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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA FERNANDA ZIMMERMANN DE ARMAÇÃO BALEEIRA A ENGENHOS DE FARINHA: FORTUNA E ESCRAVIDÃO EM SÃO MIGUEL DA TERRA FIRME SC: 1800-1860 FLORIANÓPOLIS 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

FERNANDA ZIMMERMANN

DE ARMAÇÃO BALEEIRA A ENGENHOS DE FARINHA:

FORTUNA E ESCRAVIDÃO EM SÃO MIGUEL DA TERRA

FIRME – SC: 1800-1860

FLORIANÓPOLIS

2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

FERNANDA ZIMMERMANN

DE ARMAÇÃO BALEEIRA A ENGENHOS DE FARINHA:

FORTUNA E ESCRAVIDÃO EM SÃO MIGUEL DA TERRA

FIRME – SC: 1800-1860

Dissertação apresentada

ao Curso de História da

Universidade Federal de

Santa Catarina, como

requisito para obtenção

do titulo de Mestre em

História.

Orientadora: Professora

Beatriz Gallotti

Mamigonian.

FLORIANÓPOLIS

2011

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AGRADECIMENTOS

Queria agradecer primeiro de tudo aos meus pais, Nazareno e

Nadir, e ao meu irmão, Fausto, por tudo que tenho. Pelo amor, carinho,

dedicação, incentivo e principalmente pelos momentos de cobrança.

Acima de tudo, por acreditarem em mim incondicionalmente.

Ao Felipe, que de namorado a noivo, esteve ao meu lado desde

o princípio. Pelo amor e companheirismo. Por estar sempre presente

com sua calma e tranquilidade. Por ser tão importante e especial em

minha vida.

Agradeço a Beatriz Gallotti Mamigonian, por ser incansável.

Sem sua paciência não teria conseguido. Suas críticas nos momentos

necessários e sua compreensão em todo esse caminho possibilitaram que

eu chegasse aqui.

A prima, e colega de profissão, Joseane. As conversas nos

momentos complicados e os conselhos nas horas oportunas tornaram o

trabalho sempre mais simples e prazeroso.

Aos amigos e colegas de trabalho sempre tão presentes e ao

mesmo tempo tão compreensíveis com os momentos de ausência.

Como não podia deixar de ser, agradeço aos meus alunos, em

especial a três deles: Camilla, Leonardo e João. As discussões em sala

de aula trouxeram crescimento e amadurecimento. O respeito e a

admiração trouxeram a responsabilidade de não desapontá-los. As

críticas e os elogios contribuíram, e contribuem, para o meu crescimento

e acima de tudo para a construção de uma amizade.

A todos vocês, meu muito obrigado.

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Resumo: Este trabalho contribui para a historiografia mais recente,

trazendo um retrato da economia e sociedade da Freguesia de São

Miguel da Terra Firme durante a primeira metade do século XIX.

Analisa a Armação da Piedade uma grande unidade produtora escravista

no litoral catarinense, contando com uma complexa estrutura e um bom

número de trabalhadores livres e escravos. Compreende a estrutura da

posse escrava e a participação dos escravos nas fortunas locais e se

aprofunda nas questões referentes às relações de trabalho e estratégias

de sobrevivência, buscando desvendar o que Schwartz denominou

“segredos internos”, compreendendo seus mecanismos internos e as

relações sociais que vigoravam dentro destas pequenas e médias

propriedades e a participação dos libertos nesta sociedade. As fontes

utilizadas para esta pesquisa inclui inventários de particulares (1833-

1860) e um inventário da Armação da Piedade, além de registros de

batismo, óbito e casamento que auxiliam no cruzamento de fontes.

Palavras-chave: Armação baleeira, escravidão, fortuna.

Abstract: This research contributes for the recently local history,

bringing a picture of the economy and society in São Miguel da Terra

Firme during the first half of the nineteenth century. Analyze Armação

da Piedade a large production unit in the slave coast of Santa Catarina,

with a complex structure and a good number of free worker sand slaves.

Understands the structure of slave owner ship and participation in the

fortunes of local slave sand deepened in matters of labor relations and

survival strategies, seeking toun cover what Schwartztermed "inner

secrets", including their internal mechanisms and social relations that

prevailed with in these small and medium farm sand participation of

freedmen in this society. The sources used for this research includes

surveys of individuals(1833-1860) and an inventory of Armação da

Piedade, in addition to records of baptism, marriage and death that help

in crossing sources.

Keywords: Framewhaling, slavery, wealth.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Mapa da Ilha de Santa Catarina e do Litoral adjacente

................................................................................................. 26 Figura 2: Planta Topográfica da Piedade que caracteriza os

diversos “setores” no interior da Armação .............................. 47

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Registro de Recebimento de Sesmarias – São Miguel .......... 31 Tabela 2: População da Freguesia de São Miguel da Terra Firme por

condição social, 1753-1851 ................................................................... 41 Tabela 3: Tabela de Casamentos dos Livres de São Miguel da Terra

Firme ..................................................................................................... 43 Tabela 4: Procedência dos Noivos e Noivas de São Miguel, 1794-1856

............................................................................................................... 44 Tabela 5: Escravos homens da Armação da Piedade (1816) ................. 65 Tabela 6: Compras de farinha feitas pela Armação da Piedade em 1816

............................................................................................................... 77 Tabela 7: Mulheres escravas da Armação da Piedade e condição civil 83 Tabela 8: Crioulos menores da Armação da Piedade ............................ 85 Tabela 9: Faixas de fortuna, São Miguel 1830-1860 ............................ 95 Tabela 10: Propriedade Escrava entre os inventariados de São Miguel

entre 1830-1860 .................................................................................. 103 Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados de São Miguel

1830-1860 ........................................................................................... 104 Tabela 12: Sexo e Origem dos escravos de São Miguel 1830-1860 ... 106 Tabela 13: Origem dos escravos batizados por década (São Miguel,

1801-1850) .......................................................................................... 113 Tabela 14: Condição dos padrinhos e madrinhas de crianças escravas em

São Miguel (1798 – 1856) ................................................................... 122

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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................ 15

1 A Freguesia de São Miguel da Terra Firme .................................... 24

1.1Extensão, limites e ocupação ...................................................... 25

1.2 O desejo de tornar-se capital ..................................................... 33

1.3 A pesca e a agricultura: a economia da região ........................... 34

1.4 Os homens e mulheres desta história ........................................ 40

1.5 Armação da Piedade ................................................................... 45

2 Real Contrato da Pesca: A Armação da Piedade ........................... 49

2.1 A introdução da pesca da baleia no litoral sul ........................... 51

2.2 Santa Catarina: os primeiros contratos ...................................... 55

2.3 A Armação da Piedade ............................................................... 57

2.4 A mão de obra ............................................................................ 61

2.5 Cotidiano escravo ....................................................................... 72

2.6 Vestuário, habitação, parentesco e a constituição de famílias

escravas ............................................................................................ 79

2.7 O produto da pesca .................................................................... 88

2.8 A decadência da Armação .......................................................... 90

3 Fortuna e Posse Escrava em São Miguel da Terra Firme .............. 92

3.1 A Propriedade em São Miguel da Terra Firme ........................... 94

3.2 A Distribuição da Riqueza Seguindo Critérios Econômicos ...... 101

3.3 Posse Escrava............................................................................ 103

4 População escrava em São Miguel da Terra Firme: .................... 107

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4.1 População escrava e suas origens ............................................ 107

4.2 A Família Escrava ...................................................................... 116

4.3 Relações de Compadrio ............................................................ 121

4.4 Incorporação dos libertos ao sistema escravista ...................... 126

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 130

FONTES ........................................................................................... 132

REFERÊNCIAS .................................................................................. 134

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Introdução

Esta pesquisa busca ir além dos limites das plantations,

investigando a utilização do trabalho escravo na Freguesia de São

Miguel da Terra Firme, na primeira metade do século XIX. Localizada

no litoral da Capitania de Santa Catarina, ao norte da Ilha de Santa

Catarina, São Miguel da Terra Firme abrigou a maior Armação de Pesca

da Baleia do sul do Brasil, a Armação da Piedade, fundada em 1842 e

abundante produção de farinha de mandioca, atividades desenvolvidas

por um significativo número de escravos destinados ao trabalho na

armação e nas pequenas e médias propriedades que constituíam o local.

Na década de 1930 diferentes interpretações acerca da

exploração econômica do Brasil colocaram a produção e a exportação de

produtos comerciais com destino a Portugal como o centro da

colonização do território brasileiro. Já em 1970 críticas a Caio Prado

passaram a contestar suas idéias como inicio do reconhecimento das

produções destinadas ao mercado interno, funcionando de forma

paralela as agroexportações.

Apesar da constituição de diferentes modelos explicativos um

ponto era consenso entre os autores que discutiam o tema: a

monocultura de exportação, o latifúndio e a escravidão definiram e

moldaram a sociedade e a economia do Brasil durante todo o período

colonial, e ainda durante a maior parte do século XIX. Para estes autores

a estrutura produtiva colonial teria sido criada para transferir excedentes

para a Europa, não havendo uma acumulação de riqueza na colônia.

Essa concepção fez com que as plantations escravistas, e por

consequência a economia de exportação como um todo, estivessem no

centro das pesquisas acerca da história do Brasil. Ainda assim não há

como negar que estas obras foram se extrema importância para o

entendimento da história colonial brasileira.

Essa concepção fez com que os trabalhos relacionados a esse

tema acabassem por interpretar o Brasil como uma extensa plantation,

limitada ao cultivo em grande escala e ao comércio destes produtos,

dividindo a sociedade em duas classes: os senhores que possuíam as

plantations, e os escravos que nelas trabalhavam. As produções

econômicas e os grupos sociais que não estavam inseridos nestes

critérios foram classificados como de pouca significância, postados à

margem e exercendo influência insignificante no processo de

constituição da sociedade e economia brasileira.

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Nas últimas décadas estas concepções acerca da formação

histórica do Brasil começaram a ser questionadas. Historiadores

lançaram seus olhares para além das plantations e constatarem a

existência de uma vida social e econômica que não estava direcionada a

produção com destino a exportação, mas que se voltava para a produção

de gêneros destinados ao abastecimento interno, e que dominava todo o

Brasil rural. A comercialização destes produtos criou uma extensa rede

de comércio que de alguma forma integrava várias partes do Brasil.

Estas novas análises acerca não só da economia colonial, mas

também da cultura e política dos que viviam na colônia começaram a

oferecer novos rumos à historiografia brasileira. Com um retorno às

fontes manuscritas, e neste momento não apenas as oficiais utilizadas

anteriormente, mas também utilizando jornais, registros eclesiásticos e

documentação do cotidiano das unidades produtivas é que autores de

toda uma geração passam a dedicar atenção à produção e

comercialização de itens produzidos visando o abastecimento do

mercado interno, principalmente no abastecimento das regiões

agroexportadoras. Estes autores chegam a conclusões que contradizem

as afirmações anteriores. O mercado interno, negligenciado pela

historiográfica tradicional, era dinâmico, gerava fortunas e mesmo nos

momentos em que a economia exportadora encontrava-se em baixa, este

conseguia se sustentar forte e ativo.

Na obra O Arcaísmo como Projeto,João Fragoso e Manolo

Florentino estabelecem um diálogo com os grandes esquemas

explicativos que buscaram do funcionamento da economia e da

sociedade colonial. Pensando as idéias de Caio Prado, Celso Furtado e

Fernando Novais e o seu “sentido da colonização” de um lado, e Jacob

Gorender e Ciro Flamarion e o “modo de produção escravista”, de outro,

que os autores apresentam sua reinterpretação do empreendimento

colonial no Brasil.

Estes autores mostram que a acumulação proveniente do

mercado interno da América Portuguesa tinha como objetivo principal a

manutenção de uma sociedade hierarquizada e arcaica, onde os grandes

mercadores, após acumularem riqueza acabavam abandonando as

atividades mercantis e tornando-se rentistas urbanos e senhores de

terras e escravos, atividades menos voltadas para o sistema capitalista,

mas que ofereciam uma elevação no status. Dessa forma, esse ideal

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arcaizante pressionava a economia e o desenvolvimento do mercado

interno.1

Acerca da existência de um mercado interno, recentemente Bert

Barickman abordou a relação entre a economia agroexportadora e as

produções voltadas para o mercado interno na região considerada o

berço das plantations. Utilizando inventários do Recôncavo Baiano entre

os anos de 1780-1860, o autor procura estabelecer comparações entre as

posses de terras, os usos da mão-de-obra escrava e as práticas agrícolas

na produção de três itens de destaque: cana-de-açúcar, o fumo e a

mandioca. Barickman dedica sua atenção para o estudo do mercado

interno de produtos, tendo a farinha de mandioca como destaque, já que

a possibilidade de compra destes produtos indispensáveis para o

sustento de escravos, e mesmo da população livre pobre, fez com que

produtores de açúcar da região pudessem direcionar as terras e a mão de

obra para o plantio da cana e beneficiamento do açúcar. Além desta

economia de abastecimento, na maioria das vezes, funcionar

independente das flutuações do mercado exportador, ainda conseguia

abarcar um número significativo de escravos provenientes do tráfico

atlântico de cativos.2

Os escravos eram peças importantes no contexto das pequenas e

médias propriedades que caracterizavam as economias de

abastecimento. O funcionamento desta escravidão se dava utilizando

estratégias, ou mesmo, “segredos internos”, como preferiu chamar

Stuart Schwartz.

Com uma pesquisa microscópica e detalhista em

documentos de alguns engenhos de açúcar da região da Bahia e

Pernambuco, Schwartz traz desde informações básicas sobre o uso da

mão de obra indígena até a utilização em larga escala da mão de obra

africana. Seu estudo minucioso sobre alguns engenhos de açúcar no

nordeste brasileiro oferece detalhes sobre o funcionamento do sistema

escravista, especialmente no que tange no cotidiano de senhores e

escravos e as relações estabelecidas entre eles.3

Schwartz ainda vai além. Em seu trabalho, este oferece uma

crítica a autores como Jacob Gorender,para quem a extração do trabalho

1 FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo Garcia. O Arcaísmo como Projeto: mercado

atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro. 1790- 1840. Rio de Janeiro. Diadorim, 1993. 2 BARICKMAN, Bert B. Um contraponto baiano. Açúcar, fumo, mandioca e escravidão no

Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. 3SCHWARTZ, Stuart B, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-

1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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dos escravos se dava com base na violência continuada. Fernando

Henrique Cardoso chegou a afirmar que o escravo havia introjetadoa

visão que o senhor tinha dele, de coisa.4 Para estes autores, os escravos

só se tornavam agentes ativos no momento em que estavam em conflito

com seus senhores, buscando romper com o sistema escravista.

Enquanto encontrava-se trabalhando, seja nas plantations ou nas

produções destinadas ao mercado interno ou as exportações de menor

porte, estes eram passivos aos mandos e desmandos de seu senhor, se

comportavam como “coisas”, sem vida ou cultura própria.

Essa tese foi desmontada por Schwartz quando abordou o

cotidiano das relações entre senhores e escravos, explorou questões

como a alimentação, vestuário, moradia e de outras situações cotidianas,

a possibilidade de constituir família, o direito de cultivar suas próprias

roças e vender os excedentes, de exercer o culto aos seus antepassados, a

possibilidade de ascender na hierarquia do trabalho e de conquistar a

alteração de sua condição jurídica, foram analisados como sendo parte

das negociações entre senhores e escravos que possibilitassem o

funcionamento das unidades produtivas.

Estudando estes fatores, o autor verificou a presença cotidiana

de negociação entre ambas as partes, concretizadas principalmente no

oferecimento de incentivos negativos e positivos que buscavam extrair o

trabalho dos cativos, mas também que os oferecia um pouco mais de

autonomia sobre si e sua família.5

Robert Slenes acrescenta elementos ao debate quando se dedica

a estudar a formação de famílias escravas no Sudeste e como estas

preservavam a cultura africana em suas construções e costumes.

Analisando as moradias escravas e as maneiras como estes cativos

buscavam preservar seus cultos e tradições africanas, o autor conclui

que a formação das famílias no Sudeste escravista servia como uma

forma de resistência, já que facilitava a preservação de sua cultura

africana, em detrimento da aculturação, resultado das imposições

senhoriais. 6

Em Santa Catarina as interpretações clássicas, como as de

Walter Piazza e Fernando Henrique Cardoso7, abordaram a história da

4CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. São Paulo:

Difel, 1962. 5SCHWARTZ, Stuart B, op cit. 6SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: Esperanças e Recordações na Formação da

Família Escrava - Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 7 CARDOSO, op cit. PIAZZA, A escravidão negra numa província periférica. Florianópolis:

Garapuvu/Unisul, 1999.

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escravidão local como uma economia caracterizada pelo minifúndio,

sendo descrita como pouco dinâmica, onde o braço escravo era utilizado

lado a lado com o trabalho familiar.

Trabalhos mais recentes e que abordaram a economia

catarinense possuem uma visão diferenciada, tendo como apoio diversas

fontes, e são essenciais para repensar as questões referentes a escravidão

e ao acúmulo de riqueza na região. Clemente Penna8, em sua dissertação

de mestrado sobre a escravidão e os contratos de trabalho na Ilha de

Santa Catarina na segunda metade do século XIX e, Beatriz Gallotti

Mamigonian9, em capítulo em que a autora aborda a economia

escravista na Ilha de Santa Catarina até o ano da abolição, a identidade

étnica e as rotas do tráfico que fornecia trabalhadores escravos para o

trabalho nas lavouras de mandioca, engenhos e Armações, inovam

quando oferecem uma análise mais detalhada e renovada sobre a

economia local, colocando-a no conjunto das demais produções voltadas

para o mercado interno. A partir destes trabalhos o que se pode perceber

é que a economia local não era incompatível com a escravidão, da

mesma forma que o volume das exportações dos itens produzidos na

Ilha de Santa Catarina não apontavam para uma economia

necessariamente de subsistência.

Há também alguns trabalhos acerca da freguesia de São Miguel

da Terra Firme. Todos eles trazem contribuições para o entendimento

daquela freguesia, porém sem enfocar a participação escrava e o

dinamismo da economia desta freguesia. A coletânea de artigos reunidos

por Ana Lúcia Coutinho é escrita por políticos e demais figuras de

prestígio na região durante a década de 1990, e que possuem como

objeto de pesquisa essencialmente a política da região no início e

decorrer do século XX.10

Especificamente sobre São Miguel da Terra Firme, o trabalho

mais aprofundado foi escrito por Joaquim Gonçalves dos Santos, em que

aborda a formação política e o povoamento da região, concentrando sua

atenção na segunda metade do século XIX, quando reflete os motivos da

8 PENNA, Clemente Gentil. Escravidão, Liberdade e os arranjos de trabalho na Ilha de Santa

Catarina nas décadas de escravidão (1850-1888).Florianópolis: Dissertação de Mestrado UFSC, 2005. 9 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos em Santa Catarina: Escravidão e Identidade

Étnica (1750-1888). 2006. 10 COUTINHO, Ana Lúcia. São Miguel da Terra Firme: 250 anos (1747-1997). Florianópolis:

EDEME, 1997.

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mudança do centro econômico e político de São Miguel, para o Vale do

Rio Biguaçu.11

Sobre a economia da região e a importância dos escravos,

Myriam Ellis12

, Célia Maria e Silva13

e Fábio Israel Vieira de Campos14

,

desenvolvem suas análises acerca da economia pesqueira em Ganchos,

resgatando os primórdios da atividade nesta região. Além de alguns

dados acerca da estrutura da armação, esta traz mapas e informações

sobre os trabalhadores que facilitam o entendimento de como

funcionavam as unidades de caça a baleia. Os autores debatem sobre as

unidades familiares que utilizavam de mão de obra escrava, fossem

propriedades pesqueiras ou de produção de mandioca, assim como a

inserção desta atividade no mercado maior, não apenas local.

Buscando contribuir para as pesquisas mais recentes que

buscam estudar as relações entre a economia exportadora de

abastecimento e a participação da mão de obra escrava na economia de

São Miguel, este trabalho tem por objetivo examinar a estruturação da

economia voltada para o abastecimento da freguesia, a participação da

mão de obra escrava e a relação com a atividade baleeira, estabelecida

desde a metade do século XVIII, mas já em decadência no século XIX.

As produções destinadas ao mercado interno foram

constantemente dadas como frágeis na historiografia clássica. No

entanto, não é isso que os dados obtidos através das fontes nos

apresentam. A posse escrava é uma das medidas de dinamismo dessas

atividades. Desta forma, buscando contribuir para uma reinterpretação

da presença escrava na sociedade e na economia do litoral catarinense, é

que este trabalho busca compreender a posse da terra, o uso da mão de

obra escrava, a participação dos escravos na economia local, as relações

de trabalho e a experiência destes trabalhadores.15

Uma das hipóteses

11 SANTOS, Joaquim Gonçalves dos. A Freguesia de São Miguel da Terra Firme: Aspectos

Históricos e Demográficos – 1750-1894. Dissertação de Mestrado: UFSC, 1996. 12 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1969. 13 SILVA, Célia Maria e. Ganchos/SC: Ascensão e decadência da pequena produção mercantil

pesqueira. Florianópolis: Ed. UFSC, 1992. 14 CAMPOS, Fábio Israel Vieira de. A mão-de-obra utilizada para a caça da baleia no litoral catarinense - Armação Grande ou de Nossa Senhora da Piedade, 1746-1836. 2002. Trabalho de

Conclusão de Curso. (Graduação em História) - Universidade Federal de Santa Catarina. 15PIAZZA, Walter. O escravo numa economia minifundiária. Florianópolis/São Paulo: Editora da UDESC/Editora Resenha Universitária, 1975; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo

e Escravidão no Brasil Meridional. São Paulo: Difel, 1962; CARDOSO, Fernando Henrique, e

Octávio IANNI. Cor e mobilidade social em Florianópolis. São Paulo: Nacional, 1960; HÜBENER, Laura Machado. O Comércio da Cidade do Desterro no Século XIX.

Florianópolis: Ed. da UFSC, 1981.

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levantadas neste trabalho é a de que a utilização da mão de obra escrava

pelos lavradores permitiu a acumulação de pequenas fortunas e criou

diferenciação social.

Em termos mais amplos, este trabalho busca contribuir para a

historiografia mais recente, que cada vez mais vem na interpretação dos

motores da economia colonial, colocando em destaque sua relevância

para a formação histórica do Brasil. O trabalho também contribui para

debates referentes à história comparativa da escravidão. Sob estes

aspectos é que este trabalho investigará a economia e sociedade da

Freguesia de São Miguel da Terra Firme durante a primeira metade do

século XIX. São Miguel, que havia sido efetivamente colonizada a partir

de 1750, já se encontrava estabelecida nessa primeira metade do XIX,

agregando uma economia extremamente diversificada, contando com

um bom número de fazendas de mandioca. Além disto, é neste momento

que se inicia um momento de revitalização da Armação da Piedade, com

a compra de novos cativos e rearticulação do monopólio. É também este

o período de auge da presença escrava na região, o que explica o período

escolhido como recorte de pesquisa.

As fontes utilizadas para esta pesquisa serão de caráter

qualitativo e quantitativo, assim manuscritas e impressas. Em um

primeiro momento irei pesquisar tanto inventários de particulares (1833-

1860), quanto um inventário da Armação da Piedade, realizado em

1816, que permitem o acesso a informações sobre a posse de escravos, o

tamanho e produção das propriedades e em que proporções e condições.

A estrutura de posse destes senhores e outras questões ligadas as

unidades produtivas e ao mercado serão levantadas a partir destes dados.

Muitas das conclusões deste trabalho estarão centradas na

análise do conjunto de 63 inventários, disponíveis no Fórum da

Comarca de Biguaçu e datados dos anos de 1814 a 1860.Estes, por

natureza, representam uma fonte tendenciosa. Isto porque nem todas as

pessoas mortas possuíam inventários, apenas aqueles que possuíam em

seu espólio bens de raiz e escravos é que acabavam sendo inventariados.

Sendo assim, o conjunto de inventários representa apenas a parcela da

população que usufruía de bens e escravos, e não o conjunto total dela.

Apesar disso, os inventários continuam sendo uma importante fonte, já

que nos fornece informações sobre práticas agrícolas, tamanho e valor

dos estabelecimentos, os escravos e as condições de trabalho.

O conjunto de documentos produzidos pela Real Junta do

Comércio sobre a Armação da Piedade, disponíveis no Arquivo

Nacional do Rio de Janeiro, composto por correspondências mercantis e

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balanços de pagamentos, fornecerá dados referentes à compra de

produtos para o abastecimento e manutenção da armação, possibilitando

a identificação do que era comprado e quem fornecia esses produtos,

trazendo inventários, dados sobre o funcionando da armação, mão de

obra utilizada no trabalho e mesmo dados sobre a administração da

armação.

Os registros de nascimento de livres e escravos (1798-1860),

casamento de livres (1794-1860)e óbito de livres (1815-1859),

disponíveis no Arquivo Histórico da Arquidiocese de Florianópolis,

foram transcritos em bancos de dados e fornecem informações úteis na

abordagem de temas relacionados à demografia da população livre e

escrava, a identificação dos nascimentos, origem dos cativos e suas

mães, relações de compadrio, a possibilidade do casamento e a

constituição de famílias.

Os documentos avulsos acerca de São Miguel e da Armação

da Piedade foram recolhidos pelo Projeto Resgate do Arquivo Histórico

e Ultramarino, referente à Santa Catarina e ao Rio de Janeiro, a

Enciclopédia do Almirante Carneiro, que faz parte do arquivo de Obras

Raras da Universidade Federal de Santa Catarina e um Relatório do

Governador da Ilha de Santa Catarina no ano de 1796 serão fontes que

irão oferecer um mapa mais amplo dos escravos que eram empregados

na lavoura, nos engenhos e na armação, assim como relatos oficiais

produzidos pelos senhores e administradores da região. Além disso,

serão utilizados documentos da seção de manuscritos da Biblioteca

Nacional, referentes à Capitania de Santa Catarina, além de

correspondências entre autoridades locais contidas no Arquivo Público

do Estado de Santa Catarina.

A metodologia utilizada seguirá os estudos mais recentes

ligados à história social da escravidão, estabelecendo um cruzamento

das fontes e de dados nominais, apoiados nas discussões já existentes

acerca do mercado de abastecimento e da escravidão no Brasil. Além

disso, os trabalhos da microhistória italiana, principalmente as obras de

Giovani Levi, ajudaram a compreender como as relações parentais,

políticas e sociais alteram o quadro econômico proposto pelo uso

exclusivo de séries de preços, impostos, etc. Integrar estes outros

elementos, considerados de “fora” da economia, faz com que o quadro

antes estabelecido seja alterado, percebendo assim de forma mais

precisa a configuração local. Segundo as interpretações de Giovani Levi,

busco compreender em São Miguel, como nas sociedades do Antigo

Regime os grupos sociais, além de seus traços “econômicos”, eram

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23

caracterizados e influenciados por culturas e estratégias de existência

diferentes.16

A partir destas propostas, o que se pode perceber na

historiografia recente é que o cotidiano das pessoas que viveram os

fenômenos econômicos da época passaram a receber destaque. Estudá-

los em meio as sociedade que os gerou, acompanhando os agentes

sociais, mediante seus nomes e inseridos nas relações que estes

compartilhavam, se tornou primordial para o compreendimento da

história social e econômica. As séries documentais aliadas a estes

aspectos referentes a escala microscópica trariam então um

compreendimento mais exato acerca destas sociedades, seus aspectos

cotidianos e econômicos.

Para alcançar os objetivos desta pesquisa, este trabalho será

dividido em quatro capítulos. O primeiro capítulo deste trabalho busca

fornecer um retrato da Freguesia de São Miguel da Terra Firme. Busca

através de mapas populacionais, registro de doação de sesmarias, um

relatório de João Miranda Ribeiro, que foi Governador da Capitania

entre os anos de 1793-1800, e mesmo através dos registros eclesiásticos,

entender o processo de ocupação da região e contribuição da população

escrava e fornecer um retrato da população e economia local. A idéia é

compreender como se constituiu aquela sociedade, sua população e

economia a partir de sua colonização até 1800, a fim de nos capítulos

seguintes explorar as relações estabelecidas na primeira metade do

século XIX.

O segundo capítulo busca explorar de forma mais específica a

armação da Piedade. Esta foi uma grande unidade produtora escravista

no litoral catarinense, contando com uma complexa estrutura e um bom

número de trabalhadores livres e escravos. A pesca sendo explorada em

regime de monopólio, as Armações catarinenses estavam integradas ao

contrato da pesca da baleia, estabelecido entre a Coroa Portuguesa e

rematantes privados. Produzia óleo de baleia e barbatanas destinadas à

exportação, assim como ao abastecimento local. Para isso, utilizarei a

documentação da Junta do Comércio e um inventário produzido em

1816 que buscava levantar a situação em que esta se encontrava. Este

capítulo é fundamental para compreender a importância da Armação e

da pesca da baleia para a economia local.

16 LEVI, Giovanni. A herança imaterial – trajetória de um exorcista no Piemonte do século

XVII. RJ: Civilização Brasileira, 2000; LEVI, G. Sobre a micro-história. IN: BURKE, Peter. "A escrita da história": novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p. 133-161

(tradução brasileira).

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Após compreender o papel e o funcionamento da Armação da

Piedade, o terceiro capítulo busca através de inventários e do

cruzamento de fontes, compreender a estrutura da posse escrava e a

participação dos escravos nas fortunas locais. Este capítulo abrirá a

discussão que será proposta para o quarto capítulo, onde se

aprofundando nas questões referentes às relações de trabalho e

estratégias de sobrevivência, buscarei desvendar quais os “segredos

internos”, o nexo desta sociedade, compreendendo seus mecanismos

internos e as relações sociais que vigoravam dentro destas pequenas e

médias propriedades, principalmente as relações estipuladas entre

senhores e escravos nestas pequenas propriedades. As possibilidades de

alforria e a participação dos libertos nesta sociedade também são temas

deste capítulo.

O estudo destas particularidades locais, assim como a presença

da mão de obra escrava, irão contribuir para não apenas para a releitura

da história local, mas também para inserir o litoral catarinense em um

contexto maior da história da economia brasileira.

1 A Freguesia de São Miguel da Terra Firme

A Freguesia de São Miguel da Terra Firme, localizada no

continente, ao norte da Ilha de Santa Catarina, foi criada e efetivamente

povoada em meados do século XVIII, durante o processo de ocupação

portuguesa do sul do Brasil. Seu território abrigou a mais importante

armação de pesca catarinense, além de uma importante fortaleza, a

fortaleza de Santa Cruz. Seu território era extenso, e abrigava diferentes

atividades econômicas, entre as quais também merece destaque a

produção de farinha de mandioca.

Por volta de 1810, a economia na região era baseada nas

produções agrícolas, voltadas para o mercado de abastecimento interno,

ou seja, de gêneros destinados a alimentação dos habitantes. Além da

produção agrícola, já dominante na região, se destacava na economia

local a estrutura montada para a produção de óleo de baleia na Armação

da Piedade, que a partir daquele momento passaria por grande

transformação, com o fim do monopólio real e dos contratos de pesca da

baleia.

É da formação e colonização desta freguesia na segunda metade

do século XVIII e início do XIX que irei tratar neste capítulo,

demonstrando os limites deste território, como e quando ocorreu sua

efetiva ocupação, os traços da economia local, além de oferecer um

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panorama da população que ali residia, abrangendo tanto a população

livre detentora de pequenas e médias propriedades, assim como a

população escrava que ali desempenhava as mais diversas funções nas

diferentes unidades produtivas.

As fontes utilizadas para o detalhamento deste quadro social se

baseiam em registros eclesiásticos contidos na cúria metropolitana de

Florianópolis e em correspondências dos governadores da Capitania e

outros relatórios.17

1.1Extensão, limites e ocupação

A Freguesia de São Miguel da Terra Firme, fundada em meados

do século XVIII, foi uma extensa freguesia localizada no continente, ao

norte da Ilha de Santa Catarina estabelecendo divisas ao sul com a

freguesia de São José; ao norte com a Vila de Nossa Senhora da Graça

do Rio de São Francisco; ao leste fica separada da Ilha de Santa Catarina

pelo mar, de frente para a Freguesia de Nossa Senhora das Necessidades

na distância de duas léguas e meia; ao oeste os limites eram vagos,

sendo que a ocupação efetiva esbarrava na Serra do Mar.

