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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA MARIA DE JESUS VAZ DE SOUSA RETRATOS EM PRETO E BRANCO: LEMBRANÇAS FRAGMENTADAS DAS LEITURAS EM INFÂNCIA. FORTALEZA – CE 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA

MARIA DE JESUS VAZ DE SOUSA

RETRATOS EM PRETO E BRANCO: LEMBRANÇAS FRAGMENTADAS DAS

LEITURAS EM INFÂNCIA .

FORTALEZA – CE 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

MARIA DE JESUS VAZ DE SOUSA

RETRATOS EM PRETO E BRANCO: LEMBRANÇAS FRAGMENTADAS DAS

LEITURAS EM INFÂNCIA .

Dissertação apresentada ao Mestrado em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras Área de concentração: Literatura. Orientadora: Profª Drª Fernanda Maria Abreu Coutinho

FORTALEZA – CE 2009

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MARIA DE JESUS VAZ DE SOUSA

RETRATOS EM PRETO E BRANCO: LEMBRANÇAS FRAGMENTADAS DAS LEITURAS EM INFÂNCIA .

Dissertação submetida à Coordenação do curso de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras. Área de Concentração: Literatura.

Aprovada em _______/_______/_______

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________ Profª. Drª. Fernanda Maria Abreu Coutinho

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_______________________________________

Prof˚. Dr˚. Francisco Tarcísio Cavalcante Universidade Federal do Ceará

_______________________________________ Profª. Drª. Vera Lúcia Albuquerque de Moraes

Universidade Federal do Ceará (UFC)

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A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ver quem sou;

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Fernando Pessoa

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DEDICATÓRIA • À minha mãe, primeira mestra, que me alfabetizou com tanto carinho e

dedicação e me ensinou as lições da vida; • Ao meu pai, maior exemplo de honestidade; • Às minhas irmãs Francisca e Fátima, pelo apoio constante; • Aos meus sobrinhos - filhos: o maior presente que Deus me deu; • À minha amiga Renata, por estar presente em todos os momentos da minha

vida; • À Silvania que, com sua leveza, ameniza a dureza dos meus problemas; • Ao meu parceiro, Rogebistierry, por todos os momentos de partilha.

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AGRADECIMENTOS • Em primeiro lugar, a Deus, por ter me dado o dom da vida; • À minha orientadora, Profª. Drª Fernanda Coutinho, pelo apoio intelectual, pela

orientação segura e enriquecedora, e, principalmente, pela paciência e compreensão dedicadas a mim durante esta jornada;

• À Profª Vera Moraes, pela pertinência das contribuições no exame de qualificação e na argüição da defesa;

• Ao Prof. Drº Francisco Tarcísio Cavalcante pela aguda leitura do texto que

suscitou uma discussão fecunda acerca da experiência do Graciliano Ramos menino, entre os livros;

• Às minhas companheiras de todas as horas, Renata e Silvania. Obrigada por

mais uma vez estarem ao meu lado; • Ao meu parceiro das horas alegres e tristes, Rogebistierry, por ter me ensinado

a ser uma pessoa mais organizada, descontraída e feliz; • A todos os meus amigos e todas as pessoas que de alguma forma

contribuíram para que esta dissertação se concretizasse.

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RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo contribuir para um maior entendimento acerca

do discurso literário em relação às práticas de leitura delineadas em Infância, de

Graciliano Ramos. Nossa hipótese é a de que os castigos, as punições e o

silêncio impostos pelo modelo de educação tradicional, familiar e escolar são

determinantes para o processo de leitura do menino do livro. Começamos por

situar autor e obra em sua realidade histórica. Em seguida, faremos uma análise

das práticas de leitura na família e na escola em Infância, partindo dos seguintes

questionamentos: o ambiente familiar e o escolar são locais onde as crianças têm

liberdade para expressar seus pensamentos? Ou são estimuladas a silenciar? A

Escola e a Família têm contribuído para a formação dos leitores ou os leitores

estão se formando apesar delas? Por fim, realizaremos uma reflexão acerca de

algumas imagens que fazem parte das memórias. Pensamos que, de forma mais

geral, esta pesquisa é importante para a crítica literária brasileira devido à

ampliação de visões acerca da produção do autor alagoano, pois muitos estudos

focam apenas o aspecto regionalista das obras.

Palavras-chave: Graciliano Ramos, práticas de leitura, Família, Escola.

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RÉSUMÉ

Mots-clés: Graciliano Ramos, pratiques de lecture, Famille, École.

Cette recherche a par objectif une meilleure compréhension concernant le discours

littéraire relatif aux pratiques de lecture exposées dans Infância, de Graciliano

Ramos. Nous partons de l’hypothèse que les châtiments, les punitions et le silence

imposés par le modèle de l’éducation traditionnelle, familier et scolaire sont

déterminants pour le procès de lecture du personnage du livre.

Nous commençons par situer l'auteur et l'œuvre dans sa réalité historique. Ensuite,

nous ferons une analyse des pratiques de lecture dans la famillle et dans l’école

dans Infância, à partir des questionnements suivants : l’ambiance familier et

scolaire sont des lieux où les enfants ont de liberté pour exprimer ses pensées ?

Ou sont-ils encouragés à rester silencieux ?

L’école et la famille contribuent pour la formation des lecteurs ou les lecteurs se

forment malgré elles ? À la fin, nous réaliserons une réflexion concernant quelques

images qui font partie des mémoires. Nous pensons que, d’une façon plus

générale, cette recherche est importante pour la critique littéraire brésilienne dû à

l'élargissement des visions relativement à la production de l’auteur d’Alagoas,

puisque plusieurs études focalisent plutôt l’aspect régionaliste des ses œuvres.

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SUMÁRIO Página Introdução......................................................................................................

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Capítulo 1 – Considerações sobre uma obra e seu criador.......................... 19 1.1 – Fragmentos da vida de Graciliano........................................................ 21 1.2 – Infância e Infância................................................................................. 30 1.3 – Infância................................................................................................. 32 1.4 – Uma infância enclausurada..................................................................

41

Capítulo 2 – O leitor e suas leituras............................................................... 45 2.1 – O leitor.................................................................................................. 46 2.2 – Práticas de leitura na família................................................................ 48 2.3 – Práticas de leitura na escola................................................................. 61 2.4 – Práticas de leitura que libertam............................................................

68

Capítulo 3 – Imagens em Infância................................................................. 74 3.1 – Semiótica e Literatura........................................................................... 74 3.2 – Uma reflexão acerca de imagens......................................................... 76 3.3 – Uma imagem do medo......................................................................... 78 3.4 – Imagem da criança sendo preparada para ir à escola......................... 80 3.5 – Imagens da violência contra a criança.................................................

85

Considerações Finais....................................................................................

90

Referências bibliográficas.............................................................................. 93

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INTRODUÇÃO

Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, Preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso. Escrevo porque amanhece, e as estrelas lá no céu lembram letras no papel, quando o poema me anoitece. A aranha tece teias. O peixe beija e morde o que vê. Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? Paulo Leminski

O poema de Paulo Leminski nos leva a refletir sobre o ato de escrever e

sobre a dificuldade que sentimos para iniciar a escrita de algum assunto, pois

começar um texto é sempre optar por um caminho, dos vários que surgem em

nossa mente quando nos propomos a redigir algo.

Quando se trata da escrita de uma dissertação na área de Literatura, este

início se torna difícil, porque a escolha de um objeto de estudo literário é

bastante complexa, pois o pesquisador, ao iniciar a sua busca, depara-se com

um sem-fim de possibilidades. Dentre elas, está todo o conjunto de obras

literárias e a quantidade de olhares que para elas se podem voltar. Nesse

contexto, torna-se importante a escolha de um autor, de um livro e de uma

temática, visto que essa escolha irá nortear todos os passos dados pelo

estudioso em seu trabalho investigativo.

Em relação à nossa pesquisa, escolhemos um autor brasileiro bastante

conhecido e muito pesquisado – fato que torna o nosso caminhar um pouco

mais complexo – pois, ao pensarmos em Graciliano Ramos, a primeira

impressão que temos é a de que tudo já foi falado acerca dele e grande

dificuldade teremos, então, para nos furtarmos ao lugar comum.

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Com vários livros publicados, dentre eles, o nosso objeto de estudo,

Infância, o autor alagoano tem uma fortuna crítica rica, da qual fazem parte

vários nomes bastante conhecidos da literatura brasileira.

Segundo um de seus filhos, o escritor Ricardo Ramos, Graciliano e os

críticos conviviam de forma harmoniosa:

Amigo de críticos, leitor de ensaios, não escondia suas inclinações. Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Adonias Filho, ou Otávio Tarquínio de Sousa, Wilson Martins, Lúcia Miguel-Pereira, ou Nelson Werneck Sodré, Astrojildo Pereira, Moacyr Werneck de Castro. E Antonio Candido, fortemente (RAMOS,1992, p.117-118).

Além desses, podemos citar vários outros estudiosos de sua obra como:

Alfredo Bosi, Massaud Moisés, Osman Lins, Octávio de Faria, Vicente de

Ataíde, Sônia Brayner e, nem assim, o rol de críticos ainda estaria completo.

Seria o caso de se falar em Luís Bueno, que, em 2006 publicou um alentado

estudo intitulado Uma História do romance de 30, no qual Graciliano figura

como um dos “Quatro autores” destacados deste período de nossa história

literária. A par disso, é oportuno referir o reforço na ensaística sobre o criador

em destaque, em função da elaboração de dissertações e teses, nos

Programas de Pós-Graduação da área de Humanidades, com ênfase nos de

Letras, que vêm esquadrinhando dia a dia sua obra.

Consideramos importante observar que a escolha do autor pesquisado

deve-se a questões de afinidade leitora. No início da adolescência, entramos

em contato com alguns autores de romances da conhecida Geração de 30:

Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos.

Desse último, tivemos a oportunidade de ler primeiramente Vidas secas. A

leitura foi repetida várias vezes, pois, além de ela nos emocionar muito, o estilo

enxuto do autor nos fascinava.

Para falar do estilo do Graciliano, optamos pela definição de estilo dada

por Otto Maria Carpeaux no ensaio “Visão de Graciliano Ramos”:

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A “MESTRIA SINGULAR” do romancista Graciliano Ramos reside no seu estilo. Para salvar esta frase de apreciação “lugar comum” é apenas preciso definir o que é estilo: escolha de palavras, escolha de construções, escolha de ritmos dos fatos, escolha dos próprios fatos para conseguir uma composição perfeitamente pessoal: pessoal, no caso, “à maneira de Graciliano Ramos”. Estilo é escolha entre o que deve perecer e o que deve sobreviver (CARPEAUX, 1978, p.25).

Escolhemos esta definição porque ela retrata muito bem o perfil de escrita

de Graciliano, visto que ele escolhia com rigor e critério cada palavra, cada

sinal de pontuação usado para a construção de seus textos. Ele próprio fazia

uma comparação entre o ato de escrever e a lavagem de roupas das

lavadeiras de Alagoas, na qual deixava entrever a configuração de seu estilo:

Uma vez, Graciliano usaria uma metáfora para explicar a Joel Silveira como um escritor deve proceder para cortar gorduras no discurso: - Você faz como as lavadeiras de Alagoas. Elas pegam a roupa suja para a primeira lavada, espremem, ensaboam, batem na pedra, dão outra lavada, passam anil, espremem novamente, botam no sol para secar, depois apertam. Quando não sai mais uma gota, aí você publica. (MORAES,1993, p.205).

Ao lermos as palavras de Graciliano, lembramos do poeta Horácio, que

em sua Epístola aos Pisões, aconselha os escritores a uma labuta com o texto

poético, o qual demanda um esforço atento em sua confecção: “Vocês,

descendentes de Pompílio, retenham o poema que não tenha sido apurado em

longos dias por muita rasura, polido dez vezes até que uma unha bem aparada

não sinta asperezas” (1997, 63).

O segundo livro lido por nós foi São Bernardo e, algum tempo depois, A

terra dos meninos pelados.

Mesmo o foco da nossa pesquisa sendo Infância, consideramos relevante

ler a obra completa do autor, com a finalidade de tornar o trabalho mais

consistente, uma vez que, quanto mais realizássemos leituras de seus livros,

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de sua fortuna crítica, mais fortalecidos ficaríamos para a consecução de nosso

ensaio.

A obra Infância, de Graciliano Ramos, lida logo no início do curso de

Graduação em Letras, provocou-nos grande identificação, pois nela há um

discurso no qual se percebe uma crítica acerca das práticas de leitura

realizadas, na época de criança de Graciliano, primeiramente no ambiente

familiar e, em seguida, no escolar.

Este discurso levou-nos a alguns questionamentos. Uma vez que a leitura

pode ser um ato prazeroso, mas muitas vezes é passada para a criança quase

como castigo, podemos nos indagar de que forma a família e a escola

aproximam a criança dessa leitura. Elas estimulam a criatividade e a

imaginação da criança? O ambiente familiar e o escolar são locais onde as

crianças têm liberdade para expressar seus pensamentos? Ou são elas

estimuladas a silenciar? A escola e a família têm contribuído para a formação

de leitores ou os leitores estão se formando apesar dela?

A identificação com o livro despertou em nós uma inquietação de

pesquisadora e de educadora. Pois, ao ingressar na carreira do Magistério com

apenas 15 anos (estando hoje com 21 anos de profissão), lecionamos em

todas as séries da Educação Infantil, assim como no Ensino Fundamental I e

nos últimos seis anos na EJA (Educação de Jovens e Adultos).

Portanto, durante esses anos, em que fizemos parte do cotidiano escolar

de diversas crianças, adolescentes e adultos, sempre lutamos para contribuir

para a formação leitora dos educandos. Surgiu, então, o desejo de fazer um

estudo mais aprofundado da obra, procurando desenvolver uma pesquisa com

o livro Infância, na qual observássemos os discursos acerca das práticas de

leitura. Portanto, a escolha do tema se deve, em princípio, à forte influência da

experiência profissional. Essa influência foi somada a nossa forte ligação com a

Literatura - antes da Graduação de Letras, como leitora das obras literárias por

prazer e, depois, realizando leituras mais problematizadoras – isso por ocasião

dos primeiros passos como pesquisadora – todos esses aspectos levaram-nos

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à decisão de realizar uma pesquisa que envolvesse as duas áreas: Letras e

Educação.

Um dado curioso é que, por ocasião do exame de seleção ao Mestrado

em Letras, um dos membros da banca considerou que a nossa pesquisa seria

mais bem acolhida no Mestrado de Educação, por se tratar de uma discussão

vinculada à práxis-leitora, fato de que discordamos, uma vez que se faz

necessário que aconteça a interdisciplinaridade entre as áreas, podendo a

Literatura dialogar com a Educação, com a Sociologia, com a História, dentre

outros saberes das Humanidades. Então, um dos desafios do nosso estudo é

estabelecer um diálogo entre a Literatura e a Educação, discutindo as práticas

de leitura através de uma obra literária, mas sem permitir que a nossa pesquisa

denote uma inflexão de ordem didático-pedagógica, buscada unicamente em

dados empíricos, sem dar relevância à leitura que a Literatura promove da

Pedagogia. Além disso, o fato de o nosso objeto de estudo ser literário, bem

como o de nosso referencial teórico também ser composto por vários

estudiosos da Literatura, tudo isso reforça a nossa escolha pelo viés literário.

É importante informar que ao voltarmos nosso olhar para os discursos

sobre práticas de leitura na obra Infância, encontramos acolhida, dentro das

linhas de pesquisa desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação

em Letras da Universidade Federal do Ceará, com concentração na área de

Literatura Brasileira, no projeto de pesquisa “Traços da Infância na Literatura

Brasileira” desenvolvido pela professora Fernanda Maria Abreu Coutinho.

Em relação ao título do nosso trabalho, após pensarmos em várias

possibilidades, analisando cada palavra com muito critério, decidimos por

“Retratos em preto e branco: lembranças fragmentadas das leituras em

Infância”, pois pensamos que pode ser um título adequado, uma vez que os

retratos em preto e branco mostram os traços de forma mais definida, mais

forte, sem desviar a atenção do observador para as cores, como acontece

quando se observa uma foto colorida. A título de comparação, podemos afirmar

termos como intenção deter o nosso olhar nos discursos acerca da noção de

leitura, sem nos desviar para outras discussões que Infância possa propor.

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Quanto a “lembranças fragmentadas”, usamos o sintagma porque o livro

foi escrito por um adulto que tenta, através da memória, recuperar as

lembranças vividas na infância, mas, com o passar do tempo, com certeza elas

foram se fragmentando e se perdendo. Portanto, ao lermos o livro, ele nos

passou a idéia de fragmentos, de pedaços de tecido, que foram unidos

artesanalmente por um dos maiores artesãos da palavra de nossa literatura:

Graciliano Ramos.

Temos como proposta deste trabalho estabelecer a relação entre a idade

infantil e a formação do leitor em Infância de Graciliano Ramos, observando os

modelos e as práticas de leitura delineadas na obra.

Coloca-se, então, como problema de investigação, para o texto

dissertativo em foco, a seguinte indagação: por que o menino do livro Infância

tem dificuldade com a aprendizagem de leitura, bem como em expressar seus

pensamentos através da linguagem oral e escrita?

Na busca de solucionar o problema, lança-se a hipótese a seguir: o

modelo de educação tradicional, familiar e escolar, no qual os castigos, as

punições e o silêncio são atores principais, é determinante no processo de

leitura do menino da obra Infância.

Assim, o nosso trabalho traz como objetivo principal a tentativa de

contribuir para um maior entendimento acerca do discurso literário em relação

à infância e às práticas de leitura, presentes em Infância. Objetivamos,

especificamente, analisar, mapear e avaliar dentro da obra as práticas de

leitura. Procuramos, ainda, verificar a repercussão do ato da leitura na

formação do escritor Graciliano Ramos.

Pensando nos futuros leitores desta dissertação, mostraremos, agora, os

caminhos que escolhemos para trilhar, e esperamos que a nossa escolha

venha a ser uma leitura prazerosa, visto que o nosso assunto é leitura.

Começamos então a nossa caminhada, refletindo sobre o que diz Marisa

Lajolo, na introdução do seu livro Do mundo da leitura para a leitura do mundo:

“ninguém nasce sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive” (2005,

p.7). O nosso texto dialoga com as palavras da autora, pois, é exatamente

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sobre as lembranças das vivências familiares e escolares e de como essas

vivências se entrecruzam com o processo de leitura do narrador na sua

infância, que trataremos ao longo da dissertação.

