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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA NÍVEL MESTRADO CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS DE J.-J. ROUSSEAU São Cristóvão 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

NÍVEL MESTRADO

CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA

EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

DE J.-J. ROUSSEAU

São Cristóvão

2014

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CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA

EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

DE J.-J. ROUSSEAU

Dissertação apresentada como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre

em Filosofia, no Programa de Pós-

graduação em Filosofia da Universidade

Federal de Sergipe.

Orientador. Prof. Dr. Evaldo Becker

São Cristóvão

2014

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CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA

EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

DE J.-J. ROUSSEAU

Dissertação apresentada como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre

em Filosofia, no Programa de Pós-

graduação em Filosofia da Universidade

Federal de Sergipe.

Orientador. Prof. Dr. Evaldo Becker

Aprovada em 27 / 02 / 2014 .

COMISSÃO EXAMINADORA

Dr. Evaldo Becker – Universidade Federal de Sergipe (Presidente)

Dr. Milton Meira do Nascimento – Universidade de São Paulo

Dr. Thomaz Massadi Kawauche – Universidade Federal de Sergipe

Dr. Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd – Universidade Federal do Ceará

(Suplente)

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Este estudo é dedicado aos meus pais.

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AGRADECIMENTOS

Quero agradecer em particular aos meus pais, José Américo (in memoriam) e Judite

Lopes, meus exemplos de vida. Aos meus irmãos e irmãs pela alegria e coragem que sempre

me transmitem. À minha querida namorada, Nane Nascimento, pelo carinho e paciência que

me tem dedicado na reta final de pesquisa. Aos colegas da Universidade Federal de Sergipe

pelo apoio e incentivo.

Aos professores do Mestrado pela dedicação, auxílio e orientação dessa dissertação,

em especial ao Dr. Evaldo Becker cujos estudos e pesquisa muito me instigaram.

À CAPES pelo apoio financeiro.

A todos o meu muito obrigado.

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Nunca acreditei que a liberdade do homem consiste em fazer o

que quer, mas sim em nunca fazer o que não quer, e foi essa

liberdade que sempre reclamei, que muitas vezes conservei, e me

tornou mais escandaloso aos olhos dos meus contemporâneos.

Porque eles, ativos, inquietos, ambiciosos, detestando a liberdade

nos outros e não a querendo para si próprios, desde que por vezes

façam a sua vontade, ou melhor, desde que dominem a de outrem,

obrigam-se durante toda a sua vida a fazer o que lhes repugna, e

não descuram todo e qualquer servilismo que lhes permita

dominar.

JEAN-JACQUES ROUSSEAU. Os devaneios do

caminhante solitário.

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RESUMO

CORREIA, Cristiano A. Em torno das Instituições Políticas de Jean-Jacques Rousseau. 2014.

84f. Dissertação (Mestrado). Centro de Educação e Ciências Humanas. Programa de Pós-

Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Sergipe, São

Cristóvão, 2014.

O objetivo geral da presente dissertação é investigar o tema da guerra, dentro do projeto das

Instituições Políticas, a partir da trajetória percorrida por Rousseau desde as descrições de um

estado de natureza pacífico, passando pela emergência dos Estados e a consequente

deflagração do estado de guerra verificado nas relações internacionais. Para tanto é

fundamental que se examine o assunto em vista de maneira linear, mantendo como centro o

conhecimento do homem. O caminho a ser percorrido é o que leva à degeneração do ser

humano a partir do ingresso na sociedade civil. Tal ingresso tem como proposta fomentar e

manter a paz, porém, com o advento do Estado, ser moral cuja extensão e força são puramente

relativas, cria uma correspondência desigual entre eles, engendrando guerras. Assim, o

homem se vê numa condição mista: como indivíduo isolado, refém da lei natural; como

cidadão partícipe da ordem social, submetido à lei civil; e como povo soberano, livre para

relacionar-se com outros povos numa esfera internacional carente de mecanismos reguladores.

Assim, dividimos a presente pesquisa em dois Capítulos. No primeiro, trataremos a questão

do homem natural e do estado de natureza - caracterizado por Rousseau como um período de

isolamento e simplicidade - até o momento do pacto “histórico”, gerador de uma ordem social

corrupta, fruto da degeneração dos atributos naturais do homem ao ingressar na vida em

sociedade. O Estado é criado, e com ele nasce a guerra. No segundo capítulo, apresentaremos

o tema da fundação dos Estados-Nação e suas relações na esfera internacional. Abordaremos

a questão da formação de uma sociedade legítima, bem constituída, como remédio para

amainar as agruras decorrentes do “pacto histórico”. Trabalharemos sobretudo com os

conceitos de liberdade, soberania e vontade geral. Em seguida adentraremos no tema da

guerra, destacando os conceitos de estado de guerra e guerra legítima, ressaltando mais ainda

o pessimismo de Rousseau acerca de uma solução definitiva para o problema. Por fim,

apresentaremos o debate entre Rousseau e Diderot acerca da possibilidade de uma sociedade

geral do gênero humano como solução para a paz. Nossa hipótese é a de que o projeto das

Instituições Políticas, como um todo, se concretizado, traria elementos que colocariam

Rousseau como um escritor mais próximo do realismo político do que a tradição e os manuais

de filosofia supõem, tentando assim, dar nossa pequena contribuição à imensa bibliografia

sobre o tema. Os principais textos de Rousseau aqui analisados são: o Discurso sobre a

Desigualdade, o Contrato Social, o Princípios do direito da guerra e o segundo capítulo do

Manuscrito de Genebra intitulado Da sociedade geral do gênero humano. Estes três últimos

comporiam o projeto inacabado das Instituições Políticas.

Palavras-chave: Rousseau; Estados-Nação; estado de guerra; instituições políticas; relações

internacionais.

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ABSTRACT

CORREIA, Cristiano A. Around the Political Institutions of Jean-Jacques Rousseau. 2014.

84f. Dissertation (Master's degree). Center for Education and Human Sciences. Graduate

Program in Philosophy. Department of Philosophy, Universidade Federal de Sergipe, São

Cristóvão, 2014.

The general aim of this dissertation is to investigate the subject of war, inside the project of

Political Institutions, from the trajectory followed by Rousseau provided descriptions of a

peaceful state of nature, through the emergence of the United State and the consequent

outbreak of war found in international relations. The way to go is what leads to the

degeneration of the human being from the entrance into civil society. This entry has the

purpose to promote and maintain peace, however, with the advent of the State, moral being

whose extent and strength are purely relative, creates an unequal match between them,

engendering wars. Thus man is seen in a mixed condition: as an isolated individual, hostage

of natural law; citizen as a participant of the social order, subject to civil law; and as a

sovereign people, free to relate with other people in an international sphere lacks regulatory

mechanisms. Thus, this research divided into two chapters. At first we treat the question of

the natural man and the state of nature - characterized by Rousseau as a period of isolation

and simplicity - yet the 'historic' pact, pact generator of a corrupt social order, the result of

degeneration of the natural attributes of man to join in society. The state is created, and with it

comes the war. In the second chapter, we will introduce the theme of the foundation of

Nation-States and their relations in the international sphere. Address the issue of formation of

a legitimate company, and incorporated as a remedy for dropping the hardships resulting from

the "historical pact". We will work primarily with the concepts of freedom, sovereignty and

general will. Then discuss the theme of war, highlighting the concepts of state of war and

legitimate war further emphasizing Rousseau's pessimism about a permanent solution to the

problem. Finally, we present the debate between Rousseau and Diderot on the possibility of a

general society of humankind as a solution for peace. Our hypothesis is that the project of

Political Institutions, if realized, would bring elements that would put Rousseau as a closer

writer of political realism than tradition and philosophy manuals suppose, trying to give our

little contribution to the vast literature on the theme. The main texts of Rousseau discussed

here are: the Discourse on Inequality, Social Contract, Principles of the law of war and the

second chapter of the Geneva Manuscript entitled The general society of humankind. These

last three make up the unfinished project of Political Institutions.

Keywords: Rousseau; nation states, state of war, political institutions, international relations.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10

2. ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL. .......................... 14

2.1 O Homem Natural .......................................................................................................... 19

2.1.1 Liberdade Natural: reflexão e escolha .......................................................................... 22

2.1.2 Perfectibilidade: “a gênese do mal” .............................................................................. 25

2.1.3 Amor de si versus amor próprio e a ideia de propriedade ............................................ 27

2.1.4 Piedade natural (pitié) ................................................................................................. 29

2.2 Estado de Natureza Histórico: da paz à violência ........................................................ 33

2.2.1 Das associações livres à sociedade começada ............................................................. 34

2.2.2 Transição para o estado civil: violência, pacto enganador e servidão ......................... 37

3. DA FUNDAÇÃO DOS ESTADOS-NAÇÃO ÀS

RELAÇÕES INTERNACIONAIS ......................................................................................... 43

3.1 Contrato Social: formação da sociedade legítima ........................................................ 44

3.1.1 Lei e Liberdade ............................................................................................................ 48

3.1.2 Soberania ..................................................................................................................... 50

3.1.3 Vontade Geral .............................................................................................................. 53

3.2 Princípios do direito da guerra ..................................................................................... 55

3.2.1 Guerra e Estado de Guerra ........................................................................................... 57

3.2.2 Tensão entre indivíduo e Estado: O estabelecimento do Estado-nação e a

Guerra entre potências ............................................................................................................ 62

3.2.3 Guerra Legítima, violência e justiça ............................................................................ 64

3.3 Projetos de paz ............................................................................................................. 68

3.3.1 Da sociedade geral do gênero humano ........................................................................ 68

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 73

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 79

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1 INTRODUÇÃO

A preocupação com temas que envolvem o estabelecimento e a legitimação dos

Estados-Nação, bem como a problemática em torno das relações entre Potências num

ambiente internacional carente de legislação e de um organismo supranacional forte o

bastante para assegurar que os direitos fundamentais de cada Povo ou Nação sejam

respeitados e, ao mesmo tempo, garantir a autogestão independente dos povos no interior dos

diversos Estados, começa a tomar forma na Modernidade com obras como: Direito da

Guerra e da Paz (1625) de Hugo Grotius; De Cive (1642) de Thomas Hobbes e o Projeto

para tornar perpétua a paz na Europa (1713) do Abbé de Saint-Pierre. Em meados de 1759,

Rousseau abandona o que seria sua grande obra, as Instituições Políticas, dela extraindo

trechos já acabados para publicar o Contrato Social1. O que restou, segundo o autor, foi

queimado.

Porém, no final do século XIX, é encontrado na Biblioteca de Genebra, Suíça, um

manuscrito que continha uma versão do Contrato Social acompanhada de alguns fragmentos

do texto Economia Política, publicado na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert. Como

aponta Lourival Gomes Machado:

O texto, tal como foi descoberto, mostra-se fragmentário, só alcançando

mais ou menos a metade da versão definitiva do Contrato, porém essa mutilação parece provir de acidente posterior, havendo indícios de que

Rousseau o redigiu inteiramente. Tal como hoje o conhecemos, compreende

uma versão que alcança os dois primeiros livros do Contrato, mais o capítulo I do livro III. Houve, contudo, algumas modificações: o capítulo inicial do

Manuscrito cedeu lugar à introdução do livro I que, na versão definitiva,

define o objeto da obra; o segundo capítulo, bastante extenso e versando a Sociedade Geral do Gênero Humano, foi suprimido. (MACHADO, 1962,

p.5)

Nesse capítulo suprimido, Rousseau debate com Diderot acerca da possibilidade da

formação de uma sociedade geral do gênero humano. 1 No capítulo V do Emílio, Rousseau faz um resumo do que seria o conteúdo das Instituições Políticas,

apontando que as questões que irá examinar “foram em sua maioria extraídas do Tratado do Contrato Social,

ele próprio extraído de uma obra maior, empreendida sem consultar minhas forças e abandonada há muito

tempo”. (ROUSSEAU, 2004, p. 683)

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Em 1967, Bernard Gagnebin descobre o fragmento Guerra e estado de guerra, que

passa a integrar o volume III das Obras Completas de Rousseau nas edições subsequentes da

Pléiade, juntamente com os textos Que o estado de guerra nasce do estado social e

Fragmentos sobre a guerra. Em 2005 uma nova versão estabelecida por Bruno Bernardi e G.

Silvestrini junta esses três fragmentos em um só texto intitulado Princípios do direito da

guerra2. Para montar o quadro do que seriam as Instituições Políticas, contamos também com

algumas informações fornecidas pelas Confissões,3 além de uma espécie de resumo no final

do livro V do Emílio4, porém, é no último capítulo do livro IV do Contrato Social que

encontramos um panorama fiel do conteúdo a ser desenvolvido, escrito em um melancólico

tom de despedida pelo próprio Rousseau:

Depois de haver estabelecido os verdadeiros princípios do direito político e ter

me esforçado por fundar o Estado em sua base, ainda restaria ampará-lo por

suas relações externas, o que compreenderia o direito das gentes, o comércio, o direito da guerra e as conquistas, o direito público, as ligas, as negociações,

os tratados, etc. tudo isso, porém, forma um novo objeto muito vasto para as

minhas curtas vistas, e eu deveria fixá-las sempre mais perto de mim.”

(ROUSSEAU, 1973b, p.151)

Assim, as questões acerca da relação entre Estados faziam parte do horizonte do autor,

que, mesmo não levando o projeto a termo, deixou pistas que nos possibilitam investigar de

que modo o empreendimento seria tratado.

Desta forma, o objetivo geral da presente dissertação é compreender o tema da guerra,

dentro do projeto das Instituições Políticas, a partir da trajetória percorrida por Rousseau

desde as descrições de um estado de natureza pacífico, passando pela emergência dos Estados

e a consequente deflagração do estado de guerra verificado nas relações internacionais, tendo

como pontos centrais questões envolvendo, sobretudo, a natureza humana, a sociabilidade

natural, a sociedade legítima e o estado de guerra. A ideia de que o estado de guerra é

posterior ao estabelecimento das sociedades não é óbvia e requer uma análise minuciosa da

obra de Rousseau para compreender como ele articula esta argumentação que é dirigida contra

as teorias em voga em seu tempo. O óculo a ser usado terá seu foco centrado na constituição

2 Ver prefácio de Evaldo Becker in: ROUSSEAU, J.-J. Princípios do Direito da Guerra. Tradução de Evaldo

Becker. Revista Trans/Form/Ação, Marília, v.34, n.1, p.69-91, 2011. 3 Ver: Confissões, livro VIII, p. 187-188; livro XI, p. 202; livro IX, p. 203; livro IX, p. 230-231; livro X, p. 369. 4 Ver: Emílio, livro V, p. 676-694.

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natural do homem e como ela vai sendo modificada, até alcançar o ápice degenerativo na vida

civil.

Para dar conta de tal empreendimento, dividimos o presente trabalho em dois

capítulos. No primeiro, intitulado: Estado de natureza: A trajetória civilizacional,

investigaremos, à luz do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os

homens, a noção de “estado de natureza puro” e “estado de natureza histórico”, mostrando

também como Rousseau dá forma e distingue a ideia de homem natural, homem em estado de

natureza ou selvagem e homem civilizado, por meio da apresentação dos quatro atributos

naturais constituintes da natureza humana. O percurso até a civilização tem origem com o

aparecimento do homem primitivo, alcançando o vértice na instituição da propriedade privada

e consequente quebra da igualdade e liberdade naturais, que marcam a entrada no estado civil.

O ponto de convergência girará em torno da caracterização da natureza humana, abordando

questões acerca da liberdade natural, sociabilidade e violência.

Nosso objetivo, nesse primeiro momento, é mostrar que tais questões são

fundamentais e incontornáveis para o entendimento da teoria política de Rousseau

desenvolvida no Contrato, com vistas ao estabelecimento dos Estados-nação a partir da

formação de uma sociedade legítima pautada pelos conceitos de soberania e vontade geral,

que se ligarão irremediavelmente à problemática trabalhada na segunda parte da nossa

investigação intitulada: Fundação dos Estados-Nação e relações internacionais.

Nesta segunda parte, mostraremos como Rousseau tenta trazer uma solução para

amainar as agruras decorrentes do ingresso do homem na sociedade por meio de um pacto de

associação que visa recuperar um pouco do que se perdeu lá atrás, na vida primitiva. Com

isso, procuraremos estabelecer as noções de Sociedade Legítima, Estado, Soberania e

Vontade Geral como pontos importantes para adentrarmos no pensamento político do autor.

O que diferencia tal pensamento do de outros pensadores de sua época é a concepção de

Vontade Geral como instrumento decisório do povo, que exerce a função de Soberano,

atribuindo ao Governo papel secundário de mero funcionário limitado à função de

administrador. A seguir, analisaremos quais problemas emergem das relações entre Estados.

O horizonte é ampliado, tendo como viés os conflitos entre Potências, seres morais

independentes que tentam sobreviver numa ordem social moldada para a vida dentro do

Estado com o intuito de regular as relações entre pessoas. O tópico centra-se na proposta de

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uma “juridicização” da guerra como saída para diminuição da belicosidade. A falta de um

arcabouço jurídico, de leis internacionais que não firam a independência das nações e

preservem a paz; e a criação de uma instituição supranacional forte o bastante para imputar

sanções a Estados hostis é problematizada a partir do estudo de um texto pouco conhecido de

Rousseau: Princípios do Direito da Guerra. No decorrer da investigação apresentaremos

noções de guerra, estado de guerra, guerra legítima, violência e justiça, mostrando, sempre

que necessário, a crítica de Rousseau ao insensato sistema de Hobbes. Por fim,

apresentaremos a querela entre Rousseau e Diderot acerca da possibilidade do

estabelecimento de uma sociedade geral do gênero humano a partir dos conceitos de gênero

humano, vontade geral inata e sociabilidade natural.

Os principais textos de Rousseau analisados serão: o Discurso sobre a Desigualdade;

e os textos que comporiam as Instituições Políticas: Contrato Social, Princípios do direito da

guerra e o segundo capítulo do Manuscrito de Genebra intitulado Da sociedade geral do

gênero humano. A hipótese aqui levantada é que o projeto das Instituições Políticas - apesar

de se preocupar com os princípios de legitimidade e justiça - se concretizado, traria

elementos que colocariam Rousseau como um escritor mais próximo do realismo político do

que a tradição e os manuais de filosofia supõem. Sobretudo a segunda parte da obra, que

trataria da política externa.

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2 ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL

Em meados de 1743, o jovem Rousseau, depois de dura viagem alongada por duas

semanas de quarentena forçada ocasionada por uma epidemia de peste, desembarca em

Veneza, a pedido do Conde de Montaigu, para assumir um cargo que traria consequências

decisivas ao desenvolvimento de seu pensamento político: o de secretário da embaixada

francesa. A fama como pensador político estava por ser construída. Até aquele momento,

Rousseau era conhecido apenas como músico talentoso na cena cultural parisiense5. A

atividade na chancelaria lhe permitia observar a política externa e seus meandros na Europa

do Século XVIII. O trato com os assuntos de Estado o fez perceber como leis frágeis e um

sistema facilmente corrompível colocavam em risco a ordem social. Tudo se ligava

irremediavelmente à política. A percepção de tal fato certamente impactou o irrequieto

Rousseau, despertando um interesse crescente e genuíno pelo tema, que culminaria, anos mais

tarde, no célebre episódio da “iluminação de Vincennes” desencadeado a partir da leitura, no

Mercure de France, da famosa questão proposta pela academia de Dijon por ocasião do

concurso de 17506.

As primeiras impressões, colhidas no exercício da função, levaram-no a uma

importante asserção, que serviria de base, mais tarde, para o desenvolvimento de seus escritos

políticos, conforme relatado nas Confissões:

Desde então, minhas vistas se estenderam muito para o estudo histórico da

moral. Vi que tudo se prendia radicalmente à política, e que, de qualquer

modo que se procedesse, nenhum povo seria nunca senão o que a natureza do seu governo quisera que ele fosse. De forma que essa grande questão do

melhor governo possível parecia-me que se reduzia a isto: ‘Qual é a espécie

de governo próprio a formar o povo mais virtuoso, mais esclarecido, mais

sábio, o melhor, em suma, tomando a palavra no seu maior sentido?’ Eu supunha que essa questão se aproximava muito desta outra, se por acaso

fosse realmente diferente: ‘Qual é o governo que, por sua natureza, se

5 A primeira incursão de Rousseau como escritor político foi no Projeto para a educação de M. Saint-Marie, um

pequeno escrito precursor do Emílio onde ele recomendaria a leitura de Grotius e Pufendorf a seus discípulos

afirmando que “é digno de um homem conhecer os princípios do bem e do mal, e os princípios sobre os quais se

estabeleceu a sociedade de que participa.” (ROUSSEAU, O.C. V.II, p. 51) 6 A referida questão é a seguinte: “Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou apurar os

costumes”. Vencida por Rousseau com o “Discurso sobre as ciências e as artes”. Onde ele defende a tese de que

o progresso moral não caminha na mesma direção do progresso científico e artístico.

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mantém sempre mais próximo da lei?’ E daí, ‘qual é a lei’, e uma cadeia de

questões da mesma importância. (ROUSSEAU, 1959, v. II, p.202-203)

É partindo do estudo da moral, ou do estudo dos princípios das paixões7, que Rousseau

pretende apontar os vícios da sociedade constituída e propor uma nova forma de associação

legítima cujos princípios devem ser buscados não nos fatos históricos, mas, sobretudo, na

natureza humana. A questão do melhor governo possível e não de um governo ideal, já de

saída, aponta para um tema controverso em Rousseau: afinal, sua teoria política se encaixaria

na corrente dos escritores ditos utópicos, idealistas, ou há traços em seu pensamento que nos

permitiriam inseri-lo no círculo de autores mais próximos do realismo político? Rousseau

certamente não era um entusiasta da história, ou dos “fatos”, como modelo para a construção

de uma sociedade justa, bem como para a confecção de leis, mas não a descartava

inteiramente. Se ela, a história, não podia ser usada para legitimar as sociedades, para compor

leis, ao menos servia como poderosa ferramenta de crítica social, de importante fonte de

pesquisa para fundamentar os perigos da artificialidade em face do natural. E mais uma vez o

homem é o personagem central e ponto de partida para os desdobramentos de seu

pensamento. Para cada ideia que um autor tinha da natureza humana, necessariamente adviria

uma sociedade com seus governos e leis correspondentes.

O projeto das Instituições Políticas, portanto, deveria iniciar-se pelo Homem, pela

“antropologia8”, mais de perto, por uma investigação da natureza humana, pois é ela que

fornecerá subsídios para fundar, a partir de uma teoria crítica da sociedade, as bases para a

formação de uma sociedade legítima e de Estados convenientemente constituídos. Pois bem,

em 1754, surge um dos mais importantes “estudos históricos da moral” do séc. XVIII, o

Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Nesse ensaio,

que obteve o segundo lugar no concurso de 1753 da Academia de Dijon, Rousseau retoma sua

7 “Pour suivre avec fruit l'histoire du genre humain, pour bien juger de la formation des peuples et de leurs

révolutions, il faut remonter aux principes des passions des hommes, aux causes générales qui les font agir.

