

segundo, que seria a conversação, ou o que Ryan chama de interatividade produtiva. Como nos

dois casos a configuração da narrativa não se faz sobre um suporte manipulável fisicamente,

esses tipos de textos não serão objeto de análise mais detalhada. Entretanto, as características de

oralidade presentes em um diálogo serão úteis para se discutir os exemplos que mais se

aproximam de uma cibernarrativa. Como aqui se tratam de narrativas contadas oralmente, a

relação entre as mimeses se apresenta muito similar a uma das características das cibernarrativas,

qual seja, o seu caráter eminentemente processual. Se narrador e ouvinte podem discutir uma

história que está sendo contada, há uma aproximação dos dois do estado de mimese I. Entretanto,

a reorganização da história de maneira pouco mais personalizada não interfere fisicamente na

história que será contada por outros narradores para outros ouvintes. A diferença principal entre o

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diálogo em torno de uma história e a cibernarrativa seria a possibilidade de deixar tal diálogo

registrado para outros leitores. É o caráter de efêmero que impede a semelhança total, mas o

diálogo e o seu registro físico são marcas importantes para se pensar a cibernarrativa. O tipo de

imersão característica de um diálogo é aquele em que a transparência do código aparece tanto no

envolvimento emocional quanto na percepção explícita dos mecanismos de criação do local de

interação. Ainda que não se possa falar em equilíbrio entre imersão emocional e imersão no e

com o uso do código, os dois tipos se alternam, considerando cada momento do diálogo.

O terceiro caso abarca os textos eletrônicos, não-interativos e não-ergódicos. No caso dos

textos em computador, pode-se falar de versões eletrônicas de textos impressos, sem links. A

experiência com as mimeses é a mesma daquela dos textos do primeiro caso, ainda que a interface

não favoreça uma leitura mais prazerosa do que no caso de textos literários em versão impressa.

Na comparação com o quarto caso descrito por Ryan, os textos ergódicos, não-eletrônicos e

não-interativos, a categoria de imersão e de trabalho com uma das mimeses não se apresenta de

maneira muito diversa daquela do primeiro caso. Entretanto, como a autora considera ergódicos

os textos, ou melhor, obras que podem produzir novas obras a partir de reações ao ambiente, ou a

mudanças ambientais, essa categoria tem se aproximado do que se poderia chamar uma

transparência dos mecanismos que criam uma narrativa configurada (mimese II) a partir de um

estado de pré-figuração (mimese I). Nesse sentido, os textos ergódicos explicitam o que pode

gerar um ambiente imersivo, mesmo que não necessariamente o leitor ou interagente possa criar

ou modificar os elementos presentes em mimese I, que podem ser gerados automaticamente.

Ainda assim, se são obras que reagem a mudanças ambientais, a aproximação com a

característica de uma obra em que o código será aberto para manipulação física por parte do leitor

é inevitável.

Em uma escala de intensidade crescente no que diz respeito à interpenetração das três

variáveis principais utilizadas pela autora (textos ergódicos, textos interativos e textos

eletrônicos), o quinto tipo de obras apresenta aquelas criadas para o meio eletrônico e dotadas de

interatividade, ainda que não-ergódicas. Elas são subdivididas pela autora em dois tipos, de

acordo com a possibilidade de interatividade: bases de dados textuais, ou sítios de busca,

baseados numa interatividade seletiva; conversas eletrônicas, como aquelas de salas de bate-papo,

baseadas em uma interatividade produtiva. No primeiro subtipo, o interagente não acessa

diretamente o estado de mimese I, mas também não está restrito ao estado de mimese III, de uma

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interpretação que não resulta em ação física sobre a obra. Não há um ambiente imersivo pronto,

mas comandos que podem criá-lo. Ou seja, o leitor pode configurar a narrativa, mas não pode

mudar o tipo de resultado que os comandos produzem sobre o estado de mimese I. Alterar as

palavras-chaves na busca não significa alterar o resultado quando se mantém as mesmas palavras-

chaves. Logo, é como ele se situar entre mimese I e mimese II, mas sem poder alterar a narrativa

que irá ser configurada. A reconfiguração em mimese III não se torna um acesso ou a produção

de uma nova mimese I. É como se os ambientes imersivos estivessem todos prontos e apenas não

disponibilizados. No segundo subtipo, o das conversas eletrônicas, o dinamismo da conversa

mostra bem uma proximidade entre uma possível mimese I e a ação característica de mimese III.

Apesar disso, não há aqui uma obra que possa ser vista como mimese II e modificada em seu

estado de mimese I. É como se o estado de mimese II fosse constantemente recriado. A

configuração da narrativa se faz ininterruptamente, mas não é minimamente registrada como uma

obra em estado de mimese I.

O sexto tipo de obras são aquelas eletrônicas, ergódicas, porém não interativas. Nessa

categoria estariam as obras de poesia eletrônica puramente reativas, que reagiriam a algum tipo

de modificação não necessariamente originada do movimento do leitor. A obra Grammatron, de

Mark América, poderia ser incluída aqui. Em Grammatron a obra apresenta modificações de

acordo com o passar do tempo, independentemente dos movimentos do usuário. Os poemas

animados de Augusto de Campos46 são também exemplos aproximados desse tipo de poesia

eletrônica. Aqui o receptor-participante não atua, apenas observa a obra em movimento, mas sem

poder interferir na construção da obra, sem ver o tipo de código que organiza as modificações. As

experiências do OULIPO poderiam também ser exemplos desse tipo de obras, como Cent Mille

milliards de poèmes, em meio impresso. Não há como falar aqui de uma imersão em um tempo

pré-figurado. Antes, são as várias narrativas em mimese II que surgem incessantemente em

função das combinações possíveis engendradas pelo autor da obra.

As obras ergódicas, interativas e não-eletrônicas são o sétimo tipo construído por Marie-

Laure Ryan. Nesse caso encaixam-se as obras não-lineares ou multilineares em meio impresso

que oferecem ao leitor a possibilidade de escolher a seqüência de leitura. A obra “O dicionário

Kazar”, mencionada anteriormente, funciona dessa maneira. O leitor pode escolher uma

seqüência de leitura, em função da configuração da própria obra. Ora, em qualquer texto

46 Disponíveis em http://www2.uol.com.br/augustodecampos/poemas.htm. Acessado em 02 de junho de 2007.

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impresso é possível escolher uma seqüência de leitura. A diferença aqui é que as várias

linearidades possíveis parecem ser pensadas pelo autor como parte da experiência mesma da

obra. Ou seja, não são escolhas aleatórias disponíveis ao leitor, embora as recombinações possam

ser de ordem quantitativa tal que pareçam infinitas. As obras em questão aproximam-se de uma

imersão que já não pode ser considerada mais emocional, segundo o conceito de Marie-Laure

Ryan, ainda que não se possa falar aqui de uma imersão física na obra. As regras que estruturam

a obra são disponibilizadas ao leitor, e a própria mimese I é acessível ao leitor, uma vez que ele

pode fazer combinações entre elementos que ainda não tiveram todas as suas relações narradas.

Entretanto, não é possível a esse leitor mudar as regras de combinação da obra, ou ao menos

colocá-las em discussão. Assim, há um acesso à mimese I, e o leitor pode configurar novas

narrativas, mas essas novas configurações não podem ser registradas como obras no meio em que

é feita a leitura.

Finalmente, Marie-Laure Ryan enumera ainda as obras ergódicas, interativas e eletrônicas,

subdivididas de acordo com o tipo de interatividade que permitem: os hipertextos literários,

vários tipos de poesia eletrônica e as próprias páginas da Internet aparecem como obras de

interatividade seletiva; os dramas interativos (que se assemelham muito às performances teatrais),

projetos literários coletivos e os MUDs fariam parte das obras com interatividade produtiva. As

obras pertencentes a esse último tipo, e dentro da interatividade produtiva, são obras com várias

características cibernarrativas, ainda que a autora procure considerá-las como obras e não como

processos. Na discussão final sobre imersão e interatividade, Marie-Laure Ryan sugere uma

análise mais cuidadosa das instalações em realidade virtual como ambientes capazes de realizar

um tipo de imersão interativa.

“Ao defender que a chave para a interatividade imersiva reside na participação do corpo num mundo-arte, não desejo sugerir que a interação deve ser reduzida aos gestos físicos, mas antes que a linguagem em si deva tornar-se um gesto, um modo corporal de ser-no-mundo. Como no caso das performances dramáticas, a contribuição verbal dos participantes irá contar como ações e atos de fala de um membro incorporado ao mundo ficcional.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 286)47.

47 “By arguing that the key to immersive interactiviy resides in the participation of the body in an art-world, I do not wish to suggest that interaction should be reduced to physical gestures, but rather that language itself should become a gesture, a corporeal mode of being-in-the world. As is the case in dramatic performance, the participant’s verbral contribution will count as the actions and speech acts of an embodied member of the fictional world.”

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A perspectiva sugerida pela autora sugere a interatividade imersiva como um processo em

que a imersão constrói o próprio mundo ficcional e que aqueles que o constroem o fazem como

membros desse próprio mundo. Ao agrupar os conceitos de mimese, imersão interativa e

cibertexto, o que essa tese procura é também uma tipologia para as cibernarrativas, mas não como

obras e sim como processos colaborativos em rede.

A relação entre as mimeses e narrativa engendrada por Paul Ricoeur (1994) permite a

utilização do conceito de mimese I para definir um tipo de imersão relacionada à construção física

do próprio ambiente imersivo. Como a mimese I relaciona-se com um tempo ainda não narrado,

um tempo pré-figurado, a experiência de contato do leitor com essa mimese se caracterizaria pela

criação da configuração da narrativa, pelo arranjo primeiro dos elementos do que Ricoeur chama

de traços estruturais da ação prática. O arranjo desses elementos é feito através do domínio de

padrões discursivos capazes de configurar a ação prática como uma narrativa. Assim, utilizar a

mimese I para definir a imersão característica das cibernarrativas significa discutir essa imersão a

partir de uma ação física sobre a obra.

Nesse sentido, a experiência de contato com a mimese I apresenta uma outra perspectiva

para a percepção da temporalidade na experiência estética. Ao acessar a mimese I o receptor-

participante pode trabalhar mais próximo das camadas temporais que estruturam uma narrativa

antes que elas estejam já entrelaçadas numa determinada configuração. Isso significa afirmar que

a imersão própria de uma cibernarrativa não é uma imersão espacial ou num tempo espacializado,

mas sim que essa imersão propicia o trabalho físico com traços temporais da narrativa,

estruturados numa obra processual em rede. Afinal, se as cibernarrativas podem ser modificadas

pelo leitor no estado de mimese I, a percepção temporal nelas e permitida por elas é a de um

tempo em estado de formação, mesmo que não seja um tempo puro, como poderá ser visto nas

obras analisadas. O tempo não aparece somente configurado, como em mimese II, ele pode ser

reconfigurado não apenas em termos de interpretação, mas em termos físicos.

Dessa maneira, o caráter de evento que Iser confere às obras, a partir da sua discussão sobre

o efeito estético, surge nas cibernarrativas como um processo de construção física da própria

narrativa, em conjunto com a possibilidade de mudanças de perspectiva dentro da obra, em

termos interpretativos. Se para experimentar o efeito estético o leitor deve se confrontar com o

pólo da obra, esse embate só é intensificado em direção à materialidade dessa obra, quando se

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trata de cibernarrativas. O que Aarseth denomina, então, de função “textônica” nada mais é do

que uma das características do tipo de imersão defendida nessa tese.

6.3 A imersão como condição para a produção de cibernarrativas

A conclusão fundamental dessa tese diz respeito à relação entre imersão e a perspectiva

fenomenológica. Ao longo do texto procurou-se enfatizar sempre o caráter relacional associado à

imersão, quando se diz que ela acontece sempre no visível e no invisível. Nesse sentido, a

imersão é a reversibilidade de que fala Merleau-Ponty, pois a imersão no espaço das

cibernarrativas é sempre uma imersão já na sua forma de comportar, ou seja, é uma imersão

também temporal. Produzir uma cibernarrativa é, então, antes de mais nada, experimentar a

imersão que irá criar a própria estrutura narrativa, que irá permitir a experiência dessa narrativa.

