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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
DISCIPLINA E SOCIABILIDADE:
FUNDAMENTOS DE UMA PEDAGOGIA MORAL DA INFÂNCIA EM KANT
CÁSSIA VIRGINIA MOREIRA DE ALCÂNTARA
SÃO CRISTÓVÃO (SE)
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
DISCIPLINA E SOCIABILIDADE:
FUNDAMENTOS DE UMA PEDAGOGIA MORAL DA INFÂNCIA EM KANT
CÁSSIA VIRGINIA MOREIRA DE ALCÂNTARA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação. Orientador: Prof. Dr. Edmilson Menezes Santos
SÃO CRISTÓVÃO (SE)
2017
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
A347d
Alcântara, Cássia Virginia Moreira de Disciplina e sociabilidade : fundamentos de uma pedagogia
moral da infância em Kant / Cássia Virginia Moreira de Alcântara ; orientador Edmilson Menezes Santos. – São Cristóvão, 2017.
158 f.
Tese (doutorado em Educação) – Universidade Federal de Sergipe, 2017.
1. Educação – Filosofia. 2. Cosmopolitsmo. 3. Crianças - Formação. 4. Disciplina da criança. 5. Educação – Estudo e ensino. 6. Kant, Immanuel, 1724-1804. I. Santos, Edmilson Menezes, orient. II. Título.
CDU 37.013.2
Aos meus filhos, Isla Alcântara Gomes e Ian Alcântara Gomes, que suscitaram em mim o desejo de pesquisar a Infância
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, esta força que me habita e me faz pulsar na direção
do conhecimento, da sensibilidade, de me tornar um ser humano melhor e mais digno.
Agradeço à Profa. Emérita da Universidade Federal de Sergipe, Dra. Wilma Porto de
Prior, minha orientadora quando realizei o mestrado e eterna mestra. Sem ela não teria levado
adiante este projeto de estudos de doutorado. Sem o seu apoio o percurso teria sido árduo, por
demais. Porém, o cuidado presente em todos os momentos, deu-me a condição de fazer essa
travessia com tranquilidade.
Agradeço ao meu orientador o Prof. Dr. Edmilson Menezes Santos, pela competência,
pela tranquilidade, pela confiança e autonomia que me foram dadas para escrever esta tese. Sua
orientação me ensinou que o verdadeiro mestre acredita no discípulo.
Agradeço ao meu esposo, José Ivan Gomes, companheiro em todos os momentos,
grande incentivador e cúmplice que me apoia ao longo de trinta anos de convivência nessa
jornada durante a qual jamais deixei de estudar.
Aos meus filhos Isla Alcântara Gomes e Ian Alcântara Gomes pelas contribuições com
as leituras e traduções de inglês e pela paciência e compreensão em todos os momentos que me
fiz ausente como mãe para cumprir as tarefas do doutorado.
Aos meus pais Clarice Moreira de Alcântara (In Memoriam) e José Antonio de
Alcântara por terem fomentado em mim o desejo de estudar.
À família Alcântara pela admiração e respeito.
À família Moreira pelo constante incentivo, especialmente aos meus irmãos, Josival
Moreira de Souza e Gleide Selma Moreira de Alcântara pelo brilho de admiração que sempre
trazem nos olhos ao se dirigir a mim.
Agradeço à Célia Alina Moreira Soares (In Memoriam) que se foi quando eu estava na
metade deste trajeto, mas deixou comigo a força e a garra que sempre a caracterizaram como
mulher. Esta herança é o meu maior tesouro.
À Família Gomes pelo carinho e apoio e, especialmente, aos meus sogros Maria Alves
e José Alves que admiram tanto essa minha busca incessante de saber e me incentivam
constantemente.
A todos os professores e professoras e demais membros da equipe do PPGED, em
especial, à queridíssima profa Dra. Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas, que esteve comigo
em todos os momentos nos quais este projeto foi gestado. Serei sempre sua admiradora porque
seu nome é sinônimo de compromisso, responsabilidade, cuidado e respeito ao ser humano.
Ao professor Dr. Everaldo Vanderlei de Oliveira pela leitura cuidadosa de meu texto de
qualificação e pelas preciosas contribuições que deram um rumo diferenciado ao texto final.
Aos colegas da Associação Psicanalítica de Aracaju, instituição a qual pertenço e de
onde me encontro afastada em razão do doutorado, pelo apoio, respeito e reconhecimento.
Especialmente ao Prof Dr. Antonio Cardoso pelas palavras de aconselhamento que me levaram
à busca do doutorado. Como ele diz: as palavras têm força!
Aos colegas do curso de formação em Arteterapia que tornaram essa jornada mais leve
e me sustentaram nos momentos mais difíceis me ensinando a equilibrar princípio do prazer e
princípio da realidade.
Aos colegas da Faculdade Amadeus, da Faculdade Pio Décimo e da Maple Bear que
constantemente me dirigiram palavras de incentivo e reconhecimento em relação aos meus
anseios de crescimento intelectual.
À colega Eugenia Andrade, companheira de mestrado, que um dia me disse: “Eu só
sossegarei quando você for doutora”. Aqui estou Eugênia, cumprindo sua profecia.
À Melina Amado, doce melina, que me ajudou a enfrentar os entraves com o alemão,
corrigindo e aprimorando este texto.
À minha secretária Angélica Sulino que, em todos os momentos, cuidou de mim, dos
meus filhos e de minha casa tornando possível minha dedicação às horas de estudo.
E, finalmente, mas nem por isso menos importante, aos meus colegas de turma com os
quais compartilhei momentos importantes e significativos de aprendizagem quando tudo teve
início, em 2013.
O homem, com efeito, afectado por tantas inclinações, é na verdade capaz de conceber a ideia
de uma razão pura prática, mas não é tão facilmente dotado da força necessária para a tornar
eficaz in concreto no seu comportamento.
Immanuel Kant, 2007, p. 16
RESUMO
A presente tese intitulada “Disciplina e Sociabilidade: Fundamentos de uma Pedagogia Moral da Infância em Kant” tem como objeto de estudo a Filosofia Crítica e, em especial, o opúsculo Sobre a Pedagogia (Über Pädagogik) compilado por Friedrich Theodoro Rink, discípulo de Immanuel Kant, a partir das notas tomadas nas lições de pedagogia ministradas pelo filósofo nos cursos de 1776/77, 1783/84 e 1786/87, na Universidade de Königsberg. Nas preleções de Kant encontra-se o panorama mais completo daquilo que o filósofo pensava acerca da pedagogia e, neste texto, estão contidas várias citações sobre a infância. O objetivo da pesquisa foi desenvolver um estudo aprofundado do opúsculo, realizando seu cotejamento com diversas obras do sistema crítico, com a finalidade de identificar os fundamentos que constituem uma Pedagogia Moral da Infância em Kant. Partiu-se da seguinte tese: Há uma pedagogia da infância em Kant e os fundamentos para a moralidade se assentam em dois pilares: disciplina e sociabilidade. Três questões norteadoras foram elaboradas e respondidas durante o percurso: Como disciplina, sociabilidade e autonomia estão relacionadas entre si e no conjunto da filosofia crítica? Como se tornam pilares em torno dos quais se desenvolve a moralidade, desde a infância? Como um projeto de educação cosmopolita pode vir a contribuir para essa formação moral? Os resultados apontam para a confirmação da tese e indicam que a pedagogia kantiana se encontra respaldada na filosofia crítica caracterizando-se como uma pedagogia transcendental e contemplando o caráter de uma Filosofia da História kantiana. PALAVRAS-CHAVE: Autonomia. Cosmopolitismo. Disciplina. Kant. Sociabilidade.
ABSTRACT
This thesis entitled "Discipline and Sociability: Foundations of Moral Education of Children in Kant" has as its object of study the Critical Philosophy and, in particular, the booklet Kant on Education (Über Pädagogik) compiled by Friedrich Theodor Rink, a disciple of Immanuel Kant, from notes taken in lessons of pedagogy taught by the philosopher in the courses of 1776/77, 1783/84 and 1786/87, at the University of Königsberg. In Kant's lectures we find the most complete picture of what the philosopher thought about pedagogy, and in this text are contained a number of quotations about childhood. The objective of the research was to develop a detailed study of the booklet, performing its comparison with several works of the critical system, in order to identify the foundations that constitute a Moral Pedagogy of Childhood in Kant. It started from the following thesis: There is a childhood pedagogy in Kant and the foundations for morality are based on two pillars: discipline and sociability. Three guiding questions were elaborated and answered during the course: How are disciplines, sociability and autonomy related to each other and to the whole of critical philosophy? How do they become pillars around which morality develops, from childhood? How can a project of cosmopolitan education contribute to this moral formation? The results point to the confirmation of the thesis and indicate that the Kantian pedagogy is backed up in the critical philosophy characterizing itself as a transcendental pedagogy and contemplating the character of a Kantian Philosophy of History.
KEY WORDS: Autonomy. Cosmopolitanism. Discipline. Kant. Sociability.
RESUMEN
La presente tesis intitulada “Disciplina y Sociabilidad: Fundamentos de una Pedagogía Moral de la Infancia en Kant” tiene como objeto de estudio la Filosofía Crítica y, en especial, el opúsculo Pedagogía (Über Pädagogik) compilado por Friedrich Theodoro Rink, discípulo de Immanuel Kant, a partir de las notas tomadas en las lecciones de pedagogía ministradas por el filósofo en los cursos de 1776/77, 1783/84 y 1786/87, en la Universidad de Königsberg. En las prelecciones de Kant se encuentra el panorama más completo de aquello que el filósofo pensaba acerca de la Pedagogía y, en este texto, están contenidas varias citaciones sobre la infancia. El objetivo de la investigación fue desarrollar un estudio profundizado del opúsculo, realizando su cotejamiento con diversas obras del sistema crítico, con la finalidad de identificar los fundamentos que constituyen una Pedagogía Moral de la Infancia en Kant. Se partió de la siguiente tesis: Hay una pedagogía de la infancia en Kant y los fundamentos para la moralidad se asientan en dos pilares: disciplina y sociabilidad. Tres cuestiones orientadoras fueron elaboradas y respondidas durante el recorrido: ¿Cómo están disciplina, sociabilidad y autonomía relacionadas entre si y en el conjunto de la filosofía crítica? ¿Cómo se vuelven pilares en torno de los cuales se desarrollada la moralidad, desde la Infancia ? ¿Cómo un proyecto de educación cosmopolita puede venir a contribuir para esa formación moral? Los resultados apuntan para la confirmación de la tesis e indican que la pedagogía kantiana se encuentra respaldada en la filosofía crítica caracterizándose como una pedagogía transcendental y contemplando el carácter de una Filosofía de la Historia kantiana. PALABRAS CLAVE: Autonomía. Cosmopolitismo. Disciplina. Kant. Sociabilidad.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11
2 SUBSTRATO HISTÓRICO E CONTEXTO ILUMINISTA: KANT E A AUFKLÄRUNG ................................................................................................................. 22
2.1 DA RAZÃO EMPIRISTA À MAIORIDADE INTELECTUAL: UM PERCURSO COM LOCKE, ROUSSEAU E KANT .......................................................................................... 24
2.2 ESTÉTICA TRANSCENDENTAL: A REVOLUÇÃO COPERNICANA ...................... 36
3 ESPECIFICIDADE DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO KANTIANO NO CONTEXTO MODERNO ................................................................................................. 49
3.1 O CONCEITO DE EDUCAÇÃO EM LOCKE, ROUSSEAU E KANT ......................... 53
3.2 A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA E A MODERNIDADE ............................................... 70
4 DA COAÇÃO À LIBERDADE: O QUE PODEMOS ENTENDER SOBRE DISCIPLINA E AUTONOMIA EM KANT? ................................................................... 78
4.1 LIBERDADE TRANSCEDENTAL, DISCIPLINA E AUTONOMIA ............................ 79
4.2 DISCIPLINA: O FIO CONDUTOR DA EDUCAÇÃO FÍSICA NA PEDAGOGIA KANTIANA ........................................................................................................................ 95
5 DISCIPLINA E SOCIABILIDADE: ALICERCES PARA UM PROJETO DE EDUCAÇÃO COSMOPOLITA ...................................................................................... 108
5.1 DISCIPLINA E SOCIABILIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL .............................. 110
5.2 O COSMOPOLITISMO KANTIANO E O PROJETO PEDAGÓGICO COM VISTAS AO DESENVOLVIMENTO DA MORALIDADE ............................................................ 126
6 O OPÚSCULO FALA POR SI MESMO ..................................................................... 137
CONCLUSÃO .................................................................................................................. 150
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 153
11
1 INTRODUÇÃO
É possível considerar a escolha do objeto de pesquisa como uma ação dissociada do
jogo intersubjetivo ao qual estamos inevitavelmente submetidos quando nos constituímos como
sujeitos? Iniciamos a apresentação desta tese trazendo esta questão pois, a infância, aqui
escolhida como objeto de estudo, ocupou esse lugar desde os primeiros passos dados em direção
à pesquisa acadêmica.
Àquela época, o ingresso no Núcleo de Pós-graduação em Educação (NPGED) e a
apresentação de um projeto de pesquisa tendo a infância como sujeito trouxe consigo muitos
questionamentos: “O que uma aluna de mestrado iria investigar tomando como sujeitos da
pesquisa crianças de três anos de idade?”. “O que elas poderiam lhes dizer?”.
Desafiando tais questionamentos seguimos em busca de dar voz à criança e
desenvolvemos uma investigação qualitativa descortinando a infância em suas peculiaridades
através de uma pesquisa de cunho etnográfico que se prolongou durante um ano letivo, ao longo
do qual as modificações de comportamento sócio moral que as crianças esboçavam em seu
primeiro ano de escolarização foram observadas em sala de aula e fora dela e capturadas pelas
lentes de uma filmadora.
Além de contemplar uma microssociologia da sala de aula não descuidamos das análises
macrossociológicas que possibilitaram uma reflexão acerca da escola como tradição inventada
para acolher a infância, essa categoria social que fora redesenhada na modernidade, e
necessitava de um espaço no qual se distinguisse do mundo adulto.
Assim, no mestrado, investigamos as funções da escola a partir da perspectiva
sociológica, com o apoio do referencial teórico de Pierre Bourdieu e a partir de um olhar
filosófico sustentado pela microfísica do poder, teorização foucaultiana que considera o poder
como um elemento que, na Modernidade, age de forma sináptica, através das instituições,
promovendo a docilização dos corpos infantis.
Para Foucault, o poder atua através de uma rede de experts situados dentro das
instituições. Essa rede de experts, segundo Rose (1998, p. 42) não conspira “com o estado (sic!)
para iludir, controlar e condicionar os sujeitos”. Mas tornou-se necessária ao Estado Liberal
visto que essa forma de Estado não vislumbra um governo que intervenha diretamente sobre os
indivíduos exigindo uma atuação indireta. Os experts fazem esse papel sendo mediadores e
possibilitando que “as autoridades ajam sobre as escolhas, os desejos e a conduta dos
12
indivíduos. A expertise fornece essa distância essencial entre o aparato formal da lei, das cortes
e da polícia e a moldagem das atividades do cidadão” (ROSE, 1998, p. 42).
Na pesquisa de mestrado foram objeto de estudo as práticas pedagógicas contidas num
projeto de pedagogização da infância visto como um conjunto de Tecnologias de Controle do
Eu1. Lançamos nosso olhar sobre os comportamentos esboçados pelas crianças como respostas
a este projeto durante o processo de socialização secundária e identificamos formas de
resistência e respostas adaptativas frente às estratégias pedagógicas emanadas das orientações
fornecidas pelos referenciais curriculares da Educação Infantil.
É oportuno ressaltarmos que uma análise do discurso curricular visto como uma
tecnologia de controle nos permitiu compreender uma das faces desse processo e considerar sua
eficácia e relevância como proposta disciplinarizante a serviço do projeto civilizatório.
O poder é exercido aperfeiçoando gradativamente seu alcance através de técnicas
individualizantes, estendendo seus tentáculos até os indivíduos, constituindo-se assim uma
biopolítica do poder. Por isso, ao referir-se à arte de governar no contexto dos Estados
modernos, Foucault (2001, p. 280) afirma que “o governante, as pessoas que governam, as
práticas de governo são, por um lado, práticas múltiplas, na medida em que muita gente pode
governar: o pai de família, o superior do convento, o pedagogo e o professor em relação à
criança e ao discípulo”.
Ao final da pesquisa concluímos que o projeto disciplinarizador exercido pela
maquinaria escolar fora largamente analisado, porém, ainda nos sentíamos impelidos a
continuar refletindo sobre as respostas dadas pelas crianças no curso deste processo de
socialização secundária. Instigavam-nos algumas constatações decorrentes do longo estudo
desenvolvido durante um ano letivo. Ao ter observado todo arcabouço da maquinaria escolar
agindo sobre as crianças através de uma proposta pedagogizante foi surpreendente (embora já
esperado em nossas hipóteses) constatar que as respostas são diferenciadas e que as crianças
não acedem igualmente à condição progressiva de dominar seus instintos naturais e afirmarem-
se como sujeitos morais. Mas, foi igualmente surpreendente ver que todas as crianças
observadas passaram a pautar seus comportamentos em normas introjetadas durante este
processo de socialização.
1 Segundo Foucault, as tecnologias do eu são aquelas “que permitem aos indivíduos, por conta própria ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta, ou qualquer forma de ser, obtendo assim uma transformação de si mesmos com o fim de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade.” (FOUCAULT, 1990, p. 48, tradução nossa).
13
Foi assim que nosso eixo de pesquisa foi sofrendo um primeiro deslocamento e a
educação foi sendo considerada uma forma de cuidado necessária e indispensável à formação
humana, e, por conseguinte, uma ação que necessita ser investigada com maior rigor e
profundidade para que possamos, de fato, compreender melhor a constituição da moralidade.
Trabalhar no mestrado a partir das análises de Michel Foucault e utilizar categorias
conceituais como - regimes de verdades, tecnologias do eu, práticas de governamento e
expertise - deu-nos a condição de investigar a formação sócio moral à luz da midrofísica do
poder. Mas, ao final da pesquisa, havia uma inquietação que ainda não fora satisfeita ao refletir
sobre a tensão existente entre as regras de conduta e o sujeito como um permanente
administrador de si mesmo. Quando fizemos as leituras de Foucault a partir do estoicismo e nos
encontramos com estas questões que dizem respeito ao “cuidado de si”2 compreendemos que
só havíamos avançado até certa parte do caminho. Muito ainda estava por ser feito para que
alcançássemos um entendimento acerca de como a moralidade se constitui.
As muitas voltas percorridas levaram-nos ao doutorado e, mais uma vez, a filosofia se
apresentou como campo teórico privilegiado a partir do qual poderíamos investigar esta
questão. Foi assim que escolhemos Kant, e todo arcabouço de sua filosofia moral, para trabalhar
não apenas com a disciplina e a socialização necessárias ao projeto civilizatório mas iluminar
toda a rede de reflexões ao trazer as discussões que põem o sujeito moral no centro desta
questão.
A educação é um elemento crucial do dispositivo conceitual levantada por Kant contra o irracionalismo do antiiluminismo. Nesse conceito, é tributária de uma antropologia otimista para a qual a passagem do homem (de fato) à humanidade (como ideia) não é impossível, enquanto ideia reguladora e processo interminável. O que o homem faz de si mesmo passa pela ação e debate político, pela educação e não por um “fazer” que seja de ordem técnica e demiurgo (fabricar um novo homem como no totalitarismo). (VANDEWALLE, 2004, p. 35).
Assim, nesta tese de doutoramento, perpassando a ideia central de moralidade, nosso
eixo de discussão gira em torno da disciplina e da autonomia, porque em Kant, coação e
liberdade da vontade, são as bases da moralidade. Na infância, a disciplina a qual a criança deve
2 As análises foucaultianas do poder vão desembocar no conceito de “‘épimeléia/cura sui’, que significa o cuidado de si mesmo” (FOUCAULT, 1987, p.33 apud KUREK; OLIVEIRA p. 28). Em Foucault, a problemática do “governo” transforma-se na problemática do “governamento” e é por isso que tem seu corolário na ética do cuidado de si, que, por sua vez relaciona-se com a noção grega de inquietude de si mesmo: “com esta expressão minha intenção é traduzir, aproximadamente, uma noção grega muito complexa e profunda, também muito frequente, e que tem uma prolongada vigência em toda a cultura grega: a de epimeleia heautou, que os latinos traduzem, sem dúvida, como o desvendamento que se deu frequentemente, ou que em todo caso se assinalou, por algo assim como cura sui. Epimeleia heatou é a inquietude de si mesmo, o fato de coupar-se de si mesmo, preocupar-se consigo mesmo, etc, etc.”. (FOUCAULT, 2002, p. 17, tradução nossa).
14
ser submetida quando ainda é um ser heterônomo constitui o lastro sobre o qual se fundará, no
futuro, o sujeito cuja autonomia moral é uma consequência. Esta ligação necessária entre
disciplina e autonomia, conceitos kantianos que não podem estar dissociados, tornou-se nosso
fio condutor por acreditarmos que desta forma é possível se obter uma leitura da filosofia crítica
que concebe o homem como um ser que pode alcançar a maioridade intelectual.
Tomando esse aspecto como central, esta tese traz o desafio de fazer uma leitura da
pedagogia kantiana, a partir de um texto transversal, mas seminal, único escrito de Kant que
aborda as concepções do filósofo sobre a educação. O desafio torna-se ainda maior, ao
considerarmos que este texto não foi escrito pelo próprio Kant, mas compilado por Friedrich
Theodoro Rink (1770-1811) a partir das Lições de Pedagogia ministradas pelo filósofo na
Universidade de Königsberg em 1776/77, 1783/84 e 1786/87 (KANT, 1999, prefácio).
A natureza do opúsculo requer uma profundidade de análise muito maior, pois, o que
ali se encontra registrado, não se apresenta numa ordem construída por seu autor. A compilação
apresenta limitações por se originar de preleções e conter desvios e fragmentações.
Visando enfrentar estes obstáculos acreditamos que seria preciso ampliá-lo fazendo seu
cotejamento com outras obras do sistema crítico, inclusive porque este texto tem sido alvo de
questionamentos no seio da comunidade de estudos kantianos, e, o trabalho de conciliação entre
as ideias ali expostas com a ideias presentes no conjunto de toda a obra nos daria a oportunidade
de inserir, de fato, o que está escrito no opúsculo, no pensamento kantiano mais geral.
É a partir deste opúsculo, no qual encontra-se o panorama mais completo daquilo que
Kant nos deixou sobre a educação, que iremos desenvolver nossas reflexões acerca de um
projeto de educação kantiano que toma a disciplina e autonomia como pilares para a formação
do sujeito moral.
Ao discutirmos a pedagogia em Kant, e, como esta pode vir a se constituir como palco
para a formação do sujeito moral, pretendemos demonstrar como os elementos desta pedagogia
estão respaldados por outros elementos disseminados em textos centrais de sua filosofia como:
A Crítica da Razão Pura, A Crítica da Razão Prática, Fundamentação da Metafísica dos
Costumes, Metafísica dos Costumes, Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista
Cosmopolita, Começo conjectural da história humana, Religião dentro dos limites da simples
razão e Antropologia de um ponto de vista pragmático.
Este é exatamente nosso intento. Submeter à apreciação pública as conclusões
decorrentes dos enlaces que pudermos extrair desse cruzamento entre o opúsculo e o
pensamento kantiano mais geral, por acreditarmos que aí se encontram os fundamentos da
pedagogia, trazidos posteriormente num texto que veio a ser publicado após a morte do filósofo.
15
Para chegarmos à seleção dos textos que compõem este quadro referencial foi necessário
delimitar inicialmente alguns, e, posteriormente, outros foram acrescentados ao longo da
pesquisa. Mas, não os elegemos aleatoriamente, e, embora aparente ser um referencial muito
amplo nos guiamos pela própria constituição do sistema kantiano, identificando as obras que
tocam, em seus aspectos mais relevantes, a temática da educação moral.
Assim sendo, tornou-se necessário que, inicialmente, conhecêssemos o modo como
Kant compôs seu sistema, pautado a princípio em três perguntas, ampliadas posteriormente para
o total de quatro, sendo que a quarta, segundo o filósofo, engloba as três que a precederam.
Estas perguntas definem a função da filosofia para Kant. Uma filosofia séria se dedica aos
problemas fundamentais do homem, e, segundo o filósofo: Tal interesse conflui nas três
perguntas célebres: 1. Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que me é permitido esperar?”
(KANT apud HÖFFE, 2005, p. XXIV).
Porém, mais tarde, a estas três perguntas, Kant acrescentou uma quarta e, segundo Perez
(2013, p. 250) “é na carta a C.F. Stäudlin, de 1793, que Kant descreve o plano do seu sistema
de filosofia pura e acrescenta a quarta pergunta: que é o ser humano?” Após esta formulação,
elas aparecem assim na Introdução de sua Lógica: O campo da filosofia [ ...] pode reconduzir-se às questões seguintes: 1)Que posso saber? 2)Que devo fazer? 3)Que me é permitido esperar? 4)Que é o homem? A metafísica responde à primeira pergunta, a moral à segunda, a religião à terceira e a antropologia à quarta. Mas, no fundo, tudo isto se poderia incluir na antropologia, visto que as três primeiras questões se referem à última. (KANT, 2009, p. 13).
Considerando esta organização interna do sistema crítico traçada pelo próprio filósofo,
no primeiro bloco, e respondendo à questão “Que posso saber?” encontra-se a primeira de suas
Críticas - A Crítica da razão pura. Nela a filosofia transcendental é esboçada e “Kant a
desenvolve primeiro com referência à razão como faculdade de conhecimento. Esta ele chama
também de razão teórica ou especulativa.” (HÖFFE, 2005, p. 33).
Na Introdução à Crítica, Kant chama de transcendental “todo conhecimento que em
geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos, na medida
em que este deve ser possível a priori [...]”. (KANT, 2001, p. 26). Esta citação contempla o
núcleo central das discussões que Kant fez em sua primeira Crítica, aquilo que veio a ser
reconhecido como sendo uma teoria transcendental. “O conhecimento transcendental é uma
teoria da possibilidade do conhecimento a priori ou, em uma palavra, uma “teoria do a priori”
(HÖFFE, 2005, p. 60).
16
Na Crítica da Razão Pura nos interessa, especificamente, essa possibilidade de conexão
entre a epistemologia e a pedagogia. A valorização que Kant dá a experiência sem desconsiderar
o entendimento. A experiência sozinha pode nos fornecer o conteúdo do conhecimento, mas
cabe aos quadros a priori do espírito ordená-la, dar-lhe uma forma. Estas questões são estudadas
por Kant na primeira parte de sua Crítica da razão pura, a Estética Transcendental. É relevante
para este trabalho a investigação dessas fontes do conhecimento tendo em vista que em
educação infantil trabalha-se a partir da sensibilidade e da experiência e muitos exemplos
contidos em sua pedagogia terão sua razão de ser compreendida se os inserirmos dentro de uma
concepção epistemológica.
Num segundo bloco da citada divisão interna da obra kantiana, estão os textos, como já
dissemos anteriormente, que se propõem a responder à pergunta: “O que devo fazer?” Neste
bloco encontram-se as produções sobre a Filosofia Moral. Através desta produção Kant irá
concluir que “assim como no campo teórico, também no campo prático a objetividade somente
é possível através do próprio sujeito.” (HÖFFE, 2005, p. 183-184). Neste bloco destacamos
para um estudo mais aprofundado os textos: Fundamentação da Metafísica dos Costumes,
Metafísica dos Costumes e Crítica da Razão Prática. Neles “Kant conduz a autorreflexão das
práxis morais com o rigor que lhe é próprio.” (HÖFFE, 2005, p. 60).
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Metafísica dos Costumes vamos
encontrar as questões relativas à moralidade propriamente dita. Uma discussão acerca da
universalidade do juízo moral e, ao mesmo tempo, do seu caráter objetivo como resultante de
uma racionalidade prática é realizada nestas obras pois, [...] todo o propósito de Kant está em explicitar a natureza universal e necessária que sustenta o juízo moral. No entanto, para que Kant possa levar a cabo essa tarefa, ele pressupõe que a moralidade possui um caráter objetivo, tanto nos argumentos da primeira seção como nos argumentos da segunda seção da Fundamentação. Este pressuposto só será esclarecido na terceira seção, quando Kant deduz a moralidade a partir da ideia de liberdade. (BRITO, 2011, p. 34).
Relacionando os elementos transcendentais àqueles que nos situam como sujeitos
inseridos num mundo fenomênico, os textos deste segundo bloco possibilitarão uma discussão
acerca de como vem a se constituir a moralidade segundo Immanuel Kant.
Correspondendo ainda ao segundo bloco e situada no campo da razão prática o eixo
central de análise desta tese remete à educação que, em Kant, tem um forte caráter moral. Tal
proposta pedagógica está contemplada no opúsculo Sobre a Pedagogia, o qual tornou-se nosso
objeto principal de análise por ser nele que se encontram os elementos fundantes de um projeto
educativo que deve se iniciar desde a infância.
17
Partiremos desse texto para abordar a disciplina, mas importa salientar, no que tange
aos estudos kantianos sobre a moral, o filósofo foi muito além e neste trabalho, pretendemos
estudar o caminho que pode ser perseguido, desde a infância, até a conquista da autonomia
moral, constituindo um projeto pedagógico de educação moral a partir das premissas kantianas.
Pretendemos compor um cenário a partir do qual possamos compreender a importância
da reflexão filosófica acerca da moralidade dentro de uma perspectiva antropológica. Deste
modo, nos propomos a realizar algumas leituras que estariam diretamente relacionadas à quarta
pergunta kantiana e, por isso, selecionamos o texto Antropologia de um ponto de vista
pragmático. Além deste, dois outros textos serão estudados com o intuito de alargar nossa
compreensão de educação levando em conta a questão antropológica e contemplando uma
proposta de formação do homem num panorama mais amplo, social e politicamente. Ideia de
uma história universal de um ponto de vista cosmopolita e Começo conjectural da história
humana são textos que nos permitirão essa articulação da educação com a Filosofia da História.
Enfim, dessa forma, fica justificada a escolha de tão amplo referencial teórico, pois
entendemos que sem ele não seria possível atingir o objetivo proposto nesta tese qual seja o de
fazer o cotejamento do opúsculo com o sistema crítico, com a finalidade de demonstar a
existência de uma Pedagogia Moral da Infância em Kant.
Para alcançarmos tal objetivo pretendemos fazer esta ampliação percorrendo parte da
obra do filósofo, visto que não nos seria possível uma tal investida em todo o seu conjunto,
dado o limite temporal ao qual uma tese de doutoramento deve se submeter. No entanto,
entendemos que este é um campo aberto e vários outros pesquisadores já têm se ocupado desta
questão, sendo o nosso trabalho, apenas uma contribuição, no panorama dos estudos que
procuram em Kant aquilo que ele nos legou como filósofo atento às questões da educação.
Por fim, o texto que lhes apresentamos constitui-se de uma Introdução, cinco seções e
uma conclusão. Inicialmente, na segunda seção apresentamos o panorama histórico delimitando
o contexto no qual se origina uma pedagogia kantiana. Para tanto, situaremos os escritos
pedagógicos de Kant num cenário mais amplo, o contexto iluminista. Retomaremos Locke e
Rousseau, dois grandes filósofos que também nos deixaram uma pedagogia, e vamos destacar,
a partir de uma leitura dos três, como suas ideias pedagógicas respaldam-se numa epistemologia
própria. Nesta seção ainda trabalharemos os fundamentos da Estética Transcendental por
entendermos que sem eles não se pode adentrar ao contexto da pedagogia kantiana.
Na terceira seção pretendemos traçar um paralelo entre as três obras de educação
deixadas por Locke, Kant e Rousseau. A partir desta leitura comparativa identificaremos
similaridades e diferenças e destacaremos a originalidade e singularidade do pensamento
18
educacional kantiano, bem como, os princípios de uma filosofia da infância que estão presentes
em Kant e nem sempre são reconhecidos.
Na quarta seção, atendo-nos ao que é específico no sistema crítico, e mais precisamente,
concentrando-nos em destacar aquilo que lhe é próprio em termos de uma filosofia moral,
adentraremos à obra de Kant, explorando duas categorias conceituais definidas como centrais
para a defesa de nossa tese, e que, a partir desta leitura que aqui fazemos, possibilitam à
educação infantil desencadear e sustentar um processo de formação moral visando imprimir as
bases fundamentais para a constituição do sujeito kantiano. São elas: autonomia e disciplina.
Tais categorias tornaram-se elementos norteadores da pesquisa e, juntas, deram origem
a quarta seção desta tese. A partir de uma discussão envolvendo ambas pretendemos mostrar
que uma leitura acerca da disciplina e da autonomia kantiana pode nos levar a afirmar que há
um corpo de princípios pedagógicos que orientam a educação da infância na obra que nos foi
deixada por Immanuel Kant. É a partir desta discussão que nossa tese se fortalece pois,
acreditamos que, para que se cumpra a constituição da moralidade, Kant defende a educação,
especialmente a educação da infância.
Aprofundando a leitura do opúsculo Sobre a Pedagogia iremos discutir como se
articulam as ideias ali contidas acerca das relações entre disciplina e autonomia, com outros
textos kantianos, especialmente a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, tendo em vista
compreendermos que nesta articulação encontram-se as bases para a constituição moral, no
período da infância. Nossa tese começa a ser discutida ao longo desta seção e remete ao
entendimento de que, na Pedagogia Kantiana há uma defesa da disciplina, especialmente àquela
destinada à infância, como o princípio através do qual se desenvolvem os fundamentos para
que, de fato, mais tarde venha a se desencadear, a formação moral dos sujeitos.
Na quinta seção trabalharemos dando sequência as discussões que corroboram a
confirmação de nossa tese tomando a sociabilidade como uma categoria, que, segundo nossa
leitura, é utilizada por Kant para mostrar, como, do ponto de vista da filosofia prática, pode ser
desencadeado, um processo de formação que se concretiza na escola e/ou dá a educação a
conotação de um ambiente facilitador para o desenvolvimento da disciplina. Além disso, nesta
seção discutiremos também como o cosmopolitismo (em decorrência desta questão da
sociabilidade) vem a ser apontado por Kant como um projeto educativo através do qual a
espécie humana deve sofrer um aprimoramento moral.
Entendemos que Kant defende um Projeto de Educação Cosmopolita e vamos buscar os
nexos entre a educação cosmopolita e o conceito de sociabilidade tão caro à infância. Queremos
explorar esta categoria – o cosmopolitismo - por estabelecermos entre ela e a socialização
19
secundária uma aproximação perpassada pela sutileza na abordagem do conceito de
sociabilidade que não podemos deixar de aprofundar.
O filósofo, ao considerar a insociável sociabilidade como elemento intrínseco ao ser
humano, conclui que o indivíduo sozinho não pode cumprir a destinação da espécie humana no
que diz respeito à educação. Cremos que, por este motivo, em sua Antropologia de um ponto
de vista pragmático as posições acerca da sociabilidade aparecem já interligando a citada
categoria ao cosmopolitismo, como conclui Sonia Barreto.
De modo análogo às preleções Sobre a pedagogia, em sua Antropologia Kant afirma que a espécie humana empreende um esforço contínuo para elevar-se ao bem, mesmo que sua realização seja permeada de dificuldades. “A consecução desse fim não pode ser esperada do livre acordo entre os indivíduos, mas apenas por meio de progressiva organização dos cidadãos da terra na e para a espécie, como um sistema cosmopolita unificado” (KANT, 2006, p. 227; AK, VII, p. 333). Portanto, o desenvolvimento da natureza humana e seu contínuo aperfeiçoamento somente adquirem significação quando se referem ao gênero humano, cuja sensificação é possibilitada pela sociabilidade, condição precípua na pedagogia kantiana. (BARRETO, 2012, p. 65).
Por entendermos que a perspectiva de educação em Kant congrega toda a espécie
humana e não apenas o indivíduo, e, tomando como elemento reforçador o que o próprio
filósofo afirma ao estabelecer como condição para a elevação da espécie humana a progressiva
organização dos cidadãos num sistema cosmopolita unificado, vemos que a sociabilidade é tida
como uma condição que visa garantir o êxito desta proposta política, cultural e pedagógica.
Como tarefa prática, a educação só pode realizar-se na espécie; condição que faz da educação uma atividade promotora da sociabilidade, sem a qual seria impensável o desenvolvimento da história humana. Assim, ao promover o desenvolvimento da natureza humana, a educação promove, também, a sociabilidade. (BARRETO, 2012, p. 59).
Portanto, ao tratar da sociabilidade pretendemos fazê-lo concebendo-a como
decorrência da ação de socialização secundária, tarefa da educação infantil, que, lança as bases,
para que mais tarde, possa vir a ser desenvolvido um projeto de educação cosmopolita visando
a formação do cidadão.
Para atingir tais objetivos tornou-se necessário também trabalharmos com a cultura,
enquanto categoria do pensamento kantiano, por compreender que o processo educacional
cosmopolita está inserido dentro desta concepção de cultura, tomada tanto em seu aspecto
negativo como em seu aspecto positivo e, muitas vezes confundindo-se como o termo Bildung. Os dois termos gerais Bildung e Kultur são usados como sinônimos por Kant, e incluem dentro deles uma variedade de processos mais específicos tais como a instrução (Unterweisung), o ensino (Belehrung) e a orientação (Anführung). É também importante lembrar que “cultura”, como os outros estágios da
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educação, é frequentemente utilizada por Kant num duplo sentido: às vezes esse termo se refere à formação geral da humanidade para além da animalidade na raça humana. Em outros momentos, refere-se a processos educacionais mais específicos dirigidos a grupos particulares assim como a indivíduos. Segundo o texto de Kant, cultura é também “a obtenção de habilidades (Geschicklichkeit) ” e estas são consideradas obtidas quando as pessoas alcançam com sucesso todos os seus fins escolhidos. (OLIVEIRA, 2004, p. 456).
A cultura será uma categoria através da qual mostraremos a defesa kantiana de uma
educação pública3 tendo em vista que o eixo fundamental da filosofia da história kantiana nos
remete à saída da selvageria a partir da inserção do homem na cultura. O filósofo aponta um
caminho teleológico4 ao qual a humanidade encontrar-se-ia submetida como um progresso
contínuo em direção a todas as suas disposições naturais racionais, sendo a cultura o meio
propiciador através do qual a humanidade poderá vir a desenvolver plenamente todas as suas
disposições.
Nossos objetivos específicos, portanto, remetem ao estudo das categorias acima
elencadas – disciplina, sociabilidade e cosmopolitismo - por acreditarmos que nelas se
encontram os fundamentos que constituem o que aqui estamos denominando “pedagogia
kantiana”. Queremos responder, no que diz respeito à infância, como essa educação, dada às
crianças, poderia vir a contribuir para o desenvolvimento da moralidade? O que podemos
compreender, a partir do que Kant nos deixou, como sendo uma prática educativa de liberdade?
Como a disciplina e autonomia estão relacionadas na filosofia kantiana como eixos em torno
dos quais se desencadeia a constituição moral? Como a socialização secundária se relaciona
com o conceito kantiano de sociabilidade, funcionando como uma conquista antecipada posta
em prática através de um projeto de educação infantil, e posteriormente ampliada e levada a
termo numa proposta de uma educação cosmopolita que visa concretizar a formação moral?
Por fim, na sexta e última seção apresentaremos uma paráfrase do opúsculo, limitando-
nos a sua Introdução, com o objetivo de sintetizar as discussões realizadas ao longo desta tese.
Esta seção possibilitará uma visão de conjunto do texto que é objeto de nossa investigação e,
simultaneamente, servirá como um texto conclusivo arrematando as reflexões empreendidas e
3 As expressões “educação pública” e “educação privada” devem ser compreendidas dentro do contexto de modernidade com relação ao espaço onde ocorriam, ou seja, a educação pública referida por Kant é aquela que ocorria no espaço extra doméstico, enquanto a educação privada, mesmo sendo paga, ocorria no espaço doméstico. Estes termos, na Modernidade, não tinham relação com o caráter gratuito da educação. 4 Teleologia: o princípio de que tudo possui seu fim é bom, quer como bem em si, quer como bem para alguma coisa, é o mais alto princípio natural da Ciência da natureza; ele não é derivado da hipótese de um autor racional, mas sem ele não teríamos regra alguma, que não seja a natureza, para nossa ideia do bem.
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mostrando como o opúsculo pode falar por si mesmo, caso, haja um conhecimento da filosofia
da qual se origina.
Nas considerações finais retomamos nossos objetivos e propósitos e indicamos algumas
limitações do trabalho desenvolvido ao longo desta pesquisa.
Enfim, o estudo do opúsculo, que ora apresentamos aos leitores, é uma pesquisa
filosófica com delimitação na área de educação e se inscreve no panorama da modernidade.
Com ela almejamos desvendar como a pedagogia kantiana se relaciona com a formação moral.
22
2 SUBSTRATO HISTÓRICO E CONTEXTO ILUMINISTA: KANT E A AUFKLÄRUNG
Até aqui caracterizamos o ambiente temático deste trabalho, mas, além do ambiente
temático, precisamos também caracterizar o ambiente histórico e epistemológico no qual se
insere nossa pesquisa. Para fazermos a caracterização histórica vamos nos reportar à
Modernidade. Esta é a nossa primeira tarefa nesta segunda sessão a partir da qual pretendemos
situar historicamente e contextualmente, o primado da razão no contexto iluminista e a filosofia
de Kant como marco da Aufklärung.
Veremos que o Dezoito5 não é o berço do Iluminismo, porque, mesmo antes, já vinha
se produzindo gradualmente esta ascensão da razão ensaiando-se desde a filosofia de Locke,
passando por Rousseau e consolidando-se com as ideias de Kant. Vamos demarcar nesse
contexto a tarefa da educação, por excelência, voltando-se para o homem e buscando promover
sua autonomia.
Além desta contextualização histórica, também faremos uma caracterização do
ambiente epistemológico que fundamenta esta tese. Para esse fim, vamos retomar em Kant
aquilo que acreditamos ser fundamental para a compreensão da Pedagogia que ele nos deixou:
sua Teoria do Conhecimento. É ela que, pautada na razão pura, nos permitirá compreender que
é a razão o substrato que sustenta todo edifício epistemológico da Filosofia Crítica. Sem essas
considerações não poderíamos avançar pois a leitura de uma Pedagogia Kantiana só pode ser
feita quando compreendemos a Estética Transcendental de Kant.
Historicamente o período compreendido entre o final do século XVII e o final do século
XVIII, intitulado Século das Luzes, caracterizou-se pela exacerbação do conhecimento,
provocando um deslocamento em relação à religião e inserindo o homem como o agente
racional de transformações e do progresso, tanto de si mesmo quanto do social.
Dada a magnitude do período temporal, desde o XVII até o XVIII, as Luzes não se
expressam de maneira exata, inequívoca e pontual. Pelo contrário, enquanto movimento,
percorreu caminhos próprios e foi se apresentando de diferenciadas formas a depender do que
se registra na pena da caneta tinteiro de cada filósofo. Quando culminam com a “revolução” já
trazem consigo um amadurecimento anterior. As luzes são uma época de conclusão, de recapitulação, de síntese – e não de inovação radical. As grandes ideias das Luzes não têm origem no século XVIII; quando elas não vêm da antiguidade, trazem os traços da Idade Média,
5 A expressão refere-se ao período de mudanças sócio-históricas desencadeadas pela decadência do feudalismo e formação do capitalismo industrial; pela ascenção da classe burguesa ao poder e pela instituição de uma nova axiologia que caracteriza a formação da modernidade.
23
do Renascimento e da época clássica. As luzes absorvem e articulam opiniões que, no passado, estavam em conflito, é por isso que os historiadores quase sempre observam que é preciso dissipar algumas imagens convencionais. As luzes são ao mesmo tempo racionalistas e empiristas, herdeiras tanto de Descartes como de Locke (TODOROV, 2008, p. 13).
O movimento teve seu apogeu no século XVIII e situamos este século como marco
histórico que nos trouxe as Luzes e o Esclarecimento, atribuindo, em geral, a estes dois termos,
uma equivalência. De acordo com Reinhard (1991 apud LIMA, 2013, p.12) a “expressão
francesa ‘La Lumière de la Raison’ (A Luz da Razão) [...] [está diretamente relacionada ao]
termo Ilustração, e seus derivados ilustrar e ilustrados, que estarão aqui associados às Lumières,
as Luzes francesas.”
A França foi o berço no qual nasceu o Iluminismo. Porém, ao se difundir, este
movimento ganhou contornos diferenciados em outros países. Em sua proposição germânica o
movimento tornou-se conhecido como Aufklärung, e, também de acordo com Reinhard (1991,
p. 132 apud LIMA, 2013, p. 12) Aufklärung “é uma palavra alemã que não pode ser traduzida
em francês pela palavra Lumières como sua correspondente.” A diferença entre ambos reside
numa interpretação que aponta o primeiro como um movimento histórico e o segundo como
uma nova forma de conceber o mundo que se amplia e perpetua, entre nós, até hoje.
Em Adorno e Horkheimer, o termo é usado para designar o processo de ‘desencantamento do mundo’, pelo qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida, à qual atribuam poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela. Por isso mesmo, o esclarecimento de que falam não é, como o iluminismo, ou a ilustração, um movimento filosófico ou de uma época histórica determinados, mas o processo pelo qual, ao longo da história, os homens se libertam das potências míticas da natureza, ou seja, o processo de racionalização que prossegue na filosofia e na ciência. (ALMEIDA, 1985, pp. 07-08 apud LIMA, 2013, p. 11, grifo nosso).
Na França a “revolução” tornou-se o núcleo em torno do qual todas as mudanças
gravitavam. A Emancipação social e política pode ser tida como elemento central, mas, as
análises mais aprofundadas nos mostram que outros disparadores já vinham sendo acionados.
Destarte, o termo “revolução” ganha contornos diferenciados no seio do Iluminismo e expressa
o que esse movimento realmente viria a se tornar dentro de uma perspectiva mais abrangente.
Os iluministas encontravam-se em terreno conhecido no que se refere ao termo “revolução”, pois o conceito se tornara uma “palavra da moda”. Tudo aquilo que se via e se descrevia era compreendido a partir da perspectiva da transformação, da comoção. A revolução abarcava os costumes, o direito, a religião, economia, nações, Estados e continentes, enfim, todo o globo terrestre. Como disse Louis Sébastien Mercier em 1772, “Tout est révolution dans ce monde” [Tudo é revolução neste mundo]. (KOSELLECK, 2006, p. 67).
24
É a ascensão do homem a esse lugar diferenciado que queremos destacar aqui como o
ingrediente principal da Aufklärung. Nesse sentido, é desta “revolução” que estamos falando.
[...] o conceito [de revolução] originalmente natural e, portanto, trans-histórico dissemina seu significado parcial e metafórico, que acaba por se tornar predominante. O movimento abandona sua base natural para adentrar a atualidade do quotidiano. Dessa forma, com o termo “revolução”, veio à luz o âmbito de uma história genuinamente humana. A característica politicamente notável desse novo conceito universal de movimento consistia em sua esterilização como conceito oposto à guerra civil. [...]. “A atual situação da Europa [aproxima-se] de uma revolução benfazeja, uma revolução que não será conduzida por revoltas selvagens e de guerras civis [...]. De forma proporcional, o conceito de revolução foi despojado de sua dureza política, o que permitiu que confluíssem para ele todas as esperanças utópicas que explicam o entusiasmo dos anos que se seguiram a 1789. (KOSELLECK, 2006, p. 68).
Estamos diante de uma “revolução” que, conforme afirma Koselleck (2006) transforma
a história numa história “genuinamente humana”. É disso que se trata. De uma progressiva
valorização do homem como agente de sua própria história.
2.1 DA RAZÃO EMPIRISTA À MAIORIDADE INTELECTUAL: UM PERCURSO COM LOCKE, ROUSSEAU E KANT
Não é sem motivo que Locke é considerado o pai do Liberalismo pois Entre 1689 e 1690, regressando à Inglaterra após a vitória do Parlamento na Revolução Gloriosa, Locke publicou, entre outras cartas e documentos a respeito da liberdade, Carta sobre a Tolerância. Este documento provocou polêmicas, pois nele o autor advoga a liberdade de consciência religiosa, questão importante para a época em que ele vivieu, na medida em que o absolutismo, contrariamente à tendência protestante de boa parte da população inglesa, impunha a religião católica como oficial e obrigatória. Para ele, o Estado deveria se preocupar com o bem-estar material dos cidadãos e não tomar posição a favor ou contra uma determinada religião. [...]. Ou seja, o autor busca, com seus escritos sobre conhecimento, política e sobre a relação Estado e Igreja (ou seja, refletindo a questão da liberdade), construir referenciais teóricos liberais em contraposição aos dogmáticos e/ou absolutistas que até então vigoravam fortemente na Inglaterra. (GOMERCINDO; OLIVEIRA, 1995, p. 43).
O pensamento liberalista de Locke destaca-se num contexto no qual a cisão entre a
religião e a política, consequência da Reforma Religiosa, já revelava um clima de anseio por
essa liberdade e superação de posturas totalitárias. Neste sentido, a liberdade não era apenas
desejada no campo religioso mas, de uma forma geral, pois, “politicamente passou-se a refletir
em torno da ideia de que cada um era senhor de si” [portanto, podemos afirmar que é esse
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pensamento] que prepara o caminho e as bases do Iluminismo e da Revolução Francesa,
especialmente.” (GOMERCINDO; OLIVEIRA, 1995, p. 43-44).
Como bem observa Belavel (1985, p. 196) “o espírito filosófico, nessa época, constitui-
se em espírito de observação que procurava remeter tudo a seus princípios verdadeiros, tornar-
se útil e transformar o homem de reflexão em cidadão atuante”. Este, sem dúvida, é o mote que
congrega as várias nuances que o movimento iluminista expressará mais tarde.
Mas, não podemos perder de vista a concepção de liberdade que perpassa a obra de
Rousseau pois a mesma está atrelada ao contexto no qual emerje a burguesia e a sociedade
burguesa. Trata-se, portanto, de construir uma sociedade mais aberta, mas em cujo contexto
não se pode abrir mão da disciplina individual “pois é dela que depende o sucesso do indivíduo
nesta sociedade. [...]. A disciplina busca organizar a vida do gentleman [...] mas numa
perspectiva totalmente individualista. A liberdade não será e nem deverá ser exercida
universalmente [...].” (GOMERCINDO; OLIVEIRA, 1995, p. 48).
