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Estudos Feministas, Florianópolis, 13(3): 320, setembro-dezembro/2005 545 Teresa Cabañas Universidade Federal de Santa Maria A razão construtiva e o rendilhado A razão construtiva e o rendilhado A razão construtiva e o rendilhado A razão construtiva e o rendilhado A razão construtiva e o rendilhado poético de Maria Lúcia Dal F poético de Maria Lúcia Dal F poético de Maria Lúcia Dal F poético de Maria Lúcia Dal F poético de Maria Lúcia Dal Farra arra arra arra arra Resumo esumo esumo esumo esumo: O trabalho se detém na análise da produção da poetisa paulista Maria Lúcia Dal Farra, Livro de auras (1994) e Livro de possuídos (2002), tentando, principalmente, uma aproximação aos mecanismos construtivos que dinamizam seus universos poéticos. O foco da atenção centra-se no uso, por parte dessa poética, de uma ratio construtiva que se movimenta entre o canto e o decanto para simbolizar, como escrita feminina, a posse de um intelecto estético que a cultura androcêntrica só reservou ao uso masculino. Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: poesia feminina, ratio construtiva, procedimentos de composição. Copyright 2005 by Revista Estudos Feministas 1 PRADO, 1976. O homem caça e luta. A mulher intriga e sonha; é a mãe da fantasia, dos deuses. Possui a segunda visão, as asas que lhe permitem voar para o infinito do desejo e da imaginação. Jules Michelet. A feiticeira É harto conhecida a maneira pela qual Adélia Prado, no paradigmático poema inicial de seu livro de estréia, 1 se coloca perante a condição de mulher. A existência de uma clara oposição à figura masculina, desenhada aí como um confronto em termos de negativo (masculino) e positivo (feminino), permite a insubordinação do eu contra a situação aviltada dessa “espécie” reprimida por um mundo de preeminência masculina. É por conta disso que o sujeito lírico, num gesto de ousada contestação, pode sentir-se à vontade para declarar a aceitação das artimanhas (“subterfúgios”) que sua própria circunstância menoscabada lhe impõe, e que se tornam necessárias caso pretenda demarcar seu lugar num espaço que a mantém “ainda envergonhada”. Vê-se o subterfúgio inicial no caráter dúbio dessa “licença poética” que vai compor o título do texto, e que, pela aparente deferência, converte-se na senha de acesso

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Teresa CabañasUniversidade Federal de Santa Maria

A razão construtiva e o rendilhadoA razão construtiva e o rendilhadoA razão construtiva e o rendilhadoA razão construtiva e o rendilhadoA razão construtiva e o rendilhadopoético de Maria Lúcia Dal Fpoético de Maria Lúcia Dal Fpoético de Maria Lúcia Dal Fpoético de Maria Lúcia Dal Fpoético de Maria Lúcia Dal Farraarraarraarraarra

RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: O trabalho se detém na análise da produção da poetisa paulista Maria Lúcia DalFarra, Livro de auras (1994) e Livro de possuídos (2002), tentando, principalmente, umaaproximação aos mecanismos construtivos que dinamizam seus universos poéticos. O foco daatenção centra-se no uso, por parte dessa poética, de uma ratio construtiva que se movimentaentre o canto e o decanto para simbolizar, como escrita feminina, a posse de um intelectoestético que a cultura androcêntrica só reservou ao uso masculino.PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: poesia feminina, ratio construtiva, procedimentos de composição.

Copyright 2005 by RevistaEstudos Feministas1 PRADO, 1976.

O homem caça e luta. A mulher intriga e sonha; é a mãe da fantasia, dos deuses. Possui a segundavisão, as asas que lhe permitem voar para o infinito do desejo e da imaginação.

Jules Michelet. A feiticeira

É harto conhecida a maneira pela qual Adélia Prado,no paradigmático poema inicial de seu livro de estréia,1 secoloca perante a condição de mulher. A existência de umaclara oposição à figura masculina, desenhada aí comoum confronto em termos de negativo (masculino) e positivo(feminino), permite a insubordinação do eu contra asituação aviltada dessa “espécie” reprimida por um mundode preeminência masculina. É por conta disso que o sujeitolírico, num gesto de ousada contestação, pode sentir-se àvontade para declarar a aceitação das artimanhas(“subter fúgios”) que sua própria circunstânciamenoscabada lhe impõe, e que se tornam necessáriascaso pretenda demarcar seu lugar num espaço que amantém “ainda envergonhada”.

Vê-se o subterfúgio inicial no caráter dúbio dessa“licença poética” que vai compor o título do texto, e que,pela aparente deferência, converte-se na senha de acesso

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a um território de domínio alheio. Já nele, a “licença” troca-se em livre alvedrio, em transgressão, de modo que esseespaço pode passar a ser reconfigurado comcaracterísticas de outra natureza, que no caso da poetisamineira, já sabemos, conectam-se aos temas da rotinadoméstica provinciana, até então rejeitados por miúdos edesluzidos. Assim, a condição geral da mulher (gênero),“essa espécie ainda envergonhada”, define-se ao mesmotempo como a condição específica do sujeito produtor(poetisa), que decide sua emancipação pela via dadiferença – “Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem”–, justamente para trazer à cena a densidade existencialque se esconde por trás desse aparente cinza do universoda mulher comum. No patamar ideológico do poema issovai significar assumir plenamente sua constrangedoracondição histórico-social e fazer dela sua grandevantagem: “Mulher é desdobrável”.

Quase vinte anos depois desse primeiro livro deAdélia Prado, uma outra poetisa, a paulista Maria Lúcia DalFarra, se achega ao cenário literário nacional, parasurpreendê-lo dessa vez com o que me permito chamarde uma poesia desdobrável. As marcas da evolução social,gerada no intervalo entre Bagagem e Livro de auras2 deDal Farra, podem ser vistas sintetizadas no sugeridodeslocamento da característica aludida, que no último meparece acomodar-se mais à condição produtora de poesiaque à explicitação dessa situação geral de acanhamentohistoricamente sofrida pela mulher. Não digo que a poesiade Dal Farra não atravesse essa parcela miúda do universofeminino; pelo contrário, é evidente sua presença em muitosdos poemas de seu primeiro livro, seja na rememoraçãoque atualiza o cotidiano familiar da infância, seja no sensívele ávido olhar que penetra situações, objetos e seres naturais.Contudo, além de introduzir-nos numa dicção feminina, quedelimita seu território com voz de mulher e passeia pelosâmbitos próprios dos contextos domésticos dessa existência,Livro de auras consente em ser lido como alegoria do trajetode conquistas percorrido por essa voz feminina na suadefinição de ser social emancipado. É a esse respeito queo livro escreve um outro capítulo na questão da poesia deautoria feminina no Brasil.