E a narrativa criada através e com a imersão é a experiência da reversibilidade entre espaço e

tempo, uma vez que é ao contar a narrativa que se percebe o tempo. O espaço da narrativa é

sempre atravessado pelo tempo e a imersão é justamente o momento em que acontece esse

atravessamento, em que o espaço se torna tempo, mesmo que e sempre, momentaneamente. A

imersão é a condição para a produção de cibernarrativas porque ela permite a experiência da

cibernarrativa enquanto ato de programar essa própria narrativa, ação essa que pode ser exercida

também por aquele que lê a narrativa. Ao “entrar” na cibernarrativa o leitor se vê, ao mesmo

tempo, dentro e fora do espaço da narrativa, uma vez que o seu ato de construir fisicamente a

narrativa será o ato que irá permitir a leitura da mesma. Por essa razão, propõ-se aqui uma

tipologia que considera as variações entre as mimeses e o conceito de imersão como o modo de

pensar a construção de uma cibernarrativa.

Alguns padrões se distinguem de maneira suficientemente clara para serem enunciados

como características centrais das cibernarrativas, na relação com os conceitos de imersão,

cibertexto e mimese:

1. Nas cibernarrativas, a narrativa aparece sempre em estado de mimese I - mesmo que a

mimese II também esteja presente - no momento do tempo pré-figurado -, e sua

configuração física em mimese II é uma conseqüência do ato de imersão engendrado pelos

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receptores-participantes. Para essa propriedade, deve-se considerar ainda a seguinte

subdivisão:

1.1. a cibernarrativa permite o acesso à mimese I e, além disso, é estruturada de tal

maneira que os receptores-participantes possam acrescentar dados à narrativa ainda

pré-figurada; ou

1.2. a cibernarrativa permite o acesso à mimese I, mas sem que os receptores-participantes

possam acrescentar outros dados ao estado de pré-figuração da narrativa; ou,

1.3. o estado de mimese I pode simplesmente não ser acessível ao receptor-participante.

2. Nas cibernarrativas, a imersão do receptor-participante não se dá em função da

transparência do meio, mas justamente da possibilidade de alteração física do código que

estrutura a obra, no momento da sua navegação, o que gera as seguintes subdivisões:

2.1. a imersão do receptor-participante permite visualizar as regras de funcionamento da

cibernarrativa e o código de programação do material, com alteração dessas regras e

alteração do código;

2.2. a imersão do receptor-participante permite visualizar o código de programação do

material, com alteração desse código. No entanto, as regras de funcionamento da

cibernarrativa podem ser vistas ou não, mas não podem ser alteradas;

2.3. a imersão do receptor-participante permite visualizar as regras de funcionamento da

cibernarrativas e elas podem ser alteradas. O código de programação que estrutura o

material, por sua vez, pode ser visualizado ou não, mas não pode ser alterado;

2.4. a imersão do receptor-participante permite visualizar as regras de funcionamento da

cibernarrativa ou o código de programação do material, mas nenhum dos dois pode

ser alterado pelo participante;

2.5. o receptor-participante não pode ver o código de programação ou as regras que

estruturam o funcionamento da obra, e não pode alterá-los.

3. Nas cibernarrativas, o receptor-participante acessa outras leituras realizadas, mas como

componentes da obra e também passíveis de alteração, o que comporta também as

subdivisões:

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3.1. o receptor-participante pode ver outras leituras já realizadas e pode criar uma

cibernarrativa a partir dessas leituras, alterando a ordem e acrescentando elementos à

cibernarrativa;

3.2. o receptor-participante pode ver outras leituras já realizadas e pode criar uma

cibernarrativa a partir dessas leituras, alterando a ordem dos elementos, mas sem

poder acrescentar novos elementos à ela;

3.3. o receptor-participante pode ver, mas não pode acessar fisicamente outras leituras já

realizadas em nenhum aspecto;

3.4. o receptor-participante não pode ver outras leituras já realizadas.

A categorização sugerida acima procura caracterizar as cibernarrativas a partir do ponto de

vista do seu processo de construção, conforme dito no início do capítulo. Um ponto parece

central: há um ambiente imersivo a ser construído pelo leitor, onde a construção poética se

manifesta fisicamente, como fluxo incessante de modificações e recombinações.

Considerando as subdivisões definidas em cada uma das categorias, é possível também

pensar em gêneros diferentes, de acordo com as combinações entre essas subdivisões. No

entanto, como se considera a imersão, nessa tese, a partir do ponto de vista em que ela constrói e

é demandada pela própria estrutura da obra, priorizar-se-á uma abordagem voltada para

compreender os processos de escrita e leitura permitidos pelas cibernarrativas analisadas, em

função das características que cada uma delas apresenta. Uma provável tipologia voltada para

enquadrar obras de acordo com as combinações possíveis entre as características já indicadas

apresenta o risco de retirar das cibernarrativas uma de suas características centrais, qual seja, a de

obras que se apresentam como possibilidades de produção de possibilidades, e não como

configurações nas quais o máximo que se pode fazer é trabalhar com uma interatividade seletiva.

Ao tomar as três macro-propriedades acima (acesso à mimese I; alteração física do código que

estrutura a obra; e acesso a outras leituras já realizadas), a combinação das primeiras subdivisões

de cada uma delas sugere um grau máximo de possibilidade de colaboração na cibernarrativa e

também um grau máximo de intensidade de imersão na materialidade da obra, por parte do

receptor-participante. Em contrapartida, a combinação das últimas subdivisões demonstraria a

inexistência de características de imersão em uma obra que se pretende cibernarrativa. Desde já

se pretende trabalhar com as subdivisões de modo a pensar que, em obras disponíveis em rede e

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cujo objetivo seja ensejar a colaboração do receptor-participante, tais obras podem ser

modificadas ao longo do seu tempo de existência de modo a ganharem características de imersão

ou colaboração que anteriormente não possuíam. A análise das obras e sítios a seguir procura

destacar essas possibilidades de mudanças, para enfatizar a cibernarrativa como um processo e

não como obra em si.

Para realizar a análise de obras com características cibernarrativas, o primeiro desafio foi

procurar critérios de seleção minimamente comuns entre a amostra selecionada, considerando a

discussão sobre imersão e narrativas. Nesse sentido, um problema constante, e que não é

resolvido completamente nessa tese, é descobrir quais são os critérios comuns quando se fala de

obras processuais em rede. Há várias compilações sobre poesia eletrônica, sobre literatura

eletrônica e sobre web arte, media art e tantos outros termos quantos se deseje encontrar,

disponíveis no universo da Internet.

Em diversos sítios sobre literatura eletrônica na web é possível perceber que as tipologias

ou nomenclaturas utilizadas são muito vagas, como que a indicar a dificuldade de definir

processos a partir de análises, cujo objetivo é definir qual tipo de obra o leitor encontrará pela

frente. Assim, é comum encontrar, nas várias compilações, obras em mais de uma categoria, ou

categorias muito semelhantes entre si. Além disso, há sempre muito cuidado em descrever as

categorias, o que também pode indicar o desafio de se criar tipologias num ambiente que prima

justamente pela mudança constante e, aparentemente, incessante.

Os sítios de coletâneas sobre media art, por sua vez, nem sempre apresentam termos para

categorizar as obras e quando apresentam verifica-se a mesma dificuldade de categorização. No

entanto, a análise de algumas dessas compilações revela caminhos importantes a serem trilhados

pela literatura em meio eletrônico, pois já indicam obras cujas características cibernarrativas

aparecem no seu grau máximo de imersão, ou muito próximas desse grau máximo.

Constatado esse primeiro problema, procurou-se então analisar sítios ou projetos que

conjugassem abordagens híbridas de media art e literatura eletrônica, de modo a preservar o

aspecto relacional utilizado para discutir o conceito de imersão. Ou seja, a análise deveria

também buscar obras que realizassem o mesmo cruzamento utilizado na discussão indicada. Um

outro parâmetro utilizado para buscar uma certa homogeneidade da amostra foi a possibilidade de

produção colaborativa, derivado do cruzamento das três propriedades já indicadas anteriormente.

Ou seja, buscou-se priorizar coletâneas ou projetos voltados para a investigação de obras

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colaborativas, cujo caráter processual fosse efetivamente o centro da obra, e não uma questão

periférica.

O conjunto analisado ainda parece desigual em vários aspectos, em função da própria

mobilidade da web. Assim, a explicação anterior não tem como objetivo provar a sua consistência

à toda prova, mas antes indicar o porquê das escolhas realizadas e a própria dificuldade de

analisar um ambiente de produção e não um ambiente de catalogação de obras. Entretanto, no que

concerne à idéia de imersão como conceito relacional, e à idéia de produção colaborativa, espera-

se que a amostra apresente um grau mínimo de coerência capaz de justificar sua escolha.

No Brasil há diversos projetos de investigação sobre a arte em rede, sobre poesia eletrônica

e sobre literatura em meio eletrônico que merecem atenção e análise. Considerando a dificuldade

de se definir o próprio conceito do que seja uma arte em/da/na rede, essa tese apenas enumera

aqui alguns desses projetos, sem o desejo de indicar o grau de importância de cada um em relação

aos outros, ou o grau de importância de tais projetos no universo da pesquisa no país. Como o

objetivo principal é buscar compilações sobre media art e literatura eletrônica para realizar a

análise e partir da categorização sugerida, espera-se evitar, dessa maneira, uma provável tensão

em afirmar qual dos projetos enumerados é mais ou menos importante.

Dois projetos parecem aqui importantes na busca por compilações ou investigações sobre

media art e literatura em meio eletrônico, quais sejam, o NUPILL48 e o wAwRwT49, em Santa

Catarina e em São Paulo, respectivamente. O NUPILL é mais que um projeto, constituindo-se em

um Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística, sob a coordenação do Prof. Dr.

Alckmar Luiz dos Santos, vinculado ao curso de Pós-Graduação em Literatura e ao

Departamento de Línguas e Literaturas Vernáculas, do Centro da Comunicação e Expressão da

Universidade Federal de Santa Catarina. A proposta principal do Núcleo é desenvolver pesquisas

sobre textos literários em meio digital. O sítio do Núcleo abriga vários projetos sobre literatura

eletrônica, produções sobre poesia eletrônica, publicações científicas e textos produzidos pelos

seus pesquisadores. Não cabe aqui descrever a complexidade dos projetos desenvolvidos pelo

NUPILL, mas indicar que tal sítio permite uma análise importante da discussão sobre literatura e

informática desenvolvida no país e também fora do Brasil. No entanto, optou-se por não buscar

dentro do Núcleo obras passíveis de análise nessa tese, em função de dois aspectos centrais. Não

48 Disponível em http://www.nupill.org. Acessado em 03 de junho de 2007. 49 Disponível em http://www.cap.eca.usp.br/wawrwt/. Acessado em 03 de junho de 2007.

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há, exatamente, dentro do sítio do NUPILL, uma tentativa de compilação ou categorização de

obras literárias em meio eletrônico. Há produções realizadas pelos participantes, sem dúvida, mas

o próprio sítio não se propõe a essa empreitada de forma explícita. Como a presente tese é

realizada dentro do próprio Núcleo, parece um procedimento cuidadoso, do ponto de vista

científico, buscar ampliar o tipo de informação que o sítio apresenta, através da análise de obras

que não foram produzidas dentro do Núcleo ou vinculadas a ele, bem como sugerir uma análise

que realiza justamente aquilo que parece ainda não se encontrar no Núcleo: a discussão sobre

categorias que possam caracterizar cibernarrativas.