Em Locke esta ascensão do humano, entendido aqui como expressão de uma
racionalidade, se revela em seu Ensaio Acerca do Entendimento Humano, através da
demonstração de como a razão opera a partir da experiência, e não de uma forma inata. Logo,
o caráter de autonomia do conhecimento que o homem pode vir a constituir aparece em sua
filosofia através desse empirismo que refuta um conhecimento a priori como dádiva divina.
Para o filósofo, através da percepção, as ideias vão sendo constituídas em nossa mente.
Os sentidos inicialmente tratam com ideias particulares [...]. Mais tarde, a mente [...] as vai abstraindo, apreendendo gradualmente o uso dos nomes gerais [...]. Por este meio a mente vai se enriquecendo com ideias e linguagem, [...] e o uso da razão torna-se diariamente mais visível [...]. (LOCKE, 1983, p. 148).
É importante frisar que apesar de pautar sua teoria na refutação de todo e qualquer
conhecimento a priori afirmando que esse processo começa com as ideias simples - material
obtido pela percepção que constitui todo o nosso conhecimento inicial - Locke não descarta a
capacidade do homem de utilizar as ideias simples para ir produzindo combinações que formam
ideias complexas. Essa capacidade humana é a razão. Sendo assim, a razão em Locke é “a
faculdade de deduzir verdades desconhecidas de princípios ou proposições já conhecidos [...]”
(LOCKE, 1983, p. 147).
Não há, para o filósofo inglês, princípios práticos inatos. O conhecimento não é obtido das máximas [...], mas por comparar ideias claras e distintas. [...]. Devemos, portanto, se procedermos como a razão nos aconselha, adaptar nossos métodos de investigar à natureza das ideias que examinamos, e à verdade que buscamos. (LOCKE, 1983, pp. 317-318).
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Vemos que, em Locke, a verdade está empiricamente atrelada à realidade da qual são
extraídas todas as ideias e a razão é submetida à realidade de onde o homem extrai tudo aquilo
que pode ser pensado. Destarte, a moral também tem essa característica empirista. Para Locke,
“a moral é tão capaz de demonstração como às matemáticas.” (LOCKE, 1983, p. 318). Pois as ideias a respeito das quais a ética está empenhada sendo todas essências reais, e tais como imagino, tem uma conexão descobrível e acordo mútuo, e, na medida em que se podem divisar seus hábitos e relações, teremos obtido verdades certas, reais e gerais; e não duvido que, se um método correto fosse empregado, grande parte da moral seria estabelecida com clareza, e não deixaria, para um homem ponderado, razão para duvidar, do mesmo modo que não poderia duvidar da verdade das proposições em matemáticas, que lhe foram demonstradas. (LOCKE, 1983, p. 318).
Por essas esparsas e curtas citações, somos capazes de afirmar que a moral lockeana é
aquela que emana empírica e comprovadamente da realidade externa ao homem. O
entendimento humano, neste caso, se faz como consequência destas experiências.
Epistemologicamente é importante compreendermos que na filosofia lockeana, o homem está
subordinado à realidade em si, mas isso não quer dizer que não haja uma racionalidade. Locke
define razão como “a faculdade discursiva da mente, a qual avança das coisas conhecidas para
as coisas desconhecidas, e pergunta de uma coisa para outra numa ordem definida e fixa de
proposições” (LOCKE, 2005, p. 81). Em seu Ensaio Acerca do Entendimento Humano ele
dedica o capítulo XVII do Livro IV a uma discussão aprofundada sobre a razão considerando
que ela comporta quatro graus.
O primeiro e mais alto consiste em descobrir e encontrar provas; o segundo, a disposição regular e metódica das mesmas, colocando-as numa ordem clara e adequada, para tornar sua conexão e força clara e facilmente percebidas; o terceiro na apercepção de sua conexão; e o quarto consiste em tirar a correta conclusão. Estes vários graus podem ser observados em qualquer demonstração matemática. (LOCKE, 1983, p. 318).
Inclusive, ao final deste capítulo, após demonstrar que “nenhum raciocínio silogístico
pode ser certo e conclusivo, mas aquele que, ao menos, comporta uma proposição geral”, Locke
define que o único argumento válido “que os homens, em seus raciocínios, utilizam para ser
bem-sucedidos e silenciar seu oponente” é o ad judicium que “consiste no uso de provas tiradas
de quaisquer dos fundamentos do conhecimento” (LOCKE, 1983, p. 334-335). Mas, ainda que
a razão emerja, a experiência é soberana, em Locke, essa faculdade racional é secundária ou se
origina de uma dádiva divina pois no caso de faltar ao homem o conhecimento certo das coisas,
Locke afirma que “a faculdade que Deus deu ao homem para suprir a falta de um conhecimento
claro e certo” (LOCKE, 1983, p. 322) é o julgamento através do qual o homem norteará suas
ações. O julgamento “consiste em presumir que as coisas são assim, sem percebê-las” (LOCKE,
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1983, p. 322). Aqui vemos o filósofo recuar diante de um poder superior. Não poderíamos
descartar o contexto no qual produz sua obra. Inegavelmente é um filósofo do século XVII e,
por isso, ainda encontramos, em sua filosofia resquícios de uma articulação com o divino.
Porém, vale assinalar que a educação como uma proposta de autonomia do indivíduo já
estava em discussão desde o século XVII, assim sendo, o empirismo inglês se afastou da
perspectiva teológica atribuindo ao homem a capacidade de agir por si mesmo. Avançou quando
conferiu ao homem o poder de “descobrir e encontrar provas [...] colocando-as numa ordem
clara”.
A proposta de formação moral relacionada ao projeto educativo traçada por Locke já se
mostrava entrelaçada à razão e derivada de uma educação que deveria ser dada na infância e se
ocuparia dos princípios éticos.
[...] devemos tomar especial cuidado a fim de que, com efeito, as almas dos jovens não se inclinem excessivamente para a volúpia, ou que sejam pegas pela sedução do corpo, ou seduzidas pelos maus exemplos que estão em toda parte, negligenciando assim os salutares preceitos da razão. Isto é considerado principalmente por aqueles que pensam na educação das almas jovens e que acham importante, ainda cedo, já na tenra idade, colocar os fundamentos da moral e da virtude; e fazer o melhor para gravar sentimentos de respeito e amor para a divindade, obediência aos superiores, fidelidade em manter as promessas, falar a verdade, clemência, liberalidade, pureza, dando com isto, força a todas virtudes restantes. (LOCKE, 2005, p. 65-66).
Apesar de Locke dar os primeiros passos em direção à moralidade como princípio
educativo pautado nos “preceitos da razão”, sua proposta ainda consistia em “gravar
sentimentos de respeito e amor para a divindade”.
Só mais tarde, no século XVIII, a temática da educação com o fim de preparar o homem
para bastar-se a si mesmo seria aprofundada por Rousseau vindo a constituir as bases do
pensamento moderno e desligando-se mais efetivamente da religião como meio para a
moralidade. Na primeira infância o Emílio não tem nenhum contato com a educação religiosa.
Em Rousseau, inicialmente, podemos encontrar os germes que viriam a fundamentar o
pensamento kantiano no que diz respeito à racionalidade. Com isso, não estamos afirmando ser
Rousseau um racionalista. Apenas, identificando, em sua filosofia, uma posição que será aquela
que Kant iria mais tarde tomar como central para sua filosofia crítica.
Robert Derathé6 (2012, p. 16), ao discutir esta questão da racionalidade em Rousseau,
faz a abertura de seu texto interrogando: “Será Rousseau Racionalista?”. Ao longo do estudo
cita algumas passagens da Nova Heloisa a partir das quais podemos constatar a própria acepção
6 Artigo original Le rationalisme de Jean-Jacques Rousseau, Paris: PUF, 1948. Traduzido por Suzana Albornoz e publicado em Cadernos de Educação FaE/PPGE/UFPel, 3-6, janeiro/fevereiro/abril, 2012, p. 16-41.
28
do termo razão em Rousseau: “Onde buscar a sã razão, senão no que é a sua fonte? E que pensar
daqueles que se consagram a corromper nos homens essa chama divina que Deus lhes deu para
guiá-los? ”
Nesta passagem ainda se pode atribuir à razão proclamada por Rousseau - o seu caráter
Deísta - vinculando o homem a um Deus pelo qual clama e que lhe governa. Mas ao tomarmos
outras passagens de sua obra, como, por exemplo, esta da Profissão de Fé do Vigário Saboiano,
outras conclusões podem ser tiradas: “O Deus que adoro não é um Deus das trevas, ele não me
dotou de um entendimento para proibir-me de usá-lo: dizer-me para submeter minha razão é
ultrajar seu autor. O ministro da verdade não tiraniza minha razão, mas a ilumina”.
(ROUSSEAU, 1999, p. 407).
No citado artigo, Robert Derathé, conclui que, em Rousseau, “alternadamente, a
consciência e a razão são apresentadas como o guia que o homem recebeu de Deus para
conduzi-lo” (DERATHÉ, 2012, p. 19-20), mas isso não significa que ele faça um retorno à
perspectiva teológica e sim que Rousseau, certamente, talvez mais que qualquer outro, denunciou os erros onde caem os homens através do uso de sua razão, mas para ele como para Burlamaqui tais erros apenas provam que “os homens podem fazer mau uso de sua razão”. De modo algum se deve concluir que a razão seja destituída de toda retidão natural, e que a ela se deva evitar apelar. “Deus – dirá o vigário saboiano – não me dotou de um entendimento para me proibir o seu uso”. (DERATHÉ, 2012, p.25).
Lilian do Vale comentando este artigo afirma que:
a tese de Derathé é a de que a obra de Rousseau consagra um racionalismo prático, preocupado com as questões que tocam à consciência e à virtude, e não com o projeto de expansão ilimitada do saber e do poder que os modernos conceberam. (VALE, 2012, p. 14).
É justamente neste aspecto que a discussão nos interessa porque a influência de
Rousseau sobre o pensamento de Kant segue este direcionamento “que consagra ao homem um
racionalismo prático, preocupado com as questões que tocam a consciência e a virtude”. Porém,
em Kant, há uma separação definitiva entre a razão e a fé e sua filosofia crítica vai muito além
daquela através da qual o genebrino enalteceu as virtudes.
Incialmente é possível constatar que Kant era leitor de Rousseau a partir de episódios
relatados na biografia do filósofo de Königsberg. Seus primeiros esboços biográficos contêm abundantes evidências de sua veneração por Rousseau e da admiração que tinha por sua obra. É bem conhecido que, era um modelo de pontualidade e regulava seus hábitos cotidianos pelos ponteiros do relógio, apenas traindo em uma ocasião, semelhante regularidade: ao deixar de dar seu passeio diário quando apareceu
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o Emílio de Rousseau, por não interromper a leitura desta obra que o tinha absorvido. (CASSIRER, 2007, p. 157, tradução nossa).
Mas não precisamos recorrer a este anedotário para indicar o quanto Rousseau está
presente na obra de Kant pois o próprio filósofo alemão se encarregou de atestar essa relação
já discutida por outros autores como fica claro nesta citação de Svare: Ainda mais significativo é o número de declarações através das quais Kant afirma sua admiração por Rousseau. Um exemplo pode ser encontrado em seu anúncio escrito pouco depois de ter lido o Emílio. Kant anuncia que em suas próximas palestras sobre ética, ele irá proceder de acordo com o método pelo qual o homem é estudado, não nas variadas formas as quais suas circunstancias acidentais o tenham modelado, nem na forma distorcida em que mesmo os filósofos tenham quase sempre mal o interpretado, mas concentrando-se sobre aquilo que é permanente na natureza humana. Kant fala que esta nova abordagem é a “brilhante descoberta de nosso tempo, que, quando considerada em seu esquema completo era completamente desconhecida para os antigos”. (SVARE, 2006, p. 93, tradução nossa).
Então, o que realmente Kant buscava ao ler Rousseau? Ou como prefere Cassirer (2007,
p. 158, tradução nossa) “que pontes caberia traçar entre ambos? ” Sua resposta a esta questão é
que Kant
Considera a teoria de Rousseau não como uma teoria do ser, mas do dever ser, não como uma descrição do acontecido, mas como uma expressão do exigido, não como uma retrospectiva eleita, mas como uma preditora prospectiva. Esta aparente retrospectiva deve servir – segundo ele – para que os homens se preparem para o futuro e para torna-los capazes de dirigir esse futuro. Isso não deve afastá-los do trabalho em prol da cultura, mas deve mostrar-lhes o quanto há de aparente e superficial na exaltada cultura. Esta distinção permanece primordial para Kant e nela se baseia a autêntica ordem de valores da existência e da vida humanas. Para ele, as “virtudes” meramente sociais, por brilhantes que possam ser, nunca podem constituir o genuíno sentido da “virtude” por autonomia. “Toda virtude humana – escreve Kant em sua Antropologia – no trato social tem pouco valor; quem a toma por ouro autêntico é uma criança.” (CASSIRER, 2007, p. 168-169, grifos nossos, tradução nossa).
Cassirer traça uma hipótese através da qual presume um modo de leitura feito por Kant
da obra de Rousseau. Pensamos, que podem se encontrar aí os fundamentos da filosofia que
nos levam a compreender melhor as relações entre a filosofia pura e a filosofia prática de Kant.
Cassirer (2007) defende a tese de que a ética kantiana está fundada na verdadeira dignidade do
ser e tem sua origem nesta perspectiva rousseauniana que foi tomada pela maioria como fonte
de críticas ao filósofo genebrino (a polêmica da contradição entre estado de natureza X
sociedade do contrato civil). Talvez seja Kant o primeiro que tenha feito justiça a este traço do pensamento de Rousseau ignorado inclusive por seus seguidores. Rousseau assegura mais de uma vez em seus escritos, tanto em suas Confissões como em sua
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correspondência, seu amor pelos seres humanos, mesmo quando parecia evita-los ou distanciar-se deles. (CASSIRER, 2007, p. 170, tradução nossa).
Ou seja, a crença de Rousseau na condição humana de fazer o melhor, de estar voltada
para o bem, pode ter sido o que ensejou Kant a elaborar uma filosofia moral pautada na Boa
Vontade, “vontade apta a dar a si própria a lei de seu agir independentemente de qualquer
móbile sensível, não querendo nada mais senão a forma pura de sua própria legislação”
(VAYSSE, 2012, p. 78).
Mas, em Kant, como veremos melhor ao longo do desenvolvimento desta tese, o uso
desta Boa Vontade está atrelado ao exercício da razão. Portanto, a primazia da razão será uma
prerrogativa kantiana. Apenas a partir de Kant a razão ocupará a cena da modernidade impondo-
se e, assim “o que doravante se espera da ciência é o estabelecimento de leis das ações que
definam a natureza como elemento de investigação, não por uma espécie de adivinhação, mas
por um conhecimento claro e distinto.” (MENEZES, 2000, p. 89).
A Revolução Francesa, filha do Iluminismo, foi o marco político que caracterizou este
novo modo de ser e de pensar o mundo como dissemos no início destas discussões. Uma nova
axiologia se fundava quando a Bastilha caiu.
Percebida aos olhos dos contemporâneos por seu caráter inexorável, incontido, torrencial e, fundamentalmente, irresistível, a Revolução Francesa teve, àquela época, a tarefa de recriar o próprio significado do termo revolução. Se, antes dela, este remetia-se a uma metáfora astrológica pelo movimento regular da órbita dos astros, foi na noite de 14 de julho que, segundo Hanna Arendt, a notícia da queda da Bastilha transmitida ao rei evidenciou a nova acepção então forjada. Do diálogo entre o rei e o mensageiro, a interpretação da autora: “o rei, segundo consta, exclamou: ‘C´est une révolte’; e Liancourt corrigiu-o: ‘Non, Sire, cést une révolution’. Ouvimos ainda a palavra – e politicamente pela última vez – no sentido da antiga metáfora, que transfere do céu para a terra o seu significado; mas aqui, talvez pela primeira vez, a ênfase deslocou-se inteiramente do determinismo de um movimento giratório cíclico para sua irresistibilidade. (BOTO, 1996, p. 80).
Nesta perspectiva o homem emerge como ser esclarecido capaz de libertar-se dos
grilhões da superstição e do misticismo que até então o aprisionavam. “A crença na instauração
radical de um novo começo estava [...] expressa tanto nas vozes da Revolução Francesa quanto
no juízo dos primeiros teóricos que se debruçaram sobre o tema” (BOTO, 1996, p. 81). Os
iluministas, ao proclamarem a supremacia da racionalidade humana, a transformaram numa
espécie de juiz que deve conduzir o homem a alcançar sua maior empreitada: tornar-se senhor
de si mesmo.
Uma nova filosofia também viria a se constituir a partir deste conjunto de
transformações.
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A filosofia do século XVIII está, em todas as suas partes, vinculada ao exemplo privilegiado, ao paradigma metodológico da física newtoniana; mas logo sua aplicação foi generalizada. Não se contenta em compreender a análise como a grande ferramenta intelectual do conhecimento físico-matemático e vê aí o instrumento necessário e indispensável de todo o pensamento em geral. Em meados do século, o triunfo de tal concepção já está assegurado. Se é verdade que certos pensadores e certas escolas divergem em seus resultados, há, não obstante, uma concordância unânime quanto a essas premissas da teoria do conhecimento. O Tratado de metafísica, de Voltaire; o “Discurso preliminar” da Enciclopédia, de D´Alembert; e As investigações sobre a clareza dos princípios da teologia e da moral, de Kant, falam a esse respeito a mesma linguagem. (CASSIRER, 1992, p. 30-31).
O “ambiente das Luzes” é o berço para a formulação kantiana de uma filosofia na qual
a razão confere ao homem uma posição soberana e torna possível a sua emancipação e
autonomia. Segundo Vincenti (1994, p. 13) “[...] devemos voltar a Kant, e principalmente para
o opúsculo Resposta à questão: o que são as Luzes? para definir esse espírito das Luzes [...]
[que segundo ele, contempla o elemento principal que] consiste na posição de uma íntima
relação entre saber e liberdade.”
O opúsculo ao qual Vincenti (1994) refere-se que também se traduz sob o título Resposta
à pergunta: O Que é “Esclarecimento”?7 - publicado em 1783, é um texto no qual Kant atribui
ao homem, dotado de razão, a responsabilidade pela saída de seu estado de menoridade. A partir
desta premissa toda discussão sobre a moralidade em Kant está atravessada por esse nexo no
qual o sujeito ganha estatuto de maioridade e isso é o que caracteriza a modernidade sendo o
que nos interessa sobremaneira em Kant e na Aufklärung. É inicialmente por um desenvolvimento do saber, pela utilização de seu discernimento, que o homem pode libertar-se de seus “tutores”, “sair de sua minoridade” e realizar assim a primeira parte da definição das Luzes. Porém, se a utilização de seu discernimento envolve uma libertação, essa utilização, ela mesma, pressupõe um ato de liberdade: liberdade quanto à forma – é de seu próprio discernimento que se trata de fazer a utilização; devemos portanto, livrar-nos de qualquer “orientação estranha” – e liberdade quanto ao conteúdo, na utilização pública de sua razão, ou seja, na utilização que possamos fazer dela diante de todo o público sábio – utilização pública que Kant opõe à utilização privada que cada um efetua ao preencher sua função. (VINCENTI, 1994, p. 13).
Concordamos com Vincenti (1994) que o texto é a referência para o uso da razão no
domínio público. Mas, quando Kant escreveu Resposta à pergunta: O Que é “Esclarecimento?
não apenas adentrava ao debate público em torno da questão central do Dezoito – defendendo
7 Optamos por essa tradução tendo em vista compreendermos, a partir das discussões de Reinhart e já expostas nesta seção, que, na Alemanha, o movimento toma as feições da Aufklaärung traduzindo por Esclarecimento e não Iluminismo.
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a liberdade e a saída de um estado de menoridade no qual o homem dependia de um tutor –
principalmente no que tange aos aspectos religiosos e políticos. Kant apresentava uma filosofia
que viria a consolidar o lugar do sujeito no mundo. Anunciava o que, mais tarde, sua
Antropologia iria confirmar e já firmava então as bases para um projeto de educação moral no
qual considera a humanidade como propensa à moralidade e a razão como característica que se
apresenta em cada indivíduo e o torna capaz de conduzir-se autonomamente. O homem (homo phaenomenon) depende de determinações naturais e sensíveis, enquanto a humanidade (homo noumenon) é personalidade independente dessas condições. A educação cabe desvendar o caminho entre o homem e a humanidade que se reitera em cada criança. Desse modo, a criança aprende que tem muito mais que um preço: uma dignidade. Saberá confrontar-se com esse ideal de humanidade como “critério de apreciação de si mesma”. A educação supõe a falta de coincidência entre o homem e a humanidade, o fato e a ideia, e uma prática sistemática de redução dessa diferença, pois cada um leva na alma a ideia de humanidade como modelo de suas ações. A teoria kantiana da educação se baseia, então, em uma antropologia filosófica centrada na ideia do homem e os fins essenciais da razão humana. (VANDERWALLE, 2004, p. 16, tradução nossa).
A razão ganha destaque na filosofia kantiana não apenas porque ela pode ser o meio de
conquistar as Luzes, mas, principalmente porque sendo uma característica da espécie humana
assegura o Esclarecimento e um fim último que conduz ao progresso da espécie. Neste
opúsculo, texto central para a filosofia crítica, Kant foi muito além da resposta à pergunta do
pastor Zölnner8. Nele estão as bases para a elaboração do princípio de autonomia que sustenta
toda sua filosofia moral. O convite lançado ao homem, convocando-o à ousadia de fazer sua
própria história está expresso no lema: “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio
entendimento” (KANT, p. 100, 1985).
Mas, as bases para a formulação do conceito de autonomia, segundo Höffe (2005),
também podem ser encontradas na filosofia de Rousseau.
O imperativo categórico nomeia o conceito e a lei sob os quais a autonomia da vontade se encontra; a autonomia possibilita cumprir as exigências do imperativo categórico. A ideia da auto legislação remete a Rousseau, que no Contrato Social (I8) diz que a obediência a uma lei dada por si mesmo é liberdade. Mas só Kant descobre pela primeira vez, no pensamento que
8 A razão porque o artigo de Kant inicie pela definição de Esclarecimento explica também seu título, a data a que este título faz referência e o contexto que lhe deu origem. Em setembro de 1783, J. E. Biester publicou sob pseudônimo um artigo no Mensário Berlinense, do qual era o editor, em que propunha abolir a exigência de que os matrimônios fossem sancionados pela Igreja. O argumento de Biester era simples: homens ilustrados poderiam perfeitamente dispensar o cerimonial religioso. Em artigo publicado no mesmo periódico em 5 de dezembro de 1783, J. F. Zöllner responde a Biester, pedindo cautela no assunto; afinal, dizia ele na conclusão do texto, nem se sabe ainda ao certo o que é Esclarecimento. Kant, dentre outros, decide entrar no debate com este texto, publicado em dezembro de 1784, juntamente com a resposta de outro célebre intelectual do período, M. Mendelssohn. (FIGUEIREDO, 2009, p. 407)
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Rousseau menciona mais episodicamente, o princípio fundamental de toda a Ética e fornece sua fundamentação. (HÖFFE, 2005, p. 216).
O princípio de autonomia formulado por Kant é herdeiro de um contexto no qual todas
essas transformações vinham se processando. E, ao conceber uma nova forma de pensar a
autonomia, pautada na liberdade e racionalidade humanas, Kant elabora o substrato de toda sua
filosofia a partir da qual cada sujeito pode se autolegislar fundando assim uma autonomia moral
que o liberta não só do ponto de vista político, mas também do jugo religioso.
A filosofia prática de Kant combina os dois aspectos da autonomia numa explicação da determinação da vontade. A sua posição emergiu da crítica a um certo número de perspectivas então predominantes. Estas incluíam a sua oposição pré-crítica às explicações de ação moral propostas pelas ideias perfeccionistas e radicais dominantes da escola wolffiana e pela teoria britânica – sua contemporânea – do senso moral; sua crítica aos apelos teológicos pietistas à vontade de Deus; e, finalmente, ao ponto de vista de Montaigne sobre a importância do costume na ação humana. Kant identificou mais tarde todas essas explicações como baseadas em “princípios heterônomos” e procurou desenvolver uma filosofia moral fundamentada num “princípio autônomo” de auto legislação. (CAYGILL, 2000, p. 42-43).
Portanto, só Kant promoveu essa autonomia, a qual Caygill refere-se, como sendo uma
possibilidade de discernir todas as formulações até então elaboradas daquela que ele viria
afirmar como sendo a saída verdadeira do estado de heteronomia. Ao conferir ao homem a
culpa pelo seu estado de menoridade Kant avança em relação à discussão da Aufklärung porque
extrapola o debate político e adentra um outro campo. Considera a humanidade que está em
cada sujeito que carrega em si as características de uma espécie! Atribui ao homem
características que tornam possível sair do estado de menoridade porque afirma que é possível
um estado de autonomia a partir do uso do entendimento humano – do qual todos os seres são
dotados – mas que nem todos lançam mão, segundo Kant, devido a preguiça e covardia.
A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto, de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. (KANT, 1985, p. 100).
Convém destacar que Kant sublinha que há uma “direção estranha” da qual os homens
precisam libertar-se. Essa passagem nos é cara pois nela encontra-se a tensão entre a
heteronomia que é justamente esta “direção estranha”, direção alheia, que vem do outro, e a
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autonomia que já era tomada como certa no ambiente das Luzes, que diz respeito à possibilidade
de o homem dirigir sua própria vida fazendo uso de sua razão devido a sua naturalitter
maiorennes.
Em contraposição à maioridade (que é natural e esperada) a menoridade é uma condição
que pode ser auto-imposta (covardia e/ou falta de coragem para sair desse estado) ou passageira
e relacionada à imaturidade. Mas, em sendo uma ou outra, a causa da menoridade, o certo é
que, segundo Kant, não nascemos prontos, precisamos de alguém que nos ajude a transpor esse
momento inicial caracterizado pela insuficiência do ser.
Em Kant, a saída encontrada para a emancipação é a educação e por educação Kant
entende um projeto novo no qual estas características possam vir a ser desenvolvidas. O homem esclarecido é aquele autônomo, capaz de guiar-se a si mesmo, mas que precisa conviver com outros homens, precisa ser educado. Nesse sentido, um projeto de emancipação e esclarecimento pede, fundamentalmente, uma ideia de educação e um projeto pedagógico que possam ser debatidos. [...]. Avesso a revoluções no campo político stricto sensu, Kant parece não recusá-las ao campo educativo; a urgência em suplantar “os velhos hábitos”, isto é, a erudição estéril do classicismo ou do sistema religioso de ensino, possui sua base na crítica desferida à ausência, naqueles hábitos, do cultivo moral efetivo, dito de outra forma, do preparo, pela educação, à autonomia do homem. Uma nova escola e uma nova educação são, consequentemente, reclamadas. (MENEZES, 2014, p. 121).
Como afirma León (apud ARAMAYO, 2007, p. 17, tradução nossa), Kant é: “o
campeão da primazia da razão prática, o único moralista absoluto que o século XVIII produziu”.
Aquele que tomou a moralidade como uma decorrência da capacidade do próprio homem se
autolegislar fazendo uso de sua razão. “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa
sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT, 2011, p.
51). Este é o imperativo categórico. Ele se pauta no princípio de uma razão pura e,
simultaneamente, evoca uma legislação universal, que resulta da possibilidade do homem
pensar a moralidade. Ao talhar os conceitos de razão pura e razão prática, Kant concede-nos a
possibilidade de “pensar” a moral e, concebê-la como resultante da construção de uma ação
racional e social. E aí está a importância da educação como via para a constituição sócio moral
em Kant.
Se o homem conhece, pela razão pura, importa sobretudo saber o que fazer desse conhecimento no seu encaminhamento moral, orientado pela razão prática. Para tanto, ele precisa do concurso geral. De maneira isolada, o indivíduo não conseguiria fazê-lo, porque a moral pressupõe, necessariamente, uma ação na qual o outro é envolvido de modo direto ou indireto. (MENEZES, 2010, p. 206).
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A razão prática está relacionada às leis, aos princípios, às regras válidas para todos os
seres racionais, tornando-se assim a pedra de toque de sua Filosofia Prática e transformando
“[...] a ética kantiana, enquanto ética finita, [em] uma ética autônoma, adversa a perfeições
fictícias [...]” (ROHDEN, 2011, p. XXVI) e, por isso uma ética atrelada à possibilidade de
refletir sobre a moral como princípio educativo.
A educação prática ou moral refere-se ao modo como o homem deve ser cultivado a fim de que possa viver na condição de um ser livre. Ela é uma educação tendente à personalidade, educação de um indivíduo por natureza livre e podendo se bastar; membro da sociedade, mas, também dono de um valor interno. (MENEZES, 2005, p. 20).
Tudo isso que foi possível a Kant sintetizar, temos que reconhecer, já estava em germe,
presente desde o século XVII, quando teve início uma reflexão acerca da moralidade numa
mesma perspectiva - da racionalidade e da autonomia – e, admitimos, que desde então, já se
formava um substrato teórico que o Iluminismo aprofundaria, e seria, mais tarde, utilizado por
Kant.
Poderíamos dizer que Kant aproxima-se de Locke neste sentido, ao pensar uma
moralidade prática. E, apesar de, em sua filosofia, a moralidade adquirir o estatuto
transcendental ao derivar-se da razão pura, há também um lugar destinado à experiência.
A arte da educação, para Kant [...] deve sim ser uma arte raciocinada (judiciös), ou seja, obedecer a um plano. A finalidade deste plano, para ele, é, portanto, a autonomia, mas o “meio” de promovê-lo é a “experiência”. A experiência (assim como a disciplina), no âmbito pedagógico kantiano, deve ser compreendida em seu sentido metodológico, principalmente devido às suas principais influências neste campo: Locke, Rousseau e Basedow; mas não se restringi somente àquele sentido. (LIMA, 2013, p. 23).
Para Locke, a diferença entre os homens ocorre em função das experiências
vivenciadas. “É daí que nasce a grande diferença entre os homens. As mais pequenas e
insensíveis sensações que recebemos na infância têm consequências muito significativas e
duradouras.” (LOCKE, 2012, p. 57-58). Ele, inclusive, compara o curso da vida humana com
o curso dos rios em função das alterações que o meio pode promover. Acontece aqui o mesmo que sucede nas fontes de alguns rios, onde uma hábil aplicação da mão altera as águas flexíveis por canais que as fazem tomar um rumo completamente contrário. E devido a esta direção que se lhes dá na fonte, recebem diferentes tendências e alcançam lugares longínquos e distantes. Creio que o espírito das crianças toma este ou aquele rumo tão facilmente quanto a água. (LOCKE, 2012, p. 58).
Talvez toda a influência de Locke sobre Kant apareça em seu sistema crítico na parte
destinada às discussões acerca da razão prática e operacionalizada através da arte de educar.
Mas, em Kant, é o homem, racional, detentor de uma razão pura, que está apto ao exercício de
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sua autonomia moral que atravessa essas experiências. Não é uma tábula rasa. Esta
especificidade o torna contrário a Locke em alguns momentos.
A moral kantiana tem seu fundamento último na teoria do conhecimento, na Crítica da razão pura. Kant foi uma testemunha descontente da arremetida contra a metafísica que começa com Locke e terminava, então, com Hume. “Parece quase digno de riso” escreve, “que enquanto todas as ciências progridem incessantemente, a que representa a própria sabedoria, cujo oráculo todos os homens consultam, dê voltas sempre na mesma direção, sem poder avançar um passo.” (ENGUITA, 2013, p. 9, tradução nossa).
Epistemologicamente, Kant e Locke se opõem. Ao tratar destas questões na Crítica da
Razão Pura, Kant já havia deixado aberta a porta que nos levaria a contextualizar as propostas
de educação contidas em sua Pedagogia.
2.2 ESTÉTICA TRANSCENDENTAL: A REVOLUÇÃO COPERNICANA
É preciso considerar primeiro um Kant que nos deixou uma Teoria do Conhecimento
para depois compreender suas preleções ministradas em Königsberg. Na Estética
Transcendental, texto a partir do qual Kant discute as condições do conhecimento e as
possibilidades de conhecer, é possível compreender como a razão é o sustentáculo para uma
filosofia moral kantiana e, posteriormente, para sua Pedagogia. Compreender a diferença entre
conhecimento puro e conhecimento empírico é o primeiro passo para alcançar o que vem a ser
a filosofia pura e a filosofia prática, porque, como pretendemos mostrar, não se trata de fazer
uma separação entre a razão e a empiria, mas, no plano de uma filosofia prática, contemplar a
perspectiva do imperativo categórico, ou seja, partir do princípio de que temos, enquanto
espécie humana, a possibilidade de nos autolegislar, porque “a razão pura é por si só prática e
dá (ao homem) uma lei universal, que também chamamos de lei moral” (KANT, 2011, p. 53).
Na Introdução da Crítica da Razão Pura, quando Kant se dedica a estabelecer a
diferença entre conhecimento puro e conhecimento empírico, ele anuncia a principal pergunta
da Estética Transcendental: “[...] haverá um conhecimento assim, independente da experiência
e de todas as impressões dos sentidos?” (KANT, 2001, p. 63). Essa pergunta nos remete a outra:
O que Kant queria com sua Crítica da Razão Pura? Sabemos a resposta à qual o filósofo nos
conduz: demonstrar que a sensibilidade e o entendimento complementam-se para que possa
surgir um conhecimento objetivo. Mas entendemos que é necessário mostrar o percurso
epistemológico que fez para chegar a esta conclusão. Isso, sem dúvidas, nos ajudará a constituir
um determinado modo de ler suas preleções Sobre a Pedagogia. Porque, ao compreendermos
sua epistemologia, poderemos extrair dela as bases para a compreensão de sua Pedagogia não
como uma síntese de ideias rousseanianas mas como um avanço destas ideias.
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Para obter a resposta à pergunta acerca de se pode existir um conhecimento que
independe da experiência e das impressões de todos os sentidos Kant vai se ocupar da
elaboração de conceitos e articulá-los construindo uma teia entre eles. A Estética
Transcendental, definida pelo filósofo como “uma ciência de todos os princípios da
sensibilidade a priori” (KANT, 2001, p. 88) é a porta de entrada para conhecermos a teia
kantiana que se expressa numa teoria do conhecimento.
A primeira e mais básica conceituação dada por Kant é uma distinção entre o que vem
a ser a um conhecimento a priori e a posteriori, ele diz: “[...] designaremos [...] por juízos a
priori, [...] aqueles em que se verifica absoluta independência de toda e qualquer experiência.”
(KANT, 2001, p. 63).
Em seguida, ele se ocupará de nos mostrar se estes juízos a priori existem. Para tanto,
estabelece dois critérios que os juízos a priori devem contemplar: necessidade e
universalidade.
Para atender ao primeiro critério – necessidade – e ser classificada como um juízo a
priori, uma proposição deve satisfazer as seguintes condições: “se encontrarmos uma
proposição que apenas se possa pensar como necessária [...] se, além disso, essa proposição não
for derivada de nenhuma outra, que por seu turno tenha o valor de uma proposição necessária,
então é absolutamente a priori.” (KANT, 2001, p. 64).
Quanto à universalidade, diz Kant (2001, p. 64): “se um juízo é pensado com rigorosa
universalidade, quer dizer, de tal modo que nenhuma exceção se admite como possível, não é
derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori.”
Até aqui temos: uma proposição a priori não pode ser derivada de nenhuma outra, e
também precisa ser universal, ou seja, não admitir nenhuma exceção.
E, como poderíamos atribuir universalidade a um juízo? Com este questionamento tem
início a arguta capacidade de Kant ao tecer sua teia epistemológica. Ele explica que a partir da
universalidade empírica, pode-se transferir para a totalidade dos casos (e assim se atribuir a
característica de universalidade) àquilo que foi observado na maioria. Ou seja, uma capacidade
de generalização (que é própria do entendimento) sustentaria a tese de universalidade de uma
proposição (mas, não de uma proposição a priori) a partir de uma observação empírica como
no exemplo da seguinte proposição: “todos os corpos são pesados” (KANT, 2001, p. 64).
Ninguém pode discordar disto. A empiria demonstra o peso do corpo 1, corpo 2, corpo 3, etc.,
e a generalização se faz a partir da razão ao tratar os dados obtidos da empiria permitindo
afirmar que o corpo “N” também tem um peso. Assim, chegamos, pela via do entendimento,
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usando nossa capacidade de generalização, à possibilidade de atribuir universalidade a um
juízo.
Mas, para Kant, a rigorosa universalidade (aquela que diz respeito aos juízos a priori)
está além disto. Seguindo com sua reflexão ele acrescenta: “Em contrapartida, sempre que a um
juízo pertence, essencialmente, uma rigorosa universalidade, este juízo provém de uma fonte
particular do conhecimento, a saber, de uma faculdade de conhecimento a priori.” (KANT,
2001, p. 64).
Ou seja, a “rigorosa universalidade”, para Kant, não pode ser reconhecida num contexto
de generalizações feitas a partir de dados empíricos e de nosso entendimento. Só pode ser
tomado como rigorosamente universal, aquele conhecimento que não se constituiu a partir da
empiria. “A experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e
rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução).” (KANT, 2001, p. 64).
Esta argumentação, que parece ir na contramão daquilo que Kant quer provar, apenas
serve para ele enfatizar sua tese: nossa capacidade de emitir juízos não está vinculada a empiria.
Por isso, ele segue desafiando-nos a encontrar uma situação na qual não precisaríamos da
empiria para emitir um juízo.
Deste ponto em diante Kant se ocupa de mostrar como pode se constatar a existência
destes conhecimentos a priori. É fácil mostrar que há realmente no conhecimento humano juízos necessários e universais, no mais rigoroso sentido, ou seja, juízos puros a priori. Se quisermos um exemplo, extraído das ciências, basta volver os olhos para todos os juízos da matemática. (KANT, 2001, p. 65).
Num primeiro momento ele faz uso de um silogismo argumentando ser o conhecimento
matemático, por contemplar os critérios de universalidade e necessidade, um juízo a priori.
Depois ele lança mão de uma outra estratégia cognitiva mais elaborada, se contrapondo
a Hume. se quisermos um exemplo, tirado do uso mais comum do entendimento, pode servir-nos a proposição, segundo a qual todas as mudanças têm que ter uma causa. Neste último, o conceito de uma causa contém, tão manifestamente o conceito de uma ligação necessária com um efeito e uma rigorosa universalidade da regra, que esse conceito de causa totalmente se perderia, se quiséssemos derivá-lo, como Hume o fez, de uma associação frequente do fato atual com o fato precedente e de um habito daí resultante (de uma necessidade, portanto, apenas subjetiva) de ligar entre si representações. (KANT, 2001, p. 65).
Aqui, Kant se opõe a Hume, trazendo o núcleo central de suas divergências teóricas, a
questão da causalidade, pois este é o debate entre empiristas e racionalistas na época em
39
questão. Kant argumenta considerando que o conceito de causa não é derivado de nenhum fato
pois ele contém “uma ligação necessária” intrínseca, desta mudança. Logicamente Kant está
defendendo a perspectiva de um juízo a priori. Para Hume, a causalidade é empírica.
Por último Kant argumenta em defesa dos juízos a priori alegando a impossibilidade de
ir adiante em relação ao conhecimento caso adotássemos a postura cética de Hume, pois, “onde
iria a própria experiência buscar a certeza de todas as regras” se não se pudesse lançar mão de
uma capacidade de conhecer que é intrínseca ao homem?
Poder-se-ia também demonstrar, [...] a realidade de princípios puros a priori no nosso conhecimento, que estes princípios são imprescindíveis para a própria possibilidade da experiência, por conseguinte, expor a sua necessidade a priori. Pois onde iria a própria experiência buscar a certeza, se todas as regras, segundo as quais progride, fossem continuamente empíricas e, portanto, contingentes? Seria difícil, por causa disso, dar a essas regras o valor de primeiros princípios. Neste lugar podemo-nos bastar com ter exposto, a título de fato, juntamente com os seus critérios, o uso puro da nossa capacidade de conhecer. (KANT, 2001, p. 65).
Portanto, desde estas primeiras manifestações do pensamento kantiano constatamos sua
defesa do uso da razão pura. Vemos que ele contestou toda implicação empírica e definiu o a
priori não como o uso do entendimento a partir de generalizações que as observações empíricas
possibilitam, mas sim, a partir do estabelecimento de uma relação lógica entre causa e efeito:
“o conceito de uma causa contém, tão manifestamente o conceito de uma ligação necessária
com um efeito”. Assim, ao repensar esta relação entre antecedente e consequente ele rebate o
pensamento de Hume.
Mas Kant não se satisfaz apenas com essas argumentações. Na sequência ele lança mão
de mais uma estratégia visando demonstrar o uso puro de nossa capacidade de conhecer. Ele
afirma que esta capacidade de conhecer a priori também se manifesta em alguns conceitos. Vai
tratar então de demonstrar como o conceito de espaço é um a priori. Nos convoca a eliminar
do nosso conceito de experiência de um corpo tudo que nele é possível eliminar, por ser
empírico, ou seja, estar atrelado aos nossos sentidos: “a cor, a rugosidade ou a macieza, o peso,
a própria impenetrabilidade” (KANT, 2001, p. 65). Em seguida afirma: “restará, por fim, o
espaço que esse corpo (agora totalmente desaparecido) ocupava e que não poderei eliminar.”
(KANT, 2001, p. 65). Então chega à seguinte conclusão sobre o espaço: “Obrigados pela
necessidade com que este conceito se vos impõe, tereis de admitir que tem a sua sede a priori
na nossa faculdade de conhecer.” (KANT, 2001, p. 65).
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É desta maneira que Kant concebe espaço como um a priori convocando-nos a segui-
lo em seus exercícios de pensar os objetos e as coisas que nos cercam a partir desta categoria.
Mais adiante, dedicará uma parte de sua Crítica para aprofundar as discussões sobre espaço.
Kant afirma que somos capazes de fazer juízos analíticos e juízos sintéticos.
Inicialmente traça uma definição para juízos:
Em todos os juízos, nos quais se pensa a relação entre um sujeito e um predicado (apenas considero os juízos afirmativos, porque é fácil depois a aplicação aos negativos), esta relação é possível de dois modos. Ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido (implicitamente) nesse conceito A, ou B está totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele. (KANT, 2001, p. 68-69).
Ao definir critérios, a partir dos quais poderemos classificar os juízos, em sintéticos ou
analíticos, elege uma característica que deverá servir para distingui-los: “No primeiro caso
chamo analítico ao juízo, no segundo, sintético” (KANT, 2001, p. 69).
Ou seja, no primeiro caso estão aqueles cujo predicado pertence ao sujeito, são os juízos
analíticos, e, no segundo, estão aqueles cujo predicado está fora do sujeito, são os juízos
sintéticos. O critério de distinção está respaldado nas operações de análise e síntese. Para nós
isto é relevante pois temos aí uma convocação aos elementos de nossa cognição. É o sujeito
que irá, ao exercitar o pensamento, definir se um juízo é sintético ou analítico. Quando o
predicado pertence ao sujeito e já está contido nele, para identificarmos este tipo de juízo
precisamos lançar mão da operação cognitiva chamada análise. Decompondo os elementos de
um objeto. Kant (2001, p. 69, grifo nosso) afirma que nesse caso “a ligação do sujeito com o
predicado é pensada por identidade”. Grifamos o vocábulo “pensada” porque torna-se
necessário empreender um esforço mental para identificar essa relação de continência. Cremos
que também, por este motivo, Kant os nomeia como juízos explicativos. O ser cognoscente
analisa e vê que há uma relação entre sujeito e predicado e que o predicado pertence ao sujeito.
Vejamos a própria exemplificação feita por Kant da operação cognitiva de decomposição que
caracteriza esta análise: Quando digo, por exemplo, que todos os corpos são extensos, enuncio um juízo analítico, pois não preciso de ultrapassar o conceito que ligo à palavra corpo para encontrar a extensão que lhe está unida; basta-me decompor o conceito, isto é, tomar consciência do diverso que sempre penso nele, para encontrar este predicado; é, pois, um juízo analítico. (KANT, 2001, p. 69).
De modo oposto, quando um juízo é considerado sintético Kant afirma que o predicado
“está totalmente fora do conceito [...] embora em ligação com ele” (KANT, 2001, p. 68). Como
se daria esta ligação? Não mais por identidade e sim por acréscimo de uma característica que
não está contida nele, portanto está fora dele. Por isso são chamados de
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[...] juízo extensivos; porque naqueles [os juízos analíticos] o predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito e apenas pela análise o decompõe nos conceitos parciais, que já nele estavam pensados (embora confusamente); ao passo que os outros juízos [os sintéticos], pelo contrário, acrescentam ao conceito de sujeito um predicado que nele não estava pensado e dele não podia ser extraído por qualquer decomposição. (KANT, 2001, p. 69).
Portanto, se do próprio juízo não pode ser extraída por decomposição essa relação, só
podemos estabelecer a relação entre ambos por uma operação cognitiva de síntese, reunindo
elementos que estão em um e em outro. “Quando digo que todos os corpos são pesados, aqui o
predicado é algo de completamente diferente do que penso no simples conceito de um corpo
em geral. A adjunção de tal predicado produz, pois, um juízo sintético.” (KANT, 2001, p. 69).
E, desta forma, compreendemos que um juízo sintético é reconhecido a partir de uma operação
cognitiva: a síntese. É preciso salientar algo aí. O acréscimo foi feito porque operou-se uma
generalização a partir do pensamento, relacionando duas coisas em uma operação de síntese.
Além disso, Kant ainda argumenta: É, pois sobre a experiência que se funda a possibilidade de síntese do predicado do peso com o conceito de corpo, porque ambos os conceitos, embora não contidos um no outro, pertencem, contudo, um ao outro, se bem apenas de modo contingente, como partes de um todo, a saber, o da experiência, que é, ela própria, uma ligação sintética das intuições. (KANT, 2001, p. 69).
Aqui retomamos aquela questão da generalização empírica apresentada no início desta
exposição. Porque só posso dizer que todos os corpos são pesados a partir daquela generalização
empírica considerando que se o corpo 1 é pesado, o corpo 2 é pesado, o corpo N será pesado.
Mas, essa generalização decorre de dados empíricos.
Antes de seguirmos esta reflexão kantiana queremos salientar o que depreendemos até
este momento de sua exposição. O que nos importa não é, necessariamente, a defesa kantiana
da existência dos juízos a priori incluindo o espaço como um destes juízos, mas, a defesa
kantiana da possibilidade humana de conhecer fazendo uso de algo que não é empírico,
fazendo da razão um instrumento primeiro. Buscando formas de revigorar a ciência, a partir
da ressuscitação da capacidade do homem conhecer intrínseca a sua natureza, é isto o que afirma
o próprio Kant na abertura do item seguinte:
O que é mais significativo ainda [do que as precedentes considerações] é o fato de certos conhecimentos saírem do campo de todas as experiências possíveis e, mediante conceitos, aos quais a experiência não pode apresentar objeto correspondente, aparentarem estender os nossos juízos para além de todos os limites da experiência. (KANT, 2001, p. 66).
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Compreendemos que aqui está a grandeza do que Kant produziu, do ponto de vista
epistemológico. Um resgate de nossa intrínseca capacidade de pensar!
Assim, agora que estamos de posse dos elementos necessários para identificar juízos
analíticos e juízos sintéticos, vamos acompahar a próxima manobra kantiana ao definir juízos
sintéticos a priori. Ou seja, aqueles que independem da experiência (no caso, indenpendem
daquela generalização empírica). E, nesse ponto, nosso pensamento parece ter que se haver com
um nó expresso na contradição daquilo que até o momento o filósofo vinha nos explicando,
pois, se o juízo sintético é aquele cujo predicado está fora do sujeito (na experiência), como
pode ser a priori? Se o próprio Kant nos havia dito que a síntese se dá via experiência empírica
como ousa falar em síntese e a priori como condições simultâneas? Relembremos seu
posicionamento anterior:
É, pois, sobre a experiência que se funda a possibilidade de síntese do predicado do peso com o conceito de corpo, porque ambos os conceitos, embora não contidos um no outro, pertencem, contudo, um ao outro, se bem apenas de modo contingente, como partes de um todo, a saber, o da experiência, que é, ela própria, uma ligação sintética das intuições. (KANT, 2001, p. 70).
Vemos, a partir da citação, que os juízos sintéticos, caracterizados por esta adjunção,
contemplam essa possibilidade de síntese através da experiência. Por isso, inevitavelmente,
somos obrigados a questionar: existem juízos sintéticos a priori? Kant se faz a mesma pergunta:
“em que me apoio, o que é que tornará a síntese possível, já que não tenho, neste caso, a
vantagem de a procurar no campo da experiência?” (KANT, 2001, p. 71). E mais adiante
admite: “Ora o verdadeiro problema da razão pura está contido na seguinte pergunta: como são
possíveis os juízos sintéticos a priori?” (KANT, 2001, p. 75).
A partir deste ponto compreendemos o verdadeiro desafio ao qual o prussiano se propôs.
Levar a defesa da razão às últimas consequências! Daí o sentido mais profundo do título que
deu a sua obra – Crítica da Razão Pura. É a partir de tais questionamentos que Kant vai
desenvolver toda uma trajetória que funda a crítica da razão pura: De tudo isto resulta a ideia de uma ciência particular [que se pode chamar Crítica da razão pura]. [Porque] a razão é a faculdade que nos fornece os princípios do conhecimento a priori. Logo, a razão pura é a que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori. Um organon da razão pura seria o conjunto desses princípios, pelos quais são adquiridos todos os conhecimentos puros a priori e realmente constituídos. A aplicação pormenorizada de semelhante organon proporcionaria um sistema da razão pura. Como este sistema, porém, é coisa muito desejada e como resta ainda saber se também [aqui] em geral é possível uma extensão do nosso conhecimento e em que casos o pode ser, podemos considerar como uma propedêutica do sistema da razão pura, uma ciência que se limite
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simplesmente a examinar a razão pura, suas fontes e limites. (KANT, 2001, p. 79).