O território de São Miguel abrigava em sua extensão quatro

rios: o Rio dos Bobos, o Rio do Infernino, Rio Quebra-Cabaços e o Rio

Biguaçú. Este último ficava a distância de uma légua da sede da

freguesia, na direção sul. Era a passagem obrigatória por terra para a

cidade de Desterro e servia como um local de pescaria.

Na figura abaixo é possível verificar a localização desta

freguesia:

17 Estes documentos foram microfilmados e disponibilizados no Laboratório de História Social e da Cultura graças ao projeto Africanos no Sul do Brasil, financiado pela FAPESC e pelo

Edital Universal (2003).

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Figura 1: Mapa da Ilha de Santa Catarina e do Litoral adjacente

FONTE: ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo,

Melhoramentos, 1969, p. 58.

A ocupação portuguesa deste vasto território teve inicio nas

primeiras décadas do século XVIII. Segundo Caio Prado Jr, o conflito

entre os reinos de Portugal e Espanha, causados pelas ameaças

constantes de invasões por parte dos espanhóis, teria contribuído para a

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colonização do trecho meridional do Brasil, mas mais que isso, as

condições geográficas e econômicas da região teriam despertado as

atenções portuguesas.18

Até este momento a região era habitada apenas por algumas

tribos indígenas, de raiz Jê e Tupi Guarani. Se comparada a outras áreas,

a colonização meridional ocorreu tardiamente. Este tema foi abordado

por Caio Prado Jr e vem sendo explorado por uma historiografia mais

recente como as obras de Fábio Kuhn, Tiago Luís Gil e Martha

Hameister.19

Na contramão da historiografia catarinense que enfatiza o

aspecto da colonização açoriana do litoral, segundo Célia M. Silva,

houve uma simultaneidade entre o projeto colonizador de Santa

Catarina, no qual o objetivo era a exploração comercial da região, a

serviço da acumulação de capitais na Europa.20

Sobre a colonização deste território Fernando Henrique Cardoso

enxergava duas ordens de interesse neste processo: a necessidade de

uma diferenciação econômica portuguesa e a política expansionista da

metrópole.21

A colonização do litoral catarinense, iniciada nos primeiros

anos do século XVIII, foi influenciada por uma conjuntura européia o

aumento da concorrência mercantilista de potências como Holanda,

França e Inglaterra prejudicando as já frágeis nações ibéricas, além da

pequena queda da exportação do açúcar, agravada pela concorrência

estrangeira.

Esta soma de fatores fez com que a expansão colonial

portuguesa de fins do XVII e início do século XVIII fosse marcada por

uma nova política econômica e administrativa. No campo econômico,

Portugal se empenhava na criação de um sistema de monopólio

comercial e aumento do controle fiscal. Já a política administrativa

visava dar suporte as estratégias econômicas.

18PRADO JR, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1967 (1933). 19PRADO JR, Caio. Op cit.; KÜHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no

sul da América portuguesa – século XVIII.Niterói: PPG-História/UFF, tese de doutorado, 2006; GIL, Tiago. Infiéis Transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810). Rio de

Janeiro: Arquivo Nacional, 2007; HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação:

estudos sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila de Rio Grande (1738-1763). (Tese de Doutorado) Instituto de Ciências Sociais e de Filosofia da

Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006. 20 SILVA, Célia Maria. Op cit. p. 70. 21 CARDOSO, Fernando Henrique. O negro e a expansão portuguesa no Brasil Meridional. São

Paulo: Anhembi,1958.

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O conflito entre Portugal e Espanha, apesar de não ser o único e

determinante ator para a colonização, teve influências nela, o que fez

com que o processo de iniciasse com a construção de uma base político

militar, visando garantir a ocupação além de garantir a posse do

território. Antes disso, algumas movimentações com relação ao

povoamento do local já haviam acontecido. Em meados do século XVII,

paulistas haviam se instalado no litoral meridional ainda pouco

habitado. Homens ricos conduziram algumas famílias à região. Neste

sentido merece destaque Francisco Dias Velho Monteiro, natural de São

Vicente e que levou consigo sua família e um grupo de índios, que se

estabeleceram na região que hoje é Desterro.22

No entanto, os casais paulistas não efetuaram de forma concreta

o povoamento da região. E é apenas na primeira metade do XVIII que os

esforços para a colonização da região serão significativos. Em 1738

Dom João V ordenou que se criasse uma capitania adjacente à de São

Paulo, sendo então neste mesmo ano criada a Capitania de Santa

Catarina. Em 1739, com a nomeação de Silva Paes como Governador da

Capitania, uma série de obras começaram a ser erguidas para que o

propósito fosse cumprido. A primeira foi a Fortaleza da Ilha de

Anhatomirim, denominada Santa Cruz.

A Capitania de Santa Catarina não se situava entre as áreas

onde se desenvolviam as principais atividades exportadoras da colônia,

como a produção do açúcar e da mineração. No entanto, houve o

estabelecimento da Armação da Piedade, que se destinava à pesca da

baleia e que se integrava ao monopólio estabelecido no ano de 1741, e

que juntamente com a passagem de animais, corte de madeira, e ainda,

cobrança de dízimos reais, passou a movimentar a economia local. A

construção da armação se iniciou no ano de 1742 e sua principal

finalidade era a produção de óleo para a exportação ou para a

iluminação das cidades e fortalezas, inclusive a de Anhatomirim. Esta

ficava distante quatro léguas de um povoado que passou a ser

denominado São Miguel.

Nas áreas litorâneas do continente próximas à fortaleza foram

distribuídos lotes de terras aos militares e soldados que haviam se

transferido para a região juntamente com o Governador Silva Paes. Silva

Paes foi o encarregado da distribuição dos lotes. Além disso, é

22BRITO, Paulo J. Miguel de. Memória política sobre a Capitania de Santa Catharina. Lisboa:

Academia Real das Ciências, 1816.

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considerado o fundador de São Miguel, e estima-se que isso tenha

acontecido entre os anos de 1748 e 1749.23

Como um local de apoio, nascia assim São Miguel da Terra

Firme. Foi elevada à condição de freguesia por uma provisão episcopal

de 08 de fevereiro de 1752 quando da nomeação do primeiro vigário, o

açoriano padre Domingos Pereira Machado.

Além das fortificações e dos recursos naturais existentes em

abundância na região, Silva Paes encaminhou um pedido à Coroa

Portuguesa para que casais açorianos fossem enviados afim de povoar a

região. Defender o território e aumentar a produção de alimentos na

colônia eram os objetivos maiores desta colonização. Isso pode ser

constatado através de documentos produzidos pelo Procurador da

Fazenda. Segundo ele, as pessoas que fossem enviadas ao litoral

catarinense deveriam gozar de “boa saúde e idade, preferindo os que

tiverem exercício de cultura e também alguns artesãos igualmente

necessários para o aumento e subsistência das Colônias”.24

Neste relato

fica clara a exigência de pessoas que fossem aptas ao trabalho, capazes

de desenvolverem a exploração econômica da região.

Sendo assim, conforme O. Cabral, o pedido de Silva Paes foi

atendido pela corte portuguesa e em 21 de outubro de 1747, embarcam

nos Açores os primeiros casais com destino à Ilha de Santa Catarina.

Chegaram em 06 de janeiro de 1748, após setenta e oito dias no mar.

Um bom número destes não resistiu a viagem e morreu durante a

travessia. Os casais açorianos foram distribuídos dentre a Ilha e a Terra

Firme. Em São Miguel, estes chegaram durante o governo do Coronel

Manoel Escudeiro Ferreira de Souza, porém não há uma data precisa ou

mesmo o número exato de casais que ali aportaram.

Os casais açorianos não foram enviados diretamente para São

Miguel. Estes aportavam na Vila de Desterro e ficavam de “quarentena”

a fim de se recuperarem da longa e desgastante viagem pela qual haviam

passado. Faziam tratamentos de saúde, recompunham as forças,

recebiam materiais e se preparavam para a vida em uma terra estranha.

Em face da inauguração da Igreja Matriz de São Miguel Arcanjo no ano

de 1751, é possível que os casais tenham chegado em 1750.25

Segundo Piazza, “foi com gente chegada em 1751 que o

Coronel Manoel Escudeiro Ferreira de Souza estabeleceu as bases da

23 SANTOS, Joaquim G. dos. Op cit. p.. 13. 24 Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos: Santa Catarina, cx. 2, doc. 33. Coleção Resgate. 25 CABRAL, Oswaldo R. História de Santa Catarina. Florianópolis, PND/SEC, 1968. p. 65.

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povoação de São Miguel”.

26 No entanto esta afirmação não encerra a

possibilidade de que algumas famílias açorianas, ou mesmo paulistas

vindos no século XVII, já tivessem se estabelecido lá há mais tempo.

Com base nos dados levantados para esta pesquisa sobre a

colonização da região de São Miguel e utilizando de registros

eclesiásticos referentes às primeiras décadas do século XIX como fonte,

foi possível identificar a origem dos povoadores açorianos e

madeirenses estabelecidos em São Miguel e reconstituir algumas das

famílias chegadas na região.27

A pesquisa e organização de todos os

registros de batismo dos primeiros anos daquele século mostraram que

havia em torno de 49 sobrenomes de famílias. Estas vinham

predominantemente de três ilhas: Ilha Terceira, Ilha de São Jorge e Ilha

Graciosa.28

Para meados do século, Piazza apresenta em seu trabalho dados

de 1755 onde acusa a existência de 123 “citios” em São Miguel.

Segundo o autor a média populacional por propriedade era de sete

pessoas.29

Havia então em São Miguel uma população de cerca de 860

habitantes naquele ano.

Os povoadores da Capitania de Santa Catarina, em geral vindos

da Ilha dos Açores e da Madeira eram pessoas pobres e que se

transferiram para a região atraídos pelas promessas do governo

português: terras, ferramentas e animais domésticos. No edital do

Conselho Ultramarino de Lisboa, fixado em 1746, prometeu-se aos

habitantes destas ilhas que estivessem dispostos a se estabelecerem no

Brasil, que lhes seria facilitado o transporte (à custa da Fazenda Real)

como também destinados 2$400 réis às mulheres com idade entre 12 e

25 anos; 1$000 réis para cada filho dos casais; farinha para o sustento de

um ano; um quarto de légua para estabelecer seu sítio e morada, além de

diversos instrumentos para a execução de seus trabalhos com a terra. 30

No entanto, as vantagens oferecidas aos colonos não foram

cumpridas por parte dos governadores da Ilha, seja pela falta de recursos

da própria Fazenda Real da capitania quanto pela falta das provisões,

conforme foi explicado em carta enviada à Rainha D. Maria I, em 16 de

novembro de 1797:

26 PIAZZA,op cit. p. 11. 27 Os registros eclesiásticos disponíveis se iniciam na última década do século XVIII, não havendo livros disponíveis para as décadas anteriores. 28 Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina - AHESC. Livro de Registro de Batismo 1

– 1800-1804. 29 PIAZZA, Walter F. Santa Catarina: Sua História. Florianópolis, Ed. Lunardelli, 1988, p. 154. 30 SILVA. Op. cit. P. 38-39.

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“tanto a respeito da mesma distribuição das terras

aos novos colonos, como daqueles socorros, com

que Vossa Majestade tão providentemente os

mandava fornecer, quais eram as ferramentas

necessárias, as vacas e as éguas para o seu

laboratório fabril, de cujos gêneros, a alguns se

completaram as ferramentas, a outros parte delas,

aliás, havendo-as e a nenhuns os animais

cavalares e vacuns; sem que a mim me seja

possível presentemente averiguar, qual fosse a

causa de uma tão considerável falta, que

incontestavelmente foi uma das causas, porque

ainda hoje se fazem pouco sensíveis os seus

desejados progressos”.31

Com base nos discursos acerca da falta de cumprimento das

promessas feitas aos açorianos, já no final do século XVIII criava-se um

discurso que justificava a aparente pobreza dos açorianos que aqui se

estabeleceram utilizando as condições do processo de imigração como

embasamento.

Apesar das reclamações acerca do cumprimento das promessas

feitas aos casais de açorianos, o 1º. Livro de Sesmarias do Governo da

Capitania de Santa Catarina nos traz informações importantes sobre a

distribuição de terras na região. Através destes dados podemos tomar

conhecimento sobre a localização destas terras, ano de recebimento e

extensão dos lotes.

Tabela 1: Registro de Recebimento de Sesmarias – São Miguel

ANO

BRAÇAS NOME LUGAR

1753 1500 José Bernardo Galvão Biguaçú

1774 200 João Pereira Vale São Miguel

1774 200

Agostinho Fernandes de

Carvalho Vale São Miguel

1774 300 Ignácio José Linhares São Miguel

1775 800 João Marcos Vieira

Enseada das

Palmas

31Arquivo Histórico Ultramarino -Santa Catarina, 1668-1830. Lisboa, Cx. 8, doc. 6.

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1776 750 José da Silva Pereira Biguaçú

1777 350 Francisco José de Castro Biguaçú

1788 600 Matheus Antonio Rio dos Bobos

1789 104 Francisco de Souza Xavier São Miguel

1789 150 João Luiz Poisão Biguaçú

1791 313 Francisco da Rocha Cota Biguaçú

1791 750 Vicente Zuzarte Pinto Biguaçú

1793 400 Manoel da Cunha Biguaçú

1794 350 Antonio Silva Dutra Rio Biguaçú

1800 170 Pedro de Souza e Silva São Miguel

1803 400 João da Rocha Linhares São Miguel

1803 271 Joanna Pereira Quebra-Cabaços

1805 300 João Teixeira Cunha Tijucas Grande

1806 100 Ignácio Rodrigues de Oliveira Zimbros

Fonte: 1º. Livro de Sesmarias – 1753/1806. Arquivo Público do

Estado de Santa Catarina.

Conforme demonstra a tabela acima, a maior extensão de terras

foi doada a José Bernardo Galvão em 1753. As cerca de 1500 braças de

terra recebidas por Galvão ficavam na localidade de Biguaçu, onde a

agricultura era favorecida devido ao rio Biguaçu que cortava a região. Já

Ignácio Rodrigues de Oliveira, em 1806, recebeu a extensão de 100

braças de terras na região de Zimbros, localidade próxima à Armação da

Piedade.

Além disso, Jacinto Mattos denuncia que o edital de 1746

afirmava que os povoadores não seriam alistados pelas tropas. No

entanto, segundo Mattos, não foi isso que aconteceu. Muitos já nos

primeiros anos viraram soldados e tiveram que se dirigir ao sul para

lutar com as tropas, impedindo que executassem o trabalho nas suas

novas propriedades. Conforme escreve o autor, “O recrutamento dos

mancebos era feito em massa, para preencher os claros da tropa e

mesmo para enviá-los em numerosos contingentes, para as guerras

intermináveis, mantidas ao sul com os espanhóis”.32

O projeto político da coroa portuguesa começava a se

concretizar, ganhando força a partir de 1750 após a ascensão de

32 MATTOS, Jacinto A. de. Colonização do Estado de Santa Catarina. Dados Históricos e

estatísticos: 1640-1916. Florianópolis, Tip. “O Dia”, 1917, p. 21.

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33

Marquês de Pombal ao poder. O monopólio da pesca da baleia já

existente na Bahia e em São Paulo, agora iria expandir sua abrangência

com a criação de novas armações baleeiras espalhadas pelo litoral

catarinense33

.

1.2 O desejo de tornar-se capital

Consta que o sucessor de Silva Paes como governador da

Capitania, Manoel Escudeiro Ferreira de Souza, em uma de suas visitas

a São Miguel da Terra Firme afim de distribuir terras e fixar povoadores

recém chegados dos Açores, se encantou pela região. Vendo este como

um espaço propício para fixar a Capital da Capitania, escreveu ao rei de

Portugal, Dom José I, sucessor de Dom João V, uma generosa descrição

da região:

“... sítio de bom porto e espaçosa praia, junto a

uma prodigiosa cachoeira, excelente aguada,

despenhada de uma serra que fica na espalda, cuja

situação fica uma légua distante da Fortaleza de

Santa Cruz do Registro e fronteiro à de Santo

Antônio dos Ratones, posto que em larga distância

e fora do tiro de artilharia pela grande latitude da

baía”.34

Além destes vários elogios, o governador da capitania arrolou

algumas inconveniências relacionadas à Vila de Desterro, entre elas a

distância que separava esta da barra e o acesso ao mar-aberto. A favor

de São Miguel, além das belezas naturais, segundo o Coronel, contava a

proteção exercida pelas fortalezas, especialmente a fortaleza de Santa

Cruz. A pretensão não foi aceita pelo rei de Portugal, na época D. José I,

já que segundo ele era em Desterro que já se encontravam a residência

do governador, a igreja e os armazéns reais.35

Em 25 de outubro de 1753, Manoel Escudeiro foi substituído

por Dom José de Melo Manuel. O novo governador, após visita a São

Miguel fez coro ao seu antecessor e enviou nova consulta a Lisboa,

quanto à mudança da capital. Em 02 de fevereiro de 1756 a resposta ao

pedido foi negada de forma enfática, ordenando que os planos

33 ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1969. 34 SANTOS, J. op cit. P. 43. 35 SANTOS, J. op cit. P. 43.

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organizados por Silva Paes fossem cumpridos, e que as tentativas de

alteração da capital da capitania para São Miguel fossem cessadas.36

Passado pouco mais de duas décadas destas discussões, em 23

de fevereiro de 1777. Portugal perde para a Espanha a posse da Ilha de

Santa Catarina e os portugueses são expulsos, sendo forçados a se

deslocarem para a região continental. Neste período ocupava o cargo de

governador da capitania o Marechal Antonio Carlos Furtado de

Mendonça.

Com a morte de Dom José I, negociadores em nome da viúva

rainha Vitória e do Tratado de Santo Idelfonso, conseguiu restabelecer a

paz entre Espanha e Portugal. Pelas cláusulas do contrato, assinado

ainda em 1777, Portugal recebeu de volta a Ilha de Santa Catarina e

ficou com quase toda a Capitania de São Pedro, atual Rio Grande do

Sul.

Para receber a Ilha dos espanhóis, Portugal nomeou o Coronel

Francisco Antonio da Veiga Cabral da Câmara. Este deveria aguardar o

momento oportuno. Sendo assim, em 01 de maio de 1778 Veiga Cabral

assumiu o cargo de Governador da Capitania em São Miguel da Terra

Firme.

São Miguel da Terra Firme foi capital, no entanto por pouco

tempo: de 10 de outubro de 1777 a 02 de agosto de 1778. Logo no dia

03 de agosto Veiga Cabral tomou posse definitiva da Ilha de Santa

Catarina, e por extensão, de toda a Capitania.

1.3 A pesca e a agricultura: a economia da região

Escrevendo sobre a agricultura colonial brasileira, Caio Prado Jr

elaborou um esquema segundo o qual havia dois tipos básicos de

práticas agrícolas, inteiramente diversos um do outro:

“De um lado a grande lavoura, seja ela do açúcar,

do algodão ou de alguns outros gêneros de menos

importância, que se destinam todos ao comércio

exterior. Doutro, a agricultura de subsistência, isto

é, produtora de gêneros destinados à manutenção

da população do país, ao consumo interno. [...] A

grande lavoura representa o nervo da agricultura

colonial; a produção dos gêneros de consumo

36BRITO, Paulo José Miguel de. Memória Política sobre a Capitania de Santa Catarina.

Florianópolis, Livraria Central, 1932.

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35

interno a mandioca, o milho, o feijão, - que são os

principais - foi um apêndice dela, de expressão

puramente subsidiária”37

.

Seguindo este raciocínio, Caio Prado coloca as produções

voltadas ao comércio exterior como sendo centrais para a colônia e a

produção de gêneros de primeira necessidade apenas como subsidiária

minimizando a importância das atividades voltadas para o abastecimento

da população.

Nas últimas décadas este assunto é alvo de intenso debate. Para

além das plantations escravistas e da agricultura de subsistência, novos

estudos têm detectado uma atividade comercial associada ao

abastecimento interno da colônia, exercendo um papel no cenário

colonial, muito mais complexo do que se simplesmente a subsistência

fosse suprida localmente.38

João Fragoso, por exemplo, traz detalhes das despesas das

fazendas exportadoras onde os valores destinados à compra de alimentos

chegavam a um quarto das despesas da fazenda.39

Isso demonstra que

havia um mercado de abastecimento interno dinâmico e é neste contexto

de produção agrícola voltada para o mercado interno que eu procuro

inserir a Freguesia de São Miguel.

João Fragoso, junto a Manolo Florentino, em O Arcaísmo como

Projeto concluem que as áreas de agroexportação eram as que menos

produziam alimentos, o que leva a crer que estas áreas eram

compradoras dos alimentos produzidos por áreas não exportadoras, o

que evidencia um mercado interno de produtos bem dinâmico. Assim

mesmo o Rio de Janeiro sendo uma área onde a produção voltava-se ao

mercado externo seu abastecimento era sustentado por uma extensa rede

intracolonial, o que sugere uma reprodução, pelo menos parcialmente,

desgarrada do mercado internacional.40

Neste contexto a mão de obra escrava era um elemento

essencial. A estrutura de posse de escravos apresentada pelos autores

para o Rio de Janeiro da primeira metade do XIX mostra uma

37PRADO JR, Caio.Formação do Brasil Contemporâneo.1942, p. 141. 38 BARICKMAN, Bert. Op cit. 39FRAGOSO, João Luís. Novas perspectivas acercada escravidão no Brasil. In: Cardoso, C.F.

(org.), Escravidão e abolição no Brasil:novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 40 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo: O Arcaísmo como Projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma sociedade colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 -

c. 1840 – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE … · e acima de tudo para a construção de uma amizade. ... Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados ... não havendo

36

concentração de escravos em poucas mãos sendo a reposição dos cativos

dada através do tráfico atlântico e não do crescimento vegetativo da

população.

Ter escravos era um dos elementos de diferenciação social,

colocando elite (rica e poderosa) em um patamar distinto dos livres

pobres. O funcionamento do mercado brasileiro levava os homens livres

pobres a investirem em atividades menos vantajosas, o que

proporcionava a perpetuação das diferenças sociais, o que nos permite

classificar a sociedade brasileira como hierarquizada e fechada.

Pensando nas questões locais, na região de São Miguel os

núcleos onde os casais açorianos e madeirenses se estabeleceram foram

denominados de Ganchos, Palmas, Costeira da Armação e Fazenda da

Armação, todos subordinados à sede de São Miguel da Terra Firme.

Estes povoados emergem para impulsionar o movimento colonizatório,

constituindo pequenos povoados distribuídos distante uns dos outros.41

A distância entre estes, e principalmente a distância que estes

mantinham da Igreja Matriz e mesmo da Capela de Nossa Senhora da

Piedade, fez com que sucessivas vezes paroquianos e até mesmo o

vigário da região reclamassem com o Governador da Capitania a

ausência da população nas missas e festas da igreja. Por diversas vezes

chegou-se a sugerir que se para uma parte da população que trabalhava

nas fortificações ficava complicada a presença da população nas missas

e eventos religiosos, que estes procurassem outras paróquias como a de

Nossa Senhora das Necessidades .42

Os pequenos agricultores se concentravam principalmente nas

encostas dos morros e em seus pequenos declives, já alguns pescadores,

se posicionaram nas proximidades da Armação. Já a criação de gado era

praticamente inexistente, sendo utilizados apenas poucos animais no

auxílio do trabalho nas atividades agrícolas.

Havia também uma diversificação das atividades, talvez por

conta da sazonalidade de alguns produtos. João A. Miranda Ribeiro,

militar e administrador colonial português, foi também governador da

41 PELUSO JR, Victor A. A Freguesia e Distrito de Paz de São Miguel. Revista Anuário

Catarinense. Florianópolis, 1952, p. 23. 42 Ofício de Francisco de Barros Morais Araújo Teixeira Homem a D. Luis de Vasconcelos e Souza, expondo o desamparo espiritual dos moradores da Freguesia de São Miguel,

especialmente a nova povoação da Enseada das Garoupas. Desterro, 15 de out. 1779. Em

anexo: “Declaração das longetudas em que vivem os Fregueses da Freguesia de São Miguel moradores na costa do mar grosso para a banda do Norte correndo barra fora e caminho de

terra. Outubro 19 de 1779”. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 9, 3, 22 Nos. 26 e 27.

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37

Capitania de Santa Catarina entre os anos de 1793 e 1800

43. Neste

período escreveu em relatório, em 1797, sobre o litoral catarinense e

explicitou um pouco da organização daquela Freguesia de São Miguel:

“Por toda a vizinhança do Rio Cambunguaçú e

onde esta freguesia continua pela parte do norte

com a do Rio de São Francisco produzem as terras

suas mandiocas, arroz, milho, feijão, linho de

algodão. Não plantam trigo, favas e nem canas.

Na Enseada das Garoupas há suas mandiocas,

feijão, arroz, cana e linho. Na Enseada das

Bombas só há alguma farinha e algodão. Na

Enseada dos Zimbros e Ganchos que fica ao sul

da antecedente se aplicam pouco ao trabalho das

roças e vivem mais de caçar no mato. No Rio das

Tijucas Grandes só plantam mandioca e também

vivem da caça no mato. No Rio do Infernino, dá

suas mandiocas, arroz, milho, feijão e algodão.

Mas tem poucos lavradores e da mesma sorte nas

Palmas, onde são boas as terras. Por toda a

costeira da Armação até as Tijuquinhas, da

mandioca, arroz, milho e algodão. Nas

Tijuquinhas até o Rio Biguaçú produzem as terras

o que se plantam. O Rio Biguaçú é fértil e

também dá de tudo. O sertão, ou o morro, que há

para dentro do morro do viveiro, são boas as terras

e dão de tudo que se lhe planta”.44

Através da citação acima é possível verificar que a mandioca,

milho, feijão e algodão eram os principais produtos, sendo eles comuns

a quase toda a região. Os terras eram férteis, principalmente aquelas

próximas ao Rio Biguaçú.45

Segundo informações do mesmo Ribeiro, no ano de 1797 a

freguesia de São Miguel da Terra Firme já contava com um engenho de

açúcar e cinco fábricas de cana (estas não produziam o açúcar), quinze

engenhos de aguardente, 190 engenhos de mandioca, dois engenhos de

pilar arroz, 44 atafonas de moer trigo e seis curtumes de couro, além de

43 Corrêa, Carlos Humberto. Os Governantes de Santa Catarina de 1739 a 1982.Florianópolis : Editora da UFSC, 1983. 44 RIBEIRO. Op cit. 45Hoje se localizam nesta região os municípios de Biguaçú e Antônio Carlos. Palmas, onde hoje temos a Praia de Palmas, ainda era pouco habitada, mesmo localizando-se em uma região

relativamente próxima a Armação da Piedade.

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38

uma Armação de pesca de baleia, a Armação da Piedade. Além disso,

102 casas possuíam teares para as filhas e esposas executarem seus

trabalhos, utilizando do linho, mas principalmente do algodão,

produzidos na região. Estas mulheres trabalhavam na confecção de

utensílios de uso pessoal – vestuário, toalhas, lençóis, colchas, etc., além

de talvez explorarem a produção para o consumo local e venda dos

excedentes.46

Para inserir em um contexto maior, todo o litoral catarinense em

1797 possuía três engenhos de açúcar, 60 fábricas de açúcar, 192

engenhos de aguardente, 884 engenhos de mandioca, quatro engenhos

de pilar arroz, 279 atafonas de moer trigo e 32 curtumes de couro. O

que faz com que a Freguesia de São Miguel, no ano de 1797, possuísse

21,5% dos engenhos de farinha de mandioca de todo o litoral da

Capitania de Santa Catarina.47

Neste mesmo ano, foram produzidos cerca de 20 mil alqueires

de farinha de mandioca, 2037 de arroz, 1216 de milho, 1098 de feijão,

24 de trigo, 3570 medidas de aguardente de cana, 446 medidas de

melado, 486 arrobas de açúcar, 254 arrobas de algodão, nove arrobas de

café e 172 peças de linho.48

Apesar da produção de outros gêneros, a farinha de mandioca

era o principal produto da região. Caio Prado Jr. destacou que essa

cultura foi largamente utilizada na alimentação dos colonos pelas

qualidades nutritivas da farinha e sua adaptabilidade em qualquer

terreno.49

Anos depois Barickman reforçou a importância da farinha de

mandioca na economia colonial. Segundo o autor, esta estava presente

tanto na mesa dos ricos, como na dos pobres, sendo indispensável na

alimentação dos escravos. Ainda segundo Barickman, o aumento da

oferta deste produto possibilitava uma aceleração e ampliação da

produção voltada para a exportação.50

No que tange o comércio da farinha de mandioca, sabe-se que

os comerciantes açambarcavam o produto, deixando faltarem na praça

local, em Desterro. Em contrapartida conseguiam altos preços no

mercado interno da colônia, principalmente na Praça do Rio de Janeiro.

46 Relação de pessoas que receberam sementes de tipos diversos de linho e informações sobre

seu cultivo e produção. Desterro, 7 maio 1785. BNRJ, 9, 3, 27. Nos 47-52. 47 RIBEIRO, Op cit. 48 RIBEIRO. Op cit. 49 PRADO JR. op cit. p. 165 50 BARICKMAN, B. T. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo,

1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE … · e acima de tudo para a construção de uma amizade. ... Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados ... não havendo

39

A farinha de mandioca acabou se firmando como o principal alimento

da população em todo o território brasileiro, complementada com o

peixe e a carne seca.51

Os pequenos plantéis de escravos, se comparados aos setores

exportadores, fez com que os arranjos de trabalho fossem múltiplos e

variados.

Estes gêneros eram também constantemente enviados para o

mercado do Rio de Janeiro, e mesmo do Rio Grande do Sul. Conforme

relata João Fragoso, o crescimento do mercado urbano e as plantations

do Rio de Janeiro, somadas às charqueadas do Rio Grande do Sul,

fizeram com que o mercado de abastecimento interno também se

ampliasse, absorvendo os excedentes de farinha de mandioca,

produzidos principalmente no litoral de Santa Catarina.52

O principal estabelecimento econômico da Freguesia foi, até o

fim do século XVIII, a Armação da Piedade, que estava localizada em

um vale existente entre a Ponta da Mata e o Vale do Tinguá. O processo

de construção de sua estrutura se iniciou em 1742, com a edificação de

diversos estabelecimentos. Entre estes haviam, em 1800 a Casa do

Administrador, a estrutura para a produção do óleo da baleia, tanques,

senzalas e uma capela. Além disso, em um terreno extenso instalou-se a

agricultura e subsistência, onde se produzia açúcar e farinha.

A Armação da Piedade era a maior das armações fundadas no

litoral catarinense. No ano de 1772 foi construída a Armação da

Lagoinha, localizada na Ilha de Santa Catarina, hoje praia da Armação.

Ao norte da Armação da Piedade foi fundada em 1778 a Armação de

Itapocoróia, hoje região de Piçarras/Penha. Ao sul da Capitania de Santa

Catarina ergueu-se a Armação de Garopaba, datada de 1793 e 1795 e a

estação baleeira mais austral do Brasil em todos os tempos, a de

Imbituba, em 1796.

O processo de formação da Freguesia, assim como as atividades

produtivas que permearam este quadro, demonstra a organização de

diversas frentes produtivas coabitando um mesmo espaço: produções

agrárias, a pesca e a produção de óleo de baleia e barbatanas eram os

produtos que inicialmente movimentavam a economia da região no

período marcado pelo final do século XVIII e início do XIX.

51 SAINT-HILARIE, Auguste de. Viagem a Província de Santa Catarina. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1936, p.98. 52 FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura:Acumulação e Hierarquia na Praça Mercantil

do Rio de Janeiro – 1790-1830.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 146.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE … · e acima de tudo para a construção de uma amizade. ... Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados ... não havendo

40

1.4 Os homens e mulheres desta história

Os casais açorianos que habitavam a região desde 1750,

somados aos militares e escravos que ali chegaram a partir de 1740

contribuíram para o povoamento da região e ali constituíram famílias,

contribuindo para o crescimento de São Miguel. Para conhecer um

pouco da composição desta população local, irei utilizar de registros de

nascimento, casamento e óbito dos anos de 1798 a 1851, procurando

explicar a origem e a composição social da população.

A transcrição das fontes e processamento dos dados

relacionados aos nascimentos, casamentos e óbitos da população é de

extrema importância para esta pesquisa visto que possibilitará o

levantamento das pessoas que residiam na região, as alianças

construídas ao longo dos anos, além de revelar questões como a origem,

condição social, entre outros aspectos ligados as características das

pessoas que residiam naquela região.