Durante a nossa caminhada faremos três paradas que chamamos de

capítulos. O primeiro capítulo traz como título “Considerações sobre uma obra

e seu criador”.

Iniciaremos discorrendo sobre Graciliano Ramos. No entanto, lembramos

aos nossos leitores que a nossa pretensão não é fazer uma lista de dados

biográficos, mas sim mostrar algumas características do homem e do escritor,

que consideramos relevantes para nossa pesquisa. Para dar sustentação a

este tópico, tomaremos principalmente como base os seguintes escritores:

Ricardo Ramos e Clara Ramos – ambos filhos de Graciliano – com as

respectivas obras Graciliano: retrato fragmentado (1992) e Mestre Graciliano

confirmação humana de uma obra (1979) e Dênis de Moraes com o livro O

Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (1993) – livro lançado logo

após o aniversário de cem anos de Graciliano.

No sub-tópico do capítulo, faremos uma explanação mais geral sobre a

obra Infância, visto que, com ela, trabalharemos de forma mais detalhada nos

capítulos seguintes. Tentaremos situá-la no contexto histórico do período em

que foi escrita.

Caminhando lentamente chegamos ao segundo capítulo “O Leitor e suas

leituras” que será dividido nos seguintes tópicos, “O leitor”, “Práticas de leitura

na família”, Práticas de leitura na escola” e Práticas de leitura que libertam”.

Ainda neste capítulo, prosseguindo de modo vagaroso, dando passos

pequeninos, iremos analisar os discursos existentes na obra acerca da

formação do leitor infantil e como os acontecimentos da vida familiar e da vida

escolar vão influenciar esta aprendizagem.

Para dar suporte às nossas reflexões contamos principalmente com as

contribuições teóricas de Philippe Ariès, Michel Foucault, Mary Del Priore e

Alberto Manguel.

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Apressando um pouco mais o nosso passo, chegamos ao terceiro

capítulo, a que daremos o título de: “Imagens em Infância”, contendo as

seguintes subdivisões: “Semiótica e Literatura”, ”Uma reflexão acerca de

imagens”. “Uma imagem do medo”, “Imagem da criança sendo preparada para

ir à escola” e “Imagens de violência contra a criança”. Neste momento,

dissertaremos um pouco sobre Semiótica e sobre o elemento da Semiótica

escolhido para ancorar este capítulo – o símbolo. Faremos um apanhado de

algumas ilustrações da obra, selecionaremos algumas imagens, para, em

seguida, fazermos uma análise dessas imagens à luz da Semiótica,

trabalhando com os seguintes teóricos: Charles Sanders Pierce e Décio

Pignatari.

Pensamos que, de alguma maneira, esta pesquisa é importante para a

crítica literária brasileira devido à ampliação de visões acerca da obra de

Graciliano Ramos, e até do próprio autor, pois muitos estudos focam

preferencialmente o aspecto regionalista de suas obras.

Em relação ao escritor alagoano, é muito ressaltado o fato de ele ser

pessimista e amargo, e no nosso estudo procuramos mostrar um Graciliano

mais irônico, mais leve, de uma sensibilidade sem igual, que ao mesmo tempo

em que é capaz de descrever os pais de forma extremamente realista, também

tem a capacidade de fazer uma descrição extremamente carinhosa de uma

professora de quem gostou, fatos estes narrados na mesma obra, Infância. Um

homem capaz de escrever cartas românticas, algumas com um teor irônico,

outras carinhosas, para os membros da família e para alguns amigos, como

tivemos oportunidade de ler nos textos de sua correspondência: Cartas (1982)

e Cartas a Heloísa (1992).

Um de seus filhos, Ricardo Ramos, tinha, em relação ao humor do pai, um

pensamento um pouco parecido com o nosso:

Os ouvidos de Ricardo vieram para o Rio repletos de histórias sobre o mau humor de Graciliano. E logo, faria o seu juízo a respeito: - Não digo que não fosse aqui ou acolá meio intempestivo, muito eventualmente rude. Com mulher era de uma delicadeza

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extrema, a ponto de beijar as mãos e ceder lugar no bonde. Agora, qualquer coisa que o irritasse ele descia os pés. Fora disso, conversava amigavelmente, era muito de contar histórias, de lembrar coisas, aquele tipo de conversa de coronel de interior (MORAES, 1993, p. 205).

E é esta mistura de delicadeza e aspereza que vamos encontrar no livro

Infância, descrições que despertam em nós, em alguns momentos, raiva dos

adultos que convivem com o menino narrador, e, em outros, um sentimento de

admiração e respeito.

No que concerne especificamente à obra por nós escolhida, sua

importância consiste em mapear posicionamentos referentes ao tratamento

dado à criança dentro da escola e, por conseguinte, dentro de todo o processo

educacional explicitado no livro e com relação às práticas de leitura.

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CAPÍTULO 1: CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA OBRA E SEU CRIA DOR

Falo somente com o que falo: Falo somente do que falo: Falo somente por quem falo: Falo somente para quem falo:

João Cabral de Melo Neto, “Graciliano Ramos”

Antes de discorrer sobre o autor de Infância, achamos relevante tratar um

pouco sobre a categoria autor, visto que tal categoria vem sendo questionada

com ênfase a partir da década de 60. Para a nossa discussão tomaremos

como base o texto de João Adolfo Hansen.

Hansen constrói o seu texto fazendo um apanhado geral sobre a categoria

em exame, percorrendo posicionamentos teóricos de vários autores, dentre

eles, Roland Barthes e Michel Foucault e esquadrinhando vários pontos do

problema em evidência, no entanto o aspecto que trabalharemos neste tópico é

a questão que ele trabalha sobre o conceito de autor.

O primeiro aspecto discutido por Hansen é o fato de que o conceito da

palavra autor é algo que temos empiricamente, ou seja, mesmo sem estudar o

significado do vocábulo, conseguimos identificá-lo.

Segundo Hansen, a palavra “autor”, em certo sentido, pode significar

profissão e atribuir uma identidade detentora dos direitos de posse de

determinada obra. Tal visão está ancorada na série de mudanças provocadas a

partir do século XVIII pelas alterações políticas operadas com a Revolução

Francesa e pelo recrudescimento da valorização da noção de indivíduo, tal

como observamos a seguir:

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Como nome próprio de um indivíduo, o nome de autor classifica uma identidade civil-profissional: identifica um proprietário, regula direitos autorais sobre a originalidade de seu eu exposta às apropriações diferenciadas e diferenciadoras de seu valor (HANSEN, 1993, p.11).

Portanto, quando nos referimos a Graciliano Ramos, como o autor de

Infância, estamos identificando-o como o profissional que criou a obra, aquele

que a produziu, lembrando aqui um dos significados da palavra autor, “A

significação genérica de auctor é, assim, / o que faz crescer /, mas também / o

que faz surgir; o que produz/”. (HANSEN, 1993, p.16)

Quanto ao autor Graciliano Ramos, mesmo achando que falar um pouco

sobre a sua vida seja um dos caminhos mais árduos a percorrer, pois ao refletir

sobre ele, a primeira impressão que se tem é a de que tudo já foi dito acerca

dele e que tudo o que for relatado resvalará pra o já dito, decidimos tratar neste

momento de alguns aspectos que julgamos relevantes. Então, para iniciar a

discussão, tomamos como ponto de partida duas questões: Que lugar

Graciliano ocupa na sociedade e na Literatura? Ele explica suas obras, ou são

suas obras que o explicam?

Em relação à primeira questão proposta podemos pensar neste momento

no lugar que ocupa o escritor, tomando como base a discussão acerca da

“paratopia do escritor” (MAINGUENEAU, 2001, p. 28). O prefixo “para”

acoplado à noção de “topos/topia” ajuda a dimensionar um lugar problemático

para esse tipo de profissional. Podemos pensar, então, no não-lugar que o

escritor ocupa, pois, segundo Maingueneau: “a pertinência ao campo literário

não é, portanto, a ausência de qualquer lugar mas antes uma negociação difícil

entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria

impossibilidade de se estabilizar” (MAINGUENEAU, 2001, p. 28).

Como situar então Graciliano nos diversos lugares que em diversos

tempos foram os seus no mapa da literatura brasileira?

Daremos continuidade a nossa reflexão, no próximo tópico, pois sentimos

necessidade de fazer uma retrospectiva na vida do autor, na medida em que o

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lugar que ele ocupa hoje tanto na sociedade quanto na Literatura difere

bastante do que ele ocupava vários anos atrás.

1.1. Fragmentos da vida de Graciliano

Comecemos este tópico, “lendo” o menino Graciliano, destacando

principalmente os momentos de sua formação leitora, já que eles foram tão

marcantes na vida do autor que, mais tarde, se transformarão em material de

escrita.

Para Paulo Freire antes que o ser humano comece a decodificar palavras, uma outra leitura já é realizada: A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente (FREIRE, 2005, p.11).

Na vida do garoto Graciliano, esta afirmativa parece ser uma realidade,

pois seu primeiro contato com a leitura acontece de forma desastrosa, pois não

consegue se adaptar aos métodos tradicionais de leitura – uso da carta de

ABC, palmatória e castigos –, utilizados primeiro pelo pai, “o pai que atrai a

criança para o mistério dos livros, não tem a chamada vocação didática” de

acordo com sua filha Clara Ramos (1979, p. 29). O mesmo acontece depois

com os mestres das escolas, só conseguindo ele então ser alfabetizado com

quase dez anos.

Ao entrar na escola, também encontrou a violência e o medo como

metodologias de aprendizagem de leitura: “Matriculado na escola pública,

Graciliano cairia na tutela da profª Maria do O, figura robusta que inspirava

pânico nos alunos” (MORAES, 1993, p.16).

Também em seu livro A pedagogia do oprimido, Paulo Freire cria uma

conexão com a realidade descrita em Infância, quando faz a seguinte

afirmação; “a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de

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ser” (FREIRE, 2005, p.48). Em Infância é possível perceber que as atitudes

opressoras ali reinantes proíbem o narrador-personagem de se comportar

como um ser infantil, livre para brincar e para viver fantasias e isso prejudica

sua aprendizagem, fazendo com que ele tenha dificuldade em adentrar o

universo da leitura.

No entanto, enquanto não dominava o mundo das letras, o garoto ia lendo

o mundo em que vivia, começando a se transformar no grande observador da

realidade que foi durante toda sua vida.

Em sua leitura do mundo, ele vai lendo e registrando na memória quase

tudo o que lia, os castigos sofridos na família e na escola, as diferenças

sociais, o comportamento dos adultos, que ele classificava como estranho, a

falta de liberdade para brincar e se comportar como as outras crianças, as

injustiças, as mudanças na natureza: a alternância dos períodos de chuva e de

seca. Ou seja, ele vai lendo o comportamento do ser humano e do ambiente

em que vive.

A leitura do mundo junto com a leitura das palavras. Depois que consegue

ser alfabetizado, transforma-se num exigente leitor, realizando suas leituras

sempre acompanhado por um dicionário e um Atlas, tentando captar ao

máximo o significado de cada palavra: todo esse manancial de índices irá

transformar-se em escrita e terá uma grande influência na sua vida como

escritor e como profissional envolvido em cargos públicos.

Numa passagem do livro de Dênis de Moraes é possível observar a

importância do uso de dicionários para o leitor Graciliano:

Os cinco anos passados em Maceió confirmariam a inclinação autodidata. Disciplinado, ele se enfurnaria nos estudos de português e de línguas estrangeiras (latim, inglês, francês e italiano). Adquiriria um hábito para o resto da vida: consultar dicionários. “Dicionários, para mim, nunca foram apenas obras de consulta. Costumo lê-los e estudá-los. Como escritor, sou obrigado a jogar com as palavras, preciso conhecer-lhes o valor exato”, justificaria (MORAES, 1993, p.20).

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A leitura iniciada no fim da infância prossegue na adolescência, sendo

constituída, em sua maior parte, por textos literários. O menino vai ampliando o

seu leque de conhecimentos lendo grandes autores, como José de Alencar,

Joaquim Manuel de Macedo, Júlio Verne, Eça de Queirós, Coelho Neto, Victor

Hugo, Émile Zola, entre outros.

Talvez, influenciado por tantas leituras, ainda na adolescência, Graciliano,

que muitas vezes foi considerado como alguém sem muita inteligência, por ter

dificuldade com a leitura e também com a escrita, pois sua tentativa de

escrever era feita de verdadeiros garranchos, começa a escrever contos.

“Graciliano Ramos estrearia, aos 11 anos com o conto “O pequeno pedinte”

(MORAES, 1993, p. 18).

Já na fase adulta, o mestre alagoano exerceu alguns cargos públicos,

como diretor da Instrução Pública em Alagoas e Inspetor Federal do Ensino.

Durante dois anos foi prefeito de Palmeira dos Índios, fato marcante em sua

vida, pois é por causa de relatórios escritos neste período que o seu primeiro

romance Caetés (1933) será publicado, pois um dos relatórios escritos por

Graciliano – segundo Wilton Cardoso, “são na verdade, obra de um escritor

feito” – chegou às mãos do editor Augusto Frederico Schmidt, que percebeu o

talento literário do escritor, procurou-o e publicou o seu primeiro romance.

(1993, p.40)

Graciliano exerceu ainda a profissão de comerciante, primeiro tomando

conta dos negócios do pai, e, depois, tendo o seu próprio comércio. Em alguns

momentos foi mestre, dando aula para algumas pessoas que necessitavam de

instrução, como podemos verificar nos seguintes excertos da biografia

composta por Clara Ramos:

[1] Quando Graciliano chegou a Palmeira dos Índios com fama de possuir uma cabeça privilegiada, um grupo de rapazes o procurou com a solicitação de propagar seus conhecimentos num curso noturno. (...) Graciliano iniciara então sua carreira de professor de roça, que deverá estender-se, com períodos de interrupção, até 1932. (1979, p. 35)

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[2] – Este é o Professor Graciliano Ramos. - Professor de coisa nenhuma, foi nos dizendo ele. (1979, p. 57)

Trabalhou ainda bastante tempo como colaborador de vários jornais e

revistas, foi também tradutor, mesmo que não se reconhecesse como tal: “ele

não se considerava tradutor, mas fez traduções. Ao que saiba, além de poesias

francesas e italianas, por aí dispersas, distantes, de uma antologia de contos

russos que revisou unificando, melhorando, assinou duas edições brasileiras:

Memórias de um negro, de Booker Washington, e A peste, de Albert Camus,

como consta na biografia escrita por Ricardo Ramos (1992, p. 112)

É interessante que seja observado, nestes dados biográficos, que

trazemos para o palco da nossa discussão, o envolvimento de Graciliano com a

atividade educacional.

Graciliano foi sempre um crítico ferrenho das escolas do sertão,

censurava rigidamente os métodos de ensino utilizados pelos professores,

assim como a precária formação desses educadores.

Então, quando estava atuando como prefeito de Palmeira dos Índios, ao

escrever o segundo relatório de prestação de contas do município - que enviou

para o governador de Alagoas, Álvaro Paes - faz a seguinte afirmação:

Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. (...) Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras. Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros (RAMOS, 1980, p. 50 e 51).

Podemos constatar que a preocupação e o envolvimento de Graciliano

com a educação é constante, portanto, ao assumir o cargo de diretor da

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Instrução Pública de Maceió, causa uma verdadeira revolução educacional.

Durante a sua gestão, coloca para funcionar escolas que estavam paradas,

distribui gratuitamente fardas e material escolar para os alunos carentes, institui

o regime de turnos e, com isso, aumenta o número de vagas nas escolas, além

de criar um serviço de fiscalização de ensino, promover seleção de professores

para o preenchimento de novas vagas e autorizar a equiparação dos salários

das professoras rurais às da capital.

Sempre com o seu jeito rígido, mas ao mesmo tempo dedicado e honesto

de administrar, além de se preocupar com a qualidade na educação, ao reparar

as escolas que estavam quase destruídas e construir outras – visando

transformá-las em ambientes mais agradáveis do que as em que ele estudara

quando criança – ainda tentava acabar com o clientelismo e os favorecimentos,

pois alguns políticos buscavam conseguir transferências de professores para

se beneficiarem, prática comum no contexto político de 1928, momento em que

o Brasil era dominado pela política dos coronéis.

No entanto, a mesma eficiência que agradava algumas pessoas,

desagradava outras, “a sua aversão ao clientelismo, aos favorecimentos e ao

tráfico de influência provocaria descontentamento” (MORAES, 1993, p. 87). É

talvez por causa de alguns inimigos conquistados durante a sua gestão, que,

em 3 de março de 1936, ele foi preso, sendo a justificativa de sua prisão o fato

de fazer parte do partido Comunista, o que só viria a acontecer no ano de

1945, vários anos após a sua liberdade. Portanto não havia um motivo concreto

para que ele fosse preso.

Falamos um pouco sobre o cidadão Graciliano Ramos: o político,

comerciante, professor, tradutor, colaborador de jornais, funcionário público – o

fato de ter sido funcionário público ao longo da sua vida profissional, tendo

como patrão o governo, faz com que Graciliano receba algumas críticas, pois,

ao mesmo tempo em que discorda da forma de governo do Estado Novo e a

ele mostra ojeriza, é funcionário do Estado, a exemplo de autores como: Mário

de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Lima, Rachel de Queiroz, José Lins do

Rego, Carlos Drummond de Andrade e muitos outros. De acordo com Adriana

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Coelho Florent, porém, “muitos dos escritores serviram o Estado e não ao

Estado (2006, p. 145) acrescentando que, ao se ler as obras Vidas secas, de

Graciliano Ramos, e A Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade,

“chega-se facilmente à conclusão de que não submeteram a sua criação aos

interesses do governo para o qual trabalhavam” (FLORENT, 2006, p. 146). Ou

seja, os escritores trabalhavam para o governo, mas não se vendiam.

Na verdade o escritor alagoano foi um participante ativo dos problemas

sociais, provavelmente por isso é que no universo ficcional do autor são

retratados, em grande parte, trabalhadores rurais e urbanos, modestos

funcionários, retirantes miseráveis, ladrões, presidiários e, entre outras

personagens, crianças infelizes – essas bastante trabalhadas em nossa

pesquisa.

