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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO RACHEL CARDOSO PILATI DIREITO PENAL DO INIMIGO E POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL: DISCUSSÃO DE MODELOS ALTERNATIVOS Florianópolis 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

RACHEL CARDOSO PILATI

DIREITO PENAL DO INIMIGO E POLÍTICA CRIMINAL DE

DROGAS NO BRASIL: DISCUSSÃO DE MODELOS

ALTERNATIVOS

Florianópolis 2011

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RACHEL CARDOSO PILATI

DIREITO PENAL DO INIMIGO E POLÍTICA CRIMINAL DE

DROGAS NO BRASIL: DISCUSSÃO DE MODELOS

ALTERNATIVOS

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Estado e Sociedade. Orientador: Lédio Rosa de Andrade

Florianópolis

2011

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RACHEL CARDOSO PILATI

DIREITO PENAL DO INIMIGO E POLÍTICA CRIMINAL DE

DROGAS NO BRASIL: DISCUSSÃO DE MODELOS

ALTERNATIVOS

Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de Mestre em Direito e aprovada em sua forma final pela coordenação do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Direito, Estado e Sociedade.

Banca Examinadora:

Presidente: Professor Doutor Lédio Rosa de Andrade(UFSC)

Membro: Professor Doutor Alexandre Morais da Rosa (UFSC)

Membro: Professora Doutora Alice Bianchini (UNISUL)

Coordenador: Professor Doutor Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)

Florianópolis, março de 2011.

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AGRADECIMENTOS Agradeço a todos aqueles que contribuíram para a realização desta Dissertação de Mestrado. Ao meu Orientador, Professor Doutor Lédio Rosa de Andrade, pela brilhante e irretocável orientação, sem a qual este trabalho não seria possível. Aos Professores do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, pelos conhecimentos adquiridos, fundamentais para elaboração deste trabalho. E, finalmente, à minha família e meus amigos de sempre, pelo apoio, carinho e incentivo.

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RESUMO A presente Dissertação de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina tem como tema: “Direito penal do inimigo de Günther Jakobs e a transnacionalização da figura do traficante como inimigo, perante a política criminal de drogas”; e como título: “Direito penal do inimigo e política criminal de drogas no Brasil: discussão de modelos alternativos”. O objetivo do trabalho é discutir modelos alternativos à política criminal de guerra às drogas e ao estereótipo traficante-inimigo. Para tanto, utiliza-se o método hipotético dedutivo, elegendo-se uma hipótese viável, comprovada mediante a pesquisa bibliográfica. O relato é apresentado em três capítulos: o primeiro descreve e situa a teoria do Direito Penal do Inimigo de Gunther Jakobs, e bem assim, os fundamentos da crítica de Eugenio Raúl Zaffaroni. O segundo capítulo ocupa-se com a transnacionalização da política criminal antidrogas, e a figura do traficante como inimigo, para América Latina e Brasil. O terceiro discute modelos alternativos à política criminal de drogas e do traficante/inimigo no Brasil. A conclusão é de que existem alternativas viáveis ao modelo eficientista atual. Palavras-chave: Direito penal do inimigo – Günther Jakobs – Eficientismo – Política criminal de drogas – Modelos alternativos.

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ABSTRACT The theme of this Master’s Degree Thesis of the Post-Graduation Course in Law of the Federal University of Santa Catarina is “Gunther Jakobs’ theory of criminal law of the enemy and the supranationalization of the drug trafficker as an enemy, concerning the criminal policy of drugs”. Its title is “Criminal Law of the Enemy and the Criminal Policy of War on Drugs in Brazil: a discussion of alternative methods.” This study aims at discussing alternative models to the criminal policy of war on drugs and to the stereotype of the drug trafficker-enemy. In order to accomplish that, it is used the deductive hypothetical method, where a feasible hypothesis is elected, and proved due to the literature review. It is presented in three chapters. The first chapter describes and establishes Gunther Jakob’s theory of criminal law of the enemy, as well as the basis of Eugenio Raul Zaffaroni’s critics. The second chapter encompasses supranationalization of anti-drugs criminal policy, and the drug trafficker as enemy, for Latin America and Brazil. Finally, the last chapter discusses alternative methods to the drug criminal policy and to the drug trafficker/enemy in Brazil. The conclusion is that there are feasible alternatives to the recent efficientist model. Key words: Criminal Law of the Enemy - Günther Jakobs – Efficientism – Drug Criminal Policy – Alternative Methods

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................... 15

I – DIREITO PENAL DO INIMIGO DE GUNTHER JAKOBS: CONTEXTO, TEORIA E IDENTIFICAÇÃO DO INIMIGO ....... 19

1.1 O Direito Penal do inimigo no contexto da deslegitimação do sistema penal e da política criminal eficientista ............................... 21

1.2 Teoria do Direito Penal do inimigo de Gunther Jakobs ............. 32

1.3 Identificação dos inimigos de Jakobs ......................................... 43

II – A TRANSNACIONALIZAÇÃO DO CONTROLE PENAL DE DROGAS E DA FIGURA DO TRAFICANTE COMO INIMIGO INTERNO PARA AMÉRICA LATINA E BRASIL. ... 53

2.1 A transnacionalização do controle penal de drogas para a América Latina ................................................................................ 55

2.2 O impacto da transnacionalização no Brasil: a mudança na legislação penal sobre drogas. .......................................................... 74

2.3 A militarização da repressão às drogas no Brasil e sua contribuição para formação do estereótipo do traficante-inimigo ... 86

2.4 As principais consequências da transnacionalização do controle penal de drogas e do traficante-inimigo para o Brasil e o fracasso desta política criminal ........................................................ 93

III – MODELOS ALTERNATIVOS À POLÍTICA CRIMINAL DE GUERRA ÀS DROGAS (DESCRIMINALIZAÇÃO E LEGALIZAÇÃO): DISCUSSÃO .................................................... 105

3.1 Modelos abolicionistas e minimalistas e estratégias de descriminalização (em geral) ......................................................... 105

3.2 Espécies de descriminalização e de legalização (em particular) ....................................................................................... 121

3.3 Discussão das alternativas à política de guerra às drogas e ao estereótipo traficante-inimigo (no específico) ............................... 135

CONCLUSÃO ................................................................................... 147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................ 155

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação é resultado de pesquisas realizadas no Curso de Mestrado da Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação do Prof. Dr. Lédio Rosa de Andrade, e tem como título “Direito penal do inimigo e política criminal de guerra às drogas no Brasil: discussão de modelos alternativos”.

O tema é “Direito penal do inimigo de Günther Jakobs e a transnacionalização da figura do traficante como inimigo, perante a política criminal de drogas”. Foi escolhido no contexto amplo da política criminal, em face de se verificar a tendência atual de expansão do poder punitivo. De fato, as retóricas de guerra (às drogas, ao terrorismo, às nacionalidades) fortaleceram-se, assim como a construção de conceitos como o de “inimigos da sociedade”.

A proposta de Gunther Jakobs – o chamado “Direito Penal do Inimigo” -, realizada no marco dos países centrais, é a teorização máxima desse eficientismo no plano dogmático. O penalista alemão sugere o corte de direitos e garantias para alguns indivíduos, considerados “inimigos” perigosos. Esta diferenciação dar-se-ia, destaca Zaffaroni, em um “compartimento estanque” do direito penal, de modo que todo o resto continuaria funcionando dentro dos princípios do direito penal liberal.

A teoria de Jakobs está direcionada, indiscutivelmente, aos inimigos contemporâneos dos países centrais: os inimigos externos, que seriam personificados na figura do traficante, do terrorista, do imigrante. No caso da América Latina e do Brasil, não se pode afirmar que a situação do poder punitivo reproduza Direito Penal do Inimigo. O contexto brasileiro é diferente. Nunca chegou a existir, no Brasil, um verdadeiro direito penal de garantias, dentro do paradigma liberal garantista, ou seja, um “direito penal do cidadão”. Pelo contrário, o campo penal brasileiro sempre foi marcado pela desigualdade, pela seletividade, pela exceção permanente, pelo genocídio; portanto, a situação aqui é muito mais grave.

Os “inimigos” dos países centrais não se confundem com os “inimigos” brasileiros; mas com a transnacionalização da política criminal de guerra às drogas na América Latina, a figura do traficante como inimigo foi introduzida no Brasil. Isso gerou consequências

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negativas nos países periféricos, que preocupam os estudiosos da área, e despertaram o interesse da autora desta Dissertação.

O objetivo geral do trabalho é discutir modelos alternativos à política criminal de guerra às drogas que se utiliza do estereótipo traficante-inimigo. A hipótese é que a transnacionalização desse controle proibicionista de drogas e da construção ideológica do traficante-inimigo produziu efeitos negativos no Brasil, mas que, entretanto, existem outros modelos mais brandos, que respeitam os direitos humanos e que não se utilizam daquele estereótipo.

Ao longo do trabalho, são feitos esclarecimentos sobre a comparação entre a política criminal de drogas no Brasil e o Direito Penal do inimigo de Jakobs. Costuma-se afirmar, por exemplo, que a guerra ao tráfico no Brasil reproduziria o Direito Penal do inimigo. Este trabalho, portanto, visa a mostrar o contexto em que a proposta do penalista alemão foi feita, realizando as reservas com relação ao caso brasileiro.

O marco teórico parte da crítica de Eugenio Raúl Zaffaroni à proposta de Gunther Jakobs na obra: “O inimigo no direito penal”. Orienta-se também pelo estudo de Rosa Del Olmo sobre a questão das drogas em: “A face oculta da droga”; e pelas contribuições de Salo de Carvalho em: “A política criminal de drogas no Brasil”.

Zaffaroni desmitifica o hostis de Jakobs; situa o Direito Penal do inimigo como teoria dos países centrais; e aponta os perigos que ela representa para o Estado Democrático de Direito. Del Olmo desnuda a questão das drogas como problema econômico transnacional, reconstruindo passo a passo a exportação de uma política criminal de drogas eficientista coordenada pelo capitalismo central. Salo de Carvalho, por sua vez, faz amplo estudo crítico, criminológico e dogmático, sobre a política criminal de drogas no Brasil.

O método utilizado é o hipotético dedutivo. Elegeu-se uma hipótese viável – acima descrita – que poderá ou não ser comprovada mediante a pesquisa bibliográfica.1 A teoria de base é desenvolvida no primeiro capítulo da Dissertação, e complementada no segundo. Em seguida, desenvolve-se a crítica à teoria para, no terceiro capítulo, realizar-se a discussão dos modelos alternativos.

O referido método hipotético dedutivo foi criado por Karl Popper2, crítico radical do método indutivo, que é adotado na maioria 1 MONTEIRO, Claudia; MEZZAROBA, Orides. Manual de metodologia na pesquisa do direito. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 68-70. 2 POPPER, Karl. El conocimiento objetivo. Madrid: Technos, 1983.

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das investigações científicas. Segundo o autor, as teorias científicas apresentam soluções temporárias para situações problemáticas. Nenhuma teoria é acabada ou irrefutável; existe sempre a possibilidade de uma nova teoria abordar o problema de forma diferente.

As teorias científicas seriam, na verdade, enunciados hipotéticos que elaboram respostas meramente provisórias para quadros problemáticos, podendo ser corroboradas ou refutadas por outras teorias. Nas palavras de Popper3:

(…) nunca podemos justificar racionalmente uma teoria, isto é, a pretensão de que conhecemos a sua verdade, mas, se tivermos sorte, podemos justificar racionalmente a preferência provisória por uma teoria sobre todo um conjunto de teorias rivais. (...) Ainda que não possamos justificar a pretensão de que uma teoria seja verdadeira, podemos justificar que tudo parece indicar que a teoria constitui uma aproximação da verdade maior do que qualquer das teorias rivais propostas até o momento.

Portanto, segundo Popper, a ciência não pode chegar à verdade absoluta, mas aproximar-se de probabilidades. E a discussão do tema desta dissertação, com a contribuição das teorias acima indicadas e desenvolvidas, não pode ter outra pretensão que não ampliar o espectro das respostas para um problema de tamanha complexidade como a política criminal de drogas no Brasil.

O relato da pesquisa é apresentado em três capítulos. O primeiro procura situar a teoria do Direito Penal do Inimigo no contexto de deslegitimação do sistema penal e da política criminal eficientista nos países centrais. A partir disso, lançar os fundamentos da crítica pontual de Eugenio Raúl Zaffaroni à teoria de Jakobs. Cumpre apontar, por fim, quem são os inimigos que Jakobs busca combater.

O segundo capítulo pretende mostrar como a política criminal antidrogas, e a figura do traficante como inimigo, foram implantadas na América Latina e no Brasil, através de um processo de transnacionalização do controle penal. Busca analisar como as orientações político-criminais dos países centrais influenciaram as mudanças legislativas brasileiras em matéria de drogas. Procura

3 POPPER, Karl. El conocimiento objetivo. p. 83-84.

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demonstrar, ainda, como a Doutrina da Segurança Nacional, difundida no Brasil na época da ditadura militar, contribuiu para a militarização da política criminal de drogas e para a conformação do estereótipo do traficante como inimigo interno.

No terceiro capítulo, discutem-se modelos alternativos à política criminal de drogas e do traficante/inimigo no Brasil. Inicialmente, são apresentadas vertentes político-criminais minimalistas e abolicionistas e suas estratégias de descriminalização. Em seguida, propõe-se uma classificação dos diferentes tipos de descriminalização e de legalização. Discutem-se, enfim, os modelos de descriminalização/legalização dos crimes relacionados a drogas propostos por criminólogos críticos como Alessandro Baratta, Maria Lucia Karam, Salo de Carvalho, entre outros.

As categorias e os conceitos estratégicos serão apresentados no decorrer da exposição. Deve ser destacado, também, que o assunto é complexo e polêmico, sabendo, o pesquisador, que ninguém pode ter a pretensão de esgotar a matéria, e muito menos apresentar propostas definitivas ou acabadas.

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Capítulo I – Direito Penal do Inimigo de Gunther Jakobs: contexto, teoria e identificação do inimigo

A política criminal atualmente tende à expansão do poder

punitivo. Verifica-se uma rápida passagem de modelos abolicionistas e reducionistas aos eficientistas, que defendem o alargamento do sistema penal.

Desde a década de oitenta do século XX, esse fenômeno é claro. O discurso político criminal predominante defende o recrudescimento das legislações penais: o corte de direitos e garantias, o aumento das prisões cautelares, enfim, o incremento do aparato policial, judiciário e penitenciário, como forma principal de combater o crime e a violência.

De fato, o sistema penal deslegitimado pelas teorias revisionistas da década de sessenta principalmente, optou por políticas criminais eficientistas relegitimadoras, expandindo sua atuação punitiva sob influência do modelo norte-americano e seus movimentos de “lei e ordem”. Com o alargamento do poder punitivo, as retóricas de guerra (às drogas, ao terrorismo, às nacionalidades) ganharam força e os “inimigos” da sociedade foram redescobertos.

O primeiro tópico deste capítulo situa a teoria do Direito Penal do inimigo, do penalista alemão Gunther Jakobs, no contexto da política criminal eficientista dos países centrais. A desconstrução realizada pelas teorias revisionistas na década de sessenta do século XX, que culminou na transição para o paradigma criminológico da reação social, resultou na deslegitimação do sistema penal. Parece claro que ele não cumpre a promessa de tutelar os bens jurídicos e combater o crime, limitando-se à função velada de criminalizar seletivamente e reproduzir as desigualdades sociais.4

O eficientismo, deste modo, veio negar a deslegitimação do sistema penal5 e sua crise estrutural, afirmando que ele estaria passando por uma “crise de eficiência”, atribuindo seu insucesso a problemas de operacionalização. A solução para o crime seria aumentar a repressão: o

4 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos Abolicionismos e Eficientismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina. v.12, n.19, p. 480, 2006.

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recrudescimento das penas, a multiplicação das leis penais, o aumento das prisões, da ação policial, do judiciário. O resultado é a relegitimação do sistema fracassado.

Dentro desse quadro, o Direito Penal do inimigo de Jakobs apresenta-se como teorização máxima do eficientismo no plano dogmático. A proposta é a supressão de direitos e garantia de alguns indivíduos, autores de crimes graves, marcados por sua “periculosidade” e por isso considerados “não-pessoas”, inimigos. Trata-se de uma resposta repressiva, reacionária e simbólica para um problema estrutural.

No segundo tópico, o capítulo aborda a teoria do Direito Penal do inimigo explicando seu conteúdo e fundamentos. Mostra, ainda, as críticas combativas feitas a ela pelo criminólogo argentino Eugenio Raúl Zaffaroni.

De acordo com Zaffaroni, o discurso do inimigo não é novidade: no direito romano já existia a figura do hostis (inimigo político). Além disso, os discursos criminológicos sempre legitimaram o tratamento diferenciado, e o conceito de inimigo é incompatível com o Estado de Direito.

Zaffaroni esclarece que a situação atual da América Latina é muito mais grave que aquela que Jakobs busca conter com sua teoria. Neste continente, a seleção do inimigo se dá pelos processos de criminalização da pobreza e sua contenção é feita através de prisões cautelares em massa.

No terceiro tópico deste capítulo, será explicado que o Direito Penal do inimigo foi proposto para combater os inimigos externos dos países centrais, personificados na figura do traficante, do terrorista e do imigrante.

A princípio, estes inimigos externos não se confundem com o hostis brasileiro. Todavia, a inserção da política criminal de guerra às drogas e ao traficante na América Latina, realizada através do processo de transnacionalização do controle penal coordenado pelo capitalismo central, provocou mudança no repertório de inimigos brasileiros, como se verá. 5 Adotamos como conceito de sistema penal aquele dado por PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 65: “Chamamos ‘sistema penal’ ao controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação.”

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1.1 O Direito Penal do inimigo no contexto da deslegitimação do sistema penal e da política criminal eficientista

O moderno sistema penal foi construído entre os séculos XVIII e

XIX, nas sociedades ocidentais. A partir da década de sessenta do século XX, ele foi objeto de desconstrução e deslegitimação por uma série de correntes teóricas. Embora vários fatores tenham contribuído para tal deslegitimação, parece pacífico que a crise no campo penal foi impulsionada, principalmente, por essa desconstrução teórica, que resultou na transição para o paradigma criminológico da reação social.

É evidente que a desconstrução no campo penal não se deu de modo isolado. Está inserida no contexto histórico de crise do Estado de Bem-Estar, nos anos setenta, propiciada pela revolução política e cultural dos anos sessenta, que culminou no questionamento do enquadramento penal-previdenciário.6 Ademais, como observa Zaffaroni, a deslegitimação do sistema penal não ocorreu de forma repentina. Foi resultado “de um longo processo de revelação de dados reais” e do “empobrecimento filosófico dos discursos jurídicos penais.” 7

De acordo com Vera Regina Pereira de Andrade8, podem ser individualizadas duas dimensões dos movimentos desestruturadores do moderno sistema penal: aquela a) “consubstanciada pela crítica historiográfica, sociológica e criminológica do moderno sistema penal”; b) “das Políticas Criminais alternativas e dos movimentos de reforma”.

Dentro da primeira dimensão estariam as desconstruções marxista, foucauldiana, interacionista do labeling approach

9, abolicionista e feminista. Na segunda dimensão, estariam os movimentos de política-criminal abolicionistas, minimalistas e que reivindicam um Direito Penal mínimo.10

6 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria/Editora do Advogado, 1997. p. 182. 7 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução de: Vânia Romano Pedrosa & Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 45 8 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 183. 9 A teoria do labeling approach – que será melhor explicada a seguir – demonstrou que o crime e a criminalidade não são dados ontológicos formados anteriormente à reação social: são construídos por processos oficiais e não oficiais de seleção. 10 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 183.

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Segundo Andrade, a história oficial do moderno sistema penal parte de uma “visão linear e idealista da história”, entendendo-a como “uma evolução progressiva da ‘barbárie’ ao ‘humanismo’”. As histórias revisionistas, de viés materialista-marxista 11, por exemplo, vêm recontar a história oficial “da ótica do poder, do controle e da dominação”. 12

As desconstruções referidas resultaram na superação do controle penal moderno, o qual se reconfigurou. De fato, os movimentos desestruturadores opuseram-se a quatro “submodelos” do controle penal moderno: “1) opostos ao Estado; 2) opostos à categorização/profissinalização; 3) opostos à instituição segregadora e 4) opostos à mente.” 13

Embora diferentes contribuições teóricas tenham impelido a deslegitimação do sistema penal, os criminólogos críticos são unânimes em reconhecer a importância do labeling approuch como teoria-núcleo do processo desestruturador.

Isto porque o labeling approuch apresentou as teses mais perturbadoras ao sistema penal moderno, desencadeando a transição do paradigma etiológico de criminologia para o paradigma da reação social.14

Como observa Zaffaroni:

(...) as investigações interacionistas e fenomenológicas constituem o golpe deslegitimador mais forte recebido pelo exercício de poder do sistema penal, do qual o discurso

No âmbito da América Latina, ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 68/69 destaca, como contribuições teóricas deslegitimantes mais significativas, a da criminologia da reação social (vertentes fenomenológicas e marxistas), de Michel Foucault (e sua “microfísica do poder”) e da criminologia da economia dependente. 11 Segundo ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 191, a revisão de caráter materialista conta com autores como Rusche e Kircheimer, Foucault e Melossi e Pavarini. Estes possuem indicações epistemológicas em comum: a) O sistema penal é parte do sistema social; b) A reforma iluminista e reforma do sistema penal resultam das transformações do sistema social; c) “O desenvolvimento histórico e a situação presente da prisão e do sistema penal só podem ser compreendidos em relação à fundação do sistema e da unidade do Direito, isto é, entre a programação normativa e sua aplicação.” 12 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 190. 13 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 185. 14 É importante destacar que a transição do paradigma etiológico para o da reação social deu-se apenas no âmbito teórico. Na realidade, o senso comum continua reproduzindo o modelo etiológico.

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jurídico penal não mais poderá recuperar-se, a não ser fechando-se hermeticamente a qualquer dado de realidade, por menor que seja, isto é, estruturando-se como um delírio social.

No paradigma etiológico, a criminologia é vista como ciência

(conforme a epistemologia positivista) que estuda o criminoso e as causas da criminalidade. Privilegia o enfoque bioantropológico e fatores sociológicos, colocando o crime como “dado ontológico preconstituído à reação social e ao direito penal.” 15

De acordo com Vera Regina Pereira de Andrade:

Na base deste paradigma, a Criminologia (por isso mesmo positivista) é definida como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade; ou seja, que tendo por objeto a criminalidade concebida como um fenômeno natural, causalmente determinado, assume a tarefa de explicar as suas causas segundo o método científico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais oficiais e de prever os remédios para combatê-la. Ela indaga, fundamentalmente, o que o homem (criminoso) faz e por que o faz. 16

Tal paradigma, o etiológico, sustenta um sistema penal baseado

na ideologia da defesa social. Segundo Alessandro Baratta, o conteúdo desta ideologia pode ser resumido como o conjunto dos princípios: da legitimidade, do bem e do mal, da culpabilidade, da finalidade ou da prevenção, da igualdade, do interesse social e do delito natural.17 15 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 40. 16ANDRADE, Vera Regina Pereira. Sistema penal máximo X Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003. p. 35. 17 Segundo BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal, p 42: a) Princípio da legitimidade: “O Estado, como expressão da sociedade, está legitimado para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos, por meio das instâncias de controle social (legislação, polícia, magistratura, instituições penitenciárias)”. b) Princípio do bem e do mal: O desvio criminal é, pois, o mal; a sociedade constituída, o bem”. c) Princípio da culpabilidade: “O delito é expressão de uma atitude interior reprovável, porque contrária aos valores e às normas presentes na sociedade”. d) Princípio da finalidade ou da prevenção: A pena tem como função não só retribuir, mas também prevenir o crime. A sanção prevista pela tem finalidade de “contramotivação” ao comportamento criminoso. e) Princípio de igualdade: “A lei penal é igual para todos”. A reação penal se dá da mesma forma para todos os autores de delitos. f) Princípio do interesse social e do delito natural: “Os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos”.

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Em sua obra “Criminologia crítica e crítica do direito penal”, Baratta apresenta as teorias sociológicas da criminalidade surgidas nos Estados Unidos e Europa, desde os anos trinta do século XX, que confrontaram o conjunto de princípios da ideologia da defesa social: as teorias psicanalíticas da criminalidade e da sociedade punitiva teriam negado o “princípio da legitimidade”; a teoria estrutural funcionalista do desvio e da anomia, teria negado o “princípio do bem e do mal”; a teoria das subculturas criminais, o princípio da culpabilidade; o labeling

approuch (ou enfoque da reação social) teria negado o princípio da igualdade; as teorias do conflito, com base no labeling, teriam questionado o princípio do interesse social e do delito natural; e as várias investigações sobre a efetividade dos fins da pena teriam desmitificado o princípio do fim ou da prevenção.

Baratta ressalta a importância do labeling, afirmando que:

O que distingue a criminologia tradicional da nova sociologia criminal é visto, pelos representantes da teoria do labeling approach, principalmente, na consciência crítica que a nova concepção traz consigo, em face da definição do próprio objeto de investigação criminológica e em face do problema gnosiológico e de sociologia do conhecimento que está ligado a este objeto (a ‘criminalidade’, o ‘criminoso’), quando não o consideramos como um simples ponto de partida, uma entidade natural para explicar, mas como uma realidade social que não se coloca como preconstituída à experiência cognoscitiva e prática, mas é construída dentro desta experiência, mediante os processos de interação que a caracterizam.

A teoria do labelling approuch (ou teoria do etiquetamento, da

rotulação, do interacionismo simbólico) surgiu entre os anos cinqüenta e sessenta do século XX nos Estados Unidos, tendo como principais teóricos Howard Becker, Edwin Lemert e Edwin Schur, Kitsuse, Sack, Garfinkel, Scheff, McHugh, Cicourel, entre outros.

Ademais, está situada dentro de duas correntes da sociologia americana: o “interacionismo simbólico” (influenciado pela psicologia social e a sociolinguística de George H. Mead) e a “etnometodologia” (originada da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz). Não obstante, outros estudos influenciaram a teoria, como os da sociologia

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criminal no campo da criminalidade do colarinho branco e da revelação da “cifra negra”.18

O labeling desconstruiu epistemologicamente o paradigma etiológico ao demonstrar que o crime e a criminalidade não são dados ontológicos formados anteriormente à reação social, mas sim construídos por processos oficiais e não oficiais de seleção.

Andrade aponta que a tese central do labeling é:

(...) a de que o desvio - e a criminalidade – não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica pré-constituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e seleção. Uma conduta não é criminal ‘em si’ ou ‘per si’ (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por traços concretos de sua personalidade (patologia). O caráter criminoso de uma conduta e a atribuição de criminoso a seu autor depende de certos processos sociais de ‘definição’, que atribuem a mesma um caráter, e de ‘seleção’, que etiquetam um autor como delinquente.19

Ademais, o labeling estuda o problema da definição da

criminalidade em três planos diferentes. Como aduz Andrade:

(…) a) um nível orientado para a investigação do impacto da atribuição do status de criminoso na identidade do desviante (é o que se define como ‘desvio secundário’); b) um nível orientado para a investigação do processo de atribuição do status de criminoso (processo de seleção ou ‘criminalização secundária’); e c) um nível orientado para investigação do processo de definição da conduta desviada (ou ‘criminalização primária’) que conduz, por sua vez, ao problema da distribuição do poder social desta definição,

18 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal p. 87-89 e 101-103. 19ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 205.

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isto é, para o estudo de quem detém, em maior ou menor medida, este poder na sociedade. 20

Há, assim, a transformação do saber criminológico, a passagem

do paradigma etiológico (que pregava que a criminalidade e a periculosidade eram características intrínsecas ao criminoso) para o da reação social (que entende a criminalidade como uma etiqueta atribuída a determinados sujeitos por processos de seleção).

Segundo o paradigma da reação social, uma conduta não é criminal por si só, e um indivíduo não é criminoso por natureza, por traços de sua personalidade ou influências do meio ambiente. Entende que a criminalidade é um status atribuído a determinados indivíduos mediante duplo processo: a definição legal de crime e a seleção que etiqueta alguém como criminoso (labeling approach).

De acordo com Alessandro Baratta:

Os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo 'quem é o criminoso?', 'como se torna desviante?', 'em quais condições um condenado se torna reincidente?', 'com que meios se pode exercer controle sobre o criminoso?'. Ao contrário, os interacionistas, como em geral os autores que se inspiram no labeling approuch, se perguntam: 'quem é definido como desviante?', ' que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?', 'em que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?' e, enfim, 'quem define quem?' 21

Sobre o tema, leciona Lola Aniyar de Castro:

Durante muito tempo, a criminologia proclamou ter como objetivo o estudo do delinqüente, do delito e da delinqüência. (...) Recentemente, outras correntes criminológicas ensaiaram caminhos de aproximação diferentes: assim, a tendência denominada labelling ou rotulação, fundamentada no interacionismo simbólico, voltou-se para um aspecto do problema que

20ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 208. 21 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal, p. 88.

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permanecia oculto e que demonstrou ser determinante para a compreensão e a atuação do fenômeno: a reação social. Esta determinaria que algumas condutas se tornariam delitivas e criariam a delinqüência. Ou seja, pela primeira vez problematizavam-se as definições legais. A reação social determinaria que a prática do controle selecionaria algumas pessoas, e não outras, para denominá-las delinqüentes, criando a delinqüência também por esta via.22

O resultado da desconstrução operada pelas teorias revisionistas,

destacando-se dentre elas o labeling approach, foi a deslegitimação do sistema penal. A visão sobre o sistema penal mudou: se antes ele era visto como protetor dos bens jurídicos e fundamental para o combate da criminalidade, após seu desvendamento por aquelas teorias, ficou evidente que ele não cumpre tal função. Pelo contrário, ficou claro sua impotência no combate ao crime e sua função de criminalizar seletivamente e reproduzir as desigualdades sociais, mantendo a ordem vigente.

Ora, o sistema penal não se mostrou apto para solucionar os problemas que se propõe a resolver, atuando sobre um pequeno número de casos, como revelam os estudos da sociologia criminal sobre a criminalidade do colarinho branco e a “cifra negra.”23 Além disso, ele é o “produtor de sofrimentos desnecessários (estéreis) que são distribuídos socialmente de modo injusto, com o agravante dos seus altos custos sociais e do autêntico mercado do controle do crime que, em torno de si, estrutura.” 24

Destarte, o sistema penal não é mais visto de modo isolado, mas como um conjunto integrado que funciona conforme os processos de criminalização primária e secundária, conjunto este perfeitamente inserido na mecânica do controle social, que também realiza processos de criminalização e estigmatização.

22 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 41-42. 23 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 106. 24 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, p. 471.

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Diante deste quadro de deslegitimação, surgiram respostas teóricas político-criminais como tentativas de solucionar o problema. De início, surgiram as propostas minimalistas e abolicionistas.25

De uma forma geral, o abolicionismo contesta a legitimidade do sistema penal atual ou de qualquer outro sistema penal que venha a existir. Ele defende a extinção dos sistemas penais, apoiando a resolução de conflitos por meios informais.26

A proposta minimalista, por sua vez, nega a legitimidade do sistema penal atual e propõe uma alternativa mínima, a qual considera um “um mal menor necessário”.27 Para os minimalistas, tanto os sistemas penais atuais, quanto os sistemas que não aderirem à sua proposta de contração penal, estão deslegitimados.

É importante destacar que os teóricos abolicionistas não coincidem totalmente em seus métodos e estratégias para alcançar seus objetivos, assim como os minimalistas também possuem propostas diferentes umas das outras. Assim, pode-se falar em vários tipos de abolicionismos e minimalismos.

Dentre os minimalistas, por exemplo, há os que pretendem o minimalismo como um programa transitório (como um caminho para o abolicionismo)28, os que defendem o minimalismo como um fim e, outros, ainda, como reforma penal (como o movimento despenalizador das leis 7.209/84, 7.210/84, 9.714/98 e 9.099/95).

Cada proposta abolicionista/minimalista possui suas peculiaridades, podendo-se afirmar que a implementação de algumas delas exigiria transformações sociais específicas.

Não obstante, a resposta político-criminal que prevaleceu, no contexto do capitalismo globalizado neoliberal, é a eficientista, que tende à expansão (e relegitimação) do sistema penal.

A passagem da década de oitenta para a de noventa, do século XX, foi marcada pelo enfraquecimento dos movimentos liberais (abolicionistas e minimalistas) e escalada meteórica dos movimentos de “Lei e Ordem”, de matriz norte-americana, que foram rapidamente 25 Sobre os minimalismos e abolicionismos ver: ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 88-112. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre deslegitimação e expansão. 26 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 89. 27 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 89. 28 Embora alguns insistam na oposição abolicionismo versus minimalismo, deve-se observar que tais propostas não são antagônicas. Na verdade, parece que a redução da violência do sistema penal atual – ou seja, a adoção de uma estratégia minimalista – seria o primeiro passo necessário para alcançar uma solução abolicionista.

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copiados, primeiro por outros países centrais e depois pelos países periféricos.

Neste norte, Loïc Wacquant 29 relata, de modo minucioso, como se deu a transferência do modelo norte-americano de “Estado Penal” (marcado pelas políticas eficientistas), primeiro para a Grã-Bretanha (que o autor chama de “Cavalo de Tróia” da “americanização” do penal) e depois para o mundo.

O modelo norte-americano neoliberal de retração do Estado Previdência estaria acompanhado de uma expansão sem precedentes do Estado Penal, que se caracteriza pelo encarceramento em massa, pelos movimentos de “Lei e Ordem” (como o “tolerância zero”), políticas neoconservadoras de repressão penal à pobreza e imposição de trabalho precário a ela. 30

Os métodos de importação dos conceitos americanos seriam variados: através de missões de estudos de altos funcionários europeus nos Estados Unidos para examinar e copiar o “modelo de segurança”, relatórios oficiais encomendados de pesquisadores para fundamentar decisões políticas (em troca de notoriedade na mídia), disseminação de teorias adaptadas ao país receptor. O processo de importação seria acompanhado de intensa publicidade, que propagandeava o sucesso do modelo de combate ao crime. 31

Na verdade, a adoção das políticas criminais eficientistas é uma tentativa de relegitimar o sistema penal em crise. O eficientismo nega os defeitos congênitos do sistema penal, que ele esteja deslegitimado e passando por uma crise estrutural. Ele parte de um discurso de que o sistema sofre uma “crise de eficiência”, ou seja, não funciona porque não é repressor o bastante. Portanto, a solução seria aumentar a repressão, expandindo o sistema penal.32

Conforme leciona Andrade:

Como o sistema penal está nu, como a comprovação de sua ‘eficácia invertida’ opera-se pela mera observação da realidade, a defesa oficial do sistema consiste justamente em apresentar a sua crise como crise de eficiência (...)

29 WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 174 p. 30 WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria, p. 20-52. 31 WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria, p. 52-67. 32 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre deslegitimação e expansão. p. 240.

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negando-se solenemente, a sua deslegitimação. O discurso da ‘Lei e Ordem’ proclama (...) que, se o sistema não funciona, o que equivale a argumentar, se não combate eficientemente a criminalidade, é porque não é suficientemente repressivo. É necessário, portanto, (...) criminalizar mais, penalizar mais, aumentar os aparatos policiais, judiciários e penitenciários.33

Alessandro Baratta34 afirma que o eficientismo penal é uma

“nova forma de direito penal de emergência”, chamando-o de doença crônica que sempre afetou o direito penal moderno. Para ele, a expansão eficientista poderia ser explicada por uma dupla crise: por um lado, a crise do sistema econômico-social, tendo em vista os problemas econômicos derivados da globalização e da condução neoliberal do mercado; por outro, a crise política dos sistemas representativos, que não dão conta dos conflitos provenientes do desenvolvimento. Deste modo, o sistema penal apropria-se da tarefa de equilibrar os conflitos, a qual caberia ao Estado, e o direito penal torna-se a prima ratio para solução dos conflitos sociais.