Focando primeiramente na origem da população livre presente

na região e utilizando dados eclesiásticos referentes à primeira década

do século XIX, é possível identificar a presença de 49 núcleos de origem

açoriana madeirense entre as pioneiras. Estas famílias podiam ser apenas

o núcleo que envolvia pai, mãe e filhos, o que faria com que o

sobrenome fosse referente a mais de uma unidade familiar, de pai e mãe.

Estes casais dos Açores e da Madeira vieram da Ilha do Corvo, do Faial,

Graciosa, São Jorge, São Miguel, Ilha do Pico, Ilha Terceira e Ilha da

Madeira.53

Após a vinda da primeira leva de imigrantes provenientes da

região dos Açores e Madeira, outros casais aportaram na região, porém

de forma isolada, durante a segunda metade do século XVIII. Para

perceber o ritmo do crescimento da população, segue abaixo uma tabela

contendo mapas populacionais de diversos momentos da história de São

Miguel.

53 Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina (AHESC). Livros de Registro de Batismo 1

e 2 – 1800-1804 e 1815-1826.

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41

Tabela 2: População da Freguesia de São Miguel da Terra Firme por

condição social, 1753-1851

Fontes:

1 SANTOS, opcit, p. 54. 2 RIBEIRO, op cit. II – 35, 30, 3.

3 Relatório de Chefe de Polícia ao Governador da Capitania de Santa Catarina.

Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC). 4 Ofício de D. Luís Maurício da Silveira ao marquês de Aguiar, remetendo

mapas com dados estatísticos sobre a economia e população da capitania, bem

AN

O

LIVR

ES

TO

TAL

LIV

RES

% ESCR

AVOS

TOTA

L

ESCR

AVOS

% FOR

ROS

TOT

AL

FOR

ROS

% TO

TA

L

H M H M H M

175

3(1)

592

179

5(2)

98

1

96

7

1970 71,

42

%

62

2

16

6

788 28,

57

%

8 1

4

22 0,7

9%

275

8

180

3(3)

12

60

12

79

2539 74,

65

%

64

4

21

8

862 25,

34

%

340

1

181

0(3)

13

23

13

11

2634 74

%

62

6

30

1

927 26

%

356

1

181

4(4)

14

19

14

82

2901 70,

90

%

83

3

34

0

1173 28,

67

%

1

7

0 17 0,4

1%

409

1

183

2(4)

3407 76,

65

%

1038 23,

35

%

444

5

184

0(5)

21

10

22

36

4346 79,

80

%

67

9

42

1

1100 20,

20

%

544

6

184

1(5)

23

62

23

53

4715 80

%

73

9

43

9

1178 20

%

589

3

184

2(5)

22

04

22

43

4447 80,

32

%

68

2

40

7

1089 19,

67

%

553

6

185

1(5)

32

31

31

97

6428 80,

52

%

99

3

56

2

1555 19,

47

%

798

3

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42

como o movimento de embarcações no ano de 1814. Biblioteca Nacional do Rio

de Janeiro. I-31,29,18 no. 6.

5Relatório do Chefe de Polícia ao Presidente da Província de Santa

Catarina(APESC).

Como demonstram as informações transcritas no quadro acima,

no ano de 1753 a população total de São Miguel era de 592 pessoas. Se

levarmos em conta que famílias açorianas chegaram a São Miguel em

1751, vamos concluir que pouca gente habitava esta região em um

período anterior às construções da Fortaleza de Anhatomirim e da

Armação da Piedade. Pegando os dados de 40 anos depois, no ano de

1795, é possível perceber um aumento significativo da população. Entre

os brancos, algumas hipóteses podem ser levantadas a fim de explicar o

significativo aumento desta população local durante estes anos.

Entre estas hipóteses estão o remanejamento entre as freguesias,

a continuação da migração de casais açorianos para a região, ou a

chegada de militares para o trabalho na Fortaleza de Santa Cruz, são

algumas possibilidades. Ainda assim o crescimento vegetativo parece ter

tido importante papel no crescimento desta população entre estes anos.

Nos mapas populacionais de 1803, 1810, 1814 e 1832 é

possível perceber que o crescimento populacional foi pequeno e lento, o

que demonstra que este dependia de um crescimento vegetativo. As altas

taxas de mortalidade da época também contribuíram para a lentidão do

processo de aumento populacional da época. Em 1818, ericeiros vindos

de Portugal, no total de 101 pessoas de ambos os sexos, chegaram a esta

região. Estes ericeiros eram portugueses vindos da Praia da Ericeira que

tinham por tradição a cultura da pesca. Foram enviados pelo ministro

Thomaz de Villa Nova Portugal, a fim de fundar na região uma colônia

de pescadores.54

Em 1824, a área ocupada pelos ericeiros foi

desmembrada de São Miguel, sendo criada a Freguesia de “Senhor Bom

Jesus dos Aflitos de Porto Belo”. Talvez esta tenha sido a origem dos

pescadores da região.

Além disso, 56 pessoas de ambos os sexos vindos quase todos

da região da atual Alemanha, ocuparam as nascentes do rio Biguaçú em

1830, contribuindo desta forma para o aumento da população local.

Estes se empregaram na agricultura, onde a produção de farinha de

mandioca era o destaque.55

54 Piazza, W. F. Santa Catarina: Sua História.Florianópolis, Ed. UFSC e Ed. Lunardelli, 1983. 55 SANTOS, op cit.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE … · e acima de tudo para a construção de uma amizade. ... Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados ... não havendo

43

Pensando em questões demográficas, o número de homens e

mulheres era equilibrado entre os livres. Em todos os anos os números

nos mostram um equilíbrio muito grande entre os homens e mulheres

livres da Freguesia de São Miguel, com a diferença deles sempre

oscilando dentro de 1% do total. Nisso a região se distingue de outras

regiões de fronteira de ocupação, como Minas Gerais, onde no início do

século XVIII praticamente não havia mulheres livres brancas.

Através dos casamentos, podemos compreender melhor alguns

aspectos da população da Freguesia de São Miguel da Terra Firme.

Através dos dados apresentados na tabela abaixo poderemos

compreender melhor o crescimento da população local.

Tabela 3: Tabela de Casamentos dos Livres de São Miguel da Terra Firme

ANO TOTAL

1801-1810 240

1811-1820 259

1821-1830 209

1831-1840 325

1841-1850 471

TOTAL 1504

Fonte: Livros de Registros de Casamentos 1 e 2 – São Miguel – 1794-1856

Na tabela acima é possível observar o número de casamentos

organizados por decênios e compreendidos no período de 1800 a 1850.

O número total de uniões foi de 1504. O período de 1821-1830

apresentou o menor número de registros, com apenas 209 uniões. No

entanto, desde o período anterior o número de casamentos vinha

aumentando. Apesar de neste decênio de 1821-1830 ter havido uma

queda no número das uniões, no decênio seguinte retomou-se o

crescimento. O aumento constante no número das uniões é resultado do

aumento da população ao passar dos anos, provenientes não apenas do

crescimento vegetativo, mas também da chegada os imigrantes alemães,

da nova reorganização política administrativa da freguesia, assim como da instalação do município de São Miguel em 1833.

Além do crescimento vegetativo da população, havia uma

constante chegada de novos moradores vindos de freguesias próximas,

como resultado da união de membros de freguesias diversas. Se

observarmos os registros de casamento dos moradores de São Miguel é

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE … · e acima de tudo para a construção de uma amizade. ... Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados ... não havendo

44

possível identificar que 80% dos noivos e 90% das noivas eram

residentes de São Miguel, não necessariamente naturais desta região.

Dos que não residiam na dita freguesia, grande parte de noivos e noivas

eram provenientes de Desterro e das freguesias que faziam divisa com

São Miguel, como a Freguesia de São José da Terra Firme, localizada ao

sul, e a Freguesia de Nossa Senhora das Necessidades, separada

algumas léguas por mar56

. Na tabela abaixo podemos perceber estes

números:

Tabela 4: Procedência dos Noivos e Noivas de São Miguel, 1794-1856

FREGUESIAS NOIVOS NOIVAS

SÃO MIGUEL 1031 1348

DESTERRO 40 20

N. S. DAS NECESSIDADES 36 42

SÃO JOSÉ 31 26

OUTROS SC 41 20

OUTROS BRASIL 54 5

PORTUGAL 58 1

AÇORES 10 1

ALEMANHA 22 15

OUTROS 50 26

TOTAL 1504 1504

Fonte: Livros de Registros de Casamento 1 e 2 – São Miguel – 1794-1856

É importante lembrar que estes dados representam o total dos

registros de casamento em um período extenso, de aproximadamente 60

anos. Ainda assim, estes dados são importantes para que possamos

perceber a existência de uma circulação de pessoas, o contato das

pessoas da Freguesia de São Miguel, com pessoas residentes em outras

freguesias, como Desterro ou Nossa Senhora das Necessidades. Estes

contatos podiam acontecer durante as trocas dos produtos excedentes

produzidos ou mesmo nas missas e festas religiosas. Como já coloquei

anteriormente, as distâncias dentro da Freguesia de São Miguel eram

grandes e o transporte terrestre era difícil, sendo mais fácil o transporte

56 Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina. Livros de Registros de Casamentos 1 e 2 –

1794-1831 e 1831-1856.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE … · e acima de tudo para a construção de uma amizade. ... Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados ... não havendo

45

marítimo, o que fazia com que em alguns casos fosse mais perto

freqüentar igrejas de outras freguesias nos domingos.57

É fato que a população local cresceu no decorrer dos anos,

como foi possível perceber pelos mapas populacionais feitos ao longo

dos anos na região. Essa população fosse ela resultado do crescimento

vegetativo ou da chegada de imigrantes que se estabeleceram na região e

se empregaram em trabalhos como a pesca e a agricultura, por vezes

prestando alguns serviços na Armação da Piedade. Desta forma, a

população livre se inseria em diferentes atividades, fossem elas voltadas

a subsistência, ao abastecimento interno ou através dos trabalhos na dita

armação contribuindo então com o monopólio real da pesca da baleia,

no sistema colonial vigente na época. Porém, a Freguesia de São Miguel

possuiu não apenas pessoas livres trabalhando em suas terras, mas

também um significativo número de escravos.

Conforme foi possível perceber na Tabela 02, entre os anos de

1793 e 1851, os cativos formaram importante parcela da população

local, visto que, dependendo do ano, representaram entre 20% e 30% do

total da população local. Este quadro, e a representatividade dos

números, fez com que os escravos ganhassem capítulo especial neste

trabalho, onde iremos apontar suas condições de vida e participação na

vida econômica daquela sociedade.

As colocações expostas acima são reflexões acerca dos dados

referentes a toda a freguesia, no entanto uma importante e unidade

produtiva escravista, estava inserida neste espaço e que merece destaque

visto que possuía uma natureza diferente das demais, sendo composta

por um número muito expressivo de cativos e que se destinava a

produzir lucros para a coroa e os arrematadores do contrato: a Armação

da Piedade.

1.5 Armação da Piedade

A Armação de Nossa Senhora da Piedade, ou Armação Grande

como era chamada, foi a maior e mais importante armação do litoral

catarinense. Instalada em privilegiado espaço, foi construída à beira do

57 Ofício de Francisco de Barros Morais Araújo Teixeira Homem a D. Luis de Vasconcelos e Souza, expondo o desamparo espiritual dos moradores da Freguesia de São Miguel,

especialmente a nova povoação da Enseada das Garoupas. Desterro, 15 de out. 1779. Em

anexo: “Declaração das longetudas em que vivem os Fregueses da Freguesia de São Miguel moradores na costa do mar grosso para a banda do Norte correndo barra fora e caminho de

terra. Outubro 19 de 1779”. Biblioteca Nacional - Seção Manuscritos, 9, 3, 22 n. 26 e 27.

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oceano Atlântico e do canal norte, local de grande profundeza e que

assegurava a passagem de embarcações de médio e grande porte.

Escolhida a área onde iria ser estabelecida, em 1742 inicia-se então um

processo de transformação do espaço natural, que esteve marcado

primeiro pela edificação de diversos estabelecimentos e posteriormente

pela aquisição de uma mão de obra escrava que pudesse dar seqüência

aos trabalhos de pesca da baleia.58

Segundo Myriam Ellis a pesca da

baleia no período de 1780/1790 foi uma das atividades que mais

movimentou economicamente a região litorânea de Santa Catarina,

trazendo um grande número de escravos para as armações.59

Em 1816, quando um inventário a fim de detalhar as condições

e estrutura da armação foi feito, esta contava com uma casa grande,

destinada ao Administrador, uma casa destinada a campanha dos

baleeiros, as senzalas, as casas dos feitores, o hospital e a botica, a

Capela de Nossa Senhora da Piedade, um prolongamento de casas onde

estavam instalados o capelão, ferraria e armazéns, o engenho de frigir

baleias, os tanques para beneficiamento do produto, uma casa onde eram

colocados os tanques de salgamento, um armazém para recolhimento

das lanchas e finalmente um tanque onde eram lavadas as barbatanas.60

58 SILVA, opcit, p.34. 59 ELLIS, op cit. 60 Real Junta do Comércio. Administração da Pesca da Baleia. Documento do Arquivo

Nacional do Rio de Janeiro, caixa 360, pacote 3, p. 118-121.

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Figura 2: Planta Topográfica da Piedade que caracteriza os diversos

“setores” no interior da Armação

Fonte: SILVA, Célia Maria e. Ganchos (SC): Ascensão edecadência da

pequena produção mercantil pesqueira.Florianópolis: Ed. UFSC, 1992, p. 37.

Além de toda a estrutura montada para a efetiva pesca e o

beneficiamento do azeite, condições para a produção de gêneros

voltados a subsistência também foram instalados no entorno da

armação. Com extensão de uma légua, e concedido pela Coroa, este

vasto território foi também utilizado na agricultura. Foram ali assentadas

a Casa do Sítio da Fazenda, um engenho para produzir açúcar e uma

fábrica de fazer farinha.

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Adquiridos pela Administração da Pesca da Baleia na Praça do

Rio de Janeiro ou em embarcações negreiras engajadas no tráfico, os

escravos foram trazidos como o bem mais valioso do contrato. Eram

incumbidos da maior parte dos trabalhos na armação, dedicados as mais

diversas tarefas, trabalhando em mar ou terra. Por diversas vezes

acumulavam funções. Moravam em senzalas e se alimentavam de rações

de farinha de mandioca e carne seca.61

A Armação da Piedade, assim como as outras armações, passou

um período de dificuldade e decadência, principalmente devido ao fim

do monopólio da pesca da baleia que se deu no ano de 1801. No entanto,

retomando o monopólio e na tentativa de reativar o funcionamento da

armação em 1816 foi feito um inventário que detalhou os bens móveis e

imóveis desta estrutura.

Em 1816 a Armação da Piedade contava com 93 escravos, 14

escravas e 16 crioulos menores, ou crias. Havia ainda 44 escravos ditos

sem valor.

As mulheres da Armação da Piedade, excetuando-se aquelas

com idade inferior a 15 anos, eram em sua maioria casadas, com apenas

três dadas como viúvas. É possível que muitos dos homens da Armação

fossem casados com escravas que viviam nos arredores e não faziam

parte do contrato, visto tamanha desproporção entre os sexos dos

escravos da Piedade. Isso se dá em decorrência do tráfico atlântico de

escravos, já que entre as crianças crioulas, resultado do crescimento

vegetativo da população, havia um equilíbrio entre os sexos. A

informação de que a maioria destas mulheres eram casadas ou viúvas

aponta para a presença de famílias e a formação de uma comunidade

escrava que crescia ao longo do tempo.

É preciso ressaltar que devido ao pequeno investimento dos

últimos 15 anos, essa população escrava encontrava-se amadurecida

neste momento. Muitos dos escravos já estavam velhos, excetuando-se

de alguns crioulos, resultado do crescimento vegetativo da população

escrava que já ali residia. No entanto, com o retorno do monopólio e

após um grupo de sócios do Rio de Janeiro assumir novamente o seu

comando, uma série de novos investimentos foram feitos a fim de

reerguer a propriedade.

A pesca da baleia se dava principalmente entre os meses de

junho e agosto, nos demais meses do ano os escravos se dedicavam aos

trabalhos de manutenção da estrutura, às atividades de subsistência e ao

61 ELLIS, M. op. cit.

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trabalho no engenho de farinha existente no local. Na década de 1830 as

Armações entram em declínio até serem extintas. A Armação da

Piedade tornou-se então um território de marinha. Com o declínio das

armações, mais precisamente da pesca baleeira, os escravos tiveram que

ser empenhados em outras atividades e possivelmente em localidades

próximas da Armação.62

A produção de óleo de baleia e de farinha de mandioca por da

mão de obra familiar e também escrava, fizeram de São Miguel da Terra

Firme um importante território do litoral catarinense e que contribuiu

para inserir este território no dinamismo da economia de abastecimento

interno, e em um âmbito maior, na economia colonial.

O objetivo dos próximos capítulos é tentar inserir a economia,

principalmente da farinha de mandioca e da produção do azeite de

baleia, neste mercado interno, dinâmico, direcionando a atenção na

participação da mão de obra escrava nas fortunas locais e no dinamismo

da economia.

2 Real Contrato da Pesca: A Armação da Piedade

Não foi por negligência que a pesca da baleia, atividade de

grande importância para a economia local, foi pouco abordada ao passar

dos anos pela historiografia tradicional. Autores como Caio Prado e

Fernando Henrique Cardoso enxergavam o Brasil como uma

combinação de latifúndio, plantation e mão de obra escrava. A

bipolaridade social, formada pela oposição entre as grandes elites

agrárias e a população livre e pobre fazia, segundo eles, com que fosse

impossível se desenvolver um acúmulo de capital interno. Já para Ciro

Flamarion e Jacob Gorender, a monocultura aliada à mão de obra

escrava criou uma barreira para o mercado interno, no que os autores

denominavam modo de produção escravista colonial. Este raciocínio

teria contribuído para que os estudos estivessem voltados às regiões

exportadoras, dando enfoque para as regiões de plantations.63

O enfoque voltado às atividades canavieiras e outras

plantations tiveram como justificativa o grande número de cativos que

estas arregimentaram e o fato da produção ser destinada essencialmente

62 SILVA, opcit, p. 80-81. 63 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo - colônia.São Paulo: Livraria Martins

Editora, 1942; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. São Paulo: Difel, 1962; GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo.

Ática. 1980; CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravo ou camponês. São Paulo. Brasiliense: 1987.

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ao mercado externo. Isso fez com que o estudo de algumas atividades

produtivas fosse privilegiado em detrimento do estudo de outras. Além

disso, o enfoque agro-exportador privilegiou o estudo da economia de

algumas regiões específicas, como o nordeste e sudeste, em detrimento

de outras, como o Brasil Meridional.

Sobre o assunto da pesca da baleia no litoral catarinense

temos os textos pioneiros de Lucas Boiteux para a revista do IHGSC

que trazem informações primordiais sobre a importância e cotidiano da

pesca, além de abrir caminho para as demais obras sobre o assunto.64

O trabalho mais aprofundado sobre a pesca da baleia no

Brasil é de Myriam Ellis, resultante da pesquisa da década de 1950. Seu

trabalho consegue dar conta de apresentar as armações de pesca de todo

litoral brasileiro entre os século XVII e XIX, principalmente as

armações do Brasil Meridional, entre as quais a Piedade possuía

destaque. A partir de seu esforço de pesquisa outros trabalhos têm se

dedicado à pesquisa de tal assunto. Wellington Castellucci Junior

pesquisou a Armação de Itaparica, na Bahia, no período posterior a

1860, momento em que esta passou a mão de cativos. Em seu livro

Caçadores de Baleia, o autor narra a evolução da atividade de pesca da

baleia até o momento de sua proibição.65

Acerca das armações do Brasil Meridional o que temos são

passagens em alguns trabalhos como o de Célia Maria e Silva. A autora

busca em sua pesquisa compreender a ascensão e queda da atividade

pesqueira na região de Ganchos e para isso levanta pontos como o

estabelecimento da produção baleeira na região, sua evolução e

participação na colonização local, a exportação do produto e a forma

como influenciou a movimentação da economia de São Miguel.66

também o trabalho arqueológico desenvolvido por Fabiana Comerlato,

de análise espacial das armações catarinenses e das estruturas ainda

remanescentes.67

64BOITEUX, Lucas. A pesca da Baleia. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico

de Santa Catarina, 1914. 65 CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Caçadores de baleia: armações, arpoadores,

atravessadores e outros sujeitos envolvidos nos negócios do cetáceo no Brasil. 1ª. ed. São

Paulo: Annablume, 2009, 210 p. 66 SILVA, Célia Maria e. Ganchos: ascensão e queda da pequena produção pesqueira.

Florianópolis: Ed. da UFSC, 1982. 67 COMERLATO, Fabiana. Análise Espacial das Armações Catarinenses e suas Estruturas Remanescentes: Um Estudo Através da Arqueologia Histórica. Dissertação de Mestrado, PUC,

RS, 1998.

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As obras acima abordaram desde o modo de produção do

azeite de baleia, passando pelo funcionamento das armações, pela

descrição física das propriedades, as exportações dos produtos da

armação até sua influencia na economia destes espaços. Porém, nenhum

destes trabalhos buscou enfocar especificamente a mão de obra escrava

no funcionamento destas unidades produtivas. No contexto deste

trabalho sobre a Freguesia de São Miguel da Terra Firme, uma reflexão

mais aprofundada sobre esta atividade que movimentou uma quantidade

significativa de recursos e escravos até a primeira metade do século

XIX, se faz necessária. Trata-se da pesca da baleia desenvolvida em

todo o litoral catarinense, porém de forma mais efetiva em São Miguel,

onde esteve instalada a maior armação baleeira do litoral catarinense,

denominada Armação da Piedade.

2.1 A introdução da pesca da baleia no litoral sul

No decorrer do século XVII a economia brasileira viveu

momentos diferenciados, no entanto, de forma geral a lavoura canavieira

funcionou como o centro da economia colonial, produzindo cana de

açúcar em larga escala, voltada essencialmente para o mercado externo.

Neste contexto a atividade de pesca da baleia a principio não interessou

aos portugueses como parte do projeto de colonização da América. No

entanto, ao passar dos anos este cenário se alterou, a promissora

atividade expandiu-se, iniciando pela Bahia de Todos os Santos e

seguindo em direção ao Sul da Colônia, ganhando vida e organização

próprias.68

O primeiro estabelecimento da indústria baleeira no Brasil de

que se tem notícia, estava situado no Recôncavo Baiano, na Ilha de

Itaparica, próximo à cidade de Salvador à entrada da baía, na Ponta da

Cruz, em cujas proximidades se efetuavam as operações de arpoamento

de baleias. Este estabelecimento data já do inicio do século XVII,

constituindo já neste momento um monopólio, a partir do qual a baleia

foi designada como um real, cuja caça dependia da autorização da

Coroa. Este monopólio garantia o arrendamento da pesca por

particulares que estivessem interessados em explorar tal atividade.69

A segunda metade do século XVIII foi um período de

contínua expansão da caça da baleia. Isso fica claro com o

68 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 20. 69 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 34; JUNIOR, Wellington Castellucci.

Pescadores e Baleeiros, 2005.

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estabelecimento de novas armações espalhadas pelo território brasileiro,

principalmente nos mares mais ao sul. O constante investimento dos

arrendatários fazia com que estas prosperassem, aumentassem suas

instalações e seu plantel de trabalhadores.

Tanto na colônia quanto na metrópole, o momento também

era de expansão. O novo rei de Portugal, Dom José I (1750-1777),

nomeou durante seu reinado Sebastião de Carvalho e Melo o futuro

Marquês de Pombal, como primeiro ministro. Durante vinte e sete anos

foi Pombal quem comandou a política e a economia portuguesa. Além

de reorganizar o Estado, protegeu os grandes empresários, criando as

companhias monopolistas de comércio.70

A colônia era peça importante na política econômica de

Pombal. Além da criação das companhias de comércio, que,

privilegiadas pelo monopólio, tinham liberdade de taxar os preços de

compra e venda dos produtos, houve o aumento da cobrança de

impostos, na região das Minas, onde foram criadas as casas de fundição

e fixadas quotas anuais de produção de ouro.71

Além disso, combateu tanto os nobres quanto o clero, tendo

como fatos marcantes a acusação dos jesuítas de conspirar contra o

Estado, sua expulsão de Portugal e de seus domínios em três de

setembro de 1759, e o confisco de seus bens. Propriedades jesuítas,

como a fazenda de Santa Cruz no Rio de Janeiro, passaram então a

serem administradas pela Coroa.

Porém, segundo Myriam Ellis, foi a partir da introdução da

caça da baleia no Rio de Janeiro durante a primeira metade do século

XVIII e da sua consequente expansão ao litoral paulista e então

catarinense que a caça da baleia ganha importância.

Isto porque a segunda metade do século XVIII representou

um momento de expansão do comércio a partir do Rio de Janeiro.

Porém para analisar esse momento é preciso repensar uma série de

acontecimentos anteriores. A corrida pelo ouro nas Minas Gerais e o

substancial crescimento das zonas açucareiras fluminenses,

principalmente na região de Campos dos Goitacazes, somados à posição

70 AZEVEDO, João Lúcio de.O Marquês de Pombal e a sua Época. 2.ª ed., Lisboa, Clássica, 1990. 71AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época, 1990.

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geopolítica em que o Rio de Janeiro se encontrava fez com que as

arrecadações desta capitania fossem cada vez maiores.72

A partir do início do século XVIII, a praça do Rio de Janeiro

se expandiu a ponto de posteriormente passar a ser a principal praça

comercial da América portuguesa. Isso significou ser o Rio de Janeiro,

naqueles anos, o “mais importante porto receptor de importações de

outras partes do Ultramar e das reexportações de produtos europeus.”73

Se na primeira metade do Setecentos, a capitania perdeu importância

como área de plantation, o seu papel mercantil passou a tornar-se cada

vez mais expressivo.

A corrida pelo ouro nas Gerais fez com que sua população se

afastasse das plantations e demais produções de gêneros. Com isso o

Rio de Janeiro passa a se tornar conhecido como o principal entreposto

comercial da colônia, não apenas por fornecer gêneros de

abastecimento, mas também pelo número ilimitado de escravos

provenientes da África que ali aportavam e eram redistribuídos para as

demais regiões. Como consequência, o Governo da Colônia é

transferido de Salvador para o Rio de Janeiro.74

É neste contexto que a pesca da baleia no Rio de Janeiro e

principalmente na região meridional brasileira é impulsionada. Uma

série de novas armações são criadas, afim de alimentar o mercado de

óleo de baleia, utilizado na iluminação de núcleos urbanos e fortalezas,

além de servir como produto de exportação.

Até iniciar-se o aproveitamento do petróleo e seus derivados

para iluminação, isto é, até meados do século XIX, empregavam-se

velas e lâmpadas a óleo que exigiam consideráveis quantidades de

matérias graxas obtidas de plantas oleaginosas, da banha e do sebo de

animais domésticos e do óleo resultante das baleias. E durante séculos o

óleo de baleia foi mercadoria intensamente solicitada no mercado

europeu. O óleo também era utilizado em argamassas, como lubrificante

de rodas e engrenagens, além de ser utilizado no preparo de sabão. No

entanto era na iluminação que ele era utilizado com mais freqüência.75

No Brasil Meridional os núcleos baleeiros foram instalados

nas enseadas, nas proximidades das serras marítimas, abrigando-se

72FRAGOSO, João L. R., e Manolo FLORENTINO. O Arcaísmo como Projeto: Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de

Janeiro: Diadorim, 1993, p. 72-74. 73FRAGOSO, João L. R., e Manolo FLORENTINO. O arcaísmo como projeto. p. 75. 74FRAGOSO, João L. R., e Manolo FLORENTINO. O arcaísmo como projeto. p. 75. 75 ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil Colonial, p. 140-142.

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assim dos ventos e da agitação do mar, em praias mansas, onde o

estabelecimento humano era favorável e a abordagem dos barcos de

pesca facilitada. Em tempos onde a locomoção de pessoas era difícil

predominando o transporte marítimo, a escolha de tais localidades

buscava permitir uma articulação por parte da população tanto com

outros pontos do mar, assim como com o interior. Estes núcleos de

pesca da baleia que surgiam não eram construídos de forma isolada, mas

sim próximos a núcleos urbanos, contribuindo para a exploração e

ocupação da costa, já bem encaminhada nas áreas fluminense e paulista,

porém ainda rarefeita no litoral catarinense.76

É importante ressaltar que o estabelecimento das armações de

pesca de baleia no Brasil Colônia ocorreu através da iniciativa

particular, visto que a Coroa não dispôs de recursos materiais para tal

empreendimento. Esta se limitava a coordenar o monopólio da pesca e

do comércio dos produtos da baleia, onde negociantes interessados

investiam seus capitais. Ao fim do contrato a Coroa recebia como forma

de pagamento pela exploração de tal área, fábrica, alojamentos,

armazéns, fornalhas, tanques, caldeiras, escravos, terras, embarcações e

apetrechos da pesca e da manufatura do azeite, que representavam o

capital investido pelo detentor do monopólio, cuja exploração já havia

lhe rendido lucros.

Toda a negociação era regulada através de um assento.

Exemplo disto foi o assento realizado entre a Coroa e o Desembargador

do Conselho Ultramarino, Tomé Gomes Moreira, em 1741, que instituía

e regulamentava o erguimento da Armação de Nossa Senhora da

Piedade, a primeira armação do território de Santa Catarina.

Terminado o prazo da concessão régia, o patrimônio recém

incorporado pela Fazenda Real e ao monopólio da pesca da baleia, era

arrendado a novos interessados, mediante contratos arrematados em

Lisboa ou no Rio de Janeiro, conforme as exigências da Coroa e cujas

cláusulas estipulavam o tempo de exploração e o preço da arrematação

do privilégio de explorar a pesca, as formas de pagamento a Fazenda

Real, os direitos, deveres e obrigações mútuos das partes contratantes e

as concessões da coroa aos arrendatários. As cláusulas variavam de

acordo com a época, com as áreas de pesca que abrangidos e com os

interesses e as circunstâncias em que os termos foram estabelecidos.77

76 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 59-60. 77 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 157-160.

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2.2 Santa Catarina: os primeiros contratos

Tomé Gomes Moreira foi o primeiro contratador da pesca de

baleias em Santa Catarina. Seu projeto de instalar e explorar por cerca

de dez anos a indústria da pesca na costa catarinense foi aceito por parte

da Coroa. Os termos deste acordo passavam pela isenção de quaisquer

direitos sobre óleo e barbatanas, o direito de explorar cerca de uma

légua de terra em sesmaria, que deveria ser destinada a agricultura e

subsistência do núcleo baleeiro.

O assento firmado em 1741 possuía vigência de oito anos, a

iniciar-se no ano de 1742. A partir daí estabeleceu o negociante uma

fábrica e armação de pesca de baleia, equipando-a com os materiais e

mão de obra necessária, sendo que todas estas seriam incorporadas ao

patrimônio assim que o privilégio fosse encerrado. Uma última

exigência garantia que qualquer eventual prejuízo a estrutura ou demais

bens deveria ser ressarcido a Fazenda Real.78

O modelo de exploração do azeite de baleia através de

contratos vigorou até 1765 quando o monopólio da pesca da baleia no

Brasil foi reorganizado, seguindo os moldes agora estabelecidos pela

política econômica pombalina. Sendo assim, foi criada a Companhia da

Pescaria das Baleias na costa do Brasil e Ilhas adjacentes.79

Estabelecida sob os auspícios e a proteção do Marquês de

Pombal, destinada a impulsionar a indústria baleeira colonial, a

“Companhia da Pescaria das Baleyas” inaugurou novo período na

história daquele monopólio no Brasil. Companhia era a forma moderna

do capitalismo mercantil, era a denominação dada a sociedades

anônimas. Em sua direção colocou-se Inácio Pedro Quintela, até o ano

de 1775 quando do seu falecimento. O sucedeu seu sobrinho Joaquim

Tibúrcio Quintela. Em 1777 com o fim da política de Pombal, uma nova

política econômica é instaurada e a pesca da baleia no Brasil começa a

tomar novos rumos. Em 1789 liquidou-se a companhia, porém Joaquim,

junto de seu sócio João Ferreira Sol, seguiu com o monopólio até 1801,

quando este foi extinto.

Foi no período em que os Quintela estiveram à frente da

pesca da baleia que houve o maior desenvolvimento da exploração da

pesca da baleia no Brasil, pelo investimento de capitais na ampliação e

construção de novos núcleos baleeiros, na aquisição de instrumentos de

78 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. p. 151. 79 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. p. 152.