Parte desse capítulo corresponde, sem dúvida, auma definição de posições, não necessariamente explícita,respeito ao modelo poético instaurado desde o ineditismodos temas e tonalidades da produção adeliana. Não éque exista nos poemas de Dal Farra um diálogo propositalcom a obra da autora mineira, como acontece entre estae determinadas dicções poéticas nacionais. O que meinteressa ressaltar a respeito é aquilo que Livro de auras

2 DAL FARRA, 1994.

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A RAZÃO CONSTRUTIVA E O RENDILHADO POÉTICO DE MARIA LÚCIA DAL FARRA

revela não só como receptáculo de uma voz lírica detimbres muito originais, que dessa feita vem dar densidadeao panorama geral da literatura brasileira – e aquidesconsidero a questão de gênero –, senão também comoportador de uns modos poéticos que nos remetem para oquadro de evolução das condições de produção dessesujeito feminino, processo que pode ser rasteado justamentea partir do precedente adeliano. Isto é, como sujeito social,a entidade feminina que enuncia o discurso no citado livroirá iluminar com sua postura tanto sua situação deespecificidade produtiva como, e ao mesmo tempo, ascircunstâncias histórico-culturais gerais que se instalam numcerto conglomerado social num determinado momento.

Por isso, importa situar-nos aqui entre a imagem da“mulher desdobrável”, que em 1976 metaforiza as diversasposições de sujeito3 que a grande maioria das mulheres éobrigada a assumir na sua existência social, e essa outraque chamei de “poesia desdobrável”, enfatizando, em1994, um tipo de fazer que, observando-se a si mesmo, étrabalho de distensão dos limites expressivos dasubjetividade feminina, conquistando na tessitura dalinguagem possibilidades de impor sentidos e significaçõesnão só identificáveis à tradição do gênero de uma talsubjetividade. Ou seja, se em livros como Bagagem ocontraste entre a existência feminina e o mundo masculinoé evidente e proposital recurso para elevar a primeiro planoas miudezas do viver provinciano de uma dona de casacomum, e assim ir delimitando espaços próprios, naformalização de Livro de auras a oposição desaparece eesse mundo masculino nos chega como enfraquecidosecos e ressonâncias de algo que também faz parte douniverso dessa voz feminina que se expressa, o que se perfilacomo instante de superação desse primeiro embateprotagonizado por Bagagem, momento social em que aexpressão feminina precisou fazer alarde de sua diferençae condição para conquistar seu lugar ao lado dastradicionais e canonizadas vozes masculinas quemonopolizavam o cenário poético nacional.

IIIIIIIIII

A divisão de Livro de auras em três sessõesdiferenciadas mas solidárias entre si poderia já serencarada como um dos aspectos a materializar o ditodesdobramento dessa poesia. Se Viveiro, Coisas de mulhere Lição de casa abrangem momentos sensíveis particulares,em todos eles o sujeito lírico se dedica como que adescascar os motivos que em cada âmbito ocupam suaatenção, ativando para isso uma linguagem que precisa

3 Ernesto LACLAU, 1986.

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potencializar a própria capacidade de ir avançando pelasvárias camadas que compõem o motivo, seja esseelemento de recordação, objeto inanimado ou ser natural.O que daí deriva é um relevo da própria linguagem, mercêà qual a recordação e a observação dos objetos e seresexistem como acicate à nomeação, e é esta, então, quese converte no objetivo principal dessa poética.

A epígrafe do poeta português Herberto Helder, aointroduzir Viveiro, nos coloca na pista de indagação doque se disse: “É tão belo agarrar com os ossos/ que hádentro das mãos/ na ponta de um nome, e desdobrá-lo./Arrancar essa alma apertada”. Abrir, estender, desenrolaré aplicar-se a uma ação modificadora do estado inicialda coisa, que neste caso alude à matéria abstrata do nome,substância que dá materialidade a todas as coisas. Porisso, detendo (“agarrar”) o que as determina e fixa – “nome”– e exercendo aí um esforço, que é trabalho de desobstruire desatravancar (“desdobrá-lo”), poderá ser possível tirardaquilo que determina as coisas algo (“alma”) que o nomenão nos entrega num primeiro e direto lance, mas que eleguarda “dobrado” em si. O sentido que se encontra nasmarcas semânticas do “arrancar” aponta para uma açãode intensidade, na qual se aplica diligência e empenho,de modo que o ato se baseia numa expansão de força,necessária para desvelar o que se prende às profundezasdo nome e que este não nos oferece de imediato. Trata-sede um trabalho de desencavar do nome significados nãoevidentes, de “des-dobrar” – multiplicar – seu sentidoaparente, de forma a alterar a lógica primeira que costumaacompanhar a pragmática comunicativa. Assim, o que aepígrafe do poeta português propõe é uma experiênciado belo, que se incrusta no mesmo ato de vasculhar eindagar outras possibilidades significativas do nome.

Inquirir dessa forma a palavra, para configurar umaexperiência do belo, resulta na modificação da aparênciasignificativa inicial do nome, que, dessa forma, pode-seprojetar no desdobramento de seus múltiplos sentidos esonoridades, as duas matérias das quais se compõe. Dessafeita, não somos conduzidos, pelo menos não num primeiroensejo, a nos deparar com as coisas, e sim a nos encontrarcom o nome que as expressa e assim tentar penetrar nosprazeres da nomeação. Claro que, como derivação, acoisa nomeada refunde-se em outra, e ela, por virtudedesse nomear, pode então nos aparecer numa existêncianão habitual. Poder-se-ia dizer que nesse ato estão contidasas infinitas possibilidades (formas) de construir o poéticocomo um contínuo desdobramento da palavra.Encontramo-nos, assim, no umbral dessa poesiadesdobrável.

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A RAZÃO CONSTRUTIVA E O RENDILHADO POÉTICO DE MARIA LÚCIA DAL FARRA

A essa pista que a epígrafe de Helder proporcionapodemos ajuntar agora o poema que a antecede e faz aabertura do livro. Em cada um dos dois quintetos que oestruturam, dois verbos atraem, ostensivamente, a atençãoda leitura, isso por virtude do posicionamento visual naarquitetura textual, onde compõem a totalidade dosegundo verso de cada estrofe: “Inquilina inquieta dointervalo/ canto”; “Provisória passageira de lumes,/decanto”. Esta inicial disposição dos elementos de sentido,que aqui apelam para a referida visualidade, faz parte doque será, como veremos adiante, uma laboriosa e contínuaação sobre a estrutura do poema, de forma que esta operapara que cada integrante que aí está abra-se para umanova camada significativa, propiciando assim umadensamento de sentido, como logo se vê quando, depoisde provocar, por obra dessa disposição gráfica, um primeirocontato significante, dá-se passo à relevância da matériasonora que ecoa no parentesco fonético de ambos osverbos. Só depois de estabelecida a matéria escrita esonora do signo é que este se desdobra em matizessemânticos, de modo que, no final, temos diante de nós arealização da substância da palavra, ou, dito em termossaussureanos, a visibilidade do significante e do significado.