Vamos nos ater, a partir daqui, aos conceitos que nos ajudarão a compreender como a
razão se torna mestra, na filosofia crítica.
Chamamos atenção inicialmente para o deslocamento produzido por Kant, ao
transformar tudo aquilo que antes fora tomado como alvo de um ceticismo, ou limitado a ser
pensado apenas numa perspectiva teológica, em algo pensável a partir de uma elevação da razão
iniciando esta empreitada por uma nova conceituação do que vem a ser transcendental em sua
filosofia crítica. Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori. Um sistema de conceitos deste gênero deveria denominar-se filosofia transcendental. (KANT, 2001, p. 79).
Assim transcendental torna-se um adjetivo que não mais está atrelado à imanência e
liga-se a filosofia constituindo-a como um sistema de conceitos, como uma teoria do
conhecimento “que decide do valor ou não valor de todos os conhecimentos a priori” (KANT,
2001, p. 79). Nesta forma de ler a Crítica, até mesmo a palavra utilizada torna-se uma estratégia
em defesa da capacidade do pensamento humano e, em suas últimas consequências, em defesa
da Metafísica.
Desde o início de sua Crítica da Razão Pura as discussões apontam para a construção
de uma teoria do conhecimento. Kant abre sua Estética afirmando acerca do “modo e [...] meios
pelos quais um conhecimento se possa referir a objetos” (KANT, p. 87). E diz que a intuição
“fim para o qual tende, como meio, todo pensamento” só ocorre na medida em que o objeto nos
é dado. (KANT, 2001, p. 87). Portanto, sujeito e objeto estão em uma relação direta dentro da
perspectiva epistemológica de Kant. Para reforçar essa premissa inicial ele acrescenta:
Por intermédio, pois, da sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições; mas é o entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os conceitos. Contudo, o pensamento tem sempre que referir-se, finalmente, a intuições, quer diretamente (directe), quer por rodeios (indirecte) [mediante certos caracteres] e, por conseguinte, no que respeita a nós, por via da sensibilidade, porque de outro modo nenhum objeto nos pode ser dado. (KANT, 2001, p. 87).
Assistimos ao esforço repetitivo de Kant, como se estivesse dando voltas sobre um
mesmo modo de pensar, reafirmando-o com outras palavras, com o objetivo de enfatizar,
simultaneamente, a equivalência entre objeto do conhecimento e sujeito do entendimento como
se quisesse desfazer este imbróglio de uma vez por todas.
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Ele ainda lança mão de outra estratégia, elaborando novos conceitos que possam
conferir mais clareza ao seu enunciado epistemológico. Define sensibilidade como a
“capacidade de receber representações (receptividade), graças à maneira como somos afetados
pelos objetos”. E define sensação “efeito de um objeto sobre a capacidade representativa, na
medida em que por ele somos afetados” (KANT, 2001, p. 87). Ou seja, temos aqui,
reciprocamente, sujeito e objeto, mais uma vez, pois a sensibilidade está no sujeito enquanto
capacidade representativa e as sensações são possíveis apenas a partir da presença de um objeto
que nos afete.
A partir deste ponto Kant vai distinguir intuição empírica de intuição pura. A intuição
empírica é aquela “que se relaciona com o objeto, por meio da sensação” e “o objeto
indeterminado de uma intuição empírica chama-se fenômeno” (KANT, 2001, p. 87). Quanto
aos fenômenos, Kant diz serem constituídos de matéria e forma. A matéria é aquilo que “no
fenômeno corresponde à sensação” (KANT, 2001, p. 88). E a forma “possibilita que o diverso
do fenômeno possa ser ordenado segundo determinadas relações.” (KANT, 2001, p. 88). Kant
não explica quais são estas relações, mas, é possível depreender pela leitura do trecho seguinte
que está se referindo as relações de tempo e espaço. Vejamos: Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se podem ordenar e adquirir determinada forma, não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que, se a matéria de todos os fenômenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se a ela e, portanto, tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação. (KANT, 2001, p. 88).
Assim, segundo Kant, temos uma intuição empírica do objeto quando, por meio de nossa
sensibilidade, capacidade de receber representações, somos afetados por um objeto, que
provoca em nós alguma sensação. Neste caso, estamos lidando com o fenômeno no que diz
respeito a sua matéria, algo que nos é dado a posteriori. Porque está fora do sujeito. Mas, um
fenômeno não se constitui apenas de matéria. Para Kant, ele também é constituído de uma
forma. Esta forma é conquistada através de um modo de se ordenar as sensações, e, Kant
defende que essa ordenação só pode se dar a priori: “a forma deve encontrar-se a priori no
espírito pronta a aplicar-se a ela” – a sensação – e, se diz respeito à sensação, está claro porque
só pode ser considerada independentemente desta.” (KANT, 2001, p. 88).
Por este caminho reflexivo Kant define as intuições puras, dizendo-nos, nas entrelinhas,
que elas atuam no objeto das intuições empíricas, ou seja, no fenômeno. Quer dizer que, a forma
que um fenômeno adquiri, é dada por nós através de intuições puras com o propósito de ordenar
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as sensações que a matéria deste fenômeno nos provoca. Vejamos sua definição de intuições
puras:
Chamo puras (no sentido transcendental) todas as representações em que nada se encontra que pertença à sensação. Por consequência, deverá encontrar-se absolutamente a priori no espírito a forma pura das intuições sensíveis em geral, na qual todo o diverso dos fenômenos se intui em determinadas condições. Essa forma pura da sensibilidade chamar-se-á também intuição pura. (KANT, 2001, p. 88).
Assim Kant alcança seu objetivo em torno da questão acerca dos juízos sintéticos a
priori, pois, esta forma de ordenar as sensações, ainda que constituída a priori, se legitima por
adjunção quando o sujeito é afetado por um objeto que produz nele sensações. Por isso podem
ser chamados de sintéticos e a priori, a um só tempo.
Legitima-se, por conseguinte, a via a partir da qual constrói seu edifício epistemológico,
pois, todas as formas de obter conhecimento a partir da empiria foram isoladas “para restar
somente a intuição pura e simples, forma dos fenômenos, que é a única que a sensibilidade a
priori pode fornecer.” (KANT, 2001, p. 89).
Vemos, enfim, como Kant chegou ao seu objetivo último, e também cumprimos o nosso
objetivo, chegando ao final desta reflexão, atingindo-o, pois agora compreendemos como ele
chegou a sua definição de espaço como intuição pura, e, como em sua filosofia a primazia da
razão se estabelece.
Ao concluir a primeira parte de sua Estética Transcendental ele afirma: “Nesta
investigação se apurará que há duas formas puras da intuição sensível, como princípios do
conhecimento a priori, a saber, o espaço e o tempo, de cujo exame nos vamos agora ocupar.”
(KANT, 2001, p. 89, grifo nosso).
Também nós podemos concluir afirmando que, em Kant, as intuições puras são
capacidades ordenadoras das sensações, são competências intelectivas, assim como a
sensibilidade diz respeito a nossa capacidade de receber representações temos também as
intuições puras que as ordenam.
O próprio Kant questiona: Que são então o espaço e o tempo? São entes reais? Serão apenas determinações ou mesmo relações de coisas, embora relações de espécie tal que não deixariam de subsistir entre as coisas, mesmo que não fossem intuídas? Ou serão unicamente dependentes da forma da intuição e, por conseguinte, da constituição subjetiva do nosso espírito, sem a qual esses predicados não poderiam ser atribuídos a coisa alguma? (KANT, 2001, p. 90).
E responde:
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O espaço não é um conceito empírico, extraído de experiências externas. Efetivamente, para que determinadas sensações sejam relacionadas com algo exterior a mim (isto é, com algo situado num outro lugar do espaço, diferente daquele em que me encontro) e igualmente para que as possa representar como exteriores [e a par] umas das outras, por conseguinte não só distintas, mas em distintos lugares, requere-se já o fundamento da noção de espaço. Logo, a representação de espaço não pode ser extraída pela experiência das relações dos fenômenos externos; pelo contrário, esta experiência externa só é possível, antes de mais, mediante essa representação. (KANT, 2001, p. 90, grifo nosso).
Portanto, deixa claro que, essa intuição pura diz respeito a nossa capacidade de
representar e dar forma as sensações que obtemos a partir de nossa sensibilidade ao agir sobre
a matéria dos fenômenos.
Por fim, Kant não foge à responsabilidade de justificar como poderia ocorrer a
representação de uma realidade que está fora de nós e preceda aos próprios objetos. E afirma
que se trata de uma propriedade formal do sujeito. Mas como poderá haver no espírito uma intuição externa que preceda os próprios objetos e que permita determinar a priori o conceito destes? É evidente que só na medida em que se situa simplesmente no sujeito, como forma do sentido externo em geral, ou seja, enquanto propriedade formal do sujeito de ser afetado por objetos e, assim, obter uma representação imediata dos objetos, ou seja, uma intuição. (KANT, 2001, p. 93).
Todo esse percurso, feito até aqui, mostra como Locke, Rousseau e Kant tomam
diferentes posições epistemológicas. Mas todos eles são desbravadores de um caminho no qual
identificamos um momento inicial (em Locke) e o momento de síntese (em Kant) de um
percurso epistemológico que levou à superação das formulações teológicas acerca da moral. Deve se observar que não se trata de partir de uma natureza humana previamente estabelecida, mas de uma estrutura proposicional considerada como dada e a ser provada como válida, o resultado dessa prova mostrando a validez do ponto de partida. Tal coisa não poderia ser feita se partíssemos de uma natureza humana preestabelecida. Desse modo, Kant se orienta no sentido contrário ao de Locke (1980). As condições da sensibilidade e a espontaneidade do pensamento são, antes de qualquer coisa, ingredientes necessários do juízo. Isto é: servem como condições para provar a validade do juízo e sua exequibilidade, e só depois podemos dizer que constituem um aparelho cognitivo (racional e eventualmente humano). (PEREZ, 2014, p. 32, grifos nossos).
Essa distinção também se faz entre Kant e outros filósofos, como, por exemplo,
Descartes, que adotam uma lógica puramente cartesiana. Em Kant o criticismo se expressa
exatamente pela refutação desses extremos. Em Kant o homem pensa porque estabelece uma
relação com a realidade externa que se constitui como um dos elementos para a construção do
conhecimento.
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Assim como Descartes, Kant também adotou o enunciado “eu penso”, mas à diferença do seu predecessor dita proposição não é caracterizada como referida a uma substância (res) e sim concebida como a expressão da unidade lógica da consciência que deve poder acompanhar todas as minhas representações. Desse modo entendemos como é essencial a relação entre a unidade transcendental da consciência expressa no eu e a unidade sintética do objeto das minhas representações. Dito em outras palavras, a referência das representações não se dá senão com relação aos objetos (externos) de conhecimento cuja unidade é operada a partir do eu como função lógica. (PEREZ, 2014, p. 36).
Assim, as conclusões as quais chegamos depois destas incursões na Teoria do
Conhecimento de Kant, de igual forma, nos ajudam a compreender a sua formulação de uma
Teoria Moral pois, trata-se de uma mesma maneira de operar, filosoficamente falando. Trata-
se também de pensar nesta articulação de um dentro e um fora, se assim podemos designar ao
conceber essa analogia. Se comparado com sua revolução no campo do conhecimento teórico, caberia dizer que a descoberta, por parte de Kant, de um novo modo de enforcar e tentar solucionar o problema da liberdade e sua realização este pode ser descrito como uma segunda revolução copernicana, como disse Beck, entre outros. (MOLINA, 2014, p. 70, tradução nossa).
Quando Kant afirmou que a vontade não opera independentemente das condições
empíricas ele deixou aberto o caminho para pensarmos essa necessária relação entre a filosofia
pura e a filosofia prática. A razão prática que traz consigo o necessário submetimento do homem
às leis, regras e princípios morais, por sua vez, não pode operar sem considerarmos a Boa
Vontade, porque assim teríamos uma perspectiva heterônoma de moralidade.
Se todas as criaturas possuíssem um arbítrio unicamente sujeito a impulsos sensíveis, não existiria no mundo valor algum. Porém, o valor interno do mundo, o summum bonum, é a liberdade do arbítrio que não está inexoravelmente determinado a atuar. A liberdade é, pois, o valor do mundo interno. Mas, por outro lado, enquanto não seja restringida por certas regras condicionantes que a orientam, a liberdade é a coisa mais espantosa que se possa imaginar. (KANT, 2013, p. 70). 9
Na Filosofia Crítica, será o homem que, considerado livre, se autolegislará por força de
um componente que lhe é próprio como ser humano, considerando-se, portanto aí um a priori.
Mas, isso não quer dizer que não precisará ser educado para se tornar moral. Em Kant, será a
razão, e não mais uma força divina, que propiciará as bases para um comportamento moral.
9 Lições sobre Filosofia moral dos anos de 1784-1785. Kant, Moralphilosophie Collins, AA 27.1: 344-345. E depois agrega: “Se a liberdade não é restringida conforme a regras objetivas, se origina o maior cos imaginável. Se o homem não põe rédeas a seus ímpetos, bem poderia chegar a destruir tanto aos demais como a si mesmo e a toda a natureza. Em conformidade com o conceito de liberdade cabe pensar a maior irregularidade, quando esta não é contida objetivamente.”.
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Mas, o homem através do seu sentimento moral, daquilo que se situa nele como sujeito
pertencente a uma espécie humana, só pode dar forma ao que está externo a ele, ao ser afetado
pelos objetos e fenômenos, ao ordenar essas representações e construir uma moral autônoma. A vontade livre pode, então, tomar como objeto tudo o que for suscetível de preencher a forma pura, e então universal, de uma lei, observando a lei fundamental da razão pura prática: “Aja de tal foma que a máxima de tua vontade possa sempre valer simultaneamente como princípio de uma legislação universal. (KANT, 2001, p. 31).
O criticismo kantiano – submetendo a razão à crítica e relacionando a autonomia do
sujeito à razão pura prática - é a expressão da tão conhecida “revolução copernicana” que o
filósofo empreendeu.
Cremos que com a ajuda desta exposição demos a entender que está demarcado o campo
de investigação deste trabalho como aquele momento em que já havia se tornado possível uma
elaboração crítica conforme enfatiza o próprio filósofo.
A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião, pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame. (KANT, 2001, p. 31).
Enfim, o que pretendíamos foi a contento concluído. Mostrar como já vinha sendo
construído um substrato teórico e epistemológico que funcionaria como solo fecundo no qual
as ideias kantianas sobre educação e moralidade viriam mais tarde germinar.
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3 ESPECIFICIDADE DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO KANTIANO NO CONTEXTO MODERNO
Kant, Locke e Rousseau deixaram-nos escritos sobre a educação. Os escritos de Locke
e Rousseau precederam os de Kant e, certamente, os influenciaram. Ao retomar a
fundamentação epistemológica de cada um destes filósofos na seção anterior compreendemos
como se aproximam dentro do contexto moderno mas identificamos também suas
especificidades.
No que diz respeito à educação também veremos, nesta seção, que se aproximam e se
distanciam em suas particularidades. Vamos abordar o seu pensamento educacional por
entendermos que este pensamento reverbera no contexto do século XVIII e isso é o que os
aproxima.
As reflexões de cada filósofo acerca da educação influenciam seus sucessores. Assim,
é indiscutível a influencia de Locke sobre Rousseau e de Rousseau sobre Kant. Segundo
Morgado [...] Alguns Pensamentos sobre a Educação [obra de Locke] teria uma influência extraordinária no século XVIII, que reconheceu a obra como uma das grandes meditações sobre o tema da educação. Rousseau, no seu próprio livro sobre a educação, Émile, que foi talvez a mais influente obra sobre o tema no seu século, e que tanto furor causaria na sua época e depois dela, reconheceu precisamente esse lugar destacado que o opúsculo de Locke ocupava. Basta dizer que muitos dos pensamentos de Rousseau sobre a educação são desenvolvimentos próprios de problemas que fora Locke a levantar. (MORGADO, 2012, p. 12-13).
A citação de Morgado (2012) relaciona Locke e Rousseau e os destaca como
importantes pensadores da educação no contexto iluminista. Esta seria a razão pela qual
Rousseau retoma Locke em vários aspectos. Também quando se trata do opúsculo Sobre a
Pedagogia sabemos que Kant retoma Rousseau. Estas questões têm sido alvo de estudos que
ultrapassam a esfera das discussões em torno da influência de um sobre o outro e avançam numa
interpretação feita por alguns autores que chegam a entender que a Pedagogia de Kant não é
uma obra autoral e sim uma compilação de trechos do Emílio.
Em 2014, Bombassaro, Dalbosco e Hermann organizaram o livro intitulado Percursos
Hermenêuticos e Políticos no qual o professor Robinson dos Santos é autor do capítulo 11
apresentando-nos um texto que anteriormente já havia sido objeto de discussão, no ano de 2008,
durante o IV Congresso Sociedade Kant Brasileira realizado na PUC do Rio Grande do Sul e,
no ano de 2010, no Terceiro Colóquio do Centro de Investigações Kantianas realizado na
Universidade Federal de Santa Catarina. Neste texto cujo título é O Problema da Autenticidade
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das Preleções de Pedagogia de Kant, o professor retoma a já conhecida discussão acerca da
autenticidade do opúsculo Über Pädagogik, nono volume, da coletânea da Akademie-Ausgabe.
Segundo ele, uma das questões levantadas pelos filólogos diz respeito a estrutura do
escrito e a forma como foram organizadas as ideias de Kant. Mas, Santos (2014), a partir de
uma investigação filológica desenvolvida em 1970 por Traugott Weisskopf, intitulada
Immanuel Kant und die Pädagogik: Beiträge zu einer Monnographie (Immanuel Kant e a
Pedagogia: contribuições para uma monografia), põe em discussão o problema da gênese
(autoria) do opúsculo e não apenas a sua estrutura. Para isso, resgata uma tese defendida por
Weisskopf na qual, este último, afirma que Rink teria feito acréscimos desvirtuando e
pervertendo o texto e acrescentando o que seria de propriedade intelectual de Rousseau. Para Weisskopf está mais do que claro que este escrito compilado por Rink em 1803 é consideravelmente problemático. [...]. Para ele o escrito “Sobre a Pedagogia” é uma “compilação” (Kompilation) que teria sido construída a partir de passagens ou recortes de textos que originariamente teriam sido escritos em épocas diferentes e com objetivos diferentes. (SANTOS, 2014, p. 197).
Segundo Santos (2014), Weisskopf, em sua tese de doutorado, formula quatro hipóteses
e se dedica a examinar cada uma delas num trabalho que, ao final, apresenta uma extensão de
704 páginas. Apresentamos, a seguir, as hipóteses elaboradas pelo filólogo e elencadas no artigo
do professor Robinson dos Santos: 1. Primeira tese: “Partes do escrito Immanuel Kant sobre Pedagogia
pertencem a preleção de Kant sobre Ética; 2. Segunda tese: “Partes do escrito Immanuel Kant sobre Pedagogia
baseiam-se em esboços sobre Antropologia, respectivamente, na sua doutrina da observação (Beobachtungslehre);
3. Terceira tese: “Partes do escrito Immanuel Kant sobre Pedagogia baseiam-se em passagens do Emílio ou sobre a educação, de Rousseau;
4. Quarta tese: “O editor F. Th. Rink modificou estilisticamente quase todas as seções do escrito Immanuel Kant sobre Pedagogia e, na maioria dos casos também complementou o sentido e reuniu as diferentes partes num todo segundo sua própria intuição. (SANTOS, 2014, p. 197).
Ao final do trabalho, Weisskopf conclui que “O escrito Uber Pädagogik, [...] ‘não pode
ser visto como autêntico trabalho de Kant’, devendo, portanto, ser ‘excluído’ do conjunto de
suas obras’” (SANTOS, 2014, p. 198). No entanto, esta tese não é compartilhada pelo professor
Robinson dos Santos que, apenas a toma, para concordar com alguns elementos e, indicar os
limites desta abordagem apresentando suas objeções. Para ele
Há grande probabilidade de o texto Uber Pädagogik não ser um trabalho de autoria exclusiva de Kant. Isso não significa, todavia, que não possamos estabelecer um confronto com as passagens do texto que são propriedade intelectual de Kant e que podem ser identificadas por meio da comparação
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com outras obras. [...]. Por outro lado, ainda que descartássemos completamente este escrito, não teríamos como negar o interesse pedagógico que tem a obra de Kant. (SANTOS, 2014, p. 197).
Em sua análise Santos (2014), acredita que “as teses 1, 2 e 3 são consequentes na
medida em que indicam a existência de uma relação entre as observações sobre Pedagogia e as
ideias que aparecem nas preleções sobre Ética e Antropologia e também em passagens do
Emílio de Rousseau”.
De nossa parte há uma concordância com as conclusões esboçadas pelo professor
Robinson, até certo ponto, mas queremos avançar um pouco mais e ampliar esta discussão
mostrando que o que está registrado no opúsculo é suficiente para defendermos a tese de que
há uma Pedagogia Moral em Kant e que esta se apresenta, coerentemente como uma síntese
daquilo que ele ministrou em suas preleções, e está registrado no opúsculo Sobre a Pedagogia,
que, apenas se coaduna com Rousseau em certos pontos, e que há outros elementos que os
distinguem radicalmente. Além disso, os trechos que aparecem em Sobre a Pedagogia e outras
obras de Kant podem ser explicados pois, em se tratando de preleções, naturalmente Kant os
utilizou para coadunar e explicar sua proposta pedagógica.
Dois fatos arrolados por Santos (2014) também funcionam para nós como ponto de
partida para a defesa de tal argumentação. O primeiro diz respeito ao reconhecimento do
opúsculo como um texto originado de preleções, como já dissemos. Ou seja, trata-se de aulas
ministradas pelo filósofo e não de um texto que fora escrito com uma finalidade de se tornar
um Tratado sobre a educação. “Na época em que Kant lecionava, o conteúdo das preleções era
previamente determinado pelo departamento responsável pelo governo. Não era permitido,
portanto, que o docente expusesse sua própria obra como base para as preleções.” (SANTOS,
2014, p. 202). Ao nosso ver, essa informação nos permite inferir que Kant, durante as preleções,
fazia incursões no pensamento de outros autores, como Rousseau, por exemplo, tendo em vista
as suas escolhas e preferências. Todos sabemos que Kant era leitor de Rousseau. Já discutimos
essas relações que se pode estabelecer entre a teoria da moral kantiana e a tese de Rousseau
acerca do homem ser naturalmente bom. Claramente isso estabelece um elo inicial entre ambos.
Kant, sem dúvidas, fez de Rousseau um ponto de partida. E ao ministrar suas aulas deve ter
explorado este aspecto de sua Pedagogia partindo de observações que estão no Emílio.
Mas, nossa defesa em relação à autenticidade do opúsculo é ainda mais contundente
quando identificamos quais foram os textos eleitos por Kant para servir como obras de
referências para suas preleções. Segundo Louden (2011, p. 136) “Kant lecionou o curso quatro
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vezes: no inverno de 1776-1777, no verão de 1780, no inverno de 1783-1784 e no inverno de
1786-1787”. As escolhas dos manuais utilizados foram as seguintes:
Seu texto, a primeira vez que ofereceu o curso, foi Basedow´s Methodenbuch für Vater und Mütter der Familien und Völker (1770) (Livro metodológico para pais e mães de famílias e povos). Em 1774, sob o patrocínio do príncipe Friedrich Franz Leopold III de Anhalt-Dessau, Basedow fundou o Philanthropinum em Dessau, uma experiência educacional inspirada em Rousseau que Kant admirava muito. De 1780 em diante, Kant requereu o livro de seu antigo colega Friedrich Samuel Bock (1716-1785) Lehrbuch der Erziehungskunst zum Gebrauch für christliche Erzieher und künftige Jugendlehrer (1780) (Manual da arte de educação para o uso de educadores cristãos e futuros professores). (LOUDEN, 2011, p. 136).
Neste caso, essas escolhas já podem nos servir como argumentos para demonstrar que
Kant identificava-se com Rousseau, tendo em vista que escolhe um texto no qual se privilegia
um método dito rousseauniano. E, por isso, escolhe manuais de Basedow e Bock. “Entretanto,
de acordo com sua prática geral em relação à requisição de textos obrigatórios que era esperado
que todos os professores alemães seguissem naquela época, as notas de aula de Kant, não
seguiam nem Basedow nem Bock” (LOUDEN, 2011, p. 136). Ou seja, já desde a escolha destes
manuais Kant revela o que há de mais específico em sua filosofia, pois, ao identificar-se com
Basedow, Kant procura um caminho totalmente diferente daquele que foi traçado por Rousseau
e, ademais, mantinha sua liberdade de pensamentos. Por isso, argumentamos ainda, que, o fato
de utilizar estes manuais não significaria se ater a eles e deixar de introduzir suas próprias idéias
ao comentá-los pois, segundo Vanderwalle
Kant utilizava manuais que comentava em suas aulas, não sem transgredir sua ordem; assim ocorria com o Methodenbuch, de Basedow, criador do Philanthropinum de Dessau, e com o Lehrbuch der Erziehungskunst [“Manual de educação”] de Samuel Bock. (VANDERWALLE, 2004, p. 5, tradução nossa).
Portanto, o problema da autenticidade do opúsculo Sobre a Pedagogia, não chega até
nós como um problema relacionado à originalidade das ideias de Kant ali esboçadas e sim como
uma questão histórica que contempla muitos outros aspectos. Dentre eles este que pretendemos
explorar nesta seção. O da afinidade resultante do contexto histórico no qual as obras foram
produzidas.
Como vimos, as obras dos três filósofos têm pontos em comum. O que queremos então
é, seguindo os objetivos aos quais nos propomos nesta tese, mostrar que além destes pontos em
comum há uma pedagogia da educação moral em Kant e demarcar a sua originalidade.
Neste sentido, não se trata de continuarmos nessa seara recorrendo a elementos que
comprovem a autenticidade do texto, mas, de abrir aqui uma nova senda, que possa vir a mostrar
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a especificidade do pensamento educacional de Kant quando confrontado com o pensamento
educacional de Locke e Rousseau.
Ao estabelecer essa diretriz foi necessário definir um método através do qual
pudéssemos empreender as análises envolvendo os três escritos. Destarte, como nosso objetivo
é demonstrar a singularidade do pensamento pedagógico kantiano, partindo da premissa de que
o diferencial que Kant apresenta remonta à própria teoria crítica, resolvemos avaliar dois
aspectos: o conceito de educação que cada filósofo apresenta e as concepções que embasam as
práticas educativas sugeridas por eles. A comparação será feita a partir de três obras: Alguns
Pensamentos Sobre a Educação, de Locke, O Emílio ou da Educação, de Rousseau e Sobre a
Pedagogogia, de Kant.
3.1 O CONCEITO DE EDUCAÇÃO EM LOCKE, ROUSSEAU E KANT
Antes de escrever Alguns Pensamentos sobre a Educação Locke escreveu em 1690,
Ensaio Acerca do Entendimento Humano, e como vimos, lá está a base empirista que configura
sua filosofia. Sua proposta de educação está esboçada nestes dois grandes textos. Por isso, para
Morgado (2012, p. 15) “a doutrina geral de Locke teria de integrar os seus “pensamentos” sobre
a educação debaixo de uma mesma ‘estrela e bússola’: a razão”. Mas sabemos que esta razão é
a razão empirista, e, este é o mote a partir do qual Locke constrói seu Tratado sobre a educação.
A história desse Tratado é singular e é interessante nos reportamos a ela para
compreendermos a força com que se impõe no contexto histórico inglês. Segundo Enguita
(1986, p. 21, tradução nossa) Alguns Pensamentos sobre a Educação “têm uma longa história
com etapas diferenciadas. Sua base foram umas cartas escritas por Locke a seu amigo Edward
Clarke aconselhando-lhe sobre a educação de seu primogênito, nos anos de 1684-1686”. Sobre
este aspecto é importante comentar que não se pode desconsiderar o fato de que é um texto
escrito para o filho de um gentleman, mas ganha notoriedade no contexto iluminista por se
tornar a esperança de um método para educar. Locke abre o livro com uma carta dirigida ao
senhor Edward Clarke dizendo: Estes Pensamentos sobre a Educação, que agora damos a conhecer ao mundo, a si pertencem por direito próprio, porque para si foram escritos e endereçados há alguns anos; [...]. Mas houve pessoas, cujo julgamento me merece a maior deferência que me disseram estarem convencidas de que esta tosca dissertação poderia ser de alguma utilidade se fosse tornada pública; Este assunto é de tal forma importante, e um bom método de educação traz tantas vantagens que, se o talento respondeu aos meus desejos, nem teria precisado das exortações e das insistências de meus amigos. Contudo, a simplicidade deste escrito e a justificada desconfiança que me inspira, não devem impedir-me, por vergonha de fazer muito pouco, de contribuir com a minha pequena parte, já que nada
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mais me é pedido do que lançar as minhas ideias a público. (LOCKE, 2012, p. 51).
Locke lançou suas ideias a público e o livro teve uma primeira tiragem em 1693 “por
Mr. Awnsham Churchill, [numa versão] anônima e composta por 202 seções e 262 páginas”.
(ENGUITA, 1986, p. 22, tradução nossa). Posteriormente, as demais edições sofreram várias
alterações e “a quarta viria à luz em 1699, e, todavia, em 1704, ao morrer, Locke, não o fez sem
antes preparar, com leves ampliações, a quinta”. (ENGUITA, 1986, p. 22, tradução nossa).
Todas essas modificações e atualizações que o texto Aguns Pensamentos sobre a Educação foi
contemplando nos impelem a afirmar que a educação para Locke havia se tornado uma
prioridade em função da revolução econômica, política e social que o país vinha atravessando. A obra de Locke dedicada à educação, por outro lado, oferece também um significativo testemunho da evolução que se produziu na sociedade inglesa no curso do século XVII: uma evolução caracterizada por uma radical mudança econômica e política (que transformou a Inglaterra de estado feudal em monarquia parlamentar e de país agrícola em país direcionado para a chamada “revolução industrial”) e pela emergência de novos grupos sociais, a começar daquela alta burguesia, que na segunda metade do século, foi assumindo um papel cada vez mais relevante, até conquistar (ao lado da parte mais progressista da aristocracia) uma substancial hegemonia no país. (CAMBI, 1999, p. 317).
Como ele havia dito, em sua carta a Edward Clarke, seu Tratado assume relevância
maior do que aquela inicialmente pensada e transforma-se num corpo de princípios para a
educação de um gentleman.
É justamente esse processo de transformação social e econômica que leva Locke a colocar no centro de sua reflexão educativa a figura do gentleman, visto como modelo ideal para a nova classe dirigente e para o qual ele traça também um renovado curriculum de estudos. (CAMBI, 1999, p. 317).
Portanto, havia à época, a necessidade de um método para educar. Um guia que
congregasse os princípios para a educação desse novo homem tornava-se necessário. Assim,
seu Tratado veio preencher essa necessidade.
Claro que a educação só pode ser o motor do progresso se o seu objecto, o homem, for maleável à sua acção; e claro que a educação só pode ser a condição necessária do progresso ilimitado se essa maleabilidade for ilimitada e sinônimo de melhoramento. Enfim, só há progresso histórico se o dito melhoramento contagiar a espécie. Muitos avançaram, e com plausibilidade, afirmam que Locke iniciou este grande movimento histórico. A educação, afinal, passa a ser um “método”. (MORGADO, 2012, p. 10).
É neste contexto que surge a obra em questão e o filósofo inglês abre seu Tratado sobre
a educação afirmando: “de todas as pessoas com que nos cruzamos, nove em cada dez são o
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que são, boas ou más, úteis ou inúteis, devido à educação que receberam. É daí que nasce a
grande diferença entre os homens.” (LOCKE, 2012, p. 37-38).
Aí está, dito por ele mesmo, a importância da educação já ressaltada nas primeiras
páginas do seu Tratado. O conceito de educação, que se encontra subjacente a esta citação, pode
ser melhor compreendido se buscarmos a tal “grande diferença” à qual estaria o filósofo se
referindo quando diz que os homens se tornam bons ou maus, úteis ou inúteis em função da
educação que recebem. A Pedagogia de Locke tornou-se conhecida como a pedagogia do
cultivo das virtudes. Esse novo homem que será cultivado pela via educativa é aquele que
desenvolve “mente sã em corpo são [...][porque] aquele que reunir estas duas qualidades pouco
mais tem a desejar. [...]. É daí que nasce a grande diferença entre os homens.” (LOCKE, 2012,
p. 57). A premissa lockeana é “conservar o corpo com a sua força e vigor, para que possa
obedecer e executar as ordens do espírito” (LOCKE, 2012, p. 90). Ao longo de seu Tratado ele
se dedica a prescrever as diretrizes para o fortalecimento do corpo e para elevar o espírito “para
que esteja disposto, em qualquer ocasião, a não consentir em nada que não seja de acordo com
a dignidade e a excelência de uma criatura racional.” (LOCKE, 2012, p. 90). Esta educação do
corpo e do espírito contempla a disciplina, o desenvolvimeto da prudência e, por último, a
instrução, elementos muitos próximos daqueles que Kant mais tarde também vai abordar em
sua Pedagogia.
Essas comparações já nos levam a compreender que, em verdade, a ligação entre os três
filósofos é real e não pode ser contestada. Os três resaltam a educação como a via que conduz
o homem ao desenvolvimento de sua razão e, como consequência, ao alcance de sua autonomia. Tendo rejeitado o antigo jugo, os homens fixarão suas novas leis e normas com a ajuda de meios puramente humanos; já não há lugar, aqui, para a magia nem para a revelação. À certeza da Luz descida do alto substituir-se-á a pluralidade de luzes que se difundem de pessoa para pessoa. A primeira autonomia conquistada é a do conhecimento. Este parte do princípio de que nenhuma autoridade, por mais bem estabelecida que seja, está livre de crítica. O conhecimento só tem duas fontes, a razão e a experiência, e ambas são aceitáveis a todos. A razão é valoriozada como ferramenta de conhecimento, não como motor das condutas humanas; opõe-se à fé, não às paixões. Estas, por sua vez, são emancipadas das imposições. (TODOROV, 2008, p. 16).
Na citação de Todorov (2008) a razão surge como este elemento que transforma todo o
cenário do “Dezoito” pois, como discutido anteriormente, as Luzes têm um longo período
histórico até virem a se consolidar. Segundo Todorov (2008), “a primeira autonomia
conquistada é a do conhecimento” mas isso só tornou-se possível dentro de um contexto que
fez surgir um certo modo de pensar no qual a razão toma o lugar de destaque. Uma razão que
quer ser desenvolvida. Que quer conduzir o homem à liberdade. Locke foi o primeiro dentre os
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três filósofos que tratamos aqui a alcançar tal compreensão. Conforme Morgado: “Na medida
em que viver segundo a razão, na medida em que agir de acordo com a razão se confunde com
viver e agir em liberdade, por contraposição a se viver e agir na servidão ou na licenciosidade,
então a educação lockiana tem de ser uma educação para a liberdade.” (MORGADO, 2012, p.
16).
Miguel Morgado, responsável por escrever a Introdução desta versão do Tratado
publicada pela editora Almedina, nos dá algumas pistas para compreendermos o quanto a razão
tornou-se mote para a filosofia de Locke. Em The Conduct of the Understanding, Locke descreve as consequências da inibição da razão para a formação dos homens. Em primeiro lugar, teremos um tipo completamente refém da autoridade, seja dos políticos, dos padres, dos vizinhos ou dos familiares. Como não pensa, ou só raramente faz uso de sua própria razão, limita-se a imitar e seguir o exemplo estabelecido por essas autoridades para servilmente não ter de se dar ao trabalho de pensar nem de examinar as coisas com o seu próprio entendimento. De seguida, temos aqueles que, com uma razão atrofiada, permitem que as suas paixões o tornem num fantoche dos caprichos delas. Serão incapazes, evidentemente, de se governar a eles mesmos, já que não escutam sua própria razão nem a dos outros. O terceiro tipo é o mais difícil de descrever. É que não se pode dizer que não seja obediente à razão. Falta-lhe antes àquilo a que Locke chama “um sentido alargado, são e abrangente”. É constituído por pessoas que procuram agir segundo a razão, mas a sua compreensão da situação é sempre muito parcial ou unilateral. Em certo sentido, quando se atenta esta miopia da razão ou mais rigorosamente sua parcialidade do estabelecimento de princípios ou fundamentos dos nossos julgamentos, Locke admite que todos os homens sofrem desta deficiência. Todos somos mais ou menos parciais, o que afecta o nosso julgamento e a nossa acção. Os homens, afinal de contas, não são anjos. (MORGADO, 2012, p. 15-16).
Embora longa a citação é necessária porque nos mostra que na base do conceito de
educação apresentado por Locke e discutido por Morgado estão as ideias que, mais tarde, Kant
viria a desenvolver em sua Pedagogia Moral. A primeira consequência acerca da inibição da
razão seria, segundo citado, o fato de o homem não pensar e limitar-se a seguir o exemplo
estabelecido pela autoridade. Este princípio, se assim pudemos chamar, foi desenvolvido por
Kant em Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? O fato de o homem não fazer uso de
sua razão provocaria o que Kant veio a nomear menoridade intelectual. A segunda consequência
está relacionada à filosofia kantiana pois, para Kant, um homem que não se autolegisla através
do exercício de sua razão é um homem tomado por suas paixões, que se deixa levar pelas
inclinações. Kant mais tarde trabalharia com o primado da razão e diria que só a razão conduz
à autonomia moral. E, finalmente, a terceira consequência apontada por Locke, alega o fato de
que somos seres propensos a falhos julgamentos por sermos parciais. Estes termos que mais
tarde seriam, na concepção kantiana, nomeados como inclinações, viriam a ser tratados com
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profundidade em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Então, a grande diferença
entre um homem que não teve acesso à educação e outro educado, mais tarde, em Kant,
corresponderia ao homem cuja moralidade não foi atingida e, ao homem moralmente autônomo,
respectivamente.
Para Kant também a educação para a moralidade, é o meio para se alcançar sempre uma
humanidade melhor que esteja preparada para o exercício da genuína liberdade humana.
Segundo Vanderwalle (2004, p. 10) “esta filosofia [a filosofia kantiana] promove uma nova
concepção, propriamente crítica, da pedagogia, centrada em uma aprendizagem da liberdade e
da autonomia (aprender a dar a si mesmo regras de pensamento e de vida)”.
Portanto, o que Locke anunciou, Kant, mais tarde, desenvolveu em seu sistema crítico
ampliando o uso da razão e concebendo-o a partir de dois eixos: a razão pura e a razão prática.
Em Rousseau – no Emilio – a alusão a necessidade de educação com essa finalidade
também é defendida desde as primeiras páginas do Livro I quando nos mostra como a educação
torna-se a chave através da qual o homem será livre e moral. Moldam-se as plantas pela cultura, e os homens pela educação. [...]. Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação. (ROUSSEAU, 1999, l. I, p. 8).
A questão que se coloca, da mesma maneira como quando tratamos anteriormente o
conceito subjacente de educação a partir da citação de Locke, é: o que constitui a educação e a
moralidade para Rousseau?
Para Rousseau (1999, l. I, p. 7) há uma valorização de algo intrínseco ao homem, algo
que, inclusive, precisa ser protegido para que não se perca, para que não degenere, pois, segundo
o genebrino “tudo está bom quando sai das mãos do autor das coisas [e] tudo degenera entre as
mãos do homem”. Ao pensar o homem como naturalmente bom, acredita que a educação não
poderia ser dada, desde o início, num contexto civilizatório, entre outros homens. É assim que
defende a primeira etapa da educação chamando-a de educação da natureza. Rousseau diz que No estado em que agora as coisas estão, um homem abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos. Os preceitos, a autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as instituições sociais em que estamos submersos abafariam nela a natureza, e nada poriam em seu lugar. Seria como um arbusto que o acaso faz nascer no meio de um caminho, e que os passantes logo fazem morrer, atingindo-o em todas as partes e dobrando-o em todas as direções. (ROUSSEAU, 1999, l. I, p. 8).
Essa defesa da saída do homem da civilização em busca de uma educação bucólica é
tomada por muitos como a principal diferença entre Kant e Rousseau. Resolvemos ir ao próprio
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Kant para abordarmos esta questão. Entendemos que ele faz, de próprio punho, uma defesa em
relação às divergências que ecoam na obra de ambos no que diz respeito a essa concepção de
educação. Em sua Antropologia Kant afirma: Suas três obras [O Discurso sobre as ciências e as artes (1750); Sobre a origem da desigualdade entre os homens (1754); A nova Heloísa (1759)] sobre o dano que causaram a nossa espécie a saída da natureza para a cultura, pelo enfraquecimento de nossa força, a civilização, pela desigualdade e opressão recíproca, a suposta moralização por meio de uma educação contrária à natureza e uma deformação da índole moral – essas três obras, digo, que apresentaram o estado de natureza como um estado de inocência (ao qual o guardião da porta de um paraíso, com sua espada de fogo, impede retornar) deviam apenas servir de fio condutor para seu Contrato Social, seu Emílio e seu Vigário de Sabóia, a fim de que se descobrisse uma saída para uma complexidade de males em que nossa espécie se enredou por sua própria culpa. – Rousseau não queria, no fundo, que o homem voltasse novamente ao estado de natureza, mas que lançasse um olhar retrospectivo para lá desde o estágio em que agora está. (KANT, 2006, p. 221).
A partir desta citação de Kant poderíamos fazer diversas conjecturas, mas só uma nos
interessa neste momento. A leitura ampliada que Kant fez da obra de Rousseau foi o que lhe
permitiu avançar em sua proposta de Educação em relação àquela que nos foi deixada pelo
genebrino. Foi a leitura do Emílio atravessada pela leitura do Contrato Social e enfatizada pelo
conteúdo da Profissão de Fé do Vigário Saboiano que levou Kant a ir mais longe e ultrapassar
a concepção de educação da natureza. A questão de retorno à natureza está presente nos grandes
textos deixados por Rousseau. No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
(1755) já havia uma antecipação daquilo que está no Emílio (1762) e também no Contrato
Social (1762). Só uma leitura conjunta destas obras oferece uma compreensão da opção de
Rousseau pela educação da natureza como primeira etapa do processo de formação do seu
aluno. No Discurso Rousseau já havia criado este estado do homem hipoteticamente natural
considerando o caráter puro, se pudemos assim nomear, daquilo que, para ele, está na base da
formação do homem. É com o advento da civilização que o homem perde essas virtudes. Isto
já estava posto no Discurso. A reflexão filosófica feita por ele no Discurso define o
direcionamento do Contrato Social e do Emílio. Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não tem eles outro meio de conservar-se se não formando por agregação, um conjunto de forças, que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a operar em concerto. (ROUSSEAU, 1973, p. 69).
No Contrato Social ele nos mostra como operar em concerto. E no Emílio como educar
para que esse concerto se apresente de forma afinada tendo em vista que esta educação visa
preparar o homem para a convivência com os outros homens de forma que sua adesão ao
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contrato social seja genuinamente a expressão daquilo que aprendeu enquanto esteve afastado
da civilização. Não é nosso objetivo discutir aprofundadamente tais questões, mas, necessário
se faz, ao menos, apontá-las para que possamos compreender porque Kant defende o
pensamento de Rousseau quando afirma que: “Rousseau não queria, no fundo, que o homem
voltasse novamente ao estado de natureza, mas que lançasse um olhar retrospectivo para lá
desde o estágio em que agora está.” (KANT, 2006, p. 221).
Vejamos como podemos chegar a estas conclusões a partir de várias citações de
Rousseau, que vislumbram pontos relevantes que foram retomados por Kant.
Rousseau inicia o Livro IV do Emílio anunciando a adolescência de seu pupilo. Mas,
antes, ao concluir o Livro III ele pergunta: “Achais que uma criança que chegou assim aos
quinze anos tenha perdido os anos precedentes?” (ROUSSEAU, 1999, l. III, p. 270). Refere-se
às conquistas devidas ao fato de dar ao Emílio, em sua primeira etapa de educação, as condições
para desenvolver um corpo forte e um espírito igualmente forte, preparados para lidar com as
adversidades da vida. “Tem o corpo sadio, os membros ágeis, o espírito justo e sem
preconceitos, o coração livre e sem paixões” (ROUSSEAU, 1999, l. III, p. 270). Acerca dos
conhecimentos conquistados durante esta etapa reafirma sua oposição ao instrucionismo:
“Emílio tem poucos conhecimentos, mas os que tem são seus de verdade” (ROUSSEAU, 1999,
l. III, p. 268). Enfatiza sua veia iluminista, ainda que pareça desprezá-la, quando decide pela
criação do Emílio longe da civilização, porque, para Rousseau, o caminho de retorno à natureza
era a condição que levava à verdadeira ilustração, sem falseamentos como ele mesmo dizia:
Dentre as poucas coisas que sabe, e sabe bem, a mais importante é que existem muitas coisas que ele ignora, mas pode um dia saber, muitas mais que outros homens sabem e ele nunca saberá em sua vida, e uma infinidade de outras que nenhum homem jamais saberá. Ele tem um espírito universal, não pelas luzes, mas pela faculdade de adquirí-las; um espírito aberto, inteligente, pronto para tudo e, como diz Montaigne, senão instruído, pelo menos instruível. Basta-me que ele saiba encontrar o para que serve de tudo o que faz e o porquê de tudo o que acredita. Mais uma vez meu objetivo não é dar-lhe a ciência, mas ensiná-lo a adquiri-la quando necessário, fazer com que a estime exatamente o quanto ela vale e fazer com que ame a verdade acima de tudo. Com esse método, avançamos pouco, mas nunca damos um passo inútil e não somos obrigados a voltar atrás. (ROUSSEAU, 1999, l. III, p. 268-269).
Assim, Rousseau defende seu ponto de vista argumentando que a opção por manter o
Emílio afastado da civilização foi a decisão mais acertada para o seu processo educacional
porque lhe garantiu não o ideal das Luzes, dando-lhe apenas a ciência através de uma educação
instrucionista cujas bases são o conhecimento em si, mas, uma educação que prepara a razão
para buscar o conhecimento. Isso, para ele, consistia na primazia da razão. Isto o une a Kant,
embora Kant não defenda uma educação da Natureza.
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Em Locke também há essa preocupação, pois, ao considerar a aprendizagem como um
“jogo” enseja-nos a concluir que em suas orientações acerca da educação da criança, já
contempla essa perspectiva de fomentar o desejo de saber. Há uma grande quantidade de coisas que nos inspiram aversão apenas porque nos foram impostas. Sempre pensei que o estudo poderia converter-se numa brincadeira, num recreio para as crianças, e que haveria forma de inspirar-lhes o desejo de aprender caso a instrução lhe fosse apresentada como algo a honrar, agradável, recreativa, ou como uma recompensa que merecem por ter feito outra coisa, e se, enfim, se tivesse cuidado para não repreendê-los ou corrigi-los por terem sido negligentes nisso. (LOCKE, 2012, p. 281).
Mais uma vez chegamos a uma síntese que une os três filósofos em torno das premissas
que fundamentaram os textos de educação que escreveram. Os três buscavam uma educação
para a liberdade e pautada na razão.
Para Locke, agir por si sem atender à razão não é liberdade, mas licença imoral. Como veremos, agir virtuosamente é sinônimo de agir em obediência à razão. Desta equivalência segue-se a relação íntima e simbiótica entre agir livremente e agir moralmente: a acção moral tem de ser livre e a acção verdadeiramente livre é necessariamente moral. (MORGADO, 2012, p. 18).
Se para Locke o agir moral está pautado nas virtudes que serão cultivadas em Rousseau
está pautado numa capacidade intrínseca que o homem tem e para Kant isso corresponderá a
uma possibilidade que se desenvolve caso seja cultivada no processo educativo, mas, que só é
possível devido à uma característica da espécie humana.
As concepções filósoficas que os três elaboram são diferentes. A este respeito
poderíamos dizer que Kant aproxima-se mais de Rousseau? Retomamos a Profissão de Fé do
Vigário Sabioano, um texto através do qual Rousseau nos apresenta brevemente os indícios de
uma epistemologia que, mais tarde, Kant viria a desenvolver por completo. Entendemos que,
extraídas desta leitura, surgem algumas explicações para as escolhas feitas por Kant. Por
exemplo, acerca da argumentação de Rousseau em relação à metafísica, afirmando que algumas
coisas estão além da capacidade humana de pensar, Kant também iria se pronunciar mais tarde
em sua Crítica da razão pura. O Vigário Saboiano (que é o próprio Rousseau) critica os
filósofos acerca do dualismo que envolve as discussões sobre racionalismo e empirismo em sua
época:
Compreendi que a insuficiência do espírito humano é a primeira causa dessa prodigiosa diversidade de sentimentos, e que o orgulho é a segunda. Não temos a medida dessa máquina imensa, não podemos calcular suas relações; não conhecemos nem suas primeiras leis nem sua causa final; ignoramos a nós mesmos; não conhecemos nem nossa natureza, nem nosso princípio ativo; mal sabemos se o homem é um ser simples ou composto; mistérios impenetráveis rodeiam-nos por toda a parte; eles estão acima da região sensível; para penetrá-los, acreditamos ter inteligência e só temos imaginação. Através desse
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mundo imaginário, cada qual abre para si mesmo um caminho que acredita ser o certo; ninguém pode saber se o seu leva à meta. Todavia queremos compreender tudo, conhecer tudo. A única coisa que não sabemos é ignorar o que não podemos saber. [...]. O primeiro fruto que tirei dessas reflexões foi aprender a limitar minhas pesquisas ao que me interessava imediatamente, a contentar-me com uma profunda ignorância sobre tudo o mais e a só me inquietar até a dúvida com as coisas que me importava saber. [...]. Devo pois voltar o olhar primeiro para mim, a fim de conhecer o instrumento de que me quero servir e saber até que ponto posso confiar em seu uso. (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 359-361).