Alors, en appliquant ces principes et ces causes aux diverses circonstances où ces peuples se sont trouvés, on saura la raison de ce qu'ils ont fait, et l'on saura même ce qu'ils ont dû faire dans les occasions où les événements

nous sont moins connus que les situations qui les ont précédés.

Sans ces recherches, l'histoire n'est d'aucune utilité pour nous, et la connaissance des faits dépourvue de celle de

leurs causes ne sert qu'à surcharger la mémoire, sans instruction pour l'expérience et sans plaisir pour la raison.”

(ROUSSEAU, OC, III, p. 529) 8 Autores, como Rolf Kuntz, utilizam o termo “etnografia”. Ver: KUNTZ, Rolf. Fundamentos da teoria política

de Rousseau. São Paulo: Barcarolla, 2012. Claude Lévi-Strauss que aponta Rousseau como o precursor da

antropologia em “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem” publicada na coletânea:

Antropologia Estrutural Dois. Tradução de Sonia Wolosker. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

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crítica à sociedade civil, iniciada no Discurso sobre as ciências e as artes, a partir da premissa

de que a desigualdade, e não as ciências e as artes, era a principal responsável pela decadência

moral do homem e consequentemente, da sociedade. Sociedade institucionalizada por um

pacto, segundo ele, enganador. Arquitetado pelos ricos para ludibriar os mais pobres, que,

seduzidos por uma falsa promessa de segurança e justiça social, ingressam no mundo

civilizado, não sabendo que estavam, na verdade, entregando-se à servidão. A saída proposta

por Rousseau para superar tal realidade é a formação de um novo pacto. Assim, o Segundo

Discurso prepara o terreno para a obra responsável por alçar Rousseau ao patamar dos

grandes escritores políticos da modernidade e que faria parte das Instituições Políticas: o

Contrato Social.

Desta forma, no capítulo a seguir, investigaremos, sobretudo à luz do Segundo

Discurso, as noções de “estado de natureza puro” e “estado de natureza histórico”, mostrando

como Rousseau dá forma e distingue a ideia de homem natural, homem em estado de natureza

ou selvagem, e homem civilizado, por meio da descoberta dos quatro atributos naturais:

liberdade, perfectibilidade, piedade ou pitié e amor-de-si. O percurso até a civilização tem

início com a caracterização do homem metafísico, importante para compreendermos o homem

primitivo solitário, que, sobretudo por forças externas, é levado a socializar-se. Ao mesmo

tempo em que tal socialização tira-o de uma existência puramente animal, elevando-o à vida

moral, desenvolvendo “suas mais nobres faculdades”, o transporta de uma realidade simples e

“pura” para uma outra complexa, repleta de novas necessidades, geradora de vícios terríveis e

de uma realidade que nenhuma espécie deseja viver, o estado de guerra.

Pois bem, no prefácio ao Segundo Discurso, Rousseau indaga: “Quais as experiências

necessárias para chegar-se a conhecer o homem natural e quais os meios para fazer tais

experiências no seio da sociedade?” (ROUSSEAU, 1973a, p.236). Tal questão é formulada

com o objetivo de tentar encaminhar, a princípio, a resolução de um problema que, segundo o

genebrino, causava discordância entre os mais diversos autores que se debruçaram sobre o

espinhoso tema, a saber: a definição de direito natural. O caminho a percorrer passaria por

uma criteriosa investigação do homem natural tencionando atingir um ponto em comum sobre

a questão, “pois, como diz o Sr. Burlamaqui, a ideia do direito e, mais ainda, a do direito

natural, são evidentemente ideias relativas à natureza do homem. É, pois, dessa mesma

natureza – continua ele – de sua constituição e de seu estado, que se devem deduzir os

princípios de sua ciência.” (ROUSSEAU, 1973a, p.236) E conclui afirmando que, “enquanto

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17

não conhecermos o homem natural, em vão desejaremos determinar a lei que ele recebeu ou

aquela que melhor convém à sua constituição” (ROUSSEAU, 1973a, p.236). Portanto, é a

partir do estudo do Direito Natural que Rousseau inicia sua jornada rumo ao homem natural.

Estabelecendo que suas raízes devem ser buscadas numa época anterior à sociedade civil,

anterior a convenções, a leis artificiais, num período longínquo chamado “estado de

natureza”.

Citanto Pufendorf, Derathé aponta que há duas maneiras de conceber o estado de

natureza, ambas interpretações diferentes acerca da condição de isolamento do homem. A

primeira vê tal situação do ponto de vista afetivo, sensível, pintando um quadro negativo,

melancólico, como vemos nessa passagem:

Oposto à vida civilizada, o estado de natureza é aquele no qual viveria um homem isolado e separado de seus semelhantes. “O estado de natureza,

escreve Pufendorf, é a triste condição à qual concebemos que o homem, feito

tal como é, estaria reduzido se fosse abandonado a si mesmo ao nascer e se estivesse totalmente privado do auxílio de seus semelhantes. Nesse sentido,

o estado de natureza é assim denominado em oposição a uma vida civilizada

e que se tornará cômoda com a indústria e o comércio entre os homens.” (DERATHÉ, 2009, p. 193-194)

A segunda vê o isolamento do ponto de vista moral, político, como um estado de

independência, não de abandono:

Pode-se também – e essa é a maneira mais comum de concebê-lo, a única aliás que importa do ponto de vista político – opor o estado de natureza ao

estado civil, isto é, à sociedade civil. “O estado de natureza, nesse último

sentido, diz ainda Pufendorf, é aquele que concebemos os homens sem nenhuma outra relação moral daquela que está fundada sobre essa ligação

simples e universal que resulta da semelhança de sua natureza,

independentemente de qualquer convenção e de qualquer ato humano que os

tenha sujeitado uns aos outros. Desse ponto de vista, aqueles que consideramos viver respectivamente no estado de natureza são os que nem

estão submetidos ao império um do outro nem são dependentes de um

senhor comum, e que não receberam uns dos outros nem bem nem mal. Assim, o estado de natureza, opõe-se, nesse sentido, ao estado civil”.

(DERATHÉ, 2009, p. 194)

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18

Em suma, o estado de natureza é um artifício teórico9 que tem por objetivo expor uma

condição hipotética pré-social, ou, “a moral”, anterior e, para Rousseau, oposta ao estado

civil, em que o homem vivia sem nenhum tipo de ordenamento jurídico que regulasse suas

ações, numa situação em que cada indivíduo seguia sua própria lei ao sabor das paixões.

No Segundo Discurso Rousseau entende tal estado como “um estado que não mais

existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se

tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado

presente10” (ROUSSEAU, 1973a, p.234). E justifica sua utilização como recurso teórico11

afirmando que “todos os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram

necessidade de remontar ao estado de natureza” (ROUSSEAU, 1973a, p.241), como, por

exemplo, Hobbes:

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais

forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando

se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não

é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como

ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para

matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com os outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (HOBBES, 1979, p.

74)

9 Nem todos os escritores políticos da época acreditavam que o estado de natureza era somente pura ficção.

Locke, no Gouvernement civil, Cap. II, § 14, (LOCKE, 1978, p. 390 – na edição dos Pensadores) apontava que

não só tal estado existiu como podia ser observado em sua própria época, por exemplo, nos índios da América.

Sobre isso, Vaugham escreve: “No doubt, most, if not all, of those who professed to speak of the state of nature

as a pure hypothesis were at least half inclined to believe that it was also a historical reality. The man who begins

by treating the problem of political philosophy as, in the first instance, a question of origins has, in fact, virtually

committed himself to this solution of it, and to none other. For to talk of the ‘origin on civil society’ is, strictly

speaking, to imply that is sprang from a state of things which was a not ‘civil’; and that is the very definition of

the ‘state of nature’.” (VAUGHAN, 1960, p. 28) 10 Segundo Leo Strauss, “Rousseau estava perfeitamente ciente das implicações anti-bíblicas da concepção do

estado de natureza. Por essa razão, apresentou originalmente a sua exposição do estado de natureza como sendo inteiramente hipotética; a ideia de que o estado de natureza ocorreu em tempos real contradiz o ensinamento

bíblico que todo filósofo cristão é obrigado a aceitar. Mas o ensinamento do Segundo Discurso não é de um

cristão; trata-se de um homem que se dirige ao gênero humano” (STRAUSS, 2009, p. 227) 11 Vaughan, na citação a seguir, especula sobre a importância “metodológica” do estado de natureza, criticando,

sem citar nomes, os “puristas” que ridicularizavam a inserção conceitual dos contratualistas de um estágio da

evolução que não encontra vestígios na história: “The idea of a state of nature has been a source of much

merriment to historical rigorists. But much of their ridicule has been strangely beside the mark. The assumption

that a state of nature – that is, a state without either settled society or government – ever existed has, of course,

no historical foundation. It cannot be disproved; but neither can it be proved.” (VAUGHAN, 1960, p.25-26)

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19

Nessa passagem podemos observar o caminho adotado por Hobbes. Percebemos isso

sobretudo pelos termos: “matar o mais forte”, “secreta maquinação” e “ameaçados pelo

mesmo perigo”. Mas a que perigo comum o inglês faz referência? A saber: o constante temor

da morte violenta. Este medo da morte violenta, segundo o autor, persegue o homem durante

todo o estágio primitivo. O princípio da autoconservação, primeira regra do direito natural, é

ameaçado continuamente por uma natureza humana que infunde nos indivíduos sentimentos

de competição, desconfiança e desejo por glória. “A primeira leva os homens a atacar os

outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação”, diz ele.

(HOBBES, 1979, p.75). É o que Vaughan chama de a teoria do medo, que faz com que os

homens submetam-se ao poder absoluto de um “único homem ou de uma assembleia de

homens”12. Assim, Hobbes apresenta o Estado de Natureza de forma negativa, onde vive-se

numa condição precária, levando uma vida “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.”

(HOBBES, 1979, p.76) Rousseau concorda com a necessidade de se voltar a um estado

anterior à sociedade civil. Admitindo “sem discussão que para estabelecer o direito natural é

preciso regressar ao estado de natureza” (STRAUSS, 2009, p. 227), mas se afasta em relação

ao caráter do homem pintado pelo inglês, como veremos a seguir.

2.1 - O HOMEM NATURAL

A descrição do homem natural ou “metafísico”13 é uma estratégia utilizada por

Rousseau com o objetivo de fundamentar uma importante asserção que irá permear todo o seu

pensamento, trazendo implicações importantes no decorrer de toda sua teoria política: o

homem é naturalmente “bom” e foi corrompido14! É a partir desse enunciado que Rousseau

instaura e viabiliza sua crítica acerca da origem da desigualdade, responsável pelo mal-estar

na ordem social. Desigualdade, segundo Garcia, “produzida e agravada, gradualmente, ao

longo de um tempo cuja origem só é alcançada pelo recurso à imaginação. Por isso, a crítica

à condição do homem que ‘nasceu livre e em todos os lugares se encontra escravizado’ deve

12 Cf. “It is manifestly, as the author himself never wearies of insisting, a theory of fear: an argument which,

from foundation to coping-stone, is built upon terror of the sword. it is the terror of promiscuous rapine and

slaughter which in the first instance impels men to submit themselves to the power of “one man, or one assembly

of men”. (VAUGHAN, 1960, p. 27) Ver também HOBBES, Leviatã, Cap. XIV, XV, XVIII. 13 Na verdade não existe o “homem metafísico”. O que Rousseau faz no Segundo Discurso é descrever o homem

natural do ponto de vista metafísico, assim como descreveu do ponto de vista físico. 14 Em algumas passagens, Rousseau aponta que antes do estabelecimento da moral, o homem não poderia ser

nem bom nem mau. Isso dependeria do rumo que este daria à sua perfectibilidade.

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20

dispor de uma metáfora que não pode ser deduzida do exame das relações reais” (GARCIA,

2004, p.68).

Esta “metáfora” é justamente uma investigação especulativa e necessária com o

objetivo de traçar um conhecimento da constituição metafísica do homem. Tal

empreendimento, (separar o que há de natural e de artificial no homem), conforme Rousseau

afirma, não é nada “trivial”15, mas necessário para que se possa julgar o estado presente de

corrupção percebida nos homens e nas sociedades.

Para tanto, faz-se necessário recorrer ao conhecimento do próprio homem naquilo que

ele possui de essencial, a fim de estabelecer a origem da desigualdade. Mas eis que se

apresenta o problema:

Como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar a conhecer a eles mesmos?16 E como o homem chegará ao ponto de ver-se

tal como o formou a natureza, através de todas as mudanças produzidas na

sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas, e separar o

que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primitivo ou nele mudaram?

(ROUSSEAU, 1979a, p. 233).

O estudo do homem original, de suas verdadeiras necessidades e dos

princípios fundamentais de seus deveres, representa ainda o único meio que

se pode empregar para afastar essa multidão de dificuldades que se

apresentam sobre a origem da desigualdade moral, sobre os verdadeiros fundamentos do corpo político, sobre os direitos recíprocos de seus membros

e sobre inúmeras questões semelhantes, tão importantes quanto mal

esclarecidas (ROUSSEAU, 1979a, p. 237).

Assim, o autor determina que o tema da desigualdade, responsável direto pela

corrupção do homem e da sociedade, gerador de uma série de vícios e forte mal-estar na vida

em sociedade, deve ser abordado em relação à constituição original do homem e, a partir desta

constituição, estabelecer as distinções entre o homem natural (original ou metafísico), homem

em estado de natureza e homem civilizado.

15 Cf.: ROUSSEAU, 1973a, p.234. 16 A resposta que Rousseau dará a esta questão inaugurará, indiretamente, conforme Levi-Strauss, a própria ideia

das ciências do homem ou da moderna antropologia. Segundo Rousseau, para bem julgar as relações sociais e os

caminhos ou descaminhos da humanidade, é necessário antes conhecer o que é próprio do homem segundo ele

mesmo.

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21

Penetrando profundamente na questão, Rousseau propõe uma oposição conceitual

radical entre estado de natureza e estado civilizado com o objetivo de “despojar o homem

primitivo de tudo que faz um homem, de tal maneira que este estado de natureza aparece, por

vezes, como estando no limiar de uma desnaturação” (BÉNICHOU , 1984, p. 4). Assim, é

preciso ignorar o ser que temos diante dos olhos e desviar o olhar para si, a fim de pôr de lado

tudo o que nos é exterior, artificial. Nesse sentido, Paul Bénichou diz que “ele [Rousseau]

temia, ao traçar o retrato do homem primitivo, que qualquer sinal de inteligência, de

sociabilidade ou de moralidade, que a menor complexidade de sentimento ou de conduta

sugerisse os atributos de uma vida civilizada que deveria ser rigorosamente oposta à deste ser

primitivo”. (BÉNICHOU, 1984, p. 5) E completa afirmando que uma tal continuidade teria

apagado o anátema que deve, a seus olhos, separar nosso estado presente de nossas origens

Portanto, ao discorrer sobre este estado é preciso ter cuidado para não “contaminá-lo” com

observações de nosso estágio atual. O erro de Hobbes, segundo Rousseau, foi o de atribuir

qualidades dos homens de sua época ao homem no estado de natureza17. Ao pintar o homem

natural, estava na verdade pintando o homem civilizado. Logo, é mais prudente “afastar todos

os fatos18. (...) Não se devem considerar estas pesquisas (...) como verdades históricas, mas

somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza

das coisas do que a mostrar a verdadeira origem.” (ROUSSEAU, 1973a, p.242).

A preocupação em não “contaminar” as descrições do homem original com

observações sobre o estado atual reside no fato deste não oferecer nenhum conhecimento

estável da natureza humana, como podemos ver nesse longo excerto:

17 Logo no início do Segundo Discurso Rousseau faz uma crítica aos “filósofos que examinaram os fundamentos

da sociedade, dizendo que sentiram todos a necessidade de voltar até o estado de natureza, mas nenhum deles

chegou até lá,” pois, “todos falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho,

transportaram para o estado de natureza ideias que tinham adquirido em sociedade: falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil”. (ROUSSEAU: 1973a, p. 241-242.) 18 A descrição do estado de natureza histórico não deve ser buscada nos fatos, pois eles não oferecem dados

suficientes. A história não nos fornece provas razoáveis de como o homem agia em tal período, muito menos na

época de Rousseau, por isso ele vai buscar no raciocínio hipotético fundamentos para desenvolver, de forma

lógica e linear tal estado. No que se refere ao estado de natureza puro, sua existência é atemporal, não pode ser

“periodicizada”, pois, refere-se a atributos inerentes ao homem em qualquer época. Portanto, este estado de

natureza puro é constitutivo, e, mesmo no homem civilizado, persiste, ainda que de forma tímida, sufocado pelos

infortúnios da vida em sociedade. Sobre o papel da história ver: SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e

História: O pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

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22

Considerando a sociedade humana de modo calmo e desinteressado, a

princípio ela só parece mostrar a violência dos homens poderosos e a

opressão dos fracos; o espírito se revolta contra a dureza de uns ou é levado a deplorar a cegueira de outros e – como nada é menos estável entre os

homens do que essas relações exteriores produzidas mais frequentemente

pelo acaso do que pela sabedoria, e que chamam de fraqueza ou poder,

riqueza ou pobreza, os estabelecimentos humanos parecem, à primeira vista, fundamentados em montões de areia movediça. Só quando os examinamos

de perto, só quando removemos o pó e a areia que cobrem o edifício,

percebemos a sólida base sobre a qual se ergue e se aprende a respeitar os seus fundamentos. Ora, sem o estudo sério do homem, de suas faculdades

naturais e de seus desenvolvimentos sucessivos, jamais se chegará a fazer

essas distinções, e no estado atual das coisas, separar o que a vontade divina

fez daquilo que a arte humana pretendeu fazer. (ROUSSEAU, 1973a, p. 237)

Alcançado o homem em sua totalidade, Rousseau percebe que há uma parte inata,

pertencente a seu fundo natural, e outra adquirida, produzida no decorrer de sua evolução e

em consequência dela. Descartando tudo que foi adquirido ao longo de sua caminhada

histórica, o genebrino pretende chegar às “primeiras e mais simples operações da alma

humana” (ROUSSEAU, 1973a, 236), impulsos primordiais, móveis que determinam as ações

mais urgentes e indispensáveis à sobrevivência, e características constitutivas que o

diferenciam da natureza que o cerca. Seguindo esse método, Rousseau chega ao homem

natural caracterizado por quatro atributos básicos: amor de si e piedade, que impulsionam a

ação e estão ligados aos instintos básicos de sobrevivência e comiseração - impulsos

instintivos, determinados a suprir as necessidades mais urgentes; liberdade e perfectibilidade,

características próprias do homem enquanto ser autônomo e realizador, que o separa da

natureza e o coloca como agente ativo e transformador.

2.1.1– Liberdade natural: reflexão e escolha

Todo animal tem ideias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar

suas ideias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade (ROUSSEAU, 1973a, p. 249).

Tradicionalmente, por influência, sobretudo, de Aristóteles, a racionalidade é posta

como a característica principal que distingue o homem dos animais. Contrariando essa linha

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de pensamento, e a despeito também dos ideais Iluministas de sua época, Rousseau aponta

que a razão não é inata ao homem e sim resultado de um processo lento e gradual19. O

desenvolvimento das faculdades e dos processos mentais a que chegamos hoje foi se

desenrolando passo a passo a partir de estímulos proporcionados pelo ambiente e transmitidos

pelos sentidos. O homem não nasceu racional. Tornou-se racional20. Com efeito, a

racionalidade não é constitutiva, portanto não pode defini-lo a priori. O que pode definir o

homem como uma espécie diferenciada é a liberdade. A liberdade é o atributo humano por

excelência. Não necessita de reconhecimento exterior nem de um conhecimento racional. Não

exige nenhum esforço para ser efetivada, somente o cuidado para não perdê-la. O animal não

é um ser livre, pois está submetido a um mecanismo fixo determinado pela natureza: o

instinto; (FORTES, 1996, p. 55) já o homem, mesmo inserido na natureza e submetido ao

mesmo mecanismo, livre, concorre com ela:

A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é

sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de

sua alma (ROUSSEAU, 1973a, p. 249).

A natureza prescreve regras a todo animal, o homem é o único que pode escolher não

segui-las. Assim que toma consciência da sua liberdade, a relação com o meio é alterada,

passando de mero animal sujeito à fixidez da natureza a agente transformador. Nessa nova

realidade, uma gama de possibilidades se descortina à sua frente. Agora ele vê-se obrigado a

fazer escolhas e a arcar pessoalmente com as consequências. Enquanto homem primitivo, tais

escolhas são simples e determinadas por necessidades igualmente frugais: Alimentação, sexo,

lugar seguro para repousar. As opções não são sofisticadas e as consequências dificilmente

causam interferência na autonomia do outro.

19 Bernard Groethuysen vai mais longe. Sobre o papel da razão na ação humana ele escreve: “A razão humana é

criadora. É ela que transforma a vida e indica ao homem o caminho que deve seguir. Ilusão, dirá Rousseau.

Apenas a natureza do homem pode deixar-nos saber para que fim fomos criados.” (GROETHUYSEN, 1985, p.

52) [tradução minha]. 20 Cf. “De todas as faculdades do homem, a razão, que não é, por assim dizer, senão um composto de todas as

outras, é a que se desenvolve com mais dificuldade e mais tardiamente.” (ROUSSEAU,2004, p. 89-90).

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24

Quando Rousseau ousou quase afirmar21 que o “homem que medita é um animal

corrompido”22 deveria estar referindo-se justamente ao mau uso da liberdade enquanto

possibilidade de fazer escolhas. Fazer escolhas requer o uso de um instrumento indispensável

à razão: a reflexão. Assim, a reflexão nasce justamente do exercício da liberdade no âmbito

deliberativo. O agir livre23, no entanto, “é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que

revela nossa superioridade e espiritualidade, é o princípio de nossos desregramentos” aponta

Salinas Fortes (FORTES,1996, p. 55).