Depois de falarmos tanto do cidadão o nosso leitor pode nos indagar, e a

produção do escritor? Como ele conciliava as suas atividades políticas com o

ofício da Literatura?

Para refletirmos sobre esta questão retomaremos a segunda questão

elaborada no início deste tópico: Graciliano explica suas obras ou são suas

obras que o explicam?

Pensamos que nem uma coisa, nem outra, pois, segundo Dominique

Maingueneau:

Da mesma forma que a literatura participa da sociedade que ela supostamente representa, a obra participa da vida do escritor. O que se deve levar em consideração não é a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união (2001, p. 46).

Portanto não podemos separar as outras profissões que o autor alagoano

exerceu de seu ofício de escritor. Não temos como separar o literato do

cidadão e vice-versa. E, por meio deste pensamento contido no texto de

Adriana Coelho Florent, podemos inferir a seriedade com que o autor de

Caetés encarava a profissão de escritor: ”Graciliano esboçou uma posição

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firme e coerente com relação ao trabalho de criação literária: trata-se de uma

atividade profissional, que deve ser respeitada como as outras, e não de um

passa tempo para ociosos” (FLORENT, 2006, p.151).

Ainda em relação às questões supracitadas, queremos esclarecer que o

leitor formado no final da infância e o escritor surgido na adolescência

continuaram existindo e que foi durante as atividades relatadas, por nós

anteriormente, que o autor concluiu as suas três primeiras obras, Caetés

(1933), São Bernardo (1934) e Angústia (1936), sendo esta última publicada no

período em que ele estava preso.

Seus outros livros: Vidas secas (1938), A Terra dos meninos pelados

(1939), Infância (1945), Insônia (1947), são escritas após a sua saída da

prisão.

Já Memórias do cárcere (1953), Viagem (1954), Linhas tortas (1962),

Viventes das Alagoas (1962), Alexandre e outros heróis (1962), Cartas (1980),

Cartas a Heloisa (1992) e Relatórios (1994), foram publicados após a sua

morte, em 1953, vítima de câncer de pulmão. Atualmente suas obras estão

traduzidas em diversos idiomas, como italiano, francês, inglês, russo e vários

outros.

Comparado a outros autores da geração de 30, Graciliano tem uma

produção literária pequena, mas extremamente madura e importante para a

história da cultura brasileira, como podemos comprovar através de filmes que

foram feitos baseados em suas obras: Vidas secas (1963), de Nelson Pereira

dos Santos; Memórias do cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos e São

Bernardo (1972) de Leon Hirszman e de inúmeros artigos e trabalhos

acadêmicos que a tomam como temática, como já foi assinalado.

Para fecharmos esta nossa fala sobre o escritor alagoano, decidimos

retomar o texto de João Cabral de Melo Neto, na epígrafe escolhida para dar

início a esse tópico, somando-o às palavras do próprio Graciliano (numa carta

escrita para sua irmã Marili Ramos), “Arte é sangue, é carne. Além disso não

há nada. As personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o

que somos” (RAMOS,1982, p. 213). Estas duas falas mostram o Graciliano

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realista, enquanto que as palavras da autora Clenir Bellezi de Oliveira no texto

“A flor do mandacaru”, na qual ela se apóia nas palavras de Oswald de

Andrade, que compara o Graciliano a um mandacaru escrevendo, servem para

mostrar um Graciliano, que se expressa de forma forte e resistente como a

beleza desta planta agreste do sertão. O mandacaru resiste ao sol forte, à

seca, a obra de Graciliano resiste ao tempo – quando abrimos, por exemplo, o

livro Infância, podemos perceber o quanto o seu enredo é atual, como ele pode

ser discutido até hoje, quando falamos da decadência que ainda vigora na

educação brasileira, na qual, temos de um lado crianças que lidam muito bem

com a tecnologia e do outro crianças que continuam dentro de escolas sem

aprenderem a ler e muito menos a escrever. As palavras da autora se

coadunam com o nosso pensamento de que Graciliano não foi o homem tão

pessimista, como se afirma com freqüência acerca dele, mas sim um ser

humano extremamente sensível, mas realista, belo e resistente como o

mandacaru.

Pensamos que as palavras destes autores junto com esta imagem abaixo

definem bem o homem Graciliano, assim como a sua obra que será objeto do

nosso próximo tópico.

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1.2. Infância e Infância

O mais difícil, mesmo, é a arte de

desler.

Mário Quintana

Sem a pretensão de fazer um profundo estudo histórico das questões

que dizem respeito à infância, mas considerando importante tentar buscar na

origem da história da criança algo que justifique o tratamento dado a ela no

início do século XX, período em que Graciliano viveu sua infância, faremos um

pequeno panorama da história da infância.

Segundo Philippe Ariès, na sociedade medieval não existia o sentimento

da infância, pois as crianças eram tratadas como adultos em miniatura,

portanto quando as crianças deixavam de necessitar dos cuidados constantes

da mãe elas passavam a conviver com os adultos sem se distinguir destes.

Neste período, por causa da elevada mortandade das crianças muito

pequenas, não recebiam elas da parte dos adultos um apego especial, pois

eles sabiam que elas podiam morrer, a qualquer momento, ou seja, as crianças

muito pequenas eram algo que os adultos vislumbravam como possibilidade de

perda.

De acordo com Ariès os sentimentos em relação à criança vão se

modificar a partir dos séculos XVI e XVII, com uma atitude dos adultos que

ficou conhecida como paparicação, e que consistia em um sentimento de

enlevo dos adultos por aqueles que estavam vivendo a idade pueril.

No entanto a grande mudança no que diz respeito à criança vai

acontecer, observa Ariès, é com o aparecimento das escolas, quando haverá

uma preocupação com a formação das crianças.

E no Brasil como acontece este percurso histórico?

Segundo Moysés Kuhlmann Jr., no capítulo “Infância, história e

educação”, do seu livro Infância e educação infantil: uma abordagem histórica,

“os sinais de desenvolvimento de um sentimento de infância, da forma como

analisa Ariès, estiveram presentes no Brasil já no século XVI” (KUHLMANN,

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1998, p.22), ou seja, a história da criança no Brasil, segundo o mencionado

autor, não difere muito dos relatos do francês. Kuhlmann afirma ainda que: “No

século XIX, o que se vive no Brasil não são os ecos do passado europeu, mas

as manifestações do grande impulso com relação à infância que representou o

próprio século XIX, em todo o mundo ocidental, especialmente após a década

de 1870.”

Em relação à história da infância no Brasil, Mary Del Priore faz as

seguintes afirmações:

[1] Entre nós, tanto a escolarização quanto a emergência da vida privada chegaram com grande atraso. Comparado aos países ocidentais onde o capitalismo instalou-se no alvorecer da Idade Moderna, o Brasil, país pobre, apoiado inicialmente no antigo sistema colonial e, posteriormente, numa tardia industrialização, não deixou muito espaço para que tais questões florescessem (DEL PRIORE, 2006, p.10). [2] Desde o início da colonização, as escolas jesuítas eram poucas e, sobretudo, para poucos. O ensino público só foi instalado, (...) na segunda metade do século XVIII. No século XIX, a alternativa para os filhos dos pobres não seria a educação, mas a sua transformação em cidadãos úteis e produtivos na lavoura, enquanto os filhos de uma pequena elite eram ensinados por professores particulares (id., ibid).

Observando a fala dos dois autores percebemos que um não se

contrapõe ao outro, na verdade as falas se completam, pois, de acordo com as

palavras de Kuhlmann, a preocupação com a formação das crianças na época

dos jesuítas realmente acontece, mas, segundo Del Priore, para poucos.

Um outro nome que merece destaque quando falamos da história da

infância no Brasil é Marcos Cezar de Freitas, que, ao organizar o livro A história

social da infância no Brasil, orienta os participantes da obra, a cada um

escrever sobre a criança com base em temas diferentes permitindo assim que

o leitor tenha uma visão da história da infância sob vários ângulos: “O

‘rastreamento’ da história da infância nas fontes primárias e nas secundárias

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tem encarecido a travessia de um labirinto no qual as disciplinas e os territórios

epistemológicos estão demarcados” (FREITAS, 1999, p.120).

Portanto, com este trabalho dos pesquisadores é possível vermos o que

está acontecendo em relação à infância nas seguintes temáticas: a infância na

memória dos viajantes, nas instituições de assistência, na medicina, na

arquitetura escolar, na literatura, na história da educação, entre outros.

Percebemos que muitos estudos têm sido realizados em relação a essa

fase da vida, mas pensamos que mais pesquisas devem ser feitas, pois de

acordo com Tânia Regina de Souza:

A voz que se ouve em Infância é a da criança que leva a refletir sobre a trajetória da infância no Brasil. Tanto quanto os meninos de Vidas secas, a criança de Infância é sintomaticamente anônima. Assim, fala em nome de uma legião que foi silenciada pela história social brasileira (SOUZA, 2001, p. 58).

Então as vozes infantis silenciadas abandonam o silêncio quando são

chamadas a contarem a suas histórias, mesmo quando acontece através de

um adulto como acontece com o relato das memórias de Graciliano Ramos,

que fala da sua infância sofrida e de várias outras.

1.3. Infância

Segundo Clara Ramos, Infância foi no primeiro momento chamado em

família de Memórias de Infância, fato que nos leva à seguinte indagação: Por

que Graciliano cortou o nome “memórias” e deixou só “infância”?

Será que ele tomou a decisão de enxugar o título por causa da

etimologia da palavra? Pois, infância, palavra correlata a infante, dá uma idéia

de ausência de fala, já que a origem latina infans é composta pelo prefixo de

negação in e pelo particípio presente do verbo fari (falar, dizer), então o infante

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seria aquele que não fala, portanto infância corresponderia à um período

identificado pela qualidade do não falar. Segundo Marisa Lajolo:

Por não falar, a infância não se fala e, não se falando, não ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam. E, por não ocupar esta primeira pessoa, isto é, por não dizer eu, por jamais assumir o lugar de sujeito do discurso, e conseqüentemente, por consistir sempre um ele/ela nos discursos alheios, a infância é sempre definida de fora (LAJOLO, 2006, p. 230)

O nosso livro de pesquisa, mesmo sendo escrito em primeira pessoa, foi

composto a partir de um olhar de fora, ou seja, o olhar de um adulto

rememorando episódios ocorridos em sua infância, não era a voz da

personagem infantil que falava de seus primeiros anos de vida, mas a de um

ser adulto.

Além da voz que narra as memórias não ser uma voz infantil, a obra é

repleta do silêncio infantil tanto no ambiente familiar quanto no escolar “na

ausência da professora, abandonávamos os nossos lugares, cochichávamos”

(RAMOS, 1980, p. 120). Podemos observar que, mesmo com a pessoa adulta

ausente, os pequenos falavam baixinho, como se não tivessem direito à fala.

É a essa falta de direito à fala que Michel Foucault chama de interdição,

“Sabe-se em que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de

tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de

qualquer coisa” (FOUCAULT, 2003, p. 09). Na escola sempre tinha o momento

das crianças falarem e já era pré-determinado o que elas deviam falar, na

família também, pois no momento em que os adultos falam, as crianças devem

somente ouvir.

O livro Infância, desde o momento de seu lançamento, teve uma difícil

classificação, para alguns estudiosos é uma autobiografia, para outros é um

livro de memórias, este fato aborreceu Graciliano, como podemos comprovar

neste trecho do livro de Ricardo Ramos:

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Saído o Infância, recebeu de São Paulo uma nota assinada por Sérgio Milliet. Dizia que o livro não era bem memória, nem conto, nem ensaio, mas tinha de tudo e concluía simpático, era um livro importante, do sr. Graciliano Ramos. Ele danou-se: - Por exclusão, não é nada (RAMOS, 1992, p. 118).

Para Antonio Candido a obra, por nós estudada, é uma autobiografia:

Infância é autobiografia tratada literariamente; a sua técnica expositiva, a própria língua parecem indicar o desejo de lhe dar consistência de ficção (CANDIDO, 2006, p. 90).

Já Wilson Martins, no artigo “Graciliano Ramos, o Cristo e o Grande

Inquisidor”, faz a seguinte afirmação:

Um estudo sobre o romancista Graciliano Ramos não estaria completo se não terminasse com o exame de seu livro de memórias. Porque não sabemos onde terminam as memórias e onde começa o romance em Infância (BRAYNER,1978, p. 43).

Em uma recente consulta feita por nós na Internet, no site da conceituada

livraria Cultura, encontramos na ficha técnica do livro Infância a seguinte

sinopse:

Esta nova edição teve como base a primeira edição do romance , publicado pela José Olympio, com as últimas correções feitas por Graciliano Ramos. Uma autobiografia que mostra as recordações da descoberta do curioso e diferente mundo dos adultos. (grifos nossos)

Diante do impasse da classificação da obra, decidimos adotar em nosso

trabalho o mesmo posicionamento da pesquisadora Fernanda Coutinho, autora

de uma tese sobre Graciliano Ramos e Saint-Exupéry. Ela reconhece o livro

Infância, como um texto que foge aos rigores teóricos, pois mescla aspectos

memorialísticos aos autobiográficos. A autora afirma que, “tendo em vista a

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oscilação genérica em Infância serão usados indiferentemente os termos

memória e autobiografia” (COUTINHO, 2005, p. 125).

Gostaríamos de explicar aos nossos leitores que o fato de a obra ser

considerada memorialística ou autobiográfica, não é o foco do nosso estudo,

no entanto, não poderíamos deixar de dizer algumas palavras acerca disso.

Tânia Regina de Souza, no capítulo 4, “infância no memorialismo

brasileiro”, do seu livro A infância do velho Graciliano: memórias em letra de

forma, elenca alguns nomes de escritores brasileiros que escreveram

memórias. Dentre eles encontram-se Visconde de Taunay, Joaquim Nabuco,

Medeiros e Albuquerque, Humberto de Campos e Graça Aranha. Segundo a

autora o livro de memórias de Graciliano Ramos vai se diferenciar dos autores

citados porque:

O tema da infância será finalmente o núcleo narrativo predominante, sublinhando-se aí a posição estilística de Graciliano Ramos que, ao narrar a partir da perspectiva da criança, abandona a perspectiva adulta sobre o menino que foi, tal como ocorria com os seus predecessores, e assim obtém resultados inovadores em sua narrativa de memórias ( SOUZA, 2001, p. 52).

Mesmo considerando importante o que a autora diz sobre a composição

da narrativa de Graciliano, em comparação com as dos outros autores,

queremos ressaltar que, mesmo Graciliano se colocando na perspectiva da

criança, ainda é um adulto fazendo um relato, portanto é um adulto falando e

não uma criança.

Graciliano Ramos não gostava quando sua obra Infância era analisada

pelo viés da psicologia como fez Álvaro Lins em 1963:

Porque não se sentiu amado, nem teve uma infância de ternura e afagos, o Sr. Graciliano Ramos reagiu com sentimentos de indiferença e desprezo em face de toda a humanidade. Ele não escreveu estas memórias apenas por

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motivos literários, antes para se libertar dessas lembranças opressivas e torturantes (LINS, 1963, p. 156 e 157).

Um outro estudioso que também desenvolve um estudo psicológico não

só em relação à Infância, mas no que tange a outras obras do autor é Helmut

Feldmann, ao escrever uma tese, que se transforma em livro intitulado

Graciliano Ramos Reflexos de sua personalidade na obra:

Não é do nosso conhecimento que Graciliano Ramos se tenha manifestado alguma vez sobre Sigmund Freud e a psicanálise. Mas em Infância está subjacente o pensamento freudiano de que a vida e a obra de um homem só podem ser entendidas como variações mais amplas de sua infância. Já nos referimos ao fato de a projeção pessoal exercer papel predominante também nos romances de Graciliano (FELDMANN, 1998, p.68).

Justificar a existência de uma obra como solução para problemas

psicológicos infantis é um caminho perigoso, pois não podemos esquecer que,

mesmo se tratando de um livro de memórias, quando o autor se propôs a

escrevê-lo, ele estava criando uma obra artística, ele compôs uma criação

literária, fato que já afasta o discurso do empírico da realidade, pois foi

construído um discurso literário.

Em relação a este tipo de estudo o autor de Memórias do cárcere faz um

desabafo, que aqui aparece após a interpretação do pensamento do autor pelo

biógrafo Ricardo Ramos:

Logo depois da publicação de Infância, lhe chegaram umas críticas chocadas, espantadas com o seu realismo confessional. Ele se atanazou, irritado, vendo que não o entenderam. (...) O trabalho de reconstituição e de construção, o homem e o autor no traço de união da primeira pessoa, a criança desmitificada, a dureza do quadro, a conclusão didática. Se aparecia como um tosco e troncho menino, porque esperar o abrandamento nos demais? Seria

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impossível, um desconchavo, ficaria uma desgraça. E concluía:

- Eu tenho lá problema com ninguém? (RAMOS, 1992, p. 26)

Ao falar de Infância, em seu livro Mestre Graciliano.Confirmação humana

de uma obra, Clara Ramos também discorda desse tipo de crítica:

Com a publicação de Infância, críticos de renome viram na autobiografia de Graciliano Ramos a explicação para o “caráter áspero e sombrio da sua grande obra de romancisa”. Enganaram-se. O livro é uma obra isolada, que responde por si e já faz muito. Não explica a natureza da ficção de seu autor. Não há nada que explique a arte de ninguém. Infância nada nos diz a respeito do nascimento e da criação do romancista Graciliano Ramos. Mas revela como nasceu e se criou o “romancista dos pobres-diabos (RAMOS, 1979, p. 175).

Lembramo-nos neste momento das palavras de Osman Lins “Tanto os

escritos cursivos como os outros se acham expostos às surpresas que

distanciam do projeto a obra realizada. Só o livro acabado responde ao que

será” (LINS, 1973, p. 19). E Infância responde realmente ao que será, pois uma

obra escrita entre o final da década de 30 e parte da de 40, consegue até hoje

ser uma obra atual, com denúncias em relação à violência contra as crianças, à

precária formação de leitores nas escolas, fatos que continuam acontecendo

de forma tão forte, quanto foi na época em que o livro foi escrito.

Ao estudarmos uma obra, sentimos necessidade de estabelecer uma

relação entre ela e a sociedade, atentando principalmente para o momento

histórico e político em que foi produzida.

