UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nunca acreditei que a liberdade do homem...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
NÍVEL MESTRADO
CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA
EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
DE J.-J. ROUSSEAU
São Cristóvão
2014
CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA
EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
DE J.-J. ROUSSEAU
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre
em Filosofia, no Programa de Pós-
graduação em Filosofia da Universidade
Federal de Sergipe.
Orientador. Prof. Dr. Evaldo Becker
São Cristóvão
2014
CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA
EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
DE J.-J. ROUSSEAU
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre
em Filosofia, no Programa de Pós-
graduação em Filosofia da Universidade
Federal de Sergipe.
Orientador. Prof. Dr. Evaldo Becker
Aprovada em 27 / 02 / 2014 .
COMISSÃO EXAMINADORA
Dr. Evaldo Becker – Universidade Federal de Sergipe (Presidente)
Dr. Milton Meira do Nascimento – Universidade de São Paulo
Dr. Thomaz Massadi Kawauche – Universidade Federal de Sergipe
Dr. Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd – Universidade Federal do Ceará
(Suplente)
Este estudo é dedicado aos meus pais.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer em particular aos meus pais, José Américo (in memoriam) e Judite
Lopes, meus exemplos de vida. Aos meus irmãos e irmãs pela alegria e coragem que sempre
me transmitem. À minha querida namorada, Nane Nascimento, pelo carinho e paciência que
me tem dedicado na reta final de pesquisa. Aos colegas da Universidade Federal de Sergipe
pelo apoio e incentivo.
Aos professores do Mestrado pela dedicação, auxílio e orientação dessa dissertação,
em especial ao Dr. Evaldo Becker cujos estudos e pesquisa muito me instigaram.
À CAPES pelo apoio financeiro.
A todos o meu muito obrigado.
Nunca acreditei que a liberdade do homem consiste em fazer o
que quer, mas sim em nunca fazer o que não quer, e foi essa
liberdade que sempre reclamei, que muitas vezes conservei, e me
tornou mais escandaloso aos olhos dos meus contemporâneos.
Porque eles, ativos, inquietos, ambiciosos, detestando a liberdade
nos outros e não a querendo para si próprios, desde que por vezes
façam a sua vontade, ou melhor, desde que dominem a de outrem,
obrigam-se durante toda a sua vida a fazer o que lhes repugna, e
não descuram todo e qualquer servilismo que lhes permita
dominar.
JEAN-JACQUES ROUSSEAU. Os devaneios do
caminhante solitário.
RESUMO
CORREIA, Cristiano A. Em torno das Instituições Políticas de Jean-Jacques Rousseau. 2014.
84f. Dissertação (Mestrado). Centro de Educação e Ciências Humanas. Programa de Pós-
Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Sergipe, São
Cristóvão, 2014.
O objetivo geral da presente dissertação é investigar o tema da guerra, dentro do projeto das
Instituições Políticas, a partir da trajetória percorrida por Rousseau desde as descrições de um
estado de natureza pacífico, passando pela emergência dos Estados e a consequente
deflagração do estado de guerra verificado nas relações internacionais. Para tanto é
fundamental que se examine o assunto em vista de maneira linear, mantendo como centro o
conhecimento do homem. O caminho a ser percorrido é o que leva à degeneração do ser
humano a partir do ingresso na sociedade civil. Tal ingresso tem como proposta fomentar e
manter a paz, porém, com o advento do Estado, ser moral cuja extensão e força são puramente
relativas, cria uma correspondência desigual entre eles, engendrando guerras. Assim, o
homem se vê numa condição mista: como indivíduo isolado, refém da lei natural; como
cidadão partícipe da ordem social, submetido à lei civil; e como povo soberano, livre para
relacionar-se com outros povos numa esfera internacional carente de mecanismos reguladores.
Assim, dividimos a presente pesquisa em dois Capítulos. No primeiro, trataremos a questão
do homem natural e do estado de natureza - caracterizado por Rousseau como um período de
isolamento e simplicidade - até o momento do pacto “histórico”, gerador de uma ordem social
corrupta, fruto da degeneração dos atributos naturais do homem ao ingressar na vida em
sociedade. O Estado é criado, e com ele nasce a guerra. No segundo capítulo, apresentaremos
o tema da fundação dos Estados-Nação e suas relações na esfera internacional. Abordaremos
a questão da formação de uma sociedade legítima, bem constituída, como remédio para
amainar as agruras decorrentes do “pacto histórico”. Trabalharemos sobretudo com os
conceitos de liberdade, soberania e vontade geral. Em seguida adentraremos no tema da
guerra, destacando os conceitos de estado de guerra e guerra legítima, ressaltando mais ainda
o pessimismo de Rousseau acerca de uma solução definitiva para o problema. Por fim,
apresentaremos o debate entre Rousseau e Diderot acerca da possibilidade de uma sociedade
geral do gênero humano como solução para a paz. Nossa hipótese é a de que o projeto das
Instituições Políticas, como um todo, se concretizado, traria elementos que colocariam
Rousseau como um escritor mais próximo do realismo político do que a tradição e os manuais
de filosofia supõem, tentando assim, dar nossa pequena contribuição à imensa bibliografia
sobre o tema. Os principais textos de Rousseau aqui analisados são: o Discurso sobre a
Desigualdade, o Contrato Social, o Princípios do direito da guerra e o segundo capítulo do
Manuscrito de Genebra intitulado Da sociedade geral do gênero humano. Estes três últimos
comporiam o projeto inacabado das Instituições Políticas.
Palavras-chave: Rousseau; Estados-Nação; estado de guerra; instituições políticas; relações
internacionais.
ABSTRACT
CORREIA, Cristiano A. Around the Political Institutions of Jean-Jacques Rousseau. 2014.
84f. Dissertation (Master's degree). Center for Education and Human Sciences. Graduate
Program in Philosophy. Department of Philosophy, Universidade Federal de Sergipe, São
Cristóvão, 2014.
The general aim of this dissertation is to investigate the subject of war, inside the project of
Political Institutions, from the trajectory followed by Rousseau provided descriptions of a
peaceful state of nature, through the emergence of the United State and the consequent
outbreak of war found in international relations. The way to go is what leads to the
degeneration of the human being from the entrance into civil society. This entry has the
purpose to promote and maintain peace, however, with the advent of the State, moral being
whose extent and strength are purely relative, creates an unequal match between them,
engendering wars. Thus man is seen in a mixed condition: as an isolated individual, hostage
of natural law; citizen as a participant of the social order, subject to civil law; and as a
sovereign people, free to relate with other people in an international sphere lacks regulatory
mechanisms. Thus, this research divided into two chapters. At first we treat the question of
the natural man and the state of nature - characterized by Rousseau as a period of isolation
and simplicity - yet the 'historic' pact, pact generator of a corrupt social order, the result of
degeneration of the natural attributes of man to join in society. The state is created, and with it
comes the war. In the second chapter, we will introduce the theme of the foundation of
Nation-States and their relations in the international sphere. Address the issue of formation of
a legitimate company, and incorporated as a remedy for dropping the hardships resulting from
the "historical pact". We will work primarily with the concepts of freedom, sovereignty and
general will. Then discuss the theme of war, highlighting the concepts of state of war and
legitimate war further emphasizing Rousseau's pessimism about a permanent solution to the
problem. Finally, we present the debate between Rousseau and Diderot on the possibility of a
general society of humankind as a solution for peace. Our hypothesis is that the project of
Political Institutions, if realized, would bring elements that would put Rousseau as a closer
writer of political realism than tradition and philosophy manuals suppose, trying to give our
little contribution to the vast literature on the theme. The main texts of Rousseau discussed
here are: the Discourse on Inequality, Social Contract, Principles of the law of war and the
second chapter of the Geneva Manuscript entitled The general society of humankind. These
last three make up the unfinished project of Political Institutions.
Keywords: Rousseau; nation states, state of war, political institutions, international relations.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10
2. ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL. .......................... 14
2.1 O Homem Natural .......................................................................................................... 19
2.1.1 Liberdade Natural: reflexão e escolha .......................................................................... 22
2.1.2 Perfectibilidade: “a gênese do mal” .............................................................................. 25
2.1.3 Amor de si versus amor próprio e a ideia de propriedade ............................................ 27
2.1.4 Piedade natural (pitié) ................................................................................................. 29
2.2 Estado de Natureza Histórico: da paz à violência ........................................................ 33
2.2.1 Das associações livres à sociedade começada ............................................................. 34
2.2.2 Transição para o estado civil: violência, pacto enganador e servidão ......................... 37
3. DA FUNDAÇÃO DOS ESTADOS-NAÇÃO ÀS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS ......................................................................................... 43
3.1 Contrato Social: formação da sociedade legítima ........................................................ 44
3.1.1 Lei e Liberdade ............................................................................................................ 48
3.1.2 Soberania ..................................................................................................................... 50
3.1.3 Vontade Geral .............................................................................................................. 53
3.2 Princípios do direito da guerra ..................................................................................... 55
3.2.1 Guerra e Estado de Guerra ........................................................................................... 57
3.2.2 Tensão entre indivíduo e Estado: O estabelecimento do Estado-nação e a
Guerra entre potências ............................................................................................................ 62
3.2.3 Guerra Legítima, violência e justiça ............................................................................ 64
3.3 Projetos de paz ............................................................................................................. 68
3.3.1 Da sociedade geral do gênero humano ........................................................................ 68
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 73
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 79
1 INTRODUÇÃO
A preocupação com temas que envolvem o estabelecimento e a legitimação dos
Estados-Nação, bem como a problemática em torno das relações entre Potências num
ambiente internacional carente de legislação e de um organismo supranacional forte o
bastante para assegurar que os direitos fundamentais de cada Povo ou Nação sejam
respeitados e, ao mesmo tempo, garantir a autogestão independente dos povos no interior dos
diversos Estados, começa a tomar forma na Modernidade com obras como: Direito da
Guerra e da Paz (1625) de Hugo Grotius; De Cive (1642) de Thomas Hobbes e o Projeto
para tornar perpétua a paz na Europa (1713) do Abbé de Saint-Pierre. Em meados de 1759,
Rousseau abandona o que seria sua grande obra, as Instituições Políticas, dela extraindo
trechos já acabados para publicar o Contrato Social1. O que restou, segundo o autor, foi
queimado.
Porém, no final do século XIX, é encontrado na Biblioteca de Genebra, Suíça, um
manuscrito que continha uma versão do Contrato Social acompanhada de alguns fragmentos
do texto Economia Política, publicado na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert. Como
aponta Lourival Gomes Machado:
O texto, tal como foi descoberto, mostra-se fragmentário, só alcançando
mais ou menos a metade da versão definitiva do Contrato, porém essa mutilação parece provir de acidente posterior, havendo indícios de que
Rousseau o redigiu inteiramente. Tal como hoje o conhecemos, compreende
uma versão que alcança os dois primeiros livros do Contrato, mais o capítulo I do livro III. Houve, contudo, algumas modificações: o capítulo inicial do
Manuscrito cedeu lugar à introdução do livro I que, na versão definitiva,
define o objeto da obra; o segundo capítulo, bastante extenso e versando a Sociedade Geral do Gênero Humano, foi suprimido. (MACHADO, 1962,
p.5)
Nesse capítulo suprimido, Rousseau debate com Diderot acerca da possibilidade da
formação de uma sociedade geral do gênero humano. 1 No capítulo V do Emílio, Rousseau faz um resumo do que seria o conteúdo das Instituições Políticas,
apontando que as questões que irá examinar “foram em sua maioria extraídas do Tratado do Contrato Social,
ele próprio extraído de uma obra maior, empreendida sem consultar minhas forças e abandonada há muito
tempo”. (ROUSSEAU, 2004, p. 683)
11
Em 1967, Bernard Gagnebin descobre o fragmento Guerra e estado de guerra, que
passa a integrar o volume III das Obras Completas de Rousseau nas edições subsequentes da
Pléiade, juntamente com os textos Que o estado de guerra nasce do estado social e
Fragmentos sobre a guerra. Em 2005 uma nova versão estabelecida por Bruno Bernardi e G.
Silvestrini junta esses três fragmentos em um só texto intitulado Princípios do direito da
guerra2. Para montar o quadro do que seriam as Instituições Políticas, contamos também com
algumas informações fornecidas pelas Confissões,3 além de uma espécie de resumo no final
do livro V do Emílio4, porém, é no último capítulo do livro IV do Contrato Social que
encontramos um panorama fiel do conteúdo a ser desenvolvido, escrito em um melancólico
tom de despedida pelo próprio Rousseau:
Depois de haver estabelecido os verdadeiros princípios do direito político e ter
me esforçado por fundar o Estado em sua base, ainda restaria ampará-lo por
suas relações externas, o que compreenderia o direito das gentes, o comércio, o direito da guerra e as conquistas, o direito público, as ligas, as negociações,
os tratados, etc. tudo isso, porém, forma um novo objeto muito vasto para as
minhas curtas vistas, e eu deveria fixá-las sempre mais perto de mim.”
(ROUSSEAU, 1973b, p.151)
Assim, as questões acerca da relação entre Estados faziam parte do horizonte do autor,
que, mesmo não levando o projeto a termo, deixou pistas que nos possibilitam investigar de
que modo o empreendimento seria tratado.
Desta forma, o objetivo geral da presente dissertação é compreender o tema da guerra,
dentro do projeto das Instituições Políticas, a partir da trajetória percorrida por Rousseau
desde as descrições de um estado de natureza pacífico, passando pela emergência dos Estados
e a consequente deflagração do estado de guerra verificado nas relações internacionais, tendo
como pontos centrais questões envolvendo, sobretudo, a natureza humana, a sociabilidade
natural, a sociedade legítima e o estado de guerra. A ideia de que o estado de guerra é
posterior ao estabelecimento das sociedades não é óbvia e requer uma análise minuciosa da
obra de Rousseau para compreender como ele articula esta argumentação que é dirigida contra
as teorias em voga em seu tempo. O óculo a ser usado terá seu foco centrado na constituição
2 Ver prefácio de Evaldo Becker in: ROUSSEAU, J.-J. Princípios do Direito da Guerra. Tradução de Evaldo
Becker. Revista Trans/Form/Ação, Marília, v.34, n.1, p.69-91, 2011. 3 Ver: Confissões, livro VIII, p. 187-188; livro XI, p. 202; livro IX, p. 203; livro IX, p. 230-231; livro X, p. 369. 4 Ver: Emílio, livro V, p. 676-694.
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natural do homem e como ela vai sendo modificada, até alcançar o ápice degenerativo na vida
civil.
Para dar conta de tal empreendimento, dividimos o presente trabalho em dois
capítulos. No primeiro, intitulado: Estado de natureza: A trajetória civilizacional,
investigaremos, à luz do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens, a noção de “estado de natureza puro” e “estado de natureza histórico”, mostrando
também como Rousseau dá forma e distingue a ideia de homem natural, homem em estado de
natureza ou selvagem e homem civilizado, por meio da apresentação dos quatro atributos
naturais constituintes da natureza humana. O percurso até a civilização tem origem com o
aparecimento do homem primitivo, alcançando o vértice na instituição da propriedade privada
e consequente quebra da igualdade e liberdade naturais, que marcam a entrada no estado civil.
O ponto de convergência girará em torno da caracterização da natureza humana, abordando
questões acerca da liberdade natural, sociabilidade e violência.
Nosso objetivo, nesse primeiro momento, é mostrar que tais questões são
fundamentais e incontornáveis para o entendimento da teoria política de Rousseau
desenvolvida no Contrato, com vistas ao estabelecimento dos Estados-nação a partir da
formação de uma sociedade legítima pautada pelos conceitos de soberania e vontade geral,
que se ligarão irremediavelmente à problemática trabalhada na segunda parte da nossa
investigação intitulada: Fundação dos Estados-Nação e relações internacionais.
Nesta segunda parte, mostraremos como Rousseau tenta trazer uma solução para
amainar as agruras decorrentes do ingresso do homem na sociedade por meio de um pacto de
associação que visa recuperar um pouco do que se perdeu lá atrás, na vida primitiva. Com
isso, procuraremos estabelecer as noções de Sociedade Legítima, Estado, Soberania e
Vontade Geral como pontos importantes para adentrarmos no pensamento político do autor.
O que diferencia tal pensamento do de outros pensadores de sua época é a concepção de
Vontade Geral como instrumento decisório do povo, que exerce a função de Soberano,
atribuindo ao Governo papel secundário de mero funcionário limitado à função de
administrador. A seguir, analisaremos quais problemas emergem das relações entre Estados.
O horizonte é ampliado, tendo como viés os conflitos entre Potências, seres morais
independentes que tentam sobreviver numa ordem social moldada para a vida dentro do
Estado com o intuito de regular as relações entre pessoas. O tópico centra-se na proposta de
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uma “juridicização” da guerra como saída para diminuição da belicosidade. A falta de um
arcabouço jurídico, de leis internacionais que não firam a independência das nações e
preservem a paz; e a criação de uma instituição supranacional forte o bastante para imputar
sanções a Estados hostis é problematizada a partir do estudo de um texto pouco conhecido de
Rousseau: Princípios do Direito da Guerra. No decorrer da investigação apresentaremos
noções de guerra, estado de guerra, guerra legítima, violência e justiça, mostrando, sempre
que necessário, a crítica de Rousseau ao insensato sistema de Hobbes. Por fim,
apresentaremos a querela entre Rousseau e Diderot acerca da possibilidade do
estabelecimento de uma sociedade geral do gênero humano a partir dos conceitos de gênero
humano, vontade geral inata e sociabilidade natural.
Os principais textos de Rousseau analisados serão: o Discurso sobre a Desigualdade;
e os textos que comporiam as Instituições Políticas: Contrato Social, Princípios do direito da
guerra e o segundo capítulo do Manuscrito de Genebra intitulado Da sociedade geral do
gênero humano. A hipótese aqui levantada é que o projeto das Instituições Políticas - apesar
de se preocupar com os princípios de legitimidade e justiça - se concretizado, traria
elementos que colocariam Rousseau como um escritor mais próximo do realismo político do
que a tradição e os manuais de filosofia supõem. Sobretudo a segunda parte da obra, que
trataria da política externa.
2 ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL
Em meados de 1743, o jovem Rousseau, depois de dura viagem alongada por duas
semanas de quarentena forçada ocasionada por uma epidemia de peste, desembarca em
Veneza, a pedido do Conde de Montaigu, para assumir um cargo que traria consequências
decisivas ao desenvolvimento de seu pensamento político: o de secretário da embaixada
francesa. A fama como pensador político estava por ser construída. Até aquele momento,
Rousseau era conhecido apenas como músico talentoso na cena cultural parisiense5. A
atividade na chancelaria lhe permitia observar a política externa e seus meandros na Europa
do Século XVIII. O trato com os assuntos de Estado o fez perceber como leis frágeis e um
sistema facilmente corrompível colocavam em risco a ordem social. Tudo se ligava
irremediavelmente à política. A percepção de tal fato certamente impactou o irrequieto
Rousseau, despertando um interesse crescente e genuíno pelo tema, que culminaria, anos mais
tarde, no célebre episódio da “iluminação de Vincennes” desencadeado a partir da leitura, no
Mercure de France, da famosa questão proposta pela academia de Dijon por ocasião do
concurso de 17506.
As primeiras impressões, colhidas no exercício da função, levaram-no a uma
importante asserção, que serviria de base, mais tarde, para o desenvolvimento de seus escritos
políticos, conforme relatado nas Confissões:
Desde então, minhas vistas se estenderam muito para o estudo histórico da
moral. Vi que tudo se prendia radicalmente à política, e que, de qualquer
modo que se procedesse, nenhum povo seria nunca senão o que a natureza do seu governo quisera que ele fosse. De forma que essa grande questão do
melhor governo possível parecia-me que se reduzia a isto: ‘Qual é a espécie
de governo próprio a formar o povo mais virtuoso, mais esclarecido, mais
sábio, o melhor, em suma, tomando a palavra no seu maior sentido?’ Eu supunha que essa questão se aproximava muito desta outra, se por acaso
fosse realmente diferente: ‘Qual é o governo que, por sua natureza, se
5 A primeira incursão de Rousseau como escritor político foi no Projeto para a educação de M. Saint-Marie, um
pequeno escrito precursor do Emílio onde ele recomendaria a leitura de Grotius e Pufendorf a seus discípulos
afirmando que “é digno de um homem conhecer os princípios do bem e do mal, e os princípios sobre os quais se
estabeleceu a sociedade de que participa.” (ROUSSEAU, O.C. V.II, p. 51) 6 A referida questão é a seguinte: “Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou apurar os
costumes”. Vencida por Rousseau com o “Discurso sobre as ciências e as artes”. Onde ele defende a tese de que
o progresso moral não caminha na mesma direção do progresso científico e artístico.
15
mantém sempre mais próximo da lei?’ E daí, ‘qual é a lei’, e uma cadeia de
questões da mesma importância. (ROUSSEAU, 1959, v. II, p.202-203)
É partindo do estudo da moral, ou do estudo dos princípios das paixões7, que Rousseau
pretende apontar os vícios da sociedade constituída e propor uma nova forma de associação
legítima cujos princípios devem ser buscados não nos fatos históricos, mas, sobretudo, na
natureza humana. A questão do melhor governo possível e não de um governo ideal, já de
saída, aponta para um tema controverso em Rousseau: afinal, sua teoria política se encaixaria
na corrente dos escritores ditos utópicos, idealistas, ou há traços em seu pensamento que nos
permitiriam inseri-lo no círculo de autores mais próximos do realismo político? Rousseau
certamente não era um entusiasta da história, ou dos “fatos”, como modelo para a construção
de uma sociedade justa, bem como para a confecção de leis, mas não a descartava
inteiramente. Se ela, a história, não podia ser usada para legitimar as sociedades, para compor
leis, ao menos servia como poderosa ferramenta de crítica social, de importante fonte de
pesquisa para fundamentar os perigos da artificialidade em face do natural. E mais uma vez o
homem é o personagem central e ponto de partida para os desdobramentos de seu
pensamento. Para cada ideia que um autor tinha da natureza humana, necessariamente adviria
uma sociedade com seus governos e leis correspondentes.
O projeto das Instituições Políticas, portanto, deveria iniciar-se pelo Homem, pela
“antropologia8”, mais de perto, por uma investigação da natureza humana, pois é ela que
fornecerá subsídios para fundar, a partir de uma teoria crítica da sociedade, as bases para a
formação de uma sociedade legítima e de Estados convenientemente constituídos. Pois bem,
em 1754, surge um dos mais importantes “estudos históricos da moral” do séc. XVIII, o
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Nesse ensaio,
que obteve o segundo lugar no concurso de 1753 da Academia de Dijon, Rousseau retoma sua
7 “Pour suivre avec fruit l'histoire du genre humain, pour bien juger de la formation des peuples et de leurs
révolutions, il faut remonter aux principes des passions des hommes, aux causes générales qui les font agir.