Neste trecho podemos ver como Rousseau manteve-se preso ao empirismo. E, vemos
também, porque, mais tarde, Kant escreveu em sua Crítica da Razão Pura uma defesa à
Metafísica, entendendo que esse atrevimento kantiano esteve presente desde sempre em sua
produção. A citação nos mostra que Kant avançava investindo contra o ceticismo. Não se
acovardava diante destas questões e reafirmava a razão humana, pois, dizia que [...] mesmo correndo o risco de nos enganarmos, preferimos arriscar tudo a desistir de tão importantes pesquisas, qualquer que seja o motivo, dificuldade, menosprezo ou indiferença. Estes problemas inevitáveis da própria razão pura são Deus, a liberdade e a imortalidade e a ciência que, com todos os seus requisitos, tem por verdadeira finalidade a resolução destes problemas chama-se metafísica. (KANT, 2001, p. 66).
E, dedicando-se a demostrar como este “instrumento” – a razão – viria a funcionar e até
que ponto poderíamos confiar em seu uso ele escreveu A Crítica da razão pura como já
mostramos antes.
Mais adiante este texto de Rousseau nos dá novos indícios para crer que sua suposta
falta de atrevimento foi o mote para Kant ir além. Porém, temos que levar em conta que, embora
Rousseau afirme que as “objeções insolúveis são comuns a todos, porque o espírito do homem
é limitado demais para resolvê-las” ele também avança esboçando questões que Kant
aprofundaria depois. Rousseau diz: “Mas quem sou eu? [...] Existo e tenho sentidos pelos quais
sou afetado. Eis a primeira verdade que me atinge e com a qual sou forçado a concordar.”
(ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 361). E, neste mesmo texto, ainda se encaminha em direção às
respostas possíveis, para ele, naquele momento: “Terei um sentimento próprio de minha
existência, ou só a sinto por sensações? [...]. Concebo, pois, claramente que minha sensação,
que é eu, e sua causa ou seu objeto, que é fora de mim, não são a mesma coisa.” (ROUSSEAU,
1999, l. IV, p. 361, grifo nosso). Por fim, Rousseau ainda diz: Ora, tudo o que sinto fora de mim e que age sobre os meus sentidos eu chamo de matéria, e todas as porções de matéria que concebo reunidas em seres individuais eu chamo de corpos. Assim, todas as disputas dos idealistas e dos materialistas nada significam para mim; suas distinções sobre a aparência e a realidade dos corpos são quimeras. Eis-me já tão certo da existência do universo quanto da minha. A seguir refleti sobre os objetos de minhas
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sensações e, achando em mim a faculdade de compará-las, sinto-me dotado de uma força ativa que não sabia ter antes. Perceber é sentir; comparar é julgar; julgar e sentir não são a mesma coisa. Pela sensação os objetos oferecem-se a mim separados, isolados, tais como existem na natureza; pela comparação, movimento-os, transporto-os, por assim dizer, coloco-os uns sobre os outros para julgar sua diferença ou semelhança e geralmente todas as suas relações. [...]. Que se dê este ou aquele nome a essa força do meu espírito que aproxima e compara minhas sensações, que seja, chamada atenção, meditação, reflexão, ou como se quiser, sempre será verdade que ela está em mim e não nas coisas, que sou eu que a produzo, embora só a produza por ocasião da impressão que fazem sobre mim os objetos. (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 361-363).
Na Profissão de Fé do Vigário Saboiano Rousseau abre um caminho frutífero que Kant
saberia explorar com perfeição. Anuncia um “eu” separado dos objetos. Mas ao afirmar a fonte
de todos os saberes como algo experimental fecha, para si mesmo, as portas que mais tarde
Kant soube abrir porque, na sequencia do texto Rousseau recua e diz: “Sei apenas que a verdade
está nas coisas e não no meu espírito que as julga, e que, quanto menos coloco de meu nos
juízos que faço sobre elas, mais estou seguro de me aproximar da verdade. Assim, minha
regra de não me entregar mais ao sentimento do que à razão é confirmada pela própria razão. ”
(ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 361-363, grifos nossos). É, nesse ponto que submete a razão a
empiria. É neste aspecto que Kant irá se diferenciar de Rousseau porque a razão em Kant será
a própria capacidade de julgar da qual Rousseau desconfiou. Clélia Martins reflete acerca da
filosofia kantiana esclarecendo-nos qual o caminho tomado pelo filósofo de Königsberg para
assegurar essa capacidade humana.
Kant segue uma linha convergente com as inquietudes de seu tempo: o desnível entre a razão pura e a prática o conduz a elaborar uma Antropologia para superá-lo. As atividades centrais da filosofia “no significado civil do mundo” são compreendidas pelas quatro famosas questões expostas na Introdução da Lógica. Embora admita que todas as quatro possam caber à Antropologia sistemática, Kant propõe um caminho pragmático: a história, a biografia, o teatro, a novela e as viagens. A experiência do mundo ou as relações com o mundo estão sempre ligadas com a experiência do homem em relação a si mesmo, e com o conhecimento que ele possa ter de si como pessoa: porque o homem se distingue de outros seres vivos e diante deles é que ele pode “ter o eu em sua representação” (MARTINS, 2006, p. 14).
É deste “eu” que Rousseau falava. Mas não podendo ir adiante, tomado pelas certezas
empiristas, não conseguiu de fato encontrá-lo. Já Kant, desde sempre atribui ao homem esse
“eu”. Desde as primeiras páginas de sua Antropologia Kant, atribui à criança a possibilidade de
pensar em si mesma e, de “ter o eu em sua representação” e, a partir desta capacidade, mediar
suas relações com outros homens e com o mundo. Em sua Antropologia esse “eu” já aparece
na infância.
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É notável que a criança que já sabe falar suficientemente bem comece no entanto bastante tarde a falar por meio do eu (talvez bem depois de um ano), tendo até então falado de si na terceira pessoa (Carlos quer comer, andar, etc.), e uma luz parece se acender para ela, quando começa a falar por meio do eu: a partir desse dia nunca mais volta a falar daquela outra maneira. – Antes simplesmente sentia a si mesma, agora pensa em si mesma. [,,,]. (KANT, 2006, p. 27-28).
Esta citação traz a razão como consagração do pensamento na filosofia kantiana. Desde
o momento em que a criança enuncia em sua linguagem esse “eu” ela já pode pensar.
Interessante que na continuidade das discussões acerca dessa enunciação egóica Kant já possa
também estabelecer distinções radicais em relação ao pensamento de Rousseau pois, os males
que, por ventura, possam advir desta capacidade humana de pensar também foram objeto de
preocupação para Kant. Ele admitiu que esta capacidade de pensar pode levar o homem ao
egoísmo.
A partir do dia em que começa a falar por meio do eu, o ser humano, onde pode, faz esse seu querido eu aparecer, e o egoísmo progride irresistivelmente, se não de maneira manifesta (pois lhe repugna o egoísmo dos outros), ao menos de maneira encoberta, a fim de se dar tanto mais seguramente, pela aparente abnegação e pretensa modéstia, um valor superior no juízo dos outros. (KANT, 2006, p. 27-28).
Ao afirmar que a admissibilidade desse “eu” leva o homem ao egoísmo Kant mostra
como a razão traz consigo um caminho que o homem terá que percorrer para se tornar um
agente verdadeiramente livre. Mas, buscou o caminho oposto ao de Rousseau para resolver este
problema, pois, segundo Kant, a superação do egoísmo humano deve se dar num contexto de
coletividade. Ao identificar, desde a infância, os primeiros desvios que poderiam vir a ser
causados pelo que chamou de egoísmo ele sugeriu uma educação voltada para o pluralismo. O
caminho para superar esta característica do ser humano, chamada por Kant de egoísmo, é o
pluralismo que, para ele é “o modo de pensar que consiste em não se considerar nem em
proceder como se o mundo inteiro estivesse encerrado no próprio eu, mas como um simples
cidadão do mundo” (KANT, 2006, p. 30). Kant não demarca um tempo cronológico no qual
essa proposta de educação voltada para o pluralismo deva ser inciada mas demarca o tempo em
que esse egoísmo tem início quando a criança começa a falar por meio do eu. Por conseguinte,
entendemos que podemos abstrair desta argumentação sua defesa de uma educação voltada para
o pluralismo desde a infância.
Já para Rousseau essa seria uma educação que viria apenas após aquela primeira etapa
destinada ao fortalecimento do corpo físico. Somente a partir da adolescência Rousseau muda
o direcionamento do processo educacional de Emílio. No Livro IV, vemos que algumas coisas
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vão se modificando na proposta educativa de Rousseau para com o Emílio pois ele entende a
chegada da adolescência como um segundo momento no qual outras diretrizes tornam-se
necessárias ao seu processo educacional. Ele afirma que “o homem, em geral, não foi feito para
permanecer sempre na infância. Dela sai no tempo indicado pela natureza, e esse momento de
crise, embora muito curto, tem longas influências.” (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 271).
Consciente destas mudanças Rousseau anuncia um novo método para enfrentar as alterações de
humor e os arroubos frequentes típicos da puberdade. Diz que a partir desta etapa de vida a
criança “torna-se surda à voz que a fazia ficar dócil; [...]; desconhece seu guia, já não quer ser
governada.” (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 272). Nomeia a adolescência como o “segundo
nascimento” e diz: “é aqui que o homem nasce verdadeiramente para a vida e que nada de
humano lhe é alheio” (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 272).
Ao admitir essas mudanças anuncia a fonte de nossas paixões. Apresenta o “amor de si”
como a fonte de todas as paixões humanas mas afirma que esta é a única que permanece
benéfica ao homem. Ao definir o “amor de si” Rousseau introduz um elemento fundamental
que também encontramos em Kant para a compreensão da conservação do homem e controle
das inclinações: o interesse em preservar a si mesmo e a inclinação para o bem. O amor de si é sempre bom e sempre conforme à ordem. Estando cada qual encarregado de sua própria conservação, o primeiro e mais importante de seus cuidados é e deve ser zelar por ela continuamente; e como zelaríamos dessa maneira se não tivéssemos por ela o maior interesse? É preciso, portanto, que nos amemos para nos conservarmos, é preciso que nos amemos mais do que qualquer outra coisa, e, por uma consequência imediata do mesmo sentimento, amamos o que nos conserva. [...]. O primeiro sentimento de uma criança é amar a si mesma, e o segundo, que deriva do primeiro, é amar os que lhe são próximos, pois no estado de fraqueza em que se encontra não conhece ninguém a não ser pela assistência e pela atenção que recebe. [...]. Assim a criança inclina-se naturalmente para a benevolência, pois vê que tudo que a rodeia dispõe-se a ajuda-la, e dessa observação ela toma o hábito de um sentimento favorável à sua espécie; (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 274).
Para Rousseau é essencial preservar esse “amor de si” e isso é o que justifica o
afastamento do Emílio da civilização. Mas, o “amor de si” não se manterá após a entrada do
homem na civilização. Nesse momento ele encontrará o “amor-próprio” que se diferencia do
“amor de si” porque torna-se uma espécie de egoísmo como aquele enunciado por Kant (já
desde a primeira infância). A entrada do Emílio na civilização, segundo Rousseau, vai fazer
com que se compare aos outros homens e dois tipos de sentimentos podem advir: se sentir
superior a eles ou se sentir inferior a eles. Dessa comparação surge o que ele chama de “amor-
próprio” que é negativo porque faz com que o homem tenha inveja ou se sinta superior.
Rousseau afirma que para evitar esse mal seria necessário viver neste estado de isolamento
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“com poucas necessidades”, porém, como isso é impossível, aponta “a arte e os trabalhos” de
autoconhecimento que funcioanm como elementos indispensáveis para que o homem não
enverede pelo caminho do mal. O amor de si, que só a nós mesmos considera, fica contente quando nossas verdadeiras necessidades são satisfeitas, mas o amor-próprio, que se compara, nunca está contente e nem poderia estar, pois esse sentimento, preferindo-nos aos outros, também exige que os outros prefiram-nos a eles, o que é impossível. Eis como as paixões doces e afetuosas nascem do amor de si, e como as paixões odientes e irascíveis nascem do amor-próprio. Assim, o que torna o homem essencialmente bom é ter poucas necessidades e pouco se comparar com os outros; o que o torna essencialmente mau é ter muitas necessidades e dar muita atenção à opinião. A partir desse princípio, é fácil ver como podemos dirigir para o bem ou para o mal todas as paixões das crianças e dos homens. É verdade que, não podendo viver sempre sozinhos, dificilmente serão sempre boas; essa dificuldade até mesmo aumentará necessariamente com suas relações, e é nisso sobretudo que os perigos da sociedade nos tornam a arte e os trabalhos mais indispensáveis para prevenir no coração humano a depravação que nasce de suas novas necessidades. (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 275).
A partir destas constatações ele aponta qual seria o trabalho com a infância e qual seria
o trabalho a partir da adolescência. Diz: “enquanto ele só se conhecer pelo seu ser físico, deverá
estudar-se pela relação com as coisas. Quando começar a sentir seu ser moral, deverá estudar-
se por suas relações com os homens; é o trabalho de sua vida inteira, a começar do ponto em
que acabamos de chegar.” (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 275-276).
Pequenas sutilezas mostram as diferenças entre ambos. Para Kant o egoísmo surge desde
o momento em que a criança aprende a falar em seu próprio nome fazendo uso do “eu”. Em
Rousseau o “amor próprio” só surge quando o Emílio é colocado em contato com a civilização
e passa a se comparar a outros homens. Talvez seja essa a principal diferença entre ambos: Logo, é a Kant que devemos remontar para situar o surgimento de uma responsabilidade plena e total do sujeito, não unicamente diante do conhecimento, mas também diante do mundo. Tudo o que o sujeito é, tudo o o que o constitui e tudo que ele faz depende do próprio sujeito. (VINCENTI, 1994, p. 10).
Por isso, para atingir as condições de exercício desta autonomia Kant traça um percurso
que Rousseau também prescreveu, primeiro a disciplina na infância e, depois, a educação moral
a partir da adolescência. Porém, a diferença entre ambos é que o primeiro crê numa necessidade
de afastamento do homem da vida civilizada e o segundo crê na inserção da criança nas escolas
para que seja preparada para aquele pluralismo ao qual se refere em sua Antropologia. No projeto educacional de Rousseau, o tutor mantém o Emílio ignorante, de modo que ele não seja exposto ao prejudicial amor-próprio. Nada disto pode ser encontrado em Kant. O problema do mal agrava o problema da educação, e assim também a missão social de promover uma comunidade ética (a cuja
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promoção de educação moral supõe-se contribuir). [...]. A tarefa da comunidade ética é superar a própria situação de corrupção moral mútua, uma vez que afeta todos os seres humanos, “toda a raça humana'' tem o dever de estabelecer essa sociedade, “em todo o seu alcance '' (Religião, 94). Promover o bem maior moral é uma tarefa coletiva, social ou comunitária e não apenas uma tarefa individual. (CAVALLAR, 2014, p. 373-374, tradução nossa).
Poderíamos dizer que para Rousseau as mudanças ocorridas na adolescência justificam
a necessidade de um novo direcionamento do processo educativo, porque, como ele afirma no
Emílio, quando o corpo é despertado e necessita de outro corpo (referindo-se a puberdade) não
há mais como manter seu pupilo protegido das relações com outros homens, então, será
necessário educá-lo de outra forma. Já para Kant, desde a fala da criança quando se torna capaz
de dizer “eu” e age egocentricamente é necessário que as intervenções educativas conduzam à
descentração esvaziando o egoísmo deste “eu”. Em Kant há um “sujeito”, desde sempre! E, é a
este sujeito que se dirige o processo educativo.
Ao abrir seu opúsculo Sobre a Pedagogia, apresenta-nos seu conceito de educação e,
através deste conceito podemos depreender que este sujeito sempre foi considerado pela
perspectiva kantiana: “Por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o
trato), a disciplina e a instrução com a formação. Consequentemente, o homem é infante,
educando e discípulo.” (KANT, 1999, p. 11). Neste conceito o fato de tomar o homem como
infante, educando e discípulo, uma metáfora que fica melhor compreendida se buscarmos outra
citação contida em sua Antropologia, faz de Kant um filósofo crítico. Kant nos ajuda a
compreender um pouco melhor esta metáfora e, simultaneamente, nos mostra o caminho para
chegarmos à conclusão acerca de como ele avança e como é largo o seu conceito de educação. [...] para indicar a classe do ser humano no sistema da natureza viva e assim o caracterizar, nada mais nos resta a não ser afirmar que ele tem um caráter que ele mesmo cria para si enquanto é capaz de se aperfeiçoar segundo os fins que ele mesmo assume; por meio disso, ele, como animal dotado da faculdade da razão (animal rationabile), pode fazer de si um animal racional (animal rationale); nisso ele, primeiro, conserva a si mesmo e a sua espécie; segundo, ele a exercita, instrui e educa para a sociedade doméstica; terceiro, a governa como um todo sistemático (ordenado segundo princípios da razão) próprio para a sociedade; (KANT, 2006, p. 216).
Retomemos o trecho em que o filósofo afirma que num primeiro momento o homem
conserva a si mesmo e a sua espécie, num segundo momento exercita, instrui e educa essa
espécie e num terceiro momento a governa. Compreendemos que aí estão os sentidos atribuídos
por Kant ao tomar o homem como infante, educando e discípulo. Ele precisa de cuidados na
infância e precisa de um educador (para que seja possível conservar a si mesmo e para que este
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educador o exercite, instrua e eduque) para só depois desse processo tornar-se apto a governar
(a si mesmo e à sociedade).
Até certo ponto Kant mantém-se dentro da mesma concepção de educação antes traçada
por Locke e Rousseau. Os elementos da racionalidade, liberdade e autonomia que se destacam
e, também, antes, foram destacados pelos outros dois filósofos estão presentes na definição de
Kant. Mas, ao tomar a espécie como o alvo desta educação e o homem como um representante
isolado, Kant começa a ensaiar o rumo diferenciado que sua Pedagogia alcança.
O característico, porém, da espécie humana, em comparação com a ideia de possíveis seres racionais sobre a terra em geral, é que a natureza pôs nela o germe da discórdia e quis que sua própria razão tirasse dessa discórdia a concórdia, ou ao menos a constante aproximação dela, esta última sendo, com efeito, na idéia o fim, embora de fato aquela primeira (a discórdia) seja, no plano da natureza, o meio de uma sabedoria suprema, imperscrutável para nós: realizar o aperfeiçoamento do ser humano mediante cultura progressiva, ainda que com muito sacrifício da alegria de viver. (KANT, 2006, p. 216, grifos nossos).
É aqui que ele se distingue de Locke e Rousseau, primeiro, ao considerar que a educação
tem como alvo final a espécie e cada homem torna-se apenas um representante desta espécie ao
ser educado. Assim, o pensamento educacional kantiano caracteriza-se antes de tudo como uma
proposta de vir-a-ser: “na ideia o fim”. Aqui se insere a filosofia da História de Kant. [...] a filosofia da história em Kant não admite leis históricas. O progresso da humanidade não resulta de uma lei científica determinando completamente a totalidade de seu caminhar. Ele é, antes de tudo, um “tecido de atos livres”. Ele resulta de um processo de educação permanente admitindo reformas indefinidas rumo ao melhor, ao moralmente bom. (MENEZES, 2000, p. 56).
A filosofia da história presume o homo noumenon e homo phaenomeno pois, a discórdia,
que se relaciona a este último, só pode ser superada se considerarmos aquele primeiro “dotado
de uma sabedoria suprema imperscrutável” – o homo noumenon. Finca as bases para
compreendermos toda a proposta que deverá ser aplicada no plano da natureza considerando
de fato a discórdia no homem e a concórdia como vir-a-ser porque há no homem uma dignidade
característica da espécie humana que o orienta enquanto pessoa para um estado de moralidade. É preciso um plano para a história. Nele, deve-se coadunar a liberdade individual e o estado de direito. O homem é um ser cujas disposições só podem desenvolver-se de modo pleno na espécie e dentro de um processo histórico. Ele é destinado a viver em sociedade, onde acede à cultura através de sua própria obra, por uma transformação racionalmente apropriada a seus fins e não como um animal, pelos instintos. Ele atinge a sua destinação e progride da animalidade à humanidade pura, submetendo seus impulsos a esta ideia. Enquanto ser sensível o homem é fenômeno. Neste campo, ele é um ser de necessidades, instintos, disposições, paixões, ser natural, e, por isto, submisso ao mecanismo da natureza. Ele está inteiramente determinado por causas que agem sobre ele e nele. O homem é um ser limitado no espaço e no tempo.
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Todavia, visto como pessoa, sujeito de uma razão moralmente prática, está acima de qualquer preço, pois enquanto homo noumenon, é preciso considera-lo não simplesmente como um meio, mas ao contrário, como um fim em si mesmo. Ele possui uma dignidade (um valor interior absoluto) pela qual se obriga a respeitar a si mesmo e a todas as outras criaturas racionais. A humanidade em sua pessoa é objeto do respeito que ele pode exigir de um outro homem e do qual ele não deve se inflingir a perda. (MENEZES, 2000, p. 36-37).
Ou seja, Kant parte daquilo que Rousseau partiu, e, que para ele é característico da
espécie humana: sua racionalidade e o interesse em conservar a si mesmo e sua espécie. Mas,
Kant, considera o homo phaenomeno como alvo das práticas educativas numa visão mais
aabrangente que contempla aquilo que ele traz em si como homo noumenon e, por isso, traça
um plano para sua educação considerando a cultura como o locus privilegiado onde essa
educação pode ocorrer. Porque na cultura haverá sempre a possibilidade histórica de uma
evolução humana. O fim da “Didática Antropológica” discute um bem moral supremo, ao qual o físico está limitado e que produz uma bem aventurança factual alcançável e civilizada. Sua forma social, para a qual o homem deve se formar em intenção pragmática, é a humanidade, que se realizaria na sociedade mundial civil, sendo esta um princípio regulativo dos fins humanos. Humanidade, então, é a bem aventurança civilizada subordinada à intenção de produzir a sociedade ideal: “O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e das ciências, e por maior que possa ser sua propensão animal a se abandonar passivamente aos atrativos da comodidade e do bem-estar, que ele denomina felicidade, ele está destinado a se tornar ativamente digno da humanidade na luta com os obstáculos que a rudeza de sua natureza coloca para ele. (MARTINS, 2006, p. 13).
Na citação, Clélia Martins indica qual o fim da didática antropológica o que nos serve
também como parâmetro para estabelecer o fim do processo educativo. Contidas em sua
citação, as palavras do filósofo nos mostram que a opção de Kant é pela sociedade, sendo esta
o palco no qual o homem cultiva a civilidade: “o ser humano está destinado, por sua razão, a
estar numa sociedade com seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das
artes e das ciências”. (KANT, 2006, p. 13). Finalmente, poderíamos dizer que, embora todo
esse processo educativo, em Kant, pareça-nos orientado a partir de algo maior (que estaria a
priori contemplado na espécie humana) ele não abandona, respeitando os fundamentos da
filosofia crítica, uma forma de contemplar o homem como agente moral no uso prático da razão.
Porque a razão pura não pode prescindir da razão prática. A razão pura contém [...], é verdade que não no seu uso especulativo, mas num certo uso prático, a saber, o uso moral, princípios da possibilidade da experiência, isto é, ações que de acordo com os princípios morais, poderiam ser encontradas na história do homem (Geschichte des Menschen). Com
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efeito, como ela proclama que esses atos devem acontecer, é necessário também que possam acontecer e deve também ser possível uma espécie particular de unidade sistemática, a saber, a unidade moral, enquanto a unidade sistemática natural não pode ser demosntrada segundo princípios especulativos da razão; efetivamente, se a razão tem causalidade com respeito à liberdade em geral e não relativamente a toda a natureza, e se os princípios morais da razão podem produzir atos livres, as leis da natureza não o podem. Por conseguinte, os princípios da razão pura no seu uso prático e nomeadamente no seu uso moral, possuem uma realidade objetiva (objektive Realität). (KANT, apud MENEZES, 2000, p. 46).
Portanto, Kant se distanciou daquilo que tomou como mote inicial na filosofia de
Rousseau, e, em nossa leitura, este distanciamento se fez a partir de sua capacidade de ler
Rousseau além do Emílio. Foi essa capacidade que fez de Kant o filósofo que alcançou uma
teoria pedagógica que norteia a formação sócio moral, como nenhum outro o fez até então,
apontando para a valorização das escolas como espaços educativos nos quais se enseja essa
formação do sujeito autônomo. E, talvez por isso, continuasse ressaltando o pensamento de
Rousseau em declarações nas quais concordava com o filósofo genebrino, mas, ao final,
defendia a escola. Como se estivesse querendo nos dizer que algo precisava ser acrescentado
ao Emílio. O discurso educativo registra assim em uma ordem que é antropológica os efeitos de um proceder filosófico crítico. Kant faz desta tarefa a obra de sua vida, sustentado em Rousseau: “Toda a honra de um homem tem sua raiz em consagrar sua existência a ensinar a outros como viver, e o sacrifício de sua própria vida não é nada se o compara com o resultado esperado. As escolas, portanto, são necessárias. Para torna-las possíveis devemos nos referir ao Emílio. Seria desejável que Rousseau nos mostrasse como planejá-las”. (VANDERWALLE, 2004, p. 10, tradução nossa).
A defesa da educação feita pelos três filósofos considerando a educação como o meio
através do qual o homem será sempre melhor não é uma coincidência. Como já afirmamos
anteriormente, todos eles compõem um contexto que desemboca ou comprende a Ilustração.
São filhos de uma corrente que se propôs a questionar para onde a racionalidade poderia
conduzir o homem. Como afirma Enguita: Os iluministas compartilham o objetivo de desenvolver no aluno uma autonomia de juízo, a ideia de ensinar a pensar em vez de ensinar pensamentos prontos, certa repugnância pelos castigos, e a primazia da formação (educacional moral em Kant, cultivo da virtude em Rousseau, formação dos costumes em Locke...) sobre a instrução, pelo menos. (ENGUITA, 2013, p. 24, tradução nossa).
Mas, nesta citação de Enguita temos o que é específico em cada um: o cultivo das
virtudes em Rousseau, a formação dos costumes em Locke e a educação moral em Kant. Isso
faz toda diferença ao lermos os textos de educação que eles nos deixaram.
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Analisar os conceitos de educação de cada um nos possibilitou a constatação de
singularidades entre eles mostrando o que foi possível em cada momento, tendo em vista que o
cenário intelectual e cultural no qual escreveram foi sofrendo rápidas transformações e cada um
pode agregar algo mais em relação ao que o anterior havia deixado.
3.2 A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA E A MODERNIDADE
As concepções que fundamentam o processo educativo da criança subjacentes ao
discurso pedagógico dos três filósofos é algo que também precisa ser analisado porque estas
mostram os pequenos avanços que os distinguem em relação ao que o anterior lhe havia deixado
como herança.
Desta vez, comecemos por Kant, o último deles, para mostrar os avanços que seu
discurso pedagógico já contemplava em relação aos dois primeiros. Ao finalizar a Introdução
de seu opúsculo Sobre a Pedagogia Kant expressa qual é a premissa básica que deve nortear a
educação infantil: “Mostrar-me hábil, prudente, paciente, sem astúcia, como um adulto, durante
a infância, vale tão pouco como a sensibilidade infantil na idade madura.” (KANT, 1999, p.
36).
Ao ressaltar a habilidade, prudência, paciência e astúcia como qualidades que devem
ser esperadas de um adulto, Kant indica este vir a ser e deixa claro que, na infância, o ponto de
partida para que se tenha esses resultados é levar-se em conta, na abordagem da criança, sua
sensibilidade infantil, porém, sem desconsiderar sua racionalidade.
Escolhemos esta passagem porque pensamos que nela está a chave para o entendimento
de toda proposta kantiana para lidar, pedagogicamente, com a infância. Não se trata apenas de
contemplar a sensibilidade como uma proposta de educação empirista, mas, sim de levar em
consideração todo o edifício epistemológico que Kant havia construído e considerá-lo ao definir
uma proposta de educação infantil. Queríamos mostrar aqui que o que expõe de maneira transcendental nas teorias do esquematismo teórico, a típica prática ou o simbolismo estético, recebe uma conformação indireta em outra ordem fenomenológica ou antropológica que é a da educação, na qual em sentido inverso, nos “remontamos” do caso a regra, do exemplo a lei, da produção à ideia estética. A aprendizagem do pensamento é, de certo modo, um problema de esquematismo invertido, assim como a aprendizagem da liberdade remete à questão de uma típica prática. A possibilidade transcendental de apresentação do conceito na intuição, de uma inscrição da lei moral no sensível, deve estar acomnpanhada por um exame antropológico das passagens possíveis da sensibilidade ao entendimento e do temperamento ao caráter, a educação permite, então, interrogar a vida em sua unidade concreta, contribuindo para
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a produção de uma harmonia adequada das faculdades do homem, confirmação apagógica, segundo um modo antropológico, da unidade transcendental do espírito. Não há, desde já, nenhuma passagem direta possível ao conceito, como no empirismo. (VANDERWALLE, 2004, p. 11, tradução nossa).
A partir da citação de Vanderwalle (2004) entendemos melhor a perspectiva kantiana
ao tomar o “sensível” como ponto de partida para aquilo que deve ser constituído como lei geral
na idade adulta. Não se trata de uma passagem direta da intuição ao conceito, mas, de uma razão
que opera a partir de categorias, que dão tratamento aos fatos, transformando-os em leis.
Entendemos, além disso, que tomar a sensibilidade como ponto de partida não é uma
atitude isolada de Kant, mas, queremos salientar que na proposta do prussiano, partir da
sensibilidade é uma premissa epistemológica que confirma sua teoria crítica e não sua
vinculação ao empirismo, transformando a infância num cenário onde se atua pelo
condicionamento do corpo físico.
Ao ler o Emílio de Rousseau encontramos também a valorização da sensibilidade como
princípio educativo. Nas primeiras páginas do Livro I o genebrino afirma: “Nascemos sensíveis
e, desde o nascimento, somos afetados de diversas maneiras pelos objetos que nos cercam.”
(ROUSSEAU, 1999, p. 10). Também Locke já havia ressaltado a relevância de abordar a
infância a partir da sensibilidade desde a abertura de seu Tratado de Educação: “As mais
pequenas e insensíveis sensações que recebemos na infância têm consequências muito
significativas e duradouras.” (LOCKE, 2012, p. 58).
A partir das três citações o que podemos concluir? Que havia chegado o tempo em que
a escolástica não era mais benvinda. Que, como afirma Dalbosco (2011, p. 103) “se os
educadores quisessem realmente chegar até as crianças e conhecer o seu mundo, eles deveriam
tomar, como ponto de partida, sua organização corporal e sua estrutura sensitiva.”
Para Dalbosco (2011) Rousseau foi o responsável por despertar Kant de sua “demência
pedagógica”. Ele afirma: Émile forneceu a Kant um vasto material de crítica ao intelectualismo pedagógico reinante na época. Rousseau fora muito transparente no seu descontentamento em relação aos métodos educacionais mecânicos, já que estes, baseados na decoreba e na memorização, tornavam distantes do educando as próprias questões de ensino e de aprendizagem, fazendo com que a educação se tornasse, enfim, um tema enfadonho e desinteressante. O principal limite de tais métodos residia, segundo ele, no fato de quererem só raciocinar com as crianças e, partindo dedutivamente de conceitos abstratos, terminavam por desconhecer e desrespeitar o mundo delas. Rousseau mostrava-se cético em relação aos métodos tradicionais que impunham à criança o aprendizado somente por meio da transmissão e memorização de conteúdos. [...]. Subjacente a essa posição rousseauniana está a tese antropológico-epistemológica de que a criança, antes de ser racional é um ser
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sensível, que constrói suas relações com o mundo primeiramente pelos sentidos e só progressivamente desenvolve sua estrutura cognitiva. (DALBOSCO, 2011, p. 103).
Para nós, e isso é o que estamos intencionando demonstrar, a citada “tese antropológico-
epistemológica” ensejou não apenas o pensamento de Rousseau, mas antes já havia tocado a
Locke e, inclusive tocou, outros pedagogos como Pestalozzi (1746-1827) e Montessori (1870-
1952) que citamos aqui como exemplos, porque não poderíamos citar a todos. Mas, em nossa
maneira de analisar, apesar de ser esta a maior coincidência nos escritos que os três filósofos
nos deixaram ela se manifesta diferentemente em cada um deles. Em Kant, como já vimos, essa
sensibilidade é premissa subjetiva. A sensibilidade é uma capacidade que está nos homens de
traduzir as sensações que são dadas por meio do contato com os objetos. Há um entendimento
que pensa tudo isso que é captado por meio da sensibilidade. A pedagogia kantiana se inscreve nessa inquietude – própria da Öffentlichkeit das luzes – de comunicação, em uma distinção que é do sensível, com respeito a um sujeito que em última instância é o próprio homem e a ideia de humanidade. (VANDERWALLE, 2004, p. 36, tradução nossa).
Esta “inquietude de comunicação” que perpassa a obra de Kant ao se debruçar sobre
essa distinção do que vem a ser sensível, de que o “sensível” é, em última instância, aquilo que
está no próprio homem e inclui sua ideia de humanidade, é o que torna o sistema crítico
diferenciado dos demais. Em última instância nas obras dos três filósofos, algumas passagens
e recomendações acerca do que deve nortear o processo educativo da criança são comuns, mas
a leitura de fundo que faremos delas as distinguirá.
Acerca da disciplina, por exemplo, entendemos que, nem Locke, nem Rousseau, nem
Kant visam o adestramento. Se todos eles defendem o verdadeiro uso da liberdade como
passaporte para a moralidade não poderiam defender o adestramento. Mas, ao partir da
sensibilidade, cada um está respaldado em sua própria epistemologia. Em Locke A criança não é livre, pois ainda não concluiu o desenvolvimento de sua razão e da sua vontade. [...]. A educação para a liberdade dos seres que (ainda) não são livres exige a presença intrusiva do educador. O que vale por dizer que a educação para a formação de um cidadão livre, o contrário do ser servil, depende do exercício pelo pai de um controlo rigoroso sobre os comportamentos e hábitos da criança. (MORGADO, 2012, p. 17).
Isso guarda coerência com o que discutimos acerca de seu Ensaio sobre o Entendimento
Humano. A criança é tábula rasa e todo o desenvovimento de sua razão ocorre em consequência
do uso simples das ideias que pode obter ao entrar em contato com a realidade, para, só depois,
formar ideias complexas. Por isso, Morgado (2012, p. 18) segue tecendo comentários e dizendo
que: “A obediência ao pai é crucial para Locke nesta fase inicial da vida humana em que a
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pessoa ainda não identifica cabalmente a sua ‘estrela e bússola’, em que ainda não é capaz de
escutar a voz da razão.”. A atribuição de uma responsabilidade em relação ao pai – como
educador – é uma característica do texto lockeano e isso ocorre na primeira infância (até os sete
anos), como poderemos ver no fragmento extraído de Alguns Pensamentos sobre a Educação: O grande erro que observei no modo como as pessoas educam as crianças é não terem o cuidado suficiente com elas na altura certa; não saberem formar os seus espíritos na disciplina, habituando-as a submeterem-se à razão na idade em que são mais dóceis e flexíveis. [...]. Não se deve contrariar as crianças, dizem. É preciso deixa-las fazer a sua vontade em tudo [...]. O pequeno deve saber lutar, chamar nomes, ter o que pede aos gritos e fazer o que quer. É assim que os pais aparando e mimando as crianças quando são pequenas, corrompem nos filhos os princípios da natureza; [...]. Porque quando as crianças crescem, e com elas os maus hábitos, quando são já demasiado crescidas para serem corrigidas, [...], nesta altura só se ouvem os lamentos. [...]. Talvez, demasiado tarde, gostariam de poder arrancar as más ervas que plantaram com suas próprias mãos. Por que razão há de perder aos sete, aos catorze ou aos vinte anos, o privilégio que a indulgência dos pais lhe concedeu durante tanto tempo? (LOCKE, 2012, p. 59).
A infância é o período dedicado à disciplina na obra de Locke. E a disciplina consiste
em não lhes colocar no lugar de pequenos reizinhos. Em um trecho no qual ele fala sobre o
incentivo à vaidade refere-se a esse sentimento dos pais para com os filhos transformando-os
em príncipes e princesas.
As roupas, que têm naturalmente a sua razão de ser no pudor e na necessidade de calor e proteção, são, pelo louco vício dos pais, recomendadas aos filhos para outros usos. [...]. A mãe não pode fazer menos do que ensiná-la [à menina] a admirar-se a si própria, chamando-lhe a sua pequena ‘rainha’ e ‘sua princesa’. (LOCKE, 2012, p. 95).
A disciplina é, assim como na obra de Rousseau e de Kant, uma disciplina negativa cujo
propósito é acostumar a criança a se submeter às privações. Locke (2012, p. 93) chega a
defender que, em algumas situações, deixemos as crianças “gritar ou desesperar” e não nos
curvemos a satifaze-las, dando-lhes, por exemplo, uvas e ameixa, para que mais tarde
“renunciem a obter a mesma satisfação se o seu desejo tende para o vinho ou para a mulheres”.
E, acrescenta: A diferença não consiste em ter ou não ter paixões, mas em poder ou não disciplinar-se; contrariar-se na sua satisfação. Quem não tiver contraído o hábito de submetar a vontade à razão dos outros quando era jovem terá um grande trabalho em submeter-se à sua própria razão, quando tiver idade de fazer uso dela. (LOCKE, 2012, p. 94).
Ou seja, em Locke a disciplina negativa age na formação de hábitos levando à submissão
da vontade à razão. Se buscarmos no Emílio, encontraremos muitas recomendações de
Rousseau, a respeito dos cuidados com as crianças na primeira infância, que também vão seguir
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este direcionamento. “As pessoas criadas muito delicadamente só conseguem pegar no sono
sobre plumas; as pessoas habituadas a dormir sobre tábuas conseguem dormir em qualquer
lugar”. Em Alguns Pensamentos sobre a Educação, Locke afirma que: “A cama deve ser dura
e são preferíveis os colchões às penas. Uma cama dura fortalece os membros, mas uma cama
macia, onde se enterram todas as noites nas penas, amolece e dissolve o corpo [...]” (LOCKE,
2012, p. 83). Ambos, tanto Locke quanto Rousseau pedem que não mimem as crianças. Locke
(2012, p. 58) se dirige aos pais orientando-os em relação aos cuidados com os filhos pedindo-
lhes que, desde a infância “considerem em primeiro lugar a saúde do corpo” e afirmando que
“uma constituição vigorosa e endurecida pelo trabalho e fadiga é útil para quem quer ter o seu
lugar no mundo”. [...] os cavalheiros devem tratar os filhos à boa maneira dos lavradores honestos e dos fazendeiros abastados. Mas como essa máxima poderá parecer às mães um pouco dura e aos pais pouco expressiva, vou procurar transmitir o meu pensamento de uma maneira mais clara, logo que tenha estabelecido esta regra geral e uma pequena observação para as mulheres, a saber: que se vicia, ou pelo menos prejudica-se, a constituição da maior parte das crianças com a indulgência e a ternura. (LOCKE, 2012, p. 59).
Locke pede as mães para não acostumarem seus filhos com indulgência e ternura e
Rousseau julga necessário que sejam dadas as condições para o fortalecimento da criança. Esta,
desde cedo, deve ser estimulada a desenvolver todas as suas potencialidades para assim
constituir-se um organismo forte e preparado para as situações mais adversas. Por isso, dirige-
se às mães aconselhando-as: “Só se pensa em conservar o filho; isto não é suficiente; é preciso
ensiná-lo a se conservar enquanto homem, a suportar os golpes da sorte, a desafiar a opulência,
a viver se preciso, nos gelos da Islândia ou sobre o ardente rochedo de Malta.” (ROUSSEAU,
1999, p. 15). Ao orientar os pais Rousseau acredita que este seja o modo através do qual se
possibilitará que a criança venha a ter, mais tarde, o total senhorio de si mesma, conduzindo-a
a autonomia e a não dependência. Podemos ler isto na seguinte passagem: “quanto ao meu
aluno, ou antes, ao aluno da natureza, desde cedo treinado a bastar a si mesmo tanto quanto
possível, ele não se habitua a recorrer continuamente aos outros.” (ROUSSEAU, 1999, p. 131).
Se considerarmos que ao morrer, em 1704, Locke deixou a última versão de seu Tratado
de Educação finalizada e que só em 1756 Rousseau faria seus primeiros esboços da Nova
Heloísa, e mais tarde, em 1759 é que concluiria a primeira versão do Emílio, podemos
compreender porque na Introdução do Emílio, Michel Launay afirma que “Rousseau é então
bastante tributário das ideias de Locke.” (LAUNAY, 1999, p. X).
No opúsculo Sobre a Pedagogia Kant recomenda, assim como fizeram Locke e
Rousseau, que as mães não superprotejam seus filhos. Ele diz: “Tampouco uma afeição materna
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exagerada é útil aos jovens, uma vez que mais tarde lhes surgirão obstáculos de todas as partes
e receberão golpes de todos os lados, logo que tomarem parte nos afazeres do mundo.” (KANT,
1999, p. 14).
Respaldados pelas mesmas premissas os três recomendam uma série de cuidados com
relação às vestes, à proteção contra o calor e frio, à higiene corporal, aos passeios ao ar livre,
etc. Em Locke temos: “A primeira nota a ter em conta é que as crianças não devem estar vestidas
nem cobertas com roupas que as protejam demasiado, nem no Inverno nem no Verão.”
(LOCKE, 2012, p. 59).
Em Rousseau temos:
A criança recém-nascida precisa esticar e mover os membros para tirá-los do entorpecimento em que, unidos como num novelo, permaneceram por longo tempo. [...]. Os lugares em que se enfaixam as crianças estão cheios de corcundas [...] temendo que os corpos se deformem com os movimentos livres, apressam-se em deformá-los pondo-os entre prensas. [...]. Ainda não resolvemos enfaixar os cachorrinhos ou os gatinhos; resulta desta negligência algum inconveniente para eles? (ROUSSEAU, 1999, p. 19).
Em Kant a mesma discussão é retomada.
Convém [...] ter o cuidado de não manter os bebês muito aquecidos; porque o seu sangue é muito mais quente que o dos adultos. [...]. os ambientes frescos tornam os homens fortes. Os povos bárbaros não usam faixas nos bebês. [..]. deixam de fato o livre uso dos membros. Se nós transformamos os bebês como que em múmias, é somente para nossa comodidade [,,,]. (KANT, 1999, p. 41).
Assim como estas recomendações muitas outras são semelhantes. Em relação à
importância do leite materno, inclusive, Kant afirma: “Mas Rousseau foi o primeiro a chamar
a atenção dos médicos sobre as qualidades deste primeiro leite” (KANT, 1999, p. 38). Em
relação ao choro do bebê, em relação a ninar os bebês, etc. Kant diz: “Prejudica a criança ser
balançada de um lado para outro. [...]. Mas o choro lhes é salutar. (KANT, 1999, p. 42). Sobre
esta forma de conduzir a educação do infans o próprio Kant manifesta-se dizendo: “Em geral,
acaba-se por observar que a primeira educação deve ser puramente negativa, isto é, nada cabe
acrescentar às precauções tomadas pela natureza, mas apenas restringir-se a não perturbar a sua
ação.” (KANT, 1999, p. 42).
Todas essas formas de cuidados recomendadas pelos três filósofos são meios de preparar
a criança para se tornar forte e não se tornar dependente dos outros. Se continuarmos
selecionando estas recomendações que, no Tratado de Locke, aparecem em forma de verbetes,
e no Emílio aparecem no Livro I e II, podemos mostrar que este é o elo que os interliga.
Porém, posteriormente, o texto de Kant apontará caminhos diferenciados para esse
processo educativo. Nossa leitura do opúsculo Sobre a Pedagogia, contextualizando-o dentro
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do sistema crítico, nos leva a entender que essas passagens iniciais sobre os cuidados que devem
ser dispensados ao corpo infantil relacionam-se com a perspectiva crítica pois, para Kant, o
corpo é o alvo primeiro desse percurso de constituição moral que, conforme assinalamos, se
inicia com uma aprendizagem que se dá pela via da sensibilidade, mas a sensibilidade é uma
função subjetiva que trata aquilo que os objetos nos fornecem: a sensação. Portanto, trata-se de
um caminho para se constituir uma mente que suporta frustrações e aprende a prescindir daquilo
que lhe é mais fácil ou favorável e isso é admitido por Kant: “Tudo aquilo que a educação deve
fazer é impedir que as crianças cresçam muito delicadas. A fortaleza é o oposto da moleza.”
(KANT, 1999, p. 48). Mas, esta preparação do corpo não se esgota num objetivo puramente
físico. Tanto que Kant afirma: Quanto à educação da índole, que pode, em certo sentido, se chamar de física, é preciso sobretudo cuidar para que a disciplina não trate as crianças como escravos, mas sim que faça que elas sintam sempre a sua liberdade, mas de modo a não ofender a dos demais: daí que devam encontrar resistência. (KANT, 1999, p. 50).
Já desde a Introdução do opúsculo, Kant se distancia de ambos (Locke e Rousseau)
porque para ele a disciplina não é apenas um período preparatório através do qual se prepara o
corpo e o espírito para responder com civilidade ao que se espera do homem adulto neste novo
cenário social, mas, um estágio inicial no qual as crianças vivenciam situações que as preparam
para a verdadeira moralidade.
Inicialmente a disciplina, a princípio, negativa, mostra-se necessária tendo em vista que
apenas quando se recorre a ela precocemente, acostumando a criança a submeter-se aos ditames
da razão (ainda que esta razão inicialmente esteja centrada no outro), ela se torna, mais tarde,
um ser de autonomia.
Ao afirmar a relevância de submeter-se aos preceitos da razão vemos que, em Kant, este
é o elemento mais importante a ser considerado pelo processo educativo. Aqui, lembremo-nos
daquela metáfora de que o homem é infante e discípulo. Então, num primeiro momento, como
infante precisa do outro para ajudá-lo nesta tarefa. Mas este outro, deverá agir levando em conta
o concurso da razão.
Um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tomou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas o homem tem necessidade de sua própria razão. Não tem instinto, e precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta. Entretanto, por ele não ter a capacidade imediata de o realizar, mas vir ao mundo em estado bruto, outros devem fazê-lo por ele. (KANT, 1999, p.12, grifo nosso).
A disciplina negativa é uma defesa feita pelos três filósofos, mas, os alvos finais que
pretendem atingir se diferenciam na especificidade da filosofia de cada um. Para Kant é a
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disciplina que fará com que a bondade se perpetue. E, para o exercício da disciplina, ele propõe
que a criança conviva com outras, faça parte de um espaço coletivo, no qual sejam podadas
suas inclinações através de regras que irão cercear sua vontade egoísta. Rousseau não propõe a
disciplina com este fim. Antes, ele defende a natureza humana como soberana: Não existem hábitos que só se contraem pela força e jamais abafam a natureza? Assim é, por exemplo, o hábito das plantas cuja orientação vertical é contrariada. Posta em liberdade, a planta conserva a inclinação que a forçaram tomar, mas nem por isso a seiva muda sua direção primitiva e, se a planta continuar a vegetar, seu prolongamento voltará a ser vertical. O mesmo ocorre com as inclinações dos homens. Enquanto permanecemos na mesma condição, podemos conservar as que resultam do hábito e nos são menos naturais; mas, assim que a situação muda, o hábito cessa e a natureza retorna. (ROUSSEAU, 1999, l. I, p. 9-10).
Para o genebrino a natureza se corrompe com a civilização. Enquanto em Kant a
civilização é o meio de assegurar que tudo ocorra bem e a moralidade seja alcançada. Em
Rousseau a civilização apresenta-se como um perigo. É a forma como essa disciplina negativa
agirá que coloca os dois filósofos em vias opostas. Para Aramayo (2007, p. 34) “a diferença
seria – como nos disse o próprio Kant – Rousseau, procede sinteticamente e começa pelo
homem natural, enquanto Kant procede analiticamente e começa pelo homem civilizado.”
Este é o argumento que nos guiará à comprovação de nossa tese nas duas próximas
seções. Ao relacionar disciplina, sociabilidade e autonomia pretendemos examinar
detalhadamente esta afirmação feita por Aramayo (2007) munidos dos elementos de sua
filosofia crítica, para compreendermos o seu procedimento analítico.
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4 DA COAÇÃO À LIBERDADE: O QUE PODEMOS ENTENDER SOBRE DISCIPLINA E AUTONOMIA EM KANT?
Nas duas seções anteriores vimos que a especificidade da Pedagogia kantiana reside
exatamente na relação entre disciplina e autonomia. Por isso, nesta sessão, vamos nos debruçar
sobre essa relação que parece, à primeira vista, ser uma contradição, e, abordaremos a proposta
de formação do sujeito moral à luz da filosofia de Kant.
A aparente contradição entre coação e liberdade, assim tomada pelo senso comum, na
filosofia crítica apresenta-se como uma tensão necessária e contínua no exercício da moralidade
e, por isso, entendemos que para Kant a moralidade se constitui prioritariamente num ambiente
socializador, cujo intuito deve ser o de promover a disciplina com vistas ao desenvolvimento
da autonomia moral.
Nossa tese é que há em Kant uma Pedagogia Moral que contempla a educação pública,
desde a infância até a juventude. Uma reflexão feita a partir das obras do filósofo visando
identificar os argumentos teóricos que a comprovem, será apresentada nesta seção, pois,
conforme já vínhamos afirmando, são as relações entre disciplina e autonomia, por um lado, e
disciplina e sociabilidade por outro, que configuram o que estamos chamando aqui de uma
Pedagogia Moral kantiana para a infância.
Na seção 2 compreendemos como o Iluminismo tornou-se o núcleo de onde se originou
e do qual se enraizaram todas as discussões acerca do conceito de autonomia desenvolvido,
mais tarde, por Kant em sua filosofia crítica. Ao colocar o homem como o centro gravitacional
em torno do qual deveriam girar todos os saberes, o Iluminismo elevou, do ponto de vista
antropológico, a condição humana, e, em decorrência disto a concepção de autonomia surgiu
modificada e associada a outras categorias da modernidade como racionalidade e liberdade.
Podemos dizer, que foi a partir deste marco filosófico, que a autonomia veio a se transformar
numa categoria cujas bases não estariam mais limitadas ao campo político encontrando-se aí a
raiz da perspectiva crítica do termo autonomia: sua vinculação ao sujeito.