E Rousseau é categórico ao afirmar que o mal é fruto de ações puramente humanas,

isentando a providência divina de qualquer responsabilidade. Ele adverte: “Homem, não mais

procures o autor do mal; esse autor é tu mesmo. Não existe outro mal além do que fazes ou do

que sofres, e ambos vem de ti.”24. (ROUSSEAU, 2004, p. 398) E sentencia: “é o abuso de

nossas faculdades que nos torna infelizes e maus” (ROUSSEAU, 2004, p.397). Ou seja, não

são as faculdades as responsáveis pelo mal, nem mesmo o mero uso que fazemos delas. O que

nos torna infelizes e maus é o abuso dessas faculdades. Segundo Costa, duas consequências

podem ser extraídas dessa passagem:

21 A passagem na íntegra é: “A maioria de nossos males resultam da nossa própria atuação, e que poderíamos

evitar quase todos conservando a maneira simples, uniforme e solitária, que nos foi prescrita pela natureza. Se

ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase afirmar que o estado de reflexão é contrário à natureza e que o

homem que medita é um animal corrompido” (ROUSSEAU. Discurso sobre a desigualdade: 1973a, p. 247).

Algumas traduções usam o termo “depravado” em lugar de “corrompido”. Depravado, em nossa língua, tem uma

conotação mais sexual, podendo levar a erros de imprecisão, por isso julgamos melhor usar “corrompido”. 22 Rousseau é um escritor de frases fortes e por esse motivo, corre-se o risco de interpretá-lo de maneira

simplista. Por causa dessa frase, ele foi acusado de antirracionalista. De promover a ignorância (na Carta a

Philipolis, Rousseau comenta sobre isso). Para entender melhor sua intenção é preciso ter em mente a separação

entre o que é natural do que é artificial no homem. Como a reflexão é produto da artificialidade, podemos

entender a frase: o homem que medita é um animal corrompido como: o homem que pensa é um animal afastado

de sua natureza originária, pois o pensamento racional ou reflexivo é uma construção histórica e não um atributo

natural. E é justamente esse afastamento que o leva à corrupção. 23 O tema da liberdade é central e muito controverso nos escritos políticos de Rousseau, ele foi interpretado e

criticado de diversas formas. Isaiah Berlin, por exemplo, escreve: “Para Rousseau, a ideia em si mesma de se

fazer concessões à liberdade, de se dizer <<Bem, não podemos ter liberdade total porque isso nos conduziria à

anarquia e ao caos; não podemos ter autoridade absoluta, porque isso conduziria à subjugação total dos indivíduos, ao despotismo e à tirania; temos, por conseguinte, de traçar a linha algures entre elas, de chegar a um

compromisso>> - este tipo de raciocínio é totalmente inaceitável. A liberdade é para ele um valor absoluto.

Encara a liberdade como uma espécie de conceito religioso. Para si, a liberdade é inerente ao próprio ser

humano. Afirmar que um homem é um homem e afirmar que ele é livre é praticamente a mesma coisa.”

(BERLIN, 2005, p. 54) 24 A ideia de liberdade é melhor trabalhada na metafísica da Profissão de fé do vigário saboiano, contida no livro

IV do Emílio. Lá Rousseau, a partir da evidenciação dos três artigos de fé, demonstra a relação entre vontade e

liberdade. Rolf Kuntz, nos Fundamentos da teoria política de Rousseau, dedica um tópico a esse tema para

demonstrar a relação entre a metafísica e a política. (KUNTZ, 2012, p.48-68)

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(I) Rousseau não autoriza qualquer investigação sobre a origem do mal no

território da existência das faculdades humanas elas mesmas e desloca essa

busca para o território do emprego que o homem faz delas; (II) na abordagem do emprego que o homem faz de suas faculdades, não devemos

pressupor qualquer necessidade imperiosa de que ele as use mal. Rousseau

deixa em aberto a possibilidade de que o homem pudesse ter feito um bom

uso de suas faculdades: a origem do mal é um acontecimento contingente e não necessário. (COSTA, 2005, 14)

Essa visão na qual o bem e mal não estão necessariamente nas coisas em si, mas

sobretudo no uso que fazemos dessas coisas, remete à noção de moralidade Estóica, escola

latina muito apreciada por Rousseau25, mas que nos ajudará a entender, mais à frente, o

caráter amoral do homem selvagem, importante, sobretudo, na compreensão da crítica

empreendida pelo genebrino ao homem no estado de natureza hobbesiano. Pois bem, essa

intricada relação entre liberdade, moralidade, maldade e bondade nos leva a outro conceito

central no pensamento de Rousseau: a perfectibilidade.

2.1.2 – Perfectibilidade: “a gênese do mal”

faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias,

desenvolve sucessivamente todas as outras, e se encontra, entre nós, tanto na

espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns

meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares (ROUSSEAU,1973a, p.

249).

Além da liberdade, há ainda outro atributo que, de uma vez por todas, diferencia o

homem do animal. Trata-se da perfectibilidade. Segundo Becker, “a perfectibilidade não

possui um sentido definido. É por isso que seu desenvolvimento pode ocorrer para o bem ou

para o mal, e, nesse sentido, acarretar um verdadeiro progresso ou uma exasperação da

corrupção do homem, no momento em que este empreende o processo de sociabilidade”

(BECKER, 2008, p. 185). Ao iniciar tal mudança a perfectibilidade entra em cena para pôr em

execução o processo de adaptação do homem à nova situação. Nesta esteira, a liberdade se faz

25 Que chegou a traduzir um texto de Sêneca chamado Apocolokintosis, conforme afirmação de Jean Starobinski

(O.C., t. V. p. CCC).

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26

mais presente, oferecendo instrumentos que possibilitem ao homem escolher qual rumo dará à

nova vida.

Essa faculdade de aperfeiçoar-se é quase ilimitada e é por ela que as outras faculdades

se desenvolvem. Está ligada à necessidade de adaptação e, nesse processo, o homem acaba

desenvolvendo uma segunda natureza para si, distanciando-se da primeira, original. Como

aponta Cassirer, “os seres humanos não permanecem para sempre em seu estado primitivo,

mas ambicionam superá-lo; não se satisfazem com a extensão e o tipo de existência que

receberam de imediato da natureza, e não desistem antes de terem criado e construído uma

nova forma própria de existência” (CASSIRER, 1997, p.100). Assim, o homem, insatisfeito

com sua situação, lança-se num caminho sem fim ao renunciar à tutela da natureza e colocar-

se à mercê do progresso. Para Rousseau, aqui tem início o mal-estar que irá acompanhar o

homem durante os tempos26. Ele confessa, aborrecido, que “seria triste, para nós, vermo-nos

forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e ilimitada, a fonte de todos os males do

homem; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias

tranquilos e inocentes;” E finaliza: “que seja ela que, fazendo com que através dos séculos

desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si

mesmo e da natureza” (ROUSSEAU, 1973a, p.249). Assim, conclui Cassirer, a

perfectibilidade “enredou o homem em todos os males da sociedade e levou-o à desigualdade

e à servidão. Mas ela, e apenas ela é capaz de tornar-se para ele um guia no labirinto no qual

ele se perdeu” (CASSIRER, 1997, p.101).

A afirmação de Cassirer faz eco ao pessimismo de Rousseau. Sua decepção com o

gênero humano tinha motivo. O homem, livre e empreendedor, poderia usar a perfectibilidade

para manter e aperfeiçoar o estado de bem-estar em que se encontrava, no entanto distanciou-

se desse estado tomando o caminho oposto em direção a uma civilização corrompida,

26 “La perfectibilité ouvre la perspective d’une effroyable genèse: celle de la méchanceté. Ainsi, le progrés des

choses et la perfectibilité humaine enferment la loi de développement de l’inegalité, première source du mal,

qu’entérinent et reforcent les lois positives des États fondés sur um contrat illégitime. Cependant, l’état social une fois advenu, tout réinsertion de l’homme dans la nature primitive est exclue, tout modéle extra-social de la

société est inadéquat. Le terme de nature renvoi toujours chez Rousseau à l’isolement de l’homme au sein de

l'espèce ou de solitude dans la société. La nature joue le rôle d’un príncipe, d’un fondement de droit pour um

jugement sur la société existente. L’État de nature, atopique et achronique, n’est que pensable, il sert à montrer la

contingence du monde social et historique; il est le lieu hypothétique qui permet au philosophe le recul

nécessaire à la critique de l’etat civil, l’isolement est la conjecture qui permet de mesurer la dépravation actuelle

propre à l’homme vivant em société. La nature ne designe pas seulement um état primitif ou essentiel mais aussi

les qualités de l’homme virtuel dans l'état de nature, qui sont mis au point pour l'ordre social: en ce sens, la

sociabilité elle-même est naturel.” (VERNES, 1974, p. 39-40)

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27

geradora de mal-estar, em que nossas paixões naturais são pervertidas e redirecionadas, onde

o amor de si se transforma em amor próprio, como veremos a seguir.

2.1.3 – Amor de si versus amor próprio e a ideia de propriedade

A fonte de todas as paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a

única que nasce com o homem e nunca o abandona enquanto ele vive é o

amor de si; paixão primitiva, inata, anterior a todas as outras e de que todas as outras não passam, em certo sentido, de modificações (ROUSSEAU, 204,

p.288).

O amor de si - segundo Rousseau, única paixão inata do homem - tem como função

principal garantir sua sobrevivência. Leva-o a agir tendo como parâmetro resguardar a si

mesmo. Tal ação, no estado de natureza, é impulsionada, estritamente, pelo princípio da auto

conservação; já no homem civilizado, é impulsionada pelo apreço ao bem estar27, e pelo

desejo de preferência. A garantia da sobrevivência, portanto, é a primeira exigência que a

natureza impõe:

O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; seu primeiro

cuidado foi o de sua conservação. Os produtos da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto levou a utilizar-se deles. Como a fome e

outros apetites lhe faziam experimentar sucessivamente diversas maneiras de

existir, houve uma que o convidou a perpetuar sua espécie; e essa inclinação

cega, desprovida de todo sentimento de coração, não era senão um ato puramente animal (ROUSSEAU, 1973a, p 266).

Nessa passagem, Rousseau aponta as principais necessidades do homem em estado de

natureza, às quais ele chama de necessidades originárias: Alimento, sexo e descanso. Ou seja:

comida para sua sobrevivência; sexo para perpetuar a espécie e lugar seguro para dormir.

Nesse “período da evolução”, o homem é independente, mesmo quanto ao sexo, pois, em

relação a isso, Rousseau vai dizer que esse é um sentimento puramente físico, sem nenhum

27 Na verdade, toda ação, em algum grau, deriva desse princípio, o da auto conservação, porém, com o advento

da vida em sociedade, essa causa primária fica em segundo plano, o que vale é o bem estar determinado pelas

novas necessidades advindas da vida civil, buscado, muitas vezes, sob quaisquer meios.

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vínculo afetivo, que, “uma vez satisfeito, leva novamente cada qual para seu lado e restitui o

isolamento anterior. É só com o desenvolvimento dos vínculos sociais que esse sentimento,

refinado, será acompanhado de preferência e exclusividade e estará na origem de um vínculo

constante. Mas é também somente com a passagem para a sociedade que ele adquirirá uma

extraordinária intensidade, constituindo-se também na ocasião para tensões e conflitos

inteiramente ignorados até então” (FORTES, 1996, p.58). Essas tensões e conflitos são

justamente resultado de novas necessidades criadas pela vida em sociedade. E essas novas

necessidades demandam novas e complexas ações, muito mais difíceis de serem supridas

autonomamente. A necessidade de autoconservação, no homem primitivo, é suprida

facilmente, pois “os frutos são de todos e a terra não pertence a ninguém” (ROUSSEAU,

1973a, p.265). Tudo está à mão, e qualquer um pode se servir sem interferir na necessidade do

semelhante. Em sociedade, a propriedade extingue essa possibilidade, e nem todos têm acesso

fácil à sua sobrevivência, causando uma cisão violenta e fazendo nascer as classes pobre e

rico. É necessário dizer que o sentido de propriedade aqui explanado abarca não só o direito

de exclusividade sobre um lote de terra ou um determinado objeto, mas o direito de

“pertencer” a outra pessoa seja no casamento, em que o vínculo afetivo e as convenções

sociais “prendem” um ao outro, seja no trabalho, onde o empregado é explorado pelo patrão.

No que se refere ao descanso, para o homem primitivo um lugar seguro lhe bastava, pois seu

único receio era o de servir de alimento a um animal faminto. No homem civilizado, o

descanso engendra o luxo, e o luxo, a preguiça, e a preguiça torna o homem, outrora vigoroso,

um ser fraco e passivo, dependente. Essas comparações servem para pontuar que o amor de si

está ligado à bondade natural do homem. É importante compreender o funcionamento desse

atributo para não o confundirmos com a ideia de amor próprio. O amor de si é um tipo de

“mecanismo de sobrevivência” presente na natureza, nos seres em geral, para garantir a vida e

a perpetuação da espécie. Amar a si mesmo, nesse sentido, significa bastar-se a si mesmo,

sem prejuízo de outrem, nem reconhecimento externo. O amor próprio se dá no convívio,

pois necessita de interação social para florescer. Nessa convivência, o indivíduo submete-se à

exigência de ser aceito, reconhecido, admirado pelo outro ou pelo grupo ao qual pertence a

fim de satisfazer suas novas inclinações. O parecer ultrapassa o ser. As necessidades, outrora

supridas facilmente e de forma autônoma, transformam-se em ações dependentes,

“escravizantes”. Rousseau impõe, então, uma diferenciação entre amor de si e amor próprio,

como podemos ver nessa passagem do Emílio:

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29

O amor de si, que só a nós mesmos considera, fica contente quando nossas

verdadeiras necessidades são satisfeitas28, mas o amor-próprio, que se

compara, nunca está contente e nem poderia estar, pois esse sentimento, preferindo-nos aos outros, também exige que os outros prefiram-nos a eles, o

que é impossível (ROUSSEAU, 2004, p.289).

O autor já havia insistido sobre a distinção existente entre o amor de si e o amor

próprio na primeira parte do Segundo Discurso:

Não se deve confundir o amor-próprio com o amor de si mesmo. São duas

paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos.

O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado

pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio não passa de

um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer outro, que

inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que

constitui a verdadeira fonte da honra. (ROUSSEAU, 1973a, p. 313. nota [O])

Assim, o amor de si afasta o homem da autodestruição, ao passo que o amor próprio é

o que inspira os duelos, as guerras, o ciúme e todas as demais paixões odientas. Tais paixões

são consequência do processo civilizatório, não tinham lugar no estado de natureza, ainda

mais porque eram refreadas por outro sentimento inato do homem, a piedade natural.

Vejamos o que Rousseau tem a nos dizer sobre tal sentimento.

2.1.4 – Piedade natural (pitié)

Vimos no tópico anterior um atributo relacionado ao homem enquanto ser que,

tomando ciência de sua existência, sente-se naturalmente impulsionado - por um atributo inato

chamado amor de si - a manter-se vivo. Esse processo passa pela satisfação de necessidades

que não exigem nenhum tipo de vínculo social constante, portanto, nenhuma relação de

dependência, e, mais ainda, quase nenhum atrito.

28 Acerca disso, Sêneca nos diz: “Aquele que tem muito deseja ter mais, o que prova não ser suficiente o que já

possui. Aquele que possui o suficiente obteve o que o rico jamais poderá atingir, ou seja, o fim de seus desejos.”

(Cartas a Lucílio, carta CXIX)

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Agora trataremos de um atributo, complementar ao amor de si, o qual Rousseau

chama de pitié: piedade natural. É a partir dela que formamos os primeiros laços com nossos

semelhantes, e seu exercício concorre para a sociabilidade29, mas não a engendra

propriamente. Tal virtude se apresenta em todos os seres vivos: “um animal não passa sem

inquietação ao lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma

espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a

impressão que tem do horrível espetáculo que o impressiona” (ROUSSEAU, 1973a, p.259).

Com o homem acontece o mesmo. A angústia causada pelo sofrimento alheio desperta um

sentimento de comiseração que o faz ver o outro como semelhante, como ser de sua própria

espécie. Nesse movimento, o ser humano desloca o olhar para fora de si, colocando-se no

lugar do outro que agoniza. É nesta esteira que nascem os sentimentos de amizade,

generosidade, clemência. Vejamos o que Rousseau nos diz acerca da piedade natural:

a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua

de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão30, socorrer aqueles que vemos

sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da

virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança

fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com a dificuldade,

desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte; (...) Numa palavra, antes nesse sentimento natural do que nos argumentos sutis deve

procurar-se a causa da repugnância que todo homem experimentaria por agir

mal, mesmo independentemente das máximas da educação. (ROUSSEAU,

1973a, p. 260)

Essa paixão inata é tão forte que permanece ativa no homem mesmo sofrendo ataques

constantes da vida em sociedade, com seus vícios e costumes degradantes, como notamos a

seguir:

Tal o movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão; tal a força

da piedade natural que até os costumes mais depravados têm dificuldade em destruir, porquanto se vê todos os dias, em nossos espetáculos, emocionar-se

29 É importante não confundirmos o instinto de sociabilidade com a piedade natural. O primeiro necessita de

uma associação ativa com vistas a um objetivo “comum”. O segundo decorre simplesmente do impacto que o

sofrimento alheio nos causa e da identificação com ele. 30 Por ser um instinto puramente natural não é necessária a atuação da razão reflexiva (e artificial) como

mediadora para a ação.

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e chorar por causa das infelicidades de um desafortunado, aquele mesmo

que, se estivesse no lugar do tirano, agravaria ainda mais os tormentos de seu

inimigo. (ROUSSEAU, 1973a, p. 259)

A chave para o entendimento do amor de si como uma paixão tão resistente está na

identificação, no reconhecimento do outro como um semelhante que experimenta as mesmas

situações, tocando-o profundamente. Porém, o desenvolvimento da razão e a entrada na vida

civil enfraquece esse sentimento de identificação, dando espaço ao amor próprio, como afirma

Rousseau:

A comiseração, com efeito, mostrar-se-á tanto mais enérgica quanto mais intimamente se identificar o animal espectador com o animal sofredor. Ora, é

evidente que essa identificação deveu ser infinitamente mais íntima no

estado de natureza do que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor-próprio e a reflexão o fortifica; faz o homem voltar-se sobre si mesmo;

separa-o de quanto perturba e aflige. (ROUSSEAU, 1973a, p. 260)

A razão faz o homem dar preferência a si mesmo já não mais por instinto, isto é, por

imposição da natureza. Agora ele cuida de seu bem estar de forma refletida. Age com

prudência, com comedimento, tornando-se mais insensível às agruras de seu semelhante

quanto maior for seu grau de sapiência, como observamos na passagem abaixo:

Nada, além dos perigos da sociedade inteira, atrapalha o sono tranquilo do

filósofo e o arranca do leito. Podem impunemente degolar seu semelhante sob sua janela, ele só terá de levar as mãos às orelhas e ponderar um pouco

consigo mesmo para impedir a natureza, que nele se revolta, de identificar-se

com aquele que se assassina. O homem selvagem de modo algum possui

esse talento admirável e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo cada dia entregar-se temerariamente ao primeiro sentimento de humanidade. Nos

motins, nas arruaças, a populaça se reúne, o homem prudente se distancia; a

canalha, as mulheres do mercado, é que separam os contendores e impedem as pessoas de bem de se degolarem mutuamente (ROUSSEAU, 1973a, p.

259-260).

Assim, podemos notar que Rousseau prioriza sempre as inclinações mais simples e

naturais em face das artificiais, derivadas do hábito e da razão. “Constata-se também que o

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amor próprio, fruto da razão e da sociedade, abafa os sentimentos mais naturais do homem e

possibilita um efetivo distanciamento em relação a seus semelhantes” (BECKER, 2008,

p.181). Mais que isso, torna o homem uma criatura impiedosa, como se, de certa forma, o

“estado de raciocínio” nos levasse a experimentar e até mesmo apreciar sensações que, para o

homem natural, são extremamente repugnantes. As maquinações, tramas, intrigas e

conspirações são atos refletidos, produto da “mente raciocinadora” com o objetivo de

beneficiar-se causando dano ao outro. Beneficiar-se materialmente, com o acúmulo de

riquezas, e, ou, sentimentalmente, alimentando todas as paixões odientas, prazeres

mesquinhos, adquiridos em sociedade. O homem no estado de natureza, e o próprio estado de

natureza é pacífico justamente porque a paixão, o instinto, é o móvel das ações, e a piedade

natural seu guia, que traz consigo a máxima moral, “gravada em todos os corações”

(ROUSSEAU, 2011, p.159) que diz para não desejarmos aos outros aquilo que não desejamos

para nós31. Nesse sentido, Rousseau escreve que:

Desse modo, não se é mais obrigado a fazer do homem um filósofo em lugar

de fazê-lo um homem; seus deveres para com outrem não lhe são unicamente ditados pelas lições tardias de sabedoria, e enquanto resistir ao

impulso interior natural da comiseração, jamais fará qualquer mal a um outro

homem, nem mesmo a um ser sensível, exceto no caso legítimo em que,

encontrando-se em jogo sua conservação, é obrigado a dar preferência a si mesmo. (ROUSSEAU, 1973a, p.237)

Não é preciso reflexão, razão, entendimento ou sabedoria para se chegar à conclusão

de que não devemos agir com maldade. Não é necessário tampouco que esse sentimento seja

ensinado. Basta deixarmos a natureza trabalhar, desempenhar seu papel para que possamos

viver em concórdia. O homem selvagem ataca o outro não porque é mau, mas porque ama a

si. Só utiliza a violência para conservar a própria vida32. Rousseau assim, rechaça a ideia

hobbesiana segundo a qual o homem no estado de natureza vivia em guerra. O Genebrino

acreditava que Hobbes, ao traçar seu “odioso sistema”, havia ignorado a pitié por ter uma

impressão equivocada do amor de si. Ele imaginava que, para preservar sua existência, os

indivíduos precisavam resistir aos ataques dos outros tentando destruí-los, e por esse motivo,

no estado de natureza, seria impossível ser piedoso e ao mesmo tempo viver em segurança. 31 Semelhança com a Regra de Ouro do Evangelho dos Cristãos. Ver Mateus 7:12. 32A violência no estado de natureza é acidental e fugaz, pois o inimigo não é visto como uma ameaça constante,

mas sim momentânea. No instante em que a refrega se encerra, a inimizade acaba e cada um pode retomar sua

rotina com a liberdade intacta.

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33

Para Rousseau, cuidar de si não exclui de maneira alguma a preocupação com o bem estar dos

outros; ao contrário, ele pensava que o desejo impiedoso de segurança pessoal à custa de

outrem dá origem àquela vaidade e desprezo que transformam o mero estranho num

inimigo.33Assim, “sendo o estado de natureza aquele no qual o cuidado de nossa conservação

é o menos prejudicial ao de outrem, esse estado era, consequentemente, o mais propício à paz

e o mais conveniente ao gênero humano”. (ROUSSEAU, 1973a, p.258) Mas então, como

explicar a saída deste estado? É o percurso que faremos a seguir.