A política eficientista opta pela resposta penal, tentando torná-la cada vez mais rápida e eficaz, não exitando em solapar as garantias jurídicas tão caras à tradição do direito penal liberal, delineadas nas Constituições dos Estados Democráticos de Direito.

Como observa Alexandre Morais da Rosa35:

(…) no atual estado da arte ocorre uma inflação abusiva e banalizadora do Direito Penal, mediante a criminalização excessiva da vida cotidiana e, de outro lado, uma flexibilização abusiva das garantias processuais, atendendo-se, dentre outros fatores, aos custos do Sistema de Controle, bem como aos anseios políticos da maioria.

Não obstante, a solução apresentada pelo eficientismo – a

expansão do sistema penal – é meramente paliativa, pois não resolve o

33 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos, p. 240. 34 BARATTA, Alessandro. Defesa dos direitos humanos e política criminal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro. n. 3, p. 57-69, 1º semestre 1997. 35 ROSA, Alexandre Morais da; CARVALHO, Thiago Fabres de. Processo Penal Eficiente e Ética da Vingança: Em Busca de Uma Criminologia de Não Violência. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 2010. p. 4.

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problema do crime e da criminalidade. Trata-se de uma resposta simbólica, que nega dos “dados incômodos da realidade” 36.

O sistema penal não assume suas limitações no controle do crime, porque isso não teria apelo popular. Ao mesmo tempo, deseja reafirmar a força da lei e o mito do “poder soberano” no combate ao crime. Assim, adota as políticas de “lei e ordem”, motivadas pelas situações de emergências criadas (como a “guerra às drogas”), enfim, a expansão punitiva, para dar a impressão de que algo está sendo feito em relação ao delito. A intenção não é dar solução ao problema, mas a aparência, propagandeando suas ações.37

Paralelamente às políticas eficientistas, ganha força uma propaganda popularesca, dirigida pelos meios de comunicação de massa. 38 De acordo com Zaffaroni, no século XXI, o poder punitivo vive o momento chamado por ele de “autoritarismo cool”, isto é, uma forma moderna de autoritarismo, que se destaca pelo uso de um discurso planetário único, próprio da globalização, de fundo emocional e grotesco, que divulga a necessidade de “caça ao inimigo”. O autoritarismo cool se distingue do velho autoritarismo – de discurso biologista – do século XX, pois ao contrário deste, é superficial, vazio, não tem aparato científico.39

Na verdade, esse discurso midiático é funcional, pois reforça o sentimento de necessidade de imposição da ordem e de atuação forte do Estado. Frente à deslegitimação do sistema penal, a “demonização” valoriza a importância do Estado no combate ao crime.

Nesse contexto de fabricação de inimigos e de estados de emergência, a discussão sobre o “inimigo da sociedade” ganhou relevo. O Direito Penal do Inimigo, de Gunther Jakobs, destacou-se como teorização dominante do eficientismo.

A sugestão de Jakobs é o corte de direitos e garantias, para

36 Esta expressão é usada por ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 80. 37 Conforme aduz ROSA, Alexandre Morais da; CARVALHO, Thiago Fabres de. Processo Penal Eficiente e Ética da Vingança: Em Busca de Uma Criminologia de Não Violência. p. 5: “(...) ao invés de se buscar no espaço da política encaminhamentos democráticos, diante da pretensão de agradar o público, fomenta-se em todos os ramos partidários um discurso acrítico de agigantamento do sistema penal.” 38 Sobre o papel desenvolvido pelos meios de comunicação de massa na difusão da ilusão de eficácia do sistema penal, indica-se: ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 199-254; e ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 127-132. 39 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal. 3. ed. Revan, 2007. p. 53-80.

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apenas alguns indivíduos perigosos, os “inimigos” (considerados “não-pessoas”) como forma de contenção/neutralização. Trata-se, na verdade, de uma proposta de contenção da expansão penal, meramente simbólica, que nega a deslegitimação do sistema penal, ou seja, ignora a realidade, como forma de tentar salvar o sistema penal em crise. 40

Como se verá no próximo tópico, a teoria de Jakobs é reflexo de sua concepção funcionalista-sistêmica da pena, a qual teria função simbólica (de mera reafirmação da norma violada), valorizando-se o sistema em detrimento do homem (mero “subsistema”). Ou seja, para ele, o que importa é a manutenção do sistema, e em nome deste tudo é permitido, inclusive descartar direitos humanos e garantias.

Ademais, a proposta de Jakobs carrega em seu bojo um discurso que reforça a necessidade de “caça” a determinados tipos de inimigo, escolhidos de acordo com as emergências politicamente articuladas.

Mais do que isso, a proposta busca legitimar a diferenciação do inimigo, embasada no discurso jurídico-penal funcionalista sistêmico. Ou seja, fazer com que a divisão entre “cidadão” e “inimigo” (em exercício na prática) faça parte da lei.

O conteúdo violador de direitos e garantias desta teoria faz dela a epítome do eficientismo e talvez isso ajude a explicar sua grande repercussão.

1.2 Teoria do Direito Penal do inimigo de Gunther Jakobs

Günther Jakobs, professor de direito penal e filosofia do direito

na Universidade de Bonn, Alemanha, desenvolveu a teoria do Direito penal do inimigo. Apresentou-a pela primeira vez no ano de 1985, de forma descritiva.41 Contudo, em sua obra “Direito Penal do Inimigo – noções e críticas”, de 2003, o autor desenvolveu tese afirmativa e legitimadora, sustentando a possibilidade do direito penal do inimigo como parte do sistema jurídico penal.42

40 A teoria do Direito Penal do inimigo será explicada no próximo tópico. 41 GRECO, Luís. Sobre o chamado direito penal do inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo. v. 56. p. 81-87. set-2005. 42 De acordo com BIANCHINI, Alice; Garcia-Pablos de Molina, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Introdução e princípios fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 295, em sua obra “Direito Penal do inimigo”, Jakobs “praticamente abandonou sua postura descritiva do denominado direito penal do inimigo (postura esta divulgada primeiramente em 1985, na Revista de Ciência Penal – ZstW, n. 97, p. 753 e ss.), passando a empunhar (aliás, desde 1999, no Congresso de Professores de Direito Penal em Berlim) a tese afirmativa, legitimadora e justificadora dessa linha de pensamento.”

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De acordo com Zaffaroni: Jakobs utilizou pela primeira vez a expressão para criticar o endurecimento legislativo das últimas décadas, mas, a partir de 1999, diante do ameaçador avanço desta tendência, passou a defender a mencionada necessidade de sua legitimação parcial como modo de deter o crescimento do próprio direito penal do inimigo. Esta mudança de fachada foi uma das causas da singular acidez do debate em torno do tema. 43

Em sua obra, Günther Jakobs propõe a legitimação de duas

tendências opostas dentro do direito penal: direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo. Ao cidadão que comete um crime são asseguradas as garantias penais, o devido processo legal. O inimigo, pelo contrário, não goza do status de pessoa e, por isso, não se adota contra ele um processo legal, mas sim um procedimento de guerra.44 Esta diferenciação dar-se-ia em um “compartimento estanque” do direito penal, de modo que todo o resto continuaria funcionando dentro dos princípios do direito penal liberal. 45

No caso do inimigo, por exemplo, aplicar-se-ia uma estratégia de prevenção dos riscos. Seriam punidos seus atos preparatórios, como uma forma de “custódia de segurança antecipada”:

(...) o Direito Penal conhece dois pólos ou tendências em suas regulações. Por um lado, há o tratamento para o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de

43 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal. 3. ed. Revan, 2007. p. 156. 44 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução: André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 21. 45 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 156.A proposta de Jakobs guarda semelhança com o direito penal de terceira velocidade delineado por: SILVA SANCHEZ, Jesus Maria. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos tribunais, 2002, p. 149-151. Sanchez discute a possibilidade de se implantar um direito penal de terceira velocidade, no qual o “Direito Penal da pena de prisão concorra com uma ampla relativização de garantias político criminais, regras de imputação e critérios processuais” (p. 148). O autor afirma que este direito penal já existe, e que, em certos casos, deveria ser reconduzido à primeira ou segunda velocidade. Afirma que a incorporação deste direito seria discutível, levando-se em conta fenômenos como a delinqüência sexual reiterada, o terrorismo, “que ameaçam solapar os fundamentos últimos da sociedade constituída na forma de Estado” (p. 148). Acrescenta que o direito penal de terceira velocidade “guarda estreita relação” como Direito Penal do inimigo de Jakobs, o qual nada mais é que o direito das medidas de segurança de outrora.

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confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio a quem se combate por sua periculosidade.46

Para Jakobs, o inimigo seria o indivíduo marcado por sua

periculosidade, que não presta segurança de um comportamento social adequado, garantindo que agirá conforme as normas do Estado. Este não poderia ser tratado como pessoa, pois, do contrário, vulneraria o direito à segurança das outras pessoas.

Jakobs define o inimigo como o criminoso renitente e que pratica crimes graves, citando como exemplo os autores de crimes econômicos, crimes sexuais, crimes organizados e de terrorismo. O autor afirma, por exemplo, que o terrorista também deve ser considerado um inimigo, lembrando o ocorrido em 11 de setembro 2001:

Ao que tudo isto segue parecendo muito obscuro, pode-se oferecer um rápido esclarecimento, mediante uma referência aos fatos de 11 de setembro de 2001. O que ainda se subentende a respeito do delinqüente de caráter cotidiano, isto é, não tratá-lo como indivíduo perigoso, mas como pessoa que age erroneamente, já passa a ser difícil, como se acaba de mostrar, no caso do autor por tendência. Isso está imbricado em uma organização - a necessidade da reação frente ao perigo que emana de sua conduta, reiteradamente contrária a norma, passa a um primeiro plano – e finaliza no terrorista, denominação dada a quem rechaça, por princípio, a legitimidade do ordenamento jurídico, e por isso persegue a destruição dessa ordem. 47

Os fundamentos jusfilosóficos da teoria, segundo escreve Jakobs,

estariam em autores contratualistas como Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant. Para estes, o delinqüente que infringe o contrato social não pode usufruir dos benefícios do Estado.

Rousseau e Fichte, porém, entendem que qualquer indivíduo que infringe a lei deixa de fazer parte do Estado, enquanto para Hobbes e

46 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo, p. 37. 47 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo, p. 36.

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Kant apenas os autores de crimes graves devem ser excluídos. Jakobs observa que seu pensamento assemelha-se mais com o entendimento destes dois últimos filósofos: “Hobbes e Kant conhecem um direito penal do cidadão – contra pessoas que não delinqüem de modo persistente por princípio – e um direito penal do inimigo contra quem se desvia por princípio.” 48

O Direito Penal do inimigo de Jakobs é baseado em sua concepção sobre a função da pena. O penalista alemão desenvolveu a corrente dogmática do funcionalismo-sistêmico, influenciado pela teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.

No pensamento sistêmico de Luhmann 49, o centro de atenção é transferido do homem para o sistema. O sistema é separado das pessoas da sociedade, que são consideradas subsistemas.

O fundamental seria o equilíbrio, o qual dependeria da capacidade de obter o consenso sobre sua necessidade entre os indivíduos (subsistemas). Nas palavras de Luhmann:

(...) a função das instituições reside menos na criação e mais na economia do consenso, que é atingida, principalmente, na medida em que o consenso é antecipado na expectativa sobre as expectativas, ou seja, como pressuposto, não mais precisando, em geral, ser concretamente expresso. É essa institucionalização que permite uma comunicação rápida, precisa e seletiva entre as pessoas.50

Por outro lado, a capacidade de equilíbrio do sistema estaria

subordinada à sua capacidade de normalizar as variadas expectativas dos “subsistemas” (homens). 51 O direito, por sua vez, funcionaria como instrumento de estabilização social. Diante das condutas delituosas, o discurso jurídico-penal seria regulador do controle social.52

Luhmann defende que, em um sistema jurídico complexo como o atual, com normas abstratas e relações despersonalizadas, a confiança

48 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo, p. 29. 49 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983. 252 p. 50 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I, p. 80. 51 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 86. 52 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I, p. 77-93.

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institucional substituiria os laços de confiança recíproca entre os indivíduos. O direito institucionalizaria expectativas de comportamento as quais teriam como função garantir o tipo de confiança que é possível nos sistemas complexos.53

Assim, a violação da norma seria disfuncional para o sistema. Não porque são lesionados interesses ou bens jurídicos, mas porque é afetada a confiança institucional dos “subsistemas”. 54

Baseada nesta visão sistêmica de Luhmann, a teoria da prevenção-integração (ou prevenção positiva) de Jakobs, defende que a reação punitiva teria função principal de restabelecer a confiança no sistema e prevenir efeitos negativos que a violação da lei poderia causar em sua estabilidade.

A função da pena, segundo Jakobs, seria exercitar o reconhecimento da norma e a fidelidade ao direito pelos membros da sociedade. O delito seria a expressão simbólica da falta de fidelidade ao direito, abalando a confiança institucional. A pena seria a expressão simbólica oposta: ela reafirma a vigência da norma, restaurando o sentimento de confiança e fidelidade ao ordenamento jurídico.55

A teoria da prevenção-integração não tem a preocupação de evitar que se cometam crimes ou a reiteração delituosa. Seu objetivo é garantir o consenso sobre o sistema. Tal doutrina, portanto, afasta-se da realidade e do homem. E como o homem é reduzido a mero subsistema, não existe preocupação com a manutenção de seus direitos e garantias.56

A teoria da pena de Jakobs, sob uma perspectiva sistêmica, funciona, portanto, como relegitimadora do exercício de poder pelo sistema penal. Diante da incapacidade do sistema penal de cumprir suas promessas de segurança, ela apela para a função simbólica – de manutenção da confiança no sistema e na norma – porque esta pode ser cumprida.

Segundo expõe Zaffaroni: (...) o discurso sistêmico, apesar de reconhecer tanto a falsidade do discurso jurídico-penal

53 BARATTA, Alessandro. Integracion-prevencion: uma ‘nueva’ fundamentación de La pena dentro de La teoria sistêmica. Revista Doctrina Penal, ano 8, n. 29, 1985, Buenos Aires, Argentina. p. 02. 54 BARATTA, Alessandro. Integracion-prevencion, p. 02; LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I, p. 132-147. 55 BARATTA, Alessandro. Integracion-prevencion, p. 02. 56 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 86.

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tradicional como os dados reais deslegitimadores do exercício do poder do sistema penal, responde, simplesmente, que é necessário que assim seja por ser funcional para a manutenção do ‘sistema social’, única coisa que importa ou, pelo menos, a mais importante. Indubitavelmente, trata-se da resposta relegitimadora do exercício de poder do sistema penal por excelência, mas, à custa do desconhecimento do discurso jurídico-penal tradicional (...) coloca em cheque, em larga perspectiva, praticamente todo direito penal de garantias e retroage a um direito ultrapassado (...) característico do discurso jurídico-penal autoritário.57

A proposta político-criminal de Jakobs carrega a concepção

simbólica da pena. Sua obra “Direito penal do inimigo: noções e críticas” discorre sobre dois aspectos da pena: como coação e como segurança.

A pena como coação seria portadora de um significado simbólico, ou seja, de que o fato criminoso é irrelevante e que a norma segue sem modificações. O crime seria visto como o ato de uma pessoa racional, que desautoriza a norma. A pena/coação afirmaria que a lei continua vigente, mantendo-se a configuração da sociedade.

Já a pena como segurança “não só significa algo, mas também produz fisicamente algo” 58. A pena, neste aspecto, teria função de prevenção especial, pois enquanto cumpre a pena, o preso não pode cometer crimes fora da Penitenciária. A reprimenda, neste aspecto, não teria como objetivo o efeito simbólico e “pedagógico”, mas sim o objetivo de proteger a sociedade do indivíduo perigoso. Visaria à proteção “de modo fisicamente efetivo: luta contra um perigo, em lugar de comunicação.” 59

O valor simbólico da pena, defendido por Jakobs, é plenamente compatível com sua proposta de tratamento diferenciado, tendo em vista que a única forma de legitimar a seletividade é recorrendo à função simbólica da reprimenda, a qual pode ser cumprida.

57 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas, p. 88. 58 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo, p. 36. 59 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo, p. 23.

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Deve-se, ainda, ressaltar o caráter de “tática de contenção” do Direito Penal do inimigo. De fato, a teoria de Jakobs foi elaborada como proposta de contenção ao avanço do poder punitivo nos países de capitalismo avançado, sendo que o restante do Direito Penal continuaria funcionar dentro dos princípios de Direito Penal liberal.60

O Direito Penal do inimigo foi objeto de crítica ferrenha por diversos autores. Não obstante, destacam-se as críticas combativas feitas por Eugenio Raul Zaffaroni. Sua obra “O inimigo no direito penal” é uma resposta à proposta de contenção de Jakobs.

Zaffaroni61 afirma, em primeiro lugar, que o discurso do inimigo não é novidade. Durante toda história, o poder punitivo sempre reconheceu um inimigo, ao qual dispensou tratamento diferenciado, discriminatório, neutralizante e eliminatório, baseando-se na sua condição de “ente perigoso”.62

No direito romano já existia a figura do hostis, que era o inimigo político. O conceito subdividia-se em hostis judicatus (declarado em função da auctoritas do Senado) e hostis alienigena (estrangeiro potencialmente perigoso).63 O professor argentino aponta que desde a época das colonizações (quando houve o resgate do poder punitivo pelo homem, aplicando-se a inquisitio aos inimigos - bruxas, colonizados rebeldes, dissidentes), passando pelas potências neocolonizadoras (para as quais os inimigos eram os patibulários e inimigos políticos, que deveriam ser eliminados), até a Revolução Industrial (aos “inimigos” era aplicada a pena de morte, e aos “indesejáveis” a pena de prisão), sempre existiu o tratamento diferenciado.64

Na América Latina, não foi diferente. Nas sociedades colonialistas, o discurso penal tratava os nativos como inimputáveis, e os mestiços como loucos morais em potencial. Após a derrubada das repúblicas oligárquicas, ocorreram os processos políticos chamados “populismos”. Protencionistas e nacionalistas, os populismos não agradaram aos Estados Unidos da América, que patrocinaram a

60 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 156. 61 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 11. Neste sentido, ver também: FERRAJOLI, Luigi. Il “Diritto penale del nemico” e la dissoluzione del diritto penale. Revista Panoptica. Vitória. n. 11. p. 87-99. nov. 2007. 62 Sobre os processos de ressignificação da noção de “inimigo político” e de “crime político” desde a Antiguidade, ver: DAL RI JUNIOR, Arno. O Estado e seus inimigos: a expressão política na história do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, 400 p. 63 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 21-25. 64 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 29-45.

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instalação das ditaduras militares de “segurança nacional”. Durante a ditadura, portanto, havia um sistema penal paralelo, com detenções administrativas para eliminar os indesejáveis e o sistema penal subterrâneo, no qual os inimigos eram assassinados.65

Mais tarde, ao fim da Guerra Fria, os Estados Unidos não contavam mais com a União Soviética para preencher o espaço de inimigo. Então, travaram uma guerra contra as drogas para ocupar esse vazio, pressionando o mundo, inclusive a América Latina, a produzir legislações penais repressoras do tráfico. Com o episódio do 11 de setembro, o vazio deixado pela URSS foi preenchido por um inimigo de certa substância: o terrorismo.66

Em segundo lugar, Zaffaroni mostra que os discursos criminológicos sempre legitimaram o tratamento diferenciado ao inimigo. Desde o direito penal pré-moderno, defendia-se a existência de emergências (ameaças à sobrevivência da humanidade), durante as quais se autorizava o uso de medidas administrativas de coerção no lugar das penas.67

A primeira emergência da história foi o combate a Satã, e o primeiro inimigo foi a mulher, acusada de inferioridade em razão do sexo. O discurso legitimador desta emergência foi o teocrático/biologista. Desde esta época, o discurso criminológico defendeu a seletividade e o valor simbólico da pena, sendo que, no século XVI, Hobbes e Jean Bodin defenderam essas idéias.68

No século XIX, há o advento do positivismo criminológico, retornando-se ao sistema inquisitorial. Definiu-se o inimigo, novamente, como um ser biologicamente inferior, mas não em razão do gênero: e sim, por pertencer a uma raça não evoluída. O inimigo era assinalado por sua natureza inferior, pretendendo-se sua individualização ôntica. A individualização de um inimigo ôntico pelo positivismo criminológico foi facilmente levada à radicalização, servindo para embasar os regimes fascistas e nazistas do século XX.69

65 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 46-51. 66 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 51-53. 67 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 83-87. 68 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 87-90. 69 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 91-109.

Sobre o inimigo ôntico no positivismo criminológico, ver as obras dos teóricos da Escola Positivista: GAROFALO, Rafael. Criminologia. Tradução: Danielle Maria Gonzaga. Campinas: Péritas, 1997. 351 p; LOMBROSO, Cesare. O homem criminoso. Tradução: Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Jnaeiro: Editora Rio, 505 p.

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O autor ainda questiona a polarização “Hobbes e Kant” versus “Rousseau e Fichte” feita por Jakobs. Afirma que ela é inédita na filosofia. Ao contrário do que afirmou Jakobs, Rousseau e Fichte não consideravam realmente todos os delinqüentes como inimigos; eles não foram tão radicais. Rousseau é contraditório, e se refere a mais de um inimigo em sua obra. Fichte também não generaliza todos os delinqüentes como inimigos.70 A verdadeira confrontação no pensamento político, que tradicionalmente acontece, seria aquela entre Hobbes versus Locke e Kant versus Feuerbach. 71

Em terceiro lugar, não existe conceito limitado de “inimigo”. Ou seja, não se pode argumentar que a guerra contra o inimigo seria exercida dentro de limites. O grau de periculosidade do hostis ficará sempre a critério subjetivo do individualizador, e esta individualização estará sempre sujeita a abusos. Como a identificação do inimigo nunca é clara, isso significaria exercer controle social autoritário sobre toda a população.72

Zaffaroni73 acrescenta que o conceito de inimigo é incompatível com o Estado de Direito. O hostis, pelo contrário, reclama um Estado Absoluto. As conseqüências da admissão do inimigo são aquelas registradas por Carl Schmitt, ou seja, a suspensão da Constituição nas emergências, instalando-se uma ditadura jurídica.74

De acordo com a teoria de Jakobs, como o Estado de direito abstrato, ideal, não é possível, deve-se abandoná-lo. No entanto, para o autor argentino, não existe um Estado de direito histórico que tenha alcançado plenamente o modelo ideal. O Estado de direito abstrato, ideal, é fundamental como modelo orientador do direito penal: quando

70 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 121-124. 71 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 128-133. 72 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 118. 73 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 144-153. 74 Sobre a incompatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o Estado Democrático de Direito, ver também: DELMANTO JUNIOR, Roberto. Do iluminismo ao “direito penal do inimigo”. Revista dos tribunais. São Paulo. v. 97. p. 453-464. mar. 2008; GRACIA MARTÍN, Luis. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo. Tradução: Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 189 p.; MUÑOZ CONDE, Francisco. As reformas da parte especial do direito penal espanhol em 2003: da “tolerância zero” ao “direito penal do inimigo”. Revista eletrônica de ciências jurídicas, [s. l.], 12 jan. 2005. Disponível em: <http://www2.mp.ma.gov.br/ampem/ ampem1.asp>. Acesso em: 12 ago 2008; STRECK, Lênio Luiz (org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 175 p.

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realizamos a comparação entre Estado de direito ideal e concreto, verificamos os defeitos deste.75

Não obstante, Zaffaroni reconhece que Jakobs acertou ao utilizar os termos “inimigo” e “não pessoa”, pois acendeu o debate. Se assim não o fosse, teria se limitado a repetir o que outros teóricos do positivismo criminológico já haviam afirmado. Porém, sua proposta continua reacionária, pois pretende inserir o inimigo dentro do Estado de Direito.76

Por outro lado, não se pode falar que o poder punitivo em exercício na América Latina reproduz o Direito Penal do inimigo. Isto porque a proposta de Jakobs é muito mais limitada do que já acontece nessa região. Na verdade, o âmbito de aplicação da teoria do autor alemão são os países centrais.

Segundo Zaffaroni77, poder punitivo neste continente periférico é exercido através da prisão cautelar (meras medidas de contenção) contra suspeitos considerados perigosos. No caso de delitos graves, a prisão preventiva é seguida de condenação com longas penas, em cárceres marcados por altos níveis de violência, aplicando-se o método de eliminação dos “indesejáveis”.

Três quartos dos presos latino-americanos estão presos preventivamente. Destes, somente um quarto será obrigado a cumprir o restante da pena, pois parte deles será absolvida e a outra parte já terá cumprido a pena imposta ao final do processo, durante o tempo que ficou presa provisoriamente.78

Os “indesejáveis” somente não cumprirão pena no caso de a terem cumprido na prisão cautelar. Os “dissidentes” são mais tolerados, e os iguais (em número cada vez menor, em razão da polarização da riqueza) gozam das garantias constitucionais, nos poucos casos em que chegam a ser punidos. Ademais, existe resistência nos tribunais em absolver indivíduos que ficaram presos durante o processo.79

Portanto, a seleção dos inimigos na América Latina se dá através dos conhecidos processos de criminalização, denunciados pela teoria da reação social, e sua contenção é realizada pela prisão cautelar. E as condições precárias das prisões faz com que o destino provável dos

75 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 165-167. 76 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 165-166. 77 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 70. 78 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 71 e 109-114. 79 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 70 -71.

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selecionados seja a eliminação pela morte. Assim, a teoria de Jakobs não deveria causar tanta surpresa, pois não é muito diferente do que o que se fez durante a história e do que admitem os nossos tribunais cotidianamente.80

Na realidade, não se pode pretender o exame das práticas punitivas na América Latina a partir das teses dos países centrais (embora também não se possa ignorá-las). Durante toda história, sempre houve um distanciamento entre o controle penal latino-americano e os discursos importados dos países centrais. Os discursos teóricos centrais serviram para legitimar um exercício de poder na América Latina. 81

Neste norte, afirma Zaffaroni: (…) em nível de reprodução ideológica universitária, por um lado repetem-se os discursos teóricos centrais (gerados para racionalizar um exercício de poder funcionalmente distanciado do exercício de poder dos órgãos de nossa região marginal), e, por outro, o discurso dos órgãos e nossos sistemas penais degrada-se em um 'discurso underground' para 'comprometidos', reproduzindo o velho discurso racista biologista e expressando publicamente um saber discursivamente contraditório e confuso, ao qual denominamos 'atitude'.

Como observa Lola Aniyar de Castro:

Deve-se levar em conta uma situação, especialmente no âmbito latino-americano: nos países de capitalismo dependente, da periferia, o vínculo com a ciência autóctone com o poder é menor. Apenas em situações excepcionais a pesquisa é expressamente solicitada no país, em razão do maior prestígio de que goza o trabalho conduzido por especialistas estrangeiros. Em geral, todas as políticas internas são elaboradas sobre a base do conhecimento produzido nos países centrais. A imitação, freqüentemente fora

80 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 164. 81 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação; DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2004.; ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal.

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de contexto, é a base de todas as iniciativas reformistas.82

Tendo em vista as peculiares latino-americanas, as teses centrais

nunca corresponderam à realidade da região. A importação dessas teses não se deu apenas por mimetismo cultural, mas como uma forma de racionalização/legitimação do poder central sobre esta região subdesenvolvida e dependente.

Depreende-se, assim, que a proposta político-criminal de Gunther Jakobs restringe-se à realidade dos países centrais. E, como se verá no próximo tópico, os inimigos alvo de Jakobs – os inimigos externos – não são os mesmos da América Latina, pelo menos a princípio.

1.3 Identificação dos inimigos de Jakobs

Os inimigos de que trata a proposta de Gunther Jakobs são os que

ameaçam os países centrais, isto é, os inimigos externos, personificados na figura do traficante, do terrorista e do imigrante.

Segundo Rosa Del Olmo83, após a Guerra Fria, os Estados Unidos – maior potência do capital globalizado – não contam mais com a União Soviética e o comunismo para preencher o espaço de inimigo. Deste modo, difundiram a guerra contra as drogas para ocupar esse vazio, justificar o nível elevado da repressão penal e continuar a exercer seu poder hegemônico sobre os países da periferia.

Del Olmo narra que, na década de setenta, os Estados Unidos começou a disseminar, de forma progressiva, o discurso jurídico-político – que exportava a aplicação da lei, na questão de drogas, além de suas fronteiras. Pressionaram o mundo, inclusive a América Latina, a produzir legislações penais repressoras do tráfico, sendo que quase todos os países desta região adotaram uma legislação anti-drogas semelhante. Segundo a autora, “a opinião pública seguia considerando a droga como ‘inimigo’, mas o critério de segurança se tornava incerto. Qualificava-se a droga de inimigo interno ou inimigo externo; tudo dependia do contexto.” 84

No entanto, é a partir da década de oitenta que o discurso internacional contra a droga ganha maior força. É lançado o discurso

82 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 43-52. 83 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 34. 84 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 44.

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jurídico transnacional, que atribui o problema da droga não mais ao consumo, mas ao tráfico realizado pelos países acusados de produzir entorpecentes, como a Colômbia. Os Estados Unidos passam a considerar o comércio internacional de entorpecentes como problema de segurança nacional. A droga é alçada à categoria de “inimigo externo”, e os países dividem-se entre países vitimados e países vítima do tráfico.85

Na verdade, a construção deste estereótipo criminoso latino-americano é funcional para solucionar o problema de imigração ilegal nos Estados Unidos, dado que o maior número de imigrantes nos Estados Unidos é formado por colombianos.86

Como afirma Nils Christie, a guerra às drogas tornou-se uma oportunidade para o controle das chamadas classes perigosas, ou seja, do excedente populacional sem trabalho próprio da pós-industrialização. Esta fração de desempregados forçados seria má vista em virtude da possibilidade de causar distúrbios e de sua situação contrária à moral do trabalho. Nas palavras do autor:

Na prática, a guerra contra as drogas abriu caminho para a guerra contra as pessoas tidas como menos úteis e potencialmente mais perigosas da população, aquelas que Spitzer chama de lixo social, mas que na verdade são vistas como mais perigosas que o lixo. Elas mostram que nem tudo está como devia no tecido social, e ao mesmo tempo são uma fonte potencial de perturbação.87

Deste modo, a retórica de guerra ao narcotráfico tornou-se a

principal mola do aumento extraordinário do encarceramento nos Estados Unidos e demais países centrais nos últimos anos, registrado por toda literatura criminológica. De acordo com Wacquant:

(...) a ‘guerra à droga’ lançada estrepitosamente por Ronald Regan, e ampliada desde então por seus sucessores, é, com o abandono do ideal de ressocialização e multiplicação dos dispositivos ultra-repressivos (...) uma das causas mais

85 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 55-74. 86 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 59. 87 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do delito. A caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Tradução por Luis Leiria. São Paulo, Forense, 1998. p. 65.

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importantes da explosão da população carcerária. Em 1995, seis novos condenados para cada 10 eram colocados atrás das grades por portar ou comerciar droga, e a esmagadora maioria dos presos por esse contencioso provinha de bairros pobres afro-americanos.88

Não obstante, a droga não foi suficiente para preencher o espaço

deixado pela União Soviética. O ocorrido em 11 de setembro de 2001, conforme Zaffaroni, veio solucionar este problema: o atentado produziu a morte em massa e tornou o terrorista um inimigo paupável, digno de crédito. Segundo o autor, esta emergência possuiria sua funcionalidade:

A nova emergência pretende justificar exigências internacionais de adoção de legislação penal e processual penal autoritária em todos os países do mundo. A necessidade de defender-se, por certo não mais dos atos concretos de homicídio em massa e indiscriminados, mas sim do nebuloso terrorismo, legitima não apenas guerras preventivas de intervenção unilateral como também legislações autoritárias com poderes excepcionais, que incluem a privação de liberdade indeterminada de pessoas que não se acham em condições de prisioneiros de guerra nem de réus processados, seja sob o pretexto de que não são cidadãos dos Estados Unidos ou de que não se encontram privados de liberdade em seu território. 89

Após o 11 de setembro, houve nos Estados Unidos a emanação de

uma série de leis, como o USA Patriot Act e o Homeland Security Act, seguindo os discursos e práticas que disseminavam o combate ao terrorista.90

88 WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria, p. 95. 89 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 66. 90 Em DAL RI JUNIOR, Arno. O Estado e seus inimigos, p. 296/352, ver as medidas legislativas adotadas pelos Estados Unidos, especialmente na administração de George W. Bush, após o 11 de setembro de 2001, direcionadas a “toda e qualquer pessoa, muçulmana ou não, estrangeira ou mesmo cidadã norte-americana, que praticasse uma série de condutas consideradas direta ou indiretamente ligadas à noção de 'terrorismo'”.

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Por outro lado, a Europa também vive uma situação peculiar após a Guerra Fria, que propiciou a construção de novos inimigos: os imigrantes. Depois da queda do muro de Berlim, as populações pauperizadas, provenientes da Europa Oriental, Ásia e África, migraram para a Europa Ocidental em busca de um nível de vida melhor.

Os imigrantes passaram a ser vistos como fonte de risco pelos europeus. Além de disputarem espaço no mercado de trabalho, na assistência social e moradia, as diferenças culturais contribuíram para que fossem encarados como estranhos.91

Desta forma, como observa Christie92, deu-se início a um processo de “fortificação da Europa”, formando-se um cerco contra os indesejáveis: foi estabelecido um rígido controle sobre os estrangeiros, a polícia atravessou as fronteiras dos países e foi criada uma rede de informações para controlar o fluxo.

A problemática é aquela descrita por Bauman93: o mundo globalizado, e sua nova organização do capital e do trabalho, divide-se entre “globais” e “locais”, “turistas” e “vagabundos”, consumidores e não-consumidores. A parte pauperizada deseja locomover-se para espaços onde as condições de vida sejam melhores. Todavia, estes espaços são reservados apenas para algumas pessoas. As demais são privadas de seu maior bem – a mobilidade – seja através da reorganização das cidades, seja por meio do aprisionamento.

A construção desses inimigos parece funcional para o controle penal contemporâneo nos países centrais. Além de as políticas criminais eficientistas e suas retóricas de guerra serem uma resposta para as altas taxas de criminalidade e para as limitações do Estado de justiça criminal, sustentariam o encarceramento em massa dos excluídos da economia globalizada, dando a impressão de que algo está sendo feito quanto aos problemas sociais e relegitimando o sistema penal.

David Garland94 discorre sobre a questão em sua obra “A cultura do controle”. Segundo Garland, o retrato do controle penal atual nos Estados Unidos e Grã-Bretanha nos últimos anos é produto da economia de mercado, aliada à organização peculiar da pós-modernidade (mudanças na estrutura familiar, na ecologia social e na demografia,

91 ZAFFARONI, Raul E. O inimigo no direito penal, p. 67. 92 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do delito, p. 68. 93 BAUMAN, Zygmunt. Globalização – as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 94 GARLAND, David. A cultura do controle. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

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impacto do mass media, democratização da vida social e cultural). O autor afirma que o controle penal naqueles países teve que se ajustar, principalmente, a dois dilemas pós-modernos: aos índices altos de crimes e às limitações da justiça criminal.

Até os anos 1960, acreditava-se que a justiça criminal poderia resolver o problema do crime. Após este período, com a desconstrução teórica do sistema penal e do enquadramento penal-previdenciário, adveio a noção de fracasso das agências de justiça criminal nas décadas de 1980 e 1990.95

Tal desconstrução teórica apresentou as altas taxas de criminalidade como normais, causando a erosão da figura moderna do Estado soberano, provedor da lei e da ordem, que protege os cidadãos dos inimigos externos.96 As soluções apresentadas para este problema foram de naturezas diversas: ou reafirmaram o mito do Estado soberano e seu poder punitivo pleno (como a profissionalização e comercialização da justiça, por exemplo) ou defenderam a atuação simbólica do Estado, investindo na demonização da figura do “outro”.97

Alessandro De Giorgi 98 também analisa o controle contemporâneo nos países centrais, chamado por ele de “pós-fordista”. O autor afirma que, na Europa, entre os séculos XVII e XVIII, houve a substituição da eliminação física dos criminosos pela recuperação e disciplinamento dos corpos; era o período do “grande internamento”.