Assim, então, o poema de introdução ao livro vema ser ao mesmo tempo declaração e realização dosprincípios que irão se manifestar ao longo dos diversospoemas que o compõem – uma ars que recupera anatureza primigênia da poesia, seu antigo pendor ao cantoe à invocação, para aliá-la, em sincronia, à decantação,essa aturada e laboriosa ação de limpar, garimpar epurificar a palavra, até extrair dela o rico durame que sóirá doar depois de submetida a tal processo. Por isso,fundidos os termos num só – (“de)canto” –, a poesia de DalFarra existe motivada pela construção de correspondênciasentre elementos contrastantes ou de orientação contrária,o que vai caracterizá-la principalmente como um exercíciode atenta observação, contínua reflexão e ênfaseconstrutiva. Se, na primeira estrofe, o canto é meio “parainvocar os espíritos indecisos”, o que parece convocarevocações difusas ou entidades intangíveis compatíveis àidéia da inspiração, também é recurso “para calcar umpouco mais fundo/ a terra que piso”, de modo que se operaa passagem do “indeciso” para a pura materialidade domundo concreto, chão onde o eu lírico quer se firmar.

O canto cobra, pois, forma e matéria. Fixados naterra do poema, ele e o eu lírico obedecem aosrequerimentos da decantação, que os torna aptos paratransitar por e transmitir uma experiência de vidacorporificada na opção de construir (decantar)

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lingüisticamente um cantar que plante o sujeito no seumundo de experiências, que são, claro, de mulher, masque não se restringem necessariamente a tal condição. Éassim que Livro de auras conquista a liberdade para semovimentar nos três espaços que o compõem, e que, comose disse, obedecem a modalidades possíveis de anomeação se manifestar e do eu lírico se definir comosujeito social.

IIIIIIIIIIIIIII

Viveiro, por exemplo, abre-se para experiênciassensíveis em que a definição de gênero do eu lírico não sedestaca de modo especial. Há uma rarefação que anunciasua quase total neutralização, enquanto se privilegia um fazerreflexivo que, me atreveria a dizer, é pura ratio construtiva,ancorada num modo de observação que penetra seusmotivos, estes geralmente objetos mas também situações epersonagens, e os recoloca numa dimensão arquitetadapela imaginação. Essa não é, todavia, aquela desbordada,em que realidades sem conexão se encontram parapropiciar, como ditava o sonho surrealista, imagens estranhase muitas vezes herméticas. Imaginação controlada e dosadapela reflexividade, o que se invoca aqui é algo que podepertencer ou ter pertencido à coisa como potencialidade,mas que esta não entrega a não ser constituída pelavirtualidade significativa da palavra que a expressa, comoa mesa (“Casa”), que de objeto utilitário regurgita “suamemória de árvore”, lembrando-nos da sua inicial naturezajá agora apagada de nós pela necessidade pragmáticade ela nos servir. O objeto inanimado retorna então à vida,resgatado do espaço anódino do uso pela capacidade deimaginar e conduzido ao convívio sensível do mundo pelapalavra, que, dessa forma, o refaz em aparência estética.Ou quando, em outro momento, nos é revelado o tigre(“Gato”) que o gato leva entranhado, e este sai então dasua lerda domesticidade para lembrar-nos das seteexistências que lhe cabem.

Mas coisas e seres parecem nesta poesia semprearredios. A certeza da sua impenetrabilidade, a convicçãoda existência de algum princípio aurático que os faz, notérmino, inapreensíveis, descobre-se na maneira pela qualcom eles se lida, maneira essa que, no entanto, ensina anão se dobrar ante o mistério que eles carregam, mas aconstruir-lhes uma segunda entidade, algo como um clonede palavras,4 que assim desloque a atenção do objeto paraestas, e que ao mesmo tempo nos entregue aquele emnova investidura. A respeito, o poema “O gato” pode serilustração do que se disse.

4 No poema Poética (p .48) o quetento explicar aparece referidocom os termos “espectro” e“fantasma”.

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A RAZÃO CONSTRUTIVA E O RENDILHADO POÉTICO DE MARIA LÚCIA DAL FARRA

Uma palavra para o gato: ágilTambém unha, preguiça, pupila.O restoÉ o que ele(entre uma e outra delas)preenche de charme delgado –enigmático.

Quem transita pelo mundo da poesia não custa aidentificar, nos três poemas que Dal Farra dedica aos gatos,uma atração similar ao fascínio com que estes são postosn’As flores do mal por Baudelaire.5 Mas enquanto nos trêspoemas que também o francês lhe dedica o gato apareceora como motivo que impulsiona a descoberta dedimensões sensíveis a serem experimentadas pelo eu,sendo assim pretexto para essa experiência, orarepresentando o encantamento exercido pelo mistérioinexpugnável dos seres, em Livro de auras o animal éesvaziado de si para comparecer em palavra. Desse modo,não é no gato que se adentra – como quer Baudelaire –,não é seu enigma, que só a ele pertence, que quer serdecifrado. O gato real, sua substância, é aqui inapreensívele sobre isso não se tecem metafísicas ou transcendências.O mistério é sua prerrogativa e não importa, como emBaudelaire, inquiri-lo. Se o gato baudelaireano “não é compalavras que fala”,6 este que Dal Farra procura só pode seexpressar como pura escritura a contrapelo do real.

Adoraria poder nele apalpar o pêloe saber de que abstração é feito.Mas (felino) ele se enrosca incisivono vão do meu pensamentoe dependura-se(em telepática acrobacia)nas suas prerrogativas.Só me permite escrevê-loa contrapelo.

O desejo de tomar posse do gato, expressado nofuturo do pretérito como possibilidade, ipso facto nega-sea si mesmo com a adversativa, de modo que o eu, racional,depura a experiência psicológica com o ato produtivo deesvaziar o objeto de suas abstrações e preenchê-lo compalavras (ágil, unha, preguiça, pupila), essa matériaconcreta, com presença visível e sonora. Esse gato quedaí surge, a diferença do outro, pode ser assim infinitamenterefeito, não cristalizado pela emoção ou pelo impenetrável,mas dinâmico e sempre prestes a se transformar. Dessafeita, não é o gato que se captura; no fim, não é ele oobjeto da posse, senão o signo que o nomeia, que essa

5 BAUDELAIRE, 1985.

6 BAUDELAIRE, 1985, p. 227.

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poesia torna concreto, positivo, no sentido de que a palavranão se instala aqui essencializada, paralisada na suaabstração. Esta, pelo contrário, quer ser devolvida aohomem como atributo material que lhe pertence. A partirdisso, torna-se plena a liberdade do sujeito para exercersobre ela seu arbítrio e moldá-la da forma que quiser.