Na seção 3 discutimos o conceito de educação em Locke, Rousseau e Kant e concluimos
que, para todos eles, a educação torna-se a ponte para a autonomia e liberdade, mas só em Kant,
a disciplina ganha uma conotação diferenciada pois, negativa a princípio, respalda-se, no
entanto, na existência de um a priori que é substrato para o concurso da moralidade. Destarte,
esse é o princípio que sustenta a formação moral, sendo a razão o elemento que o homem
enquanto agente, utilizará para chegar à autonomia. Isso, só é possível, por considerarmos a
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epistemologia kantiana. Por entendermos que há uma possibilidade a priori característica da
espécie humana que pode vir a se concretizar no homem como agente moral.
É por isso que Kant abre o seu opúsculo Sobre a Pedagogia, afirmando ser a educação
o meio através do qual o ser humano tem a oportunidade de amadurecimento: “O homem é a
única criatura que precisa ser educada” (KANT, 2002, p. 2). Nesta citação o homem é o agente
moral que deverá fazer um percurso, mas, traz em si, uma bagagem que é própria da espécie
humana. A educação torna-se o meio através do qual a humanidade pode chegar a sua
destinação.
Educar moralmente a criança é despertar a consciência moral que compõe sua natureza
humana, mas precisa ser objeto de lapidação desde a infância. A disciplina forma parte deste
projeto de educação. A partir de uma leitura cuidadosa do opúsculo Sobre a Pedagogia,
investigamos quão proeminente é o interesse de Kant pelo tema da disciplina. Ao longo do texto
a disciplina se apresenta em todas as etapas de formação propostas pelo filósofo. Mesmo
quando Kant está se referindo a instrução e à moralidade ele retoma o tema da disciplina.
Exaltada por Kant, a disciplina é por ele considerada aquela que promove o homem à condição
de ser humano. A relevância conferida às discussões sobre a disciplina confirma-se quando
constatamos que estas discussões extrapolam os limites do opúsculo e disseminam-se em vários
outros textos da filosofia kantiana. Por conseguinte, podemos afirmar que a disciplina em Kant
não se resume a uma estratégia pedagógica para lidar com as crianças. Ela é mais do que isso.
Essa será a nossa discussão ao confrontar várias obras do filósofo com o propósito de
compreender mais aprofundadamente o que é disciplina na Filosofia Crítica.
4.1 LIBERDADE TRANSCEDENTAL, DISCIPLINA E AUTONOMIA
Em sua Crítica da razão pura o filósofo exalta a razão de forma peculiar e utilizando
uma estratégia perspicaz; realiza uma crítica através da qual questiona aquilo que quer defender
(a razão) levando esse questionamento até as últimas consequências. Neste caminho paradoxal
Kant utiliza o termo disciplina ao longo de sua obra e, o sentido atribuído a ele, é o mesmo que
se faz presente em sua Pedagogia: o sentido negativo.
O proveito maior e talvez único de toda a filosofia da razão pura é, por isso, certamente apenas negativo; é que não serve de organon para alargar os conhecimentos, mas de disciplina para lhe determinar os limites e, em vez de descobrir a verdade, tem apenas o mérito silencioso de impedir os erros. (KANT, 2001, p. 645).
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Intrigante é constatar a ausência do termo “disciplina” na Fundamentação da Metafísica
dos Costumes obra na qual Kant se dedica a esclarecer que o conceito de liberdade é a chave
para a compreensão do conceito de autonomia da vontade. Mas ao explicar a liberdade da
vontade como uma liberdade autônoma diz que ela não é desprovida de leis “pois, de outro
modo uma vontade livre seria um absurdo” (2007, p. 94). O próprio conceito de liberdade da
vontade (uma vontade pura, sintética, a priori) traz em si, a necessidade de disciplina, apesar
disto não ser nomeado pelo filósofo, pois, segundo ele
[...] não há ninguém, nem mesmo o pior facínora, [...], que não deseje, quando se lhe apresentam exemplos de lealdade nas intenções, de perseverança na obediência a boas máximas, de compaixão e universal benevolência (e ainda por cima ligados a grandes sacrifícios de interesses e comodidades), que não deseje, digo, ter também esses bons sentimentos. (KANT, 2007, p. 105).
Assim, a disciplina aparece indiretamente, nas entrelinhas, porque para a vontade ser
livre, do ponto de vista positivo, é preciso que tenha existido “grandes sacrifícios de interesses
e comodidades”. Kant admite que o homem “não pode realizar esse desejo apenas por causa
das suas inclinações e impulsos, desejando todavia ao mesmo tempo libertar-se de tais
tendências que a ele mesmo o oprimem.” (KANT, 2007, p. 105). Então é preciso que algo seja
feito que se aja sobre as inclinações, tornando possível ao homem contrapor-se aos impulsos
imediatos. “Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de desejar está em face das
sensações.” (KANT, 2007, p. 49). Somente disciplinando-se o homem pode se sobrepor às
sensações e, por isso, ela deve ser cultivada prioritariamente na infância, dirigindo-se ao ser
sensível, tornando-se o elo que conduz a um modo de funcionamento, por ele considerado,
humano por excelência, mas que precisa ser ensinado. Esta pessoa melhor crê ele sê-lo quando se situa no ponto de vista de um membro do mundo inteligível, a que involuntariamente o obriga a ideia da liberdade, isto é, da independência de causas determinantes do mundo sensível. Colocado nesse ponto de vista, tem ele a consciência de possuir uma boa vontade, a qual constitui, segundo a sua própria confissão, a lei para a sua má vontade como membro do mundo sensível, lei essa cuja dignidade reconhece ao transgredi-la. (KANT, 2007, p. 105).
Então, o que vem a ser disciplina? A partir desta concepção de sujeito que comporta em
si a liberdade da vontade e, através dela pode pautar suas ações tornando-se independente das
causas determinantes do mundo sensível, como opera a disciplina, na perspectiva kantiana,
tendo em vista o filósofo considerá-la como “a coação, graças à qual a tendência permanente
que nos leva a desviar-nos de certas regras é limitada e finalmente extirpada”? (KANT, 2001,
p. 589).
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Em sendo permanente a tendência a nos desviarmos das regras, a disciplina também
seria uma ação necessária e permanente para evitarmos os desvios? Ou seria uma ação
necessária durante uma etapa da vida humana, especificamente durante a infância, com vistas
à constituição de uma autonomia moral? Estaria, inicialmente, relacionada à ação do adulto
sobre as crianças numa concepção mais heterônoma? E, só mais tarde se caracterizaria como
uma ação do sujeito sobre si mesmo, como algo que emana de sua autonomia moral? Ou, o
conceito de disciplina em Kant não se estende à vida adulta? Vejamos como o próprio filósofo
nos ajuda a responder tais questionamentos.
Para aprofundarmos a discussão é preciso compreender, previamente, a concepção de
homem na filosofia kantiana. Por isso nos perguntamos: disciplina para quem? Quem é este
homem, segundo Kant? Esta é a quarta pergunta que compõe o seu sistema filosófico. Ela será
retomada aqui, mas nosso interesse é apenas atrelá-la à resolução dos questionamentos acerca
da disciplina para esclarecermos como kant age analiticamente, conforme a citação de Aramayo
(2007) no final da seção anterior.
Para compreendermos a concepção de homem e como esta nos ajuda na construção desta
investigação acerca da disciplina retomemos o conceito de moralidade que está esboçado na
Crítica da razão pura afirmando-a como um talento “que já por si mesmo tem uma propensão
para se manifestar” (KANT, 2001, p. 589). Kant, considera o homem como um ser predisposto
a moralidade por atribuir a ele uma dignidade.
que a simples dignidade do homem considerado como natureza // racional, sem qualquer outro fim ou vantagem, a atingir por meio dela, portanto o respeito por uma mera ideia, deva servir no entanto de regra imprescindível da vontade, e que precisamente nesta independência da máxima em face de todos os motivos desta ordem consista a sua sublimidade e torne todo o sujeito racional digno de ser um membro legislador no reino dos fins; pois de contrário teríamos que representar-no-lo somente como submetido à lei natural das suas necessidades. (KANT, 2007, p. 83).
Concebendo a disciplina como uma ação necessária para que este talento venha a se
manifestar, decorre a compreensão de que ela se dirige a um homem que já traz em si, algumas
condições para ser moral, e, portanto, a disciplina já encontra solo fértil para germinar.
Porém, Kant nos diz também que a disciplina tem um caráter negativo, porque se refere
a tudo que precisa ser suprimido. Ora, teríamos então uma contradição? A disciplina é dirigida
a um ente cuja propensão é agir moralmente, mas tem um caráter negativo através do qual
precisa suprimir algo desse homem. O que precisa então ser suprimido?
Ao tratar da boa vontade, do dever e do agir moral, em sua Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, Kant faz uma afirmação acerca do valor íntimo da pessoa e nos diz:
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Moderação nas emoções e paixões, autodomínio e calma reflexão são não somente boas a muitos respeitos, mas parecem constituir até parte do valor íntimo da pessoa; mas falta ainda muito para as podermos declarar boas sem reserva (ainda que os antigos as louvassem incondicionalmente). (KANT, 2007, p. 22).
Nesta citação o filósofo admite um valor íntimo, algo de bom que trazemos, mas diz que
precisa ser feito muito para que possamos agir em conformidade com esse bem. Ainda não
temos a resposta em relação ao que precisa ser suprimido, mas, sabemos que nos falta muito
para podermos declarar boas sem reserva essas qualidades.
Lançaremos mão de um texto no qual Kant reflete acerca do começo da história humana
e refere-se à ruptura do estado da natureza e o advento da razão para mostrar como é a partir do
próprio advento da razão que os vícios começam a ser cultivados. Em Começo conjectural da
história humana ele afirma que
antes do despertar da razão, não havia nem mandamento nem interdição e, portanto, ainda nenhuma transgressão; porém, quando a razão começa a exercer sua ação e, débil como é, luta corpo a corpo com a animalidade em toda a sua força, então deve aparecer o mal e, o que é pior, com a razão cultivada, vícios ausentes por completo no estado de ignorância e, consequentemente, de inocência. O primeiro passo para transpor esse estado foi, do ponto de vista moral, uma queda; e, do ponto de vista físico, a consequência foi toda uma série de males até então desconhecidos, logo um castigo. A história da natureza começa, por conseguinte, pelo bem, pois ela é obra de Deus; a história da liberdade começa pelo mal, porque ela é obra do homem. (KANT, 2010, p. 25).
Kant considera que assim que o homem saiu de seu estado de natureza adveio o mal
dentro dele. Salientamos que aqui ele atrela esse mal a história da liberdade. Ou seja, a partir
do momento em que se estabeleceu o livre arbítrio, o homem teve acesso ao mal. Mas esse mal
concerne apenas ao indivíduo, porque, graças a esse mal, através dele, se inaugurou uma história
da humanidade. “No que concerne ao indivíduo, que, no uso de sua liberdade, não pensa senão
em si, essa mudança foi uma perda; para a natureza, cujo fim, se tratando do homem, visa à
espécie, foi um ganho.” (KANT, 2010. p. 25). Por isso é possível dizer que Kant procede
analiticamente. Ao tomar este todo, a espécie, ele demonstra onde as partes (os indivíduos)
podem chegar.
Mas, com essa reflexão Kant quer assegurar que não nos basta estarmos inseridos nos
domínios da liberdade porque esse estado de liberdade é, em si mesmo, uma propensão às
inclinações, e o fato de trazermos o bem em nossa constituição embora nos permita, avançar
em direção àquilo que é próprio da espécie, não é condição suficiente. Na Religião dentro dos
limites da simples razão Kant argumenta que o mal decorre deste uso indevido da liberdade.
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A proposição “o homem é mau”, segundo o que precede, nada mais pode querer dizer do que: ele é consciente da lei moral e, no entanto, acolheu na sua máxima a deflexão ocasional a seu respeito. “O homem é mau por natureza” significa tanto como: isto aplica-se a ele considerado na sua espécie; não como se tal qualidade pudesse deduzir-se do seu conceito específico (o conceito de um homem em geral) (pois então seria necessária), mas o homem, tal como se conhece pela experiência, não se pode julgar de outro modo, ou: pode pressupor-se como subjectivamente necessário em todo o homem, inclusive no melhor. (KANT, 2008, p. 38).
O mal para Kant é um desvio e convivemos com ele como uma contigência por isso
pode “pressupor-se como subjetivamente necessário” no melhor homem. Em sua Antropologia
de um ponto de vista pragmático Kant apresenta a espécie humana [...] como uma espécie de seres racionais que, em meio a obstáculos, se esforça para se elevar do mal ao bem num progresso constante: assim, sua vontade é boa em geral, mas sua realização é dificultada pelo fato de que a consecução desse fim não pode ser esperada do livre acordo entre os indivíduos, mas apenas por meio de progressiva organização dos cidadãos da terra na e para a espécie, como um sistema cosmopolita unificado. (KANT, 2006, p. 227).
Kant resolve o dilema da aparente contradição entre o bem e o mal dizendo que a boa
vontade não pode ser esperada do livre acordo entre os indivíduos, mas apenas “a progressiva
organização dos cidadãos [...] como um sistema cosmopolita unificado” possibilitará a
moralidade. Disso decorre nossa tese relacionando disciplina, sociabilidade e autonomia. Se
não podemos esperar um livre acordo é preciso que algo que nos submeta, que algo seja
colocado acima de nossas “liberdades individuais” que nos arrastam para as inclinações. Isso
seria, no campo educativo, uma tarefa que começa com a disciplina. Mas não se limita a ela.
Além dela é preciso algo mais: é preciso um projeto de educação que nos torne cosmopolitas.
Mais uma vez o todo se mostra como a resposta que Kant elegeu para a conquista da moralidade.
Nesta seção vamos nos ater a primeira parte desta problemática e na seção seguinte trateremos
da segunda parte.
No que diz respeito a primeira relação, disciplina e autonomia, como devemos agir
diante das inclinações para que elas não nos dominem? No início desta seção já abordamos as
relações entre razão e disciplina, mas ainda é preciso voltarmos a esta relação. Na filosofia
kantiana a razão é soberana mas deve submeter-se à disciplina. Que o temperamento, assim como as disposições naturais, que de bom grado se permitem um movimento livre e ilimitado (como imaginação e agudeza de espírito), necessitem em muitos aspectos de uma disciplina, toda a gente admite facilmente. Mas que a razão, que tem por obrigação própria prescrever a sua disciplina a todas as outras tendências, tenha ela própria ainda necessidade de uma, pode parecer certamente estranho. E, de fato, escapou até hoje a uma semelhante humilhação, precisamente porque, devido ao ar solene e às maneiras imponentes com que se movimenta, ninguém podia facilmente
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suspeitá-la de um jogo frívolo, com imagens em lugar de conceitos e palavras em vez de coisas. (KANT, 2001, p. 590).
Nesta passagem Kant submete a razão, à disciplina. Nisso consiste o eixo de sustentação
da crítica kantiana. Ao propor uma crítica da razão pura o faz para que esta possa ser submetida
à apreciação pública. Portanto, no que diz respeito a Kant, não podemos perder de vista que
embora a razão seja o pilar sobre o qual o filósofo constrói todo o seu edifício teórico, ele não
a considera senhora de si mesma! Por isso fez a crítica!
A razão não é soberana e, muitas vezes, ela deve submeter-se à disciplina.
Mas onde, como na razão pura, se encontra um sistema inteiro de ilusões e de fantasmagorias, que estão bem ligadas entre si e unidas segundo princípios comuns, então parece ser indispensável uma legislação completamente especial, mas negativa, que, sob o nome de disciplina, estabeleça como que um sistema de precaução e de auto-exame, perante o qual nenhuma aparência falsa e sofistica possa subsistir, mas se deva imediatamente revelar, sejam quais forem os pretextos do seu disfarce. (KANT, 2001, p. 591).
É a disciplina que domina, inclusive, a razão, pois, embora haja no homem – enquanto
espécie - uma propensão para o bem, dado o caráter de sua dignidade, há também uma tendência
às inclinações. Decorre, portanto, que o que precisa ser suprimido ou controlado é esta
tendência às inclinações, e, é a disciplina que se incumbirá desta tarefa. Voltamos a esta questão
porque demarcamos, a partir dela, um limite para esse ser racional. Um golpe conferido pelo
filósofo em torno daquilo que poderia vir a ser o argumento que conferisse toda a onipotência
à humanidade.
A disciplina, desta forma, conduz o ser racional, e o faz, até mesmo, em situações da
vida adulta. Para que isto seja possível Kant, aponta o bom uso da obediência visando manter
o interesse público.
Ora, para muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. (KANT, 2007, p. 107-108).
Percebamos o quanto a disciplina é enaltecida por Kant. Nesta última citação, numa
situação na qual se conjuga uso privado e uso público da razão e, na qual, logicamente, as
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questões de ordem prática10 devem se sobrepor, a disciplina torna-se elemento indispensável e,
o que nos interessa frisar, aplicado à vida adulta.
Essa aplicação da disciplina durante toda a vida do homem está relacionada à razão
prática. Aquela capaz de determinar a vontade e a ação moral. “Na Crítica da razão prática [...]
Kant retoma as armas da crítica para esclarecer o enigma de como se pode contestar um uso
transcendente das categorias no domínio teórico e admiti-lo no domínio prático.” (ROHDEN,
2011, p. XVII). E, no que diz respeito à razão prática Kant a considera capaz de determinar a
vontade e a ação moral. a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma (KANT, 2007, p. 25, grifos do autor).
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes o filósofo faz um caminho que nos
ajudará a compreender como essa liberdade da vontade, boa em si mesma pode fundamentar a
ação moral, mas, no mundo dos fenômenos isso não quer dizer que ela seja soberana. Aborda
o problema da vontade e da ação moral da seguinte forma: ele chama de “boa vontade”, aquela
que norteará o bom uso das virtudes humanas e, através da razão prática, cuidará para que o
homem não enverede pelos caminhos que levam às inclinações.
Decorre então que, se para Kant, é a razão prática que incide sobre a vontade, mas esta
tem um componente trancendental que traz a vontade boa em si mesma, a disciplina dirige-se
a um só tempo, ao indivíduo como ser de inclinações e ao que nele há de humano, enquanto
espécie.
Mas ainda persiste um de nossos questionamentos: será possível ao homem livrar-se
definitivamente das inclinações? A partir destas reflexões, e, considerando que para Kant, até
mesmo a felicidade, pode estar em segundo plano e sacrificada, pois a razão persegue “o seu
supremo destino prático na fundação de uma boa vontade” (KANT, 2007, p. 26), entendemos
que o exercício de disciplinamento acompanha o homem durante toda a sua vida. O
Esclarecimento é uma ação contínua, da qual o homem não deve se esquivar nunca. Por isso,
Kant afirma que a boa vontade necessita de esclarecimento para brilhar com luz mais clara. E,
o esclarecimento é uma contínua atitude humana que o conduz à autonomia e domínio de si.
Portanto, será em função da disciplina que o esclarecimento poderá vir a ser conquistado
possibilitando à boa vontade alcançar esse brilho próprio. Conforme afirma o filósofo:
10 Tomemos aqui o sentido kantiano do termo prático que se refere à “tudo que é possível pela liberdade” conforme o que está posto na Crítica da Razão Pura A800/B728. Ou seja, tudo aquilo que diz respeito à moral pois ali o que Kant discute é o uso da liberdade como arbítrio para o exercício da moralidade.
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para desenvolver, porém, o conceito de uma boa vontade altamente estimável em si mesma e sem qualquer intenção ulterior, conceito que reside já no bom senso natural (2) e que mais precisa de ser esclarecido do que ensinado, este conceito que está sempre no cume da apreciação de todo o valor das nossas acções e que constitui a condição de todo o resto, vamos encarar o conceito do Dever que contém em si o de boa vontade, posto que sob certas limitações e obstáculos subjectivos, limitações e obstáculos esses que, muito longe de ocultarem e tornarem irreconhecível a boa vontade, a fazem antes ressaltar por contraste e brilhar com luz mais clara. (KANT, 2007, p. 26, grifos nossos).
Nesta citação Kant afirma que o dever contém a boa vontade. Ou seja, só é possível ao
homem agir por dever (moral) porque nele reside a boa vontade. Mas essa boa vontade que não
é ensinada precisa ser esclarecida. Em seu texto Resposta à pergunta: que é esclarecimento?,
encontramos o sentido dado ao termo esclarecimento: “a saída do homem de sua menoridade”
(KANT, 1985, p. 1). Há no homem uma supremacia do bem, porém, caso ele opte pela
menoridade esta não se manifestará. Apenas quando esclarecida, submetida ao dever, essa boa
vontade poderá brilhar com luz mais clara possibilitando ao homem agir fazendo uso de seu
próprio entendimento.
Ao associar o conceito de uma boa vontade esclarecida ao conceito de dever Kant mostra
como esse dever é algo que o homem confere a si mesmo porque nele já há uma predisposição
para o bem. Essa predisposição vem da boa vontade.
A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações. Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as nossas forças disponham), ela ficaria brilhando por si mesma como um joia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno valor. (KANT, 2007, p. 23, grifos nossos).
Mas essa concepção de homem (bom em si mesmo), herança de Rousseau, leva-o
também a considerar que todos corremos riscos pois “[...] todos os homens têm já por si mesmos
a mais forte e íntima inclinação para a felicidade” (KANT, 2007, p. 29) o que poderia nos levar
a supor que o problema do dever e da disciplina ganha relevância justamente por esta tendência
às inclinações. Se não fizermos o caminho do esclarecimento a boa vontade será como uma
jóia que brilha e tem o seu valor, mas não adquire valor de uso.
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Por isso, entendemos que a disciplina, como já foi dito, tem extrema relevância na
filosofia kantiana. A tomar a razão e a boa vontade como características da espécie humana, o
que Kant nos ensina é que a autonomia é uma condição a ser conquistada por todos os homens
porque há neles uma liberdade autêntica que se encontra acima dos impulsos da sensibilidade,
mas precisa ser lapidada. Portanto, a via natural através da qual o homem pode alcançar este
esclarecimento é o verdadeiro uso de sua liberdade. “Para este esclarecimento [Aufklärung]
porém nada se exige senão liberdade.” (KANT, 1985, p. 104).
Então, nos interessa questionar: de que liberdade Kant está falando? Se,
paradoxalmente, atribui a disciplina um papel tão significativo, no que diz respeito à
constituição da moralidade, e, disciplina é sinônimo de coerção, como podemos falar de
liberdade?
Estamos falando de dois tipos de liberdade. A primeira, aquela que motivou a saída do
homem de seu estado de natureza, é o livre-arbítrio. Mas, para Kant, há em nós uma segunda
liberdade a liberdade da vontade. Esta última é que possibilita ao homem agir segundo máximas
universalmente aceitas para a implementação de uma ação moral. A relação entre esta
liberdade, nomeada como liberdade da vontade, e a moralidade que podemos vir a conquistar é
explicitada na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e nos permite compreender o que
é, para Kant, a liberdade da vontade.
A liberdade da vontade é o primeiro componente, se pudermos assim chamar, da ação
moral. Para Kant somos seres propensos à moral. Esta liberdade que é transcendental é tomada
pelo filósofo como o “interesse que o homem possa tomar pelas leis morais”. A impossibilidade subjectiva de explicar a liberdade da vontade é idêntica à impossibilidade de descobrir e tornar concebível um // interesse que o homem possa tomar pelas leis morais; e, no entanto, é um facto que ele toma realmente interesse por elas, cujo fundamento em nós é o que chamamos sentimento moral, sentimento que alguns têm falsamente apresentado como padrão do nosso juízo moral, quando é certo que ele deve ser considerado antes como o efeito subjectivo que a lei exerce sobre a vontade e do qual só a razão fornece os princípios objectivos. (KANT, 2007, p. 112, grifos nossos).
Ou seja, para Kant, é impossível explicar subjetivamente, mas essa liberdade existe.
Existe como um arcabouço da espécie humana. Por isso, não pode ser explicada subjetivamente.
Existe e torna-se conhecida por nós a partir dos princípios objetivos que a razão fornece. Dela
decorre o interesse que o homem toma pelas leis morais. Dela decorre o sentimento moral, este
sim, subjetivo, efeito da lei sobre a vontade. Portanto, o fato de podermos agir moralmente
decorre de um valor transcendental. É um componente do ser humano. Não está no sujeito, mas
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na espécie! O interesse pela lei moral é o que reverbera em nós como espécie humana. E, ao
reverberar torna a razão pura e prática a um só tempo. Porque este
Interesse é aquilo por que a razão se torna prática, isto é, se torna em causa determinante da vontade. Por isso se diz só de um ser racional que ele toma interesse por qualquer coisa; as criaturas irracionais sentem apenas impulsos sensíveis. A razão só toma um interesse imediato na acção quando a validade universal da máxima desta acção é princípio suficiente de determinação da vontade. Só um tal interesse é puro. (Nota de Kant.) (KANT, 2007, p. 112).
Assim, a liberdade em seu sentido puro e especulativo é transcendental. E a razão prática
obtém dela as condições para agir. Mas nem sempre agiremos conforme essa liberdade. Em
algumas situações [...] a razão só pode determinar a vontade por meio de um outro objecto do desejo ou sob o pressuposto de um sentimento particular do sujeito, então ela só toma na acção um interesse mediato; e, como a razão não pode descobrir por si mesma, sem experiência, nem objectos da vontade nem um sentimento particular que lhe sirva de fundamento, este último interesse seria apenas empírico e não um interesse racional puro. O interesse lógico da razão (para fomentar os seus conhecimentos) nunca é imediato, mas pressupõe sempre propósitos do seu uso. (KANT, 2007, p. 112).
Para o filósofo a difícil tarefa é, portanto, encontrar um caminho que nos leve a agir
segundo a liberdade autêntica considerando o interesse lógico da razão que nunca é imediato.
O caminho prescrito por ele, é, primeiro conciliar a “liberdade da vontade” com o necessário
constrangimento que a razão prática deve contemplar porque no mundo dos fenômenos a razão
vai encontrar limitações. Estas limitações podem fazer falhar o cumprimento do dever.
Esta relação entre o sentido puro e o sentido prático da razão, em Kant, podemos
compreender melhor através dos exemplos que dá em sua Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. Lá ele nos mostra que até mesmo quando uma ação moral pode vir a ser assim
considerada no mundo dos fenômenos, ela pode não estar em conformidade com o conteúdo
moral puro. Isso ocorre porque, em alguns casos, ainda que o agir do homem possa ser tomado
como moral, o homem pode estar diante das inclinações caso sua ação moral não esteja dentro
daquele padrão de ação universalmente válido. Vejamos como isso acontece: Pode acontecer, de fato, que as nossas ações estejam materialmente conformes com o dever, mas que nós a façamos por interesse ou inclinação: é o que se passa com o comerciante que vende ao preço justo para manter a sua clientela, ou com o homem que ajuda o seu próximo unicamente por simpatia. Comportando-se desse modo eles permanecem no plano da legalidade. Esta exige apenas que se atue de acordo com a lei, pouco importando as intenções. A moralidade exige mais: que eu me conforme com o espírito e a letra da lei, que eu me conforme a isso por respeito por ela. (VANCOURT, 1982, p. 33).
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Ou seja, caso haja qualquer interesse particular, caso esta ação moral vise conferir ao
indivíduo algum benefício próprio, ainda que, aparentemente, seu caráter seja o de auferir
benefícios a terceiros, se assim for, ela não pode ser considerada moral. Se assim for ela não se
pauta no que determina o imperativo categórico no qual considera-se: “devo proceder sempre
de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal.”
(KANT, 2007, p. 33). Caso não proceda como está previsto no imperativo categórico então a
ação não é moral.
Na citação, Vancourt (1982) retoma uma das passagens iniciais da Fundamentação da
Metafísica dos Costumes através da qual Kant procura mostrar como as ações podem ser
“verdadeiramente conformes ao dever”, mas, em seu fim último, serem motivadas por razões
egoístas. Neste exemplo, o filósofo argumenta que “É-se, pois, servido honradamente; mas isso
ainda não é bastante para acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e
princípios de honradez; o seu interesse assim o exigia”. (KANT, 2007, p. 24). Ou seja, havia
neste exemplo de exercício da moral uma razão egoísta, interesse particular do negociante, pois
apenas no caso em que o homem “praticasse a acção sem qualquer inclinação, simplesmente
por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor moral.” (KANT, 2007, p. 28).
O autêntico valor moral, segundo Kant, está relacionado à seguinte conclusão:
Uma acção praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende, portanto, da realidade do objecto da acção, mas somente do princípio do querer segundo o qual a acção, abstraindo de todos os objectos da faculdade de desejar, foi praticada. (KANT, 2007, p. 30).
O autêntico valor moral estaria presente apenas se não houvesse nenhum interesse
particular do comerciante ao agir desta maneira. Somente neste caso teríamos uma ação moral
autônoma. Vemos, pois, que esse autêntico valor moral não se deduz a partir do mundo
fenomênico. Trata-se então de uma moral que advém do sujeito. Um sujeito que tem a liberdade
de escolher a partir daquilo que o constitui. É por isso que antes já dissemos que Kant avança
em relação à questão do esclarecimento e da autonomia e extrapola o campo político
enveredando por uma filosofia do sujeito.
Para Luc Vincenti (1994) esta relação entre moral pura e moral prática pode ser melhor
esclarecida se compreendermos tanto esta questão da transcendência quanto a questão da
liberdade prática. Ao discutir o que vem a ser o sujeito moral kantiano o autor afirma que:
[...] existe na filosofia kantiana uma síntese dos campos teórico e prático, que se opera afirmando o primado da filosofia prática, única capaz de resolver os problemas fundamentais da filosofia teórica, principalmente em relação à liberdade [...]. O fenômeno da imputação dos atos será, por outro lado, o
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primeiro índice empírico da responsabilidade total do sujeito. Ao definir a essência humana pela liberdade e pela razão prática, Kant eleva a noção de responsabilidade ao mais alto grau: doravante a natureza humana está em nossas mãos. Não é mais possível considerar uma natureza humana que receberíamos como dada; como escreve Kant, opondo-se às afirmações dos políticos, ‘É preciso, dizem, aceitar os homens como são... Em vez de ‘como são’, deveriam antes dizer ‘o que fizemos deles.’ (VINCENTI, 1994, p. 10).
Na citação vemos que a natureza humana é tomada como aquilo que temos em essência
enquanto espécie. Porém, o que se faz com os indivíduos resultará, pela razão prática, na
possibilidade de uma moral autêntica ou na sua impossibilidade. Essa possibilidade, por
conseguinte, perpassa um caminho que deve ser contemplado pela disciplina.
Já desde a Crítica da razão pura, na Doutrina Transcendental do Método, Kant ocupou-
se da disciplina considerando-a uma ação negativa e necessária cujo objetivo é impedir que os
homens se desviem para o caminho do erro. Ele considera que [...] onde os limites do nosso conhecimento possível são muito estreitos, grande a inclinação para julgar, a aparência que se oferece muito enganadora, e considerável o dano proveniente do erro, o carácter negativo de uma instrução, que unicamente serve para nos preservar do erro, tem ainda mais importância que muito ensinamento positivo pelo qual o nosso conhecimento poderia aumentar. A coação, graças à qual a tendência permanente que nos leva a desviar-nos de certas regras é limitada e finalmente extirpada, chama-se disciplina. (KANT, 2001, p. 589).
Nesta citação Kant faz referência ao caráter negativo da disciplina considerando-a uma
ação que deve limitar, podar as ações humanas daquilo que pode ser excesso, em decorrência
dos impulsos. Acerca do aspecto negativo da disciplina atentemos para a importante ressalva
que o filósofo faz explicando o sentido “negativo” atribuído ao termo: Sei bem que se costuma usar na linguagem da escola a palavra disciplina como sinônimo de ensinamento. Simplesmente, há muitos outros casos em que a primeira expressão, tomada no sentido de correção, se distingue cuidadosamente da segunda, tomada no sentido de instrução, e a natureza das coisas exige mesmo que se conservem, para esta distinção, as únicas expressões adequadas. Desejo, pois, que nunca se permita utilizar aquela palavra noutro sentido que não seja o negativo. (KANT, 2001, p. 590).
Kant define a instrução como uma ação positiva – um ensinamento necessário à
constituição da moralidade e a diferencia da conotação de disciplina comumente utilizada como
um conjunto de ensinamentos de um determinado ramo da ciência, que ele vai chamar em sua
Pedagogia de cultura da alma. A disciplina, nesta conotação negativa, e assim nomeada por
Kant, é aquela que retira do homem algo que o desviaria da moralidade. Portanto, temos que
contemplar no caminho que leva à constituição da moralidade, uma ação positiva (cultura) e
uma ação negativa (disciplina).
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A necessidade de uma ação negativa e de uma ação positiva pode ser melhor
compreendida, do ponto de vista da própria filosofia crítica, porque, precisamos situar o homem
como indivíduo e como espécie, limitar sua razão por entendermos, que, segundo Kant, somos
fenômeno e nôumeno. Assim, ao olharmos a racionalidade humana devemos fazê-lo
contemplando um duplo ponto de vista:
O primeiro enquanto pertencente a um mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas na razão. Como ser racional, e, portanto, pertencente ao mundo inteligível, o homem não pode pensar nunca a causalidade da sua própria vontade senão sob a ideia da liberdade, pois que independência das causas determinantes do mundo sensível (independência que a razão tem sempre de atribuir-se) é liberdade. Ora à ideia de liberdade está inseparavelmente ligado o conceito de autonomia, e a este o princípio universal da moralidade, o qual na ideia está na base de todas a acções de seres racionais como a lei natural está na base de todos os fenômenos. (KANT, apud SOUZA, 2009, p. 124).
Esta é a grande contribuição que a filosofia crítica trouxe para o conturbado contexto
das polêmicas entre empiristas e idealistas. Não se pode negar o fenômeno, mas, ele não é
soberano. O mundo inteligível é que organiza o mundo sensível. A disciplina age sobre a
criança na esfera do mundo sensível, mas, ela tem a capacidade de, progressivamente, tornar-
se autônoma dado que é um ser racional e pode fazer uso de seu entendimento elaborando o
que vivencia, porque ela tem em si, como característica da espécie uma boa vontade, livre em
si mesma.
Portanto, ao pensar numa filosofia moral kantiana temos que pensar neste duplo ponto
de vista, que nos traz a necessidade de uma razão prática em Kant e, com ela, nos traz a
necessidade de disciplinar. Mais uma vez afirmamos: Kant parte de Rousseau mas vai muito
além daquilo que o filósofo genebrino propôs. A disciplina em Kant prevê um vir a ser. Não
significa coerção como finalidade e sim como meio. Ela se inscreve dentro de uma dialética na
qual toda a tendência às inclinações é constantemente submetida à razão prática, e esta se
justifica porque temos uma liberdade da vontade pura. O homem sente em si mesmo um forte contrapeso contra todos os mandamentos do dever que a razão lhe representa como tão dignos de respeito: são as suas necessidades e inclinações, cuja total satisfação ele resume sob o nome de felicidade. Ora a razão impõe as suas prescrições, sem nada aliás prometer às inclinações, irremitentemente, e também como que com desprezo e menoscabo daquelas pretensões tão tumultuosas e aparentemente tão justificadas (e que se não querem deixar eliminar por qualquer ordem). Daqui nasce uma dialéctica natural, quer dizer uma tendência para opor arrazoados e subtilezas (1) às leis severas do dever, para pôr em dúvida a sua validade ou pelo menos a sua pureza e o seu rigor e para as fazer mais conformes, se possível, aos nossos desejos e inclinações, isto é, no fundo, para corrompê-las
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e despojá-las de toda a sua dignidade, o que a própria razão prática vulgar acabará por condenar. (KANT, 2007, p. 34-35).
Esta nossa tendência para formular esses “arrazoados” visando corromper a razão pura,
só pode ser superada quando nos colocamos sob o jugo de outras leis, inicialmente, para,
posteriormente, encontrarmos dentro de nós a própria lei. Porque [...] nada nos pode salvar da completa queda das nossas ideias de dever, para conservarmos na alma o respeito fundado pela lei, a não ser a clara convicção de que, mesmo que nunca tenha havido acções que tivessem jorrado de tais fontes // puras, a questão não é agora de saber se isto ou aquilo acontece, mas sim que a razão por si mesma e independentemente de todos os fenómenos ordena o que deve acontecer; (KANT, 2007, p. 41).
Ao concluir suas argumentações na Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant
reafirma a razão pura porque ela é o fim, ela é o alvo final, sem ela, estaríamos apenas sendo
submetidos às leis como meras imposições civilizadoras. Estaríamos apenas nos constituindo
como seres cuja máscara social esconde a fraqueza de caráter. Ou, na melhor das hipóteses,
seríamos apenas legalistas, submetendo-nos a lei porque é assim que deve ser, por acatarmos a
sua legalidade, e não pelo valor intrínseco atribuído ao bem.
Do aduzido resulta claramente que todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na razão, e isto tanto na razão humana mais vulgar como na especulativa em mais alta medida; que não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico e por conseguinte puramente contingente; que exactamente nesta pureza da sua origem reside a sua dignidade para nos servirem de princípios práticos supremos; que cada vez que lhes acrescentemos qualquer coisa de empírico diminuímos em igual medida a sua pura influência e o valor ilimitado das acções; (KANT, 2007, p. 46).
Portanto, em Kant, o agir moral é autônomo, porém, o caminho que nos leva a esse agir
moral autônomo, contempla, inicialmente uma heteronomia. Na Crítica da razão pura onde o
filósofo estabelece uma relação entre liberdade, arbítrio e inclinações isso fica muito claro ao
falar sobre a liberdade em sentido prático. “A liberdade no sentido prático é a independência
do arbítrio frente à coação dos impulsos da sensibilidade.” (KANT, 2001, p. 475, grifos
nossos). O sentido prático confere o verdadeiro uso da liberdade porque para Kant prático é o
termo que se refere à moralidade. Ou seja, no campo fenomênico os impulsos da sensibilidade
nos atingem, porém, nos atingem porque estamos sendo governados pelo “arbitrium sensível”,
um arbítrio que é “patologicamente afetado pelos móbiles da sensibilidade e por um arbitrium
brutum um arbítrio animal patologicamente necessitado” (KANT, 2001, p. 475, grifos do
autor). Quando o arbítrio se vê livre dessas versões e se torna um “arbitrium liberam” “o
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homem passa a ter a capacidade de determinar-se por si, independentemente da coação
dos impulsos sensíveis”. (KANT, 2001, p. 475, grifos nossos).
Aqui temos a relação entre o reinado de dois mundos distintos: o mundo inteligível e o
mundo sensível: Se eu fosse um mero membro do mundo inteligível, todas as minhas acções seriam perfeitamente conformes ao princípio da autonomia da vontade pura; mas, como mera parte do mundo sensível, elas teriam de ser tomadas como totalmente conformes à lei natural dos apetites e inclinações, por conseguinte à heteronomia da natureza. (As primeiras assentariam no princípio supremo da moralidade; as segundas, no da felicidade.) Mas porque o mundo inteligível contém o fundamento do mundo sensível, e portanto também das suas leis, sendo assim, com respeito à minha vontade (que pertence totalmente ao mundo inteligível), imediatamente legislador e devendo também ser pensado como tal, resulta daqui que, posto por outro lado me conheça como ser pertencente ao mundo sensível, terei, como inteligência, de reconhecer-me submetido à lei do mundo inteligível, isto é à razão, que na ideia de liberdade contém a lei desse mundo, e portanto à autonomia da vontade; por conseguinte terei de considerar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim e as acções conformes a este princípio como deveres. (KANT, 2007, p. 103-104).
Assim, para Kant, ainda que sejam considerados os dois pólos (mundo inteligível versus
mundo sensível) que afetam o comportamento humano, o mundo inteligível é soberano porque
este contém o fundamento do mundo sensível e também as suas leis. Ou seja, o homem, tem a
possibilidade de não se submeter ao mundo sensível porque o mundo inteligível é soberano. É
ele é que dará forma ao mundo sensível. Isto foi discutido quando tratamos da Estética
Transcedental. Este é o fundamento epistemológico de toda a filosofia kantiana.
Além de tudo isso que discutimos até aqui, não podemos esquecer que, para Kant, o
homem, contém em si mesmo a dignidade humana que o conduz à ação moral como já
afirmamos desde o início de nossas discussões nesta seção.
Noli naturam humanam in te ipso laedere11. De acordo com Kant (1997, p. 237) há em nós dois fundamentos de nossas ações: a inclinação – que corresponde à nossa animalidade – e a humanidade, à qual nossas inclinações devem estar subordinadas. Isso só é possível porque a humanidade é a depositária da dignidade. (MENEZES, 2012, p. 52).
A dignidade, enquanto valor intrínseco do ser humano atribui à pessoa essa prévia
condição de poder se sobrepor à animalidade. “A dignidade da humanidade consiste na
faculdade que ela possui de estabelecer leis universais, à condição, entretanto, de ser, ao mesmo
tempo, submissa a essa legislação”. (MENEZES, 2010, p. 203).
11 “Zeles para não ultrajar a natureza humana que há em ti mesmo.” (Tradução nossa).
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Por tudo isso, a disciplina, que está direcionada a essa pessoa, que pertence a um mundo
inteligível e sensível, dá-se como uma ação que faz parte do contexto de constituição da
moralidade e é incorporada pelo sujeito, que aos poucos vai se tornando autônomo e que, a
posteriori, passa a autodisciplinar-se. Mas, em razão de algo que já está, a priori, nele.
Devemos levar em conta que a dignidade, a razão, o sentimento de dever atrelado ao de
boa vontade, tudo isso, que já se encontra em nós, desde sempre, como um dado a priori, e, se
encontram as barreiras das inclinações, do sentimento de felicidade que arrasta o homem na
direção oposta, essas barreiras podem ser superadas. Por isso, se somos dotados destes
requisitos mas podemos nos desviar, necessitamos da disciplina e da cultura para que estes
elementos se aperfeiçoem e possamos agir dignamente como homens. Isso nos será dado pela
educação.
A personalidade moral nada mais é do que a liberdade de um ser racional submissa a leis morais auto estabelecidas. No tocante aos deveres do homem para consigo, considerado como ser moral, eles residem na forma do acordo das máximas de sua vontade com a dignidade da humanidade em sua pessoa. Isto quer dizer, ele não pode abdicar do privilégio de agir segundo princípios, ele não pode renunciar à liberdade. Percebemos em Kant uma preocupação com o homem caminhando para o coletivo, mas resguardando a sua liberdade e sendo responsável pela sua pessoa e pelo conjunto das outras individualidades (representado pela ideia de humanidade). (MENEZES, 2012, p. 57).
Assim, fica suficientemente argumentado o valor que Kant atribui à racionalidade e
autonomia do sujeito, à dignidade da pessoa e à liberdade como valor transcendental. Portanto,
não poderia ele, contraditoriamente, retirar essas características do ser humano ao formular sua
Pedagogia cuja proposta disciplinar fosse uma ação educativa dirigida ao homem com o intuito
de desrespeitá-lo, com fins vexatórios ou de apenas treiná-lo. Uma ação disciplinar deve
contemplar o indivíduo desde a infância, mas, respeitando sua dignidade e sua razão.
A disciplina opera dirigindo-se ao homem, este ser racional, que precisa ser educado
para que, no futuro, referencie seu modo de agir a partir da moralidade. Para que a moralidade
se constitua é preciso que antes haja disciplina, e, a meta da educação é tornar o homem
autônomo, ou seja, capaz de autodisciplinar-se, na vida adulta.
Então, cabe-nos, a partir desta constatação, concluir que a disciplina circunstanciada na
infância contempla uma perspectiva heterônoma, para que mais tarde, na vida adulta o homem
possa vir a agir de forma autônoma.
95
4.2 DISCIPLINA: O FIO CONDUTOR DA EDUCAÇÃO FÍSICA NA PEDAGOGIA KANTIANA
Em seu opúsculo Kant propõe a educação subdividindo-a em dois grandes segmentos:
a Educação Física e a Educação Prática. “A educação física é aquela que o homem tem em
comum com os animais, ou seja, os cuidados com a vida corporal.” (KANT, 2002, p. 34). Nesse
primeiro segmento estão incluídos os cuidados e a disciplina. Talvez por isso ele afirme que
essa parte da educação está relacionada com aquilo que o homem tem em comum com os
animais, porque refere-se aos cuidados e à disciplina que servirá para nos retirar da animalidade.
A proposta educativa esboçada pelo filósofo em suas preleções, na universidade de
Königsberg, contempla a disciplina como um fio condutor através do qual são dadas todas as
orientações necessárias para uma educação cuja proposta final é a liberdade. Kant não foge aos
princípios do sistema crítico quando elabora sua Pedagogia. Claro que estamos diante de um
dos núcleos centrais do sistema filosófico kantiano que diz respeito a uma de suas conhecidas
antinomias. Por isso não é fácil encontrarmos uma solução na qual sejam encerrados a bom
termo todos os aspectos que a envolvem. Mas, o filósofo não se eximiu da responsabilidade de
admitir os limites de uma proposta educativa voltada para tais fins ao considerar que “um dos
maiores problemas da educação é o poder de conciliar a submissão ao constrangimento das leis
com o exercício da liberdade”. (KANT, 2002, p. 27).
No entanto, vale salientar, ele também não hesita em declarar: “Na verdade, o
constrangimento é necessário!” (KANT, 2002, p. 27). Muito embora revele insistentemente
uma preocupação com a forma como esse constrangimento será empregado no processo
educativo pois questiona: “De que modo, porém, cultivar a liberdade?” (KANT, 2002, p. 28).
Portanto, em Kant a disciplina é uma forma de “ensinar [a criança] a usar bem sua
liberdade” (KANT, 2002, p. 28). E, indiscutivelmente, está relacionada ao homem racional,
portanto não nos cabe falar de adestramento como fica claro no trecho abaixo: O homem pode ser treinado, disciplinado, instruído, mecanicamente, ou ser em verdade ilustrado. Treinam-se os cães e os cavalos; e também os homens podem ser treinados. [...]. Entretanto, não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar. Devem-se observar os princípios dos quais todas as ações derivam. (KANT, 2002, p. 23).
Se para Kant, as crianças precisam aprender a pensar, e devem ser observados os
princípios dos quais todas as ações derivam, devem ser criadas oportunidades que as levem a
refletir sobre os comportamentos que são esperados de um sujeito moralmente autônomo
(enquanto esta autonomia não se constitui). Isso torna a Pedagogia um campo pragmático, mas
96
não podemos esquecer de onde devem emanar os princípios que nortearão estas práticas
pedagógicas.
Sendo a Pedagogia, em primeira instância, um conhecimento que se coloca na mesma perspectiva da Antropologia, no contexto kantiano, portanto, um caminho de aplicação e concretização da Ética, segue-se daí que a fonte de sua determinação racional será, necessariamente, a Moral. Esta é que fornecerá as leis a priori para a Pedagogia, assim como para a Antropologia. Comparada com a Antropologia, ela pode ser também definida como uma ciência pragmática, pois se desenvolverá no sentido daquilo que o homem pode e deve fazer de si mesmo. (SANTOS, 2004, p. 55).
Formulando nossas hipóteses nessa direção, tomemos este fragmento de Sobre a
Pedagogia para fundamentar nossa interpretação: “3. É preciso provar que o constrangimento,
que lhe é imposto, tem por finalidade ensinar a usar bem da sua liberdade, que a educamos para
que possa ser livre um dia, isto é, dispensar os cuidados de outrem”. (KANT, 2002, p. 18).
Ou seja, a criança é disciplinada para que desenvolva autonomia e liberte-se da
perspectiva heterônoma, aquela já discutida no início desta tese, a partir das reflexões em torno
do texto Resposta à pergunta: O que é esclarecimento?
Mas como Kant propõe que se dê esse processo de disciplinamento junto às crianças?
Comecemos por uma citação que o filósofo faz antes mesmo de adentrar na segunda seção de
seu opúsculo. Aqui se deve ter presente as seguintes regras: 1. É preciso dar liberdade à criança desde a primeira infância e em todos os seus movimentos (salvo quando pode fazer mal a si mesma, como, por exemplo, se pega uma faca afiada), com a condição de não impedir a liberdade dos outros, como no caso de gritar ou manifestar a sua alegria alto demais, incomodando os outros. (KANT, 1999, p. 33).
Nessa citação o que Kant defende é que ação restritiva seja aplicada quando a criança
está em perigo, portanto visa protege-la. Ou, quando esta se torna inconveniente para os demais,
quando grita alto demais. Isso revela, por si só, uma preocupação de Kant em torna-la apta ao
convívio social desde sempre. Portanto podemos, sem reservas, associar a disciplina à
sociabilidade porque ela prepara para o melhor convívio social.
Vemos, a partir dessa recomendação, que não se trata de uma disciplina que anula a
criança, mas de uma ação que visa o cuidado com a própria criança e com o outro. Tanto que o
exemplo gira em torno de uma situação na qual se aplica um limite à criança visando protege-
la dos riscos físicos eminentes, ou, cerceando-a para que não cause incômodo a terceiros, sendo
uma maneira de fomentar em sua subjetividade essa preocupação em distinguir os estreitos
limites entre os seus direitos e os direitos alheios.
Seguindo com suas recomendações o filósofo continua:
97
2. Deve-se-lhe mostrar que ela pode conseguir seus propósitos, com a condição de que permita aos demais conseguir os próprios; por exemplo, nada se fará que lhe seja agradável, se não fizer o que desejamos, ou seja, aprender o que lhe é ensinado, e assim por diante. (KANT, 2002, p. 18).
Aqui, neste trecho, percebemos o sentido negativo atribuído à disciplina kantiana. Num
primeiro momento, retira-se algo agradável para a criança, “nada se fará que lhe seja
agradável”, caso ela não obedeça às regras, “se não fizer o que desejamos”. Neste exemplo,
visualizamos claramente indícios de uma proposta metodológica para a educação infantil
visando preparar a criança para uma ação autônoma futura porque desde a infância ela é educada
para compreender que suas imposições não levarão aos objetivos esperados. Isso está em
Rousseau e é preservado por Kant. Mas, em Rousseau, está mais relacionado aos caprichos
infantis, e em Kant, vemos a constante preocupação com o outro. Ela só conseguirá seus
propósitos se respeitar os propósitos alheios. Retirar algo que lhe seja agradável significa
aplicar-lhe uma restrição do prazer para que sinta que este deve submeter-se ao dever. É aqui
que Kant trabalha com aquela perspectiva do ser sensível. Enquanto não faz o que o que é
recomendado, não terá também aquilo que deseja. Portanto sentirá a restrição aplicada no
âmbito sensível (das coisas que deseja) para, possa compreender o que é a prudência e a
temperança no âmbito do suprassensível.