Alors, en appliquant ces principes et ces causes aux diverses circonstances où ces peuples se sont trouvés, on saura la raison de ce qu'ils ont fait, et l'on saura même ce qu'ils ont dû faire dans les occasions où les événements
nous sont moins connus que les situations qui les ont précédés.
Sans ces recherches, l'histoire n'est d'aucune utilité pour nous, et la connaissance des faits dépourvue de celle de
leurs causes ne sert qu'à surcharger la mémoire, sans instruction pour l'expérience et sans plaisir pour la raison.”
(ROUSSEAU, OC, III, p. 529) 8 Autores, como Rolf Kuntz, utilizam o termo “etnografia”. Ver: KUNTZ, Rolf. Fundamentos da teoria política
de Rousseau. São Paulo: Barcarolla, 2012. Claude Lévi-Strauss que aponta Rousseau como o precursor da
antropologia em “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem” publicada na coletânea:
Antropologia Estrutural Dois. Tradução de Sonia Wolosker. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.
16
crítica à sociedade civil, iniciada no Discurso sobre as ciências e as artes, a partir da premissa
de que a desigualdade, e não as ciências e as artes, era a principal responsável pela decadência
moral do homem e consequentemente, da sociedade. Sociedade institucionalizada por um
pacto, segundo ele, enganador. Arquitetado pelos ricos para ludibriar os mais pobres, que,
seduzidos por uma falsa promessa de segurança e justiça social, ingressam no mundo
civilizado, não sabendo que estavam, na verdade, entregando-se à servidão. A saída proposta
por Rousseau para superar tal realidade é a formação de um novo pacto. Assim, o Segundo
Discurso prepara o terreno para a obra responsável por alçar Rousseau ao patamar dos
grandes escritores políticos da modernidade e que faria parte das Instituições Políticas: o
Contrato Social.
Desta forma, no capítulo a seguir, investigaremos, sobretudo à luz do Segundo
Discurso, as noções de “estado de natureza puro” e “estado de natureza histórico”, mostrando
como Rousseau dá forma e distingue a ideia de homem natural, homem em estado de natureza
ou selvagem, e homem civilizado, por meio da descoberta dos quatro atributos naturais:
liberdade, perfectibilidade, piedade ou pitié e amor-de-si. O percurso até a civilização tem
início com a caracterização do homem metafísico, importante para compreendermos o homem
primitivo solitário, que, sobretudo por forças externas, é levado a socializar-se. Ao mesmo
tempo em que tal socialização tira-o de uma existência puramente animal, elevando-o à vida
moral, desenvolvendo “suas mais nobres faculdades”, o transporta de uma realidade simples e
“pura” para uma outra complexa, repleta de novas necessidades, geradora de vícios terríveis e
de uma realidade que nenhuma espécie deseja viver, o estado de guerra.
Pois bem, no prefácio ao Segundo Discurso, Rousseau indaga: “Quais as experiências
necessárias para chegar-se a conhecer o homem natural e quais os meios para fazer tais
experiências no seio da sociedade?” (ROUSSEAU, 1973a, p.236). Tal questão é formulada
com o objetivo de tentar encaminhar, a princípio, a resolução de um problema que, segundo o
genebrino, causava discordância entre os mais diversos autores que se debruçaram sobre o
espinhoso tema, a saber: a definição de direito natural. O caminho a percorrer passaria por
uma criteriosa investigação do homem natural tencionando atingir um ponto em comum sobre
a questão, “pois, como diz o Sr. Burlamaqui, a ideia do direito e, mais ainda, a do direito
natural, são evidentemente ideias relativas à natureza do homem. É, pois, dessa mesma
natureza – continua ele – de sua constituição e de seu estado, que se devem deduzir os
princípios de sua ciência.” (ROUSSEAU, 1973a, p.236) E conclui afirmando que, “enquanto
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não conhecermos o homem natural, em vão desejaremos determinar a lei que ele recebeu ou
aquela que melhor convém à sua constituição” (ROUSSEAU, 1973a, p.236). Portanto, é a
partir do estudo do Direito Natural que Rousseau inicia sua jornada rumo ao homem natural.
Estabelecendo que suas raízes devem ser buscadas numa época anterior à sociedade civil,
anterior a convenções, a leis artificiais, num período longínquo chamado “estado de
natureza”.
Citanto Pufendorf, Derathé aponta que há duas maneiras de conceber o estado de
natureza, ambas interpretações diferentes acerca da condição de isolamento do homem. A
primeira vê tal situação do ponto de vista afetivo, sensível, pintando um quadro negativo,
melancólico, como vemos nessa passagem:
Oposto à vida civilizada, o estado de natureza é aquele no qual viveria um homem isolado e separado de seus semelhantes. “O estado de natureza,
escreve Pufendorf, é a triste condição à qual concebemos que o homem, feito
tal como é, estaria reduzido se fosse abandonado a si mesmo ao nascer e se estivesse totalmente privado do auxílio de seus semelhantes. Nesse sentido,
o estado de natureza é assim denominado em oposição a uma vida civilizada
e que se tornará cômoda com a indústria e o comércio entre os homens.” (DERATHÉ, 2009, p. 193-194)
A segunda vê o isolamento do ponto de vista moral, político, como um estado de
independência, não de abandono:
Pode-se também – e essa é a maneira mais comum de concebê-lo, a única aliás que importa do ponto de vista político – opor o estado de natureza ao
estado civil, isto é, à sociedade civil. “O estado de natureza, nesse último
sentido, diz ainda Pufendorf, é aquele que concebemos os homens sem nenhuma outra relação moral daquela que está fundada sobre essa ligação
simples e universal que resulta da semelhança de sua natureza,
independentemente de qualquer convenção e de qualquer ato humano que os
tenha sujeitado uns aos outros. Desse ponto de vista, aqueles que consideramos viver respectivamente no estado de natureza são os que nem
estão submetidos ao império um do outro nem são dependentes de um
senhor comum, e que não receberam uns dos outros nem bem nem mal. Assim, o estado de natureza, opõe-se, nesse sentido, ao estado civil”.
(DERATHÉ, 2009, p. 194)
18
Em suma, o estado de natureza é um artifício teórico9 que tem por objetivo expor uma
condição hipotética pré-social, ou, “a moral”, anterior e, para Rousseau, oposta ao estado
civil, em que o homem vivia sem nenhum tipo de ordenamento jurídico que regulasse suas
ações, numa situação em que cada indivíduo seguia sua própria lei ao sabor das paixões.
No Segundo Discurso Rousseau entende tal estado como “um estado que não mais
existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se
tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado
presente10” (ROUSSEAU, 1973a, p.234). E justifica sua utilização como recurso teórico11
afirmando que “todos os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram
necessidade de remontar ao estado de natureza” (ROUSSEAU, 1973a, p.241), como, por
exemplo, Hobbes:
A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais
forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando
se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não
é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como
ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para
matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com os outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (HOBBES, 1979, p.
74)
9 Nem todos os escritores políticos da época acreditavam que o estado de natureza era somente pura ficção.
Locke, no Gouvernement civil, Cap. II, § 14, (LOCKE, 1978, p. 390 – na edição dos Pensadores) apontava que
não só tal estado existiu como podia ser observado em sua própria época, por exemplo, nos índios da América.
Sobre isso, Vaugham escreve: “No doubt, most, if not all, of those who professed to speak of the state of nature
as a pure hypothesis were at least half inclined to believe that it was also a historical reality. The man who begins
by treating the problem of political philosophy as, in the first instance, a question of origins has, in fact, virtually
committed himself to this solution of it, and to none other. For to talk of the ‘origin on civil society’ is, strictly
speaking, to imply that is sprang from a state of things which was a not ‘civil’; and that is the very definition of
the ‘state of nature’.” (VAUGHAN, 1960, p. 28) 10 Segundo Leo Strauss, “Rousseau estava perfeitamente ciente das implicações anti-bíblicas da concepção do
estado de natureza. Por essa razão, apresentou originalmente a sua exposição do estado de natureza como sendo inteiramente hipotética; a ideia de que o estado de natureza ocorreu em tempos real contradiz o ensinamento
bíblico que todo filósofo cristão é obrigado a aceitar. Mas o ensinamento do Segundo Discurso não é de um
cristão; trata-se de um homem que se dirige ao gênero humano” (STRAUSS, 2009, p. 227) 11 Vaughan, na citação a seguir, especula sobre a importância “metodológica” do estado de natureza, criticando,
sem citar nomes, os “puristas” que ridicularizavam a inserção conceitual dos contratualistas de um estágio da
evolução que não encontra vestígios na história: “The idea of a state of nature has been a source of much
merriment to historical rigorists. But much of their ridicule has been strangely beside the mark. The assumption
that a state of nature – that is, a state without either settled society or government – ever existed has, of course,
no historical foundation. It cannot be disproved; but neither can it be proved.” (VAUGHAN, 1960, p.25-26)
19
Nessa passagem podemos observar o caminho adotado por Hobbes. Percebemos isso
sobretudo pelos termos: “matar o mais forte”, “secreta maquinação” e “ameaçados pelo
mesmo perigo”. Mas a que perigo comum o inglês faz referência? A saber: o constante temor
da morte violenta. Este medo da morte violenta, segundo o autor, persegue o homem durante
todo o estágio primitivo. O princípio da autoconservação, primeira regra do direito natural, é
ameaçado continuamente por uma natureza humana que infunde nos indivíduos sentimentos
de competição, desconfiança e desejo por glória. “A primeira leva os homens a atacar os
outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação”, diz ele.
(HOBBES, 1979, p.75). É o que Vaughan chama de a teoria do medo, que faz com que os
homens submetam-se ao poder absoluto de um “único homem ou de uma assembleia de
homens”12. Assim, Hobbes apresenta o Estado de Natureza de forma negativa, onde vive-se
numa condição precária, levando uma vida “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.”
(HOBBES, 1979, p.76) Rousseau concorda com a necessidade de se voltar a um estado
anterior à sociedade civil. Admitindo “sem discussão que para estabelecer o direito natural é
preciso regressar ao estado de natureza” (STRAUSS, 2009, p. 227), mas se afasta em relação
ao caráter do homem pintado pelo inglês, como veremos a seguir.
2.1 - O HOMEM NATURAL
A descrição do homem natural ou “metafísico”13 é uma estratégia utilizada por
Rousseau com o objetivo de fundamentar uma importante asserção que irá permear todo o seu
pensamento, trazendo implicações importantes no decorrer de toda sua teoria política: o
homem é naturalmente “bom” e foi corrompido14! É a partir desse enunciado que Rousseau
instaura e viabiliza sua crítica acerca da origem da desigualdade, responsável pelo mal-estar
na ordem social. Desigualdade, segundo Garcia, “produzida e agravada, gradualmente, ao
longo de um tempo cuja origem só é alcançada pelo recurso à imaginação. Por isso, a crítica
à condição do homem que ‘nasceu livre e em todos os lugares se encontra escravizado’ deve
12 Cf. “It is manifestly, as the author himself never wearies of insisting, a theory of fear: an argument which,
from foundation to coping-stone, is built upon terror of the sword. it is the terror of promiscuous rapine and
slaughter which in the first instance impels men to submit themselves to the power of “one man, or one assembly
of men”. (VAUGHAN, 1960, p. 27) Ver também HOBBES, Leviatã, Cap. XIV, XV, XVIII. 13 Na verdade não existe o “homem metafísico”. O que Rousseau faz no Segundo Discurso é descrever o homem
natural do ponto de vista metafísico, assim como descreveu do ponto de vista físico. 14 Em algumas passagens, Rousseau aponta que antes do estabelecimento da moral, o homem não poderia ser
nem bom nem mau. Isso dependeria do rumo que este daria à sua perfectibilidade.
20
dispor de uma metáfora que não pode ser deduzida do exame das relações reais” (GARCIA,
2004, p.68).
Esta “metáfora” é justamente uma investigação especulativa e necessária com o
objetivo de traçar um conhecimento da constituição metafísica do homem. Tal
empreendimento, (separar o que há de natural e de artificial no homem), conforme Rousseau
afirma, não é nada “trivial”15, mas necessário para que se possa julgar o estado presente de
corrupção percebida nos homens e nas sociedades.
Para tanto, faz-se necessário recorrer ao conhecimento do próprio homem naquilo que
ele possui de essencial, a fim de estabelecer a origem da desigualdade. Mas eis que se
apresenta o problema:
Como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar a conhecer a eles mesmos?16 E como o homem chegará ao ponto de ver-se
tal como o formou a natureza, através de todas as mudanças produzidas na
sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas, e separar o
que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primitivo ou nele mudaram?
(ROUSSEAU, 1979a, p. 233).
O estudo do homem original, de suas verdadeiras necessidades e dos
princípios fundamentais de seus deveres, representa ainda o único meio que
se pode empregar para afastar essa multidão de dificuldades que se
apresentam sobre a origem da desigualdade moral, sobre os verdadeiros fundamentos do corpo político, sobre os direitos recíprocos de seus membros
e sobre inúmeras questões semelhantes, tão importantes quanto mal
esclarecidas (ROUSSEAU, 1979a, p. 237).
Assim, o autor determina que o tema da desigualdade, responsável direto pela
corrupção do homem e da sociedade, gerador de uma série de vícios e forte mal-estar na vida
em sociedade, deve ser abordado em relação à constituição original do homem e, a partir desta
constituição, estabelecer as distinções entre o homem natural (original ou metafísico), homem
em estado de natureza e homem civilizado.
15 Cf.: ROUSSEAU, 1973a, p.234. 16 A resposta que Rousseau dará a esta questão inaugurará, indiretamente, conforme Levi-Strauss, a própria ideia
das ciências do homem ou da moderna antropologia. Segundo Rousseau, para bem julgar as relações sociais e os
caminhos ou descaminhos da humanidade, é necessário antes conhecer o que é próprio do homem segundo ele
mesmo.
21
Penetrando profundamente na questão, Rousseau propõe uma oposição conceitual
radical entre estado de natureza e estado civilizado com o objetivo de “despojar o homem
primitivo de tudo que faz um homem, de tal maneira que este estado de natureza aparece, por
vezes, como estando no limiar de uma desnaturação” (BÉNICHOU , 1984, p. 4). Assim, é
preciso ignorar o ser que temos diante dos olhos e desviar o olhar para si, a fim de pôr de lado
tudo o que nos é exterior, artificial. Nesse sentido, Paul Bénichou diz que “ele [Rousseau]
temia, ao traçar o retrato do homem primitivo, que qualquer sinal de inteligência, de
sociabilidade ou de moralidade, que a menor complexidade de sentimento ou de conduta
sugerisse os atributos de uma vida civilizada que deveria ser rigorosamente oposta à deste ser
primitivo”. (BÉNICHOU, 1984, p. 5) E completa afirmando que uma tal continuidade teria
apagado o anátema que deve, a seus olhos, separar nosso estado presente de nossas origens
Portanto, ao discorrer sobre este estado é preciso ter cuidado para não “contaminá-lo” com
observações de nosso estágio atual. O erro de Hobbes, segundo Rousseau, foi o de atribuir
qualidades dos homens de sua época ao homem no estado de natureza17. Ao pintar o homem
natural, estava na verdade pintando o homem civilizado. Logo, é mais prudente “afastar todos
os fatos18. (...) Não se devem considerar estas pesquisas (...) como verdades históricas, mas
somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza
das coisas do que a mostrar a verdadeira origem.” (ROUSSEAU, 1973a, p.242).
A preocupação em não “contaminar” as descrições do homem original com
observações sobre o estado atual reside no fato deste não oferecer nenhum conhecimento
estável da natureza humana, como podemos ver nesse longo excerto:
17 Logo no início do Segundo Discurso Rousseau faz uma crítica aos “filósofos que examinaram os fundamentos
da sociedade, dizendo que sentiram todos a necessidade de voltar até o estado de natureza, mas nenhum deles
chegou até lá,” pois, “todos falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho,
transportaram para o estado de natureza ideias que tinham adquirido em sociedade: falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil”. (ROUSSEAU: 1973a, p. 241-242.) 18 A descrição do estado de natureza histórico não deve ser buscada nos fatos, pois eles não oferecem dados
suficientes. A história não nos fornece provas razoáveis de como o homem agia em tal período, muito menos na
época de Rousseau, por isso ele vai buscar no raciocínio hipotético fundamentos para desenvolver, de forma
lógica e linear tal estado. No que se refere ao estado de natureza puro, sua existência é atemporal, não pode ser
“periodicizada”, pois, refere-se a atributos inerentes ao homem em qualquer época. Portanto, este estado de
natureza puro é constitutivo, e, mesmo no homem civilizado, persiste, ainda que de forma tímida, sufocado pelos
infortúnios da vida em sociedade. Sobre o papel da história ver: SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e
História: O pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.
22
Considerando a sociedade humana de modo calmo e desinteressado, a
princípio ela só parece mostrar a violência dos homens poderosos e a
opressão dos fracos; o espírito se revolta contra a dureza de uns ou é levado a deplorar a cegueira de outros e – como nada é menos estável entre os
homens do que essas relações exteriores produzidas mais frequentemente
pelo acaso do que pela sabedoria, e que chamam de fraqueza ou poder,
riqueza ou pobreza, os estabelecimentos humanos parecem, à primeira vista, fundamentados em montões de areia movediça. Só quando os examinamos
de perto, só quando removemos o pó e a areia que cobrem o edifício,
percebemos a sólida base sobre a qual se ergue e se aprende a respeitar os seus fundamentos. Ora, sem o estudo sério do homem, de suas faculdades
naturais e de seus desenvolvimentos sucessivos, jamais se chegará a fazer
essas distinções, e no estado atual das coisas, separar o que a vontade divina
fez daquilo que a arte humana pretendeu fazer. (ROUSSEAU, 1973a, p. 237)
Alcançado o homem em sua totalidade, Rousseau percebe que há uma parte inata,
pertencente a seu fundo natural, e outra adquirida, produzida no decorrer de sua evolução e
em consequência dela. Descartando tudo que foi adquirido ao longo de sua caminhada
histórica, o genebrino pretende chegar às “primeiras e mais simples operações da alma
humana” (ROUSSEAU, 1973a, 236), impulsos primordiais, móveis que determinam as ações
mais urgentes e indispensáveis à sobrevivência, e características constitutivas que o
diferenciam da natureza que o cerca. Seguindo esse método, Rousseau chega ao homem
natural caracterizado por quatro atributos básicos: amor de si e piedade, que impulsionam a
ação e estão ligados aos instintos básicos de sobrevivência e comiseração - impulsos
instintivos, determinados a suprir as necessidades mais urgentes; liberdade e perfectibilidade,
características próprias do homem enquanto ser autônomo e realizador, que o separa da
natureza e o coloca como agente ativo e transformador.
2.1.1– Liberdade natural: reflexão e escolha
Todo animal tem ideias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar
suas ideias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade (ROUSSEAU, 1973a, p. 249).
Tradicionalmente, por influência, sobretudo, de Aristóteles, a racionalidade é posta
como a característica principal que distingue o homem dos animais. Contrariando essa linha
23
de pensamento, e a despeito também dos ideais Iluministas de sua época, Rousseau aponta
que a razão não é inata ao homem e sim resultado de um processo lento e gradual19. O
desenvolvimento das faculdades e dos processos mentais a que chegamos hoje foi se
desenrolando passo a passo a partir de estímulos proporcionados pelo ambiente e transmitidos
pelos sentidos. O homem não nasceu racional. Tornou-se racional20. Com efeito, a
racionalidade não é constitutiva, portanto não pode defini-lo a priori. O que pode definir o
homem como uma espécie diferenciada é a liberdade. A liberdade é o atributo humano por
excelência. Não necessita de reconhecimento exterior nem de um conhecimento racional. Não
exige nenhum esforço para ser efetivada, somente o cuidado para não perdê-la. O animal não
é um ser livre, pois está submetido a um mecanismo fixo determinado pela natureza: o
instinto; (FORTES, 1996, p. 55) já o homem, mesmo inserido na natureza e submetido ao
mesmo mecanismo, livre, concorre com ela:
A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é
sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de
sua alma (ROUSSEAU, 1973a, p. 249).
A natureza prescreve regras a todo animal, o homem é o único que pode escolher não
segui-las. Assim que toma consciência da sua liberdade, a relação com o meio é alterada,
passando de mero animal sujeito à fixidez da natureza a agente transformador. Nessa nova
realidade, uma gama de possibilidades se descortina à sua frente. Agora ele vê-se obrigado a
fazer escolhas e a arcar pessoalmente com as consequências. Enquanto homem primitivo, tais
escolhas são simples e determinadas por necessidades igualmente frugais: Alimentação, sexo,
lugar seguro para repousar. As opções não são sofisticadas e as consequências dificilmente
causam interferência na autonomia do outro.
19 Bernard Groethuysen vai mais longe. Sobre o papel da razão na ação humana ele escreve: “A razão humana é
criadora. É ela que transforma a vida e indica ao homem o caminho que deve seguir. Ilusão, dirá Rousseau.
Apenas a natureza do homem pode deixar-nos saber para que fim fomos criados.” (GROETHUYSEN, 1985, p.
52) [tradução minha]. 20 Cf. “De todas as faculdades do homem, a razão, que não é, por assim dizer, senão um composto de todas as
outras, é a que se desenvolve com mais dificuldade e mais tardiamente.” (ROUSSEAU,2004, p. 89-90).
24
Quando Rousseau ousou quase afirmar21 que o “homem que medita é um animal
corrompido”22 deveria estar referindo-se justamente ao mau uso da liberdade enquanto
possibilidade de fazer escolhas. Fazer escolhas requer o uso de um instrumento indispensável
à razão: a reflexão. Assim, a reflexão nasce justamente do exercício da liberdade no âmbito
deliberativo. O agir livre23, no entanto, “é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que
revela nossa superioridade e espiritualidade, é o princípio de nossos desregramentos” aponta
Salinas Fortes (FORTES,1996, p. 55).
E Rousseau é categórico ao afirmar que o mal é fruto de ações puramente humanas,
isentando a providência divina de qualquer responsabilidade. Ele adverte: “Homem, não mais
procures o autor do mal; esse autor é tu mesmo. Não existe outro mal além do que fazes ou do
que sofres, e ambos vem de ti.”24. (ROUSSEAU, 2004, p. 398) E sentencia: “é o abuso de
nossas faculdades que nos torna infelizes e maus” (ROUSSEAU, 2004, p.397). Ou seja, não
são as faculdades as responsáveis pelo mal, nem mesmo o mero uso que fazemos delas. O que
nos torna infelizes e maus é o abuso dessas faculdades. Segundo Costa, duas consequências
podem ser extraídas dessa passagem:
21 A passagem na íntegra é: “A maioria de nossos males resultam da nossa própria atuação, e que poderíamos
evitar quase todos conservando a maneira simples, uniforme e solitária, que nos foi prescrita pela natureza. Se
ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase afirmar que o estado de reflexão é contrário à natureza e que o
homem que medita é um animal corrompido” (ROUSSEAU. Discurso sobre a desigualdade: 1973a, p. 247).