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trabalho, embarcações e escravos e pelo desenvolvimento de métodos e

técnicas de extração do espermacete do crânio dos cachalotes, produto

até então não utilizado, por desconhecimento de meios.

Ainda assim, o contrato da família Quintela não foi renovado.

Em 24 de abril de 1801 o Príncipe Regente, através de um alvará,

facultou a todos o direito de explorar a pesca da baleia alegando que esta

decisão permitiria a expansão da pesca baleeira a outras regiões da costa

brasileira. Extinto o monopólio, vendidas as duas armações baianas,

abandonadas as instalações de Cabo Frio, coube à Fazenda Real

administrar as feitorias baleeiras do Brasil Meridional.80

No período em que estiveram nas mãos da administração real

as armações se viram abandonadas. Segundo Lucas Boiteux,

“desde o ano de 1801 em que findou a

arrematação de Quintella, tem sido este contrato

das Baleas administrado pela Fazenda Real nesta

Cidade e desde então constantemente tem ido

emdecadencia, como ninguém ignora: a razão he

obvia: a má administração”.81

Esta queda no rendimento da Armação podia ser percebida no

número de baleias que eram capturadas. Dados levantados por Lucas

Boiteux demonstram que na década de 1790 houve anos em que foram

pescadas 253 baleias; em comparação a estes números, em 1813 foram

pescadas apenas 39 baleias em todas as seis armações. Este seria,

segundo Boiteux, o resultado da falta de investimento em mão de obra e

materiais para aquelas unidades produtivas.82

Houve algumas tentativas frustradas de repassar esse controle

a particulares até que o estabelecimento da coroa portuguesa no Brasil e

desenvolvimento na navegação, comunicação, siderurgia contribuíram

para que comerciantes se encorajassem a arrendar as armações, investir

capital e reerguer o negócio da caça da baleia no Brasil Meridional.

Além disso, outro fator determinante foi o fato de a coroa ter percebido

que a liberdade do setor fazia com que ninguém se interessasse no

arrendamento destas. Um grupo de comerciantes se dispôs a “arrendar

as armações, investir capitais para reerguê-las do abatimento em que se

80 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. p. 160. 81BOITEX, Lucas Alexandre. “A pesca da baleia”. In: Revista do Instituto Histórico e

Geográfico de Santa Catarina. Florianópolis, 3:3-12, 1-2 trim. 1914. 82BOITEX, Lucas Alexandre. “A pesca da baleia”. In: Revista do Instituto Histórico e

Geográfico de Santa Catarina. Florianópolis, 3:3-12, 1-2 trim. 1914.

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encontravam e fornecer azeite de peixe ao povo, às luzes dos corpos de

guarda e quartéis de tropas das fortalezas, assim como o fabrico de

embarcações” do Rei. Estes arrendatários teriam então status e todos os

privilégios de Empregados do Real Serviço.83

Da mesma maneira que em 1801, quando acabou o contrato

de monopólio de exploração da baleia com Inácio Pedro Quintela e

Joaquim Pedro Quintela, foi feito um levantamento das condições

daquelas armações e de tudo que havia nelas; em junho de 1816 iniciou-

se o processo de avaliação dos bens para que esta pudesse ser reativada.

É através desse inventário que é possível conhecer um pouco

mais da estrutura da Armação da Piedade, suas características e

peculiaridades, além de compreender seu papel para a economia da

Freguesia de São Miguel da Terra Firme.

2.3 A Armação da Piedade

Conforme escreveu um viajante que passou pela Armação da

Piedade,

“Este estabelecimento próprio para derreter a

gordura dos cetáceos é, indubitavelmente, o mais

bello e o mais vasto que no Brazil existe, visto

que nos reservatorios, que contem o azeite,

poderia com facilidade mover-se uma pequena

embarcação”84

.

A Armação de Nossa Senhora da Piedade inaugurou a

indústria baleeira no litoral catarinense e foi ponto de partida de novas

feitorias posteriormente estabelecidas naquela região. O termo

“Armação das Baleias” definia as feitorias que promoviam a captura das

baleias e o beneficiamento do óleo conhecido por azeite de peixe.

Assim como as demais armações instaladas por todo o litoral

brasileiro, a Armação da Piedade localizava-se próxima a um

povoamento litorâneo, fundado posteriormente naquele local, e a um

estabelecimento de defesa, nesse caso a Fortaleza de Anhatomirim. A

estrutura da feitoria representava uma autêntica aldeia. Ocupando uma

enseada, seus estabelecimentos - casa grande, capela, moradias,

83ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. p. 186. 84 BOITEUX, Lucas. A Pesca da Baleia. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico

de Santa Catarina, 1914.

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alojamentos e senzalas, engenho de frigir e reservatórios de óleo,

armazéns e oficinas, cais, rampas e paredões – beiravam o mar. Ao

fundo de tal cenário encontrava-se uma mata, de onde era extraída

madeira para construções de barcos e ferramentas e lenha para as

fornalhas onde se fundia o toucinho extraído das baleias.85

Resultado de meio século de investimentos, quando do

inventário de 1816 a Piedade se organizava em torno de uma capela com

39 palmos de frente, 90 de fundo e 34 de altura. Esta contava com uma

sacristia, um cemitério e pedestais. Uma imagem de Nossa Senhora da

Piedade ficava no altar e cedia nome ao núcleo baleeiro. Sua imagem

era avaliada em 25$600. Feitos de prata eram os resplendores dos santos

e a coroa da Virgem e alguns objetos do culto. O ouro era quase

inexistente, encontrado apenas em algumas peças da capela.

Completavam a decoração alguns objetos de bronze, assim como a

imagem de Cristo em sua cruz e de São Miguel, este último, padroeiro

da Freguesia.86

Observando do mar, se via a capela à esquerda, no canto da

praia, e na seqüência as demais construções. Na capela se reuniam para

as cerimônias religiosas os administradores da armação e as suas

famílias, feitores, baleeiros, oficiais, mecânicos, ferreiros, carpinteiros,

escravaria e toda a gente que residia na região. Com rosários de pau nas

mãos, era ali que todos se reuniam – brancos, negros e mestiços, livres e

escravos – na sua devoção frente ao altar, onde se encontrava a imagem

da virgem, padroeira da armação.87

Próximo à igreja estava a casa grande da armação,

denominada no inventário de casa da vivenda. Feita de pedra e cal,

possuía 118 palmos de frente e 110 de fundo e era repartida em 28

casas, dois corredores e nos cantos possuía dois sobrados, além de um

quintal circundado por um muro de tijolo. Quase todos os

administradores das armações residiam nas casas-grandes presentes nas

armações, exceto Jacintho Jorge dos Anjos, o administrador da Piedade.

Este residia em uma casa alugada, paga pela administração geral da

armação. É provável que Jacintho passasse apenas alguns dias de sua

semana na armação e morasse em outra residência. O certo é que

Jacintho possuía outros negócios na região, como roças de mandioca,

optando por não residir nas dependências da armação.

85 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. p. 60. 86 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade. 87ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. p. 81-82.

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59

Ainda assim a casa grande da Piedade ostentava conforto e

um rústico mobiliário. Um portal e uma soleira de pedra de cantaria

davam acesso ao interior da casa-grande da armação. Haviam mesas

grandes e pequenas, com gavetas ou sem elas, para todos os fins. Havia

também oratório, como em todas as casas-grandes. Talheres de prata e

roupas de cama e mesa de algodão completavam os utensílios de

destaque na casa.

A casa da fábrica e o engenho constituíam o principal setor da

armação. Com 345 palmos de frente e 90 de fundo, era nestas

construções onde se realizavam os trabalhos cotidianos. Era na casa da

fábrica e no engenho que o toucinho das baleias era picado, sendo

retirados os resíduos não aproveitáveis. Era ali também que ficavam as

fornalhas de pedra e barro onde se colocavam as caldeiras que iriam

fundir a gordura dos animais. Acumulava-se lenha o ano todo para

conseguir manter as fornalhas em funcionamento durante o período de

manufatura do óleo. Produto deste trabalho, o óleo de baleia escoava

através de canos de barro para uma construção anexa ao engenho,

conhecida como Casa de Tanques.88

Na Armação da Piedade eram três as casas de tanques. A

primeira casa possuía cinco tanques, já as demais possuíam cada uma

cerca de quatro tanques, todos eles medindo 3,5 metros de profundidade.

Era aqui que o óleo era reservado até o momento de ser colocado em

barris e despachado. Havia ainda outros tanques anexos ao engenho de

azeite, como os tanques de salga e o tanque de barbatanas. Os tanques

de salga eram em número de três e destinavam-se à conservação do

toucinho e da carne de baleia. Já o tanque das barbatanas era único e

servia para lavar as barbatanas antes destas serem removidas para um

depósito conhecido como Armazéns de barba.

Além da estrutura de processamento deste óleo de baleia,

havia embarcações e ferramentas que eram usadas diretamente no

trabalho da pesca. Havia um conjunto de embarcações, composto por 47

lanchas, sendo que sete eram lanchas de espermacete, um saveiro, cinco

canoas e uma sumaca. A sumaca, embarcação de maior porte e

denominada Santa Anna e São Joaquim, foi construída em um estaleiro

da própria Piedade. Para o abrigo destas embarcações e o alojamento

dos trabalhadores do mar havia um armazém de recolher lanchas e

quatro campanhas de baleeiros. Estas campanhas formavam um total de

88 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01. Toda a discussão sobre o

assunto vem desta fonte.

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60

29 casas, todas de pau a pique. A Piedade possuía o maior conjunto de

campanhas de baleeiros de todo o litoral meridional.

Integrando este conjunto de construções haviam a casa do

capelão, a ferraria e os armazéns. Próxima à casa do capelão estavam a

enfermaria e a farmácia, ou como são descritas no inventário a “Casa do

Hospital e Botica”. Na Armação da Piedade esta era “humacaza com

121 palmos de frente e 56 de fundo repartida em cinco cazas, hum

corredor, huma varanda e duas cozinhas levantadas sobre pilares com

frontaes de tijolo (...)”89

. Ali a aguardente era utilizada como analgésico

e desinfetante dos escravos enfermos. Vinho, vinagre, cevada, açúcar

branco para os doentes, ventosas de vidro, pano de linho para ataduras,

boiões vidrados para cozeduras, drogas e remédios, eram estocados para

o uso do hospital e da botica.

Para abrigar os escravos que trabalhavam na armação havia

as senzalas. Dispostas em quadra ou formando um alinhamento, as

senzalas podiam ser de pau-a-pique com cobertura de palha, ou como na

Piedade, feitas de pedra e cal. As maiores senzalas pertenciam às

Armações da Piedade, da Lagoinha e de Itapocoróia. Ao contrário das

demais armações, na Armação da Piedade haviam duas senzalas: a

primeira era destinada à moradia dos escravos solteiros e era dividida

em 44 casas e dois armazéns; a segunda possuía paredes de tijolos e era

destinada aos escravos casados e suas famílias.

Outro grupo de trabalhadores que também residia na armação

era o dos feitores. Construção mais rústica e modesta do que a casa-

grande, a moradia dos feitores constituía um prolongo de casas com 120

palmos de frente e 32 de fundo e encontrava-se dividida em quatro

casas.

Além de toda a estrutura construída, a Armação da Piedade

contava ainda com uma imensa diversidade de ferramentas dos mais

diversos usos, que serviam na caça e no corte da baleia, assim como na

sua preparação. Cerca de nove trapiches, plataformas de pedra, em terra

firme ou à beira da água, de tamanhos variados e de colocação

estratégica, serviam de base às peças destinadas a içar as baleias

capturadas. Algumas vezes terminavam em rampa, para facilitar o

trabalho dos cativos. Madeiras de diferentes usos e ainda cinco carros de

madeira, juntamente com treze bois destinados a puxar estes carros,

colaboravam para que o trabalho ocorresse da melhor forma.

89 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01.

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61

No conjunto de construções da Armação da Piedade se

destacavam aquelas destinadas à pesca da baleia e ao beneficiamento do

azeite, no entanto também havia uma estrutura voltada para a

subsistência dos trabalhadores livres e escravos da armação. Localizadas

no espaço chamado de “fazenda da armação”, entre as roças e plantas

listadas no inventário de 1816 estavam um quartel de mandioca avaliada

em cem alqueires de farinha, 156 pés de laranjeira, 36 touceiras de

bananeiras, 70 pés de café e uma parreira de uvas em plena produção.90

Próximo a estas plantações havia a casa do sitio da fazenda,

imóvel de cinco quartos, além de uma fábrica de fazer farinha,

funcionava para transformar em farinha toda a mandioca colhida

naquelas plantações.

2.4 A mão de obra

Até o momento foi possível perceber como a Armação se

organizava espacialmente e como as relações eram organizadas a fim de

que a caça da baleia e a produção do óleo para iluminação se

mantivessem como uma produção rentável não só para seus

administradores, mas também para a coroa que agora se encontrava no

Brasil, refugiada da ocupação napoleônica em Portugal.

Como discute Stuart Schwartz para a sociedade surgida em

torno dos engenhos açucareiros do nordeste não foi apenas a presença de

mão de obra cativa que fez com que essa sociedade fosse caracterizada

como escravista, “mas principalmente devido às distinções jurídicas

entre escravos e livres, aos princípios hierárquicos baseados na

escravidão e na raça, às atitudes senhoriais dos proprietários e à

deferência dos socialmente inferiores”.91

Na Armação da Piedade temos

uma amostra da sociedade escravista que se desenvolveu no litoral

catarinense a partir da segunda metade do século XVIII. Livres e

escravos viviam, na maioria das vezes, em mundos separados, mesmo

que estas categorias significassem dois pontos de uma continuidade,

ambas com vantagens e prejuízos.92

O convívio de ambas em uma

mesma unidade produtiva representava ao mesmo tempo um problema

para o controle dos escravos e um incentivo na busca por uma ascensão

90 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01. 91SCHWARTZ. Segredos Internos, p. 214. 92SCHWARTZ. Segredos Internos, p. 215.

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62

nessa hierarquia, uma chance de mudança na condição social para os

escravos.

A sociedade escravista brasileira, baseada na dominação do

indígena e do escravo vindo da África e de seus descendentes nascidos

em território brasileiro criou hierarquias fundamentadas nas

diferenciações de cor e raça, que acabavam por refletir na organização

interna das unidades produtivas, em especial as maiores, onde a

diversidade de tarefas e de trabalhadores fazia com que a hierarquia

aparecesse de forma mais óbvia. São nessas grandes propriedades que a

necessidade de trabalhos especializados, como dos feitores e artesãos,

criou oportunidades de diferenciação entre cativos, forros e livres.93

Pensando nestas questões referentes à divisão e

hierarquização do trabalho livre e escravo em uma grande produção

onde os cativos eram largamente utilizados como base da mão de obra, é

que se torna importante compreender as diferentes formas de trabalho na

Armação da Piedade e a maneira pela qual categorias como sexo, idade,

condição social e origem interferiam no cotidiano destes trabalhadores,

em sua chance de distinção social e na constante busca por uma maior

autonomia.

A mão de obra na Armação da Piedade, assim como nas

fazendas de cana de açúcar do Nordeste, misturou trabalhadores livres

remunerados e escravos, fossem esses alugados ou comprados no

mercado de escravos e tidos como propriedade do contrato. Os livres

eram contratados principalmente para tarefas mais especializadas ou

para manter a ordem entre os trabalhadores escravos, que se dedicavam

principalmente às tarefas de remar e do processamento do óleo.

Segundo Ellis, havia duas formas de contrato de trabalho de

pessoas livres. Para tarefas que se estendiam durante todo o ano

empregavam-se trabalhadores que recebiam salários todo mês,

previamente estipulados. Assalariados anuais eram os feitores e

arpoadores, trabalhos considerados indispensáveis na armação. Além

destes havia os jornaleiros, que eram contratados para trabalhos

temporários, conforme a necessidade da armação, e que recebiam

conforme o serviço prestado. Havia também a figura do caixeiro que era

designado pelo administrador e era o responsável pela venda do óleo. A

remuneração era designada conforme a função exercida.94

93SCHWARTZ. Segredos Internos, p. 215. 94ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 109-110.

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63

Além destes trabalhadores, em geral livres, por vezes libertos,

eram recrutados pelos administradores do Real Monopólio da Pesca da

Baleia entre as populações litorâneas de pescadores e pequenos

agricultores, para tripular as lanchas baleeiras nas lidas marítimas da

pesca da baleia em troca de salário. Na falta de voluntários que

pudessem capitanear as embarcações, empunhar os remos ou o arpão, os

administradores recorriam também, em última instância, aos cárceres e

as milícias onde obtinham mão de obra forçada para o uso nos trabalhos

marítimos.95

Os homens que exerciam atividades em terra recebiam um

salário ou jornal, que variava conforme sua aptidão para o serviço, o tipo

de trabalho que exerciam e o tempo despendido na realização destes.

Eram assalariados principalmente aqueles que dominassem um oficio ou

que estivessem aptos a dirigir os cativos da propriedade. Além da

remuneração, os feitores da armação recebiam uma importância

correspondente ao alimento que consumiam diariamente. Contratados

como jornaleiros, por outro lado, podiam ser todos os operários da

armação: carpinteiros, calafates e pedreiros, serradores e falquejadores.

Seu ganho diário variava entre: $240 e 1$280 réis. Já aqueles que

exerciam suas atividades no mar, como os timoneiros e remeiros não

recebiam uma remuneração fixa. Seus ganhos variavam conforme o

número de baleias capturadas.96

O trabalho remunerado ultrapassava as atividades de pesca e

processamento de baleias e se estendia a três outras categorias:

administrativa, médica e religiosa. O administrador era responsável por

supervisionar o trabalho na pesca, fábrica, oficinas e o resto do pessoal,

além de cuidar da contabilidade e da prestação de contas para a

Administração Geral da Pesca da Baleia, que tinha sede no Rio de

Janeiro. Jacintho Jorge dos Anjos, administrador da Armação da

Piedade durante o final do século XVIII e o início do XIX, e recebeu por

ano de trabalho o valor de 233$600 referente a sua alimentação, além de

receber o valor de 1:300$000 referente ao seu ordenado.97

O caixeiro era designado pelo administrador. Tinha

responsabilidade da venda de óleo de baleia ao povo nos estancos ou

postos de distribuição do produto, filiados à armação, pelo que recebia a

quantia de 160$000 por ano, assim como consta na ordem de pagamento

95ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 103. 96ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 104. 97ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 104.

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64

de Antônio José de Campos, caixeiro, pelo ano de 1817 em que prestou

serviços a Armação da pesca da baleia.98

O cirurgião e o padre ficavam responsáveis pelos cuidados

com o corpo e mente dos trabalhadores. Vicente Pinto, cirurgião,

recebeu um ordenado de 128$000 em 31 de maio de 1817, equivalente a

um ano de trabalho. Já o Capelão Manuel Álvares recebeu na mesma

data o valor 120$000. Como é possível perceber, a remuneração de

ambos era similar, o que leva a crer que para a administração a saúde

física e aquilo que eles acreditavam ser cuidados espirituais dos

trabalhadores eram de igual importância.99

A Armação da Piedade contava com cinco feitores. Em 11 de

março de 1817, José Francisco da Silva recebeu um ordenado de

56$826, mais o valor de 22$726 pela alimentação, totalizando o valor de

79$552 por seus nove meses de trabalho. Além deste, havia outros

quatro feitores na Piedade: João Francisco dos Santos, Luiz dos Santos

Correia, Guilhermino Francisco Mafra e Mariano José dos Prazeres.

Todos estes receberam em 31 de maio de 1817 o valor de 24$000

referente a alimentação em um ano de serviço. No entanto, o valor de

seus ordenados variava. João Francisco dos Santos após um ano de

serviço embolsou o valor de 80$000. Na mesma data Luiz dos Santos

Correia recebeu o valor de 70$000 por um ano de serviço como feitor e

carpinteiro da ribeira. Já Guilhermino Francisco Mafra e Mariano José

dos Prazeres receberam apenas 60$000 pelo mesmo tempo de serviço.100

Comparando os pagamentos aos feitores da armação, é

possível perceber que entre estes havia uma hierarquia, sendo os seus

ordenados um reflexo da posição que ocupavam e importância que

possuíam para o bom andamento da armação. O primeiro feitor era

responsável pela organização e fiscalização dos demais, que se

dedicavam a fiscalizar cada uma das atividades exercidas pelos

cativos.101

Além dos trabalhadores livres remunerados havia os

trabalhadores escravos. Alguns eram escravos alugados de outros

proprietários. Os escravos alugados eram contratados para exercer

funções que precisassem um número maior de mão de obra em alguns

98 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Parte 02: Notas da Armação da Piedade. 99 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Parte 01: Notas da Armação da Piedade. 100 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Parte 01: Notas da Armação da Piedade. 101ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 103.

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65

períodos, como o do período de safra das baleias, quando um maior

número se aproximava da costa e era necessário um maior número de

trabalhadores não só para a pesca, mas também no processar do óleo, já

que a demora poderia fazer com que o animal se estragasse encalhado à

beira da praia.102

Neste caso o proprietário do escravo negociava com o

administrador que deveria pagar determinado valor por cada dia

trabalhado, ao fim do período este retornaria ao poder de seu senhor. O

administrador da Armação da Piedade, Jacintho Jorge dos Anjos por

diversas vezes entre os anos de 1816 e 1818 alugou alguns dos seus

próprios escravos para exercerem trabalhos na armação, principalmente

nas atividades de transporte de produtos, a bordo dos baleeiros. Outras

pessoas também alugavam escravos para a armação, principalmente nos

momentos de pesca da baleia, entre os meses de junho e setembro.103

Na entanto a maior parcela dos escravos que trabalhavam na

Armação era de propriedade do contrato da pesca da baleia. A maioria

destes eram africanos vindos através do tráfico Atlântico. Em 1816 a

Armação da Piedade contava com 137 escravos, dos quais 44 eram ditos

sem valor, 14 escravas e 16 menores, ou crias, totalizando 167 escravos

pertencentes à Piedade na data do inventário104

. Os escravos adquiridos

nos anos posteriores a 1816 foram adquiridos na praça do Rio de Janeiro

e distribuídos entre as Armações pela Real Administração.

Neste mesmo ano de 1816, os engenhos de açúcar do

Recôncavo Baiano possuíam em média 68 escravos. Os engenhos do

Recôncavo, assim como a Armação da Piedade, utilizavam a mão de

obra cativa em larga escala. Através desta comparação é possível

perceber que a Armação, mesmo após alguns anos de abandono, ainda

apresentava considerável número de cativos exercendo suas funções.105

Tabela 5: Escravos homens da Armação da Piedade (1816)

Escravo Procedência Origem Idade Ocupação Outra

Fernando A Mina 76

Antonio C 63 Cortador

Antonio A Angola 64 Tanoeiro

102ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 97. 103ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 102-103. 104 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01, p. 06-10. 105 BARICKMAN. O Contraponto Baiano, p. 242.

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66

Antonio C 55

Antonio A Mogumbe 47 Remeiro

Antonio A Mina 55 Chacoteiro

Antonio A IL 40 Calafate

Antonio A IL 45 Aprendiz

de Ferreiro

IL A Mina 72 Capitão

Chacoteiro

IL A Cassanje 60 Remeiro

André C 50

Carpinteir

o da

Ribeira

Belchior A Ganguela 45 Remeiro

Cortado

r de

cima da

baleia

Caetano A Angola 45 Pedreiro

C 22

Aprendiz

de

carpinteiro

da ribeira

A Ganguela 55 arrebentad

or do peito

Clemente A IL 60 chacoteiro

Domingos A Mina 57 cortador

da praia

Domingos A Magumbe 63 mestre de

azeite

Domingos C 45

Carpinteir

o da

Ribeira

Domingos A Angola 45 tanoeiro

Domingos C 55 remeiro

Dionizio C 24 remeiro

aprendi

z de

carpinte

iro

Elias C 50 oficial de

calafate

Francisco A Congo 60 remeiro

Francisco A Magumbe 65 remeiro de

arpoar marujo

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67

Francisco A 55 arpoador

Francisco A 50 Chacoteiro

Francisco A Magumbe 55 chacoteiro

Francisco A Camondon

go 50

Francisco C 22

Carpinteir

o da

Ribeira

Felipe C São Tiago 45 remeiro

Feliciano C 23

aprendiz

de

pedreiro

Gaspar A Mina 73 todo

serviço

Gabriel C 24 calafate remeiro

José A 60 timoneiro

José A Rebolo 65 chacoteiro

José A Cassanje 62 chacoteiro

José C 61 remeiro

José A Rebolo 47

cortador

de cima da

baleia

José A Benguela 61 remeiro

José C 47 aprendiz

de tanoeiro

José A Moquiranj

e 40 calafate

José A Rebolo 37

Carpinteir

o da

Ribeira

Francisco C 23

aprendiz

de

carpinteiro

de obra

branca

João 80 pedreiro

João A Benguela 63 chacoteiro

João A Ganguela 61

João A Rebolo 60 chacoteiro

João A Mogumbe 50 remeiro

João C 69 de todo o

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68

serviço

João A Benguela 61 remeiro

João A Benguela 50 remeiro

João A Moxicong

o 50

mestre de

azeite

João A Benguela 33 remeiro

João A Ganguela 45 remeiro

João 50 Chacoteiro

João A Ganguela 40 Chacoteiro

João C 35

Aprendiz

de

carpinteiro

da ribeira

João C 35

carpinteiro

de obra

branca

Joaquim A Camundá 57

Joaquim A 55

Joaquim A Camundá 51

aprendiz

de

carpinteiro

Joaquim A Congo 40 chacoteiro

Joaquim C 60 tanoeiro

Ignácio C 35

oficial de

carpinteiro

de obra

branca

Ignácio C 32 aprendiz

de tanoeiro

Ignácio A Rebolo 63 Chacoteiro

Januário C 23

aprendiz

de

carpinteiro

da ribeira

Manoel A Benguela 65

Manoel A Moquiranj

e 65

Manoel A Mogumbe 59

Manoel A Benguela 70

Manoel A Rebolo 40

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69

Manoel A Moxicong

o 45

Matheus A Ganguela 53

Miguel A Ganguela 51

Miguel A Ganguela 45

Paulo A Mogumbe 61

Pedro A Benguela 65

Pedro A 62

Pedro A Ganguela 47

Raimundo A Mina 66

Raimundo A Mina 65

Rafael C 65

Serafim C 25

Severino C 17

Simplicio C 50

Thomas A Mogumbe 55

Vicente C 50

Vitorino C 53

Vitorino C 41

Fonte: Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da

Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da

Piedade, Rolo 01, p. 6-10.

Analisando a idade e estado de saúde dos escravos é possível

afirmar que a Real Fazenda não tenha comprado nenhum novo cativo no

período em que esteve responsável pela administração da Armação, nos

anos compreendidos entre 1801 e 1816. Em 1816 os cativos em idade de

trabalho que constam do inventário eram crioulos e deviam ser resultado

do próprio crescimento vegetativo da população.

Os homens representavam 87,5% dos escravos da Piedade.

Entre eles, 67% eram provenientes do continente africano. Destes

africanos, 78% tinham como origem a região da África Centro-

Ocidental. Os demais escravos haviam vindo da região da Costa da

Mina, situada na Costa Ocidental. A alta porcentagem de escravos

homens, se comparados aos números de toda a Freguesia de São Miguel,

e ainda se comparados a outras localidades, demonstra uma seleção de

braços masculinos para o trabalho da pesca e processamento do azeite.

Essa era uma característica das Armações Baleeiras, visto que na

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70

Armação da Lagoinha não encontramos a presença de mulheres entre os

cativos.106

Escravas, em menor número, com ou sem crias, também

participavam da vida de cada armação. Em 1816 as cativas perfaziam

12,5% da população escrava da Piedade. E mais, apenas três delas eram

africanas, as demais eram crioulas compradas ou mesmo nascidas na

armação.107

Realizada a transação, efetuado o pagamento da sisa devida à

Fazenda Real – de que cabia metade da obrigação a cada uma das partes

– sobre compra e venda do escravo, saldados na Alfândega os direitos

sobrados sobre o seu despacho, era ele, ladino ou novo, embarcado em

um brigue, sumaca ou bergantim e remetido ao seu destino, o núcleo

baleeiro de S. Sebastião, de Bertioga ou de Nossa Senhora da Piedade,

onde desembarcaria se não morresse durante o percurso. Na armação,

incorporavam-no ao contingente humano das senzalas e o destinavam,

de preferência, ao beneficiamento do toucinho da baleia e ao corte de

lenha, nas matas, para abastecimento das fornalhas do engenho de frigir.

Melhor sorte aguardava aquele que dispunha do conhecimento de um

oficio.108

Ao desembarcar na armação, o escravo, fosse ele homem ou

mulher, era incorporado ao cotidiano da armação. Se este fosse um

escravo novo, isto é, recém chegado da África, era logo batizado e

submetido a aprendizagem de um serviço. As mulheres eram

frequentemente empregadas nas tarefas domésticas.

Os escravos da Armação da Piedade eram empregados nas mais

diversas atividades, desde remar em alto mar a processar o azeite na

estrutura montada em terra firme, de buscar lenha para as fornalhas a

cultivar roças de produtos para alimentação.

Miguel de Souza Mello e Alvim descreveu o capital humano da

armação. Segundo ele, possuía a Armação da Piedade

“muitos escravos bons carpinteiros bons de

maxado, calafates, polieiros, serradores, etc. cujo

números e pode conservar e augmentar, aplicando

os novos crioulos a aprender os mesmos officios

106 ZIMMERMANN, Fernanda. O Funcionamento da Armação da Lagoinha: Hierarquia do Trabalho e o Controle dos Escravos na Caça à Baleia (Ilha de Santa Catarina, 1772-1825).

Trabalho de Conclusão de Curso. Florianópolis: UFSC, 2006, p. 46. 107 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01, p. 6-10. 108ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 188-193.

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com os escravos officiaes velhos, no que se não

deve perder tempo, atenta a avançada idade dos

Mestres”.109

Dessa forma o autor nos forneceu uma fotografia do que era a

mão de obra da armação da piedade na época. Com sua descrição, este

quis não apenas retratar os homens que trabalhavam na armação, mas

também demonstrar o potencial que esta possuía de se multiplicar.

Apesar de o inventário atribuir-lhes ocupações,

especializações, os escravos do Real Contrato desenvolviam as mais

diversas tarefas, não havendo distinção entre africanos e crioulos no

momento da divisão das tarefas.

Ao contrário do que coloca Ellis, quando afirma que os

cativos não eram enviados ao mar já que este oferecia uma ameaça à

vida dos trabalhadores, a morte de um escravo significava a perda de um

grande investimento, o que é possível perceber ao analisar o inventário

produzido em 1816, já mencionado anteriormente, é que os escravos

desenvolviam funções em terra e mar, e pelas descrições dos escravos,

alguns sem braços, outros decrépitos, eles não eram poupados dos

serviços ditos perigosos. Na Piedade haviam 44 escravos inativos ou

sem valor, entre os quais 20 eram descritos como decrépitos. Isso pode

indicar uma despreocupação com a diminuição do número de escravos,

talvez devido ao poder de aquisição dos arrendatários e o fácil acesso à

compra de novos cativos ou a falta de acesso à mão de obra livre.110

Em 1816, quando da revitalização da armação, os novos

administradores efetuaram a compra de 294 novos escravos distribuídos

entre as várias armações, a fim de resolver o problema da falta de mão

de obra para o trabalho. A Armação da Piedade foi o destino de 152

escravos novos, recém chegados da África e comprados através do

administrador geral das armações no Rio de Janeiro. Alguns destes

africanos foram comprados de outras regiões do Brasil, outros eram

recém chegados da África e adquiridos na Praça do Rio de Janeiro.

Destes 152 escravos, 50 foram enviados à Armação no ano de 1816 e os

outros 102 foram enviados ao decorrer do ano de 1817. A maioria era de

escravos homens, apenas três destes eram do sexo feminino. Foram

109 ALVIM, Miguel de Souzo Mello e. A pesca da baleia em Santa Catharina.Revista

Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, 1914, p. 86-93. 110ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 188-193; Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de

Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01, p. 6-10.