Ao ingressarem na escola, as crianças, como elementos de um grupo, intensificam estas
aprendizagens quando podem vivenciar situações nas quais não sejam mais o centro das
atenções e afeições familiares. Quando não forem mais alvo de uma afeição materna exagerada,
conforme afirma o próprio filósofo.
Entendendo, portanto, que, num primeiro momento, o processo de disciplinamento
emana do outro, os pais ou o educador, concluímos que ele ocorre, na etapa de educação infantil,
num contexto familiar e posteriormente num contexto escolar, no qual há uma condução dos
pais ou do professor, respectivamente, para que a criança pense não só em si mesma, mas
também nos outros. Nesta etapa é o adulto que fará com que a criança recue em relação aos
seus impulsos e aprenda a submeter-se. Mas, enfatizamos, não se trata de uma submissão
vexatória. Entendemos, a partir da citação, que se trata de uma submissão dos impulsos às
necessidades que são requeridas para a vida num contexto coletivo.
Se destacarmos algumas das orientações que Kant elaborou para esta etapa que chamou
de educação física, e, de acordo com tudo que discutimos até então, deve ser desempenhada
“pelos pais, ou pelas amas de leite, ou pelas babás” (KANT, 1999, p. 37), veremos que esta
ação nada tem de vexatória. Veremos que há, por parte do filósofo, uma grande preocupação
em respeitar a criança.
98
Não vamos abordar todas as orientações, mas apenas destacar aquelas que, para nós
tornam-se relevantes no sentido de mostrar como se constitui essa disciplina. Por exemplo,
quando Kant orienta qual alimento deve ser dado aos bebês em substituição ao leite materno,
ele diz: Faz algum tempo que tentou-se dar ao bebê esse tipo de alimento [papinhas] desde o princípio. Tenha-se, sobretudo, o cuidado de não misturar algo picante, como vinho, condimentos ou sal. É na verdade estranho que os bebês manifestem tanto gosto por essas coisas! A causa é que, por terem os sentidos ainda embotados, provocam neles um estímulo e uma excitação que lhes agrada. Na Rússia os bebês certamente herdam esse tipo de gosto de suas mães, as quais tomam aguardente, e nota-se que os russos são fortes e robustos. Sem dúvida, aqueles que suportam esse modo de viver devem ter uma boa constituição física; mas é também verdade que muitos morrem enquanto deveriam poder sobreviver. De fato, uma excitação prematura dos nervos engendra muitas desordens na vida. (KANT, 1999, p. 40).
Sem dúvida estamos diante de orientações que vão repercutir na constituição física do
bebê em termos de resistência. Os cuidados devem ser dispensados levando-se em consideração
o que este pequeno corpo infantil pode suportar, para não se incorrer em erro que ponha sua
vida em risco, mas, simultaneamente, são apresentados como algo que traz implicações para
que este bebê cresça e mais tarde tenha um corpo mais robusto e resistente. Como já foi alvo
de exemplos na seção 3 uma cama dura, mas fresca, significa que não se exponha a criança ao
sofrimento e sim que seu corpo adquira rigidez. Os banhos devem ser frios pelo mesmo motivo.
Enfim, os cuidados com as crianças pequeninas não podem arruinar “as suas disposições
naturais” porque caso isso ocorra “para remediar ao mal será necessário depois aplicar-lhes
duríssimas punições” (KANT, 1999, p. 44).
Daí defendermos o sentido de disciplina que está implícito nesta primeira etapa
destinada aos cuidados. Porque visam manter o corpo livre de vícios para que, mais tarde, não
se necessite extinguir tais desvios. “Porque, mesmo para gente grande que esteve no poder por
algum tempo, resulta muito penoso desacostumar-se dele de modo forçado” (KANT, 1999, p.
44).
Mas, é preciso compreender esta educação porque ela não se propõe a se tornar agressão
e abuso contra o infante. “Não se deve quebrar sua vontade, a não ser que já estejam mal-
acostumados desde o princípio. A primeira perdição da criança está em curvarmo-nos ante sua
vontade despótica, de modo que possam conseguir tudo com seu choro.” (KANT, 1999, p. 45).
Nesta citação, ao mesmo tempo que salienta o respeito à criança, Kant, defende uma educação
que não a torne mimada.
99
Kant preocupa-se também em não expor a criança a situações vexatórias para que não
se constitua um caráter dissimulado, conforme ele exemplica:
[...] para citar apenas um exemplo, é algo estranho que alguns pais, depois de ter batido com uma vara em seus filhos, exijam que depois lhes beijem as mãos. É propriamente acostumá-los à dissimulação e à falsidade. Os golpes não são, pois, um belo presente pelo qual alguém possa mostrar-se agradecido; e pode-se imaginar com que coração a criança beija a mão de quem lhe bateu! (KANT, 1999, p. 45).
Situações nas quais se desrespeite a dignidade da criança não são recomendadas por
Kant, tanto que ele é totalmente avesso aos castigos. Os castigos em sua Pedagogia devem ser
dados em forma de punição física ou moral. “As punições físicas consistem em recusar à criança
o que ela deseja ou aplicar castigos. A primeira se assemelha à punição moral, e é negativa. As
outras devem ser usadas com precaução, para que não gerem disposição servil (índoles
servilis).” (KANT, 1999, p. 79).
Também se mostra contrário a qualquer instrumento ou aparelho que venham a inteferir
no desenvovimemto saudável do corpo, que vise auxiliar a criança a fazer aquilo que ela deve
ser capaz de fazer apenas com seus próprios esforços. Faixas e carrinhos para ajudá-la a
aprender a andar; ou auxílio demasiado nos momentos em que ela deve construir sozinha
algumas aprendizagens, como é o caso da aprendizagem da escrita. No primeiro caso Kant
recomenda: “O melhor é deixa-la engatinhar até que pouco a pouco comece a andar” (KANT,
1999, p. 46) e no segundo diz:
[...] seria muito possível que aprendesse a escrever por ela própria. Já que alguém deve ter inventado por primeiro a escrita, e essa invenção não é assim tão difícil. Bastaria, por exemplo, dizer à criança que quer pão: “você pode desenhá-lo?”. Ela desenharia uma figura oval. Poderemos observar, então, que não se distingue se quis desenhar um pão ou uma pedra. Tentará fazer depois um P, e assim por diante, desse modo, formará por si mesma o seu próprio abecedário, o qual ela poderá substituir, a seguir, por outros sinais. (KANT, 1999, p. 47).
Estes primeiros cuidados têm como alvo a constituição física com vistas ao cultivo da
autonomia do ser, no sentido de, desde sempre, tirar de si mesmo através de esforços próprios
o caminho em direção ao desenvolvimento: “Tudo aquilo que a educação deve fazer é impedir
que as crianças cresçam muito delicadas. [...]. Entendemos por educação rígida simplesmente
aquela que nos afasta das comodidades”. (KANT, 1999, p. 48-50). Aqui relebramos aquilo que
já discutimos quando citamos a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e destacamos a
necessidade de que a boa vontade se manifesta caso haja “sacrifícios de interesses e
comodidades” (KANT, 2007, p. 105). Esse período inicial é preparatório para que a boa vontade
possa vir a brilhar com luz mais clara.
100
O fundamental aqui, e que deve ser levado em conta pela educação física, é a ideia de que há uma teleologia natural que, por meio da liberdade concedida a todo ser racional, o impele a auto-organização das próprias forças. Ou seja, dito de outro modo, a natureza concebeu os seres racionais em liberdade, considerando esta (a liberdade), no caso espécífico do bebê humano, como um fato decisivo para o desenvolvimento das próprias disposições. Por isso, o educador que desrespeitar a liberdade da criança, transformando-a num simples objeto de seus sonhos ou desejos, certamente estará adestrando-a, mas jamais lhe oferecendo educação. (DALBOSCO, 2011, p. 111).
Após este primeiro momento dedicado à educação do corpo, Kant vai anunciar como
deve ser feita a educação da índole, que, segundo ele, “pode, em certo sentido, se chamar de
física”. Em sua Pedagogia Kant agrega tudo aquilo que deve ser feito no plano físico ao que
deve repercutir no plano abstrato por entender que todas essas orientações devem contribuir
para a formação de um modo reto de ser.
No que tange à educação da índole, ele continuará a fazer recomendações que se situam
numa posição de equilíbrio na qual nem se acostume a criança ao prazer e gosto fácil nem se
exija dela aquilo que lhe traria sofrimento ou vergonha. “É preciso sobretudo cuidar para que a
disciplina não trate as crianças como escravos, mas sim que faça que elas sintam sempre a sua
liberdade, mas de modo a não ofender a dos demais: dai que devam encontrar resistência.”
(KANT, 1999, p. 50).
Por isso, não recomenda que os adultos gritem nem atormentem as crianças com atitudes
que venha a irritá-las. “Nem a burla e os carinhos contínuos ajudam mais que essa educação
irritante”. (KANT, 1999, p. 51). Tudo isso torna a criança teimosa na sua vontade, torna-a
fingida” (KANT, 1999, p. 51). Nem recomenda também que os adultos se recusem a fazer tudo
que elas querem como se estivesse querendo nos dizer: não podemos anulá-las! Há sempre um
caminho do meio indicado por Kant. Um equilíbrio pensado a partir da conciliação entre
extremos.
Muitos pais recusam tudo aos seus filhos para exercitá-los na paciência, exigindo dos filhos mais paciência do que eles próprios demonstram. Mas isso é crueldade. Dê-se à criança tudo que ela precisa e depois seja dito: “Você já tem o suficiente!” Mas é absolutamente necessário que essa sentença seja irrevogável. (KANT, 1999, p. 50).
Ou seja, não se pode ceder aos caprichos infantis, porém, também não se pode negar
tudo. Mas, uma vez negado, manter a decisão tomada e não voltar atrás. Todas essas
recomendações envolvem o que ele chama de parte negativa da educação física. A parte
positiva segundo ele é a “cultura” e “por ela o homem se distingue do animal [...] [e] consiste
notadamente no exercício das forças da índole. Nesta parte observamos que ele retoma várias
orientações que já haviam sido prescritas na primeira parte que denominou de negativa, mas
101
neste segmento, a ênfase recai sobre a aprendizagem de habilidades: aprender a andar, nadar,
passar por caminhos estreitos, caminhar sobre bases balançantes, subir montanhas, saltar sobre
precipícios, correr, pular, etc.
O desenvolvimento destas habilidades está relacionado à cultura porque elas
acrescentam um ensinamento, e, nada se tira das crianças, como na educação negativa até aqui
exposta. Kant ressalta os medos e anseios que, em seu tempo, se revelavam em certas reservas
no que diz respeito à aprendizagem destas habilidades que nem eram vistas como indicadas
para as crianças, por serem, estas últimas, consideradas frágeis e insuficientes. Mas enfatiza
que
Tais experimentos com as crianças não são na verdade perigosos. De acordo com a sua idade, elas são mais leves que os adultos, e por isso suas quedas são menos graves. Além disso seus ossos não são tão rígidos nem tão quebradiços, como o serão mais tarde. (KANT, 1999, p. 55).
Assim, ele transforma a criança em potência. Atribui-lhe a capacidade de desenvolver
autonomia (do ponto de vista físico) e a considera um ser de cultura. Nesse sentido, transforma
a proposta de educação infantil numa proposta através da qual o corpo é preparado para a
independência, no sentido de conduzir-se.
Recomenda também os jogos seguindo a mesma pretensão de que, a partir deles, a
criança possa desenvolver habilidades como “o jogo de bola [que] é um dos melhores para as
crianças, pois requer a corrida benfazeja” e associa esses jogos ao desenvolvimento de outras
capacidades pois, segundo ele, há aqueles que, além de desenvolver a habilidade, provocam o exercício dos sentidos; por exemplo, o exercício da visão, ao julgar com exatidão a distância, a grandeza e a proporção, ao descobrir posições dos lugares conforme as regiões do céu com a ajuda do Sol, e assim por diante, todos esses exercícios são muito bons. (KANT, 1999, p. 55-56).
Essa proposta prepara a criança para a instrução que virá em seguida, pois, se ela já é
capaz, de “descobrir posições [...] com a ajuda do Sol”, e isso dá-se, primeiro, no plano da
sensibilidade, para que ao fazer uso do entendimento possa, por exemplo, aprender os pontos
cardeais.
Várias brincadeiras sugeridas por Kant cumprem essa mesma função. “a brincadeira de
cabra-cega, por exemplo, é para saber como poderiam desempenhar-se, caso fossem privadas
de um sentido.” (KANT, 1999, p. 56). A intenção é que a experiência vivenciada no nível da
sensibilidade possa fazer com que a criança chegue a generalizações no nível do entendimento.
Experimentando essa sensação a criança aprende a valorizar sua própria visão e compreende
como aqueles que não têm visão devem se sentir.
102
A brincadeira do pião, segundo o filósofo, “dá aos homens ocasiões para reflexões
ulteriores e, às vezes, são ocasiões de importantes descobertas.” (KANT, 1999, p. 56-57). Para
confirmar esta afirmação ele cita o exemplo de Segner que “escreveu uma dissertação sobre o
pião, a qual forneceu a um capitão de um barco inglês a ocasião de inventar um espelho, com o
qual se pode medir, desde o navio, a altura das estrelas.” (KANT, 1999, p. 56-57).
Assim, de tudo Kant tira um propósito. “O papagaio é um brinquedo inocentíssimo.
Desenvolve a habilidade, uma vez que empinar papagaio depende de uma certa posição em
relação ao vento” (KANT, 1999, p. 57).
Também é importante ressaltar que as brincadeiras nesta proposta de educação kantiana,
são oportunidades de aprendizado no nível da sensibilidade daquilo que depois é tratado no
nível da abstração.
Também o brincar é uma forma de ocupar a criança. Há uma intenção pedagógica de
fazer com que renuncie a outras necessidades e, neste sentido, funcionam como oportunidades
de privação. “Com o interesse nesses brinquedos a criança renuncia a outras necessidades e,
assim, pouco a pouco, se acostuma a privar-se de outras coisas.” (KANT, 1999, p. 57).
A virtude do jogo consiste também em ensinar a privação e em ajudar a renunciar a certas necessidades. De tal modo, o jogo revela o que a psicologia contemporânea denominaria um espaço frustrante, que permite à criança realizar a aprendizagem do princípio de realidade. O jogo do corpo e do espírito, então, se orienta teleologicamnete até o trabalho do conhecimento. (VANDERWALLE, 2004, p. 59-60, tradução nossa).
Ao mesmo tempo limita algumas brincadeiras pois considera que estas produzem
incômodo aos outros como, por exemplo, brincar com “trombetas, pequenos tambores e outros.
[...]. Tais instrumentos de nada servem, pois, os outros são simplesmente molestados por eles.”
(KANT, 1999, p. 57). Toda restrição deve mais uma vez entendida como medida disciplinar
cujo propósito é ensinar à criança que não pode perturbar a paz alheia.
Por fim, a última etapa desta proposta educativa que Kant chamou de educação física, e
é tratado por ele nesta segunda seção de seu opúsculo, ele denomina como “cultura da alma”.
A “cultura da alma” se distingue da moralidade “pois esta se refere à liberdade, aquela, apenas
à natureza. [...]. É preciso distinguir a formação física da formação prática, sendo esta
pragmática ou moral. Nesta última temos a moralização e não a cultura.” (KANT, 1999, p. 59).
Portanto, no que tange à educação física esta cultura da alma também chamada de cultura do
espírito é um momento dedicado à instrução.
103
Kant defende que a instrução seja tratada com seriedade e neste momento apresenta a
pedagogia do trabalho. Para ele “a cultura escolástica é coisa séria” (KANT, 1999, p. 60). A
criança deve ter a obrigação de estudar. A criança deve brincar, ter suas horas de recreio, mas deve também aprender a trabalhar. Certamente é bom exercitar a sua habilidade e cultivar o seu espírito; mas deve-se dedicar horários diferentes a estas duas espécies de cultura. Consitui grande infelicidade para o homem ter de ficar à toa tão frequentemente. Quanto mais ele se abandona à preguiça, mais dificilmente se decide a trabalhar. (KANT, 1999, p.60).
É assim que nos apresenta sua pedagogia do trabalho como mais uma forma de
disciplinar a criança estabelecendo horários para brincar e trabalhar, equivalendo o estudo ao
trabalho com o qual a criança deve acostumar-se desde cedo. “É de suma importância que as
crianças aprendam a trabalhar. [...]. E onde a tendência ao trabalho pode ser mais bem cultivada
que na escola? A escola é uma cultura obrigatória. Prejudica-se à criança, se se a acostuma a
considerar tudo um divertimento.” (KANT, 1999, p. 62).
Mais uma vez Kant aponta a escola como espaço no qual a disciplina está acima de
qualquer outra coisa. O importante não é tão somente aprender, mas, compreender, através
dessa aprendizagem, o valor do trabalho.
Define o que é a cultura física do espírito e a subdivide em cultura livre e cultura
escolástica: “A primeira é aquela que deve se encontrar naturalmente no aluno; na segunda ele
pode ser considerado como submetido a uma obrigação. [...]. O homem precisa de ocupações,
inclusive daquelas que implicam um certo constrangimento.” (KANT, 1999, p. 60-62). A
instrução é apresentada por Kant como uma etapa na qual se cerceia o prazer e acostuma-se a
criança a suportar as longas horas de estudo, para que, no futuro, possa estar disciplinada para
o trabalho.
No entanto Kant não deseja que a criança seja escravizada. “A educação deve ser
impositiva; mas nem por isso, escravizante” (KANT, 1999, p. 62). Por isso, não prega uma
metodologia mecanicista. A metodologia é apresentada como o um caminho para a cultura das
potências do ser humano. Esse cultivo se inicia a partir das potências inferiores para se alcançar
depois as superiores. Assim como no caso da disciplina que age no plano sensível para que tudo
seja conquistado no plano moral. No que toca à livre cultura das potências, note-se que progride continuamente. Ela deve estar voltada sobretudo às potências superiores. Cultivar também as potências inferiores, mas apenas tendo em vista as superiores; a espirituosidade, por exemplo, com vistas ao entendimento. A principal regra é essa: não desenvolver separadamente uma potência por si mesma, mas desenvolver cada uma levando em conta as outras, como a imaginação a serviço da inteligência. (KANT, 1999, p. 63).
104
Nesse sentido, critica a escolástica por sua ênfase recair sobre a memorização. “As
potências inferiores não têm, por elas mesmas, nenhum valor; por exemplo: que adianta, que
um homem tenha grande memória, mas pouco discernimento?” (KANT, 1999, p. 63). E diz que
“espirituosidade não faz senão disparates, quando não acompanhada do juízo.” (KANT, 1999,
p. 63).
É assim que Kant arremata esta seção defendo aquilo que consideramos ser o argumento
nuclear que congrega tudo que propõe com sua educação física. Neste bloco final dedicado à
instrução mostra que a razão é mestra. Mas a disciplina orienta a razão a chegar aos seus
propósitos. É preciso memorizar sim! Embora, de nada sirva, uma memória sem discernimento.
A relevância dada por ele à regra geral que não pode ser conquistada senão pela razão mostra-
nos como esta (a razão) deve comandar todos os processos de aprendizagem. Mas, como toda
aprendizagem passa primeiro pelo particular, pelo sensível, o caminho se faz da sensibilidade
ao entendimento.
Kant indica em muitas ocasiões a necessidade de levar em conta o desenvolvimento da criança e sua maturidade; é preciso que haja acordo entre a ordem natural da razão e a ordem própria do ensino. A coincidencia entre ambas é pouco frequente. Kant propõe uma progressão que se inicia na sensibilidade (começar mediante juízos intuitivos, de experiência), com o objeto de produzir os conceitos, conhecidos pela razão, produzindo conceitos a partir dos objetos, conhecidos por sua vez pela razão, até chegar a totalidade racional. Contudo, com excessiva frequência o ensino inverte as coisas e forma o sábio ou a razão antes do entendimento. (VANDERWALLE, 2004, p. 65, tradução nossa).
Desta forma Kant atribui à memória, considerada uma potência inferior, uma condição
de estágio que leva ao entendimento. “As coisas estão feitas de tal modo que o entendimento
não acontece senão após as impressões sensíveis e toca à memória guardá-las. [...]. Desta forma,
Kant não despreza a memória mas critica seu uso tão somente com o propósito de uma educação
livresca. “A memória deve ser ocupada apenas com conhecimentos que precisam ser
conservados e que têm pertinência com a vida real.” (KANT, 1999, p. 65).
Reforça também a ótica de uma educação voltada para o desenvolvimento da
maioridade pois a seleção de conteúdos ocorre em função de outros que mais tarde serão
necessários para a vida. Nesse sentido, recomenda, por exemplo, que a criança desenhe, modele,
faça relatos. “Os relatos de viagem, explicados através de gravuras e de mapas, conduzem em
seguida à Geografia Política.” (KANT, 1999, p. 66). Esta passagem é elucidativa pois tece uma
relação entre o conteúdo a ser aprendido na escola e o conteúdo que, futuramente, tornar-se
necessário para o sujeito esclarecido.
105
Desse modo, muitos outros exemplos poderiam ainda ser localizados em suas preleções,
porém, o que é importante concluir diz respeito a um princípio pedagógico, muito atual, que,
entretanto, já se encontrava formulado no seio da Pedagogia kantiana: a importância de
aprender a pensar. “Que é aprender a pensar?”. (KANT apud VANDERWALLE, 2004, p. 60,
tradução nossa). Esta é a interrogação que o próprio Kant se faz em uma espécie de “programa”
utilizado para suas lições no semestre de inverno de 1765-1766. Como afirma o texto “Anuncio sobre el programa de sus lecciones para el semestre de invierno 1765-1766”, Kant põe no centro de sua pedagogia uma aprendizagem não de pensamentos mas sim do próprio pensamento. Não se trata tanto de aprender conteúdos propostos pelo mestre, mas sim de aprender a exercer uma faculdade ativa que é o pensamento. Na realidade, em sua escolaridade a criança aprende a aprender; o mestre o guia em seu progresso intelectual a fim de que, no momento oportuno, possa caminhar por si só. Assim, a pedagogia é uma prática de orientação (guiar e não levar). Se trata, sem dúvida, de incrementar uma capacidade intelectual que passa, antes de tudo, pela atitude de forjar-se um juízo pessoal (plantar, dsse Kant, as fecundas raízes do conhecimento, mais que os conhecimentos propriamente ditos). (VANDERWALLE, 2004, p. 60, tradução nossa).
Evidencia-se assim, uma pedagogia através da qual a ciência se impõe como ingrediente
fundamental. Essa, não é uma educação que possa ser ministrada sem que para ela os mestres
tenham, antes, se preparado. Disso resulta a imediata compreensão da defesa kantiana da
Pedagogia como ciência, da educação pública e dos institutos. Na instrução da criança é preciso unir pouco a pouco o saber e a capacidade. [...]. Além disso, é preciso unir a ciência à palavra (a facilidade no dizer, a elegância, a eloquência). E, ainda, a criança deve aprender a distinguir perfeitamente a ciência da simples opinião ou da crença. [...]. Deve haver regras para tudo aquilo que pode cultivar o entendimento. É também muito útil abstraí-las, para que o entendimento proceda não apenas mecanicamente, mas tenha consciência da regra que segue. (KANT, 1999, p. 66-67).
As recomendações dadas pelo filósofo vão ocupando todo cenário pedagógico e, ao
destacá-las vemos que se preocupou com questões gerais, que se tornam princípios
pedagógicos, como essa questão relativa ao “aprender a pensar” e, também se preocupou com
questões relacionadas a estratégias requeridas de um educador atento ao seu cotidiano de
trabalho. Nesse sentido, Kant elabora recomendações que, muitas vezes, parecem
extremamente simples, mas trazem consigo a grandeza do que é uma verdadeira pedagogia. Em
relação ao fortalecimento da atenção, por exemplo, diz: “note-se que ela precisa ser reforçada.
Unir fortemente nossos pensamentos a um objeto não é bem um talento, mas antes uma fraqueza
do nosso sentido interior, o qual se apresenta indócil, e não se deixa conduzir a nosso talento.”
(KANT, 1999, p. 69).
106
Por fim Kant resume essa proposta, ao definir quais devem ser os focos principais da
educação do espírito, que requer, acima de tudo o desenvolvimento das potências do
entendimento, quais seja: o entendimento, a faculdade de julgar e a razão. Pode-se começar formando, ainda que passivamente, o entendimento, citando exemplos que se apliquem a uma regra ou, ao ocntrário, a regra que se aplique a exemplos particulares. A faculdade de julgar mostra o uso que se deve fazer do entendimento. É necessária para se compreender bem o que se aprende ou se diz, e para não repetir dos outros o que não se entendeu. Quantas pessoas lêem e escutam certas coisas, as quais admitem sem entender? Essa educação precisa de imagens e objetos. A razão faz conhecer os princípios. Mas é preciso ter em conta que aqui se trata de uma razão ainda dirigida. Esta não deve pretender sempre discorrer, mas ter o cuidado de não se exercer sobre aquilo que é superior aos conceitos. Aqui não se trata de razão especulativa, mas da reflexão a respeito do que acontece segundo suas causas e efeitos. Trata-se de uma razão prática em sua economia e em sua disposição. (KANT, 1999, p. 70).
Este é o programa de educação proposto pelo filósofo de Königsberg. Nele “esta livre
cultura prossegue seu curso desde a infância, até que o jovem termine a sua educação.” (KANT,
1999, p. 63). Através dele os mestres devem utilizar, para o cultivo da razão, o método socrático.
Mas não podem prescindir do método catequético. “O método socrático deveria constituir a
regra do método catequetético.” (KANT, 2002, p. 71). É assim que Kant busca um equilíbrio
entre o uso da memória, e não a descarta, como já dissemos antes, mas atribui às crianças a
condição de aprender por si mesmas: “O melhor modo de compreender é fazendo. [...].
Devemos proceder de tal modo que busquem por si [...] a perseguir por si mesmas esses
conhecimentos, ao invés de inculcar-lhes. (KANT, 1999, p. 70-71).
Enfim, chegamos ao final desta seção e, podemos concluir que a educação física
subdividida em suas diversas etapas - educação do corpo, educação da índole, educação da alma
– supõe um progressivo caminho que leve à última etapa do projeto educativo kantiano que é a
educação moral. “O primeiro esforço da cultura moral é lançar os fundamentos da formação do
caráter. O caráter consiste no hábito de agir sobre certas máximas. Estas são, em princípio, as
da escola e, mais tarde, as da humanidade.” (KANT, 2002, p. 76).
Destarte, a educação física compreende, em nosso modo de ver, a etapa que se estende
da infância à adolescência. E, apesar de Kant iniciar esta seção conferindo aos pais o direito de
educação sobre seus filhos, ao longo do texto, ficou suficientemente demonstrado, através das
citações e dos exemplos dados pelo próprio filósofo, que se trata de uma educação a ser
realizada por pedagogos, seguindo estritas recomendações, dentro de um contexto escolarizado.
Acerca desta nossa forma de ler o opúsculo, defendendo a pedagogia kantiana como uma
pedagogia da escola, vamos, na seção seguinte, estabelecer a relação entre a disciplina e a
107
sociabilidade revelando que o projeto de educação cosmopolita não se faz sem que tenhamos
uma educação pública, segundo Kant.
108
5 DISCIPLINA E SOCIABILIDADE: ALICERCES PARA UM PROJETO DE EDUCAÇÃO COSMOPOLITA
Na seção anterior as discussões acerca da disciplina voltaram-se para os aspectos que
fazem dela o caminho para a moralidade. Nesse sentido, exploramos as relações entre razão
pura e razão prática e situamos a disciplina como um fio condutor que perpassa toda a primeira
etapa do projeto educativo kantiano: a educação física.
Nesta seção pretendemos refletir acerca da relação entre disciplina, sociabilidade e
cosmopolitismo pois, nossa leitura do opúsculo nos leva à tese de que, o modelo proposto por
Kant atrela disciplina à sociabilidade, na educação da criança, como etapa preparatória, para a
educação cosmopolita. Não é sem razão que Kant termina a Introdução de sua Pedagogia
afirmando que o projeto educativo deve ser executado de forma cosmopolita. Por isso, não
poderíamos deixar de analisar as implicações advindas desta declaração.
Entendemos que o cosmopolitismo kantiano está diretamente relacionado à segunda
etapa de sua proposta educativa a “educação prática ou moral (chama-se prático tudo que se
refere à liberdade) [...] aquela que diz respeito a construção (cultura) do homem, para que possa
viver como um ser livre.” (KANT, 2002, p. 35).
Porém, não podemos desconsiderar o fato de que Kant faz apenas uma separação
didática entre os dois grandes segmentos de sua Pedagogia (educação física e educação prática).
Ao lermos suas preleções sobre a educação prática encontramos um conjunto de orientações
acerca do que vem a ser a moralidade e como cultivá-la desde a infância. Uma citação do
filósofo ilustra bem o que estamos afirmando. Por último vem a formação moral, enquanto é fundada sobre princípios que o próprio homem deve reconhecer; mas, enquanto repousa unicamente no senso comum, deve ser praticada desde o princípio, ao mesmo tempo que a educação física, pois, de outro modo, se enraizariam muitos defeitos, a ponto de tornar vãos todos os esforços da arte educativa. (KANT, 2002, p. 36).
Por conseguinte, podemos inferir que ambas etapas devem acontecer
concomitantemente. É precisamente por estabelecermos esta ligação entre educação física e
educação prática que podemos também estabelecer a relação entre sociabilidade e
cosmopolitismo supondo os seguintes nexos: a disciplina está diretamente relacionada à
sociabilidade e a educação prática está diretamente relacionada ao cosmopolitismo. Assim, o
desenvolvimento de estratégias para cultivar a sociabilidade torna-se condição sine qua non
para uma educação cosmopolita. Primeiro cultiva-se a sociabilidade para que seja possível ao
homem tornar-se um cidadão do mundo.
109
Nossa suposição respalda-se também em algumas discussões, recentes, sobre o
cosmopolitismo. No livro intitulado Kant and Cosmopolitanism, Pauline Kleingeld (2012)
afirma que o Cosmopolitismo, em Kant, deve ser visto como uma atitude, uma forma do homem
se relacionar com outros homens, um arrazoado de posturas que levam à paz perpétua no
mundo.
Kleingeld vai buscar no estoicismo a raiz do que Kant propôs: “O cosmopolitismo em
Kant, [...] funda-se na tradição dos Estoicos, que desenvolveram uma concepção positiva de
cidadania mundial que difere significativamente do ponto de vista Cínico.” (KLEINGELD,
2012, p. 2, tradução nossa).
Para a autora, quando nos referimos ao sentido do termo na filosofia crítica nos
afastamos de sua origem que remonta à filosofia Cínica, dentro da qual significava uma forma
de viver individualista sem se reportar aos deveres de cidadania relacionados a um estado ou
cidade de origem.
A variedade em torno do conceito de cidadania mundial origina-se com o filósofo Cínico Diógenes de Sínope, que é geralmente considerado como o pai do termo “cosmopolita”. Quando perguntaram de onde ele veio, ele teria respondido: “Eu sou um cidadão do mundo”. Quando assim respondeu, Diógenes quis dizer que não reconhecia nenhum laço especial com uma cidade ou um estado em particular negando suas afiliações locais e obrigações. (KLEINGELD, 2012, p. 2, tradução nossa).
Segundo a autora, em Kant, o sentido do termo remonta aos estoicos.
Para os estoicos, cosmopolitismo, envolve a afirmação das obrigações morais para com os seres humanos em qualquer lugar do mundo, porque todos compartilham de uma racionalidade comum, independentemente de suas diferenças políticas, religiosas ou outras afiliações particulares. (KLEINGELD, 2012, p. 2, tradução nossa).
Ou seja, o sentido do termo originado da tradição filosófica conhecida como estoicismo
permiti-nos estabelecer sua relação com a educação prática, pois, torna-se necessário um projeto
de educação cosmopolita que se encarregue de desenvolver nos indivíduos estas disposições
morais relacionadas ao respeito mútuo entre os seres humanos em geral, independentemente,
da cultura ou nação à qual pertencem.
Ainda nos cabe apresentar uma concepção discutida por Acosta (2016) relacionando o
cosmopolitismo à moralidade, por uma outra via, que, entretanto, também se presta a reforçar
nossa tese. O artigo intitulado Racionalização da Natureza: Cosmopolitismo kantiano como
uma predisposição natural, publicado na Revista Studia Kantiana do último semestre de 2016,
traz discussões que fortalecem a concepção de Kleingeld (2012). O autor concebe o
cosmopolitismo
110
como disposição natural, [...] [como] a continuidade ontológica nos termos de uma racionalização (moralização e politização) da natureza; [...] i)um modo de ser do homem que implica certa sabedoria prática representada no ideal do sujeito cosmopolita; ii) uma disposição natural ou germe; iii) uma ideia política/filosófica e uma práxis, ambas compreendidas como consequência natural do desenvolvimento das potencialidades inerentes à constituição do homem. (ACOSTA, 2016, p. 57).
Por essa via de argumentação, tanto Kleingeld (2012), quanto Acosta (2016) nos dão o
necessário respaldo para relacionar sociabilidade e cosmopolitismo. A partir da primeira
acepção de Kleingeld temos a pedagogia kantiana como um meio para se alcançar o fim ao qual
se propõe a humanidade, segundo Kant, um fim cosmopolita. Agregando este conceito às
discussões de Acosta, a partir das reflexões que passam pela via transcendental da filosofia
kantiana, inserimos a sociabilidade como uma construção necessária sem a qual essa disposição
final não poderá vir a ser concretizada.
Para isso, inicialmente, é preciso combinar disciplina e sociabilidade, dentro da primeira
etapa, aquela destinada à educação física. E, só depois relacionar sociabilidade e
cosmopolitismo na perspectiva da educação prática. A exposição que iremos realizar nesta
seção mostrará como estes nexos ocorrem.
5.1 DISCIPLINA E SOCIABILIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Para além da relação entre disciplina e autonomia, a qual chegamos ao lermos o
opúsculo fazendo seu cotejamento com as outras obras do sistema crítico, vamos considerar
que, existe também outro pilar para se alcançar a moralidade: a sociabilidade. Desta forma,
ampliamos nosso olhar e introduzimos uma discussão acerca da sociabilidade como elemento
essencial para educação da infãncia.
As argumentações que o filósofo faz, em sua Pedagogia, em torno da educação pública
e da educação privada, serão tomadas como indicadores para pensarmos a sociabilidade como
um pilar para a moralidade e identificarmos a educação pública como um requisito para que o
projeto educativo contemple a sociabilidade e o cosmopolitismo.
Sabemos que desde a introdução de Sobre a Pedagogia Kant afirma que o homem não
pode atingir sua destinação se não contar com o apoio de outros homens. Isso confirma a
necessidade do educador, é verdade, mas, simultaneamente, nos permite pensar em algo mais:
que precisamos da convivência com outros para atingir a moralidade. Os animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem o saber. O homem, pelo contrário, é obrigado a tentar conseguir o seu fim, o que ele não pode
111
fazer sem antes ter dele um conceito. O indivíduo humano não pode cumprir por si só esta destinação. (KANT, 2002, p. 7).
Não poder cumprir, por si só, sua destinação implica dizer que o homem necessita de
outros para ajudá-lo. Realmente essa é a ideia nuclear da pedagogia kantiana. Considerando a
disciplina como uma educação negativa através da qual deve ser retirado do indivíduo aquilo
que diz respeito a sua selvageria sabemos que este outro tem a função de cercear e dar limites.
Mas, além dessa necessidade, considerando os pais e educadores como adultos encarregados de
cuidarem e disciplinarem as crianças, vamos supor também que o próprio ambiente no qual
devem ocorrer esses cuidados, precisa ser um ambiente que promove a sociabilidade.
Por isso, pensamos em uma perspectiva de coletividade. Consideramos que só ao lado
de outros indivíduos ocorre a humanização, e, todo processo de humanização prepara o ser para
enfrentar o conflito relacionado à insociável sociabilidade. A educação age sobre o indivíduo,
para que seja possível ao homem, enquanto espécie, alcançar esta evolução e para que esta
ocorra “se faz necessário um processo formativo, porque, somente pela educação, ele [o
homem] pode dar os primeiros passos para a sociabilidade, sendo o primeiro destes a
disciplina.” (BARRETO, 2009, p. 25).
Atentemos para a relação estabelecida neste último fragmento da citação de Barreto
(2009): somente pela educação ele [o homem] pode dar os primeiros passos para a
sociabilidade, sendo o primeiro destes a disciplina. A partir da citação podemos associar
disciplina e sociabilidade e nos perguntarmos: Torna-se sociável quem foi disciplinado? Torna-
se disciplinado que se socializou? A disciplina promove a sociabilidade? Ou, dentro de um
ambiete de socialização o homem se disciplina?
Antes de responder estas questões, a partir da obra de Kant, vamos lançar nossa hipótese:
em nossa compreensão, as duas grandes tarefas da educação infantil, se nos atrevermos a pensá-
las segundo os preceitos kantianos, seriam: disciplinar e socializar! Para alcançá-las não
podemos separá-las. O homem sofre a ação disciplinar dentro de um ambiente de socialização.
É no contexto social que o homem se disciplina. A educação que emana de um contexto escolar,
será aquela que o prepara nesta direção. Mas, também, os cuidados e a disciplina, ainda que
sejam uma tarefa desempenhada pelos pais ou primeiros cuidadores, estão intrinsecamente
relacionados a uma educação voltada para a sociabilidade. As recomendações feitas por Kant
acerca dos cuidados iniciais com os bebês tornam-se uma forma de preparo físico que consiste
em disciplinar, desde o início, mas, também promovem uma subjetividade preparada para a
convivência com o outro. Todo projeto kantiano de educação está, nas entrelinhas, voltado para
esse objetivo conjunto: disciplinar e socializar. Quando um bebê convive com um ambiente que
112
lhe promove pequenas frustrações e privações (sons de vozes, luz, horários para alimentação,
acostumar-se a uma rotina que diz respeito ao ritmo do tempo civilizado que comporta dia e
noite, frio ou calor em algumas situações, fome enquanto não chega a hora de mamar, etc.) ele
pode suportar, posteriormente, por exemplo, ir a locais públicos e não chorar assustado; ele se
submeterá ao intervalo das refeições e depois ao tempo de trabalho e ao tempo de lazer, etc. Se
considerarmos a primeira etapa da educação física que disciplina e fornece a cultura da alma
através da pedagogia do trabalho, conforme já discutimos no item anterior, encontraremos uma
série de exemplos na pedagogia kantiana que promovem essas frustrações e privações.
Aprender a se colocar no lugar do outro durante o jogo de cabra cega, e, sentir-se privado de
um sentido; aprender que é preciso estudar e que estudar não é brincadeira, para depois estar
pronto para se submeter às exigências do mundo do trabalho. Enfim, todos estes exemplos
mostram que, concomitantemente à disciplina, ocorre também a sociabilidade. Se a criança
aprende, na infância, a lidar com essas situações, pode, na vida adulta respeitar uma fila,
aguardar a refeição que está sendo preparada num restaurante, conviver com um ambiente
barulhento, etc.
Vejamos então os argumentos que podemos utilizar a favor de nossa tese, qual seja, a
de que Kant defende a educação escolar e pública, e, o fundamento maior desta educação está
em disciplinar e socializar, simultaneamente, na educação infantil.
Em Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, na quarta
proposição, Kant escreve sobre o antagonismo das disposições humanas entre a tendência para
socializar-se (vergesells) e a tendência a isolar-se (vereinzelnen): O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo delas na sociedade, na medida em que ele se torna ao fim a causa de uma ordem regulada por leis desta sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade. Essa disposição é evidente na natureza humana. O homem tem uma inclinação para associar-se porque se sente mais como homem num tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele também tem uma forte tendência a separar-se (isolar-se), porque encontra em si ao mesmo tempo uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir tudo simplesmente em seu proveito, esperando oposição de todos os lados, do mesmo modo que sabe que está inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros. (KANT, 2011a, p. 8, grifos do autor).
O filósofo proclama a sociabilidade como caminho inexorável porque considera que o
homem se sente como um homem num tal estado, mas, em contrapartida, admite que a natureza
humana é dotada de um antagonismo, no qual se manifesta o que ele chama de insociável
113
sociabilidade. Na introdução desta tese já havíamos anunciado isso. “Uma inclinação para
associar-se porque se sente mais como homem num tal estado”, [mas, simultaneamente], “uma
forte tendência a separar-se (isolar-se) [...] [por] querer conduzir tudo simplesmente em seu
proveito” (KANT, 2011a, p. 8). É esse o motivo pelo qual a disciplina prepara para a
sociabilidade. Para retirar do homem esta tendência a querer conduzir tudo em seu proveito. E,
é o ambiente, que promovendo pequenas e necessárias frustrações e privações, garantirá as
condições para que ele se acostume a não ter tudo que quer.
Assim, no que diz respeito à conquista da moralidade, disciplina e sociabilidade podem
vir a desencadear a autonomia caso o ambiente promova certas situações pedagógicas que
propiciem à criança ser cada vez menos o centro das atenções aprendendo a limitar cada vez
mais seus desejos deixando de tê-los como prioritários, o que a levará a, posteriormente, refletir
sobre aquilo que se espera do homem no convívio com os outros. Isso para nós se resume na
proposta de uma educação infantil que visa disciplinar e socializar a um só tempo!
Entendemos que é exatamente por isso que Kant faz uma preleção acerca da educação
dos príncipes e de como esta deveria ser melhorada, tendo em vista, eles ocuparem sempre um
lugar especial, a partir do qual não lhe era oferecida a resistência necessária para se educarem,
dentro das prerrogativas de uma civilização advinda do Iluminismo. Segundo o filósofo
Uma árvore que permanece isolada no meio do campo não cresce direito e expande longos galhos; pelo contrário, aquela que cresce no meio de uma floresta cresce ereta por causa da resistência que lhe opõem as outras árvores, e, assim, busca por cima o ar e o Sol. Com os príncipes acontece o mesmo. Mais vale que sejam sempre educados por algum dos seus súditos do que pelos seus pares. (KANT, 1999, p. 23).
Esse ambiente, como estamos chamando, não é um espaço, um local, mas uma espécie
de cenário no qual ocorre a educação de uma criança. Se, para Kant, o homem precisa de outros
para atingir sua destinação. “Quem”, do ponto de vista kantiano, deve executar esta precípua
função? Quem deve se responsabilizar pela educação da criança?
Segundo Menezes (2000b, p. 116) no século da pedagogia “O educador é, por sua tarefa,
o Aufklärer por excelência: exerce a tarefa premente de conduzir os homens à maioridade [...]”.
Para Kant, isso consiste na arte de ensinar, contemplando a Pedagogia como ciência. “É preciso
colocar a ciência em lugar do mecanicismo no que tange à arte da educação” (KANT, 2002, p.
10).
Dessa forma o filósofo traça uma linha que demarca o campo da educação como aquele
que deve contemplar um “plano”, tal como em sua discussão da filosofia da história. A
114
educação para ele constitui-se de experiências, mas deve seguir uma ciência e contemplar um
plano.
Um princípio de pedagogia, o qual mormente os homens que propõem planos para a arte de educar deveriam ter ante os olhos é: não se devem educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a ideia de humanidade e da sua inteira destinação. (KANT, 2002, p. 22).
Esse plano não pode ser constituído sem uma douta visão do que vem a ser educar e de
quais são as tarefas primordiais de um educador. Nesse sentido, Kant, ao longo do opúsculo,
preocupa-se em diferenciar doutos daqueles que ele considera despreparados para cumprir esta
finalidade. Enfatiza a necessidade de um “saber” para conduzir a educação. Um saber que irá
se acumular, à medida que a espécie evolui, mas que não é um conhecimento já dado. É preciso
cultivá-lo. A necessidade desse saber faz com que Kant defenda a educação pública em
detrimento da educação doméstica. Exclui os pais como os agentes dessa Pedagogia dizendo: Os pais, os quais já receberam uma certa educação, são exemplos pelos quais os filhos seguem. Mas, se estes devem tornar-se melhores, a pedagogia deve tornar-se um estudo; de outro modo, nada se poderia dela esperar e a educação seria confiada a pessoas não educadas corretamente. É preciso colocar a ciência em lugar do mecanicismo, no que tange à arte da educação; de outro modo, esta não se tornará jamais um esforço coerente; e uma geração poderia destruir tudo o que uma outra anterior tivesse edificado. (KANT, 1999, p. 22).
Critica a educação doméstica quando diz que é preciso colocar a ciência em lugar do
mecanicismo. Defende uma proposta de educação pautada em princípios científicos. Essa
proposta, se assim encampada pelos pais, e pelos príncipes, deveria resultar no custeio de uma
educação melhor. “Mas aqui se deparam dois obstáculos: os pais não se preocupam
ordinariamente senão com uma coisa, isto é, que seus filhos façam uma boa figura no mundo.”
(KANT, 1999, p. 22). Aí está a crítica de Kant aos pais por negligenciarem uma educação melhor
para seus filhos, estabelecendo, segundo ele afirma, outras prioridades: que seus filhos façam
uma boa figura no mundo. Ou seja, preocupam-se apenas com as aparências. Também critica
os príncipes dizendo que “consideram os próprios súditos apenas como instrumento para os
seus propósitos”. (KANT, 1999, p. 22). E também critica a postura dos príncipes frente a um
projeto de educação: Alguns poderosos consideram, de certo modo, o seu povo como uma parte do reino animal e têm em mente apenas a sua multiplicação. No máximo desejam que eles tenham um certo aumento de habilidade, mas unicamente com a finalidade de poder aproveitar-se dos próprios súditos como instrumentos mais apropriados aos seus desígnios. (KANT, 1999, p. 25).
115
Ou seja, em Kant, desde o início, a educação pública visa uma possibilidade de não se
cair nos defeitos que pais e preceptores poderiam vir a ensejar conforme citado em vários
trechos do opúsculo. Não podemos precisar a partir de que idade deverá ser a criança inserida
num contexto de educação pública, porque, no opúsculo, lidamos com um conceito ampliado
de infância que se estende até os dezesseis anos. Além disso, temos que admitir que a educação
pública pode ser uma preferência, mas não uma realidade possível naquele momento em razão
dos obstáculos antes mencionados: a falta de colaboração dos pais e dos príncipes.
Mas, nossa interpretação nos encaminha para a defesa de que essa educação deve
começar desde a infância. Por isso, como afirma Enguita (2013, p. 25) “Se falava de escolas
públicas, era em contraposição ao ensino doméstico – pois desconfiava igualmente dos pais.”
Portanto, Kant não desconfiava apenas da educação dos príncipes, mas também da educação
doméstica. Ao propor a educação pública Kant explicita esta defesa referindo-se aos defeitos
que a educação privada pode vir a ensejar.
Até onde, porém, deve-se preferir a educação privada à educação pública, ou vice-versa? Em geral, à educação pública parece mais vantajosa que a doméstica, não somente em relação à habilidade, mas também com respeito ao verdadeiro caráter do cidadão. A educação doméstica, além de engendrar defeitos do âmbito familiar, os propaga. (KANT, 1999, p. 31).
Nesta citação queremos ressaltar duas importantes revelações. A primeira diz respeito a
sua explícita defesa da educação pública. A segunda mostra como estamos indo numa direção
correta quando atrelamos a sociabilidade à educação cosmopolita, pois, Kant diz que é a
educação pública que prepara o caráter do cidadão então ele faz a defesa indireta da escola. Ou
seja, se a escola promove desde cedo a sociabilidade, mais tarde, o cosmopolitismo está
assegurado. Sabemos que a escola, assim pensada, desde a educação infantil, não está
explicitamente contemplada em suas preleções, mas ousamos defender esta tese por
acreditarmos que isso está nas entrelinhas. E está nas entrelinhas de outros textos kantianos
também.
Quando Kant discute o direito dos pais em sua Metafísica dos Costumes é verdade que
ele concede a eles um poder de “posse” mas não um poder absoluto para fazer dos filhos o que
bem quiserem. Ele impõe aos pais o “dever de preservar e zelar por sua prole” e atribui aos
filhos “um direito inato original (não adquirido) ao cuidado por parte de seus pais até serem
capazes de cuidar de si mesmos” (KANT, 2003, p. 125). A respeito da educação, Kant se
posiciona defendendo-a como um direito dos pais. A partir desse dever [preservar e zelar por sua prole] deve necessariamente também surgir o direto dos pais de manipular e dar formação ao filho, até este não ter ainda dominado o uso de seus membros ou de seu entendimento: o
116
direito não só de alimentá-lo e dele cuidar, como também de educá-lo, desenvolvê-lo tanto pragmaticamente, de sorte que no futuro ela possa zelar por si mesmo e abrir seu caminho pela vida, quanto moralmente, visto que, de outro modo, a culpa por ter descuidado dele recairá sobre os pais. Eles têm o direito de realizar tudo isso até o momento de sua emancipação (emancipatio), quando renunciam ao direito de pais de dirigi-lo, bem como a qualquer reivindicação de serem compensados pelo sustento e penas que experimentaram até então com o filho. (KANT, 2003, p. 126).
É fato que a educação é um campo no qual se situa o “direito” dos pais, “direito de
manipular e dar formação ao filho”. Mas, este direito está relacionado a encaminhá-lo para a
moralidade. Nesse sentido sua personalidade deve ser levada em conta tanto que Kant limita
esse direito, ao afirmar nas linhas seguintes que: “Da personalidade de um filho também resulta
que o direito dos pais não é simplesmente o direito a uma coisa, uma vez que um filho jamais
pode ser considerado como a propriedade de seus pais, de modo que o direito deles não é
alienável” (KANT, 2003, p. 126).