2.2 - ESTADO DE NATUREZA HISTÓRICO: DA PAZ À VIOLÊNCIA

Fixado o grau zero na evolução da espécie, e tomando como ponto de partida o

homem com os atributos inatos descritos anteriormente, voltemos nossa atenção para o

homem primitivo e sua jornada rumo à civilização. Rousseau, no Segundo Discurso, faz uma

reconstituição “histórico-linear” para mostrar como, “de uma condição de integração com a

natureza circundante e de independência de seus semelhantes, o homem evoluirá para uma

situação de independência da natureza e de dependência em relação a outro homem”

(FORTES, 1996, p. 56). As transformações, mediante a ação da perfectibilidade, ao mesmo

tempo em que concorrerão para um desenvolvimento brilhante das faculdades humanas,

levarão a uma perversão de sua constituição primitiva.

Como se deram tais acontecimentos? Quais foram os motivos que levaram o homem

primitivo a abandonar seu estado puro, paradisíaco, e submeter-se a uma vida desgraçada?

Rousseau supõe, inicialmente, uma sucessão de acontecimentos externos que, pouco a pouco

foram afastando o homem da natureza e o empurrando à civilização.As paixões do homem

primitivo eram sentimentos avivados por sensações ligadas a instintos puramente animais.

Sua maneira de existir era limitada à satisfação dessas necessidades e ele servia-se da natureza

de forma harmoniosa, tirando unicamente aquilo de que precisava. Sua constituição física era

temperada para resistir às intempéries, ultrapassar obstáculos, vencer inimigos quando,

ocasionalmente, disputavam o mesmo alimento. A solidão não o incomodava, pois era

33 Segundo Rousseau, Mandeville, cuja teoria da natureza humana na Fábula das Abelhas, de 1714, se

assemelhava à de Hobbes, havia percebido esse aspecto, ao passo que Hobbes não notara. “Mandeville

compreendeu muito bem que, com toda sua moral, os homens jamais passariam de uns monstros se a natureza

não lhes tivesse conferido a piedade para apoio da razão.” (ROUSSEAU, 1973a, p.259)

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independente. Como a natureza lhe fornecia tudo de que precisava, não havia motivos para

sentir necessidade do convívio com seus semelhantes. A vida era rude, mas abundante. Não

conhecia o medo nem a infelicidade, mas logo surgiriam dificuldades que o obrigariam a -

utilizando-se de sua capacidade de aperfeiçoamento - criar meios que o levassem a sobreviver

em ambientes hostis ocasionados por catástrofes naturais como longos invernos, verões

escaldantes, incêndios e inundações. A escassez de comida o levou a aperfeiçoar o engenho,

levando-o a inventar, por exemplo, a linha e o anzol, o arco e a flecha, bem como técnicas

para dominar o fogo e conservar a carne. Essa época nos leva ao primeiro período de sua

caminhada histórica até a civilização, o período das associações livres.

2.2.1 – Das associações livres à sociedade começada34

Com o aumento da população e a escassez de gêneros alimentícios, os indivíduos antes

isolados passaram a se cruzar com maior frequência e, nesse ínterim, começaram a perceber

certas relações entre uns e outros. “Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande,

pequeno, forte, rápido, lento, medroso, ousado e outras ideias semelhantes, comparadas ao

azar da necessidade e quase sem pensar nisso, acabaram por produzir-lhe uma certa espécie de

reflexão, ou melhor, uma prudência maquinal, que lhe indicava as precauções mais

necessárias à sua segurança”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 266) Surge, assim, um conhecimento

maior de si mesmo e, ao mesmo tempo, do outro de sua própria espécie. A visão do

comportamento repetitivo de seus semelhantes em determinadas situações o fez concluir que

suas maneiras de pensar e sentir eram idênticas. Tal afinidade trouxe uma verdade importante:

a de que, para seu proveito e segurança, era melhor manterem-se juntos:

Ensinando-lhe a experiência ser o amor ao bem estar o único móvel das ações humanas, encontrou-se em situação de distinguir as situações raras em

que o interesse comum poderia fazê-lo contar com a assistência de seus

34 Alguns comentadores, como Paul Arbousse-Bastide dividem o estado histórico de natureza em cinco períodos:

a) Primeiros Progressos: Onde começam a se desenhar os primeiros vínculos. b) Idade do Ouro: Cabanas são

construídas e as famílias são constituídas. c) Propriedade: primeira grande desigualdade. Humanidade é dividida

em pobres e ricos. Formação da sociedade e das leis com o primeiro pacto. d) Os Magistrados: segunda grande

desigualdade. Divisão em poderosos e fracos. Governo em função da manutenção das desigualdades. e)

Despotismo: Mudança do poder legítimo em poder arbitrário. Terceira grande desigualdade. Divisão em senhor e

escravo. (ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. Introdução. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade

entre os homens. São Paulo: Abril, 1973, p.209-219 (Coleção Pensadores) Ficaremos com a divisão proposta por

Luiz R. Salinas Fortes na obra Rousseau – O Bom Selvagem em três estágios.

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semelhantes e aquelas, mais raras ainda, em que a concorrência deveria fazer

com que desconfiasse deles. No primeiro caso, unia-se a eles em bandos ou,

quando muito, em qualquer tipo de associação livre, que não obrigava ninguém, e só durava quanto a necessidade passageira que a reunira.

(ROUSSEAU, 1973a, p.267)

Assim, começa a desenhar-se uma forma de associação com vistas a um objetivo

relativamente comum, mas despretensiosa e descompromissada. O vínculo surgia e terminava

de acordo com uma necessidade urgente e ocasional. Por exemplo, para caçar um animal de

grande porte que surgia ao acaso, era mais fácil abatê-lo em grupo, pois sozinho seria difícil e

perigoso. Satisfeita a necessidade, o vínculo se extinguia.

Com o passar dos séculos, o período das associações livres - em que o vínculo social é

precário, esgotando-se com a própria realização do objetivo para o qual se estabeleceu - dá

lugar à época da primeira revolução técnica, o período das cabanas. A partir de um lento

progresso das luzes, o homem foi aperfeiçoando-se e criando novos instrumentos capazes de

atender suas necessidades de forma mais otimizada. Deixou as árvores e as cavernas e, com

pedras cortantes, passou a usá-las como machados, para cortar lenha, cavar a terra e construir

as primeiras cabanas cobertas com argila e lama que contribuíram para o “estabelecimento e a

distinção das primeiras famílias e que introduziu uma espécie de propriedade da qual

nasceram talvez brigas e combates. No entanto, como os mais fortes possivelmente foram os

primeiros a fazer habitações que se sentiam capazes de defender, é de crer que os fracos

acharam mais rápido e seguro imitá-los do que tentar desalojá-los e, quanto aos que já

possuíam cabanas, nenhum deles certamente procurou apropriar-se da de seu vizinho, menos

por não lhe pertencer do que por ser-lhe inútil e não poder apossar-se dela sem expor-se a um

combate violento com a família ocupante”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 268)

Com o vínculo familiar instalado, nasceram o que Rousseau chama de os mais doces

sentimentos que são conhecidos pelo homem: o amor conjugal e o amor paterno. Começa a

surgir assim a célula para o surgimento da sociedade como a conhecemos, bem como uma

diferenciação entre a maneira de viver dos dois sexos. A mulher passou a levar uma vida mais

sedentária, acostumando-se a tomar conta do lar e dos filhos, enquanto os homens iam em

busca da subsistência. Seu vigor e ferocidade enfraqueciam na medida em que deixavam de

ser indivíduos errantes, em compensação era mais fácil sobreviver e resistir vivendo em

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grupo. A linguagem35, notadamente o uso da palavra, começa a desenvolver-se, tornando a

comunicação mais clara, fortalecendo os laços sociais e facilitando as primeiras relações

comerciais36.

Levadas por circunstâncias eventuais a viver juntas - como inundações que ilharam

pequenos grupos, longos invernos que deixaram a caça escassa e verões escaldantes que

trouxeram seca - as famílias começaram a formar pequenos bandos e esses bandos pequenas

nações particulares com características e costumes próprios. O comércio torna-se mais

constante. Os vínculos sociais mais fortes. Ideias de mérito e beleza vão se formando,

produzindo sentimentos de preferência, como podemos ver abaixo:

À medida que as ideias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o

coração entram em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as

ligações se estendem e os laços se apertam. Os homens habituaram-se a reunir-se diante das cabanas ou em torno de uma árvore grande; o canto e a

dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração, ou

melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada

um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava

melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloquente, passou

a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de

um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja.

(ROUSSEAU, 1973a, p. 269)

Da apreciação mútua formou-se no espírito a ideia de consideração, e dessa ideia os

primeiros deveres de civilidade. Uma afronta voluntária era tomada como um ato de desprezo

pela pessoa ultrajada que revidava de forma cruel, muitas vezes com sangue. Rousseau

enfatiza que esse estágio - a que chegara a maioria dos povos selvagens - da evolução é

responsável pela ideia de que o homem é um ser naturalmente violento que precisa ser

policiado. O erro dos pensadores que seguem esse conceito, por exemplo Hobbes, é

35 No Ensaio sobre a origem das línguas, encontramos mais pormenorizadamente a questão da linguagem no

papel da evolução do homem em quatro partes, segundo : a) a origem da linguagem, enfocando o estudo da

comunicação no homem natural; b) diferenciação das línguas, com ênfase na evolução dos grupos humanos e

dos meios de expressão; c) estudo particular das questões musicais relacionadas com a evolução linguística e

social; d) crítica acerca da alteração do sentido natural da linguagem empreendida na vida em sociedade, que

sacrifica a comunicação sentimental e moral em nome de uma linguagem mais clara e precisa. (MACHADO,

1973c, p. 158) 36 Um tipo de comércio rudimentar baseado em pequenas trocas esparsas, dirigido mais pela natureza e por falta

de gêneros característicos de cada estação do que por intenções comerciais fixas e constantes.

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justamente apontarem tal período tardio como etapa inicial da humanidade, sem levar em

conta os estágios anteriores.

Sobre a alardeada brutalidade natural, defendida por Hobbes, Rousseau diz que “nada

é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a

igual distância, da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civil, e compelido

tanto pelo instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é impedido pela

piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo

depois de atingido por algum mal. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, ‘não haveria

afronta se não houvesse propriedade’ ”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 270)

Rousseau adverte que as relações estabelecidas pelos homens exigiam deles

qualidades diversas daquelas que deviam à sua constituição primitiva. Sentimentos de

bondade, justiça e solidariedade foram se adaptando à sociedade nascente. Os princípios da

moralidade penetravam pouco a pouco nas ações humanas fazendo de cada um juiz e

vingador das ofensas recebidas. Mas “embora os homens se tornassem menos tolerantes e a

piedade natural já sofresse certa alteração, esse período de desenvolvimento das faculdades

humanas, ocupando uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a

atividade petulante de nosso amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e a mais

duradoura” (ROUSSEAU, 1973a, p. 270). É o período da sociedade começada. Tal época, diz

ele, é tida como a verdadeira juventude do mundo.

2.2.2 – Transição para o estado civil: violência, pacto enganador e servidão

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado

um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas

suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que,

arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus

semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se

esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’. (ROUSSEAU, 1973a, p.265)

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38

É com a introdução da propriedade privada que esse estado de juventude do mundo

será destruído. A ideia de que algo me pertence com exclusividade começa a ser elaborada a

partir da introdução da agricultura e da metalurgia, em com isso, surge as primeiras relações

de trabalho, conforme aponta Rousseau:

Desde que se tornaram necessários homens para fundir e forjar o ferro,

precisou-se de outros para alimentar a estes. Na medida em que se multiplicou o número de trabalhadores, menos mãos houve para atender a

subsistência comum, sem que com isso houvesse menos bocas para consumi-

la. (ROUSSEAU, 1973a, p.272)

Começa a se desenhar os primeiros traços de servidão que marcarão as relações sociais

e desencadearão, no correr da história, inúmeros episódios de violência extrema, marcados

pelo imenso abismo que separa ricos e pobres. Nesse estágio da evolução, alguns enxergam o

fato de que, num futuro próximo, não haveria recursos para todos. Prevendo tal situação,

começam a transformar o que era de uso comum em uso exclusivo a fim de precaver-se dos

tempos difíceis levantando as primeiras questões acerca do direito de propriedade:

Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para

dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além

disso, começando os homens a alongar suas vistas até o futuro e tendo todos

a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem. (ROUSSEAU, 1973a,

p.265)

Conforme a terra é loteada e transformada em objeto de uso restrito - e sem nenhum

mecanismo que regule tais demarcações - a igualdade é quebrada. Os mais fortes são os

únicos que podem dispor e proteger tais bens, subjugando os mais fracos, que, para não

morrerem de fome, submetem-se ao trabalho. A humanidade é dividida em duas classes.

Ricos e pobres passam a disputar o que antes não tinha dono. Os ricos, possuidores de terras,

passam a escravizar os mais pobres, que aviltados em sua liberdade, se rebelam:

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39

Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou

de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente,

segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões

desenfreadas de todos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da

justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o

direito do mais forte e o do primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e assassinatos. A sociedade nascente foi colocada no

mais tremendo estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, não

podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar as aquisições infelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua

vergonha, abusando das faculdades que o dignificam. (ROUSSEAU, 1973a,

p.274)

Esta é a época em que finalmente aparece o estado de guerra de todos contra todos que

Hobbes supunha. É nesse estágio de transição, imediatamente após o Estado de Natureza e

igualmente anterior à formação da sociedade civil, que a humanidade, para Rousseau, dá um

passo sem retorno rumo a barbárie. A insociabilidade natural finalmente aflora, e, com os

sentimentos naturais abafados e distorcidos, seu lado sombrio desperta. Com o objetivo de dar

um basta a essa violência generalizada surge entre os homens a ideia de formar um pacto em

que se estabeleçam leis e regulamentos que todos se obriguem igualmente a respeitar. Um

pacto que institua “uma ordem social que, acima dos interesses antagônicos, deverá

resguardar os interesses superiores de todos os indivíduos e, levando-os a resolver suas

querelas mediante a arbitragem e o acordo, substitua guerra pela paz social”. (FORTES, 1996,

p.64) Tal pacto busca trazer a paz, mas promove a desigualdade e a perda de liberdade na

medida em que legitima a propriedade privada. Os ricos são os únicos beneficiários do

acordo, pois têm a posse de seus bens assegurada. Os pobres, por sua vez, veem o trabalho, a

servidão e a miséria institucionalizados.

Assim, a sociedade civil começa com o estabelecimento da lei e do direito de

propriedade. Um governo37 é estabelecido, escolhido pelos mais fortes para governar em

nome de todos, mas tem sempre os interesses dos mais ricos acima de quaisquer outros,

transformando poder legítimo em poder arbitrário. A sociedade corrompe o homem

justamente porque o primeiro pacto, ao invés de levar em conta a liberdade, funda-se na

propriedade, que por si só exclui, segrega, usurpa e gera violência. Como afirma Becker, “é

através do estabelecimento da propriedade e da legitimação da desigualdade, que se

37 Um Governo propriamente dito é fruto de uma decisão pós-contrato. Só o contrato o institui, como veremos no

capítulo seguinte.

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estabelecem relações violentas de convívio no seio dos grupos recém-formados.” (BECKER,

2010b, p. 14) Do ponto de vista moral, o amor próprio surge como um desdobramento

indesejável, porém necessário, do amor de si na sociedade civil. Num estado social, para

sobreviver o homem precisa obrigatoriamente do outro. A autonomia natural é perdida, e com

isso sua liberdade. O amor de si que trazia consigo o instinto de conservação, que por sua vez

era saciado a partir da satisfação das necessidades originárias: alimentação, sexo e descanso; é

atropelado na vida em sociedade pela criação de novas necessidades que, para serem supridas,

demandam maior exploração da natureza e do semelhante. A relação sexual, antes simples,

torna-se um ato complexo com o advento da família. Novas exigências são necessárias –

como a corte, o casamento etc. - para satisfação dessa necessidade. A alimentação, que no

estado primitivo era facilmente saciada, pois nada tinha dono, com a instituição da

propriedade privada, passa a depender do trabalho, que, em grande parte, não remunera de

maneira justa o trabalhador, colocando-o numa situação de servidão muitas vezes

incontornável.

Necessidades que não existiam começam a florescer na medida em que a civilização

avança. O homem agora vive na superficialidade. Se não possui uma qualidade que é

valorizada no meio em que vive, é preciso aparentar possuí-la. Se não possui determinado

bem que é tido como importante é preciso obtê-lo por quaisquer meios. Se não sabe

determinada arte, determinado engenho, recorre à arte da bajulação, das elegias etc. É preciso

aparentar possuí-las, e como consequência ocorre a distinção entre ser e parecer. Vejamos:

ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes. Dessa distinção

resultaram o fausto majestoso, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhe formam o cortejo. (ROUSSEAU, 1973a, p.273)

Tais são as armadilhas da superficialidade! O homem, antes livre e independente,

agora com o advento de novas necessidades, sujeita-se à dependência de seu semelhante. Tal

servidão afeta tanto o rico, que não faz fortuna sozinho, necessitando sempre do trabalho

alheio, quanto o pobre, que precisa de seu socorro para manter-se. Estabelece-se assim um

duplo vínculo de dependência em que o ser humano vale por sua utilidade, por sua capacidade

de gerar lucros e mostrar seu sucesso para adquirir reconhecimento. Esta relação fundada

sobretudo na utilidade traz à tona uma ambição devoradora que “inspira a todos os homens

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uma negra tendência a prejudicarem-se mutuamente (...); em uma palavra, há, de um lado,

concorrência e rivalidade, de outro, oposição de interesses e, de ambos, o desejo oculto de

alcançar lucros a expensas de outrem. (ROUSSEAU, 1973a, p.273) A civilização, ao mesmo

tempo em que corrompe as paixões primitivas, aliena o homem, que sai de si e passa a viver

prezando acima de qualquer coisa as honrarias, a reputação e a opinião alheia. Enquanto o

homem primitivo “vive em si mesmo” o “homem sociável”, sempre fora de si, só sabe viver

baseando-se nas opiniões dos demais. Rousseau ilustra melhor tal pensamento na longa

passagem abaixo:

O que a reflexão nos ensina a esse propósito, a observação o confirma

perfeitamente: o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações, que aquilo que

determinaria a felicidade de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro

só almeja o repouso e a liberdade, só quer viver e permanecer na ociosidade e mesmo a ataraxia do estóico não se aproxima de sua profunda indiferença

por qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se,

agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em

situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a imortalidade; corteja os

grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra

de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que

não gozam a honra de partilhá-la. Que espetáculo não seriam para um

caraíba os trabalhos penosos e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria esse selvagem indolente ao horror de uma tal

vida que frequentemente nem sequer se ameniza pelo prazer de bem

proceder! Mas, para aquilatar o objetivo de tantos cuidados, seria preciso que as palavras poder e reputação tivessem um sentido para seu espírito e que

soubesse existir uma espécie de homens que dão valor aos olhos do resto do

mundo e se sentem satisfeitos consigo mesmos mais pelo testemunho de

outrem do que pelo seu próprio. (ROUSSEAU, 1973a, p. 287)

A síntese das diferenças verificadas entre o homem selvagem e o homem civil que é

apresentada por Rousseau como sendo a verdadeira causa das diferenças existentes entre

ambos é que “o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe

viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência

quase que somente pelo julgamento destes.” (ROUSSEAU, 1973a, p. 287) A conclusão que

Rousseau chega é que a desigualdade, quase nula no estado de natureza, se deve ao

desenvolvimento de nossas faculdades, alcançando estabilidade e legitimação com o

estabelecimento da propriedade privada e das leis positivas, leis positivas que autorizaram

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também a desigualdade moral, que reina entre todos os povos policiados e que vai de encontro

a lei da natureza que não permite “uma criança mandar num velho, um imbecil conduzir um

sábio, ou um punhado de pessoas regurgitar superfluidades enquanto à multidão faminta falta

o necessário.” (ROUSSEAU, 1973a, p. 287-288)

Com o pacto “histórico”, o homem troca sua liberdade natural pela servidão. Tal

servidão, segundo Rousseau, é característica da sociedade civil, trazendo consequências

nefastas à ordem social. A ideia segundo a qual o governante é superior a todos os outros não

encontra respaldo na natureza originária do homem - onde todos são iguais - mas sim nos

mecanismos criados pelo próprio pacto para a formação de uma sociedade dita legítima. Para

Rousseau, não se pode falar em legitimidade sem atentar para dois princípios fundamentais

que permeiam todo o seu pensamento: liberdade e igualdade. Pensando assim, faz-se

necessária a formação de um novo pacto social, que deverá formar um novo homem, e,

finalmente, uma sociedade melhor constituída, com maiores possibilidades de alcançar uma

paz durável, tema que examinaremos no início do capítulo seguinte.

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3 DA FUNDAÇÃO DOS ESTADOS NAÇÃO ÀS RELAÇÕES

INTERNACIONAIS

A ideia de um Contrato como instrumento “jurídico” fundador da sociedade civil e

instaurador da paz não é nova. Aristóteles, na Política, atribui aos sofistas a doutrina de que

“a lei é pura convenção e garantia dos direitos mútuos” (ARISTÓTELES, 1985, p.100). Mais

à frente Epicuro retoma essa ideia acrescentado que “tudo o que, na convenção da lei, mostra

ser vantajoso para as necessidades criadas pelas relações recíprocas é justo por natureza,

mesmo que não seja sempre o mesmo”. E arremata: “No caso de se fazer uma lei que

demonstre não corresponder às necessidades das relações recíprocas, então essa lei não é

justa” (EPICURO, 2005, Máxima Capital, 37). Duas implicações importantes contidas nesta

citação encontram eco no contratualismo moderno, sobretudo em Rousseau. Primeiro: a

concepção de que o poder é consequência direta de uma convenção e não de determinação

natural. Segundo: a firme noção de que a lei é justa, ou mais ainda, é legítima, quando atende

somente às necessidades recíprocas, ao bem comum. Tais proposições concorrem, em última

instância, para demonstrar a tese de que todo poder político deve ser limitado.

Rousseau, basicamente, retoma essas noções e, influenciado pela leitura de Platão,

Plutarco e Quintiliano, de escritores como Grotius, Pufendorf, Burlamaqui e Barbeyrac, e

autores do nível de Montesquieu, Hobbes, Locke e Jurieu, desenvolve os princípios

norteadores de sua teoria política, que seria, toda ela, condensada no projeto das Instituições

Políticas.