Desenvolveu-se, portanto, o modelo de controle disciplinar, que esteve em voga durante a fase de expansão da sociedade industrial, até o período do capitalismo fordista. Até a metade do século XX, há a perfeita integração “entre a disciplina dos corpos e o governo das populações”, traduzidos no regime econômico da fábrica, no Welfare State e no paradigma do cárcere correcional. 99

Entre o final do século XX e o início do século XXI, a crise do paradigma taylorista, do Estado de Bem-Estar e do modelo fordista de regulação da dinâmica salarial deu origem a um novo modelo de produção (pós-fordista) e a um exército de desempregados e subempregados. Surgiram, assim, as novas estratégias de controle pós-fordistas destinadas às populações excedentes. Segundo Di Giorgi,

95 GARLAND, David. A cultura do controle, p. 245-246. 96 GARLAND, David. A cultura do controle, p. 248. 97 GARLAND, David. A cultura do controle, p. 250. 98 DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal, p. 26. 99 DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal, p. 27.

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pode-se falar em um “segundo grande internamento”, definido como “um internamento urbano, que tem a forma do gueto, de um internato penal, que tem a forma do cárcere e do internamento global, que assume a forma das inumeráveis 'zonas de espera'”. 100

Abandonou-se o modelo disciplinar fordista. Não se trata mais de disciplinar os corpos, mas de separá-los em “classes laboriosas” e “classes perigosas”. Busca-se, agora, neutralizar a suposta periculosidade dessas últimas classes por meio de técnicas de prevenção do risco, sob a forma de vigilância, segregação urbana e contenção carcerária.101

O recrutamento da população carcerária, por sua vez, é feito com base no risco que supostamente pode ser causado pelas classes reputadas perigosas. Não se consideram mais as características individuais dos sujeitos. A qualidade de classe perigosa é atribuída à massa de excluídos.102

A estrutura do controle estaria voltada aos mais desfavorecidos na dinâmica de mudanças econômicas, facilmente incluídos nas classes perigosas. As liberdades individuais conquistadas historicamente, principalmente entre as décadas de cinquenta e setenta do século XX, permanecem para as classes abastadas. Em contrapartida, para a parte pauperizada é imposto um controle rígido. Os imigrantes, os pobres das cidades, os beneficiários da previdência, os dependentes de drogas, são exemplos de classe de risco. 103 Para eles, são “ativadas práticas de controle repressivo (…) independentes de seu agir concreto”104, prescindindo-se da consumação de um delito. O encarceramento dessas classes, por outro lado, é fomentado pelas retóricas de guerra às drogas, ao terrorismo, ao diferente.

Em que pese o fato de alguns desses inimigos serem realmente perigosos, isso não pode legitimar um controle autoritário, que inevitavelmente se estende sobre toda a população. As consequências desse tipo de controle, como bem destacou Nils Christie, são muito próximas às do holocausto e do genocídio.

100 DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal, p. 28. 101 DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal, p. 80. 102 DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal, p. 94-101. 103 GARLAND, David. A cultura do controle. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 416; YOUNG, Jock. A sociedade excludente, p. 15-51; WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria, p. 105-118. 104 DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal, p. 98.

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O criminólogo norueguês assevera que a situação atual da sociedade reúne condições propícias – industrialização, métodos burocráticos e teorias científicas funcionais, modelo de pensamento médico (etiológico) – ao desenvolvimento de algo semelhante a o que ocorreu nos campos de concentração:

As condições e o momento existem? As sociedades industrializadas estão sofrendo mais pressões do que nunca. As regras da economia de mercado governam o mundo, com a exigência ‘óbvia’ da racionalidade, utilidade e, é claro, o lucro. As classes mais baixas, facilmente transformadas em classes perigosas, estão aí. Assim como as teorias científicas que podem passar à ação. Há teorias que dizem que o efeito de certas drogas – não as muito usadas, mas drogas novas – são de tal natureza, que tornam legítimos os mais severos métodos de investigação e de luta contra elas. E os teóricos da criminologia e do direito estão aí para dar a sua habitual ajuda. Ninguém mais acredita no tratamento mas a incapacitação é um tema favorito desde o nascimento das teorias positivistas sobre o controle da criminalidade.105

Ou seja, o controle através da construção de situações de

emergência e apontamento de inimigos implica uma sociedade com traços autoritários, em que vigora a exceção.

1.3.1 A experiência brasileira

Por fim, cabe destacar que os inimigos no Brasil não se

confundem com os de Gunther Jakobs (inimigos externos). Tendo em vista as peculiaridades sociais e históricas brasileiras, como a desigualdade social gritante e o fato de o Brasil ter sido um dos últimos países a abolir a escravidão, os inimigos aqui são, há tempos, identificados com a velha pobreza, somada à discriminação racial.

105 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime, p. 186-187.

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Como relata Vera Malaguti Batista106, a construção da ordem burguesa no Brasil esbarrou no problema dos ex-escravos excluídos do mercado de trabalho. Portanto, no período pós-proclamação da República, construiu-se um controle social que desse conta da massa de ex-escravos, baseado nas ideias positivistas racistas de Cesare Lombroso (reproduzidas em solo brasileiro por autores como Nina Rodrigues, Tobias Barreto e Clóvis Bevilaqua).107 Por outro lado, o controle social é alimentado por uma ideologia do trabalho, que relaciona a ociosidade à criminalidade, à corrupção, à depravação.

Josiane Petry Veronese108, ao relatar o histórico de exploração do trabalho doméstico de crianças e adolescentes no Brasil, descreve a mentalidade predominante neste período. Com a abolição da escravidão, cria-se uma horda de escravos sem ocupação. Portanto, o Estado vê a necessidade de, por um lado, criminalizar condutas de mendicância, a vadiagem a capoeiragem e, por outro, valorizar a moral do trabalho, como forma de manter o controle social sobre os escravos e pauperizados.

Vigora o pensamento racista e higienista. Trata-se de uma sociedade hierarquizada, autoritária e desigual, que consolida o binômio “delinquência/trabalho”, criminalizando-se aqueles que “não querem trabalhar”. Nas palavras de Veronese:

O Brasil republicano, declarado abolicionista, não estava isento da discriminação racial. As influências do higienismo e das teorias da discriminação racial foram fortemente refletidas no Brasil como práticas criminalizadoras direcionadas à população negra. O Código Penal da República não é só representativo dessa condição, mas também instrumento operacionalizador de uma sociedade absolutamente hierarquizada, desigual, autoritária e injusta, que se consolidaria já em seu

106 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 58-59; BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 107Sobre a recepção da criminologia positivista no Brasil, inserida no contexto de mudança da sociedade e do controle social brasileiro, do escravismo ao capitalismo dependente, ver: DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. Introdução à Criminologia brasileira. Curitiba: Juruá, 2006. 108 CUSTÓDIO, André Viana; VERONESE, Josiane Petry. Crianças esquecidas. Curitiba: Multidéia, 2009. p. 13-73.

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nascedouro (...). A consolidação do binômio delinqüência-trabalho foi o viés pelo qual as políticas institucionais foram consolidadas e gradativamente orientadas para o absoluto controle social através da institucionalização, ou seja, criminalização daqueles caracterizados como 'menores'. 109

Assim, como registra Malaguti, “o sistema penal da República já

nasce pontificado pela sua ineficácia estrutural como repressor da criminalidade; seus objetivos ocultos, ideológicos, eram configuradores e seletivos quanto às ilegalidades populares.”110

Portanto, os inimigos internos brasileiros, a princípio, não se identificam com os inimigos externos dos países centrais. Não obstante, como se verá no capítulo subsequente, a política criminal de guerra às drogas e ao traficante inserida na América Latina gerou como consequência, no Brasil, a construção ideológica do traficante como inimigo interno. Em solo tupiniquim, tal construção repercutiu de modo peculiar, em virtude das particularidades sociais e históricas do país.

O próximo capítulo buscará mostrar como se deu a transnacionalização do controle de drogas e da figura do traficante como inimigo para a América Latina e Brasil.

Além disso, procurará mostrar como essas orientações político-criminais dos países centrais influenciaram as mudanças legislativas brasileiras em matéria de drogas, as quais passaram a reproduzir os discursos próprios dos países centrais, no que diz respeito à idéia do traficante como inimigo interno.

Por fim, serão delineadas as consequências da implantação do traficante-inimigo no Brasil no âmbito dos sistemas de justiça penal, dentre outras.

109 CUSTÓDIO, André Viana; VERONESE, Josiane Petry. Crianças esquecidas, p. 43. 110 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis, p. 59.

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Capítulo II – A transnacionalização do controle penal de drogas e da figura do traficante como inimigo interno

para América Latina e Brasil.

Este capítulo mostrará como se deu a transnacionalização111 da política criminal de guerra às drogas e da figura do traficante como inimigo para a América Latina e Brasil. Como se verá, o comércio e consumo de alucinógenos nem sempre foi considerado problema. Na história da humanidade, é registrado, em várias culturas, o uso medicinal, religioso ou recreativo de substâncias capazes de alterar o humor e o comportamento do homem.

As drogas atualmente consideradas ilícitas, como a cannabis

sativa (conhecida como “maconha”), a cocaína e o ópio, já circularam livremente. Há evidências, por exemplo, de que a cannabis já era cultivada na pré-história.112 Na América de colonização espanhola, por exemplo, o uso da coca por nativos e espanhóis era comum.113

A história da transnacionalização do controle penal de drogas, com a criminalização do uso e da venda das substâncias consideradas ilícitas, é recente: ela começa no século XX. É a partir das décadas de

111 A expressão “transnacionalização do controle penal de drogas”, usada por DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990, significa a exportação desse controle para outros países. O vocábulo “transnacional” é definido por FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Curitiba: Positivo, 2004, como o adjetivo que designa aquilo que “ultrapassa os limites da nacionalidade”. 112 Sobre a história da cannabis, ver: ROBINSON, Rowan. O grande livro da cannabis. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 64-74. 113 VARELLA, Alexandre Camera. Os vícios de ‘comer coca’ e da ‘borracheira’ no mundo andino do cronista indígena Guaman Poma. In: LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Goulart; FIORE, Maurício; MACRAE, EdwardD; CARNEIRO, Henrique. (Org.) Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 354 afirma que: “Através de achados arqueológicos como cerâmicas com formas que aludem a bolas de coca entre as gengivas e a membrana bucal, de utensílios relacionados com o uso da planta, tal como as chuspas, que são bolsas para carregar folhas de coca (...), percebe-se quão remoto é o costume de mascá-la. (...) De outro lado, o mais provável é que a coca tenha se originado de fato nas selvas que margeiam o lado oriental dos altiplanos andinos (...)”.

Sobre o costume de mascar coca, recomenda-se, ainda: HENMAN, Anthony Richard. A coca como planta mestra: reforma e nova ética. In: LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Goulart; FIORE, Maurício; MACRAE, EdwardD; CARNEIRO, Henrique. (Org.) Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 369-380.

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1970/1980 que a política criminal de guerra às drogas e o estereótipo do traficante como inimigo são difundidos internacionalmente pelos países centrais, notadamente pelos Estados Unidos, na América Latina e no Brasil.

O primeiro tópico deste capítulo mostra como foi moldada a política criminal antidrogas nos Estados Unidos e como se deu a exportação dela e de seus discursos para a América Latina, através de uma normativa internacional: a Convenção Única de Entorpecentes de 1961, o Convênio sobre as substâncias psicotrópicas de 1971 e a Convenção de Viena de 1988.

A falta de um conceito bem delineado de “droga” (o termo pode designar tanto substâncias ilegais, como a cocaína e a heroína, quanto um remédio adquirido na farmácia mediante receita), assim como a ausência de informação sobre os efeitos peculiares de cada uma das substâncias psicoativas contribuíram para a formação do “mito da droga”. Isto é, sua associação ao “desconhecido e proibido e, em particular, temido”114, alimentando a política proibicionista e o discurso de guerra. Ademais, existem razões de natureza política, ideológica e econômica que estão por trás da difusão dessa política proibicionista em grande parte do mundo. 115

No segundo tópico procura-se explicar como o Brasil adequou sua legislação interna às Convenções internacionais da ONU, reproduzindo seus discursos médico-jurídico e político-jurídico, e configurando um modelo de guerra às drogas e ao traficante no Brasil, que se utiliza dos estereótipos do “usuário-doente” e do “traficante-delinquente-inimigo”.

Na terceira parte do capítulo, busca-se demonstrar que a Doutrina da Segurança Nacional, conformada com os modelos jurídico-político e médico-jurídico incorporados pela legislação brasileira sobre a matéria na década de setenta, militarizou a política de drogas e resultou na introdução do estereótipo do traficante como inimigo interno neste país.

O quarto e último tópico trata dos reflexos específicos da implantação do estereótipo traficante-inimigo no Brasil para os sistemas de justiça penal, citando, ainda, outras consequências negativas. Esses resultados, como se verá, confirmam o fracasso da política criminal de drogas atual.

114 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. p. 22. 115 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. p. 21-27.

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2.1 A transnacionalização do controle penal de drogas para a América Latina

A repressão internacional às drogas começou com a Convenção

Internacional do Ópio, adotada pela Liga das Nações em Haia, em 1912, que impunha limites à produção e venda de ópio e derivados, culminando com a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena)116.

Todavia, o processo de transnacionalização do controle penal de drogas para a América Latina foi efetivamente realizado através da ratificação de três Convenções das Nações Unidas sobre drogas pelos países daquele continente: a Convenção Única de Entorpecentes de 1961 (revogou as convenções anteriores e foi revista por um protocolo em 1972), o Convênio sobre as substâncias psicotrópicas de 1971 e a Convenção de Viena de 1988.

De acordo com Lola Anyar de Castro, é com a Convenção das Substâncias Psicotrópicas de Viena de 1971 que os Estados Unidos117 consolidam a imposição do critério proibicionista. As diretrizes ditadas por esse diploma são seguidas pelas legislações dos países latino-americanos, dentre eles, pelo Brasil. Isso acontece após a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA consolidam seu poder sobre a ONU (Organização das Nações Unidas). Assim, este país consegue “instituir uma política internacional, estreitamente associada aos órgãos da droga das Nações Unidas, em quase todos os países do mundo”. 118

116 Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena). Disponível em <https://www.coaf.fazenda.gov.br/downloads/ Convencao_de_Viena.pdf>. Acesso em: 02 out. 2010. 117 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino. 2003. p. 25-45, traz um histórico da legislação caseira norte-americana desde o início do século XX, apontando as origens do proibicionismo dentro do país. O autor narra a trajetória legislativa desde o “Food Drug Act” de 1906 (que não proibiu nenhuma droga psicoativa, mas apenas regulou sua produção e venda), passando pela Lei Seca, vigente de 1919 a 1933, (que proibiu a produção, circulação, importação, exportação e comércio de álcool nos EUA, e fomentou o comércio ilegal de bebidas alcoólicas, sem diminuir seu consumo), até as décadas de sessenta e setenta, quando começaram as campanhas de guerra às drogas. O fortalecimento do proibicionismo dentro dos EUA influenciou sua postura no cenário internacional. 118 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 174.

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Rosa Del Olmo, em sua obra clássica “A face oculta da droga” 119, relata como foi moldada a política criminal antidrogas nos Estados Unidos, e como se deu a exportação dela e de seus discursos para a América Latina. Até os anos cinqüenta, a droga não era tratada como um grande problema porque não tinha a mesma importância econômico-política da atualidade. Tanto na Inglaterra, como nos EUA e na América Latina, a droga (como a maconha e os opiáceos) estava associada aos grupos marginais, mas não existia a preocupação de hoje em relação ao controle de sua circulação.120

Del Olmo registra que nos anos sessenta, década dos movimentos sociais e da “contracultura”, houve a popularização do uso de drogas como a maconha e o LSD. A droga não se restringia mais aos guetos, aos pobres e delinqüentes: a juventude branca norte-americana também passou a consumi-la como símbolo de contestação. Ela passou a ser associada aos movimentos de ruptura e, portanto, deveria ser combatida.121

Para fundamentar o pânico criado em relação às drogas, surgiu o que Del Olmo chama de “discurso médico-sanitário-jurídico”. Esse discurso relacionava a droga, necessariamente, à dependência, enfatizando a necessidade médica de seu combate e difundindo a “ideologia da diferenciação”. A partir de então, o consumidor passou a ser qualificado como doente, e o traficante como delinqüente. Sobre o consumidor recairiam medidas de tratamento, enquanto ao traficante seria dispensado o tratamento repressivo-penal.122

O corolário do discurso veiculado neste período é a Convenção Única de Entorpecentes de 1961.123 A Convenção Única de 1961 instituiu um sistema internacional de controle, estabelecendo a obrigatoriedade de incorporação de suas normas nas legislações internas das partes 124. O documento reforçou o controle sobre a produção, distribuição e comércio das drogas listadas em seu anexo, prevendo, ainda, que as partes adotariam medidas preventivas e repressivas contra

119 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990. 120 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. p. 29-31. 121 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. p. 33-38. 122 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. p. 33-38. 123 Convenção Única de Entorpecentes de 1961. Disponível em <http://www.unodc.org/pdf/ brazil/Convencao%20Unica%20de%201961%20portugues.pdf >. Acesso em: 02 out. 2010. 124 O artigo 4º da Convenção Única de 1961.

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o tráfico ilícito de entorpecentes e o tratamento médico para os toxicômanos 125.

Foi através da ratificação da Convenção de 1961 que o controle penal antidrogas começou a ser, gradualmente, inserido na América Latina. No final da década de sessenta, alguns países latino-americanos já haviam ratificado o documento e adequaram sua legislação a ele, em que pese o fato de o consumo de drogas, neste continente, não ter a mesma magnitude que nos EUA. Como observa Rosa Del Olmo:

A Venezuela, por exemplo, modificaria seu Código Penal para aumentar as penas; o Brasil promulgaria o decreto-lei n. 159 em 1967, cujo título fala em ‘substâncias que produzam dependência’. A Colômbia sancionaria o decreto 1.136 de 1970, pelo qual se dispõe, como medida de proteção social, ‘a reclusão clínica da pessoa que perturbe a paz pública quando se achar em estado de intoxicação’.126

Já na década de setenta, Del Olmo destaca que uma grande operação 127 realizada para barrar a entrada de “maconha” nos Estados Unidos, através do México, estimulou o consumo de novas drogas entre os norte-americanos, como a heroína. Esta substituiu a maconha, tornando-se a droga do momento, sendo que o uso dela entre os ex-combatentes dos Vietnã, por exemplo, serviu para fomentar o “discurso jurídico-político da droga”. Esse discurso responsabilizava os países produtores da droga pelo consumo dentro dos Estados Unidos e alçou a droga e o traficante à categoria de “inimigo interno”.

125 O art. 35 prevê a adoção, pelas partes, de medidas legais contra o tráfico ilícito de entorpecentes no plano nacional, bem como a cooperação internacional e a assistência mútua entre os países signatários “para manter uma luta coordenada contra o tráfico ilícito”. O art. 36 discorre sobre as medidas penais aplicadas ao tráfico, estabelecendo que “as infrações graves sejam castigadas de forma adequada, especialmente com pena prisão ou outras de privação da liberdade.” O artigo 38 prevê que as “Partes darão especial atenção à concessão de facilidades para o tratamento médico, o cuidado e a reabilitação dos toxicômanos”, confirmando a adoção do discurso médico-jurídico – que distingue usuário-doente do traficante-delinquente – pela Convenção. 126 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 37. 127 A “Operação Intercept”, que tencionava impedir a entrada de drogas (maconha, sintéticos e cogumelos), vindas do México, nos EUA. Essa operação foi um fracasso, pois além de não atingir seu objetivo, ainda estimulou o consumo de novas drogas.

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Em 1972, o presidente americano Richard Nixon declarou a “guerra às drogas”, identificando-a como o “inimigo número um” da América. É neste governo que os discursos norte-americanos começam a ser exportados de forma mais incisiva, inclusive para a América Latina. São lançadas campanhas midiáticas por toda esta parte do continente, divulgando o alarme social contra as drogas.

Lola Anyar de Castro128 relata que entre 1970-1972 e em 1984 foram lançadas duas grandes campanhas antidrogas na Venezuela, por influência norte-americana. A campanha de 1970-1972 concentrou-se no combate da maconha e incidiu mais sobre o consumo do que sobre o tráfico. Foi difundido o estereótipo que associava o consumidor ao estudante subversivo ou ao deliquente. O contexto era o da Revolução de maio de 1968 e dos movimentos contestadores nos EUA.

Já a campanha de 1984, segundo Castro129, concentra-se sobre o consumo e produção de cocaína. Ela acontece quando a Venezuela passava por um momento de transição de governo. Após o país enfrentar a crise do petróleo, a incapacidade de saldar dívidas e escândalos de corrupção, o novo governo tomou posse com a responsabilidade de impor a ordem. Assim, sua primeira medida foi a elaboração de um pacote econômico, com a redução de salários, aumento de preço de combustíveis e do custo de vida. A campanha contra as drogas iniciada nesse momento adverso, portanto, teria o objetivo de desviar a atenção dos venezuelanos de seus problemas internos.

Após as campanhas de 1970-1972 e de 1984, foram enviados recursos para a Venezuela investir no combate às drogas, houve o aumento da militarização no país, e as Comissões do Congresso venezuelano anunciaram a elaboração de projetos de lei mais repressivos sobre a matéria.130

Como se pode perceber, as campanhas de guerra às drogas têm sua funcionalidade dentro de cada país. Na Venezuela, por exemplo, ao mesmo tempo em que ocultaram problemas internos, legitimaram a crescente militarização e um controle penal. Tudo isso sem resolver efetivamente o problema das drogas.

Da mesma forma que a Venezuela, outros países latino-americanos aderiram às campanhas antidrogas na década de setenta, as quais culminaram na adoção de uma normativa jurídica internacional

128 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 181-182. 129 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 182-183. 130 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 189-192.

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mais repressora. O primeiro passo foi a promulgação de várias leis seguindo a Convenção Única de 1961:

Em quase todos os países da América Latina se observa de maneira simultânea, durante os primeiros anos da década de setenta, a regulação do discurso jurídico. O primeiro passo foi a promulgação de leis especiais em resposta às sugestões da Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 da ONU. O primeiro país foi o Equador em 1970, com sua lei n. 366 de Controle e Fiscalização do Tráfico de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, seguido pelo Brasil e sua Lei n. 5.726 ou Lei Antitóxicos de 1971; em seguida o Paraguai e a Costa Rica em 1972, e nesse mesmo ano o Peru aprova seu decreto lei n. 19.505; em 1973 a Bolívia com seu decreto n. 11.245 ou Lei Nacional de Controle de Substâncias Perigosas, o Chile com sua Lei 11.794 para reprimir o tráfico, e o México sanciona o Código Sanitário dos Estados Unidos Mexicanos; Colômbia, Uruguai, Argentina e Jamaica promulgam suas leis sobre estupefacientes em 1974; a República Dominicana em 1975, a Lei 168, a Venezuela elabora um anteprojeto em 1974, que não foi sequer discutido, porque ocorreu aos legisladores incluí-lo na regulamentação sobre o álcool e tabaco.131

Na Argentina, Enrique García Vitor afirma que o Código de

1921, a lei 20.771/74 e a lei 23.737/1989 foram reflexos da “homogeneização da legislação sobre drogas (...) que se deu na América Latina a partir da aceitação das recomendações sugeridas pela Convenção Única sobre Estupefacientes de Nova York de 1961”, cujas disposições estariam caracterizadas por uma “filosofia moralizante e totalitária”.132

Em 1971, a ONU aprovou nova convenção – o Convênio sobre as substâncias psicotrópicas. – e, em 1972, o Protocolo que o modificou, acrescentando substâncias que não estavam na lista daquelas proibidas.

131 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 37. 132 GARCÍA VITOR, Enrique. Aspectos políticos criminales en matéria de drogas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 16, p. 63-76, out-dez. 1996.

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A Convenção de 1971 foi adotada por 104 países. Não obstante, os EUA só a ratificou em 1980.

Aspectos políticos e econômicos do tráfico provocaram uma mudança nos discursos sobre a droga nos anos oitenta. Del Olmo133 relata que, além de o consumo dentro do EUA ter crescido consideravelmente, o fluxo de dinheiro proveniente do tráfico no mercado financeiro internacional começou a desestabilizar a economia. Passou-se, portanto, a controlar a economia subterrânea das drogas além das fronteiras norte-americanas mais intensamente. Para legitimar esse controle, foi lançado o discurso jurídico transnacional, que atribuiu o problema da droga não mais ao consumo interno, mas ao tráfico realizado pelos países acusados de produzir entorpecentes – mais especificamente, a cocaína134 – como a Colômbia. Esse discurso pregava que era necessário controlar o comércio ilícito além das fronteiras norte-americanas, a fim de diminuir o consumo dentro do país.

Os Estados Unidos passaram a considerar o comércio internacional de entorpecentes como problema de segurança nacional. A droga foi alçada à categoria de “inimigo externo”, e os países dividiram-se em países inimigos e países vítima do tráfico. Foi divulgado, ainda, o estereótipo criminoso latino-americano, mais especificamente colombiano, relacionando este país ao tráfico e à narcoguerrilha. 135

O primeiro reflexo do discurso transnacional foi a ratificação da Convenção Única de Estupefacientes de 1961 da ONU e do Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 pelos Estados Unidos. Isto porque não “se poderia implementar este novo discurso se não se acolhia, como o haviam feito há vários anos mais de 100 países, a normativa internacional”136.

De acordo com Maria Lucia Karam, o discurso transnacional manifestou-se, ainda, no uso da nomenclatura de impacto “narcotics” para designar a droga (quando na verdade, a cocaína, droga mais combatida, não é um narcótico, mas um estimulante); na criação de

133 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 55-59. 134 De acordo com DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 47-48, a partir de 1976, o discurso de guerra às drogas é vinculado a uma droga específica: a cocaína. A cocaína toma o lugar da heroína, e o seu consumo aumenta dentro dos EUA. A autora atribui este aumento ao fato de que houve uma grande destruição de plantações de amapola no México nesta época, e também à publicidade dada à cocaína, droga associada ao êxito econômico e ao prestígio social nos anos oitenta. 135 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 59. 136 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 58.

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planos de erradicação de plantações de maconha e coca no México e Colômbia, com o uso de agrotóxicos extremamente prejudiciais à saúde, proibidos nos EUA; nas intervenções militares diretas (são exemplos a Operação “Blast-Furnace” na Bolívia, em 1986, quando soldados norte-americanos desembarcaram no país sem conhecimento do Chefe do exército boliviano, para efetuar uma operação antidrogas; e a invasão do Panamá, pelos EUA, em 1989, para prender o general Manuel Noriega, condenado por tráfico de drogas pela justiça americana).137

O ápice da política proibicionista e de sua transnacionalização foi a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena)138. Esta Convenção foi assinada por vários países, sendo que o Brasil ratificou-a através do Decreto Lei n. 154, de 26 de junho de 1991.

A Convenção de Viena de 1988 estendeu os instrumentos de repressão e controle do tráfico ilícito de entorpecentes internacionalmente (já presentes nas Convenções de 1961 e 1971), pretendendo a erradicação das drogas e primando pela cooperação internacional para atingir tal objetivo. Há, ainda, grande preocupação com a associação do tráfico às organizações criminosas internacionais.

A Convenção de 1988, assim como as anteriores, seguiu a política de “guerra às drogas”, guerra esta que, como observa Maria Lúcia Karam, “não é apenas contra as drogas, dirigindo-se sim, como quaisquer guerras, contra pessoas; aqui contra as pessoas dos produtores, distribuidores e consumidores das substâncias e matérias-primas proibidas”.139 O resultado da adoção desses postulados pelos países signatários foi a promulgação de uma legislação ainda mais repressiva, abandonando os princípios previstos nas Constituições dos Estados Democráticos de Direito.

O documento previu uma série de novos dispositivos que vêm incrementar a repressão e fortalecê-la internacionalmente. Como exemplo, temos o art. 9º, que reforça a necessidade de cooperação internacional; o artigo 7º, que alarga as hipóteses de extradição, e o artigo 5º, que regula o confisco de bens provenientes do tráfico ilícito de entorpecentes.

137 KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luam, 1993. p. 42. 138 Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena). Disponível em <https://www.coaf.fazenda.gov.br/ downloads/Convencao_de_Viena.pdf>. Acesso em: 02 out. 2010. 139 KARAM, Maria Lucia. Políticas de drogas: aspectos dogmáticos e criminológicos. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre. n. 23. p. 78. jul-dez. 2006.

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A Convenção pretendeu, também, a uniformização da descrição do tipo penal de tráfico pelos países signatários140 e ampliou as condutas identificadas como crimes relacionados com drogas. Ela considerou autonomamente crimes relacionados ou identificados ao tráfico de drogas, quando tais condutas poderiam funcionar como circunstâncias agravantes, violando, assim, o princípio da proporcionalidade.141

A Convenção de Viena adotou, ainda, medidas para reprimir a lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas. Em seu artigo 3º, § 1º, foi definido juridicamente o crime de lavagem de capitais pela primeira vez, sendo distinguidas as condutas de conversão, dissimulação e utilização de bens adquiridos com o lucro de delitos relacionados a drogas. Vários países reproduziram este tipo penal em suas legislações internas, incluindo o Brasil, que criminalizou a conduta no inciso II do artigo 2º da Lei 9.034/95.

João Carlos Castellar142, em sua obra “Lavagem de dinheiro – A questão do bem jurídico” discorre sobre a origem da incriminação da conduta de lavagem de dinheiro e sua relação com a política-criminal de drogas norte-americana inserida no Brasil:

Somente no final dos anos 80, mais precisamente no ano de 1988, é que as Nações Unidas, lideradas como sempre pelos Estados Unidos e seguindo sua política para o trato da matéria, (…) votaram e aprovaram a chamada Convenção de Viena sobre lavagem de dinheiro, com o escopo de considerar como específico a conduta de quem, num momento posterior à produção, comércio e consumo, dissimulasse os ganhos aí obtidos. Aqui tem início a criminalização da lavagem de dinheiro, trazendo em seu rastro uma profunda modificação das legislações dos países signatários da Convenção, os quais, além de tipificarem as condutas afetas ao tráfico de drogas, estenderam as recomendações constantes da normativa a inúmeros outros delitos, o que resultou numa onda

140 Isso foi feito no artigo 3, § 1º, da Convenção de 1988. 141Neste sentido, ver: KARAM, Maria Lucia. Políticas de drogas: aspectos dogmáticos e criminológicos. p. 80. 142 CASTELLAR, João Carlos. Lavagem de dinheiro - A questão do bem jurídico. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

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punitiva bastante intensa, mas de cunho político-criminal marcadamente simbólico (...).143

Ademais, outros dispositivos repressivos do documento chamam

a atenção. Há a recomendação de pena privativa de liberdade para os crimes de tráfico (o que já havia na Convenção de 1961) e de restrição ao livramento condicional, há a previsão de qualificadoras, elevando penas, além de prazos diferenciados para a prescrição.144

A Convenção de 1988 prevê também quebra de sigilo bancário, técnica de entrega vigiada ou controlada 145 e meios de busca de prova que violam princípios do Estado Democrático de Direito, como a quebra de sigilo de dados pessoais, a interceptação telefônica, a infiltração de policiais e a delação premiada. Sobre a arbitrariedade de tais meios de prova, observa Maria Lúcia Karam, que:

Para insidiosa e indevidamente obter a verdade através do próprio indivíduo que se pretende venha sofrer a pena, o expandido poder punitivo assim espalha instrumentais de escuta, de interceptação de comunicações, câmeras ocultas, intensificando o controle e atingindo a liberdade e a intimidade, não apenas daquele que está sendo investigado ou processado, mas de todos os indivíduos. 146

A pretexto de se reprimir o tráfico de drogas são utilizados meios

de prova e institutos (como a delação premiada147, por exemplo) que contrariam os princípios do Estado Democrático de Direito. Como afirma Karam148, a busca da “verdade real” através de interceptações, flagrante esperado, câmeras ocultas, infiltração, além de violar o direito à privacidade, usa o próprio indivíduo que sofrerá a pena como meio de

143 CASTELLAR, João Carlos. Lavagem de dinheiro - A questão do bem jurídico, p. 105. 144 Sobre todas essas impropriedades da Convenção de Viena, ver mais detalhadamente: KARAM, Maria Lucia. Políticas de drogas: aspectos dogmáticos e criminológicos. 145 A técnica de entrega vigiada ou controlada (controled delivery) consiste no retardamento do flagrante, a fim de obter mais provas e prender um número maior de envolvidos. 146 KARAM, Maria Lucia. Políticas de drogas: aspectos dogmáticos e criminológicos, p. 83. 147 Delação premiada é o instituto que garante a redução da pena ao acusado que delatar co-autor do crime. Esse instituto tem sido alvo de muitas críticas. 148 KARAM, Maria Lucia. Políticas de drogas: aspectos dogmáticos e criminológicos, p. 84.

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produção de prova, violando a garantia de que ninguém é obrigado a se auto-incriminar.

Sobre a violação do direito à privacidade de alguns indivíduos, a fim de assegurar a busca da verdade real, interessante citar a tese de Tulio Vianna149 em “Transparência pública, opacidade privada”.

Vianna150 afirma que o controle na sociedade pós-disciplinar caracteriza-se pelo uso da tecnologia “monitorar, registrar, reconhecer” com objetivo de reconhecer e filtrar o indivíduo “anormal”, separando-o da sociedade dos “normais”. O objetivo do controle atual não é mais aquele próprio da sociedade disciplinar - que visava vigiar e reprimir condutas e moldar o comportamento dos indivíduos -, mas sim “captar informações que serão analisadas estatisticamente para a criação de filtros de controle biopolítico”.151

O método invasivo do “monitorar, registrar, reconhecer” confronta com o “direito à privacidade”, “concebido como uma tríade de direitos – direito de não ser monitorado, direito de não ser registrado e direito de não ser reconhecido (direito de não ter registros pessoais publicados)” .152 Este direito é um dos pilares do Estado democrático de direito.

De acordo com Vianna153, o controle através da tecnologia “monitorar, registrar, reconhecer” é reservado aos “inimigos” da sociedade:

A vigilância eletrônica, o banco de dados e a identificação biométrica não são instrumentos de um controle social irrestrito, que vigia a todos igualmente, mas um filtro que pretende manter a segurança (fazer viver) dos mais aptos da espécie (amigos) abandona à sua própria sorte (deixa morrer) os menos aptos (inimigos).

O autor conclui, portanto, que nesses casos em que o controle é

utilizado para filtrar os “anormais”, vigora não o Estado de Direito, mas um Estado de Exceção:

149 VIANNA, Tulio. Transparência pública, opacidade privada. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 150 VIANNA, Tulio. Transparência pública, opacidade privada, p. 143-151. 151 VIANNA, Tulio. Transparência pública, opacidade privada, p. 149. 152 VIANNA, Tulio. Transparência pública, opacidade privada, p. 116. 153 VIANNA, Tulio. Transparência pública, opacidade privada, p. 170.

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O símbolo da sociedade de controle não é, pois, o panóptico, mas a cidade sitiada em estado de sítio (…) O Estado de Direito cede lugar para o estado de exceção, no qual os direitos individuais são afastados para se combater o inimigo da sociedade – o homo sacer – que, por ser improdutivo, é um entrave ao bom desenvolvimento da espécie.154

Por último, observa-se que a Convenção ainda impõe a

criminalização da posse para uso pessoal155, estabelecendo que o agente deva ser “submetido a medidas de tratamento, de educação, de pós-cura de reabilitação e de reinserção social” 156. A criminalização da posse para o consumo pessoal foi bastante questionada na época em que a Convenção foi elaborada, pois viola o princípio da lesividade (já que o uso de drogas não atinge qualquer bem jurídico alheio), bem como as normas de declaração universal de direitos que garantem o respeito à vida privada. Ademais, tal medida marginaliza os usuários, além de dificultar medidas de redução de danos para os adictos, com controle da qualidade da droga e das condições de higiene para o consumo, tornando as substâncias psicoativas mais prejudiciais à saúde. 157 Aliás, por esses motivos, a tendência na Europa (Portugal, Itália, Espanha), nos últimos anos, tem sido a de descriminalização ou despenalização da posse para uso pessoal.

