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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CARA DE BANDIDO: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE CRIMINOSOS PARA JURISTAS E NÃO-JURISTAS Júlio César Pompeu Vitória 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

CARA DE BANDIDO: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE

CRIMINOSOS PARA JURISTAS E NÃO-JURISTAS

Júlio César Pompeu

Vitória

2013

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JÚLIO CÉSAR POMPEU

CARA DE BANDIDO: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS

CRIMINOSOS PARA JURISTAS E NÃO-JURISTAS

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Psicologia, sob a orientação da Profa. Dra. Edinete Maria Rosa.

UFES

Vitória, julho de 2013.

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CARA DE BANDIDO: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS

CRIMINOSOS PARA JURISTAS E NÃO-JURISTAS

JÚLIO CÉSAR POMPEU

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da

Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para

obtenção do título de Doutor em Psicologia.

Aprovada em 15 de agosto de 2013, por:

_______________________________________________________

Profa. Dra. Edinete Maria Rosa - Orientadora, UFES.

_______________________________________________________

Prof Dr. Paulo Menandro, UFES

_______________________________________________________

Prof. Dr. Clóvis de Barros Filho, ECA/USP

_______________________________________________________

Profa. Dra Eda Terezinha de Oliveira Tassara, IP/USP

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Pompeu, Júlio César, 1971- P788c Cara de bandido : as representações sociais de criminosos

para juristas e não juristas / Júlio César Pompeu. – 2013. 196 f. : il. Orientador: Edinete Maria Rosa. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal do

Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais. 1. Representações sociais. 2. Estigma (Psicologia social). 3.

Criminosos. 4. Senso comum. 5. Julgamentos. I. Rosa, Edinete Maria. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.

CDU: 159.9

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RESUMO

Pompeu, J. C. (2013). Cara de bandido: representações sociais dos criminosos para juristas e não-juristas. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória/E.S.

O objetivo desta tese foi investigar as representações sociais dos criminosos,

em especial as comuns ao campo social dos operadores do direito – juízes,

promotores e advogados -. Foram realizadas quatro pesquisas empíricas

paralelas e não lineares, ou seja, os dados produzidos por uma delas não

alimentou as outras. A primeira pesquisa verificou, através de formulário

construído com retratos falados a partir dos quais os participantes deveriam

apontar autor e vítimas de crimes, se a aparência pode interferir em

julgamentos criminais realizados por juristas. A segunda constitui-se de análise

de conteúdo de artigos de revista de ciências criminais e comentários a notícia

jornalística sobre crimes. A terceira, análise de conteúdo de comentários a

notícias jornalísticas de dois crimes – morte de um bebê e injúria racial – pouco

comuns, mas de grande repercussão entre os leitores de portais eletrônicos de

notícias. A última, análise de conteúdo de decisões monocráticas cíveis e

criminais de ministros do STJ. Para as análises de conteúdo foram utilizados

procedimentos tradicionais (Bauer, 2012; Bardin, 2006) aliados a recursos

eletrônicos – ALCESTE (Reinert, 1998) e MAXQDA (Kuckartz, 2007). Os

resultados apontam relação direta entre feiura, pobreza, poder e atribuição de

periculosidade. Isto indica a existência de mais de uma representação de crime

entre os juristas, com “perfis” de criminosos diferentes entre os crimes e

consequências variadas nos julgamentos criminais. Estes resultados ajudam a

compreender melhor os processos de incriminação judicial.

Palavras-chave: representações sociais; estigma; criminosos; julgamento

criminal; senso comum; analise de conteúdo.

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ABSTRACT

Pompeu, J. C. (2013). Bandit face: social representations of criminals to lawyers and non-lawyers. PhD. Thesis, Graduate Program in Psychology, Federal University of Espírito Santo, Vitória / ES

The subject of this thesis was the social representations of criminals, especially

those common to the field of social law professionals - judges, prosecutors and

lawyers -. There were four empirical, parallel and non-linear - the data produced

by one of them isn‟t subsidized others -. The first survey investigate, through a

form built with criminal sketches from which the participants should aim author

and victims of crimes, if the appearance can interfere in criminal trials

conducted by lawyers. The second consisted of content analysis of criminal

science journal articles and reviews of crimes news on internet news portal.

Third, content analysis of comments to news reporters two crimes - death of a

baby and racial slur - unusual but highly publicized among readers of electronic

news portals. The last, content analysis of monocratic civil and criminal

decisions of Superior Court judges. For content analyzes were used traditional

procedures (Bauer, 2012; Bardin, 2006) coupled with electronic resources -

Alceste (Reinert, 1998) and MAXQDA (Kuckartz, 2007). The results show a

direct relationship between ugliness, poverty, power and dangerous

assignment. This indicates the existence of more than one representation of

crime among jurists with "profiles" of criminals among different crimes and

different consequences in criminal trials. These results help to better

understand the processes of judicial prosecution.

Keywords: social representations; stigma; criminals; criminal judgment;

common sense; analysis of content.

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RÉSUMÉ

Pompeu, J. C. (2013). Visage de bandit: représentationssocialesdescriminels à desavocats et non avocats. Thèse de Doctorat, Programme d'ÉtudesSupérieuresenPsychologie, UniversitéFédéraledu Espírito Santo, Vitória / ES

L'objectif de cettethèse est d'étudierlesreprésentationssocialesdescriminels,

enparticuliercellesquisontcommunesdansledomaine de professionnelsduchamp

social de laloi - juges, procureurs et avocats -. Il y avaitquatreparallèleempirique

et non-linéaire, ou lesdonnéesproduites par l'un d'eux n‟est nourripas d'autres.

La première enquête a révélé si

l'apparencepeutinterférerdanslesprocédurespénalesmenées par desavocats, à

travers d‟unformulaireconstruiteavecdes croquis à partir de

laquelleslesparticipantsdevraientviserauteur et lesvictimes de crimes. La

secondeconsistait d‟analyseducontenusurlescriminelsdansl‟articles de journaux

de nouvelles et revuesscientifiques de lasciencecriminelle. Troisièmement,

l'analyseducontenudescommentaires à deux crimes reportées - lamort

d'unbébé et insulte raciale - inhabituels mais trèsmédiatiséeauprèsdeslecteurs

de portails d'informationélectroniques. Le dernier,

analyselecontenudesdécisionsciviles et pénalesmonocratiquesdesjuges de

laCourSupérieure de Justice.

Pourlecontenudesanalysesontétéutiliséesprocédurestraditionnelles (Bauer,

2012; Bardin, 2006), assortidesressourcesélectroniques - Alceste (Reinert,

1998) et MAXQDA (Kuckartz, 2007). Les résultatsmontrentune relation directe

entre la laideur, la pauvreté, le pouvoiret incriminations. Cela indique l'existence

de plus d'une représentation de lacriminalitéparmilesjuristesavecdes «profils»

de criminels entre lesdifférents crimes et

desconséquencesdifférentesdanslesprocèscriminels. Cesrésultatspermettent de

mieuxcomprendrelesprocessus de poursuitesjudiciaires.

Mots-clés: représentationssociales, stigmatisation; criminels;

judgementcriminal,senscommun,analyse du contenu.

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LISTA DE TABELAS

Estudo 2.1

Tabela 1: mais indicados como assassinos ............................................................ 46

Tabela 2: mais indicados como vítimas de assassinato ....................................... 48

Tabela 3: mais indicados como sequestradores .................................................... 50

Tabela 4: mais indicados como vítimas de sequestro ........................................... 51

Tabela 5: mais indicados como traficantes ............................................................. 52

Tabela 6: mais indicados como usuários de drogas .............................................. 54

Tabela 7: mais indicados como estelionatários ...................................................... 55

Tabela 8: mais indicados como vítimas de estelionato ......................................... 56

Tabela 9: mais indicados como criminosos sexuais .............................................. 57

Tabela 10: mais indicados como vítimas de crimes sexuais ................................ 58

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LISTA DE FIGURAS

Estudo 2.1

Figura 1:Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “Carandiru”..........78

Figura 2: Distribuição das atribuições de crimes aos “bandidos”, retiradas do corpus “Carandiru”...................................................................................................................81

Figura 3: Classes resultantes da análise do software ALCESTE realizada sobre o corpus “Carandiru” ......................................................................................................83 Figura 1: Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “IBCCrim”.............88

Estudo 2.2

Figura 1: comparativo de médias de beleza entre criminosos e vítimas por crime. ...... 59

Figura 2: comparativo de médias de beleza e vida entre homens e mulheres. ............. 61

Figura 3: comparativo de médias de beleza e vida entre negros, pardos e brancos. ... 62

Figura 4: Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “IBCCrim” ................ 96

Figura 5: Distribuição das atribuições de crimes aos “bandidos”, retiradas do corpus “IBCCrim”. ................................................................................................................................ 100

Figura 6: Classes resultantes da análise do software ALCESTE realizada sobre o corpus “IBCCrim” .................................................................................................................... 101

Estudo 2.3

Figura 1: Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “Racismo”.............121

Figura 2 - Classes resultantes da análise do software ALCESTE realizada sobre o corpus “racismo”..........................................................................................................124 Figura 3 – Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “Pai mata a filha”128

Figura 4. Classes resultantes da análise do software ALCESTE realizada sobre o corpus “pai mata filha”..................................................................................................130

Estudo 2.4

Figura 1 – Sentido atribuído à expressão “bandido” em decisões criminais e cíveis. Dados quantificados por número de ocorrências no corpus......................................151

Figura 2 – Outras formas para referir-se a criminosos, diferentes de “bandido”, encontradas no corpus, por tipo de sentença (se criminal ou civil). Dados quantificados por número de ocorrências no corpus.......................................................................161

Figura 3 – Categorias de crimes por tipo de sentença (se criminal ou civil). Dados quantificados por número de ocorrências no corpus................................................168

Figura 4 – Coocorrência entre “homem mau” e as diversas categorias de crimes. Dados quantificados por porcentagem e total de ocorrências em cada categoria de

crime..................................................................................................................170

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Agradecimentos,

A ideia – ou ideologia – do self mademan é falsa. Faz crer que alguém

sozinho consiga construir coisas grandiosas. Isto é ignorar as forças sociais

que contribuem para a realização de qualquer obra, mesmo as pequenas como

esta tese. Muitos contribuíram direta ou indiretamente para a sua realização e a

todos devo meus sinceros agradecimentos. Listá-los todos seria trabalhoso e

injusto, pois acabaria esquecendo alguém. Faço o mais fácil – dileta preguiça –

e agradeço aos que mais diretamente contribuíram, deixando claro que não

são os únicos.