Algumas traduções usam o termo “depravado” em lugar de “corrompido”. Depravado, em nossa língua, tem uma
conotação mais sexual, podendo levar a erros de imprecisão, por isso julgamos melhor usar “corrompido”. 22 Rousseau é um escritor de frases fortes e por esse motivo, corre-se o risco de interpretá-lo de maneira
simplista. Por causa dessa frase, ele foi acusado de antirracionalista. De promover a ignorância (na Carta a
Philipolis, Rousseau comenta sobre isso). Para entender melhor sua intenção é preciso ter em mente a separação
entre o que é natural do que é artificial no homem. Como a reflexão é produto da artificialidade, podemos
entender a frase: o homem que medita é um animal corrompido como: o homem que pensa é um animal afastado
de sua natureza originária, pois o pensamento racional ou reflexivo é uma construção histórica e não um atributo
natural. E é justamente esse afastamento que o leva à corrupção. 23 O tema da liberdade é central e muito controverso nos escritos políticos de Rousseau, ele foi interpretado e
criticado de diversas formas. Isaiah Berlin, por exemplo, escreve: “Para Rousseau, a ideia em si mesma de se
fazer concessões à liberdade, de se dizer <<Bem, não podemos ter liberdade total porque isso nos conduziria à
anarquia e ao caos; não podemos ter autoridade absoluta, porque isso conduziria à subjugação total dos indivíduos, ao despotismo e à tirania; temos, por conseguinte, de traçar a linha algures entre elas, de chegar a um
compromisso>> - este tipo de raciocínio é totalmente inaceitável. A liberdade é para ele um valor absoluto.
Encara a liberdade como uma espécie de conceito religioso. Para si, a liberdade é inerente ao próprio ser
humano. Afirmar que um homem é um homem e afirmar que ele é livre é praticamente a mesma coisa.”
(BERLIN, 2005, p. 54) 24 A ideia de liberdade é melhor trabalhada na metafísica da Profissão de fé do vigário saboiano, contida no livro
IV do Emílio. Lá Rousseau, a partir da evidenciação dos três artigos de fé, demonstra a relação entre vontade e
liberdade. Rolf Kuntz, nos Fundamentos da teoria política de Rousseau, dedica um tópico a esse tema para
demonstrar a relação entre a metafísica e a política. (KUNTZ, 2012, p.48-68)
25
(I) Rousseau não autoriza qualquer investigação sobre a origem do mal no
território da existência das faculdades humanas elas mesmas e desloca essa
busca para o território do emprego que o homem faz delas; (II) na abordagem do emprego que o homem faz de suas faculdades, não devemos
pressupor qualquer necessidade imperiosa de que ele as use mal. Rousseau
deixa em aberto a possibilidade de que o homem pudesse ter feito um bom
uso de suas faculdades: a origem do mal é um acontecimento contingente e não necessário. (COSTA, 2005, 14)
Essa visão na qual o bem e mal não estão necessariamente nas coisas em si, mas
sobretudo no uso que fazemos dessas coisas, remete à noção de moralidade Estóica, escola
latina muito apreciada por Rousseau25, mas que nos ajudará a entender, mais à frente, o
caráter amoral do homem selvagem, importante, sobretudo, na compreensão da crítica
empreendida pelo genebrino ao homem no estado de natureza hobbesiano. Pois bem, essa
intricada relação entre liberdade, moralidade, maldade e bondade nos leva a outro conceito
central no pensamento de Rousseau: a perfectibilidade.
2.1.2 – Perfectibilidade: “a gênese do mal”
faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias,
desenvolve sucessivamente todas as outras, e se encontra, entre nós, tanto na
espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns
meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares (ROUSSEAU,1973a, p.
249).
Além da liberdade, há ainda outro atributo que, de uma vez por todas, diferencia o
homem do animal. Trata-se da perfectibilidade. Segundo Becker, “a perfectibilidade não
possui um sentido definido. É por isso que seu desenvolvimento pode ocorrer para o bem ou
para o mal, e, nesse sentido, acarretar um verdadeiro progresso ou uma exasperação da
corrupção do homem, no momento em que este empreende o processo de sociabilidade”
(BECKER, 2008, p. 185). Ao iniciar tal mudança a perfectibilidade entra em cena para pôr em
execução o processo de adaptação do homem à nova situação. Nesta esteira, a liberdade se faz
25 Que chegou a traduzir um texto de Sêneca chamado Apocolokintosis, conforme afirmação de Jean Starobinski
(O.C., t. V. p. CCC).
26
mais presente, oferecendo instrumentos que possibilitem ao homem escolher qual rumo dará à
nova vida.
Essa faculdade de aperfeiçoar-se é quase ilimitada e é por ela que as outras faculdades
se desenvolvem. Está ligada à necessidade de adaptação e, nesse processo, o homem acaba
desenvolvendo uma segunda natureza para si, distanciando-se da primeira, original. Como
aponta Cassirer, “os seres humanos não permanecem para sempre em seu estado primitivo,
mas ambicionam superá-lo; não se satisfazem com a extensão e o tipo de existência que
receberam de imediato da natureza, e não desistem antes de terem criado e construído uma
nova forma própria de existência” (CASSIRER, 1997, p.100). Assim, o homem, insatisfeito
com sua situação, lança-se num caminho sem fim ao renunciar à tutela da natureza e colocar-
se à mercê do progresso. Para Rousseau, aqui tem início o mal-estar que irá acompanhar o
homem durante os tempos26. Ele confessa, aborrecido, que “seria triste, para nós, vermo-nos
forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e ilimitada, a fonte de todos os males do
homem; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias
tranquilos e inocentes;” E finaliza: “que seja ela que, fazendo com que através dos séculos
desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si
mesmo e da natureza” (ROUSSEAU, 1973a, p.249). Assim, conclui Cassirer, a
perfectibilidade “enredou o homem em todos os males da sociedade e levou-o à desigualdade
e à servidão. Mas ela, e apenas ela é capaz de tornar-se para ele um guia no labirinto no qual
ele se perdeu” (CASSIRER, 1997, p.101).
A afirmação de Cassirer faz eco ao pessimismo de Rousseau. Sua decepção com o
gênero humano tinha motivo. O homem, livre e empreendedor, poderia usar a perfectibilidade
para manter e aperfeiçoar o estado de bem-estar em que se encontrava, no entanto distanciou-
se desse estado tomando o caminho oposto em direção a uma civilização corrompida,
26 “La perfectibilité ouvre la perspective d’une effroyable genèse: celle de la méchanceté. Ainsi, le progrés des
choses et la perfectibilité humaine enferment la loi de développement de l’inegalité, première source du mal,
qu’entérinent et reforcent les lois positives des États fondés sur um contrat illégitime. Cependant, l’état social une fois advenu, tout réinsertion de l’homme dans la nature primitive est exclue, tout modéle extra-social de la
société est inadéquat. Le terme de nature renvoi toujours chez Rousseau à l’isolement de l’homme au sein de
l'espèce ou de solitude dans la société. La nature joue le rôle d’un príncipe, d’un fondement de droit pour um
jugement sur la société existente. L’État de nature, atopique et achronique, n’est que pensable, il sert à montrer la
contingence du monde social et historique; il est le lieu hypothétique qui permet au philosophe le recul
nécessaire à la critique de l’etat civil, l’isolement est la conjecture qui permet de mesurer la dépravation actuelle
propre à l’homme vivant em société. La nature ne designe pas seulement um état primitif ou essentiel mais aussi
les qualités de l’homme virtuel dans l'état de nature, qui sont mis au point pour l'ordre social: en ce sens, la
sociabilité elle-même est naturel.” (VERNES, 1974, p. 39-40)
27
geradora de mal-estar, em que nossas paixões naturais são pervertidas e redirecionadas, onde
o amor de si se transforma em amor próprio, como veremos a seguir.
2.1.3 – Amor de si versus amor próprio e a ideia de propriedade
A fonte de todas as paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a
única que nasce com o homem e nunca o abandona enquanto ele vive é o
amor de si; paixão primitiva, inata, anterior a todas as outras e de que todas as outras não passam, em certo sentido, de modificações (ROUSSEAU, 204,
p.288).
O amor de si - segundo Rousseau, única paixão inata do homem - tem como função
principal garantir sua sobrevivência. Leva-o a agir tendo como parâmetro resguardar a si
mesmo. Tal ação, no estado de natureza, é impulsionada, estritamente, pelo princípio da auto
conservação; já no homem civilizado, é impulsionada pelo apreço ao bem estar27, e pelo
desejo de preferência. A garantia da sobrevivência, portanto, é a primeira exigência que a
natureza impõe:
O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; seu primeiro
cuidado foi o de sua conservação. Os produtos da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto levou a utilizar-se deles. Como a fome e
outros apetites lhe faziam experimentar sucessivamente diversas maneiras de
existir, houve uma que o convidou a perpetuar sua espécie; e essa inclinação
cega, desprovida de todo sentimento de coração, não era senão um ato puramente animal (ROUSSEAU, 1973a, p 266).
Nessa passagem, Rousseau aponta as principais necessidades do homem em estado de
natureza, às quais ele chama de necessidades originárias: Alimento, sexo e descanso. Ou seja:
comida para sua sobrevivência; sexo para perpetuar a espécie e lugar seguro para dormir.
Nesse “período da evolução”, o homem é independente, mesmo quanto ao sexo, pois, em
relação a isso, Rousseau vai dizer que esse é um sentimento puramente físico, sem nenhum
27 Na verdade, toda ação, em algum grau, deriva desse princípio, o da auto conservação, porém, com o advento
da vida em sociedade, essa causa primária fica em segundo plano, o que vale é o bem estar determinado pelas
novas necessidades advindas da vida civil, buscado, muitas vezes, sob quaisquer meios.
28
vínculo afetivo, que, “uma vez satisfeito, leva novamente cada qual para seu lado e restitui o
isolamento anterior. É só com o desenvolvimento dos vínculos sociais que esse sentimento,
refinado, será acompanhado de preferência e exclusividade e estará na origem de um vínculo
constante. Mas é também somente com a passagem para a sociedade que ele adquirirá uma
extraordinária intensidade, constituindo-se também na ocasião para tensões e conflitos
inteiramente ignorados até então” (FORTES, 1996, p.58). Essas tensões e conflitos são
justamente resultado de novas necessidades criadas pela vida em sociedade. E essas novas
necessidades demandam novas e complexas ações, muito mais difíceis de serem supridas
autonomamente. A necessidade de autoconservação, no homem primitivo, é suprida
facilmente, pois “os frutos são de todos e a terra não pertence a ninguém” (ROUSSEAU,
1973a, p.265). Tudo está à mão, e qualquer um pode se servir sem interferir na necessidade do
semelhante. Em sociedade, a propriedade extingue essa possibilidade, e nem todos têm acesso
fácil à sua sobrevivência, causando uma cisão violenta e fazendo nascer as classes pobre e
rico. É necessário dizer que o sentido de propriedade aqui explanado abarca não só o direito
de exclusividade sobre um lote de terra ou um determinado objeto, mas o direito de
“pertencer” a outra pessoa seja no casamento, em que o vínculo afetivo e as convenções
sociais “prendem” um ao outro, seja no trabalho, onde o empregado é explorado pelo patrão.
No que se refere ao descanso, para o homem primitivo um lugar seguro lhe bastava, pois seu
único receio era o de servir de alimento a um animal faminto. No homem civilizado, o
descanso engendra o luxo, e o luxo, a preguiça, e a preguiça torna o homem, outrora vigoroso,
um ser fraco e passivo, dependente. Essas comparações servem para pontuar que o amor de si
está ligado à bondade natural do homem. É importante compreender o funcionamento desse
atributo para não o confundirmos com a ideia de amor próprio. O amor de si é um tipo de
“mecanismo de sobrevivência” presente na natureza, nos seres em geral, para garantir a vida e
a perpetuação da espécie. Amar a si mesmo, nesse sentido, significa bastar-se a si mesmo,
sem prejuízo de outrem, nem reconhecimento externo. O amor próprio se dá no convívio,
pois necessita de interação social para florescer. Nessa convivência, o indivíduo submete-se à
exigência de ser aceito, reconhecido, admirado pelo outro ou pelo grupo ao qual pertence a
fim de satisfazer suas novas inclinações. O parecer ultrapassa o ser. As necessidades, outrora
supridas facilmente e de forma autônoma, transformam-se em ações dependentes,
“escravizantes”. Rousseau impõe, então, uma diferenciação entre amor de si e amor próprio,
como podemos ver nessa passagem do Emílio:
29
O amor de si, que só a nós mesmos considera, fica contente quando nossas
verdadeiras necessidades são satisfeitas28, mas o amor-próprio, que se
compara, nunca está contente e nem poderia estar, pois esse sentimento, preferindo-nos aos outros, também exige que os outros prefiram-nos a eles, o
que é impossível (ROUSSEAU, 2004, p.289).
O autor já havia insistido sobre a distinção existente entre o amor de si e o amor
próprio na primeira parte do Segundo Discurso:
Não se deve confundir o amor-próprio com o amor de si mesmo. São duas
paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos.
O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado
pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio não passa de
um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer outro, que
inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que
constitui a verdadeira fonte da honra. (ROUSSEAU, 1973a, p. 313. nota [O])
Assim, o amor de si afasta o homem da autodestruição, ao passo que o amor próprio é
o que inspira os duelos, as guerras, o ciúme e todas as demais paixões odientas. Tais paixões
são consequência do processo civilizatório, não tinham lugar no estado de natureza, ainda
mais porque eram refreadas por outro sentimento inato do homem, a piedade natural.
Vejamos o que Rousseau tem a nos dizer sobre tal sentimento.
2.1.4 – Piedade natural (pitié)
Vimos no tópico anterior um atributo relacionado ao homem enquanto ser que,
tomando ciência de sua existência, sente-se naturalmente impulsionado - por um atributo inato
chamado amor de si - a manter-se vivo. Esse processo passa pela satisfação de necessidades
que não exigem nenhum tipo de vínculo social constante, portanto, nenhuma relação de
dependência, e, mais ainda, quase nenhum atrito.
28 Acerca disso, Sêneca nos diz: “Aquele que tem muito deseja ter mais, o que prova não ser suficiente o que já
possui. Aquele que possui o suficiente obteve o que o rico jamais poderá atingir, ou seja, o fim de seus desejos.”
(Cartas a Lucílio, carta CXIX)
30
Agora trataremos de um atributo, complementar ao amor de si, o qual Rousseau
chama de pitié: piedade natural. É a partir dela que formamos os primeiros laços com nossos
semelhantes, e seu exercício concorre para a sociabilidade29, mas não a engendra
propriamente. Tal virtude se apresenta em todos os seres vivos: “um animal não passa sem
inquietação ao lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma
espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a
impressão que tem do horrível espetáculo que o impressiona” (ROUSSEAU, 1973a, p.259).
Com o homem acontece o mesmo. A angústia causada pelo sofrimento alheio desperta um
sentimento de comiseração que o faz ver o outro como semelhante, como ser de sua própria
espécie. Nesse movimento, o ser humano desloca o olhar para fora de si, colocando-se no
lugar do outro que agoniza. É nesta esteira que nascem os sentimentos de amizade,
generosidade, clemência. Vejamos o que Rousseau nos diz acerca da piedade natural:
a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua
de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão30, socorrer aqueles que vemos
sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da
virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança
fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com a dificuldade,
desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte; (...) Numa palavra, antes nesse sentimento natural do que nos argumentos sutis deve
procurar-se a causa da repugnância que todo homem experimentaria por agir
mal, mesmo independentemente das máximas da educação. (ROUSSEAU,
1973a, p. 260)
Essa paixão inata é tão forte que permanece ativa no homem mesmo sofrendo ataques
constantes da vida em sociedade, com seus vícios e costumes degradantes, como notamos a
seguir:
Tal o movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão; tal a força
da piedade natural que até os costumes mais depravados têm dificuldade em destruir, porquanto se vê todos os dias, em nossos espetáculos, emocionar-se
29 É importante não confundirmos o instinto de sociabilidade com a piedade natural. O primeiro necessita de
uma associação ativa com vistas a um objetivo “comum”. O segundo decorre simplesmente do impacto que o
sofrimento alheio nos causa e da identificação com ele. 30 Por ser um instinto puramente natural não é necessária a atuação da razão reflexiva (e artificial) como
mediadora para a ação.
31
e chorar por causa das infelicidades de um desafortunado, aquele mesmo
que, se estivesse no lugar do tirano, agravaria ainda mais os tormentos de seu
inimigo. (ROUSSEAU, 1973a, p. 259)
A chave para o entendimento do amor de si como uma paixão tão resistente está na
identificação, no reconhecimento do outro como um semelhante que experimenta as mesmas
situações, tocando-o profundamente. Porém, o desenvolvimento da razão e a entrada na vida
civil enfraquece esse sentimento de identificação, dando espaço ao amor próprio, como afirma
Rousseau:
A comiseração, com efeito, mostrar-se-á tanto mais enérgica quanto mais intimamente se identificar o animal espectador com o animal sofredor. Ora, é
evidente que essa identificação deveu ser infinitamente mais íntima no
estado de natureza do que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor-próprio e a reflexão o fortifica; faz o homem voltar-se sobre si mesmo;
separa-o de quanto perturba e aflige. (ROUSSEAU, 1973a, p. 260)
A razão faz o homem dar preferência a si mesmo já não mais por instinto, isto é, por
imposição da natureza. Agora ele cuida de seu bem estar de forma refletida. Age com
prudência, com comedimento, tornando-se mais insensível às agruras de seu semelhante
quanto maior for seu grau de sapiência, como observamos na passagem abaixo:
Nada, além dos perigos da sociedade inteira, atrapalha o sono tranquilo do
filósofo e o arranca do leito. Podem impunemente degolar seu semelhante sob sua janela, ele só terá de levar as mãos às orelhas e ponderar um pouco
consigo mesmo para impedir a natureza, que nele se revolta, de identificar-se
com aquele que se assassina. O homem selvagem de modo algum possui
esse talento admirável e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo cada dia entregar-se temerariamente ao primeiro sentimento de humanidade. Nos
motins, nas arruaças, a populaça se reúne, o homem prudente se distancia; a
canalha, as mulheres do mercado, é que separam os contendores e impedem as pessoas de bem de se degolarem mutuamente (ROUSSEAU, 1973a, p.
259-260).
Assim, podemos notar que Rousseau prioriza sempre as inclinações mais simples e
naturais em face das artificiais, derivadas do hábito e da razão. “Constata-se também que o
32
amor próprio, fruto da razão e da sociedade, abafa os sentimentos mais naturais do homem e
possibilita um efetivo distanciamento em relação a seus semelhantes” (BECKER, 2008,
p.181). Mais que isso, torna o homem uma criatura impiedosa, como se, de certa forma, o
“estado de raciocínio” nos levasse a experimentar e até mesmo apreciar sensações que, para o
homem natural, são extremamente repugnantes. As maquinações, tramas, intrigas e
conspirações são atos refletidos, produto da “mente raciocinadora” com o objetivo de
beneficiar-se causando dano ao outro. Beneficiar-se materialmente, com o acúmulo de
riquezas, e, ou, sentimentalmente, alimentando todas as paixões odientas, prazeres
mesquinhos, adquiridos em sociedade. O homem no estado de natureza, e o próprio estado de
natureza é pacífico justamente porque a paixão, o instinto, é o móvel das ações, e a piedade
natural seu guia, que traz consigo a máxima moral, “gravada em todos os corações”
(ROUSSEAU, 2011, p.159) que diz para não desejarmos aos outros aquilo que não desejamos
para nós31. Nesse sentido, Rousseau escreve que:
Desse modo, não se é mais obrigado a fazer do homem um filósofo em lugar
de fazê-lo um homem; seus deveres para com outrem não lhe são unicamente ditados pelas lições tardias de sabedoria, e enquanto resistir ao
impulso interior natural da comiseração, jamais fará qualquer mal a um outro
homem, nem mesmo a um ser sensível, exceto no caso legítimo em que,
encontrando-se em jogo sua conservação, é obrigado a dar preferência a si mesmo. (ROUSSEAU, 1973a, p.237)
Não é preciso reflexão, razão, entendimento ou sabedoria para se chegar à conclusão
de que não devemos agir com maldade. Não é necessário tampouco que esse sentimento seja
ensinado. Basta deixarmos a natureza trabalhar, desempenhar seu papel para que possamos
viver em concórdia. O homem selvagem ataca o outro não porque é mau, mas porque ama a
si. Só utiliza a violência para conservar a própria vida32. Rousseau assim, rechaça a ideia
hobbesiana segundo a qual o homem no estado de natureza vivia em guerra. O Genebrino
acreditava que Hobbes, ao traçar seu “odioso sistema”, havia ignorado a pitié por ter uma
impressão equivocada do amor de si. Ele imaginava que, para preservar sua existência, os
indivíduos precisavam resistir aos ataques dos outros tentando destruí-los, e por esse motivo,
no estado de natureza, seria impossível ser piedoso e ao mesmo tempo viver em segurança. 31 Semelhança com a Regra de Ouro do Evangelho dos Cristãos. Ver Mateus 7:12. 32A violência no estado de natureza é acidental e fugaz, pois o inimigo não é visto como uma ameaça constante,
mas sim momentânea. No instante em que a refrega se encerra, a inimizade acaba e cada um pode retomar sua
rotina com a liberdade intacta.
33
Para Rousseau, cuidar de si não exclui de maneira alguma a preocupação com o bem estar dos
outros; ao contrário, ele pensava que o desejo impiedoso de segurança pessoal à custa de
outrem dá origem àquela vaidade e desprezo que transformam o mero estranho num
inimigo.33Assim, “sendo o estado de natureza aquele no qual o cuidado de nossa conservação
é o menos prejudicial ao de outrem, esse estado era, consequentemente, o mais propício à paz
e o mais conveniente ao gênero humano”. (ROUSSEAU, 1973a, p.258) Mas então, como
explicar a saída deste estado? É o percurso que faremos a seguir.