No entanto dar uma definição do momento histórico em que Infância foi

produzida é um tanto complexo, pois, de acordo com esta passagem de

Memórias do cárcere, o projeto inicial de escrever um relato de suas

lembranças infantis surge no período em que mestre Graça esteve preso: “Na

verdade a minha infância não devia ter sido muito melhor que a dele. Meu pai

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fora um violento padrasto, minha mãe parecia odiar-me, e a lembrança deles

me instigava a fazer um livro a respeito da bárbara educação nordestina”

(RAMOS, 2004, p. 177-178).

Então, o livro foi pensado quando o Brasil estava vivendo em plena

ditadura da Era Vargas (iniciada em 1930), precisamente no Estado Novo

(1937 – 1945), foi escrito entre os anos 38 e 45 e foi lançado em 1945 quando

o Estado Novo já estava acabando.

Durante o Estado Novo foi criado o DIP – Departamento de Imprensa e

Propaganda, cuja função era fazer propaganda oficial do governo, censurar e

controlar toda a imprensa, determinando o que podia ou não ser publicado.

Foram marcas deste período as prisões políticas, sendo presos jornalistas

e escritores. Entre as vítimas, encontrava-se Graciliano Ramos. Ele sofreu a

interferência deste momento político na vida pessoal e profissional, pois a sua

produção literária é praticamente interrompida, de modo que Angústia e alguns

contos são lançados sem sua criteriosa revisão:

Minha mulher apareceu com alguns volumes. Guardei um distribuí o resto na enfermaria e na Sala da Capela, mas logo me arrependi desses oferecimentos. A leitura me revelou coisas medonhas: pontuação errada, lacunas, trocas horríveis de palavras. A datilógrafa, o linotipista e o revisor tinham feito no livro sérios estragos. Onde eu escrevera opinião pública havia polícia; remorsos em vez de rumores. Um desastre. E nem me restava a esperança de corrigir a miséria noutra edição, pois aquilo não se reeditaria. (RAMOS, 2004, p. 252)

No entanto, a impossibilidade das correções dos textos não foi o maior

prejuízo que esse momento político causou na vida do autor. Após ter ficado

enclausurado dez meses e dez dias, ele saiu da prisão com a saúde frágil e

sérios problemas financeiros. Então, na tentativa de conseguir dinheiro para

sustentar a família, passou a escrever contos para vários jornais, e, dentre

esses contos, figurava “Baleia”. Ao ler esse conto o seu amigo, e também

escritor, José Lins do Rego, ficou encantado e o incentivou a prosseguir a

história. Assim nasceu o livro Vidas Secas.

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O segundo momento em que a obra Infância começou a ser pensada foi

em 28 de janeiro de 1936, como podemos constatar nas linhas de uma carta

escrita por Graciliano para sua esposa, Heloísa:

Um dia destes, no banheiro, veio-me de repente uma ótima idéia para um livro. Ficou-me logo a coisa pronta na cabeça, e até me apareceram os títulos dos capítulos que escrevi quando saí do banheiro, para não esquecê-los. Aqui vão eles: Sombras, O Inferno, José, As Almas, Letras, Meu Avô, Emília, Os Astrônomos, Caveira, Fernando, Samuel Smiles. Provavelmente me virão idéias para novos capítulos, mas o que há dá para um livro. Vou ver se consigo escrevê-lo depois de terminado o Angústia (RAMOS, 1982, p.161).

No entanto, ela só começou a ser escrita em 1938, no mesmo ano da

publicação de Vidas Secas. Pois, apesar de o livro citado ter tido excelente

acolhida, os problemas financeiros do autor continuaram. Por isso, no dia 18 de

outubro de 1938, ele publicou no jornal O Diário de Notícias, um conto com o

título “Samuel Smiles”. No mesmo jornal e no mesmo mês, no dia 21, sai

“Astrônomos”. E em O Jornal, a 15 de novembro, aparece “O menino da mata e

o seu cão piloto”.

O quarto conto da série, ‘Um cinturão’, só foi escrito em primeiro de maio

de 1939 e, a partir daí, os outros contos serão escritos esporadicamente.

Assim, o livro Infância, que é a reunião desta série de contos, só foi concluído e

lançado no ano de 1945, demorando, portanto, quase seis anos para ser

finalizado.

Em relação ao momento literário, a obra de Graciliano começou a ser

conhecida na segunda fase do Modernismo, com a Geração de 30, que na

verdade teve início em 1928, com A Bagaceira, de José Américo de Almeida.

Da produção da geração também parte O Quinze (1930), de Rachel de

Queiroz, Menino de Engenho (1932), de José Lins do Rego, Cacau (1933), de

Jorge Amado e Caetés (1933), o primeiro livro de Graciliano. Além desses

nomes outros autores também integraram a geração. Como Infância começou

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a ser escrito em 1938, sendo concluído em 1945, ainda alcançou uma parte da

segunda fase do Modernismo, mesmo Graciliano não se considerando um

modernista:

Ao responder a uma enquete da Revista Dom Casmurro, em 12 de dezembro de 1924, Graciliano enfatizaria a distância com a raiz do Modernismo: “Eu vendia fazendas no interior quando soube do movimento. Naquela época lia tudo e acompanhava o barulho de longe. Apenas aplaudi.” O repórter Osório Nunes indagaria se não se sentia ligado à rebelião de 22. “De modo nenhum”, frisaria. “Eu não fui modernista nem sou pós-modernista. Sou apenas um romancista de quinta ordem. Estava fora e estou.” (MORAES, 1993, p. 46)

O fato de Graciliano não se considerar um modernista é confirmado

também por Clara Ramos, “O escritor enaltecido pelos companheiros de letras

e de geração como ‘o maior de todos nós’ é precisamente o purista que abriu

mão do Modernismo para produzir algumas páginas essenciais da literatura

brasileira” (RAMOS, 1979, p. 13).

Sobre a participação de Graciliano no Modernismo, Nelson Werneck

Sodré faz as seguintes afirmações:

[1] Modelo que, mesmo enquanto nordestino, um estreante, Graciliano Ramos não acompanha; estreando com Caetés, o que ele conta é uma pequena intriga de província, sem grandes horizontes. O romance, por isso mesmo, parece abafado pelo reinado dos documentários com que a realidade nordestina vai sendo desvendada e posta ao alcance de todos (SODRÉ, 1982, p.555) [2] O Modernismo se completa na prosa, a que a força narrativa dos documentaristas nordestinos dera extraordinário impulso. A mais alta figura da prosa nordestina seria Graciliano Ramos. Nele, realmente, a língua, distanciada dos cacoetes escandalosos do Modernismo, como dos rigores formais da simples imitação de um classicismo superado, serviria de extraordinário instrumento para elaboração de uma obra de

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profundo conteúdo humano e social, em que os conflitos individuais e coletivos teriam exata representação.

Portanto, ao observarmos os fragmentos acima, podemos concluir que

ele está longe de ser um autor de quinta ordem e que sua obra faz parte, sim,

do Modernismo.

1.4. Uma infância enclausurada

Em relação ao conteúdo Infância nos revela lembranças dos

acontecimentos que marcaram a vida do narrador, do período que vai dos dois

ou três anos até a puberdade. Escrita em primeira pessoa traz nos seus trinta e

nove pequenos capítulos a linguagem enxuta e a visão realista da vida,

características marcantes nas obras de Graciliano Ramos.

A forma como Graciliano organizou a obra foi comparada por seu filho

Ricardo Ramos com um organograma literário:

Mas o exemplo de infância não me sai da cabeça. Porque vi seus originais em curso, uma folha de rosto que, em falta de melhor definição, me parece o mais próximo de um organograma literário. Os títulos ou temas de capítulos estão circunscritos em retângulos fortes, que se ligam numa seqüência ou se desdobram, descendentes, laterais, formando uma teia ao mesmo tempo imaginosa e lúcida. Sempre senti esse processo, do pormenor ao global, como extremamente elaborado. (RAMOS,1992, p.117)

Para nós, a junção das pequenas histórias que formam uma história maior

lembra-nos uma grande colcha de retalhos, feita de vários pedaços de tecidos,

sendo a maioria das cores sombrias, escuras e alguns fragmentos de cores

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claras, mas todos costurados manual e cuidadosamente por um artesão

caprichoso e preocupado com cada ponto, procurando manter sempre a

harmonia e a beleza de uma obra de arte.

Numa passagem de Infância há uma comparação de uma obra escrita

com uma criação manual de uma costureira, quando algumas moças

ironicamente fazem vários elogios ao paletó desenxabido, mal cortado, usado

pelo narrador-personagem. Ao perceber a ironia, ele gosta e compara o seu

paletó cor-de-macaco com os seus romances:

Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado avaliei o forro, as dobras e os pospontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco. (RAMOS, 1980, p. 198)

Então, quando observamos a escrita de Graciliano Ramos é quase

impossível não visualizar escolhendo cada palavra, cada pontuação que vai

utilizar, com o mesmo cuidado com que uma costureira dá cada ponto em suas

criações manuais. Nesse momento, lembramos das palavras de Mário de

Andrade ao falar do artista como artesão:

Artista que não seja ao mesmo tempo artesão, quero dizer, artista que não conheça perfeitamente os processos, as exigências, os segredos do material que vai mover, não é que não possa ser artista (psicologicamente pode), mas não pode fazer obras de arte dignas deste nome. Artista que não seja bom artesão, não é que não possa ser artista: simplesmente, ele não é artista bom. E desde que vá se tornando verdadeiramente artista, é porque concomitantemente está se tornando artesão (ANDRADE, 1975, p.12).

O autor estudado é este artesão com total domínio da arte de escrever.

Cada palavra por ele escrita nos dá a impressão de ter sido selecionada

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cuidadosamente, com o mesmo cuidado com que o avô artesão do narrador

tinha ao confeccionar urupemas: “se resolvesse desmanchar uma, estudaria

facilmente a fibra, o aro, o tecido” (RAMOS, 1980, p.22). Portanto, os textos

escritos pelo autor alagoano não são paletós chinfrins, mas sim roupas que são

verdadeiras obras de arte.

Em Infância, cada pedaço de tecido parece representar um fragmento das

lembranças infantis e a costura provavelmente lembra as aprendizagens que

aconteceram nessa meninice, sejam as aprendizagens intelectuais ou as de

vida, do cotidiano, sendo cada uma delas foi marcada por castigos, dor,

sofrimento e raros momentos de ternura.

O autor inicia Infância com o capítulo “Nuvens”, no qual mostra aos

leitores tratar-se de um livro de memórias: “A primeira coisa que guardei na

memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de

uma porta” (RAMOS: 1980, p.09). Notamos que nem sempre as lembranças

guardadas serão relatadas nitidamente: “Talvez nem me recorde bem do vaso:

é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu ter comunicado

a pessoas que a confirmaram” (RAMOS: 1980, p.09).

Neste mesmo capítulo, encontramos o primeiro comentário de fundo

crítico em relação às práticas de leituras realizadas na escola, inserto na

plasticidade da descrição:

A sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam fôlhas de papel e esgoelavam-se: – Um b com a – b, a: ba; um b com e – b, e: be. Assim por diante, até o u. Em escolas primárias da roça ouvi cantarem a soletração de várias maneiras (RAMOS, 1980, p. 10).

Comentários como este vão ocorrer em toda a obra, visto que o narrador

conta, através das suas lembranças infantis, o quanto a escola foi algo penoso

em sua vida, pois ele a via como um lugar de castigos e punições, como

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atestam os seguintes trechos: “A escola era horrível” (RAMOS, op. cit., p. 113)

e “Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma

crucificação” (RAMOS, op. cit., p. 200).

Consta também nas lembranças do narrador o convívio familiar marcado

por castigos e medo: “foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor”

(RAMOS, 1980, p.14), principalmente na aprendizagem da leitura e, por fim,

nos momentos de leitura solitária, por não conseguir aprender a ler através da

forma tradicional de soletração, e por ser sempre punido rigorosamente,

primeiro pelo pai, que não tinha paciência para as artes do ensino, e depois

pelos mestres nas escolas.

O medo como ator principal tanto na família como na escola, a falta de

liberdade para fazer o que criança mais gosta que é brincar, transforma a

infância do menino numa clausura, “ Vivíamos numa prisão, mal adivinhando o

que havia na rua”(RAMOS, 1980, p. 59).

O menino vivia engessado dentro do próprio corpo, como é perceptível

nestes dois excertos: “encolhido e silencioso” (RAMOS, 1980, p. 19); “miúdo e

insignificante” (RAMOS, 1980, p.35). Na tentativa de passar despercebido, para

que os adultos não o vissem e não o vendo, não o maltratassem, o menino

transforma o corpo numa clausura vivendo “embiocado”.

Portanto, uma infância sem liberdade para falar, brincar e sonhar é uma

infância enclausurada.

Estas nossas primeiras palavras sobre o livro servem como indícios do

que será trabalhado a seguir, pois os discursos sobre leitura, vida familiar,

escola e leitura prazerosa de obras literárias serão discutidos mais

detalhadamente adiante.

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CAPÍTULO 2: O LEITOR E AS LEITURAS

Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espírito de jornada, dispondo-se a uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão das mais vividas emoções pessoais. Com isto, percorre o sertão, a mata, a fazenda, a vila, a cidade, a casa, a prisão, vendo fazendeiros e vaqueiros, empregados e funcionários, políticos e vagabundos, pelos quais passa o romancista, progredindo no sentido de integrar o que observa ao seu modo peculiar de julgar e de sentir.

Antonio

Candido

Aparelhando-nos do espírito de jornada sugerido por Antonio Candido, na

epígrafe acima, apresentaremos neste capítulo as leituras que escolhemos

para explorar, dentre as inúmeras possibilidades que apresenta a obra. Um

livro de importância ímpar que pode, por exemplo, ser explorado com leituras

de embasamento teórico na Sociologia, na Filosofia ou Psicologia entre outras.

Optamos por fazermos um elo com a Pedagogia, apoiando o nosso

estudo principalmente no grande educador Paulo Freire, já que vamos analisar

as práticas de leitura existentes na obra.

Neste capítulo dissertaremos um pouco sobre a categoria leitor para, em

seguida, apresentarmos as leituras que escolhemos para explorar.

Abordaremos uma leitura, posicionando-nos como leitor e mostraremos

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algumas leituras que aparecem no interior da obra, realizadas pelo nosso

narrador-personagem.

Portanto, o capítulo será dividido nos seguintes tópicos: “O leitor”,

“Práticas de leitura na Família”, “Práticas de leitura na Escola” e “Práticas de

leitura que libertam”.

Desenvolveremos este capítulo de forma semelhante ao capítulo 01.

Naquele discorremos um pouco sobre a categoria “autor”, para em seguida

adentrarmos o assunto. Neste falaremos em linhas gerais acerca da categoria

“leitor” para depois aprofundarmos o assunto leitura.

2.1. O leitor

Um texto sem leitor é um não texto, quer dizer, só pegadas negras em uma folha em branco.

Paul Ricoeur

Tomaremos como base para a discussão deste tópico os textos “Leitor”,

de Luiza Lobo, e “Leitor incomum”, de George Steiner.

Em “Leitor”, Luiza Lobo dá início às suas colocações relatando que, da

Antigüidade à Idade Média, a leitura era voltada preferencialmente para a elite,

e que esse fato vai passar por uma transformação com o início da

industrialização, na Europa no século XVIII, pois houve um aumento de

publicações de romances, jornais e folhetins literários, fazendo com que a

leitura passasse a ser mais popularizada, ou seja, deixasse de se circunscrever

à elite e passasse a fazer parte da vida das pessoas de outras classes sociais.

No entanto, o que consideramos de maior relevância neste texto é a

afirmação acerca da Estética da Recepção, pois, segundo Luiza Lobo, a citada

corrente causou uma revolução na interação entre sujeito, texto e leitura.

Vejamos:

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O leitor deixou de ser visto numa posição passiva, e sim como parte integrante do ato da leitura, não apenas como pólo na Europa o questionador, mas também como elemento de impulso reestruturante na escrita da obra pelo autor (LOBO, 1992, p.232)

Portanto, a partir da Estética da Recepção – que teve como marco

inaugural a conferência ministrada por Hans-Robert Jauss, em 13 de abril de

1967, na Universidade de Constança, no sul da Alemanha – o foco deixa de ser

exclusivamente o autor e a produção e passa a ser o leitor.

No seu ensaio “O leitor incomum”, George Steiner faz algumas

considerações sobre o “leitor”, a partir de uma tela de 1734, concebida por

Jean-Baptiste Chardin, intitulada de Le Philosophe lisant, O primeiro ponto para

o qual Steiner chama a atenção é o relacionado às vestimentas elegantes do

leitor pintado na tela. O autor diz que “o leitor não vai ao encontro do livro em

trajes informais ou em desalinho”. Com essa afirmação, começa a delinear a

diferença entre o “leitor clássico” e o leitor que chamaremos de moderno1.

“O leitor clássico”, em sua convivência com o objeto livro, desenvolvia

todo um ritual nobre, que envolvia os trajes e o ambiente silencioso onde seria

realizada a leitura, ou seja, no momento da leitura havia uma profunda

interação entre o leitor e a obra, possibilitando assim que houvesse uma boa

leitura e que com isso o leitor desse uma resposta ao texto, através das

marginálias. O autor diz que “marginália é a prova imediata da resposta ao que

ele lê, do diálogo que se dá entre livro e leitor”. Diz ainda que “a marginália

pode vir a rivalizar com o próprio texto”, ou seja, as marginálias não são

simples anotações realizadas pelo leitor, mas anotações que criticam o texto

lido.

Quanto ao leitor contemporâneo, encontramo-lo mergulhado em um

entrecruzar constante e diário de diversas informações, não guardando para a

1 O termo “moderno” atribuído por nós ao leitor de Steiner aparece como oposição ao “clássico”, nomeado pelo autor. Não queremos dizer que as relações ocorram de forma opositiva num plano da práxis de leitura. Queremos apenas evidenciar certa distinção estabelecida pelo autor entre os dois leitores num plano teórico.