A Edinete, minha orientadora, pela paciência e pelos comentários que ao

mesmo tempo me surpreenderam e desconcertaram. Sem ela, este trabalho

não teria começo e nem fim. Acredito que nem mesmo teria conseguido ser

aceito no programa de doutorado. Estaria até hoje – hoje mesmo, neste dia em

que você está lendo isto - perdido em considerações estapafúrdias,

empreitadas inúteis e texto rocambulesco.

Aos professores do programa de Pós-Graduação em Psicologia da Ufes.

Antes colegas a quem respeitava, agora meus eternos professores a quem

aprendi a admirar. Achei que fosse aprender apenas psicologia ao longo do

doutorado. Enganei-me. Aprendi muito mais que uma ciência. Reaprendi a

pensar e a escrever. Fiz amigos, daqueles que sabemos desde o primeiro

momento que nos acompanharão pelo resto da vida – felizmente -. Sobretudo,

aprendi que seriedade acadêmica não é sinônimo de sisudez e que é possível

ser ao mesmo tempo rigoroso e amável.

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A kieza e Davi, meus dois amores. Quando Davi nasceu, ao longo deste

doutoramento, passei uns seis meses sem assistir uma aula, ler um artigo ou

escrever uma linha sequer. Eu tinha tempo, apesar de todo o trabalho que um

recém-nascido dá a pais de primeira viagem, mas simplesmente não conseguia

sair de casa. Queria – e quero – ficar ao lado de vocês o tempo todo. Agora

poderemos fazer mais “bicho de monte” e “macaquinho”. A propósito, Davi,

meu filho, papai não mora na Ufes.

Por fim, agradeço à legião de amigos que me incentivaram, perguntando

dia sim, outro também, se eu já tinha terminado a tese. Vocês são todos uns

chatos!...

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SUMÁRIO I) APRESENTAÇÃO ..................................................................................................................... 4

Organização da tese .................................................................................................................. 9

Referências teóricas ................................................................................................................ 13

II) ESTUDOS ................................................................................................................................. 31

2.1 A beleza e a inocência: juristas e suas representações sobre criminosos, uma

investigação a partir de retratos falados ................................................................................ 33

Introdução ........................................................................................................................... 35

Objetivos ............................................................................................................................. 40

Método ................................................................................................................................ 41

Resultados ........................................................................................................................... 45

Discussão ............................................................................................................................. 59

Conclusão ............................................................................................................................ 65

Referências bibliográficas ................................................................................................... 67

2.2 Em busca do bandido: um estudo comparativo das representações sociais de juristas e

não-juristas sobre os criminosos ............................................................................................. 72

1. Introdução ....................................................................................................................... 74

2. Objetivos ......................................................................................................................... 82

3. Método ............................................................................................................................ 82

4. Resultados ....................................................................................................................... 85

5. Discussão e conclusões ................................................................................................. 108

2.3 Não são bandidos: representações sociais sobre autores de crimes em comentários de

notícias policiais .................................................................................................................... 115

Introdução ......................................................................................................................... 119

Objetivos ........................................................................................................................... 128

Método .............................................................................................................................. 128

Resultados ......................................................................................................................... 129

Conclusão .......................................................................................................................... 144

Referências bibliográficas ................................................................................................. 145

2.4 O bandido na justiça: representações sociais dos juízes sobre criminosos na

jurisprudência do STJ ............................................................................................................ 149

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Introdução ......................................................................................................................... 152

Objetivo ............................................................................................................................. 159

Método .............................................................................................................................. 159

Resultados ......................................................................................................................... 160

Conclusões......................................................................................................................... 182

Referências bibliográficas ................................................................................................. 185

III) CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 190

IV) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................ 203

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I) APRESENTAÇÃO

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Em 1991 comecei o curso de Direito. Estava empolgado, nem tanto pelo

curso ser o de Direito, mas pelo fato de estar numa Universidade. Ela era para

mim um lugar de descobertas, de desvelamento dos mistérios do mundo. O

mistério que me animava era o das formas de julgar bem, de resolver de forma

justa os problemas do mundo. A primeira aula que tive foi justamente a de

Introdução ao Estudo do Direito. Não foi o que eu esperava.

Falava-se dos problemas do mundo, mas era apenas um diagnóstico

retórico, uma desculpa para em seguida apresentar o remédio: uma lei ou

decisão. Mostrado o caos, cuja existência já havia constatado há muito,

impunham-me a ordem legal, que me parecia artificial demais. Tudo funcionava

muito bem na lei, mas não era isso que eu via no mundo. “Se a lei é assim,

então por que não funciona?” - eu perguntava. Culpavam-se as instituições. A

polícia, os tribunais, o Estado, nada funcionava como deveria. “E por que não?”

– insistia. “Isso é uma questão muito subjetiva”. Afirmar o problema como

subjetivo era a última barreira das minhas interrogações morais. O ponto final

de qualquer discussão em sala de aula.

Isso se repetiu muitas vezes e, a cada questão não resolvida, encerrada

na barreira do “subjetivo demais”, mais a minha inquietação sobre os critérios

morais de decisão dos juristas aumentava. De inquietação em inquietação

acabei no mestrado em Direito para, assumidamente, não estudar Direito. O

Direito tornou-se para mim de mecanismo intelectual de resolução dos

mistérios e problemas do mundo no próprio mistério e problema a ser resolvido.

De ciência, passou a objeto de estudo. E assim, fugindo do jurídico e buscando

o moral, tornei-me professor de Direito. Mas a barreira do “subjetivo” persistia.

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Com subjetivo queriam afirmar que algo era incerto demais, aleatório

demais, fortuito demais e, portanto, não cognoscível. Significava também que

era a ação de um indivíduo, tido este como radicalmente singular, ser único na

espécie e que, portanto, suas ações seriam o resultado de uma série de

razões, afetos e paixões que formavam naquele indivíduo uma mistura única e

que não nos dizia respeito. Mais do que isso, admitir que algo que afetava a

vida de outras pessoas seja causado por um ser tão caprichosamente singular

e incognoscível é assustador demais para os juristas.

Todos os esforços do jurista são direcionados para vencer a

singularidade de cada indivíduo, para sobrepor essa “subjetividade” associada

a más paixões privadas. O direito deveria ser o instrumento de imposição de

razões públicas. Algo acima das singularidades e fragilidades do humano. Algo

que deveria salvar os homens deles mesmos. Uma moral nele mesmo.

Percebi com o tempo que o Direito repete o modelo platônico que, por sua vez,

se baseia na hipótese elitista de que o homem comum (no caso de Platão, o

não filósofo) não é digno de governar a si mesmo (pelas suas próprias

escolhas morais) pelo fato de agir em obediência ao corpo e os desejos em

detrimento da alma racional. Já o filósofo, ao contrário, é o que se deixa

governar pela alma racional em detrimento do corpo e, portanto, se cria leis,

elas são racionais, ao contrário das criadas pelos homens comuns que apenas

refletem os desejos do momento da escolha. O papel político do filósofo é fazer

as leis boas porque racionais, cabendo ao homem comum a virtude da

obediência em detrimento dos próprios desejos.

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Os discursos que ouvia em sala de aula, da graduação ao mestrado em

direito, e que ainda ouço e leio nas doutrinas, tribunais e nos discursos de

meus colegas professores de Direito é o mesmo de Platão, substituindo apenas

o filósofo pelo jurista. O jurista seria o homem que, por um saber legal,

doutrinário e jurisprudencial adquirido nos cinco anos de sua graduação,

estaria acima dos mortais comuns, seria a voz da razão pública a ser imposta

sobre as emoções privadas dos homens comuns, o virtuoso da boa moral.

Porém, é preciso fazer jus à racionalidade que se lhe impõe, negando toda e

qualquer afetação particular na aplicação da lei. O bom jurista, o digno da

missão, é aquele que aplica a lei pela lei, sem distorcê-la com as suas

ideologias, desejos, afetos ou qualquer outro critério de decisão ou

interpretação que não a própria lei ou, quando muito, a razão. O jurista é a

razão objetiva e boa personificada, ao passo que os não-juristas seriam os

passionais e subjetivos a serem domados.

A razão consagrada pelos juristas pouco tem a ver com o que se chama

de razão no discurso filosófico. Não se trata de uma habilidade ou capacidade

cognitiva a serviço do homem em busca da descoberta da verdade ou o

repositório de verdades aprendidas em mundos metafísicos. O racional do

jurista é a repetição do discurso aprendido nos livros de doutrina e reforçado

em inúmeras decisões e discursos em salas de aula e audiências. O jurista

racional é mais um submisso ao consagrado entre os juristas do que um bom

pensador. É alguém que cala, portanto, não apenas os desejos, mas também a

própria razão como capacidade de emitir juízos qualificados.

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A subjetividade acaba sendo mais do que algo incerto como princípio ou

singular em demasia, é falta de virtude, má atitude moral na aplicação do

Direito, algo a ser combatido e cuja ocorrência deve ser negada ou, quando

todas as evidências tornem difícil tal empreitada, lamentada.

Percebi que a oposição entre subjetividade e objetividade no discurso

jurídico e suas consequências morais era raciocínio mal ajambrado. A hipótese

da objetividade pressupunha um modelo idealista, platônico, que tanto filosófica

como sociologicamente dificilmente é sustentável. Pretender que cinco anos de

textos decorados torne alguém imune aos próprios afetos e influências sociais

chega a ser ingenuidade. Por outro lado, tomada a subjetividade neste sentido

comum, caso ela seja, de fato aleatória e incerta, dificilmente seria objeto válido

de investigação.

Passei a investigar a tal subjetividade com o especial fim de demonstrar

a meus pares que ela não é sinônima nem de singularidade e tampouco de

aleatoriedade comecei, como quase todo mundo no campo jurídico, com a

atenção voltada para os grandes discursos metafísicos. Passei às instituições

com Foucault – sobre cuja obra me debrucei durante o mestrado -, delas aos

campos sociais com Bourdieu. Estava, assim, sem muita consciência do fato,

caminhando cada vez mais para junto da Psicologia Social. Foi a partir de

Moscovici (2012), primeiro autor da Psicologia Social com quem tive contato,

que acredito ter encontrado a última peça a ser compreendida nessa intrincada

trama de compreensão da subjetividade dos juristas: o indivíduo socialmente

considerado.

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Acredito que uma vez que se possa preencher a incerteza do sentido

comum de “subjetivo” pela certeza das relações sociais e de seus efeitos

normativos na formulação de juízos morais, poderemos compreender como o

discurso jurídico se permite afirmar, em abstrato, uma ética de princípios de

base humanista, valorizando a vida como o maior bem a ser protegido e a

igualdade como fundamento da aplicação do Direito e, ao mesmo tempo,

propiciar práticas de exclusão social e flagrante desrespeito à vida de alguns.