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todos trazidos a bordo da Sumaca Fama e do Bergantim Triunfo,

juntamente com dois escravos enviados ao administrador, dois escravos

para servir o Bergantim Triunfo e dois para servirem de marinheiros na

Sumaca Fama. Durante a viagem 11 destes escravos faleceram.111

Quanto ao transporte destes cativos, em 1817, do Rio de

Janeiro até a Armação de Nossa Senhora da Piedade, o transporte de 20

negros custava à administração da pesca da baleia a importância de

64$000.112

A compra de novos escravos foi uma medida que visava a

revitalização da Armação da Piedade, o que demonstra a importância da

mão de obra cativa para o seguimento da pesca da baleia e

processamento do azeite, peças fundamentais no funcionamento da

propriedade. A necessidade de aquisição de africanos novos na praça do

Rio de Janeiro mostra que o crescimento vegetativo da população

escrava ali existente não era suficiente para suprir as necessidades da

Piedade, o que fez com que o tráfico atlântico de escravos fosse

indispensável para a manutenção e reprodução desta mão de obra cativa.

2.5 Cotidiano escravo

Carlos Engemann em sua dissertação sobre os escravos da

Fazenda de Santa Cruz, na fase em que passaram à administração da

nação, abre espaço para discutir as questões relacionadas a negociação

entre senhores e escravos e a forma como estas negociações

contribuíram para construir o sistema escravista. Segundo ele,

“Aí reside o valor histórico de um plantel

aparentemente único. Seus cativos, tanto quanto

quaisquer outros, queriam amenizar os seus

fardos, seja por negociação seja por conflito. Mas

a escolha do caminho a ser seguido não dependia

totalmente do escravo. Não era ele o único

elemento da relação, portanto a decisão de

negociar ou confrontar era gerada pela postura

111 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Parte 02: Notas da Armação da Piedade. 112ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. p. 90.

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73

que ambas as partes, senhor e escravo, tomavam

diante de seus interesses”.113

Sendo assim, o autor propõe que é através da construção do

cotidiano de escravos e senhores que os termos da relação entre eles será

construída, com margem para a negociação de vantagens para ambos,

assim como para o confronto entre eles.

A administração do contrato por seguidas vezes mudou de

comando. Primeiro pela alteração dos que a arrendavam, mesmo que se

mantendo na maioria das vezes em mãos de membros da família

Quintela; mais adiante, no início do século XIX, com o fim do

monopólio a administração da propriedade revertia para a Fazenda Real;

no ano de 1816, novamente esta passou a particulares designados pela

Administração Real, tendo enfim em 1825.

Porém, apesar de ter havido uma sucessão de arrendatários

que exploraram a armação, a administração cotidiana da Piedade raras

vezes mudou de mãos. Jacintho Jorge dos Anjos se manteve desde as

últimas décadas do XVIII até a segunda década do XIX não apenas

como o administrador da Piedade, mas também como administrador

geral de todas as armações de Santa Catarina, o que garantia uma

continuidade nas medidas referentes à ordem do trabalho e ao controle

dos cativos. Deste modo torna-se interessante perceber o funcionamento

da unidade produtiva escravista em questão, o controle da escravaria e

as formas de negociação e até mesmo de punição dos escravos que ali

trabalhavam, através do estudo dos seus cotidianos na armação.

Conforme escreveram observadores estrangeiros como

Johan Nieuhoff, que visitou o Brasil no século XVII, os escravos eram

vítimas da brutalidade do regime escravista e que viviam mal

alimentados, mal abrigados e mal vestidos. Além dos estrangeiros,

clérigos portugueses também chegaram a relatar os horrores da

escravidão. Ainda assim eles compartilhavam os ideais dos senhores,

que acreditavam que a forma de disciplinar os africanos seria através do

castigo e do trabalho, única maneira de superar as superstições,

indolência e maus modos por eles trazidos.114

No entanto, trabalhos recentes vêm mostrando que a relação

entre senhores e escravos não era estabelecida apenas através dos

113 ENGEMANN, Carlos. Os servos de santo Inácio a serviço do Imperador: demografia e

relações sociais entre a escravaria da Real Fazenda de Santa Cruz, RJ. (1791-1821),2002. Dissertação de Mestrado em História, UFF, Niterói, p. ii. 114SCHWARTZ, opcit, p. 122.

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castigos físicos. Contrariando as afirmativas de autores como Jacob

Gorender, não era apenas nos momentos de conflito que escravos

tomavam atitudes frente ao cativeiro, buscando negociar com o seu

senhor melhores condições de sobrevivência. Conforme afirma

Engemann, a escravidão acabava por firmar um conjunto de relações

estabelecidas, onde as ações de cada parte geram e são simultaneamente

geradas pelo contexto social vivido.115

As relações entre o senhor e seus

escravos eram estabelecidas principalmente nas relações cotidianas,

assim como nas reações às necessidades dos escravos, por parte do

senhor, e aos desmandos e concessões senhoriais, por parte da

escravaria.116

A violência do senhor, descrita pelos observadores e

clérigos portugueses, convivia assim com outros mecanismos

compensatórios que serviam para aliviar a tensão e a pressão exercida

pelo cativeiro. Porém estas não poderiam ser percebidas por pessoas que

estivessem apenas de passagem pelas propriedades, já que era no dia a

dia que esse sistema de negociações, misturados às punições, se

desenrolavam. Para Engemann, “nesse sentido, a circulação de bens

financeiros ou simbólicos poderia se constituir num dos meios para

tornar a vida cativa minimamente suportável”.117

A circulação de bens

gerava então o sentimento de esperança de ambas as partes. No âmbito

senhorial, a esperança da ausência de fugas e rebeliões; para os escravos

a esperança de um dia poder acumular bens suficientes para alterar sua

condição jurídica e ascender socialmente para além da escravidão ou

garantir a união da família, acesso à roça, etc.

Gilberto Freyre118

analisou a escravidão brasileira como

branda, relação em que o senhor seria uma figura paternal para os

escravos que em suas propriedades trabalhavam. Nas décadas de 50 e

60, a Escola Paulista de Sociologia, com destaque para autores como

Florestan Fernandes, Otávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso119

,

surgiram com uma nova crítica aos modelos de análise do cotidiano dos

cativos, anteriormente proposto por Gilberto Freyre. Tentando

desqualificar a interpretação benevolente da escravidão africana no

Brasil, EmiliaViotti da Costa, Suely Robes de Queirós, além dos autores

115 ENGEMANN, Carlos. Degrande escravaria à comunidade escrava.Revista Estudos de

História, Franca, v. 9, n. 2, 2002, p. 78. 116SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-

1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 117ENGEMANN, Carlos. Degrande escravaria à comunidade escrava, p. 78. 118 FREYRE, Gilberto, Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Editora Record, 1933. 119 CARDOSO, op cit.

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da escola paulista já citados anteriormente, se esforçavam por

demonstrar a violência do sistema, através de estudos sobre a resistência

escrava em forma de fugas e formações de quilombos.

Após alguns anos, já nas décadas de 80 e 90 novas

interpretações surgiram. Há uma volta aos arquivos a fim de buscar

novas interpretações para o funcionamento do sistema escravista e o

resultado são trabalhos que reconhecem uma maior autonomia aos

cativos, desmontando interpretações do funcionamento do sistema

escravista proposto pelos autores das décadas anteriores. É nesse

contexto que autores como Stuart Schwartz, Silvia Lara, João Reis,

Eduardo Silva, Robert Slenes, entre outros, procuraram demonstrar as

relações cotidianas do sistema, descobrindo que além dos incentivos

negativos, caracterizados pelos castigos físicos, havia também

incentivos positivos nas relações entre eles, demonstradas através de

concessões como a chance de cultivar suas próprias roças, constituir

família ou até mesmo, em última instância a chance de uma ascensão na

hierarquia da propriedade, baseada na especialização do trabalho, ou

mesmo a chance de se tornar um liberto.120

É seguindo os rumos desta historiografia mais recente, que

irei buscar compreender elementos do cotidiano escravo na Armação da

Piedade como a ração dos escravos, a habitação e o vestuário, a

constituição de famílias e as chances de acumulação de pecúlio.

Stuart Schwartz avalia que “foi, provavelmente, no aspecto

da alimentação que a relação entre as condições físicas dos cativos e a

operação do sistema escravista por meio de incentivos mais se

evidenciou”.121

Depois de seguidas afirmativas de que os escravos

passavam fome, em 1606 a Coroa ordenou que os senhores dessem

comida suficiente para seus cativos ou mesmo cedessem um dia da

semana para que estes cultivassem alimentos e pudessem prover seu

próprio sustento.122

A alimentação de livres e escravos era diferenciada.

Enquanto o administrador e os feitores recebiam além de seus

pagamentos, uma remuneração diária para seus gastos com alimentação,

os demais trabalhadores livres remunerados precisavam tirar de seu

120SCHWARTZ. Segredos Internos. SLENES, Na senzala uma flor. LARA, Silvia. Campos da Violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. REIS, João José e SILVA, Eduardo.

Negociações e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989. 121SCHWARTZ. Segredos Internos. p. 126. 122SCHWARTZ. Segredos Internos. P. 126.

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soldo ou jornal o seu sustento. Nos engenhos de açúcar um, de três

métodos, era utilizado para manter os cativos. A primeira forma era

aquela em que os escravos dependiam quase que exclusivamente da

ração fornecida pelos senhores; na segunda o senhor cedia um pedaço de

terra e os escravos precisavam utilizar os domingos e o tempo livre para

cultivar o seu alimento. Havia ainda o cultivo em terra do senhor para a

coletividade da fazenda (e não lotes individualizados onde o fruto da

produção era do escravo). No geral, se dava a combinação das

estratégias.123

Na Armação a alimentação possuía dois itens básicos: carne

seca e farinha de mandioca. A carne era adquirida pelo administrador da

Piedade. Nos anos de 1816 e 1817 a compra era feita junto a José Vieira

de Castro e a quantidade variava conforme o mês. Em julho de 1816

foram compradas 280 arrobas no valor de 302$400; em janeiro de 1817

o administrador da armação adquiriu 100 arrobas de carne seca no valor

de 160$000; em fevereiro nova compra foi feita: foram 600 arrobas no

valor de 840$000.124

Para a farinha de mandioca havia duas alternativas: podia

ser produzida na própria armação ou comprada. No inventário elaborado

no ano de 1816 a Piedade contava com um quartel de mandioca e um

engenho de farinha em plena atividade. Além disso, o bom número de

laranjeiras, bananeiras e pés de café, mostram que alguns dos itens que

constituíam a alimentação dos moradores da armação eram produzidos

no próprio local.125

Porém, a farinha produzida na Armação não era suficiente, o

que é possível verificar através das sucessivas compras de farinha feitas

entre os meses de setembro de 1816 e maio de 1817, quando foram

comprados 3.194 alqueires de farinha, dos mais diversos produtores,

resultando em um gasto total de 2:184$860.126

Na Piedade os indícios mostram que a alimentação era

cultivada pelos cativos, na propriedade, porém não de forma individual,

mas sim coletiva. Além disso, os registros de compra de farinha que

aparecem algumas vezes nos documentos de 1816, mostram que a

farinha produzida ali não era suficiente para sustentar toda a população.

123 SCHWARTZ. Segredos Internos. p. 127; BARICKMAN, B. J, O contraponto baiano. 124 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Parte 01: Notas da Armação da Piedade. 125 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01, p. 6-10. 126 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Parte 01: Notas da Armação da Piedade.

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Pra se ter uma ideia, apenas em 1816 temos em torno de 13 registros de

compra de farinha de mandioca, como aparece na listagem abaixo:

Tabela 6: Compras de farinha feitas pela Armação da Piedade em 1816

Vendedores/Produtores de farinha Alqueires

João da Silva Furtado 40

Caetano José Pereira 294

João Francisco Furtado 98

João da Costa 200

José Martins 85

Caetano José Pereira 200

João de Souza 800

Marcos Antônio da Silva Mafra 489

João de Souza 741

Antônio Manoel de Souza 64

Marcelino da Rocha 60

Antônio Manoel de Souza 40

José Marcelino da Silva 83

Fonte: Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real

Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360.

Não há data especifica para estas compras, apenas há

registros de que estas foram feitas no ano de 1816, no momento em que

o inventário que buscava detalhar os bens da armação para o retorno do

contrato de monopólio da pesca.

Não é possível precisar qual era a cota de farinha e carne

seca destinada todos os dias aos cativos. É sabido através da

documentação da Real Junta do Comércio que em 18 de novembro de

1816 Joaquim Antônio Alves, administrador geral do Real Contrato da

Pesca da Baleia adquiriu 12 sacas de farinha, 20 arrobas de carne seca e

um saco de feijão para alimentar 51 escravos enquanto estes eram

levados do Rio de Janeiro em direção a Santa Catarina, no entanto não

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sabemos quantos outros tripulantes estavam a bordo da embarcação e

nem quantos dias tal viagem durou.127

Além da carne seca e da farinha de mandioca, outros artigos

foram adquiridos por Jacintho Jorge dos Anjos, entre eles sal,

aguardente e fumo. Em junho de 1816 foram comprados 15 alqueires de

sal junto a Pedro Antônio Alves, no valor de 14$000. Este sal serviria,

entre outras coisas, para a salga do peixe, utilizado na alimentação dos

cativos. Tainhas ou corvinas, frescas ou salgadas, eram utilizadas na

falta de carne.

No mesmo mês foram adquiridas 200 medidas de

aguardente junto a Manoel Jorge Chaves, no valor de 40$000. A

aguardente possuía papel fundamental no sistema escravista, visto que

era utilizada no trato aos doentes, nesse caso para analgésico e

desinfetante. Os doentes recebiam ainda uma alimentação diferenciada,

possuindo elementos como açúcar e galinhas. Além disso, a aguardente,

junto ao fumo, tinham destaque nas relações cotidianas entre senhores e

escravos. Em abril de 1817 Joaquim Antônio Alves enviou através do

Bergantim Triunfo 12 rolos de fumo com destino a Armação.128

Conforme escreve Schwartz para os engenhos baianos, a

alimentação também era uma forma de negociação entre o senhor e seus

escravos. As cotas de fumo e cachaça eram distribuídas como uma

forma de premiação por bom comportamento, ou bom rendimento do

trabalho exercido pelos cativos. Essa era uma maneira de agradar

escravos a fim de evitar fugas ou rebeliões, e de extrair sempre o

máximo do trabalho dos escravos.129

Analisando as notas produzidas

pela Junta do Comércio é possível perceber a constante compra destes

itens por parte dos administradores.

Além de adquirir alimentos, produzir e receber produtos

vindos do Rio de Janeiro, a Armação da Piedade também possuía a

função de receber e redistribuir alimentos para outras armações

localizadas nas proximidades. Em 1817, uma correspondência entre

Jacinto Jorge dos Anjos, Administração da Piedade, e o Administrador

Geral, que residia no Rio de Janeiro, detalha um envio de sal da Piedade

com destino à Armação da Lagoinha, que se localizava ao sul da Ilha de

Santa Catarina. Conforme escreveu ele:

127 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Parte 02: Notas da Armação da Piedade. 128 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Parte 02: Notas da Armação da Piedade. 129SCHWARTZ. Segredos Internos, p. 140–142.

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“(...) Serão remetidos à Lagoinha 40 alqueires de

Sal que V. S. Manda para naquella armação de

fazer a salga do peixe com que se ajude a

sustentar a escravaria della, o que estimarei que se

consiga. He certo que o excessivo preço em que

agora o charque esta faz tremer a quem tem tanta

escravatura que sustentar porem nenhum outro

alimento he tão capaz de sustentar as forças de um

hum escravo que todo dia esta com hum maxado

na mão a cortar lenha ou coberto de suar em

carregala senão a Carne Seca e por isso he melhor

alimento que se pode dae a escravatura; e que me

parece bem mais acertado he que quando

houverem no Rio Grande as novas charqueadas

mande V. S. Comprar huma porção de carne para

remeter a esta donde se forneção as mais

armações porque escuzase de dar aos negociantes

o lucro que recebem no que se lhe compra

(...)”.130

A citação parece surgerir a compra direta das charqueadas,

sem passar pelos negociantes, com a compra sendo efetuada para todas

armações de uma só vez. Além disto, através desta correspondência é

possível perceber que a armação da Piedade, além de ser a maior das

armações do litoral Meridional também era responsável pela

redistribuição dos alimentos e demais itens enviados pelo administrador

geral da pesca da baleia. Havia cálculo entre comprar no mercado e

produzir o próprio alimento. Mais que negociantes tinham bom mercado

no fornecimento de estabelecimentos como esse.

2.6 Vestuário, habitação, parentesco e a constituição de

famílias escravas

Sobre a habitação e o vestuário dos escravos, escreveu Stuart

Schwartz que:

130 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Parte 03: Correspondência entre os administradores da Armação e o Sr. Joaquim

Antônio Alves.

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“O modo como os confortos de habitação e

vestuário podiam ser usados como incentivos foi

evidenciado por Henry Koster, que informou

haver um senhor de engenho comprando escravos

indóceis a um preço abaixo do mercado e os

transformado em trabalhadores produtivos. Seu

método foi mostrar-lhes os instrumentos de

castigo, ameaçando-os, e então lhes fornecendo

uma cabana, roupas e artigos para seu conforto

„tudo muito limpo e arrumado, e em quantidade

maior que o normalmente concedidos a escravos

de outras propriedades‟”.131

A vestimenta fornecida aos cativos na Armação era exígua.

Os jalecos, camisas, ceroulas, saias e mantas de algodão e lenços

vinham em parte da Europa, em parte era confeccionada no Rio de

Janeiro com material importado do Reino e despachados conjuntamente

para as Armações conforme a demanda.132

Também é possível que o

tecido viesse do Oriente, chegassem ao Rio de Janeiro e fosse

distribuída pelo administrador-geral às armações. Analisando as fontes,

há o constante envio de mantas e fios de algodão, além de panos e

cadarços de lã. Em julho de 1816 é enviado para a Piedade um lote de

panos, camisas e cadarços de lã; em abril de 1817 o Bergantim Triunfo,

vindo do Rio de Janeiro, traz para a Piedade 14 pacotes de fios de

algodão para a tecelagem. Em novembro de 1817 o administrador geral

das armações envia para a Piedade 70 mantas que deveriam ser

distribuídas aos escravos da Piedade.133

Os escravos da Piedade residiam em senzalas feitas de pedra

e cal. Eram duas: na primeira viviam os escravos solteiros que se

dividiam nas 44 “casas” que esta possuía; na segunda, feita de tijolos e

com uma estrutura um pouco melhor, residiam os escravos casados

junto as suas famílias, onde havia a possibilidade de uma convivência

mais intima, ainda assim era uma senzala em quadra. Ao contrário de

outras armações, aqui os feitores residiam em moradia separada da dos

cativos, o que fornecia aos escravos também uma maior mobilidade, já

que ao menos no momento de dormir não estavam sendo vigiados de

131SCHWARTZ. Segredos Internos. p. 126. 132 ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial, p. 85. 133 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Parte 02: Notas da Armação da Piedade.

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81

perto por seus feitores. Isso não que dizer que ficassem livres, já que a

senzala permanecia fechada.134

Parentesco, além de uma relação consanguínea, significa

uma identificação profunda entre os indivíduos. Sendo assim em uma

sociedade escravista,

“aparentar-se seria, antes do mais, a obtenção de

aliados de tal feita que o parente está

diametralmente oposto ao estrangeiro. Deriva daí

uma necessidade – branda ou urgente – conforme

a situação vivida, de articular o maior número

possível de parentes. Os meios para isso são

basicamente a consaguínidade e a consecução de

cônjuges”.135

A união em torno da estrutura familiar teria vários

significados tanto para estes escravos, como para os senhores que

consentiam com essa união.

No século XIX os escravos haviam sido tratados por

diversos viajantes como “desregrados”, “imorais”, incapazes de

constituir família. Já nas décadas de 60 e 70, sociólogos da escola

paulista, tendo à frente Florestan Fernandes, enfrentaram os

preconceitos raciais da sociedade brasileira, combatendo o argumento de

que estes eram integrantes de uma raça inferior. Gilberto Freyre e Caio

Prado já haviam contestado anteriormente este argumento, mas foi a

Escola Paulista que não mediu esforços para retirar da raça a explicação

pela dificuldade de inserção do negro na sociedade livre. Porém, ao

afirmarem que a culpa da dificuldade dos negros adentrarem esta

sociedade estava no fato de que o regime escravista havia soterrado sua

humanidade, consideravam que negros fossem desprovidos de

protagonismo, como se houvessem sido “coisificados” pela escravidão.

Com esta afirmação estes autores concluíram que estes escravos

estariam privados de uma importante organização humana: a formação

da família.

Robert Slenes, HebertGutman, entre outros autores que

escrevem sobre a autonomia e o protagonismo dos escravos,

confirmaram não só a presença da família escrava, mas também o acesso

134 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01, p. 1-2. 135 ENGEMANN. Degrande escravaria à comunidade escrava, p. 85.

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que estas tinham a uma moradia diferenciada. Slenes explorou a

presença de traços culturais africanos nestas unidades familiares e

enxergou nestas famílias elementos acerca das relações cotidianas entre

senhores e escravos.136

A formação de uma família ou mesmo a constituição de

laços parentais, fossem esses através de apadrinhamento ou relações de

sangue, poderia servir para estabelecer a paz entre estes escravos, o que

seria interessante para os senhores, já que a formação de vínculos

poderia prender os escravos e diminuir a possibilidade de fuga ou

revolta. Por outro lado, estes laços podiam servir como uma forma de

resistência, criando alianças que acabavam por fortalecer os cativos

diante de determinadas situações. A discussão estabelecida entre

Florentino e Góes, que colocavam a formação da família escrava como

um recurso utilizado pelo senhor para manter a paz nas fazendas e

Robert Slenes que por outro lado, revela a formação de família como a

união de cativos que favorecessem a resistência escrava passou a

permear as discussões acerca do significado político da família

escrava.137

Desta forma a família cativa não satisfazia nem aos senhores

nem aos escravos. Isso porque da mesma maneira que os cativos

esbarravam a todo o momento contra os limites e perigos criados pela

arrogância e prepotência de seus donos, os senhores, para garantir sua

segurança e a de seus empreendimentos, tiveram que abdicar

parcialmente de seu poder de dispor livremente de seus trabalhadores.

Sobretudo, tiveram que abrir mão do cultivo da estranheza dos cativos,

dado principalmente pela constante vinda de escravos provindos dos

mais diversos locais da África e separados de suas famílias e

comunidades de origem, para investir em estratégias de controle, como o

incentivo à formação de famílias entre estes africanos.138

Já para Florentino e Góes as relações parentais introduziram

a paz nas senzalas, criando uma sociabilidade entre pessoas de

procedências diversas, os retirando do estado de guerra e dando-lhes um

motivo para tentar seguir a vida adiante, sem arriscar confrontos com a

casa grande. De fato a formação de laços parentais aumentava a

vulnerabilidade dos escravos. No entanto estes não estavam impedidos

136 SLENES. Na senzala uma flor. 137 SLENES. Na senzala uma flor. FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A paz das

senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1997. 138SLENES. Na senzala uma flor, p. 48.

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de juntos criarem uma comunidade de interesses e sentimentos, e acabar

por se transformar em um perigo para os senhores. Ao contrário, eles

poderiam se identificar e resolver juntos lutar por um objetivo em

comum, a liberdade.139

Na Armação da Piedade é possível perceber que a formação

das famílias escravas era algo comum. Através do inventário de 1816 é

possível constatar o registro de 14 mulheres escravas residentes na

armação, das quais 11 eram casadas e as outras três eram viúvas. Todas

estas mulheres eram casadas com escravos da própria Piedade,

proporcionando, mesmo que pequeno, um crescimento vegetativo entre

os escravos. Na tabela abaixo é possível verificar as mulheres escravas,

sua origem, idade e seus respectivos cônjuges, junto à origem destes.

Tabela 7: Mulheres escravas da Armação da Piedade e condição civil

Escrava Origem

Estado

Civil Cônjuge Idade Valor

Anna Crioula Casada Francisco Mogumbe 33 89$600

Anna Crioula Casada Thomaz Mogumbe 43 76$800

Albina Crioula Casada Miguel Ganguela 19

100$00

0

Ceara Crioula Casada Victoriano 21

100$00

0

Dominga

s Crioula Casada Antônio Angola 43 40$000

Efigenia Crioula Casada João Crioulo 19

115$20

0

Gertrude

s Crioula Casada José Rebolo Novo 21

100$00

0

Joanna Mina Viúva ---------- 57 25$600

Jeronima Crioula Casada Jeronimo Mina 33 80$000

Jacintha Crioula Casada Pedro Cassanje 20

115$20

0

Leocádia Crioula Casada Francisco Congo 26 80$000

Luiza Crioula Casada

Manoel Francisco

Benguela 37 64$000

Maria Ginga Viúva ---------- 68 6$400

139 FLORENTINO, Manolo e GÓES, Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico

atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 129.

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84

Victória Conga Viúva ---------- 65 12$800

Fonte: Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da

Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da

Piedade, Rolo 01, p. 6-10.

As mulheres escravas eram crioulas em sua maioria, tendo

apenas três de origem africana. As africanas eram as mulheres mais

velhas da armação e seus maridos já haviam falecido. Podemos levantar

a hipótese de que estas africanas teriam sido a primeira geração de

escravas mulheres da Armação, sendo estas crioulas a segunda geração

de cativas daquela propriedade.

Na Piedade as mulheres escravas também acabavam se

casando com os cativos mais velhos e que há tempo já estavam

trabalhando na unidade de produção em questão. Anna crioula de 33

anos era casada com Francisco Mogumbe, de 65 anos. Albina crioula de

19 anos era casada com Miguel Ganguela, de 53 anos de idade. Através

dos dados apontados na tabela acima também é possível perceber que os

africanos, por ser maioria na armação ou mesmo por possuírem alguns

privilégios, acabavam casando-se com maior frequência que os

crioulos.140

Para além da relação já constatada entre escravos e escravas que

trabalhavam na Piedade, é possível que muitos dos homens da Armação

fossem casados com escravas que trabalhavam em outras propriedades

da região, ou libertos. Isto pode ter se dado devido a tamanha

desproporção existente entre o número de homens e mulheres decorrente

do tráfico atlântico de escravos. Entre as crianças crioulas, resultado do

crescimento vegetativo da população, havia um equilíbrio entre os

sexos.

As crianças geradas pela relação entre os cativos logo cedo

se integravam ao serviço, executando inicialmente tarefas mais simples,

como as da lavoura, e mais tarde aderindo ao serviço da pesca. Antônio,

era filho de Manoel Ferreira, e tinha oito anos de idade em 1816. João,

de 9 anos, era filho de Francisco Cumprido e na época foi avaliado em

64$000.

140 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01, p. 6-10.

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85

Tabela 8: Crioulos menores da Armação da Piedade

Crias Sexo Pai Idade Valor

Antônio M Manoel Ferreira 8 anos 51$200

Benigno M Francisco Congo 2 anos 20$000

Cecília F Manoel Ferreira 4 anos 32$000

Custódio M Vitoriano Crioulo 3 anos 25$000

Claudino M José Rebolo Novo 2 anos 20$000

Damiana F Antônio Angola 3 anos 25$600

Felipe M Manoel Ferreira 2 anos 12$800

Francisca F Francisco Mogumbe 2 anos 12$800

Hilário M Jerônimo Mina 9 anos 10$000

João M Francisco Cumprido 9 anos 64$000

Maria F Miguel Ganguela 9 anos e 8 meses 12$800

Martiniano M Manoel Ferreira 6 anos 38$400

Matislau F Francisco Congo 4 anos 25$600

Maximiniana F Manoel Francisco 12 anos 80$000

Roza F José Rebolo Novo 1 ano 6$400

Veríssima F José Rebolo Novo 4 anos 32$000

Fonte: Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da

Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da

Piedade, Rolo 01, p. 6-10.

Os menores da armação eram 16, sendo nove meninos e oito

meninas. Manoel Ferreira era pai de quatro crianças: Antônio,

Martiniano, Cecília e Felipe. Manoel era de origem Benguela e

desempenhava a função de Timoneiro de Arpoar. Sua mulher não

aparece na lista das mulheres da Piedade, o que nos faz levantar a

hipótese de que Manoel fosse viúvo. Não é possível afirmar ao certo. Já

José Rebolo Novo, casado com Gertrudes Crioula, possuía três filhos:

Veríssima de quatro anos, Claudino de dois anos e Roza, de apenas um

ano.141

Entre os valores das crianças escravas não é possível

estabelecer um padrão. Talvez a avaliação de seus valores levasse em

consideração o sexo e idade. Outro ponto que precisa ser levantado é o

de que provavelmente outros casais tenham tido crianças, no entanto por

141 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01, p. 6-10.

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86

terem alcançado a idade de trabalho, estes não sejam mais listados como

menores e com indicação de filiação, e sim já na lista dos escravos da

armação, junto aos demais crioulos e africanos.

As crianças eram listadas com referência a seus pais até os

15 anos de idade, quando a partir daí passariam a ser listados entre os

demais cativos da propriedade, e não mais como menores. Os escravos

já pequenos possuíam tarefas a serem cumpridas, porém só há registro

de cativo com funções específicas a partir dos 20 anos.

Para além das relações sanguíneas, havia ainda outro tipo de

relação de parentesco, aquela resultante das relações de compadrio. É

uma pena que os batismos de cativos da Armação da Piedade só estejam

disponíveis a partir de 1824, o que impede que possamos reconstruir

essas alianças no momento desse inventário.

Ainda assim, é interessante ressaltar que a formação da

família escrava na Armação da Piedade era ato costumeiro, sendo uma

instituição aceita e reconhecida por parte do administrador, visto que

este concedia o privilégio destas famílias viverem em local separado dos

outros cativos, reunindo-se em torno dos laços sanguíneos que estes

haviam criado.

Na verdade, o que acontecia na Armação, assim como em

outras propriedades estatais como a Fazenda Santa Cruz, era que o

senhor era uma figura distante. No caso da antiga fazenda jesuíta, isso

acabou por produzir relações menos destemperadas e uma maior

mobilidade social para os escravos que ali trabalhavam.142

Autorizar o cultivo da própria alimentação, a possibilidade

de constituição de família, de junto habitar uma cabana separada dos

escravos solteiros, eram algumas das formas de pacificar as relações

entre o senhor e seus cativos, evitando o confronto entre ambos ou

tentativa de rompimento com o sistema, fosse através de fugas ou de

revoltas. Por outro lado eram esses aspectos que demonstravam as

relações de negociação estabelecidas entre ambas as partes, confirmando

as condições dessa historiografia mais recente que afirma a voz ativa

dos escravos em todos os momentos de seu cotidiano, e não apenas nos

momentos em que estes buscavam romper definitivamente com o

sistema em que estavam inseridos.

Conforme escreve Schwartz, “na operação dos engenhos

brasileiros e no sistema escravista como um todo no Brasil, os

incentivos positivos tornaram-se uma técnica comum para obter-se dos

142 ENGEMANN. Degrande escravaria à comunidade escrava, p. 03.

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87

cativos ao menos uma cooperação temporária”.

143Esses incentivos,

como vimos acima, podiam assumir diferentes formas nas mais diversas

unidades produtoras espalhadas pelo Brasil. A formação de famílias e a

possibilidade de estas se relacionarem em um espaço diferenciado, a

distribuição de cachaça como forma de recompensa por bons serviços ou

mesmo uma cota extra de ração de comida ou fumo parecem ter sido

comuns na Armação da Piedade, assim como observadores estrangeiros

como Antonil já haviam verificado para os engenhos baianos.144

Além disso, a oportunidade de se especializar em alguma

atividade, como tornar-se um timoneiro ou mesmo mestre de azeite,

criava uma possibilidade de mobilidade social, que podia ser um

incentivo para que este escravo mantivesse um bom comportamento

diante das mais diversas situações.

Após a análise feita neste capítulo acerca das questões que

envolviam o cotidiano dos escravos da Armação da Piedade como a

alimentação, moradia, e mesmo a chance de constituir família, concordo

com Stuart Schwartz quando este afirma que “a escravidão na grande

lavoura brasileira não foi um „modelo‟, e sim um sistema adaptável e

flexível de organização do trabalho”.145

Manter os escravos trabalhando em propriedades como as

armações em geral, onde a possibilidade de fuga pelo mar, ou mesmo

pelo mato, era sempre constante, não era tarefa fácil. Todos estes fatores

apontam para um sistema onde as negociações funcionavam como uma

forma de controlar e manter a mão de obra sob o jugo da escravidão.

Ainda segundo o autor, os senhores de engenho, ou neste

caso os administradores da armação da caça da baleia e produção do

azeite,

“não eram obtusos nem retrógrados e sabiam

muito bem que o misto de incentivos positivos e

negativos podia ser usado para atingir seus

objetivos. A combinação desses elementos podia

variar conforme a personalidade do proprietário,

as demandas de mão de obra específica, os

costumes da região ou as condições do mercado,

mas o objetivo de extrair uma quantidade ótima de

143SCHWARTZ. Segredos Internos, p. 139-140. 144SCHWARTZ. Segredos Internos,, p. 140. 145SCHWARTZ. Segredos Internos,, p. 141-142.