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leitura aquela espécie de “momento ritual” que vislumbramos na tela de

Chardin. Tal atitude terá contrapartida na fecundidade da memória, ponto

mencionado por Steiner como sendo um dos responsáveis pelo decréscimo

nas relações intertextuais estabelecidas pelos leitores. Ora, se entendermos a

leitura como co-autoria, a perda ou diminuição dessas percepções, quanto aos

diversos possíveis dos textos, acarretaria um contínuo silêncio de significados,

não recuperáveis devido a um despreparo desse mesmo leitor contemporâneo.

Segundo Steiner, mesmo o leitor tendo vita brevis e pertencendo a obra à

ars longa, a existência do primeiro é vital para a existência do segundo, visto

que uma obra só passa a ter significado ao ser lida. O autor diz que “a relação

entre leitor verdadeiro e o livro lido é criativa.Tanto precisa ele do livro, quanto

o livro, dele”, então deve haver uma reciprocidade.

Pensando acerca da importância do leitor e sobre o que diz Steiner a

respeito da necessidade do reencontro da boa leitura, fazemos as seguintes

indagações: como formar leitores? Quando e onde esses leitores devem ser

formados?

Essas questões serão discutidas, a seguir, nos próximos tópicos.

2.2. Práticas de Leitura na família

A vida parece particularmente difícil para o leitor

iniciante.

Frank Smith

Para pensarmos as práticas de leitura na família contidas no livro

Infância, consideramos importante discorrer acerca de família de uma forma

mais geral, começando pela medieval e detendo-nos especificamente na

constituição da família moderna, que é onde se insere a do nosso narrador-

personagem.

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Tomaremos como base para a nossa discussão acerca de família, o livro

História Social da Criança e da Família, de Philippe Ariès.

Segundo Ariès, na família medieval, as crianças eram afastadas do seu

meio familiar, para serem educadas no convívio de outras famílias, e a

aprendizagem era feita através de trabalhos domésticos. Portanto, as crianças

pouco conviviam com os seus familiares de nascimento. Na idade medieval, as

residências familiares, chamadas de casas grandes, eram o ponto de encontro

comum de toda a sociedade. Era também comum as pessoas dormirem juntas,

ou seja, mesmo no quarto do casal havia outras camas para acolher visitantes.

Era nesse ambiente, convivendo com todos os adultos, serviçais, visitas e

membros da família que a educação das crianças acontecia, visto que ainda

não existia uma preocupação específica com a educação infantil.

Philippe Ariès afirma que, a partir da família moderna, as residências

passam por modificações, em que os cômodos tornam-se independentes e,

mesmo quando estes cômodos se comunicam, não era mais necessário passar

por dentro dos quartos. As camas, que antes ficavam em qualquer

compartimento da casa, passam a fazer parte do quarto de dormir.

No livro infância aparece a seguinte descrição da casa do narrador-

personagem:

A um lado, a sala de visitas, as cavernas do casal e das meninas, a despensa e a cozinha. Um corredor separava a habitação do estabelecimento, desembocava na sala de jantar larga e baixa. Aí bancos ladeavam a mesa grosseira, e uma cama de lona escondia-se num canto, a cama que me ofereceram quando larguei a rede, por causa das almas do outro mundo (RAMOS, 1980, p. 58).

Portanto, a forma como é dividida a casa, ou seja, a separação dos

cômodos, com um compartimento para o casal se acomodar e outro para as

meninas, corresponde ao modelo de moradia que aparece na família moderna

– com o casal tendo mais privacidade – tal como descrito no livro de Ariès.

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As visitas deixam de acontecer a qualquer momento e as pessoas

começam a fazer uso de cartões comunicando o dia em que esses eventos

aconteceriam. Haverá também uma mudança na relação entre os senhores e

os serviçais, pois a familiaridade, que existia, acaba e passa a haver um

distanciamento marcado pela ordenação hierárquica de base social.

Em Infância é perceptível o distanciamento entre os serviçais e os

senhores: “- Vai lavar os pés do teu senhor, negra” (RAMOS, 1980, p. 134).

Mas sabermos como era realizada a comunicação das visitas não foi possível,

pois só constatamos um exemplo de visitação, que nos pareceu mais um

encontro de negócios do que uma visita entre amigos, “íamos visitar um

fazendeiro vizinho, (...) meu pai e o proprietário da casa sumiram-se, foram

cuidar de negócios, numa daquelas conversas cheias de gritos” (RAMOS,

1980, p.37)

Para Ariès, a família moderna parece começar ao mesmo tempo em que

a escola, portanto vai haver uma relação muito forte entre a educação dada

pela escola e educação dada pela família, em outras palavras, a escolarização

vai interferir na formação do sentimento familiar, assim como a família vai

interferir na construção de conhecimentos transmitidos através do colégio.

Com o surgimento das escolas, as crianças voltam a conviver no seio da

família, passando a freqüentar colégios ou a ter mestres dentro de casa para

proporcionar-lhes ensino. Estas mudanças acontecem porque a família passa a

ser organizada tendo como foco a criança. Vejamos: “esses traços quase

modernos da educação familiar não diminuíram o sucesso dos tratados de

civilidade tradicionais, pois a concentração da família em torno das crianças

ainda não se opunha aos antigos hábitos de sociabilidade” (ARIÈS, 1981, p.

255).

As mudanças sociais refletem-se na organização e no comportamento dos

membros da família. Com o afastamento dos amigos e serviçais do seio

familiar, o grupo passa a viver de forma mais reservada, com uma intimidade

maior entre pais e filhos. Vejamos:

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As crianças tal como são e a família tão como é, com suas dores e alegrias quotidianas, emergiram de uma rotina elementar para atingir as zonas luminosas da consciência. Esse grupo de pais e filhos, felizes com sua solidão, estranhos ao resto da sociedade, (...) aberta para o mundo invasor dos amigos, clientes e servidores: é a família moderna (ARIÈS,1981, p.269 - 270).

Portanto, uma das grandes diferenças entre a família medieval e moderna

é o tratamento dado às crianças. Enquanto que, na primeira, elas são

afastadas do convívio familiar, na segunda, além de acontecer o contrário, a

criança ainda se torna o foco, com os adultos se preocupando com sua

educação, carreira e futuro.

E em Infância, que modelos de família vamos encontrar? É o que

discutiremos a seguir.

Nele, encontramos dois exemplos parecidos com o existente na época

medieval. Um é o caso de Adelaide, a prima do narrador, que mora com a

professora Maria do O. Como a escola funciona dentro da casa da mestra, é

Adelaide quem cuida da limpeza do ambiente escolar e faz todo o serviço

doméstico. Além de sofrer atos de violência física e psicológica:

No começo o jeito servil, o sorriso convencional; em seguida um olhar frio, gesto de enfado, palavra dura; a lisonja recomposta; novamente acrimônia e aspereza. Idas e vindas, intermitências. Um castigo – e logo o afã de obliterá-lo, explicá-lo como trabalho de educação. (RAMOS,1980, p.177)

O outro caso é do menino João que mora com Seu Chico Brabo:

Na casa de Seu Chico Brabo não havia saias: todo o serviço estava a cargo de João, um garoto de dez anos (...) João preparava a comida, trazia da feira os mantimentos, ia buscar água na cacimba da Intendência. (...) Eu desejava que o menino acorresse, findasse o brado longo, a repreensão, o castigo. (RAMOS, 1980, p.146)

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Nestes dois exemplos constatamos a exploração do trabalho infantil, algo

que segundo Mary Del Priore era uma prática comum “no final do séc. XIX, o

trabalho infantil continua sendo visto pelas camadas subalternas como ‘a

melhor escola” (DEL PRIORE, 2006, p.10).

Ainda de acordo com a historiadora esta é uma prática comum até nos

dias de hoje: “E pior, hoje, afogados pelo trabalho, quase 60% desses

pequenos trabalhadores, no Nordeste, são analfabetos e entre eles a taxa de

evasão escolar atinge 24%” (DEL PRIORE, 2006, p.10).

As palavras da autora desperta em nós um questionamento, no período

em que viveram Adelaide e João ainda não existia a Lei Federal que protege a

criança e o Adolescente (ECA), Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, da qual

transcrevemos o artigo quinto.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

No entanto hoje a lei acima citada existe, então por que as crianças

continuam sendo exploradas, violentadas e em muitos casos até mortas?

Após este aparte sobre a exploração infantil voltemos aos modelos de

família encontrados em Infância.

Em relação à família do narrador, podemos perceber características da

família moderna, visto que as crianças são educadas no ambiente familiar, e os

empregados da casa, mesmo morando junto da família, tinham seu lugares

determinados, com uma certa distância entre serviçal e senhor.

A família é formada inicialmente pelo pai, a mãe, o narrador-personagem

e duas irmãs, uma legítima e a outra natural chamada Mocinha, fruto de uma

relação do pai fora do matrimônio. No decorrer do enredo, outras crianças

nascem e a família aumenta.

As imagens dos pais encontradas no livro são de pessoas rígidas e

severas. E, por isso, desde cedo o pequeno ser dá o seguinte retrato dos pais:

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“Ele, terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso” (RAMOS, 1980

p.29). A potência dos advérbios aí empregados na caracterização paterna não

deixa dúvidas quanto à situação de constrangimento experimentada pela

criança. O pai é visto como alguém violento, vaidoso, mesquinho e avaro, pois,

“só não economizava pancadas e repreensões. Éramos repreendidos e

batidos” (RAMOS, 1980, p. 30). Quanto à mãe, ele a descrevia da seguinte

forma:

O que nessa figura me espantava era a falta de sorriso. Não ia além daquilo: duas pregas que se fixavam numa careta, os beiços quase inexistentes repuxando-se, semelhantes às bordas de um caneco amassado. Assim permanecia, contendo bocejos indiscretos. Miúda e feia, devia inquietar-se, desconfiar das amabilidades, recear mistificações. Quando cresci e tentei agradá-la, recebeu-me suspeitosa e hostil: se me acontecia concordar com ela, mudava de opinião e largava muxoxos desesperadores (RAMOS,1980, p.38 - 41).

Quanto à aprendizagem, ela irá ocorrer neste ambiente hostil, onde

haverá muita violência e raros momentos de afeto – nomeados por Fernanda

Coutinho como “poucas ilhas de ternura” (2001, p.44) – haverá pouco diálogo

entre os membros desta família, pois quem manda são os pais, principalmente

o pai, pois, se trata de uma família patriarcal, na qual os filhos só devem

obedecer. Observemos este excerto das memórias:

Bem e mal ainda não existiam, faltava razão para que nos afligissem com pancadas e gritos. Contudo as pancadas e os gritos figuravam na ordem dos acontecimentos, partiam sempre de seres determinados, como a chuva e o sol vinham do céu. E o céu era terrível, e os donos da casa eram fortes. Ora sucedia que minha mãe abrandava de repente e meu pai, silencioso explosivo, resolvia contar-me histórias. Admirava-me, aceitava a lei nova, ingênuo, admitia que a natureza se houvesse modificado. Fechava-se o doce parêntese – e isto me desorientava (RAMOS, 1980, p.21).

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É neste ambiente adverso que as práticas de leitura irão ocorrer, primeiro

pela mãe que lê algumas obras da arte popular, alguns folhetos e literatura

religiosa.

Ela tinha certa dificuldade de compreender o que estava lendo, “minha

mãe lia devagar, numa toada, inexpressiva, fazendo pausas absurdas,

engolindo vírgulas, abolindo esdrúxulas, alongando ou encurtando palavras”

(RAMOS, 1980, p.69).

Em relação ao pai, o único registro de leitura é nos momentos em que ele

vai alfabetizar o filho e incentivando-lhe a leitura, pois ele é o primeiro a tentar

ensinar as primeiras letras ao narrador.

Após presenciar a curiosidade do menino, ao ver um livro de sua loja – por

sinal, de aparência nada estimulante para uma criança que vai começar a

desvendar o mistério das letras, “demorei a atenção nuns cadernos de capa

enfeitada por três faixas verticais, borrões, nódoas cobertas de riscos

semelhantes aos dos jornais e dos livros. (...) percorri as páginas amarelas, de

papel ordinário” (RAMOS, 1980, p.104) – incita o filho em relação à leitura

dizendo que para alguém ter poder é preciso saber ler:

Meu pai tentou avivar-me a curiosidade valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas. Afirmou que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Isto me pareceu absurdo: os traços insignificantes não tinham feição perigos de armas. Ouvi os louvores, incrédulo (RAMOS, 1980, p. 104).

No entanto, é esse mesmo pai incentivador que se transforma num

carrasco nos momentos de ensinamento, pois sempre leva um pedaço de

madeira para bater nas mãos da criança, causando tanto pavor no pequeno

que lhe bloqueia toda a possibilidade de aprendizagem:

Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou – e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava

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rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde, pegava um côvado, levava-me para a sala de visitas – e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro pesado, da largura de quatro dedos (RAMOS,1980, p.106).

Os momentos das lições eram terríveis, assim como os que as

antecediam. A criança ficava horas com a carta de ABC nas mãos, tentando

apreender-lhe o conteúdo. Na verdade, o menino mais parecia um prisioneiro,

esperando pela hora da tortura, do que alguém aguardando o pai para o ensino

de novas lições:

As três manchas verticais, úmidas de lágrimas, estiravam-se junto à mão doída, as letras renitentes iriam afligir-me dia e noite, sempre. As réstias que passeavam no tijolo e subiam a parede marcavam a aproximação do suplício. Dentro de algumas, de alguns minutos, a cena terrível se reproduziria: berros, cólera imensa a envolver-me, aniquilar-me, destruir os últimos vestígios de consciência, e o pedaço de madeira a martelar a carne machucada. (RAMOS, 1980, p.108)

O castigo do menino por não conseguir aprender era ficar várias horas

totalmente isolado, fato que fazia a criança comparar a própria casa com uma

prisão:

Proibiam-me de sair, e os outros meninos causavam-me inveja e receio. Certamente eram perigosos. Afastado, não possuindo bolas de borracha, papagaios, carrinhos de lata, divertia-me com minhas irmãs, a construir casa de encerado e arreios de animais, no alpendre, e a revolver o milho no depósito. Durante a prisão, lembrava-me desses exercícios com pesar. (RAMOS, 1980, p. 99)

Após torturar bastante o filho, que, por causa do pavor, não consegue

aprender nada, o pai desiste da tarefa. Então, quem se encarrega da missão é

Mocinha, a irmã natural. E, com ela, longe dos gritos do pai, o narrador tem um

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breve progresso e consegue decodificar algumas palavras, “meti-me na

soletração, guiado por Mocinha. (...) Gaguejei sílabas um mês” (RAMOS, 1980,

p. 109).

O terceiro membro da família que ensina o menino é o avô materno.

Quando a mãe vai passar alguns dias na fazenda do avô para se restabelecer

do nascimento de mais uma criança, para que o menino não fique sem estudar,

o avô passa a ensinar-lhe algumas lições:

Meu avô era exigente. Detinha-se numa desgraçada sílaba, forçava-me a repeti-la, e isto me perturbava. As longas barbas brancas varriam-me a cara assustada; os olhos azuis, repletos de ameaças, feriam-me; a voz engrossava, rolava, entrava-me nos ouvidos como um trovão fanhoso e encatarroado. Os meus conhecimentos debandavam; as linhas misturavam-se, fugiam; no papel e dentro de mim grandes manchas alargavam-se. Nessa deplorável situação, eu embrulhava estupidamente a leitura, balbuciava respostas insensatas (RAMOS, 1980, p. 132).

Como o menino se assusta com a exigência do avô, com a forma

esquisita de ele pronunciar as palavras e com seu vozeirão, novamente a

aprendizagem em família não vai ter êxito.

Um dia, o pai do menino ensaia uma contribuição para a formação do

leitor, manda que o garoto pegue um livro para lerem juntos, inicialmente, com

uma leitura tímida e vacilante, “Meu pai determinou que eu principiasse a

leitura. Principiei. Mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma

cantinela medonha, indiferente a pontuação, saltando linhas e repisando linhas,

alcancei o fim da página sem ouvir gritos” (RAMOS, 1980, p.200 – 201). O

mesmo episódio aconteceu no dia seguinte, mas no terceiro dia, quando o

menino foi voluntariamente buscar o livro, o pai o afastou com mau-humor, e

assim a criança vê desperdiçada sua única oportunidade de partilhar esse

momento solidário e inovador com alguém:

Era como se tivesse descoberto uma coisa preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a

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caos, depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio foi desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a certeza de que as horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar (RAMOS, 1980, p.202).

Apesar da decepção e tristeza, é a partir deste momento que surge no

menino o real desejo de ler, pois, até o momento, o que tivemos foi “o leitor

visto como decodificador da letra” (MARTINS, 2006, p. 7). Não tivemos ainda

alguém que tenha realmente contribuído para a formação de um leitor

proficiente, pois “a leitura fluente envolve uma série de outras estratégias como

seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível

rapidez e proficiência” (BRASIL, 1997, p. 53). Até agora foi ensinado ao menino

a decodificação de letra por letra, palavra por palavra, num processo de leitura

que não traz sentido pra ele.

Segundo Orlandi, “uma palavra recebe seu sentido na relação com as

outras da mesma formação discursiva e o sujeito falante aí se reconhece”

(ORLANDI, 1988, p.58), as palavras que tentavam fazer o narrador-

personagem ler não tinham sentido pra ele. Por exemplo, ao ler a oração “Fala

pouco e bem: ter-te-ão por alguém “(RAMOS, 1980, p.109), ele pensa que o

verbo é nome de um homem Terteão, pois este tipo de linguagem não faz parte

do seu mundo lingüístico, pois as pessoas que o cercam não falam dessa

forma.

Retomando a nossa fala sobre a participação da família na formação

leitora de crianças lembramo-nos, neste momento do escritor José de Alencar

que, além de pilar da literatura brasileira, de seus momentos de formação até

hoje, foi também um primoroso leitor, sendo ainda citado por Graciliano Ramos

em Infância como uma de suas leituras.

Jerônimo abriu a estante, entregou-me sorrindo O Guarani, convidou-me a voltar, franqueou-me as coleções todas. Retirei-me enlevado, vesti em papel de embrulho a percalina vermelha, entretive-me com D. Antônio de Mariz, Cecília, Peri,

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fidalgos, aventureiros, o Paquequer. Certas expressões me recordaram a seleta e a linguagem do meu pai em lances de entusiasmo (RAMOS, 1980, p. 222).