Organização da tese

Esta tese se propõe a investigar as representações sociais de juristas -

indivíduos que pela sua formação acadêmica em direito e atuação profissional

em alguma função típica de bacharéis em direito, como juiz, promotor,

advogado, compõe o que Bourdieu (1986) denomina de campo social do direito

- sobre criminosos, em especial dos criminosos violentos, daqueles que

Lombroso (1983) denominava criminosos natos. Alguém cujo crime não é tido

apenas como uma atitude reprovável, mas como um traço de sua natureza má.

As representações de não-juristas também são analisadas por nos servirem

como contraponto.

A investigação não é linear, mas construída a partir de quatro estudos

empíricos paralelos, ou seja, os dados produzidos por uma delas não alimentou

as outras. Seus formatos de apresentação não são uniformes, sendo cada uma

destas pesquisas redigida com o objetivo de ser publicada na forma de artigo

em revistas científicas diversas, o que nos obriga a adequar cada texto às

normas de publicação do periódico visado.

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O referencial teórico comum aos quatro estudos é a teoria das

representações sociais de Moscovici (2012) e, secundariamente, o conceito de

“acumulação da violência” de Misse (1999), a teoria do “bode expiatório”

deFauconnet (1928) e Girard (2004).

O primeiro destes estudos, intitulado “A beleza e a inocência: juristas e

suas representações sobre criminosos, uma investigação a partir de retratos

falados”, teve como objetivo verificar se a aparência de um acusado pode

interferir em julgamentos criminais. O método foi pouco usual. Criamos 16

retratos falados utilizando o software FACES 4.0. Estas imagens foram

qualificadas por um grupo de 46 participantes que lhes atribuíram valores para

a beleza, posição social e indicaram sua idade. Em seguida, as imagens foram

apresentadas a um grupo de 129 juristas que deveriam apontar quais deles

seriam o autor e a vítima de um dentre cinco crimes (homicídio, sequestro,

tráfico, estelionato e crimes sexuais). Os resultados apontam relação direta

entre feiura e atribuição de periculosidade, indicando que para juristas a

aparência é um elemento da representação social do criminoso e que isto pode

de fato influenciar seus julgamentos. Este trabalho já foi publicado no número

11 da Desigualdade & Diversidade: Revista do Departamento de Ciências

Sociais da PUC-Rio (Pompeu & Rosa, 2012).

O segundo trata de uma investigação sobre os elementos das

representações sociais de criminosos formuladas por juristas em comparação

com as formuladas por não-juristas. Para isso, coletamos discursos de juristas

em artigos da Revista Brasileira de Ciências Criminais e dos Boletins do

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Para comparação, coletamos os

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discursos de não-juristas em comentários a uma notícia recente sobre os 20

anos transcorridos do famoso “massacre do Carandiru” postados livremente em

um portal de notícias na internet. Os dados foram submetidos a análise de

discurso e lexicográfica estatística com o software ALCESTE (Reinert, 1998).

Os resultados indicaram haver semelhanças entre juristas e não-juristas na

representação de “bandido” como um sujeito perigoso e “mau” por essência.

Divergem, porém, na forma de sua objetivação. Enquanto os não-juristas os

apontam como assassinos, estupradores e ladrões, os juristas se referem a

corruptos, políticos e empresários. Esperamos publicá-lo na Revista Brasileira

de Ciências Criminais, o mesmo periódico que serviu de fonte de parte dos

dados analisados.

O terceiro estudo igualmente procura compreender as distorções entre a

criminalização de uma conduta e os efeitos criminantes e incriminantes

advindos deste mesmo fato. Queríamos compreender os porquês de, apesar

de uma conduta ser criminalizada, às vezes seu autor não é estigmatizado

como bandido, ainda que recaia sobre essa conduta grande reprovação moral.

Considerando a existência de uma representação social de bandidos, o que

investigamos aqui são seus limites, as condições metassistêmicas que

influenciam na aparição da representação em falas e atitudes diante de crimes

graves e chocantes. Para tanto, analisamos as representações sociais de não-

juristas a partir de comentários em portais eletrônicos de notícias sobre os

autores de dois crimes noticiados, uma injúria racial e o homicídio culposo de

um bebê. Ambos crimes de grande repercussão nos meios publicados –

considerado o grande número de comentários -. Os dados foram igualmente

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analisados duas vezes por métodos diferentes (Nascimento &Menandro, 2006),

análise tradicional do discurso (Bardin, 2006) e análise lexicográfica estatística

com o auxílio do software ALCESTE (Reinert, 1998). Constatamos que apesar

do indutor das respostas dos participantes serem notícias de crimes, os

sujeitos incriminados não foram representados como criminosos ou “bandidos”.

Este dado nos permitiu reforçar as conclusões obtidas nos trabalhos anteriores

de que a estigmatização de alguém como bandido tem mais a ver com sua

origem social, aparência e outras formas de objetivação do que com o crime

efetivamente praticado. Condena-se por quem o criminoso é e não pelo que

fez. Este trabalho será submetido à revista Arquivos Brasileiros de Psicologia,

do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

No último estudo, intitulado “Representações sociais dos juízes sobre

criminosos na jurisprudência do STJ” investigamos as mesmas representações

sociais de bandidos, desta vez nas decisões judiciais do Superior Tribunal de

Justiça. Sua escolha como fonte de decisões a serem analisadas se deve ao

fato de seu papel na organização judiciária brasileira ser o de receber decisões

judiciais produzidas em todo o país. O que justifica esta quarta investigação é a

observação de Bourdieu (1986) sobre a organização social do trabalho no

campo jurídico, dividido em dois grandes subcampos sociais aparentemente

heterogêneos e antagônicos, mas de fato complementares na manutenção do

monopólio de decidir legitimamente sobre os conflitos sociais, os subcampos

dos acadêmicos do direito e dos práticos do direito apresentam muitas vezes

pontos de vista antagônicos com relação a questões jurídicas. Considerando

que o campo acadêmico foi objeto de investigação no segundo artigo desta

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tese, nos pareceu necessário investigar as representações sociais dos

bandidos por parte do subcampo social dos práticos do direito para eventuais

cotejos. A análise dos dados foi realizada com o auxílio do programa de análise

qualitativa de dados MAXQDA (Kuckartz, 2007). Os resultados demonstram

que juízes da área civil representam os criminosos de forma diferente dos

juízes criminais. Enquanto as representações sociais dos criminalistas

coincidem com as dos juristas investigados na segunda pesquisa, as dos juízes

civis coincidem com as dos não-juristas analisadas no mesmo trabalho. As

normas técnicas de apresentação deste artigo são as referentes à revista

Direito GV, para a qual o artigo será submetido.

Pela forma de coletânea de artigos que esta tese adotou, a referência

bibliográfica de cada um dos estudos vem ao seu final, observadas as normas

de publicação requeridos pelas revistas para as quais se pretende enviá-los. As

referências bibliográficas apresentadas ao final da tese são referentes apenas

a esta apresentação e à conclusão.

Referências teóricas

Violências acumuladas

Como aponta Zaluar (1999), a violência é um tema de difícil

conceituação. Refere-se, a princípio, a um modo exagerado ou ilegítimo de uso

de força onde tanto a ideia de força potencialmente violenta quanto a dos

limites entre o adequado e o exagero ou o legítimo e ilegítimo de seu emprego

são imprecisos. A violência não é um objeto natural, mas social. O

reconhecimento de uma ação como violenta dependerá da percepção variável

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– histórica e culturalmente - da perturbação ou do sofrimento que esta ação

infligirá a um grupo social específico (Zaluar, 1999, p. 8). É pelos efeitos

sentidos e percebidos, pelas suas representações sociais, e não pela natureza

ou qualidade da ação em si que a violência é significada.

O fato de ser representacional requer que toda compreensão da

violência e de seus efeitos seja realizada a partir de sua gênese, onde fatos e

suas representações sejam relacionados. Dentre os poucos estudos

conduzidos com essa preocupação, merecem destaque os de Misse (1999,

2008 e 2010) e o de Zaluar (1985) que descrevem o que Misse conceituou

como o processo histórico de “acumulação social da violência” (p. 46). Trata-se

do desenvolvimento de uma representação social da violência como efeito das

profundas transformações sociais ocorridas no Rio de Janeiro, mas que pode

ser tomado como paradigma da violência urbana de todo o Brasil, a partir dos

anos 50 e que acabaram por produzir as condições de possibilidade para a

emergência de grupos de justiçamento como os Esquadrões da Morte dos

anos 70 e o comércio armado do narcotráfico nas favelas cariocas e milícias

dos dias atuais (Misse, 2008).

Fenômenos sociais reativos que combatem violências diversas com

outras tantas formas de violência. Os atores destas violências se

enfrentamsem que necessariamente percebam que desenvolvem ao longo

desse processo um verdadeiro ethos de classe, “um sistema de valores

implícitos que as pessoas interiorizam desde a infância e a partir do qual

engendram respostas a problemas extremamente diferentes” (Bourdieu, 2003,

pp. 238-239). Esse ethos facilmente reconhecido em grupos sociais de

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operadores de violência como traficantes e milicianos, também pode ser

encontrado de forma difusa na sociedade e que emerge na forma de apoio

social a operações policiais violentas, ao extermínio de “bandidos” e, de forma

mais extrema e direta, em linchamentos (Souza, 2005; Menandro& Souza,

1991). Trata-se da representação de um “nós” em confronte de vida ou morte

contra um “eles”, os “bandidos”. Misse define “bandido” como sendo:

o sujeito criminal que é produzido pela interpelação da polícia, da

moralidade pública e das leis penais. Não é qualquer sujeito incriminado,

mas um sujeito por assim dizer „especial‟, aquele cuja morte ou

desaparecimento podem ser amplamente desejados. Ele é agente de

práticas criminais para as quais são atribuídos os sentimentos morais

mais repulsivos, o sujeito ao qual se reserva a reação moral mais forte e,

por conseguinte, a punição mais dura: seja o desejo de sua definitiva

incapacitação pela morte física, seja o ideal de sua reconversão à moral

e à sociedade que o acusa. O eufemismo de „ressocialização‟ ou de

„reinserção social‟ acusa, aqui, por denotá-la, a „autonomia‟ desse

„sujeito‟, e paradoxalmente a sua „não sujeição‟ às regras da sociedade.

(2010, p. 17).