2.2 - ESTADO DE NATUREZA HISTÓRICO: DA PAZ À VIOLÊNCIA
Fixado o grau zero na evolução da espécie, e tomando como ponto de partida o
homem com os atributos inatos descritos anteriormente, voltemos nossa atenção para o
homem primitivo e sua jornada rumo à civilização. Rousseau, no Segundo Discurso, faz uma
reconstituição “histórico-linear” para mostrar como, “de uma condição de integração com a
natureza circundante e de independência de seus semelhantes, o homem evoluirá para uma
situação de independência da natureza e de dependência em relação a outro homem”
(FORTES, 1996, p. 56). As transformações, mediante a ação da perfectibilidade, ao mesmo
tempo em que concorrerão para um desenvolvimento brilhante das faculdades humanas,
levarão a uma perversão de sua constituição primitiva.
Como se deram tais acontecimentos? Quais foram os motivos que levaram o homem
primitivo a abandonar seu estado puro, paradisíaco, e submeter-se a uma vida desgraçada?
Rousseau supõe, inicialmente, uma sucessão de acontecimentos externos que, pouco a pouco
foram afastando o homem da natureza e o empurrando à civilização.As paixões do homem
primitivo eram sentimentos avivados por sensações ligadas a instintos puramente animais.
Sua maneira de existir era limitada à satisfação dessas necessidades e ele servia-se da natureza
de forma harmoniosa, tirando unicamente aquilo de que precisava. Sua constituição física era
temperada para resistir às intempéries, ultrapassar obstáculos, vencer inimigos quando,
ocasionalmente, disputavam o mesmo alimento. A solidão não o incomodava, pois era
33 Segundo Rousseau, Mandeville, cuja teoria da natureza humana na Fábula das Abelhas, de 1714, se
assemelhava à de Hobbes, havia percebido esse aspecto, ao passo que Hobbes não notara. “Mandeville
compreendeu muito bem que, com toda sua moral, os homens jamais passariam de uns monstros se a natureza
não lhes tivesse conferido a piedade para apoio da razão.” (ROUSSEAU, 1973a, p.259)
34
independente. Como a natureza lhe fornecia tudo de que precisava, não havia motivos para
sentir necessidade do convívio com seus semelhantes. A vida era rude, mas abundante. Não
conhecia o medo nem a infelicidade, mas logo surgiriam dificuldades que o obrigariam a -
utilizando-se de sua capacidade de aperfeiçoamento - criar meios que o levassem a sobreviver
em ambientes hostis ocasionados por catástrofes naturais como longos invernos, verões
escaldantes, incêndios e inundações. A escassez de comida o levou a aperfeiçoar o engenho,
levando-o a inventar, por exemplo, a linha e o anzol, o arco e a flecha, bem como técnicas
para dominar o fogo e conservar a carne. Essa época nos leva ao primeiro período de sua
caminhada histórica até a civilização, o período das associações livres.
2.2.1 – Das associações livres à sociedade começada34
Com o aumento da população e a escassez de gêneros alimentícios, os indivíduos antes
isolados passaram a se cruzar com maior frequência e, nesse ínterim, começaram a perceber
certas relações entre uns e outros. “Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande,
pequeno, forte, rápido, lento, medroso, ousado e outras ideias semelhantes, comparadas ao
azar da necessidade e quase sem pensar nisso, acabaram por produzir-lhe uma certa espécie de
reflexão, ou melhor, uma prudência maquinal, que lhe indicava as precauções mais
necessárias à sua segurança”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 266) Surge, assim, um conhecimento
maior de si mesmo e, ao mesmo tempo, do outro de sua própria espécie. A visão do
comportamento repetitivo de seus semelhantes em determinadas situações o fez concluir que
suas maneiras de pensar e sentir eram idênticas. Tal afinidade trouxe uma verdade importante:
a de que, para seu proveito e segurança, era melhor manterem-se juntos:
Ensinando-lhe a experiência ser o amor ao bem estar o único móvel das ações humanas, encontrou-se em situação de distinguir as situações raras em
que o interesse comum poderia fazê-lo contar com a assistência de seus
34 Alguns comentadores, como Paul Arbousse-Bastide dividem o estado histórico de natureza em cinco períodos:
a) Primeiros Progressos: Onde começam a se desenhar os primeiros vínculos. b) Idade do Ouro: Cabanas são
construídas e as famílias são constituídas. c) Propriedade: primeira grande desigualdade. Humanidade é dividida
em pobres e ricos. Formação da sociedade e das leis com o primeiro pacto. d) Os Magistrados: segunda grande
desigualdade. Divisão em poderosos e fracos. Governo em função da manutenção das desigualdades. e)
Despotismo: Mudança do poder legítimo em poder arbitrário. Terceira grande desigualdade. Divisão em senhor e
escravo. (ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. Introdução. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens. São Paulo: Abril, 1973, p.209-219 (Coleção Pensadores) Ficaremos com a divisão proposta por
Luiz R. Salinas Fortes na obra Rousseau – O Bom Selvagem em três estágios.
35
semelhantes e aquelas, mais raras ainda, em que a concorrência deveria fazer
com que desconfiasse deles. No primeiro caso, unia-se a eles em bandos ou,
quando muito, em qualquer tipo de associação livre, que não obrigava ninguém, e só durava quanto a necessidade passageira que a reunira.
(ROUSSEAU, 1973a, p.267)
Assim, começa a desenhar-se uma forma de associação com vistas a um objetivo
relativamente comum, mas despretensiosa e descompromissada. O vínculo surgia e terminava
de acordo com uma necessidade urgente e ocasional. Por exemplo, para caçar um animal de
grande porte que surgia ao acaso, era mais fácil abatê-lo em grupo, pois sozinho seria difícil e
perigoso. Satisfeita a necessidade, o vínculo se extinguia.
Com o passar dos séculos, o período das associações livres - em que o vínculo social é
precário, esgotando-se com a própria realização do objetivo para o qual se estabeleceu - dá
lugar à época da primeira revolução técnica, o período das cabanas. A partir de um lento
progresso das luzes, o homem foi aperfeiçoando-se e criando novos instrumentos capazes de
atender suas necessidades de forma mais otimizada. Deixou as árvores e as cavernas e, com
pedras cortantes, passou a usá-las como machados, para cortar lenha, cavar a terra e construir
as primeiras cabanas cobertas com argila e lama que contribuíram para o “estabelecimento e a
distinção das primeiras famílias e que introduziu uma espécie de propriedade da qual
nasceram talvez brigas e combates. No entanto, como os mais fortes possivelmente foram os
primeiros a fazer habitações que se sentiam capazes de defender, é de crer que os fracos
acharam mais rápido e seguro imitá-los do que tentar desalojá-los e, quanto aos que já
possuíam cabanas, nenhum deles certamente procurou apropriar-se da de seu vizinho, menos
por não lhe pertencer do que por ser-lhe inútil e não poder apossar-se dela sem expor-se a um
combate violento com a família ocupante”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 268)
Com o vínculo familiar instalado, nasceram o que Rousseau chama de os mais doces
sentimentos que são conhecidos pelo homem: o amor conjugal e o amor paterno. Começa a
surgir assim a célula para o surgimento da sociedade como a conhecemos, bem como uma
diferenciação entre a maneira de viver dos dois sexos. A mulher passou a levar uma vida mais
sedentária, acostumando-se a tomar conta do lar e dos filhos, enquanto os homens iam em
busca da subsistência. Seu vigor e ferocidade enfraqueciam na medida em que deixavam de
ser indivíduos errantes, em compensação era mais fácil sobreviver e resistir vivendo em
36
grupo. A linguagem35, notadamente o uso da palavra, começa a desenvolver-se, tornando a
comunicação mais clara, fortalecendo os laços sociais e facilitando as primeiras relações
comerciais36.
Levadas por circunstâncias eventuais a viver juntas - como inundações que ilharam
pequenos grupos, longos invernos que deixaram a caça escassa e verões escaldantes que
trouxeram seca - as famílias começaram a formar pequenos bandos e esses bandos pequenas
nações particulares com características e costumes próprios. O comércio torna-se mais
constante. Os vínculos sociais mais fortes. Ideias de mérito e beleza vão se formando,
produzindo sentimentos de preferência, como podemos ver abaixo:
À medida que as ideias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o
coração entram em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as
ligações se estendem e os laços se apertam. Os homens habituaram-se a reunir-se diante das cabanas ou em torno de uma árvore grande; o canto e a
dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração, ou
melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada
um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava
melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloquente, passou
a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de
um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja.
(ROUSSEAU, 1973a, p. 269)
Da apreciação mútua formou-se no espírito a ideia de consideração, e dessa ideia os
primeiros deveres de civilidade. Uma afronta voluntária era tomada como um ato de desprezo
pela pessoa ultrajada que revidava de forma cruel, muitas vezes com sangue. Rousseau
enfatiza que esse estágio - a que chegara a maioria dos povos selvagens - da evolução é
responsável pela ideia de que o homem é um ser naturalmente violento que precisa ser
policiado. O erro dos pensadores que seguem esse conceito, por exemplo Hobbes, é
35 No Ensaio sobre a origem das línguas, encontramos mais pormenorizadamente a questão da linguagem no
papel da evolução do homem em quatro partes, segundo : a) a origem da linguagem, enfocando o estudo da
comunicação no homem natural; b) diferenciação das línguas, com ênfase na evolução dos grupos humanos e
dos meios de expressão; c) estudo particular das questões musicais relacionadas com a evolução linguística e
social; d) crítica acerca da alteração do sentido natural da linguagem empreendida na vida em sociedade, que
sacrifica a comunicação sentimental e moral em nome de uma linguagem mais clara e precisa. (MACHADO,
1973c, p. 158) 36 Um tipo de comércio rudimentar baseado em pequenas trocas esparsas, dirigido mais pela natureza e por falta
de gêneros característicos de cada estação do que por intenções comerciais fixas e constantes.
37
justamente apontarem tal período tardio como etapa inicial da humanidade, sem levar em
conta os estágios anteriores.
Sobre a alardeada brutalidade natural, defendida por Hobbes, Rousseau diz que “nada
é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a
igual distância, da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civil, e compelido
tanto pelo instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é impedido pela
piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo
depois de atingido por algum mal. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, ‘não haveria
afronta se não houvesse propriedade’ ”. (ROUSSEAU, 1973a, p. 270)
Rousseau adverte que as relações estabelecidas pelos homens exigiam deles
qualidades diversas daquelas que deviam à sua constituição primitiva. Sentimentos de
bondade, justiça e solidariedade foram se adaptando à sociedade nascente. Os princípios da
moralidade penetravam pouco a pouco nas ações humanas fazendo de cada um juiz e
vingador das ofensas recebidas. Mas “embora os homens se tornassem menos tolerantes e a
piedade natural já sofresse certa alteração, esse período de desenvolvimento das faculdades
humanas, ocupando uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a
atividade petulante de nosso amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e a mais
duradoura” (ROUSSEAU, 1973a, p. 270). É o período da sociedade começada. Tal época, diz
ele, é tida como a verdadeira juventude do mundo.
2.2.2 – Transição para o estado civil: violência, pacto enganador e servidão
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado
um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que,
arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus
semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se
esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’. (ROUSSEAU, 1973a, p.265)
38
É com a introdução da propriedade privada que esse estado de juventude do mundo
será destruído. A ideia de que algo me pertence com exclusividade começa a ser elaborada a
partir da introdução da agricultura e da metalurgia, em com isso, surge as primeiras relações
de trabalho, conforme aponta Rousseau:
Desde que se tornaram necessários homens para fundir e forjar o ferro,
precisou-se de outros para alimentar a estes. Na medida em que se multiplicou o número de trabalhadores, menos mãos houve para atender a
subsistência comum, sem que com isso houvesse menos bocas para consumi-
la. (ROUSSEAU, 1973a, p.272)
Começa a se desenhar os primeiros traços de servidão que marcarão as relações sociais
e desencadearão, no correr da história, inúmeros episódios de violência extrema, marcados
pelo imenso abismo que separa ricos e pobres. Nesse estágio da evolução, alguns enxergam o
fato de que, num futuro próximo, não haveria recursos para todos. Prevendo tal situação,
começam a transformar o que era de uso comum em uso exclusivo a fim de precaver-se dos
tempos difíceis levantando as primeiras questões acerca do direito de propriedade:
Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para
dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além
disso, começando os homens a alongar suas vistas até o futuro e tendo todos
a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem. (ROUSSEAU, 1973a,
p.265)
Conforme a terra é loteada e transformada em objeto de uso restrito - e sem nenhum
mecanismo que regule tais demarcações - a igualdade é quebrada. Os mais fortes são os
únicos que podem dispor e proteger tais bens, subjugando os mais fracos, que, para não
morrerem de fome, submetem-se ao trabalho. A humanidade é dividida em duas classes.
Ricos e pobres passam a disputar o que antes não tinha dono. Os ricos, possuidores de terras,
passam a escravizar os mais pobres, que aviltados em sua liberdade, se rebelam:
39
Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou
de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente,
segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões
desenfreadas de todos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da
justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o
direito do mais forte e o do primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e assassinatos. A sociedade nascente foi colocada no
mais tremendo estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, não
podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar as aquisições infelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua
vergonha, abusando das faculdades que o dignificam. (ROUSSEAU, 1973a,
p.274)
Esta é a época em que finalmente aparece o estado de guerra de todos contra todos que
Hobbes supunha. É nesse estágio de transição, imediatamente após o Estado de Natureza e
igualmente anterior à formação da sociedade civil, que a humanidade, para Rousseau, dá um
passo sem retorno rumo a barbárie. A insociabilidade natural finalmente aflora, e, com os
sentimentos naturais abafados e distorcidos, seu lado sombrio desperta. Com o objetivo de dar
um basta a essa violência generalizada surge entre os homens a ideia de formar um pacto em
que se estabeleçam leis e regulamentos que todos se obriguem igualmente a respeitar. Um
pacto que institua “uma ordem social que, acima dos interesses antagônicos, deverá
resguardar os interesses superiores de todos os indivíduos e, levando-os a resolver suas
querelas mediante a arbitragem e o acordo, substitua guerra pela paz social”. (FORTES, 1996,
p.64) Tal pacto busca trazer a paz, mas promove a desigualdade e a perda de liberdade na
medida em que legitima a propriedade privada. Os ricos são os únicos beneficiários do
acordo, pois têm a posse de seus bens assegurada. Os pobres, por sua vez, veem o trabalho, a
servidão e a miséria institucionalizados.
Assim, a sociedade civil começa com o estabelecimento da lei e do direito de
propriedade. Um governo37 é estabelecido, escolhido pelos mais fortes para governar em
nome de todos, mas tem sempre os interesses dos mais ricos acima de quaisquer outros,
transformando poder legítimo em poder arbitrário. A sociedade corrompe o homem
justamente porque o primeiro pacto, ao invés de levar em conta a liberdade, funda-se na
propriedade, que por si só exclui, segrega, usurpa e gera violência. Como afirma Becker, “é
através do estabelecimento da propriedade e da legitimação da desigualdade, que se
37 Um Governo propriamente dito é fruto de uma decisão pós-contrato. Só o contrato o institui, como veremos no
capítulo seguinte.
40
estabelecem relações violentas de convívio no seio dos grupos recém-formados.” (BECKER,
2010b, p. 14) Do ponto de vista moral, o amor próprio surge como um desdobramento
indesejável, porém necessário, do amor de si na sociedade civil. Num estado social, para
sobreviver o homem precisa obrigatoriamente do outro. A autonomia natural é perdida, e com
isso sua liberdade. O amor de si que trazia consigo o instinto de conservação, que por sua vez
era saciado a partir da satisfação das necessidades originárias: alimentação, sexo e descanso; é
atropelado na vida em sociedade pela criação de novas necessidades que, para serem supridas,
demandam maior exploração da natureza e do semelhante. A relação sexual, antes simples,
torna-se um ato complexo com o advento da família. Novas exigências são necessárias –
como a corte, o casamento etc. - para satisfação dessa necessidade. A alimentação, que no
estado primitivo era facilmente saciada, pois nada tinha dono, com a instituição da
propriedade privada, passa a depender do trabalho, que, em grande parte, não remunera de
maneira justa o trabalhador, colocando-o numa situação de servidão muitas vezes
incontornável.
Necessidades que não existiam começam a florescer na medida em que a civilização
avança. O homem agora vive na superficialidade. Se não possui uma qualidade que é
valorizada no meio em que vive, é preciso aparentar possuí-la. Se não possui determinado
bem que é tido como importante é preciso obtê-lo por quaisquer meios. Se não sabe
determinada arte, determinado engenho, recorre à arte da bajulação, das elegias etc. É preciso
aparentar possuí-las, e como consequência ocorre a distinção entre ser e parecer. Vejamos:
ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes. Dessa distinção
resultaram o fausto majestoso, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhe formam o cortejo. (ROUSSEAU, 1973a, p.273)
Tais são as armadilhas da superficialidade! O homem, antes livre e independente,
agora com o advento de novas necessidades, sujeita-se à dependência de seu semelhante. Tal
servidão afeta tanto o rico, que não faz fortuna sozinho, necessitando sempre do trabalho
alheio, quanto o pobre, que precisa de seu socorro para manter-se. Estabelece-se assim um
duplo vínculo de dependência em que o ser humano vale por sua utilidade, por sua capacidade
de gerar lucros e mostrar seu sucesso para adquirir reconhecimento. Esta relação fundada
sobretudo na utilidade traz à tona uma ambição devoradora que “inspira a todos os homens
41
uma negra tendência a prejudicarem-se mutuamente (...); em uma palavra, há, de um lado,
concorrência e rivalidade, de outro, oposição de interesses e, de ambos, o desejo oculto de
alcançar lucros a expensas de outrem. (ROUSSEAU, 1973a, p.273) A civilização, ao mesmo
tempo em que corrompe as paixões primitivas, aliena o homem, que sai de si e passa a viver
prezando acima de qualquer coisa as honrarias, a reputação e a opinião alheia. Enquanto o
homem primitivo “vive em si mesmo” o “homem sociável”, sempre fora de si, só sabe viver
baseando-se nas opiniões dos demais. Rousseau ilustra melhor tal pensamento na longa
passagem abaixo:
O que a reflexão nos ensina a esse propósito, a observação o confirma
perfeitamente: o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações, que aquilo que
determinaria a felicidade de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro
só almeja o repouso e a liberdade, só quer viver e permanecer na ociosidade e mesmo a ataraxia do estóico não se aproxima de sua profunda indiferença
por qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se,
agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em
situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a imortalidade; corteja os
grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra
de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que
não gozam a honra de partilhá-la. Que espetáculo não seriam para um
caraíba os trabalhos penosos e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria esse selvagem indolente ao horror de uma tal
vida que frequentemente nem sequer se ameniza pelo prazer de bem
proceder! Mas, para aquilatar o objetivo de tantos cuidados, seria preciso que as palavras poder e reputação tivessem um sentido para seu espírito e que
soubesse existir uma espécie de homens que dão valor aos olhos do resto do
mundo e se sentem satisfeitos consigo mesmos mais pelo testemunho de
outrem do que pelo seu próprio. (ROUSSEAU, 1973a, p. 287)
A síntese das diferenças verificadas entre o homem selvagem e o homem civil que é
apresentada por Rousseau como sendo a verdadeira causa das diferenças existentes entre
ambos é que “o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe
viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência
quase que somente pelo julgamento destes.” (ROUSSEAU, 1973a, p. 287) A conclusão que
Rousseau chega é que a desigualdade, quase nula no estado de natureza, se deve ao
desenvolvimento de nossas faculdades, alcançando estabilidade e legitimação com o
estabelecimento da propriedade privada e das leis positivas, leis positivas que autorizaram
42
também a desigualdade moral, que reina entre todos os povos policiados e que vai de encontro
a lei da natureza que não permite “uma criança mandar num velho, um imbecil conduzir um
sábio, ou um punhado de pessoas regurgitar superfluidades enquanto à multidão faminta falta
o necessário.” (ROUSSEAU, 1973a, p. 287-288)
Com o pacto “histórico”, o homem troca sua liberdade natural pela servidão. Tal
servidão, segundo Rousseau, é característica da sociedade civil, trazendo consequências
nefastas à ordem social. A ideia segundo a qual o governante é superior a todos os outros não
encontra respaldo na natureza originária do homem - onde todos são iguais - mas sim nos
mecanismos criados pelo próprio pacto para a formação de uma sociedade dita legítima. Para
Rousseau, não se pode falar em legitimidade sem atentar para dois princípios fundamentais
que permeiam todo o seu pensamento: liberdade e igualdade. Pensando assim, faz-se
necessária a formação de um novo pacto social, que deverá formar um novo homem, e,
finalmente, uma sociedade melhor constituída, com maiores possibilidades de alcançar uma
paz durável, tema que examinaremos no início do capítulo seguinte.
3 DA FUNDAÇÃO DOS ESTADOS NAÇÃO ÀS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
A ideia de um Contrato como instrumento “jurídico” fundador da sociedade civil e
instaurador da paz não é nova. Aristóteles, na Política, atribui aos sofistas a doutrina de que
“a lei é pura convenção e garantia dos direitos mútuos” (ARISTÓTELES, 1985, p.100). Mais
à frente Epicuro retoma essa ideia acrescentado que “tudo o que, na convenção da lei, mostra
ser vantajoso para as necessidades criadas pelas relações recíprocas é justo por natureza,
mesmo que não seja sempre o mesmo”. E arremata: “No caso de se fazer uma lei que
demonstre não corresponder às necessidades das relações recíprocas, então essa lei não é
justa” (EPICURO, 2005, Máxima Capital, 37). Duas implicações importantes contidas nesta
citação encontram eco no contratualismo moderno, sobretudo em Rousseau. Primeiro: a
concepção de que o poder é consequência direta de uma convenção e não de determinação
natural. Segundo: a firme noção de que a lei é justa, ou mais ainda, é legítima, quando atende
somente às necessidades recíprocas, ao bem comum. Tais proposições concorrem, em última
instância, para demonstrar a tese de que todo poder político deve ser limitado.
Rousseau, basicamente, retoma essas noções e, influenciado pela leitura de Platão,
Plutarco e Quintiliano, de escritores como Grotius, Pufendorf, Burlamaqui e Barbeyrac, e
autores do nível de Montesquieu, Hobbes, Locke e Jurieu, desenvolve os princípios
norteadores de sua teoria política, que seria, toda ela, condensada no projeto das Instituições
Políticas.
Desta forma, no presente capítulo, mostraremos como Rousseau tenta trazer uma
solução para amainar as agruras decorrentes do ingresso do homem na sociedade por meio de
um pacto de associação que ambiciona consertar os enganos decorrentes do contrato
“histórico”. Com isso, procuraremos estabelecer as noções de Sociedade Legítima, Estado,
Soberania e Vontade Geral como pontos importantes para adentrarmos no pensamento
político do autor. O que diferencia tal pensamento do de outros autores de sua época é a
concepção de Vontade Geral como instrumento de deliberação do povo, que exerce a função
de Soberano, atribuindo ao Governo papel secundário de mero funcionário limitado à função
de administrador.