Desta forma, no presente capítulo, mostraremos como Rousseau tenta trazer uma

solução para amainar as agruras decorrentes do ingresso do homem na sociedade por meio de

um pacto de associação que ambiciona consertar os enganos decorrentes do contrato

“histórico”. Com isso, procuraremos estabelecer as noções de Sociedade Legítima, Estado,

Soberania e Vontade Geral como pontos importantes para adentrarmos no pensamento

político do autor. O que diferencia tal pensamento do de outros autores de sua época é a

concepção de Vontade Geral como instrumento de deliberação do povo, que exerce a função

de Soberano, atribuindo ao Governo papel secundário de mero funcionário limitado à função

de administrador.

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A seguir adentaremos no controverso tema da guerra, tentando mostrar que, mesmo

após o pacto, e, sobretudo somente após ele, na visão de Rousseau, a guerra surge como algo

incontornável. Surge somente após o pacto porque é o pacto que funda o Estado, e a guerra só

acontece entre Estados. Incontornável, sobretudo, devido à imensa complicação de se compor

uma legislação que regule as relações dos Estados internacionalmente e de um organismo

supranacional independente e forte o bastante para assegurar que a as leis acordadas sejam

cumpridas. Sob essa visão sombria, Rousseau propõe uma espécie de juridicização da guerra

como possibilidade de torná-la menos cruel e rechaça qualquer tipo de “sociedade geral do

gênero humano” como saída para uma paz perpétua.

Quanto aos textos que servirão de base para nossa investigação, nos concentraremos

nos textos que fariam parte do projeto das Instituições Políticas: Trabalharemos o Contrato

Social, para compreensão dos elementos necessários para a formação do que Rousseau

entende por uma sociedade legítima e consequente fundação de Estados bem constituídos; nos

Princípios do direito da guerra, texto visceral e extremamente realista, composto por diversos

fragmentos, que trata da problemática da guerra entre Nações e do direito público, ou direito

das gentes. Neste texto, as teses de Hobbes acerca da natureza humana e da guerra são mais

uma vez rechaçadas; e, por fim, no famoso Capítulo II do Manuscrito de Genebra, em que

Rousseau debate com Diderot acerca da possibilidade da formação de uma sociedade geral do

gênero humano. Neste capítulo suprimido da versão definitiva do Contrato, o Genebrino ataca

sobretudo as noções de sociabilidade natural e vontade geral circunscritas nos verbetes

Direito Natural e Hobbesianismo, creditados a Diderot e publicados na Enciclopédia.

3.1 - CONTRATO SOCIAL: FORMAÇÃO DA SOCIEDADE LEGÍTIMA

Logo no parágrafo inicial do livro I do Contrato Social Rousseau apresenta a questão

que deverá nortear a obra:

Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração

legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como podem ser. Esforçar-me-ei sempre, nessa procura, para unir o que o direito permite ao que o interesse

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prescreve, a fim de que não fiquem separadas a justiça e a utilidade. (ROUSSEAU,

1973b, p. 27).

Nesse parágrafo inicial fica claro que a proposta de Rousseau é equilibrar teoria e

prática. Por isso temos que ter cuidado para não tomar o Contrato como uma obra puramente

teórica, ou, mais radicalmente ainda, utópica. Tomar os homens como são e as leis como

podem ser significa criar leis que devam corresponder às necessidades individuais e coletivas

dos homens como são. Partindo “do conhecimento profundo e genérico do homem para

estabelecer as regras da organização consciente da sociedade: ‘É preciso estudar a sociedade

pelos homens e os homens pela sociedade38’, dirá no Emílio” (MACHADO, 1973b, 27 – nota

6). Portanto, é imprescindível, antes de se falar em formar uma sociedade, levar em conta os

homens em sua condição natural. Sua liberdade e igualdade naturais; perfectibilidade; amor

de si, piedade, etc.39

Para Rousseau, a construção de uma sociedade legítima deve pautar-se por esse

princípio, assim, segundo Salinas Fortes, a questão que abre o Contrato Social poderia ser

formulada assim: “Em que condições é possível existir uma sociedade na qual se realize o

máximo de liberdade e o máximo de igualdade?” (FORTES, 1996, p.80).

A ideia de um contrato social como mecanismo instituidor da sociedade não era nova

na época de Rousseau. Pensadores da escola do direito natural como Hobbes já discutiam o

tema tentando trazer respostas a questões sobre a origem das sociedades civis e o fundamento

da autoridade. John Locke argumentava que a sociedade civil foi fundada para assegurar a

propriedade privada. Esta já aparecia no estado de natureza, inclusive nascendo com o próprio

homem, na medida em que, possuidor de um corpo, o produto do trabalho feito com as

próprias mãos lhe pertencia. Para evitar uma guerra perpétua decorrente de roubos e

violência, é instituído um contrato tendo o Estado como árbitro. Assim, a função do Estado é

proteger a propriedade privada, mediar as relações sociais e criar e aplicar mecanismos

jurídicos que regulem sua posse40. Já Hobbes considerava que o contrato era um meio

38 Cf: “É preciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade; quem quiser tratar

separadamente a política e a moral nada entenderá de nenhuma das duas.” (ROUSSEAU, 2004, p. 325) 39 Thomaz Kawauche aponta também que é preciso “buscar as particularidades de cada povo a ser instituído,

dando aos homens leis baseadas nos costumes e na opinião de tal modo que as leis não deixem de variar de

acordo com os tempos e lugares.” (KAWAUCHE, 2010, p. 208.). 40 Ver a Carta acerca da tolerância; Ensaio sobre o entendimento humano. (LOCKE, 1973)

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necessário para fugir do medo da morte violenta a que era submetida a humanidade em um

estado de natureza onde a guerra e o assassínio eram uma realidade concreta só superada pela

criação de um organismo artificial com poder suficiente para manter a paz a qualquer custo, o

Estado absoluto. Assim, sua liberdade era cedida ao soberano, autoridade máxima - que tinha

totais poderes sobre seus cidadãos, inclusive de vida e morte - em troca de segurança.41 Em

ambos os casos, no fim das contas, temos a guerra no estado de natureza como motor que

impulsiona os homens a formarem a sociedade. Mas, como aponta Derathé:

para Rousseau, o isolamento em que se encontra o homem em estado de natureza o impede de entrar em conflito com seus semelhantes; e, para que

surjam o estado de guerra e as sociedades civis criadas para colocar-lhe um

termo, é preciso que os homens tenham se aproximado previamente, que tenham renunciado à ‘maneira de viver simples, uniforme e solitária que lhes

era prescrita pela natureza’. Eles só se tornam inimigos após terem se

‘tornado sociáveis’, pois o desenvolvimento da sociabilidade e das paixões vão de par. Somente então produz-se essa guerra geral que Hobbes tomou

pelo estado de natureza sem se dar conta de que ela não se devia às

inclinações naturais do homem, mas às suas paixões que só podem

desenvolver-se no seio da sociedade. É preciso, com efeito, que os homens tenham se aproximado e que suas paixões tenham se tornado ativas para que

sua independência natural engendre entre eles um verdadeiro estado de

guerra”. (DERATHÉ, 2009, p.265)

Assim, a sociabilidade é anterior ao contrato e as primeiras interações sociais são as

responsáveis pelo estado de guerra. Com efeito, os homens não são forçados a viver em

comunidade por ocasião do pacto. Eles já viviam. Foram obrigados a relacionar-se devido a

fatores externos como dilúvios, terremotos, escassez de víveres etc.... Conforme afirma

Derathé, “foi, portanto, na realidade, o desenvolvimento da sociabilidade que tornou os

estabelecimentos políticos necessários e, segundo um princípio caro a Rousseau, tornando

estes necessários os tornou também possíveis”. (DERATHÉ, 2009, p.266) A sociabilidade é

que torna o pacto possível, pois é a partir dela que a razão se desenvolve a ponto de perceber

os males decorrentes da vida em comum e aplicar o remédio correspondente. E o remédio é o

pacto:

41 Ver o Leviatã. (HOBBES, 1974)

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Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que as os obstáculos

prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua

resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero

humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria.

Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não tem eles outro meio de conservar-se senão

formando, por agregação, um conjunto de forças, que possa sobrepujar a

resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a operar em concerto”. (ROUSSEAU, 1973b, p. 37-38)

Desse modo, só a união de forças é capaz de conservar a vida num ambiente que

pouco a pouco foi tornando-se nocivo à vida solitária do homem primitivo. Tal associação, de

início, é intuitiva, guiada pelo instinto de conservação42, fazendo-nos crer que a sociabilidade

é decorrente dela, na esfera íntima, e dos acasos da natureza no campo externo43.

Alcançado esse ponto - em que a vida coletiva se resume a um amontoado de homens

que se unem por agregação visando meramente a sobrevivência - e não podendo retroceder à

vida simples e errante de outrora, Rousseau, tendo em mente as novas necessidades surgidas a

partir do ingresso na civilização, como a propriedade privada, e mantendo sempre no

horizonte as questões relacionadas aos ideais de liberdade e igualdade, busca “encontrar uma

forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a

força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo,

permanecendo assim tão livre quanto antes”. (ROUSSEAU, 1973b, p. 37-38) Essa forma de

associação é a matriz do contrato, cuja cláusula principal pode ser resumida como “a

alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em

primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos, e, sendo a

condição igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa demais” (ROUSSEAU,

1973b, p. 37-38) porque assim estará onerando a si próprio.

42 Como Rousseau reafirma nessa passagem dos Fragments Politiques: “Mais les devoirs de l’homme dans l’état

de nature sont toujours subordonnés au soin de sa propre consevation qui est le premier et le plus fort de tous.”

(ROUSSEAU, OC, III, p. 475) 43 Com a natureza o colocando em perigo, o instinto de conservação fez com que o homem visse na vida em

comunidade a única maneira de sobreviver aos obstáculos que não conseguiria transpor sozinho.

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Tal questão remonta ao problema do fundamento da autoridade44. Se os homens são

iguais, de onde vem a ideia segundo a qual alguém tem poder sobre o outro? Só podemos

encontrar resposta a essa pergunta na ordem social, nas convenções! “Já que nenhum homem

tem uma autoridade natural sobre seu semelhante, e já que a força não produz nenhum direito,

restam, portanto as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens”

(ROUSSEAU, 1973b, p. 32) diz Rousseau. Como todos nascem iguais e livres, nenhum pode

ter autoridade natural sobre os outros. A escravidão45 igualmente é produto da civilização e o

poder paterno só perdura enquanto o filho não puder prover-se a si mesmo. Quem teria então

poder para deliberar em nome de todos? Como criar leis que resguardem a liberdade e ao

mesmo tempo legitimem a autoridade sem ferir a igualdade natural? Vejamos como Rousseau

responde a essas questões.

3.1.1 – Lei e Liberdade

Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens,

qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á

que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência particular corresponde a outro tanto

de força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade não

pode subsistir sem ela. (ROUSSEAU, 1973b, p. 72)

Segundo Derathé, “a associação civil tem essencialmente como finalidade impedir que

um dos associados possa submeter um outro deles à sua vontade46 e, ao neutralizar os efeitos

das desigualdades sociais, assegurar a todos os cidadãos o equivalente de sua independência

natural.” E continua afirmando que, “por certo, existe um determinado nível de desigualdade

no estado de natureza, mas, ‘neste, sua influência é quase nula’, porque, nesse estado, os

44 De acordo com Bento Prado Jr. “Com Rousseau o centro de gravidade da reflexão política se desloca da esfera

do saber para a do poder, ou da Razão para a da paixão, ou ainda do Discurso para a da Força. As vontades, as

paixões, mesmo os direitos reivindicados remetem a uma Econômica ou Dinâmica onde se opõem proprietários e despossuídos, fortes e fracos, dominantes e dominados.” (PRADO JR, 2008, p. 420) 45 Aristóteles dizia que a escravidão era um fenômeno natural, fazendo crer que alguns homens nasciam com

tendência inata à servidão. Rousseau rechaça essa ideia no Livro I, Capítulo IV do Contrato Social. 46 Pois se assim fizesse, o estaria escravizando. Na seguinte passagem, no Manuscrit de Neuchâtel Rousseau

afirma: “On est libre quoique soumis aux lois, non quand on obéit à un homme, parce qu’en ce dernier cas

j’obéis à la volonté d’autrui, mais en obéissant à la loi je n’obéis qu’à la volonté publique qui est autant la

mienne que celle de qui que ce soit” (ROUSSEAU, OC. I, p. 492). Assim, para que aja liberdade na sociedade, o

fundamento da autoridade deve estar baseado em leis, e não em indivíduos. Esse é o significado da liberdade

civil.

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homens não têm, por assim dizer, relações entre eles. Enquanto vive no estado selvagem, o

homem ‘basta-se a si mesmo’: como ele pode dispensar a assistência de seus semelhantes, ele

os ignora; mas, uma vez que se tornou sociável, ele tem necessidade deles, assim como estes

têm necessidades dele.” (DERATHÉ, 2009, p. 338) Portanto, são as relações de dependência

que geram o mal-estar na civilização:

Todo o mal ou, se quisermos, todas as contradições do sistema social vêm

dessa dependência mútua, da qual cada um procura tirar o máximo de benefício a expensas de outrem, pois, na ausência de uma regra que seja

respeitada por todos, só pode reinar o arbitrário nas relações entre os

indivíduos. O único meio de remediar essa desordem é encontrar uma forma

de sociedade civil onde as relações entre os homens não sejam abandonadas ao arbitrário das vontades individuais. Dito de outro modo não há outra

solução ao problema político senão substituindo-se, às relações de homem a

homem, a relação do cidadão à Lei. (DERATHÉ, 2009, p. 338)

Sob a direção do contrato, na passagem do estado natural para o estado civil, o homem

perde sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto possa alcançar; e ganha a

liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. A liberdade natural, encontrando limites

somente na força do indivíduo, é trocada pela civil, cuja fronteira é delimitada pela obediência

à vontade geral47. Na teoria de Rousseau, lei e liberdade caminham juntas. Parece

contraditório, pois tendemos a achar que regras são criadas com o objetivo de determinar

limites para a ação, de padronizar nosso comportamento restringindo o agir livre. No Contrato

Social a lei48 surge no seio da sociedade como instrumento de fomento à liberdade individual

e coletiva. A chave para o entendimento desta proposição está na noção de liberdade não

somente como possibilidade de fazer escolhas, mas como lei moral autoimposta. Segundo

Cassirer, “para ele [Rousseau], liberdade não significa arbítrio, mas a superação e a exclusão

de todo arbítrio. Ela se refere à ligação a uma lei severa e inviolável que eleva o indivíduo

acima de si mesmo. Não é o abandono desta lei e o desprender-se dela, mas a concordância

com ela o que forma o caráter autêntico e verdadeiro da liberdade”. (CASSIRER, 1999, p. 55)

Assim, somos livres porque obedecemos às leis instituídas por nós mesmos, e não por outros.

A autolegislação é o ponto de partida para a construção de uma sociedade livre e igual.

47 Além disso, com a entrada no estado civil surge a “liberdade moral, única a tornar o homem verdadeiramente

senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si

mesma é liberdade” (ROUSSEAU, 1973b, p. 43) 48 Na verdade, o próprio pacto se configura como a primeira lei positiva da humanidade e a obediência a ela é

que possibilita a manutenção da ordem social.

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50

Começa por uma norma moral autoimposta pelo indivíduo em sua esfera particular. Essa

“lei”, no primeiro momento, é intuitiva, não racional. Decorre de seus instintos naturais ou

das necessidades imediatas. Sendo guiada pelo amor de si e pela compaixão, instala-se no

fundo de seu espírito a noção de que não se deve desejar ao semelhante aquilo que não se quer

para si. No contrato, ela é ampliada para a vida coletiva e transforma-se em base para a

organização civil. Tal base, para constituir-se forte, precisa da alienação total do indivíduo em

favor do soberano, mas ao mesmo tempo, sob pena de quebrar a igualdade, o soberano não

pode ser um agente externo totalmente independente, um indivíduo ou um grupo organizado.

O soberano deve ser composto por todos os signatários do pacto, como veremos a seguir.

3.1.2 - Soberania

Antes de continuarmos, faz-se necessário pontuar algumas questões de precisão

terminológica para uma melhor compreensão do que virá a seguir. No final do capítulo VI do

livro I do Contrato Social, Rousseau nos oferece um pequeno dicionário onde fixa, com

precisão, o significado de alguns dos principais termos usados em seu vocabulário político:

Imediatamente, esse ato de associação [o pacto] produz, em lugar da pessoa

particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de

tantos membros quantas são as vozes da assembleia,49 e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa

pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava

antigamente o nome de cidade e hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano

quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos

associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em

particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado”. (ROUSSEAU, 1973b, p.39-40)

Vê-se que o homem, no estado civil, adquire três “facetas”: cidadão, no particular;

povo, no coletivo, e súdito enquanto submetidos à lei. Esses três aspectos em um só indivíduo

servem para mostrar que o particular e o público estão intimamente ligados. E o exercício da

49 “Como o contrato, essa ‘assembleia’ e esses ‘votos’ (algumas traduções apontam, de forma mais precisa,

‘vozes’) não tem existência concreta, mas apenas simbolizam a tomada de consciência de sua condição pelos

componentes do corpo social” (MACHADO, 1973b, p. 39 – nota 62).

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51

soberania no que tange ao poder deliberativo cabe aos associados enquanto coletividade.

Enquanto pessoa moral,50 designa-se povo. Essa coletividade, transformada em povo, surge

não como um ser físico, mas um ente moral consciente de seu papel e, desta forma, atuando

“como membro do soberano em relação aos particulares, e como membro do Estado em

relação ao soberano” (ROUSSEAU, 1973b, p.40) forma-se uma dupla relação de

comprometimento, aumentando a responsabilidade do indivíduo, pois seus atos fariam eco

tanto na esfera particular quanto na pública. A aparente fragilidade desse tipo de organização

político-social encontra sua força justamente na livre adesão de seus associados. Logo, como

afirma Rousseau, “desde o momento em que essa multidão se encontra assim reunida em um

corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, nem, ainda menos, ofender o

corpo sem que os membros se ressintam” (ROUSSEAU, 1973b, p.41) encontrando no

equilíbrio entre dever e interesse todas as vantagens que dela se pode tirar. Ao aliar o

individual e o coletivo, o “soberano, sendo formado tão só pelos particulares que o compõem,

não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles, e, consequentemente, o poder soberano

não necessita de qualquer garantia em face de seus súditos, por ser impossível ao corpo

desejar prejudicar a todos os seus membros, (...) e a nenhum deles em particular. O soberano,

somente por sê-lo, é sempre aquilo que deve51 ser.” (ROUSSEAU, 1973b, p.41) Desta forma,

sua soberania é inalienável52, pois, por ser um corpo coletivo, só pode ser representada por si

mesmo - não pode ser representada por um indivíduo, como um rei por exemplo, nem por um

pequeno grupo e muito menos pelo Governo - ; e pelo mesmo motivo é indivisível53, pois se

sustenta na unidade. Seu poder se limita em si mesmo, ou seja, as limitações são criadas,

convencionadas pelo próprio corpo participante do soberano deliberando na esfera geral, com

vistas ao interesse comum, posto que o soberano “jamais tem o direito de onerar mais a um

cidadão do que a outro, porque, então, tornando-se particular a questão, seu poder não é mais

50 Cf. “Não sendo o Estado ou a Cidade mais que uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus

membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria conservação, torna-se-lhe necessária uma

força universal e compulsiva para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente a todos. Assim como a

natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um

poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha, como já disse,

o nome de vontade geral.” (ROUSSEAU, 1973b, p. 54) 51 Como em Hobbes, o soberano é absoluto. A diferença é que para Rousseau, o caráter absoluto é entendido como o resultado da associação de todos os particulares formando uma força incapaz de afetar seus indivíduos,

pois assim estaria atingindo a si mesma. 52 Cf. “Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que

o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo.” (ROUSSEAU,1973b, p.

50) 53 Cf. “A soberania é indivisível pela mesma razão por que é alienável, pois a vontade ou é geral, ou não o é; ou é

a do corpo do povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e

faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura, quando muito, de um

decreto.” (ROUSSEAU,1973b, p. 50)

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competente” (ROUSSEAU, 1973b, p.57). No plano empírico, a dificuldade em estabelecer

noções exatas de autoridade soberana levam os políticos a dividir o que não pode, ou não deve

ser dividido. Dividem-no em poder executivo e legislativo, estabelecendo uma separação

entre força e vontade, muitas vezes confundindo lei com aplicação da lei como no caso de

uma declaração de guerra, que não é de forma alguma uma lei, mas unicamente um ato

particular. Além disso, ao considerar soberana toda população formada pelos cidadãos,

Rousseau procurava confiar ao povo comum de cada nação a condução última de seus

próprios assuntos. Ele, raramente, e, especialmente no Contrato Social nunca, designa a

assembleia popular que considera soberana como uma democracia, pois considerava a

democracia como uma forma não de soberania direta, e sim de governo direto, que exigia que

o povo se mantivesse em conselho permanente para executar e administrar a política pública

aos moldes de burocratas e funcionários públicos em tempo integral, tornando o Estado, com

isso, propenso à corrupção e à guerra civil54. (ROUSSEAU, 1973b, livro III, cap. 4)

Segundo Rousseau, “toda ação livre tem duas causas que concorrem em sua produção:

uma moral, que é a vontade que determina o ato, e a outra física, que é o poder que a executa.

Quando me dirijo a um objeto, é preciso, primeiro, que eu queira ir até ele e, em segundo

lugar, que meus pés me levem até lá”. (ROUSSEAU, 1973b, p.79) Da mesma maneira

procede o corpo político. “Distinguem-se nele a força e a vontade, esta sob o nome de poder

legislativo e aquela, de poder executivo”. (ROUSSEAU, 1973b, p.79) O poder executivo é o

Governo55, tendo como seus membros os magistrados ou governantes, e por objetivo fazer

com que a vontade do legislativo seja executada. O Governo de forma alguma detém a

soberania e o título de governante é “um emprego, no qual, como simples funcionários do

soberano, exercem em seu nome o poder de que ele os fez depositários, e que pode limitar,

modificar e retomar quando lhe aprouver.” (ROUSSEAU,1973b, p. 81). Portanto, há uma

diferença nítida entre Governo, Soberano e governantes, que são meros funcionários do

Estado - cujos atos são particulares - subordinados ao poder legislativo, que pertence ao corpo

54 Nesse sentido, Rousseau reconhece que o bom exercício da soberania popular pelos cidadãos seria mais viável em pequenos Estados, geograficamente protegidos contra invasões e com riquezas distribuídas mais ou menos de

forma igualitária. Rousseau sugere, no final do cap. X do livro II do Contrato, que a Córsega era um dos poucos

lugares ainda propensos a esse tipo de arranjo social. De fato, segundo Lourival Gomes Machado, essa passagem

levou Buttafuoco a convidar Rousseau a escrever o Projeto de constituição para a Córsega, “uma espécie de

aplicação prática do Contrato Social que deu a seu autor, por um instante, a ilusão de preencher o que lhe parecia

constituir a mais alta função reservada ao homem: a função do Legislador. (ROUSSEAU, 1973b, p. 72 nota 201) 55 Cf. “Que será, pois, o Governo? É um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua

mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como

política.” (ROUSSEAU,1973b, p. 80)

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moral chamado povo56. Por sua vez, os atos do poder legislativo só podem ser leis, na medida

em que atua como vontade que determina a ação. A essa vontade, Rousseau chama de vontade

geral.