No campo jurídico, esta perspectiva do criminoso como alguém

estigmatizado e tendo como consequência o funcionamento da justiça criminal

segundo as normas sociais geradas em torno desta estigmatização é referida

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como labeling approach, em referência à doutrina sociológica americana

fortemente influenciada pela obra de Becker (1963), segundo a qual

o desvio - e a criminalidade - não é uma qualidade intrínseca da conduta

ou uma entidade ontológica pré-constituída à reação (ou controle) social,

mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através

de complexos processos de interação social; isto é, de processos

formais e informais de definição e seleção (Andrade, 1997, p. 205).

A denúncia da criminalização de condutas a partir de injustos processos

sociais de “definição e seleção” ou de estigmatização, como prefere Misse

(1999) e Goffman (2008), dá o tom atual dos trabalhos da chamada

criminologia crítica (Schecaira, 2012; Batista, 2011; Baratta, 2002;

Hulsman&Celis, 1982; Cervini, 1993). Estas análises nem sempre abrangem a

crítica aos processos de criminação – que pressuporia uma aproximação da

criminologia da metodologia de interpretação e aplicação das leis – e dos de

incriminação – possíveis a partir de uma sociologia da prática do direito, como

propõe Bourdieu (1986) ou de estudos de casos concretos de processos

jurídicos de incriminação -. Com isso, o resultado é apenas a rejeição de

estigmas e rótulos como “bandido” a partir de sua definição, pejorativamente

significada, como elemento do “senso comum”, sem uma necessária autocrítica

dos princípios, práticas, valores e representações que alicerçam as práticas de

poder do campo jurídico. Na prática, isso resulta mais na rejeição da expressão

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“bandido” no vocabulário jurídico do que na negação da ideia da existência de

pessoas de má índole, sua associação a determinado grupo social e suas

consequências para os processos de criminação e incriminação.

Estigmas e bodes expiatórios

Segundo Goffman (2008), estigma é uma forma de atribuir uma

“identidade deteriorada” a outro - no sentido original da palavra grega estigma,

como uma marca corporal que identifica criminosos, escravos ou traidores -,

um modo de representar negativamente alguém ou uma realidade qualquer,

com consequências sociais negativas, tais como práticas de exclusão. Por

estas consequências serem contrárias às imagens de uma sociedade justa e

solidária, chamamos as ideias que as sustentam de erradas.

Muitas vezes, para combatermos estigmas, simplesmente tentamos

demonstrar que eles não são lógicos, que as ideias que os sustentam são

falsas ou que são o resultado de pensamentos tortos. Faz-se a denúncia na

esperança de que, uma vez demonstrada alguma verdade, uma vez

restabelecida a lógica ou o pensamento metódico, o estigma desapareceria.

Não é o que acontece, pois o estigma pode corresponder a uma “lógica”

própria do grupo, um modo particular de se representar pessoas, atribuindo-

lhes significados e valores e tomando posições discriminatórias “justificadas”

segundo esta mesma “lógica” particular.

A socialização, com tal grau de identificação do indivíduo e efeitos, não

necessita de uma grande influência ou provocação para acontecer.

Tajfel(1983), num experimento clássico de psicologia social, dividiu um grupo

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de voluntários em dois grupos, criados a partir de suas opiniões sobre arte

abstrata, no caso, amantes de Kandinsky e de Paul Klee. Ambos os artistas

são ícones do movimento Bauhaus, da Alemanha dos anos 30, e para um leigo

em história da arte suas obras são confundíveis. Separados por gosto artístico,

foi solicitado a alguns indivíduos que distribuíssem para membros dos grupos

tarefas chatas e interessantes. Os participantes tenderam a favorecer pessoas

ligadas ao seu próprio grupo. Entrevistados, deram descrições negativas dos

pertencentes ao outro grupo e tenderam a avaliar positivamente os de seu

próprio grupo. Em resumo, identificaram-se como pertencentes a um grupo e

passaram a protegê-lo e a seus membros como se protegessem a si mesmos

e, por outro lado, desenvolveram estigmas com relação aos do grupo

antagônico, também como uma forma de autoproteção e autopromoção.

O que esta pesquisa nos permite concluir é que precisamos de muito

pouco para que nos identifiquemos com um grupo de pessoas e passemos a

nos diferenciar de outras. Repare que a experiência de Tajfel demonstra que o

processo de socialização, facilmente ativável, implica em construção de

imagens ou representações tanto do próprio grupo quanto de nós mesmos

como membros do grupo. Do mesmo modo, também se representa outros

grupos e seus membros, mas essa representação, por si só, não significa

aquilo a que chamamos de preconceito. As consequências desta

representação que nos separa em “nós” e “eles” ocorrem com relação a todo e

qualquer processo de socialização, mas uma rápida observação nas relações

sociais nos permite perceber que nem sempre estas diferenciações significam

atitudes violentas, de exclusão ou humilhação de outros. Mas então o que falta

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ao processo de socialização para que não apenas representações sejam

formadas, mas também estigmas e preconceitos?

Uma experiência dos anos sessenta é bastante reveladora do

comportamento grupal e processos de estigmatização (Sherif, Harvey, White,

Hood &Sherif, 1961). Num campo de férias para jovens, os pesquisadores

criaram dois grupos. Num primeiro momento, foi observado como estes grupos

criaram mecanismos internos de funcionamento e organização próprios,

demonstrando, assim, o surgimento de uma identidade coletiva. Num segundo

momento, estes dois grupos foram lançados em competições entre si. O

resultado foi o recrudescimento das posições identitárias, com o surgimento de

estereótipos positivos com relação aos membros do próprio grupo e negativos

com relação aos do outro. Desunidos os jovens, era preciso uni-los novamente.

Tentaram mesclar os dois grupos. Não funcionou. Concorrendo entre si na

formação de novas regras internas de funcionamento, eles continuaram a

identificar-se como grupo A ou B e a aliar-se e favorecer aqueles que

pertenceram a seu grupo original. Numa segunda tentativa, incluíram novos

jovens que não passaram pela experiência de pertencer a nenhum dos grupos

originais. Também não deu certo, rapidamente eles foram “incorporados” às

identidades dos grupos originários. Numa terceira tentativa, criaram um novo

grupo C, com quem os demais deveriam competir. Funcionou. Os estereótipos

e preconceitos foram amenizados. Em suma, para unir a todos e acabar com

os efeitos negativos dos estereótipos e o ódio entre pessoas de um mesmo

grupo, só o ódio por pessoas de um terceiro grupo. Um afeto combatendo um

afeto.

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Fazemos essa troca o tempo todo. Odiamos vilões de novelas e filmes

que atormentam a pobre mocinha, transferimos para eles o ódio que ameaça a

nossa união e vida em sociedade. São verdadeiros bodes expiatórios

simbólicos. Quando essa transferência ocorre com personagens da ficção é

ótimo, o problema é quando transferimos para pessoas próximas e mais fracas,

como mulheres subjugadas por maridos, filhos (violência doméstica) ou

empregados (assédio moral).

A teoria do bode expiatório(Fauconnet, 1928; Girard, 2004, 2008) afirma

que sentimentos que prejudicam ou ameaçam a estabilidade social são

expurgados pela punição sacrificial de um bode expiatório, que pode ser um

criminoso, uma virgem ou um animal, algo ou alguém importante o bastante

para a sociedade para que possa exercer sobre o grupo um efeito catártico, um

expurgo dos sentimentos negativos pelo espetáculo da punição ou sacrifício.

Isto significa, por exemplo, que a grande comoção social em torno de alguns

crimes cumpre um papel social de pacificação e fortalecimento dos vínculos

sociais. Também significa que o sistema penal possui não só o papel de

inibidor de crimes pela punição dos criminosos, mas também o de reforçador

dos laços sociais quando dos rituais de julgamento e punição. Também há um

lado perverso nisso. O expurgo dos afetos negativos acontece independente da

culpa ou não do sacrificado, ou seja, qualquer um pode ser utilizado como bode

expiatório, qualquer um que seja apresentado pelas autoridades como culpado,

independente de uma investigação ou julgamento, já é o suficiente para ativar

os ânimos e pedidos de punição ou linchamentos. Outro aspecto negativo é a

conversão de presos em bodes expiatórios, cujo sofrimento é bem-vindo e, de

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certa maneira, pedido, como forma inconsciente de expurgo. O que se infere

das teorias sobre o bode expiatório como explicação da função social dos

sistemas punitivos é que em torno da violência ocorrem processos de

significação e estigmatização com efeitos perversos para com os sujeitos

estigmatizados, mas também com consequências positivas para a manutenção

de relações sociais, ainda que injustas.

Representações sociais

Em 1898 Durkheim (2004) publicou “Representações individuais e

representações coletivas” na Revue de Métaphysique et de Morale. Trata-se de

um debate travado com os sociólogos biologistas que defendiam, tal qual os

filósofos contratualistas dos séculos XVII como Thomas Hobbes e John Locke,

que a natureza humana seria a base de toda a constituição social. Durkheim,

ao contrário, tenta demonstrar a autonomia relativa entre indivíduo e

sociedade. Se, por um lado, considerando que toda sociedade é formada por

uma coletividade de indivíduos, não é tão absurdo supor, como os naturalistas

o faziam, a existência de alguma influência de fatores individuais na

constituição do coletivo. Por outro lado, também não é menos plausível que a

sociedade também influencia o indivíduo. O fundamento principal de sua crítica

aos biologistas está na relação de causalidade que atribuem entre

representações individuais – constituídas a partir de imperativos biológicos – e

a vida social. Opõe a esta visão uma dupla implicação entre a natureza

representacional da mente humana e a influência social ou, como prefere

Durkheim, de epifenômenos sociais na constituição das representações – por

sua origem social, coletivas - de um indivíduo.

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Este conceito foi o ponto de partida para a obra inaugural da Teoria das

Representações Sociais de Serge Moscovici (2012), sobre a “Psicanálise, sua

imagem e seu público”. Na definição célebre de Jodelet (1989 p. 36): as

representações sociais são “uma modalidade de conhecimento, socialmente

elaborada e compartilhada, com um objetivo prático e contribuindo para a

construção de uma realidade comum a um conjunto social”. Fiel a Durkheim, as

representações sociais são pensadas por Moscovici como um saber que,

apesar de socialmente estruturado, atua como estruturante da realidade

percebida e de tomadas de posição frente essa realidade por um indivíduo.

Sua relação entre exterior e interior da mente humana ou entre práticas e

representações sociais, portanto, não é de causalidade, mas de dupla

implicação. Esta reciprocidade, no entanto, não pode ser pensada em termos

de equivalência dessas duas forças, como defende Rouquette (2000).