Nossos leitores podem indagar o porquê de trazermos José de Alencar

para o palco das discussões aqui empreendidas e não um outro autor que

também tenha registrado suas memórias de aprendiz de leitor. Queremos

esclarecer que o motivo não é só por ele ter sido uma das leituras de

Graciliano, mas porque estas duas obras memorialísticas se tocam em alguns

pontos, explicando melhor, algumas lembranças de vivências infantis se

parecem, mesmo que as experiências vividas tenham sido realizadas de forma

diferente, como no caso das leituras em família que discutiremos mais adiante.

Em seu livro de memórias Como e porque sou romancista – obra

póstuma, publicada em 1893, e que resgata várias de suas lembranças infantis,

encontram-se as reminiscências de José de Alencar, relativas a seus

momentos de ledor nos serões familiares, como podemos constatar na

transcrição a seguir:

Essa prenda que a educação deu-me para tomá-la pouco depois, valeu-me em casa o honroso cargo de ledor, com que me desvanecia, como nunca me sucedeu ao depois no magistério ou no parlamento. Era eu quem lia para minha boa mãe não somente as cartas e os jornais, como os volumes de uma diminuta livraria romântica formada ao gosto do tempo (ALENCAR, 1990, p.24)

Ao compararmos essa passagem com o comportamento da família do

narrador-personagem de Infância representado na figura do pai, podemos

perceber a enorme diferença, pois, enquanto que para o primeiro as

lembranças das leituras em família foram algo doloroso e decepcionante, para

o outro são recordações prazerosas, visto que ele – atentemos para a

circunstância de ser uma criança – ocupava um lugar de honra para ler.

Enquanto que para uma criança os momentos de leitura servem para

elevar a sua auto-estima, para o outro o efeito é contrário.

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Em relação a este fato podemos fazer um outro relato do comportamento

familiar na contribuição da elevação da auto-estima das crianças: enquanto que

Graciliano em suas memórias relata os apelidos que a mãe dava para ele

“minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia: bezerro

encourado e cabra-cega” (RAMOS, 1980, p.139), fazendo com que ele se

sentisse um intruso no seio familiar, Fernanda Coutinho, ao citar Raimundo

Menezes, fala do apelido carinhoso dado pela família a José de Alencar “o

interesse deste trabalho se fixa no Cazuza, a forma amorosa inventada pela

família para chamar o futuro ficcionista” (COUTINHO, 2004, p. 66).

Pensando nestes dois exemplos de formação de leitor, indagamos até

onde estas famílias contribuíram para a formação destes dois leitores?

Em Infância, mesmo muito decepcionado com a atitude de afastamento do

pai, o menino não conseguiu mais ficar longe dos livros, pois a sementinha da

leitura já havia sido plantada pelo pai. Então, o narrador-personagem procura

um outro membro da família para auxiliá-lo com as leituras, pedindo ajuda a

uma prima chamada Emília, por se considerar incapaz de ler sozinho. Vejamos:

Emília respondeu com uma pergunta que me espantou. Por que não me arriscava a tentar a leitura sozinho? Longamente lhe expus a minha franqueza mental, a impossibilidade de compreender as palavras difíceis, sobretudo na ordem terrível em que se juntavam. Se eu fosse como os outros, bem; mas era bruto em demasia, todos me achavam bruto em demasia (RAMOS, 1980, p. 203).

Pode ser percebido através da passagem supracitada que a convivência

com os leitores da família, principalmente com o pai, até este momento teve

uma influência bastante negativa sobre o garoto. Os gritos, os castigos e as

surras, utilizados como metodologia de ensino, transformaram-no numa criança

insegura, que não acreditava na sua própria capacidade.

No entanto, o tratamento que a prima oferece para ele é totalmente

diverso daquele dos demais membros do grupo familiar, Emília o trata com

imenso carinho e, para convencê-lo, de que mesmo com alguma dificuldade,

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ele pode realizar a leitura sem a ajuda de outra pessoa, ela faz uma gentil

comparação dele com os astrônomos:

Emília combateu a minha convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam no céu, percebiam tudo quanto há no céu (...). Ora se eles enxergavam coisas tão distantes, porque não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante dos meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras? (RAMOS, 1980, p. 203)

Então, deste momento em diante, a leitura do narrador começa a

desabrochar, sendo esta prima uma exceção entre os membros familiares, pois

ela é a única que fala do ato de ler como algo prazeroso, com um matiz de

poesia.

O narrador vive cercado por pessoas, mãe, pai, irmã e avô, quase

analfabetas. Sendo obrigado a tentar ler livros velhos, amarelados e sem

nenhum atrativo em sua materialidade: colorido de imagens, beleza das capas,

textura agradável do papel – e, isso, através do método da soletração, em

lugares isolados, como os cantos da loja do pai ou sozinho na sala de casa, um

suplício que o impedia de sair para brincar com as irmãs.

É neste contexto que as práticas de leitura familiar se realizam, sendo,

portanto, visivelmente, práticas desestimulantes e castradoras, que pouco

contribuem para que o menino se torne um leitor proficiente.

Este tipo de experiência de leitura é algo negativo para uma criança que

está dando os primeiros passos no mundo da leitura, pois segundo o escritor

Ricardo Filho (neto de Graciliano Ramos).

Quando somos competentes, há sempre uma razão concreta para isso. Ligada à força de vontade, ao estudo, ao trabalho pessoal.Tenho amigos que se queixam dos filhos. Falam da falta de capacidade dos seus meninos incapazes de dar sentido a uma frase. Pergunto então se gostam de ler. Não gostam. A resposta está aí. Em nossa família, nascemos e vivemos em casa rodeadas por livros. Gostamos de tudo num livro. Do formato, da textura, do cheiro. Estantes, livrarias,

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sebos, bancas de revistas e bibliotecas exercem tremendo fascínio sobre nós. 2

Verifica-se que, em Infância, o cenário principal, onde acontecem as

vivências do narrador, é o ambiente familiar e o escolar, portanto vem juntar-se

ao primeiro, o segundo grupo social de que todo ser humano deveria fazer

parte para a sua formação, a Escola.

Ao fazer um relato de sua experiência como leitor iniciante Paulo Freire

faz a seguinte afirmação:

A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz. Por isso é que, ao chegar à escolinha particular de Eunice Vasconcelos, (...) já estava alfabetizado. Eunice continuou e aprofundou o trabalho de meus pais (FREIRE, 1992, p.15).

De acordo com o autor à forma carinhosa com que foi iniciado o seu

processo de alfabetização, foi dada continuidade na escola sem que houvesse

uma ruptura e sim uma interconexão entre esses dois momentos basilares de

sedimentação da vida do espírito.

E, em Infância, que tipo de práticas de leitura o menino da história irá

encontrar? É sobre isso que trataremos no próximo tópico.

2.3. Práticas de Leitura na escola

A leitura do mundo precede a leitura da palavra. (Paulo Freire)

2 Texto de apresentação dos Relatórios do prefeito de Palmeiras dos Índios, como parte integrante da revista EntreLivros 17. Com o título de “A descoberta dos livros”, escrito por Ricardo Filho, neto de Graciliano Ramos e filho do escritor Ricardo Ramos.

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Neste tópico discorreremos um pouco sobre a instituição escola tomando

como base os textos de Philippe Ariès e Michel Foucault, e ao mesmo tempo

faremos uma análise das práticas de leitura realizadas na escola dentro da

obra em estudo.

Philippe Ariès, no livro História Social da Criança e da família, faz um

apanhado geral sobre a escola, falando primeiro em como se organizava a

escola no período medieval e depois no período moderno. Alguns pontos entre

estes dois modelos de escola são relevantes destacarmos, visto que iremos

encontrar no nosso livro de pesquisa alguns exemplos de como figurava a

instituição escolar na época de menino de Graciliano. Ariès diz que as escolas

medievais não eram propriamente destinadas às crianças, pois, nelas se

concentravam crianças, jovens e adultos.

O autor francês fala que uma das diferenças entre os dois modelos de

escola é o seguinte: “O estabelecimento definitivo de uma regra de disciplina

completou a evolução que conduziu da escola medieval, simples sala de aula,

ao colégio moderno, instituição complexa, não apenas de ensino, mas de

vigilância e enquadramento da juventude” (ARIÈS, 1981, p. 170).

Como afirmamos anteriormente, no livro infância, encontramos modelos

de escolas com características que correspondem ao modelo de escolas do

período medieval e outros parecidos com os do período moderno, ambos de

acordo com as descrições dadas por Ariès. Vejamos a seguir este exemplo

relacionado ao local onde funcionava uma das escolas em que o narrador-

personagem estudou:

Tiraram-me da escola da mestiça, puseram-me na de um mestiço, não porque esta se avantajasse àquela, mas porque minha família se mudou para a Rua da Matriz, e D. Maria do O, no Juazeiro, ficava longe, graças a Deus. O novo mestre funcionava no Largo do Comércio, numa casa de jardim com duas ou três palmeiras (RAMOS, 1980, p. 188).

Neste outro segmento do livro que fala da escola, é possível perceber que

os locais de aprendizagem que aparecem no livro são residências que

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funcionam como escola e, ao mesmo tempo, como local de moradia para os

mestres e seus familiares, ou seja, as crianças e adultos ainda conviviam

juntos no mesmo ambiente escolar:

Na minha escola de ponta de rua, alguns desgraçadinhos cochilavam em bancos estreitos e sem encostos, que às vezes se raspavam e lavavam. Nesses dias nós nos sentávamos na madeira molhada. A professora tinha mãe e filha. A mãe, caduca, fazia renda, batendo bilros, com a almofada entre as pernas. A filha, mulata sarará enjoada e enxerida, nos ensinava as lições, mas ensinava de tal forma que percebemos nela tanta ignorância como em nós (RAMOS, 1980, p. 199).

Portanto, estes dois exemplos de escolas particulares, com um único

professor responsável pelos educandos de idades diversas, estão longe de

parecer com a escola moderna descrita por Ariès, na qual ele diz que as salas

eram separadas, e as crianças eram organizadas de acordo com a idade,

demonstrando uma arquitetura que incitava à aprendizagem.

E em relação a esta escola moderna e de qualidade aparece algum

exemplo no livro? É o que pode nos indagar o leitor.

Aparece, sim, podemos afirmar, mas para pessoas de uma classe social

que tem poder, e não para um filho de fazendeiro falido, um comerciante

medíocre, que não pode colocar o filho em escolas particulares de qualidade,

mas que custam caro, e que por isso matricula-o em escolinhas de pessoas

quase tão pobres e analfabetas quanto eles, ou seja, as boas escolas eram

uma irrealidade para a família do menino de Infância, como nos mostra o

narrador-personagem,

Aos nove anos, eu era quase analfabeto. E achava-me inferior aos Mota Lima, nossos vizinhos, muito inferior, construído de maneira diversas. Esses garotos, felizes, para mim eram perfeitos: andavam limpos, riam alto, freqüentavam escola decente e possuíam máquinas que rodavam na calçada como trens. Eu vestia roupas ordinárias, usava tamancos,

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enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de barro, falava pouco (RAMOS, 1980, p. 199).

Através desta passagem percebemos que em tudo esta família que tem

dinheiro se diferencia da família do narrador-personagem, desde as

vestimentas até a escola decente. Esta afirmação colhida em Infância coaduna-

se com as palavras de Ariès, nas quais ele diz que, com a separação das

crianças e dos adultos, ocorreu também a separação das classes sociais, ou

seja, as famílias com um poder aquisitivo melhor colocavam seus filhos em

escolas de qualidade e os mais pobres só tinham direito a escolas de ponta de

rua. Vejamos o que diz Ariès:

No século XVIII, a especialização social de dois tipos de ensino, um para o povo, e o outro para as camadas burguesas e aristocráticas. De um lado, as crianças foram separadas das mais velhas, e de outro, os ricos foram separados dos pobres (ARIÈS, 1981, p. 183).

Neste momento finalizamos a nossa reflexão acerca de alguns pontos da

obra de Ariès, com a qual procuramos fazer uma ligação com a nossa

pesquisa. E, a partir de agora, tentaremos fazer o mesmo com um dos livros de

um importante filósofo francês, Michel Foucault, que, assim como Ariès, traz

muitas reflexões acerca da instituição escola.

A obra de Foucault proporciona uma discussão da escola como um

espaço de disciplina corporal e intelectual. No seu livro Vigiar e punir (1987), no

capítulo intitulado de “Os corpos dóceis”, encontramos um discurso que fala do

corpo como alvo do poder sendo este corpo manipulado, modelado e treinado

para obedecer. Segundo Foucault isto acontece tanto em instituições

militares, como escolares: “um conjunto de regulamentos militares, escolares,

hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as

operações do corpo” (FOUCAULT, 1987, p. 118)

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Em infância, a escola aparece como uma prisão, um local de correção

de meninos rebeldes e até a preparação do menino para a entrada nela já é

uma transformação do corpo e da mente dele, vejamos:

A notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. (...) A escola segundo informações dignas de crédito, era um lugar para onde se enviavam as crianças rebeldes. (...) A escola era horrível – e eu não podia negá-la como negara o inferno. Considerei a resolução de meus pais uma injustiça. Procurei na consciência, desesperado, ato que determinasse a prisão, o exílio entre paredes escuras (RAMOS, 1980, p. 113 e 114).

Para Foucault, as instituições, e, dentre elas se encontra a escola, podem

modificar não só o corpo, mas também a mente. Para ele dentro das

instituições existe um instrumento de dominação e controle, criado para

suprimir ou domesticar os comportamentos divergentes, que é a disciplina.

Foucault faz o seguinte comentário acerca da disciplina:

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (FOUCAULT, 1987, p. 119).

Nas escolas, de Infância, as formas de disciplinar o corpo e a mente vão

sendo apresentadas aos leitores da obra de diversas formas, através de como

as crianças se vestiam para estarem no ambiente escolar, em como elas eram

organizadas para assistirem às aulas e principalmente através do medo de

serem castigadas com palmatórias, “Na sala, vendo a mulata ou cafuza brandir

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a palmatória, precisaria comportar-me bem, simular atenção, molhar de saliva

as páginas detestáveis” (RAMOS, 1980, p. 175).

E em relação às leituras praticadas neste ambiente hostil, de medo e

humilhação? Local de professores pobres, quase analfabetos, violentos e de

crianças amedrontadas, com corpos e almas dóceis, silenciosas e tristes. Que

tipos de leituras vão acontecer, o narrador-personagem vai conseguir se

apropriar da leitura ou novamente o convívio com os adultos e o tipo de

ambiente vai interferir na aprendizagem do menino, como aconteceu na relação

dele com a família?

Ao ser preparado para ir à escola o garoto muda de roupa e de hábitos,

como já comentamos anteriormente, talvez por isso ele espera que a sua

primeira professora seja um homem com barbas grandes, severo e violento,

mas para sua surpresa era uma senhora calma, cheirosa e com jeito de

criança, “D. Maria encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso

mundo, aí vivia farejando pequenos mistérios nas cartilhas” (RAMOS,1980,

p.120).

Mesmo existindo um objeto para bater nas crianças, a professora jamais o

usava, “A escola exigia palmatória, mas não consta que o modesto emblema

de autoridade e saber haja trazido lágrimas a alguém. D. Maria nunca o

manejou. Nem sequer recorria às ameaças” (RAMOS, 1980,p. 121).

A pedagogia desta educadora era diferente das aplicadas nas escolas

daquele período, onde a violência contra a criança era norma, ela ensinava as

crianças com carinho, com amor e muita paciência.

Provavelmente por estar num ambiente de amor, sem medo, aprendendo

com uma pessoa que tinha poucos conhecimentos, mas o pouco que sabia

transmitia de forma tranqüila, sem gritos ou ameaças, é que o menino

conseguiu progredir, “o folheto de capa amarela foi vencido rapidamente. Tudo

ali era fácil e desenxabido: combinações já vistas na carta de A B C, frases se

articulavam de um fôlego”. (RAMOS, 1980, p.124)

Após o convívio com esta professora maravilhosa, que fará parte das

lembranças agradáveis da vida do menino, ele ficará um bom tempo distante

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da escola, primeiro por causa do restabelecimento da mãe depois de um parto

e depois por causa da inexplicável cegueira da criança.

A segunda mestra do menino é bem diferente da primeira; enquanto uma

era extremamente calma a outra era muito violenta:

Matricularam-me na escola pública da professora Maria do O, mulata fosca, robusta em demasia, uma das criaturas mais vigorosas que já vi. Esse vigor se manifestava em repelões, em berros, aos setenta ou oitenta alunos arrumados por todos os cantos (RAMOS, 1980, p.174).

Com esta professora, diferente do que aconteceu com a outra o menino

não alcança nenhum progresso.

O terceiro professor era um mulato de humor variável, no momento em

que estava contente tratava os alunos com indiferença, mas no instante que se

zangava, vingava-se nos alunos, “Segurava a palmatória como se quisesse

derrubar com ela o mundo. E nós meia dúzia de alunos, tremíamos da cólera

maciça, tentávamos esconder-nos uns por detrás dos outros” (RAMOS, p. 191).

Com este professor o progresso do garoto em relação à leitura foi pequeno,

“Despedi-me enfim do Barão de Macaúbas larguei a cartonagem, respirei. Mas

a satisfação foi rápida: meteram-me noutra escola ruim e adquiri uma seleta

clássica” (RAMOS, 1980, p. 192)

E, assim, passando por várias escolas ruins, com professores

despreparados e violentos, em casas funcionando como escola, onde há um

professor para ensinar entre setenta e oitenta alunos, com idades e

conhecimentos diferentes, o narrador-personagem terá uma contribuição para

a sua formação leitora tão medíocre quanto a oferecida pela família.

Esta contribuição medíocre se deve tanto ao fato de as práticas de leituras

virem quase sempre acompanhadas de atos de violência, quanto ao fato do

que está sendo ensinado ser algo sem sentido, pois, segundo Ângela Kleiman:

“Ninguém gosta de fazer aquilo que é difícil demais, nem aquilo do qual não

consegue extrair sentido. Essa é uma boa caracterização da tarefa de ler em

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sala de aula: para uma grande maioria dos alunos ela é difícil demais,

justamente porque ela não faz sentido” (KLEIMAN, 2004, p.16).