44
A seguir adentaremos no controverso tema da guerra, tentando mostrar que, mesmo
após o pacto, e, sobretudo somente após ele, na visão de Rousseau, a guerra surge como algo
incontornável. Surge somente após o pacto porque é o pacto que funda o Estado, e a guerra só
acontece entre Estados. Incontornável, sobretudo, devido à imensa complicação de se compor
uma legislação que regule as relações dos Estados internacionalmente e de um organismo
supranacional independente e forte o bastante para assegurar que a as leis acordadas sejam
cumpridas. Sob essa visão sombria, Rousseau propõe uma espécie de juridicização da guerra
como possibilidade de torná-la menos cruel e rechaça qualquer tipo de “sociedade geral do
gênero humano” como saída para uma paz perpétua.
Quanto aos textos que servirão de base para nossa investigação, nos concentraremos
nos textos que fariam parte do projeto das Instituições Políticas: Trabalharemos o Contrato
Social, para compreensão dos elementos necessários para a formação do que Rousseau
entende por uma sociedade legítima e consequente fundação de Estados bem constituídos; nos
Princípios do direito da guerra, texto visceral e extremamente realista, composto por diversos
fragmentos, que trata da problemática da guerra entre Nações e do direito público, ou direito
das gentes. Neste texto, as teses de Hobbes acerca da natureza humana e da guerra são mais
uma vez rechaçadas; e, por fim, no famoso Capítulo II do Manuscrito de Genebra, em que
Rousseau debate com Diderot acerca da possibilidade da formação de uma sociedade geral do
gênero humano. Neste capítulo suprimido da versão definitiva do Contrato, o Genebrino ataca
sobretudo as noções de sociabilidade natural e vontade geral circunscritas nos verbetes
Direito Natural e Hobbesianismo, creditados a Diderot e publicados na Enciclopédia.
3.1 - CONTRATO SOCIAL: FORMAÇÃO DA SOCIEDADE LEGÍTIMA
Logo no parágrafo inicial do livro I do Contrato Social Rousseau apresenta a questão
que deverá nortear a obra:
Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração
legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como podem ser. Esforçar-me-ei sempre, nessa procura, para unir o que o direito permite ao que o interesse
45
prescreve, a fim de que não fiquem separadas a justiça e a utilidade. (ROUSSEAU,
1973b, p. 27).
Nesse parágrafo inicial fica claro que a proposta de Rousseau é equilibrar teoria e
prática. Por isso temos que ter cuidado para não tomar o Contrato como uma obra puramente
teórica, ou, mais radicalmente ainda, utópica. Tomar os homens como são e as leis como
podem ser significa criar leis que devam corresponder às necessidades individuais e coletivas
dos homens como são. Partindo “do conhecimento profundo e genérico do homem para
estabelecer as regras da organização consciente da sociedade: ‘É preciso estudar a sociedade
pelos homens e os homens pela sociedade38’, dirá no Emílio” (MACHADO, 1973b, 27 – nota
6). Portanto, é imprescindível, antes de se falar em formar uma sociedade, levar em conta os
homens em sua condição natural. Sua liberdade e igualdade naturais; perfectibilidade; amor
de si, piedade, etc.39
Para Rousseau, a construção de uma sociedade legítima deve pautar-se por esse
princípio, assim, segundo Salinas Fortes, a questão que abre o Contrato Social poderia ser
formulada assim: “Em que condições é possível existir uma sociedade na qual se realize o
máximo de liberdade e o máximo de igualdade?” (FORTES, 1996, p.80).
A ideia de um contrato social como mecanismo instituidor da sociedade não era nova
na época de Rousseau. Pensadores da escola do direito natural como Hobbes já discutiam o
tema tentando trazer respostas a questões sobre a origem das sociedades civis e o fundamento
da autoridade. John Locke argumentava que a sociedade civil foi fundada para assegurar a
propriedade privada. Esta já aparecia no estado de natureza, inclusive nascendo com o próprio
homem, na medida em que, possuidor de um corpo, o produto do trabalho feito com as
próprias mãos lhe pertencia. Para evitar uma guerra perpétua decorrente de roubos e
violência, é instituído um contrato tendo o Estado como árbitro. Assim, a função do Estado é
proteger a propriedade privada, mediar as relações sociais e criar e aplicar mecanismos
jurídicos que regulem sua posse40. Já Hobbes considerava que o contrato era um meio
38 Cf: “É preciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade; quem quiser tratar
separadamente a política e a moral nada entenderá de nenhuma das duas.” (ROUSSEAU, 2004, p. 325) 39 Thomaz Kawauche aponta também que é preciso “buscar as particularidades de cada povo a ser instituído,
dando aos homens leis baseadas nos costumes e na opinião de tal modo que as leis não deixem de variar de
acordo com os tempos e lugares.” (KAWAUCHE, 2010, p. 208.). 40 Ver a Carta acerca da tolerância; Ensaio sobre o entendimento humano. (LOCKE, 1973)
46
necessário para fugir do medo da morte violenta a que era submetida a humanidade em um
estado de natureza onde a guerra e o assassínio eram uma realidade concreta só superada pela
criação de um organismo artificial com poder suficiente para manter a paz a qualquer custo, o
Estado absoluto. Assim, sua liberdade era cedida ao soberano, autoridade máxima - que tinha
totais poderes sobre seus cidadãos, inclusive de vida e morte - em troca de segurança.41 Em
ambos os casos, no fim das contas, temos a guerra no estado de natureza como motor que
impulsiona os homens a formarem a sociedade. Mas, como aponta Derathé:
para Rousseau, o isolamento em que se encontra o homem em estado de natureza o impede de entrar em conflito com seus semelhantes; e, para que
surjam o estado de guerra e as sociedades civis criadas para colocar-lhe um
termo, é preciso que os homens tenham se aproximado previamente, que tenham renunciado à ‘maneira de viver simples, uniforme e solitária que lhes
era prescrita pela natureza’. Eles só se tornam inimigos após terem se
‘tornado sociáveis’, pois o desenvolvimento da sociabilidade e das paixões vão de par. Somente então produz-se essa guerra geral que Hobbes tomou
pelo estado de natureza sem se dar conta de que ela não se devia às
inclinações naturais do homem, mas às suas paixões que só podem
desenvolver-se no seio da sociedade. É preciso, com efeito, que os homens tenham se aproximado e que suas paixões tenham se tornado ativas para que
sua independência natural engendre entre eles um verdadeiro estado de
guerra”. (DERATHÉ, 2009, p.265)
Assim, a sociabilidade é anterior ao contrato e as primeiras interações sociais são as
responsáveis pelo estado de guerra. Com efeito, os homens não são forçados a viver em
comunidade por ocasião do pacto. Eles já viviam. Foram obrigados a relacionar-se devido a
fatores externos como dilúvios, terremotos, escassez de víveres etc.... Conforme afirma
Derathé, “foi, portanto, na realidade, o desenvolvimento da sociabilidade que tornou os
estabelecimentos políticos necessários e, segundo um princípio caro a Rousseau, tornando
estes necessários os tornou também possíveis”. (DERATHÉ, 2009, p.266) A sociabilidade é
que torna o pacto possível, pois é a partir dela que a razão se desenvolve a ponto de perceber
os males decorrentes da vida em comum e aplicar o remédio correspondente. E o remédio é o
pacto:
41 Ver o Leviatã. (HOBBES, 1974)
47
Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que as os obstáculos
prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua
resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero
humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria.
Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não tem eles outro meio de conservar-se senão
formando, por agregação, um conjunto de forças, que possa sobrepujar a
resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a operar em concerto”. (ROUSSEAU, 1973b, p. 37-38)
Desse modo, só a união de forças é capaz de conservar a vida num ambiente que
pouco a pouco foi tornando-se nocivo à vida solitária do homem primitivo. Tal associação, de
início, é intuitiva, guiada pelo instinto de conservação42, fazendo-nos crer que a sociabilidade
é decorrente dela, na esfera íntima, e dos acasos da natureza no campo externo43.
Alcançado esse ponto - em que a vida coletiva se resume a um amontoado de homens
que se unem por agregação visando meramente a sobrevivência - e não podendo retroceder à
vida simples e errante de outrora, Rousseau, tendo em mente as novas necessidades surgidas a
partir do ingresso na civilização, como a propriedade privada, e mantendo sempre no
horizonte as questões relacionadas aos ideais de liberdade e igualdade, busca “encontrar uma
forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a
força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo,
permanecendo assim tão livre quanto antes”. (ROUSSEAU, 1973b, p. 37-38) Essa forma de
associação é a matriz do contrato, cuja cláusula principal pode ser resumida como “a
alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em
primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos, e, sendo a
condição igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa demais” (ROUSSEAU,
1973b, p. 37-38) porque assim estará onerando a si próprio.
42 Como Rousseau reafirma nessa passagem dos Fragments Politiques: “Mais les devoirs de l’homme dans l’état
de nature sont toujours subordonnés au soin de sa propre consevation qui est le premier et le plus fort de tous.”
(ROUSSEAU, OC, III, p. 475) 43 Com a natureza o colocando em perigo, o instinto de conservação fez com que o homem visse na vida em
comunidade a única maneira de sobreviver aos obstáculos que não conseguiria transpor sozinho.
48
Tal questão remonta ao problema do fundamento da autoridade44. Se os homens são
iguais, de onde vem a ideia segundo a qual alguém tem poder sobre o outro? Só podemos
encontrar resposta a essa pergunta na ordem social, nas convenções! “Já que nenhum homem
tem uma autoridade natural sobre seu semelhante, e já que a força não produz nenhum direito,
restam, portanto as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens”
(ROUSSEAU, 1973b, p. 32) diz Rousseau. Como todos nascem iguais e livres, nenhum pode
ter autoridade natural sobre os outros. A escravidão45 igualmente é produto da civilização e o
poder paterno só perdura enquanto o filho não puder prover-se a si mesmo. Quem teria então
poder para deliberar em nome de todos? Como criar leis que resguardem a liberdade e ao
mesmo tempo legitimem a autoridade sem ferir a igualdade natural? Vejamos como Rousseau
responde a essas questões.
3.1.1 – Lei e Liberdade
Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens,
qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á
que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência particular corresponde a outro tanto
de força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade não
pode subsistir sem ela. (ROUSSEAU, 1973b, p. 72)
Segundo Derathé, “a associação civil tem essencialmente como finalidade impedir que
um dos associados possa submeter um outro deles à sua vontade46 e, ao neutralizar os efeitos
das desigualdades sociais, assegurar a todos os cidadãos o equivalente de sua independência
natural.” E continua afirmando que, “por certo, existe um determinado nível de desigualdade
no estado de natureza, mas, ‘neste, sua influência é quase nula’, porque, nesse estado, os
44 De acordo com Bento Prado Jr. “Com Rousseau o centro de gravidade da reflexão política se desloca da esfera
do saber para a do poder, ou da Razão para a da paixão, ou ainda do Discurso para a da Força. As vontades, as
paixões, mesmo os direitos reivindicados remetem a uma Econômica ou Dinâmica onde se opõem proprietários e despossuídos, fortes e fracos, dominantes e dominados.” (PRADO JR, 2008, p. 420) 45 Aristóteles dizia que a escravidão era um fenômeno natural, fazendo crer que alguns homens nasciam com
tendência inata à servidão. Rousseau rechaça essa ideia no Livro I, Capítulo IV do Contrato Social. 46 Pois se assim fizesse, o estaria escravizando. Na seguinte passagem, no Manuscrit de Neuchâtel Rousseau
afirma: “On est libre quoique soumis aux lois, non quand on obéit à un homme, parce qu’en ce dernier cas
j’obéis à la volonté d’autrui, mais en obéissant à la loi je n’obéis qu’à la volonté publique qui est autant la
mienne que celle de qui que ce soit” (ROUSSEAU, OC. I, p. 492). Assim, para que aja liberdade na sociedade, o
fundamento da autoridade deve estar baseado em leis, e não em indivíduos. Esse é o significado da liberdade
civil.
49
homens não têm, por assim dizer, relações entre eles. Enquanto vive no estado selvagem, o
homem ‘basta-se a si mesmo’: como ele pode dispensar a assistência de seus semelhantes, ele
os ignora; mas, uma vez que se tornou sociável, ele tem necessidade deles, assim como estes
têm necessidades dele.” (DERATHÉ, 2009, p. 338) Portanto, são as relações de dependência
que geram o mal-estar na civilização:
Todo o mal ou, se quisermos, todas as contradições do sistema social vêm
dessa dependência mútua, da qual cada um procura tirar o máximo de benefício a expensas de outrem, pois, na ausência de uma regra que seja
respeitada por todos, só pode reinar o arbitrário nas relações entre os
indivíduos. O único meio de remediar essa desordem é encontrar uma forma
de sociedade civil onde as relações entre os homens não sejam abandonadas ao arbitrário das vontades individuais. Dito de outro modo não há outra
solução ao problema político senão substituindo-se, às relações de homem a
homem, a relação do cidadão à Lei. (DERATHÉ, 2009, p. 338)
Sob a direção do contrato, na passagem do estado natural para o estado civil, o homem
perde sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto possa alcançar; e ganha a
liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. A liberdade natural, encontrando limites
somente na força do indivíduo, é trocada pela civil, cuja fronteira é delimitada pela obediência
à vontade geral47. Na teoria de Rousseau, lei e liberdade caminham juntas. Parece
contraditório, pois tendemos a achar que regras são criadas com o objetivo de determinar
limites para a ação, de padronizar nosso comportamento restringindo o agir livre. No Contrato
Social a lei48 surge no seio da sociedade como instrumento de fomento à liberdade individual
e coletiva. A chave para o entendimento desta proposição está na noção de liberdade não
somente como possibilidade de fazer escolhas, mas como lei moral autoimposta. Segundo
Cassirer, “para ele [Rousseau], liberdade não significa arbítrio, mas a superação e a exclusão
de todo arbítrio. Ela se refere à ligação a uma lei severa e inviolável que eleva o indivíduo
acima de si mesmo. Não é o abandono desta lei e o desprender-se dela, mas a concordância
com ela o que forma o caráter autêntico e verdadeiro da liberdade”. (CASSIRER, 1999, p. 55)
Assim, somos livres porque obedecemos às leis instituídas por nós mesmos, e não por outros.
A autolegislação é o ponto de partida para a construção de uma sociedade livre e igual.
47 Além disso, com a entrada no estado civil surge a “liberdade moral, única a tornar o homem verdadeiramente
senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si
mesma é liberdade” (ROUSSEAU, 1973b, p. 43) 48 Na verdade, o próprio pacto se configura como a primeira lei positiva da humanidade e a obediência a ela é
que possibilita a manutenção da ordem social.
50
Começa por uma norma moral autoimposta pelo indivíduo em sua esfera particular. Essa
“lei”, no primeiro momento, é intuitiva, não racional. Decorre de seus instintos naturais ou
das necessidades imediatas. Sendo guiada pelo amor de si e pela compaixão, instala-se no
fundo de seu espírito a noção de que não se deve desejar ao semelhante aquilo que não se quer
para si. No contrato, ela é ampliada para a vida coletiva e transforma-se em base para a
organização civil. Tal base, para constituir-se forte, precisa da alienação total do indivíduo em
favor do soberano, mas ao mesmo tempo, sob pena de quebrar a igualdade, o soberano não
pode ser um agente externo totalmente independente, um indivíduo ou um grupo organizado.
O soberano deve ser composto por todos os signatários do pacto, como veremos a seguir.
3.1.2 - Soberania
Antes de continuarmos, faz-se necessário pontuar algumas questões de precisão
terminológica para uma melhor compreensão do que virá a seguir. No final do capítulo VI do
livro I do Contrato Social, Rousseau nos oferece um pequeno dicionário onde fixa, com
precisão, o significado de alguns dos principais termos usados em seu vocabulário político:
Imediatamente, esse ato de associação [o pacto] produz, em lugar da pessoa
particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de
tantos membros quantas são as vozes da assembleia,49 e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa
pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava
antigamente o nome de cidade e hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano
quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos
associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em
particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado”. (ROUSSEAU, 1973b, p.39-40)
Vê-se que o homem, no estado civil, adquire três “facetas”: cidadão, no particular;
povo, no coletivo, e súdito enquanto submetidos à lei. Esses três aspectos em um só indivíduo
servem para mostrar que o particular e o público estão intimamente ligados. E o exercício da
49 “Como o contrato, essa ‘assembleia’ e esses ‘votos’ (algumas traduções apontam, de forma mais precisa,
‘vozes’) não tem existência concreta, mas apenas simbolizam a tomada de consciência de sua condição pelos
componentes do corpo social” (MACHADO, 1973b, p. 39 – nota 62).
51
soberania no que tange ao poder deliberativo cabe aos associados enquanto coletividade.
Enquanto pessoa moral,50 designa-se povo. Essa coletividade, transformada em povo, surge
não como um ser físico, mas um ente moral consciente de seu papel e, desta forma, atuando
“como membro do soberano em relação aos particulares, e como membro do Estado em
relação ao soberano” (ROUSSEAU, 1973b, p.40) forma-se uma dupla relação de
comprometimento, aumentando a responsabilidade do indivíduo, pois seus atos fariam eco
tanto na esfera particular quanto na pública. A aparente fragilidade desse tipo de organização
político-social encontra sua força justamente na livre adesão de seus associados. Logo, como
afirma Rousseau, “desde o momento em que essa multidão se encontra assim reunida em um
corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, nem, ainda menos, ofender o
corpo sem que os membros se ressintam” (ROUSSEAU, 1973b, p.41) encontrando no
equilíbrio entre dever e interesse todas as vantagens que dela se pode tirar. Ao aliar o
individual e o coletivo, o “soberano, sendo formado tão só pelos particulares que o compõem,
não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles, e, consequentemente, o poder soberano
não necessita de qualquer garantia em face de seus súditos, por ser impossível ao corpo
desejar prejudicar a todos os seus membros, (...) e a nenhum deles em particular. O soberano,
somente por sê-lo, é sempre aquilo que deve51 ser.” (ROUSSEAU, 1973b, p.41) Desta forma,
sua soberania é inalienável52, pois, por ser um corpo coletivo, só pode ser representada por si
mesmo - não pode ser representada por um indivíduo, como um rei por exemplo, nem por um
pequeno grupo e muito menos pelo Governo - ; e pelo mesmo motivo é indivisível53, pois se
sustenta na unidade. Seu poder se limita em si mesmo, ou seja, as limitações são criadas,
convencionadas pelo próprio corpo participante do soberano deliberando na esfera geral, com
vistas ao interesse comum, posto que o soberano “jamais tem o direito de onerar mais a um
cidadão do que a outro, porque, então, tornando-se particular a questão, seu poder não é mais
50 Cf. “Não sendo o Estado ou a Cidade mais que uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus
membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria conservação, torna-se-lhe necessária uma
força universal e compulsiva para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente a todos. Assim como a
natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um
poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha, como já disse,
o nome de vontade geral.” (ROUSSEAU, 1973b, p. 54) 51 Como em Hobbes, o soberano é absoluto. A diferença é que para Rousseau, o caráter absoluto é entendido como o resultado da associação de todos os particulares formando uma força incapaz de afetar seus indivíduos,
pois assim estaria atingindo a si mesma. 52 Cf. “Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que
o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo.” (ROUSSEAU,1973b, p.
50) 53 Cf. “A soberania é indivisível pela mesma razão por que é alienável, pois a vontade ou é geral, ou não o é; ou é
a do corpo do povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e
faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura, quando muito, de um
decreto.” (ROUSSEAU,1973b, p. 50)
52
competente” (ROUSSEAU, 1973b, p.57). No plano empírico, a dificuldade em estabelecer
noções exatas de autoridade soberana levam os políticos a dividir o que não pode, ou não deve
ser dividido. Dividem-no em poder executivo e legislativo, estabelecendo uma separação
entre força e vontade, muitas vezes confundindo lei com aplicação da lei como no caso de
uma declaração de guerra, que não é de forma alguma uma lei, mas unicamente um ato
particular. Além disso, ao considerar soberana toda população formada pelos cidadãos,
Rousseau procurava confiar ao povo comum de cada nação a condução última de seus
próprios assuntos. Ele, raramente, e, especialmente no Contrato Social nunca, designa a
assembleia popular que considera soberana como uma democracia, pois considerava a
democracia como uma forma não de soberania direta, e sim de governo direto, que exigia que
o povo se mantivesse em conselho permanente para executar e administrar a política pública
aos moldes de burocratas e funcionários públicos em tempo integral, tornando o Estado, com
isso, propenso à corrupção e à guerra civil54. (ROUSSEAU, 1973b, livro III, cap. 4)
Segundo Rousseau, “toda ação livre tem duas causas que concorrem em sua produção:
uma moral, que é a vontade que determina o ato, e a outra física, que é o poder que a executa.
Quando me dirijo a um objeto, é preciso, primeiro, que eu queira ir até ele e, em segundo
lugar, que meus pés me levem até lá”. (ROUSSEAU, 1973b, p.79) Da mesma maneira
procede o corpo político. “Distinguem-se nele a força e a vontade, esta sob o nome de poder
legislativo e aquela, de poder executivo”. (ROUSSEAU, 1973b, p.79) O poder executivo é o
Governo55, tendo como seus membros os magistrados ou governantes, e por objetivo fazer
com que a vontade do legislativo seja executada. O Governo de forma alguma detém a
soberania e o título de governante é “um emprego, no qual, como simples funcionários do
soberano, exercem em seu nome o poder de que ele os fez depositários, e que pode limitar,
modificar e retomar quando lhe aprouver.” (ROUSSEAU,1973b, p. 81). Portanto, há uma
diferença nítida entre Governo, Soberano e governantes, que são meros funcionários do
Estado - cujos atos são particulares - subordinados ao poder legislativo, que pertence ao corpo
54 Nesse sentido, Rousseau reconhece que o bom exercício da soberania popular pelos cidadãos seria mais viável em pequenos Estados, geograficamente protegidos contra invasões e com riquezas distribuídas mais ou menos de
forma igualitária. Rousseau sugere, no final do cap. X do livro II do Contrato, que a Córsega era um dos poucos
lugares ainda propensos a esse tipo de arranjo social. De fato, segundo Lourival Gomes Machado, essa passagem
levou Buttafuoco a convidar Rousseau a escrever o Projeto de constituição para a Córsega, “uma espécie de
aplicação prática do Contrato Social que deu a seu autor, por um instante, a ilusão de preencher o que lhe parecia
constituir a mais alta função reservada ao homem: a função do Legislador. (ROUSSEAU, 1973b, p. 72 nota 201) 55 Cf. “Que será, pois, o Governo? É um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua
mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como
política.” (ROUSSEAU,1973b, p. 80)
53
moral chamado povo56. Por sua vez, os atos do poder legislativo só podem ser leis, na medida
em que atua como vontade que determina a ação. A essa vontade, Rousseau chama de vontade
geral.