Portanto, os pais têm direitos, mas devem se pautar segundo as orientações que
conduzam a formação da moralidade. Não têm direitos sobre as crianças podendo fazer delas o
que bem entenderem. É preciso também enfatizar que as estratégias que serão propostas para
essa educação que contempla disciplina e sociabilidade estão respaldadas na mesma condição
prevista na Metafísica dos Costumes. Nesse sentido, Luc Vicenti (1994) convida-nos refletir
sobre estas estratégias como sendo aquelas adequadas a nos fazer abandonar o ponto de vista
individual e nos preparar para o bom convívio em sociedade. Ele nos relembra a sexta
proposição contida em Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita: Este problema é, ao mesmo tempo, o mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana. A dificuldade que a simples idéia dessa tarefa coloca diante dos olhos é que o homem é um animal que, quando vive entre outros de sua espécie, tem necessidade de um senhor. Pois ele certamente abusa de sua liberdade relativamente a seus semelhantes; e, se ele, como criatura racional, deseja uma lei que limite a liberdade de todos, sua inclinação animal egoísta o conduz a excetuar-se onde possa. Ele tem necessidade de um senhor que quebre sua vontade particular e o obrigue a obedecer à vontade universalmente válida, de modo que todos possam ser livres. Mas de onde tirar esse senhor? De nenhum outro lugar senão da espécie humana. Mas este é também um animal que tem necessidade de um senhor. Seja qual for o começo, não se vê como o homem pode se dar, para estabelecer a justiça pública, um chefe que também seja justo – ele pode procurá-lo numa única pessoa ou num grupo de pessoas escolhidas para isso. Pois todos eles abusarão sempre de sua liberdade, se não tiverem acima de si alguém que exerça o poder segundo as leis. O supremo chefe deve ser justo por si mesmo e, todavia, ser um homem. Esta tarefa é, por isso, a mais difícil de todas; sua solução perfeita é impossível: de uma madeira tão retorcida, da qual o homem é feito, não se pode fazer nada reto. (KANT, 2011a, p. 12).
117
Por isso, em Sobre a Pedagogia, ele considera que a “educação é o maior e mais árduo
problema que pode ser proposto aos homens”. (KANT, 1999, p. 20). Porque os homens
dependem da educação e esta, por sua vez, depende deles. Assim, se instala um paradoxo no
sentido de que é o próprio homem que deverá conduzir o seu próprio processo até alcançar a
destinação da espécie.
Ou seja, como argumenta Vicenti (1994) o problema de encontrar um mestre nos pais
ou nos professores, é um problema real porque como o filósofo questiona “de onde tirar esse
senhor?” Nossa resposta a este questionamento é que este problema só pode ser resolvido
quando, no contexto público, a convivência social obriga uns aos outros a curvarem-se tendo
em vista que, se assim não procedessem, os antagonismos individuais seriam motivo da
destruição de todos. “Considerando o aspecto público das relações inter-humanas e
abandonando o ponto de vista unicamente individual – desde que o público enquanto tal possa
efetivamente apresentar-se como esse lugar que se ilumina a si próprio e, assim, romper nosso
círculo.” (VICENTI, 1994, p. 82).
No contexto coletivo a disciplina ganha uma conotação de submissão à sociedade, por
respeito ao outro e não por submissão em decorrência de um autoritarismo. No contexto público
a regra se torna legal. Ela não emana da figura de “um”, mas da necessidade que o coletivo
requer e exige. Ela deixa de ser a pressão de um sobre outros e torna-se a pressão de todos sobre
todos. Entendemos que aí encontra-se implícita a crítica à educação privada tida como uma
forma de continuidade da educação doméstica considerada pelo filósofo como espaço de
manutenção de certos privilégios que não conduziriam à efetiva constituição da moralidade.
Queremos ainda salientar que os conceitos de educação privada e doméstica se
confundem em função do local onde ocorrem – o ambiente familiar – sendo, portanto, ambas
herdeiras de vícios - alegados pelo filósofo - no que diz respeito à dubiedade na manifestação
da autoridade, ora exercida pelos pais, ora exercida pelos cuidadores o que geraria – em sua
opinião – uma falha na formação do caráter do cidadão.
Concluimos, que, em Kant, encontramos a defesa da educação pública pois ela está
relacionada à possibilidade de a criança vivenciar – num ambiente coletivo – situações que
consistem na aceitação das normas que destinam-se a todos, e que, por conseguinte, contribuem
para a formação do caráter moral, que, nem sempre, está garantida, num ambiente familiar no
qual a educação doméstica e privada é fornecida, com um certo protecionismo vindo ora dos
pais, ora dos cuidadores contratados para essa finalidade.
A educação pública tem aqui manifestamente as maiores vantagens: aí se aprende a conhecer a medida das próprias forças e os limites que o direito dos
118
demais nos impõe. Aí não se tem nenhum privilégio, pois que sentimos por toda parte resistência, e nos elevamos acima dos demais unicamente por mérito próprio. Essa educação pública é a melhor imagem do cidadão. (KANT, 2002, p. 15-16).
Então, desde a infância esse bem coletivo deve ser experienciado, ou, devem ser
adotadas estratégias que conduzam a criança a este fim. Mas, sabemos que não foi possível a
Kant inserir a criança numa educação pública, então, podemos ver como ele contemplou isso a
partir das orientações dadas em suas preleções. Por isso, ele abre a segunda seção de seu
opúsculo dizendo que é preciso que seja difundido um saber sobre como educar. Neste caso, o
governante, assume o papel de douto, conforme está citado no texto de Kant, e orienta os pais
acerca daquilo que é necessário que seja seguido para a adequada educação das crianças.
Diante da impossibilidade da educação pública, na infância, lança mão de uma ação que,
no plano das ideias, dos propósitos, orienta o que pais e preceptores devem fazer. Para que isso
seja garantido, defende os institutos. A finalidade desses institutos públicos é o aperfeiçoamento da educação doméstica. Se os pais, ou aqueles que lhes assistem na educação de seus filhos, tivessem recebido uma boa educação, poderia não ser mais necessária a despesa com os institutos públicos. Estes devem se prestar a realizar certas experiências e a formar pessoas aptas a dar uma boa educação doméstica. A educação privada é dada pelos próprios pais ou, caso não tenham tempo, capacidade, ou não o queiram, por outras pessoas que os ajudem nesta tarefa, mediante uma recompensa. Mas tal educação, ministrada por auxiliares tem a gravíssima circunstância de dividir a autoridade entre os pais e esses governantes. A criança deve regular-se pelos preceitos de seus governantes e, ao mesmo tempo, seguir os caprichos de seus pais. (KANT, 1999, p. 31, grifo nosso).
Apesar destas orientações, estabelecendo uma função para os institutos públicos
funcionarem como Centros de Formação, ao final faz novas críticas à educação privada
alegando ser esta uma modalidade na qual a autoridade entre pais e educadores pode ficar
dividida. No caso da educação pública esta propicia um ambiente onde esse douto saber estaria
nas mãos de um único regente, o professor, e, não implicaria num autoritarismo ou imposição,
pois, no ambiente coletivo, se sente a força das exigências que os outros impõem sobre nós, não
apenas a força daquele hierarquicamente superior. Neste caso, este passa a ser um organizador
do ambiente, e não um pólo do qual emana a autoridade, simplesmente. Entendemos que essa
submissão da criança se dá dentro de um contexto normativo no qual o educador tem a precípua
função de organizar situações pedagógicas e as regras são respeitadas para o bem comum. “O
educador deve simultaneamente compreender que não irá realizar efetivamente essa natureza
moral do homem, e, contudo, tê-la presente no espírito a fim de estruturar e orientar sua prática
cotidiana” (VICENTI, 1994, p. 78).
119
Portanto, não é, em última instância, do educador que emana a autoridade, mas, do
ambiente pedagógico que ele organiza. A disciplina, neste sentido, vem em primeiro plano,
apenas como um elemento através do qual o educador, ao tê-la em mente, organiza todo o
contexto coletivo. Assim, é a educação para a sociabilidade que permeia a disciplina e, esta
última é um meio através do qual a criança heterônoma é conduzida a maioridade esperada.
Por isso defendemos o argumento de que é através da convivência no ambiente coletivo,
sendo um deles o escolar, que a disciplina se transforma numa forma de conduzir a crianças à
sociabilidade. E que, a disciplina permeada por esse contexto é uma forma de ensiná-las a
respeitar o direito do outro. Definitivamente nos afastamos das interpretações que tomam a
disciplina kantiana como endoutrinamento e inculcação vindos de um professor autoritário e
abusivo tendo em vista que estas ações não estão de acordo com a própria natureza humana. É
uma educação voltada para a autonomia que [...] abre a possibilidade teórica, mas também prática, do ser humano ser sujeito da própria história. Em síntese, é tal espontaneidade que impulsiona a experiência pedagógica do educador a fazer a diferença na formação do educando, porque conceber-se livre no sentido transcendental, isto é, como capaz de iniciar por si mesmo um novo estado, é a primeira condição, ou seja, o ponto de partida, para poder querer que os outros também o sejam (façam). Ao sentir-se livre no sentido transcendental, o pedagogo, movido pela maioridade, luta incessantemente para que seu aluno faça uso de sua espontaneidade absoluta e a tome como fundamento de sua liberdade. (DALBOSCO, 2011, p. 65).
Nesse sentido o ambiente privilegiado para que essa educação ocorra é a escola e, por
isso, Kant defende a educação pública como a que propicia as condições para tal
funcionamento. Porém, no contexto no qual Kant estava, historicamente falando, havia outras
limitações que devem ser consideradas e, por isso, levar às últimas consequências essa defesa
não seria tão simples. Há que se considerar vários fatores como o poder dos príncipes, o poder
dos pais, as questões de financiamento da educação pública, etc.
Mas, ao longo de todo o texto, Kant defende uma educação que possibilite “submeter a
natureza às normas” (KANT, 1999, p. 23). Essa discussão perpassa o Dezoito. O homem
civilizado deve amar as regras em sociedade. E o grupo
fornece como regra de ação não apenas a eficácia do fim, mas a graça e elegância dos meios disponíveis. As eleições dos modos particulares a adotar ou corrigir demandam aquilo que tem medida, vale dizer, o que resulta de uma escolha ao mesmo tempo prudente e engenhosa. (PÉCORA apud MENEZES, 2010b, p. 53).
Kant, fazendo jus ao contexto iluminista, preocupa-se em fornecer os meios para tornar
o homem prudente e defende
120
[...] que ele permaneça em seu lugar na sociedade e que seja querido e tenha influência. A essa espécie de cultura pertence aquela chamada propriamente de civilidade. Esta requer certos modos corteses, gentileza e a prudência de nos servirmos dos outros homens para os nossos fins. Ela se regula pelo gosto mutável da época. Assim, prezam-se, já faz alguns decênios, as cerimônias sociais. (KANT, 1999, p. 26).
Isso quer dizer que o homem precisa estar em sociedade para adquirir essa civilidade. É
nos grupos que se contrói a civilidade. Kant enaltece o valor social do homem para que, através
da cultura desenvolvam-se, aos poucos, todos os talentos. “Através de um progressivo
iluminar-se, [...]”, com o tempo, as toscas disposições naturais [sejam transformadas] em
princípios práticos determinados e assim finalmente [possam] transformar um acordo
extorquido patologicamente para uma sociedade em um todo moral.” (KANT, 2011a, p. 9).
A defesa kantiana de que o homem irá transformar a “sociedade em um todo moral” está
relacionada a sua Filosofia da História. Como afirma o professor Edmilson Menezes: A dupla faceta, homem natural/homem moral, ganha a mediação da História sob o prisma transcendental: a representação da própria humanidade, na forma de uma coletividade histórica, é revestida por um interesse prático, isto é, comandado pela exigência moral. Em Kant, a Fillosofia da História se vale da faculdade do juízo reflexivo [...]. Quando Kant propõe um plano da natureza organizado e orientado a História, é a máxima da faculdade do juízo que o autoriza a fazê-lo. [...]. Sendo assim, o mundo é formado de tal maneira que as leis nele reinantes conduzem-no a um desenvolvimento de ordem final [,,,]. E o fim último da natureza, no homem, é a cultura. [E, embora saibamos que esta] não garante o progresso moral, [...], devemos encontrar o progresso moral lá dentro. (MENEZES, 2010b, p. 105-107).
Portanto, Kant, discordando de Rousseau, não entende os modos civilizados como
sinônimo de uma atitude falseada, camuflada, adequada ao convívio social. Esta atitude,
também chamada por Rousseau de prudência, foi criticada pelo genebrino que acreditava que
ela não representava a genuína evolução humana.
A primeira arte de todos os maus [assim dizia Rousseau] é a prudência. Tendo tantos desígnios e sentimentos a ocultar, sabem compor seu exterior, governar seus olhares, suas atitudes, seu ar, tornar-se mestres das aparências. Sabem tirar vantagens e cobrir com um verniz de moderação as sombrias paixões por que são corrompidos. (ROUSSEAU apud MENEZES, 2010b, p. 98).
No caso de Kant, vemos que a prudência tem outra conotação. A prudência para Kant é
de outra natureza. “A formação da prudência, [...], o prepara para tornar-se um cidadão, uma
vez que lhe confere um valor público. Desse modo ele aprende tanto a tirar partido da sociedade
civil para seus fins como a conformar-se à sociedade.” (KANT, 1999, p. 35). A perspectiva da
cultura (aqui entendida como sociedade) permeando o desenvolvimento da sociabilidade faz
prevalecer a defesa da educação pública em detrimento da privada em função das possibilidades
121
de se formar, através do convívio social, um homem que tenha como adjetivos em sua
qualificação, a prudência e a civilidade.
A cultura torna-se uma forma de pressão, que, atuando sobre o indivíduo, leva-o a recuar
em relação àquele antagonismo já mencionado anteriormente (da insociável sociabilidade) e,
assim, submeter-se. Nesse caso, a partir desta forma de pensar, a cultura promove a
sociabilidade. Porque quando se trata de designar o último fim da humanidade, não é a civilização (Zivilisierung), mas a cultura (Kultur) que é privilegiada. A civilização representa certa forma de cultura, a da prudência (Klugheit). [...] [Mas], o termo prudência (Klugheit) é tomado em sentido duplo: pode designar a prudência nas relações com o mundo, ou pode se referir à prudência privada. O primeiro é a habilidade de o homem, no exercício da ação sobre os semelhantes, deles se servir para suas intenções. O segundo é a sagacidade que os torna capaz de reunir todas essas intenções para alcançar uma vantagem pessoal durável. O último é propriamente aquele para o qual se volta o valor do primeiro, e daquele que é prudente conforme o primeiro sentido, sem estar de acordo com o segundo, pode-se dizer mais justamente que é esperto e astucioso, mas, em suma, imprudente. (KANT, 2010, p. 26).
Vemos que, a concepção de prudência aparece modificada em Kant. Ele não está
preocupado apenas “que o homem seja capaz de toda sorte de fins” mas que ele possa “escolher
apenas os bons fins”. (KANT, 1999, p. 26).
Assim, entendemos que a defesa kantiana de uma escola pública está relacionada a uma
preocupação em formar não apenas o homem apto ao convívio civilizado, mas em desenvolver
sua sociabilidade. Essa é uma das marcantes diferenças entre o genebrino e o prussiano.
Conforme afirma Cavallar: [...] existem diferenças fundamentais em matéria de educação moral (para discussões sucintas ver Reisert 2012 e Scuderi 2012) [entre Rousseau e Kant]. Ambos veem o núcleo interno da razão como o padrão de moralidade e as “leis da natureza”, e ambos vão além de “uma mera moralidade instrumental” (Reisert 2012, p. 16). No entanto, eles diferem em termos de educação pública e privada, em relação ao papel da sociedade, e os programas educacionais em geral. Rousseau justapõe educação doméstica e pública (que espelha, e origina, o contraste entre homem e cidadão). Este pensamento binário está ausente em Kant; ele declarou que mesmo a educação estatal fundada pelos príncipes, mas posta em prática pela “expertise iluminista” como Basedow, pode e deve ensinar elementos de uma moral cosmopolita (cf. LP 9:448–449). (CAVALLAR, 2014, p. 373-374, tradução nossa).
Em Kant esta sociabilidade é uma atitude genuína diferente daquela a qual nos referimos
quando dizemos que alguém é sociável, no sentido de polidez. E, certamente, nesse caso, não
se trata de adquirir uma civilidade apenas. Mas sim, de contemplar uma formação intrínseca
que esteja no cerne de sua subjetividade. Isso deve começar desde a infância e sua Pedagogia
não subestimou a importância destes aspectos.
122
[...] ao lado do grande lógico e metafísico, profundamente obcecado por questões de natureza estritamente filosófica, se encontra um grande pedagogo, portador de uma experiência pedagógica singular, com sensibilidade suficiente para perceber o vínculo estreito entre educação infantil e formação moral adulta. (DALBOSCO, 2011, p. 12).
A partir desta citação de Dalbosco, podemos acrescentar que diante da impossibilidade
de uma educação infantil desde a mais tenra idade Kant optou por compor uma espécie de corpo
de recomendações que devem orientar esta etapa e, por isso, abre a seção 2 de seu opúsculo
dizendo: Ainda que alguém que tome a seu cargo uma educação, como governante, não receba de imediato as crianças, quando então deveria ocupar-se também da sua educação física, por outro lado é útil que ele saiba tudo o que se requer na educação, do princípio ao fim. Mesmo que um governante não deva ocupar-se senão de crianças crescidas, pode acontecer que ele veja nascer outros filhos na mesma família e, se ele procede corretamente, tem o direito de ser o confidente dos pais, e estes poderão consultá-lo sobre a educação física dos seus filhos; pois acontece frequentemente o governante ser a única pessoa douta da casa. É necessário, portanto, que o governante tenha conhecimentos sobre a matéria. (KANT, 2002, p. 37).
Para nós, nesta citação, encontra-se uma defesa da educação pública desde a primeira
etapa, a educação física, que, refere-se aos cuidados, pois como diz o próprio filósofo, ainda
que o governante não receba as crianças, deveria, pelo menos, exercer a função de um guia a
ser consultado, por ser douto. Na citação o vocábulo “governante” poderia ser substituído por
“ainda que não se possa dar uma educação pública desde o início”, é preciso compor esse corpo
de saberes para que a educação nesta primeira etapa não fique entregue aos erros comuns que a
educação doméstica pode ensejar devido ao despreparo de pais e alguns preceptores.
A suposição de que o projeto kantiano coloca o bem coletivo acima do bem particular e
do primeiro são extraídas consequências nobres para o segundo tendo em vista que o homem já
traz em si, enquanto disposições naturais, o bem que é aperfeiçoado a partir da submissão desta
natureza humana às normas do convívio coletivo, ainda serve de reforço a esta tese. No
opúsculo Kant defende explicitamente o bem coletivo colocando acima do bem particular
quando questiona:
Mas o bem geral é uma ideia que pode tornar-se prejudicial ao nosso bem particular? Nunca! Já que, ainda que pareça que lhe devamos sacrificar alguma coisa, na verdade trabalhamos desse modo melhor para o nosso estado presente. E, então, quantas consequências nobres se seguem! Uma boa educação é justamente a fonte de todo bem neste mundo. Os germes que são depositados no homem devem ser desenvolvidos sempre mais. Na verdade, não há nenhum princípio do mal nas disposições naturais do ser humano. A
123
única coisa do mal consiste em não submeter a natureza a normas. (KANT, 1999, p. 23).
Diante disso argumentamos que a defesa kantiana da educação pública está relacionada
ao fim último ao qual se propõe a educação em sua filosofia, qual seja, o aperfeiçoamento da
natureza humana e que a disciplina está implícita nesta proposta porque é essa submissão às
normas do convívio coletivo que propiciam as bases para que, paulatinamente, a criança possa
acostumar-se a dar-se a própria lei.
Retomando um aspecto que destacamos aqui neste trabalho, nos interessa salientar ainda
que, segundo Kant, esta educação deve promover desde cedo o processo de formação e não ser
apenas fonte de instrução. O que faz com que não possamos, na prática, separar as duas grandes
funções da educação previstas pelo filósofo: “a educação abrange os cuidados e a formação”.
A formação é “1. negativa, ou seja, disciplina a qual impede defeitos; 2. positiva, isto é,
instrução e direcionamento” (KANT, 2002, p. 14).
Portanto, vamos compreender esse processo de formação à luz do conceito de Bildung
conforme entendimentos de Johnston.
Bildung12 tanto inclui a contribuição negativa quanto a positiva. A contribuição negativa aludida acima, é treinamento. A contribuição positiva é instrução e constitui o terceiro estágio da educação (Kant, 2007d, 9: 443). Como o treinamento e instrução em conjunto, constituem a educação (ou cultura, como Kant, muitas vezes se refere a ela), meios sistemáticos devem ser encontrados para realizar, com o máximo de certeza possível, a formação da cultura dentro da espécie humana. Entretanto, como Kant sugere esta tem sido uma das mais difíceis tarefas da humanidade (Kant 2007d, 9: 444; 446). (JOHNSTON, 2013, p. 212, tradução nossa).
Concluímos que a educação deve ser preferencialmente pública, com o intuito de
submeter a certas regras, e que, num primeiro momento, o educando deve mostrar sujeição, mas
também deve ser imerso num ambiente no qual se dê a formação (bildung). Portanto, se não é
ainda numa fase precoce que será possível inserir a criança na escola, mais tarde isso se torna
indiscutível para Kant. Em nossa maneira de ler o opúsculo, é assim que Kant resolve, o dilema
da tensão entre coação e liberdade que abordamos na seção anterior a partir da perspectiva da
razão pura. Aqui, o uso da razão prática fará com que ele opte por uma educação cujo processo
de disciplinamento seja uma preparação para a cidadania e autonomia moral. E, por isso, faz
12 É importante ressaltar que o termo “formação” é o mais recorrente na tradução brasileira da obra Sobre a Pedagogia, de Kant (2006), quando se refere ao alemão Bildung, como por exemplo na passagem: “O homem tem necessidade de cuidados e de formação. A formação compreende a disciplina e a instrução” (KANT, 2006, 14, grifo nosso). No original: “Der Mensch braucht Wartung und Bildung. Bildung begreift unter sich Zucht und Unterweisung” (KANT, I. Über Pädagogik. AK IX; p. 443, grifo nosso) mas, como persiste entre os tradutores uma dificuldade de unificar seu sentido, pois em outras passagens surge atrelado ao sentido de cultura ou como educação, preferimos manter como no texto de Johnston o termo em alemão e não traduzí-lo.
124
tanto sentido que ele ao final da introdução do opúsculo afirme que: “É necessário que ele [o
homem] sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto
é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tomar-se
independente.” (KANT, 1999, p. 33). É assim que atrelamos disciplina a sociabilidade.
Quando Kant trata da sociabilidade em seu opúsculo o faz ainda na parte destinada a
educação física, quando se dedica a traçar as orientações sobre a cultura moral cuja tarefa “é
lançar os fundamentos da formação do caráter” (KANT, 1999, p. 76). O caráter se consitui,
para Kant, através do cultivo da obediência, do cultivo da verdade e da sociabilidade. Esta é
uma tarefa que se incia na infância, pois, segundo o filósofo:
O primeiro esforço da cultura moral é lançar os fundamentos da formação do caráter. O caráter consiste no hábito de agir segundo certas máximas. Estas são, em princípio, as da escola e, mais tarde, as da humanidade. A princípio, a criança obedece a leis. Até as máximas são leis, mas subjetivas; elas derivam da própria inteligência do homem. (KANT, 1999, p. 76).
O primeiro traço de caráter é a obediência, mas, Kant não defende uma obediência
acrítica. A obediência é vista como uma atitude através da qual o sujeito se impõe certas
máximas e se submete a elas, sem se deixar levar pelas inclinações. Kant foi o primeiro a pautar
sua vida seguindo esse princípio. No opúsculo ele defende que isso seja cultivado desde a
infância: Quando se quer formar o caráter das crianças, urge mostrar-lhes em todas as coisas um certo plano, certas leis, as quais devem seguir fielmente. Assim, por exemplo, se lhes é estabelecida a hora para dormir, para trabalhar, para brincar, esse horário não deve ser dilatado ou abreviado. Nas coisas indiferentes pode-se deixar a escolha às crianças, contando que depois observem sempre a lei que criaram para si mesma. (KANT, 1999, p. 76-77).
A preocupação de Kant dirige-se a mais uma forma de disciplinar a subjetividade na
infância formando os fundamentos do caráter para a moralidade na vida adulta. O plano ao qual
se refere é aquele que todos nós devemos ser capazes de traçar e manter para atingir metas em
nossas vidas.
Se, por exemplo, tendo decidido alguém levantar-se cedo todos os dias para estudar, ou para fazer qualquer outra coisa, mesmo para passear, e depois não cumpre, escusando-se porque na primavera faz muito frio de manhã e poderia lhe fazer mal, no verão é gostoso dormir e gosta demais de dormir e adia sempre a decisão, acaba por perder toda confiança em si mesmo. (KANT, 1999, p. 88).
Essa discussão Kant faz também em outras obras quando trata da formação do caráter.
Ela não está presente apenas na Pedagogia.
Começando com a definição de caráter de sua segunda Crítica, este se qualifica: “de acordo com as máximas invariáveis” (KpV 152, destaque
125
adicionado). Na Antropologia na discussão sobre o estabelecimento do caráter Kant fala sobre a necessidade de firmeza (Festigkeit) e perseverança (Beharrlichkeit) na manutenção dos próprios princípios (ApH 294). O ensaio Sobre a Pedagogia descreve caráter como “consiste na resolução firme de querer fazer algo e coloca-lo realmente em prática; citando Horácio significa ser “um homem de propósitos” (Vir propositi tenax) (P 487). (MUNZEL, 1999, p. 55, tradução nossa).
Mas em suas preleções elas aparecem porque ele precisa ressaltar a importância de uma
pedagogia da infância e, por isso, se dedica a traçar orientações acerca da educação da criança
para mostrar que é na infância que se cultiva os fundamentos desta firmeza de caráter na vida
adulta. Antes de mais nada, a obediência é um elemento essencial do caráter de uma criança e, sobretudo de um escolar. [...]. Sempre se diz que as coisas devem ser apresentadas às crianças de tal modo que as cumpram por inclinação, o que é bom em muitos casos; entretanto, muitas coisas devem ser-lhes prescritas como dever. Isso lhes será utilíssimo, a seguir, por toda a vida. Já que, no pagamento de impostos, no exercício da profissão e em muitos outros casos, só nos pode guiar o dever, não a inclinação. Supondo-se que a criança não entenda o dever, melhor assim; e, supondo-se que algo seja dever dela, por ser criança, ela verá que é seu dever como ser humano, ainda que mais dificilmente. Se chega a compreender isso, o que só é possível com o passar dos anos, sua obediência será ainda mais perfeita. (KANT, 1999, p. 78).
Além da obediência o segundo traço de caráter a ser cultivado é a veracidade. Mas Kant
diz que: “muitas crianças têm inclinação à mentira, a qual deve ser atribuída a uma vivacidade
de imaginação.” (KANT, 1999, p. 81). No entanto, não se pode deixar a criança impune. É
preciso aplicar-lhe punições para que este vício não se perpetue. Neste caso, para Kant, “a única
pena que convém aos mentirosos é a perda da estima”. Ou seja, estamos no terreno das relações,
e apesar de não se tratar aqui da sociabilidade, propriamente dita, estamos transitando no terreno
da aprendizagem de normas de conduta que se prestam à convivência com os outros. Tanto que
a punição recomendada pelo filósofo diz respeito a perda da estima. Caso a criança minta corre
o risco de ter abalada a estima que o grupo lhe confere.
Por último, a sociabilidade é o termo utilizado por Kant para nomear o terceiro traço de
caráter que se deve cultivar desde a infância.
A criança deve manter, com os outros, relações de amizade, e não viver sempre isoladamente. É verdade que muitos mestres são contrários a essa idéia: entretanto, muito injustamente. As crianças devem, assim, preparar-se para o mais doce de todos os prazeres da vida. [...]. As crianças devem ser abertas e de olhar tão sereno como o Sol. Só um coração contente é capaz de encontrar prazer no bem. Toda religião que torne o homem taciturno é falsa, porque este deve servir a Deus com prazer, e não constrangido. Não se deve sempre coibir a alegria na educação escolar; em pouco tempo a criança ficaria abatida. Se tem liberdade, logo se recupera. Daí a utilidade de certos jogos,
126
nos quais ela tem liberdade e procura superar as outras. Então, sua alma recobra a serenidade. [...]. (KANT, 1999, p. 82).
Vemos que a sociabilidade é um apelo à boa convivência, à felicidade de estar com o
outro, mas a uma felicidade genuína que deve ser cultivada numa perpectiva epicurista. “Na
explicação dada por Kant, o coração sempre alegre do sábio correspondia a um coração
equânime, ou seja, em tudo moderado, e igualmente constante em qualquer circunstância,
sempre imparcial em seus julgamentos, reto e equitativo.” (SPINELLI, 2011, p. 107). Isso diz
respeito a regularidade do humor, ao equilíbrio das emoções, ao autocontrole. E, mais uma vez,
ressaltamos a relevância da disciplina que perpassa todas essas conquistas porque essa
regularidade do humor requer tolerar frustrações.
A sociabilidade, assim apresentada por Kant, como um elemento a ser cultivado na
infância, presume, em nossa compreensão, uma educação pública, e, aí está a direção oposta
seguida por Kant, em relação a Rousseau. Daí ele ressaltar em sua citação: “É verdade que
muitos mestres são contrários a essa idéia: entretanto, muito injustamente.”. Kant, refere-se a
Rousseau. E, a premissa de que a sociabilidade deve ser cultivada desde a infância, alimenta
também nossa tese de que a educação infantil deve ser, preferencialmente, aquela oferecida nas
escolas.
5.2 O COSMOPOLITISMO KANTIANO E O PROJETO PEDAGÓGICO COM VISTAS AO DESENVOLVIMENTO DA MORALIDADE
A sociabilidade assim como a concepção de cosmopolitismo de Acosta (2016) que já
mencionamos, ambas, intrinsecamente, estão relacionadas a uma ordem teleológica descrita por
Kant. Porém, não se trata de algo que ocorra de forma espontaneísta. Tudo dependerá de uma
proposta educativa para a concretização dessa destinação humana, que, é tomada por Kant como
uma disposição natural do ser humano.
Quanto à educação deve se tornar “um projeto [...] executado de modo cosmopolita”
(KANT, 2002, p.11). A ideia de projeto de educação cosmopolita está relacionada a formação
dos indivíduos transformando-os em cidadãos moralmente autônomos que possam consolidar
a paz perpétua. E, é exatamente quando Kant propõe a educação como uma ideia, um vir-a-ser,
que nos permite entrelaçar estes conceitos.
Ao considerar que a educação do indivíduo está contemplada apenas como um momento
e que é a educação da espécie, tomada como um projeto, que deve levar o homem a sua
destinação, Kant nos possibilita estabelecer um elo de ligação: educação e cosmopolitismo.
127
Para compreender melhor essa relação vamos nos ater primeiro a educação e ao que
Kant estabelece em seu opúsculo considerando-a como projeto e arte.
Kant concebe a educação como arte. “A educação é uma arte, cuja prática necessita ser
aperfeiçoada por várias gerações” (KANT, 2002, p. 19). Enquanto arte a educação será sempre
uma ação inovadora, criativa, que se concretiza através de experiências. A arte acontece através
da sensibilidade do artista e a educação também deverá acontecer através da sensibilidade de
quem se incumbe dela. A sensibilidade no sentido kantiano refere-se à nossa capacidade de
aprender os objetos e termos intuições a partir de experiências. Este é o sentido da pedagogia
como arte ligada à necessidade de experiências. É preciso experimentar fazendo, para, a partir
destes experimentos, construirmos os conceitos usando o entendimento através deste
aperfeiçoamento que é possível à espécie.
Por isso, a proposta kantiana não se delineou dentro de uma perspectiva fechada na qual
todos os passos já estavam previamente pensados. Pelo contrário, Kant nos deixou uma
proposta educativa para ser complementada, como uma arte, e, constantemente atualizada,
enriquecida. Este é o entendimento do filósofo sobre o processo educacional enquanto projeto
e arte. Então, não podemos exigir que o opúsculo no dê uma receita pronta e fechada, um
modelo de currículo ou coisa similar. Se assim fosse perderíamos a perspectiva trasncendental.
O filósofo defende uma educação experimental reafirmando a necessidade de se testar
novos caminhos para essa formação: “Experimentos são necessários para descobrir quais
métodos educacionais realmente funcionam”, e nesse sentido, podemos tomar o Instituto de
Basedow como uma referência pois ele foi citado por Kant como um exemplo deste
empreendedorismo: “para isso o Instituto Dessau é um exemplo brilhante (LP, 9: 451 e
LOUDEN, 2012, p. 49).” (CAVALLAR, 2014, p. 373, tradução nossa). Também concebemos
que um projeto de educação cosmopolita contemplava estas experiências, pois, segundo
Cavallar (2014, p. 373, tradução nossa) “‘Cosmopolita’ era o termo que englobava essas
inovações práticas.”
Para Kant, a educação é um projeto, o que significa concebê-la numa perspectiva de vir
a ser, transportando para o contexto pedagógico a concepção teleológica que caracteriza sua
filosofia. Esta ‘provisoriedade futura’ está plenamente contemplada pela perspectiva do
Idealismo transcendental kantiano que, não só se aplica à Educação, mas também, à política,
como vemos em sua Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita.
No caso espécífico desta relação entre educação e cosmopolitismo poderíamos, por
dedução, estabelecer uma analogia utilizando a relação que Kant estabelece entre a liberdade
transcendental e o livre arbítrio. Quando Kant cunhou a concepção de liberdade transcendental
128
caracterizada como pura e portadora de uma vontade boa em si mesma, mas, simultaneamente
admitiu que a liberdade do arbítrio comporta uma vontade imperfeita, e, por isso, cada indivíduo
precisa se submeter ao dever, para chegar à moralidade, ele estava estabelecendo uma ponte de
ligação entre a moral pura e a necessidade de cultivo da moralidade no âmbito fenomenológico.
No caso da relação entre educação e cosmopolitismo podemos afirmar o mesmo. A educação
então seria o caminho através do qual o homo phaenomenon aprende a se submeter para chegar
a atingir uma vocação cosmopolita própria do homo noumenon.
Para o filósofo prussiano a educação é tomada como uma Ideia pois, decerto, pode se
concretizar, porém, não comporta um plano fechado, uma proposta pronta para ser encampada,
porque está relacionada a este plano que a humanidade precisa cumprir, que, no entanto, não
apresenta um caminho previamente estipulado, tendo em vista a liberdade de cada indivíduo.
Então não percamos de vista essa amplitude do que vem a ser educação em Kant: uma ideia,
um devir. Kant concebe a educação tal como concebe a política. Está nas mãos do homem como
indivíduo alcançar aquilo que é possível devido às características da espécie humana. Não podemos considerar uma ideia como quimérica e como um belo sonho só porque se interpõem obstáculos à sua realização. Uma ideia não é outra coisa senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontrou na experiência. Tal, por exemplo, seria a ideia de uma república perfeita, governada conforme as leis da justiça. Dir-se-á, entretanto, que é impossível? Em primeiro lugar, basta que a nossa Ideia seja autêntica; em segundo lugar, que os obstáculos para efetuá-la não sejam absolutamente impossíveis de superar. Se, por exemplo, todo mundo mentisse, o dizer a verdade seria por isso mesmo uma quimera? A Ideia de uma educação que desenvolva no homem todas as suas disposições naturais é verdadeira absolutamente. (KANT, 2002, p. 6).
É essa concepção de “perfeição que ainda não se encontrou na experiência” que
fortalece o elo que estabelecemos entre educação e cosmopolitismo. Além disso, Kant encerra
a citação confirmando o que estamos defendendo pois ele atribui à educação o papel de
desenvolver no homem todas as suas disposições naturais.
Partir de uma Ideia, seria então, para Kant, conceber a educação como algo possível
porque há uma predisposição da espécie que faz com que vislumbremos este final. Quando
Vaysse (2012) em seu Vocabulário de Immanuel Kant discute o verbete “Ideal” e o relaciona
com o verbete Ideia nos ajuda a compreender esta perspectiva de educação sob a ótica do
idealismo transcendental kantiano13, pois, segundo ele
13 A Estética Transcendental foi alvo de discussões na seção 2 desta tese, mas, é importante apresentar o conceito em questão. Segundo Caygill (2000, p. 176) Kant “distingue três tendências dentro do idealismo moderno: a primeira é o ‘dogmático’ e, por vezes, visionário idealismo de Berkeley; a segunda é o ‘cético’ ou ‘probelmático’ idealismo de Descartes. Estes, por sua vez, opõem-se ambos como idealismos ‘empíricos’ ao terceiro, o idealismo ‘transcendental’, ‘formal’ ou, como o rebatizou mais tarde, ‘crítico’ do próprio Kant. [...]. O idealismo que Kant estava empenhado em inverter punha em dúvida a realidade de objetos externos: no caso do idealismo ‘cético’
129
A razão não contém apenas Ideias contém também Ideais que têm uma força prática, pois são princípios reguladores que fundamentam a possibilidade da perfeição de certas ações. Assim, se a sabedoria e a virtude são Ideais, o sábio é um Ideal que só existe no pensamento, mas que corresponde piamente à Ideia de sabedoria. A Ideia dá a regra e o Ideal serve de protótipo para determinar a cópia. (VAYSSE, 2012, p. 42-43).
A citação nos daria muitos caminhos para explorar nossa tese, porém, escolhemos um
que, para nós, torna-se mais direto. A correlação entre Ideia e Ideal nos leva à concepção de
arquétipo. E, por isso, ao atrelarmos cosmopolitismo e educação temos como consequência a
assunção do cosmopolitismo como modelo, como arquétipo, como protótipo. Assim,
concebendo a educação cosmopolita sob esta perspectiva podemos pensá-la como um conjunto
de princípios que têm uma força prática latente, uma força intrínseca que impulsiona sua
realização.
Segundo Acosta (2016) o cosmopolitismo é uma predisposição, e, por isso, podemos
vislumbrar a educação cosmopolita como uma forma de concretização do cosmopolitismo. Em
seu artigo Acosta afirma:
Minha tese é que Kant concebe o cosmopolitismo fundamentalmente como uma disposição natural. Em outras palavras: a constituição natural do ser humano contém, segundo Kant, o “germe do cosmopolitismo”. Assim, o cosmopolitismo não é para Kant, em primeiro lugar, uma ideia política ou filosófica inerente à natureza humana, mas uma disposição natural que deve ser realizada de forma análoga a de um órgão do corpo humano, de modo a garantir o desenvolvimento pleno da vida humana na terra. (ACOSTA, 2016, p. 55).
A educação cosmopolita deve preparar o homem para o desenvolvimento destas
atitudes, que, para se expressarem na ação, necessitam ser, antes, cultivadas. [...] na visão de Kant, cosmopolitismo é uma atitude tomada na ação: uma atitude de reconhecimento, respeito, abertura, interesse, beneficência e preocupação em relação a outros indivíduos humanos, culturas, e pessoas como membros de uma comunidade global. (KLEINGELD, 2012, p. 1, Kindle Edition, Posição 267).
As práticas do Instituto Dessau agradavam a Kant. Em um pequeno texto no qual ele se
pronuncia a respeito do Philanthropinum ele elogia as práticas educativas que relacionam o que
chamou de Educação Cosmopolita com o que vinha sendo realizado por Basedow, em Dessau. sua pedagogia [de Basedow] vinculava educação para a tolerância com respeito a diversas seitas religiosas, denominações e crenças. [...]. Como consequência, ensinar os alunos a se tornar tolerantes em matéria religiosa
cartesiano, só a experiência interior era indubitável; a existência de objetos externos não podia ser estabelecida; enquanto para o idealismo visionário de Berkeley, o espaço e as coisas nele ‘meramente entidades imaginárias’ (CRP B 275); ver também p, 293, p. 36 e p. 375, p. 114). A inversão de Kant consistiu em propor um idealismo transcendental que era também um realismo empírico, aquele que prova que ‘mesmo a nossa experiência interna, indubitável para Descartes, só é possível mediante o pressuposto da experiência externa. (CRP B 275).
130
tornou-se um elemento central do currículo do Instituto Dessau e do programa educativo de Basedow. [...]. Kant era de total acordo com essa abordagem (cf Esclarecimento, 8: 40; Religião, 6: 115-124; 179-180; Conflito 7: 52; Além dos limites 2000, pp. 133-134). ‘Além disso, ele gostava do fato de que esses princípios eram postos em prática: Um Instituto como esse é atualmente não apenas uma simples ideia bonita mas surge com provas visíveis da viabilidade daquilo que tem sido sonhado’ [...] (Philanthropinum, 2: 450).” (CAVALLAR, 2014, p. 371, tradução nossa).
Vemos que a metodologia proposta por Basedow é tomada por Kant como a “viabilidade
daquilo que tem sido sonhado” transformando o espaço escolar num arcabouço de estratégias
educacionais, num local onde são oferecidas as condições que promovam a conquista da
moralidade através da convivência coletiva, da aprendizagem que resulta do saber se colocar
na posição do outro, enfim de um exercício de alteridade num ambiente de constituição da
sociabilidade.
Neste sentido, a moral em Kant se constitui a partir do próprio homem, como resultado
da conquista de um estado de autonomia moral, mas em um contexto coletivo. É uma condição
de sua própria faculdade de ser que é desenvolvida no contexto social e comunitário. E, por
isso, devemos considerar a discussão feita por Gregor (2007) na Introdução da tradução que fez
do Essays regarding the Philanthropinum, de Kant, ao argumentar que foram as características
de não-sectarismo e de um currículo cosmopolita que mais agradaram ao filósofo, e chamaram
sua atenção para o Instituto criado por Basedow.
[...] os institutos Philanthropinum introduziram uma variedade de técnicas e prioridades pedagógicas que, desde então, ganharam um lugar no pensamento educacional - por exemplo, conversação - com base em abordagens para o ensino de Língua Estrangeira (incluindo latim), ginástica e educação física, e menos ênfase na memorização. Mas acima de tudo, foram a ênfase do currículo de Basedow no não-sectarismo e no cosmopolitismo que impressionaram Kant. (GREGOR, 2007, p. 98, tradução nossa).
Kant revelou sua admiração pelo instituto em vários de seus escritos. São eles: A
Antropologia de um ponto de vista pragmático, em sua última sessão, dois ensaios produzidos
em 1776 e 1777 e, recentemente traduzidos por Gregor (2007) e editados por Louden, em sua
correspondência com pessoas ligadas ao Instituto, como Campe, e finalmente em seu curso de
Pedagogia ministrado no inverno de 1776-1777. Sobre os dois ensaios escritos em 1776 e 1777,
Gregor (2007) afirma:
O primeiro dos dois ensaios foi originalmente publicado anonimamente em 28 de março de 1776. A autoria foi inicialmente e explicitamente atribuída a Kant por Rudolph Reicke, que reimprimiu em sua Kantiana: Beiträge zu Immanuel Kants Leben um Schriften [(Königsberg: Th. Thiele’s Buchhandlung, 1860), pp. 70-2]. O segundo ensaio apareceu pela primeira vez, um ano depois, em 27 de março de 1777 emitido pelo mesmo jornal, desta vez assinado com a letra "K". Para aqueles que silenciosamente tinha dúvidas,
131
a autoria de Kant, foi em breve assegurada pelas palavras introdutórias que acompanharam a reimpressão do ensaio no Pädagogische Unterbandlungen, edited by J. B, Basedow and J. H. Campe (Dessau, 1777). (GREGOR, 2007, p. 98, tradução nossa).
Nestes ensaios Kant defendia a proposta de Basedow cuja educação propiciava aos
alunos vivenciarem experiências que promovessem a disciplina exercitada através das relações
interpessoais e da cultura. Nesse sentido para ele “é preciso fazer experiências em assuntos
educacionais e [...] sendo nesse assunto necessária a experiência, nenhuma geração pode criar
um modelo completo de educação.” (KANT, 2002, p. 14). E, em seu opúsculo Sobre a
Pedagogia Kant menciona o Instituto Dessau como um exemplo a ser seguido porque era o
espaço onde estas experiências estavam sendo promovidas. A única escola experimental que até agora começou de algum modo a trilhar esse caminho foi o Instituto de Dessau. Apesar dos muitos defeitos que se lhe podem assacar, defeitos que se encontram em todas as obras pioneiras, cabe-lhe essa glória: ele não cessou de fazer novas tentativas. De certo modo, essa foi a única escola em que os mestres tiveram a liberdade de trabalhar segundo seus próprios métodos e intentos, e na qual estiveram unidos entre si e mantiveram relações com todos os sábios da Alemanha. (KANT, 2002, p. 14).
Apesar de muito recentes, o panorama dos estudos kantianos tem trazido respostas a
estas questões, pois, como afirma Cavallar: O Cosmopolitismo de Kant tornou-se foco de aprofundamento das pesquisas nos últimos anos (Brown 2009; Cheneval 2002; Kleingeld 2012) [...] [mas] surpreendentemente nenhum artigo com o tema ‘Kant e a educação cosmopolita’ foi publicado até agora. A despeito do fato de que Kant frequentemente invoca o termo cosmopolita quando se referia ao que ele pensava ser o método de ensino adequado. (CAVALLAR, 2014, p. 369-370, tradução nossa).
Em recente publicação Cavallar define o Cosmopolitismo Kantiano tomando-o como
uma teorização presente nos últimos escritos do filósofo cujo conceito está diretamente
relacionado à concepção de educação.
Kant, em particular, postulou deveres para promover Comunidades legais, morais e religiosas, estabelecer leis comuns ou instituições cosmopolitas, e desenvolver uma disposição cosmopolita. Esta é a pedra angular do cosmopolitismo de Kant e o conceito-chave é a vocação (Bestimmung) do indivíduo assim como da espécie humana. Uma vez que tentar compreender ou pelo menos aproximar-se desta vocação era um processo longo, arduoso e lento, Kant dirigiu-se para as implicações pedagógicas desse “projeto” e transcreveu esses pensamentos em seus escritos posteriores. (CAVALLAR, 2015, p. 2).
Mas, como desenvolver estas habilidades no contexto educacional? O que podemos
esperar de um Projeto de Educação Cosmopolita dirigido aos indivíduos se é a espécie que
guarda em si mesma a prerrogativa de realizar tal intento? Kleingeld (2012, p. 172, tradução
132
nossa) pode nos ajudar com seus argumentos ao defender que “os resultados deste processo de
desenvolvimento são transmitidos para as gerações subsequentes, não biologicamente, mas
mediados através da educação, bem como através de instituições sociais e políticas.” Ou seja,
cada indivíduo refaz em si mesmo o percurso que a humanidade já construiu, visando o
aperfeiçoamento da moralidade da espécie e cumprindo o ritual de constituição da moralidade
em si mesmo.
A partir desta citação encontramos em Kant um princípio de aprendizagem geral e não
apenas o princípio de desenvolvimento da moralidade e, em decorrência, compreendemos
perfeitamente porque a “educação, portanto, desempenha um papel crucial na realização da
Comunidade cosmopolita e do desenvolvimento da moral individual. (KLEINGELD, 2011, p.
172, tradução nossa).
Este princípio de aprendizagem já se encontrava presente, por exemplo, entre os
enciclopedistas d’Alembert e Diderot quando estes escreveram a Enciclopédia a partir de todo
o conhecimento que a humanidade já havia produzido durante séculos e, obviamente, ao
disponibilizá-lo para os indivíduos lançavam mão de uma elaborada estratégia didática através
da qual cada um, individualmente, poderia refazer o caminho já feito pela humanidade através
desta oportunidade de aprendizagem. Menck (2000) defende esta tese em seu livro intitulado
Looking into clasroom. Vejamos o que diz o autor: No capítulo 2, eu introduzi Bildung como o processo em curso através do qual os seres humanos adquirem características específicas da espécie humana. Agora eu pergunto: Será que é possível oferecer o mundo inteiro como um meio de educação, como um objeto para um ser humano individual? Foi feita a tentativa de tempos a tempos. Mencionarei apenas uma tentativa nesse sentido - talvez a mais famosa - e que incentivou Basedow para desenvolver seu Elementarwerk. De 1750 a 1780, Jean d'Alembert Lerond e Denis Diderot editou a famosa Enciclopédie, ou Dictionnaire raisonné des Sciences, des arts et des métiers (Enciclopédia ou Dicionário das Ciências, as Belas Artes e os Ofícios - fundada em razão). A Enciclopédia consiste em uma série de artigos organizados por ordem alfabética, mas a escolha de tópicos seguiu uma teoria altamente sofisticado de conhecimento. Se necessário uma ou mais ilustrações foram adicionadas aos artigos. De acordo com d'Alembert e Diderot, sua Enciclopédia foi uma "imagem geral das realizações da mente humana em todas as áreas e em todos os séculos" (Diderot, 1969, p. 37). (MENCK, 2000, p. 112, tradução nossa).
A proposta de Menck neste livro é analisar a estrutura do Elementarwerk defendendo a
tese de que as imagens utilizadas por Basedow em seu Elementarwerk, associadas as suas
histórias contribuem para uma determinada formação (bildung) assim como já havia sido feito
pelos enciclopedistas.
Eu vou examinar as suas imagens a partir do ponto de vista da alegação de que na educação, e especialmente na sala de aula, nós transmitimos uma
133
Welbid - ou seja, uma imagem do mundo, utilizando imagens (bild) e histórias - e, desta forma contribuímos para Bildung do aluno. (MENCK, 2000, p. 111, tradução nossa).
Ele afirma que a forma como Basedow sequencia e organiza as imagens e a tabela de
aplicação de seus conteúdos no Elementarwerk corresponde a um projeto didático
inteligentemente organizado visando a formação de um determinado modo de pensar o mundo. Estas imagens foram produzidas para fins explicitamente didáticos. Na primeira placa (veja a figura 4.4) há um bom exemplo de como Basedow - e os filantropos - o grupo de educadores ao qual ele se associou - pensou sobre o seu método de ensino, o seu método "socrático-catequético", que eu discuti no capítulo 4. A série de fotos do Elementarwerk de Basedow começa com a imagem de (como eu poderia descrevê-lo) um burguês como o do lugar onde as crianças - mostradas em quatro diferentes idades - crescem. Mas em contraste com esta primeira imagem, vamos olhar para a última foto - o fim da vida humana, transferido para a linguagem da mitologia grega (ver figura 9,7): vemos Pluto (juntamente com Perséfone) e os três juízes com o aparecimento de um "fantasma, abatido e cobrados pelo pecado" (Basedow, 1909, p. 35). O que vemos na vida humana, entre o nascimento e a morte, formando o quadro de trabalho para a série de fotos. Eu também irei adicionar um outro pequeno detalhe das imagens, ou seja, a ordem das placas XXV para XLV: casa - lugar com casas - plano de uma cidade (Copenhague) - país (Dinamarca) - Europa - os continentes da Ásia, África e Austrália - mapa do mundo - Alemanha. Horizontes cada vez mais amplos são abertos até os olhos retornarem ao próprio país do indivíduo. (MENCK, 2000, p. 119, tradução nossa).