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trabalho dos cativos geralmente resultava em uma

mistura dos dois elementos”.146

O senhor, porém não utilizava apenas de incentivos

positivos como estratégia para manter o controle da escravaria. A

existência de correntes, algemas e mais peças de imobilizar pessoas no

inventário de 1816 apontam para a existência de castigos físicos como

forma de punição por mau comportamento ou baixo rendimento no

desempenho das funções da Armação. Estes castigos resultaram em

algumas fugas e em reação contra os feitores. Em 07 de março de 1817

foram pagos 6$400 réis a Severino Jorge, por este ter capturado dois

escravos da Armação da Piedade que haviam fugido já há alguns dias. O

nome dos escravos foragidos não consta dos registros da Junta do

Comércio, no entanto é possível concluir que estes escravos estavam em

busca do rompimento com o sistema de trabalho em que estavam

inseridos, porém não tiveram sucesso dessa vez.147

No que tange o relacionamento entre senhor e escravo o que

se percebe é que ambos procuraram realizar seus interesses como

melhor puderam. Assim como a Fazenda de Santa Cruz, é possível que

também na armação da Piedade a época dos particulares (período de sua

fundação até 1801) tenha sido um momento de maior rigidez na

administração, sendo essa afrouxada assim que a Fazenda Real toma a

administração. Após 1801, no caso da Piedade, o administrador Jacintho

se manteve na sua função, no entanto sem uma cobrança especifica, o

que fez com que este procurasse cuidar de seu patrimônio a exercer

fiscalização sobre a propriedade. Isso se mostra evidente quando

Jacintho passa a não mais residir na casa-grande da armação, e sim em

outra propriedade sua. A queda da produção também data deste mesmo

período.

2.7 O produto da pesca

A Armação da Piedade, além do óleo de baleia que produzia

para o próprio consumo e para o fornecimento de outras praças, razão

pela qual havia sido instalada, produzia também farinha de mandioca,

um pouco de açúcar e aguardente, hortaliças e frutas para o sustento de

seus trabalhadores. Porém a produção não se limitava a estes gêneros

146SCHWARTZ. Segredos Internos, p. 168. 147 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Parte 02: Notas da Armação da Piedade.

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89

alimentícios. Os escravos teciam redes para a pesca, confeccionavam

suas vestes, móveis, embarcações, remos, rodas, carros, cordas, cabos,

barris, telhas e tijolos, ganchos, argolas, correntes de metal e mais coisas

destinadas a suprir as necessidades que as atividades decorrentes da

pesca da baleia, do beneficiamento do toucinho e da apuração do óleo

necessitavam.

O que não era produzido na armação era enviado do Rio de

Janeiro para o litoral catarinense através dos bergantins, sumacas,

escunas e lanchas. Estas embarcações seguiam em direção a Vila Bela e

Bertioga (armações paulistas) e para a Nossa Senhora da Piedade,

entrepostos que recebiam a maioria das embarcações e depois

distribuíam os produtos para as demais armações catarinenses, conforme

a necessidade.

Os trabalhadores escravos desempenhavam a funções de

produzir alimentos e materiais para a pesca, porém era entre os meses de

maio a setembro que estes se dedicavam ao trabalho de caça a baleia e

beneficiamento do azeite, e mesmo de outros produtos derivados da

baleia. As outras culturas, nesse período de safra, provavelmente

ficavam em segundo plano, a não ser que colocassem estas tarefas a

cargo das mulheres (o que não seria impossível, apesar do pequeno

número de escravas mulheres na propriedade).

Cento e oitenta medidas de óleo, em média,

aproximadamente, seria a capacidade de uma pipa, expressão

generalizada a todas as peças do vasilhame, calculadas umas pelas

outras. A medida custava 160 réis. E a produção média de óleo, por

baleia, era de 16 pipas. Segundo os registros da Junta do Comércio, a

Armação da Piedade em 1817, período em que a pesca já se encontrava

enfraquecida, já havia pescado 39 baleias naquele mesmo ano, o que

significava 585 pipas de azeite.148

A distribuição do óleo da baleia ao povo, para iluminação de

residências, de engenhos e mais estabelecimentos realizava-se por

intermédio de um entreposto ou armazém, o estanco, localizado na vila

onde se abasteciam os moradores daquele produto de tanta

necessidade.149

Entre os séculos XVII e XIX o mercado interno brasileiro

teria absorvido a maior parte da produção de azeite, havendo a

exportação do excedente para o Reino, principalmente durante o período

148 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Parte 02: Notas da Armação da Piedade. 149 ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil Colonial, p. 129.

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da administração de Inácio Pedro e Joaquim Pedro Quintela (1765-

1801). Nesse período, do porto do Rio de Janeiro chegaram a zarpar,

anualmente, para Lisboa, dez navios da Real Pescaria das Baleias. O

transporte marítimo do produto até Lisboa não era fácil, com frequência

estragava devido às longas viagens e más condições de

armazenamento.150

2.8 A decadência da Armação

A captura das baleias com o tempo sofreu diminuição

significativa. Deveu-se a redução do número de baleias nas costas do

Brasil, e a presença de baleeiros estrangeiros que passaram a caçar

baleias também no setor ocidental do atlântico meridional. Conforme

escreveu Jacintho Jorge dos Anjos em depoimento lavrado em 1820, até

fins do século XVIII o número de baleias capturadas e a produção do

azeite eram ainda expressivos.151

No período em que permaneceram as feitorias baleeiras do

Brasil meridional sob administração da Real Fazenda, de 1801 a 1816,

prosseguiu em declínio a captura de cetáceos por causa da ineficácia

administrativa.152

Com o decréscimo das capturas de baleias seguiu-se

certa desorganização na vida das feitorias do Brasil meridional, de Santa

Catarina especialmente. A esta altura ingleses e norte americanos já

frequentavam a costa catarinense, com métodos mais avançados de

captura e beneficiamento do óleo, que chegavam a revender ali mesmo,

no litoral catarinense. Além disso, pesou a falta de trabalhadores livres

que passaram a se recusar a trabalhar por não mais receber seus

pagamentos.

Lucas Boiteux relata que em 1816 o arremate por parte dos

sócios Siqueira e Lima, Carneiro viúva e filhos e Joaquim Antônio

buscou retomar a pesca, no entanto não foram bem sucedidos.

Utilizando de pesquisa em documentos e correspondências entre

autoridades, Lucas concluiu que Joaquim Antônio administrou por dois

anos as armações catarinenses, porém não obteve sucesso. Sendo assim,

Siqueira e Lima tomaram a administração. Lima veio para Santa

Catarina em 1819, ainda assim o número de baleias arrematadas não

cresceu de maneira satisfatória, não sendo possível enviar azeite para

abastecer o Rio de Janeiro. Reuniram-se os sócios e um procurador

150 ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil Colonial, p. 130. 151BRITO, Paulo José Miguel de. Memória política sobre a Capitania de Santa Catarina, p. 402. 152 ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil Colonial, p. 130.

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dirigiu-se a Santa Catarina a fim de tirar Lima do comando, porém não

obteve sucesso.153

Mesmo com o arrendamento das armações por particulares

entre 1816-1819 e os investimentos feitos neste momento – a Piedade

chegou a receber 152 novos escravos – não foi possível retomar a

rentabilidade de outros anos. No ano de 1827 todas as armações foram

vendidas pela nação, exceto a Armação da Piedade. Nos anos de 1847-

1848 os terrenos da Piedade foram repartidos entre os colonos alemães

recém chegados na região, porém estes se dispersaram visto que aquelas

terras não serviam para a agricultura.154

Não há registros que evidenciem o destino destes escravos

após o fechamento das armações. Os últimos registros encontrados que

fazem menção à Armação da Piedade são os batizados de três crianças,

crioulas, no ano de 1824, todos eram filhos legítimos e propriedade do

contrato, assim como seus pais. No ano seguinte o escravo Rafael

Crioulo foi batizado como sendo propriedade de um dos sócios do

administrador da armação da pesca das baleias. O nome deste sócio não

é mencionado, porém este era um dos sócios de Jacintho Jorge dos

Anjos, administrador daquela propriedade durante todo este período.

Rafael era filho legítimo de Maria Santiago, propriedade deste mesmo

sócio, e Serafim, escravo da Armação, dado como propriedade da

Fazenda Imperial do Nacional Contrato.155

Foram padrinhos Luiz dos

Santos Correia e Maria Luciana, ambos livres.

Os escravos mais idosos provavelmente se dispersaram. Já os

escravos em idade de trabalho devem ter sido vendidos para particulares

residentes da própria região. No entanto estas são apenas suposições,

visto que não há registros da movimentação destes cativos. O que se

sabe é que a armação da Piedade não teve o mesmo fim das armações do

litoral baiano, onde comunidades escravas assumiram o trabalho na

armação, utilizando a organização para exercer a prática da pesca

artesanal.156

153 BOITEUX, Lucas.A pesca da Baleia, p. 11. 154 BOITEUX, Lucas.A pesca da Baleia, p. 12. 155 A maneira de se referir aos escravos do contrato mudou ao longo dos anos. Nesse momento eles passam a se referir a estes escravos como pertencentes da Fazenda Nacional. 156 ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil Colonial, p. 132.

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92

3 Fortuna e Posse Escrava em São Miguel da Terra Firme

Os inventários nos permitem analisar as posses materiais dos

indivíduos, que no momento da morte apresentasse alguns bens, alguma

propriedade. No Brasil do início do século XIX a legislação dos

inventários no Brasil orientava-se pelas antigas Ordenações Filipinas.

Neste capítulo essa importante fonte histórica será utilizada com

o objetivo de apreender a fortuna dos residentes da Freguesia de São

Miguel, analisando as atividades econômicas a que estas pessoas se

dedicavam, em que tipo de propriedades estavam investindo, abordando

as transformações ocorridas no perfil desta parcela da população no

passar dos anos.

Para avaliar estas questões o período escolhido foi aquele

compreendido entre as décadas de 1830 e 1860. A escolha deste período

está centrada na disponibilidade dos inventários, que são a principal

fonte de análise destas questões, assim como pelo fato de este ser um

momento de transformações locais. Por ato do Conselho Administrativo

da Província em primeiro de março de 1833, a freguesia de São Miguel

foi elevada a vila.157

Sendo assim, este capítulo busca através do estudo de 59

inventários post-mortem compreendidos entre os anos de 1830 e 1860,

disponíveis no Fórum de Biguaçu e desvendar o perfil dos bens dos

proprietários locais, a distribuição da posse escrava, seu valor monetário

e o perfil dos escravos da região.

Bons exemplos de uso desta metodologia são os estudos

empreendidos por João Fragoso, Manolo Florentino e Bert J.

Barickman. Utilizando diferentes objetos e com diferentes objetivos de

estudo, estes pesquisadores encontraram no estudo e análise de

inventários as evidências que precisavam para sustentar suas teses. Em

“Um Contraponto Baiano”, o autor Bert Barickman cruza diversas

fontes com um conjunto de inventários referentes ao Recôncavo Baiano,

no período compreendido entre os anos de 1760 a 1860, com o propósito

de compreender três importantes lavouras da região: a de cana-de-

açúcar, a de fumo e a de farinha de mandioca, destacando através da

análise dos bens para partilha e das dívidas, a configuração da posse da

terra local, a estrutura da posse escrava e a distribuição da mão de obra

157SANTOS, Joaquim Gonçalves dos. A Freguesia de SãoMigueldaTerraFirme:aspectos

históricos e demográficos - 1750-1894. Dissertação de Mestrado, UFSC, 1996.

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93

predominante em cada cultura, suas técnicas, políticas e a interação

entre as culturas de crioulos, africanos e livres.

Outros autores que merecem destaque na utilização dos

inventários como fonte de pesquisa são Manolo Florentino e João Luiz

Fragoso, em sua obra intitulada o “Arcaísmo como Projeto”. Analisando

um conjunto de inventários referentes ao Rio de Janeiro e ao Vale do

Paraíba Fluminense, no período de 1790 a 1835, os autores conseguem

através de suas atividades e da distribuição das fortunas locais,

identificarem a presença de uma elite mercantil e aristocrática

estruturada a partir do comércio negreiro e da exportação.158

A pesquisa com a utilização de inventários proporcionou o

conhecimento de detalhes que tornaram possível a revisão de uma

historiografia clássica que centrava seus estudos em um mercado

exportador em detrimento do estudo do mercado interno brasileiro. O

acesso a terras e a homens baratos permitia também aos homens pobres

tornarem-se lavradores. Entretanto ficavam-lhes vedadas as atividades

mais lucrativas (sobretudo aquelas ligadas ao mercado exportador).

Logo, a mobilidade existia enquanto uma forma de viabilizar a

incorporação dos agentes no processo produtivo.

Partindo então de uma leitura estruturada na análise dos

montantes de bens alcançados pelos inventariados e a distribuição do

capital (fosse ele em terras, casas, engenhos, escravos, criações, etc.),

poderemos melhor compreender como se estruturava o sistema

escravista nesta freguesia. Nos inventários analisados neste trabalho,

todas as posses de uma pessoa falecida eram avaliadas para que se

procedesse a partilha entre os herdeiros, para permitir a dedução de

dívidas, impostos, custo do processo. Sendo assim é possível extrair

desta documentação informações acerca das produções locais,

concentração de capital, posse escrava, entre outros pontos.

Para a melhor compreensão das informações, sobre os bens

arrolados seguiu-se o critério de identificar as terras, casas e engenhos, a

mão-de-obra e as criações, partindo assim dos valores declarados para

cada item, a fim de mapear a distribuição de investimentos,

identificando qual setor concentrava a maior parte do capital acumulado

pelos inventariados.

158FRAGOSO, J.L. & FLORENTINO, M. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em um uma economia tardia. Rio de Janeiro c.1790 -

c.1840”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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94

3.1 A Propriedade em São Miguel da Terra Firme

Joaquina Pereira, moradora da Freguesia de São Miguel,

falecida no ano de 1838, era casada com José de Souza Machado para

quem deixou sua herança. Esta consistia apenas de uma casa coberta de

telha avaliada em 13$000 além de alguns pertencentes em cobre,

totalizando um patrimônio de 29$200 réis. Porém não era este o perfil

típico dos moradores desta região.159

Na mesma década, no ano de 1833 faleceu Antônio Machado

Lourenço; era casado com Maria do Rosário e morava na Freguesia de

São Miguel da Terra Firme, mais precisamente na região próxima ao

Rio Quebra-Cabaços, onde estava situada sua residência e um conjunto

de terras de sua propriedade, todos avaliados em 803$700. E não era só

isso que Antônio Machado possuía em seu nome. Entre os tachos e

fornos de cobre, este possuía um engenho de farinha avaliado em

16$000, local onde seus escravos provavelmente estavam empregados.

Estes eram em número de 13, sendo nove homens e quatro mulheres.160

Estes escravos eram crioulos, exceto dois: João que veio do

Congo e foi avaliado em 350$000 e Joaquim, também de origem Conga,

avaliado em 250$600. Os escravos de Antônio Machado Lourenço

foram avaliados em 3:460$600, o que representava aproximadamente

78% dos bens listados em seu nome. As casas e terras representavam os

outros 18% dos bens, estando os demais 4% distribuídos em um

engenho de farinha, cobre e em novilhos, estes últimos representando

apenas 2% do valor total dos bens de Antônio Machado Lourenço,

totalizando um patrimônio no valor bruto de 5:250$580.

Organizei os inventários em dois momentos distintos, o

primeiro abrangendo as décadas de 1830 e 1840, e o segundo momento

centrado apenas nos inventários correspondentes a década de 1850. A

distribuição dos inventários nestes dois períodos se deu porque devido a

própria distribuição temporal da documentação, visto que há uma maior

disponibilidade de inventários para a década de 1850. Analisando os

montes brutos de todos os 61 inventariados analisados para o período

proposto, teremos:

159 Inventário de Joaquina Pereira, 1838. Fórum de Biguaçú. 160 Inventário de Antônio Machado Lourenço, 1833. Fórum de Biguaçú.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE … · e acima de tudo para a construção de uma amizade. ... Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados ... não havendo

95

Tabela 9: Faixas de fortuna, São Miguel 1830-1860

Fortuna

1830 -

1849 % Total

1850 a

1860 % Total

Até

2:000$000 13 56,5 10:877$158 25 69,5 19:699$766

De

2:000$000

a

5:000$000 7 30,5 18:781$800 8 22,2 21:734$540

Mais de

5.000$000 3 13 11:553$220 3 8,3 31:415$260

Total: 23 100 41:212$178 36 100 72:849$566

Fonte: Inventários post-mortem da Freguesia de São Miguel da Terra

Firme 1830-1860. Fórum de Biguaçú.

Analisando a tabela 01 é possível perceber é que a maioria dos

inventários possuía montes brutos com valores inferiores a 2:000$000

contos de réis, seguidos pelos inventários que possuem montes brutos de

2:000$000 a 5:000$000 contos de réis e por último, e em menor

número, temos aqueles inventários que possuem mais de 5:000$000

contos de réis na avaliação de seus bens. Isso ocorre em ambos os

períodos.

O padrão de concentração dos bens é diferente nos dois

períodos, entre 1830 a 1849, temos uma maior concentração de valores

nos 30,5% dos inventários que possuíam entre 2:000$000 e 5:000$000

contos de réis em bens avaliados, totalizando 18:781$800 contos de réis.

Já no segundo período analisado, aquele compreendido entre os anos de

1850 e 1860, a análise será diferenciada. A concentração maior da

riqueza estará com a minoria dos inventariados; apenas 8.3% dos

inventariados do período concentravam 31:415$260 contos de réis,

como demonstra a tabela acima. Esses dados demonstram que entre os

anos de 1830 a 1849 tínhamos como característica uma maior

distribuição, mesmo que hierarquizada, da riqueza, alterada no período

seqüente.

Outro ponto importante de ser ressaltado é que para o período

de 1850 a 1860, os três inventariados com fortunas superiores a

5.000$000 possuíam patrimônios muito superiores aos do período

anterior. Essa maior concentração de riqueza se dá em dois setores

importantes: nos escravos de suas propriedades e nas suas terras.

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE … · e acima de tudo para a construção de uma amizade. ... Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados ... não havendo

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Esse esquema de distribuição dos inventários em dois períodos

já aparece no trabalho de Kátia Mattoso. Trabalhando com o século XIX

para a Bahia, Mattoso constatou que no primeiro período por ela

estudado, que compreendia os anos de 1801 a 1850, os inventários com

a maior concentração de bens dividiam a maior parte da riqueza entre

eles.161

João Fragoso, pesquisando dados levantados para o Rio de

Janeiro para o fim do século XVIII e início do XIX, e Maria Lucília

Viveiros Araújo, em seu trabalho acerca dos inventariados paulistanos

na primeira metade do oitocentos, apontam para a mesma tendência já

apontada por Kátia Mattoso para a Bahia no século XIX. Em linhas

gerais estes estudos apontam que a riqueza teve sua mais alta

concentração nos grupos mais ricos das suas respectivas localidades.

Estes resultados convergem com os resultados alcançados para o

segundo período de inventários da Freguesia de São Miguel da Terra

Firme, no entanto divergem dos resultados alcançados para esta

localidade no período de 1830 a 1849.162

Se analisarmos de maneira mais detalhada os dois períodos,

identificando em que propriedades estas riquezas estavam distribuídas,

concluiremos que para o período correspondente às décadas de 1830 e

de 1840 há uma concentração dos recursos investidos em escravos. Nos

casos analisados para este período, mais de 50% do patrimônio dos

residentes da região estiveram concentrados nestes bens, e em apenas

três casos não há a presença deste tipo de investimento entre os bens

inventariados. As casas, as terras e os engenhos aparecem nestas

décadas como o segundo maior propriedade dos proprietários locais,

seguidos pelas criações de gado, ainda de pouca expressão, sendo estas

provavelmente apenas utilizadas para a manutenção dos engenhos e

demais trabalhos nas fazendas. Na década de 1850 essa predominância

da propriedade escrava não se mantém.

Se os escravos eram mão de obra frequente, a presença de

engenhos em seus inventários nos dará indícios das atividades a que

estes senhores se dedicavam, onde empregavam essa mão de obra cativa

161 Mattoso, Kátia M. Q. Bahia no Século 19 - uma Província no Império. Rio: Nova Fronteira, 1992, pg 661. 162 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na

praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade

do oitocentos. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2006.

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97

adquirida ao longo dos anos, principalmente através do tráfico

transatlântico.

Analisando os dados de outra forma, para o período de 1830 a

1860, temos que em 60% dos inventários há a presença de engenhos de

farinha entre os bens e em torno de 40% dos proprietários não há a

incidência de engenhos, fossem eles de farinha ou cana, entre seus bens.

Observando então as propriedades listadas nos inventários é

possível perceber que aproximadamente 35% dos inventariados

possuíam apenas engenhos de farinha. Este era o caso de José de Simas

e Silva casado com Anna Maria de Silva e falecido em 1857. José

possuía uma escrava, avaliada em 800$000 e um engenho de produzir

farinha, avaliado em 150$000.163

Em 25% dos inventários encontrados para esta freguesia temos

a ocorrência de engenhos de farinha e de açúcar na mesma propriedade.

Este era o caso de Fructuoso Correia de Mello que dispunha de um

engenho de farinha avaliado no ano de 1858 em 50$000 e um engenho

de moer cana, avaliado em 57$000.

Entre os proprietários de engenhos de farinha, em 29% dos

casos podemos encontrar além da ocorrência do engenho na

propriedade, também a presença de roças de mandioca, o que confirma a

produção do gênero no local, assim como indica a predominância da

produção de farinha na região neste momento da sua história. Fructuoso

Correia, já citado anteriormente, era um destes homens. Além de seus

engenhos, este possuía uma roça de mandioca, que na época foi avaliada

em 36$000.

Um exemplo importante deste momento é o do Capitão Manuel

Teixeira. Quando da morte de sua esposa em 18 de agosto de 1847, mais

de 10% do valor de seus bens eram compostos por investimentos na

plantação de mandioca e na produção da farinha. Além disto, esta ainda

possuía um engenho de moer cana e produzir açúcar, o que demonstra

que seus bens se encontravam distribuídos em mais de uma produção,

mesmo que a farinha fosse a produção predominante em sua

propriedade. Mas o maior de seus investimentos era mesmo a

propriedade escrava, que perfazia pouco mais de 50% do total de bens

apresentados em seu inventário.164

Um perfil diferente é o encontrado no inventário de Faustina

Maria Vieira, esposa do Major Sabino da Gama Lobo, falecida no ano

163 Inventário de José de Simas e Silva, 1857. Fórum de Biguaçú. 164 Inventário da esposa do Capitão Manoel Teixeira, 1847. Fórum de Biguaçú.

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de 1845. Sua produção estava voltada exclusivamente para a produção

de farinha de mandioca; os investimentos na estrutura para esta

produção perfaziam cerca de 70% dos seus bens. Outra diferença no

perfil aqui encontrado para o de anteriormente apresentado, é a pequena

incidência de escravos em sua propriedade, compondo apenas 5% das

suas riquezas. Um hipótese é de que os cativos já tivessem sido doados

para seus filhos, no entanto não há registros que confirmem essa

possibilidade.165

Para a década de 1850 encontraremos um número maior de

informações, já que cresce a disponibilidade de material a ser analisado.

Se entre os anos de 1830 e 1849, dos 23 inventários a que tivemos

acesso, apenas em quatro casos não há registro de escravos entre os bens

listados, década de 1850, dos 36 inventários analisados, encontramos 18

onde os escravos não fazem parte dos bens dos inventariados, ou seja,

50% do total. Novamente podemos citar o caso de Fructuoso Correia de

Mello, casado com Jacintha Mariana, falecido em 1858. Seus bens

estavam concentrados em terras, casas e engenhos, perfazendo 83% do

valor de seu inventário, estando os demais bens distribuídos em gado,

canoas e ferramentas.166

Dos 50% dos inventariados da década de 1850 que possuíam

escravos entre seus bens, na metade dos casos compunha mais de 50%

da riqueza dos proprietários, sendo seguidos pelos investimentos em

casas, terras e engenhos, com um pequeno montante centrado no gado e

em ferramentas. Este era o caso de Sebastião dos Santos Bittencourt,

casado com Alminda Cândida, falecido em 12 de maio de 1850 e que

possuía 66% dos seus bens compostos por escravos, 26% em casas,

terras e engenhos e o restante investido em gado e outras ferramentas.

Seus escravos eram em número de oito, sendo seis homens e apenas

duas mulheres. No que tange as questões referentes à origem, quatro

eram africanos vindos de diferentes regiões, dois do Congo, um

Moçambique e um Mina. Já os crioulos eram fruto do crescimento

vegetativo da população local, filhos da escrava Rita, de Nação Congo,

propriedade deste mesmo casal. Entre os crioulos, no ano do inventário,

Agostinho possuía oito anos de idade; Maria quatro; Damazio dois; e

Adão possuía apenas três meses de idade. É provável que o proprietário

tenha investido em cativos africanos e como complemento utilizou o

crescimento vegetativo da população.167

165 Inventário de Faustina Maria Vieira, 1845. Fórum de Biguaçú. 166 Inventário de Fructuoso Correia de Mello, 1858. Fórum de Biguaçú. 167 Inventário de Sebastião dos Santos Bittencourt, 1850. Fórum de Biguaçú.

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Mas este ainda não era o perfil mais comum para o período. Se

analisarmos o conjunto dos inventários desta década o que podemos

perceber é que aproximadamente 70% dos inventariados concentravam

os seus investimentos em terras, casas e engenhos, como era o caso de

Ventura Correia, que falecido em 30 de agosto de 1850, possuía mais de

70% dos seus bens investidos neste tipo de propriedade, entre eles um

engenho de farinha, porém mantendo ainda certo número de

trabalhadores escravos que perfaziam em torno de 20% do total dos seus

bens. Estes escravos eram em número de dois, um homem e uma

mulher listados como Congos.168

Assim como Sheila de Castro Faria encontrou para a Capitania

de Paraíba do Sul, as casas aqui também apresentam apenas algumas

características referentes ao seu tamanho, e ao tamanho relativo ao

terreno, no entanto outros aspectos como o número de portas e cômodos

não são descritos nos inventários desta localidade, o que dificulta o

reconhecimento da imponência destas e sua evolução no decorrer do

período.169

Observando de outra maneira ainda temos que 64% dos

inventariados se dedicavam de alguma maneira à produção da farinha de

mandioca em suas propriedades. Como exemplo é possível ressaltar o

caso de José de Simas e Silva, falecido em 1857 deixando viúva Anna

de Simas, possuía entre seus bens um engenho de farinha de mandioca,

avaliado em 150$000 e que perfazia 6% do valor total dos seus bens,

que eram compostos principalmente por terras e casas, avaliados em

1:883$000 além de escravos avaliados em 800$000. No total, os bens de

José de Simas e Silva foram avaliados em 2:858$600.

José Augusto Leandro, trabalhando com os inventários da

segunda metade do século XIX na Comarca de Paranaguá, Paraná,

concluiu que 70% dos inventariados daquela localidade possuíam algum

vestígio de produção de farinha, fosse uma ferramenta, plantação ou

engenho.170

Se compararmos com os dados obtidos para a Freguesia de

São Miguel veremos números semelhantes, o que confirma para uma

larga produção deste gênero na região meridional brasileira no período.

Analisando o perfil dos inventariados nos dois momentos temos

que: no primeiro momento os ativos se concentravam principalmente

168 Inventário de Ventura Correia, 1858. Fórum de Biguaçú. 169 SLENES, Robert e FARIA, Sheila de Castro. Família Escrava e Trabalho. Tempo, volume

3, n. 6, Dezembro de 1998. 170 LEANDRO, José Augusto. A roda, a prensa, o forno, o tacho: cultura material e farinha de

mandioca no litoral do Paraná. Revista Brasileira de História, vol. 27, n. 54, São Paulo: 2007.

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nos cativos, fossem eles crioulos ou africanos. Estes eram

principalmente escravos do sexo masculino e em idade de trabalho. Já a

partir da década de 1850 se iniciará uma mudança no perfil dos

inventariados, com a progressiva queda no número de escravos, apesar

de estes terem se valorizado individualmente, que antes figuravam como

a principal aplicação do capital dos inventariados, mas que nesse

período começa a cada vez mais perder sua importância entre os bens

listados. Houve a diminuição na quantidade de escravos, porém houve

uma valorização destes individualmente.

Ao passo que temos uma diminuição de cativos temos o

crescimento da concentração dos ativos em imóveis, sendo possível

também constatar um pequeno crescimento nos bens animais, que antes

possuíam mínima representatividade nos bens dos inventariados. Esta

afirmação irá corroborar o que foi colocado por Sheila de Castro Farias,

quando analisando dados referentes à Vila de São Salvador, onde a

produção açucareira era destaque. A autora ressalta que é no decorrer

século XIX que as construções simples começaram a ser substituídas

por “casas mais sólidas, com maior conforto e com muito mais móveis e

utensílios, indicativo que a habitação e seus recheios simbolizavam o

poder econômico, social e político”171

, o que fez com que este setor

fosse tendo representatividade cada vez maior entre os bens dos

inventariados.

Se ao passar dos anos, cada vez mais, os bens imóveis irão

compor a maior parte da fortuna dos inventários, resta tentar

compreender o fato de os escravos perfazerem cada vez menos o

principal bem dos inventariados do segundo período analisado.

Enquanto na Capitania de São Paulo havia um crescente investimento

nestes bens, temos o oposto sendo encontrado para a localidade de São

Miguel, onde a queda após 1850 é constante.

Esta alteração no perfil dos bens dos inventariados vai de

encontro com a aplicação das leis de proibição do tráfico de escravos,

que apesar de já estarem em vigor desde 1831, apenas após 1850 é que

terão efeitos mais concretos sobre a utilização da mão de obra cativa nas

fazendas e engenhos da região. Se nas décadas de 30 e 40 os escravos

tinham grande representatividade entre os bens dos inventariados, na

década de 1850 temos uma queda no número de cativos.

171FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998,

p. 363.

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101

3.2 A Distribuição da Riqueza Seguindo Critérios

Econômicos

No item anterior analisamos os perfis de alguns casos

representativos, tentando demonstrar a riqueza em São Miguel da Terra

Firme seguindo o critério de dividir os inventários em dois períodos

distintos, um período que compreendia os anos de 1830 a 1849 e outro

que abarcava os anos de 1850 a 1860. Agora iremos dividir os

inventários em faixas de riqueza para cada um dos dois períodos.

A divisão se dá em três faixas distintas. A primeira compreende

todos os inventariados que possuíam bens avaliados em até 2:000$000

contos de réis; o segundo compreende aqueles que variavam entre

2:000$000 e 5:000$000 contos de réis; e finalmente o terceiro, que

compreendia os indivíduos mais ricos da região e compreendia os

inventariados com mais de 5:000$000 contos de réis listados em seus

inventários.

O primeiro grupo, que aqui denominaremos como grupo C é

composto por 38 inventários que somam um total de 30:576$924 contos

de réis. No grupo que denominaremos grupo B foram encontrados 15

inventários que somavam um valor total de bens de 40:516$340 contos

de réis. Já o grupo dos mais abastados, o grupo A, possui um total de

apenas seis inventários, mas que possuíam bens que totalizaram

42:968$480 contos de réis, conforme nos propõe a Tabela 09 logo no

início deste capítulo.

A primeira conclusão a que podemos chegar diante destes dados

é que no geral o que temos é uma concentração de riqueza na mão de

poucos inventariados, o que não foge dos dados encontrados por outros

autores para localidades de diferentes regiões e atividades econômicas.

No grupo composto pelos proprietários mais abastados da

região, o grupo A, todos estes se utilizavam da mão de obra escrava, no

entanto estes possuíam menor participação entre os bens, visto que em

apenas metade dos casos estes compunham mais de 50% dos bens, e em

nenhum caso este ultrapassou o índice de 70%. Neste grupo, o que

temos é uma maior concentração de bens imóveis, como a listagem de

casas, terras e engenhos, predominantemente os de farinha de mandioca.

Além disso, nesse grupo as terras possuem um valor superior aos do

grupo anterior.