3.1.3 – Vontade Geral
A cláusula central do contrato é a “alienação total de cada associado, com todos os
seus direitos, a toda comunidade” (FORTES, 1996, p. 83) e sob a suprema direção da vontade
geral. A originalidade do pacto reside nesse conceito-chave. Segundo Salinas Fortes, “quando
concordamos em nos submeter, todos os outros pactuantes concordam também em se colocar
sob a direção, suprema, não de uma vontade alheia, mas da vontade coletiva da própria
comunidade, daquela vontade que visa acima de tudo ao interesse coletivo” (FORTES, 1996,
p. 83). Assim, a vontade geral não é um mero composto de vontades particulares, ela é a
vontade de todo cidadão atuando como membro do soberano. Daí supõe-se que os cidadãos, e
não os indivíduos tenham uma vontade comum, um interesse que é o interesse geral. Interesse
geral, não interesse de todos. Rousseau é diligente em pontuar essa distinção. Diz ele: “Há
comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende
somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma das
vontades particulares.” (ROUSSEAU,1973b, p. 52-53) Ao entrecruzar essas vontades,
tirando-lhes os interesses conflitantes, o que resta como soma é a vontade geral. E é somente a
autoridade da comunidade como um todo e as leis que dela emanam que devem ser
reconhecidas como politicamente legítimas
Assim, para funcionar a bom termo, a vontade geral deve visar acima de tudo o bem
comum57. Para que tal objetivo seja alcançado, é preciso união total entre os membros do
56 Sobre o Legislador, Rousseau reitera sua importância nessa passagem: “Aquele que ousa empreender a
instituição de um povo deve sentir-se com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por si só mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do
qual de certo modo o indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituição do homem para fortificá-la;
substituir a existência física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma existência parcial e
moral.” (ROUSSEAU,1973b, p. 63) Assim, o Legislador deve estar consciente do processo de socialização do
indivíduo para, assim sendo, estimular esse processo, facilitá-lo e até completá-lo pelas instituições. 57 Cf. ROUSSEAU: “A vontade geral é sempre boa e tende sempre à utilidade pública; donde não se segue,
contudo, que as deliberações do povo tenham sempre a mesma exatidão. Deseja-se sempre o próprio bem, mas
nem sempre se sabe onde ele está. Jamais se corrompe o povo, mas frequentemente o enganam e só então é que
ele parece desejar o que é mau.” (ROUSSEAU,1973b, p. 52)
54
soberano para que ajam como uma só voz, pois, “quando se estabelecem facções, associações
parciais a expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em
relação a seus membros [da associação da qual fazem parte] e particular em relação ao
Estado” (ROUSSEAU, 1973b, p.53), ferindo seu princípio elementar. Assim, é necessário
que uma única vontade dirija as forças do Estado, isto é, as forças reunidas de todos os seus
membros, sem o que teríamos a anarquia. Essa vontade não pode ser uma vontade particular,
já que isso seria submeter os cidadãos a uma vontade estranha, empregar a força comum em
serviço de um interesse privado, e instituir essa dependência de homem a homem que nos
propomos precisamente suprimir.
Se não queremos fazer do Povo uma multidão submissa a um ou a vários senhores, é
preciso que a autoridade soberana não seja outra coisa além da vontade geral. Assim, “a
vontade geral caracteriza-se não somente por ser a vontade de todos, mas sobretudo por só
poder agir pelas leis e por ser contra sua essência estatuir algo a respeito de um objeto
individual” (DERATHÉ, 2009, p.528), pois ela tende sempre à igualdade, enquanto a vontade
particular inclina-se a predileções58. Nas Cartas escritas da montanha Rousseau pergunta:
“Qu’est-ce qui fait que l’Etat est un? C’est l’union de ses membres. Et d’où naît l’union de ses
membres? De l’obligation qui les lie.” (ROUSSEAU, OC. III, p. 806) O que o autor pretende
investigar aqui é sob quais condições o indivíduo não somente é forçado, mas também
obrigado a obedecer à vontade geral. Por que a vontade geral obriga seus cidadãos e por qual
motivo estes não podem resistir a sua autoridade sem incorrer em crime contra a ordem
social? A resposta a essa pergunta já se encontrava na primeira versão do contrato, o
Manuscrito de Genebra, onde Rousseau diz: “Nous avons dit que la Loi est um Acte public et
solemnel de la volonté générale, et comme par le pacte fondamental chacun s’est soumis à
cette volonté, c’est de ce pacte seul que toute Loi tire sa force.” (ROUSSEAU, OC. III, p.
326) Esse dever de obedecer à vontade geral se funda no caráter voluntário do pacto, no
compromisso mútuo. No engajamento daquele que se obriga a obedecer de forma livre, sem
nenhuma força externa que o oprima, tal é a tenacidade desse princípio que é a fonte legítima
das leis: “Essa vontade geral, que sempre tende para a conservação e o bem estar do todo e de
cada parte, e que é a fonte das leis, é, para todos os membros do Estado, em relação a eles e ao
próprio Estado, a regra do justo e do injusto (...) esta regra de justiça, segura a todos os
58 Cf. “Se não é, com efeito, impossível que uma vontade particular concorde com a vontade geral em certo
ponto, é pelo menos impossível que tal acordo se estabeleça duradouro e constante, pois a vontade particular
tende pela sua natureza às predileções e a vontade geral, à igualdade.” (ROUSSEAU, 1973b, p. 50)
55
cidadãos, pode ser falha em relação aos estrangeiros.” (ROUSSEAU, 2006, p. 88) Aqui se
desenha o caráter particular da vontade geral. Ela se aplica somente àqueles que aderiram
livremente ao pacto, ou seja, aos membros associados de um Estado determinado, o que nos
leva a afirmar que “a vontade do Estado, embora geral no que concerne a seus membros, não
é mais geral em relação a outros Estados e seus membros, mas torna-se, para esses, uma
vontade particular e individual, cuja regra de justiça é a lei da natureza.” (ROUSSEAU, 2006,
p. 88) Está configurado o imenso desafio das relações internacionais: como relacionar essas
diferentes vontades? O que é justo para um não necessariamente é para outro já que a vontade
geral não é universal, e como ela é a base que une as sociedades particulares e dita suas leis,
na impossibilidade de aplicá-la a todas as nações, o que resta é uma constatação sombria:
deixamos o estado de natureza e firmamos um pacto com a promessa de paz para depois nos
darmos conta que só ampliamos o problema. A guerra agora é entre Estados, e ela não pode
ser contida em definitivo por um pacto. Essas e outras questões serão tratadas a seguir.
3.2 – PRINCÍPIOS DO DIREITO DA GUERRA
Vimos que, Rousseau, assim como os demais contratualistas, constrói sua teoria do
Estado ou sua compreensão acerca da sociedade através da oposição entre um suposto estado
de natureza, marcado pela ausência da lei civil, e o estado civil ou policiado, onde imperam as
leis positivas, os costumes e imposições da coletividade. Nesse sentido, a natureza é definida
como um espaço de liberdade enquanto a sociedade surge como uma “ampla teia de relações
de dependência” dando sentido à célebre frase que inicia o Contrato Social: “O homem nasce
livre e por toda a parte encontra-se a ferros” (ROUSSEAU, 1973b, p.28). O que garante a
liberdade individual do homem é justamente seu isolamento e ausência de relações sociais.
Como mantê-la no seio da sociedade? Por meio de uma ordem civil que impeça o fomento das
desigualdades e dê força ao Estado para fazê-lo. Quem o autoriza? O soberano, o povo, agente
da vontade geral. Essa vontade geral, contudo, é geral em relação ao povo que delibera, mas,
é particular em relação aos demais povos. Ela não é universal. Isso significa que cada povo
delibera e constrói seu próprio consenso de acordo com suas características e anseios
próprios.
56
Na ausência das leis civis, é a lei natural, “gravada ainda no coração do homem em
caracteres inapagáveis” (ROUSSEAU, 2011, p.159) o lembra de que não é permitido
sacrificar a vida de seu semelhante senão para conservar a sua própria. Porém, com o passar
do tempo os homens criam ou são submetidos a situações em que seus interesses entram em
contradição com os interesses dos demais homens, levando-os a entrar em disputas onde a lei
natural é abafada e torna-se sem eficácia. A partir deste momento, ela já não é suficiente para
manter todos no limite de suas normas, o que evidencia a necessidade da lei civil, estabelecida
pelo acordo daqueles que firmam pactos que dão origem às sociedades particulares. O pacto
visa, entre outras coisas, instituir uma organização pacífica e legítima (pautada na justiça), e
para isso cria o Estado, este “ser moral” que representa exatamente os laços que unificam a
vontade de um povo em viver de forma coletiva e ordenada. Este ser moral, contudo, apesar
de guardar algumas analogias com os indivíduos que o constituem, possui características
próprias que o distinguem.
Enquanto os homens estão limitados à sua constituição física e podem prover sua
subsistência autonomamente, o Estado, cuja extensão e força são puramente relativas, para
manter-se seguro e forte, “é forçado a se comparar sem cessar para se conhecer”
(ROUSSEAU, 2011, p.162), e esta correspondência desigual, onde o instinto de conservação
tem como base a sobrevivência de um em detrimento da sobrevivência do outro, torna a
relação entre os Estados cada vez mais perigosa, engendrando inúmeras guerras.
Diferentemente de autores como Hobbes, por exemplo, que veem na constituição do
Estado o fim da guerra existente entre indivíduos; Rousseau argumentará que o estado de
guerra não constitui a situação dos homens isolados, e que “a guerra nasceu da paz ou ao
menos das precauções que os homens tomaram para assegurar uma paz durável”
(ROUSSEAU, 2011, p. 155). Tal é o que se verifica se observarmos o mar de guerras no qual
as sociedades historicamente constituídas estão imersas. Tal situação, por sua vez, pode ser
modificada, ensejando mais guerra ou mais paz, de acordo com a constituição interna dos
Estados. E, nesse sentido, um Estado mais bem constituído, que seguisse os postulados de
legitimidade expressos no Contrato social, tenderia a reduzir a belicosidade existente.
Pretendemos a seguir investigar as questões acima expostas e mostrar que no entender
de Rousseau a guerra só é possível no seio da sociedade, e que as leis naturais, quando
aplicadas às relações estabelecidas entre os Estados tornam-se bastante problemáticas.
57
3.2.1 – Guerra e Estado de Guerra
Rousseau, em uma passagem do Emílio, nos dá uma pista para compreendermos sua
visão da aplicabilidade do Contrato Social. Adiantando o método, diz ele que “antes de
observar é preciso criar regras para as observações; é preciso uma escala para as medidas que
tomamos” (ROUSSEAU, 1969, p.837). E essa escala é justamente o Contrato. Assim, como
afirma Milton Meira do Nascimento, “todo o ‘Contrato Social’ não passa de uma grande
‘escala’, na qual estarão todos os elementos constitutivos da relação de poder, desde o grau
máximo da servidão até o grau máximo da liberdade política ou civil” (NASCIMENTO,
1988, p.120). Isso significa não tomar o Contrato como medida prescritiva, ou seja, o
Contrato tal como foi concebido não tem como proposta configurar-se num projeto político
realizável integralmente, mas somente numa referência para um sistema de medidas59 onde
sua aplicabilidade submete-se às particularidades de cada povo, seus costumes, opiniões60,
época em que vive e condições ambientais61. O Contrato Social surge como um modelo ideal
de organização social a partir do qual é possível julgar o grau de corrupção ou de excelência
dos casos existentes na prática, objetivando aproximar-se ao máximo do protótipo idealizado
pelo filósofo. Para ele, as leis devem ser instituídas de acordo com os usos e costumes,
manifestadas pela razão e legitimadas pela vontade geral. Rousseau nega a possibilidade de
uma legislação universal, que se aplique a todas as instituições civis. A mesma lei que
funciona para um povo em um determinado momento não necessariamente vale para outro, no
que podemos concluir que a vontade geral, que deve pautar as tomadas de decisão que visem
ao bem público, só é geral em relação ao povo; e particular em relação aos Estados. Como as
vontades dos diferentes Estados não necessariamente se coadunam, pois carregam consigo as
características de seus membros, de seus costumes, da diversidade de vontades, de interesses;
esses podem causar conflitos entre os Estados, ocasionando guerras.
59 Cf. “Em nenhum momento Rousseau tenta realizar o modelo político do ‘Contrato Social’ como programa de ação, mas sua tarefa se limita a uma aplicação prática dos princípios estabelecidos no ‘Contrato’, apenas como
referência a um sistema de medidas.” (NASCIMENTO, 1988, p. 120) 60 Cf. “a mais importante de todas [as leis], que não se grava nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos; que
faz a verdadeira constituição do Estado; que todos os dias ganha novas forças; que, quando as outras leis
envelhecem ou se extinguem, as reanima ou as supre, conserva um povo no espírito de sua instituição e
insensivelmente substitui a força da autoridade pela do hábito. Refiro-me aos usos e costumes e, sobretudo, à
opinião.” (ROUSSEAU, 1973b, p. 75) 61 Sobre a influência do clima na realização das formas de governo ver Livro III, Cap. VIII do Contrato Social.
Ver também, L’influence des climats sur la civilisation. OC. III, p. 529-533.
58
No seio da sociedade civil, por ocasião do pacto que atribui a soberania ao povo
agente da vontade geral, a união decorrente desse sistema não consegue impedir eventuais
violências entre seus membros, o que não se configura propriamente como guerra. Pois o
Estado de Guerra, diz Rousseau, “não pode ter lugar entre os particulares” (ROUSSEAU,
2011, p.160). O que há são combates, querelas, que podem e devem ser dirimidos pela via das
leis e da justiça estabelecida. Como a configuração desse universo, ou seja, de uma sociedade
onde a vida de um está ligada a de outro, geralmente não permite que a felicidade de todos
aconteça ao mesmo tempo, “cada um segundo a lei da natureza, dá-se a si mesmo a
preferência” (ROUSSEAU, 2011, p.156).
Assim, quando o indivíduo tem sua integridade física ameaçada, o instinto natural de
autoconservação e a lei da natureza que o faz dar preferência a si mesmo efetivam-se para
rechaçar esse mal. Por vezes, tais querelas são absolutamente acidentais, produto das paixões
avivadas na vida em sociedade, e quase sempre não há, em ambas as partes, intenção de
prolongar o combate além do necessário. A afeição à paz e o apreço pela própria vida, fazem
o indivíduo evitar naturalmente situações que prenunciem o mal, e por vezes seu primeiro
movimento é de fuga. Tal sentimento é mais forte no estado de natureza onde o “homem é
naturalmente pacífico e medroso. Ele não se torna aguerrido senão à força do hábito e da
experiência” (ROUSSEAU, 2011, p.159) e tal hábito e experiência só são desenvolvidos na
vida em sociedade, pois conforme vemos no Princípios do Direito da Guerra “não é senão
após ter feito sociedade com algum homem que ele se determina a atacar o outro”
(ROUSSEAU, 2011, p.159). Porém, tal ataque entre indivíduos não pode ser chamado de
guerra, visto que não ultrapassa a esfera particular62. Assim, a posição de Rousseau contra
Hobbes e sua “guerra de todos contra todos” é mais uma vez reiterada:
Quem pode ter imaginado sem estremecer o sistema insensato da guerra natural de cada um contra todos? Que estranho animal seria aquele que
acreditasse que seu bem estar estivesse vinculado à destruição de toda sua
espécie, e como conceber que esta espécie tão monstruosa e tão detestável pudesse durar somente duas gerações? Eis portanto até onde o desejo ou
62 Cf. “No estado civil onde a vida de todos os cidadãos está sob o poder do soberano e onde ninguém tem o
direito de dispor da sua nem da de outrem, o estado de guerra não pode ter lugar entre os particulares, e quanto
aos duelos, desafios, acordos, chamadas para combate singular, além de que era um abuso ilegítimo e bárbaro de
uma constituição totalmente militar, também não resultava num verdadeiro estado de guerra, mas numa questão
particular que se resolvia em tempo e locais limitados, de tal maneira que para um segundo combate era preciso
um novo desafio.” (ROUSSEAU, 2011, p. 160)
59
antes o furor de estabelecer o despotismo e a obediência passiva conduziu
um dos mais belos gênios que já existiu. (ROUSSEAU, 2011, p.157)
Apesar de apontá-lo como “o mais belo gênio que já existiu”63 não o exime de fortes
críticas. Tomar por princípio a ideia de que é natural64 ao homem destruir-se mutuamente
repugna65 o Cidadão de Genebra. Tal sentimento de inimizade, no seu entender, só surge a
partir do estabelecimento da sociedade e está diretamente ligado ao bem-estar e condicionado
por instituições que incentivam a competição e os desejos de preferência. No estado natural, o
bem estar limita-se ao estritamente necessário, pois, diz Rousseau “quando ele tem a alma sã
e quando seu corpo não sofre, o que lhe falta para ser feliz conforme sua constituição? Aquele
que não tem nada deseja pouca coisa, aquele que não comanda ninguém tem pouca ambição.
Mas o supérfluo desperta a cobiça: quanto mais se obtém mais se deseja” (ROUSSEAU,
2011, p.158). A cobiça pelo supérfluo infla o coração do homem civilizado de desejos e o
semelhante entra como um empecilho a seu bem-estar. Se isso acontece, a razão o convence
da incompatibilidade entre sua existência e a do outro, que é tomado também por esse
sentimento, gerando uma vontade comum de destruir o oponente. Ora, esse tipo de situação só
ocorre porque a sociedade gera relações de dependência onde o bem estar de um está
diretamente ligado ao bem estar do outro. Quando o indivíduo enxerga essa condição e se
convence de que sua existência é incompatível com a existência do outro, impele contra a
vida dele para eliminá-lo e o agredido, também ciente da situação, arma-se contra seu
agressor com o mesmo objetivo, gerando uma vontade refletida de se destruir mutuamente.
Nas palavras de Rousseau:
63 Em sua crítica ao sistema hobbesiano Rousseau escreve: “Quem pode ter imaginado sem estremecer o sistema
insensato da guerra natural de todos contra todos? Que estranho animal seria aquele que acreditasse que seu bem
estar estivesse vinculado à destruição de toda sua espécie, e como conceber que esta espécie tão monstruosa e tão
detestável pudesse durar somente duas gerações? Eis portanto até onde o desejo ou antes o furor de estabelecer o
despotismo e a obediência passiva conduziu um dos mais belos gênios que já existiu”. (ROUSSEAU. 2011, p.
157) Para Rousseau, Hobbes havia subestimando a importância real de suas ideias basicamente porque adotara
concepções errôneas da natureza humana. Atribuiu ao selvagem um conjunto de características que só poderia
ter em sociedade, e, como não enxergou a distinção entre nossas qualidades sociais e nossos atributos naturais,
exagerou nos traços ao pintar nossa conduta original, incluindo acréscimos que só surgiriam em nosso
desenvolvimento posterior. 64 Cf. “<<naturaliser>> la guerre en y voyant une relation primordiale, interindividuelle, conduit d’une part à
naturaliser la nécessité du droit et l’État; et d’autre part à se méprendre sur la signification de la guerre
interétatique: si la guerre est naturelle, l’État ne fait que subir, corriger ou amortir une violence qui le précède.”
(BACHOFEN, 2006, p.140) 65 Cf. “Se esta inimizade natural e destrutiva estivesse ligada à nossa constituição, então far-se-ia ainda sentir e
nos impeliria apesar de nós mesmos através de todas as amarras sociais. O terrível ódio da humanidade corroeria
o coração do homem. Ele se afligiria pelo nascimento de seus próprios filhos e se regozijaria com a morte de
seus irmãos: e tão logo ele encontrasse alguém dormindo seu primeiro movimento seria matá-lo.” (ROUSSEAU,
2011, p. 157)
60
Quando as coisas encontram-se no ponto onde o ser dotado de razão é convencido de que o cuidado com sua conservação é incompatível não
somente com o bem estar de um outro, mas com sua existência; então arma-
se contra a vida dele e procura destruí-la com o mesmo ardor com o qual procura conservar-se a si mesmo e pela mesma razão. O agredido, sentindo
que a segurança de sua existência é incompatível com a existência do
agressor, ataca, por sua vez, com todas as suas forças a vida daquele que também quer atacar a sua; esta vontade manifesta de se destruir mutuamente,
e todos os atos que dependem dela, produzem entre os dois inimigos uma
relação que chamamos guerra. (ROUSSEAU, 2011, p.156)
A primeira condição de uma guerra real é que existe, por parte de cada um dos
adversários, perigo iminente de morte. Não há que se falar em guerra se for para preservar a
honra ou o bem estar. É preciso estar convencido de que sua conservação é incompatível não
só com o bem estar do outro, mas com a sua existência. A segunda é que deve haver um “ato
de julgamento”, uma vontade refletida, deliberada. Situações de violência ocasionais, (geradas
por um acesso de raiva, por exemplo) podem muito bem levar à morte do adversário, mas
estes são atos que não envolvem necessariamente o fato de que a existência do adversário seja
considerada um perigo vital para minha existência. Trata-se de pura impulsividade. A guerra
“implique une représentation globale, intellectuelle, intégrant ce que je suppose être les
intentions de mon adversaire anticipées sur une durée indéfinie, dont je déduis de façon
générale le caractère incompatible de nos deux existences.” (BACHOFEN, 2006, p.144) A
terceira condição é que é preciso que a vontade, além de refletida, seja constante e que dure
até que o oponente se entregue, que seja destruído ou que ambos entendam que suas
existências não são mais incompatíveis. Por fim, a quarta condição versa sobre a
“publicização” da guerra. Que ela seja uma vontade constante e manifesta de se destruir. Ou
seja, é preciso uma declaração de guerra para que ela tenha legitimidade.
Em suma, a guerra ocorre quando há, de ambas as partes, o desejo racional e
constante66 de destruir-se, “daí se segue que a guerra não consiste de forma alguma num ou
vários combates não premeditados, nem mesmo no homicídio e na morte cometida por um
arrebatamento de cólera, mas na vontade constante refletida e manifesta de destruir o inimigo.
66 Cf. “Esta [a guerra] supõe relações constantes e um desejo refletido e permanente de destruir o inimigo, o que
por sua vez supõe uma constância de relações que só pode se dar a partir do estabelecimento das relações civis.”