3.1.3 – Vontade Geral

A cláusula central do contrato é a “alienação total de cada associado, com todos os

seus direitos, a toda comunidade” (FORTES, 1996, p. 83) e sob a suprema direção da vontade

geral. A originalidade do pacto reside nesse conceito-chave. Segundo Salinas Fortes, “quando

concordamos em nos submeter, todos os outros pactuantes concordam também em se colocar

sob a direção, suprema, não de uma vontade alheia, mas da vontade coletiva da própria

comunidade, daquela vontade que visa acima de tudo ao interesse coletivo” (FORTES, 1996,

p. 83). Assim, a vontade geral não é um mero composto de vontades particulares, ela é a

vontade de todo cidadão atuando como membro do soberano. Daí supõe-se que os cidadãos, e

não os indivíduos tenham uma vontade comum, um interesse que é o interesse geral. Interesse

geral, não interesse de todos. Rousseau é diligente em pontuar essa distinção. Diz ele: “Há

comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende

somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma das

vontades particulares.” (ROUSSEAU,1973b, p. 52-53) Ao entrecruzar essas vontades,

tirando-lhes os interesses conflitantes, o que resta como soma é a vontade geral. E é somente a

autoridade da comunidade como um todo e as leis que dela emanam que devem ser

reconhecidas como politicamente legítimas

Assim, para funcionar a bom termo, a vontade geral deve visar acima de tudo o bem

comum57. Para que tal objetivo seja alcançado, é preciso união total entre os membros do

56 Sobre o Legislador, Rousseau reitera sua importância nessa passagem: “Aquele que ousa empreender a

instituição de um povo deve sentir-se com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por si só mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do

qual de certo modo o indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituição do homem para fortificá-la;

substituir a existência física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma existência parcial e

moral.” (ROUSSEAU,1973b, p. 63) Assim, o Legislador deve estar consciente do processo de socialização do

indivíduo para, assim sendo, estimular esse processo, facilitá-lo e até completá-lo pelas instituições. 57 Cf. ROUSSEAU: “A vontade geral é sempre boa e tende sempre à utilidade pública; donde não se segue,

contudo, que as deliberações do povo tenham sempre a mesma exatidão. Deseja-se sempre o próprio bem, mas

nem sempre se sabe onde ele está. Jamais se corrompe o povo, mas frequentemente o enganam e só então é que

ele parece desejar o que é mau.” (ROUSSEAU,1973b, p. 52)

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54

soberano para que ajam como uma só voz, pois, “quando se estabelecem facções, associações

parciais a expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em

relação a seus membros [da associação da qual fazem parte] e particular em relação ao

Estado” (ROUSSEAU, 1973b, p.53), ferindo seu princípio elementar. Assim, é necessário

que uma única vontade dirija as forças do Estado, isto é, as forças reunidas de todos os seus

membros, sem o que teríamos a anarquia. Essa vontade não pode ser uma vontade particular,

já que isso seria submeter os cidadãos a uma vontade estranha, empregar a força comum em

serviço de um interesse privado, e instituir essa dependência de homem a homem que nos

propomos precisamente suprimir.

Se não queremos fazer do Povo uma multidão submissa a um ou a vários senhores, é

preciso que a autoridade soberana não seja outra coisa além da vontade geral. Assim, “a

vontade geral caracteriza-se não somente por ser a vontade de todos, mas sobretudo por só

poder agir pelas leis e por ser contra sua essência estatuir algo a respeito de um objeto

individual” (DERATHÉ, 2009, p.528), pois ela tende sempre à igualdade, enquanto a vontade

particular inclina-se a predileções58. Nas Cartas escritas da montanha Rousseau pergunta:

“Qu’est-ce qui fait que l’Etat est un? C’est l’union de ses membres. Et d’où naît l’union de ses

membres? De l’obligation qui les lie.” (ROUSSEAU, OC. III, p. 806) O que o autor pretende

investigar aqui é sob quais condições o indivíduo não somente é forçado, mas também

obrigado a obedecer à vontade geral. Por que a vontade geral obriga seus cidadãos e por qual

motivo estes não podem resistir a sua autoridade sem incorrer em crime contra a ordem

social? A resposta a essa pergunta já se encontrava na primeira versão do contrato, o

Manuscrito de Genebra, onde Rousseau diz: “Nous avons dit que la Loi est um Acte public et

solemnel de la volonté générale, et comme par le pacte fondamental chacun s’est soumis à

cette volonté, c’est de ce pacte seul que toute Loi tire sa force.” (ROUSSEAU, OC. III, p.

326) Esse dever de obedecer à vontade geral se funda no caráter voluntário do pacto, no

compromisso mútuo. No engajamento daquele que se obriga a obedecer de forma livre, sem

nenhuma força externa que o oprima, tal é a tenacidade desse princípio que é a fonte legítima

das leis: “Essa vontade geral, que sempre tende para a conservação e o bem estar do todo e de

cada parte, e que é a fonte das leis, é, para todos os membros do Estado, em relação a eles e ao

próprio Estado, a regra do justo e do injusto (...) esta regra de justiça, segura a todos os

58 Cf. “Se não é, com efeito, impossível que uma vontade particular concorde com a vontade geral em certo

ponto, é pelo menos impossível que tal acordo se estabeleça duradouro e constante, pois a vontade particular

tende pela sua natureza às predileções e a vontade geral, à igualdade.” (ROUSSEAU, 1973b, p. 50)

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cidadãos, pode ser falha em relação aos estrangeiros.” (ROUSSEAU, 2006, p. 88) Aqui se

desenha o caráter particular da vontade geral. Ela se aplica somente àqueles que aderiram

livremente ao pacto, ou seja, aos membros associados de um Estado determinado, o que nos

leva a afirmar que “a vontade do Estado, embora geral no que concerne a seus membros, não

é mais geral em relação a outros Estados e seus membros, mas torna-se, para esses, uma

vontade particular e individual, cuja regra de justiça é a lei da natureza.” (ROUSSEAU, 2006,

p. 88) Está configurado o imenso desafio das relações internacionais: como relacionar essas

diferentes vontades? O que é justo para um não necessariamente é para outro já que a vontade

geral não é universal, e como ela é a base que une as sociedades particulares e dita suas leis,

na impossibilidade de aplicá-la a todas as nações, o que resta é uma constatação sombria:

deixamos o estado de natureza e firmamos um pacto com a promessa de paz para depois nos

darmos conta que só ampliamos o problema. A guerra agora é entre Estados, e ela não pode

ser contida em definitivo por um pacto. Essas e outras questões serão tratadas a seguir.

3.2 – PRINCÍPIOS DO DIREITO DA GUERRA

Vimos que, Rousseau, assim como os demais contratualistas, constrói sua teoria do

Estado ou sua compreensão acerca da sociedade através da oposição entre um suposto estado

de natureza, marcado pela ausência da lei civil, e o estado civil ou policiado, onde imperam as

leis positivas, os costumes e imposições da coletividade. Nesse sentido, a natureza é definida

como um espaço de liberdade enquanto a sociedade surge como uma “ampla teia de relações

de dependência” dando sentido à célebre frase que inicia o Contrato Social: “O homem nasce

livre e por toda a parte encontra-se a ferros” (ROUSSEAU, 1973b, p.28). O que garante a

liberdade individual do homem é justamente seu isolamento e ausência de relações sociais.

Como mantê-la no seio da sociedade? Por meio de uma ordem civil que impeça o fomento das

desigualdades e dê força ao Estado para fazê-lo. Quem o autoriza? O soberano, o povo, agente

da vontade geral. Essa vontade geral, contudo, é geral em relação ao povo que delibera, mas,

é particular em relação aos demais povos. Ela não é universal. Isso significa que cada povo

delibera e constrói seu próprio consenso de acordo com suas características e anseios

próprios.

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Na ausência das leis civis, é a lei natural, “gravada ainda no coração do homem em

caracteres inapagáveis” (ROUSSEAU, 2011, p.159) o lembra de que não é permitido

sacrificar a vida de seu semelhante senão para conservar a sua própria. Porém, com o passar

do tempo os homens criam ou são submetidos a situações em que seus interesses entram em

contradição com os interesses dos demais homens, levando-os a entrar em disputas onde a lei

natural é abafada e torna-se sem eficácia. A partir deste momento, ela já não é suficiente para

manter todos no limite de suas normas, o que evidencia a necessidade da lei civil, estabelecida

pelo acordo daqueles que firmam pactos que dão origem às sociedades particulares. O pacto

visa, entre outras coisas, instituir uma organização pacífica e legítima (pautada na justiça), e

para isso cria o Estado, este “ser moral” que representa exatamente os laços que unificam a

vontade de um povo em viver de forma coletiva e ordenada. Este ser moral, contudo, apesar

de guardar algumas analogias com os indivíduos que o constituem, possui características

próprias que o distinguem.

Enquanto os homens estão limitados à sua constituição física e podem prover sua

subsistência autonomamente, o Estado, cuja extensão e força são puramente relativas, para

manter-se seguro e forte, “é forçado a se comparar sem cessar para se conhecer”

(ROUSSEAU, 2011, p.162), e esta correspondência desigual, onde o instinto de conservação

tem como base a sobrevivência de um em detrimento da sobrevivência do outro, torna a

relação entre os Estados cada vez mais perigosa, engendrando inúmeras guerras.

Diferentemente de autores como Hobbes, por exemplo, que veem na constituição do

Estado o fim da guerra existente entre indivíduos; Rousseau argumentará que o estado de

guerra não constitui a situação dos homens isolados, e que “a guerra nasceu da paz ou ao

menos das precauções que os homens tomaram para assegurar uma paz durável”

(ROUSSEAU, 2011, p. 155). Tal é o que se verifica se observarmos o mar de guerras no qual

as sociedades historicamente constituídas estão imersas. Tal situação, por sua vez, pode ser

modificada, ensejando mais guerra ou mais paz, de acordo com a constituição interna dos

Estados. E, nesse sentido, um Estado mais bem constituído, que seguisse os postulados de

legitimidade expressos no Contrato social, tenderia a reduzir a belicosidade existente.

Pretendemos a seguir investigar as questões acima expostas e mostrar que no entender

de Rousseau a guerra só é possível no seio da sociedade, e que as leis naturais, quando

aplicadas às relações estabelecidas entre os Estados tornam-se bastante problemáticas.

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57

3.2.1 – Guerra e Estado de Guerra

Rousseau, em uma passagem do Emílio, nos dá uma pista para compreendermos sua

visão da aplicabilidade do Contrato Social. Adiantando o método, diz ele que “antes de

observar é preciso criar regras para as observações; é preciso uma escala para as medidas que

tomamos” (ROUSSEAU, 1969, p.837). E essa escala é justamente o Contrato. Assim, como

afirma Milton Meira do Nascimento, “todo o ‘Contrato Social’ não passa de uma grande

‘escala’, na qual estarão todos os elementos constitutivos da relação de poder, desde o grau

máximo da servidão até o grau máximo da liberdade política ou civil” (NASCIMENTO,

1988, p.120). Isso significa não tomar o Contrato como medida prescritiva, ou seja, o

Contrato tal como foi concebido não tem como proposta configurar-se num projeto político

realizável integralmente, mas somente numa referência para um sistema de medidas59 onde

sua aplicabilidade submete-se às particularidades de cada povo, seus costumes, opiniões60,

época em que vive e condições ambientais61. O Contrato Social surge como um modelo ideal

de organização social a partir do qual é possível julgar o grau de corrupção ou de excelência

dos casos existentes na prática, objetivando aproximar-se ao máximo do protótipo idealizado

pelo filósofo. Para ele, as leis devem ser instituídas de acordo com os usos e costumes,

manifestadas pela razão e legitimadas pela vontade geral. Rousseau nega a possibilidade de

uma legislação universal, que se aplique a todas as instituições civis. A mesma lei que

funciona para um povo em um determinado momento não necessariamente vale para outro, no

que podemos concluir que a vontade geral, que deve pautar as tomadas de decisão que visem

ao bem público, só é geral em relação ao povo; e particular em relação aos Estados. Como as

vontades dos diferentes Estados não necessariamente se coadunam, pois carregam consigo as

características de seus membros, de seus costumes, da diversidade de vontades, de interesses;

esses podem causar conflitos entre os Estados, ocasionando guerras.

59 Cf. “Em nenhum momento Rousseau tenta realizar o modelo político do ‘Contrato Social’ como programa de ação, mas sua tarefa se limita a uma aplicação prática dos princípios estabelecidos no ‘Contrato’, apenas como

referência a um sistema de medidas.” (NASCIMENTO, 1988, p. 120) 60 Cf. “a mais importante de todas [as leis], que não se grava nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos; que

faz a verdadeira constituição do Estado; que todos os dias ganha novas forças; que, quando as outras leis

envelhecem ou se extinguem, as reanima ou as supre, conserva um povo no espírito de sua instituição e

insensivelmente substitui a força da autoridade pela do hábito. Refiro-me aos usos e costumes e, sobretudo, à

opinião.” (ROUSSEAU, 1973b, p. 75) 61 Sobre a influência do clima na realização das formas de governo ver Livro III, Cap. VIII do Contrato Social.

Ver também, L’influence des climats sur la civilisation. OC. III, p. 529-533.

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58

No seio da sociedade civil, por ocasião do pacto que atribui a soberania ao povo

agente da vontade geral, a união decorrente desse sistema não consegue impedir eventuais

violências entre seus membros, o que não se configura propriamente como guerra. Pois o

Estado de Guerra, diz Rousseau, “não pode ter lugar entre os particulares” (ROUSSEAU,

2011, p.160). O que há são combates, querelas, que podem e devem ser dirimidos pela via das

leis e da justiça estabelecida. Como a configuração desse universo, ou seja, de uma sociedade

onde a vida de um está ligada a de outro, geralmente não permite que a felicidade de todos

aconteça ao mesmo tempo, “cada um segundo a lei da natureza, dá-se a si mesmo a

preferência” (ROUSSEAU, 2011, p.156).

Assim, quando o indivíduo tem sua integridade física ameaçada, o instinto natural de

autoconservação e a lei da natureza que o faz dar preferência a si mesmo efetivam-se para

rechaçar esse mal. Por vezes, tais querelas são absolutamente acidentais, produto das paixões

avivadas na vida em sociedade, e quase sempre não há, em ambas as partes, intenção de

prolongar o combate além do necessário. A afeição à paz e o apreço pela própria vida, fazem

o indivíduo evitar naturalmente situações que prenunciem o mal, e por vezes seu primeiro

movimento é de fuga. Tal sentimento é mais forte no estado de natureza onde o “homem é

naturalmente pacífico e medroso. Ele não se torna aguerrido senão à força do hábito e da

experiência” (ROUSSEAU, 2011, p.159) e tal hábito e experiência só são desenvolvidos na

vida em sociedade, pois conforme vemos no Princípios do Direito da Guerra “não é senão

após ter feito sociedade com algum homem que ele se determina a atacar o outro”

(ROUSSEAU, 2011, p.159). Porém, tal ataque entre indivíduos não pode ser chamado de

guerra, visto que não ultrapassa a esfera particular62. Assim, a posição de Rousseau contra

Hobbes e sua “guerra de todos contra todos” é mais uma vez reiterada:

Quem pode ter imaginado sem estremecer o sistema insensato da guerra natural de cada um contra todos? Que estranho animal seria aquele que

acreditasse que seu bem estar estivesse vinculado à destruição de toda sua

espécie, e como conceber que esta espécie tão monstruosa e tão detestável pudesse durar somente duas gerações? Eis portanto até onde o desejo ou

62 Cf. “No estado civil onde a vida de todos os cidadãos está sob o poder do soberano e onde ninguém tem o

direito de dispor da sua nem da de outrem, o estado de guerra não pode ter lugar entre os particulares, e quanto

aos duelos, desafios, acordos, chamadas para combate singular, além de que era um abuso ilegítimo e bárbaro de

uma constituição totalmente militar, também não resultava num verdadeiro estado de guerra, mas numa questão

particular que se resolvia em tempo e locais limitados, de tal maneira que para um segundo combate era preciso

um novo desafio.” (ROUSSEAU, 2011, p. 160)

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antes o furor de estabelecer o despotismo e a obediência passiva conduziu

um dos mais belos gênios que já existiu. (ROUSSEAU, 2011, p.157)

Apesar de apontá-lo como “o mais belo gênio que já existiu”63 não o exime de fortes

críticas. Tomar por princípio a ideia de que é natural64 ao homem destruir-se mutuamente

repugna65 o Cidadão de Genebra. Tal sentimento de inimizade, no seu entender, só surge a

partir do estabelecimento da sociedade e está diretamente ligado ao bem-estar e condicionado

por instituições que incentivam a competição e os desejos de preferência. No estado natural, o

bem estar limita-se ao estritamente necessário, pois, diz Rousseau “quando ele tem a alma sã

e quando seu corpo não sofre, o que lhe falta para ser feliz conforme sua constituição? Aquele

que não tem nada deseja pouca coisa, aquele que não comanda ninguém tem pouca ambição.

Mas o supérfluo desperta a cobiça: quanto mais se obtém mais se deseja” (ROUSSEAU,

2011, p.158). A cobiça pelo supérfluo infla o coração do homem civilizado de desejos e o

semelhante entra como um empecilho a seu bem-estar. Se isso acontece, a razão o convence

da incompatibilidade entre sua existência e a do outro, que é tomado também por esse

sentimento, gerando uma vontade comum de destruir o oponente. Ora, esse tipo de situação só

ocorre porque a sociedade gera relações de dependência onde o bem estar de um está

diretamente ligado ao bem estar do outro. Quando o indivíduo enxerga essa condição e se

convence de que sua existência é incompatível com a existência do outro, impele contra a

vida dele para eliminá-lo e o agredido, também ciente da situação, arma-se contra seu

agressor com o mesmo objetivo, gerando uma vontade refletida de se destruir mutuamente.

Nas palavras de Rousseau:

63 Em sua crítica ao sistema hobbesiano Rousseau escreve: “Quem pode ter imaginado sem estremecer o sistema

insensato da guerra natural de todos contra todos? Que estranho animal seria aquele que acreditasse que seu bem

estar estivesse vinculado à destruição de toda sua espécie, e como conceber que esta espécie tão monstruosa e tão

detestável pudesse durar somente duas gerações? Eis portanto até onde o desejo ou antes o furor de estabelecer o

despotismo e a obediência passiva conduziu um dos mais belos gênios que já existiu”. (ROUSSEAU. 2011, p.

157) Para Rousseau, Hobbes havia subestimando a importância real de suas ideias basicamente porque adotara

concepções errôneas da natureza humana. Atribuiu ao selvagem um conjunto de características que só poderia

ter em sociedade, e, como não enxergou a distinção entre nossas qualidades sociais e nossos atributos naturais,

exagerou nos traços ao pintar nossa conduta original, incluindo acréscimos que só surgiriam em nosso

desenvolvimento posterior. 64 Cf. “<<naturaliser>> la guerre en y voyant une relation primordiale, interindividuelle, conduit d’une part à

naturaliser la nécessité du droit et l’État; et d’autre part à se méprendre sur la signification de la guerre

interétatique: si la guerre est naturelle, l’État ne fait que subir, corriger ou amortir une violence qui le précède.”

(BACHOFEN, 2006, p.140) 65 Cf. “Se esta inimizade natural e destrutiva estivesse ligada à nossa constituição, então far-se-ia ainda sentir e

nos impeliria apesar de nós mesmos através de todas as amarras sociais. O terrível ódio da humanidade corroeria

o coração do homem. Ele se afligiria pelo nascimento de seus próprios filhos e se regozijaria com a morte de

seus irmãos: e tão logo ele encontrasse alguém dormindo seu primeiro movimento seria matá-lo.” (ROUSSEAU,

2011, p. 157)

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Quando as coisas encontram-se no ponto onde o ser dotado de razão é convencido de que o cuidado com sua conservação é incompatível não

somente com o bem estar de um outro, mas com sua existência; então arma-

se contra a vida dele e procura destruí-la com o mesmo ardor com o qual procura conservar-se a si mesmo e pela mesma razão. O agredido, sentindo

que a segurança de sua existência é incompatível com a existência do

agressor, ataca, por sua vez, com todas as suas forças a vida daquele que também quer atacar a sua; esta vontade manifesta de se destruir mutuamente,

e todos os atos que dependem dela, produzem entre os dois inimigos uma

relação que chamamos guerra. (ROUSSEAU, 2011, p.156)

A primeira condição de uma guerra real é que existe, por parte de cada um dos

adversários, perigo iminente de morte. Não há que se falar em guerra se for para preservar a

honra ou o bem estar. É preciso estar convencido de que sua conservação é incompatível não

só com o bem estar do outro, mas com a sua existência. A segunda é que deve haver um “ato

de julgamento”, uma vontade refletida, deliberada. Situações de violência ocasionais, (geradas

por um acesso de raiva, por exemplo) podem muito bem levar à morte do adversário, mas

estes são atos que não envolvem necessariamente o fato de que a existência do adversário seja

considerada um perigo vital para minha existência. Trata-se de pura impulsividade. A guerra

“implique une représentation globale, intellectuelle, intégrant ce que je suppose être les

intentions de mon adversaire anticipées sur une durée indéfinie, dont je déduis de façon

générale le caractère incompatible de nos deux existences.” (BACHOFEN, 2006, p.144) A

terceira condição é que é preciso que a vontade, além de refletida, seja constante e que dure

até que o oponente se entregue, que seja destruído ou que ambos entendam que suas

existências não são mais incompatíveis. Por fim, a quarta condição versa sobre a

“publicização” da guerra. Que ela seja uma vontade constante e manifesta de se destruir. Ou

seja, é preciso uma declaração de guerra para que ela tenha legitimidade.

Em suma, a guerra ocorre quando há, de ambas as partes, o desejo racional e

constante66 de destruir-se, “daí se segue que a guerra não consiste de forma alguma num ou

vários combates não premeditados, nem mesmo no homicídio e na morte cometida por um

arrebatamento de cólera, mas na vontade constante refletida e manifesta de destruir o inimigo.