O projeto wAwRwT é desenvolvido atualmente no Departamento de Artes Plásticas da

Escola de Comunicação e Artes da USP, sob a coordenação do prof. Dr. Gilbertto Prado. Entre os

objetivos do projeto encontram-se a realização de trabalhos artísticos voltados para a media art,

bem como a reflexão teórica sobre as poéticas tecnológicas, privilegiando a dimensão artístico-

telemática. O projeto apresenta, através do seu sítio, a produção do grupo de pesquisadores a ele

vinculado, que engloba ambientes virtuais multiusuário, poesia eletrônica, instalações de media

art entre outros. Além disso, há também a disponibilização de textos sobre media art; uma lista

de sítios de arte na rede; textos sobre arte na rede; acesso à página do grupo de pesquisa sobre

poéticas digitais. O projeto apresenta um espectro amplo de discussões sobre arte em rede, e

ainda que também indique referências fundamentais para a pesquisa sobre media art, no aspecto

de compilação de obras não há especificamente um projeto que procure categorizar tais obras a

partir de conceitos específicos. Não se deseja apontar essa característica como um problema;

muito pelo contrário, o projeto wAwRwT é central para todos aqueles que se pretendem a realizar

uma investigação sobre media art. No entanto, como a presente tese sugere uma categorização

sobre cibernarrativas, com todos os riscos já mencionados, e como não há uma categorização

explícita para comparação no sítio wAwRwT, optou-se por não realizar a análise baseada nas

obras produzidas ou disponibilizadas através do sítio.

Há ainda outros projetos ou sítios merecedores de menção e análise, entre os diversos

projetos em andamento no país. Entretanto, não se deseja que a presente tese seja uma tese

descritiva de tais projetos, no intuito de esgotar o assunto a partir desse tipo de abordagem.

Assume-se, assim, o risco de não realizar tal compilação, uma vez que essas informações estão à

disposição facilmente através dos projetos já mencionados e também disponíveis em larga

medida através da própria web.

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Para a aplicação da categorização sugerida nessa tese, e para a análise de cibernarrativas,

optou-se, assim, por buscar sítios e obras que se propusessem a ser compilações baseadas em

algum tipo de categorização sobre textos em meio eletrônico e que realizassem o cruzamento

entre media art e literatura em meio eletrônico. Em relação às obras, buscou-se enfatizar obras

com caráter eminentemente colaborativo, cuja estrutura física apontasse justamente para o

processo de imersão nessa estrutura, de modo a permitir ao receptor-participante um constante

envolvimento com a obra ainda em estado de pré-configuração.

O primeiro conjunto de obras analisadas deriva de uma seleção realizada no sítio da

Electronic Literature Organization50 (ELO). Essa organização existe desde 1999 e tem como

objetivos promover e facilitar a produção, publicação e leitura de literatura eletrônica, conforme o

próprio sítio da instituição informa. Formada por escritores, pesquisadores e artistas de várias

partes do mundo, com proeminência de norte-americanos, a ELO está formalmente situada na

Universidade de Maryland desde 2006 e é dirigida, atualmente, por Thom Swiss.

Em outubro de 2006, a Electronic Literature Organization publicou o primeiro volume da

sua coleção de literatura eletrônica51, em CD-ROM e na web, com o objetivo de disponibilizar,

para a maior audiência possível, trabalhos relacionados à literatura eletrônica, contendo

hipertextos em formato clássico, ficção interativa, poesia eletrônica, jogos, bases de dados, obras

combinatórias, entre outras. Destaca-se aqui o variado número de palavras-chaves utilizadas para

descrever o tipo de obras que podem ser encontradas na publicação. As palavras-chaves são um

indicador interessante para pensar sobre a miríade de conceitos que atravessam as experiências

em literatura eletrônica. Os conceitos podem abarcar desde trabalhos que funcionam sozinhos

(palavra-chave ambient), requerendo apenas atenção do leitor quanto às transformações que o

próprio trabalho sofre quando se carrega o sítio da obra; até obras nas quais o usuário é

convidado a interagir com uma interface experimental (palavra-chave wordtoy), de modo que

novas criações textuais são produzidas durante a interação. Segundo o próprio sítio, a palavra-

chave pode se referir ainda a trabalhos que evocam mais a manipulação do que a leitura. A

publicação da Electronic Literature Organization foi escolhida por representar uma tentativa de

agrupar obras variadas segundo conceitos ainda bastante incipientes, mas que podem ser

incrementados ao longo do tempo. Assim, juntamente com as tipologias encontradas em Marie-

50 Disponível em http://eliterature.org/. Acessado em 03 de junho de 2007. 51 Disponível em http://collection.eliterature.org/1/. Acessado em 03 de junho de 2007.

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Laure Ryan e Espen Aarseth, a coleção da Electronic Literature Organization oferece outros

parâmetros de comparação para a discussão dessa tese.

Como o conjunto de obras apresenta 60 trabalhos distribuídos em várias categorias, elegeu-

se a palavra-chave “collaboration” como foco da análise, em função do que se considera uma

das características fundamentais das cibernarrativas: a possibilidade de colaboração dos

receptores-participantes na construção da narrativa. A categoria em questão apresenta como

definição das obras aí contidas um conceito demasiadamente simples: trabalhos produzidos por

mais de uma pessoa. Ao mesmo tempo em que essa delimitação evita conceitos muito fechados,

indica também uma vagueza extremamente perigosa e infrutífera quanto à aplicabilidade do

conceito. Considerando a reserva feita ao conceito, buscou-se analisar em mais detalhes obras

que apresentam possibilidades de alteração física em pelo menos duas categorias, das três criadas

nesse estudo e já discutidas anteriormente. Entre os 60 trabalhos da coleção, 20 encontram-se

dentro da palavra-chave “collaboration”. Como tanto esse conceito quanto os outros são

definidos de maneira muito vaga, vários trabalhos aparecem em mais de uma categoria, o que

ajuda a explicar o elevado número de trabalhos denominados colaborativos.

Um traço comum à maioria das obras contidas nessa categoria é o fato do processo de

navegação provocar alguma modificação no tempo que o leitor possui para ler a narrativa

configurada. As obras com essas características geralmente são feitas em programas de animação

para permitir algum tipo de interação entre o leitor e a narrativa configurada. Em “Carving in

possibilities”52 o receptor-participante pode esculpir a face de Davi, de Michelangelo, através de

movimentos de mouse. Enquanto movimenta o mouse, o receptor-participante ouve os sons

produzidos pelo martelo de escultor batendo contra o mármore de onde surgirá a face de Davi. A

cada movimento corresponde também um fragmento de texto relacionado aos diversos

significados que a obra pode sugerir para o leitor. Nessa obra, o receptor-participante pode ver a

narrativa em estado de mimese I se constituindo em estado de mimese II, à medida em que move

o mouse, mas isso não significa que ele possa realmente visualizar a narrativa em estado de

mimese I. É como se o usuário, ao mover o mouse, atravessasse as páginas de um livro. Ele não

pode vê-las antes de serem ordenadas, e sim enquanto estão sendo ordenadas. Assim, no que

52 Disponível em http://collection.eliterature.org/1/works/larsen__carving_in_possibilities/index.html. Acessado em 03 de junho de 2007.

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tange ao primeiro aspecto das cibernarrativas, a obra estaria no nível 1.3, pois não permitiria a

visualização da mimese I.

Em relação à possibilidade de alteração do código de programação ou das regras de

construção da narrativa, a obra não permite ao leitor ver as regras antes de experimentá-las, mas

como o leitor pode esculpir quantas vezes quiser a face de mármore, a repetição das esculturas

apresenta variações entre si, no que diz respeito ao surgimento dos fragmentos de texto. A cada

nova escultura surgem fragmentos diferentes, mas não há a possibilidade do leitor alterar essa

ordem aleatória. Assim, de certa forma, o receptor-participante modifica as regras da

cibernarrativa, mas não tem controle sobre o processo de alteração. Essa característica situa a

obra entre os níveis 2.3 e 2.4 da categoria 2 desse estudo. Considerando a proposta da obra, talvez

fosse interessante permitir ao leitor acrescentar novos fragmentos aos textos já existentes, e não

simplesmente tornar transparentes todas as regras de combinação. Isso colocaria a obra num nível

mais bem definido dentro da categoria, relativo ao nível 2.2. E ainda, poderia ser interessante

também, para aumentar o grau de imersão relacionado à alteração física do código ou das regras

da narrativa, permitir que o leitor definisse de que maneira a escultura ganharia forma,

considerando os fragmentos que aparecessem na tela. Dessa maneira, a obra conjugaria

possibilidades de alteração tanto do código de programação, quanto das regras da narrativa,

posicionando-a no nível 2.1, em que tanto o código quanto as regras podem ser vistos e alterados

por um receptor-participante.

Outras obras nessa seleção apresentam características muito semelhantes a “Carving in

possibilities”. Esse é o caso de “Chemical Landscapes Digital Tales”53, bem como o de

“Cruising”54, entre outras. Da seção analisada, a obra “Oulipoems”55 apresenta características

variadas no que diz respeito à imersão no seu aspecto físico. De autoria de Millie Niss,

“Oulipoems” é uma obra composta de seis trabalhos de poesia interativa que combinam conceitos

da literatura combinatória, baseados nos conceitos do grupo OULIPO, acrescidos de comentários

políticos sobre os Estados Unidos.

53 Disponível em http://collection.eliterature.org/1/works/falco__chemical_landscapes_digital_tales/chemicallandscapes.html. Acessado em 3 de junho de 2007-06-03 54 Disponível em http://collection.eliterature.org/1/works/ankerson_sapnar__cruising/crusing-launch.htm. Acessado em 3 de junho de 2007. 55 Disponível em http://collection.eliterature.org/1/works/niss__oulipoems/index.html. Acessado em 3 de junho de 2007.

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Figura 2: snapshot da tela principal de Oulipoems

A obra apresenta um conjunto de máquinas textuais, todas podendo ser operadas pelos

usuários, abrangendo poemas eletrônicos, games, ferramentas para gerar e escrever poemas

baseados no vocabulário de vários poetas. O primeiro trabalho denomina-se “Sundays in the

park” e baseia-se na variação do texto criada a partir de movimentos do mouse sobre a tela.

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Figura 3: snapshot da tela principal de Sundays in the park

A cada movimento sobre um conjunto de palavras elas podem se recombinar, surgindo

assim palavras novas no meio da narrativa, contribuindo para uma completa reconfiguração dessa

narrativa. O texto como um todo não possui um significado definido, mas os grupos de palavras

sugerem significados entre si, de acordo com a maneira como são agrupados. Além dos textos na

tela, há também o áudio de duas vozes femininas fazendo a leitura de todo o texto. Essa leitura,

no entanto, não segue as possíveis reorganizações feitas pelo leitor; elas são já pré-programadas e

não se modificam de acordo com as novas organizações da obra.

A obra permite ao receptor-participante vê-la em estado de mimese I, uma vez que ela pode

ser recombinada de várias formas e a cada nova forma é um novo estado de mimese I que surge.

Isso colocaria a obra no nível 1.2 da categorização proposta aqui.

Em relação à categoria de número 2, a possibilidade de alteração física do código ou das

regras que estruturam a cibernarrativa, é possível afirmar que os movimentos do receptor-

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participante situam a obra entre os níveis 2.1 e 2.2, pois há uma certa modificação do código de

programação e também das regras da narrativa, quando o receptor muda as palavras criadas.

Como as possibilidades combinatórias são muito grandes em termos quantitativos, e como cada

movimento modifica a obra que se vê, é possível diferenciar os movimentos permitidos aqui

daqueles permitidos em Carving in possibilities. Para que a obra alcançasse um nível máximo de

possibilidade de alteração física do código ou das regras que estruturam sua narrativa, uma

alternativa seria permitir ao receptor-participante descolar conjuntos de palavras ou letras no

espaço da obra. Quanto às narrações em vozes femininas, parece não ser possível fazer com que

essas narrações acompanhem mudanças com tal grau de aleatoridade. Em relação ao acesso às

outras leituras, a obra Sundays in the park não permite que o receptor-participante veja outras

leituras já realizadas como elementos físicos da própria obra. Caso os leitores pudessem gravar

suas modificações em uma nova seção da obra, para que tais leituras pudessem ser também

modificadas por outros leitores, a obra passaria do nível 3.4, que é o seu nível atual, para o nível

3.1. Essa modificação não envolve problemas técnicos e permitiria explorar de maneira mais

intensa a combinação entre os conceitos do OULIPO e as possibilidades de participação dos

leitores na construção de obras cibernarrativas na Internet.

Em Morningside Vector Space, uma segunda obra combinatória dentro dos Oulipoems, o

leitor encontra uma obra baseada nos Exercises de Style, de Raymond Queneau, cujo princípio é

apresentar uma anedota banal, recontada em estilos diferentes, segundo padrões distintos de

produção. Morningside Vector Space, por sua vez, apresenta uma história banal, baseada nas

experiências da autora, Millie Niss, que é também recontada segundo estilos diversos.