(BECKER, 2010c, p. 190)
61
Pois, para julgar que a existência deste inimigo é incompatível com nosso bem estar, é preciso
sangue frio, e razão, o que produz uma resolução durável, e para que a relação seja mútua, é
preciso que o inimigo por sua vez, sabendo que atentamos contra sua vida, tenha o desejo de
defendê-la às expensas da nossa” (ROUSSEAU, 2011, p. 156). A guerra, como aponta
Bachofen, “necessite la réciprocité des intentions belliqueuses” (BACHOFEN, 2006, p.146),
não pura e simplesmente um consentimento recíproco de lançar-se à guerra, mas sobretudo
uma resolução mútua de se defender contra um perigo mortal.
Assim, está perfilado o caráter artificial e contingente da guerra como um “acordo” de
agressão mútua, que quando efetivadas publicamente, recebe o nome de “hostilidades”. Tais
hostilidades se configuram em guerra quando em ato, e em estado de guerra quando em
potência, ou seja, em estado de latência. “Estas diferenças dão lugar a algumas distinções
entre os termos. Quando se está reciprocamente em exercício por contínuas hostilidades, é
propriamente o que se chama fazer a guerra. Ao contrário, quando dois inimigos declarados
permanecem tranquilos e não realizam um contra o outro nenhum ato ofensivo, sua relação
não muda por isso, mas enquanto não tiver nenhum efeito atual chama-se somente estado de
guerra. Longas guerras nas quais nos metemos e que não podemos terminar produzem
ordinariamente este estado. Às vezes, longe de adormecer na inação, a animosidade não faz
senão esperar um momento favorável para surpreender o inimigo, e seguidamente o estado de
guerra que produz o relaxamento é mais perigoso que a própria guerra” (ROUSSEAU, 2011,
p.157). Situação que só pode ser cessada por uma paz formal com a anuência das partes
envolvidas67.
Até aqui falamos da guerra sob a perspectiva dos indivíduos. Agora ampliaremos o
horizonte, direcionando o foco para as relações entre Estados. Conforme Rousseau, a partir do
momento em que a primeira sociedade é formada, “se segue necessariamente a formação de
todas as outras. É preciso fazer parte dela ou unir-se para lhe resistir. É preciso imitá-la ou se
deixar engolir por ela”. (ROUSSEAU, 2011, p. 160)
67 Cf. “A relação de guerra, uma vez estabelecida não pode cessar senão por uma paz formal. De outro modo,
cada um dos dois inimigos não tendo nenhum testemunho de que o outro cessou de atentar contra sua vida, não
poderia ou não deveria cessar de defendê-la às expensas daquela do outro.” (ROUSSEAU, 2011, p. 156)
62
3.2.2 – Tensão entre indivíduo e Estado: O estabelecimento do Estado-Nação e a Guerra
entre potências
O estabelecimento do estado social leva os homens a unirem-se por uma concórdia
artificial, com vistas a “se degolarem entre si”, e assim, veem-se “os horrores da guerra
nascerem dos cuidados que se tinha tomado para preveni-la” (ROUSSEAU, 2011, p. 160). A
vida social coloca o homem numa tensão contínua entre o fato de ser indivíduo e relacionar-se
com os outros indivíduos, regidos por uma lei civil; e de ser povo, ente moral, gozando da
liberdade natural e relacionar-se com outros povos:
A primeira coisa que eu observo, ao considerar a posição do gênero humano, é uma contradição manifesta em sua constituição, que torna-a sempre
vacilante. De homem a homem, nós vivemos em estado civil e submetidos às
leis; de povo a povo, cada um goza da liberdade natural: o que torna no fundo, nossa situação, pior do se estas distinções não fossem conhecidas.
Pois vivendo ao mesmo tempo na ordem social e no estado de natureza,
estamos sujeitos aos inconvenientes de um e de outro, sem encontrar segurança em nenhum dos dois (ROUSSEAU, 2011, p.154-155).
Esta configuração submete o homem a uma condição mista: ora indivíduo, ora povo.
Ao mesmo tempo na ordem social submetido à lei civil; e no estado de natureza, com total
ausência de leis. Situação histórica das relações internacionais. Essa contradição causa
estranhamento. Segundo Rousseau, como particular, “o homem, no fundo, não tem nenhuma
relação necessária com seus semelhantes, pode subsistir sem o concurso deles com todo vigor
possível” (ROUSSEAU, 2011, p.161). Sua força e grandeza são determinadas pela natureza, a
qual não pode ultrapassar. Suas faculdades são limitadas, sua vida curta, porém, como
indivíduo, pode subsistir isoladamente, conservando-se de forma autônoma. Como povo,
transfigura-se em Estado, corpo artificial sem nenhuma medida determinada. Sua grandeza e
limites são indefinidos e sua força ou fraqueza é determinada pela comparação com força ou
fraqueza dos outros Estados. Para conservar-se, precisa tornar-se mais poderoso que seus
vizinhos, sob pena de ser engolido por eles.
Tal é o impasse a que chegou a humanidade. Com o intuito de instituir a paz e o bem
estar, os homens unem-se num pacto associativo para livrar-se do quadro degradante em que
63
viviam e instituir o Estado, ente moral com o dever de resguardar os ideais fixados pelo
acordo; mas ao mesmo tempo, vivem sob ameaça de outros Estados que podem subjugá-lo e
levá-lo à condição anterior de violência, fruto da total ausência de leis e sanções que regulem
suas relações no âmbito internacional. Tal configuração tende inevitavelmente à guerra.
Sendo relativo, ele, o Estado, “é forçado a se comparar sem cessar para se conhecer; ele
depende de tudo que o cerca e deve se interessar por tudo o que acontece, pois mesmo que ele
queira se manter dentro de si mesmo sem nada ganhar nem perder, torna-se pequeno ou
grande, fraco ou forte, segundo o seu vizinho se estenda ou se reduza e se reforce ou se
enfraqueça. Enfim, sua solidez68 mesma tornando suas relações mais constantes confere um
efeito mais seguro a todas as suas ações e torna todas as suas querelas perigosas”
(ROUSSEAU, 2011, p162). Diferentemente do indivíduo que pode simplesmente evitar um
combate, afastando-se, o Estado tem fronteiras estabelecidas e não pode fugir ou esquivar-se,
condenado a viver num estado de guerra69 permanente, fruto da incapacidade de conservar-se
autonomamente.
Se a vontade geral fosse universal, o fantasma da guerra seria afastado, porém como
ela varia de acordo com cada povo, os interesses podem divergir sensivelmente, pois, nesta
esfera, o soberano só legisla em causa própria, ou seja, em favor de seu próprio povo e não de
outro. Qual a saída? A formação de ligas, o estabelecimento de leis internacionais, uma
sociedade geral? Sobre formação de ligas e leis internacionais Evaldo Becker afirma que “tais
questões serão examinadas por Rousseau nos escritos sobre o Abade de Saint-Pierre, que
acabaram servindo para que o próprio Rousseau aprofundasse suas ideias relativas ao Direito
Internacional. Entretanto Rousseau não esconde seu pessimismo quanto às possibilidades
efetivas do estabelecimento destes organismos. Um dos problemas mais candentes seria o da
independência; como manter uma autonomia interna necessária e evitar que a tentativa de
estabelecimento de leis internacionais70 acabasse por se transformar em uma grande
68 Cf. “O homem mais débil tem mais força para sua própria conservação do que o Estado mais robusto tem para
sua.” (ROUSSEAU, 2011, p. 162) 69 Cf. “Chamo então guerra de potência à potência o efeito de uma disposição mútua constante e manifesta de
destruir o Estado inimigo, ou ao menos de enfraquecê-lo por todos os meios possíveis. Esta disposição reduzida
a atos é a guerra propriamente dita; enquanto ela restar sem efeito não é senão o estado de guerra.”
(ROUSSEAU, 2011, p. 165) 70 Cf. “Nunca se veem ligas federativas estabelecerem-se que não por meio de revoluções e, com base nesse
princípio, qual de nós ousaria afirmar desejável ou temível essa liga europeia? Talvez ela causasse, de pronto,
mal maior do que aquele que não preveniria por muitos séculos.” (ROUSSEAU, 1962b, p. 388) Rousseau refere-
se aqui ao Projeto para a paz perpétua onde o Abade de Saint-Pierre aponta a formação de uma liga europeia
como mecanismo para paz entre Estados. Nesta esteira, o Cidadão de Genebra propõe a constituição de ligas
64
violência” (BECKER, 2010c, p.193). O estabelecimento de uma dita sociedade geral do
gênero humano seria inviável visto que obstáculos como a diversidade de línguas e costumes
atravancariam o empreendimento. Um caminho seria a criação de Estados menores e
independentes, teoricamente mais fáceis de serem administrados, porém, dificilmente teriam
todas as necessidades do seu povo supridas de forma autônoma. Para isso, a natureza deveria
ser generosa com seu território, provendo-o de tudo o que seja necessário para o bem viver71.
Outra via seria a limitação do poder do Príncipe72, personagem afeito à guerra, pois só têm a
ganhar com ela; submetendo-o ao modelo do Contrato Social, onde são meros
administradores e executores das decisões da vontade geral. Nenhum desses caminhos, porém
assegura definitivamente a paz, colocando os Estados numa situação em que se encontram
fadados a conviver à sombra iminente da guerra. Se tal conjuntura é inevitável, resta observar
e apontar artifícios, leis que delimitem claramente o objetivo de cada embate, evitem
violência desnecessária e promovam justiça. Enfim, é preciso entender o que torna uma guerra
legítima, como veremos a seguir.
3.2.3 - Guerra Legítima, violência e justiça
Segundo Becker, “após ter visto a terra cobrir-se de novos Estados, após ter
descoberto entre eles uma relação geral que tende à sua destruição mútua, Rousseau se
pergunta pela essência do corpo social, a fim de saber por quais tipos de hostilidades eles
podem se atacar e se destruir mutuamente.” (BECKER, 2010a, p.9) Quais são as motivações
que levam os Estados a se atacarem? “E tendo em mente que o princípio da vida do corpo
político é o pacto social, uma convenção estabelecida entre os membros que dele participam,
é preciso estabelecer os critérios legítimos que regulam as relações entre estes corpos, mesmo
quando estes entram em guerra.” (BECKER, 2010a, p.9) É preciso “juridicizar” os conflitos, e
para isso, continua Becker, “é necessário investigar quem pode legitimamente declarar a
guerra e o que se pode ou não fazer no intuito de destruir o Estado inimigo. Rousseau insiste
federativas defensivas, que não será objeto de estudo por se encontrar em outros textos fora da alçada desta
monografia. 71 Para além de qualquer sentido político, o Estado, para manter-se coeso e forte, depende da felicidade dos seus
membros, e por isso trata de promover o bem estar a todos quanto for possível. 72 Cf. “Príncipes não estão realmente interessados na paz, mas em aumentar seus ganhos e sua margem de
movimento e dominação interna, contando com a instabilidade externa para favorecê-lo na busca desses
objetivos.” (MARQUES, 2010, p. 26)
65
para que seus leitores não esqueçam de jeito nenhum que ele não procura o que torna a guerra
vantajosa àquele que o faz, mas o que a torna legítima” (BECKER, 2010a, p.09).
Como a guerra é feita entre Estados, e não entre particulares, a inimizade ocorre entre
seres morais e não entre indivíduos. Ela sucede entre pessoas públicas. Acompanhemos o
raciocínio de Rousseau:
O que é uma pessoa pública? Respondo que é esse ser moral que se chama
soberano, a quem o pacto social dá existência e cujas vontades portam o
nome de leis. Apliquemos aqui as distinções precedentes; pode-se dizer dos efeitos da guerra que é o soberano que causa o dano e o estado que o recebe.
Se a guerra não tem lugar senão entre seres morais não se visa de maneira nenhuma aos homens, e pode-se fazê-la sem tirar a vida de ninguém. Mas
isso requer explicação.
Ao considerar apenas as coisas conforme o rigor do pacto social, a terra, o
dinheiro, os homens e tudo o que está compreendido nos limites do Estado,
lhe pertence sem reserva. Mas os direitos da sociedade fundados sobre aqueles da natureza não podendo aniquilá-los, todos estes objetos devem ser
considerados sob uma dupla relação; a saber, o solo como território público e
como patrimônio dos particulares, os bens como pertencendo em certo sentido ao soberano e noutro aos proprietários, os habitantes como cidadãos
e como homens. No fundo o corpo político não sendo senão uma pessoa
moral é apenas um ser de razão. Tire a convenção pública, e no mesmo instante o ser é destruído sem a menor alteração em tudo o que o compõe; e
jamais todas as convenções dos homens poderiam mudar nada na física das
coisas. O que é então, fazer guerra ao soberano; é atacar a convenção pública e tudo o que dela resulta; pois a essência do estado consiste apenas nisso. Se
o pacto social pudesse ser rompido com um só golpe o Estado seria morto,
sem que tivesse morrido um só homem (ROUSSEAU, 2011, p.166).
Desse modo, a finalidade da guerra é atacar a convenção pública rompendo o pacto
social que a fundou73. Esse ataque não confere nenhum direito a não ser o necessário a seu
fim, não entrevendo em tal ação legitimidade alguma para impor violência a seus membros74.
Essa violência - além da física - refere-se ao ato de pilhar e roubar bens particulares. Ao
73 Portanto a finalidade da guerra é política, como afirma Blaise Bachofen: “ qu’est-ce que gagner une guerre?
Em affirmant que la victoire n’est jamais de nature simplement militaire, mais toujours principalement politique,
que la guerre a pour finalité et pour enjeu le pouvoir durable sur des hommes - toutes ses autres déterminations
étant dérivées de celle-là -, Rousseau peut poser une relation logique entre l’enterprise militaire et les limites
normatives dans lesquelles celle-ci doit se maintenir.” (BACHOFEN, 2006, p. 135-136) 74 Cf. BECKER: “A guerra não conferindo nenhum direito que não aquele necessário a seu fim, que é a
destruição da convenção pública que anima o Estado inimigo, não confere legitimidade a nenhum ato de
violência, de barbárie ou de maus tratos à qualquer ser humano.” (BECKER, 2010a, p. 9)
66
vencedor, cabe somente o direito a apropriar-se do que for público75. Só é legítimo tirar a vida
de seu inimigo enquanto ele empunhar armas. Depois de rendido, a legitimidade cessa, como
podemos ver nessa passagem:
Mas é claro que este pretenso direito de matar o vencido não decorre de
maneira alguma do estado de guerra. A guerra não é uma relação entre os homens, mas entre as potências nas quais os particulares não são inimigos
senão acidentalmente e menos como cidadãos do que como soldados. O
estrangeiro que rouba, pilha e detém os súditos sem declarar a guerra ao príncipe não é um inimigo, é um bandido, e mesmo em plena guerra um
príncipe justo apodera-se no país inimigo de tudo o que pertence ao público,
mas respeita a pessoa e os bens particulares, ele respeita os direitos sobre os quais está fundado seu próprio poder. O objetivo da guerra é a destruição do
Estado inimigo; tem-se o direito de matar seus defensores enquanto eles
estiverem de armas na mão, mas tão logo eles as depõem e se rendem cessam de ser inimigos ou antes instrumentos do inimigo e não se têm mais
o direito sobre suas vidas. Pode-se matar o Estado sem matar um único de
seus membros. Ora, a guerra não dá nenhum direito que não seja necessário a seu fim (ROUSSEAU, 2011, p. 170-171).
Assim, uma guerra legítima preceitua que os meios para atingir seu objetivo leve em
conta somente o necessário para destruição do ente moral. Como a guerra se dá entre tais
seres, qualquer violência desnecessária é vista como violação e o Príncipe responsável como
bandido. Ela é legítima também somente se houver “livre consentimento das partes
beligerantes, que se um quer atacar e que o outro não quer se defender não existe de maneira
nenhuma estado de guerra, mas somente violência e agressão” (ROUSSEAU, 2011, p.167).
Portanto, para que haja guerra, é preciso antes declará-la a seu inimigo e esperar que ele
defenda-se. Prescindindo essa relação, teremos a barbárie, onde o mais forte impõe sua
vontade ao mais fraco. Desta forma, faz-se necessário criar organismos internacionais com
força suficiente para obrigar os Estados a se pautarem por tais princípios. Mas o que
geralmente acontece nas Relações Internacionais é uma falsa sensação de justiça. Rousseau
diz que “a perfeição da ordem social consiste, é verdade, no concurso da força e da lei: mas é
preciso, para isso, que a lei dirija a força sozinha, falando aos cidadãos sob o nome de lei e
aos estrangeiros sob o nome de razão de Estado, tira destes o poder e dos outros a vontade de
resistir, de sorte que o vão nome de justiça serve em toda parte apenas de salvaguarda à
violência” (ROUSSEAU, 2011, p.155). A “justiça” então, é usada para se cometer os crimes
mais bárbaros em razão de interesses particulares e “quanto ao que se chama comumente de
67
direito dos povos, é certo que, à falta de sanção, suas leis não são senão quimeras mais fracas
ainda do que a lei da natureza, esta fala pelo menos ao coração dos particulares, ao passo que
o direito dos povos, não tendo outra garantia senão a utilidade daquele que a ele se submete,
suas decisões só são respeitadas enquanto o interesse as confirma” (ROUSSEAU, 2011,
p.155).
A história da humanidade nos apresenta todos os cenários de destruição, torturas,
pilhagens e violências contínuas. Mas a história não pode legitimar tais fatos, não se trata de
verificar apenas se estes sempre ocorreram; deve-se perguntar se estes são inevitáveis, e mais,
se são justos. A intenção de Rousseau neste escrito é investigar as relações estabelecidas entre
os povos, do ponto de vista da legitimidade, do direito e da justiça. É o que fica evidenciado
em passagens como esta: “Rogo aos leitores não esquecerem de jeito nenhum que eu não
procuro o que torna a guerra vantajosa àquele que a faz, mas o que a torna legítima. E quase
sempre há um preço em ser justo. Estaremos, por isso, dispensados de sê-lo?” (ROUSSEAU,
2011, p. 165).
O autor lembra que a maior parte das guerras se dá em função de os governantes se
acharem acima das leis, pois em Estados bem organizados, estes deveriam contar com a
anuência do povo, antes de deflagrarem guerras, afinal, é o povo quem em última instância,
pagará pelos prejuízos. Mas as violências cometidas em nome “da razão de Estado” se valem
da completa ineficácia daquilo que no século XVIII se chamou de direito das gentes e que
hoje chamamos de direito internacional. Este, no entender do autor, não passa de quimera,
pois não possui qualquer sanção, só sendo respeitado quando há interesse. Rousseau
lembrava que a terra, o dinheiro e os demais despojos, dentre os quais incluiríamos hoje, o
petróleo e os diamantes; tornam-se os principais objetivos das hostilidades recíprocas. É essa
“baixa avidez” que faz com que as chamadas “guerras”, degenerem em pilhagem e que em
lugar de “inimigos e guerreiros tornamo-nos pouco a pouco Tiranos e ladrões” (ROUSSEAU,
2011, p. 165).
Assim, de homem a homem, vivemos num estado civil submetido às leis; de povo a
povo, cada um goza da liberdade natural. Rousseau dirá que tal situação em que se encontra o
gênero humano é a pior de todas, pois ao viver ao mesmo tempo na ordem social e no estado
de natureza, estamos sujeito aos inconvenientes de um e de outro, sem encontrar segurança
em nenhum dos dois (ROUSSEAU, 2011, p.155-155). É em função disso que Rousseau
68
voltará suas atenções para os projetos de paz, seja o Projeto para tornar perpétua a paz na
Europa, do Abade de Saint-Pierre, seja o conceito de sociedade geral do gênero humano, de
Diderot, que veremos em seguida.
3.3 – PROJETOS DE PAZ
No verbete Direito Natural da Enciclopédia, Diderot constrói uma teoria do “Gênero
Humano” a partir do princípio de uma Vontade Geral como atributo essencial presente em
cada indivíduo que carrega em si uma única paixão: o bem de todos. Essa Vontade Geral
inata, que, conforme ele “é sempre boa, nunca se engana e nunca se enganará” aponta para
uma sociabilidade natural, algo que Rousseau chamará mais à frente de traité social, base
para a construção de uma sociedade geral do gênero humano que será rechaçada por ele
ponto a ponto no capítulo II do Manuscrito de Genebra. Assim, mostraremos, a partir da
crítica a Diderot, como Rousseau problematiza e nega a questão da formação de tal Sociedade
Geral utilizando como argumento a noção, para ele errônea de sociabilidade natural e
explicitação do conceito de Vontade Geral como racional, não inato, e, quando encarado do
ponto de vista das relações entre os Estados-Nação, particular.
3.3.1 – Da sociedade geral do gênero humano
O pretenso traité social, apontado por Rousseau, refere-se a tese naturalista, defendida
por Diderot, de que é a natureza que associa os homens, que os leva à constituir o Estado e
viverem juntos. Para ser mais exato, é a natureza humana sociável que determina tal condição.
A natureza, entendida como uma força exterior, submete o homem a uma existência pobre,
duvidosa, inquieta, bem nos moldes hobbesianos.
Segundo Souza, sob essa perspectiva “a vida em sociedade é entendida como um
instrumento natural que permite aos homens enfrentar com maior facilidade a luta pela
sobrevivência e pelo bem estar” (SOUZA, 2002, p. 126). Essa visão, que confere primazia à
69
utilidade, é exposta mais claramente por Diderot no verbete Direito Natural, da Enciclopédia,
onde, em linhas gerais, como aponta Hubert, ele desenvolve a ideia de que:
a sociabilidade é uma tendência natural - é uma lei da razão, na medida em
que ela aspira ao bem comum da espécie inteira; seu princípio deve ser
buscado na identidade de natureza de todos os homens; ela é declarada por todos e se exprime nas instituições de todas as sociedades, nas práticas dos
homens entre eles, sejam os mais selvagens, e em certos sentimentos que
eles experimentam e manifestam espontaneamente (HUBERT, 1928, p. 35-6
apud BECKER, 2008, p.117).
O homem no estado de natureza, solitário e atormentado, é caracterizado como aquele
cujas paixões o levam a fazer aos outros o que ele não gostaria que lhe fizessem.