66 Cf. “Esta [a guerra] supõe relações constantes e um desejo refletido e permanente de destruir o inimigo, o que

por sua vez supõe uma constância de relações que só pode se dar a partir do estabelecimento das relações civis.”

(BECKER, 2010c, p. 190)

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Pois, para julgar que a existência deste inimigo é incompatível com nosso bem estar, é preciso

sangue frio, e razão, o que produz uma resolução durável, e para que a relação seja mútua, é

preciso que o inimigo por sua vez, sabendo que atentamos contra sua vida, tenha o desejo de

defendê-la às expensas da nossa” (ROUSSEAU, 2011, p. 156). A guerra, como aponta

Bachofen, “necessite la réciprocité des intentions belliqueuses” (BACHOFEN, 2006, p.146),

não pura e simplesmente um consentimento recíproco de lançar-se à guerra, mas sobretudo

uma resolução mútua de se defender contra um perigo mortal.

Assim, está perfilado o caráter artificial e contingente da guerra como um “acordo” de

agressão mútua, que quando efetivadas publicamente, recebe o nome de “hostilidades”. Tais

hostilidades se configuram em guerra quando em ato, e em estado de guerra quando em

potência, ou seja, em estado de latência. “Estas diferenças dão lugar a algumas distinções

entre os termos. Quando se está reciprocamente em exercício por contínuas hostilidades, é

propriamente o que se chama fazer a guerra. Ao contrário, quando dois inimigos declarados

permanecem tranquilos e não realizam um contra o outro nenhum ato ofensivo, sua relação

não muda por isso, mas enquanto não tiver nenhum efeito atual chama-se somente estado de

guerra. Longas guerras nas quais nos metemos e que não podemos terminar produzem

ordinariamente este estado. Às vezes, longe de adormecer na inação, a animosidade não faz

senão esperar um momento favorável para surpreender o inimigo, e seguidamente o estado de

guerra que produz o relaxamento é mais perigoso que a própria guerra” (ROUSSEAU, 2011,

p.157). Situação que só pode ser cessada por uma paz formal com a anuência das partes

envolvidas67.

Até aqui falamos da guerra sob a perspectiva dos indivíduos. Agora ampliaremos o

horizonte, direcionando o foco para as relações entre Estados. Conforme Rousseau, a partir do

momento em que a primeira sociedade é formada, “se segue necessariamente a formação de

todas as outras. É preciso fazer parte dela ou unir-se para lhe resistir. É preciso imitá-la ou se

deixar engolir por ela”. (ROUSSEAU, 2011, p. 160)

67 Cf. “A relação de guerra, uma vez estabelecida não pode cessar senão por uma paz formal. De outro modo,

cada um dos dois inimigos não tendo nenhum testemunho de que o outro cessou de atentar contra sua vida, não

poderia ou não deveria cessar de defendê-la às expensas daquela do outro.” (ROUSSEAU, 2011, p. 156)

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3.2.2 – Tensão entre indivíduo e Estado: O estabelecimento do Estado-Nação e a Guerra

entre potências

O estabelecimento do estado social leva os homens a unirem-se por uma concórdia

artificial, com vistas a “se degolarem entre si”, e assim, veem-se “os horrores da guerra

nascerem dos cuidados que se tinha tomado para preveni-la” (ROUSSEAU, 2011, p. 160). A

vida social coloca o homem numa tensão contínua entre o fato de ser indivíduo e relacionar-se

com os outros indivíduos, regidos por uma lei civil; e de ser povo, ente moral, gozando da

liberdade natural e relacionar-se com outros povos:

A primeira coisa que eu observo, ao considerar a posição do gênero humano, é uma contradição manifesta em sua constituição, que torna-a sempre

vacilante. De homem a homem, nós vivemos em estado civil e submetidos às

leis; de povo a povo, cada um goza da liberdade natural: o que torna no fundo, nossa situação, pior do se estas distinções não fossem conhecidas.

Pois vivendo ao mesmo tempo na ordem social e no estado de natureza,

estamos sujeitos aos inconvenientes de um e de outro, sem encontrar segurança em nenhum dos dois (ROUSSEAU, 2011, p.154-155).

Esta configuração submete o homem a uma condição mista: ora indivíduo, ora povo.

Ao mesmo tempo na ordem social submetido à lei civil; e no estado de natureza, com total

ausência de leis. Situação histórica das relações internacionais. Essa contradição causa

estranhamento. Segundo Rousseau, como particular, “o homem, no fundo, não tem nenhuma

relação necessária com seus semelhantes, pode subsistir sem o concurso deles com todo vigor

possível” (ROUSSEAU, 2011, p.161). Sua força e grandeza são determinadas pela natureza, a

qual não pode ultrapassar. Suas faculdades são limitadas, sua vida curta, porém, como

indivíduo, pode subsistir isoladamente, conservando-se de forma autônoma. Como povo,

transfigura-se em Estado, corpo artificial sem nenhuma medida determinada. Sua grandeza e

limites são indefinidos e sua força ou fraqueza é determinada pela comparação com força ou

fraqueza dos outros Estados. Para conservar-se, precisa tornar-se mais poderoso que seus

vizinhos, sob pena de ser engolido por eles.

Tal é o impasse a que chegou a humanidade. Com o intuito de instituir a paz e o bem

estar, os homens unem-se num pacto associativo para livrar-se do quadro degradante em que

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viviam e instituir o Estado, ente moral com o dever de resguardar os ideais fixados pelo

acordo; mas ao mesmo tempo, vivem sob ameaça de outros Estados que podem subjugá-lo e

levá-lo à condição anterior de violência, fruto da total ausência de leis e sanções que regulem

suas relações no âmbito internacional. Tal configuração tende inevitavelmente à guerra.

Sendo relativo, ele, o Estado, “é forçado a se comparar sem cessar para se conhecer; ele

depende de tudo que o cerca e deve se interessar por tudo o que acontece, pois mesmo que ele

queira se manter dentro de si mesmo sem nada ganhar nem perder, torna-se pequeno ou

grande, fraco ou forte, segundo o seu vizinho se estenda ou se reduza e se reforce ou se

enfraqueça. Enfim, sua solidez68 mesma tornando suas relações mais constantes confere um

efeito mais seguro a todas as suas ações e torna todas as suas querelas perigosas”

(ROUSSEAU, 2011, p162). Diferentemente do indivíduo que pode simplesmente evitar um

combate, afastando-se, o Estado tem fronteiras estabelecidas e não pode fugir ou esquivar-se,

condenado a viver num estado de guerra69 permanente, fruto da incapacidade de conservar-se

autonomamente.

Se a vontade geral fosse universal, o fantasma da guerra seria afastado, porém como

ela varia de acordo com cada povo, os interesses podem divergir sensivelmente, pois, nesta

esfera, o soberano só legisla em causa própria, ou seja, em favor de seu próprio povo e não de

outro. Qual a saída? A formação de ligas, o estabelecimento de leis internacionais, uma

sociedade geral? Sobre formação de ligas e leis internacionais Evaldo Becker afirma que “tais

questões serão examinadas por Rousseau nos escritos sobre o Abade de Saint-Pierre, que

acabaram servindo para que o próprio Rousseau aprofundasse suas ideias relativas ao Direito

Internacional. Entretanto Rousseau não esconde seu pessimismo quanto às possibilidades

efetivas do estabelecimento destes organismos. Um dos problemas mais candentes seria o da

independência; como manter uma autonomia interna necessária e evitar que a tentativa de

estabelecimento de leis internacionais70 acabasse por se transformar em uma grande

68 Cf. “O homem mais débil tem mais força para sua própria conservação do que o Estado mais robusto tem para

sua.” (ROUSSEAU, 2011, p. 162) 69 Cf. “Chamo então guerra de potência à potência o efeito de uma disposição mútua constante e manifesta de

destruir o Estado inimigo, ou ao menos de enfraquecê-lo por todos os meios possíveis. Esta disposição reduzida

a atos é a guerra propriamente dita; enquanto ela restar sem efeito não é senão o estado de guerra.”

(ROUSSEAU, 2011, p. 165) 70 Cf. “Nunca se veem ligas federativas estabelecerem-se que não por meio de revoluções e, com base nesse

princípio, qual de nós ousaria afirmar desejável ou temível essa liga europeia? Talvez ela causasse, de pronto,

mal maior do que aquele que não preveniria por muitos séculos.” (ROUSSEAU, 1962b, p. 388) Rousseau refere-

se aqui ao Projeto para a paz perpétua onde o Abade de Saint-Pierre aponta a formação de uma liga europeia

como mecanismo para paz entre Estados. Nesta esteira, o Cidadão de Genebra propõe a constituição de ligas

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violência” (BECKER, 2010c, p.193). O estabelecimento de uma dita sociedade geral do

gênero humano seria inviável visto que obstáculos como a diversidade de línguas e costumes

atravancariam o empreendimento. Um caminho seria a criação de Estados menores e

independentes, teoricamente mais fáceis de serem administrados, porém, dificilmente teriam

todas as necessidades do seu povo supridas de forma autônoma. Para isso, a natureza deveria

ser generosa com seu território, provendo-o de tudo o que seja necessário para o bem viver71.

Outra via seria a limitação do poder do Príncipe72, personagem afeito à guerra, pois só têm a

ganhar com ela; submetendo-o ao modelo do Contrato Social, onde são meros

administradores e executores das decisões da vontade geral. Nenhum desses caminhos, porém

assegura definitivamente a paz, colocando os Estados numa situação em que se encontram

fadados a conviver à sombra iminente da guerra. Se tal conjuntura é inevitável, resta observar

e apontar artifícios, leis que delimitem claramente o objetivo de cada embate, evitem

violência desnecessária e promovam justiça. Enfim, é preciso entender o que torna uma guerra

legítima, como veremos a seguir.

3.2.3 - Guerra Legítima, violência e justiça

Segundo Becker, “após ter visto a terra cobrir-se de novos Estados, após ter

descoberto entre eles uma relação geral que tende à sua destruição mútua, Rousseau se

pergunta pela essência do corpo social, a fim de saber por quais tipos de hostilidades eles

podem se atacar e se destruir mutuamente.” (BECKER, 2010a, p.9) Quais são as motivações

que levam os Estados a se atacarem? “E tendo em mente que o princípio da vida do corpo

político é o pacto social, uma convenção estabelecida entre os membros que dele participam,

é preciso estabelecer os critérios legítimos que regulam as relações entre estes corpos, mesmo

quando estes entram em guerra.” (BECKER, 2010a, p.9) É preciso “juridicizar” os conflitos, e

para isso, continua Becker, “é necessário investigar quem pode legitimamente declarar a

guerra e o que se pode ou não fazer no intuito de destruir o Estado inimigo. Rousseau insiste

federativas defensivas, que não será objeto de estudo por se encontrar em outros textos fora da alçada desta

monografia. 71 Para além de qualquer sentido político, o Estado, para manter-se coeso e forte, depende da felicidade dos seus

membros, e por isso trata de promover o bem estar a todos quanto for possível. 72 Cf. “Príncipes não estão realmente interessados na paz, mas em aumentar seus ganhos e sua margem de

movimento e dominação interna, contando com a instabilidade externa para favorecê-lo na busca desses

objetivos.” (MARQUES, 2010, p. 26)

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para que seus leitores não esqueçam de jeito nenhum que ele não procura o que torna a guerra

vantajosa àquele que o faz, mas o que a torna legítima” (BECKER, 2010a, p.09).

Como a guerra é feita entre Estados, e não entre particulares, a inimizade ocorre entre

seres morais e não entre indivíduos. Ela sucede entre pessoas públicas. Acompanhemos o

raciocínio de Rousseau:

O que é uma pessoa pública? Respondo que é esse ser moral que se chama

soberano, a quem o pacto social dá existência e cujas vontades portam o

nome de leis. Apliquemos aqui as distinções precedentes; pode-se dizer dos efeitos da guerra que é o soberano que causa o dano e o estado que o recebe.

Se a guerra não tem lugar senão entre seres morais não se visa de maneira nenhuma aos homens, e pode-se fazê-la sem tirar a vida de ninguém. Mas

isso requer explicação.

Ao considerar apenas as coisas conforme o rigor do pacto social, a terra, o

dinheiro, os homens e tudo o que está compreendido nos limites do Estado,

lhe pertence sem reserva. Mas os direitos da sociedade fundados sobre aqueles da natureza não podendo aniquilá-los, todos estes objetos devem ser

considerados sob uma dupla relação; a saber, o solo como território público e

como patrimônio dos particulares, os bens como pertencendo em certo sentido ao soberano e noutro aos proprietários, os habitantes como cidadãos

e como homens. No fundo o corpo político não sendo senão uma pessoa

moral é apenas um ser de razão. Tire a convenção pública, e no mesmo instante o ser é destruído sem a menor alteração em tudo o que o compõe; e

jamais todas as convenções dos homens poderiam mudar nada na física das

coisas. O que é então, fazer guerra ao soberano; é atacar a convenção pública e tudo o que dela resulta; pois a essência do estado consiste apenas nisso. Se

o pacto social pudesse ser rompido com um só golpe o Estado seria morto,

sem que tivesse morrido um só homem (ROUSSEAU, 2011, p.166).

Desse modo, a finalidade da guerra é atacar a convenção pública rompendo o pacto

social que a fundou73. Esse ataque não confere nenhum direito a não ser o necessário a seu

fim, não entrevendo em tal ação legitimidade alguma para impor violência a seus membros74.

Essa violência - além da física - refere-se ao ato de pilhar e roubar bens particulares. Ao

73 Portanto a finalidade da guerra é política, como afirma Blaise Bachofen: “ qu’est-ce que gagner une guerre?

Em affirmant que la victoire n’est jamais de nature simplement militaire, mais toujours principalement politique,

que la guerre a pour finalité et pour enjeu le pouvoir durable sur des hommes - toutes ses autres déterminations

étant dérivées de celle-là -, Rousseau peut poser une relation logique entre l’enterprise militaire et les limites

normatives dans lesquelles celle-ci doit se maintenir.” (BACHOFEN, 2006, p. 135-136) 74 Cf. BECKER: “A guerra não conferindo nenhum direito que não aquele necessário a seu fim, que é a

destruição da convenção pública que anima o Estado inimigo, não confere legitimidade a nenhum ato de

violência, de barbárie ou de maus tratos à qualquer ser humano.” (BECKER, 2010a, p. 9)

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vencedor, cabe somente o direito a apropriar-se do que for público75. Só é legítimo tirar a vida

de seu inimigo enquanto ele empunhar armas. Depois de rendido, a legitimidade cessa, como

podemos ver nessa passagem:

Mas é claro que este pretenso direito de matar o vencido não decorre de

maneira alguma do estado de guerra. A guerra não é uma relação entre os homens, mas entre as potências nas quais os particulares não são inimigos

senão acidentalmente e menos como cidadãos do que como soldados. O

estrangeiro que rouba, pilha e detém os súditos sem declarar a guerra ao príncipe não é um inimigo, é um bandido, e mesmo em plena guerra um

príncipe justo apodera-se no país inimigo de tudo o que pertence ao público,

mas respeita a pessoa e os bens particulares, ele respeita os direitos sobre os quais está fundado seu próprio poder. O objetivo da guerra é a destruição do

Estado inimigo; tem-se o direito de matar seus defensores enquanto eles

estiverem de armas na mão, mas tão logo eles as depõem e se rendem cessam de ser inimigos ou antes instrumentos do inimigo e não se têm mais

o direito sobre suas vidas. Pode-se matar o Estado sem matar um único de

seus membros. Ora, a guerra não dá nenhum direito que não seja necessário a seu fim (ROUSSEAU, 2011, p. 170-171).

Assim, uma guerra legítima preceitua que os meios para atingir seu objetivo leve em

conta somente o necessário para destruição do ente moral. Como a guerra se dá entre tais

seres, qualquer violência desnecessária é vista como violação e o Príncipe responsável como

bandido. Ela é legítima também somente se houver “livre consentimento das partes

beligerantes, que se um quer atacar e que o outro não quer se defender não existe de maneira

nenhuma estado de guerra, mas somente violência e agressão” (ROUSSEAU, 2011, p.167).

Portanto, para que haja guerra, é preciso antes declará-la a seu inimigo e esperar que ele

defenda-se. Prescindindo essa relação, teremos a barbárie, onde o mais forte impõe sua

vontade ao mais fraco. Desta forma, faz-se necessário criar organismos internacionais com

força suficiente para obrigar os Estados a se pautarem por tais princípios. Mas o que

geralmente acontece nas Relações Internacionais é uma falsa sensação de justiça. Rousseau

diz que “a perfeição da ordem social consiste, é verdade, no concurso da força e da lei: mas é

preciso, para isso, que a lei dirija a força sozinha, falando aos cidadãos sob o nome de lei e

aos estrangeiros sob o nome de razão de Estado, tira destes o poder e dos outros a vontade de

resistir, de sorte que o vão nome de justiça serve em toda parte apenas de salvaguarda à

violência” (ROUSSEAU, 2011, p.155). A “justiça” então, é usada para se cometer os crimes

mais bárbaros em razão de interesses particulares e “quanto ao que se chama comumente de

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direito dos povos, é certo que, à falta de sanção, suas leis não são senão quimeras mais fracas

ainda do que a lei da natureza, esta fala pelo menos ao coração dos particulares, ao passo que

o direito dos povos, não tendo outra garantia senão a utilidade daquele que a ele se submete,

suas decisões só são respeitadas enquanto o interesse as confirma” (ROUSSEAU, 2011,

p.155).

A história da humanidade nos apresenta todos os cenários de destruição, torturas,

pilhagens e violências contínuas. Mas a história não pode legitimar tais fatos, não se trata de

verificar apenas se estes sempre ocorreram; deve-se perguntar se estes são inevitáveis, e mais,

se são justos. A intenção de Rousseau neste escrito é investigar as relações estabelecidas entre

os povos, do ponto de vista da legitimidade, do direito e da justiça. É o que fica evidenciado

em passagens como esta: “Rogo aos leitores não esquecerem de jeito nenhum que eu não

procuro o que torna a guerra vantajosa àquele que a faz, mas o que a torna legítima. E quase

sempre há um preço em ser justo. Estaremos, por isso, dispensados de sê-lo?” (ROUSSEAU,

2011, p. 165).

O autor lembra que a maior parte das guerras se dá em função de os governantes se

acharem acima das leis, pois em Estados bem organizados, estes deveriam contar com a

anuência do povo, antes de deflagrarem guerras, afinal, é o povo quem em última instância,

pagará pelos prejuízos. Mas as violências cometidas em nome “da razão de Estado” se valem

da completa ineficácia daquilo que no século XVIII se chamou de direito das gentes e que

hoje chamamos de direito internacional. Este, no entender do autor, não passa de quimera,

pois não possui qualquer sanção, só sendo respeitado quando há interesse. Rousseau

lembrava que a terra, o dinheiro e os demais despojos, dentre os quais incluiríamos hoje, o

petróleo e os diamantes; tornam-se os principais objetivos das hostilidades recíprocas. É essa

“baixa avidez” que faz com que as chamadas “guerras”, degenerem em pilhagem e que em

lugar de “inimigos e guerreiros tornamo-nos pouco a pouco Tiranos e ladrões” (ROUSSEAU,

2011, p. 165).

Assim, de homem a homem, vivemos num estado civil submetido às leis; de povo a

povo, cada um goza da liberdade natural. Rousseau dirá que tal situação em que se encontra o

gênero humano é a pior de todas, pois ao viver ao mesmo tempo na ordem social e no estado

de natureza, estamos sujeito aos inconvenientes de um e de outro, sem encontrar segurança

em nenhum dos dois (ROUSSEAU, 2011, p.155-155). É em função disso que Rousseau

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voltará suas atenções para os projetos de paz, seja o Projeto para tornar perpétua a paz na

Europa, do Abade de Saint-Pierre, seja o conceito de sociedade geral do gênero humano, de

Diderot, que veremos em seguida.

3.3 – PROJETOS DE PAZ

No verbete Direito Natural da Enciclopédia, Diderot constrói uma teoria do “Gênero

Humano” a partir do princípio de uma Vontade Geral como atributo essencial presente em

cada indivíduo que carrega em si uma única paixão: o bem de todos. Essa Vontade Geral

inata, que, conforme ele “é sempre boa, nunca se engana e nunca se enganará” aponta para

uma sociabilidade natural, algo que Rousseau chamará mais à frente de traité social, base

para a construção de uma sociedade geral do gênero humano que será rechaçada por ele

ponto a ponto no capítulo II do Manuscrito de Genebra. Assim, mostraremos, a partir da

crítica a Diderot, como Rousseau problematiza e nega a questão da formação de tal Sociedade

Geral utilizando como argumento a noção, para ele errônea de sociabilidade natural e

explicitação do conceito de Vontade Geral como racional, não inato, e, quando encarado do

ponto de vista das relações entre os Estados-Nação, particular.

3.3.1 – Da sociedade geral do gênero humano

O pretenso traité social, apontado por Rousseau, refere-se a tese naturalista, defendida

por Diderot, de que é a natureza que associa os homens, que os leva à constituir o Estado e

viverem juntos. Para ser mais exato, é a natureza humana sociável que determina tal condição.

A natureza, entendida como uma força exterior, submete o homem a uma existência pobre,

duvidosa, inquieta, bem nos moldes hobbesianos.

Segundo Souza, sob essa perspectiva “a vida em sociedade é entendida como um

instrumento natural que permite aos homens enfrentar com maior facilidade a luta pela

sobrevivência e pelo bem estar” (SOUZA, 2002, p. 126). Essa visão, que confere primazia à

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utilidade, é exposta mais claramente por Diderot no verbete Direito Natural, da Enciclopédia,

onde, em linhas gerais, como aponta Hubert, ele desenvolve a ideia de que:

a sociabilidade é uma tendência natural - é uma lei da razão, na medida em

que ela aspira ao bem comum da espécie inteira; seu princípio deve ser

buscado na identidade de natureza de todos os homens; ela é declarada por todos e se exprime nas instituições de todas as sociedades, nas práticas dos

homens entre eles, sejam os mais selvagens, e em certos sentimentos que

eles experimentam e manifestam espontaneamente (HUBERT, 1928, p. 35-6

apud BECKER, 2008, p.117).

O homem no estado de natureza, solitário e atormentado, é caracterizado como aquele

cujas paixões o levam a fazer aos outros o que ele não gostaria que lhe fizessem.