Por um lado, a afirmação de que o comportamento é influenciado por

representações sociais não implica em fazer dessa representação algo que

esteja acima da capacidade de cálculo e reflexão do sujeito. Ela não é a

negação da autonomia do sujeito - tal como defendia Descartes, por exemplo -,

mas a negação da autonomia absoluta do sujeito racional. Não se trata de um

sujeito que a cada ato de pensamento inaugura toda a sua estrutura de

cognição, mas de um sujeito que pensa a partir de algo já pensado, de algo já

estruturado no pensamento, de uma representação social, conservando, no

entanto, potencial para alterá-la ou não, para agir como um autômato

representacional ou como um sujeito de fato. Para Rouquette (2000), as

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representações seriam apenas uma “condição de coerção variável” (p. 44) do

comportamento.

O que tornaria uma representação social mais ou menos coercível seria

não sua natureza ou forma de sua estruturação, mas o ambiente social no qual

foi construída e é mantida. Há campos sociais que são muito rígidos na

manutenção de seus valores com relação aos seus próprios sujeitos. Outros,

mais flexíveis e tolerantes. São as ações coercitivas dos membros de um grupo

que causam maior ou menor grau de coação de uma representação social em

determinado sujeito. De fato, não são as representações que são coercitivas,

mas o ambiente social. Claro que essa coercibilidade do ambiente social

dependerá não apenas das práticas dos sujeitos do grupo, mas da relação que

há entre o sujeito coagido e o grupo coator. Por exemplo, os dogmas religiosos

de uma comunidade rígida são mais constrangedores e cobrados de seus fiéis

do que dos descrentes; por sua vez, o dogma religioso que é tão constrangedor

para o fiel, para o descrente pouco constrange, ainda que submetido às

mesmas práticas de reprovação social pela sua inobservância do dogma. Por

estes motivos, Rouquette (2000) conclui que:

não é mais exato dizer, sem outra precisão, que „as representações

sociais e as práticas se influenciam reciprocamente‟, uma vez que não

se trata de reciprocidade; para uma maior informação, convêm tomar as

representações como uma condição das práticas, e as práticas como um

agente de transformação das representações (p. 44).

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A natureza social das representações implica que não há representação

social eterna e nem universal, sendo ela sempre a representação de algum

objeto formulada por determinado grupo em determinado momento. São

construídas e se transformam através de processos comunicativos entre os

participantes de um determinado grupo ao longo do tempo, mas isso não

significa que elas coincidam com aquilo que se diz acerca de determinado

objeto valorado e significado. As representações sociais não são um discurso,

ainda que possam ser expressas discursivamente e a ordem dos discursos

seja, em boa medida, um de seus efeitos. Elas são um saber - uma modalidade

de conhecimento, como prefere Jodelet (1989) - que organiza e estrutura a

percepção de um sujeito. Discursos e atitudes são seus efeitos, não sua

natureza revelada. Isto implica que a compreensão das representações sociais

exige mais do que a apreensão dos discursos dos sujeitos de um campo social

acerca de determinado objeto. É necessária a compreensão de como esse

discurso se adequa a práticas, a ações, a comportamentos e em quais

circunstâncias práticas elas se transformam e a partir de qual processo

histórico e metassistemas elas são formadas e se transformam.

Jodelet (2008 p.50 e ss.) defende que os estudos sobre Representações

Sociais devem contemplar três “esferas de pertinência”. Considerando que a

representação social é sempre a representação de um sujeito e de um objeto e

que tanto um como outro devem ser pensados a partir de suas características

inter-relacionais, ou seja, a partir de um sujeito pensante que seja um ator

social inserido numa série de conflitos, identidades e posições relacionais; e de

um objeto que tem seu significado e valor definido a partir da forma como é

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representado por um determinado sujeito. Em suma, todo estudo sobre

representações sociais deveria levar em conta tanto os fatores intersubjetivos -

o campo social e as relações dos sujeitos estudados com outros sujeitos desse

campo e estranhos - quanto os subjetivos - os sujeitos entrevistados e seus

discursos e atitudes em determinada situação - e os transubjetivos - os fatos,

processos de comunicação e acontecimentos atuais e históricos que

singularizam o espaço público de relações no campo social -.

Abric (1994) é um dos expoentes da perspectiva estruturalista da teoria

das representações sociais. Ele defende a tese de que as representações

seriam constituídas por uma série de informações, crenças, opiniões e atitudes

organizadas e estruturadas acerca de um objeto (Abric, 1994. p. 19). Estes

elementos se estruturam em torno de um núcleo central da representação

social formando um duplo sistema de organização e funcionamento da

representação: central e periférico que, apesar de distintos e relativamente

independentes, funcionam como complementares entre si.

O sistema central ou núcleo central é composto pelos elementos

essenciais da representação, histórica e socialmente construídos, e que

constituem o seu sentido fundamental. “É a base comum propriamente social e

coletiva que define a homogeneidade de um grupo através dos

comportamentos individualizados que podem aparecer como contraditórios”

(Abric, 1994. p. 28). O sistema periférico, por sua vez, é determinado mais

diretamente pelos aspectos individuais e circunstanciais do indivíduo e de sua

relação imediata com o objeto. Ele tem a função de permitir a adaptação da

representação social a circunstâncias e subjetividades singulares, atuando,

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consequentemente, como um dispositivo de proteção do núcleo central. Em

suas funções complementares, o núcleo central contém os elementos

essenciais da representação em torno dos quais todo o sistema periférico se

organiza, de maneira que a qualquer mudança nas circunstâncias ou no sujeito

que poderiam por em cheque a permanência da representação, o sistema

periférico se transformaria, seja por uma nova organização de seus elementos

ou pela transformação destes elementos, com vista à manutenção do núcleo

central. Esta perspectiva estrutural implica na ideia de que as representações

possuem certa resistência pelo fato de ser, em parte, flexível o bastante para

adaptar-se a novas circunstâncias.

Segundo Abric (1994), quatro seriam as funções das representações

sociais. a)Função de saber, que corresponde ao papel de critério de

organização e mesmo de constituição da realidade desempenhado pelas

representações sociais, como vimos acima. b)Função identitária que “define a

identidade e salvaguarda a identidade do grupo” (Abric, 1994. p. 16). c)Função

justificadora, que permitiria justificar a posteriori o comportamento e tomadas

de posição de elementos do grupo. d) Por último, uma função de orientação de

comportamento e práticas.

Moscovici (2012) nos lembra que “a lógica, acima de tudo, estabelece as

leis do pensamento; mas não tem vocação de impô-las ao pensador” (p. 225).

Nem poderia se o quisesse. A forma natural do pensar não é restrita a um

único sistema cognitivo. Somos capazes de pensamentos lógicos ou

metodicamente estruturados, ao ponto de fazer inveja a personagens como

Auguste Dupin ou Sherlock Holmes, mas também somos capazes de estruturar

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pensamentos de formas singulares, cheias de contradições, atalhos,

inconsistências e outros atentados à lógica. Nossa condição cognitiva natural é

o de “polifasia cognitiva” (p. 258) que segundo Jovchelovitch (2004)

corresponde a “um estado em que registros lógicos diferenciados inseridos em

modalidades diferentes de saber coexistem em um mesmo indivíduo, grupo

social ou comunidade” (p. 20). A formação e modos de manifestação de um

destes “registros lógicos”, na forma de um discurso específico que anuncia um

modo particular de representação de alguma coisa por alguém e traça suas

correlações, inferências e consequências, depende de fatores sociais. Conclui

Moscovici:

o mesmo grupo e, mutatis mutandis, o mesmo indivíduo são capazes de

empregar registros lógicos variáveis em campos que abordam com

perspectivas, informações e valores característicos de cada um. O

recurso a um dos termos desse registro depende em definitivo:

I) do grau de estudo e de domínio do ambiente objetivo particular;

II) da natureza das comunicações, das ações e dos resultados

visados (influenciar a conduta, descobrir a verdade etc.);

III) da interação entre a organização atual do sujeito coletivo ou

individual e o grau de diferenciação do meio social ou físico. (2012, p.

258)

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Estes três fatores apontados por Moscovici são ambientais ou sociais.

Significam dizer que o modo particular de se pensar e de manifestar esse

pensamento por alguém o é um ato influenciado pelo modo particular deste

indivíduo relacionar-se com um grupo social específico. Sempre que nos

manifestamos estamos a nos afirmar como pertencentes a um grupo social

qualquer e, nesta posição, resguardamos os valores característicos deste

grupo e refutamos os que lhes sejam contrários. Alteramos a “lógica” do

discurso, sua ordem, relacionando seus temos de modo a garantir valores

sociais segundo nosso domínio do ambiente, a natureza da comunicação, e a

interação entre a organização social e o grau de diferenciação do meio. Em

resumo, ninguém se manifesta, como pressupunha Descartes e boa parte dos

filósofos modernos dos séculos XVI a XVIII, apenas como indivíduo, com sua

razão isolada do meio social em que se insere, antes cada indivíduo é porta-

voz do grupo com o qual se identifica.

O pensar bem e o pensar mal, num contexto social, nada tem a ver com

a lógica no sentido filosófico de correção do pensamento que lhe é comumente

atribuído, mas com a aceitabilidade do discurso produzido em razão de sua

adequação para com as formas comungadas pelos que pertencem a

determinado grupo. Entre os que pertencem a um grupo, certas formas de se

representar objetos específicos e relacioná-los a outros objetos, atitudes e

valores, são comungadas. Manifestar-se segundo essas formas de relação e

representações é, para este grupo, o modo correto, lógico e coerente de se

pensar.

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O que a teoria das representações sociais nos franqueia nesta tese é o

acesso a um mundo de discursos constituídos pelas circunstâncias sociais e

metassistemas, assim como as verdades, realidades, tomadas de posição e

julgamentos em torno do fenômeno social da violência acumulada.

Pensamentos e atitudes reativas à criminalidade que tanto as assusta e cujas

consequências podem ser perversas para aqueles que Foucault (1994)

chamou de infames. Literalmente os sem fama e, portanto, que não

conseguem se fazer notar. Aqueles cujas vidas obscuras são registradas em

poucas linhas ou páginas de processos criminais a serem esquecidos em

depósitos judiciais.