Todavia, não se entenda a atitude como purovoluntarismo e sim como vontade construtiva, guiada porum profundo raciocínio reflexivo que, se não fica preso aodesejo de conhecer os objetos, pois, como Valery, sabeisso impossível, toma a observação dos seres como pontode partida para sua própria observação. Este Viveiro, noqual pululam objetos, animados e inanimados, se revelapor isso, em toda sua extensão, um canteiro de semeadura,não só de palavras como, principalmente, de ensaio deurdiduras de parentescos e relações, de combinações emesclas, de desdobramentos a partir dos quais a palavraentretece com outras uma trama de sentidos, originais ediversos, devindo finalmente em linguagem, articulaçãode palavras. Tal consciência criadora reporta-nos, deveras,à lida com o nome do objeto. É, portanto, esse laborar alinguagem, até mostrá-la no translúcido do objeto, o lugarde radicação do belo, como sugere a epígrafe de Helder.

Como a concha que é “moldada pelos redemoinhosmarítimos” e deixa sentir no seu esvaziamento “a labuta/de um corpo que em tudo a fez/ a imagem e semelhança”(“Concha”), a poesia de Dal Farra refere a luta de seupróprio trabalho de composição, trazendo com isso à tonaa concepção que o sustenta: esforço de invocar (“canto”)o indeciso, aquilo que está esvaziado de forma, para torná-lo palpável pelo trabalho (“decanto”) de lhe adjudicar umnome. Impalpável como o corpo que a concha não maispossui, o canto, no poema homônimo, materializa-se,porém, em palavras que fixam sua esguia forma no brancoda folha e em presenças inusitadas (cadeira/galo): palavrasque se amancebam umas com as outras, para, pelo seupoder relacional, dar visibilidade àquilo que não tem, eque termina por explodir na última estrofe nos retumbes daassonância e dos parentescos sonoros.

Entretantoo encanto terrestre desteobjetoalçado ao canto– desperta de qualquer maneiraa manhã.Mérito do parentesco.

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A RAZÃO CONSTRUTIVA E O RENDILHADO POÉTICO DE MARIA LÚCIA DAL FARRA

Poesia que se agarra ao concreto, e que exploraalguns “méritos de parentesco” justamente com um dospoetas brasileiros mais preocupados com a valorizaçãodo fazer, João Cabral de Melo Neto. Alguns motivos, comoesse mesmo do canto do galo, ou a visão da paisagemnordestina, mas, sobretudo, a compenetração no manuseioda matéria lingüística que se exprime no aludido esforçode decantação, de esvaziamento do objeto e seudesdobramento em palavra, assim como a própriacontenção do eu lírico, até a atualização de certoselementos da musicalidade do poema, indicam não sóparentesco como uma particular recuperação da arscabralina, que a autora explicita no belo poema “João eJoan”.

O poema, cavalo em pugna para se desbocar,tematiza a luta pelo controle das palavras (“é com destraque penteia/ a crina das própria sílabas”), o tremendoesforço para dotá-las da precisão do algarismo, a palavramineral (“pedra, lâmina, cal”) de que fala Benedito Nunes7

no estudo que dedica a João Cabral. As letras “atraem-sepor faísca” para perfazer qualidades umas nas (das) outras(“Amarelo fica o azul/ de tanta luz que lhe infunde”; “cactoé borboleta”; “(Manolete) é sertanejo”). Como em Cabral,a intenção vai na direção das “coisas feitas de palavras”e, como nele, a qualidade reflexiva que se deposita naatenta observação das coisas (que no segundo livro daautora será contundente princípio da construção)movimenta inclusive o mundo mais aparentementedoméstico que se encontra em Coisas de mulher.

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Se aqui a condição de mulher se reafirma noaparecimento mais marcado do sujeito da experiência, oprocesso de perscrutação continua o mesmo, talvezapenas dirigido agora a motivos mais identificáveis aomundo feminino que se declara. A lida com a escritacontinua ocupando toda a atenção dessa mulher “paridorade sentidos”, seja em meio aos objetos da casa,executando os afazeres domésticos, seja em momentosde quieta contemplação. E é também o exercício calibradoda escrita que dirige o gozo erótico dessa subjetividade,atenuando através da ratio construtiva qualquersubjetivismo da persona poética. Claro exemplo disso é“Promessa de sexo”, primeiro poema dessa parte, e queirá se aplicar ao esvaziamento dos conteúdos imediatosda experiência que anuncia, para formalizá-la como puraerotização da escrita.

7 NUNES, 1971.

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Uma espátula finaclamapelo livro adiado,sua bainha.Duas canetas e uma sem tampa –a destase aplica na escrita.Inútil,o enigma do alicorne de bronzeainda não porta-pesosobre nenhum papel composto.Este apenas se garatujasob o engenho da minha pena.

Tudo em cima da mesa.

A natureza metalingüística que define o poema sevolta para a exploração das formas que poderiam dotarde sensualidade os instrumentos do seu próprio registro,tarefa que pode revelar um alto teor de dificuldade quandose percebe que a tentativa se monta basicamente numparapeito descritivo, que, assim como mantém aemotividade em rédeas curtas, parece dotar de substânciavívida e carnal os objetos que nomeia, por virtude dosverbos que lhes adjudica. No fim, é toda essa empreitadao foco de irradiação do prazer prometido. Por isso, são osprolegômenos da aventura da escrita, seu jeito de serecusar a comparecer, de se fazer difícil, qual mulher quenegaceia os apelos do amor, demorando-se na entrega,o que o poema destaca, concentrando-se nos preparativosdo fazer material (“Tudo em cima da mesa”), aqui mais atode conquista que de amor, que abafa a presença do eu,discretamente recolhido ao final do poema.

É essa sobriedade no tratamento da linguagem edo eu lírico – “Evito rimas, recuso acrobacias/ apenas dofrugal me ocupo inteira” (“Artes”) – que entranha aracionalidade construtiva presente nesta poesia, e queevoca a mesma disposição encontrada nesse escrever “defora para dentro” que caracteriza João Cabral. Como nele,há aqui apenas uma aparente compenetração com ascoisas, pois a lógica da composição descobre uma posturaanalítica empenhada em vasculhar, em bolinar não estasmas a palavra, até penetrar-lhe os recônditos e torná-laexata e imprescindível, como a queria Valery. “Poesia”:

A ilha

(com a densidade do marpalpável nas entranhas rochosas)limita as águas e vigia as bordas.

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A RAZÃO CONSTRUTIVA E O RENDILHADO POÉTICO DE MARIA LÚCIA DAL FARRA

Essa palavra se sustenta sozinha:quer apenas o volumee a jurisdição do seu espaço.

Soma de trilhas,de peixes de sílabas lisas,tem também o verbo que a exilamas que a liga (perene) ao continente.

Ela isca o sentidoe(poetisa)fisga o que registra.