154 VIANNA, Tulio. Transparência pública, opacidade privada, p. 168. 155 Artigo 3º, § 2º, da Convenção de Viena. 156 Artigo 3º, § 4º, “b”, da Convenção de Viena. 157 Sobre os custos sociais da criminalização da posse de drogas para o uso pessoal, recomenda-se: BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias. Revista Juridica Online - Universidad Católica de Guayaquil, Equador. 7 ed. p. 197-224; KARAM, Maria Lucia. Política de drogas: Alternativas à repressão penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 47, p. 360-375, mar./abril. 2004; KARAM, Maria Lucia. Drogas: a irracionalidade da criminalização. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 45, p. 09-10, ago. 1996; KARAM, Maria Lucia. Drogas e redução de danos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 64, p. 128-144, jan-fev. 2007; SANTOS, Licurgo de Castro. Tóxicos: algumas considerações penais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 2, p. 120-126, jan./mar. 1994.

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2.1.1 O “mito da droga” como reforço das campanhas de “guerra às drogas”

É importante ressaltar que as campanhas de “guerra às drogas”

disseminadas na América Latina foram reforçadas por aquilo que Rosa Del Olmo chamou de “mito da droga”.158 A falta de um conceito bem delineado de droga (o termo é usado para designar tanto substâncias como a cocaína e a heroína, como também remédios controlados, por exemplo), e de esclarecimento sobre os efeitos específicos de cada uma delas, contribuiu para a criação de um tabu sobre elas.159

A Organização Mundial de Saúde define droga como toda “substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas produzindo alterações em seu funcionamento”160; porém cumpre considerar que existem diversas substâncias lícitas (como o café e o álcool, por exemplo) que poderiam ser enquadradas nesse conceito.161

Antonio Escohotado162 observa que, antes do surgimento de leis proibicionistas, a definição de droga mais comum era a palavra grega “phármakon” designa uma substância que é remédio e veneno ao mesmo tempo. Ou seja, um composto cujos efeitos dependeriam da forma como se faz o uso dele. Hoje, usam-se termos iguais para designar drogas completamente diferentes; não há preocupação de política criminal em elaborar um conceito e uma classificação séria das substâncias.

Escohotado163 afirma que existem várias classificações para drogas, de acordo com sua composição química ou conforme a sua licitude ou ilicitude. Não obstante, adverte que, ao buscar uma classificação objetiva, não se deve misturar ética, direito e química. Deste modo, o autor propõe uma classificação baseada nos efeitos de cada droga, dividindo-as em três grupos: drogas apaziguadoras (usadas para alívio da dor, do sofrimento e do desassossego), drogas estimulantes (são euforizantes e afastam o cansaço) e drogas

158 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 21. 159 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 21-27. 160 Observatório Brasileiro de Informações sobre drogas. Desenvolvido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) – Governo Federal. Disponível em: <http://www.obid.senad.gov.br >. Acesso em: 20 out. 2010. 161 Neste sentido, ver também: KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias. p. 25-27. 162 ESCOHOTADO, Antônio. O livro das drogas. São Paulo: Dynamis, 1997. p. 35. 163 ESCOHOTADO, Antônio. O livro das drogas, p. 36.

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alucinógenas (“proporcionam – ou prometem – um tipo de excursão a zonas não percorridas do ânimo e da consciência”164).

No grupo das drogas apaziguadoras estariam o ópio, a morfina, a codeína, a heroína, os sucedâneos sintéticos do ópio (metadona, buprenorfina, pentazocina), os tranqüilizantes usados para tratamento de psicoses e neuroses, os soníferos, o clorofórmio, o éter e o álcool. Entre as drogas estimulantes estariam o café, a coca, a cocaína, o crack, as anfetaminas e a cafeína. Finalmente, no grupo dos alucinógenos, estariam o ecstasy, os derivados do cânhamo, a maconha, o skunk, o haxixe, a mescalina, LSD, ergina, cogumelos como o peiote, ayhuasca, entre outros. O autor acrescenta que a toxidade de cada substância depende não só das propriedades farmacológicas dela, mas da quantidade, do objetivo do uso, da qualidade e das condições e modelos culturais de consumo.165

Atualmente, os termos utilizados para designar as substâncias psicoativas não se deparam com qualquer classificação. Thiago Rodrigues166 destaca que a mídia e a própria polícia costumam usar expressões genéricas como narcóticos e entorpecentes para designar as drogas ilícitas. Na verdade, apenas as drogas apaziguadoras podem ser chamadas de narcóticos; um estimulante como a cocaína jamais poderia ser classificado assim.167

O termo tóxico (usado na lei 6.368/76) também não é adequado, pois a toxidade de cada droga dependerá não só da natureza do psicoativo, mas de outros fatores, como qualidade e quantidade, como visto. Da mesma forma, a palavra “droga” também é usada genericamente, para qualificar as substâncias proibidas pela lei, quando no campo médico-farmacológico, por exemplo, o termo é usado como sinônimo de “remédio”.

Na verdade, a falta de um conceito e classificação adequados para as substâncias psicoativas é conveniente e funcional, pois alimenta o mito da droga, colocando-a na posição de bode expiatório, de causadora de todos os males da sociedade, fundamentando o discurso dominante proibicionista.

164 ESCOHOTADO, Antônio. O livro das drogas, p. 39. 165 ESCOHOTADO, Antônio. O livro das drogas, p. 36-39. 166 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra, p. 20-22. 167 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra, p. 20.

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Nils Christie168 observa que apesar de produtos como o cigarro, o licor, o café, a maconha, a heroína e a manteiga serem potencialmente danosos para a saúde, apenas alguns deles são proibidos. O fato de serem mais ou menos prejudiciais não é o que determina sua ilegalidade. No mesmo sentido, escreve Thomas Szasz169:

1. Ningún control especial del gobierno limita las ventas: por ejemplo, café, aspirina, laxantes. Producidas por empresarios privados; distribuidas a través del libre mercado. Los productos se denominan 'alimento', 'brebaje' o 'droga sin receta'; el vendedor, 'comerciante', el comprador, 'cliente'. 2. El gobierno ajerce un control que limita las ventas: a) A adultos; por ejemplo, alcohol y tabaco. Producidas por empresarios privados; distribuidas a través del libre mercado o com licencia estatal. Los productos se llaman 'cerveza', 'vino', 'cigarrillo'; el vendedor, 'comerciante'; el comprador, 'cliente'. (…) 3. El gobierno controla prohibiendo ventas a cualquiera: por ejemplo, heroína, crack. Producidas ilegalmente a través del mercado negro. El producto se llama 'droga peligrosa' o 'droga ilegal'; el vendedor, 'camelo' o 'traficante'; el comprador, 'adicto' o 'persona que abusa de drogas'.

Na verdade, a ilegalidade de algumas drogas é essencial para

justificar uma suposta situação de emergência, originando campanhas de lei e ordem e um controle penal mais autoritário. Como afirma Christie, a droga é o “extraordinariamente útil como o maior inimigo em uma situação de guerra”170, servindo, ainda, como explicação para problemas sociais como a miséria e a violência e para desviar a atenção sobre outras drogas, como o cigarro e o álcool, livremente comercializados.

Maria Lucia Karam171 afirma que as drogas ilícitas são sempre apresentadas como algo cercado de mitos e fantasias, impedindo o 168 CHRISTIE, Nils. Reflections on drugs. Disponível em: <http://www.drugtext.org/library/ articles/christie1.html>. Acesso em: 01 out. 2010. 169 SZASZ, Thomas. Nuestro derecho a las drogas. Barcelona: Anagrama, 1993. p. 53. 170 CHRISTIE, Nils. Reflections on drugs. Disponível em: <http://www.drugtext.org/library/ articles/christie1.html>. Acesso em: 01 out. 2010. 171 KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias, p. 27-29.

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debate racional da questão. As ações pedagógicas demonizam a droga e não esclarecem sobre seus reais efeitos.

Ademais, conforme Karam, a droga não é o maior problema de saúde pública nos países periféricos. No Brasil, por exemplo, a falta de controle de doenças que podem ser prevenidas por vacinas e a desnutrição suplantam o vício da droga. O álcool é um problema muito mais recorrente que a droga. A maioria das internações é em razão do abuso de álcool.172

Por outro lado, a ausência de definição clara do que é droga permite separá-la em lícitas e ilícitas conforme a conveniência.

Na verdade, as drogas produzidas pelos países periféricos são as que passaram a figurar na lista de substâncias mais perigosas. A “Single Convention” de 1921, por exemplo, relacionou a maconha e a heroína (produzidas nos países periféricos) como perigosas, deixando de fora drogas como o álcool e o tabaco. Também não existe controle sobre os produtos farmacêuticos produzidos nos países centrais. Alguns deles são proibidos nos países de origem e comercializados livremente nos países periféricos.173

Antonio Escohotado174 afirma que os chamados “tranqüilizantes menores” (também conhecidos como “ansiolíticos”) usados para controle da ansiedade, apesar de possuírem efeitos negativos, são substâncias vendidas mediante receita médica em vários países, sendo que em 1985, “as Nações Unidas reconheceram que 600 milhões de pessoas no mundo tomavam todos os dias um ou vários ansiolíticos”. O autor afirma que a proposta de controle dessas substâncias, feita pelos países periféricos, não foi aceita sob o argumento de que não teriam “potencial de abuso”:

Vale a pena saber que os países do Terceiro Mundo propuseram várias vezes controlar esse uso, e que os países desenvolvidos, fabricantes dos mesmos, tendem a considerá-los ‘sem potencial de abuso’. Concretamente, os Estados

172 KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias, p. 22-25.

De acordo com o III Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil - 2005. Disponível em: http://obid.senad.gov.br. Acesso em 02 fev. 2011, foi registrado o uso de álcool entre homens na faixa etária entre 18-24 anos, no ano de 2005, na porcentagem de 83,2%. A porcentagem do uso de maconha observado na mesma fixa etária masculina foi 21,8%, o de cocaína foi de 5,3%, o de crack de 1,1%, o de heroína foi de 0,1 %. 173 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 175-176. 174 ESCOHOTADO, Antônio. O livro das drogas, p. 105.

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Unidos propuseram, repetidas vezes, convertê-las em mercadorias de venda livre. Os ansiolíticos respondem, hoje, pela metade de todos os psicofármacos receitados no planeta.175

Percebe-se, pois, que a falta de um conceito bem delimitado de

droga serve para que se possa selecionar livremente quais as substâncias serão alvo da proibição, sem qualquer embasamento ou estudo específico fundamentando essa escolha.

2.1.2 Os motivos políticos e econômicos que impulsionaram a transnacionalização do controle de drogas.

Os verdadeiros motivos políticos, ideológicos e, principalmente,

econômicos da difusão e aceitação dessa política proibicionista posta em prática em grande parte do mundo, são geralmente ocultados. De fato, a literatura criminológica registra a influência que o desenvolvimento do capitalismo teve na economia das drogas.

No contexto econômico capitalista, a droga torna-se uma mercadoria, transformando-se em um negócio dos mais rentáveis. Os países periféricos tornaram-se os maiores produtores e exportadores de matéria-prima para confecção das drogas consideradas ilícitas, cabendo aos países centrais o papel de consumidores. A droga passou ser considerada uma economia alternativa para países em crise da América Latina, como a Colômbia e a Bolívia. Os cultivos tradicionais foram substituídos pelo cultivo da coca e da maconha, mais lucrativos.

De acordo com Castro, desenvolveu-se com isso uma classe emergente de “empresários da droga”, muitas vezes ligados às instituições de maior poder da sociedade, que, assim, não têm interesse em acabar com o tráfico. O dinheiro proveniente do comércio ilícito seria “lavado” e injetado novamente na economia com aparência de licitude.176 Anyar de Castro destaca que as “fortunas rapidamente

175 ESCOHOTADO, Antônio. O livro das drogas, p. 105. 176 MAGALHÃES, Mario. O narcotráfico. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 63 observa que: “Segundo o FMI, de 2% a 5% do PIB mundial seria 'lavado' – isto é, com origem ilícita. Na hipótese mais alta, o dinheiro 'branqueado' equivaleria a US$ 1,5 trilhão (o PIB mundial foi cerca de US$ 30 trilhões em 1998). É mais do que o dobro, talvez o triplo, das riquezas produzidas no Brasil em 1999 – a conta deveria fechar entre US$ 500 bilhões e US$ 600 bilhões.”

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acumuladas levam às vezes a baixar a cotação do dólar livre, quando há fortes injeções de 'narcodólares' no mercado.”177

Tendo em vista o crescimento da empresa subterrânea das drogas produzidas na periferia, foram desenvolvidas novas formas de controle de sua circulação. Foi criado um sistema jurídico de criminalização de algumas substâncias, disseminado internacionalmente. Contraditoriamente, a ilegalidade das drogas aumentou o valor da mercadoria e estimulou seu comércio, produzindo-se um círculo vicioso. É o que ensina Vera Malaguti Batista:

O problema da droga está situado no nível econômico e ideológico. Com a transnacionalização da economia e sua nova divisão do trabalho, materializam-se novas formas de controle nacional e internacional. Foi criado um sistema jurídico-penal com a finalidade de criminalizar apenas determinadas drogas. O sistema neoliberal produz uma visão esquizofrênica das drogas, especialmente a cocaína: por um lado, estimula a produção, comercialização e circulação da droga, que tem alta rentabilidade no mercado internacional, e por outro constrói um arsenal jurídico e ideológico de demonização e criminalização desta mercadoria tão cara à nova ordem econômica.178

De outro vértice, Del Olmo179 acrescenta que o problema do

consumo interno de drogas nos EUA serviu para legitimar a intervenção diplomática, financeira e militar dos Estados Unidos em outros países. Após o fim da Guerra Fria, a posição de inimigo que pertencia a URSS foi delegada às drogas. Em nome do combate às drogas, a soberania dos Estados muitas vezes foi violada.

No mesmo norte, aponta Baratta: Na realidade, uma análise mais ampla do problema da droga deveria considerar, em primeiro lugar, a interrelação funcional que existe

177 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 180-181. 178 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 82. 179 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, p. 65.

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no sistema econômico mundial entre a circulação legal e ilegal de capitais. Em segundo lugar, deve-se examinar historicamente as amplas oportunidades de controle político das contraculturas que ameaçam o sistema da sociedade norte-americana e européia mediante a dramatização do problema da droga durante a chamada 'crise da heroína' ao final dos anos sessenta, deve-se examinar igualmente as oportunidades de intervenção em outros países que a criminalização da droga permite hoje a favor do sistema internacional de poder (pense-se na intervenção direta ou em ameaças de intervenção de aparatos militares estadunidenses na Bolívia ou em outros países latino-americanos).180

Kai Ambos destaca que frequentemente se acusam os Estados

Unidos de tentarem resolver seus problemas de consumo interno sem se preocupar com os resultados dessa política criminal nos demais países.181 Mauricio Martínez Sanchez, por sua vez, afirma que o combate às drogas é uma guerra travada fora do território norte-americano que produz efeitos catastróficos, como a instauração de uma legislação de exceção que viola direitos fundamentais, a países como a Colômbia.182

É claro que existem outros diversos fatores que contribuíram para a formação do senso comum sobre a necessidade de guerra às drogas qualificadas como ilícitas. Existem vários interesses, que não são de natureza política e que concorreram para a implementação da política criminal de drogas atual.

Pode-se dizer, por exemplo, que o modelo proibicionista tem fundamento moral, que encontra raízes no protestantismo puritano do século XIX, o qual idealiza um modelo de comportamento humano

180 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias. Revista Juridica Online - Universidad Católica de Guayaquil, Equador, 7 ed, p. 217. 181 AMBOS, Kai. Razones Del fracasso Del combate internacional a lãs drogas y alternativas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 41, p. 27-50, jan-mar. 2003. 182 MARTÍNEZ SÁNCHEZ, Mauricio. La política antidrogas em Colômbia y el control constitucional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 48, p. 82-107, maio-jun. 2004.

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baseado na religiosidade e na total abstinência.183 Todavia, sabe-se que a realização plena deste modelo é impossível, pelo fato de que o consumo de drogas é algo comum ao ser humano e presente em todas as culturas. Há quem aponte, ainda, que o proibicionismo do século XX está ligado ao modelo sanitário-social próprio desse período.184

Não obstante, não se pode ignorar que o enfoque político-econômico mostra uma parte importante da história da implementação da atual política criminal antidrogas no mundo. Como bem analisa Anyar de Castro:

O enfoque sociopolítico não é (...) o único. Nem explica todo o fenômeno. Mas permite esboçar as respostas ao quem, quando e ao por que das definições e atitudes políticas, sociais e legais. Assim como permite revelar o oculto e articular os elementos dispersos.185

É importante, ainda, observar que a imposição dessa política

criminal de drogas não foi unilateral. Rosa Del Olmo186, em sua obra “A América Latina e sua criminologia”, afirma que a implementação de postulados criminológicos (e de política criminal, no presente caso) norte-americanos e europeus, na América Latina, foi feita com a aceitação da classe dominante de cada país.

Desde o período colonial, as ideologias européias (como o liberalismo, o racionalismo, o positivismo e a criminologia positivista) foram assimiladas nos países latinos sem questionamentos. As elites dominantes viram nas ideias estrangeiras a oportunidade de romper com seu passado colonial e de impor a ordem, ignorando as peculiaridades dos problemas político-econômicos locais, mantendo sua posição de dominação na ordem interna.187

Por todo o exposto, percebe-se que a situação de emergência criada no século XX (perigo das drogas) e seu discurso de guerra, 183 Neste sentido: RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra, p. 26; RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. (Doutorado em Direito). Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. 184 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 46. 185 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 196. 186 DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2004. 187 DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. p. 157-166.

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proibicionista e criminalizador, legitimaram legislações de exceção violadoras de direitos fundamentais e de princípios constitucionais dos Estados Democráticos de Direito.

A transnacionalização do controle penal de drogas para a América Latina, coordenada pelos países centrais, através de normativa internacional (Convenção Única de Entorpecentes de 1961, Convênio sobre as substâncias psicotrópicas de 1971 e Convenção de Viena de 1988), significou a inserção de uma guerra não só contra a droga e o tráfico, mas contra indivíduos alçados à categoria de inimigo. No próximo tópico será explicado como o Brasil adequou sua legislação interna às Convenções internacional, legitimando a guerra contra seu novo inimigo, o traficante.

2.2 O impacto da transnacionalização no Brasil: a mudança na legislação penal sobre drogas.

A adesão definitiva do Brasil à política criminal de drogas

internacional – dando origem ao que Nilo Batista chama de “modelo belicista” 188 de controle de drogas – começa após o Golpe de 1964 e a instauração da Ditadura Militar, vale dizer, a partir da aprovação da Convenção Única de Entorpecentes de 1961, pelo Decreto 54.216 de 27 de agosto de 1964.189

Salo de Carvalho190, em sua obra “A política criminal de drogas no Brasil” relata como se deu a introdução dos discursos político-

188 BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 20, p. 129-146, out-dez. 1997, divide a política criminal de drogas no Brasil em dois modelos: o sanitário, vigente de 1914-1964, trata o usuário como doente, e se caracteriza pelo aproveitamento de saberes e técnicas higienistas como estratégia de política criminal. O modelo bélico tem início com o golpe de 1964 e com a edição do Decreto 4.451/64. A política criminal, nesse modelo, é influenciada pelos postulados da doutrina da Segurança Nacional (adotados expressamente pela legislação de defesa do Estado durante a ditadura militar) que idealizam o criminoso político como o inimigo a ser eliminado. Assim, a política criminal belicista adota estratégias militarizadas, de guerra, para combater o tráfico. A droga converte-se em um eixo (que une motivos religiosos, morais, políticos e étnicos) sobre o qual é reconstruída a figura do “inimigo interno”, que preenche o lugar da “ameaça comunista” da Guerra Fria, justificando a adoção de medidas autoritárias para reprimir a venda e consumo de drogas. 189 Sobre a legislação que antecedeu o modelo bélico de política criminal, ver: BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 129; CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 10-13. 190 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil.

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jurídico e médico-jurídico na legislação brasileira, desde a década de sessenta até os dias de hoje. 191

Depois da aprovação da Convenção Única de 1961 pelo Brasil, foram promulgadas leis brasileiras regulando a matéria de drogas seguindo as disposições do documento internacional, pautado pela repressão e pela adoção do discurso médico-jurídico, que distingue o usuário-doente do traficante delinquente. Em 10 de fevereiro de 1967 foi editado o Decreto-Lei n. 159192, o qual dispôs sobre “substâncias capazes de determinar dependência física ou psíquica”, dando a elas o mesmo tratamento dispensado aos chamados entorpecentes.193 Com esse documento, o Brasil ampliou o rol de substâncias cujo comércio e uso eram proibidos.

O Decreto n. 385 de 26 de dezembro de 1968194, por sua vez, modificou o artigo 281 do Código Penal. Além de inserir alguns verbos no tipo penal do tráfico e incluir as matérias-primas da droga dentre as substâncias proibidas, criminalizou a posse para consumo próprio e atribuiu ao usuário a mesma pena imposta ao traficante de drogas. Anteriormente, o texto do artigo 281 do Código Penal possibilitava a descriminalização judicial do uso. Havia decisões do Supremo Tribunal Federal que entendiam que, em virtude do princípio da taxatividade, a posse para o uso não estaria incluída no caput do dispositivo. 195

Apesar de o Decreto 385/68 igualar o tratamento do usuário ao traficante e não seguir a tendência do discurso médico-jurídico e da ideologia da diferenciação da Convenção única de 1961, o referido ato legal reproduz a lógica repressiva do documento internacional; este que dispõe que nada impediria que as partes adotassem medidas mais gravosas do que as estabelecidas no texto legal.196 191 A tese sobre a introdução dos discursos político-jurídico e médico-jurídico nas legislações dos países latino-americanos é de DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. 13-27, cujo relato se acompanha nesta parte da exposição, descreve, no específico, como se teria dado a introdução desses discursos nas leis penais brasileiras sobre drogas. Outros autores, como Maria Lucia Karam, Nilo Batista e Vera Malaguti Batista, por exemplo, também discorrem sobre o tema. Todavia, este tópico tem como orientação a obra de Carvalho. 192 Art. 1º do Decreto-lei 159/67 (BRASIL. Decreto-lei 159, de 10 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre as substâncias capazes de determinar dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Disponível em <ww2.prefeitura.sp.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010). 193 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p 16. 194 BRASIL. Decreto 385, de 26 de dezenbro de 1968. Dá nova redação ao artigo 281 do Código Penal. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 195 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 16. 196 Artigo 39 da Convenção Única de 1961.

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Nilo Batista197 observa que o Decreto-Lei n. 385/68 foi editado treze dias após o Ato Institucional n. 05 do regime militar, o qual “ministrou o coup-de-grâce na democracia representativa e garroteou a um só tempo as garantias individuais, a liberdade de expressão e o Poder Judiciário”, o que mostra o compasso entre o regime ditatorial e a política criminal de drogas cada vez mais repressora.

Três anos depois, a Lei 5.726 de 29 de outubro de 1971198 alterou o rito processual dos crimes relacionados à droga, e mudou o tratamento dado ao dependente. A lei estabeleceu, em seu capítulo II, algumas medidas de “recuperação dos infratores viciados”199, preservando o discurso médico-jurídico e a ideologia da diferenciação, que considera o usuário um doente a ser tratado.200

Além disso, a lei 5.726/71 instituiu medidas rigorosas, alterando as regras de expulsão de estrangeiros e colocando os delitos de uso e tráfico de drogas na categoria de crimes contra a segurança nacional.201 As penas também foram aumentadas de 06 meses a 02 anos de reclusão para 01 a 06 anos de reclusão, tanto para o usuário, quanto para o traficante, dispensando tratamento rígido para ambos os casos, frustrando a expectativa de maior benevolência quanto ao uso de drogas.202

197 BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 138. 198 BRASIL. Lei 5.726, de 29 de outubro de 1971. Dispõe sobre medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica e dá outras providências. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010.

Apesar de a Lei 5.726/71 ter sido promulgada nos anos setenta, ela segue a lógica da Convenção Única de 1961. Na verdade, esta lei representa uma espécie de transição para uma política mais repressora, como veremos. 199 Ficou estabelecido, no artigo 10 da Lei 5726/71 que quando o juiz absolvesse o acusado por reconhecer que, em razão do vício, ele não possuísse “a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”, ele ordenaria “sua internação em estabelecimento hospitalar para tratamento psiquiátrico pelo tempo necessário à sua recuperação”. O artigo 11 da Lei 5726/71, por sua vez, dispunha que “Se o vício não suprimir, mas diminuir consideravelmente a capacidade de entendimento da ilicitude do fato ou de autodeterminação do agente, a pena poderá ser atenuada, ou substituída por internação em estabelecimento hospitalar, pelo tempo necessário à sua recuperação.” 200 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 17. 201 Artigo 22 da Lei 5.726/71. 202 Artigo 23 da Lei 5.726/71. CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p 17.

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Como observa Salo de Carvalho, com a lei 5.726/71 tem início o processo de descodificação da matéria relativa a drogas, bem como a consagração do discurso que identifica o usuário como dependente e o traficante com o delinquente. Por outro lado, tal lei adota estratégia de controle de drogas mais rígida. Como escreve o autor:

A legislação preserva o discurso médico-jurídico da década de sessenta com a identificação do usuário como dependente (estereótipo da dependência) e do traficante como delinquente (estereótipo criminoso). Apesar de trabalhar com esta simplificação da realidade, desde perspectiva distorcida e maniqueísta que operará a dicotomização das práticas punitivas, a Lei 5.726/71 avança em relação ao Decreto-Lei 385/68, iniciando o processo de alteração do modelo repressivo que se consolidará na Lei 6.368/76 e atingirá o ápice com a Lei 11.343/06.203

A década de setenta, como visto anteriormente, foi o período em

que surgiu o discurso jurídico-político, que alçou a droga e o traficante à categoria de “inimigo interno”. 204 Nesta década, o presidente Nixon declarou a “guerra às drogas” nos Estados Unidos, e começou a ser exportada a política norte-americana antidrogas, de modo mais incisivo, para a América Latina.

Embora o discurso jurídico-político tenha sido incorporado pela legislação brasileira em matéria de drogas nos anos setenta, cumpre repisar que desde a década de sessenta, com o golpe militar, já haviam sido adotados, pela legislação de defesa do Estado, os postulados da Doutrina da Segurança Nacional, a qual identifica o criminoso político com o inimigo a ser eliminado.205

A doutrina da segurança nacional foi assimilada pelo sistema de segurança pública no Brasil, o qual passou a operar com um modelo militarizado, que tem como base a ideia de eliminação do “inimigo

203 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 17. 204 Esse discurso passou a conviver com o da década anterior (médico-jurídico) que ainda permanece. 205 Neste sentido: BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 137-139; CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 21-23.

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interno”. Essa doutrina e sua estratégia de guerra ao “inimigo interno” ultrapassaram o período ditatorial, trazendo para o sistema penal e para a política criminal de drogas seus conceitos, que sustentam o modelo de repressão às drogas e ao traficante.206

A legislação brasileira, seguindo o discurso jurídico-político, aprovou o Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971207 através do Decreto-legislativo n. 90, de 15 de dezembro de 1971, sendo o instrumento de ratificação juntado em 14 de fevereiro de 1973. Em 14 de março de 1977, o Decreto 79.388 promulgou o Convênio de 1971.

A lei 6.368 de 21 de outubro de 1976208 tomou o lugar da Lei 5.726/71, passando a regular a matéria de drogas no Brasil. A norma possuía 47 artigos divididos em cinco capítulos intitulados “I – Da prevenção; II – Do tratamento e da recuperação; III – Dos crimes e das penas; IV – Do procedimento criminal; V – Das disposições gerais”.

A lei 6.368/76 segue a tendência inaugurada pela lei 5.726/71 e mescla o discurso médico-jurídico com um mais repressor, o discurso político-jurídico, que coloca o traficante na posição de “inimigo interno”. A lei delineia com precisão os estereótipos “dependente-doente” e “traficante-delinquente”, impondo o tratamento coercitivo no capítulo II, e a repressão nos capítulos III e IV.209

O capítulo II da Lei 6.368/76, ao impor o tratamento coercitivo aos usuários-dependentes, criminaliza o adicto (impõe a ele um tratamento que tem mais caráter de pena do que de recuperação), contraria o princípio da voluntariedade do tratamento e amplia a possibilidade de um mero usuário ser tratado como dependente. 210

Já o capítulo III, que estabelece os crimes e penas referentes a drogas, e o capítulo IV, que prevê o procedimento criminal, cuidam da parte da repressão e carregam em seu bojo o discurso político-jurídico.

206 Neste sentido ver: BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 138; BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis. p. 40. CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 21-23 e 36-39. Este assunto será tratado no próximo tópico. 207 Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971. Disponível em <http://www.idt.pt/PT/ RelacoesInternacionais/Documents/ConvencoesInternacionais/convencao_1971.pdf>. Acesso em: 02 out. 2010. 208 BRASIL. Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 209 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 19-27. 210 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 24.

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Como bem observa Carvalho211, apesar de a lei 6.368/76, em seu capítulo III, ter diferenciado o tráfico de drogas (artigo 12) do porte de drogas para uso próprio (artigo 16), houve um aprofundamento da repressão no tratamento dos delitos. Foram acrescentados novos verbos (novos núcleos como “remeter”, “adquirir” e “prescrever”) ao caput do art. 12, bem como uma nova modalidade de crime, a “apologia ao tráfico”, no inciso III do § 2 º do art. 12. A pena do tráfico também foi aumentada de 01 a 05 anos (na Lei 5.726/71) para 03 a 15 anos de reclusão. A posse para o uso pessoal (art. 16 da Lei 6.368/76) foi punida com pena privativa de liberdade – detenção de 06 meses a 02 anos – executada apenas excepcionalmente.

Houve, ainda, a autonomização do crime de associação para o tráfico (artigo 14 – pena de 03 a 10 anos), o qual poderia ser uma mera causa de aumento. Foram previstas, também, causas de aumento de pena no artigo 18, incisos I a IV.

O resultado da diferença de tratamento entre o “usuário-dependente” e o “traficante-delinquente” foi a criminalização exclusiva da juventude pobre que se dedica à venda da droga no varejo. O indivíduo de classe média encontrado com pequena quantidade de droga era enquadrado no artigo 16 da Lei 6.368/76 e apontado como usuário-dependente. O jovem pobre, na mesma situação, era autuado pelo artigo 12 da mesma lei, aplicando-lhe o estereótipo do delinquente-inimigo. 212

O que se aplica, nesse caso, é o que Ledio Rosa de Andrade213 chama de “direito penal diferenciado”: as diferenciações feitas pela lei entre usuário e traficante “levam a um cotidiano forense penal nada igualitário, e, bem ao contrário, discriminador, parcial, repressor dos economicamente mais fracos, ressalvadas raras exceções.” O direito penal diferenciado, também nesse caso, é seguido de uma hermenêutica diferenciada do texto legal.214

211 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p 25. 212 Esta hipótese é confirmada pela pesquisa de BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, que estudou a criminalização por drogas da juventude pobre do Rio de Janeiro entre 1968-1988. 213 ANDRADE, Ledio Rosa de. Direito penal diferenciado. Tubarão: Studium, 2002. p. 23. 214 Neste sentido, ANDRADE, Ledio Rosa de. Direito penal diferenciado, p. 55 afirma que: “Os significantes penais são estrutural e sistematicamente diferenciadores. Mas não só eles. Os significados penais também. Tanto a doutrina como a jurisprudência tradicionais, que, ao final, dão, ou buscam dar, o significado da norma escrita, seguem o mesmo caminho diferenciador na aplicação da tutela jurisdicional criminal. E isso não só em casos particulares ou excepcionais. Ao contráiro, é endêmico.”

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Além disso, o artigo 12 da Lei 6.368/76 não diferencia penas para o pequeno e o grande traficante de drogas: ambos foram punidos com a mesma reprimenda de 03 a 05 anos de reclusão. Apesar de a individualização da pena ficar a cargo do magistrado, o que acontecia na prática era a desproporção do quantum aplicado ao pequeno, médio e grande comerciante de drogas.

A década de oitenta caracterizou-se pela difusão do discurso jurídico transnacional, o qual atribuía o problema da droga ao tráfico realizado pelos países acusados de produzir entorpecentes, afirmando ser necessário controlar o comércio ilícito além das fronteiras norte-americanas. Esse discurso fundamentou a implementação de uma legislação sobre drogas ainda mais rigorosa em todo o mundo, começando com a promulgação, no plano internacional, da Convenção de Viena de 1988, tratada anteriormente.

No Brasil, antes da ratificação da Convenção de 1988 pelo Brasil (pelo Decreto n. 154 de 26 de junho de 1991215), houve a promulgação da Constituição Federal de 1988 em 05 de outubro de 1988216, marcando a transição democrática.

Como observa Carvalho, apesar da ruptura com o regime ditatorial e do tão falado caráter assegurador de vários direitos fundamentais da Constituição de 1988, esta manteve o tratamento repressivo/bélico à matéria de drogas da época da ditadura militar, restringindo direitos fundamentais.217

A Constituição de 1988 dispõe, em seu artigo 5º, inciso XLIII, que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. Deste modo, a Carta Magna estabeleceu a inafiançabilidade e a impossibilidade de concessão de graça ou anistia ao crime de tráfico de drogas, além de equiparar seu tratamento ao dos crimes hediondos.

As normas programáticas da Constituição de 1988, como o inciso XLIII do artigo 5º, deram azo a uma legislação penal e processual penal

215 BRASIL. Decreto 154, de 26 de junho de 1991. Promulga a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 216 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 217 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 43.

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extravagante regulando a matéria de drogas, entre os anos 1990 e 2000, reproduzindo os comandos constitucionais de natureza autoritária.

É exemplo disso a Lei 8.072/90218 (Lei dos Crimes Hediondos), que vedou uma série de benefícios aos acusados e condenados pelos crimes nela previstos (incluindo o tráfico de drogas) como a anistia a graça, o indulto, o direito de liberdade provisória219 e a fiança.

Na mesma linha está a Lei 9.296/96220, que regulamentou o inciso XII do art. 5 º da CF/88, disciplinando a interceptação das comunicações telefônicas, considerada um meio de prova abusivo; a Lei 9.613/98221, que previu o crime de lavagem de capitais; a Lei 10.792/2003222, que instituiu o regime disciplinar diferenciado, impondo medidas violadoras de direitos fundamentais e condições degradantes aos presos; a Lei 5.144/2004223 que previu o abate de aeronaves suspeitas de tráfico; e a Lei 9.034/2005224 que instituiu a repressão ao crime organizado, sem definir satisfatoriamente o conceito de tais crimes.

Deste modo, percebe-se que as disposições sobre a matéria de drogas na Constituição de 1988 harmonizaram-se perfeitamente aos postulados da Convenção de Viena de 1988, que buscou a intensificação dos meios jurídicos para cooperação internacional na guerra às

218 BRASIL. Lei 8.072 de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 219 Atualmente, a Lei 11.464/2007 suprimiu o inciso II do artigo 2º da Lei 8.072/90 que vedava a liberdade provisória aos crimes hediondos. Não obstante, tal benesse continua sendo proibida aos crimes de tráfico pela Lei 11.343/2006, como será mostrado. 220 BRASIL. Lei 9.296, de 26 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5° da Constituição Federal. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 221 BRASIL. Lei 9.613, de 03 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 222 BRASIL. Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Altera a Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 - Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e dá outras providências. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 223 BRASIL. Lei 5.144, de 16 de julho de 2004. Regulamenta os §§ 1º, 2º e 3º do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica, no que concerne às aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 224 BRASIL. Lei 9.034, de 03 de maio de 1995. Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010.