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Figura 4: snapshot da tela principal de Morningside Vector Space

A obra é realizada com o uso de programas de animação, de modo a permitir que o

receptor-participante altere as histórias sutilmente, com movimentos suaves de mouse, ao longo

dos eixos vetoriais X e Y. Cada versão da obra possui, assim, uma coordenada vetorial distinta,

que corresponde à combinação de estilos diferentes de texto, combinados entre si ao longo das

coordenadas X e Y. As versões no eixo Y (vertical) variam de simplórias (simple-minded) a

pretensiosas (pretentious), enquanto no eixo X (horizontal) elas variam de sociológicas

(sociological) a melodramáticas (melodramatic). Ao posicionar o mouse em qualquer um dos

retângulos com as variáveis indicadas, o receptor-participante pode ver a obra criada a partir

desse valor absoluto. Por exemplo, ao posicionar o mouse no retângulo com a palavra

pretentious, a obra apresenta um arranjo pretensioso puro, sem nenhuma outra combinação. Ao

deslizar o mouse pelo quadrado colorido, a obra recebe as combinações dos outros estilos. O

movimento do mouse cria, assim, novas configurações narrativas, ainda que elas já estejam

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programadas para acontecerem pela autora da obra. Em relação à possibilidade de visualizar a

obra em estado de mimese I, ainda que estejam visíveis algumas das regras que irão configurar a

narrativa, não é possível afirmar que o receptor-participante acessa a mimese I, o que posiciona a

obra, no que diz respeito à categoria de número 1, no nível 1.3. Em relação à possibilidade de

alteração física do código de programação ou das regras que estruturam a narrativa, a obra

permite visualizar as regras, embora não se possa alterá-las. Entretanto, o movimento do mouse

sobre os arranjos combinatórios pode alterar a maneira como as narrativas configuradas surgem

na tela. Assim, essa obra apresenta-se mais próxima do nível 2.3 da categorização dessa tese,

embora não se possa dizer que as regras combinatórias sejam alteradas pelo receptor-participante.

Para que isso acontecesse realmente, a obra deveria permitir que os eixos fossem modificados

entre si, ou que novos eixos fossem colocados no lugar dos atuais, o que terminaria também por

permitir que o leitor visse e alterasse a obra em seu estado de mimese I. Ao permitir que o leitor

pudesse alterar ou acrescentar novos arranjos à obra, o que se veria aqui seria um aumento de

possibilidades combinatórias derivada da imersão do receptor-participante na estrutura da obra

enquanto ainda pré-configurada. Nesse caso, a imersão desse receptor-participante seria

responsável por criar recombinações na narrativa, o que permite dizer que a imersão criaria um

novo espaço de imersão, também temporário e inconstante.

Em relação ao acesso a outras leituras já realizadas, a obra não permite visualizá-las, o que

a coloca no nível 3.4 dentro da categoria 3. Como as combinações se repetem independentemente

de qual usuário navega pela obra, não parece fazer sentido criar algum mecanismo de registro das

diversas leituras realizadas. Novamente, uma alteração qualquer em um dos parâmetros da

categoria 3 provocaria, inevitavelmente, alterações nas outras categorias.

Entre os seis poemas interativos apresentados em Oulipoems, a obra denominada The

Electronic Muse é aquela que parece apresentar a possibilidade mais clara de uma escrita

colaborativa. Como a própria autora afirma na descrição da obra, The Electronic Muse posiciona

o leitor no campo das possibilidades quase infinitas. “The Electronic Muse é uma ferramenta de

escrita e não somente um gerador de texto, porque permite ao usuário interagir com a obra ao

editar o texto que ela gera. O usuário também pode acrescentar palavras ao vocabulário do

programa.”56 (tradução nossa)

56 “"The Electronic Muse" is a writing tool and not just a text generator, because the user can interact with it by editing the texts it generates. The user can also add words to the program's vocabulary.” Texto disponível na página

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Figura 5: snapshot da tela principal de The Electronic Muse

A obra permite ao usuário criar seus poemas através de frases que o próprio programa

oferece. Cada frase surge já configurada a partir do estilo de um dos poetas oferecidos pelo sítio,

na caixa de texto Style. Para gerar uma frase nova, que surgirá na caixa em branco na parte

inferior da tela, basta que o usuário pressione o botão Generate a line. Não parece haver um

limite de frases para cada poema, ou ao menos esse limite é suficientemente amplo de modo a

sugerir que os poemas gerados possam ter infinitos versos. Em relação à ordem das frases dentro

do poema e mesmo à presença delas ou não, o receptor-participante pode alterar a ordem delas ou

apagar frases, com o uso dos demais botões da tela. Há, ainda, a possibilidade de acrescentar

novos termos ao vocabulário de cada estilo, digitando uma palavra na caixa de texto retangular

de introdução da obra, em http://collection.eliterature.org/1/works/niss__oulipoems/intro.html. Acessado em 4 de junho de 2007.

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em branco, que possui ao lado os botões sing noun, plural noun, adj e adv. O receptor-

participante digita uma palavra e associa essa palavra a uma categoria sintática específica; a nova

palavra é, então, acrescentada ao vocabulário do estilo escolhido pelo leitor e poderá vir a ser

utilizada na geração de uma próxima linha. Sobre essa ação, entretanto, o leitor não possui

nenhum controle, podendo apenas gerar ou não uma nova linha no poema.

Em relação ao acesso à mimese I, o receptor-participante pode visualizar a estrutura da obra

em estado ainda não configurado, mas só pode acrescentar dados em uma parte dessa estrutura:

aquela relativa ao vocabulário utilizado pelo programa para realizar as combinações. Nesse

sentido, a obra estaria situada entre os níveis 1.1 e 1.2 da categoria 1. No entanto, como o

acréscimo de novas palavras ao vocabulário termina por significar um acréscimo indireto em toda

a estrutura, talvez se possa afirmar que essa ferramenta situa a obra no nível de mais

possibilidade de imersão possível no que diz respeito ao acesso à mimese I. Para que a obra

permitisse realmente o acesso à mimese I completo, seria interessante que o usuário pudesse

também acrescentar outros poetas à lista, o que demandaria, no entanto, mudanças de

programação a serem realizadas pela autora da obra, e não de maneira automática. Ainda assim, é

uma possibilidade a ser estudada.

No que tange às possibilidades de acessar o código de programação ou às regras que

estruturam a narrativa, a obra permite alterar as regras que estruturam a narrativa combinando a

possibilidade de acrescentar novas palavras ao vocabulário, trocar o estilo escolhido e alterar,

dentro do poema criado, a ordem das frases. As frases podem ser editadas dentro da obra como

um todo, e não em si mesmas, sob pena de uma alteração muito grande no estilo escolhido. Ou

seja, há uma possibilidade de alterar as regras, mas ela não pode ser completamente aberta, até

mesmo em função da proposta da obra, cuja base são justamente as regras combinatórias

utilizadas pelo OULIPO. Nesse sentido, essa obra estaria situada muito próxima ao nível 2.3 da

categoria de número 2.

E, finalmente, em relação ao acesso às outras leituras, característica relacionada

intimamente ao grau máximo de colaboração que a imersão na parte física da obra permitiria, The

Electronic Muse não permite visualizar outras leituras já realizadas em formato físico,

disponíveis no corpo da obra. Assim, a obra se situa, quanto a esse aspecto, no nível 3.4. Caso

fosse possível aos usuários gravar novos conjuntos de frases, bem como criar um vocabulário

inteiro em um novo estilo ou mesmo sugerir um estilo, a obra poderia ser considerada

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colaborativa no seu grau máximo, chegando ao nível 3.1 da categoria 3. O que chama a atenção

sobre essa possível mudança é que, para que a obra seja completamente colaborativa, uma

modificação de nível em qualquer uma das categorias termina por provocar uma reação em

cadeia nas outras categorias, quando se trabalha no sentido de aumentar a intensidade da imersão

na obra, considerando as possibilidades de sua mudança física.

As demais obras da coleção organizada pela Electronic Literature Organization apresentam

variações semelhantes àquelas analisadas acima e, por essa razão, não parece ser necessário uma

análise mais exaustiva de cada uma delas, uma vez que o objetivo da análise é verificar a

aplicabilidade da categorização criada. Além disso, as obras analisadas permitem também

imaginar o que poderia acontecer quando se aumenta a intensidade da imersão na materialidade

de cada uma delas, que é também um dos objetivos na criação da categorização. Ou seja, as

variáveis de análise devem ser amplas o suficiente para que possam ser aplicadas aos processos

de construção de cibernarrativas, e não simplesmente para definir gêneros distintos de narrativas,

encerrados em categorias estanques.

As obras foram analisadas buscando sempre permitir, ao longo da leitura, a apresentação de

obras com graus de complexidade cada vez maiores, relativos ao fato dessas obras apresentarem

de forma mais intensa suas características processuais. Assim, espera-se mostrar alguns tipos de

mudanças ocorridas quando se vai de obras com menos características imersivas até obras com

todas as características imersivas. Embora não se deseje criar uma hierarquização valorativa com

esse artifício, reconhece-se aqui o perigo que tal abordagem pode conceber. Não obstante, a

análise foi construída dessa maneira e espera-se que o leitor perceba que a categorização criada

na tese não funciona para valorar todo e qualquer tipo de obra a partir de um único parâmetro,

qual seja, o da imersão na materialidade das obras.

O segundo conjunto de obras utilizado como amostra foi selecionado no sítio da Rhizome57,

a partir das obras que se encontram sob a categoria “collaborative”. A Rhizome se autodefine

como uma plataforma online para a comunidade global interessa em new media art. Surgida em

1996, a Rhizome hospeda um arquivo em rede de obras de media art composto por

aproximadamente 2.110 projetos. Esse arquivo é categorizado por palavras-chave, além de ter

também a busca por título dos trabalhos, nome do artista ou data de criação. O arquivo da

Rhizome, denominado ArtBase, foi criado em 1999, é organizado por um conselho curatorial e o

57 Disponível em http://www.rhizome.org. Acessado em 3 de junho de 2007.

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sistema de classificação é baseado nos termos escolhidos pelos próprios artistas, dentre um

conjunto de termos definidos pelo sítio. O vocabulário de termos pode ser acrescido ainda de

palavras criadas pelos próprios artistas. Ou seja, se não houver uma palavra que possa definir o

trabalho de um artista, esse próprio artista pode criar um novo termo. Quando esse novo termo

atinge um determinado nível de popularidade, ele passa a integrar o vocabulário disponível no

sítio. É interessante perceber que, face à variedade de termos para designar trabalhos de media

art, a Rhizome optou por mesclar um vocabulário controlado com um vocabulário criado pelos

próprios artistas. Quando se acessa a lista de termos, eles são disponibilizados em tamanhos de

fonte diferentes. As fontes maiores indicam o grau de popularidade dos termos no banco de

dados. Assim, o vocabulário da Rhizome apresenta uma extrema flexibilidade no que diz respeito

ao modo como organiza a informação, numa tentativa de refletir a própria mobilidade da media

art.

A seleção das obras a partir da palavra-chave “collaborative” reflete justamente o que se

considera um grau máximo de imersão na materialidade das cibernarrativas: a possibilidade do

receptor-participante alterar a obra ainda em estado de pré-figuração, de alterar as regras pelas

quais a obra se estrutura e de poder alterar leituras realizadas por outros receptores-participantes,

agora transformadas também em cibernarrativas. Ainda que seja bastante raro encontrar tais tipos

de cibernarrativas na amostra escolhida, a produção colaborativa parece ser a melhor maneira de

refletir, nas produções em rede, o caráter processual dessas produções. Em relação ao conjunto de

obras que será analisado aqui, cabe ressaltar duas questões: serão feitas análises mais detalhadas

das obras que cumprem ao menos dois critérios dentre aqueles que indicam a possibilidade de

acesso, para o receptor-participante, à estrutura física das obras; as obras enumeradas são aquelas

que constavam na base de dados entre os dias 1 de fevereiro de 2007 e 29 de março de 2007.

Como a base de dados recebe constantemente novas contribuições, há obras que não são

enumeradas nessa análise, mas já constam no sítio.