Aprumar a palavra até o corte certeiro, como em“Rito” faz a faca com o legume, “vasculhando seu diâmetro/em toda a volta e extensão”, não é, contudo, suficiente.Ainda será mister construir-lhe o espaço – o poema – emque habitar, e este surge da laboriosa tarefa de trilharcombinações (“Soma de trilhas,/ de peixes de sílabas lisas”),que podendo ser infinitas deverão, por força, deixarpassagem a uma, aquela precisa como o algarismo em“João e Joan”. Exercício da palavra pelo qual o eu seabsorve no labor executado para, posto entre parêntese,numa estratégia de aparente ocultação, desvelar-se, noparadoxo, como construtor do que registra. A açãocriadora, então, delimita espaços, espreita nomes, conferedensidades, incita sentidos; assim, por obra disso, o que seconsigna e mostra fica deslocado do centro e esteocupado pelo ato mesmo que o faz possível: fisgar, agarrar,capturar, mas também descobrir. Volta a nós de novo aepígrafe de Helder.

Esta tamanha concentração no ato de parir sentidos,e que não entendo aqui como natural operação de colocarpara fora o que está dentro, mas antes como evocaçãodo minucioso e demorado trabalho da geração,transparece, como vimos, até nos domínios mais subjetivose íntimos da condição feminina. Os assuntos dasensualidade/sexualidade não poucas vezes comparecemno transvestimento de objetos tornados libidinosos pelapalavra, como no “Vida cava”, onde as formas e materiaisde um velho sofá de taquara transmutam-se em presençaserotizadas e erotizantes, a provocar a lembrança desejantedo eu. Ou, especialmente, no transbordamento sensual queinvade as frutas, o pêssego e a maçã, e que posteriormentereencontraremos em vários dos exemplos das “Vergilianas”de Livro de possuídos,8 o segundo da autora.

A utilização das frutas como eufemismos dasexualidade é, às claras, coisa que remonta aos temposbíblicos. Por metonímia, metáfora ou simbolização, não

8 DAL FARRA, 2002.

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poucas poetisas as têm utilizado para veicular sua relaçãocom o corpo, com os anseios do desejo físico, com aopressão masculina que durante tanto tempo lhe concedeua sexualidade apenas como desaguadouro da sua própriaou para lhe perpetuar a espécie. Por isso, muitas vezes seuuso no mundo da poesia feminina consente em redigir umapágina mais da expressão da condição da mulher no meiohistórico e social no qual se insere.

Estudiosa calibrada de vários universos poéticos, aprópria Dal Farra9 já tocou nalguns desses casos, dos quaisposso agora me valer para apressar meu raciocínio naformalização do contraste. Paula Tavares, Adélia Prado,Gilka Machado são nomes trazidos pela autora num artigoem que, precisamente, vai notar a cumplicidade entre frutase sexualidade. Excetuando o poema de Adélia Prado, queno artigo é definido como “canto de alegria radioso”,10 umquadro plástico de imagens e sabores do qual o eu líricose ausenta, os exemplos escolhidos por Dal Farra mostramo pendor para a queixa, uma certa passividade meiorevoltada, a doação que convencionalmente se atribui àmulher, a idealização do amado. Enquanto no poema deGilka Machado que aí se analisa a fruta é apalpada coma leveza de um toque que se quer quase imperceptível,em Dal Farra, a sensualidade sinestésica de toque e gosto,que tudo atinge, se desenvolve até o limite. O pêssego élanhado pelo eu lírico, que quer com o gesto penetrá-lofundo e deixar nele sua impressão, qual digital que atestea propriedade da rica seiva. Sujeito ativo, o eu não se furtaaqui a experimentar as últimas conseqüências dessa posse,e, dessa feita, será o pêssego, indefeso, que se queixaenquanto o eu recebe as prebendas do seu ato, queocasiona, irremediavelmente, a extinção do que se toma.“O pêssego”:

Na textura da frutaafundo minha unha:estará madura?

Desponta na abaulada penugema meia lua– impressão digital do meu gestoindecisoentre afeto e arranhadura.

Que sente a fruta?

Do poço da sua seivaum calafrio perplexo me reconhecena gota que se liberta.Transpira o pêssego o pensamento mais denso(o último)

9 DAL FARRA, 2001.

10 DAL FARRA, 2001, p. 63.

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porqueentrementes(e ainda úmido de queixa)tudo deixa contra o brilho dos meus dentes.

A disposição contemplativa que domina o poemade Gilka Machado, e que no plano da sua feitura ideológicapode-se associar à idealização de um estado de pacíficasujeição, desaparece por completo no de Maria Lúcia,absorvido pelo agir resoluto do eu se outorgandobenefícios.

No belíssimo “Fruto proibido”, o tema da posseaparece de novo, dessa vez tratado no limite do paroxismoimplicado na vampirização e masculinização do eu.Subvertendo a lenda bíblica, através da postura quasesacrílega do eu, a incitação ao gozo pleno dos sentidosconvoca toda a voluptuosidade desse ícone moderno quetem fascinado pela sua venalidade e pela permissividadeamoral com que desacata os requerimentos opressores daideologia judeu-cristã da sociedade burguesa. O desafiodesse eu vampirizado não está apenas na posse da matériacarnal, finita, como acontece no poema anterior. Agora –Drácula – ele almeja a posse absoluta, a que acontececom a conquista e/ou entrega do espírito. Trafega-se aquinos meandros da simbiose corpo/alma, símbolo da possetotal acometida pelo eu.

Com suas nádegas lascivas de mulhera maçã se deita de costasna cesta sobre a mesa.Já de batom está pintada,armadilha edênica no seu poço– no ponto da voragem,caverna de pevides.

Drácula, penetrono seu espírito interdito,no jardim das delícias.Cometo (insensato)a grande virtude capital.

A conversão do pecado em virtude pelo ato inusualdo eu, num roteiro inverso ao que, por exemplo, propõeBaudelaire, é também a conversão da passividade e dasubmissão, comportamentos tradicionalmente associadosà condição feminina, em livre arbítrio. Assim, uma vez mais,através da ação decidida, que caracteriza essapersonalidade poética, o eu quebra hierarquias e consegueexercer sua vontade irresoluta, equiparando-sesimbolicamente à figura masculina e barganhando para si

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papéis que a sociedade reserva tão só a essa figura. Nãohá, pois, interdição para o sujeito desses versos, pelo menosnão mais do que aquela que lhe poderia caber ao mesmohomem. No terreno vedado da sensualidade/sexualidade,onde a mulher foi posta como pecadora, a impudicíciadesta de agora nos presenteia com um sujeito social quepela ação conquista a igualdade. De modo que o“tipicamente” feminino sai daí desmitificado, desveladocomo código cultural que enquanto tal pode sermodificado pela ação construtiva do ser social.