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drogas.225 A ratificação da Convenção de 1988 pelo Brasil, por meio do Decreto n. 154 de 26 de junho de 1991, fortaleceu a política belicista em andamento.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a transição democrática, começou a discussão sobre a reforma da Lei 6.368/76. Foram feitas várias propostas legislativas, as quais variavam do repressivismo à crítica do proibicionismo.226

O projeto que serviu de base para a elaboração da Lei 10.409/2002227 foi o PL n. 1873/1991, de autoria do Deputado Elias Murad, conhecido como “Projeto Murad”. Este resultou da reunião de elementos de várias propostas legislativas. Dentre tais propostas, destacam-se as repressivas, como o PL 2.454/1992, elaborado a partir dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito do Narcotráfico de 1991, o PL n. 2.765/1992, o PL n. 391/1993 e o PL n. 4.591/1994, e as que clamavam pela descriminalização, despenalização ou mesmo uma punição mais branda para o usuário, como o PL n. 203/91 (propunha a supressão do art. 16 da Lei 6.368/76), o PLS n. 94/93 (que restringia qualquer medida punitiva em relação ao uso de entorpecentes e mantinha a proibição do consumo apenas em locais públicos) e o PL n. 3.901/1993 (que afastava o tratamento penal com relação ao porte para uso pessoal).228

José Silva Júnior229 afirma que a tentativa de compatibilizar a nova lei de drogas às inúmeras leis relacionadas à matéria que surgiram no período (como, por exemplo, as leis 9.034/95, 9.080/95, 9.503/97, 9.613/98, 9.714/98, 9.099/95, 9.271/96, 9.807/99, entre outras), e de harmonizar os diversos posicionamentos sobre o tema no texto legal, retardaram a promulgação da norma.

A Lei 10.409/2002 optou por continuar criminalizando o porte para uso pessoal230, o qual passou a ser punido com medidas não

225 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 45. 226 Sobre os vários Projetos de lei que antecederam a Lei 10.409/2002, ver: SILVA JÚNIOR, José. A ‘nova’ lei antidrogas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 111, p. 11-13, fev. 2002. 227 BRASIL. Lei 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 228 SILVA JÚNIOR, José. A ‘nova’ lei antidrogas, p. 11-12. 229 SILVA JÚNIOR, José. A ‘nova’ lei antidrogas, p. 11. 230 Artigo 20 da Lei 10.409/2002.

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privativas de liberdade231, sendo possível aplicar a tais delitos o rito da Lei 9.099/95 e seus respectivos institutos.232 O crime de tráfico, previsto no artigo 14, manteve a criminalização das condutas do artigo 12 da Lei 6.368/76, sendo aplicada a mesma pena.

Percebe-se, portanto, que a Lei 10.409/2002 manteve o discurso médico-jurídico e a ideologia da diferenciação, bem como o discurso político-jurídico; em nada alterou a lógica seguida pela lei anterior, apesar das várias propostas e discussões então suscitadas.233

Todavia, tendo em vista as impropriedades da Lei 10.409/2002, foi vetada a parte que definia os crimes e as respectivas penas. A Lei 6.368/76 continuou disciplinando a parte material, enquanto a Lei 10.409/2002 era aplicada apenas nos demais aspectos, como o processual.

Na verdade, a Lei 10.409/2002 e sua vigência parcial só tornaram ainda mais complexo o sistema de controle de drogas, marcado pela crescente descodificação e inflação legislativa que caracteriza a matéria desde os anos noventa.234 Essa confusão legislativa, como observa Salo de Carvalho235, não impediu que a política criminal de drogas no Brasil continuasse atrelada ao projeto de transnacionalização do controle de drogas:

A publicação de inúmeros estatutos penais, que direta ou indiretamente afetam a política criminal de drogas, e a tentativa frustrada de renovação normativa, com publicação parcial do texto da Lei 10.409/02, (...) expuseram à sociedade civil e política a dificuldade das agências governamentais de desenvolvimento de política criminal razoavelmente coerente sobre drogas,

231 Artigo 21 da Lei 10.409/2002. 232 De acordo com MARONNA, Cristiano Ávila; MENDES, Carlos Alberto Pires. Nova lei de tóxicos: o reflexo do irrefletido. Boletim IBCCRIM. São Paulo. n. 111. p. 08-10. fev. 2002, o artigo 20 da Lei 10.409/2002 incorreu em um retrocesso quando estabeleceu que o crime de porte para uso próprio dependeria da apreensão de “pequena quantidade de droga a ser definida pelo perito”. Com tal disposição, a definição do intuito mercantilista ficaria a cargo de um serventuário da justiça e não do juiz. Além disso, a tendência conservadora não deixaria espaço par ao reconhecimento do princípio da insignificância. 233 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 68. 234 Sobre as impropriedades da Lei 10.409/2002 ver também: BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio; OLIVEIRA, William Terra de. Drogas: Nossa legislação virou uma colcha de retalhos. Disponível em: <http://www.direitocriminal.com.br>. Acesso em: 01 out. 2010. 235 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 68.

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seja proibicionista ou antiproibicionista. Todavia, é possível perceber que as ações legais e administrativas – sobretudo as firmadas pelo Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) nas versões e adendos aos Planos Nacionais Antidrogas (PANAD) – (...) acabavam por adequar a política criminal de drogas no Brasil àquela identidade histórica desenvolvida desde o advento da Lei 6.368/76.

Embora a primeira tentativa de substituir a Lei 6.368/76 não

tenha logrado êxito, foi apresentado novo projeto, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República em 2006, dando origem à Lei n. 11.343/2006236, a qual revogou as leis 6.368/76 e 10.409/2002, e entrou em vigor ainda em 2006.

Esta lei 11.343/2006, entretanto, não trouxe qualquer novidade à política criminal de drogas no Brasil: continuou reproduzindo os dispositivos criminalizadores recomendados pela Convenção de Viena de 1988, bem como os discursos médico-jurídico e político-jurídico da lei anterior.237

Com efeito, ela mantém o discurso político-jurídico belicista, de repressão sem limites ao comércio ilegal de drogas e de guerra ao traficante, ao adotar dispositivos que violam princípios das declarações universais de direitos, direitos fundamentais e garantias constitucionais.

A análise da Lei 11.343/06 permite auferir o recrudescimento da repressão ao crime de tráfico de drogas. A pena mínima do crime de tráfico (art. 33 da Lei 11.343/06) foi aumentada de 03 para 05 anos de reclusão. Tendo em vista a existência de qualificadoras, a reprimenda provavelmente será fixada acima do mínimo legal de 05 anos. E o caput do artigo 33, por sua vez, tipificou os verbos “transportar” e “expedir”, que caracterizam apenas o início da execução. Isso impede a distinção entre tentativa e consumação: os vários verbos que configuram o tráfico impedem que exista a tentativa. 238 236 BRASIL. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2010. 237 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 68. 238 Neste sentido, ver: KARAM, Maria Lucia. A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. In: LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Goulart; FIORE, Maurício; MACRAE, Edward; CARNEIRO, Henrique. (Org.) Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 106.

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Além disso, foi inserida, no artigo 35 da Lei 11.343/2006, uma nova modalidade de quadrilha, formada por apenas duas pessoas (contrariando a modalidade tradicional, que exige quatro indivíduos), e, também, uma nova figura delitiva, de financiamento e custeio do tráfico.239

Cumpre destacar, ainda, a vedação de vários benefícios: o artigo 44 da Lei 11.343/06 proíbe a concessão de sursis, graça, indulto, anistia, liberdade provisória, e de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos240. O mesmo artigo estabelece que o livramento condicional é possível apenas após o cumprimento de dois terços da pena, sendo vedado para os reincidentes específicos. A proibição das benesses citadas vai de encontro com princípios como o da isonomia, da individualização da pena e da presunção da inocência.

Por fim, dentre outros dispositivos, deve-se ressaltar o aumento exacerbado das penas de multa, e o estabelecimento expresso de meios de provas que violam a privacidade, a intimidade, como as interceptações telefônicas, infiltração de policiais, a delação premiada, a quebra de sigilo bancário ou eletrônico.

De outro vértice, a Lei 11.343/06 reproduz o discurso médico-jurídico ao impor medidas terapêuticas ao usuário, tratando-o como um doente, impondo-lhe penas alternativas.

O artigo 28 continuou criminalizando a posse para consumo pessoal, apesar de prever medidas alternativas e diferentes da prisão, quais sejam, a advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Embora a lei afaste as penas privativas de liberdade, a verdade é que ainda lhes são aplicados mecanismos penais de controle, violando os princípios da lesividade e da liberdade

239 Sobre a impropriedade da incriminação do concurso de pessoas no crime de tráfico, ver: LEAL, João José; LEAL, Rodrigo José. Controle penal das drogas e o crime de associação para o tráfico ilícito: comentários ao art. 35 da Lei 11.343/2006. Magister. Porto Alegre, n. 22, p. 107-122, fev-mar. 2008. 240 O Supremo Tribunal Federal, no dia 1º de setembro de 2010 declarou, incidentalmente, por maioria de votos, a inconstitucionalidade da expressão “vedada a conversão de suas penas restritivas de direitos” do artigo 44 da Lei 11.343/2006 em: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 97.256. Alexandro Mariano da Silva e Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Britto. 26 de outubro de 2010. www.stf.jus.br. Disponível em 27 de novembro de 2010. O Superior Tribunal de Justiça também tem decidido pela inconstitucionalidade desta parte do art. 44. Vide: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 149.807. Felipe Eduardo Carboneri e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator: Min. Og Fernandes. 03 de novembro de 2009. www.stj.jus.br. Disponível em 27 de novembro de 2010.

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individual, reforçando a estigmatização e cuidando da dependência química de forma imprópria.

Como registra Maria Lúcia Karam: Ao contrário do que muitos querem fazer crer, a lei 11.343/06 não traz assim nenhuma mudança significativa nesse campo do consumo. Os defensores da nova lei querem fazer crer que a previsão de penas não privativas de liberdade seria uma descriminalização da posse para uso pessoal, sustentando que somente seriam crimes condutas punidas com reclusão ou detenção (...). Ignoram que a ameaça da pena é que caracteriza a criminalização. E penas, como a própria Constituição Federal explicita, não são apenas as privativas de liberdade, mas também as restritivas de direitos, a perda de bens, a multa, a prestação social alternativa, as suspensões ou interdições de direitos.241

Desse modo, entende-se estar esclarecido o impacto que a

transnacionalização da política criminal antidrogas teve na legislação brasileira. As leis brasileiras, seguindo o disposto nas Convenções internacionais da ONU de caráter proibicionista, reproduziram seus discursos médico-jurídico e político-jurídico, sedimentando um modelo de política criminal no Brasil, que trabalha com os estereótipos do “usuário-doente” e do “traficante-delinquente-inimigo”.242

No próximo tópico observar-se-á que a Doutrina da Segurança Nacional, inserida no Brasil na época da ditadura, juntamente com os modelos jurídico-político e médico-jurídico incorporados pela legislação brasileira sobre drogas, foi preponderante para a militarização da política criminal de drogas e para a formação do estereótipo do traficante como inimigo interno.

2.3 A militarização da repressão às drogas no Brasil e sua contribuição para formação do estereótipo do traficante-inimigo

O discurso jurídico-político, que colocou a droga e o traficante na

posição de “inimigo interno”, foi inserido na legislação brasileira a

241 KARAM, Maria Lucia. A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. p. 116. 242 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 9-27.

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partir da década de setenta, como visto no tópico anterior. Não obstante, desde a década de sessenta, com o golpe de Estado militar em 31 de março de 1964, já haviam sido adotados, pela legislação de defesa do Estado brasileiro, os postulados da Doutrina da Segurança Nacional, que identificam o criminoso político com o inimigo a ser eliminado.

A Doutrina da Segurança Nacional foi desenvolvida nos Estados Unidos e instrumentalizou a promoção e manutenção das ditaduras militares nos países latino-americanos nas décadas de sessenta a oitenta. Trata-se de uma doutrina extremamente estruturada e que foi ensinada e aprimorada nas Escolas Militares latino-americanas. No Brasil, foi ensinada na Escola Superior de Guerra. O objetivo principal dessa doutrina era o extermínio da “ameaça comunista” nos países capitalistas do Ocidente.

Como bem observa Zaffaroni: Trata-se de uma tese que, em lugar de destacar a tensão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos (norte-sul), ressalta a tensão 'leste-oeste' como a única existente, e afirma que está em curso uma guerra entre o comunismo e o mundo não-comunista, razão pela qual tudo deve ser instrumentalizado a serviço desta guerra, até o aniquilamento do comunismo.243

A Doutrina da Segurança Nacional defende que o mundo estaria

bipolarizado em dois poderes antagônicos: o Ocidente versus o comunismo, sendo que cada país, inevitavelmente, deveria optar por um desses dois blocos. Como define Golbery do Couto e Silva:

(...) o polo agressor se situa no mesmo hemiciclo exterior, ancorado agora no ‘heartland’ da Eurásia, (...), totalmente integrado sob a liderança soviética, inegavelmente vigorosa e flexível, mas totalitária e despótica. (...) Do lado oposto, o Ocidente, democrático e cristão, com seu fulcro de poder assente na ala esquerda do hemiciclo interior (...). 244

243 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 313. 244 SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional, o poder executivo e geopolítica do Brasil. Rio e Janeiro: Livraria José Olympio, 1980. p. 189.

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Dentre os conceitos dessa doutrina245, destaca-se o de “guerra total”246, a qual seria travada contra o inimigo político interno e externo. Couto e Silva247, por exemplo, descreve como seria o “planejamento específico para uma hipótese de guerra”, destacando que seria necessário, antes de tudo, “definir as possibilidades do inimigo”, bem como “sua natureza (...) sua composição” e “seus objetivos prováveis e respectivas políticas de consecução”.248

No cerne da doutrina, está o conceito de segurança nacional, cujo delineamento, geralmente, é vago e confuso. Couto e Silva define-a como:

(...) o grau relativo de garantia que o Estado proporciona à coletividade nacional, para a consecução e salvaguarda de seus objetivos a despeito dos antagonismos internos ou externos, existentes ou presumíveis. Resultaria então: - a Estratégia é a Política de Segurança Nacional. Assim sendo, a Política abrange a Estratégia restringindo-se esta àquele setor da política que se acha sob a influência, direta ou indireta, de antagonismos internos e externos, existentes ou presumíveis.249

245 Como bem observa CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 21: “Categorias como geopolítica, bipolaridade, guerra total, adicionadas à noção de inimigo interno, formatam o sistema repressivo que se origina durante o regime militar e se mantem no período pós-transição democrática.”

Sobre os conceitos da doutrina da segurança nacional (de geopolítica, estratégia, objetivos nacionais, poder nacional, dentre outros) ver: MATTOS, Carlos de Meira. A geopolítica e as projeções do poder. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1977. p. 42-48; SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional, o poder executivo e geopolítica do Brasil, p. 155-171. 246 A doutrina da segurança nacional usa o conceito de “guerra total”, ou seja, a ideia de que os seres humanos viveriam em um estado de guerra “total”, aberta, sem destino e sem justificativa contra o comunismo e o imperialismo soviético. Três conceitos formam a ideia de “guerra total”: a guerra generalizada, a guerra fria e a guerra revolucionária (COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1982. p. 33-44). 247 SILVA, Golbery do Couto e. Planejamento estratégico. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. 248 SILVA, Golbery do Couto e. Planejamento estratégico, p. 147-148. 249 SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional, o poder executivo e geopolítica do Brasil. p. 155.

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De acordo com os teóricos dessa doutrina, o planejamento da segurança nacional seria fundamental para os países subdesenvolvidos, como o Brasil, solucionarem seus problemas econômicos:

O planejamento da segurança nacional é um imperativo da hora que passa. (...) Mas, para nós – países subdesenvolvidos ou em etapa nitidamente retardada ainda de nosso desenvolvimento – aquele planejamento assume aspectos de outra ordem que importa sobretudo por em relevo. (...) E, pois, o planejamento da segurança nacional em tais países e sua objetiva e honesta execução terão, necessariamente, que concentrar-se na aceleração desse ritmo de crescimento econômico, embora sem descurar, paralelamente, do reforçamento dos fundamentos de outra ordem do Poder Nacional – e concorrerão decisivamente para o solucionamento, em mais breve prazo, do problema crítico e angustiante do subdesenvolvimento da economia.250

Como afirma Comblin251, o alcance da segurança nacional

implicaria a eliminação da diferença entre meios não violentos e meios violentos. Ou seja, para obter a segurança, o Estado empregaria sua força não importando os meios que se use. No plano da política externa, isso apaga a fronteira entre a guerra e a diplomacia e, no plano da política interna, a segurança nacional “destrói as barreiras das garantias constitucionais: a segurança não conhece barreiras, ela é constitucional ou anticonstitucional; se a Constituição atrapalha, muda-se a Constituição.”252

Embora a Doutrina da Segurança Nacional tenha servido como suporte ideológico para as ditaduras militares na América Latina, momento histórico já ultrapassado, tal tese deixou algumas marcas importantes. Conforme descreve Zaffaroni, “a sua realidade autoritária não desapareceu, e apenas adotou uma nova roupagem: a ideologia da segurança urbana.”253 Isto é, como consequência, os mesmos métodos

250 SILVA, Golbery do Couto e. Planejamento estratégico, p. 24. 251 COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 56. 252 COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional. p. 56. 253 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 314.

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autoritários usados para o extermínio do inimigo político foram incorporados, no campo da segurança pública, no combate ao crime comum.

Aos postulados da Doutrina da Segurança Nacional, assimilados pelo sistema de segurança pública brasileiro a partir das ditaduras militares na década de sessenta, uniram-se os modelos jurídico-político e médico-jurídico, incorporados pela legislação brasileira de drogas na década de setenta, dando origem ao que Salo de Carvalho chama de “modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminação/neutralização de inimigos”254, ou seja, de combate ao traficante como novo inimigo político-criminal brasileiro. Esse sistema repressivo é formado durante a ditadura e persiste atualmente, após a transição democrática.255

Atualmente, a gestão das políticas repressivas em matéria de drogas é realizada, no Brasil, pela Secretaria Nacional de Política de Drogas (SENAD), criada pela Medida provisória n. 1669 e pelo Decreto n. 2.632/1998, no Governo de Fernando Henrique Cardoso.256 O SENAD está subordinado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, órgão que sucedeu, em 1999, a Casa Militar da Presidência da República, dando continuidade ao seu caráter militarizado.

De fato, as ações repressivas, objetivando a eliminação do tráfico de drogas, mostram-se extremamente militarizadas. Como bem registra Maria Lucia Karam:

O caráter militarizado da política brasileira se explicita em ilegítimas ações desenvolvidas pelo Exército, como as operações que vêm se repetindo na cidade do Rio de Janeiro, em claro desvio das funções que a Constituição Federal atribui às Forças Armadas. Resultando na ocupação de favelas como se fossem territórios inimigos, essas ilegítimas ações militares sequer disfarçam a identificação dos excluídos e marginalizados como perigosos, tradicionalmente feita de forma

254 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 22. 255 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 22-23. 256 Observatório Brasileiro de Informações sobre drogas. Desenvolvido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) – Governo Federal. Disponível em: <http://www.senad.gov.br/informacoes_institucionais/ informacoes_institucionais.html.>. Acesso em: 07 nov. 2010.

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mais sutil através do normal funcionamento do sistema penal. 257

Salo de Carvalho258 aponta a “Operação Rio”, realizada entre

1994-1995 no Rio de Janeiro, como um “tipo ideal concretizado” da política criminal militarizada no Brasil. Esta operação foi fruto do acordo firmado entre o Governo Federal, o Governo do Rio de Janeiro e as Forças Armadas, e objetivou a eliminação do tráfico de drogas, através da ocupação das áreas consideradas perigosas, principalmente os morros cariocas, pelas Forças Armadas, polícias militares e civis. Segundo Carvalho:

A Operação Rio, ao concretizar o estereótipo da militarização do controle do crime, revela dados importantes para anamnese das práticas e dos discursos punitivos contemporâneos, bem como fornece elementos para possíveis prognósticos. Sobretudo porque os resultados da ação militarizada, seguindo os passos da política transnacional de guerra às drogas, foram catastróficos.259

A “Operação Rio” não obteve sucesso no controle do tráfico,

além de causar danos aos direitos fundamentais aos moradores das áreas de intervenção. O fracasso desta operação militarizada mostra a ineficácia e a violação aos princípios do Estado Democrático de Direito inerente a este tipo de estratégia.

Dentre os vários exemplos de militarização das ações repressivas em matéria de drogas que poderiam ser citados, destaca-se, recentemente, o Programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) instaurado nas favelas do Rio de Janeiro pela Secretaria de Segurança Pública, lançado em 2008. O governo estadual define a estratégia e os objetivos das UPPs:

A Unidade de Polícia Pacificadora é um novo modelo de Segurança Pública e de policiamento que promove a aproximação entre a população e a polícia, aliada ao fortalecimento de políticas

257 KARAM, Maria Lucia. Políticas de drogas: aspectos dogmáticos e criminológicos, p. 86. 258 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, 48-50. 259 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, 49.

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sociais nas comunidades. Ao recuperar territórios ocupados há décadas por traficantes e, recentemente, por milicianos, as UPPs levam a paz às comunidades do Morro Santa Marta (Botafogo – Zona Sul); Cidade de Deus (Jacarepaguá – Zona Oeste), Jardim Batam (Realengo – Zona Oeste); Babilônia e Chapéu Mangueira (Leme – Zona Sul); Pavão-Pavãozinho e Cantagalo (Copacabana e Ipanema – Zona Sul); Tabajaras e Cabritos (Copacabana – Zona Sul); Providência (Centro); Borel (Tijuca – Zona Norte); Andaraí (Tijuca); Formiga (Tijuca); Salgueiro (Tijuca); e Turano (Tijuca). As UPPs representam uma importante ‘arma’ do Governo do Estado do Rio e da Secretaria de Segurança para recuperar territórios perdidos para o tráfico e levar a inclusão social à parcela mais carente da população. Hoje, cerca de 200 mil pessoas são beneficiadas pelas unidades. Criadas pela atual gestão da secretaria de Estado de Segurança, as UPPs trabalham com os princípios da Polícia Comunitária. A Polícia Comunitária é um conceito e uma estratégia fundamentada na parceria entre a população e as instituições da área de segurança pública.260

Apesar de se afirmar a utilização de técnicas de policiamento

comunitário, o que ocorre, de fato, é a instalação de unidades militarizadas, com a participação do Batalhão de Operações Especiais (BOPE). As Unidades de Polícia Pacificadora repetem os mesmos equívocos cometidos pela Operação Rio de 1994-1995, optando pelas malfadadas técnicas militarizadas de guerra, aclamadas pelos meios de comunicação.

Percebe-se, portanto, que o pensamento militar teve influência direta na formação do estereótipo do traficante-inimigo. O combate, o plano de guerra, outrora destinado aos inimigos políticos foi incorporado pela política criminal de drogas.

Como visto, a doutrina da segurança nacional teve papel preponderante para a formação da política criminal antidrogas atual, pois conformou-se aos modelos jurídico-político e médico-jurídico,

260 Unidade de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro. Disponível em: http://upprj.com/wp/? page_id=20. Acesso em 07 nov. 2010.

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incorporados pela legislação brasileira sobre a matéria na década de setenta, dando origem ao modelo de eliminação do traficante como inimigo.

2.4 As principais consequências da transnacionalização do controle penal de drogas e do traficante-inimigo para o Brasil e o fracasso desta política criminal

Neste capítulo, procurou-se traçar o quadro de como se deu a

transnacionalização da política criminal de guerra às drogas e ao traficante para a América Latina e para o Brasil. Uma vez explicado o processo de exportação do estereótipo do traficante-inimigo, pode-se apontar, em primeiro lugar, as principais consequências no âmbito do sistema de justiça penal.

Como visto, a legislação brasileira adequou-se às Convenções da ONU de caráter proibicionista e passou a estampar os discursos político-jurídico (que aponta o traficante como o inimigo interno) e médico-jurídico (que relaciona a droga à dependência, e difunde a “ideologia da diferenciação”: o consumidor é qualificado como doente, e o traficante como delinquente).

A Constituição Brasileira de 1988 concretizou o proibicionismo das drogas no país. Suas normas programáticas deram origem a uma legislação marcada pelo tratamento diferenciado aos crimes relacionados a drogas ilícitas, violando garantias constitucionais.

As leis brasileiras mais recentes sobre a matéria, 6.368/76 e 11.343/2006, também trazem no seu bojo os discursos médico-jurídico e político-jurídico, funcionando como filtros nos processos de criminalização: aplica-se o estereótipo médico aos jovens de classe média flagrados com droga e o estereótipo criminal aos jovens pobres. O resultado desse processo é a criminalização do indivíduo jovem e pobre, que comercializa pequenas quantidades de droga no varejo. Ou seja, o perfil do traficante-inimigo no Brasil identifica-se com o da criminalidade comum.

Esta hipótese é confirmada por Vera Malaguti Batista261 em sua obra “Difíceis ganhos fáceis”. Malaguti estudou os processos de criminalização por drogas da juventude do Rio de Janeiro de 1968 a 1988, usando como fontes fichas dos arquivos do Dops do Rio de Janeiro, da extinta Funabem e da extinta 2ª Vara de menores do Rio de

261 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis, p. 40.

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Janeiro. Seu objetivo é a análise histórica da construção do estereótipo do traficante como novo “inimigo interno”, concluindo a autora que no período da ditadura para a transição democrática “todo sistema de controle social (...) convergiu para a confecção do novo estereótipo. O inimigo, antes circunscrito a um pequeno grupo, se multiplicou nos bairros pobres, na figura do jovem traficante.” 262

Os dados analisados por Malaguti263 corroboraram que a formação desse estereótipo conduziu a um aumento estarrecedor, neste período, da criminalização por tráfico de drogas. E é a partir da lei 6.368/76 – que volta a distinguir figura do traficante e do usuário – que se observa este considerável aumento. Ao final, conclui que o perfil do jovem criminalizado é o do indivíduo pobre e favelado, que trabalha comercializando a droga no varejo.

Não se pode deixar de destacar, também, o papel determinante dos meios de comunicação nesses processos de criminalização por drogas. As notícias veiculadas sobre o tráfico funcionam como reprodutoras dos estereótipos relacionados à droga. Como bem observa Zaffaroni:

Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por um processo de seleção e condicionamento criminalizante que se orienta por estereótipos proporcionados pelos meios de comunicação de massa. (...) Os órgãos do sistema penal selecionam de acordo com esses estereótipos, atribuindo-lhes e exigindo-lhes esses comportamentos, tratando-os como se se comportassem dessa maneira, olhando-os e instigando todos a olhá-los do mesmo modo, até que se obtém, finalmente, a resposta adequada ao papel assinalado.264

262 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 14-15 também mostra um mapa das ocorrências por tráfico de drogas nos bairros da cidade do Rio de Janeiro, constatando a ação seletiva da polícia ao apurar esses delitos. 263 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis, p. 40. 264 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução de: Vânia Romano Pedrosa & Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 133.

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Lola Anyar de Castro265 observa que as notícias veiculadas pelos meios de comunicação atuam como construtoras sociais da realidade266. De fato, a mídia possui a capacidade de transformar meros acontecimentos em tragédias: “o acontecimento tem sempre explicação contextual, histórica, política, sociológica ou psicológica (...); em contrapartida, a tragédia é mítica, é autônoma, não remete a nada fora de si, converte-se em símbolo de algo (violência, infelicidade, maldade ou vício).”267 Ou seja, a notícia possui grande habilidade para a criação de mitos e, dentro dessa habilidade, inclui-se a fabricação dos estereótipos268.

Castro269 define o estereótipo do delinquente “como alguém pertencente às classes subalternas, de condições afetivas e familiares precárias, agressivo, incapaz de incorporar-se com sucesso ao aparato reprodutivo.” A manipulação dos estereótipos teria suas funções, como define a criminóloga venezuelana:

1. Serve para a suposta maioria não-criminosa redefinir-se a si mesma com base nas normas que o delinqüente violou e para reforçar o sistema de valores dominante. Reproduz o sistema e contribui para delimitar a zona do bem e a zona do mal, liberando a cultura danosa dos poderosos, que estariam a salvo por não pertencerem ao estereótipo. (...) 2. Funciona como bode expiatório, já que dirige-se a ele toda a agressividade latente nas tensões de classe que, em caso contrário, se voltaria contra os detentores do poder.

265 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 204. 266 Como bem observa ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 204, os atores sociais nunca são capazes de apreender um fenômeno social como ele é, de abranger sua complexidade totalmente. A realidade é sempre construída socialmente. 267 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 208. 268 CHAPMAN, Denis. El estereotipo del delicuente y sus consecunecias sociales. In: OLMO, Rosa Del. Estigmatización y conduta desviada. Maracaibo: Universidade de Zulia, 1973, desenvolveu a teoria do estereótipo do delinquente, e o mecanismo de manipulação deles em nossa sociedade. Os estereótipos seriam elementos simbólicos impostos a determinadas classes sócias mais vulneráveis à criminalização. De acordo com o autor, esta categoria seria fundamental para a compreensão dos processos de seletividade do sistema penal. 269 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 215.

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O resultado da construção social da notícia, da disseminação de valores e estereótipos, é o desenvolvimento de um sentimento de insegurança na população que funciona seletivamente. Passa-se a temer determinada classe social, cujos membros serão vistos como criminosos em potencial.

Existem interesses políticos e econômicos na criação desse sentimento de insegurança: criar a ilusão de eficácia do sistema penal; desviar a atenção pública de acontecimentos importantes; mobilizar a opinião pública, buscando apoio para promulgação de leis; aceitação de medidas autoritárias para assegurar a ordem política. Há também o interesse em vender jornais e angariar audiência nos programas televisivos, por exemplo, bem como o de comercializar de aparatos de segurança, como travas, alarmes, entre outros.

Deste modo, segundo Raúl Cervini270, os meios de comunicação de massa utilizam como instrumento as “campanhas de distração”, focando a atenção da opinião pública em fatos isolados, “campanhas conformadoras do estereótipo do criminoso” e “campanhas de lei e ordem”, canalizando o sentimento de insegurança e divulgando a necessidade de impor a ordem e a segurança.

É importante destacar, ainda, que ao manipular estereótipos e produzir valores, a mídia contribui para a manutenção do status quo. Alessandro Baratta271 afirma que a sociedade em que vivemos caracteriza-se por ser um sistema simbólico fechado272, no qual os meios de comunicação de massas possuem papel fundamental não só na reprodução dos estereótipos e de uma falsa imagem da realidade, mas na

270 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 99. 271 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 200. 272 De acordo com BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 200-201, os sistemas podem ser classificados, conforme o grau de homogeneidade interna e o grau de consenso entre os atores sociais, em sistema fechado ou sistema aberto. No aberto, “predomina a discórdia e a dinâmica de mudança na estrutura de comportamentos e significados.” No fechado, uma ideia homogênea “se estende a todos os grupos de atores, com exceção de um que constitui a minoria dissidente.” O sistema da droga é um sistema fechado: “os atores confirmam reciprocamente sua atitude favorável à política de drogas”, com exceção dos dependentes, que são vistos como grupo desviado. Quando há a homogeneidade das atitudes dos atores, com exceção de um pequeno grupo, “é fácil que o grupo desviado assuma a função de bode expiatório. A hostilidade ao bode expiatório mantém vivo um alto grau de consenso e estabiliza a integração da maioria.”

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reprodução do próprio sistema (conforme o conhecido enunciado do “Teorema de Thomas e da profecia que se auto-realiza”273).

Baratta274 destaca que a relação entre meios de comunicação e atores sociais é de condicionamento mútuo. A teoria que afirma a influência unilateral dos meios de comunicação sobre a sociedade está superada na sociologia da comunicação. Se esta teoria fosse válida, não se poderia explicar o fato de meios de comunicação de orientações diferentes veicularem a mesma mensagem ao se referirem à droga. Na verdade, os meios de comunicação dependem das atitudes anteriores do público (o que se chama “atitude pré-comunicativa”), e a atitude do público depende da mídia.

A seleção das informações pelos meios de comunicação de massa depende, por exemplo, do tipo de informação que o público procura, e da conformação de suas notícias com a imagem que ele tem da realidade. Como observa Baratta: “Ativando tendências já existentes no público e oferecendo aos indivíduos um importante elemento de agregação e de consenso, os meios de comunicação condicionam não só a imagem da realidade, mas a própria realidade.”275

De acordo com o autor italiano, em nossa sociedade, a comunicação direta perdeu espaço para a comunicação através da mídia. Os espectadores trocam informações sobre as imagens do espetáculo transmitido pelos meios de comunicação, mas não há a comunicação sobre suas experiências diretas. A comunicação disseminada pelos meios substitui a comunicação direta, e isso é determinante para a conservação dos sistemas fechados (substituição da experiência direta pela experiência do espetáculo).276

Uma vez mostrado o papel da mídia neste processo, pode-se afirmar que a introdução do estereótipo do traficante como inimigo no

273 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 199, toma os conceitos da sociologia moderna do “Teorema de Thomas e da profecia que se auto-realiza”, desenvolvida pelos sociólogos William e Dorothy Swaine Thomas. Como explica Baratta, de acordo com o teorema, quando o grupo “afirma uma imagem da realidade, esta imagem reproduz os efeitos correspondentes. A realidade, no sistema da droga, a reação social criminalizadora reproduz a realidade que a legitima.”. 274 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 201-205. 275 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 202. 276 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 202-204.

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Brasil, reforçado pelos meios de comunicação, resultou no aumento vertiginoso da criminalização por drogas e, consequentemente, no incremento da população carcerária.277

Assim como nos Estados Unidos, no Brasil a política criminal de guerra às drogas e ao traficante-inimigo foi a principal alavanca da explosão carcerária. Autores como Nils Christie278 e Loïc Wacquant279 registram os números sobre o aumento vertiginoso do encarceramento nos Estados Unidos, tendo como mola-mestra a retórica de combate ao tráfico.

Como bem sintetiza Maria Lúcia Karam280: Resultado direto da intervenção do sistema penal sobre os produtores, distribuidores e consumidores das drogas qualificadas de ilícitas aparece no vertiginoso aumento registrado, nas últimas décadas do século XX, no número de pessoas encarceradas e submetidas a outras medidas de controle penal, nos Estados Unidos da América – os inquestionáveis senhores da internacionalizada política proibicionista. Nos últimos vinte anos, os Estados Unidos da América quadriplicaram sua população carcerária. Ao final de 1999, já haviam 2.026.596 pessoas encarceradas, número que, correspondendo a 690 pessoas por 100.000 habitantes, não encontra

277 De acordo com o Relatório Estatístico da População Carcerária do Brasil 2005-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm. Acesso em 02 fev. 2011, enquanto a população carcerária no Brasil, em 2005, somava 35.520 presos por tráfico de entorpecentes, em junho de 2010 o número passou para 97.010 presos (este número inclui presos provisórios e condenados por sentença transitada em julgado). 278 Nils Christie registra os números sobre o aumento da população carcerária norte-americana durante o século XX em: CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do delito. A caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Tradução por Luis Leiria. São Paulo, Forense, 1998. p. 79-94; CHRISTIE, Nils. El control de las drogas como um avance hacia condiciones totalitárias. In: BERGALLI, Roberto (Org.). Criminología crítica y control social: el poder punitivo Del Estado. Rosario: Editorial Juris, 2000. p. 149-162. 279 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.; WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2010. 280 KARAM, Maria Lucia. Revisitando a sociologia da droga. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (Org.) Verso e reverso do controle penal: (des)apropriando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 135.

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paralelo em nenhum outro país dito democrático, em nenhum momento da história.

Ora, como observa Nils Christie281, a guerra às drogas configura-

se como uma oportunidade para o controle das chamadas classes perigosas, ou seja, do excedente populacional sem trabalho, produto da sociedade pós-industrializada. Este controle seria feito através do encarceramento.282

Por outro lado, a introdução da política proibicionista das drogas no Brasil e do estereótipo do traficante-inimigo, como se pôde perceber neste capítulo, deu origem a uma legislação de exceção caracterizada pelo abandono dos princípios constantes nas declarações universais de direitos e na própria Constituição Brasileira de 1988.