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II) ESTUDOS

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2.1 A beleza e a inocência: juristas e suas representações sobre criminosos, uma investigação a partir de retratos falados

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A beleza e a inocência: juristas e suas representações sobre criminosos,

uma investigação a partir de retratos falados

The beauty and innocence: lawyers and their representations of criminals,

an investigation starting from criminal sketches

Resumo:

Procuramos verificar se a aparência pode interferir em julgamentos criminais

realizados por juristas. Criamos 16 retratos falados utilizando o software

FACES 4.0. Estas imagens foram qualificadas por um grupo de 46

participantes que lhes atribuíram valores para a beleza, posição social e

indicaram sua idade. Em seguida, as imagens foram apresentadas a um grupo

de 129 juristas que deveriam apontar quais deles seriam o autor e a vítima de

um dentre cinco crimes (homicídio, sequestro, tráfico, estelionato e crimes

sexuais). Os resultados apontam relação direta entre feiura e atribuição de

periculosidade. Isto indica que para juristas a aparência do criminoso é um

elemento de sua representação social.

Abstract:

We seek to verify whether the appearance may interfere in criminal trials

conducted by lawyers. We created 16 sketches using FACES 4.0 software.

These images were classified by a group of 46 participants assigned values to

them for beauty, social position and indicated their age. Then, the images were

presented to a group of 129 lawyers who should point out which of them was

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the author and victim of one of five crimes (murder, kidnapping, trafficking,

Larceny by trick and sex crimes). The results show a direct relationship

between ugliness and dangerousness assignment. This indicates that for

lawyers, the appearance of criminal is an element of its social representation.

Palavras-chave: representações sociais, juristas, criminoso, aparência,

preconceito.

Keywords: social representations, lawyers, criminal, appearance, prejudice.

Introdução

Em 1871 foi publicado L‟Uomo delinquente, de CesareLombroso (1983).

Obra fundamental da então chamada Antropologia Criminal que propunha uma

mudança de enfoque nos estudos criminais. Para aqueles cientistas, o crime

era considerado não como o resultado de uma má deliberação moral, mas

como um evento natural. Atitude provocada por um instinto primitivo que

insistiria em permanecer, apesar da evolução da espécie humana. Um

atavismo, um percalço no processo evolutivo que, com o tempo, provavelmente

seria eliminado. Para os defensores de tal tese, os criminosos teriam um

padrão racial, como os cães o têm de forma mais ou menos clara. O combate

científico e eficiente ao crime deveria se dar pela detecção deste padrão racial,

indicativo de alguém mau por natureza, e a sua retirada do convívio social.

Denunciado como equivocado e eugenista, o trabalho de Lombroso

tornou-se exemplo de erro científico. Sua aparição hoje em manuais de

criminologia ou de direito penal tem a função de alertar aos novos juristas de

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que as ciências do homem que não levam em conta os fatores sociais podem

servir a grandes injustiças. Apesar da unanimidade com que a tese

lombrosiana é refutada, as estatísticas sobre o sistema penitenciário brasileiro

parecem corroborar a hipótese de que exista um “criminoso nato”. Segundo o

Ministério da Justiça (InfoPen/MJ, 2008), os presos brasileiros são homens

(93,37%), negros ou pardos (58,13), entre 18 e 29 anos (57%) e não possuem

o ensino fundamental (52,43%).

Se essa tese eugenista é equivocada, então por que o padrão? Por que,

analisando o modo particular como as pessoas imaginam e descrevem

criminosos ou os dados sobre a população carcerária, um padrão parece se

desenhar diante de nossos olhos? O próprio Lombroso, questionado já no seu

tempo quanto à inexistência de um criminoso nato, desafiou (Archives

d‟AntropologieCriminelle, 1896, p. 491, citado por Darmon, 1991):

Aos que objetariam que o tipo criminalóide não existe, peço

simplesmente que façam a seguinte experiência: tomem 40 fotografias

de criminosos natos e 40 fotografias de gente honesta, façam com que

sejam analisadas por pessoas incultas e que não sabem nada de

antropologia, e essas pessoas perceberão, pelo simples aspecto da

fisionomia, os criminosos entre os honestos (p.107).

Uma resposta a este desafio vem de Lacassagne (citado por Darmon,

1991, p.83), antropólogo contemporâneo de Lombroso, que acreditava que o

padrão seria resultado de atitudes criminalizadoras por parte dos agentes da

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justiça criminal, cujos olhares perceberiam criminosos preferencialmente em

algumas classes de indivíduos. Esta mesma explicação é encontrada nos

trabalhos da chamada criminologia crítica (Rauter, 2003; Baratta, 2002;

Shecaira, 2012; Malaguti, 2011; Hulsman&Celis, 1982; Cervini, 1993), com a

diferença de que, enquanto Lacassangne atribuía o critério seletivo à

sociedade, os criminólogos críticos a atribuem aos responsáveis pela

criminalização de condutas, ou seja, legisladores que produziriam leis

enviesadas para a maior punição de pobres.

Outra explicação para este fenômeno – e que não exclui a primeira –

seria a existência de uma seletividade não apenas nos processos de

criminalização, mas também nos de criminação – entendida como a atribuição

de sentido e valor às normas – e de incriminação – a responsabilização efetiva

de alguém por um crime – (Misse, 2008, p. 379). Ambos pressupõem que os

responsáveis pelas decisões criminais sejam, de alguma maneira,

preconceituosos na interpretação e aplicação da lei penal e processual penal.

Misse (1999; 2008) atribui as distorções nos processos de

criminalização, criminação e incriminação ao que ele denomina de

“acumulação social da violência”. Trata-se do processo histórico de

transformação das representações da violência e de seus ícones, em especial

com relação à violência criminal urbana (no mesmo sentido, Zaluar, 1985). A

violência - algo de difícil definição posto que qualifique ações muito diversas - é

abordada por Misse a partir de seus efeitos representacionais, de tal forma que

ele a considera como o “referente da representação social de um perigo, de

uma negatividade social que é assimilada a uma seleção de práticas e agentes

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cujos cursos de ação, heterogeneamente motivados, carregariam seu signo

uniforme” (1999, p. 46). O elemento central deste processo são os “„tipos

sociais‟ de agentes demarcados (e acusados) socialmente pela pobreza, pela

cor e pelo estilo de vida. Seus crimes os diferenciam de todos os outros

autores de crime, não são apenas criminosos; são „marginais‟, „violentos‟,

„bandidos‟”. (Misse, 2010, p. 18).

A estigmatização de determinados indivíduos é forma de tornar objetivo

e manipulável o medo social difuso resultante do processo social de

“acumulação da violência”. Permite a significação - pela identificação de um

criminoso e associação de sua personalidade ao crime - e expiação do medo

desagregador gerado pela violência – através da sua punição, como o sacrifício

de um bode expiatório de nossos medos (Fauconnet, 1928 e Girard, 2008).

A influência desses efeitos estigmatizantes na prática do direito é

negada por juristas. Podem até admitir sua existência, mas isso não os

afetaria, pois eles seriam os que se prepararam ao longo de sua formação

acadêmica e da experiência adquirida na prática de seu ofício para distribuir a

justiça de forma imparcial, impessoal e justa. Admitir-se afetado de estigmas

seria ir de encontro às estratégias do campo jurídico de afirmação do

monopólio da decisão legítima dos conflitos pela construção de “um corpo de

doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e

das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento.” (Bourdieu,

1986, p. 3).

Este olhar criminalizador, próprio de profissionais do campo jurídico,

pode ser compreendido pelo que a Psicologia Social denomina de

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representações sociais (RS). Segundo definição de Jodelet (1989), as RS são

“uma modalidade de conhecimento, socialmente elaborada e compartilhada,

com um objetivo prático e contribuindo para a construção de uma realidade

comum a um conjunto social” (p. 36.).

Sua natureza social implica em que não haja representação eterna e

nem universal, sendo ela sempre a representação de algum objeto formulada

por determinado grupo em determinado momento. No caso deste trabalho, as

representações que importam são as compartilhadas por juristas. Sujeitos que

tiveram a experiência comum de cursar Direito, submetidos neste período a um

discurso humanista dominante no campo que, dentre outras características,

defende a vida, a igualdade e os direitos humanos como valores dogmáticos

(Bourdieu, 1986).

Segundo Abric (1994), expoente da perspectiva estruturalista da teoria

das RS, quatro seriam as funções das representações sociais: a) Função de

saber, que corresponde ao papel de critério de organização e mesmo de

constituição da realidade desempenhado pelas representações sociais.

b)Função identitária que “define a identidade e salvaguarda a identidade do

grupo”. c) Função justificadora, que permitiria justificar, a posteriori, o

comportamento e tomadas de posição de elementos do grupo. d) Por último,

uma função de orientação de comportamento e práticas. (p. 16).

A afirmação de que as RS orientam comportamentos e práticas não

implica em fazer dessa representação algo que esteja acima da capacidade de

cálculo e reflexão do sujeito. Ela não é a negação da autonomia, mas a

negação da autonomia absoluta do sujeito racional. Não se trata de um sujeito

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que a cada ato de pensamento inaugura toda a sua estrutura de cognição, mas

de um sujeito que pensa a partir de algo já pensado, de algo já estruturado no

pensamento, conservando, no entanto, potencial para alterá-la ou não, para

agir como um autômato representacional ou como um sujeito na acepção

moderna do termo. A própria flexibilidade das representações sociais, já é um

indicativo de que elas não podem ser consideradas critérios de

constrangimento absoluto das condutas. Para Rouquette (2000), as

representações seriam apenas uma “condição de coerção variável” do

comportamento (p. 44).

As RS seriam imagens mentais, formadas por múltiplos fragmentos ou

elementos, como prefere Abric (1994), organizados como uma ideia objetiva

ou, pelo menos, objetivável, de determinada coisa percebida por um agente de

um campo social qualquer. Em suma, as RS tem característica imagética,

apesar da possibilidade de tradução desta imagem mental em discursos Arruda

(2002, p. 136). Isto permite estudá-las de duas maneiras: 1) pela análise de

discursos, ou evocações de palavras, ou, 2) através da análise das atitudes

dos agentes frente aos objetos representados, posto que as RS, como vimos,

orientam atitudes ou se prestam à elaboração de justificativas para

determinadas atitudes do agente.

Objetivos

Considerada a possibilidade de estudo das RS a partir das atitudes dos

agentes de um campo específico diante de um objeto representado, o que esta

pesquisa visa é, a partir de retratos falados inventados, criados à semelhança

dos utilizados pelas polícias para identificação de criminosos, analisar como a

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representação social de juristas sobre o criminoso podem afetar julgamentos

baseados apenas na aparência dos sujeitos com relação aos crimes de

homicídio, sequestro, tráfico, estelionato e crimes sexuais.