Raciocinando sobre isso, impulsionado pela lei da razão que o leva a ser justo, ele, então, é
obrigado a conceder ao próximo a mesma autoridade. Fazendo isso, acha-se dono da vida dos
outros porque ofereceu a sua em troca. E o outro, por sua vez, age da mesma maneira, criando
um estado de total insegurança. A saída, diz Diderot, é negar ao indivíduo o direito de
determinar o que é justo ou injusto, porque a vontade particular é sempre má. Essa questão só
pode ser decidida exclusivamente e com segurança pelo gênero humano - cuja única paixão é
o bem de todos - através da vontade geral que é sempre boa. (MONTEAGUDO, 2006, p. 79-
80). A vontade geral, para Diderot é um ato puro do entendimento que raciocina no silêncio
das paixões sobre aquilo que seu semelhante tem direito de exigir, servindo como regra de
conduta, dos particulares de uma mesma sociedade, de um particular em relação à sociedade
da qual é membro e da sociedade em relação a outras sociedades, e a submissão a ela é o laço
que une todas as sociedades e indivíduos que a consulta (DIDEROT, 2006, p. 81) “para saber
até que ponto deve ser homem, cidadão, súdito, pai, filho” (DIDEROT, 2006, p.81) isto é,
para reconhecer seu papel social. Portanto, cabe à vontade geral fixar os limites de todos os
deveres, servindo de guia seguro tanto para particulares quanto para as sociedades
constituídas. Logo, a ideia de um homem naturalmente sociável, naturalmente racional,
submisso a uma vontade geral igualmente inata e tendo como única paixão o bem de todos
fortalece a tese de uma sociedade geral do gênero humano.
Para Rousseau, entretanto, a expressão gênero humano oferece ao espírito apenas uma
ideia abstrata e coletiva que não supõe nenhuma união real entre os indivíduos que a
70
constituem (ROUSSEAU, 1962, p. 172), além do mais, transportado para o plano empírico,
emergiria daí um ser moral que, necessariamente teria de ter qualidades próprias que o
diferenciassem das partes que o formam. Mais ainda, mesmo que o concebamos, continua ele,
com todos esses atributos, “juntamente com um móvel universal que leve cada parte a agir
visando a um fim geral e interessante ao todo” (ROUSSEAU, 1964, p. 173) verificaremos que
o progresso da humanidade acaba por abafar esse sentimento natural ao despertar o interesse
pessoal, contrário ao bem comum. Assim, para Rousseau, quando encarado sob um ponto de
vista mais realista, as dificuldades surgidas tornam o projeto de Diderot difícil de ser
praticado, funcionando somente nos sistemas de filosofia, como ele aponta nesta passagem do
capítulo II do manuscrito de Genebra:
Caso a sociedade geral existisse fora dos sistemas de filosofia, representaria,
como já afirmei, um ser moral possuidor de qualidades próprias e distintas
daquelas dos seres particulares que a constituem, mais ou menos como os compostos químicos, que possuem propriedades que não tomam dos mistos
que os compõem. Haveria uma língua universal que a natureza ensinaria a
todos os homens, o que seria o primeiro instrumento de sua mútua
comunicação. Haveria um tipo de sensório comum que serviria à correspondência de todas as partes. (ROUSSEAU, 1962, p.173)
Rousseau vê, na ausência total de qualquer evidência verificável na prática, a
dificuldade que a noção de sociabilidade natural nos apresenta (BECKER, 2008, p. 118). E
mais problemático ainda é, a partir disso, afirmar a existência de uma sociedade geral e
natural do gênero humano. Para ele, declarar tal fato pressupõe mais do que a constatação de
que fazemos parte de uma mesma espécie e que todos dessa espécie caminham na mesma
direção por possuírem os mesmos interesses. Pressupõe laços mais fortes como uma língua
universal, uma religião universal e etc. A percepção da diversidade de costumes dificulta, para
Rousseau, a ideia de uma sociedade geral do gênero humano. O fato de nos submetermos a
uma vontade geral inata também não resolve a questão, pois a vontade geral emerge dos
anseios e costumes dos vários grupos humanos distintos que se associam ao longo do planeta.
Nesta perspectiva, é oportuno destacar a diferença entre os conceitos de vontade geral
de Rousseau e Diderot. Enquanto para este a vontade geral é um “ato puro do entendimento
que raciocina no silêncio das paixões”, para aquele, a vontade geral é algo que se manifesta,
não no silêncio das paixões, mas no consenso coletivo obtido pela participação permanente do
71
conjunto dos cidadãos nos assuntos da comunidade. A vontade geral, para ser geral, terá que
sê-la “tanto no objeto como na essência”, ou seja, partir de todos para aplicar-se igualmente a
todos (ROUSSEAU, 1973b, p. 55).
Nesse sentido, a noção de vontade geral de Diderot requer do homem segundo
Rousseau “um dos exercícios mais difíceis e tardios do entendimento humano” (ROUSSEAU,
1966, p. 175), a arte de generalizar ideias. E tal artifício requer um instrumento indispensável
a seu uso, o raciocínio. Ora, para Rousseau, não há razão inata, isso fica claro numa passagem
do livro II do Emílio onde ele sentencia: “De todas as faculdades do homem, a razão, que não
é, por assim dizer, senão um composto de todas as outras, é a que se desenvolve com mais
dificuldade e mais tardiamente.” (ROUSSEAU, 2004, p. 89-90) Portando, para o genebrino, é
improvável supor, nos primórdios da formação social, uma capacidade de raciocínio abstrato
que, mesmo em sociedades ditas civilizadas, somente poucos cidadãos alcançam e via
esforços incalculáveis (BECKER, 2008, p.119). No estado de natureza, não há vontade geral
nem razão, e mesmo que aceitássemos tal fato, eis que surgiriam mais dificuldades, como
Rousseau argumenta nesta passagem:
Ninguém discordará quanto a ser a vontade geral, em cada indivíduo, um ato puro do entendimento que raciocina, no silêncio das paixões, sobre aquilo
que o homem pode exigir de seus semelhantes e sobre o que este tem o
direito de exigir dele. Mas onde está o homem que possa assim separar-se de
si mesmo? E, se se preocupar com a própria conservação, pode-se força-lo a assim considerar a espécie em geral a fim de impor a si mesmo deveres com
sua constituição particular cuja ligação em absoluto não percebe? Não
subsistiriam sempre as objeções precedentes? E não teríamos, ainda, de ver de que modo seu interesse pessoal exige se submeta à vontade geral?
(ROUSSEAU, 1966, p. 173)
Onde está o homem capaz de realizar tal façanha, de, no estado de isolamento, se
deslocar para fora de si, pondo de lado todas as aspirações pessoais que não se coadunam com
o interesse geral e ouvir somente a voz interior para dela extrair as regras de sua conduta?,
indaga Rousseau. Como pode ter certeza de que, voltando para si, estará obedecendo às leis
ou seguindo suas próprias inclinações? A resposta a essa pergunta, segundo Diderot, pode ser
encontrada, ironicamente, “nos princípios do direito positivo de todas as nações civilizadas,
nas ações sociais dos povos selvagens e bárbaros, nas convenções tácitas dos inimigos do
gênero humano entre si e mesmo na indignação e no ressentimento” (DIDEROT, 2006, p.81).
72
Resposta sutil, mas que levanta outra dificuldade: como estabelecer uma sociedade geral do
gênero humano de forma natural se, como percebe Rousseau, “essa voz não se constitui senão
pelo hábito de julgar e sentir no seio da sociedade e em concordância com as suas leis?”
(ROUSSEAU, 1966, p. 175) e consultar os princípios do direito escrito, as ações sociais de
todos os povos e as convenções tácitas dos próprios inimigos do gênero humano só faz
reafirmar a seguinte tese: é somente da ordem social estabelecida entre nós que extraímos as
ideias daquela que imaginamos. Ou seja, concebemos a sociedade geral segundo nossas
sociedades particulares. “O estabelecimento de pequenas repúblicas nos faz sonhar com a
grande” no entanto, “só começamos a nos tornar homens após termos sido cidadãos” diz ele.
(ROUSSEAU, 1966, p. 175) Tornando clara, segundo Becker, a intenção de Rousseau, ao
escrever o Cap. II do Manuscrito de Genebra, de expressar a necessidade do contrato em
contraposição à ideia de uma sociabilidade natural e de um direito anterior à convenção
(BECKER, 2008, p. 120) além de combater a naturalização da vontade geral, vista
erroneamente como um ato puro do entedimento. Ora, “como o entendimento só se
desenvolve em sociedade, ele nunca é puro. Por isso, é absurdo dar prioridade a leis do mundo
sobre as leis de um país”, afirma Ricardo Monteagudo. (MONTEAGUDO, 2006, p. 96) O que
nos remete, novamente, à necessidade de um Contrato como instrumento fundador da
sociedade civil.
Para concluir, voltando ao Cap. II do Manuscrito de Genebra, na ausência de uma
sociedade geral, Rousseau sugere que criemos novas associações. Que, a partir das lições
aprendidas a duras penas, com o auxílio do que ele chama de “arte aperfeiçoada”, possamos
formar sociedades bem constituídas, a fim de reparar os males que a arte começada causou à
natureza. Nas palavras dele: “Par de nouvelles associations, corrigeons, s’il se peut, le défaut
de l’association générale. (OC. III, p. 288)
4 CONSIDERAÇÕS FINAIS
O objetivo do presente trabalho foi compreender o tema da guerra, dentro do projeto
das Instituições Políticas, a partir da trajetória percorrida por Rousseau desde as descrições de
um estado de natureza pacífico, passando pela emergência dos Estados e a consequente
deflagração do estado de guerra verificado nas relações internacionais. Para tanto precisamos
examinar sobretudo as obras: Discurso sobre a desigualdade, Contrato Social, Capítulo II do
Manuscrito de Genebra e Princípios do Direito da Guerra. Esta última integraria o projeto
que selaria a carreira de Rousseau: as Instituições Políticas, onde o autor trataria temas como
o direito das gentes, comércio, direito da guerra e conquistas etc., mas, conforme relato
apresentado nas Confissões, “embora já havia cinco ou seis anos eu trabalhasse nessa obra, ela
não estava ainda adiantada” (ROUSSEAU, 1959, p. 203), o que o levou a abandoná-la em
1759, três anos antes da publicação do Contrato. Segundo Becker o Princípios do direito da
guerra “faria parte da segunda seção, aquela relativa ao Direito das gentes e do Direito
público. Neste escrito, Rousseau contrapõe-se prioritariamente às teorias do inglês Thomas
Hobbes e do holandês Hugo Grotius.” (BECKER, 2010c, p. 02) A obra é composta por dois
textos que haviam sido publicados separadamente: Que o Estado de Guerra Nasce do Estado
Social, e Guerra e Estado de Guerra76, parte constituinte do volume III das Obras Completas
de Rousseau. Traduzido recentemente para o português77, surge como uma importante
contribuição para o enriquecimento das discussões acerca do Direito das Gentes na
modernidade. Importante frisar que tal discussão já aparecia em outros textos do autor como
os Escritos sobre o Abade de Saint-Pierre; livro V do Emílio; Os Despachos de Veneza;
Projeto de constituição para a Córsega e As considerações sobre o governo da Polônia,
Paralelo entre Sócrates e Catão, além de algumas passagens esparsas no Discurso sobre a
economia política e nas Cartas escritas da montanha, entre outras, porém, pelo tamanho do
empreendimento, que envolveria tais obras, não houve tempo hábil para analisá-las nesta
dissertação, guardamos esses textos para trabalhos futuros, atendo-nos somente àqueles que
fariam parte do projeto das Instituições Políticas.
76 Texto descoberto por Bernard Gagnebin em 1967. 77 Tradução de Evaldo Becker com revisão de Ricardo Monteagudo. Publicado na revista Trans/Form/Ação,
volume 34, n.1, ano 2011.
74
Segundo Derathé “toda obra de Rousseau está centrada no conhecimento do homem”.
(DERATHÉ, 1984, p.1) Tomamos esta frase como fio condutor para unir as pontas e não
divagar além do necessário num tema tão vasto como a questão da natureza, da guerra e da
civilização. No primeiro capítulo, tentamos conhecer esse homem, mostrar sua jornada rumo
à civilização e o processo degenerativo que o levou de uma condição de vida simples a uma
realidade violenta e cruel, forçando-o a um pacto enganador, que trouxe mais problemas do
que soluções. A diferenciação entre homem natural, homem selvagem e homem civil, assim
como as questões acerca de um estado de natureza pacífico, mesmo com a insociabilidade
natural latente, nos deram subsídios para entender como Rousseau elabora sua teoria de uma
sociedade legítima.
No segundo capítulo, essa sociedade legítima foi examinada, a partir do Contrato
Social, pelos conceitos de liberdade, soberania e vontade geral. Vimos que essa vontade geral,
por ser particular em relação aos Estados, torna-se problemática quando encarada do ponto de
vista das relações internacionais, dificultando a criação de uma legislação que se aplique a
todo o globo e à fundação de um organismo supranacional que garanta o cumprimento dessas
leis; que a tentativa de compor uma legislação internacional acarreta em risco de molestar a
soberania dos Estados; e que, na falta de um arcabouço jurídico, no que diz respeito à
liberdade, vivemos numa condição mista: dentro do Estado, sob a proteção da liberdade civil;
fora dele, sob o perigo da liberdade natural. A conclusão é que, dentro das discussões sobre a
efetividade do Direito das Gentes, a guerra torna-se uma realidade insuperável, restando-nos
somente aprender a conviver com ela, juridicizando-a para que torne-se menos cruel e
violenta.
Pela complexidade do tema, essa pesquisa foi limitada apenas à análise dos textos que
comporiam as Instituições Políticas. Das informações que nos restaram acerca do que seria
objeto de estudo do autor se o projeto fosse levado a cabo, contamos apenas com algumas
informações contidas no final Contrato Social e no livro V do Emílio, como na passagem a
seguir:
Depois de ter assim considerado cada espécie de sociedade civil em si mesma, compará-las-emos para observar suas diversas relações: umas
grandes, outras pequenas, umas fortes, outras fracas, atacando-se,
ofendendo-se, destruindo-se umas às outras, e, nessa ação e reação contínua,
75
fazendo mais miseráveis e custando a vida a mais homens do que se eles
tivessem conservado sua primeira liberdade. Examinaremos se não se fez
demais ou pouco demais na instituição social; se os indivíduos submetidos às leis e aos homens, enquanto as sociedades conservam entre si a
independência da natureza, não ficam expostos aos males dos dois Estados,
sem ter as vantagens, e se não seria melhor que não houvesse sociedade civil no mundo do que haver várias delas. Não é esse Estado misto que participa
de ambos e não garante nem um nem outro (...) Não é essa associação parcial
e imperfeita que produz a tirania e a guerra? E a tirania e a guerra não são os maiores flagelos da humanidade? (ROUSSEAU, 2004, p. 689-690)
O grande desafio que Rousseau tinha em vista era o de tentar superar esse impasse.
Como livrar-se dessa indesejável condição mista? Ainda no Emílio ele vislumbra uma saída:
“Examinaremos, enfim, a espécie de remédios que se inventaram para esses inconvenientes,
através das ligas e confederações que, deixando cada Estado ser senhor de si mesmo
interiormente, defendem-no exteriormente contra todo agressor injusto.” (ROUSSEAU, 2004,
p. 690) e finaliza indagando quais os critérios para se estabelecer uma boa associação
federativa, que seja duradoura e não fira a soberania. Nos Escritos sobre Saint-Pierre ele
adianta que essas ligas federativas defensivas regionais devem estabelecer-se de forma que
una “os povos por laços semelhantes aos que unem os indivíduos, submeta igualmente, uns e
outros, à autoridade das leis.” (ROUSSEAU, 1962b, p. 356) Reiterando que esse tipo de
governo “parece preferível a qualquer outro, porque compreende ao mesmo tempo as
vantagens dos grandes e dos pequenos Estados, porque fora dele é temido por seu poderio,
porque nele as leis estão em vigor, e porque é o único a conter igualmente os súditos, os
chefes e os estrangeiros.” (ROUSSEAU, 1962b, p. 356). Nas Considerações sobre o Governo
da Polônia Rousseau volta a enfatizar a questão das federações como sendo a única maneira
de reunir as vantagens dos grandes e dos pequenos Estados. Mas mesmo assim não se
convence de que esse tipo de organização seja ideal para garantir definitivamente a segurança
de seus membros. Ele alerta sobre isso ao final do Juízo sobre a paz perpétua: “Nunca se
veem ligas federativas estabelecerem-se que não por meio de revoluções e, com base nesse
princípio, qual de nós ousaria afirmar desejável ou temível essa liga (...)? Talvez ela causasse,
de pronto, mal maior do que aquele que não preveniria por muitos séculos.” (ROUSSEAU,
1962b, p. 388) No fim, o realismo volta à tona, acentuando ainda mais o pessimismo do
Genebrino.
As questões acerca de um Estado bem constituído, melhor preparado para relacionar-
se com seus pares externamente passa também pela formação do homem que viverá dentro do
76
Estado. Portanto, além de político, a resposta, ou pelo menos um ponto de partida para essas
questões, passa pela pedagogia. O Contrato Social nos dá subsídios para a construção de uma
sociedade legítima, sua proposta é formar cidadãos para viver em sua pátria, em conformidade
com suas leis, seus costumes, não o prepara para o cosmopolitismo. Na verdade, Rousseau
nem acredita nele, e, num fragmento intitulado, Parallèle de Socrate et Caton78, toma partido
de Catão, preferindo seu patriotismo a Sócrates, que se denominava “cidadão do mundo”. A
questão do patriotismo visto da perspectiva das relações externas também estava no horizonte
do autor. No final do livro V do Emílio, depois de investigar qual forma de governo cabe
melhor a cada tipo de sociedade, ele enfatiza a importância do vínculo do cidadão com seu
país: “É seguindo o fio dessas pesquisas que chegaremos a saber quais são os deveres e os
direitos dos cidadãos e se podemos separá-los uns dos outros; o que é a pátria, em que ele
consiste precisamente e como cada um pode saber se tem ou não pátria.” (ROUSSEAU, 2004,
p.689) Talvez mais à frente, em trabalhos futuros, valha a pena tentar captar essa ampliação
do significado de pátria que Rousseau tentaria operar ao passar das relações internas de um
corpo político particular a relações gerais entre pátrias, isto é, entre Estados-nação
particulares79.
Natureza e civilização são vistos pela tradição de comentadores de Rousseau como
duas estruturas excludentes, ou inimigas. De maneira que, para uma prosperar a outra
necessariamente deve ser superada. Olhando pelo viés econômico, progressista, tal assertiva
encontra respaldo, mas devemos lembrar que Rousseau tinha como ponto de partida para
desenvolver seus argumentos o homem80. Nele podemos encontrar os dois mundos
entrelaçados em sua constituição natural. Enquanto homem primitivo, seus atributos mais
desenvolvidos eram aqueles ligados ao instinto: amor de si e piedade. À vida natural só
bastava a ação desses dois atributos, porém, a natureza incutiu mais duas faculdades, que para
o homem primitivo eram supérfluas: a liberdade e a perfectibilidade. Estas permaneceriam em
estado de hibernação até serem ativadas no estado social, passando da potência ao ato. Assim,
elas seriam instrumentos de adaptação ao meio social e se a natureza as colocou em reserva é
porque o homem, se não é sociável por natureza, ao menos foi feito para tornar-se sociável.
Dessa forma, a natureza humana só pode manifestar todas as suas potencialidades na vida
social, que, segundo consta no Contrato Social, fez de um ser estúpido e limitado, um ser
78 Cf: OC. III, p. 1896. 79 Agradeço ao Professor Dr. Thomaz Kawauche por chamar atenção acerca desse tema. 80 Diz Rousseau logo no início do Emílio: “Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana.” (ROUSSEAU,
2004, p. 15)
77
inteligente e um homem. Portanto, não é definitiva e nem absoluta a ideia de que a sociedade
se opõe à natureza. A oposição, num certo sentido é acidental e não está excluído que a
influência da sociedade se exerça no sentido da natureza, permitindo à natureza humana se
desenvolver e atualizar suas virtualidades, pois, como aponta Derathé, citando Pierre
Burgelin, “a natureza atual do homem é infinitamente mais do que o homem natural.”
(DERATHÉ, 1984, p. 6-7)
Assim, como o estado de natureza não consegue conter o homem, ele é levado
inexoravelmente à vida social. Rousseau não opta decisivamente por nenhuma das duas
condições, e o termo “Bom Selvagem” atribuído a ele, sem nunca tê-lo mencionado, só faz
estereotipar seu pensamento, o transformando num saudosista, num ferrenho defensor do
retorno à vida selvagem. Ele próprio desmente tal ideia ao afirmar que o selvagem do
Segundo Discurso não é senão “um animal limitado às puras sensações”, um homem
incompleto que só ganha estatuto de Homem quando ingressa na vida em sociedade. Mas a
que preço? A grande crítica de Rousseau à sociedade não é a ela em si, ou seja, não é a ideia
de vida social que o repugna, mas as consequências que ela trouxe ao subverter os atributos
essenciais que davam brilho à condição humana. Aos abusos de suas faculdades. Por isso a
saída encontrada foi a de, por meio de um pacto de associação, edificar uma sociedade civil
que tenha como ponto de partida respeitar as características naturais do homem, obscurecida
pela névoa da desigualdade que o transformou em escravo, ladrão e burguês81; e transportá-lo
para uma nova realidade onde uma sociedade legítima é moldada para comportá-lo, e onde ele
é autor de sua própria existência.
O Estado surge, e com ele a guerra propriamente dita. Segundo Bachofen, a
originalidade da tese de Rousseau não está em demonstrar que o estado de guerra só surge
com a entrada na vida civil, mas a partir da instituição do Estado como uma forma específica
de organização social82. Desta forma a guerra tem origem antropológica ou sociológica?
Rousseau não conseguiu dar conta dessa nova realidade talvez porque desde sempre sua
intenção e interesse era trabalhar o homem e as relações entre eles, o que já se constitui um
81 Cf. “Burguês é o homem civil do Segundo Discurso, o homem que vive pela opinião dos outros, e se dedica
tanto a ‘parecer’ que chega a perder, por assim dizer, o sentimento de sua própria existência.” (DERATHÉ,
1984, p. 04) Jean Starobinski em Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo faz uma análise
aprofundada do desse tema. 82 Cf: “La thèse originale de Rousseau n’est donc pas de lier l’apparition de la guerre à l’apparition de la vie
sociale; ce qui est véritablement nouveau est de dire que c'est l'institution de l'État comme mode spécifique
d'organisation sociale qui explique l'avenèment de la guerre dans l'histoire humaine.” (BACHOFEN, 2006, p.
141)
78
esforço hercúleo. Já os Estados são entes morais, seres sem características definidas que se
medem e se conhecem por comparação. Como conhecer a fundo tais entidades? Como aplicar
leis e assegurar que obedeçam? Como justificar algo tão terrível como a guerra? As respostas
ainda estão em aberto até os dias de hoje. Rousseau pode nos ajudar a pensar acerca desses
problemas.
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