Cabe-nos aqui explicar melhor como tudo isso foi utilizado no Instituto Dessau com as
crianças que já haviam aprendido a ler e escrever. Segundo Bollnow ([19--]) elas eram
introduzidas neste curso denominado Elementarwerk. Esta obra de 1774, de Basedow, era
constituída por um conjunto de 96 gravuras, gravadas em placas de cobre somadas a dois
volumes de extensos comentários sobre elas. “Foi o pintor de Berlin Daniel Chodowiecki,
quem, após amplas consultas com Basedow e com profissionais de diferentes áreas, desenhou
a maioria dos painéis, gravou uma pequena parte deles em cobre, transferiu a maioria dos outros
conectores de cobre para a placa”. (BOLLNOW, [19--], p. 4, tradução nossa).
A intenção de Basedow era oferecer um novo material que pudesse vir a subsidiar um
novo método de educação através do qual se propiciasse uma modalidade de educação dialógica
e não mais aqueles velhos métodos respaldados na repetição e memorização. Através destas
placas se exibiam os temas de estudo que, em seguida, seriam discutidos através do
detalhamento dos elementos contidos nas figuras. Os primeiros quadros são destinados para conhecer as coisas do ambiente habitual, aqueles que as crianças já conhecem antes de ver a imagem, de modo que a relação entre a imagem e o objeto seja percebida por elas (I07 G. f.). Só a partir daí que o perímetro se expande também a objetos desconhecidos, os
134
quais a sala de aula não poderia mostrar.) (BOLLNOW, [19--], p. 9, tradução nossa).
Os temas versavam sobre aspectos do mundo objetivo visando introduzir a criança neste
universo da realidade das coisas, contemplando inicialmente o que lhes era familiar, para em
seguida ir aprofundando o grau de complexidade dos conhecimentos que lhes eram trazidos.
Vejamos alguns destes temas: Detalhadamente: divertimento das crianças (dos quais eu posso mostrar três imagens), uma parte da história natural, os animais, o corpo humano, depois concepções antropológicas. Intelecto, instintos, em seguida, alguns conceitos básicos geográficos, etc. [...]. 2 folhas: fome, sede, comida, 4 folhas: Roupas, 2 folhas: calor e luz [...], 3 folhas: Anatomia Humana, [...] Elementos da moral, religião, geografia, guerra, histórias do mundo (I, XVIII). (BOLLNOW, [19--], p. 4-5, tradução nossa).
Em torno destas ilustrações havia, antes um trabalho de pesquisa, através do qual
Basedow elegia o que era de fato necessário levar ao conhecimento das crianças. “Basedow
começa com o meio social da criança: a família na mesa de jantar, a comida, o vestuário e a
habitação, e estende-se a partir daí alargando lentamente o perímetro em mais e mais áreas.”
(BOLLNOW, [19--], p. 3, tradução nossa).
De modo que tal organização “É a passagem do sistema de referência da ordem objetiva
do mundo para a ordem subjetiva das pessoas [transformando o ensino para] apresentar as lições
as crianças de forma mais agradável possível.” (BOLLNOW, [19--], p. 3, tradução nossa). “Ele
joga variados tipos de jogos para praticar esses primeiros conhecimentos.”(BOLLNOW, [19--
], p. 9, tradução nossa).
Esta forma de organização é, segundo Menck (2000), uma estratégia que aproxima a
estrutura do Elementarwerk da estrutura da Enciclopédia de d’Alembert e Diderot: Olhando para a série de imagens em detalhe, não é fácil reconstruir uma ordem. Mas vamos olhar para primeira parte do Elementarwerk, isto é, para o livro e sua tabela de conteúdo (ver tabela 9.3). O primeiro item indica explicitamente o enquadramento pedagógico do todo. O que segue são os títulos para o que sabemos sobre o mundo, dispostos em uma forma que era usual em um currículo escolar, no século 18. Assim, o conteúdo do Elementarwerk reflete a mesma filosofia que o sustenta, a Encyclopédie. O ponto de vista de Basedow, que podemos reconstruir, é a vida humana entre o nascimento e a morte, e ele recolhe o conhecimento de que está à disposição humana - em um estágio elementar. (MENCK, 2000, p. 119, tradução nossa).
Entendemos também ser essa proposta metodológica um convite ao pensar,
desenvolvendo a consciência de si mesmo no mundo, uma proposta educativa conforme os
propósitos da educação cosmopolita. E, em consequência, uma estratégia adequada também ao
desenvolvimento da eloquência e da argumentação crítica tendo em vista que as crianças eram
135
levadas a refletir sobre as gravuras que representavam situações e temas da vida objetiva, dentro
de um contexto no qual toda subjetividade era proporcionada em função do que se pedia em
termos de análise e argumentação deste material. Como por exemplo: «1.para adivinhar quantas
coisas aqui e ali levam a um nome previsto [...] mostre-me todos eletrodomésticos nesta sala ou
nesta imagem - agora todas as ferramentas - agora todos os contentores - agora todos os
alimentos, etc.” (BOLLNOW, [19--], p. 9, tradução nossa). Ou como em outro exemplo: A
partir do... a partir de um nome encontrar seus correlatos. “ “2. Subir do nome de baixo de um
anel até o nome de cima z. E. Lebre, selvagem, animal, seres vivos [....]” (BOLLNOW, [19--],
p. 9, tradução nossa). Ou o inverso: “Descer do nome de cima ao nome debaixo sem faltar
nenhum z. E. edifícios, casas, igrejas [....].”(BOLLNOW, [19--], p. 9, tradução nossa).
Ou seja, as imagens seguem uma proposta didática que visa produzir nos indivíduos
uma progressiva ampliação de seu olhar sobre o mundo partindo de situações familiares e
conhecidas e expandindo-as em relação ao que caracteriza a história da humanidade para, ao
final, retornarem ao mundo particular e próprio de cada um.
Portanto, através da análise da proposta didática de Basedow, vemos porque o Instituto
tanto agradou a Kant, tendo em vista que o mesmo contemplava um processo de formação
(bildung), a partir do qual se constituiria uma visão de mundo tal como aquela defendida por
ele em sua Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita e também em
um texto publicado em 1772, Anthropology Friedländer, no qual Kant sintetiza a admiração
pelos institutos criados por Basedow, porque ali se encontrava um modelo de educação, que,
satisfazia as expectativas do filósofo em relação ao que deveria se esperar de uma escola
enquanto promotora deste desenvolvimento moral, incluindo inclusive uma crítica às escolas
até então existentes. Os atuais institutos basedowianos são os primeiros a funcionar segundo um plano perfeito de educação. Este é o maior fenômeno que tem aparecido neste século para a melhoria da perfeição da humanidade, através dele, todas as escolas no mundo receberão uma outra forma, e a raça humana assim, será libertada das limitações das escolas prevalentes. (KANT, 25:722-31; see also Moralphilosophie Colins, 27:471, apud GREGOR, 2007, p. 98, tradução nossa).
Kant também inicia seu Essays regarding the Philanthropinum, dirigindo-se àqueles
que poderiam vir a se interessar por esse modelo de educação, em especial, aos pais que
desejassem matricular seus filhos no Instituto Dessau. Esta primeira edição do Arquivo Philanthropin, destina-se aos amigos fraternos da juventude os tutores da humanidade, particularmente aqueles que desejam começar uma melhoria das escolas, e aos pais e mães que desejam
136
enviar crianças para Dessau Philanthropinum. (KANT, 2007a, p. 100, tradução nossa).
Enfim, a opção pelo cosmopolitismo no contexto educacional, está, como entendemos,
relacionada ao fato de ser este, na filosofia crítica, muito mais do que uma opção política,
consistindo numa atitude que garante a paz e a convivência em uma sociedade global,
prerrogativas que apenas serão alcançadas caso seja possível aos homens conviverem como
indivíduos visando o progresso da espécie.
137
6 O OPÚSCULO FALA POR SI MESMO
Existe uma Pedagogia Moral em Kant e ela se dirige à infância, por excelência, aliás,
como toda Pedagogia porque a Pedagogia é um campo que nasce para atender as especificidades
da educação da infância. O cotejamento do opúsculo Sobre a Pedagogia com as demais obras
que compõem o sistema crítico nos conduziu à comprovação da tese, mas, o arremate ideal para
costurar todas as reflexões que fizemos não poderia ser outro senão, retomar o opúsculo, nosso
objeto de estudo, e, seguindo-o linha a linha, trazê-lo, através de uma visão de conjunto, para
consolidar aquilo que de forma diluída foi apresentado ao longo das discussões que realizamos.
Ao fazer este arremate podemos incorrer no erro de sermos repetitivos, mas, este é o
sentido de arrematar, costurando os pontos que já foram dados numa repetição que se propõe a
ser uma espécie de reforço.
Quando, antes, fizemos o cotejamento do opúsculo com as demais obras do sistema
crítico e trouxemos seus fragmentos relacionando-os com outros fragmentos das outras obras,
não nos empenhamos em mostrar o quanto o opúsculo fala por si mesmo. No entanto, sabemos
que ele fala! E, por isso, precisamos conceder o lugar que a Pedagogia de Kant ocupa como
uma obra de valor central em sua filosofia. Aquilo que, no início da tese, foi caracterizado como
um texto transversal, em verdade é um de seus últimos textos, e, assim, já pode congregar tudo
aquilo que o filósofo havia produzido.
Nos cabe, agora, arrematar com uma visão de conjunto do opúsculo, nosso objeto de
análise por excelência, porque sabemos que esta é uma obra que contém várias limitações, como
já foi observado quando trouxemos as discussões realizadas pelo professor Robinson dos
Santos. Em vários trechos realmente o opúsculo repete aquilo que Rousseau diz em seu Emílio,
mas, em tantos outros amplia, questiona, se diferencia, e, por isso, jamais poderíamos concebê-
lo como mera reprodução. Portanto, uma paráfrase da introdução de Sobre a Pedagogia
mostrará como este é um texto que fala por si mesmo.
Kant inicia a Introdução de seu opúsculo dizendo-nos, que o homem é a única criatura
que precisa ser educada e, que “por educação entende-se o cuidado de sua infância (a
conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação.” (KANT, 1999, p. 11). A
disciplina está posta desde o início como uma etapa que antecede a instrução e compõe a
educação do homem. Mais adiante afirma que “a maior parte dos animais requer nutrição, mas
não requer cuidados” (KANT, 1999, p. 11). Os cuidados aos quais Kant se refere são aqueles
por ele recomendados, exaustivamente, na seção intitulada “Sobre a educação física”, primeira
seção do opúsculo. Estes cuidados correspondem a primeira etapa da educação, estão,
138
explicitamente, relacionados àquelas prescrições que antes já haviam sido feitas por Locke e
Rousseau, mas, em nossa leitura, têm também a perspectiva de disciplinamento. Kant define
cuidados como “as precauções que os pais tomam para impedir que as crianças façam uso
nocivo de suas forças”. (KANT, 1999, p. 11). Mas, ao longo deste trabalho já vimos como esses
cuidados são também uma forma de disciplinar ainda que não seja nomeada dessa forma. Como
chegamos a essa conclusão? Porque, no opúsculo, por educação Kant entende, a disciplina
como aquela que “transforma a animalidade em humanidade”. Entendemos que, ao nascer, o
bebê precisa ser humanizado. Esses cuidados o retiram da condição animal e são, também, uma
forma de disciplina, no sentido negativo. Kant não faz essa comparação entre os homens e os
animais, por acaso. Mas, para ressaltar que, enquanto os animais têm um instinto que os guia
em suas ações, o homem tem a razão, e por isso, considera que “a espécie humana é obrigada a
extrair de si mesma pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualidades naturais que
pertencem a humanidade”. (KANT, 1999, p. 12). Como já discutimos antes, aqui encontra-se a
a perspectiva transcendente da Pedagogia Moral kantiana. É, por acreditar que a espécie traz
algo em si, que Kant afirma a possibilidade de ela extrair de si mesma suas qualidades. Anuncia
uma possibilidade que ainda não está pronta no indivíduo porque é uma característica da espécie
humana, e circuntancia sua Pedagogia como meio para desenvolve-la!
Nesta altura do texto a educação começa a se apresentar como uma ação que se faz
historicamente pois afirma que uma geração educa a outra. Assim introduz os elementos de sua
Filosofia da História. Elementos que estão presentes em sua Ideia de uma História Universal
de um Ponto de Vista Cosmopolita e Começo Conjectural da história humana. Faz uma breve
crítica ao estado no qual o homem se encontrava referindo-se ao começo da humanidade como
um estado bruto ou como um estado perfeito. Diz: “pode-se buscar o começo da humanidade
num estado bruto ou num estado perfeito de civilização. Mas, neste último caso, é necessário
admitir que o homem tenha caído depois no estado selvagem e no estado de natureza rude.”
(KANT, 1999, p. 12). Acreditamos que nesta passagem do opúsculo, tangencialmente, são
trazidas as discussões apresentadas por Kant em Começo Conjectural da história humana,
publicado em 1786 no Berlinische Monatsschrift, outro texto que assim como Idéia de uma
História... compõe uma série de escritos sobre a filosofia da história kantiana (MENEZES,
2010a).
Tudo isso, convém ressaltar, fortalece a tese de que a educação em Kant é tal como a
Filosofia da História um devir e aí está sua característica de Pedagogia Moral. Contempla a
disciplina como um primeiro momento, no qual ainda infante, o indivíduo deve refazer a
história da humanidade, para, em seguida, atingir a moralidade. Porque, para Kant “a disciplina
139
é o que impede o homem de desviar-se do seu destino, de desviar-se da humanidade, através
das suas inclinações animais.” (KANT, 1999, p. 12). Então, se num primeiro momento o
homem ainda em estado de natureza, aqui chamado por Kant de estado bruto, no entanto
considerado perfeito, veio a cair depois num estado de natureza rude, é porque precisa de
disciplina para saber usar a liberdade. Estas questões também já foram discutidas anteriormente,
mas as retomamos para mostrar o quanto o opúsculo segue um ordenamento de todo
pensamento kantiano pulverizado em seus outros textos. Isso é o que entendemos nas
entrelinhas ao ler o opúsculo a partir dessa visão de conjunto. Mas, é preciso ter antes essa visão
de conjunto para compreender a grandeza da Pedagogia de Kant. É, somente a partir destas
reflexões macroscópicas contemplando estes outros escritos que podemos abarcar o que
realmente o filósofo quis dizer quando afirmou que a disciplina deve conter o homem “de modo
que não se lance ao perigo como um animal feroz, ou como um estúpido”. (KANT, 1999, p.
12). Referia-se a este “começo conjectural” que marca a história da espécie humana.
Dai em diante, avança aprofundando questões acerca disciplina e não deixa de tê-la sob
a perspectiva negativa. Diz que ela é “puramente negativa, porque é o tratamento através do
qual se tira do homem a sua selvageria” e a diferencia da instrução dizendo que esta última “é
a parte positiva da educação” (KANT, 1999, p. 13). Sua intenção é mostrar que a disciplina é a
parte negativa da educação e, para isso, utiliza a instrução como parâmetro comparativo, para
que tenhamos a exata medida do que vem a ser essa parte negativa. A instrução ascrescenta a
disciplina retira! Por isso, apresenta-nos um segundo conceito de disciplina através do qual
pretende explicar o que vem a ser esta parte negativa da educação. Segundo ele, a disciplina é
a estratégia que deve ser utilizada para tirar o homem de seu estado de selvageria. É quando
utiliza o verbo “tirar” que nos faz compreender seu conceito de educação negativa como aquela
que tira algo. Pergunta-nos: “A selvageria consiste na independência de qualquer lei?” e logo
em seguida responde: “A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-
lo sentir a força das próprias leis.” Ou seja, submete o homem tirando-lhe a liberdade aqui
nomeada como “indepência de qualquer lei”, aquela liberdade que se caracterizou como a
primeira que levou o homem à saída do Paraíso. Uma liberdade falseada porque ele a associa a
selvageria. E a disciplina seria o que viria a libertá-lo verdadeiramente porque “começa a fazê-
lo sentir a força das próprias leis”. Por que Kant utiliza a expressão “força das próprias leis?”
Porque, segundo nossa leitura, a disciplina atua sobre o corpo, fazendo-o “sentir essa força” das
leis físicas inicialmente, implicando uma submissão na ordem da sensibilidade, para,
posteriormente, migrar para a ordem da moralidade. Por isso, entendemos que a educação dos
cuidados também está associada à disciplina. Portanto, Kant aponta o caminho da moralidade,
140
passando, antes, pelo uso da disciplina. E alerta: “Mas isso deve acontecer bem cedo”. Ou seja,
circuntancia a disciplina como aquela que corresponde ao momento inicial da educação. Define
uma temporalidade para esta etapa da educação. E, na sequencia, sendo o que mais nos interessa
para nossa tese, afirma: Assim, as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato imediatamente cada um de seus caprichos. (KANT, 1999, p. 13).
Só esta citação nos bastaria para a completa defesa de nossa tese. Ela mostra como a
disciplina atua sobre o corpo. E atua dando ao corpo limites espaciais e temporais: “para que se
acostumem a ficar sentadas e obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado”. Há uma
Pedagogia Moral em Kant, essa Pedagogia se dirige às crianças e ele defende a escola como o
espaço no qual ocorrerá esses ensinamentos: “as crianças são mandadas cedo à escola”. As
escolas tornam-se assim esse espaço de educação infantil onde deveria ser aplicada uma
disciplina que prepara para a moralidade. Logo cedo as crianças devem ser mandadas à escola
pois é lá que serão disciplinadas. Essa educação da infância é necessária não só para que os
caprichos infantis sejam combatidos, mas, para que se possa educar o corpo e almejar na criança
de hoje, o homem moral do amanhã. Esse é, segundo esta leitura que fazemos da obra de Kant,
o papel das escolas infantis.
Além disso, é preciso deixar claro que a disciplina se diferencia de instrução porque ela
é a primeira parte da educação, tomada como processo mais amplo. Neste primeiro momento,
Kant defende que antes de instruir é preciso se contrapor à liberdade, uma liberdade ilusória
que conduz à selvageria. Diz que “o homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que,
depois que se acostuma a ela por um longo tempo, a ela tudo sacrifica”. Apresenta o “desvio”
para, logo em seguida, nos mostrar o remédio para combatê-lo: “Ora, esse é o motivo preciso,
pelo qual é conveniente recorrer cedo à disciplina; pois, de outro modo, seria muito difícil
mudar depois o homem.” (KANT, 1999, p. 13). Aqui, toma a liberdade como livre arbítrio.
Como podemos depreender do que está posto por Vincenti (1994, p. 23).
[...] quando Kant nos fala – referindo-se ao mal pelo qual o homem deve ser considerado responsável – de um “verdadeiro livre-arbítrio”, precisamos entender que o livre-arbítrio pelo qual o homem opta, por não respeitar a lei moral, continua sendo – se bem que verdadeiramente arbítrio, ou seja, o poder de escolha, um arbítrio que não é verdadeiramente livre, uma vez que a liberdade autêntica consiste tão-somente em agir corretamente observando a lei moral. (VINCENTI, 1994, p. 23).
141
É seguindo essa lógica que Kant aponta o caminho através do qual a disciplina age sobre
esse livre arbítrio para corrigir o que, numa perspectiva antropológica, de acordo com a
concepção daquele século, era incorrigível nas comunidades mais primitivas. É dessa forma que tal liberdade ilusória deve ser retirada, superada, até mesmo transfigurada na necessidade da lei para que a educação conduza o aluno à ação moral efetivamente livre. [...]. A disciplina é parte essencial da educação, e se Kant vê nela uma educação negativa, certamente não é no sentido de que ela se constituiria em qualquer negação da educação, mas no sentido rousseauniano, à medida que a disciplina torna possível a educação posterior, reduzindo, ao mesmo tempo, as influências nefastas de um arbítrio abandonado a si mesmo. (VINCENTI, 1994, p. 23).
A citação de Vincenti (1994) faz todo sentido. Estamos diante de uma questão
antropológica. A civilidade é tida como um privilégio, geograficamente, um privilégio do
continente europeu. Para Kant, e outros autores da época, a distinção entre civilidade e
selvageria dava-se pela comparação entre o continente europeu e os demais continentes. Por
isso, o próprio Kant, na sequencia do texto, afirma:
Do mesmo modo, pode-se ver que os selvagens jamais se habituam a viver como os europeus, ainda que permaneçam por muito tempo a seu serviço. O que neles não deriva, como opinam Rousseau e outros, de uma nobre tendência à liberdade, mas de uma rudeza, uma vez que o animal ainda não desenvolveu a humanidade em si mesmo numa certa medida. Assim, é preciso acostumá-lo logo a submeter-se aos preceitos da razão. (KANT, 1999, p. 13).
Em sua Antropologia Kant também trata desta questão ao referir-se à necessidade da
educação, que num primeiro momento parace ser contraditória, tendo em vista que o homem é
naturalmente bom, e, sendo assim não haveria necessidade de coação e disciplina. Mas, o
filósofo argumenta o seguinte: A questão aqui é se o homem é por natureza bom ou por natureza mau, ou por natureza igualmente sensível para um e outro, conforme caia nas mãos de um ou outro educador (cereus in vitium flecti etc.). Nesse último caso a espécie mesma não teria nenhum caráter. – Mas esse caso é contraditório, pois um ser dotado de uma faculdade da razão prática e da consciência da liberdade de seu arbítrio (uma pessoa) se vê nessa consciência, mesmo em meio às mais obscuras representações, sob uma lei do dever e no sentimento (que então se chama sentimento moral) de que ele e, por meio dele, os outros receberam o que é justo ou injusto. Ora, este já é o próprio caráter inteligível da humanidade em geral, e nessa medida o homem é, segundo sua disposição inata (por natureza), bom. Mas porque a experiência revela também que há nele uma propensão a desejar ativamente o ilícito, ainda que saiba que é ilícito, isto é, uma propensão para o mal, que se faz sentir tão inevitavelmente e tão cedo quanto o homem comece a fazer uso de sua liberdade, e por isso pode ser considerada inata, o ser humano também deve ser considerado mau (por natureza) segundo seu caráter sensível, sem que isso seja contraditório quando se fala de caráter da espécie, porque se pode admitir que a destinação natural desta consiste no progresso contínuo até o melhor. (KANT, 2006, p. 218-219).
142
Temos, portanto, uma defesa da educação. Não uma oposição à liberdade no sentido
kantiano, que é a liberdade da vontade, tal como se apresenta em sua Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, como já discutimos. A disciplina não age limitando esta que é a
verdadeira liberdade. Em seu opúsculo o filósofo faz sobressair o valor da disciplina exatamente
para que, mais tarde, o homem possa agir de acordo com a liberdade da vontade. “Quando se
deixou o homem seguir plenamente a sua vontade durante toda a juventude e não lhe resistiu
em nada, ele conserva uma certa selvageria por toda a vida.” (KANT, 1999, p. 14).
Neste ponto queremos nos deter e fazer uma explicação quanto ao termo “juventude”
usado pelo filósofo nesta citação. É uma necessidade, que se justifica, pois já que falamos a
todo tempo, defendendo a educação infantil, precisamos fazer a devida correlação das faixas
etárias com a proposta educativa que se apresenta no opúsculo. Justificamos aqui a influência
de Rousseau no texto de Kant e vamos tomar o termo “juventude” utilizado pelo prussiano,
como sinônimo de infância ampliada, uma infância que se estende até os 16 anos. Kant está se
referindo a juventude porque, inspira-se na proposta de Rousseau. Em várias passagens do
Emílio, principalmente a partir do Livro IV, vemos o quanto Rousseau reluta em inserir o
Emílio na civilização porque não admite que ele esteja pronto. Destacamos uma dessas
passagens para exemplificar. Diz Rousseau: “Achamos que nenhuma criança morta antes da
idade da razão será privada da felicidade eterna” (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 344). Ou seja,
para Rousseau, até os dezesseis anos (que é o estado da razão) ainda se pode nomear o Emílio
como uma criança. Defende, nesta passagem, a introdução tardia da educação religiosa nos
moldes catequisantes da época. Não quer que o Emílio seja obrigado a dizer que crê em Deus
sem que possa, através da sua própria razão, compreender o que é Deus. Isso quer dizer que até
o estado da razão há uma concepção de infância ampliada.
O trecho nos serve para mostrar como ainda considera o Emílio uma criança e, por isso,
nomeia todos como crianças até a entrada na idade da razão (dezesseis anos). Na sequência
ainda torna esta nossa interpretação mais provável pois diz: “A única diferença que vejo aqui
entre vós e eu é que pretendeis que as crianças tenham aos sete anos essa capacidade, e eu não
a concedo nem mesmo aos quinze.” (ROUSSEAU, 1999, l. IV, p. 345). Quando Rousseau
escreveu o Emílio dedicou o Livro I ao infans - o bebê, o Livro II ao puer – de 2 a 12 anos, o
Livro III ao adolescente – de 12 a 15 anos e, apenas no Livro IV ele admite a entrada do Emílio
na idade da razão. Só aí, a partir do Livro IV, inclui o Emílio na civilização e oferece a ele a
educação intelectual. Assim também Kant procede em seu opúsculo designando os cuidados e
a disciplina como ações relativas a uma primeira etapa da educação. Portanto entendemos que
se algumas vezes Kant se refere à criança e outras se refere à juventude é porque toda essa
143
primeira etapa da educação fica compreendida dentro desta faixa etária ampliada. Uma citação
do próprio opúsculo pode esclarecer melhor esta questão:
Quanto tempo deve durar a educação? [Refere-se à educação física]. Até o momento em que a natureza determinou que o homem se governe a si mesmo; ou até que nele se desenvolva o instinto sexual; até que ele possa se tornar pai e seja obrigado, por sua vez, a educar: até aproximadamente a idade de dezesseis anos. Passada essa idade, poder-se-á recorrer a expedientes culturais e especializá-lo, submetê-lo a uma disciplina especial; mas não se trata mais de uma educação regular. (KANT, 1999, p. 32).
Vemos, na citação, que Kant delimita a “educação” (a educação física), como um
período que se estende até os dezesseis anos. Portanto a disciplina que é parte desta educação
também deve se estender até essa idade. Em nossas discussões anteriores, tomamos a disciplina
como uma ação de caráter ainda mais alargado, extrapolando essa faixa etária, pois entendemos
que o homem será disciplinado até os dezesseis anos e se autodisciplinará daí por diante. Isso é
o que ele chama de “disciplina especial”, na citação acima.
Na sequência, Kant nos chama a atenção para um problema ainda hoje recorrente na
contemporaneidade. O de se confundir o uso da disciplina com o sacrifício dos talentos naturais
relativos a uma propensão à liderança. Alerta-nos dizendo que: “Um erro, no qual se cai
comumente na educação dos grandes, é o de não lhes opor nenhuma resistência durante a
juventude, porque estão destinados a comandar.” Como vemos, defende a disciplina mesmo
durante a juventude, e, não crê que isso seja uma atitude que leve à perda de uma liderança
natural, pois, afirma que a “brutalidade requer polimento”, muito provavelmente referindo-se à
“brutalidade”, que caracteriza a entrada na adolescência, quando os humores se alteram em
função da puberdade. Muito provavelmente porque na juventude todo esse movimento de
independência é considerado por ele como uma “brutalidade” que requer “polimento”.
Segue defendendo a educação e dizendo que “o homem tem necessidade de cuidados e
de formação” e que “a formação compreende a disciplina e a instrução” (KANT, 1999, p. 14).
Somente a partir deste ponto do texto começa a falar em instrução que segundo sua frase inicial
no opúsculo é o terceiro componente da educação. Para explicar o que vem a ser instrução diz
que “nenhum animal” necessita de instrução. Faz menção à programação instintiva dos animais
e excetua desse caso apenas os pássaros cujos filhotes aprendem a cantar com os genitores. Mas
afirma que “o homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação”. (KANT,
1999, p. 15). E que “só pode receber tal educação de outros homens” (KANT, 1999, p. 15).
Neste trecho sua intenção é nos levar a uma reflexão sobre como deve ser feita esta instrução.
Quem seriam esses “outros homens” que devem educar a criança nesse momento no qual
precisa ser instruída? Na linha seguinte já se posiciona dizendo que: “a falta de disciplina e de
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instrução em certos homens os torna mestres ruins de seus educandos” (KANT, 1999, p. 15).
Ou seja, afirma que os educadores também precisam ter disciplina e instrução. Defende a
necessidade de se fazer experiências para se chegar a educação mais acertada. “Se pelo menos
fosse feita uma experiência com a ajuda dos grandes e reunindo as forças de muitos, isso
solucionaria a questão” (KANT, 1999, p. 15). Os “grandes” assim nomeados são os príncipes
pois imediatamente depois ele diz: “a maior parte dos grandes não cuida senão de si mesma e
não toma parte nas interessantes experiências sobre a educação”. É assim que ele começa a
preparar sua crítica à educação dos príncipes e à educação privada ou doméstica.
Faz menção à importância da disciplina e da cultura como elementos essenciais para
que os homens possam educar uns aos outros, geração após geração. Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem. A falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo de que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina.” (KANT, 1999, p. 16).
Compara disciplina e instrução e aponta a falta de disciplina como um mal maior que a
falta de instrução pois que esta última pode ser remediada enquanto que a primeira não.
Ressalta, portanto, a importância da disciplina quando comparada à instrução. Nesse sentido,
entendemos que a disciplina é elevada porque Kant está retratando-a como um valor que agrega
humanidade aos homens retirando-os da selvageria. Mais uma vez estamos diante da
prerrogativa da educação como o meio através do qual a humanidade será sempre melhor e,
nesse caso, a educação corresponde muito mais à disciplina do que à instrução: “o grande
segredo da perfeição da natureza humana se esconde no próprio problema da educação”.
(KANT, 1999. p. 16). Aqui Kant, de certa forma, usa o termo educação para se contrapor à
instrução como pura fonte de desenvolvimento intelectual.
Todo o teor de sua filosofia da história encontra-se contemplado nesses fragmentos do
opúsculo. Kant é um visionário e vislumbra um devir para a humanidade depositando suas
crenças no processo educativo como um meio para se alcançar a felicidade: “é entusiasmante
pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação, e
que é possível chegar a dar àquela forma, a qual em verdade convém à humanidade. Isso abre
a perspectiva para uma futura felicidade da espécie humana.” (KANT, 1999, p. 17).
Segue buscando uma resposta para aquela pergunta anterior em relação a quem seriam
os homens que deveriam educar as crianças e começa a delinear o caminho no qual,
inicialmente, exclui uma forma de educação que visa apenas a instrução. Diz que o seu tempo
já anuncia uma outra perspectiva: “De fato, atualmente se começa a julgar com exatidão e a ver
145
de modo claro o quê propriamente pertence a uma boa educação” (KANT, 1999, p. 16). Começa
a definir o que vem a ser essa “boa educação” dizendo que ela é um vir a ser, um projeto, e que
requer uma teoria. “O projeto de uma teoria da educação é um ideal muito nobre e não faz mal
que não possamos realizá-lo.” (KANT, 1999, p. 17). Continua no campo da filosofia da história,
tomando a educação como meio para a realização deste devir: “Com a educação presente, o
homem não atinge plenamente a finalidade de sua existência.” Assim, afirma que “podemos
trabalhar apenas num esboço de uma educação mais conveniente”. Esse esboço, deve servir
para nos mostrar que a educação tem a finalidade de desenvolver os germes que a humanidade
já contempla em si como espécie. Insere a educação nesta perspectiva de transcendência. Por
isso, apresenta o exemplo das “orelhas de urso” que “quando arrancadas pela raiz, têm todas a
mesma cor; quando, ao invés, plantadas suas sementes obtemos cores diferentes e
variadíssimas.”. (KANT, 1999, p. 18). Com essa analogia nos faz ver quão diferentes podem
ser as formas de desenvolver esses germes que a natureza pôs nas orelhas de urso e também pôs
na humanidade. Tudo depende da forma como vamos cultivar a espécie. Por isso enfatiza a
necessidade de um plano para a educação. Kant já não fala mais em indivíduo e sim em espécie.
Esta é a grande diferença que o projeto kantiano de educação nos apresenta. Para deixar essa
proposta mais clara diz que: “O indivíduo humano não pode cumprir por si só essa destinação”.
(KANT, 1999, p. 18). Porque, a rigor, essa será uma tarefa a ser alcançada pela humanidade.
Faz uma reflexão acerca desta visão histórica do educar ao supor a existência de um
“primeiro casal, realmente educado, do gênero humano” que tenha educado seus filhos, e
continua sua suposição questioando: “é preciso saber também de que modo ele educou seus
filhos”. Conclui que: “Os primeiros genitores dão a seus filhos um primeiro exemplo; estes o
imitam e assim se desenvolvem algumas disposições naturais. Mas não podem todos ser
educados desse modo, uma vez que as crianças vêem os exemplos ocasionalmente”. (KANT,
1999, p. 19). Aqui queremos destacar esse “ocasionalmente” pois entendemos que ele considera
ocasionais essas aprendizagens que não emanam de uma teoria e de um plano. Estabelecemos
essa hipótese porque na sequência ele alega que “os homens não tinham idéia alguma de
perfeição de que a natureza humana é capaz” e por isso “é certo igualmente que os indivíduos,
ao educarem seus filhos, não poderão jamais fazer que estes cheguem a sua destinação” porque
“essa finalidade não pode ser atingida pelo homem singular, mas unicamente pela espécie
humana” (KANT, 1999, p. 19). Ou seja, é preciso que recuperemos tudo que a espécie humana
vem acumulando em termos de cultura para que formulemos um projeto de educação. Nessa
correlação entre estado de natureza e cultura, que Kant vem trabalhando ao longo do texto,
devemos entender cultura como algo que permite “o desenvolvimento das nossas disposições
146
naturais, como criaturas racionais que somos; [como um fim, um ideal]” (KANT, 2010, p. 26)
pois “quando se trata de designar o último fim da humanidade não é a civilização
(Zivilistierung) mas, a cultura (Kultur) que é privilegiada. Por isso, na sequência ele diz: “Cada
geração de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada
para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais” (KANT, 1999, p. 19).
Kant também lança mão da herança rousseauniana a partir deste trecho afirmando que
“a Providência quis que o homem extraísse de si mesmo o bem e, por assim dizer, assim lhe
fala: entra no mundo. Coloquei em ti toda espécie de disposições para o bem. Agora compete a
ti desenvolvê-las” (KANT, 1999, p. 19). Assim temos o segundo elemento que Kant toma de
Rousseau, mas que aparece totalmente transformado, pois o fato de sermos naturalmente bons
é uma condição da espécie. E, possibilita que as gerações posteriores possam vir a ser
responsáveis por essa oportunidade de aprimoramento, em relação as gerações que as
precederam, caso façam bom uso de seu livre árbitrio. Assim, temos, como na Idéia de uma
História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita um aprimoramento do homem através
da educação de uma geração sobre a outra. E temos também a pedagogia kantiana inserida em
sua filosofia da história. A história, que se ocupa da narrativa dessas manifestações [da liberdade da vontade], por mais profundamente ocultas que possam estar as suas causas, permite todavia esperar que, com a observação, em suas linhas gerais, do jogo da liberdade da vontade humana, ela possa descobrir aí um curso regular – dessa forma, o que se mostra confuso e irregular nos sujeitos individuais poderá ser reconhecido, no conjunto da espécie, como um desenvolvimento continuamente progressivo, embora lento, das suas disposições originais. (KANT, 2011a, p. 3).
Ao propor um projeto de educação a partir do summum bonun Kant gera a perspectiva
de uma educação respaldada naquilo que o homem traz em si a priori enquanto espécie.
Portanto, nos mostra que sua pedagogia está diretamente ligada a essa perspectiva transcendente
e não tem fixado o seu alvo apenas no indivíduo. Mas, simultaneamente, incumbe os indivíduos
a tomarem este “ideal” a ser conquistado como uma tarefa, como um objetivo.
[...] se a natureza concedeu-lhe somente um curto tempo de vida (como efetivamente aconteceu), ela necessita de uma série talvez indefinida de gerações que transmitam umas às outras as suas luzes para finalmente conduzir, em nossa espécie, o germe da natureza àquele grau de desenvolvimento que é completamente adequado a seu propósito. E, este momento precisa ser, ao menos na ideia dos homens, o objetivo de seus esforços, pois senão as disposições naturais em grande parte teriam de ser vistas como inúteis e sem finalidade – o que aboliria todos os princípios práticos, e como isso a natureza, cuja sabedoria no julgar precisa antes servir como princípio para todas as outras formações, tornar-se-ia suspeita, apenas nos homens, de ser um jogo infantil. (KANT, 2011a, p. 6).
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Portanto, Kant não deixa escapar os aspectos pragmáticos e no opúsculo ressalta a
necessidade de uma educação prática (no sentido moral kantiano) afirmando que “O homem
deve, antes de tudo, desenvolver as suas disposições, para o bem; a Providência não as colocou
nele prontas; são simples disposições, sem a marca distintiva da moral.” (KANT, 1999, p. 19).
Ou seja, é necessário um projeto de educação para que essas disposições sejam
desenvolvidas. Pois, “tornar-se melhor, educar-se” é uma condição para desenvolver esse bem,
“e se se é mau produzir em si a moralidade”. Mas há um problema a ser superado pois, há um
antagonismo entre o que se quer alcançar e o que se tem: Desse antagonismo (porquanto a cultura, segundo os verdadeiros princípios da educação do homem, e, ao mesmo tempo, do cidadão, talvez não tenha ainda começado direito, e nem muito menos acabado) nascem todos os verdadeiros males que pesam sobre a humanidade e todos os vícios que a desonram, devendo-se ter presente que as incitações que nos levam ao vício, mas que nos tornam responsáveis, são em si mesmas boas e, como disposições naturais, adequadas; todavia, como estas inclinações estavam preparadas para o estado natural, são contrariadas pelo progresso da cultura e, reciprocamente, trazem prejuízo a esse progresso, até o momento em que a arte, atingindo a perfeição, se torna de novo natureza, que é a meta derradeira da destinação moral da espécie humana. (KANT, 2010, p. 28-29).
Para resolver esta problemática, refere-se a educação como um conceito que se produz
culturalmente: “que grande cultura e que experiência, portanto, esse conceito supõe?” (KANT,
1999, p. 20). E nos apresenta ainda outra pergunta instigando-nos a pensar sobre por onde
começar esse processo educativo: “Deve a educação do indivíduo imitar a cultura que a
humanidade em geral recebe das gerações anteriores?” (KANT, 1999, p. 20). Para responder
tal questionamento inicia uma argumentação trazendo a ideia de Rousseau de se começar pela
educação da natureza. Então nos pergunta: “Ora, de onde começaríamos a desenvolver as
disposições naturais dos homens? Devemos começar pelo estado de rude ou pelo já culto?”
(KANT, 1999, p. 20). E, anuncia explicitamente sua decisão contrária à de Rousseau: “Não é
fácil conceber um desenvolvimento partindo do estado rude (daí também a dificuldade de
formar uma idéia do primeiro homem); e vemos que, sempre que se partiu desse estado, o
homem sempre recaiu na rudeza e novamente se levantou a partir daí.”. (KANT, 1999, p. 20).
Assim, descarta a proposta de educação da natureza pregada por Rousseau e avança em
direção a sua proposta. Antes, porém, de chegar a resposta aprofunda uma reflexão em torno
do que vem a ser a “arte de educar” e diz que toda educação é uma arte. Diz que a origem da
arte da educação é mecânica, aquela que é “ordenada, sem plano conforme as circuntâncias” ou
é raciocinada. Diz que a arte da educação “não é mecânica senão em certas oportunidades, em
que aprendemos por experiência se uma coisa é prejudicial ou útil ao homem.” E critica esta
148
forma mecânica de educar dizendo que “Toda a arte desse tipo, a qual fosse puramente
mecânica, conteria muitos erros e lacunas, pois que não obedeceria a plano algum”.
A partir dai ele começa a fundar uma Pedagogia opondo a essa forma mecânica de
educação, uma outra forma que deve contemplar um plano e ocorrer conforme certa
programação. Vejamos que mais uma vez insiste na questão da filosofia da história. Para ele,
mecânica é a educação que não contemplou a humanidade como alvo. Sua defesa é que desde
as épocas mais remotas, dentre os povos mais bárbaros, já havia um germe através do qual o
homem tende a sua destinação “o que é atestado pelos mais antigos monumentos escritos, que
nos foram legados” contemplando assim um grau de cultura que se transmite desde as gerações
passadas até as atuais. Nesse sentido ele defende que a arte da educação seja raciocinada e faz
equivaler esta “arte raciocinada” à Pedagogia. Por isso defendemos a tese de que em Kant há
uma Pedagogia! Diz: “A arte de educação ou pedagogia deve, desenvolver a natureza humana
de tal modo que esta possa conseguir o seu destino.” E, na sequência ele anuncia um princípio
da pedagogia: “não se devem educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana,
mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e da
sua inteira destinação”. Lembremos-nos de que antes ele já havia dito que os pais não poderiam
educar com essa finalidade porque sua educação pautada em exemplos não conteria essa
perspectiva de projeto, de vir-a-ser. Portanto, ao reafirmar essa postura ele defende uma
educação pública: “De modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente, ainda
que seja corrupto. Ao contrário, deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que possa
acontecer um estado melhor no futuro.” (KANT, 1999, p. 22).
Assim vemos como ele construiu até esta altura do texto todo um discurso
argumentativo em defesa da educação pública embora admita que não se pode contar com os
pais e os príncipes para financiá-la. Crítica semelhante a esta encontra-se em Ideia de uma
História Universal...onde, na oitava disposição, ele refere-se ao Iluminismo e a necessidade de
considerar este contexto para que a partir dele seja feita uma pressão sobre os chefes de governo
cobrando-lhes esta educação pública. Assim toma O Ilumnismo (Aufklärung) como um grande bem que o gênero humano deve tirar mesmo dos propósitos de grandeza egoísta de seus chefes, ainda quando só tenham em mente suas próprias vantagens. Mas este Iluminismo, e com ele também um certo interesse do coração que o homem esclarecido (aufgeklärt) não pode deixar de ter em relação ao bem, que ele concebe perfeitamente, precisa aos poucos ascender até os tronos e ter influência mesmo sobre os princípios de governo. Ainda que, por exemplo, aos atuais governantes do mundo não sobre até hoje nenhum dinheiro para os estabelecimentos públicos de ensino e em geral para tudo o que tange ao aperfeiçoamento do mundo [...]. (KANT, 2011a, p. 18).
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Portanto, embora defenda a educação pública sabe que ainda há muito a se fazer para
que se dê o seu reconhecimento por parte dos pais e dos príncipes. Finalmente, depois desta
longo introdução anuncia o que vem a ser o seu projeto de educação: “O estabelecimento de
um projeto educativo deve ser executado de modo cosmopolita”. É assim que enuncia sua
preferência pelos institutos como modelos onde essas experiências educacionais se farão. “Aqui
é necessário, portanto, contar mais com esforços particulares do que com a ajuda dos príncipes,
como julgaram Basedow e outros” (KANT, 1999, p. 24).
Nossa paráfrase se encerra aqui, quando quase toda a Introdução do opúsculo foi trazida
dessa forma comentada e citada com o intuito de mostrar que tudo aquilo que defendemos nesta
tese veio a contento ser comprovado. Ou seja, existe em Kant uma Pedagogia Moral para a
Infância, e esta Pedagogia além de estar conectada com seu sistema crítico também pode ser
identificada apenas a partir da leitura de Sobre a Pedagogia tal como mostramos agora ao
apresentar a introdução comentada do opúsculo. Assim, concluímos nosso arremate.
150
CONCLUSÃO
Escrever uma tese de doutoramento é um exercício de disciplina e, ao mesmo tempo,
uma atitude de insurgência, porque não há como defender um ponto de vista, tomar uma
posição, tecer os fios que constituem o argumento para sua defesa, sem certa dose de ousadia.
Ao longo do texto estas atitudes foram balizas para chegarmos até aqui. Na Introdução
anunciamos o que pretendíamos, situamos o leitor em relação aos nossos objetivos e dissemos
como se fez este desejo de pesquisar a formação sócio moral no contexto da educação infantil.
Aqui na conclusão queremos salientar que um objeto de pesquisa não nos surge ao
acaso. Ele consiste numa forma de compreendermos quem somos e como nos tornamos
humanos ao reivindicar essa humanidade que nos habita. Essa é a grandeza da filosofia de Kant.
Ele elaborou uma filosofia que não nos delimita dentro de uma classificação fechada encerrando
possibilidades de ser. Em Kant, encontramos um modo de equilibrar esses opostos, um convite
ao exercício da liberdade. Com Kant não podemos concluir apontando uma única saída. Sua
filosofia não se presta a esse final porque nela o final está previsto, mas o caminho é escrito
pelas mãos do próprio homem. Nessa teleologia não podemos interferir delimitando descritores
de ação ou modelando uma Pedagogia.
Mas, podemos concluir reafirmando nossa tese. A Pedagogia Moral em Kant aponta a
infância como o período em que tudo deve ser produzido para que na vida adulta nos tornemos
seres morais. Ao tomar o sumo bem como ponto de partida Kant constrói uma teleologia que
aponta para a paz, a união, o bem viver. Porém, quando afirma que ao sairmos do Paraíso
optamos por um caminho de liberdade, coloca nas mãos de cada indivíduo a responsabilidade
de dirigir a história até chegarmos ao esperado final.
E, apesar de compreender que, em última instância cabe a cada um escrever essa
história, Kant não construiu uma filosofia e nos deixou entregues ao espontaneísmo. Ele nos
mostrou como a razão pode vir a se tornar mestra desde que tenhamos disciplina para enfrentar
as inclinações.
A disciplina, em Kant, negativa conforme ele caracteriza, tira o bebê de um mundo
idílico no qual tudo gira em torno de um eu egoísta e o faz sentir, através das privações, o quanto
a vida requer de nós como seres destinados à convivência com outros. Na vida da criança a
disciplina age mostrando-lhe que deve aprender a se valer de suas próprias forças pois um corpo
amolecido não suporta aquilo que a moralidade requer, que é exatamente passar ao largo do
caminho fácil das inclinações em busca da felicidade momentânea.
151
As preleções kantianas mostram ainda que as máximas que um sujeito deve dar a si
mesmo para agir dentro da moralidade só podem vir a ser constituídas se ele cultivar, na infância
o respeito às regras, a obediência às rotinas, a verdade e a boa convivência com seus congêneres.
Só assim poderá ter no futuro a firmeza de caráter para seguir seus propósitos ainda que os
obstáculos se interponham em seu caminho. Só assim poderá conquistar a temperança para
aguardar que as coisas sejam feitas no tempo certo e não no seu tempo. Ao final de sua
Pedagogia Kant diz:
A moralidade diz respeito ao caráter, Sustine, abstine: essa é a maneira de se preparar para uma sábia moderação. Se quer formar um bom caráter, é preciso antes domar as paixões. No que toca às suas tendências, o homem não deve deixá-las tornarem-se paixões, antes deve aprender a privar-se um pouco quando algo lhe é negado. Sustine quer dizer: suporta e acostuma a suportar! (KANT, 1999, p. 86).
Toda Pedagogia Kantina está perpassada pela disciplina como mostramos ao longo desta
tese. Suas preleções foram escritas por Rink, mas, o texto revela um Kant que havia
compreendido que a educação é o caminho para a moralidade. Por isso, ele abre seu opúsculo
dizendo: “o homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação” (KANT,
1999, p. 15).
Concluir é chegar a exata compreensão do que vem a ser essa citação kantiana. Ao longo
desse trabalho nos dedicamos a torná-la compreensível de várias maneiras. Por isso podemos
concluir no sentido de cessar todas as discussões, sem necessariamente selar um fim. Optamos
por este último sentido do que vem a ser concluir lançando mão de um desfecho sem presumir
uma finalização. O terreno da filosofia, por si só, sustentaria, suficientemente, essa nossa
decisão sem que nos fosse cobrado qualquer tipo de explicação. A filosofia da história em Kant
nos assegura o direito de assim agir. E sua Pedagogia, perpassada por essa conotação da
filosofia da história, legitima nossa decisão. Se a Pedagogia em Kant é projeto e arte, é devir e
vir-a-ser, as discussões não podem ser encerradas. Estarão sempre em aberto aguardando os
acréscimos que podem advir das novas experimentações.
Nossa tese contém, em si mesma, uma limitação. Tudo que aqui foi discutido data de
1787, último semestre no qual Kant ministrou suas Lições de Pedagogia, em Königsberg. Uma
Pedagogia circunstanciada no Dezoito! Isso não nos autoriza a defender a Pedagogia Kantiana
como um modelo para a atualidade, muitos dirão. Ao longo de todas as discussões nos
limitamos à Modernidade. Nenhuma ponte foi estabelecida com a contemporaneidade. Mas,
não poderíamos finalizar sem dizer que a reflexão filosófica é contemporânea. Reside nisso a
grandeza da filosofia. Portanto podemos ler com “olhos críticos” o que se expressa nesta
152
Pedagogia deixada por Kant. Tomar de empréstimo o seu cosmopolitismo pedagógico e
conferir a pedagogia atual esse caráter de projeto e arte que visa formar o cidadão do mundo.
Levar adiante o “espírito crítico” kantiano buscando a ciência na pedagogia. Aproveitar essas
escavações que nos levaram a 1787 como uma forma de reconstrução que nos possibilite
compreender o caminho que essa Pedagogia vem trilhando, como ela chegou até nós, e, utilizar
fragmentos de um tempo que passou para reconstruir uma história a ser alimentada no tempo
futuro. Dessa forma, esperamos suscitar o diálogo entre o moderno e o contemporâneo a partir
das reflexões que foram empreendidas nesta tese.
153
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