Raciocinando sobre isso, impulsionado pela lei da razão que o leva a ser justo, ele, então, é

obrigado a conceder ao próximo a mesma autoridade. Fazendo isso, acha-se dono da vida dos

outros porque ofereceu a sua em troca. E o outro, por sua vez, age da mesma maneira, criando

um estado de total insegurança. A saída, diz Diderot, é negar ao indivíduo o direito de

determinar o que é justo ou injusto, porque a vontade particular é sempre má. Essa questão só

pode ser decidida exclusivamente e com segurança pelo gênero humano - cuja única paixão é

o bem de todos - através da vontade geral que é sempre boa. (MONTEAGUDO, 2006, p. 79-

80). A vontade geral, para Diderot é um ato puro do entendimento que raciocina no silêncio

das paixões sobre aquilo que seu semelhante tem direito de exigir, servindo como regra de

conduta, dos particulares de uma mesma sociedade, de um particular em relação à sociedade

da qual é membro e da sociedade em relação a outras sociedades, e a submissão a ela é o laço

que une todas as sociedades e indivíduos que a consulta (DIDEROT, 2006, p. 81) “para saber

até que ponto deve ser homem, cidadão, súdito, pai, filho” (DIDEROT, 2006, p.81) isto é,

para reconhecer seu papel social. Portanto, cabe à vontade geral fixar os limites de todos os

deveres, servindo de guia seguro tanto para particulares quanto para as sociedades

constituídas. Logo, a ideia de um homem naturalmente sociável, naturalmente racional,

submisso a uma vontade geral igualmente inata e tendo como única paixão o bem de todos

fortalece a tese de uma sociedade geral do gênero humano.

Para Rousseau, entretanto, a expressão gênero humano oferece ao espírito apenas uma

ideia abstrata e coletiva que não supõe nenhuma união real entre os indivíduos que a

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constituem (ROUSSEAU, 1962, p. 172), além do mais, transportado para o plano empírico,

emergiria daí um ser moral que, necessariamente teria de ter qualidades próprias que o

diferenciassem das partes que o formam. Mais ainda, mesmo que o concebamos, continua ele,

com todos esses atributos, “juntamente com um móvel universal que leve cada parte a agir

visando a um fim geral e interessante ao todo” (ROUSSEAU, 1964, p. 173) verificaremos que

o progresso da humanidade acaba por abafar esse sentimento natural ao despertar o interesse

pessoal, contrário ao bem comum. Assim, para Rousseau, quando encarado sob um ponto de

vista mais realista, as dificuldades surgidas tornam o projeto de Diderot difícil de ser

praticado, funcionando somente nos sistemas de filosofia, como ele aponta nesta passagem do

capítulo II do manuscrito de Genebra:

Caso a sociedade geral existisse fora dos sistemas de filosofia, representaria,

como já afirmei, um ser moral possuidor de qualidades próprias e distintas

daquelas dos seres particulares que a constituem, mais ou menos como os compostos químicos, que possuem propriedades que não tomam dos mistos

que os compõem. Haveria uma língua universal que a natureza ensinaria a

todos os homens, o que seria o primeiro instrumento de sua mútua

comunicação. Haveria um tipo de sensório comum que serviria à correspondência de todas as partes. (ROUSSEAU, 1962, p.173)

Rousseau vê, na ausência total de qualquer evidência verificável na prática, a

dificuldade que a noção de sociabilidade natural nos apresenta (BECKER, 2008, p. 118). E

mais problemático ainda é, a partir disso, afirmar a existência de uma sociedade geral e

natural do gênero humano. Para ele, declarar tal fato pressupõe mais do que a constatação de

que fazemos parte de uma mesma espécie e que todos dessa espécie caminham na mesma

direção por possuírem os mesmos interesses. Pressupõe laços mais fortes como uma língua

universal, uma religião universal e etc. A percepção da diversidade de costumes dificulta, para

Rousseau, a ideia de uma sociedade geral do gênero humano. O fato de nos submetermos a

uma vontade geral inata também não resolve a questão, pois a vontade geral emerge dos

anseios e costumes dos vários grupos humanos distintos que se associam ao longo do planeta.

Nesta perspectiva, é oportuno destacar a diferença entre os conceitos de vontade geral

de Rousseau e Diderot. Enquanto para este a vontade geral é um “ato puro do entendimento

que raciocina no silêncio das paixões”, para aquele, a vontade geral é algo que se manifesta,

não no silêncio das paixões, mas no consenso coletivo obtido pela participação permanente do

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conjunto dos cidadãos nos assuntos da comunidade. A vontade geral, para ser geral, terá que

sê-la “tanto no objeto como na essência”, ou seja, partir de todos para aplicar-se igualmente a

todos (ROUSSEAU, 1973b, p. 55).

Nesse sentido, a noção de vontade geral de Diderot requer do homem segundo

Rousseau “um dos exercícios mais difíceis e tardios do entendimento humano” (ROUSSEAU,

1966, p. 175), a arte de generalizar ideias. E tal artifício requer um instrumento indispensável

a seu uso, o raciocínio. Ora, para Rousseau, não há razão inata, isso fica claro numa passagem

do livro II do Emílio onde ele sentencia: “De todas as faculdades do homem, a razão, que não

é, por assim dizer, senão um composto de todas as outras, é a que se desenvolve com mais

dificuldade e mais tardiamente.” (ROUSSEAU, 2004, p. 89-90) Portando, para o genebrino, é

improvável supor, nos primórdios da formação social, uma capacidade de raciocínio abstrato

que, mesmo em sociedades ditas civilizadas, somente poucos cidadãos alcançam e via

esforços incalculáveis (BECKER, 2008, p.119). No estado de natureza, não há vontade geral

nem razão, e mesmo que aceitássemos tal fato, eis que surgiriam mais dificuldades, como

Rousseau argumenta nesta passagem:

Ninguém discordará quanto a ser a vontade geral, em cada indivíduo, um ato puro do entendimento que raciocina, no silêncio das paixões, sobre aquilo

que o homem pode exigir de seus semelhantes e sobre o que este tem o

direito de exigir dele. Mas onde está o homem que possa assim separar-se de

si mesmo? E, se se preocupar com a própria conservação, pode-se força-lo a assim considerar a espécie em geral a fim de impor a si mesmo deveres com

sua constituição particular cuja ligação em absoluto não percebe? Não

subsistiriam sempre as objeções precedentes? E não teríamos, ainda, de ver de que modo seu interesse pessoal exige se submeta à vontade geral?

(ROUSSEAU, 1966, p. 173)

Onde está o homem capaz de realizar tal façanha, de, no estado de isolamento, se

deslocar para fora de si, pondo de lado todas as aspirações pessoais que não se coadunam com

o interesse geral e ouvir somente a voz interior para dela extrair as regras de sua conduta?,

indaga Rousseau. Como pode ter certeza de que, voltando para si, estará obedecendo às leis

ou seguindo suas próprias inclinações? A resposta a essa pergunta, segundo Diderot, pode ser

encontrada, ironicamente, “nos princípios do direito positivo de todas as nações civilizadas,

nas ações sociais dos povos selvagens e bárbaros, nas convenções tácitas dos inimigos do

gênero humano entre si e mesmo na indignação e no ressentimento” (DIDEROT, 2006, p.81).

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Resposta sutil, mas que levanta outra dificuldade: como estabelecer uma sociedade geral do

gênero humano de forma natural se, como percebe Rousseau, “essa voz não se constitui senão

pelo hábito de julgar e sentir no seio da sociedade e em concordância com as suas leis?”

(ROUSSEAU, 1966, p. 175) e consultar os princípios do direito escrito, as ações sociais de

todos os povos e as convenções tácitas dos próprios inimigos do gênero humano só faz

reafirmar a seguinte tese: é somente da ordem social estabelecida entre nós que extraímos as

ideias daquela que imaginamos. Ou seja, concebemos a sociedade geral segundo nossas

sociedades particulares. “O estabelecimento de pequenas repúblicas nos faz sonhar com a

grande” no entanto, “só começamos a nos tornar homens após termos sido cidadãos” diz ele.

(ROUSSEAU, 1966, p. 175) Tornando clara, segundo Becker, a intenção de Rousseau, ao

escrever o Cap. II do Manuscrito de Genebra, de expressar a necessidade do contrato em

contraposição à ideia de uma sociabilidade natural e de um direito anterior à convenção

(BECKER, 2008, p. 120) além de combater a naturalização da vontade geral, vista

erroneamente como um ato puro do entedimento. Ora, “como o entendimento só se

desenvolve em sociedade, ele nunca é puro. Por isso, é absurdo dar prioridade a leis do mundo

sobre as leis de um país”, afirma Ricardo Monteagudo. (MONTEAGUDO, 2006, p. 96) O que

nos remete, novamente, à necessidade de um Contrato como instrumento fundador da

sociedade civil.

Para concluir, voltando ao Cap. II do Manuscrito de Genebra, na ausência de uma

sociedade geral, Rousseau sugere que criemos novas associações. Que, a partir das lições

aprendidas a duras penas, com o auxílio do que ele chama de “arte aperfeiçoada”, possamos

formar sociedades bem constituídas, a fim de reparar os males que a arte começada causou à

natureza. Nas palavras dele: “Par de nouvelles associations, corrigeons, s’il se peut, le défaut

de l’association générale. (OC. III, p. 288)

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4 CONSIDERAÇÕS FINAIS

O objetivo do presente trabalho foi compreender o tema da guerra, dentro do projeto

das Instituições Políticas, a partir da trajetória percorrida por Rousseau desde as descrições de

um estado de natureza pacífico, passando pela emergência dos Estados e a consequente

deflagração do estado de guerra verificado nas relações internacionais. Para tanto precisamos

examinar sobretudo as obras: Discurso sobre a desigualdade, Contrato Social, Capítulo II do

Manuscrito de Genebra e Princípios do Direito da Guerra. Esta última integraria o projeto

que selaria a carreira de Rousseau: as Instituições Políticas, onde o autor trataria temas como

o direito das gentes, comércio, direito da guerra e conquistas etc., mas, conforme relato

apresentado nas Confissões, “embora já havia cinco ou seis anos eu trabalhasse nessa obra, ela

não estava ainda adiantada” (ROUSSEAU, 1959, p. 203), o que o levou a abandoná-la em

1759, três anos antes da publicação do Contrato. Segundo Becker o Princípios do direito da

guerra “faria parte da segunda seção, aquela relativa ao Direito das gentes e do Direito

público. Neste escrito, Rousseau contrapõe-se prioritariamente às teorias do inglês Thomas

Hobbes e do holandês Hugo Grotius.” (BECKER, 2010c, p. 02) A obra é composta por dois

textos que haviam sido publicados separadamente: Que o Estado de Guerra Nasce do Estado

Social, e Guerra e Estado de Guerra76, parte constituinte do volume III das Obras Completas

de Rousseau. Traduzido recentemente para o português77, surge como uma importante

contribuição para o enriquecimento das discussões acerca do Direito das Gentes na

modernidade. Importante frisar que tal discussão já aparecia em outros textos do autor como

os Escritos sobre o Abade de Saint-Pierre; livro V do Emílio; Os Despachos de Veneza;

Projeto de constituição para a Córsega e As considerações sobre o governo da Polônia,

Paralelo entre Sócrates e Catão, além de algumas passagens esparsas no Discurso sobre a

economia política e nas Cartas escritas da montanha, entre outras, porém, pelo tamanho do

empreendimento, que envolveria tais obras, não houve tempo hábil para analisá-las nesta

dissertação, guardamos esses textos para trabalhos futuros, atendo-nos somente àqueles que

fariam parte do projeto das Instituições Políticas.

76 Texto descoberto por Bernard Gagnebin em 1967. 77 Tradução de Evaldo Becker com revisão de Ricardo Monteagudo. Publicado na revista Trans/Form/Ação,

volume 34, n.1, ano 2011.

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Segundo Derathé “toda obra de Rousseau está centrada no conhecimento do homem”.

(DERATHÉ, 1984, p.1) Tomamos esta frase como fio condutor para unir as pontas e não

divagar além do necessário num tema tão vasto como a questão da natureza, da guerra e da

civilização. No primeiro capítulo, tentamos conhecer esse homem, mostrar sua jornada rumo

à civilização e o processo degenerativo que o levou de uma condição de vida simples a uma

realidade violenta e cruel, forçando-o a um pacto enganador, que trouxe mais problemas do

que soluções. A diferenciação entre homem natural, homem selvagem e homem civil, assim

como as questões acerca de um estado de natureza pacífico, mesmo com a insociabilidade

natural latente, nos deram subsídios para entender como Rousseau elabora sua teoria de uma

sociedade legítima.

No segundo capítulo, essa sociedade legítima foi examinada, a partir do Contrato

Social, pelos conceitos de liberdade, soberania e vontade geral. Vimos que essa vontade geral,

por ser particular em relação aos Estados, torna-se problemática quando encarada do ponto de

vista das relações internacionais, dificultando a criação de uma legislação que se aplique a

todo o globo e à fundação de um organismo supranacional que garanta o cumprimento dessas

leis; que a tentativa de compor uma legislação internacional acarreta em risco de molestar a

soberania dos Estados; e que, na falta de um arcabouço jurídico, no que diz respeito à

liberdade, vivemos numa condição mista: dentro do Estado, sob a proteção da liberdade civil;

fora dele, sob o perigo da liberdade natural. A conclusão é que, dentro das discussões sobre a

efetividade do Direito das Gentes, a guerra torna-se uma realidade insuperável, restando-nos

somente aprender a conviver com ela, juridicizando-a para que torne-se menos cruel e

violenta.

Pela complexidade do tema, essa pesquisa foi limitada apenas à análise dos textos que

comporiam as Instituições Políticas. Das informações que nos restaram acerca do que seria

objeto de estudo do autor se o projeto fosse levado a cabo, contamos apenas com algumas

informações contidas no final Contrato Social e no livro V do Emílio, como na passagem a

seguir:

Depois de ter assim considerado cada espécie de sociedade civil em si mesma, compará-las-emos para observar suas diversas relações: umas

grandes, outras pequenas, umas fortes, outras fracas, atacando-se,

ofendendo-se, destruindo-se umas às outras, e, nessa ação e reação contínua,

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fazendo mais miseráveis e custando a vida a mais homens do que se eles

tivessem conservado sua primeira liberdade. Examinaremos se não se fez

demais ou pouco demais na instituição social; se os indivíduos submetidos às leis e aos homens, enquanto as sociedades conservam entre si a

independência da natureza, não ficam expostos aos males dos dois Estados,

sem ter as vantagens, e se não seria melhor que não houvesse sociedade civil no mundo do que haver várias delas. Não é esse Estado misto que participa

de ambos e não garante nem um nem outro (...) Não é essa associação parcial

e imperfeita que produz a tirania e a guerra? E a tirania e a guerra não são os maiores flagelos da humanidade? (ROUSSEAU, 2004, p. 689-690)

O grande desafio que Rousseau tinha em vista era o de tentar superar esse impasse.

Como livrar-se dessa indesejável condição mista? Ainda no Emílio ele vislumbra uma saída:

“Examinaremos, enfim, a espécie de remédios que se inventaram para esses inconvenientes,

através das ligas e confederações que, deixando cada Estado ser senhor de si mesmo

interiormente, defendem-no exteriormente contra todo agressor injusto.” (ROUSSEAU, 2004,

p. 690) e finaliza indagando quais os critérios para se estabelecer uma boa associação

federativa, que seja duradoura e não fira a soberania. Nos Escritos sobre Saint-Pierre ele

adianta que essas ligas federativas defensivas regionais devem estabelecer-se de forma que

una “os povos por laços semelhantes aos que unem os indivíduos, submeta igualmente, uns e

outros, à autoridade das leis.” (ROUSSEAU, 1962b, p. 356) Reiterando que esse tipo de

governo “parece preferível a qualquer outro, porque compreende ao mesmo tempo as

vantagens dos grandes e dos pequenos Estados, porque fora dele é temido por seu poderio,

porque nele as leis estão em vigor, e porque é o único a conter igualmente os súditos, os

chefes e os estrangeiros.” (ROUSSEAU, 1962b, p. 356). Nas Considerações sobre o Governo

da Polônia Rousseau volta a enfatizar a questão das federações como sendo a única maneira

de reunir as vantagens dos grandes e dos pequenos Estados. Mas mesmo assim não se

convence de que esse tipo de organização seja ideal para garantir definitivamente a segurança

de seus membros. Ele alerta sobre isso ao final do Juízo sobre a paz perpétua: “Nunca se

veem ligas federativas estabelecerem-se que não por meio de revoluções e, com base nesse

princípio, qual de nós ousaria afirmar desejável ou temível essa liga (...)? Talvez ela causasse,

de pronto, mal maior do que aquele que não preveniria por muitos séculos.” (ROUSSEAU,

1962b, p. 388) No fim, o realismo volta à tona, acentuando ainda mais o pessimismo do

Genebrino.

As questões acerca de um Estado bem constituído, melhor preparado para relacionar-

se com seus pares externamente passa também pela formação do homem que viverá dentro do

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Estado. Portanto, além de político, a resposta, ou pelo menos um ponto de partida para essas

questões, passa pela pedagogia. O Contrato Social nos dá subsídios para a construção de uma

sociedade legítima, sua proposta é formar cidadãos para viver em sua pátria, em conformidade

com suas leis, seus costumes, não o prepara para o cosmopolitismo. Na verdade, Rousseau

nem acredita nele, e, num fragmento intitulado, Parallèle de Socrate et Caton78, toma partido

de Catão, preferindo seu patriotismo a Sócrates, que se denominava “cidadão do mundo”. A

questão do patriotismo visto da perspectiva das relações externas também estava no horizonte

do autor. No final do livro V do Emílio, depois de investigar qual forma de governo cabe

melhor a cada tipo de sociedade, ele enfatiza a importância do vínculo do cidadão com seu

país: “É seguindo o fio dessas pesquisas que chegaremos a saber quais são os deveres e os

direitos dos cidadãos e se podemos separá-los uns dos outros; o que é a pátria, em que ele

consiste precisamente e como cada um pode saber se tem ou não pátria.” (ROUSSEAU, 2004,

p.689) Talvez mais à frente, em trabalhos futuros, valha a pena tentar captar essa ampliação

do significado de pátria que Rousseau tentaria operar ao passar das relações internas de um

corpo político particular a relações gerais entre pátrias, isto é, entre Estados-nação

particulares79.

Natureza e civilização são vistos pela tradição de comentadores de Rousseau como

duas estruturas excludentes, ou inimigas. De maneira que, para uma prosperar a outra

necessariamente deve ser superada. Olhando pelo viés econômico, progressista, tal assertiva

encontra respaldo, mas devemos lembrar que Rousseau tinha como ponto de partida para

desenvolver seus argumentos o homem80. Nele podemos encontrar os dois mundos

entrelaçados em sua constituição natural. Enquanto homem primitivo, seus atributos mais

desenvolvidos eram aqueles ligados ao instinto: amor de si e piedade. À vida natural só

bastava a ação desses dois atributos, porém, a natureza incutiu mais duas faculdades, que para

o homem primitivo eram supérfluas: a liberdade e a perfectibilidade. Estas permaneceriam em

estado de hibernação até serem ativadas no estado social, passando da potência ao ato. Assim,

elas seriam instrumentos de adaptação ao meio social e se a natureza as colocou em reserva é

porque o homem, se não é sociável por natureza, ao menos foi feito para tornar-se sociável.

Dessa forma, a natureza humana só pode manifestar todas as suas potencialidades na vida

social, que, segundo consta no Contrato Social, fez de um ser estúpido e limitado, um ser

78 Cf: OC. III, p. 1896. 79 Agradeço ao Professor Dr. Thomaz Kawauche por chamar atenção acerca desse tema. 80 Diz Rousseau logo no início do Emílio: “Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana.” (ROUSSEAU,

2004, p. 15)

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inteligente e um homem. Portanto, não é definitiva e nem absoluta a ideia de que a sociedade

se opõe à natureza. A oposição, num certo sentido é acidental e não está excluído que a

influência da sociedade se exerça no sentido da natureza, permitindo à natureza humana se

desenvolver e atualizar suas virtualidades, pois, como aponta Derathé, citando Pierre

Burgelin, “a natureza atual do homem é infinitamente mais do que o homem natural.”

(DERATHÉ, 1984, p. 6-7)

Assim, como o estado de natureza não consegue conter o homem, ele é levado

inexoravelmente à vida social. Rousseau não opta decisivamente por nenhuma das duas

condições, e o termo “Bom Selvagem” atribuído a ele, sem nunca tê-lo mencionado, só faz

estereotipar seu pensamento, o transformando num saudosista, num ferrenho defensor do

retorno à vida selvagem. Ele próprio desmente tal ideia ao afirmar que o selvagem do

Segundo Discurso não é senão “um animal limitado às puras sensações”, um homem

incompleto que só ganha estatuto de Homem quando ingressa na vida em sociedade. Mas a

que preço? A grande crítica de Rousseau à sociedade não é a ela em si, ou seja, não é a ideia

de vida social que o repugna, mas as consequências que ela trouxe ao subverter os atributos

essenciais que davam brilho à condição humana. Aos abusos de suas faculdades. Por isso a

saída encontrada foi a de, por meio de um pacto de associação, edificar uma sociedade civil

que tenha como ponto de partida respeitar as características naturais do homem, obscurecida

pela névoa da desigualdade que o transformou em escravo, ladrão e burguês81; e transportá-lo

para uma nova realidade onde uma sociedade legítima é moldada para comportá-lo, e onde ele

é autor de sua própria existência.

O Estado surge, e com ele a guerra propriamente dita. Segundo Bachofen, a

originalidade da tese de Rousseau não está em demonstrar que o estado de guerra só surge

com a entrada na vida civil, mas a partir da instituição do Estado como uma forma específica

de organização social82. Desta forma a guerra tem origem antropológica ou sociológica?

Rousseau não conseguiu dar conta dessa nova realidade talvez porque desde sempre sua

intenção e interesse era trabalhar o homem e as relações entre eles, o que já se constitui um

81 Cf. “Burguês é o homem civil do Segundo Discurso, o homem que vive pela opinião dos outros, e se dedica

tanto a ‘parecer’ que chega a perder, por assim dizer, o sentimento de sua própria existência.” (DERATHÉ,

1984, p. 04) Jean Starobinski em Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo faz uma análise

aprofundada do desse tema. 82 Cf: “La thèse originale de Rousseau n’est donc pas de lier l’apparition de la guerre à l’apparition de la vie

sociale; ce qui est véritablement nouveau est de dire que c'est l'institution de l'État comme mode spécifique

d'organisation sociale qui explique l'avenèment de la guerre dans l'histoire humaine.” (BACHOFEN, 2006, p.

141)

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esforço hercúleo. Já os Estados são entes morais, seres sem características definidas que se

medem e se conhecem por comparação. Como conhecer a fundo tais entidades? Como aplicar

leis e assegurar que obedeçam? Como justificar algo tão terrível como a guerra? As respostas

ainda estão em aberto até os dias de hoje. Rousseau pode nos ajudar a pensar acerca desses

problemas.

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