Baratta283 observa que um dos maiores riscos do proibicionismo é a degeneração do sistema de justiça penal, tendo em vista que ele resulta na violação de alguns princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito e do direito penal liberal:

A criminalização das drogas produz efeitos adversos sobre o sistema de justiça criminal não só do ponto de vista das práticas policiais, mas também em relação à violação de alguns princípios fundamentais do Estado de Direito. Em uma publicação oficial foi confirmada a tendência da legislação antidroga afastar-se dos princípios gerais de direito. A idéia de 'direito penal mínimo', como critério inspirador de uma justiça penal adequada ao Estado de Direito e dos direitos humanos, exige que, para a criminalização de comportamentos problemáticos, respeitem-se certas condições 'sine qua non'. No campo das drogas, a política criminal tende a ignorar estas condições, a violar os princípios do direito penal 'liberal'.

281 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do delito. A caminho dos GULAGs em estilo ocidental, p. 65; CHRISTIE, Nils. El control de drogas como um avance hacia condiciones totalitárias. In: BERGALLI, Roberto. (Org.) Criminologia Critica y Control social. Rosario: Juris, 2000. p. 149-162. 282 Este tema já foi tratado no primeiro capítulo. 283 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 210-211.

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Apesar disso, não se pode afirmar que a transnacionalização do controle penal de drogas e do traficante-inimigo para o Brasil significou a implementação de um modelo de exceção no interior do Estado de Direito, nos moldes do Direito Penal do Inimigo proposto por Günther Jakobs.

Isto porque nunca houve a implementação de um verdadeiro direito penal de garantias no Brasil (dentro do paradigma liberal garantista), ou seja, um “direito penal do cidadão”. Pelo contrário, o campo penal brasileiro sempre foi marcado pela desigualdade, pela seletividade pela exceção permanente, pelo genocídio.284

Pode-se abrir um parêntese para observar que no Brasil, desde o período colonial, o controle penal oficial conviveu com outras formas de controle paralelas e subterrâneas, caracterizadas pelo uso de violência e de métodos não permitidos oficialmente.285

O controle punitivo oficial na época do Brasil Colônia estava previsto nas Ordenações Portuguesas, que estabeleciam penas de castigo físico. Todavia, na prática, predominava um controle paralelo, centrado especialmente nas unidades latifundiárias. Nos engenhos, o controle social era exercido pelo senhor do engenho que controlava as normas e os castigos infligidos sobre os escravos, família, subjugados a ele.286 284 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo. Vitória, v. 5, n. 5, p. 209-257, 1º/2º sem. 2006. 285 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. apud DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. Introdução à Criminologia brasileira. Curitiba: Juruá, 2006. p. 151-152, classifica as diversas formas de controle punitivo nas sociedades latino-americanas, dividindo-as em: controle sociopunitivo institucionalizado como punitivo (sistema penal em sentido estrito e paralelo), controle sociopunitivo institucionalizado como não-punitivo (assistencial, terapêutico, tutelar, laboral, administrativo e civil); e controle sociopunitivo parainstitucional ou subterrâneo. Para o autor, o caráter punitivo do controle não dependeria da lei, mas da medida de “dor ou privação” que ele é capaz de estabelecer. Ou seja, a concepção de controle punitivo de Zaffaroni é ampla, entendendo que há não somente um controle punitivo institucionalizado em sentido estrito, mas também um sistema institucionalizado paralelo e outro parainstitucional ou subterrâneo. O controle sociopunitivo parainstitucional ou subterrâneo é aquele exercido pelos segmentos institucionais ou por alguns deles, através de um processo não institucional, praticando métodos não admitidos como tortura, morte, ocultação de cadáveres, entre outros. Na verdade, o controle punitivo na América Latina e no Brasil adaptou-se à sua estrutura marginal e dependente de poder. Portanto, as práticas punitivas latino-americanas não podem ser interpretadas a partir das teses importadas dos países centrais. 286 DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. Introdução à Criminologia brasileira. Curitiba: Juruá, 2006. p. 157-159. Como bem observa este autor, “o senhor de engenho era o senhor da justiça, pois esta, em face à exiguidade dos meio scolocados à disposição dos magistrados e a necessidade do governo central em garantir a ordem mediante o apoio desses senhores, não ousava desafiá-los.”

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Zaffaroni afirma que os sistemas penais na América Latina, atuando através do controle punitivo oficial e subterrâneo, vêm praticando, durante toda a história, verdadeiro genocídio, o qual, por vezes, “assume um aspecto inquestionavelmente étnico, como a contribuição do sistema penal para a extinção do índio ou o nítido predomínio de negros, mulatos e mestiços entre presos e mortos.”287

Dito isso, conclui-se que, na verdade, a introdução da política proibicionista, da “droga” como situação de emergência, e do traficante como inimigo no Brasil trouxe como consequência não a instauração de um Direito Penal do Inimigo neste país, mas o agravamento da situação do campo penal brasileiro, sem que se tenha passado pela construção de um modelo de garantias. 288

Por fim, cumpre destacar que a transnacionalização da política proibicionista para o Brasil, parece claro, não acarretou apenas as consequências no âmbito do sistema de justiça penal e do sistema carcerário antes referidas. Existem custos sociais para a proibição em outros setores.

Em primeiro lugar, há os custos relacionados ao mercado da droga. A criminalização da droga introduz uma “variável artificial” em sua estrutura de mercado, aumentando seu preço e incentivando a sua comercialização. Ou seja, a proibição, ao invés de coibir a venda e o uso de drogas ilícitas, aumentou sua demanda. Por outro lado, a super elevação do preço da droga implicou a exploração dos adictos.289

Ademais, a criminalização da droga é um incentivo à violência. Ao contrário do que se costuma afirmar, a violência não é consequência da disseminação das drogas, mas um produto de sua proibição. Além da violência exercida pela próprio sistema penal (com relação aos criminalizados, adictos, moradores das “zonas de tráfico”, etc), há a violência gerada pelo comércio ilegal. Como não existem meios oficiais de resolução dos conflitos decorrentes da atividade ilícita – como cobrança de dívidas e disputa de mercado – são usados os meios violentos.

Baratta cita, ainda, os custos sociais em relação aos consumidores de drogas (marginalização dos usuários, além da falta de controle sobre

287 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 125. 288 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro, p. 209-257. 289 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 214-215.

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a forma do uso de entorpecentes); ao ambiente social (a família do usuário também é marginalizada, por exemplo); aos sistemas alternativos de controle (fica prejudicado o sistema terapêutico-assistencial e informativo-educativo); entre outros.290

Não obstante, escolheu-se dar enfoque àquelas consequências relacionadas ao sistema de justiça penal e aos processos de criminalização por drogas, bem como ao sistema carcerário, indicadas anteriormente, pois estão ligadas mais diretamente à implantação da figura do traficante como inimigo no Brasil.

Os custos advindos dessa política criminal de drogas, bem como a falha na conquista de seus objetivos - como a extinção do comércio e consumo de drogas ilícitas - mostram seu fracasso. Aliás, a própria Organização das Nações Unidas foi obrigada a rever suas metas.

Em 1998, a Organização das Nações Unidas lançou o plano “Um mundo livre das drogas”291, no qual planejava a erradicação das substâncias ilícitas. Este plano foi aprovado pela 2 ª Cúpula das Américas 292 também em 1998.

Em março de 2009, foi realizada uma reunião em Viena para analisar os resultados do plano traçado há quase uma década. A conclusão do encontro foi a de fracasso dos objetivos traçados em 1998, tanto que, como bem observa Salo de Carvalho293, o “discurso de implementação de políticas visando à erradicação dos cultivos ilícitos, presente nos documentos de 1998, é substituído pelo objetivo de redução considerável da demanda, indicando que o fracasso da estratégia de combate ao narcotráfico redimensionou o debate.”

A conclusão não poderia ser outra, já que o projeto de erradicação das drogas através uma política de repressão é utópico. A ação da justiça penal só retira de cinco a dez por cento do total da droga do mercado. Ademais, a intervenção penal não diminuiu o consumo. E, nos países em que o consumo é permitido, este não aumentou.294

290 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 208-216. 291 United Nations Office on Drugs and Crime. Disponível em: <www.unodc.org>. Acesso em 23 nov. 2010. 292 Sumitt of the americas – Organization of American States. Disponível em: <http://www.summit-americas.org/ii_summit/ii_summit_dec_pt.pdf> Acesso em 23 nov. 2010. 293 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 57. 294 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 208-209.

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Como o negócio da droga é bastante lucrativo, no mesmo momento em que a polícia desmantela uma quadrilha ou um ponto de venda de drogas, surgem outros tantos pontos de comércio. Deste modo, como bem destaca Mauricio Martínez Sánchez295, “o sistema penal frente a semelhante empresa flutuante funciona como mera teia de aranha para caçar moscas”.

Apesar do comprovado fracasso da política proibicionista, esta ainda vigora no Brasil e na América Latina. Isto acontece porque tal política possui sua funcionalidade. Como visto neste capítulo, existem interesses econômicos e políticos para que ela persista. Além disso, o proibicionismo das drogas – e sua exigência de maior punição, mais apreensões, menos direitos e garantias - é expressão da política criminal eficientista, contribuindo para a relegitimação do sistema penal.296

Como leciona Baratta297, apesar do fracasso das funções declaradas da política criminal de penalização das drogas (de controle da criminalidade e do consumo de drogas), pode-se dizer que esta política é um sucesso no que diz respeito a suas funções não declaradas, latentes, como por exemplo, a de conservação do sistema político-econômico.

Uma vez demonstradas as consequências da transnacionalização do controle penal de drogas e da figura do traficante como inimigo interno para o Brasil, bem como o fracasso dessa estratégia, a terceira parte deste trabalho buscará mostrar alternativas a essa política criminal.

295 MARTÍNEZ SÁNCHEZ, Mauricio. La política antidrogas em Colômbia y el control constitucional, p. 91. 296 Este tema foi tratado no primeiro capítulo deste trabalho. 297 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 217-220.

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Capítulo III – Modelos alternativos à política criminal de guerra às drogas (descriminalização e legalização): discussão

Neste capítulo serão discutidos alguns modelos alternativos à política criminal de drogas e do traficante/inimigo no Brasil. Ao contrário do que se pode pensar, a política criminal de drogas vigente, notadamente eficientista, não é a única resposta para o problema da droga.

No primeiro tópico, serão apresentadas as diferentes vertentes político-criminais minimalistas e abolicionistas. Isto porque os modelos minimalistas e abolicionistas fornecem critérios para as práticas de descriminalização. Os processos de descriminalização podem ser pensados, por exemplo, a partir dos critérios de Hulsman, Baratta, Ferrajoli, Zaffaroni.

No segundo tópico será apresentada uma classificação dos diferentes tipos de descriminalização e de legalização. Como se verá, não existe um consenso sobre as terminologias usadas, sendo, portanto, necessário esclarecer os conceitos e espécies, para que se possa, em seguida, indicar os modelos alternativos de descriminalização e legalização que podem ser aplicados no caso dos crimes relacionados a drogas.

No terceiro tópico, mostrar-se-ão alternativas à política criminal brasileira de guerra às drogas e ao inimigo. Será feita discussão sobre os modelos de descriminalização/legalização dos crimes relacionados a drogas propostos por criminólogos críticos como Alessandro Baratta, Maria Lucia Karam, Salo de Carvalho, entre outros.

3.1 Modelos abolicionistas e minimalistas e estratégias de descriminalização (em geral)

Os estudos da criminologia crítica - e sua constatação sobre a deslegitimação dos sistemas penais atuais - contribuíram para a formação, no campo da política criminal, dos movimentos de política criminal alternativa, representados pelas correntes do abolicionismo e do minimalismo.

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Como visto no primeiro capítulo, os teóricos do abolicionismo acreditam que o sistema penal está deslegitimado, defendendo, portanto, sua extinção. A resolução de conflitos dar-se-ía por meios informais.

O abolicionismo não significa a extinção de qualquer controle social; e não abdica da solução dos conflitos. Na verdade, busca soluções dialogais, não violentas, locais e mais democráticas dos conflitos. A opção pelos meios informais de solução passaria pela reconstrução dos vínculos comunitários, de forma que não seria mais necessário recorrer ao modelo punitivo atual. Nas palavras de Zaffaroni298:

Na verdade, o abolicionismo não pretende renunciar à solução dos conflitos que devem ser resolvidos; apenas quase todos os seus autores parecem propor uma reconstrução de vínculos solidários de simpatia horizontais e comunitários, que permitam a solução desses conflitos sem a necessidade de apelar para o modelo punitivo formalizado abstratamente.

Além dos programas de descriminalização, os modelos

abolicionistas concentram seus esforços na elaboração de respostas para as situações-problema que não estejam atreladas à ideia de vingança e que impliquem a participação das partes na resolução, como observa Edson Passetti299:

Não deixam de ser relevantes os argumentos e esforços em direção à descriminalização de comportamentos. Contudo, libertam certos comportamentos considerados criminosos, ao mesmo tempo em que deixam em aberto a criminalização de outros tantos. É neste sentido que o abolicionismo penal, de matizes diversos, incisivamente contesta a alegada ontologia do crime, para concentrar atenção em situações problema. A noção de situação problema remete à

298 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução de: Vânia Romano Pedrosa & Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 104 299 PASSETTI, Edson. Abolicionismo penal: um saber interessado. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, v. 07, n. 12, p. 109, 2002.

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supressão de dois dispositivos inerentes ao direito penal moderno: a vingança de sangue substituída pela abstrata sob a forma de lei impessoal e o emudecimento da vítima, cuja voz é sequestrada pela orquestração do sistema jurídico (...).

Por outro lado, não se trata somente da abolição formal do sistema penal, de suas agências de controle, mas do fim de toda uma cultura punitiva, como registra Andrade300:

(...) diferentes abolicionistas (...) estão de acordo em que a abolição não significa pura e simplesmente abolir as instituições formais de controle, mas abolir a cultura punitiva, superar a organização ‘cultural’ e ideológica do sistema penal, a começar pela própria linguagem e pelo conteúdo das categorias estereotipadoras e estigmatizantes (crime, autor, vítima, criminoso, criminalidade, gravidade, periculosidade, política criminal, etc) que tecem cotidianamente o fio dessa organização (pois tem plena consciência de que nada adianta criar novas instituições ou travestir novas categorias cognitivas com conteúdos punitivos).

Ademais, parece claro que a construção desse modelo político-criminal demandaria tempo, exigindo um processo de transição e superação do sistema penal atual. Ou seja, o desaparecimento deste não se daria repentinamente.

As correntes minimalistas, por sua vez, contestam a legitimidade do sistema penal atual e propõem uma alternativa penal mínima. Segundo os teóricos minimalistas, tanto os sistemas penais atuais, quanto os sistemas que não aderirem à sua proposta minimizadora, estariam deslegitimados.301

300 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos Abolicionismos e Eficientismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina. v.12, n.19, p. 473, 2006. 301 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 89.

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Não se pode falar em apenas um tipo de minimalismo ou de abolicionismo, uma vez que existem diferentes propostas das duas espécies. Dentre essas diversas propostas há, por um lado, aquelas dos autores que acreditam que uma minimização (no caso dos minimalistas) ou abolição (abolicionistas) do sistema penal significaria a transformação da sociedade; e, por outro, existem aqueles que crêem que o sistema penal pode ser abolido ou contraído sem que isso signifique um novo modelo de sociedade.

De qualquer forma, a escolha de um modelo - abolicionista ou minimalista; que implique ou não um novo tipo de sociedade – será sempre política. Como bem observa Zaffaroni, “sem dúvida, trata-se de um nível político-criminal, com forte tendência ao nível diretamente político.”302

Independentemente de seus objetivos de minimização ou de extinção do sistema penal, esses movimentos político-criminais alternativos têm em comum a finalidade de contração do sistema penal-carcerário.

Esse objetivo é compreensível, já que atualmente parece claro que, além de a prisão ser um instrumento de estigmatização e seleção do apenado, ela não tem a capacidade de ressocializá-lo, de impedir a prática do delito, de reafirmar o valor da norma, bem como não deve ser usada como instrumento de retribuição.

De fato, o século XX foi marcado pela desconstrução do sistema carcerário e dos discursos legitimadores da pena de prisão. Obras clássicas como “Pena e estrutura social”, de Rusche e Kirchheimer303, e “Vigiar de punir”, de Michel Foucault304, sobre a história da prisão, produziram efeitos irreversíveis no plano epistemológico sobre o tema. Baratta305 aponta duas teses centrais dessas obras:

a) para que se possa definir a realidade do cárcere e interpretar o seu desenvolvimento histórico, é necessário levar em conta a função efetiva

302 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 91. 303 KIRCHHEIMER, Otto; Rusche, Georg. Punição e estrutura social. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. 304 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1997. 305 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 191.

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cumprida por esta instituição, no seio da sociedade; b) para o fim de individualizar esta função, é preciso levar em conta os tipos de sociedade em que o cárcere apareceu e se desenvolveu como instituição penal.

Surge, portanto, um novo enfoque sobre a pena de prisão e sobre

o moderno sistema penal, o chamado enfoque “materialista ou político econômico”, que se opôs ao enfoque dominante “ideológico ou idealista”, cujo núcleo central eram as teorias dos fins da pena.306

O enfoque ideológico ou idealista discutiu qual deveria ser a função da pena, se retribuitiva, simbólica, intimidativa ou reeducativa.307 Este debate não levou a lugar nenhum, prevalecendo o entendimento de que a pena deve ter função ressocializadora, reeducativa. Não obstante, o enfoque materialista conclui que a discussão sobre a função da pena impede um verdadeiro conhecimento científico da instituição carcerária.308

Como sinalizam as obras de Husche e Kirchheimer e Foucault, o cárcere deve ser estudado como fenômeno social, contextualizado historicamente, considerando-se a função que realmente é cumprida por ele.

As conclusões sobre a ineficácia do debate polifuncional da prisão e sobre os verdadeiros efeitos desta instituição (isto é, seletividade, sofrimento e estigmatização do apenado) causaram uma crise da instituição carcerária. O objetivo, então, passou a ser a contração do sistema carcerário, diminuindo os danos causados por ele.

306 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal, p. 191. 307 De acordo com BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p 117-130, chama-se “prevenção geral negativa” a função, atribuída à pena, que pretende “obter com a pena a dissuasão dos que não delinquiram e podem se sentir tentados a fazê-lo”, ou seja, que busca dissuadir os indivíduos de praticar crimes. A função de “prevenção geral positiva” seria aquela que criaria um efeito positivo sobre os não-criminalizados como valor simbólico, produtor de consenso; a pena teria um valor comunicativo e serviria para reafirmar da força da lei. A função de prevenção especial positiva seria a que busca o “melhoramento do próprio infrator”, ou seja, é a função de ressocialização, reeducação do criminoso. A função de prevenção especial negativa “também visa a pessoa criminalizada, não para melhorá-la, mas para neutralizar os efeitos de sua inferioridade, à custa de um mal para a pessoa, que ao mesmo tempo é um bem para o corpo social”, é a função de retribuição. Nenhuma dessas funções provou ter eficácia. 308 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 191.

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Para tanto, os movimentos político-criminais alternativos propuseram seus programas de descriminalização.

Como observa Nilo Batista309, constatada a seletividade e degradação moral pela pena privativa de liberdade, bem como a ineficácia desta para prevenir crimes e para ressocializar o condenado, coloca-se “a idéia de salvar da solução penal tudo aquilo que for possível”. Nesse contexto, “surge a idéia da descriminalização.”

No tópico seguinte, serão mostradas algumas correntes minimalistas e abolicionistas e seus discursos de descriminalização. Inicialmente, mostrar-se-ão algumas das propostas minimalistas e, em seguida, abolicionistas.

3.1.1 Propostas político-criminais minimalistas Inicialmente, cumpre observar que dentre as várias propostas

minimalistas, existem aquelas que partem do pressuposto de que os sistemas penais atuais estão deslegitimados e que sofrem de uma crise estrutural; e as que acreditam que os sistemas penais atuais passam por uma crise conjuntural de legitimidade e, portanto, podem ser relegitimados. Entre as primeiras propostas estão a de Alessandro Baratta e Eugenio Raúl Zaffaroni e, na segunda categoria, está o modelo proposto por Luigi Ferrajoli.310

A proposta de Alessandro Baratta é a adoção de um direito penal mínimo como estratégia para alcançar, a médio ou curto prazo, o abolicionismo. Baratta delineou, inicialmente, seu programa minimalista em sua obra “Criminologia crítica e crítica do direito penal”311, chamando-o de política criminal alternativa. Nessa obra, o autor

309 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização. Revista de direito penal. Rio de Janeiro, n. 13/14, p. 34, jan-jun. 1974. 310 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre deslegitimação e expansão. p. 462-485. O minimalismo garantista pode ser considerado relegitimador do sistema penal, porém há quem considere que o garantismo pode ser usado como via para o abolicionismo. Neste sentido, ver: CHIES, Luiz Antônio Bogo. É possível ter o abolicionismo como meta, admitindo-se o garantismo como estratégia? Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, n. 5, p. 125-153, 2002. 311 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

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delimita quatro indicações para construção de uma “política criminal das classes subalternas”.312

Dentro de tais indicações, estaria contida uma “obra radical e corajosa de despenalização, de contração ao máximo do sistema punitivo, com a exclusão total ou parcial, de inumeráveis setores que preenchem os códigos.”313 Segundo Baratta, a estratégia da despenalização abrangeria:

a substituição das sanções penais por formas de controle legal não estigmatizantes (sanções administrativas ou civis) e , mais ainda, o encaminhamento de processos alternativos de socialização do controle do desvio e de privatização dos conflito, nas hipóteses em que isso seja possível e oportuno. Mas a estratégia de despenalização significa, sobretudo, como se verá mais adiante, a abertura de maior espaço de aceitação social do desvio.314

Alessandro Baratta continua seu programa de direito penal

mínimo em “Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos

312 As quatro indicações de BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal, p. 202-205 consistem, resumidamente, em: a) “necessidade de uma interpretação separada dos fenômenos dos comportamentos socialmente negativos” nas classes dominantes e nas classes subalternas. A partir disso, é construída uma política criminal alternativa que reconhece as contradições estruturais das relações sociais e de produção. Não é uma política de “substitutivos penais”, mas uma “política de grandes reformas sociais e institucionais”; b) Da crítica do direito penal como direito desigual derivam duas metas: 1) ampliação e reforço da tutela penal “em áreas de interesse essencial para a vida dos indivíduos e para a comunidade: a saúde a segurança no trabalho, a integridade ecológica, etc”. Implica, ainda, “dirigir os mecanismos da reação institucional para o confronto da criminalidade econômica, dos grandes desvios criminais dos órgãos e do corpo do Estado”; 2) uma “obra radical e corajosa de despenalização, de contração ao máximo do sistema punitivo, com a exclusão total ou parcial, de inumeráveis setores que preenchem os códigos.” Com isso, segundo Baratta, há o alívio da pressão negativa do sistema punitivo sobre as classes subalternas; c) Análise das funções reais da prisão e constatação de seu fracasso histórico e consequente abolição dessa instituição; d) uma política criminal alternativa deve se preocupar com a opinião pública e com a influência que o mass media exerce sobre ela, travando uma “batalha cultural e ideológica para desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo do desvio e da criminalidade.” É necessário um “trabalho de crítica ideológica, de produção cientifica e informação.” 313 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal, p. 202. 314 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal, p. 203.

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direitos humanos como objeto e limite da lei penal”315, no qual delineou alguns princípios para proteger os direitos humanos e conter os abusos da lei penal. De acordo com sua proposta, os direitos humanos cumpririam papel limitador do direito penal, indicando, ainda, quais os objetos passíveis de tutela penal. Nas palavras do autor:

O conceito de direitos humanos assume, nesse caso, uma dupla função. Em primeiro lugar, uma função negativa concernente aos limites do direito penal. Em segundo lugar, uma função positiva a respeito da definição de objeto possível, porém não necessário, da tutela por meio do direito penal. Um conceito histórico-social dos direitos humanos oferece, em ambas as funções, o instrumento teórico mais adequado para a estratégia da máxima contenção da violência punitiva, que atualmente constitui o momento prioritário de uma política alternativa do controle social.316

Desta forma, Baratta distingue dois grupos de princípios para

resguardar os direitos humanos: intrassistemáticos (que indicam dentro do sistema os requisitos para introdução das figuras delitivas na lei) e extrassistemáticos (referem-se aos critérios políticos e metodológicos para a descriminalização e para construção de uma alternativa ao sistema penal para solução de conflitos).317

Os princípios intrassistemáticos da mínima intervenção penal estão classificados em três grupos: princípios de limitação formal, de limitação funcional e de limitação pessoal ou de limitação da

315 BARATTA, Alessandro. Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos direitos humanos como objeto e limite da lei penal. Tradução Francisco Bissoli Filho. Disponível em <http://www.docstoc.com/docs/25011452/ALESSANDRO-BARATTA-Principios-de-direito-penal-minimo> Acesso em: 05 jan 2011. 316 BARATTA, Alessandro. Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos direitos humanos como objeto e limite da lei penal. Tradução Francisco Bissoli Filho. Disponível em <http://www.docstoc.com/docs/25011452/ALESSANDRO-BARATTA-Principios-de-direito-penal-minimo> Acesso em: 05 jan 2011. 317 BARATTA, Alessandro. Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos direitos humanos como objeto e limite da lei penal. Tradução Francisco Bissoli Filho. Disponível em <http://www.docstoc.com/docs/25011452/ALESSANDRO-BARATTA-Principios-de-direito-penal-minimo> Acesso em: 05 jan 2011.

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responsabilidade penal.318 Os princípios extrassistemáticos são divididos em dois grupos: princípios extrassistemáticos de descriminalização e princípios metodológicos da construção alternativa dos conflitos e dos problemas sociais.319

Por fim, em “Defesa dos direitos humanos e política criminal”320, Baratta esboça suas ideias sobre a construção de um “direito penal da Constituição” e de um “garantismo positivo”.

O modelo minimalista de Eugenio Raúl Zaffaroni é o chamado “realismo marginal latino-americano”321, exposto em sua obra “Em busca das penas perdidas”. A proposta de Zaffaroni consiste em uma resposta marginal (ou seja, adequada à América Latina) para a deslegitimação dos sistemas penais atuais, afastada dos elementos teóricos centrais. Para construir essa resposta, o autor argentino

318 Segundo BARATTA, Alessandro. Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos direitos humanos como objeto e limite da lei penal. Tradução Francisco Bissoli Filho. Disponível em <http://www.docstoc.com/docs/25011452/ALESSANDRO-BARATTA-Principios-de-direito-penal-minimo> Acesso em: 05 jan 2011, são princípios de limitação formal: princípio da reserva da lei; da taxatividade; da irretroatividade; do primado da lei penal substancial; da representação popular. Princípios de limitação funcional: princípio da resposta não contingente; da proporcionalidade abstrata; da idoneidade, da subsidiariedade; da proporcionalidade concreta ou da adequação do custo social; da implementação administrativa da lei do respeito pelas autonomias culturais; do primado da vítima. Princípios de limitação pessoal ou de limitação da responsabilidade penal: princípio da imputação pessoal, da responsabilidade pelo fato; da exigibilidade social do comportamento com a lei. 319 Princípios extrassistemáticos de descriminalização: princípio da não-intervenção útil; da privatização dos conflitos; da politização dos conflitos; da preservação das garantias formais. Princípios metodológicos da construção alternativa dos conflitos e dos problemas sociais: da subtração metodológica dos conceitos de criminalidade e de pena; de não-especificação dos conflitos e dos problemas; princípio geral de prevenção. 320 BARATTA, Alessandro. Defesa dos direitos humanos e política criminal. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro. n. 3, p. 57-69, 1º semestre 1997. 321 Os termos “realismo” e “marginal”de ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 161-165 seriam a “síntese de vários conceitos”: a) entende que o que há de “material no mundo” existe independemente do homem. O conhecimento não tem função criativa, serve apenas para dar um sentido à realidade; b) dentro do realismo, o mal é entendido como uma realidade, e não uma “falta de bem” ou imperfeição. A miséria, a violência, a inflição de dor é uma realidade social e humana; c) Zaffaroni usa o termo realismo para aproximar-se dos fenômenos do sistema penal, evitando usar categorias generalizantes como “crime”, “droga”, etc, as quais considera ”‘realidades inventadas”; d) o termo “realismo” é usado para renunciar a qualquer modelo ideal. A expressão “marginal” é empregada por Zaffaroni em vários aspectos: significa nossa posição latino-americana na “periferia do poder planetário”; demonstra nossa “relação de dependência com o poder central”; assinala a “maioria da população latino-americana, marginalizada do poder e objeto da violência do sistema penal”.

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seleciona os elementos teóricos “para hierarquizar e defender a vida humana e a dignidade do homem”, sendo que “a partir dessa premissa seletiva – à qual denominamos realismo marginal – obtemos, obviamente, uma referencia teórica sincrética.”322

O realismo marginal é uma resposta que possui dimensão criminológica, político-criminal e jurídico-penal. A dimensão criminológica aproxima-se do funcionamento do sistema penal, possibilitando buscar meios de diminuir seus níveis de violência.323

Não obstante, Zaffaroni não acredita na separação entre criminologia e política criminal, pois “todo saber criminológico está previamente delimitado por uma intencionalidade política (ou político-criminal, se preferir).” A criminologia seria um saber (não uma ciência), necessário para “instrumentalizar a decisão política de salvar vidas humanas e diminuir a violência política em nossa região marginal.”324

A dimensão jurídico-penal, por sua vez, é mais complexa, pois a deslegitimação do sistema penal deslegitima também o discurso jurídico-penal. Todavia, segundo o autor, isso não obstaculizaria a criação de discurso jurídico-penal que partisse do pressuposto de deslegitimação do sistema penal e se limitasse a “pautar as decisões das agências judiciais com o mesmo objetivo de reduzir a violência, levando-se em conta a informação criminológica sobre a operacionalidade dos sistemas penais.” O ponto de partida para essa construção seriam estruturas lógico-reais, “que permitem transcender os limites de suas aplicações realizadas por Welzel e descobrir um conceito ôntico de pena.”325

Como sua práxis, o realismo marginal enumera estratégias que objetivam reduzir o número de mortes e gerar “espaços de liberdade social que permitam a reconstrução de vínculos comunitários apesar da concentração urbana”: introduzir um discurso não-violento, no que diz respeito ao sistema penal, nas universidades, por exemplo, e neutralizar a propaganda violenta do sistema penal feita pelos meios de

322 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 161. 323 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 171. 324 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 171-172. 325 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 172.

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comunicação de massa. Zaffaroni propõe o controle das notícias veiculadas, ressaltando que isso não fere a liberdade de expressão.326

Além disso, trata-se de uma proposta de intervenção mínima, isto é, “diminuição da intervenção penal através da descriminalização, da ‘diversion’ e do principio da oportunidade da ação penal”327, reduzindo, assim, a violência do sistema penal. A renúncia à intervenção do sistema penal, todavia, não poderia servir de álibi para repassar o controle penal para outras agências.328

Luigi Ferrajoli parte da deslegitimação dos sistemas penais atuais. Todavia, seu modelo minimalista, denominado “garantismo penal”, prevê uma intervenção penal mínima, possuindo um programa de considerável descriminalização e de afastamento da pena de prisão, visando recuperar os limites do direito penal liberal.

Ferrajoli329 propõe, por exemplo, condições de legitimidade para a criminalização, estabelecendo princípios norteadores (derivados do princípio da utilidade penal, de tradição iluminista): o princípio da necessidade e o princípio da lesividade. O primeiro dispõe que só haveria intervenção penal em casos extremamente necessários, e o segundo que o sistema penal só atuaria para prevenir ataques concretos a bem jurídicos concretos, palpáveis.330

Para o autor italiano, o direito penal mínimo seria instrumento impeditivo da vingança. Ou seja, o objetivo da pena seria garantir uma reação menos violenta contra o delito. Nas palavras do autor, o “objetivo geral do direito penal, tal com resulta da dupla finalidade preventiva ora ilustrada, pode ser, em uma palavra, identificado com o impedimento do exercício das próprias razões, ou, de modo, mais abrangente, com a minimização da violência em sociedade.” 331

326 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 175-176. 327 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 177. 328 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 177. 329 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão - teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos tribunais, 2010. p. 426-429. 330 Na mesma linha minimalista, BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 18, discute “pressupostos a serem considerados pelo legislador quando da sua tarefa de criação de leis” buscando “fornecer um contributo ao tema, fundado em indicações ou orientações sobre pressupostos mínimos a serem atendidos antes de se decidir pela criminalização de determinada conduta.” 331 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão - teoria do garantismo penal, p. 311.

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Assim, com esta dupla função, o direito penal mínimo seria uma proteção legal do mais fraco e seria considerado um “mal menor”: “Sob ambos os aspectos a lei penal se justifica enquanto lei do mais fraco, voltada para a tutela dos seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte.”332

3.1.2 Propostas político-criminais abolicionistas

O movimento político criminal abolicionista também possui

diferentes vertentes. Há quem diferencie, inclusive, o abolicionismo sob uma perspectiva teórica de uma perspectiva prática (como fundamentação metodológica para a abolição), como militância política (como movimento social, práxis).333

Neste tópico, serão delineados aspectos das propostas abolicionistas teóricas de Louk Hulsman, Nils Christie e Thomas Mathiesen.

Para o criminólogo holandês Louk Hulsman334, o sistema penal é um “mal social”, que não serve para resolver os problemas a que se propõe. Tal sistema geraria tão somente estigmatização335 (para o acusado e para a vítima)336, perda de dignidade, além de funcionar seletivamente e de produzir mais violência.337 332 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão - teoria do garantismo penal, p. 311.

333 HULSMAN, Louk. Entrevista com o abolicionista Louk Hulsman. Disponível em < www.direitoufba.net >. Acesso em: 02 jan. 2011. Entrevista concedida ao site www.direitocriminal.com.br, divide o abolicionismo em dois movimentos: o abolicionismo acadêmico e o abolicionismo penal como movimento social. Neste sentido também se posiciona ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre deslegitimação e expansão, p. 464. A autora refere-se a grupos de ação e pressão contra o sistema penal, como o “Grupo de informação sobre os cárceres”, de Foucault, a “Liga Coorhhert”, de Hulsman e o “KROM”, de Mathiesen. 334 HULSMAN, Louk. Penas perdidas. Niterói: Luam, 1997. p. 91. 335 Para HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 69, “Em inúmeros casos, a experiência do processo e do encarceramento produz nos condenados um estigma que pode se tornar profundo. Há estudos científicos, sérios e reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição social por elas produzida podem determinar a percepção do eu como realmente deviante e,a ssim, levar algumas pessoas a viver conforme esta imagem, marginalmente.” 336 Conforme HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 83, “A intervenção estereotipada do sistema penal age tanto sobre a 'vítima'como sobre o 'deliquente'. Todos são tratados da mesma maneira. Supõe-se que todas as vítimas têm a mesma reação, as mesmas necessidades. O sistema não leva em conta as pessoas em sua singularidade. Operando em abstrato, causa danos inclusive àqueles que diz querer proteger.” 337 De acordo com HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 88: O sistema penal produz “violência, na medida em que, independentemente da vontade das pessoas que o acionam, ele é estigmatizante, ou seja, gera uma perda de dignidade. É isso a estigmatização.”