Esse agir exposto no plano dos conteúdos temáticosvai radicar-se também na vontade construtiva de umaescrita que, sem abrir mão do canto, refaz a excessivasutileza da palavra feminina, toda queixumes, denúncias efrustrações, para submetê-la ao mesmo processo de árduadecantação e rigorosa elaboração que a convençãocultural da sociedade falocrática apenas atribuiu ao laborpoético masculino. Qual Drácula, essa escrita penetra, pois,esses territórios vedados, para mostrar, no manejoconcentrado do seu instrumento, na consciência dotrabalho formal, que não há espaços interditos para osujeito, homem ou mulher, que decida explorá-los por esseviés. Isso configura, sem escarcéus nem estardalhaços, umavisão democratizadora dos instrumentos e processos dodizer, tanto mais consistente desde que não se assenta noplano evidente do desenvolvimento temático mas penetraas profundezas das estruturas de composição.

VVVVV

Entretanto, não se pense que a vontade construtiva,essa obstinada consciência do trabalho formal esteja isentade aflição. Em “Retrato”, um dos últimos poemas de Coisasde mulher, o eu lírico, usando da mesma contençãoemotiva antes anotada, apresenta-se quase exaurido,inquirindo seu métier com visos de decepção:

De que me vale a herança do saberse atrelá-la devo a meu vivere se o que escrevo é pó, ungüento e em nadamudo aquela que em si já era farta?

Ó dicionário exato em mim minguante,lua cujo reverso acresce em vão!Buraco, estátua de musa, chãoestirado entre a fala e diante

de que motivo? Eu? mito perdidonos elos, eras, fui (e tenho sido)prodigioso equívoco, penso istmo

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a ligar som ao vivo coraçãodas comovidas coisas sem estilode que me ocupo (e às vezes me dão dom).

Esta “mulher plena, prenhe de plurais”,11 ocupadaem parir sentidos, debate-se na angústia dainexpressividade criativa. Avançando na dicção solenedesse soneto, crivado de perguntas e exclamações, vê-secomo o estado emotivo vai aos poucos se deslocando dafocalização centralizada no eu, típica da expressão lírica,para aspectos ligados ou que compõem seu fazer: a própriapoesia (“aquela que em si já era farta”); a palavra que aconstitui (“dicionário exato”); os motivos que a preenchem;os objetos sobre os quais se detém (“comovidas coisas semestilo”). O apagamento do eu (“prodigioso equívoco”), nãomais motivo poético central, se origina da idéia que oconcebe como mais uma peça do complexo construtivo,encarregada de aí efetivar a união entre a expressãomaterial que nomeia as coisas e a carga emotivadepositada nelas.12 É a tarefa de estabelecer as relaçõessignificativas possíveis entre a palavra (sentido e som) e osconteúdos emotivos que passa a ocupar agora a atençãodo eu e a ser o motivo principal do poema. Poesia querejeita a metafísica do consolo, que espanta acomplacência consigo mesma, aparecendo num “Retrato”que foge à pictografia do eu para desenhar a trabalhosacatadura do seu fazer.

Assim pois que essas coisas de mulher sãoenganosas. Se pensarmos adentrar nelas imbuídos doespírito de apreender apenas os seus tópicos ou dereencontrar aí uma urdidura estilística conciliada com asconvenções do gênero que lhe dá vida, do tipo “universoprivado feminino”, poderemos correr o risco dedesaperceber a constituição de um mundo de mulher quese desconstrói (palavrinha tão em voga) a si mesmo nodesmascaramento das convenções que o cristalizam comotal. Convenções que, na nossa cultura androcêntrica ediscriminatória, têm atingido a escrita para lhe imprimir umaessencialidade “feminina” e “masculina”, na verdadeinexistente.

Não é por acaso que Maria Lúcia Dal Farra, na suapostura de sujeito crítico, tenha optado por “supor que aescrita, considerada culturalmente como gênero(masculino ou feminino), possa ser concebida apenas comoum dos muitos recursos da retórica literária, como um dosmuitos meios de persuasão à disposição do seu autor”.13

Embora sua poética esteja também povoada dos temas ecenários habitualmente vinculados ao universo dopropriamente feminino, não é nisso que a “escrita de

11 DAL FARRA , 1994, p. 85.

12 No seu segundo livro (DALFARRA, 2002, p. 9), a autora irádeclarar: “À maneira de um dospoetas de Platão, tornei-merecipiente para que em mimpudessem (os objetos) estarpresentes num corpo que não erade origem o deles”.

13 DAL FARRA, 2001, p. 54.

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mulher” se faz nela presente com mais força. Esta explodenesse uso “masculino” da ratio construtiva que o eu dosseus poemas atualiza com obstinação, inclusive quandodissimulada na temática dos ofícios domésticos, dasatividades humildes (quarando roupa, cozinhando ou“funcionando este tear”),14 estigmatizadas pela visãoprodutiva do mundo masculino como pura repetição estéril.É delas que essa entidade fazedora irá se servir comfreqüência para convertê-las em momentos propícios àcriação, em motivos para a composição de formas eestruturas que supera a simples recriação de um tema. Ametáfora a que sou pois levada é a da domesticação,que entendo aqui como doma, colonização pelasensibilidade feminina de uma razão construtiva, de umarrazoado intelectual que a convenção cultural sempre lhenegou ou concedeu a contragosto. Veja-se o casoparadigmático de Sor Juana Inés de la Cruz.

Assim, então, neste específico mundo de mulher, orendilhado de uma toalha de crochê tanto encerra adelicadeza que por hábito se identifica ao feminino comoa destreza necessária para organizar elementos de ummodo tal a constituir formas belas, à vista e ao tato, antesinexistentes. Labor que implica cálculo, tempo e paciência,num denodado refazer-se até alcançar a precisão da formaperfeita porque decantada. Por aí enveredando, a toalhade crochê talvez possa ser escolhida como o ícone dessapoética, porque ela expõe, nos seus cheios e vazios, suaexistência de pura urdidura estrutural capturando beleza.“Parca doméstica”:

As teias da toalha de crochêefabulam-seno centro da mesapara o aparecimento do objeto apreendido:

O jarro e sua flor.

Toda a sala se arma em tornodessa pequena descoberta.As madeiras gememno parentesco vegetal da beleza urdida.O armário arrisca a desenhar(desde o tronco)um galho que os enlaceenquanto os cristais mal se sustêm de êxtase.

A aranha preside a tudo(invisível).