A primeira obra a ser analisada em detalhes é Trace, de autoria de Guillaume Horen, e foi

criada em 15 de agosto de 2006, sendo publicada no sítio da Rhizome em 29 de março de 2007.

Segundo o sítio da obra, Trace é uma obra digital interativa, composta de imagens medindo

15x15 pixels.

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Figura 6: snapshot da tela principal de Trace

Qualquer usuário pode participar da obra, deixando o seu traço nela, ao escolher um entre

seis tipos de imagens à disposição no sítio. Além de escolher uma imagem, o receptor-

participante pode ainda deixar um comentário associado ao traço e também assinar sua

participação. Para cada participação, o usuário recebe um número de referência, como prova que

ali esteve e deixou o seu traço. A obra estará completa, segundo o sítio, quando o número de

10.000 participações for alcançado. Nesse momento, a obra será editada em formato impresso,

com tiragem de 100 exemplares. Entre os participantes, 10 serão sorteados para ganhar uma

edição numerada e assinada da obra, o que parece um contra-senso, considerando a sua

característica processual. Atualmente, a obra conta com 158 traços, dispostos na parte de cima da

tela, e que irão compor a imagem final, com 10.000 traços. A obra conta ainda com um blog

sobre arte digital e é possível ver uma representação isométrica das participações já feitas no

sítio.

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Trace apresenta, em relação à imersão no estado de mimese I da obra, a possibilidade de

visualizar a obra em estado de mimese I, bem como a possibilidade de alterar a narrativa no

estado de pré-configuração. Isso se deve à proposta da obra, de desnudar o seu processo de

construção, o que a coloca no nível 1.1 da primeira categoria de análise de cibernarrativas. A

interatividade proposta pela obra significa também que a imersão se faz na materialidade do que a

obra ainda virá a ser, e não simplesmente no espaço já existente dela.

Em relação à alteração física do código ou das regras que estruturam a narrativa, a obra

permite ao receptor-participante visualizar tanto o código quanto as regras, mas a alteração é feita

prioritariamente naquelas que estruturam a narrativa. Isso se deve ao fato de que o usuário não

pode modificar as imagens que deseja acrescentar; entretanto, ao ter a liberdade de escolher qual

imagem irá compor a nova parte da obra, esse receptor-participante está acessando e alterando as

regras que configuram a narrativa. Assim, a obra está no nível 2.3 em relação a essa categoria.

Caso fosse possível alterar também o tipo de imagem a ser utilizado, ou seja, se os usuários

pudessem criar novos quadrados de 15x15 pixels, a obra chegaria ao estado máximo de imersão

na sua materialidade física.

Em relação ao acesso às outras leituras, a obra permite ver outras leituras quando elas são

transformadas em traços na obra. Ou seja, quando há a participação de outros receptores-

participantes, essa leitura muda fisicamente a obra, embora ela não possa ser alterada pelos

demais usuários. Assim, a obra encontra-se aqui, no nível 3.3 da categoria 3. A colaboração dos

demais receptores-participantes depende, ainda que minimamente, dessa visualização, porque a

obra será composta pelo conjunto de imagens, organizadas uma após a outra. Assim, ao ver o que

já foi acrescentando, o usuário pode decidir se deseja manter a unidade visual da obra, ou se quer

apenas acrescentar uma imagem, sem pensar na conexão entre todas elas. No estado atual, não

parece haver ainda um padrão a ser seguido, embora na primeira linha traçada exista uma

predominância de imagens de tonalidade mais escura na parte direita da linha. No que diz

respeito aos comentários, eles existem de maneira independente uns dos outros, e não parece que

os participantes tenham conseguido ainda criar estruturas sintáticas ou semânticas conjuntamente,

relacionadas, por exemplo, à estrutura de um poema, ou mesmo a algum conteúdo específico.

A obra kollabor858, segundo o banco de dados da Rhizome, é uma rede que funciona como

uma peça de arte colaborativa. A obra foi criada em 3 de maio de 2005 e disponibilizada na base

58 Disponível em http://kollabor8.org/index.php. Acessado em 03 de junho de 2007.

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de dados da Rhizome em 08 de março de 2007. Ainda segundo o próprio sítio, a obra explora a

natureza transitória que caracteriza o conteúdo presente na web, convidando artistas a criarem

obras a partir da modificação sobre imagens criadas por outros artistas. Note-se que aqui a

denominação de artistas mascara um pouco as possibilidades colaborativas da obra, já que ela é

aberta à participação de qualquer usuário que deseje realizar tais modificações.

Figura 7: um snapshot de uma das páginas de kollabor8

kollabor8 apresenta-se em várias cadeias de imagens criadas por receptores-participantes

do sítio e que podem ser alteradas por qualquer outro receptor-participante. Cada imagem dentro

da cadeia é considerada como uma imagem digital aberta passível de sofrer colaborações, pois

fica disponível em uma cadeia de imagens conectadas entre si como em um fórum de discussão.

Cada nova imagem criada deve, de alguma maneira, ser derivada da última imagem postada na

cadeia. Novas cadeias de imagens podem ser abertas após um registro no sítio, respeitando as

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regras de colaboração para a inserção de imagens. Os membros podem participar de duas

maneiras: adicionar uma imagem a uma cadeia de imagens já existente, realizando as seguintes

ações: o receptor-participante baixa a imagem no seu computador, trabalha sobre essa imagem

num software à sua escolha, e posta novamente essa imagem na mesma cadeia; ou criar uma nova

cadeia de imagens, postando obras de arte, fotos digitais, imagens de natureza variada, lembrando

sempre que essas imagens estarão sendo disponibilizadas para qualquer outro membro poder

fazer modificações sobre ela. Todas as imagens postadas precisam ter 640x480 pixels e serem

postadas no formato JPEG. Ainda sobre o conjunto de regras, não é permitido àquele usuário que

iniciou uma cadeia fazer uma modificação sobre sua própria imagem, com o intuito de incentivar

a colaboração. A obra possui ainda um sistema de créditos para incentivar a postagem de imagens

ou a criação de novas cadeias. O receptor-participante recebe, ao se registrar, dois créditos, e a

cada cinco novas imagens postadas em outras cadeias, ele recebe um crédito. Para criar uma nova

cadeia, o receptor-participante deverá gastar uma parte dos seus créditos, embora o sítio não

informe quantos créditos são necessários para se criar uma cadeia e quantos créditos se gasta na

criação dessa nova cadeia.

É possível ainda, para cada receptor-participante, adicionar comentários em formato de

texto, em cada cadeia. Os comentários são adicionados ao se selecionar uma das imagens que

compõem a cadeia. Quando uma imagem é selecionada, o sítio traz a imagem em formato

ampliado e informa quem produziu aquela imagem dentro da cadeia e quando a modificação foi

realizada. Isso torna possível acompanhar o histórico de evolução da obra. O receptor-

participante pode, ainda, animar as imagens que compõem a cadeia, como uma maneira de criar

um vídeo que mostra as mutações sofridas desde a imagem original até a imagem final. A obra

informa ainda quando a cadeia foi iniciada, quem a iniciou e quando ela foi modificada pela

última vez, bem como quem realizou essa modificação. Por fim, há a ainda a informação de

quantas imagens compõem uma determinada cadeia e quantos artistas fizeram modificações

naquela cadeia específica.

Em relação à categorização proposta como instrumento analítico, kollabor8 permite uma

experiência imersiva que chega muito próximo ao grau máximo de colaboração que poderia ser

encontrado numa cibernarrativa. O receptor-participante pode acessar a cibernarrativa em estado

de mimese I e pode acrescentar dados à narrativa ainda no estado de pré-figuração desta (nível 1.1

da categorização). Ainda que a cadeia de imagens apresenta-se como mimese II, porque é uma

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narrativa configurada que o receptor-participante vê quando acessa uma cadeia específica, cada

imagem da cadeia é uma parte da narrativa e, como o receptor-participante, pode acrescentar

novas imagens à cadeia, pode alterar a narrativa ainda no seu estado de pré-figuração. Segundo as

regras do projeto, cada nova imagem deve ser feita a partir da alteração da última imagem

postada na cadeia; entretanto, o sítio não restringe a possibilidade de se utilizar qualquer imagem

da cadeia como a fonte para uma nova modificação. Ou seja, o receptor-participante poderia até

mesmo reiniciar a cadeia se utilizar a primeira imagem postada como uma nova imagem da

cadeia. Como as regras que estruturam a possibilidade de participação na narrativa não são

restritivas em termos de manipulação da estrutura, qualquer reconfiguração do receptor-

participante pode ser feita como se esse receptor estivesse vendo a narrativa antes que ela

acontecesse.

Em relação à possibilidade de alteração física do código da obra ou das regras que

estruturam a narrativa, a segunda categoria do instrumento analítico, o receptor-participante pode

alterar fisicamente a materialidade da obra através do acesso aos códigos de programação de cada

imagem. Ao poder baixar uma imagem em seu computador e alterá-la em qualquer software de

programação, de acordo com as possibilidades desse software, o receptor-participante não se vê

constrangido a modificar a obra somente segundo parâmetros que poderiam ser estabelecidos por

algum tipo de regra do projeto kollabor8. Entretanto, há uma limitação que não pode ser

transgredida pelo receptor-participante da obra: as imagens podem ser postadas apenas em

formato JPEG. Assim, a liberdade de alteração da materialidade da obra não é total, pois não é

possível adicionar outros formatos às cadeias de imagens. Em relação às regras que configuram a

narrativa, o projeto solicita ao participante que não altere a forma de construção de cada cadeia de

imagens, embora essa limitação apareça como um pedido e não como constrangimento técnico.

Assim, kollabor8 pode ser considerada uma obra que permite a alteração do código, mas não

permite a alteração das regras que configuram a narrativa, o que a situaria como pertencente ao

nível 2.2 da categorização apresentada anteriormente.

Na maior parte dos casos analisados, as limitações quanto ao formato dos arquivos e

tamanho deles parecem ser apenas de ordem técnica, mas terminam também por garantir algum

grau de unicidade às obras, o que demonstra a dificuldade em se criar processos colaborativos

completamente abertos, em que as regras são totalmente maleáveis. Não obstante, uma

cibernarrativa em seu estado de intensidade máxima deveria permitir a esse participante

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transformar, no que diz respeito à materialidade da obra, por exemplo, uma imagem em um

objeto animado, o que mudaria o tipo de elemento, fisicamente falando.

E em relação à última categoria, o acesso do receptor-participante a outras leituras

realizadas como elementos físicos da obra, kollabor8 apresenta a possibilidade de ver todas as

outras leituras já realizadas, uma vez que cada nova imagem é essa leitura como elemento físico

novo da obra. Além disso, o receptor-participante pode alterar fisicamente essa leitura, ao baixar

a imagem em seu computador, alterá-la e postá-la de volta na obra. Não há como, entretanto,

alterar a ordem em que a nova imagem irá aparecer, embora qualquer participante possa fazer

uma nova imagem que não é derivada da última imagem da cadeia. Isso significaria, na prática,

alterar a ordem da narrativa, o que indicaria que a obra possui um grau máximo de imersão.

Assim, a obra encontra-se no item 3.2 dessa propriedade, se forem respeitadas as regras indicadas

na própria obra. Não obstante, a obra não constrange tecnicamente o participante a utilizar

imagens variadas em uma mesma cadeia, embora isso pareça não acontecer.

Pode-se alegar aqui que o projeto permite leituras que não serão concretizadas como

elementos físicos. Entretanto, essa é uma possibilidade óbvia e presente em qualquer tipo de

narrativa. A diferença é que kollabor8 baseia o seu desenvolvimento e sua existência justamente

no processo de colaboração a partir de leituras e modificações realizadas pelos usuários nas

imagens postadas por outros usuários.

Kollabor8 pode ser definida, então, como uma obra em que a imersão constrói o próprio

ambiente imersivo em que o receptor-participante experimenta a cibernarrativa. Nesse sentido, e

considerando o tipo de configuração temporal relativo a cada mimese, o receptor-participante

dessa obra pode acessar as três mimeses e modificar a obra continuamente em estado de mimese I.