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Hulsman defende, portanto, a abolição do sistema penal. A abolição da pena, todavia, “não significa necessariamente rejeitar qualquer medida coercitiva, nem tampouco suprimir totalmente a noção de responsabilidade pessoal.”338

Para o autor, o sistema penal deveria ser substituído por instâncias intermediárias de solução de conflitos, num modelo que atenda melhor às necessidades das pessoas envolvidas. Ademais, existem várias maneiras de resolver uma situação conflituosa, e a escolha varia caso a caso.339

Hulsman propõe, por exemplo, que a categoria “crime” (a qual encobre uma variedade imensa de conflitos) seja substituída por “situações problemáticas”, proporcionando a estas uma solução efetiva entre as partes envolvidas, usando métodos compensatórios, terapêuticos, educativos, assistenciais, sendo que o uso de um deles não exclui os outros.340

A partir da constatação dos custos sociais e individuais advindos do sistema penal, e da diferença considerável entre os objetivos atribuídos ao sistema e a realidade de seu funcionamento, Hulsman conclui que a mudança radical só seria possível por meio de “uma grande operação de descriminalização.”341

Hulsman elabora uma lista de situações em que a criminalização deve ser absolutamente excluída. Ele chama de critérios absolutos aqueles “em virtude dos quais, na nossa época e considerando o desenvolvimento da nossa sociedade, a criminalização deve ser excluída.” São eles: a) “A penalização não deve jamais fundar-se no desejo de tornar dominante determinada concepção moral a propósito de determinado comportamento”; b) “a penalização não deve jamais ter como primeiro objetivo a criação de um sistema visando ajudar ou tratar um delinquente (em potencial) no seu próprio interesse”; c) “não deve

338 HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 86. 339 HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 102-103. 340 HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 99-101 discorre sobre as possíveis soluções de um conflito ao narrar a “parábola” dos “cinco estudantes”. 341 HULSMAN, Louk H. C. Descriminalização. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro, n. 9/10, p. 12, 1973. Em HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 97, o autor afirma: “Algumas pessoas se assustam ao ouvir a palavra 'descriminalização', como se retirar a punibilidade de um fato necessariamente implicasse num choque social insuperável. Ora, o que acontece quando se descriminalizam comportamentos? Alguns continuam trazendo problemas, e aí se procurará resolvê-los por meios diversos do apelo à polícia repressiva, ao juiz penal, ao encarceramento.”

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haver nunca criminalização quando isto acarretar sobrecarga para a capacidade do sistema”; d) “a criminalização não deve servir para encobrir aparente solução do problema.”342

Paralelamente aos critérios absolutos, Hulsman prevê critérios relativos, considerados como uma contra-indicação para a criminalização. As circunstâncias relativas seriam aquelas que: a) tratam de comportamentos relativos a grupos socialmente fracos e que correm grande risco de serem criminalizados; b) tratam de comportamentos que a polícia não tem conhecimento através de queixa ou denúncia, mas através de investigação própria; c) tratam de comportamentos muito frequentes; tratam de comportamento próprio de um número muito grande de pessoas; d) tratam de comportamentos que ocorrem apenas em situações de miséria psíquica e moral; tratam de comportamentos difíceis de definir com precisão; e) tratam de comportamentos que o indivíduo adota principalmente na esfera privada; f) tratam de comportamentos que grande parte da população considera admissível.343

O modelo abolicionista, de inspiração fenomenológico-historicista, de Nils Christie muitas semelhanças com o de Louk Hulsman. Porém, Christie baseia-se na experiência de modelos comunitários de pequenas cidades da Dinamarca, como Christiania e Tvind.344 De fato, o autor norueguês descreve as relações de solidariedade nas pequenas cidades, o que facilitaria as soluções de consenso:

Eu tento descrever o que acontece nas pequenas cidades, que é o que cria coalizão entre as pessoas. Se você vive em uma sociedade limitada, não pode estar sozinho. Deve ser civilizado suficientemente para ter amigos de modo que, se estiver em apuros, poderá mobilizar seus amigos, o que independe de suas condições financeiras. Não existe paraíso, todas as comunidades têm seus conflitos. O que importa é que exista equilíbrio nas relações de poder. Nesta espécie de construção de similitudes, os interesses dos participantes com freqüência se encontrarão e

342 HULSMAN, Louk H. C. Descriminalização, p. 22-23. 343 HULSMAN, Louk H. C. Descriminalização, p. 23-24. 344 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, p. 100.

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poderá surgir uma solução de consenso, que é o oposto de uma solução penal.345

Não obstante, o autor ressalta que nas cidades com milhões de

habitantes, onde os laços de solidariedade não estão pré-estabelecidos como nas comunidades pequenas, também é possível estabelecer soluções não-penais, consensuais, desde que haja a descentralização dos conflitos.346

Nils Christie347 conclui que este sistema destina-se apenas a produzir danos, sendo necessário buscar opções alternativas para manejo dos conflitos. Dentre as estratégias para afastar os indivíduos envolvidos nos conflitos das respostas penais estão propostas de descriminalização e despenalização.

De acordo com o autor, “o abolicionismo quer é encolher o sistema penal”348 e, para tanto, alguns pontos nodais para alcançar esse objetivo seriam a solução do problema do aprisionamento em massa das classes sociais baixas (questão enfocada na obra “Indústria do controle do delito”349) e o resgate do conflito penal para a vítima, fazendo com que esta tome seu lugar na solução dele.350

Por outro lado, Christie não postula, necessariamente, mudanças na estrutura social, mas sim a contração do sistema penal, pois o crescimento deste mantém as diferenças sociais:

O importante é dizer que o crescimento do sistema penal ajuda muito a manter as diferenças sociais. Se restringirmos o aparato penal, se não colocarmos tantas pessoas dentro das prisões, nestas condições indignas, poderemos fazer algo para que a diferença não seja tão intensa. Sei que não podemos mudar toda a estrutura social, mas é preciso perceber que nas condições atuais, quando se fala de sistema penal, já não se trata de sistema de controle de crime, mas sim de sistema de

345 CHRISTIE, Nils. Conversa com um abolicionista minimalista. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 21, v. 06, p. 19, 1998. 346 CHRISTIE, Nils. Conversa com um abolicionista minimalista, p. 19-21. 347 CHRISTIE, Nils. Conversa com um abolicionista minimalista, p. 13-16. 348 CHRISTIE, Nils. Conversa com um abolicionista minimalista, p. 14. 349 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do delito: a caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Tradução por Luis Leiria. São Paulo, Forense, 1998. 350 CHRISTIE, Nils. Conversa com um abolicionista minimalista, p. 14.

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controle das classes mais baixas. (...) Este sistema de controle de classes é que nós precisamos abolir.

A proposta abolicionista de Thomas Mathiesen, por sua vez, está

ligada a um modelo de sociedade marxista. A existência do sistema penal estaria ligada à estrutura produtiva capitalista. Portanto, sua proposta seria não só a abolição do sistema penal, mas a “transcendência da estrutura repressiva de nossa sociedade, na última instância do modelo básico de produção dessa sociedade.”351

Mathiesen propõe um “caminho aberto” (o “inacabado”, unfinished), que impedisse o poder fechar-se, excluindo o que está fora do sistema. Com isso, haveria um retrocesso do poder, até abolir-se o sistema penal.352

A abolição acontece “quando rompemos com a ordem estabelecida e ao mesmo tempo nos deparamos com um terreno vazio.”353 Ou seja, o rompimento com a ordem estabelecida daria origem ao “inacabado”. Isso não significa substituir uma ordem por outra, mas dar oportunidade ao inconcluso. A ideia do “inacabado” evitaria a escolha de alternativas acabadas que não implicassem uma mudança na ordem dominante.

Além disso, o movimento abolicionista deveria manter sempre uma relação de oposição ao sistema (diferença de pontos de vista com relação às bases teóricas dele) e de competição com o sistema (ação política fora do sistema). Caso não haja essa contradição reiterada e competitiva, a substituição do sistema existente não será relevante e o movimento político se retrairá.354

Resumindo e contextualizando, este tópico buscou trazer matizes de algumas propostas minimalistas e abolicionistas. A exposição não teve a intenção de analisar detalhadamente cada modelo, mas de mostrar, em linhas gerais, alguns deles, possibilitando entrever os caminhos político-criminais que podem ser seguidos a partir dos programas de descriminalização.

351 MATHIESEN, Thomas. Law, Society and Political Action. Londres: London Academie Press, 1980. p. 233. 352 MATHIESEN, Thomas. Law, Society and Political Action. Londres: London Academie Press, 1980. p. 190. 353 MATHIESEN, Thomas. Law, Society and Political Action, p. 190. 354 MATHIESEN, Thomas. Law, Society and Political Action, p. 233.

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No próximo tópico será apresentada e descrita uma classificação das espécies de descriminalização e legalização, para, em seguida, delinear as respostas alternativas para os crimes relacionados a drogas no Brasil. 3.2 Espécies de descriminalização e de legalização (em particular)

Antes de apresentar a classificação das espécies de descriminalização, é necessário esclarecer o que se entende por descriminalização de uma forma geral. Dentre os vários conceitos possíveis, adota-se, aqui, o de Louk Hulsman, o qual afirma que descriminalização é:

o ato ou atividade pelos quais um comportamento, em relação ao qual o sistema punitivo tem competência para aplicar sanções, é colocado fora da competência desse sistema. Assim, a descriminalização pode ser realizada através de um ato legislativo ou de um ato interpretativo (do Juiz).355

Como bem observa Hulsman356, falar sobre este tema “pressupõe

um descontentamento com o funcionamento atual do sistema penal e a ideia de que uma descriminalização poderia melhorar o presente estado das coisas.” Ou seja, o que se discute são as alternativas possíveis a uma reação penal.

Por outro lado, é preciso observar que não existe um consenso sobre as espécies de descriminalização. São inúmeras as classificações, abrangendo termos e situações diversas. Termos como “descriminalização”, “despenalização”, “diversificação”, por exemplo, são usados com significados diferentes e até mesmo como sinônimos.

Há, ainda, quem prefira mesclar uma classificação geral sobre descriminalização com uma específica sobre descriminalização das drogas (descriminalização do uso, de algumas drogas, entre outras). Pode-se perceber, portanto, a confusão terminológica existente em relação ao tema.

355 HULSMAN, Louk H. C. Descriminalização, p. 7. Em HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 105, o autor afirma, de forma mais ampla, que: “Descriminalizar é tirar uma parte da realidade social do sistema penal.” 356 HULSMAN, Louk H. C. Descriminalização, p. 7.

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Deste modo, a classificação apresentada neste tópico optou por mesclar a terminologia de autores cujos conceitos possuem alguma proximidade, como Salo de Carvalho357, Lola Aniyar de Castro358, Nilo Batista359 e Raul Cervini360. Foram definidas, assim, quatro espécies principais de descriminalização: legislativa, judicial, processos de diversificação (diversion) e descriminalização de fato.

Em seguida trabalhar-se-á a diferenciação entre descriminalização e legalização, bem como serão delineadas as espécies de legalização, usando conceitos de Francis Caballero361, Kai Ambos362 e Thiago Rodrigues363. 3.2.1 Descriminalização legislativa

O primeiro conceito a ser delineado é o de descriminalização

legislativa. De acordo com Salo de Carvalho, a descriminalização legislativa abrange dois tipos de processo: descriminalização em sentido estrito e a descriminalização parcial. Na descriminalização legislativa em sentido estrito, há a ab-rogação da lei ou da figura delitiva (abolitio

criminis).364 O autor divide a descriminalização parcial em duas subespécies: a descriminalização substitutiva e a alteração dos critérios sancionatórios.365

Cervini compartilha do conceito de descriminalização substitutiva, definindo-a como aquela em que “as penas são substituídas

357 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 358 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Sistema penal e sistema social: a criminalização e a descriminalização como funções de um mesmo processo. Revista de direito penal. Rio de Janeiro, n. 30, p. 11-27, 1980. 359 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 28-40. 360 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 361 CABALLERO, Francis; BISIOU, Yann. apud RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. (Doutorado em Direito). Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. 362 Kai. Razones del fracasso del combate internacional a las drogas y alternativas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 11, p. 44, jan-mar. 2003. 363 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino. 2003. p. 114. 364 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 109. 365 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 109.

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por sanções de outra natureza, como por exemplo, a transformação de delitos de pouca importância em sanções administrativas ou fiscais punidas com multa de caráter disciplinar.”366 Nesta hipótese, o ilícito persiste, mas ele deixa de ter caráter penal, passa a pertencer a outros ramos do direito.

A descriminalização parcial abrange, ainda, “a alteração dos critérios sancionatórios, como a modificação nos critérios da tipicidade, flexibilização das penas ou da sua execução, criação de regras diferenciadas de extinção da punibilidade entre outros.”367

De acordo com Cervini, a descriminalização de uma conduta pode indicar “o desejo de outorgar um total reconhecimento legal e social ao comportamento descriminalizado.”368 Isto é, a lei penal deixa de ser usada porque a população não tem aversão à conduta outrora incriminada.

Lola Aniyar de Castro369, todavia, afirma que nem sempre a descriminalização é produto da mudança da atitude valorativa da opinião pública. Ela pode ser motivada, por exemplo, pelo reconhecimento das autoridades de que a criminalização de tal conduta não é a solução para o problema em questão:

Às vezes é assim: nem sempre quando se descriminalizam fatos como o aborto, o incesto, o adultério, se faz por uma atividade valorativa da opinião pública diante desses fatos, mas, sim, para restaurar a chamada autoridade da justiça, colocada em contradição por sua incapacidade de controla-los. Outras vezes, deriva de um reconhecimento do fracasso do sistema, como foi o conhecido caso da revogação da proibição do uso do álcool nos Estados Unidos, que havia gerado incriminações secundárias (...).

De qualquer forma, a descriminalização legislativa em sentido

estrito é a mais eficiente, pois há a eliminação de toda a ilicitude do ato; a conduta deixa de ser objeto não só da lei penal, mas de qualquer forma

366 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização, p. 82. 367 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 109. 368 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização, p. 82. 369 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Sistema penal e sistema social: a criminalização e a descriminalização como funções de um mesmo processo, p. 20.

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de controle social. É a forma mais eficaz de se descriminalizar, todavia, é a mais difícil ocorrer.370 3.2.2 Descriminalização judicial

A descriminalização judicial ou por ato interpretativo é aquela

que se dá pela interpretação do magistrado. Salo de Carvalho371 e Nilo Batista372 reconhecem esta modalidade descriminalizadora, porém possuem pontos de vista diferentes sobre ela.

Nilo Batista373 afirma que se devem retirar do conteúdo da descriminalização por ato interpretativo as situações nas quais a lei afasta a punição, “ou quando é ela excluída por razões de sistema (causas supralegais e exclusão da antijuridicidade ou culpabilidade, etc), tecnicamente aplicadas.”

Batista374 entende que “nosso sistema não permite ao Juiz grande mobilidade”375 sendo que o princípio da obrigatoriedade da ação penal do Ministério Público torna a situação mais difícil. Todavia, a prática indicaria alguns casos de descriminalização pela via interpretativa, como o de alguns juízes do estado da Guanabara que, na década de setenta, absolveram acusados de dirigir sem habilitação, desde que eles se habilitassem durante o processo. Porém, geralmente, o que ocorre é que a operação de descriminalização se faz através do dispositivo processual que determina a absolvição por insuficiência de provas.

Para ele, se houvesse uma regra segundo a qual o juiz - uma vez convencido sobre a ineficácia, ausência de conveniência ou oportunidade da sanção penal para punir determinada conduta - pudesse ser mais exigente para a comprovação dela, tal regra poderia abrir “um campo fértil para a descriminalização por ato interpretativo.”376

370 Neste sentido: CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 109. BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 35. 371 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 111-127; CARVALHO, Salo de. A sentença criminal como instrumento de descriminalização (o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da constituição). Associação dos Juizes do RS. Porto Alegre, v. 102, p. 327-348, jun. 2006. 372 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 28-40. 373 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p.35 . 374 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 35. 375 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 35. 376 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 35.

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Lola Aniyar de Castro inclui a descriminalização judicial dentre as hipóteses de descriminalização de fato377, já que o magistrado “não tem faculdade para ab-rogar leis”. Não obstante, reconhece que, como o juiz é, sem dúvida, criador do direito, ele “é instrumento de criminalização e descriminalização, de fato, mesmo na concepção legislativa continental.” A descriminalização judicial, portanto, seria possível “em alguns casos, através da interpretação e do sobrestamento.”378

Salo de Carvalho379, por outro lado, aborda a descriminalização judicial sob uma perspectiva garantista. Para o autor, o garantismo penal fornece, ao magistrado, “condições, desde o interior do sistema positivado, de minimização da incidência através das práticas descriminalizadoras.”

Segundo ele, para a teoria garantista do direito, há diferença entre validade e vigência das normas. As constituições não estabelecem apenas critérios de vigências das normas (relativos a procedimentos e competências legislativas, por exemplo), mas também de validade material. No entanto, com a consolidação do modelo positivista dogmático, há uma tendência a ignorar a força normativa da Constituição, resignando-se à aplicação das normas inferiores. Desse modo, a crítica ao direito deveria ser direcionada à reconstrução das interpretações da doutrina e jurisprudência, priorizando a norma constitucional.380

O magistrado deveria agir dentro do sistema jurídico positivado de forma crítica, otimizando a estrutura dogmática e atuando como freio aos excessos punitivos do Estado. O juiz aproveitaria as falhas do sistema (lacunas e antinomias), a falta de um discurso legitimador sobre as “finalidades” da pena, bem como a principiologia penal estabelecida na Constituição para implementar uma política de redução de danos causados pelas agências penais.381

377 Sobre o conceito de descriminalização de fato, ver o tópico 3.2.4. 378 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Sistema penal e sistema social: a criminalização e a descriminalização como funções de um mesmo processo, p. 21. 379 CARVALHO, Salo de. A sentença criminal como instrumento de descriminalização (o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da constituição), p. 335. 380 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 112. 381 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 112-115.

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Ademais, a perspectiva garantista ofereceria a possibilidade de flexibilizar a legalidade através da interpretação material, operando-se a descriminalização por meio do uso de alguns artifícios legais:

Existem, portanto, desde a perspectiva garantidora do direito penal e processual penal, condições de flexibilização da legalidade via interpretação material, em sentido descriminalizador/ despenalizador, conformando o que se poderia denominar dogmática penal garantista. Tais possibilidades, porém, limitam-se à ampliação do direito à liberdade. Como mencionado em um outro momento, não se pode esquecer a utilidade prática, por exemplo, a fórmula de analogia in

bonam partem, a atipicidade material dos delitos de bagatela e das condutas socialmente adequadas (princípio da insignificância e da adequação social); o reconhecimento das causas supralegais de exclusão da ilicitude (...); a possibilidade de alargamento das descriminantes; a reavaliação da matéria do erro de proibição (...).382

Partindo dessa abordagem garantista, Salo de Carvalho383

apresenta conceitos diferentes daqueles de Nilo Batista, para a descriminalização judicial. Para ele, esta espécie comporta duas formas: a) o juiz, ao examinar o caso concreto, pode “deixar de aplicar a lei penal válida (constitucionalmente conformada)” em virtude de a conduta configurar alguma excludente como princípio da insignificância, consentimento do ofendido, inexigibilidade de conduta diversa, direito de resistência, entre outros; b) o magistrado deixa de aplicar a lei penal em virtude da incompatibilidade com a Constituição, ou seja, o juiz utiliza o controle difuso, proferindo decisão descriminalizadora.

Importante, ainda ressaltar que a descriminalização judicial é possível não apenas no final do processo, na prolação da sentença, mas também durante o trâmite processual, no momento do recebimento da denúncia pelo magistrado, por exemplo.

A descriminalização judicial não tem o mesmo alcance que a legislativa, pois se aplica caso a caso. Carvalho, todavia, aponta algumas

382 CARVALHO, Salo de. A sentença criminal como instrumento de descriminalização (o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da constituição), p. 340. 383 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 126.

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vantagens da descriminalização judicial. De acordo com ele, o atuar garantista do juiz: “fortalece elementos de crítica dos movimentos de descriminalização” e produz “efeitos concretos na resolução mais favorável do caso penal em análise”, diminuindo o número de pessoas no cárcere.384

3.2.3 Processos de Diversificação (diversion)

O processo de diversificação é aquele pelo qual a aplicação da

pena privativa de liberdade é excluída e substituída por outras alternativas, como as penas restritivas de direitos385, a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo.386 Não há, neste caso, descriminalização propriamente dita, pois a conduta não perde o caráter de ilícito penal.

Há quem prefira usar o termo “despenalização” para denominar o processo de diversificação. Raul Cervini é um exemplo, definindo a despenalização como “o ato de diminuir a pena de um delito sem descriminalizá-lo, quer dizer, sem tirar do fato o caráter de ilícito penal.”387 De acordo com ele, o conceito de despenalização:

inclui toda a gama de possíveis formas de atenuação e alternativas penais: prisão de fim de semana, prestação de serviços de utilidade pública,

384 CARVALHO, Salo de. A sentença criminal como instrumento de descriminalização (o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da constituição), p. 336. 385 A introdução das penas restritivas de direitos foi feita, inicialmente, com a reforma do Código Penal pelas leis 7.209/84 e 7.210/84. A lei 9714/98 ampliou as possibilidades das penas restritivas de direitos, acrescentando duas espécies de pena. As penas passaram a ser aplicadas de forma autônoma, em substituição às penas privativas de liberdade que não sejam maiores que quatro anos e que o crime não tenha sido praticado com violência ou grave ameaça ou, qualquer que seja a pena, nos crimes culposos (art. 44, I, do Código Penal). Além disso, o réu não poderá ser reincidente em crime doloso (art. 44, II, do Código Penal) e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que a substituição será suficiente (art. 44, III, do Código Penal). O § 2º do art. 44 prevê as hipóteses em que a pena será substituída por uma ou duas penas restritivas de direitos e/ou multa. O § 3º do mesmo artigo estabelece as condições de substituição para os reincidentes; o § 4º dispõe sobre as hipóteses em que as penas restritivas de direitos são convertidas novamente em pena privativa de liberdade e o § 5º prevê o que ocorrerá se houver uma nova condenação por pena restritiva de direitos. 386 Os benefícios da composição civil, da transação penal e da suspensão condicional do processo são previstos, respectivamente, nos artigos 74, 76 e 89 da Lei 9.099/95. 387 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização, p. 85.

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multa reparatória, indenização à vítima, semidetenção, sistemas de controle de condutas em liberdade, prisão domiciliar, inabilitação, diminuição do salário e todas as medidas reeducativas dos sistemas penais (…).

O processo de diversificação busca, na verdade, a contração do

sistema carcerário, substituindo a prisão (considerada última ratio) por respostas alternativas. No Brasil, a introdução das penas alternativas teve início na década de oitenta com a promulgação das leis 7.209/84 e 7.210/84 (reforma do Código Penal), culminou com a lei das penas alternativas (9.714/98), chegando à lei 9.099/95, que instituiu os crimes de menor potencial ofensivo e medidas alternativas cabíveis.

Nos países da Europa Ocidental, a diversificação tem sido uma tendência: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Irlanda, Reino Unido e Suíça adotaram os substitutivos penais em relação ao uso e à posse de drogas. Outros países como Itália, Espanha e Portugal descriminalizaram a mesma conduta.388

Em geral, os países europeus que despenalizaram o uso e a posse de drogas também adotaram, paralelamente, políticas de redução de danos, isto é, o controle médico-sanitário sobre o uso de drogas, com objetivo de reduzir os danos causados pelo abuso dessas substâncias.389

Em que pese ser necessária a criação de medidas para contração do sistema penal e redução do sofrimento dos indivíduos submetidos à pena de prisão, a política de substitutivos penais tem sido alvo de críticas.

Os criminólogos críticos entendem que esses substitutivos não enfraquecem a prisão, mas fortificam-na. Na verdade, essas medidas alternativas dependem da existência da prisão, ou seja, são apêndices dela. Caso os apenados não cumpram as medidas aplicadas, há a possibilidade do reencarceramento.

Deste modo, o que acontece, na prática, é o crescimento da rede punitiva, sem a real extinção do cárcere. Em outras palavras: não há o rompimento com a lógica punitiva. Os substitutivos penais relegitimam a prisão e fazem com que o discurso sobre os efeitos negativos do encarceramento perca sua força, em nome de medidas alternativas que

388 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 101-133. 389 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 84.

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têm mero efeito paliativo. Vera Regina Pereira de Andrade390 chama este movimento

reformista de “minimalismo reformista”, aduzindo que “regra geral, essas reformas têm se caracterizado, segundo a lógica do sistema penal, por uma 'eficácia invertida', contribuindo, paradoxalmente, para ampliar o controle social e relegitimar o sistema penal.”

Salo de Carvalho391, em recente artigo sobre o tema, traz dados comparativos entre o número de penas de prisão e de penas e medidas alternativas aplicadas no Brasil nos últimos anos, comprovando que os substitutivos penais não reduziram as taxas de encarceramento neste país. Carvalho afirma que:

Do que se pode observar na realidade brasileira contemporânea, a institucionalização das penas e das medidas alternativas não diminuiu os níveis de encarceramento. Pelo contrário, as taxas de prisionalização, a partir de 1995, vêm crescendo gradual e constantemente. De forma abrupta, a estrutura do controle punitivo formal amplia hiperbolicamente seus horizontes em face da instituição dos substitutivos penais, principalmente com o advento das Leis 9.099/95 e 9.714/98.

Pode-se perceber, ou pelo menos parece, que tais dados

comprovam a crítica feita aos substitutivos penais, ou seja, que eles não rompem com a lógica punitivista e carcerária, e que não reduzem o número de encarceramentos.

3.2.4 Descriminalização de fato

A descriminalização de fato, de acordo com Cervini392, é aquela

em que o sistema penal deixa de atuar, embora não tenha perdido a competência para tal. Ou seja, “do ponto de vista técnico-jurídico, nesses casos, permanece ileso o caráter de ilícito penal, eliminando-se somente a aplicação efetiva da pena.”

390 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre deslegitimação e expansão. p. 467. 391 CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. Revista científica dos estudantes de direito da UFRGS. Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 1-30, nov. 2010. 392 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização, p. 83.

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Nilo Batista393 distingue duas formas de descriminalização de fato. Em primeiro lugar, o caso em que o cidadão toma conhecimento de um delito e de seu autor, mas não leva ao conhecimento da polícia. “É essa uma atitude mais frequente do que se possa imaginar, ainda fora da hipótese em que o cidadão assim proceda por temor a uma represália.”

Em segundo lugar, há a descriminalização exercida pela própria polícia, que não leva o fato criminoso ao conhecimento do Ministério Público ou do Juiz, procurando compor conflitos os quais, a rigor, constituiriam delitos (por exemplo, agressão ao cônjuge, briga de vizinhos, entre outros).394

Lola Aniyar de Castro395, da mesma forma que Batista, enumera a inércia da polícia e do cidadão como situações de descriminalização de fato:

(...) há, também, descriminalização de fato por sobrecarga do sistema penal ou pelos critérios da polícia, que são o primeiro nível de criminalização. O público, também, é fator de descriminalização, quando por conhecer o caráter delitivo de um fato não promove a ação. Ou, quando considera que é melhor recorrer a acertos privados, ou pensa que a sanção seria mais grave do que a perda.

Raul Cervini396 aponta algumas causas que motivariam a

descriminalização de fato, as quais se coadunam com as hipóteses de Batista e Castro: sobrecarga do sistema penal ou da polícia; não conhecimento do tipo penal pela população, que não recorre ao sistema penal ou pensa ser mais conveniente o acordo privado; neutralização de uma criminalização “forçada” (crimes de “colarinho branco”, por exemplo, são descriminalizados por este meio); a discricionariedade do acusador público, que acaba implicando a descriminalização.

Louk Hulsman, por sua vez, observa que, embora a perspectiva tradicional entenda que o controle do funcionamento do sistema penal é feito pelo legislativo, pelo judiciário, pelo Ministério Público e

393 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 36. 394 BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 36. 395 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Sistema penal e sistema social: a criminalização e a descriminalização como funções de um mesmo processo, p. 21. 396 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização, p. 84.

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Ministério da Justiça, a experiência mostra que “a seleção dos casos tratados pelo sistema se efetua principalmente na área policial.”397

A polícia é a responsável por selecionar os casos que chegarão ao Ministério Público, ao Juiz, aos serviços penitenciários. É ela, portanto, que controla, negativamente, as atividades dos outros serviços. Este processo de seleção na área policial é espontâneo, sem escolha racional de seus objetivos.398

Pode-se perceber que a descriminalização de fato é fruto da valoração de condutas, da discricionariedade das agências de controle, e traduz, numericamente, o cotidiano das agências do sistema penal. Esta forma de descriminalização é aquela que dá origem às cifras ocultas (cifra negra, dark number) da criminalidade, ou seja, a defasagem existente entre a criminalidade real (número de condutas criminosas realmente praticadas) e a criminalidade estatística (número de crimes oficialmente registrados). Como afirma Aniyar de Castro399:

A descriminalização de fato é (...) a grande burla do sistema de legislação penal. Ou seu complemento de equilíbrio, se se quiser ver como subterfúgio para neutralizar os efeitos de uma criminalização forçada ou legitimadora. Na prática, aqueles delitos de Colarinho Branco que têm sido incriminados pela lei resultam descriminalizados de fato.

De fato, a cifra negra varia em virtude da atuação da população,

da polícia, já que “nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito perseguido é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia; nem todo delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento termina em condenação.”400

Os estudos da criminologia crítica sobre as cifras ocultas da criminalidade juntaram-se às conclusões do labelling approach, fornecendo dados importantes sobre a atuação das agências de controle e

397 HULSMAN, Louk H. C. Descriminalização, p. 09. 398 HULSMAN, Louk H. C. Descriminalização, p. 09. 399 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Sistema penal e sistema social: a criminalização e a descriminalização como funções de um mesmo processo, p. 21. 400 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria/Editora do Advogado, 1997. p. 262.

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sobre a seletividade de sua clientela. Os crimes que geralmente não são apurados (como os de “colarinho branco”) revelam a preferência das agências, e que seu atuar é seletivo.

3.2.5 Legalização

Além das várias espécies de descriminalização, existem ainda as

modalidades de legalização. Enquanto a descriminalização significa retirar a incriminação de certas condutas da lei ou fazer com que uma conduta perca seu caráter criminal, a legalização significa a inclusão de algo nas leis.

Ou seja, uma conduta pode ser descriminalizada, mas não existir qualquer lei tornando a conduta legal e dispondo sobre a matéria. Como escreve Allan Valêncio Bulcão401, ao tratar especificamente da descriminalização das drogas:

A descriminalização consiste em retirar do ordenamento jurídico a figura do usuário e do traficante. Ou seja, os tipos penais que abordam a questão seriam excluídos e, portanto, usuários e traficantes não sofreriam mais com as conseqüências do sistema penal. (...) Já a legalização traria conseqüências adicionais. Além da não criminalização de usuários e traficantes, a produção e comercialização dessas substâncias passaria a ter respaldo jurídico.

Kai Ambos402 observa que o “termo legalização se refere à

substância (droga) e significa a venda legal da mesma.” A legalização, todavia, inclui duas hipóteses diferentes: a legalização estatizante, a legalização controlada, a legalização liberal e a legalização total.

Segundo Thiago Rodrigues403, a legalização estatizante é a hipótese em que “o Estado tomaria para si a responsabilidade de produzir e vender (ou controlar a produção, distribuição e a venda) de

401 BULCÃO, Allan Valêncio. Descriminalização das drogas. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim. São Paulo. 25 de jun. de 2009. Disponível em www.ibccrim.org.br. Acesso em 20 nov. 2010. 402 AMBOS, Kai. Razones del fracasso del combate internacional a las drogas y alternativas, p. 44. 403 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra, p. 114.

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drogas psicoativas.” Para Kai Ambos404, esta espécie “estabelece um monopólio estatal de drogas e contém certos critérios de diferenciação (periculosidade da droga, idade do consumidor, etc).”

O tráfico de drogas desaparecia e o Estado passaria a controlar a produção e venda de psicoativos, possibilitando o controle de sua qualidade e a realização de campanhas para o controle de drogas.

Thiago Rodrigues405 critica esta forma de legalização, aduzindo que “os indivíduos passariam a depender do Estado, situação que os colocaria sob uma nova forma de vigilância, um controle mais refinado e talvez mais profundo do que a época da Proibição total.”

A legalização controlada é definida por Francis Caballero406 como “um sistema que visa à substituição da atual proibição das drogas pela regulamentação da sua produção, do comércio e do uso, com o objetivo de evitar abusos prejudiciais à sociedade.”

A legalização controlada não abandona por completo o uso do direito penal. Porém, esta via seria menos utilizada, reservada para apenas para alguns casos e não teria o mesmo papel central que atualmente. A via repressiva seria substituída pelo uso de outros ramos do direito, como o administrativo, tributário, comercial, usados para controlar a produção e distribuição.407

Seriam impostas restrições, segundo o contexto de cada país, e adequadas para cada tipo de drogas. Dentre tais restrições, estão as relacionadas ao monopólio da produção; a necessidade de autorização estatal para produção e distribuição, importação e exportação; a taxação dos produtos, política de controle de preços (de forma a eliminar traficantes do mercado); proibição de venda a menores; restrições à publicidade; proibição de uso de marcas; necessidade de informar o consumidor. 408

404 AMBOS, Kai. Razones Del fracasso Del combate internacional a las drogas y alternativas, p. 44. 405 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra, p. 115. 406 CABALLERO, Francis; BISIOU, Yann. apud RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 93. 407 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 96. 408 CABALLERO, Francis; BISIOU, Yann. apud RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 97.

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No que diz respeito ao consumo de drogas, a legalização controlada reconhece que o uso faz parte da esfera privada e da intimidade, e que o indivíduo tem o direito de utilizar substâncias psicoativas por conta própria, assumindo seus riscos. Parte-se do princípio da tolerância, em relação ao usuário, e da moderação do uso de drogas.409

Há divergências sobre quais drogas seriam proibidas. Caballero410, por exemplo, propõe a legalização de todas as substâncias atualmente proibidas como a heroína, cocaína, maconha, entre outros, tanto para o uso recreativo, quanto para tratamento médico.

Ademais, o modelo de legalização de Caballero411 parte do princípio do uso discreto de drogas. O uso em público seria sancionado, não com medida penal, mas com multa ou sanção administrativa. No lugar de uma política de guerra, o Estado promoveria a luta civil contra o abuso de drogas, com foco na prevenção, informação, redução de danos e auxílio para desintoxicação.

Na legalização liberal, a produção, a venda e a circulação de substâncias psicoativas seriam reguladas pelas regras de mercado. A droga seria tratada como uma mercadoria com suas especifidades. Cada indivíduo seria livre para consumi-la e apenas quando o uso de drogas atingisse a esfera de outra pessoa é que a lei seria acionada para reparar os danos.412

Por fim, a legalização total ou liberação significa a “abolição de leis restritivas que permitem o uso de drogas psicoativas apenas em determinadas circunstâncias ou que o bane definitivamente.”413

409 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 87. 410 CABALLERO, Francis; BISIOU, Yann. apud RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 94. 411 CABALLERO, Francis; BISIOU, Yann. apud RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 94-95. 412 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra, p. 115-116. 413 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra, p. 116.

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3.3 Discussão das alternativas à política de guerra às drogas e ao estereótipo traficante-inimigo (no específico)

Este tópico apresentará alguns modelos alternativos à política

criminal brasileira proibicionista, de guerra às drogas e ao traficante/inimigo. Não se pretende, fique bem claro, oferecer uma solução acabada para o problema, cuja complexidade é inegável. O objetivo é apontar caminhos alternativos ao proibicionismo das drogas, sugeridos por estudiosos do tema; respostas viáveis, que podem ser executadas.

Deve-se ressaltar, em primeiro lugar, que os modelos alternativos não podem ser os mesmos para todos os países. O problema da droga não se coloca da mesma forma e, portanto, as propostas de solução devem levar em consideração o contexto social, cultural, econômico e político do lugar. Nossa região marginal, em especial o Brasil, possui suas peculiaridades, a observar. Aliás, o fracasso do modelo proibicionista das drogas, adotado simultaneamente por diversos países ocidentais, é exemplo de que uma fórmula única não é eficaz.

Por outro lado, a solução repressiva, com uso exclusivo do direito penal, não resolverá o impasse. A resposta para a situação das drogas deve ser multidisciplinar, envolvendo, inclusive estratégias de saúde pública. Como afirma Giacomolli414, “o tema ‘drogas’ (...) não pode ser enfrentado pelo método científico, pela lógica racional, por uma metodologia dualista, fechada e unidirecional e, menos ainda, exclusivamente, pelo jurídico e legal.”