14 DAL FARRA, 1994, p. 54.

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No espaço interestrófico, o jarro e sua flor, objetoscom peso definido, parecem flutuar na leveza de imagensconvocadas pela própria armação – “teias da toalha decrochê” – que as sustem. Esse efeito plástico inicial, produtomaterial da disposição espacial dos termos na estruturapoemática, começa, na verdade, na preeminência doverbo efabular, por inteiro destacado, na sua formareflexiva, no segundo verso da estrofe primeira. A partir daí,a invenção imaginativa escolhe, ordena e dirige oselementos desse mundo que cobra vida aos olhos do leitor.Relações se urdem entre elementos aparentemente diversose tudo chama ao enlace, ao parentesco, sob o guia davontade imaginativa que fornece as coisas e seus sentidospara serem capturados numa forma significante, tal comofaz a teia que a aranha tece. Nesta altura, não custa trazera imaginação para o convívio da razão construtiva quenorteia essa poesia, na medida em que a primeira está aípara propiciar a abertura para realidades invisíveis e asegunda para dar-lhes a estrutura sem a qual aquelas nãose tornam, finalmente, visíveis, tangíveis. Como nãopressentir nessa dinâmica o encontro do canto, nainvocação do indeciso, e do decanto a organizar-lhe aforma?

Quem sabe possamos enfim especular sobre o novosentido que, me parece, trazem em si as auras desseprimeiro livro. Princípio semimaterial, sutil e evanescenteque rodeia as coisas, a aura mostra-se aqui definitivamenteperdida para a percepção poética, que, como dito, nãose propõe a capturar a secreta substância do objeto, seurastro indefinível, mas a lidar com a matéria lingüísticaatravés de uma lúcida consciência do trabalho formal.Atando os cabos disseminados ao longo desse texto,entende-se que a invocação do indeciso, da maneira porque é realizada, augura a existência de uma atmosferasensível que é pura manifestação das capacidadessignificativas da palavra. Por isso, estas auras resultam daurdidura da vontade construtiva, de combinaçõesimaginadas e meticulosamente organizadas, um artifícioque pode assim constituir novos objetos velhos, novasrecordações familiares, novas cenas passadas, pois quenão existiam antes de serem criados pelo poema. Estasauras compõem-se assim de percepções-interpretaçõesdo espírito analítico, calcadas no presente para trafegarnão pelas coisas, mas pelo contato que se estabelece comelas através das palavras; não pelo passado da lembrança,mas pela imagem que hoje dela se constrói. Dessa feita épossível entender que “Palavras não se tiram de alquimias/da cozinha–/ nem de desejos vãos”, como encerram osversos de “Autógrafo”, último poema do livro. Metonímia

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de um corpo maior que é a linguagem, com suas estruturassintáticas e sonoras, as últimas tão bem exploradas nestespoemas, as palavras devem ser, então, tiradas do limbopela consciência reflexiva para serem arranjadas numaestrutura maior pelo esforço do fazer construtivo. Eis a liçãode casa.

VIVIVIVIVI

No Livro de possuídos o rendilhado de teia-toalhavai se tecer nos circunlóquios de uma linguagem queacentua seu vezo descritivo para, literalmente, arrodear oobjeto como que lhe indagando a existência. Esse objetotem uma curiosa particularidade, pois quando não constituiele mesmo uma representação estética prévia, asrealidades plásticas das criações pictóricas de Van Goghe Klimt, vão pertencer ao mundo natural das frutas elegumes, das árvores e flores, também independentes davontade dessa entidade que agora as faz seus motivos.Pela mão de Maria Lúcia, estas últimas vão se assimilar aotrabalho do pintor desde que passam a ser compostascomo verdadeiras naturezas mortas. Assinala isso adeclaração de um explícito trabalho recriativo, o que,parece-me, traz no bojo a radicalização dos procedimentosa que essa poesia submete o objeto, tal como foi detectadoem Livro de auras.

Assim, há neste livro, como no anterior, umaafirmação da incapacidade da palavra para conhecer asubstância das coisas, para penetrar-lhes as entranhas, damaneira original como estas aparecem postas para aexperiência sensível. Desse modo, a palavra, aqui, opta,mais uma vez, por dar-lhes outra existência, desdobradada real como percepção que a matéria lingüística podeformalizar na arquitetura de uma trama artística. Havendo-nos já familiarizado com tal procedimento construtivo, aprópria autora, nas palavras iniciais que dirige ao leitor dosPossuídos, e obrando aí mais como crítica do que poetisa,irá afirmá-lo quando reconhece a transformação a queforam submetidas as realidades originais das que parte,em função da impossibilidade de representá-las.15 Essesobjetos passam então a residir no puro verbo – “egoístaverbo meu” –, ganhando nisso a sobrevida de umaexistência pessoal que não pretende repetir a original,mesmo que esta seja grandiosa. Diante dessa tela de Klimt(“Ondinas”):

Habitantes das ondasparentes das uiarasirmãs das sereias –

15 DAL FARRA, 2002, p. 9.

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como escrevê-las?Por gotasenxurradaspor palavras pingadas que,afinal,cantem e extasiem?

Deixá-las ao silêncio das correntes submersas,sua morada–é como hei de escrever.

Como antes, o verbo é aqui a matéria da qual apoesia se serve. Sendo matéria ele deverá ainda sermoldado em estrutura que suporte uma nova existênciasignificativa. Nesse momento, percebe-se o modo comoneste Possuídos a consciência construtiva cala fundo emcada poema, pois o eu lírico se concentra num exercícioque é, principalmente, filigrana arquitetônica, o que podeser constatado a partir da própria escolha dos motivos, numprimeiro caso, imagens contidas em quadrosespacialmente limitados. A contenção da imagem noslimites da tela, mas também a configuração definida queidentifica cada ser natural, é terreno propício para aobservação penetrante, para essa “atenção vertiginosa”,aludida numa nova epígrafe de Helder,16 e que se manifestacomo primeiro atributo visível desses textos. Assim, de início,a observação parece penetrar numa forma, aquela própriada tela ou do objeto natural que se mira; porém, na mesmahora em que a isso se assiste, guiados pelo aparente espíritodescritivo que se apossa desses textos, está-se captandooutra, a sua própria, a do poema. Ao tempo, então, que,por exemplo, se assiste ao quadro, a seus traços e linhastomando formas, a suas cores definindo-as, ou seja, a suarealidade material – ”O jardim/é uma tela pontilhada decores” (“Jardim florido”) –, faz-se presente uma outra matéria,a lingüística, que dá existência ao poema.

A pintura expressa o poema, que, como o quadro,composição de formas e cores, existe como puracomposição de linguagem, com suas combinações depalavras, que são também combinações de sons. Por isso,o poema não é transcrição da tela, mesmo que a ela serefira; é processo que, assim como o quadro, cria, emforma, o que inexistia antes dele, como defendia Valery. Apropósito de uma tela de Van Gogh (“Doze girassóis numvaso”):

Atestados do sol,diferentes provas da existência de deusna galáxia doméstica,arranjos de constelação prazerosa –

16 DAL FARRA, 2002, p. 47.

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eles nos brindam a cada umadas horas do dia.A vista se regozija(minuto a minuto)recebendo a prenda.