Dessa maneira, é a própria configuração do tempo que o receptor-participante pode alterar, uma

vez que a mimese I indica um tempo ainda não configurado em forma de narrativa, mesmo que a

obra mostre ao leitor as cadeias de imagens, o que se pode identificar como mimese II. Ao poder

realizar uma reconfiguração da narrativa (mimese III) de modo físico na estrutura da própria obra,

o receptor-participante cria um novo estado de mimese I e faz com que a obra, a partir da sua

leitura, apresente uma nova mimese II, disponível para quaisquer outros leitores. A temporalidade

que se experimenta surge, dessa maneira, constantemente em estado de vibração, pois as camadas

temporais da obra não se estabilizam fisicamente. Cada nova leitura, conforme Iser, permite

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visualizar novas perspectivas em uma determinada obra. Em kollabor8, essas perspectivas agora

são transformadas em elementos físicos da própria narrativa.

O terceiro conjunto de obras analisadas são obras criadas por Giselle Beiguelman e

disponibilizadas no sítio http: www.desvirtual.com. Optou-se por analisar tais obras em função da

sua estrutura eminentemente colaborativa, e dentre elas, duas foram escolhidas para serem objeto

de análise mais detalhada. O que se pode ver aqui é um aumento da complexidade no que diz

respeito à participação dos usuários, e isso indica também a dificuldade em aplicar as categorias

de análise às obras, em função do seu caráter processual.

Em Code_UP59, a primeria obra de Giselle Beiguelman a ser analisada, há diversas

escrileituras com os arranjos de pixels, com os padrões de tela e com os parâmetros RGB que

podem compor uma imagem digitalizada.

Figura 8: snapshot da tela principal de Code_UP

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Uma das questões que a obra permite pensar é a criação de uma retórica do pixel, como a

própria artista sugere numa breve apresentação da obra. Esse é o tipo de imersão característica

das cibernarrativas: não se trata de um ciberespaço, mas de um cruzamento de várias

materialidades em fluxos temporais específicos, que combinam o tempo da leitura, o tempo da

obra e a própria temporalidade de um pixel para aparecer. Essa experiência representa a

hibridação tão característica das poéticas digitais. Em uma das partes da “obra” (Blow Code-UP)

o receptor-participante é instado a “ler” imagens extraídas do filme “Blow-up” a partir dos pixels

que compõem aquela imagem (essa parte é denominada Pixel Array_UP). A leitura é proposta da

seguinte maneira: um fotograma é exibido em um menu, no lado esquerdo da tela. Ocupando o

restante do monitor está a mesma imagem ampliada. Entretanto, ao se deslocar o mouse por cima

da imagem ampliada, o que se vê são os pixels de cada um dos pontos da imagem original

escolhida no menu. Não há, num primeiro momento, a imagem ampliada, mas a cor de um pixel

específico por onde o mouse está passando naquele momento. Para saber onde o mouse está, em

relação à imagem original, é possível pressionar uma tecla qualquer e esta imagem aparece

ampliada. Assim, há um trânsito constante entre a imagem do filme (o fotograma) e o código que

dá origem a uma determinada cor da imagem (a imagem “decomposta” em pixels). O receptor-

participante é convidado a penetrar num outro espaço poético, em que a representação presente

nesse “local” é dissolvida materialmente, ao mesmo tempo em que se mostra o âmago da

estrutura que aparece visível (um determinado fotograma do filme Blow-up). Ou seja, há uma

imersão no código e com ele, ainda que não se vejam ali os zeros e uns do digital. A questão que

permanece aqui é justamente o embate com um outro tipo de “obra”: a programação que origina

um determinado espaço visível. Essa parte da obra poderia ser caracterizada como pertencente ao

seguinte subconjunto de variáveis, considerando a categorização proposta nessa tese: há o

cruzamento de características entre as variáveis 1.2, 2.4 e 3.4. Nessa parte da obra não há como o

usuário acessar a narrativa em estado de mimese I para modificá-la, ainda que ele possa visualizar

as regras de funcionamento no processo de navegação, já que a obra se estrutura dessa maneira.

Em relação à possibilidade de colaboração com outros usuários, essa parte de Code_UP não

prevê esse tipo de colaboração.

59 Disponível em http://container.zkm.de/code_up. Acessado em 3 de junho de 2007.

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O movimento do mouse, ao decodificar o arranjo de pixels, sugere ao receptor-participante

a leitura de uma outra visibilidade, relacionada ao cruzamento de temporalidades distintas em um

determinado ponto da tela. A imagem composta na tela dissolve-se e transita entre o tempo da

leitura, que é o tempo de composição do ambiente imersivo pelo e para o próprio receptor-

participante, e o tempo que o programa necessita para compor os códigos de programação que

formam um pixel e, posteriormente, exibir o pixel na tela. O fotograma revela-se, dessa maneira,

como um composto de temporalidades que permite apenas um acesso indireto a cada uma delas.

Ao reverter a imagem em direção aos seus componentes temporais, tanto o meta-autor quanto o

receptor-participante aproximam-se dessas temporalidades puras que compõem um determinado

espaço de visibilidade.

Em outra parte de Blow Code_UP, denominada Zomm_RGB_UP, é possível realizar uma

leitura diferente das imagens apresentadas. O programa utilizado apresenta uma imagem

composta por séries de linhas verticais cuja altura corresponde ao valor de uma cor dentro da

imagem. Esses valores correspondem aos parâmetros RGB utilizados para compor uma imagem

eletrônica. O programa focaliza tais parâmetros nas imagens e os transforma em linhas de

tamanhos diversos. A leitura da imagem, dessa forma, é a leitura do resultado da aplicação dos

códigos de programação às imagens capturadas e exibidas na tela. Quando se fala de imagens

capturadas, isso se deve ao fato do programa permitir que qualquer usuário com um telefone

celular com tecnologia Bluetooth e câmera instale o programa em um PC e transforme suas

imagens com o uso desse programa. Ao ler a imagem, o receptor-participante pode ainda mover o

cursor sobre ela para fazer um zoom ou para mudar a posição da imagem na tela. Pode, ainda, ver

a densidade da matriz formada pelas linhas, utilizando as teclas de número 1 a 5 no teclado. Cada

tecla ativa um novo conjunto de linhas, com o número 1 correspondendo a uma imagem menos

granulada e o número 5 apresentando todas as linhas já mais separadas.

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Figura 9: snapshot de uma das telas em movimento em Zoom_RGB_UP

Aqui a imersão permitida ao leitor se resume em ver a narrativa em estado de mimese II,

porque ele pode ver como as imagens ficam após o tratamento pelos programas, mas não quando

estão sendo tratadas, o que corresponde à variável 1.2. Há uma sugestão forte de acesso à mimese

I, porque a narrativa configurada é apresentada a partir dos elementos que a constituem. No

entanto, essa ilusão relaciona-se mais à característica 2.4, que indica a possibilidade dada ao

leitor de ver as regras de funcionamento ou o código de programação da obra sem, no entanto,

poder alterá-los. Em relação às leituras realizadas por outros usuários, a obra não apresenta a

possibilidade de visualização dessas leituras em rede. No entanto, como é possível gravar o

programa em um computador e transformar as imagens em arranjos de linhas, a partir dos

parâmetros RGB, pode-se dizer que, nesse computador especificamente, o usuário poderia ver

várias imagens realizadas por outras pessoas. Ainda assim, não há como relacionar essa ação com

nenhuma das variáveis do item 3, uma vez que as leituras produzidas pelo programa não são

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realizadas diretamente em função do acesso do participante às regras de funcionamento da

cibernarrativa. Assim, no que concerne ao item 3, a obra não permite o acesso a outras leituras

realizadas, tendo nesse caso o menor coeficiente de imersão possível, correspondente ao item 3.4

A segunda obra, circ_lular60, projeto criado pelo grupo de artistas “Preguiça Febril”,

composto por Giselle Beiguelman, Marcus Bastos e Rafael Marchetti, “é um sistema de

webdjaying baseado em banco de dados aberto e plataforma multiusuários para sampleagem on

line. Todo o conteúdo – imagens, sons, textos, filmes e vídeos – espelha situações de trânsito e

fluxo e agencia um processo de remixagem coletiva que acontece, em tempo real, na web e em

espaços expositivos.”61 A obra data de setembro de 2004 e foi lançada no sonarsound em São

Paulo.

Figura 10: tela principal de Circ_lular, captada em um snapshot

60 Disponível em http://www.pfebril.net/. Acessado em 03 de junho de 2007. 61 Texto disponível no site http://www.pfebril.net/.Acessado em 03 de junho de 2007.

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Circ_lular configura-se como estação de mixagem, muito semelhante a uma ilha de edição

não-linear. O participante pode escolher entre cinco menus diferentes, que funcionam como

categorias (80ções, vitamina mixta (mista), sobre trânsitos, circ_lulando, promocenter). Há várias

mídias à escolha (sounds, stills, motions, sound_bits), para que as recombinações possam ser

realizadas em cada um dos menus. Pode-se pesquisar qualquer mixagem já realizada, realizar

modificações nessa mixagem e postar uma nova mixagem daí derivada, criando recombinações

infinitas. Além disso, é possível fazer uploads (colocar arquivos no sítio) de qualquer material

para que ele possa ser utilizado nas mixagens que qualquer outro usuário fará.

Considerando a proposta de análise dessa tese, circ_lular é uma obra em que o estado de

mimese I é a própria obra, de forma muito mais explícita que em kollabor8, por exemplo. O que

o receptor-participante visualiza inicialmente já é a estação de mixagem, correspondente ao que

se poderia chamar de um tempo pré-configurado. Não há uma linha discursiva que ligue,

necessariamente, os diversos elementos que poderão compor a narrativa. Assim, aqui se

disponibilizam para o receptor tanto o acesso à mimese I quanto a possibilidade de modificar a

narrativa antes que ela venha a ser contada, porque o receptor-participante pode acrescentar

novas informações à base de dados. Essa característica é definida como pertencente ao item 1.1

da categorização proposta aqui.

Em relação à possibilidade de modificação física do código ou da regras da obra, circ_lular

pode ser situada como pertencente ao item 2.1. O receptor-participante pode postar dados em

formato de texto, sons, imagens em movimento, imagens em bits, embora para cada uma dessas

mídias existam também limites técnicos, relativos aos formatos permitidos e ao tamanho, em

termos de bytes, de cada arquivo. Dentro de tais limites, a possibilidade de modificação do

código que estrutura cada mídia é livre. Em relação às regras que estruturam as narrativas a serem

configuradas, como a obra é uma estação de mixagem, o receptor-participante é que define qual

será a configuração dos elementos em cada narrativa que irá criar. Assim, circ_lular é uma obra

com grau máximo de imersão tanto na materialidade quanto nas regras que a fazem funcionar. É

importante notar que a obra baseia-se notadamente em performances realizadas por aqueles que

se propõem a lê-la, o que indica a característica eminentemente processual e temporal das

cibernarrativas plenas.

Em relação à última categoria, que diz respeito ao acesso do participante a outras leituras

como partes estruturais da própria obra, circ_lular permite o acesso a essas leituras e também a

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sua remixagem. Os diversos receptores-participantes podem acessar outras mixagem feitas, abrir

estruturalmente essas narrativas, vê-las em seu estado de mimese I e reconfigurá-las. Há uma

ressalva a ser feita sobre esse aspecto: a obra não permite que um participante acrescente outros

elementos a uma mixagem já realizada. Ele pode apenas retirar elementos da mixagem ou alterar

a ordem deles, o que configura a obra no nível 3.2 da categorização proposta. Ou seja, há ainda

possibilidades de modificar o processo colaborativo de circ_lular, fazendo com que a

performance do receptor-participante possa alterar efetivamente qualquer aspecto da obra.

Para o propósito deste estudo, que tipo de experiência circ_lular pode ensejar naquele que

a experimenta? Sem estabelecer qualquer hierarquia, a lista a seguir procura indicar as

possibilidades de produção de experiências sugeridas pela obra. É possível percebê-la como um

grande “banco de dados” cultural e que propõe ao seu participante investigar as próprias

memórias e compreendê-las como instantes fugazes de percepção do real. O participante é levado

a uma experiência em que as intersubjetividades que formam também as suas memórias são

colocadas em jogo e devem ser novamente avaliadas, em função do “banco de dados” proposto.