Maria Lucília Viveiros Araújo pesquisa período semelhante, no

entanto a autora dividiu as faixas de riqueza em grupo A, com valores

superior a 50:000$000; B, superior a 10:000$000; e C, até 10:000$000;

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102

visto que os padrões encontrados para os inventários do oeste paulista,

onde a produção açucareira era intensa neste período, são superiores aos

padrões de riqueza encontrados para São Miguel da Terra Firme, onde a

produção voltada para a subsistência e o mercado interno trazem

padrões de vida inferiores aos lá encontrados.

Em seu levantamento a autora concluiu que também neste caso

a maioria dos investimentos estava em escravos, seguido de perto pelos

investimentos em bens imóveis, convergindo com os dados encontrados

para a Freguesia de São Miguel da Terra Firme.172

Na classe intermediária, ou grupo B, todos os inventariados

possuíam escravos entre seus bens, e mais, em 80% dos casos analisados

os escravos perfaziam mais de 50% da riqueza do proprietário, sendo

que destes, 26% ultrapassaram 70% do valor total dos bens. Estes dados

demonstram que nesta faixa a mão de obra escrava exercia fundamental

importância na composição da fortuna destes moradores. Os demais

bens estavam principalmente concentrados nos bens imóveis, como

terras, casas e neste caso também engenhos. Comparando novamente

com os dados de Viveiros Araújo temos que neste grupo, no Oeste

Paulista os investimentos estavam concentrados em dívidas ativas,

seguidas pelos investimentos em imóveis, com os escravos figurando

apenas em terceiro lugar, o que difere e muito do que encontramos para

esta Freguesia.

Por último, entre os inventariados menos abastados, aqueles que

compunham o grupo C, há aproximadamente 58% deles sem possuir

nenhum escravo entre seus bens, concentrando seus bens então em

propriedades imóveis, com destaque para as terras. Entre os 42% que

possuíam escravos, em aproximadamente metade dos casos os escravos

perfaziam mais de 50% das suas propriedades, já que a outra metade

concentrava seus bens em imóveis e, em menor escala, em animais.

No Oeste Paulista, o grupo C também era composto por aqueles

que concentravam seus bens principalmente em imóveis, com a baixa

incidência de cativos, o que demonstra que estes tinham um pequeno

acesso a essa mão de obra, o que os distanciava economicamente dos

demais grupos.

O que podemos concluir, com base nos dados propostos acima,

é que a figura do escravo era determinante nesta sociedade e que sua

participação era fundamental no processo de acumulação de riqueza das

diferentes camadas da sociedade naquela localidade. O acesso ou não a

172 ARAÚJO, M. L. V. op cit. p. 152-180.

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este tipo de mão de obra se mostra determinante para a colocação social

daqueles indivíduos. Visto isto, o próximo tópico busca analisar de

maneira mais detalhada a composição da propriedade cativa, suas

origens e procedências, para melhor compreender sua importância na

sociedade da Freguesia de São Miguel da Terra Firme.

3.3 Posse Escrava

Os dados demonstrados até aqui apontam para uma participação

importante dos escravos na fortuna dos inventariados nos diferentes

momentos desta freguesia. Agora se torna importante apurarmos a

concentração de escravos por faixa de propriedade e período.

Para isso, o primeiro dado que precisa ser levantado é o

referente a parcela dos inventariados que possuíam cativos entre os seus

bens, conforme nos mostra a tabela abaixo:

Tabela 10: Propriedade Escrava entre os inventariados de São Miguel

entre 1830-1860

1830-1849 1850-1860

Especificação Inventários Porcentagem

(%) Inventários

Porcentagem

(%)

Sem posse

escrava 3 13 18 50

Com posse

escrava 20 87 18 50

Fonte: Inventários post-mortem da Freguesia de São Miguel da Terra

Firme 1830-1860. Fórum de Biguaçú.

Os dados acima apresentados demonstram o predomínio do

grupo de inventariados que usufruía da mão de obra escrava como

arranjo de trabalho nas suas propriedades. Mesmo que o número de

senhores proprietários de escravos tenha caído após 1850, estes

continuavam a representar 50% dos inventariados, o que demonstra

ainda uma importante participação destes trabalhadores naquela

economia. A porcentagem de inventariados que tem acesso a escravos

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no primeiro período proposto é extremamente alto, o que demonstra a

importância que este tipo de mão de obra representava praquela

sociedade naquele momento.

Por outro lado, a queda no acesso aos cativos se choca com o

momento em que a repressão ao tráfico torna-se mais incisiva e

consequentemente há uma valorização dos escravos. Essa queda sugere

que um destes dois aspectos esteja trazendo conseqüências para as

relações de trabalho nesta freguesia. Ainda assim, mesmo com esta

queda, o fato de termos 50% dos inventariados como proprietários de

escravos é um número representativo.

No Ribeirão da Ilha, freguesia localizada em Desterro, na Ilha

de Santa Catarina, região que também compunha o litoral catarinense,

onde também havia a incidência de uma armação de pesca de baleia,

temos que em 1843, apenas 40% dos fogos possuíam mão de obra

escrava em seus domínios, o que mostra uma maior distribuição dos

cativos pelas residências de São Miguel da Terra Firme.173

Se extrairmos dos inventários apenas os proprietários de cativos

e analisarmos o número de escravos que cada um dispunha sob seus

comandos, poderemos observar o tamanho dos plantéis de cativos e

analisar se houve alguma alteração nesse quadro a partir de 1850, após a

Lei Eusébio de Queirós.

Tabela 11: Faixas de posse escrava entre inventariados de São Miguel

1830-1860

1830-1849 1850-1860

Número de Escravos No. % No. %

De 1 a 5 12 60 14 77,8

De 6 a 10 6 30 3 16,7

Mais de 11 2 10 1 5,5

Total 20 100 18 100

Fonte: Inventários post-mortem da Freguesia de São Miguel da Terra

Firme 1830-1860. Fórum de Biguaçú.

173 ZIMMERMANN, Fernanda; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos entre açorianos: tráfico atlântico e trabalho escravo no Ribeirão da Ilha na primeira metade do século XIX.

Relatório Final PIBIC/CNPq. Florianóplois: UFSC, 2004.

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105

Os dados apresentados na Tabela 11 demonstram o predomínio

do grupo de proprietários que possuía de um a cinco escravos,

constituindo 60% dos inventários pesquisados para o período. Em um

universo de 95 escravos, este grupo detinha 27,38% dos cativos.

Seguindo a mesma lógica, os possuidores de plantéis de 6 a 10 escravos

representavam 30% dos inventariados, sendo responsáveis por 46,31%

do total de cativos, enquanto aqueles cujos plantéis eram compostos 11

escravos ou mais representavam 10% dos inventários, detendo 26,31%

dos cativos.

É possível perceber que apesar do maior número de

inventariados possuírem entre um e cinco cativos, é na faixa de 6 a 10

cativos que iremos encontrar a maior concentração dos cativos da

região. Em outras palavras, quase a metade dos escravos da Freguesia de

São Miguel da Terra Firme, entre os anos de 1830 e 1849, viviam em

plantéis que oscilavam entre 6 a 10 cativos.

Se elaborarmos a mesma análise para os dados da Tabela 11,

veremos também o predomínio do grupo que possui de um a cinco

escravos, constituindo 77,8% dos inventariados. Em um universo de 71

escravos, este grupo detinha 45% dos cativos da época. Já os

possuidores de plantéis que variavam entre 6 e 10 cativos constituíam

16,7% dos inventariados e eram detentores de 38% dos escravos. Já o

único inventariado que possuía mais de 11 escravos em sua propriedade,

este era detentor de 17% dos cativos da região para este período.

Estipulando uma comparação entre as duas tabelas que se

propõem a apresentar as faixas de plantéis em que os inventariados

estavam inseridos, vamos perceber que houve uma diminuição nos

plantéis, havendo cada vez mais uma concentração dos escravos nestes

pequenos plantéis que contavam apenas com um a cinco escravos.

Outro importante fator que merece ser ressaltado e que vai

contribuir para melhor entendermos a posse escrava na região é o sexo e

a origem destes cativos que constituem estes inventários.

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106

Tabela 12: Sexo e Origem dos escravos de São Miguel 1830-1860

1830-1849 1850-1860

Homens Mulheres Total % Homens Mulheres Total %

Africanos 26 8 34 36 20 8 28 34,5

Crioulos 34 27 61 64 26 27 53 65,5

Total 60 35 95 100 46 35 81 100

% 63% 37% 3,8

escr/prop 57% 43%

2,25

escr/prop

Fonte: Inventários post-mortem da Freguesia de São Miguel da Terra

Firme 1830-1860. Fórum de Biguaçú.

A tabela acima indica que a escravaria da região era composta

essencialmente por cativos do sexo masculino e crioulos, apesar de

apontar um bom número de homens africanos vivendo na região nos

dois períodos. O mesmo não ocorre para as mulheres africanas, já que

estas pouco apareciam entre os bens dos inventariados da região. Esse

indício já havia aparecido entre os escravos da Armação, e agora repete-

se novamente para os cativos da freguesia de São Miguel: a pouca

presença feminina entre os escravos, o que acabava por diminuir as

chances de casamento e de formação de famílias, principalmente no

caso das propriedades produtoras de farinha que limitavam-se a

pequenos plantéis de cativos.

Para este capítulo, o que se pode concluir é que a mão de obra

escrava, mesmo que em pequena escala, acompanhou os inventariados

de São Miguel e mostrou-se parcela importante nas fortunas ali

estabelecidas.

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107

4 População escrava em São Miguel da Terra Firme:

Até agora, acompanhamos a formação da Freguesia de São

Miguel da Terra Firme e o perfil da população que ali vivia em dois

momentos distintos da primeira metade do século XIX. O primeiro

momento é o de 1816, quando do retrato fornecido pelo inventário e

demais documentos produzidos para a Armação da Piedade. Já o

segundo momento é dado pelo conjunto de inventários da Freguesia de

São Miguel que compreende os anos de 1830 a 1860.

Estudamos a Armação da Piedade, grande unidade produtora

que estava inserida naquele território e através dos inventários post-

mortem de residentes da região foi possível acompanhar a estrutura

econômica voltada para a produção de alimentos e dependente da mão

de obra escrava que sobreviveu a decadência e se encontrava em seu

auge na primeira metade do século XIX. Neste capítulo a proposta é dar

enfoque para uma camada específica da população de São Miguel:

aqueles mantidos como escravos.

Através da pesquisa dos inventários no capítulo anterior,

ficou claro que os escravos exerceram papel de extrema importância

nesta economia, visto que estes durante longo período representavam

significativa parcela da mão de obra das propriedades. Este capítulo se

propõe a discutir a população escrava diante da população total da

Freguesia de São Miguel da Terra Firme, suas origens e a possibilidade

que estes possuíam de formar famílias, seu acesso a determinados

recursos, entre outros aspectos que nos possibilite recriar suas vidas

dentro do sistema em que estavam inseridos. É também objetivo deste

capítulo demonstrar a forma como as relações de compadrio auxiliaram

na expansão dos laços familiares destes escravos, ampliando a rede

social destes cativos. Por último, é objetivo aqui também demonstrar as

possibilidades de acesso à liberdade que estavam disponíveis.

4.1 População escrava e suas origens

O litoral catarinense foi, por muitos anos, tratado como uma

economia pouco dinâmica, ou periférica e este aspecto foi largamente

utilizado para explicar a pequena proporção de escravos na população e

sua concentração em atividades domésticas.174

No entanto, os mesmos

174 Ver, por exemplo, em PIAZZA, Walter. O Escravo numa Economia Minifundiária.

Florianópolis: UDESC / Editora Resenha Universitária, 1975.

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autores que promoveram estas informações trazem dados que

contradizem o que haviam proposto. A população escrava da capitania

de Santa Catarina representava 23% do seu total em 1810, enquanto na

capital da capitania, Desterro, a população escrava representava 26,5%,

ou mais de um quarto de todos seus habitantes.175

Em São Miguel, como é possível observar na tabela dois,

exposta no primeiro capítulo deste trabalho, também no ano de 1810 a

população escrava representava em torno de 26% da população total da

freguesia. Quatro anos mais tarde, em 1814, os escravos de São Miguel

chegaram a perfazer 28,67% da população total.176 Em contraste, no

Recôncavo Baiano, mais especificamente na Freguesia de Nazaré, onde

a farinha de mandioca também era destaque da economia local, 40,8%

do total da população era composta por escravos no ano de 1779. Em

1825-1826, no Arraial de Belém da Cachoeira e distritos rurais

próximos, também no Recôncavo Baiano, porém nas propriedades

produtoras de fumo, 27,4% da população era escrava177. Levando em

conta estes dados, podemos entender que o litoral catarinense, em

especial São Miguel da Terra Firme, possuía número significativo de

escravos, não diferindo totalmente de regiões onde a economia de

exportação estava presente.

Outro argumento levantado pelos autores de uma historiografia

mais tradicional era o caráter da economia local, voltada para a

agricultura de alimentos para a subsistência, e não para a exportação.

Esta, segundo os autores, utilizava de mão de obra familiar, sendo que

os poucos escravos concentravam-se no trabalho doméstico.178 No

entanto, não é isso que percebemos através das fontes coletadas. Mesmo

não contando com as grandes fazendas e o dinamismo que a produção

de açúcar proporcionou a regiões como o Recôncavo Baiano, os dados

acerca da presença escrava em Santa Catarina apontam para um sistema

escravista dinâmico, integrado ao mercado interno, contradizendo assim

que a historiografia tradicional havia proposto.

Já com base nos dados expostos na tabela dois, o que podemos

perceber é que em todos os anos a população escrava apresentou um

175CARDOSO, Fernando Henrique, e Octávio IANNI. Cor e mobilidade social Florianópolis.

São Paulo: Nacional, 1960, p. 84-86. 176 Ofício de D. Luís Maurício da Silveira ao Marquês de Aguiar, remetendo mapas com dados

estatísticos sobre a economia e população da capitania, bem como o movimento de

embarcações no ano de 1814. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. I-31,29,18 no. 6. 177BARICKMAN, Bert. Op cit. p. 214-215. 178 PIAZZA, Walter. Op cit.

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109

predomínio de homens. No ano de 1795, que é o primeiro momento em

que encontramos dados concretos acerca da composição da população

escrava os homens perfaziam 79% dos cativos. Nos anos seguintes estes

números diminuíram, sendo que em 1803, 74,7% eram homens; em

1810, 62,5% eram do sexo masculino. Novamente em 1814 tivemos

uma leve alta na porcentagem de homens escravos, chegando estes a

perfazerem 71% dos cativos. O que se vê então é uma grande proporção

de africanos entre os escravos, com tendência a crioulização.

O peso da presença de africanos nestes números fica clara, já

que no crescimento vegetativo costuma haver um equilíbrio na

proporção homens e mulheres. Esta desproporção tende a ser, em parte,

resultado do tráfico atlântico de escravos africanos, já que durante toda a

era colonial, a dependência do tráfico marcou características na

população cativa brasileira, características estas que provocaram

consequências sociais e demográficas para a história da escravidão no

Brasil, consequentemente, também nesta freguesia.

Os números encontrados em 1795 que nos evidenciam esta

brusca desproporção entre homens e mulheres é superior ao

desequilíbrio dos sexos gerado pelo tráfico, o que demonstra que além

de virem mais homens africanos para o Brasil, os senhores locais

também escolhiam adquirir um número maior de homens para o

trabalho nas suas propriedades.

A primeira característica marcante, apontada por Stuart

Schwartz quando se dedicou ao estudo dos escravos do Recôncavo

Baiano, foi a supremacia masculina nos momentos de escolha na

importação dos cativos. Esta preponderância masculina pode ter sido

causada pela preferência dos senhores e pela reduzida importância dada

por eles à capacidade reprodutiva das mulheres.179

Para tentar firmar a hipótese de que a desproporção de homens

e mulheres fosse um resultado da compra de escravos novos e da

preferência por braços masculinos, outras fontes foram utilizadas. Se

analisarmos o total dos batizados de africanos ocorridos em São Miguel

da Terra Firme entre os anos de 1798 e 1851, podemos confirmar esta

afirmativa e veremos que a desproporção era ainda maior que a

apresentada pelos mapas populacionais, visto que 79,5% destes

africanos novos eram homens e apenas 20,5% de mulheres180

. Fica claro

então que os senhores de São Miguel compravam oito homens em cada

179 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. P. 286. 180AHESC. Livros de Registros de Batismos1 e 2 – 1798-1838 e 1824-1856.

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110

dez africanos, já que nos nascimentos temos uma tendência ao equilíbrio

dos gêneros.

Assim, os homens representavam a maioria dos escravos da

região, refletindo um tráfico selecionado onde a compra de cativos do

sexo masculino era privilegiada, já que em locais onde o crescimento

vegetativo é a principal fonte de reprodução da escravaria, há um

equilíbrio entre o número de homens e mulheres. Estes números

demonstram uma disparidade ainda maior do que a encontrada para a

Bahia, visto que para o Recôncavo no final do século XVIII e início do

XIX, Schwartz encontra entre 30 e 40% de mulheres provenientes do

tráfico, já em São Miguel este número cai para pouco menos de 20%.

Se utilizarmos os inventários pesquisados entre os anos de 1830

e 1860 como uma fonte para a pesquisa acerca da porcentagem de

homens e mulheres no total da população escrava, teremos que num

total de 154 escravos listados em 38 inventários havia um total de 100

homens, 65% e apenas 54 mulheres, ou seja, apenas 35% dos cativos.181

Pensando na origem destes escravos, temos que do total de 100

homens, 52 deles, ou melhor, 52% eram crioulos, totalizando 48% de

africanos. Já entre as mulheres temos que do total de 54, 43 delas, ou

melhor, 80% eram crioulas. Os números encontrados com base nos

inventários pesquisados diferem um pouco daqueles encontrados através

dos mapas populacionais e dos registros de batismo. Por ser um período

mais adiantado é bem provável que aqui já houvesse ocorrido um

processo de crioulização da população, ainda assim os dados apontam

em uma mesma direção: para uma maioria masculina entre os escravos

da Freguesia de São Miguel da Terra Firme.

Se considerarmos os estudos que revelam que o crescimento

vegetativo da população produz como resultado um equilíbrio no

número de homens e mulheres, com leve preponderância no número de

mulheres, esta grande superioridade masculina, constatada através da

observação de diferentes fontes de pesquisa, leva a concluir que a

população escrava da Freguesia de São Miguel da Terra Firme estaria

crescendo através da entrada de africanos provenientes do tráfico de

escravos, e não do crescimento natural da população local. Isso porque,

como coloca Schwartz, “quanto mais africanos compusessem a

população, maior a desproporção entre os sexos”.182

181Inventários post-mortem da Freguesia de São Miguel da Terra Firme 1830-1860. Tribunal de

Justiça de Biguaçú. 182 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. P. 288.

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111

Através destes registros de batismo podemos verificar que dos

mais de cinco mil batizados ocorridos na freguesia entre os anos de

1798-1851, em torno de 42% dos registros eram de escravos, fossem

eles crianças recém nascidas ou de adultos recém chegados da África.

Aliás, do total dos batismos do período, temos que 18,5% eram

africanos novos sendo batizados, dados que incluem os escravos da

Armação da Piedade. Ou seja, quase 20% da nova população veio do

tráfico (descontando os imigrantes e escravos que já chegavam

batizados).183

Em São Miguel os inventários compreendidos entre os anos de

1830-1860 nos mostram que 39% dos escravos que aparecem nestes

inventários eram de origem africana, sendo os demais ditos como

crioulos.

O povoado de São Miguel surgiu já no início da segunda

metade do século XVIII, em 1750, como vimos anteriormente,

recebendo braços cativos já neste período, sendo assim em 1800 já é

possível verificar um crescimento vegetativo entre a população escrava.

Por outro lado, o povoado do Ribeirão da Ilha, apesar de também já

existir na segunda metade do XVIII, só passa a receber número

significativo de escravos na primeira metade do XIX, com a efetiva

chegada de africanos novos à região.

Para comparar a origem dos escravos de ambas às freguesias a

fonte utilizada para São Miguel será os inventários que compreendem os

anos de 1830-1860. Isso porque se torna complicado comparar os

registros de batismo visto que os de São Miguel fornecem informações

de uma população já estabelecida, enquanto os do Ribeirão mostram

uma população ainda em formação. Sendo assim, através dos

inventários temos que em São Miguel 74% da população africana tinha

como região de origem a África Centro Ocidental, 22% tinham eram de

nações da região da África Oriental e apenas 4% tinham a África

Ocidental como região de origem. Esta divisão por regiões não diz

respeito ao local preciso de origem dos escravos, mas da região mais

ampla, ou por vezes, o porto de embarque de onde o escravo partiu na

África. Partindo destes dados é possível compará-los com outras

localidades.

Os números referentes a matrícula ocorrida na Freguesia do

Ribeirão da Ilha no ano de 1843 se mostram um pouco diferentes. Dos

183AHESC. Livros de Registros de Batismos 1 e 2 – 1798-1838 e 1824-1856. O livro 2 começa com os escravos da Armação e depois que é finalizado o livro 1, ele passa a incorporar o

registro de todos os cativos da Freguesia.

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africanos registrados naquela freguesia, aproximadamente 74% dos

africanos no Ribeirão da Ilha eram da África Centro-Ocidental, sendo

43% deles só do Congo. Além disto, 19% eram da África Oriental

(Moçambique), e 7% da África Ocidental (Costa da Mina).184

No

Ribeirão é possível perceber uma maior superioridade na entrada de

africanos vindos da região Centro-Ocidental da África.

Em Minas Gerais, conforme o trabalho de Francisco Luna, em

1804 Vila Rica possuía em torno de 40% dos seus escravos de origem

africana, sendo 84,8% destes da África Centro-Ocidental.185

Já através

dos números obtidos por Mary Karasch para o Rio de Janeiro,

percebemos que estes se assemelham mais aos dados referentes ao

Ribeirão da Ilha, onde os escravos provenientes da região Centro-

Ocidental também perfazem a grande maioria da população africana.186

Já na Bahia, havia grande predominância dos africanos provenientes da

região Ocidental da África, onde os minas merecem destaque.187

Os números referentes a São Miguel não são exatamente

precisos, visto que boa parte dos escravos são registrados como

originários da costa, o que não nos permite especificar a região de

origem ou porto de embarque do cativo. No entanto, é possível perceber

que os a composição dos africanos novos de São Miguel era muito

semelhante à dos escravos do Rio de Janeiro, o que levanta a

possibilidade de que estes fossem comprados naquela praça.

Com a lei de 1831 e a proibição do tráfico de escravos, o fluxo

de entrada de africanos na freguesia de São Miguel diminuiu, no entanto

não cessou como era esperado. Separando o século XIX em dois

períodos (pré e pós 1830/1831) será possível perceber essa diminuição.

Entre os anos de 1811 e 1830, São Miguel recebeu 246 escravos

africanos novos; entre os anos de 1831 e 1850, esta freguesia recebeu

114 escravos africanos novos, o que representa apenas a metade do

número de africanos que chegaram naquela região no período anterior.

De fato, a repressão ao tráfico iniciada com a lei de 1831 causou efetivo

impacto negativo no tráfico de cativos em direção ao litoral catarinense

e a São Miguel, porém esse não cessou completamente. São Miguel

continuou se alimentando de africanos novos, pelo tráfico ilegal.

184 ZIMMERMANN, Fernanda; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Op cit.p.22. 185LUNA, Francisco Vidal. Estrutura da Posse de escravos. In: Minas Colonial: Economia e

Sociedade. São Paulo: Fipe/Pioneira, 1982. 186KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 187 REIS, op. cit.

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113

Se no período anterior a 1831 a maioria dos escravos provinham

principalmente do Congo (37%), Cabinda (22%) e Moçambique (20%),

a partir de 1831 a maioria dos escravos recém chegados da África eram

registrados como vindos da Costa da África (71%), relatando uma maior

imprecisão nos registros dos africanos novos, como se pode perceber

pela tabela abaixo.

Tabela 13: Origem dos escravos batizados por década (São Miguel, 1801-

1850)

Origem 1801-

1810

1811-

1820

1821-

1830

1831-

1840

1841-

1850

ÁFRICA

Centro-Ocidental 1 99 65 12 2

Ocidental - 6 5 1 -

Oriental 4 7 41 17 -

Africanos não

Identificados

4 8 17 48 44

Total de Africanos 9 120 128 78 46

BRASIL

Total de Crioulos 346 261 329 340 366

Total 357 381 457 408 412

Fonte: AHESC – Livros de Registros de Batismo 1 e 2 - 1798-1838 e 1824-

1856.

Passando a analisar os cativos listados entre os bens dos

inventariados de São Miguel no período entre 1830-1860, o que temos é

que 61% dos escravos eram crioulos, sendo os demais 39% de origem

africana. Entre os cativos de origem africana temos que 37% dos

africanos eram do Congo, seguidos por 20% de escravos de nação

Moçambique, 10% Benguela e os demais sendo de outras regiões como

Angola, Rebolo, entre outros.188

Os dados encontrados através nos

inventários, referentes ao período posterior a 1830 se assemelham aos

dados encontrados nos batismos para o período anterior a 1831. Isso se

deve ao fato de os inventários serem retratos do momento da morte do

cidadão, referente ao que foi adquirido pelo inventariado ao longo da

188 Inventários post-mortem da Freguesia de São Miguel da Terra Firme 1830-1860. Tribunal

de Justiça de Biguaçú.

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114

vida, enquanto o inventário é um relato da sua propriedade no momento

de seu falecimento.

Outro ponto importante que precisa ser ressaltado é o de que

após 1830 há um claro processo de crioulização, já evidenciado no

início deste capítulo, acentuado pela diminuição da oferta e compra de

africanos por parte dos moradores de São Miguel.

Analisando os registros de batismo dos escravos crioulos, ou

seja, nascidos no Brasil, é possível percebermos que 13,5% destes eram

filhos legítimos, ou seja, foram registrados com pai e mãe; os outros

86,5%, foram registrados como de origem natural, contendo em seu

registro apenas o nome de sua mãe. Não há registros de casamento de

escravos para o período, mas o alto número de filhos legítimos, se

comparados a outros locais, como o próprio Ribeirão da Ilha já citado

anteriormente, aponta para a presença de um grande número de relações

sancionadas. Isso contribuiria para justificar o crescimento vegetativo da

população escrava, fazendo com que a escravidão não dependesse

apenas do tráfico atlântico para se reproduzir.189

Estes dados podem ser interpretados pela lente de quem pensa

na economia de São Miguel, mas também pelo ponto de vista dos

escravos. Morar em um lugar destes significava constantemente ter de se

adaptar a chegada de novos africanos, a renovar constantemente as

relações já previamente estabelecidas. Se os plantéis eram reduzidos, a

convivência entre os membros mais antigos da propriedade já estavam

estabelecidas, tendo não só os antigos integrantes se acostumarem com

os recém chegados, assim como os novos se adaptarem a rotina dos

cativos já estabelecidos.

Como forma de ilustrar estas colocações é importante

analisarmos alguns casos que ajudam a contar um pouco da história

desta localidade. Antônio Machado Lourenço é um destes casos.

Morador de uma das margens do rio Quebra-Cabaços, vizinho de

pessoas como o Major Cypriano Coelho, Antônio era proprietário de

uma olaria e um engenho de fazer farinha, além de contar com um bom

número de escravos que trabalhavam em suas propriedades.190

Falecido em 1833, deixando como herdeira sua inventariante e

esposa Maria do Rosário, Antônio Machado Lourenço por diversas

vezes ao longo dos anos aparece batizando escravos de sua propriedade.

O primeiro deles é levado a pia batismal de 1807. Francisca era crioula,

189 AHESC. Livros de Registros de Batismo. Livro 1 e 2 – 1798-1838 – 1824-1856. 190 Inventário post-mortem de Antônio Machado Lourenço, da Freguesia de São Miguel da

Terra Firme, 1833. Tribunal de Justiça de Biguaçú.

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filha de uma africana do mesmo nome, denominada como vinda da

Costa da Guiné, foi batizada por Caetano e Maria. Seus padrinhos eram

escravos de Francisca Josefa, provavelmente moradora da mesma

região. Outros escravos crioulos foram por eles batizados, até que em

1816, Antônio Machado Lourenço retornava a Igreja de São Miguel da

Terra Firme, desta vez para batizar um escravo africano. João Congo

deve ter vindo para reforçar a mão de obra e teve como padrinhos os

escravos Caetano e Joaquina também e em 1833, quando da abertura do

inventário, este fora avaliado por 350$000.191

Porém estes não foram os únicos escravos que aparecem na lista

dos cativos batizados como de propriedade de Antônio Machado

Lourenço, tivemos ainda os batizados de Maria (1810), Vitorino (1812),

Joanna (1814), Innocencia (1816), além de Felicidade batizada em 1830

e que é o último registro de batismo de escravo onde temos Antônio

Machado Lourenço como proprietário.

Porém, se cruzarmos os registros de batismo com o inventário

de 1833, veremos que além destes escravos apontados pela lista de

batismos, teremos o nome de mais alguns escravos em sua propriedade,

como os cativos Domingos, Tomas, Germano, Joaquim Crioulo,

Joaquim Congo, Faustino, Benedito e Florência. A cativa Francisca,

primeira batizada por Antônio, e Felicidade, a última que consta nos

registros de batismo, não aparecem listadas entre os bens do falecido,

talvez por terem falecido.192

Outro caso que pode ser citado é o de Simão Alves, falecido em

1839, deixando viúva Anna Ignácia, sua inventariante. Simão possuía

dez filhos e quatro netos e possuía duas residências: uma casa de morada

situada nos Ganchos e uma na Vila de São Miguel. Nos Ganchos, além

da casa, havia um sítio, um engenho de fazer farinha e um de moer cana.

Além de carros, canoas e animais, Simão possuía quatro escravos como

sendo seus: Manoel Moçambique, que havia sido batizado na Igreja de

São Miguel no dia 02 de maio de 1835 e teve como padrinhos os

escravos Antônio e Josefa e que na data da morte de seu proprietário foi

avaliado em 450$000; o escravo Antônio Congo, avaliado em 400$000;

191 AHESC. Livros de Registros de Batismo. Livro 1 e 2 – 1798-1838 – 1824-1856. Inventário post-mortem de Antônio Machado Lourenço, da Freguesia de São Miguel da Terra Firme,

1833. Fórum de Biguaçú. 192 AHESC. Livros de Registros de Batismo. Livro 1 e 2 – 1798-1838 – 1824-1856. Inventário post-mortem de Antônio Machado Lourenço, da Freguesia de São Miguel da Terra Firme,

1833. Fórum de Biguaçú.

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116

Joaquim Moçambique, escravo já doente, avaliado em 100$000 e a

escrava Cerasa crioula avaliada em 200$000193

.

O que se pode concluir então, em linhas gerais, a partir destas

colocações, é que a Freguesia de São Miguel da Terra Firme, entre os

anos de 1800 e 1850, era composta por escravos predominantemente do

sexo masculino e crioulos, mas havia presença significativa de

africanos. Isso demonstra que a população escrava neste momento já se

encontrava em um período de crioulização, indicando presença

importante do tráfico na região desde a segunda metade do XVIII. Ainda

assim os africanos novos representavam importante papel dentro deste

contexto, garantindo a expansão do sistema escravista em São Miguel,

para proprietários de uma determinada faixa de fortuna. Porém, é

importante ressaltar, como já foi visto através do capítulo 3, que apenas

uma faixa de proprietários tinha acesso a eles.

4.2 A Família Escrava

Como vimos no tópico acima, a população escrava na Freguesia

de São Miguel era composta principalmente por homens, e a razão de

masculinidade aponta para a constante chegada de cativos africanos,

fossem eles por uma maior oferta masculina, fosse por uma escolha

senhorial já pensando nas dificuldades que estes encontrariam nos

serviços em que seriam utilizados. De qualquer maneira, a crescente

participação dos crioulos entre a população escrava, principalmente após

1831, nos aponta para o surgimento de um crescimento vegetativo,

indicio de que os cativos tinham formado famílias.

Conforme escreve Stuart Schwartz, “a formação da família, em

especial através do sacramento do matrimônio, e o nascimento espiritual

do indivíduo pelo sacramento do batismo eram dois momentos de

extrema importância para qualquer habitante do Brasil - colônia”.194

Porém, é importante ressaltar que nem sempre a formação da família

estava ligada ao casamento consagrado na Igreja. O nascimento ou

batismo de um filho ilegítimo não significa que não houvesse ali uma

unidade familiar. Outro ponto que precisa ser ressaltado é o de que a

família não abrangia apenas o pai, a mãe e os filhos, mas ia mais além,

englobando também os padrinhos (família ritual), e vindo daí a grande

193 AHESC. Livros de Registros de Batismo. Livro 1 e 2 – 1798-1838 – 1824-1856. Inventário

post-mortem de Simão Alves, da Freguesia de São Miguel da Terra Firme, 1839. Tribunal de Justiça de Biguaçú. 194 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. P. 310.