De outra parte, a infinidade de imagens sinestésicasque comparecem a esse processo nos posta diante dapercepção de um sujeito que a maior parte do tempopermanece meio oculto ou definitivamente ausente. Algoda ênfase impessoal e objetivista da impassibilidadeparnasiana parece pairar sobre muitos desses textos, que,como apontado, se comprazem na descrição plástica dosobjetos observados, de tal forma que daqui emerge aimpressão inusitada do poema se fazendo sozinho. Todavia,sendo o objeto que parece monopolizar o primeiro planoda cena, não é ele que está sendo aqui apresentado esim o modo como a percepção sensível o capta. E é essemodo que resulta impessoal, no sentido de que muitas vezeso eu apenas se pressente como consciência que organizaem formas visíveis o processo perceptivo que tem lugardiante de uma dada experiência sensível. Que pode ser asua própria, ainda que também a do momento anímicoda subjetividade artística que concebeu e deu vida àsimagens pictóricas originais.

Esta ofuscação do eu, já registrada em outrospoemas de Auras (como nesse em que a aranha a tudopreside invisibilizada e, fisicamente, deslocada do corpopoemático pelo duplo espaço interestrófico), é definitivaem muitos dos textos de Possuídos, comprovação, parece-me, que vem a ser de uma qualidade reflexiva que com aimpessoalização depura a experiência psicológica paraformalizar seus mecanismos de percepção. Poesia quecaptura algo que o objeto em si não possui mas que lhe édoado pelo espírito que o contempla de uma perspectivaque, se é, por um lado, disposição para executar umaforma, também é, pelo outro, poder da imaginaçãosubjetiva para a invocação de sentidos possíveis apenaspelo arranjo lingüístico do poema – “música audível/apenas/ para quem se ajoelha/ sobre a terra”.17 O purosubjetisvismo (não pessoal) reclamado por Valery para umapoesia que pela imaginação ative sugestões e consigamaterializá-las em linguagem pela capacidadeorganizadora do intelecto artístico.

Por outro lado, voltar-se para a construção de umaramado expressivo constituído, como vimos, pormecanismos compositivos que acometem adesapropriação da ratio construtiva do exclusivo usomasculino é o que de mais importante essa poesia revela

17 DAL FARRA, 2002, p. 115.

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da condição histórica de um certo tipo de mulher. Pois aquitampouco cabe insistir em manter a homogeneidade doepíteto feminino, por quanto a mulher é hoje ser social comdiversas localizações na dinâmica produtiva da sociedade.A imagem que, nesse sentido, extravasa do procedimentopoético aqui analisado poderia ser vinculada à de umsujeito situado na órbita de influência das urgênciasprodutivas do tempo contemporâneo: sujeito feminino quejá partilha com o homem das mesmas calamidades dapressão produtivista da sociedade burguesa. Por esse viés,o gesto criativo que dinamiza a poesia de Maria Lúcia DalFarra, definido aqui como espírito analítico e trabalhoconstrutivo, estaria fixando para si as mesmas condiçõesconquistadas pelo homem no ingrato mundo da produção,ou, pelo menos, atribuindo-se espaços não maisdesvantajosos dos que aquele pode usufruir em tal contexto.Com isso, mesmo que essa mulher possa continuar voando“para o infinito do sonho e da imaginação”, lugar onde asociedade paternalista a enclausurou, é inegável queagora, como agente do processo produtivo, ela tambémse debate na luta por assegurar posições de paridadedentro dessas coordenadas de produção pelas quais, porrequerimentos da sociedade burguesa, passa a transitarativamente. Em tal situação, a luta desse sujeito feminino éuma empreitada que, como visto, não se pode entreterem espasmos declarativos no plano temático, senãoaplicar-se ao fazer construtivo de um procedimentoexpressivo.

O “mecanismo mágico”, aludido por HaquiraOsakabe no texto de apresentação deste Possuídos, pode,talvez, desvelar-se nessa dupla condição entranhada numaconcepção poética que se conforma, de maneiraoriginalíssima, à idéia da poesia como trabalho formalaplicado aos conteúdos da inteligência imaginativa, estaque evoca e sugere. É o que, a partir da análise dessaimagem inicial e fundamental que é o “canto/decanto”,tentei conceptualizar, na visibilidade do (de)canto, como“poesia desdobrável”. “A íntima unidade deste Poema comas coisas”, que a autora declara pela voz poética de Helder,só permanece viável pelo esforço de uma nomeação que,ao penetrar fundo nos seres e objetos que toma, os agarrapara devolvê-los não na sua originalidade, mastransfigurados na forma de outras diversas existênciaspossíveis. Depostos do seu conteúdo original –desobjetivados – eles são ficcionalizados (efabulados) elogo potencializados, para existir não na exterioridade àque pertenciam mas na interioridade da própria matériapoética. Eis o mecanismo da posse.

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Esta transfiguração é, decerto, uma alquimia dalinguagem, magia verbal que irá encantar porquepermanecerá misteriosa mesmo depois da decifração desuas fórmulas e do entendimento de seus sortilégios.Todavia, sendo a alquimia denodado esforço para oconhecimento das propriedades ocultas dos elementos,continuarei entendendo sua prática como labor aplicado,na poesia de Maria Lúcia Dal Farra, ao manejo concentradodo seu instrumento, sob a consciência lúcida do trabalhoformal.

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1985.

DAL FARRA, Maria Lúcia. Livro de auras. 1. ed. São Paulo: Iluminuras, 1994.______. “Poesia de mulher em língua portuguesa”. Letras, n. 23, p. 53-69, 2001.______. Livro de possuídos. 1. ed. São Paulo: Iluminuras, 2002.LACLAU, Ernesto. “Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social”. Revista Brasileira

de Ciências Sociais, v. 1, n. 2, p. 41-47, 1986.NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1971.PRADO, Adélia. Bagagem. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.

[Recebido em agosto de 2005 e aceito para publicação em outubro de 2005]

The Construtive RThe Construtive RThe Construtive RThe Construtive RThe Construtive Reason and the Peason and the Peason and the Peason and the Peason and the Poetic Loetic Loetic Loetic Loetic Lacework of Maria Lúcia Dal Facework of Maria Lúcia Dal Facework of Maria Lúcia Dal Facework of Maria Lúcia Dal Facework of Maria Lúcia Dal FarraarraarraarraarraAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article examines some aspects of the poetical production of Maria Lúcia Dal Farra,Livro de auras (1994) and Livro de possuídos (2002), trying, mainly, an approach to the constructivemechanisms that move its poetical universes. The focus of attention centers in the use that sucha poetics makes of a constructive ratio, which hovers between “canto” and “decanto” tosymbolize, in a feminine way of writing, the possession of an aesthetic intellect that traditionalandrocentric culture has reserved for the masculine.Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: feminine poetry, ratio constructive, procedures of composition.