Entretanto, essa percepção acontece de maneira mais intensa e clara no momento em que

qualquer um se propõe a realizar uma mixagem. É o ato de relacionar os fragmentos do sítio que

provoca uma experiência de deslocamento naquele que a realiza. Assim, a obra não é a

contemplação do produzido, mas a produção incessante, asfixiante, infinita, que incomoda o seu

participante. A experiência estética, nessa obra, está intensamente relacionada à própria

comunicação do efeito experimentado pelo participante, uma vez que se trata de experimentar a

construção de como comunicar o efeito experienciado.

Ao observar as obras já mixadas, a experiência não parece ser muito diferente de assistir

um vídeo, pois todos os fragmentos de mídias são relativamente curtos, em função do espaço

disponível para colocar imagens. Mas há algo aqui que escapa de uma lógica do vídeo que se

assiste em um aparelho transmissor de imagens: o aparelho de circ_lular permite a interferência

numa obra derivada de uma das inúmeras intepretações realizadas, de modo a reconfigurá-la por

completo. Entretanto, tal tipo de deslocamento pode acontecer na contemplação, independente do

tipo de mídia ou transmissão que se utilize. A questão é que, em circ_lular, a experiência de

deslocamento pode ser compartilhada materialmente, no momento em que o participante realiza o

seu ato interpretativo ao remixar uma obra já acabada. Não se trata de discutir qual é a qualidade

do resultado simplesmente, mas de procurar investigar porque a mixagem provocou um

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descentramento a ponto de sugerir uma nova combinação. E isso tudo pode ser feito, também

como num mix, ao mesmo tempo, pelo participante que é simultaneamente leitor, autor, editor e

que, após realizar a sua mixagem, pode se sentir incomodado ao ver aquilo que acabou de mixar.

O que parece mais claro nessa experiência é que as diversas camadas temporais que compõem

uma obra (o momento do autor, o momento do leitor, o próprio momento do texto etc) podem

aparecer e acontecer todas ao mesmo tempo, mas sem estarem exatamente sobrepostas.

Maria Antonieta Borba (2003) afirma que a estrutura ficcional é caracterizada pela seleção

de um repertório em que os elementos familiares encontram-se despragmatizados. No caso de

obras como circ_lular, a questão parece ser um pouco diferente. Aqui ainda não há uma estrutura

despragmatizada para o leitor enfrentar a surpresa de encontrá-la, ou ela se apresenta de uma

maneira um tanto quando incipiente. O desafio, em termos de experiência estética, passa a ser

sugerir elementos que podem ser reconhecidos como familiares, mas não poder dispor deles de

forma despragmatizada. A experiência fica centrada na criação de possibilidades de produção e

não somente na disponibilização dessas mesmas possibilidades. Após ter participado da

colocação de mais uma peça em uma das categorias propostas, talvez se possa pensar também

que o retorno do olhar para a peça ali colocada pelo leitor é capaz de causar a não-familiaridade.

E esta, por sua vez, será o primeiro passo para uma experiência estética com a obra: a não-

familiaridade das próprias escolhas das peças. Ou seja, não se trata de uma decodificação, mas de

olhar para o que se sugere como possibilidades de produção de possibilidades.

Numa obra de remixagem ao infinito, como é o caso de circ_lular, como distinguir as

estratégias textuais, os padrões, para então poder recorrer a um possível desvio? Não se trata

tanto de encontrar o desvio, mas de perceber, ao mesmo tempo, sua imanência e sua extrema

fugacidade. Ele está inserido na relação proposta por uma obra, internamente, mas ao poder ser

reconfigurado fisicamente, potencializa a percepção da fragilidade do encontro da experiência

estética, do deslocamento que ela provoca. Mais importante do que encontrar e fixar o desvio é

investigar o ato de recombinar incessantemente como o momento efetivo em que a experiência

estética acontece.

Em relação ao papel que o leitor pode desempenhar no que tange ao processo comunicativo

da obra, parece que o primeiro desafio enfrentado numa obra como circ_lular, por exemplo, é

aquele de criar as perspectivas do texto ao mesmo tempo em que já é preciso também perceber

quais são as projeções possíveis a partir destas mesmas perspectivas. E o arranjo resultante dessa

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projeção não é mais imaginativo somente, mas pode e deve ser materializado pelo leitor. O limite

a ser rompido, nas construções de leitura em cibernarrativas, parece ser aquele relativo à

concepção do significado imagético, conforme discutido na teoria do efeito estético. Como o

significado é polimorfo, ele não encontra seu lugar garantido no texto. Entretanto, nas obras

analisadas, o significado pode ser produzido materialmente em todas as suas formas. Mas não

haverá aqui uma ilusão? O objetivo das obras em questão é simplesmente tornar todas as formas

possíveis? E uma outra questão surge então: essa é a pergunta pertinente para um tipo de

fenômeno como o de tais obras?

Por fim, para terminar a análise, foi escolhida uma obra desenvolvida dentro do projeto

Paris Connection62, um grupo de seis artistas franceses cujas criações vão de arte programada em

computadores a obras colaborativas, passando por poesias interativas, obras em áudio etc. A obra

Pianographique63 apresenta ao receptor-participante diversos tipos de pianos que originam sons e

imagens na tela, de acordo com os toques no teclado (sons) e os movimentos do mouse pela tela

(imagens). A obra data de 1993, quando foi criada para CD-ROM. Posteriormente, a obra foi

disponibilizada na web e, desde então, tem recebido vários acréscimos e se modificado

constantemente, indicando aquilo que é a principal característica de uma cibernarrativa em seu

estado pleno: a permanência em processo. Há novos acréscimos que datam de 2002, ou quase dez

anos após a criação da primeira versão da obra.

62 Disponível em http://turbulence.org/curators/Paris/. Acessado em 04 de junho de 2007. 63 Disponível em http://www.pianographique.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.

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Figura 11: snapshot de uma das telas principais de Pianographique

A obra é composta de diversas bases de dados sonoras e visuais, e é do cruzamento das

bases de dados que surge um fluxo de imagens e sons momentâneo, elaborado pelo próprio

receptor-participante. A experiência marcante, nesse caso, é menos a combinação que pode ser

feita e mais o confronto com um código ainda não-configurado, uma obra ainda não-estruturada.

A divisão do teclado é correspondente aos vários tipos de movimento que originarão o texto da

obra. Esses parecem ser alguns dos tempos de programação da obra, agora indicados como linhas

de força temporais com as quais o receptor-participante entra em contato. Dessa maneira, o

espaço da obra se desdobra nos vários tempos que podem ser combinados, só que agora isso tudo

está à disposição do receptor-participante, separadamente.

Numa outra seção da obra (Continuum) podem ser experimentados pianos montados por

outros receptores-participantes, que podem ser tocados em um processo aparentemente infinito de

recombinações. Cada sessão pode ser gravada e disponibilizada no sítio, para que outros

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receptores possam “lê-la”. Ao permitir o acesso aos bancos de dados que servem como base para

as “escrileituras” realizadas por qualquer pessoa, Pianographique permite ao receptor-participante

investigar de que maneira outros receptores combinaram as diversas temporalidades ainda não-

configuradas da base de dados. Esse é um aspecto que deve caracterizar as cibernarrativas:

disponibilizar ao receptor-participante as pré-configurações temporais de cada leitura potencial a

ser realizada com a obra. Nessa sessão é onde também surge outro elemento a se considerar sobre

cibernarrativas: os processos colaborativos. Processos de criação colaborativa solicitam que as

fronteiras entre autor e leitor sejam tênues o suficiente para que a ênfase da relação esteja no

processo em si e não no produto dela derivado. A criação colaborativa em redes sociotécnicas

apresenta-se fortemente ligada à idéia do transitório. O caráter efêmero de uma obra em constante

criação baseia-se, aqui, numa espécie de desmaterialização da obra: sua estrutura flexível está

diretamente relacionada à participação momentânea do usuário, seu ato de desconstruir e

recombinar, e a conseqüente manipulação tanto dos significados quanto dos significantes da obra

em um determinado período de tempo.

Em Continuum o receptor-participante poderá também enviar imagens, sons, textos para o

sítio da obra, para que tais imagens possam vir a compor a base de dados. Dessa maneira, a

participação na obra se apresentará também naquilo que ela ainda não é, pois, ao preencher a base

de dados, o receptor-participante acrescenta à obra outros tempos ainda não-configurados, ou

tempos pré-configurados. Entretanto, essa característica ainda não está disponível no sítio, ainda

que na tela inicial exista um link informando que, por meio de correio eletrônico, qualquer

usuário pode enviar sua contribuição para o projeto.

Pianographique enfatiza o fato de que uma obra colaborativa exige o máximo de

dinamismo das cibernarrativas e, por conseguinte, é também o que caracterizaria esse tipo de

narrativa em seu estado mais intenso. Ao fazer o cruzamento das variáveis utilizadas para

categorizar o grau de imersão em cibernarrativas, tem-se a seguinte combinação: há o acesso à

mimese I, mas não há ainda a possibilidade de realizar acréscimos na base de dados sonoros e

visuais, o que posiciona a obra no nível 1.2; o receptor-participante pode visualizar as regras de

funcionamento da cibernarrativa e pode alterá-las, uma vez que com os movimentos do mouse e

do teclado ele cria novas configurações narrativas, e a obra assim estaria no nível 2.3. No que diz

respeito à variável relacionada às leituras realizadas por outros receptores-participantes, há dois

resultados permitidos pela obra aqui. O primeiro diz respeito à possibilidade de assistir sessões

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realizadas por outros usuários e gravadas no sítio. Essa funcionalidade posicionaria a obra no

nível 3.3, em que o leitor pode ver, mas não pode alterar outras leituras já feitas sobre a obra. No

entanto, há uma segunda forma de compreender o resultado das leituras em Pianographique,

quando essas leituras se configuram como a produção de novos pianos para serem tocados por

qualquer outro usuário. Nesse caso, o nível de imersão na categoria 3 é o correspondente ao item

3.2, em que o leitor pode acessar outras leituras e modificá-las, gravando os resultados no próprio

sítio. Nessa obra, o tempo experimentado pelo leitor é, como diz Paul Ricoeur, experimentado

com a própria narrativa. Entretanto, o leitor deve primeiro organizar os elementos pré-

configurados, próprios do campo da ação prática, pois o autor não chega a propor uma primeira

narrativa. Assim, o leitor tem um primeiro contato com um tempo pré-configurado e deverá ser

capaz de compreendê-lo e organizá-lo materialmente numa narrativa. É só a partir daí, da sua

própria configuração, que tal leitor terá acesso ou possibilidade de reconfigurar o que ele mesmo

produziu. Pianographique assemelha-se muito a um processo com vários estágios de

desenvolvimento e, por essa razão, analisá-lo é uma tarefa complexa e que parece também não ter

fim. Tal fato parece diretamente relacionado à instabilidade das várias criações que surgem no

seu desenvolvimento, como que a indicar que cada uma delas é, na verdade, o início de um outro

processo, de uma outra cibernarrativa.

Se a cibernarrativa parece servir-se de uma flexibilidade extrema do suporte, uma primeira

pergunta já permite pensar a experiência estética no momento da criação desse tipo de obra.

Antes de realizar a pergunta, convém discutir a questão da materialidade de qualquer tipo de

suporte. Aquele que cria, no momento mesmo da criação, experimenta a resistência do material

com o qual irá expressar o que deseja transmitir. A forma da expressão nos diz de uma

experiência de resistência de ambas as partes: o material resiste à modelagem que lhe é imposta e

o criador experimenta sua própria resistência interna diante de um material que também modela

aquilo que ele deseja expressar. É do resultado desse campo de tensões, idas e vindas, que surge

uma obra para ser esmiuçada, levada a todos os extremos possíveis. É da relação e na relação

entre as resistências que surge um campo instável, onde se insere de modo muito frágil o material

resultante desse entrelaçamento.

O primeiro desafio de trabalhar com um material digital é a sua extrema flexibilidade, que

dilui essa experiência de resistência da forma, no momento da criação. A expressão que se deseja

não encontra exatamente mais uma resistência que a informe, mas parece desdobrar-se

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indefinidamente para encontrar forma nenhuma, a não ser aquela que se deseja. Antes do próprio

jogo, há todas as possibilidades de produção de possibilidades do jogo, e essa parece ser a

característica que define a última potencialidade de uma arte que se diz tecnológica.