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importância do ato do batismo, onde novos laços de parentesco eram

criados.

A historiografia acerca da escravidão muito tem discutido as

questões referentes às formações de famílias e isso vem desde Gilberto

Freyre, que já havia iniciado em Casa-Grande e Senzala o debate sobre

o assunto, colocando a família como a raiz brasileira.195

Já em um

âmbito internacional, o que se tem naquele momento são trabalhos como

o de Frazier, onde a escravidão é vista como uma força destrutiva que

impediu a formação de famílias entre os cativos, eliminando a

possibilidade de estes criarem laços estáveis de relacionamentos.196

No

Brasil, é exemplo de defensor desta teoria o sociólogo paulista Florestan

Fernandes.

Durante todo o século XIX, pensadores refletiam sobre o

paradoxo de como uma mulher poderia obedecer a seu marido, ou uma

criança enxergar seu pai como responsável, se na verdade quem dava

ordens era o seu senhor, seu proprietário? Este tipo de questionamento

favoreceu e embasou as idéias de Frazier ou, em uma versão brasileira

destas idéias, de Florestan Fernandes. Que estas questões limitavam as

relações familiares, isso é fato, mas dizer que este poder maior que o

senhor exercia sobre seus escravos tivesse restringido a possibilidade da

formação de relações mais profundas entre os escravos, relações

verdadeiramente familiares, soa exagerado.197

A discussão sobre as famílias escravas avançou e novas idéias

passaram a serem discutidas. A partir da década de 1970, Kátia Mattoso

já começa a refletir em seus escritos sobre a família escrava algumas das

mudanças na maneira de pensar a escravidão surgida na década de 1960.

Se a família escrava ainda não era considerada, ao menos a autora já era

capaz de identificar a construção de uma solidariedade entre os

cativos.198

Na década de 1970, a demografia histórica passou a ser também

referência também nas discussões sobre a família escrava. Através das

pesquisas demográficas e análise serial de dados foi possível o

reconhecimento da possibilidade de existência de famílias escravas.

A partir daí Manolo Florentino e Roberto Góes irão começar

uma intensa pesquisa demográfica que irá lhes apontar a presença de

195 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala.Editora Record, Rio de Janeiro, 1998. 196FRAZIER, E. Franklin.The Negro Family in Chicago.Chicago: University of Chicago, 1932. 197 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978. 198 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982.

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indícios do casamento formal entre escravos, o que vai ser interpretado

como uma instituição que contribuía para a reprodução, mas acima de

tudo como uma forma de dominação, ou seja, a aceitação da união entre

escravos seria uma forma de mantê-los ligados de forma mais intensa

com a fazenda, amenizando a incidência de fugas e revoltas.

Em Na senzala uma flor, o autor Robert Slenes analisa os

efeitos da formação da família escrava em dois momentos: a curto e a

longo prazo. Em curto prazo os efeitos seriam a pacificação, a

acomodação dos cativos, que estariam recriando laços, estabelecendo

uma nova dinâmica de vida. Porém, em longo prazo a família escrava e

a construção de redes de solidariedade acabavam por favorecer a

resistência escrava, na medida em que identidade entre escravos eram

criadas, amplamente associadas as suas tradições e cultura. Movimentos

ou revoltas seriam então resultados deste processo, visto que a união de

escravos e a reconstrução de traços da cultura africana promoviam a

união entre grupos e os diferentes tipos de resistência, fosse ela cultural

ou mais além, como uma tentativa de romper com o sistema.199

Acompanhando as discussões acerca da família escrava, os

registros eclesiásticos, mesma fonte que serviu de base para as pesquisas

de Manolo Florentino serviram como base para a identificação de rastros

de famílias escravas na Freguesia de São Miguel da Terra Firme.

No entanto é necessário, já em um primeiro momento, ressaltar

as dificuldades impostas aos cativos para a formação das famílias. Em

São Miguel tínhamos pequenos plantéis diminuindo as opções de

casamento dentro da própria fazenda. Já fora da fazenda a distância

entre as propriedades eram grandes, como vimos no primeiro capítulo

esta freguesia encontrava-se espalhada em extenso território, o que

dificultava a possibilidade de os cativos unirem-se oficialmente a

cativos de outras propriedades. Somado a isso, as restrições de

circulação comumente imposta pelos senhores para evitar fugas ou

revoltas, contribuíram para impor limites à formação de famílias

escravas na região de São Miguel da Terra Firme.

Como já acontecia em outras regiões, o pequeno número de

mulheres também dificultava a formação das famílias. Não havia

mulheres suficientes para os homens da região, já que durante todo o

período tínhamos uma imensa supremacia masculina. Isso era resultado

199 SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações da família escrava -

Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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da preferência por braços masculinos e pela forte dependência do tráfico

africano, como já mencionado anteriormente.

Mesmo diante de tantos empecilhos, a formação de famílias

escravas foi algo possível em toda a Freguesia de São Miguel. Se

observarmos os registros de batismo de escravos compreendidos entre

os anos de 1798 e 1856, temos que entre os registros das crianças

nascidas na dita freguesia, 13,5% eram crianças que foram registradas

como legítimas, ou seja, possuíam em seu registro religioso pai e mãe

casados oficialmente.

Este era o caso das crianças Joaquina, Antônio e João. Nascidos

respectivamente nos anos de 1798, 1801 e 1803, estes eram filhos

legítimos de Thereza e Bonifácio. Pais e filhos eram propriedades do

Capitão Joaquim da Rocha Linhares, e tanto Thereza quanto Bonifácio,

eram escravos africanos, mais precisamente de nação Benguela.200

E esse não era o único caso de família constituída por pais e

filhos. Brizida era uma menina, nascida em 1805 e batizada no dia 07 de

janeiro de 1806. Filha legítima de Luiza, escrava da Costa da Mina, e de

Amaro, crioulo, Brizida com o passar dos anos ganhou mais duas irmãs:

Maria, nascida em 1807 e Luiza, nascida em 1809. Todos viviam juntos,

na propriedade de seu senhor, o Capitão Jacintho Jorge dos Anjos, que

foi administrador da Armação da Piedade na maior parte do tempo em

que esta esteve em funcionamento.

Outras fontes são capazes de nos trazer informações sobre a

presença da família escrava na Freguesia de São Miguel. Se

observarmos o inventário da Armação da Piedade, teremos indícios de

alguns casos de famílias que lá se constituíram. Em 1816 apenas 14

mulheres em idade adulta residiam na Armação. Com exceção de Joana,

Maria e Vitória, que eram viúvas, todas as demais estavam casadas.

Gertrudes era crioula, em 1816 possuía em torno de 21 anos de

idade e já era casada com José Rebolo, escravo africano de 47 anos de

idade. Nesse tempo já possuíam três filhos: Claudino, que já havia

passado dos seus dois anos de idade; Roza com seus pouco mais de um

ano; e Veríssima, bebê ainda de colo. Eram todos escravos da dita

Armação da Piedade, onde viviam em uma senzala separada, especial

para os escravos casados viverem com suas famílias. Não eram

choupanas destacadas como em outras fazendas, mas havia o

reconhecimento das unidades familiares.201

200 AHESC. Livros de Registros de Batismos 1 – 1798, 1801 e 1803. 201 Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio. Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa

360. Inventário da Armação de Nossa Senhora da Piedade, Rolo 01, p. 1-3.

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Se formos além e promovermos um cruzamento das diferentes

fontes pesquisadas será possível percebermos mais claramente a

presença de famílias escravas na região. Manoel José do Nascimento

faleceu em 1840, quando deixou aos seus herdeiros, entre outros bens,

seis escravos. Entre seus escravos estavam Thereza e João, ambos

africanos e que possuíam três filhos: José, mais velho, nascido em 1825

e Januário, nascido no ano de 1829 e que foi batizado pelos escravos

Manoel e Isidora.202

Procurando por registros de batismo onde Manoel

aparece como proprietário de escravos que estão indo a pia batismal

encontramos o registro de mais um filhos deste mesmo casal: João,

nascido em agosto de 1832 e que foi batizado no mês seguinte.

Provavelmente faleceu pouco depois, pois não constou do inventário.

Outro fator importante de ser analisado é a origem de cada um

dos parceiros. Em São Miguel, dos 233 casos de filhos legítimos

encontrados nos registros de batismo, temos que em apenas 55 dos casos

a origem paterna difere da origem materna. Transformando estes

números podemos dizer que em apenas 23,6% dos casos a nação de

origem paterna diferia da materna. Isto mostra que havia um padrão de

preferência no momento do casamento. Se os casamentos entre africanos

de regiões diferentes eram em números reduzidos, vemos que eram

ainda maiores as barreiras entre africanos e crioulos. Em São Miguel,

em menos de 5% dos casos temos africanos e crioulos batizando filhos

legítimos. Estes dados parecem confirmar Florentino e Góes de que os

escravos procuravam unir-se a pessoas que possuíssem uma origem

similar a sua, o que acarretava as mesmas referências culturais. Olhando

de uma maneira mais ampla podemos concluir que as origens, línguas e

tradições comuns permaneceram como considerações importantes para

os escravos na hora da escolha do companheiro.

Se tomarmos como fonte os inventários da Armação da Piedade

teremos resultados um pouco diferenciados, visto que lá os escravos

africanos, homens, estão casados quase que em sua totalidade com

escravas crioulas. Isso pode ter acontecido pelo fato de não haverem

africanas trabalhando naquela propriedade, o que impedia a escolha por

mulheres de nações africanas no momento do casamento. Uma

possibilidade a ser levantada é o fato de que talvez a relação estivesse na

origem do marido e do pai da cativa, já que na armação a

disponibilidade de mulheres africanas era muito pequena.

202 Inventário post-mortem de Manoel Jorge do Nascimento. Freguesia de São Miguel da Terra

Firme. Tribunal de Justiça de Biguaçú, 1840.

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Outro caso que precisa ser discutido são os casos onde as

famílias eram formadas por um casal não legítimo e filhos. Era o caso de

Francisca, escrava do Tenente Tomé da Rocha Linhares. Francisca era

crioula e teve dois filhos: Luiz, batizado em 26 de fevereiro de 1826 e

Romana, batizada em 02 de dezembro de 1827. Ambos foram batizados

como filhos naturais, o que significa que seus pais não possuíam um

casamento sancionado.

Ignez era escrava crioula de Ventura Correia, residente da

Freguesia de São Miguel. No período compreendido entre os anos de

1798 e 1860, Ignez teve dois filhos: Marcelino e Justina. Marcelino

nascido no ano de 1800 e Justina em 1805. Ambos foram registrados

como naturais, que indica que seus pais não possuíam um casamento

legitimado pela Igreja.

Ainda assim, o que podemos concluir é que o número de

famílias legitimadas pela Igreja era pequeno na região, isso não descarta

a possibilidade da formação de famílias que não chegavam a ser de fato

sancionadas e que pelo grande número de crianças parece ter existido.

Estas ultrapassaram as dificuldades impostas pelos senhores e mesmo

pela Igreja Católica. Também é possível perceber que ao longo dos anos

criaram-se códigos de comportamento que retratam uma pequena tensão

entre africanos e crioulos, talvez resultado da existência de uma

hierarquia entre os próprios escravos, que fazia com que crioulos

preferissem o casamento com crioulos.

4.3 Relações de Compadrio

Até agora analisamos as famílias apenas com base nos dados

que restringem as famílias com base nas relações matrimoniais e laços

sanguíneos. No entanto a família estendia-se muito além destes laços e

alcançava as relações de compadrio, que através do batizado criava

novos laços de solidariedade. As relações de compadrio são capazes de

nos revelar não apenas os laços que se formavam entre aqueles

indivíduos, como também suas estratégias utilizadas através desse

relacionamento espiritual.

Estes laços que veremos a partir de agora podiam ser

estabelecidos entre escravos da mesma fazenda, entre escravos de

fazendas próximas, entre livres e escravos, ou em casos mais específicos

entre o senhor e seus próprios escravos, dependendo das estratégias e

dos relacionamentos estabelecidos entre a população local. Estas

alianças, que se formavam em tal sacramento, criavam uma relação

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importante entre padrinhos e afilhados, além da relação entre padrinhos

e os pais da criança que passam a tratar-se como compadres e comadres.

Esta relação se iniciava na Igreja e prosseguia por toda a vida, visto que

padrinhos representavam um segundo pai, uma segunda mãe.

Na Freguesia de São Miguel da Terra Firme os registros de

batismos podem ser separados em padrinhos e madrinhas livres, forros e

escravos, como nos mostra a tabela abaixo:

Tabela 14: Condição dos padrinhos e madrinhas de crianças escravas em

São Miguel (1798 – 1856)

LIVRES % FORROS % ESCRAVOS % NÃO CONSTA % TOTAL

PADRINHOS 961 44,40 83 4 941 43,50 179 8,1 2164

MADRINHAS 913 42 108 5 905 41,80 238 11,2 2164

Fonte: Registros de Batismos da Freguesia de São Miguel da Terra Firme –

Arquidiocese de Florianópolis, 1798 – 1856.

Analisando os dados expostos na tabela é possível observar que

tanto no caso dos padrinhos quanto das madrinhas teremos um

surpreendente equilíbrio entre o número de livres e escravos. No caso

dos padrinhos, em torno de 44,5% dos batizados os padrinhos eram

livres, em 4% eram forros e em 43,5% dos casos os padrinhos eram

cativos. Em 8% dos batizados não possuímos registro de padrinho. No

caso das madrinhas os números não diferem muito: 42% das madrinhas

eram livres, 5% eram forras e 41,8% eram escravas. Em 11,2% dos

casos não possuímos registro de madrinha ou eram registrados com

Nossa Senhora como madrinha.

Entre os casos onde livres eram escolhidos para apadrinharem

os escravos, temos um pequeno, porém importante número de casos

onde o próprio proprietário apadrinhava seu cativo. Este foi o caso de

Luiz, nascido em 23/11/1839, filho natural de Mariana, escrava de João

Marcelino de Souza e Bernardinha Roza. A senhora foi convidada a

batizar Luiz, junto do também homem livre Januário Martins203

. Ou o

caso de Innocencia, nascida no dia 02/11/1799, filha legítima de

Catharina e João, ambos escravos de Manoel da Cunha e Roza de

Souza. Manoel da Cunha foi também escolhido para apadrinhar, junto

com sua filha Roza Maria da Cunha, a crioula Innocencia que acabara

de nascer204

. Menos de 1% dos casos de batizados na Freguesia de São

203 AHESC. Livros de Registros de Batismo. Livro 2, 1839. 204 AHESC. Livros de Registros de Batismo. Livro 1, 1799.

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Miguel da Terra Firme possuíam os proprietários exercendo também o

papel de padrinho e protetor. Esses dados põem em cheque as

colocações de Henry Koster, que afirmou: “nunca ouvi falar de algum

senhor no Brasil ser também o padrinho, e nem acredito que isso ocorra;

pois a ligação entre duas pessoas que isso supostamente produz é tal que

o senhor nunca poderia pensar em mandar castigar o escravo”.205

Essa afirmação não corresponde à realidade de São Miguel, já

que mesmo em número pequeno conseguimos encontrar situações de

apadrinhamento entre senhores e seus cativos. Se isso causava alguma

espécie de contradição dentro do regime escravista, essa talvez fosse a

estratégia dos cativos para obter algumas regalias para suas crias, sendo

a aceitação dos senhores possivelmente uma maneira de negociação com

os cativos. Se as relações não menos conflitantes entre Igreja e

escravidão, casamento e escravidão, batismo e escravidão, podiam

coexistir, o batismo por parte do senhor do cativo era só mais um

conflito existente dentro da realidade escravista.

Se Koster não via a possibilidade deste tipo de apadrinhamento,

outros autores chegaram a colocar que as relações de compadrio podiam

ser utilizadas como forma de reforçar as relações de paternalismo e ligar

o cativo ao senhor não somente pelos laços da propriedade, mas também

pelos laços espirituais.206

Para ilustrarmos possibilidade de apadrinhamento utilizaremos

o mesmo caso da inocente Innocencia, filha legítima de Catharina e

João. Se seu padrinho era também seu proprietário, sua madrinha era a

filha de seu proprietário, fato que estreitava ainda mais as relações entre

esta família de cativos e a família de seus senhores. Este tipo de

apadrinhamento era um pouco mais comum que os casos entre senhores

e cativos, no entanto também não possuíam número representativo entre

os batizados.

Outro caso que precisa ser ressaltado era a possibilidade de um

dos padrinhos ser livre e o outro escravo. Fato não muito comum entre

os batismos na Freguesia de São Miguel, porém foi a escolha de Gracia

africana e Antônio crioulo, escravos de Antônio José de Oliveira, que ao

batizarem seu filho Adam em maio de 1800, escolheram para padrinhos

Raimundo da Silva, homem livre, e Maria, escrava do mesmo

proprietário dos pais.207

Porém este é um caso pontual nos dados desta

205 KOSTER, Henry. Travels in Brazil.Filadélfia, 1817. Volume II, p. 196. 206 KOSTER, Henry. Travels in Brazil.Filadélfia, 1817. Volume II, p. 196. 207 AHESC. Livros de Registros de Batismo. Livro 1, 1800.

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freguesia, na extrema maioria dos casos padrinho e madrinha possuíam

a mesma condição social.

Escolher um padrinho livre era uma esperança de que o orgulho

dos padrinhos fizesse com que estes não aceitassem que seus afilhados

permanecessem em cativeiro, e acabassem os auxiliando na busca pela

sua liberdade. No entanto é fato que nesta freguesia a escolha de um

padrinho livre mostrou uma alternativa interessante aos cativos, fosse

por garantir às crianças uma proteção maior frente ao mundo dos livres,

proporcionando um acesso maior a este mundo, e em alguns casos,

representava até mesmo uma possibilidade de alforria no futuro, fosse

por uma escolha entre as pessoas da região.

As relações sociais entre escravos e pessoas livres constituídas

por intermédio do compadrio podem ser entendidas como um meio de

garantir aliados e protetores. Acredito que essas situações tiveram peso

na escolha dos escravos em optar por um padrinho livre para os seus

rebentos, ainda que nesse empenho acabassem por reforçar a existência

e reprodução das já conhecidas hierarquias sociais.208

Talvez por conta disso temos que livres apadrinhavam cativos,

no entanto não foi possível encontrar o contrário: nesta freguesia

escravos não batizaram livres, os padrinhos eram pelo menos da mesma

condição social do apadrinhado, ou acima, nunca abaixo.

Porém, a pensar pelo equilíbrio existente entre os padrinhos e

madrinhas livres e escravos temos que outros fatores, que não a proteção

de alguém de uma categoria social superior à dos cativos, estivesse em

jogo. Perceberemos isto olhando atentamente para a família de Thereza

e Bonifácio. Para apadrinharem seus filhos, Joaquina e João, o casal

escolheu escravos do senhor Manoel Cardozo Vieira. Para apadrinhar

Joaquina, foram escolhidos Manoel e Cipriana. Já para apadrinhar João

foram escolhidos os escravos João e Vitorina. Já para apadrinhar o filho

do meio, Antônio, foi escolhido um casal de livres, Ludovino e Anna da

Silveira.

Assim como a escolha de padrinhos livres possuía seus

benefícios, escolher escravos para apadrinharem suas crias também

possuía suas razões. Escolher padrinhos cativos era uma maneira

encontrada de ampliar laços pessoais, que promoviam a consolidação de

famílias e comunidades negras. José Roberto Góes, ao pesquisar a

região de Inhaúma do Rio de Janeiro, concluiu que os laços de

208 MACHADO, Cacilda. Casamento & Compadrio: Estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR).

Comunicação apresentada no XIV Encontro da ABEP, Caxambu, setembro de 2004.

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compadrio uniam os escravos e que este era o costume da região. Estas

relações proporcionavam aos escravos novos meios de socialização, o

que conduzia a uma intensa rede de parentesco que formava uma

comunidade escrava.209

Se no quadro geral dos batismos temos um equilíbrio entre o

número de apadrinhamento de livres e escravos, se separarmos os

cativos batizados naquela freguesia por origem africana e crioula, vamos

perceber que os dados apontam para outro padrão. No caso dos

batizados de crioulos podemos perceber é um maior equilíbrio na

escolha dos padrinhos, com um leve destaque para os padrinhos e

madrinhas livres. Esse foi o caso de Ignez, escrava de Ventura Correia,

já citada anteriormente e que escolheu para apadrinhar seus filhos

homens e mulheres livres, provavelmente residentes de região próxima

de onde viviam.

Na maioria dos batismos de africanos, os padrinhos eram de

origem escrava, como no caso de Pedro Cabinda, escravo de Ventura de

Souza, batizado em 1813 e teve como padrinhos Francisco e Joanna,

escravos do mesmo proprietário. Ou o caso de Domingas Congo,

escrava de Francisco Leite e batizada em 1830, que teve como padrinhos

os escravos Francisco e Maria.

Os adultos chegados da África também passavam pelo ritual do

batismo, quisessem eles ou não. Visto isso, é possível analisar os dados

especificamente para o caso de africanos recém chegados. Se de um

modo geral encontramos um equilíbrio entre padrinhos livres e cativos,

entre os 381 casos de africanos batizados nesta freguesia, em 139 casos,

ou 36,5% os padrinhos eram escravos, em 11,5% os padrinhos eram

livres, em 2% eram forros e em 50% dos casos não há registro de

padrinhos. Entre os batizados em que temos acesso ao registro de

padrinhos podemos observar que há uma supremacia dos padrinhos

escravos, talvez porque estes ainda não tivessem criado relações com as

pessoas da região, ou mesmo porque esta fosse uma imposição dos

senhores que na hora do batizado desses cativos colocava outros cativos

de sua propriedade para apadrinhar aquele escravo recém adquirido por

ele. Fato é que esse tipo de apadrinhamento fornecia ao escravo recém

chegado alguns parentes, mesmo que fictícios, o que podia facilitar a

adaptação no local.

209 FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas. Famílias escravas e

tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1997.

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Através dos registros de batismo foi possível perceber o grande

número de casos de apadrinhamentos fora dos limites das propriedades.

Embora os casos de matrimônios oficiais entre pessoas de propriedades

diferentes fossem raros, os escravos conseguiam expandir seus laços

através das relações de compadrio.

Os escravos de São Miguel viviam em uma realidade onde

elementos da cultura e do catolicismo obrigavam os senhores a

reconhecerem-nos como humanos, providos de relações familiares e de

parentesco. A luta entre o regime escravista e a realidade guiada pelos

costumes e tradições resultou em uma série de concessões que

permitiram ao escravo ter sua própria vida, burlando os limites que sua

condição social lhe impunha, amenizando as dificuldades do sistema,

tendo estas conquistas representado um importante significado em suas

vidas.

Aliás, esta possibilidade de formar famílias e as relações de

compadrio estipuladas entre eles podem ser vistos como formas de

incentivo, visto que eram concessões feitas pelos senhores e que podiam

servir como forma de negociação para obter entre seus trabalhadores um

melhor aproveitamento do trabalho, ou mesmo bom comportamento.

Estas concessões como forma de incentivo estariam incluídas

naquilo que Schwartz denominou de “segredos internos”, título de sua

obra que veio para demonstrar que o sistema escravista funcionou por

tanto tempo porque oferecia um espaço não apenas de punições, mas

também de negociação entre senhores e escravos, onde melhores

condições de vida para os cativos em troca de bons serviços podiam ser

negociadas entre as partes.210

4.4 Incorporação dos libertos ao sistema escravista

Conforme já foi colocado anteriormente, os cativos possuíam

uma margem de negociação com seus senhores, contrariando as

colocações dos autores que até a década de 1970 interpretavam a

escravidão como um sistema onde a coisificação do escravo fazia com

que este só se tornasse “senhor do seu destino” quando estivesse em

conflito com seu senhor. No entanto, para esta região não temos

nenhuma grande revolta, na verdade, com exceção para os registros de

fugas que podem ser encontrados em alguns jornais, o que temos entre

senhores e cativos é uma negociação diária, que misturada às punições

210 SCHWARTZ, S. Segredos Internos. Cia das Letras, 1988.

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tradicionais, fizeram com que o sistema escravista de reproduzisse por

um bom tempo.

Dentro destas negociações entre senhores e escravos,

destacamos anteriormente a possibilidade da formação de famílias e

suas dificuldades. Destacamos também, no capítulo dois, a possibilidade

de residir em uma senzala oferecida aos casados. Havia ainda outra

possibilidade de “recompensa” por bom trabalho ou comportamento que

era oferecida aos escravos, que era a possibilidade da conquista da

liberdade.

O acesso à liberdade não era propriamente uma miragem para

os cativos, já que no Brasil o número de escravos que alcançavam esse

status era recorrente, seja através da conquista da liberdade por bom

comportamento, ou como acontecia mais frequentemente, através da

compra de sua alforria. No entanto, em São Miguel, o número de

libertos era pequeno. No ano de 1814, menos de 1% da população era de

libertos, todos do sexo masculino211

. Se olharmos para os registros de

batismos, o número de pessoas declaradas como libertas, veremos que

os números não são propriamente expressivos (4% entre padrinhos; 5%

entre madrinhas), no entanto em uma localidade como a de São Miguel,

as situações de alforria podem ter causado um incentivo positivo aos

cativos da região.

A carta de alforria era um dispositivo legal que registrava a

concessão de liberdade ao escravo. Os escravos, assim que libertos

precisavam procurar uma ocupação, fosse ela cultivar um pedaço de

terra na propriedade de seu antigo senhor, fosse tentando entrar em outro

mercado de trabalho, como o comércio. Em São Miguel, assim como

boa parte da população local, os libertos se dedicavam à agricultura ou à

pesca, fosse trabalhando junto ao seu antigo senhor, ou dispondo de

outras terras onde pudessem cultivar seus produtos.

Um dos bons exemplos encontrados para ilustrar essa

possibilidade de alforria entre os cativos da região é o caso de Manoel

Ignácio Amorim, preto forro, que era casado com Porcina Rosa, também

preta e forra. O inventário de Manoel data de 1842. Nesta época,

Manoel e Porcina possuíam oito filhos: Angélica, casada com Florentino

Cardozo; Floriana Roza, 24 anos; Manoel Ignácio, 21; Arcemo, 15;

211Ofício de D. Luís Maurício da Silveira ao marquês de Aguiar, remetendo mapas com dados

estatísticos sobre a economia e população da capitania, bem como o movimento de

embarcações no ano de 1814. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. I-31,29,18 no. 6.

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Francisco 13; Maria, 8; João, 7 e Justino de 5 anos. Além disso

possuíam um neto, chamado Benigno, que com seis anos era filho de

Severina Roza, filha já falecida. No inventário não há identificação se

estes eram libertos, ou se já haviam nascido livres, no entanto é fato de

que estes não eram escravos.

Entre os registros de batismos não foi possível identificar o

momento quando estes conseguiram conquistar sua liberdade, visto que

o único registro que temos é o do nascimento de Maria, no ano de 1834,

onde esta já foi registrada como livre.212

Através do inventário foi possível perceber que além de sua

alforria, Manoel e Porcina conseguiram acumular alguns bens ao longo

de suas vidas. O casal possuía um conjunto de terras nos fundos de

Biguaçu, que foram avaliadas em 212$000 no momento do inventário.

O casal contava ainda com ferramentas de trabalho, canoas, uma casa de

engenho de farinha, uma junta de vacas e uma novilha. Além destes

bens, outra propriedade merece destaque: a presença de um escravo,

africano, de nome José Cassange, avaliado em 300$000213

.

Mesmo que a maioria dos forros desta freguesia não tenha

chegado a atingir o status de senhores de escravos, o fato de este casal

ter alcançado este status mostra que essa era uma possibilidade viável

naquela sociedade, como em outras partes do Brasil.

O fato de ex-escravos, após a conquista de sua alforria,

trabalharem para construírem suas vidas e logo que possível adquirirem

algum cativo para trabalharem para si reforça a presença da hierarquia

social escravista, demonstrando que era viável o acesso ao mercado de

africanos por parte de pequenos proprietários, e até mesmo, como nesse

caso, de libertos.

A presença de proprietários de escravos entre os forros revela

que ao passar os anos muitos operaram dentro da lógica da hierarquia,

contudo, não deixa de revelar as evidências de liberdade. Além disso, a

presença de proprietários forros demonstra uma possibilidade de

mobilidade social, no sentido vertical, entre os cativos. Demonstra ainda

que as possibilidades de negociação extrapolaram os limites da

propriedade senhorial, alcançando questões ainda maiores que colocam

em cheque a visão mais tradicional da escravidão que coloca o cativo

212 AHESC. Livros de Registros de Batismo. Livro 1 e 2 – 1798-1838 – 1824-1856. Inventário

post-mortem de Manoel Ignácio Amorim, da Freguesia de São Miguel da Terra Firme, 1842.

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como um bem passível de punições e demais agruras do cativeiro, sem

possibilidades de romper com o sistema.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O quadro apresentado da Freguesia de São Miguel da Terra

Firme entre o fim do século XVIII e a primeira metade do XIX mostra

que sua ocupação e seu desenvolvimento econômico estiveram

associados à atividade da pesca das baleias inicialmente e em seguida

com a produção e comercialização de gêneros alimentícios, em

particular a farinha de mandioca. Estas atividades garantiram a inserção

da região às redes comerciais do império português e mais tarde da

economia nacional.

É preciso reiterar que as atividades econômicas voltadas ao

abastecimento interno e integradas ao circuito comercial do centro-sul

do Brasil não podem mais ser caracterizadas como “periféricas” e menos

importantes do que as atividades voltadas à exportação nas regiões de

plantation. A historiografia atual demonstra como estavam integradas. O

próprio funcionamento da Armação da Piedade dá exemplo de como

uma unidade produtiva de grande escala estava integrada às produções

locais de alimentos, indispensáveis para o seu funcionamento.

A pesquisa realizada para essa dissertação explorou em detalhe

a utilização de mão de obra escravizada tanto na Armação da Piedade,

quanto na produção de farinha de mandioca. Mesmo que em proporções

diferenciadas, visto que no primeiro caso temos a incidência de um

grande plantel, os escravos eram fundamentais para o funcionamento

das unidades produtivas e significavam, para seus proprietários, a

diferença entre a subsistência ou a acumulação de renda.

Os inventários post mortem mostram que durante a primeira

metade do século XIXos escravos foram diminuindo em importância nas

fortunas dos residentes locais. Se até 1850, mais de 80% dos

inventariados possuíam cativos, após 1850 apenas 50% dos inventários

apresentam cativos entre os bens listados. Isso demonstra que as leis de

repressão ao tráfico de escravos de 1831 e 1850 trouxeram

conseqüências para as propriedades agrícolas de São Miguel da Terra

Firme.

A formação de famílias escravas, com a expansão dos laços

familiares dadas principalmente pelas relações de compadrio, foram

comuns na freguesia, abrindo as portas para a possibilidade de um

crescimento vegetativo entre a população escrava local e a construção de

redes de solidariedade entre os cativos. Outro tema bem discutido e que

nos ajuda a enquadrar São Miguel no que Stuart Schwartz tão bem

denominou “segredos internos” de uma propriedade escravista foi a

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percepção da incidência de casos de conquista de liberdade, onde os

agora libertos conseguiram tornar-se também senhores de seus escravos.

Famílias estas que seriam uma forma social e cultural de proporcionar

consolo e apoio no sistema de exploração hostil em que estavam

inseridos.

De modo geral, o que se pode perceber é que a Freguesia de São

Miguel da Terra Firme escravo era determinante nesta sociedade e que

sua participação era fundamental no processo de acumulação de riqueza

das diferentes camadas da sociedade naquela localidade. O acesso ou

não a este tipo de mão de obra se mostra determinante para a colocação

social daqueles indivíduos. Estes cativos contribuíram para a formação e

crescimento de pequenas fortunas locais que contribuíram para o

desenvolvimento da localidade estudada.

Pensando na Freguesia de São Miguel dentro de um contexto

mais amplo, o que podemos colocar é que esta Freguesia esteve inserida

em um contexto maior onde a produção de gêneros destinados ao

mercado interno, mesmo que não fosse caracterizada por grandes

produções em latifúndios, com plantéis escravos de grande porte,

utilizou de escravos como forma de impulsionar a economia local,

colocando São Miguel dentro do sistema de circulação de mercadorias

voltadas ao abastecimento interno.

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