Para tanto, foram realizadas duas coletas de dados com participantes

distintos. Uma primeira coleta buscou a qualificação dos retratos falados em

termos de beleza, idade e posição social do retratado. Numa segunda coleta,

as imagens já qualificadas foram apresentadas a outro grupo de participantes,

todos bacharéis em Direito, a quem se pediu que apontassem quais dos

retratados seriam o autor e a vítima de um determinado crime. Os resultados

foram analisados pelo cruzamento dos dados obtidos nas duas coletas,

levando-se em conta tanto as atribuições de autoria quanto as de vitimização.

Método

Primeira coleta: avaliando a beleza

Participantes

A primeira coleta contou com 46 participantes, 19 homens (41,3%) e 27

mulheres (58,7%), de idades entre 15 e 57 anos (M = 26; DP = 10,34).

Considerando a renda familiar informada, todos pertenciam às classes sociais

A (44%) e B (56%) (IBGE). Foram abordados aleatoriamente pelos

pesquisadores em ambientes comunitários do campus da UFES, como o

cinema, teatro, Centro de Línguas e lanchonetes.

Procedimentos

Criamos 24 retratos falados através do software FACES 4.0. Este

recurso foi escolhido por permitir a confecção de rostos com grande controle de

características como cor da pele, arqueamento de sobrancelhas etc.. Todas as

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imagens são apresentadas na mesma posição, de frente, anulando eventuais

poses que pudessem influenciar nos processos de decisão que se sucederiam.

Os retratados eram 12 homens e 12 mulheres de idades e padrões estéticos e

raciais diferentes. Todos foram confeccionados com a mesma cor de pele,

apesar de que alguns possuíam elementos, como o tipo de cabelo, por

exemplo, que poderiam sugerir que o personagem fosse negro. Visando reduzir

ainda mais a influência da cor de pele por uma maior homogeneização, as

imagens foram apresentadas em preto e branco, à semelhança dos retratos

falados tradicionais produzidos pela polícia.

As 24 imagens foram apresentadas em duas folhas, uma com

personagens masculinas e outra com femininas. Foi pedido a cada um dos

participantes, para cada uma das imagens, que: a) atribuísse uma nota de um

a cinco para a beleza do retratado, sendo um o menor grau de beleza e cinco o

maior; b) indicasse a idade do retratado e c) sugerisse o que acha que o

retratado faz da vida. O formulário apresentava o seguinte cabeçalho: Nas

galerias de foto abaixo, assinale, de acordo com sua opinião, qual nota, de um

a cinco, atribui à beleza do(a) retratado(a), sendo um o(a) menos bonito(a) e

cinco o(a) mais bonito(a); a idade e o que faz da vida (engenheiro ou mendigo,

por exemplo). Explicações complementares foram dadas aos participantes que

as solicitaram, que se limitaram a esclarecer o cabeçalho.

O objetivo foi ranquear as diversas imagens em termos de beleza, idade

e posição social. Para isso, foi necessário classificar as respostas livremente

dadas no quesito “vida” em cinco categorias que, de uma forma geral,

procuram hierarquizá-los não de acordo com critérios econômicos, mas com o

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grau de importância ou respeitabilidade social que geralmente se atribui, de

maneira que, a título de exemplo, um feirante pode ter mais recursos

financeiros que um professor, no entanto, professores são considerados

socialmente mais importantes e respeitáveis que feirantes.

Para permitir uma melhor análise desse dado, ele foi posteriormente

convertido numa escala numérica de cinco pontos, de maneira que, extraída a

média das respostas, quanto menor o número, menor a posição social do

personagem. São as categorias: 1) “marginal”, para respostas que indicavam

que o personagem pertencia a grupo que sofre forte grau de exclusão social,

como mendigo, marginal, bandido, ladrão, pivete, vagabundo. 2) “inferior”, para

indicações de trabalhos ou modo de vida de baixa posição social, como

feirante, mecânico, pedreiro, motorista de ônibus, lixeiro. 3) “subalterno”, que

engloba atividades e modo de vida que indique média inserção social, como

secretária, enfermeira, fotógrafo, cabeleireira etc.. Por ser o meio da escala,

nesta mesma categoria foram incluídas duas respostas recorrentes: dona de

casa (ou do lar) e estudante. 4) “superior”, onde foram classificadas as

respostas que correspondiam a alto grau de inserção e proteção social, como

advogado, engenheiro, professor, médica, psicólogo. 5) “dominante”, para as

respostas que indicam estar o personagem em posição de dominação social,

como empresário, rico, juiz, senadora etc..

Segunda coleta: avaliando a inocência

Participantes:

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A segunda coleta contou com 129 participantes, 83 homens (64,3%) e

46 mulheres (37,5%), de idades entre 21 e 54 anos (M = 30; DP = 6,23).

Considerando a renda familiar informada, todos pertenciam às classes sociais

A (62%) e B (38%) (IBGE). A maioria dos participantes, 106 (82,1%),

apresentou-se como advogado, não necessariamente criminalista. O demais

participantes dividiram-se entre cinco juízes (3,8%), três promotores de justiça

(2,3%), dois oficiais de justiça (1,6%), quatro delegados da polícia civil (3,2%),

um delegado da polícia federal (0,8%), dois defensores públicos (1,6%) e seis

(4,6%) se identificaram como “concurseiros” – bacharéis em direito que se

dedicam integralmente aos estudos voltados para concursos públicos. Foram

abordados aleatoriamente pelos pesquisadores em cursinhos preparatórios

para concursos públicos e no Fórum Criminal de Vitória (ES).

Procedimentos

Concluída a primeira etapa com a classificação social, estética e etária

dos retratados, um novo formulário foi construído, no qual foram excluídas as

personagens de perfil semelhante. O objetivo foi criar uma nova prancha de

imagens mais simples, em uma única folha, e com personagens de perfil mais

heterogêneo. Após a exclusão, restaram 16 personagens, sendo oito

masculinas e oito femininas.

Todos os participantes desta coleta receberam formulários com as

mesmas imagens, porém, com cabeçalhos diferentes. Cada um deles afirmava

haver dentre os retratados o autor e a vítima de um determinado crime e

convidava o participante a indicá-los. Os criminosos e vítimas indicados foram:

assassino(a) e assassinado(a), sequestrador(a) e sequestrado(a),

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estelionatário(a) e vítima de estelionato, criminoso(a) sexual e vítima de crime

sexual, traficante de drogas e usuário(a) de drogas. Quanto a este último, o

usuário é, para alguns, vítima do traficante, para outros - incluindo a lei penal -,

também um criminoso, apesar de que o grau de condenação moral do crime de

uso de drogas seja baixo. Apesar dessa dissonância quanto à contribuição do

usuário para o narcotráfico e ao seu valor social, ainda assim o usuário foi

escolhido por ser o contraponto mais objetivo para o traficante.

Os dados da primeira e segunda etapas da pesquisa foram analisados

em conjunto, sendo atribuído a cada personagem uma sigla (H1, para o

primeiro homem, M2 para a segunda mulher da lista, por exemplo) e anotados

cinco índices diferentes: “beleza”, indicando a média de notas atribuídas à

beleza do personagem; Idade, indicando a média das idades indicadas; “vida”,

correspondente à média das classificações das respostas espontâneas sobre o

que o personagem faria da vida; “MIS”, média de inserção social, índice

formado pela soma das médias de beleza e vida. Este índice foi criado para

permitir uma comparação entre os personagens levando-se em conta

simultaneamente os dois principais indicadores de posição social. Por último,

“atribuições”, onde é apontada a porcentagem das atribuições para cada item

analisado, por exemplo, atribuição de 14.81 para o personagem H11 na lista

dos assassinos, significa que 14.81% das respostas o apontaram como

assassino.

Resultados

Homicídio

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Foram respondidos 27 formulários sobre homicídio com o seguinte

cabeçalho: Dentre os retratos falados abaixo, há a imagem de “A”, um(a)

assassino(a) e “B”, vítima de assassinato. Assinale quem (apenas um), na

sua opinião, seria “A” e “B”. Responderam este formulário 12 homens (44,4%)

e 15 mulheres (55,6%), com idades que variam de 21 a 41 anos (M = 29; DP =

4,69). Apontaram como principais assassinos os seguintes:

Os personagens, H11, H7 e M6 tiveram, juntos, 40.74% das indicações

para assassinos (tabela 1). Foram apontados outros 13 personagens, sendo 7

homens e 6 mulheres. No total, os personagens masculinos tiveram 55.5% das

atribuições. Dentre os mais indicados, H11 e H7 são, respectivamente, o

primeiro e segundo homens mais feios segundo a atribuição na primeira fase

da pesquisa, com índices de beleza de 1.4348 e 1.5217. M6 é, dentre as

mulheres, a de menor índice de beleza (1.3043). Segundo os critérios

anteriormente definidos, todos são classificados como feios. Todos têm idades

muito próximas, variando de 38.5 a 39.8. Não receberam indicações como

assassino o homem mais jovem e a mulher mais velha.

H11

Beleza 1.43

Idade 39.82

Vida 1.93

MIS 3.36

Atribuições 14.81

H7

Beleza 1.52

Idade 38.50

Vida 2.89

MIS 4.41

Atribuições 14.81

M6

Beleza 1.30

Idade 38.82

Vida 2.80

MIS 4.10

Atribuições 11.11

Tabela 1: mais indicados como assassinos

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Dentre as particularidades dos personagens, merece destaque o fato de

H11 ser o que mais apresenta traços do fenótipo negro. Somada a beleza e

vida, sua média de inserção social (MIS) é a mais baixa dentre todos os

personagens, com índice 3.3696. Em resposta sobre a vida de H11, atribuíram-

lhe atividades como pedreiro, flanelinha e mendigo. H7 e M6 têm MIS mais

elevada que o de H11, apesar dos índices de beleza serem bem próximos. A

eles foram apontadas vidas bem díspares, ora sendo apontados como

superiores, ora como marginais.

Os resultados levam a concluir que a indicação destes personagens

como assassinos se deve, fundamentalmente, aos seus baixos índices de

beleza se comparados aos demais, sendo a posição social menos relevante.

Outro dado comparativo interessante é que a baixa MIS de H11 pode ser

atribuída à sua aparência de negro. Isto parece ser confirmado pelo fato de

que, se analisados todos os personagens, a MIS dos que têm aparência de

negro e das mulheres é em média mais baixo que o dos demais, homens e

brancos, conforme apresentamos adiante (gráfico 4).

O perfil dos assassinados é, basicamente, o oposto do dos assassinos.