Até agora os exemplos de práticas de leituras que tivemos tanto na família

quanto na escola foram extremamente castradoras, nos quais o excesso de

disciplina sempre esteve presente, como uma interdição, segundo Foucault,

“Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de

tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de

qualquer coisa” (FOUCAULT, 2003, p. 9). No caso das vivências familiares e

escolares que aparecem em Infância, as crianças não podiam falar era nunca,

a interdição da fala era personagem constante.

No entanto com a participação de um dos membros da família, uma prima

chamada Emília, de quem já falamos um pouco a respeito anteriormente, o

menino vai ter acesso a um outro tipo de leitura. Trataremos dela a seguir.

2.4. Práticas de leitura que transformam e libertam

Após passar pelo sofrido processo de leitura familiar e escolar, o narrador

começa a realizar uma leitura de forma solitária, sem a ajuda de ninguém,

todavia, contando somente com o apoio de um dicionário e de um atlas: ele irá

descobrir um mundo diferente do seu, viajando na imaginação através das

obras literárias:

E tomei coragem, fui esconder-me no quintal com os lôbos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as fôlhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a inteligência espessa. Vagarosamente (RAMOS, op. cit., p. 203)

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O garoto que tinha aversão aos livros passa a não suportar viver sem lê-

los, mas um outro sofrimento passa a afligi-lo, a ansiedade, pela falta de livros

pra ler, pois, como já dissemos antes, a família do menino não é formada por

leitores, portanto os livros são raros.

O problema da falta de livros é solucionado quando o menino toma

coragem e pede emprestado os livros de um senhor chamado Jerônimo

Barreto que tem uma vasta biblioteca.

A leitura constante faz com que o garoto ganhe a liberdade “Enxergara a

libertação adivinhando a prosa difícil do romance” (RAMOS, 1980, p.213), pois

agora ele vive num mundo à parte sem se incomodar muito com a opinião das

pessoas que fazem parte do seu dia-a-dia. Os locais que ele considerava

prisão, como a escola, continuam sendo, porém, não para ele, pois agora o

menino viaja através da imaginação.

As inúmeras leituras vão transformar-lhe o comportamento: “Mudei meus

hábitos e linguagem. Minha mãe notou as modificações com impaciência. (...)

Os caixeiros do estabelecimento deixaram de aflingir-me e, pelos modos,

entraram a considerar-me esquisito”.

A leitura praticada pelo menino era solitária, silenciosa, “A leitura

silenciosa permite a comunicação sem testemunhas entre o livro e o leitor“

(MANGUEL, 2006, p. 68). A comunicação entre o narrador e os livros lidos por

ele era tão grande que, mesmo quando estava lendo silenciosamente, em sala

de aula, enquanto os outros alunos faziam as atividades escolares, ele

conseguia se abstrair totalmente, “Surdo às explicações do mestre, alheio aos

remoques dos garotos, embrenhava-me na leitura do precioso fascículo,

escondido entre as folhas de um Atlas”. (RAMOS, 1980, p.224)

Mais uma vez vamos encontrar coincidências entre a formação leitora de

Graciliano Ramos e a de José de Alencar. Antes, porém, de fixarmo-nos na

comparação das duas formações leitoras, gostaríamos de salientar uma

diferença sutil entre as duas obras. O texto de Alencar assume-se como

autobiografia, enquanto o de Graciliano, mesmo sendo apresentado como um

livro de memórias, toma forma ficcional. Como diz Antonio Candido, citado por

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Coutinho, “as pessoas parecem personagens e o escritor se aproxima delas

por meio da interpretação literária, situando-as como criações” (2006, p. 42).

Dessa forma, o leitor de Graciliano deve guardar certa distância do dito e

vivido, compreendendo que há a distância conferida pela representação entre

as duas instâncias. Podemos asseverar que há também no texto de Alencar

uma representação diferenciadora entre o dito e o vivido, haja vista que se

concebe por meio da linguagem. Entretanto, num texto em que a escrita toma

forma literária, essa representação ganha ares de ficção, fazendo com que o

distanciamento passe a ser bem maior. Passemos agora às considerações

acerca da formação leitora propriamente dita.

Inicialmente – e de forma coincidente – a formação literária dos dois

escritores passa por grandes nomes da literatura. São citados por Alencar, em

suas memórias, Chateaubriand, Balzac, Dumas, Vigny e Victor Hugo, entre

outros. Já em Graciliano, encontramos, além de diversos nomes da literatura

nacional (como Coelho Neto, Joaquim Manuel de Macedo, Aluísio Azevedo e o

próprio José de Alencar), e também a citação de Émile Zola, Júlio Verne e

Victor Hugo.

É interessante notar, entretanto, que, apesar da formação de Graciliano

passar com mais ênfase pelo Naturalismo de Zola, o autor cita a existência dos

autores de “capa e espada” no seu rol de leituras, como romances que

florearam sua imaginação. Para o leitor atento ao estilo de Graciliano, tido

normalmente como duro e conciso, a afirmação de que o autor era leitor de

romances de aventura pode soar contraditória. É, entretanto, através de outra

passagem do mesmo livro que descobrimos a relação estabelecida entre essas

leituras e aquelas que realmente se aproximarão do conhecido modo de escrita

do autor:

(...) Não ficávamos na torrente e na brisa. Descíamos o monte das Oliveiras, caíamos na planície nacional, visitávamos a Casa de Pensão e O Coruja. Da cópia saltávamos ao modelo, invadíamos torpezas dos Rougon-Macquart, publicadas em Lisboa.

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Feria-me às vezes, porém, uma saudade viva das personagens de folhetins: abandonava a agência, chegava-me a biblioteca de Jerônimo Barreto, regressava às leituras fáceis, revia condes e condessas, salteadores e mosqueteiros brigões, viajava com eles em diligência pelos caminhos da França. Esquecia Zola e Victor Hugo, desanuviava-me. Havia sido ingrato com meus pobres heróis de capa e espada. Não me atrevia a exibi-los agora. Disfarçava-os cuidadoso e, fortalecido por eles, submetia-me de novo ao pesadume, ia buscar o artifício e a substância, em geral muito artifício e pouca substância (1980, p.239 -240) [Grifos nossos].

Vimos, na passagem citada, como a leitura dos romances de capa e

espada nutriam a imaginação de Graciliano, enquanto os outros, tidos como

“pesadume”, formarão o estilo de escrita. É importante assinalar que sua

experiência de leitor em formação passa ao largo da escola, onde os alunos

quase nunca ultrapassam a condição de perdedores na dura luta de decifrar os

enigmáticos caracteres gráficos das cartilhas. Para Fernanda Coutinho, na

época de Graciliano-menino, “a escola, na verdade, nada mais é que uma

extensão do espaço doméstico, reproduzindo as mesmas artes de educar, em

outras palavras: entendendo a severidade como motor da

aprendizagem.”(2006, p.46)

Em Alencar, também, a leitura é tida como uma das principais

responsáveis pelo futuro romancista. Leitor de escritores cuja produção é

sempre tomada como exacerbada, principalmente pela influência do

Romantismo europeu, indaga ele:

Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária que é entre todas a de minha predileção? (1990, p. 29)

O germe do futuro romancista, calcado em leituras prévias, também

eclodira no narrador de Infância, motivado pelos elogios de um literato, que via

em sua obra “sinais de Coelho Neto e de Aluísio Azevedo (1980, p. 240).

Entretanto, mesmo motivado pelas leituras prévias e pelas exortações de Mário

Venâncio, duvida o narrador:

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Acanhado, as orelhas ardendo, repeli o vaticínio: os meus exercícios eram composições tolas, não prestavam. Sem dúvida, afirmava o adivinho. Ainda não prestavam. Mas eu faria romances. Gastei meses para certificar-me de que o palpite não encerrava zombaria. (...) Examinei-me por dentro e julguei-me vazio. Não me achava capaz de conceber um daqueles enredos ensangüentados, férteis em nobres valorosos e donzelas puras. (...) Nunca descreveria um candeeiro. (...) Os candeeiros passavam-me despercebidos. E seriam necessários? (1980, p. 241) [Grifo nosso]

A pergunta que finaliza essa citação é dotada de enorme significância

dentro da poética de Graciliano. O estilo conciso parece a toda hora perguntar

o que é realmente necessário para o desenvolvimento de seus enredos – nada

“ensangüentados”. Enquanto Alencar – oficial ledor da família – vê sua leitura

cotidiana festejada cotidianamente, Graciliano busca os lugares mais ermos

para que essa relação leitor-obra se estabeleça plenamente. Cabe aqui uma

menção – ainda que breve e incompleta, devido ao recorte que aqui traçamos –

à correlação entre o leitor clássico vs. “moderno” comentado por Steiner a partir

da tela de Chardin.

Se, grosso modo, aproximamos o leitor clássico – participante de um

momento ritual prévio para a leitura – do leitor desenhado por José de Alencar,

podemos estabelecer uma série de considerações que aproximem também o

leitor Graciliano daquele leitor chamado por nós de “moderno”. Ao passo que

Alencar toma, em sua casa, o lugar de honra para desenvolver a leitura, num

momento em que todos os olhares convergem para ele, Graciliano não

consegue fazer uma leitura em voz alta para um público, mesmo que este se

resuma a seu pai

Dessa maneira, enquanto Alencar torna-se o grande conhecedor do

efeito que as grandes reviravoltas da obra causam no público, Graciliano tem

com a leitura uma relação muito mais intimista, já que, após o episódio da

leitura para o pai da sala de jantar, afasta-se com seus recém-descobertos

heróis da literatura para lugares distantes.

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Podemos observar que a leitura que vai realmente contribuir para a

formação do menino é a leitura de obras literárias que ele vai conhecer fora da

escola.

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CAPÍTULO 3: IMAGENS EM INFÂNCIA

Infância, de Graciliano Ramos, está repleto de símbolos, por esse motivo

decidimos neste capítulo fazer uma ponte entre Semiótica e Literatura. Então

discutiremos um pouco sobre alguns símbolos de castigos usados por uma

família que educava através da repressão e também por uma escola

castradora, sendo comum a essas duas instituições o ato de silenciar.

Tanto na família, quanto na escola, as crianças eram vistas como seres

em formação e o adulto como o indivíduo capaz de formá-las, restando à

criança o papel de silenciar e obedecer.

Dividiremos este capítulo em cinco tópicos. No primeiro dissertaremos um

pouco sobre Semiótica e o elemento da Semiótica escolhido para ancorar este

tópico – o símbolo. Nos outros tópicos analisaremos à luz da Semiótica

fragmentos dos capítulos do livro Infância que consideramos de maior

relevância para o nosso estudo, sendo eles “Nuvens”, “um cinturão”, “Escola”,

“Chico Brabo” e “Uma criança infeliz”. Faremos ainda uma reflexão acerca de

algumas ilustrações que aparecem na obra.

3.1. Semiótica e Literatura

Para compreendermos melhor a análise dos capítulos da obra em estudo,

faz-se necessário revermos alguns conceitos da Semiótica e a relação dela

com a Literatura.

Comecemos então, por definir Semiótica. Segundo Pignatari:

Semiótica ou Semiologia, pois, é a ciência ou Teoria Geral dos Signos, entendendo-se por signo, para evitar outros equívocos, estes de natureza astrológica, toda e qualquer coisa que substitua ou represente outra, em certa medida e para certos efeitos. Ou melhor: toda e qualquer coisa que se organize ou tenda a organizar-se sob a forma de linguagem,

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verbal ou não, é objeto de estudo da Semiótica (PIGNATARI,1987, p. 13).

Ainda de acordo com Pignatari, a Ciência recebe os dois nomes já

citados por ter tido dois pais diferentes, a saber: Ferdinand de Saussure,

lingüista suíço, e Charles Sanders Peice, filósofo e matemático norte-

americano. Os dois foram contemporâneos, mas não chegaram a se conhecer.

O primeiro chamou atenção para a criação de uma ciência dos signos que

desse conta da própria Lingüística, portanto ele criou não a semiótica, mas a

Semiologia. O segundo definia Semiótica, de acordo com a sua visão

pragmática do mundo. Para ele, toda e qualquer coisa enquadrava-se em três

categorias: Primeiridade (noções de possibilidade e de qualidade);

secundidade (noções de choque e reação, de aqui-e-agora, de incompletude)

eTerceiridade (noções de generalização, norma e lei). Os signos são

classificados de acordo com a ligação signo/objeto. Vejamos o que diz

Pignatari: a) ícone (primeiridade): mantém uma relação de analogia com seu

objeto (um objeto, um desenho, um som); b) índice (secundidade): mantém

uma relação direta com seu objeto (pegadas na areia, perfuração de bala); c)

símbolo (terceiridade): relação convencional com o objeto ou referente (as

palavras, em geral).

Alem da definição de Semiótica, consideramos importante vermos

também o que diz Pignatari sobre as diferenças existentes entre ícone e

símbolo. Verifiquemos as seguintes observações: “Em princípio, os ícones se

organizam por similaridade e por coordenação, enquanto os símbolos se

organizam por contigüidade (proximidade) e por subordinação, funcionando os

índices como pontes. O ícone é o signo da arte; o símbolo, o signo da ciência e

da lógica – nada impedindo que ambos se confundam nos mais altos níveis de

criação” (PIGNATARI,1987, p. 16) e “O ícone é um signo de alguma coisa; o

símbolo é um signo para alguma coisa” (PIGNATARI, 1987, p. 17)

Quanto à relação da Semiótica com a Literatura, o autor faz a seguinte

afirmação:

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Embora não rejeitando totalmente as contribuições da Semiologia, consideramos a Semiótica cientificamente melhor fundamentada e estruturada para apreender o vário e complexo universo sígnico. De saída, ela nos evita o grave risco de ‘verbalizar’ os demais sistemas de signos, convidando e instigando-nos a compreender melhor não apenas os signos não verbais em suas naturezas específicas, como também a própria natureza do signo verbal em relação aos demais. Por aí, pode perceber-se a importância da Semiótica para o estudo da Literatura, uma vez que situar mais claramente o signo é uma tarefa de primeira ordem, uma verdadeira “prova de vestibular” para a compreensão do fenômeno literário (PIGNATARI, 1987, p. 20)

Este breve levantamento que fizemos acerca da Semiótica é para justificar

a nossa escolha ao analisar os capítulos citados anteriormente. Como vamos

trabalhar com símbolos, seguiremos o pensamento de Peirce, já que os

símbolos, segundo Umberto Eco, fazem parte da tricotomia peirciana: “a mais

conhecida entre as classificações dos tipos de signos: a que distingue

SÍMBOLOS (arbitrariamente relacionados com seu objeto), ÍCONES

(semelhantes ao seu objeto) e ÍNDICES (fisicamente relacionados com seu

objeto)” (ECO, 2007, p.157).

3.2. Uma reflexão acerca de imagens

O capítulo “Lendo imagens”, do livro Palavra e imagem: leituras cruzadas

(2006), das autoras Ivete Lara Camargos Walty, Maria Nazareth Soares

Fonseca e Maria Zilda Ferreira Cury, é iniciado com o seguinte

questionamento: “Ler a imagem, construindo um texto verbal? Ou ler um texto

verbal, construindo imagens?” (WALTY, 2006, p.89).

Para as autoras o texto verbal e o não verbal não devem se colocar em

campos opostos, já que elas se completam: “Colocar imagem e escrita em

campos opostos e excludentes é, no mínimo, ingenuidade, já que, mesmo à

nossa revelia, tais códigos se encontram em constante interação” (WALTY,

2006, p. 90).

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Neste tópico do nosso trabalho não temos nenhuma pretensão de

responder as indagações das autoras, mas sim de trabalhar com esta idéia de

leitura construída através de imagens e também de imagens formadas a partir

de leituras, ou seja, trabalharemos com a linguagem verbal e a não verbal.

Portanto, além de analisarmos mais algumas partes escrita da obra, como já

estávamos fazendo nos capítulos anteriores, iremos também analisar três

imagens das seis ilustrações que fazem parte do livro.

O que nos levou a escolher estas três gravuras foi o fato de considerá-las

as mais relevantes para o nosso estudo, uma vez que uma mostra os

momentos de medo vividos pela criança, outra a preparação do menino para ir

à escola e a terceira mostra a violência do adulto para com a criança.

Retomando o capítulo inicial do livro Infância, cujo título é “Nuvens”, já

comentado um pouco anteriormente, percebemos que o enredo do livro está

repleto de símbolos para a representação das lembranças do narrador, as

quais ele sempre põe em dúvida: se as lembranças são suas ou são

construídas a partir do que ouviu de outras pessoas:

Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real (RAMOS, 1980, p.09).

Ao analisarmos este início do capítulo direcionando-nos para a Semiótica,

podemos afirmar que existe uma ligação entre um ícone (o objeto vaso cheio

de pitombas) com um símbolo (a confirmação da existência do vaso através da

afirmação das pessoas, ou seja, o uso da linguagem verbal). Para justificar que

as lembranças infantis são relatadas por um narrador já adulto, portanto podem

ser totalmente reais ou não, o autor faz uso de imagens de objetos e da

linguagem oral para representar suas lembranças, ou seja, ele faz uma ligação

entre o verbal e não-verbal. Isto nos faz retomar o que diz Décio Pignatari

sobre a utilidade da Semiótica:

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Mas afinal, para que serve a Semiótica? Serve para estabelecer as ligações entre um código e outro código, entre uma linguagem e outra linguagem. Serve para ler o mundo não-verbal: “ler” um quadro, “ler” uma dança, “ler” um filme – e para ensinar a ler o mundo verbal em ligação com o mundo icônico ou não verbal (PIGNATARI, 1987, p.17).

Ao pensarmos no vocábulo “nuvens” utilizado pelo autor como título do

capítulo, vemos exatamente a ligação entre uma linguagem e outra linguagem,

pois, ao lermos a palavra, é criada a imagem do objeto.

3.3. Uma imagem do medo

Das seis ilustrações feitas, no ano de 1966, por Darcy Penteado, e que

aparecem no livro Infância esta é uma das que mais nos chamou a atenção.

Pois ela é uma representação gritante do medo.

O medo é uma personagem que aparece constantemente no enredo.

Segundo Fernanda Coutinho, ele aparece como um “mediador das relações

interpessoais do Menino Graciliano” (2001, p. 44)

A criança encolhida, com os olhos esbugalhados, corpo rígido, como se

preparando para se defender, a mãozinha aberta, tentando segurar a ponta da

caixa de madeira, à cata de segurança em algum objeto, escondida, como um

animalzinho indefeso, é uma imagem muito representativa da emoção em

causa.