Em obras colaborativas, há uma provocação para o esgotamento/recriação ao infinito.

Entretanto, quando se pode realizar o acréscimo de elementos, como em circ_lular ou em

kollabor8, há uma possibilidade para se pensar a experiência estética de outra maneira.

Retomando a discussão sobre a não-resistência/baixa resistência do suporte digital, sugere-se um

deslocamento para o lugar onde acontece a resistência, centrado mais explicitamente nas relações

possíveis entre a variedade de expressões comportadas por um suporte sem limite, ou onde o

limite tende ao infinito. Se a experiência estética se dá quando ela desloca o interlocutor e o faz

repensar a própria estratégia que o jogo propõe para ele, numa obra tecnológica o deslocamento

parece acontecer antes disso. É preciso primeiro sugerir as peças do jogo, sem criar as regras

explicitamente. Onde fica a estratégia textual? Essa parece ser a pergunta pertinente nesse

momento. Há um lugar para a estratégia textual, mas não é mais aquele de ser descoberta na

experimentação da obra materializada. É como pensar que o lugar seja ainda mais instável do que

aquele sugerido por Iser quando discute a teoria do efeito estético.

Em várias obras com características cibernarrativas, o engajamento da totalidade do corpo

não acontece de forma explícita, de maneira a fazer com que o espectador sinta fisicamente a

obra em si. Entretanto, isso não significa que a experiência em que ele ingressa não afete o

sensível e não seja afetada também pela sensibilidade do espectador. Nas obras escolhidas, que

sugerem recombinações de experiências vividas pelos seus usuários, podem-se destacar dois

momentos, ao menos, em que o engajamento aproxima-se de uma interferência física sobre o

espectador ou mesmo instiga este a investigar a sua própria percepção sensível. Na escolha de

experiências que podem ser colocadas no sítio, em formato de vídeo ou áudio, o usuário está

investindo o seu corpo no corpo da obra, mesmo que à distância. Aqui, ele se oferece para sofrer

recombinações a partir de um determinado meio que escolheu para expressar uma dada

experiência. Após anexar a sua experiência ao corpo da obra, esse mesmo espectador irá agora se

deparar com as inúmeras recombinações que podem deslocar a experiência vivida por ele, e

reconfigurá-las, ao fazer com que elas se tornem parte de uma outra experiência. A recombinação

incessante das experiências vividas, dentro do sítio, sugere aos seus espectadores refletirem sobre

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o significado de cada uma das experiências, mas não como algo em si e sim como uma parte de

um todo maior de relações intersubjetivas.

E mais ainda, o que aparece aqui como fenômeno capaz de causar uma experiência estética,

conforme a abordagem utilizada nesse estudo, não é tanto cada uma das recombinações, mas a

experiência de realizá-las. Afinal, o que o espectador faz aqui é tomar experiências vividas e

propor para si mesmo e para outros, novas possibilidades de produção de possibilidades, um

constante criar de novas experiências e de novas relações comunicativas.

O que caracteriza a experiência de imersão em cibernarrativas parece ser a exigência, em

relação àquele que irá colocar a obra em movimento, de uma entrada no código da obra no

momento em que esse código digital ainda não está configurado para dar origem a alguma ação,

programada ou não. Ou seja, cabe ao receptor-participante criar a obra que ele próprio irá

experimentar. Ainda nesse sentido, a imersão do receptor-participante se faz entre as diversas

camadas temporais que se cruzam na criação das cibernarrativas. O ambiente imersivo surge

como um conjunto de linhas de força temporais que não se esgotam quando a obra aparece, uma

vez que todo surgimento de uma configuração específica, no meio digital, é sempre temporário,

efêmero e marcado pela instabilidade. A imersão, a partir dessa proposta, é bastante diferente

daquela presente em caves, em ambientes de realidade virtual. Entretanto, como se pode perceber

em algumas obras analisadas, a exigência de imersão pode ser dividida em relação às três

categorias de análise (acesso à mimese I; acesso ao código de programação ou às regras da

narrativa; e acesso às leituras já realizadas, transformadas em elementos das obras). Assim, de

que imersão se fala aqui? De um conceito relacional, definido pelo cruzamento das três categorias

em alguns pontos. O que se percebe, na análise, é que algumas obras não permitem a imersão do

receptor-participante no estado de mimese I, mas apresentam alternativas de participação nas

regras que estruturam as narrativas, o que lhes confere alguma possibilidade de imersão relativa

ao fato de serem obras em rede. Criar obras em que o acesso à mimese I é franqueado ao leitor

significa criar obras em que provavelmente a participação imersiva será mais intensa também nas

outras categorias de participação. Afinal, se um usuário pode acessar uma narrativa em estado de

mimese I e pode acrescentar dados a essa narrativa, isso implica o acesso ou ao código de

programação ou às regras da narrativa, ou aos dois, conforme pode ser visto em kollarbor8 ou em

Pianographique. Como conseqüência dessa possibilidade, as leituras de outros usuários também

terminam por serem disponibilizadas como partes físicas da obra, e passíveis de alteração. É

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possível dizer que o acesso ao estado de mimese I de uma narrativa caracteriza um tipo de

imersão na cibernarrativa enquanto está sendo construída e em todas as fases do processo de

modificação da obra. O estado máximo de imersão, considerando a relação entre as três

características, exige uma obra realmente colaborativa, que apresente zonas de autoria

compartilhadas, obras cuja narrativa possa ser vista sempre em estado de pré-figuração, e em que

o tempo seja sempre o que passa e o que é, e essa relação possa ser experimentada no ato de

criação física da cibernarrativa.

A mesma narrativa poderá, num outro momento, vir a ser reorganizada por um outro leitor.

E essa nova reorganização não se faz apenas no nível de uma reconfiguração não material da

narrativa. O que um novo leitor pode realizar é uma nova tessitura, uma nova narrativa material,

bem como disponibilizá-la como mais uma configuração possível dos primeiros fragmentos

disponibilizados pelo autor. Cada nova experiência de navegação é sempre uma experiência de

contato com a experiência poética ainda pré-figurada. Assim, não há um ambiente imersivo onde

o receptor-participante entra, a não ser aquele que ele mesmo cria à sua volta, enquanto

experimenta a obra que surge de suas próprias combinações. O tempo experimentado pelo leitor,

em cibernarrativas colaborativas, não é apenas um tempo reconfigurado em mimese III através de

mimese II. A cibernarrativa colaborativa permite e exige que, em sua forma mais dinâmica, o

leitor modifique materialmente as três mimeses propostas por Paul Ricoeur. Essa é a condição

criada pelo tipo de imersão característico das cibernarrativas, confome a discussão proposta por

essa tese. Para que se possa considerar uma obra como cibernarrativa é preciso compreender que

o principal desafio é criar uma experiência processual em que a imersão não seja condição já

dada ao leitor, mas que ela exija a sua criação por esse leitor. Ou seja, ao receptor-participante de

uma cibernarrativa cabe estruturar a imersão a que estará sujeito a partir do seu próprio

movimento em um ambiente imersivo ainda em estado de pré-figuração, em estado de mimese I.

E cabe aos meta-autores criarem cibernarrativas que possam sempre serem pensadas como

permanentemente em estado de mimese I, de modo que os receptores-participantes possam aí se

“situar” para construírem a sua experiência estética.

Ao propor, como uma segunda conclusão, uma tipologia para as cibernarrativas, a partir do

conceito de imersão, tomou-se como parâmetros termos indicativos de processos de construção

de narrativas, e não termos que procuram definir tipos específicos de narrativas. Afinal, quando

Iser (1996) discute sua teoria do efeito estético não procura, com ela, definir o que é um texto que

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produz efeito estético, mas quais as condições de criação de efeito estético a partir da conjugação

de elementos como as estratégias textuais, repertório e o ponto de vista nômade do leitor, entre

outros aspectos. Por essa razão situa também o efeito estético na conjugação entre o pólo do texto

e o pólo do leitor. Iser (1996) procura discutir de que modo se dá o processo de comunicação de

textos literários, enfatizando, assim, mais uma vez, o caráter de acontecimento desses textos. Por

entender-se aqui a cibernarrativa como um tipo de obra dinâmica, que destaca justamente os

processos de sua construção é que se buscou a relação entre a teoria do efeito estético e a

tipologia sugerida para pensar o comportamento das cibernarrativas. Entre as três categorias

macro propostas na tipologia, parece-nos que a categoria que trata do acesso ao código de

programação e/ou às regras das cibernarrativas é a que se aproxima mais dos parâmetros

encontrados na teoria do efeito estético, principalmente no que tange às estratégias textuais. Se

nos textos literários discutidos por Iser essas estratégias funcionam como ativadores daquilo que

virá a se constituir, através dos atos do leitor, como efeito estético, nas cibernarrativas essas

estratégias existirão em função dos movimentos do leitor ainda na construção de uma narrativa e

não mais somente na sua reconfiguração.

Em relação à discussão de Paul Ricoeur (1994) sobre o tempo na narrativa, a ênfase se fez

sobre a articulação das três mimeses propostas pelo autor francês em função do caráter de

movimento em direção ao texto evocado pela relação entre narrativa e tempo. Ao construir uma

narrativa estabelece-se um sentido para o tempo, cria-se uma configuração temporal que será

encontrada e “discutida” pelo leitor dessa narrativa. Nesse embate, do seu centro mesmo, forma-

se uma determinada percepção temporal que não está contida no texto, e nem está pronta já no

leitor. Esse embate estrutura-se na conjugação das mimeses, processo em que o leitor é sempre

parte ativa, porque deve se movimentar em direção ao texto, para com ele dar a perceber um

tempo narrado. Novamente, não se trata aqui de definir qual texto permite o movimento, mas

como as articulações narrativas de textos diversos sugerem a movimentação com as três mimeses.

No que diz respeito às cibernarrativas, a categoria que trata do acesso às mimeses procura dar

conta dessa mesma articulação, ao verificar de que modo a possibilidade de acesso ao tempo pré-

figurado e a sua possibilidade ou não de modificação podem evocar modificações nas

cibernarrativas analisadas.

Finalmente, a terceira categoria de análise, que discute como a leitura pode constituir-se

fisicamente em uma outra obra, retoma o sempre presente receptor-participante e investiga a

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perspectiva de colaboração entre os vários “leitores” de cibernarrativas, com foco principalmente

na presença física das leituras como elementos da cibernarrativa. Aqui destaca-se a relação tanto

com a teoria do efeito estético quanto com a discussão sobre tempo e narrativa. Nos dois casos,

considera-se o leitor como parte ativa da construção da experiência estética, e aponta-se para sua

presença já desde muito cedo na discussão sobre literatura. Por essa razão, quando tratamos das

cibernarrativas, não se pode falar de um leitor finalmente liberto dos constrangimentos físicos de

qualquer tipo de suporte. Antes, é preciso perceber que a discussão se faz sobre processos de

escrita e leitura, sobre questões processuais, e não sobre a existência de um tipo de obra, num

determinado suporte, que resolveria de uma vez por todas os problemas aqui indicados.

Assim, ao final dessa tese, parece-nos que a discussão sobre imersão, voltada para pensá-la

como condição de produção de cibernarrativas, se faz pela via relacional justamente em função

de ser um caminho que, ao mesmo tempo em que preserva conceitos da teoria literária que

procuram dar conta das conexões entre autores, leitores, obras e textos, sugere como atualização a

necessidade de se investigar de que maneira a exposição cada vez mais intensa das relações entre

esses quatro elementos, por exemplo, na abertura dos códigos dessas conexões, provocam

deslocamentos no tipo de experiência a que se tem acesso nas cibernarrativas. É como se a

discussão aqui fosse também ela uma distensão dos conceitos, procurando não perder de vista o

que ganha qualidades temporais passadas e aquilo que aparece prenhe de qualidades temporais

futuras. O movimento dessa tese é também uma narrativa que se faz enquanto memória e espera,

pois como diz o próprio Ricoeur, a impressão só aparece na alma através da ação do espírito,

quando ele espera, está atento e recorda-se.

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