O autor observa que é necessário investimento em prevenção, esclarecimento da população, tratamento adequado aos adictos. No Brasil, o governo federal não realiza campanhas de informação sobre o uso de drogas há décadas. A estratégia proibicionista e repressiva é a única adotada, inviabilizando o acolhimento de outras. Por certo, a transferência do problema para a lei penal, para a atuação da polícia, do judiciário, é mais fácil, e cria a ilusão de que a questão foi resolvida.415

O modelo alternativo apontado maciçamente pelos criminólogos críticos estudiosos do tema é a descriminalização da produção, do comércio e do uso. Como visto no segundo capítulo, a economia de

414 GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/2006. Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, n. 71, p. 185, mar-abril. 2008. 415 GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/2006, p. 185.

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mercado atual fez com que a droga se tornasse uma mercadoria das mais rentáveis. Conforme Vera Malaguti Batista416, o “problema da droga está situado no nível econômico e ideológico.”

E a proibição da droga é o grande motor de sua economia. A criminalização faz com que seu preço aumente, incentivando a comercialização. O proibicionismo, ao invés de refrear a venda e o uso de drogas ilícitas, aumenta sua demanda. Deste modo, criminólogos como Alessandro Baratta417, Maria Lucia Karam418, Lola Aniyar de Castro419, defendem abertamente a descriminalização (legislativa em sentido estrito, dentro da classificação aqui proposta) do comércio, produção e uso, como via alternativa.

Para esses autores, apenas com o fim da proibição a droga deixaria de ser um negócio rentável, ou seja, a produção, venda e consumo diminuiriam. Neste sentido, afirma Lola Aniyar de Castro420:

Quando em uma economia de mercado um negócio é tão espetacularmente lucrativo, as possibilidades de reais de controle policial e judicial sem contaminações é nula. Toda a maquinaria de repressão e prevenção se desarticula pela força do dinheiro. Os benefícios do negócio da droga são tão altos que os traficantes não se importam de perder um avião depois de completar uma viagem. Desmantela-se um centro de produção ou um laboratório e surgem cem em outro lugar. (...) O único instrumento de luta válido em uma economia de mercado com a que rege o comércio da droga é o que está inscrito na racionalidade inerente ao próprio mercado. Se a droga deixa de ser proibida, deixa de ser mercadoria rentável, deixa de ser negócio. A descriminalização, portanto, parece ser a única opção com possibilidades de vitória, ainda que a médio prazo.

416 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 81. 417 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias. Revista Juridica Online - Universidad Católica de Guayaquil, Equador. 7 ed. p. 197-224; 418 KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993. 419 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005. 420 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação, p. 197.

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Maria Lucia Karam421, por sua vez, defende: ampla reformulação das Convenções internacionais e das legislações internas dos Estados nacionais, para legalizar a produção, a distribuição e o consumo de todas as substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção, regulando-se tais atividades com a instituição de formas racionais de controle, verdadeiramente comprometidas com a produção da saúde pública, respeitosas da dignidade e do bem-estar de todos os indivíduos, livres da danosa intervenção do sistema penal.

Na mesma esteira, entende Baratta422 que “é necessário ir mais

além do que as legislações atuais e passar para uma política de despenalização e de controle alternativo ao penal tanto no setor da produção como no do tráfico, sem temor de entrar em conflito com tabus atualmente arraigados na sociedade.”

De acordo com tal proposta, a descriminalização do uso, venda e produção acabaria com a grande demanda de drogas, com o tráfico, com a criminalização seletiva, com a violência advinda do comércio ilícito.

É importante frisar, ainda, que os autores que defendem essa espécie de descriminalização parecem unânimes em afirmar que a mera descriminalização da posse para uso próprio, isoladamente, não seria suficiente para alterar o quadro atual. A descriminalização do uso, tão-somente, não extinguiria o comércio ilícito, nem o velho discurso da ideologia da diferenciação (traficante- inimigo versus usuário-dependente), por exemplo. Segundo Malaguti Batista423:

(...) projetos de descriminalização do usuário deixam ainda mais expostos à demonização e criminalização as principais vítimas dos efeitos perversos da exclusão globalizada: a juventude pobre de nossas cidades recrutada pelo mercado ilegal e pela falta de oportunidades impostas pelo

421 KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias, p. 90. 422 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 221. 423 BATISTA, Vera Malaguti. O tribunal de drogas e o tigre de papel. Disponível em <www.mundojurídico.adv.br> Acesso em 10 jan. 2011.

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atual modelo econômico a que estamos submetidos.

Por outro lado, a descriminalização da produção, comércio e uso

não é sinônimo de liberação das drogas, isto é, de ausência de qualquer controle sobre essas atividades. Tal proposta, na verdade, implica usar menos o instrumento penal como forma de controle, utilizando mais as formas de intervenção adequadas, como, por exemplo, o sistema informativo-educativo e terapêutico-assistencial.424

Para além da descriminalização, Alessandro Baratta425 propõe um sistema de controle de drogas que pode ser identificado com a modalidade alternativa de legalização controlada, exposta no tópico anterior deste capítulo. Sua proposta guarda consonância com seu modelo político-criminal de direito penal mínimo, visto no primeiro tópico supra.

O autor italiano sugere que, uma vez descriminalizado o uso, a venda e a produção, sejam adotadas normas administrativas de controle, bem como sanções mais adequadas e racionais para controlar a circulação de drogas. 426

Dentre as medidas propostas por ele estão: o controle de qualidade das substâncias; a proibição da prescrição à menores; o controle do uso da droga no tráfego rodoviário e durante atividades laborais; proibição de publicidade (a todas drogas perigosas, inclusive as legais); o controle administrativo e fiscal das atividades produtivas e comerciais relativas à droga para impedir a formação de monopólios e a interferência do crime organizado; e o estabelecimento, ao mesmo tempo, de novas relações políticas internacionais para favorecer a produção agrícola alternativa nos países produtores.427

Não obstante, para alcançar uma mudança no modelo de controle de drogas, Baratta428 afirma que devem ocorrer algumas mudanças na

424 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 221; KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias, p. 64. 425 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 221. 426 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 221-222. 427 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 221-222. 428 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 220-223.

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sociedade civil e cultural. Em primeiro lugar, como a opinião pública mostra-se contrária à descriminalização e está contaminada por tabus, disseminados em grande parte pelos meios de comunicação de massa, deveria haver uma mudança na estrutura comunicativa da sociedade.

Deveriam ser incentivados os processos de comunicação baseados na emancipação e na experiência direta das pessoas, substituindo-se a “comunicação entre espectadores” por uma “comunicação política de base”. Isto seria alcançado a partir da “participação democrática dos cidadãos em todos os níveis de decisão, e do desenvolvimento de processos descentralizados de informação e elaboração coletiva da informação que se oponham à lógica dos sistemas fechados.”429

Além disso, Baratta430 considera que o abuso de drogas em nossa sociedade é causada pela necessidade de fuga das angústias produzidas pela realidade e, assim, o remédio para o problema seria a construção de uma sociedade mais justa e humana, cujo centro não fosse o sistema, mas sim o homem e suas reais necessidades.431 Da mesma forma, o centro de uma política alternativa de controle de drogas não pode ser a repressão, mas os serviços de assistência, de cura e prevenção (das drogas ilícitas e também lícitas).

No mesmo sentido observa Giacomolli432 que, contemporaneamente, assistimos ao enfraquecimento “dos vínculos de afetividade, de satisfação, de solidariedade e de confiança”, paralelamente ao aumento das angústias, frustrações e medos, fazendo com que se busquem cada vez mais alternativas como o consumo de substância entorpecentes, lícitas ou não.

429 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 223. A explicação sobre a estrutura comunicativa da sociedade atual e sobre os sistemas abertos e fechados já foi feita em nota de rodapé no quarto tópico do segundo capítulo. 430 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 219. 431 A afirmação de Baratta, de que o uso de drogas poderia ser evitado com a construção de uma sociedade em que o homem e suas reais necessidades fossem o centro, é questionável. Isto porque, como visto, não existe sociedade em que não haja consumo de substâncias psicoativas. Além disso, o uso não significa, necessariamente, algo nocivo. Por outro lado, a psicologia distingue “necessidade” de “desejo”. Neste sentido, ver: ANDRADE, Ledio Rosa de. Violência, Psicanálise, Direito e Cultura. Campinas: Millennium, 2007. 432 GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/2006, p. 183.

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Giacomolli afirma que, ao contrário dos anos 60/70, em que as drogas tinham aspecto cultural e de protesto, e eram usadas como forma de integração espiritual ou social, atualmente, busca-se nas drogas uma “maneira de sobreviver num mundo cada vez mais individualista, egoísta e competitivo, de produção e consumo, onde tudo tem seu preço.”433 A exigência de poder, lucro, de cumprimento de tarefas impossíveis traz frustração e angústia, fazendo com que se procure na droga o prazer possível, a excitação com rapidez, o preenchimento de vazios.434

Apesar de a proposta de descriminalização da produção, do comércio e do uso ser a alternativa tida como mais eficaz para o controle das drogas, sabe-se que este modelo ainda é considerado radical e utópico.435 A opinião pública, o senso comum rejeita qualquer proposta de descriminalização da posse para o uso, por exemplo. A aceitação da descriminalização da produção e venda, assim, parece que está muito longe de acontecer.

Todavia, este não é o único modelo alternativo à atual política de guerra às drogas. Existem outras propostas intermediárias, que podem ser aceitas mais facilmente e possuem o mérito de robustecer a crítica ao modelo atual e, talvez, mudar o quadro de rejeição das soluções mais brandas.

Salo de Carvalho436 em sua obra “A política criminal e drogas no Brasil” posiciona-se contra o proibicionismo das drogas, defendendo a adoção de uma estratégia minimalista, baseada nos critérios absolutos e relativos para a criminalização de Hulsman; nos princípios intrassistemáticos e extrassistemáticos propostos por Baratta para resguardar os direitos humanos na lei penal; e nas condições de legitimidade da criminalização de Ferrajoli.

433 GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/2006, p. 184. 434 GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/2006, p. 184. 435 BARATTA, Alessandro. Introducción a una Sociología de la Droga Problemas y Contradicciones del Control Penal de las Drogodependencias, p. 221 rebate esta ideia, afirmando que a descriminalização da produção, comércio e uso é uma utopia muito mais realizável do que o ideal proibicionista de “um mundo sem drogas”. 436 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 141-144.

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Com base nos critérios de descriminalização desses autores, Carvalho437 defende a descriminalização do porte para uso próprio aliada à adoção de programas de redução de danos.

A criminalização da posse para o consumo, como visto no segundo capítulo, viola o princípio da lesividade (uma vez que o uso de drogas não atinge qualquer bem jurídico alheio), bem como o princípio da dignidade da pessoa humana (que inclui o direito à liberdade, intimidade e o respeito à vida privada).

Além disso, marginaliza os usuários e dificulta as medidas de redução de danos para os adictos, o controle da qualidade da droga e das condições de higiene para o consumo, fazendo com tais substâncias se tornem mais prejudiciais à saúde.

Elisangela Melo Reghelin438 define a redução de danos como o: “modelo ou estratégia preventiva de redução de danos é uma tentativa de minimização das conseqüências adversas do consumo de drogas do ponto de vista da saúde e dos seus aspectos sociais e econômicos sem, necessariamente, reduzir esse consumo.”

A autora cita como exemplos de medidas de redução de danos: os

programas de distribuição e troca de seringas; “a substituição de heroína injetável pela prescrição médica de metadona oral”; “o uso controlado de drogas”; a prescrição de doses controladas de drogas; a criação de lugares seguros para o consumo (“narcossalas”); entre outros.439 Essas medidas têm como objetivo tornar menos arriscado o uso de drogas, prevenindo, por exemplo, doenças como a AIDS e a hepatite B e C e a

437 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 141-188 defende a descriminalização do uso, apontando os custos sociais da criminalização do uso de drogas; mostrando que houve no Brasil, paralelamente ao embrião da Lei 11.343/06, projetos de lei alternativos como o n. 4.591/94; discorrendo ainda sobre o “direito às drogas”, sustentado por autores como Thomaz Szasz e Escohotado. Por fim, escreve sobre as políticas de redução de danos e sua incompatibilidade com o proibicionismo. Como se verá, Carvalho não sugere a descriminalização do uso e redução de danos de forma isolada, mas aliadas à descriminalização judicial pelo magistrado de forma a reduzir o impacto negativo do sistema penal. 438 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de danos: prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 74. 439 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de danos: prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis, p. 134-156.

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malária, transmitidas por agulhas contaminadas no uso de substâncias injetáveis.440

A redução de danos é uma das etapas da prevenção, que só seria utilizada quando outras estratégias, como as campanhas de informação e palestras, fracassarem. Como observa Reghelin441 :

A prevenção pode ser enfocada sob perspectiva primária, secundária ou teciária. A prevenção primária tem as seguintes finalidades: antecipar-se ao início da experiência do uso de drogas, 'atalhar' o aprofundamento do 'uso experimental' e evitar problemas decorrentes do uso de drogas, como o abuso e a dependência. Geralmente, esse tipo de prevenção se faz através de informações, palestras e campanhas. Já a prevenção secundária objetiva impedir a progressão do uso, uma vez que ele já foi iniciado, mediante tratamento ambulatorial. A prevenção terciária tem como meta impedir as piores conseqüências do uso já contínuo, via internação hospitalar, além de promover a reinserção da pessoa nas atividades socais que se afastou em razão da dependência (…).

Reghelin442 defende que a chamada “Justiça Terapêutica”, isto é,

os tratamentos previstos na lei penal, não são adequados como medidas de redução de danos. Isso porque a redução de danos “não admite caráter penalizador”, o que implicaria a criminalização do usuário. Ademais, as medidas de “justiça terapêutica” não distinguem uso, abuso e dependência de drogas, tratando o problema de forma imprópria.

Salo de Carvalho443, por sua vez, afirma que as estratégias de redução de danos são incompatíveis com a proibição do uso de drogas, pois enquanto aquelas tem como princípio a moderação no consumo de psicoativos, o proibicionismo radical tem como meta a total abstinência de drogas.

440 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de danos: prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis, p. 98-120. 441 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de danos: prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis, p. 51. 442 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de danos: prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis, p. 163-165. 443 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 173.

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A lei 11.343/06, em seu título III, capítulos I e II, estabeleceu atividades de prevenção do uso indevido (artigos 18 e 19), de atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas (artigos 20 a 26).444 Entretanto, Salo de Carvalho entende que esses princípios e diretrizes, “notadamente identificados com políticas de redução de danos, acabam ofuscados pela lógica proibicionista, não representando senão mera carta de intenções direcionada ao sistema de saúde pública.”445

De acordo com o autor, apesar de a lei 11.343/2006 ter previsto medidas de redução de danos, seu conteúdo penal é repressivo, inviabilizando as estratégias de saúde pública. Ademais, “em matéria de direitos sociais (…) se a legislação não determinar claramente as ações e os órgãos competentes, prevendo mecanismos de responsabilização administrativa, a tendência é de as pautas programáticas restarem irrealizadas.” Deste modo, Carvalho destaca a “falácia politicista” da Lei 11.343/06, “baseada no pressuposto de existência do bom poder público realizador dos direitos sociais e não interventor na órbita dos direitos individuais.”446

Paralelamente à descriminalização do uso aliada à redução de danos, Carvalho defende ainda a atuação crítica do magistrado no plano dogmático, partindo do discurso garantista, explorando as lacunas, antinomias e contradições da nova lei de entorpecentes desde o plano constitucional, reduzindo os excessos punitivos. O juiz, sempre que

444 BRASIL. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 jan. 2011. 445 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 173. 446 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 173. É importante destacar que existem outros posicionamentos. BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches; GOMES, Luis Flávio; OLIVEIRA, William Terra. Nova Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 46-47, por exemplo, apesar de reconhecer que a lei 11.343/2006 tem sua faceta repressiva, defende que a implementação de políticas de redução de danos nessa norma foi, de certa forma, um avanço. Isto porque as leis de drogas anteriores não previam programas de redução de danos detalhados, enfatizando apenas dispositivos repressores: “Todo o Capítulo I ocupa-se de implementar uma política de prevenção do uso indevido de drogas no Brasil. Tal preocupação, ainda que pudesse ser vislumbrada nas legislações de drogas que até então vigoravam (Leis 6.368/76 e 10.409/2002), não tratavam do tema com tanto detalhamento.”

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possível, usaria a descriminalização judicial como forma de reduzir os danos do sistema penal.447

Dentro da mesma perspectiva garantista, Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues448 propõe um modelo mais moderado que o anterior. Ela sugere “medidas intermediárias entre o proibicionismo e a legalização, com forte influência das estratégias de redução de danos, sob o marco teórico do Garantismo de Ferrajoli”, ou seja, alterações que buscam “reduzir o alcance da esfera repressiva, na linha do direito penal mínimo.”

Dentre as medidas propostas estão: a descriminalização da posse e do uso não problemáticos, em pequenas quantidades, por usuários maiores de idade em locais privados; penas proporcionais para pequenos traficantes; possibilidade de penas alternativas; penas diferenciadas para crimes sem violência; benefícios legais como liberdade provisória, anistia, graça, indulto; entre outros.449

Embora Rodrigues450 reconheça que a legalização controlada é possível, entende que esta “deve ser vista como política a longo prazo, e precisará ainda ser adaptada à realidade nacional.” Assim, a autora propõe medidas intermediárias, acreditando que “mais fácil do que convencer os congressistas conservadores de mudarem uma orientação político-criminal repressiva na qual a maioria ainda acredita, é a conscientização dos operadores jurídicos de que a Constituição precisa ser cumprida.” 451

447 A descriminalização judicial já foi tratada no tópico anterior. Ademais, CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p. 191-294 explora, na terceira parte de seu livro, “as lacunas, antinomias e as contradições da nova Lei de Entorpecentes para, desde o plano constitucional, filtrar os excessos punitivos. Para tanto, a investigação explorará as potencialidades da produção teórica no campo do direito penal e do direito processual penal das drogas, utilizando ao máximo as aberturas jurisprudenciais encontradas na vigência da lei 6.368/76, no sentido de oferecer, ao operador do direito, ferramenta útil de atuação no cotidiano forense.” 448 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. (Doutorado em Direito). Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. p. 246. 449 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 247-248. 450 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 246. 451 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 247.

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Rodrigues452 admite que as medidas sugeridas não seriam suficientes para mudar o paradigma atual. Porém, considera que podem reduzir um pouco os danos sociais - como a superlotação carcerária - e serem aceitas mais facilmente.

Além dos modelos alternativos comentados neste tópico, é importante destacar a experiência de outros países, como Portugal e Holanda, com a aplicação de modelos alternativos, ainda que esses modelos não signifiquem uma superação do proibicionismo.453

Por certo, observar os modelos aplicados nesses países não é sinônimo de mimetismo. A ideia é o estudo dessas experiências como caminho à constatação de que existem alternativas mais brandas e alcançáveis, que não significam o aumento extraordinário do consumo ou do comércio de drogas (como poderia temer a opinião pública).

O direito penal do inimigo de Gunther Jakobs apresenta-se como teoria máxima da política criminal eficientista no plano dogmático. A proposta do penalista alemão busca combater os inimigos externos dos países centrais, personificados na figura do traficante, do terrorista e do imigrante. Esses inimigos externos, alvo da teoria de Jakobs, não se confundem com os inimigos brasileiros.

Todavia, a inserção da política criminal de guerra às drogas e ao traficante na América Latina, realizada através do processo de transnacionalização do controle penal coordenado pelo capitalismo central, inseriu a figura do traficante como inimigo interno no Brasil.

O resultado dessa política criminal belicista não foi a reprodução do direito penal do inimigo de Gunther Jakobs (implementação gradativa de um modelo de exceção no interior do Estado de Direito) em solo brasileiro, mas algo muito mais grave: um aprofundamento da situação caótica de nosso sistema penal marginal, marcado pela desigualdade, pela seletividade, pela exceção permanente, pelo genocídio.

Essa política criminal de controle de drogas, ademais, mostrou-se ineficaz, acarretando custos sociais no âmbito do sistema de justiça penal e do sistema, custos relacionados ao mercado da droga, aos consumidores, entre outros.

452 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 247. 453 Sobre os modelos de controle de drogas adotados em países europeus, ver: RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 101-133.

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Neste capítulo, procurou-se discutir alguns modelos alternativos à política criminal de guerra às drogas e ao inimigo no Brasil. Pelo que se pôde ver, o modelo belicista de controle de drogas, adotado pela adequação da legislação pátria às Convenções da Organização das Nações Unidas, não é o único possível, nem eficaz.

Existem propostas como a descriminalização da produção, comércio e uso, defendida por vários criminólogos, e a legalização controlada sugerida por autores como Baratta. Há, ainda, propostas minimalistas garantistas, como a de Salo de Carvalho e de Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues.

Os modelos alternativos referidos destacam-se pelo respeito aos direitos humanos, rejeitando a lógica de guerra, própria do eficientismo, que trata a droga como situação de emergência, cria legislações de exceção e usa o estereótipo do traficante-inimigo como mote para a criminalização seletiva.

Concluindo, a superação da fórmula “amigo-inimigo”, tão cara ao direito penal, pressupõe, talvez, uma sociedade baseada em outros parâmetros, na tolerância e na inclusão. A inclusão social importa aceitar e ouvir, tolerar os defeitos e estimular as qualidades como próprios da natureza humana. A distinção maniqueísta entre bem e mal, bom e ruim; entre cidadão e criminoso, amigo e inimigo, enfim, a discriminação baseada em falso moralismo excludente, é sem dúvida um dos maiores obstáculos à solução da questão das drogas, no Brasil e no mundo.

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CONCLUSÃO

Esta Dissertação objetivou discutir modelos alternativos à política criminal de guerra às drogas e ao traficante-inimigo. A hipótese que se buscou comprovar é que, embora a transnacionalização da figura do traficante como inimigo tenha surtido reflexos negativos no Brasil, existem modelos alternativos mais brandos, que não violam direitos humanos e não se servem (ou se servem menos) do estereótipo do “traficante-inimigo”.

Para tanto, partiu-se, no primeiro capítulo, da teoria do Direito Penal do Inimigo de Gunther Jakobs. A escolha da teoria do penalista alemão como ponto de partida foi feita em razão da frequente comparação entre a política criminal de drogas no Brasil e o Direito Penal do inimigo de Jakobs. Tendo em vista ser comum a afirmação de que a guerra ao tráfico no Brasil reproduz o Direito Penal do inimigo, o trabalho pretendeu mostrar o contexto em que a proposta do penalista alemão foi feita, esclarecendo e fazendo as ressalvas quanto à situação neste país.

Em primeiro lugar, a proposta de Jakobs foi situada no contexto da deslegitimação do sistema penal pelas teorias revisionistas, as quais mostraram sua impotência no combate ao crime e sua função de criminalizar seletivamente, reproduzindo desigualdades e mantendo a ordem vigente. Diante dessa constatação, o eficientismo foi a política criminal que prevaleceu. O eficientismo nega a deslegitimação do sistema penal, atribuindo o próprio fracasso a problemas de operacionalização. A solução, portanto, seria aumentar a repressão: mais leis penais, aumento de penas, prisões, mais ação policial e do judiciário.

Nesse contexto, percebeu-se que o direito penal do inimigo de Gunther Jakobs surgiu como teorização máxima do eficientismo no plano dogmático. Ele propõe a supressão de direitos e garantia de alguns indivíduos, autores de crimes graves, os quais, em razão de suposta “periculosidade”, seriam “não-pessoas”, inimigos.

O direito penal do inimigo de Jakobs, como era de se esperar, foi objeto de críticas ferrenhas. Dentre elas, destacou-se a de Eugenio Raúl Zaffaroni. O criminólogo argentino lembra que a fórmula “amigo-

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inimigo” foi usada desde a antiguidade; no direito romano, por exemplo, existia a figura do hostis (inimigo político).

Ademais, os discursos criminológicos sempre serviram para legitimar o tratamento diferenciado ao inimigo: o discurso teocrático-biologista, por exemplo, acusava a mulher de inferioridade em razão do sexo; e o discurso do positivismo criminológico, definia o inimigo como um ser biologicamente inferior em virtude de sua raça. Por outro lado, o conceito de inimigo é incompatível com o Estado de Direito. A fórmula do “inimigo” reclama um Estado Absoluto, e as consequências de sua admissão do inimigo são aquelas descritas por Carl Schmitt: a suspensão da Constituição e a instalação de uma ditadura jurídica.

Zaffaroni destaca que a situação do poder punitivo na América Latina não reproduz o Direito Penal do Inimigo de Jakobs. O contexto latino-americano é muito mais grave. Neste Continente, a seleção do inimigo se dá pelos processos de criminalização da pobreza e sua contenção é feita através de prisões cautelares. Desde o período da colonização o campo penal é caracterizado pela seletividade, desigualdade, exceção, promovendo-se verdadeiro genocídio.

Por outro lado, ressaltou-se que os inimigos que a teoria de Jakobs pretende combater são os inimigos externos dos países centrais: o traficante, o terrorista, o imigrante. No Brasil, em virtude das peculiaridades sociais e históricas, como a desigualdade social e o fato de a escravidão ter persistido por tanto tempo, os inimigos são, aqui, identificados com a pobreza somada à discriminação racial.

Todavia, como se viu, com a transnacionalização da política criminal de guerra às drogas e ao traficante no Brasil, foi inserida a construção ideológica do traficante como inimigo interno.

O segundo capítulo buscou demonstrar como se deu a inserção do estereótipo do traficante como inimigo na América Latina e no Brasil para, por fim, delinear as graves consequências desse processo para o país.

Valendo-se do caráter revelador da proposta de Jakobs – que inovou ao usar expressamente o termo “inimigo” – a segunda parte do trabalho apontou as consequências da importação desse tipo de construção ideológica por países periféricos como o Brasil. Objetivou, ainda, esclarecer que a importação desse rótulo para certos tipos de criminosos não significou tão-somente a reprodução de uma espécie de “direito penal do inimigo”, dentro dos moldes limitados de Gunther Jakobs, mas um quadro muito mais grave.

Inicialmente, dentro do marco teórico de Rosa Del Olmo, procurou-se mostrar que o processo de transnacionalização do controle

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penal de drogas para a América Latina foi feito através da ratificação de três Convenções das Nações Unidas sobre drogas, pelos países latino-americanos: a Convenção Única de Entorpecentes de 1961, o Convênio sobre as substâncias psicotrópicas de 1971 e a Convenção de Viena de 1988 .

Por meio das Convenções da ONU e das campanhas promovidas na América Latina, foram inseridos, na lei e no senso comum, o discurso político-jurídico (que aponta o traficante como o inimigo interno) e o médico-jurídico (que relaciona a droga à dependência, e difunde a “ideologia da diferenciação”: o consumidor é qualificado como doente, e o traficante como delinqüente).

Seguindo o referencial teórico de Salo de Carvalho, mostrou-se que no Brasil a adequação da legislação interna às Convenções internacionais da ONU, seguindo as disposições desses documentos, deu-se desde o Decreto-Lei n. 159/1967 até a Lei 11.343/2006. As leis brasileiras passaram a prever dispositivos legais que violam garantias constitucionais, bem como reproduzem os discursos médico-jurídico e político-jurídico, sedimentando um modelo de política criminal que se utiliza dos estereótipos do “usuário-doente” e do “traficante-delinquente-inimigo”.

Explicou-se que a Doutrina da Segurança Nacional foi preponderante na formação do modelo repressivo militarizado de eliminação do traficante como inimigo. Seus postulados de guerra, assimilados pelo sistema de segurança pública brasileiro a partir das ditaduras militares na década de sessenta, juntaram-se aos modelos jurídico-político e médico-jurídico, inseridos na legislação brasileira de drogas na década de setenta, originando o modelo militarizado de combate ao traficante, “inimigo interno” brasileiro.

Ademais, abriu-se um parêntese para observar que a construção do “mito da droga” alimentou a política proibicionista e o discurso de guerra. A ausência de um conceito bem definido de “droga”, e de informação sobre os efeitos peculiares de cada uma delas, contribui para a mitificação das substancias ilícitas, para sua demonização.

Afirmou-se, ainda, que existem motivos políticos, ideológicos e econômicos ocultos para a difusão dessa política proibicionista em grande parte do mundo. Um deles é o fato de que a droga tornou-se mercadoria rentável, que movimenta uma parte subterrânea da economia. A ilicitude é responsável pelo lucro e, portanto, há paradoxal interesse na proibição. De outro vértice, a droga serve como álibi para legitimar a intervenção diplomática, financeira e militar em certos países.

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No final do segundo capítulo, procurou-se apontar as principais consequências do processo de exportação desse modelo de política criminal, dando-se ênfase, principalmente, àquelas relacionadas diretamente à inserção da figura do traficante-inimigo no Brasil.

Destacaram-se, em primeiro lugar, os reflexos negativos no campo da criminalização por drogas. As normas programáticas da Constituição Brasileira de 1988 deram origem a uma legislação que dispensa tratamento diferenciado aos crimes relacionados a drogas ilícitas, violando garantias constitucionais.

Leis recentes sobre a matéria, como a 6.368/76 e 11.343/2006, reproduziram os discursos médico-jurídico e político-jurídico, atuando como filtros nos processos de criminalização: o estereótipo médico passou a ser aplicado aos jovens de classe média flagrados com droga e o estereótipo criminal aos pobres. O resultado foi a criminalização em massa do jovem pobre, que comercializa pequenas quantidades de droga, sendo este o perfil do traficante-inimigo no Brasil.

Essa criminalização em massa da pobreza, que encontrou no tráfico de drogas um meio de sobreviver, produziu, ainda, um aumento espetacular na população carcerária.

Além disso, a política proibicionista no Brasil deu origem a uma legislação de exceção, que abandonou os princípios previstos nas declarações universais de direitos e na Constituição Brasileira de 1988.

Não obstante, a transnacionalização do controle penal de drogas e do traficante-inimigo para o Brasil não significou a implementação gradativa de um modelo de exceção no interior do Estado de Direito, nos moldes do Direito Penal do Inimigo proposto por Günther Jakobs. Nunca houve a implementação de um verdadeiro direito penal de garantias no Brasil e, por outro lado, o campo penal brasileiro sempre foi caracterizado pela desigualdade, pela seletividade, pela exceção permanente, pelo genocídio.

A introdução da política proibicionista, da “droga” como situação de emergência e do estereótipo traficante-inimigo nos países periféricos trouxe como consequência, na verdade, o agravamento da situação do campo penal brasileiro. Dentre outros inúmeros reflexos, elevou à máxima potência a criminalização da pobreza, superlotou dos presídios, desencadeou legislações de exceção, militarizou estratégias de segurança pública, ou seja, aprofundou as mazelas de um sistema penal excludente e genocida desde sua gênese.

Foram referidos, ainda, outros aspectos: a proibição da droga provoca aumento do seu preço e incentiva a sua comercialização, além

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de fomentar a violência; como o comércio não é protegido pela lei, os traficantes usam meios violentos para resguardar a atividade ilícita.

Não se descartaram, ademais, os custos sociais em outros âmbitos: em relação aos consumidores de drogas (marginalização dos usuários e de sua família, além da falta de controle sobre a forma do uso de entorpecentes); e aos sistemas alternativos de controle, que ficam prejudicados.

As consequências negativas desse controle penal de drogas, e o insucesso na meta de extinção do comércio e consumo de drogas ilícitas, são a prova de seu fracasso. O projeto de “um mundo sem drogas”, mediante uma política de repressão, mostrou-se utópico e inviável.

Desse modo, comprovou-se a hipótese de que a introdução da política criminal de guerra às drogas e da figura do traficante-inimigo surtiu efeitos negativos no Brasil: ela trouxe sofrimento ao criminalizados, aos usuários, às famílias dos usuários, à população, constituindo-se, nas palavras de Nilo Batista, em uma “política criminal com derramamento de sangue”. De outro norte, esse modelo de controle funcionou, diz Malaguti, como um “tigre de papel”, ou seja, um instrumento repressor ineficaz, que não atinge sua finalidade de coibição.

Em que pese seu fracasso, a política proibicionista continua em vigor no Brasil e na América Latina porque apresenta funcionalidade. Há denúncias de que existem interesses econômicos e políticos para que ela persista. Da mesma forma, as exigências desse modelo – de maior punição, de mais apreensões, de menos direitos e garantias – é expressão do eficientismo e contribui para a relegitimação do sistema penal.

Diante de tal quadro, o terceiro capítulo discutiu modelos alternativos para a política criminal de drogas no Brasil, que não utilizam, ou utilizam menos, o estereótipo do traficante inimigo.

Discorreu-se, inicialmente, sobre os movimentos de política criminal alternativa, representados pelas correntes do abolicionismo e do minimalismo, bem como suas propostas de descriminalização.

Em seguida, foram apresentadas as propostas político-criminais minimalistas de Alessandro Baratta, Eugenio Raúl Zaffaroni e Luigi Ferrajoli e as abolicionistas de Louk Hulsman, Nils Christie e Thomas Mathiesen, e seus respectivos programas de descriminalização.

Apresentaram-se, ainda, os conceitos e espécies de descriminalização (legislativa, judicial, processos de diversificação e de fato) e de legalização (estatizante, controlada, liberal e total), para poder indicar os modelos alternativos no caso dos crimes relacionados a drogas.

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Por fim, viu-se que o modelo alternativo apontado por grande parte dos criminólogos críticos estudiosos do tema - como Alessandro Baratta, Maria Lucia Karam, Lola Aniyar de Castro - é a descriminalização da produção, do comércio e do uso. Os defensores desse modelo consideram que no contexto atual a droga se tornou uma mercadoria. Como a criminalização aumenta seu preço e incentiva a comercialização, a descriminalização do comércio, produção e uso seria a única forma de acabar com o problema.

A descriminalização da produção, comércio e uso não significa a liberação total das drogas, a ausência de qualquer controle sobre ela, mas sim usar menos o instrumento penal, substituindo-o por formas de intervenção mais adequadas, como, por exemplo, o sistema informativo-educativo e terapêutico-assistencial.

Alessandro Baratta, por exemplo, propõe um sistema de legalização controlada, que guarda consonância com seu modelo político-criminal de direito penal mínimo. O autor italiano sugere que, após a descriminalização do uso, venda e produção, fossem adotadas normas administrativas de controle, bem como sanções mais adequadas e racionais para controlar a circulação de drogas.

Embora a descriminalização da produção, do comércio e do uso seja vista como a mais eficaz para o controle das drogas por vários criminólogos, este modelo ainda é considerado radical e utópico pela opinião pública.

Entretanto, este não é o único modelo alternativo à atual política de guerra às drogas. Como demonstrado, há outras propostas intermediárias, que podem ser aceitas mais facilmente, podem reforçar a crítica ao modelo atual e, quem sabe, mudar o quadro de rejeição das soluções mais brandas.

Há a proposta de Salo de Carvalho - uma estratégia minimalista, baseada nos critérios absolutos e relativos para a criminalização de Hulsman; nos princípios intrassistemáticos e extrassistemáticos propostos por Baratta para resguardar os direitos humanos na lei penal; e nas condições de legitimidade da criminalização de Ferrajoli - que une descriminalização do uso, programas de redução de danos e atuação crítica do magistrado no plano dogmático – o qual, partindo do discurso garantista, explora as lacunas, antinomias e contradições da nova lei de entorpecentes desde o plano constitucional, minorando excessos punitivos.

Existe, ainda, a proposta mais moderada, mas dentro da mesma perspectiva garantista, de Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues, que sugere alterações significativas na lei de drogas.

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Deste modo, constatou-se que existem, sim, modelos alternativos à política criminal de guerra às drogas e ao inimigo no Brasil. Existem modelos alternativos, como os referidos nesta Dissertação, pautados pelo respeito aos direitos humanos e que não reproduzem a lógica belicista, própria do eficientismo, de guerra ao traficante-inimigo.

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