Este encolhimento diante do mundo vai aparecer em vários momentos do

livro, seja no ambiente familiar ou escolar, como podemos notar nesta

descrição que o narrador faz de um momento escolar: ”Ali, no encolhimento e

na insignificância, os livros fechados, embrutecia-me em leves cochilos, quase

só” (RAMOS, 1980, p.175).

Esta idéia de solidão, de silêncio infantil, reforça a idéia de medo e de

infelicidade: “Em silêncio, resvalava na tristeza e no desânimo” (RAMOS, 1980,

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p.144). É este silêncio infantil enfrentando o poder e a violência dos adultos,

que grita nas páginas de Infância.

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3.4. Imagem da criança sendo preparada para ir à es cola

O momento de preparação de uma criança para ir a um novo ambiente

chamado escola deveria ser estimulante, no entanto, não é o que nos transmite

esta imagem descrita pela linguagem verbal e em seguida pela não verbal:

Trouxeram-me a roupa nova de fustão branco. Tentaram calçar-me os borzeguins amarelos: os pés tinham crescido e não houve meio de reduzi-los. Machucaram-me, comprimiram-me os ossos. As meias rasgavam-se, os borzeguins estavam secos, minguados. Não senti esfoladuras e advertências. (...) Arranjavam impiedosos o sacrifício – e eu me deixava arrastar, mole e resignado, rês infeliz antevendo o matadouro. Lavaram-me esfregaram-me, pentearam-me, cortaram-me as unhas sujas de terra. E, com a roupa nova de fustão branco, os sapatos roxos de marroquim, o gorro de palha, folhas de almaço numa caixa, penas, lápis, uma brochura de capa amarela, saí de casa tão perturbado que não vi para onde me levaram (RAMOS, 1980, p.113 – 117).

Este excerto, assim como um outro citado no tópico 2.3, mostra todo o

sofrimento da criança na sua ida à escola, verificando-se que até as

vestimentas se tornaram instrumento de prisão, pois o corpo está preso dentro

de um uniforme.

O ritual da preparação para entrar na escola é parecido com a

transformação que os presos passam ao entrar na cadeia, uma delas descrita

no livro Memórias do Cárcere (2004), onde o narrador descreve um momento

em que o corpo também é aprisionado através dos sapatos “(...) os pés

coagidos nos sapatos duros, poeirentos. (...) os sapatos duros e estreitos

magoavam-me os calos; (...) Os tamancos me dariam folga, relativa liberdade”

(RAMOS, 2004, p. 56).

O medo que o narrador-personagem tem do ambiente escolar é tão

intenso que ele formula a imagem da escola de forma pessimista, transcrita por

intermédio de objetos e de pessoas que estão lá prontos para machucá-lo,

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“Certamente haveria uma tábua para desconjuntar-me os dedos, um homem

furioso a bradar-me noções esquivas” (RAMOS, 1980, pág. 114).

Na narrativa aparece um objeto – o livro – que deveria ser instrumento de

encantamento, pois geralmente é repleto de gravuras coloridas que estimulam

a imaginação dos pequenos e até dos adultos.

No entanto, os exemplares apresentados à criança, tanto no ambiente

familiar, como no escolar, não são atrativos, nem encantadores. Na verdade os

livros são motivos de angústia e acabam sendo também instrumentos que

causam pavor e sofrimento.

O primeiro livro dado ao menino, para que ele desse os primeiros passos

no mundo das letras foi a carta de ABC, na qual ele deveria aprender as

primeiras letras e algumas frases que pareciam não ter sentido nenhum para o

garoto ‘A preguiça é a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras

vezes acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.’ A sentença causa

confusão na cabeça do menino que pensa que “ter-te-ão” é um nome de

pessoa, e por isso ele pergunta para a irmã Mocinha quem é o Terteão, mas

ela também não sabe de quem se trata o que mostra que ela também não

entendia as palavras indecodificáveis.

Após conseguir ler toda a carta de ABC – ensinada pelos familiares e por

D. Maria, a professora, um novo livro é apresentado ao menino:

Um grosso volume escuro, cartonagem severa. Nas folhas delgadas, incontáveis, as letras fervilhavam, miúdas, e as ilustrações avultavam num papel brilhante como rastro de lesma ou catarro seco (RAMOS, 1980, p. 126).

Além da aparência nada atrativa o livro de contos do Barão de Macaúbas

trazia textos longos, com uma linguagem complicada - “Queres tu brincar

comigo?” (RAMOS, 1980, p. 127) - e sem sentido para uma criança que tinha

acabado de começar a decodificar palavras, sendo a tarefa de ler estes textos

algo quase impossível.

A falta de sucesso do menino na leitura do livro causava desespero,

tristeza, e uma enorme baixa-estima:

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De fato, reconhecendo-me inepto, era absurdo pretender melhoria. Não me conformava. E se o catecismo tivesse para mim algum significado, pegar-me-ia a Deus, pedir-lhe-ia que me livrasse do Barão de Macaúbas. Nenhum proveito a libertação me daria: os outros organizadores de história infantis eram provavelmente como ele (RAMOS, 1980, p. 129).

O terceiro livro não tinha aparência melhor que os outros “Recebi um livro

corpulento, origem de calafrios. Papel ordinário, letra safada” (RAMOS, 1980,

p. 129).

O quarto livro que o menino teve que ler foi Camões:

Sim senhor: Camões, em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. (...) Deus me perdoe. Abominei Camões (RAMOS, 1980, p. 130).

Portanto, estes livros de aparência desagradável, com leituras

inapropriadas para uma criança de sete anos, vão ter pouca contribuição para

a formação leitora do menino. Percebe-se, assim, que família e escola mostram

para o garoto o livro como um instrumento de tortura, e não de prazer, pois de

acordo com a dificuldade que ele tinha de dominar a leitura, sofria os castigos,

as surras com palmatória, tanto no seio familiar quanto no escolar.

A representação não verbal junta-se à verbal e podemos ver a imagem de

uma criança frágil aprisionada dentro de uma roupa formal, dando-lhe a

aparência de um adulto em miniatura. Além da vestimenta o que também

ressalta nesta imagem é a expressão facial, lábios rigidamente fechados, olhos

enormes, arregalados com medo do desconhecido.

Os quadros que aparecem como cenário, por trás da figura do menino,

também merecem exame detido, pois podemos visualizar em um deles

crianças que, aparentemente estão brincando, portando, entretanto, roupas

que mal permitem seus movimentos.

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No outro, há uma criança ajoelhada com algo nas mãos que parece um

livro e uma outra pessoa sentada com a cabeça baixa, aparentemente

escrevendo. A posição ajoelhada da criança representa um ato de

subserviência, como se a aprendizagem só fosse possível através dos

castigos.

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3.5. Imagens de violência contra a criança

A obra em estudo está repleta de relatos de violência dos adultos contra

as crianças citadas no livro, mas fizemos um recorte e trabalharemos com os

mais fortes. Dentre eles, passagens do capítulo: “Um cinturão”, um objeto que,

em outro contexto, é usado como adorno, fazendo parte das vestimentas. No

contexto do livro, tem uma outra utilidade, pois passa a ser um instrumento de

violência. Atentemos para a dramaticidade da cena:

A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. (RAMOS, 1980, p. 34)

No momento em que o pai do narrador utiliza o cinturão para bater no

filho, o objeto deixa de ter a função de embelezar para se transformar em algo

que representa a violência, fazendo com que a ação dele nos lembre a atitude

de outros algozes, por exemplo, os feitores que açoitavam os escravos.

Portanto, os objetos mudam de função e de representação de acordo com as

convenções sociais e culturais.

Ainda no mesmo capítulo, um outro objeto, a corda, que tem várias

funções úteis na vida dos nordestinos, como servir para armar redes, prender

animais, entre outras, aqui, assim como o cinturão, é usado como símbolo de

violência, “certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me

pintou as costas de manchas sangrentas” (RAMOS, 1980, p. 31).

Ao analisarmos esses dois excertos, fazendo uma ligação entre os objetos

“cinturão” e “corda” e a atitude do pai e da mãe do narrador, percebemos que

os objetos simbolizam toda a tradição de uma família violenta e repressora,

família na qual não existia diálogo, pois os ensinamentos familiares eram

passados através da violência.

A imagem assustadora da próxima página, onde a figura do adulto

aparece, de forma enorme, dominando totalmente o ambiente, ou seja, a figura

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do opressor, e a criança praticamente não aparece, sendo ela a representação

do oprimido, faz parte do capítulo “Chico Brabo”.

Chico Brabo representava para o narrador-personagem uma figura

estranha que ele não conseguia entender:

As discrepâncias avultavam, acumulavam-se – e era difícil admitir que alguém fosse tão generoso e tão cruel. A recordação daquela doçura mole, dos papelinhos de pó branco, dos sorrisos, trazia-me ao espírito bondade completa; os urros furiosos e os sopapos descarregados em João exibiam-me completa maldade (RAMOS, 1980, p. 148).

O menino do livro, além de sofrer com os maus tratos que recebia, sofria

também ao presenciar o padecimento de outros pequenos seres indefesos

como João, a criança que servia de empregado para Chico Brabo e que

vivenciava vários atos de violência:

Duas mãos inchadas seguravam braços finos, sacudiam-nos reforçando as objurgatórias. Suponho que Seu Chico Brabo não sentia prazer em magoar fisicamente a criança: gostava de aperreá-la devagar, feri-la com palavras. (...) Afinal dois ou três golpes fofos. Guinchos de um; sopros, respiração ofegante do outro (RAMOS, 1980, 148).

Há uma junção da violência física com a psicológica e neste caso a

violência atingia tanto o menino João, como o narrador-personagem, que ouvia

todo o desfecho antes e durante as surras que o garoto levava. Seu Chico

Brabo consegue agredir duas crianças ao mesmo tempo.

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Além disso, no caso de João, o narrador-personagem presencia a tortura

de um menino, que aparece no enredo sem nome próprio, sendo chamado de

criança infeliz, o que nos faz pensar que este caso poderia ter acontecido com

qualquer criança, presas fáceis da raiva dos adultos.

No capítulo “Criança infeliz”, há um relato da vida de um menino que era

cruelmente torturado pelo pai, em sua residência, e pelo diretor da escola:

Em casa, o pai martelava-o sem cessar, inventava suplícios: amordaçava-o, punha-lhe as costas das mãos sobre a mesa da sala de jantar, malhava nas palmas, quase triturava as falanges; prendia-lhe os rejeitos, pendurava-o num caibro, deixava-o de cabeça para baixo, como carneiro em matadouro. Fatigando-se das inovações, recorria às sevícias habituais: murros e açoites (RAMOS, 1980, p 250).

A tortura que sofria em casa tinha continuidade na escola, onde era

obrigado a ficar sempre isolado, sem poder ficar perto de nenhum outro aluno,

todos recebiam ordens do diretor para que não se aproximassem dele. Além de

servir de empregado, fazendo os serviços domésticos para a família do diretor,

ele também era cruelmente torturado, como podemos observar no trecho

abaixo:

Às vezes o homem se excedia: amarrava os braços do garoto com uma corda, espancava-o rijo, abria a porta, e a desesperada humilhação exibia-se aos transeuntes, fungava, tentava enxugar as lágrimas e assoar-se. O choro juntava-se ao catarro, pingava no paletó e na camisa – e o pano molhado tinha um cheiro nauseabundo, mistura de formiga e mofo (RAMOS, 1980, p.249).

O que mais nos chamou a atenção no relato do sofrimento deste menino

foi sabermos o que aconteceu com ele quando adulto. O menino que foi

cruelmente humilhado pelos adultos conseguiu sobreviver a todos os maus

tratos, mas se tornou um adulto violento e vingativo, entrando no mundo do

crime com aproximadamente quinze anos, quando assassinou um homem a

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tiros, “realizou depois numerosas façanhas; respeitaram-lhe a violência e a

crueldade” (RAMOS, 1980, p.251-252).

Após concluir os estudos, conseguindo aprovação através de ameaças

que fazia aos examinadores, ele fundou um jornal, deu um emprego ao antigo

diretor de escola, que o torturara tantas vezes, e vingou-se dando-lhe um

emprego mesquinho, passou a vestir-se muito bem, teve muitas mulheres, mas

teve um fim triste, pois foi assassinado a punhaladas.

As lições de amor deveriam começar em casa e continuar na escola – no

caso deste garoto ele não teve nenhuma, só aprendeu a violência – primeiro,

através do pai, e, em seguida, de um diretor, que deveria agir como um

educador e não como um feitor de escravos. As lições de violência foram

aprendidas com sucesso, pois o menino se transformou num adulto igualmente

irascível e desumano.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tratar sobre como acontecem as práticas de leitura na escola atualmente

poderia ter sido a discussão introdutória do nosso trabalho, contudo, preferimos

este momento para realizar essa inserção por considerá-lo mais pertinente.

Há muito tempo a leitura tem sido objeto de estudos de psicólogos e

pedagogos, e, atualmente, as discussões acerca dela têm se intensificado,

porque as últimas pesquisas mostram que os alunos não estão desenvolvendo

uma habilidade satisfatória em leitura, ou seja, na maioria das vezes, eles

estão apenas aprendendo a decodificar caracteres gráficos, e em alguns casos

nem isso.

Segundo Freire, “aprender a ler e a escrever não é decorar ‘bocados’ de

palavras para depois repeti-los” (2003, p.56), ou seja, a leitura deve ser um ato

de reflexão. Um dos papéis da Escola é proporcionar à criança um mergulho

inicial no mundo da leitura, sendo também seu dever formar não apenas

decodificadores, mas leitores reflexivos, conscientes e críticos.

No entanto Irandé Antunes faz a seguinte constatação sobre o quadro

pedagógico brasileiro: uma escola “sem tempo para a leitura” (2003, p. 28).

Esta afirmação da autora foi resultado da avaliação de uma pesquisa realizada

por Lílian Martin da Silva, em 1986, junto a alunos de escolas públicas de

Campinas, na qual eles relataram a pouca quantidade de leitura praticada na

escola, pois as aulas de português eram mais voltadas para o ensino da

gramática, como se a leitura fosse algo desvinculado do ensino da Língua

Portuguesa.

As afirmativas supracitadas podem ser comprovadas ao lermos a

divulgação do resultado da Prova Brasil3 (avaliação aplicada pelo Sistema de

Avaliação do Ensino Básico – Saeb), cujo objetivo é verificar a qualidade do

ensino nas escolas brasileiras. Mesmo os resultados das avaliações aplicadas

3 Uma avaliação sobre o resultado da Prova Brasil pode ser lida em “Avaliação – como a Prova Brasil, um teste nacional, pode ajudar a melhorar a qualidade da Educação”. In: Nova Escola, Ano XXII, n.º 199, jan-2007, p. 30-45.

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em 2006 tendo sido desanimadores, pois mostraram o baixo nível de

aprendizagem dos alunos, dois fatos nos chamaram a atenção. O primeiro foi o

de que a pesquisa mostrou que os alunos não conseguiram se sair bem nas

provas de Português e Matemática, porque não têm domínio da leitura. O

segundo foi a circunstância de as escolas que obtiveram os primeiros lugares

serem exatamente as que investiram na leitura de diversos textos,

principalmente nos textos literários, ou seja, aquelas que conseguiram uma boa

solução para a formação de leitores a partir do trabalho com o texto literário.

Em Infância percebemos uma denúncia de que a escola daquele período

não formava leitores. Nos dias atuais, mesmo uma avançada tecnologia já

tendo chegado ao Brasil, artigos, como o que acabamos de referir, mostram

que na maioria das vezes os colégios continuam sem alcançar êxito na sua

função de fazer as crianças lerem.

A revista Nova Escola de dezembro de 2003, traz o artigo “Identidade

desperta o gosto pela leitura”, na qual o professor Antônio Márcio de Lima

Costa faz a seguinte afirmação: “Chocou-me a notícia de que Alagoas, terra de

Graciliano, tinha a pior taxa de analfabetismo do país (33,4% da população

com mais de 15 anos) e por isso decidi fazer algo”.

O que ele resolveu fazer foi uma prática de leitura contextualizada do livro

Vidas secas, de Graciliano Ramos, na qual o professor realizou junto com os

alunos a leitura de alguns capítulos do livro, fazendo uma comparação dos

fatos relatados na obra com a história atual da região.

Ele e sua turma de alunos da 4ª série da escola Municipal Professora

Marinete Neves fizeram o estudo da obra literária, ao mesmo tempo em que

estudavam história, geografia, realizando pesquisas com moradores locais,

visitando museu, pesquisando e registrando a biografia do escritor.

A forma de ministrar as aulas deste professor lembra-nos as palavras de

Paulo Freire, “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as

possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE,

1996, p.52). O educador procurou realizar uma leitura, na qual o senso crítico

dos educandos fosse “ativado”.

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No entanto este professor é uma exceção, assim como Graciliano Ramos

foi, provavelmente, uma exceção de leitor bem sucedido entre os vários alunos

daquelas escolas, pelas quais ele passou. Será que nas escolas em que ele

estudou algum leitor conseguiu ser formado?

Graciliano se transformou num grande leitor, num apaixonado por livros,

mas com pouquíssima contribuição da família e da escola. Neste momento

podemos indagar: até quando a instituição escola vai fracassar na função de

formar leitores críticos?

Ao trabalharmos, no primeiro capítulo, fragmentos da vida de Graciliano

Ramos, procuramos ressaltar a sua ligação e preocupação com o método de

ensino, principalmente em relação à leitura.

No segundo capítulo procuramos explorar bastante os relatos acerca das

práticas de leitura existentes na obra, no ambiente familiar, escolar e as leituras

solitárias.

Fizemos uma breve análise de três gravuras do livro, buscando apoio na

Semiótica. E trabalhamos, ainda no capítulo terceiro, a violência aplicada

contra a criança, resultando num mundo infantil silencioso, onde o ator principal

era o medo.

Pensamos que a maior função do nosso estudo é provocar nos leitores

um olhar mais demorado nas discussões que Infância traz acerca da forma

como as crianças eram tratadas há algum tempo atrás, no ambiente familiar e

escolar, como eram realizadas as práticas de leitura e principalmente trazer

esta discussão para os dias atuais, pensando em que tipo de evolução ocorreu

dos tempos de Graciliano menino para este século.

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