Os mais indicados, M1, H12 e H2 são, respectivamente, a mulher mais bonita,

com índice de beleza de 3.6304 (M1 é também a personagem com maior

índice de beleza dentre todos); o homem branco mais velho e o homem mais

bonito, com índice de beleza de 3.2391 e respondem, juntos, por 48.15% do

total de atribuições de vítima de homicídio (tabela 2). Ao todo foram apontados

como vítimas 12 personagens, sendo seis homens e seis mulheres. Não foram

apontados como vítima o homem mais novo e duas mulheres com baixa MIS,

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resultante tanto de baixo índice de beleza quanto de baixo índice de vida.

51.85% dos apontados como assassinados eram homens.

M1

Beleza 3.63

Idade 23.36

Vida 3.28

MIS 6.91

Atribuições 22.22

H12

Beleza 1.63

Idade 39.15

Vida 2.91

MIS 4.54

Atribuições 14.81

H2

Beleza 3.23

Idade 24.73

Vida 3.21

MIS 6.45

Atribuições 11.11

Tabela 2: mais indicados como vítimas de assassinato

Se comparados os perfis de assassinados com o de assassinos,

percebe-se uma grande diferença de MIS entre ambos os grupos, gerado tanto

pela diferença no item “beleza” quanto no “vida”. A maior MIS dos assassinos é

menor que a menor MIS dos assassinados. Entre os não citados como vítimas

de homicídio estão personagens com baixa MIS, ou seja, pobres e feios como

os assassinos. Os apontados como assassinos possuem poucas indicações

como assassinados. A MIS das vítimas indica uma posição social superior ou

dominante, de pessoas que ganham a vida como empresários, servidores

públicos ou profissionais liberais - conforme indicações na primeira coleta -, o

que muito se aproxima do perfil socioeconômico dos próprios participantes.

Disso é possível concluir que o assassinato é representado como um ato

praticado por pobres feios contra ricos bonitos, por um “eles” contra um “nós”.

Esta ideia contrasta com os dados estatísticos do Ministério da Justiça que

apontam como principais vítimas de homicídio jovens entre 18 e 24 anos de

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áreas rurais e urbanas pobres, que correspondem a cerca de 40% do total de

vítimas de homicídio doloso no Brasil (Waiselfisz, 2011).

Sequestro

23 participantes responderam o questionário sobre sequestro, sendo 18

homens (78,3%) e apenas cinco mulheres (21,7%) com idades entre 23 e 45

anos (M = 31; DP = 5,68). O formulário que lhes foi apresentado continha o

seguinte cabeçalho: Dentre os retratos falados abaixo, há a imagem de “A”,

sequestrador(a) e “B”, vítima de sequestro. Assinale quem (apenas 1), na

sua opinião, seria “A” e “B”. Foram apontados preferencialmente como

sequestradores os seguintes:

Os indicados (H7, H5 e M3) somam 47.83% do total de indicações como

sequestrador (tabela 3). Além deles foram citados outros 10 personagens,

sendo sete homens e apenas três mulheres. O fato do número de mulheres

respondentes deste formulário ser muito pequeno pode ter influenciado essa

grande desproporção entre homens e mulheres apontados como

sequestradores. 78.26% do total dos apontados são homens. Não foi apontado

como sequestrador apenas um homem, o segundo mais bonito, sendo que o

mais bonito foi apontado por apenas um único participante. Dentre as

mulheres, não tiveram indicação nem as mais bonitas e nem as mais velhas.

H7

H5

M3

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Beleza 1.52

Idade 38.50

Vida 2.89

MIS 4.41

Atribuições 21.73

Beleza 1.71

Idade 34.19

Vida 2.19

MIS 3.91

Atribuições 13.04

Beleza 2.28

Idade 31.06

Vida 2.65

MIS 4.93

Atribuições 13.04

Tabela 3: mais indicados como sequestradores

H7 foi também apontado como homicida e é o segundo mais feio. H5

possui índice de beleza muito baixo (1.7174), sendo o terceiro mais feio entre

os homens. Dentre os assassinos, ele foi o quarto em indicações. Sua MIS é

de 3.9131, abaixo da média da amostra (M = 5,01), tendo pesado para esse

mau desempenho, sobretudo, o índice “vida”, de 2.1957, (M = 2,85). Foi

apontado na primeira coleta de dados como motorista e cobrador de ônibus.

M3 tem “beleza” um pouco acima da média das mulheres (M = 2,2), o mesmo

não ocorre com o índice “vida”, de 2,65 (M = 2,92). Nas respostas livres sobre

sua vida, as que se destacam são manicure e cabeleireira. Dentre as mulheres,

ela é uma das duas que apresentam indicadores do fenótipo negro ou mulato,

sendo delas a mais nova.

Em comparação com os assassinos, os sequestradores têm, no geral,

um perfil parecido, com a diferença na grande desproporção entre homens e

mulheres apontados, o que pode ser causado pelo desequilíbrio de gênero

entre os participantes. Com as vítimas, ocorre algo semelhante.

No total, 11 personagens foram apontados, sendo seis mulheres e cinco

homens. 69.57% dos apontamentos foram para mulheres (tabela 4). M1 e H2

também são apontados como vítima de homicídio, nas mesmas posições, 1º e

3º mais citados, sendo que no caso do sequestro há uma maior concentração

de respostas em M1, que é a mulher apontada como a mais jovem e bonita.

Outra diferença com relação às vítimas de assassinato é a substituição de H12

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(segundo mais citado como vítima de homicídio) por M12, que corresponde à

mulher mais velha. Os três juntos correspondem a 52.17% do total de

indicações. Todos os três apresentam índice Vida acima da média (M vida =

2,85).

M1

Beleza 3.63

Idade 23.36

Vida 3.28

MIS 6.91

Atribuições 30.43

M12

Beleza 1.76

Idade 45.08

Vida 2.97

MIS 4.73

Atribuições 13.04

H2

Beleza 3.23

Idade 24.73

Vida 3.21

MIS 6.45

Atribuições 8.69

Tabela 4: mais indicados como vítimas de sequestro

Narcotráfico

26 participantes preencheram o formulário com referência a narcotráfico,

sendo 18 homens (69,2 %) e oito mulheres (30,8 %). A idade dos participantes

variou entre 22 e 43 anos (M = 29; DP = 4,48). O formulário a eles apresentado

continha o seguinte cabeçalho: Dentre os retratos falados abaixo, há a imagem

de “A”, um(a) traficante de drogas e “B”, usuário(a) de drogas. Assinale quem

(apenas um), na sua opinião, seria “A” e “B”.

As respostas com relação ao traficante podem ser consideradas um

misto entre os já indicados como assassinos e sequestradores, sendo os mais

indicados H11 (o homem mais feio e mais indicado como assassino) e H5

(terceiro homem mais feio e o segundo mais indicado como sequestrador),

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dentre os homens e M6 dentre as mulheres (a mulher mais feia). H7, também

citado como assassino, aparece em quarto lugar (tabela 5).

H11

Atribuições 19.23

H5

Atribuições 19.23

M6

Atribuições 11.53

Tabela 5: mais indicados como traficantes

Os três mais indicados correspondem, juntos, a 50% do total de

indicações. Ao todo foram apontados 11 personagens como traficantes, sendo

5 homens e 6 mulheres. Não foram indicados o homem mais novo, o mais

velho e as mulheres mais velhas. Os homens correspondem a 42.3% dos

indicados, o que demonstra equilíbrio de atribuições entre homens e mulheres,

ao contrário do que acontece com os sequestradores.

Analisados em comparação com os assassinos e sequestradores, os

traficantes apresentam praticamente nenhuma singularidade com relação aos

outros dois, sendo apontados como criminosos os mais “feios” e “pobres”

dentre homens e mulheres. Já entre os usuários de drogas, o perfil apresenta

diferenças significativas com relação aos apontados como vítimas de

assassinato e sequestro.

O mais indicado, H1, alcançou sozinho 26.92% do total de indicações

(tabela 6). Ele foi apontado como o segundo homem mais jovem, com 21 anos,

e não possuía nenhuma indicação como assassino, sequestrador ou traficante.

Nas respostas livres, foi apontado com frequência como estudante. Os demais

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são H2, o homem mais bonito e já apontado como vítima tanto de assassinato

quanto de sequestro e M12, a mulher mais velha que também é apontada

como vítima de sequestro. Os três juntos correspondem a 57.69% do total de

respostas. Com exceção de H1, portanto, o perfil dos apontados no

contraponto dos traficantes é semelhante ao perfil de vítima dos crimes até

agora indicados. A mulher mais jovem, M1, já apontada como vítima nos

demais crimes, aparece em quarto lugar nas indicações.

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H1

Beleza 2.58

Idade 21.26

Vida 3.02

MIS 5.60

Atribuições 26.92

H2

Beleza 3.23

Idade 24.73

Vida 3.21

MIS 6.45

Atribuições 19.23

M12

Beleza 1.76

Idade 45.08

Vida 2.97

MIS 4.73

Atribuições 11.53

Tabela 6: mais indicados como usuários de drogas

Ao todo foram indicados 10 personagens, sendo 5 homens e 5

mulheres. Apesar deste equilíbrio na variedade, os homens tiveram, ao todo,

61.54% do total de indicações. Não foram citados como usuários ou tiveram

poucas indicações os mais feios, que correspondem aos apontados como

assassinos, traficantes ou sequestradores. Dentre os que não foram citados,

chama a atenção H3. Ele é o homem mais novo, com idade de 19 anos.

Pressupondo que a pouca idade foi decisiva para que H1 fosse o mais indicado

como usuário de drogas, era de se esperar que o mesmo ocorresse com H3.

No entanto, há uma grande diferença entre H1 e H3: o primeiro é branco, o

segundo é negro. A beleza de H1 é de 2.58, a de H3 é de apenas 1.78. A vida

de H3 é de 2.56, tendo sido apontado como aluno de escola pública, flanelinha

e pivete.

Estelionato

Responderam ao questionário sobre estelionato 27 participantes, sendo

15 homens (55,6%) e 12 mulheres (44,4%), com idades entre 23 e 54 anos (M

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= 31; DP = 5,68). O formulário continha o seguinte cabeçalho: Dentre os

retratos falados abaixo, há a imagem de “A”, estelionatário(a) e “B”, vítima de

estelionato. Assinale quem (apenas um), na sua opinião, seria “A” e “B”.

Para este crime em particular, podemos observar uma mudança radical

no perfil dos criminosos em comparação com os crimes anteriormente

analisados. Os mais apontados como estelionatários são, exatamente, os

mesmos apontados como vítimas de assassinato: H2, M1 e H12, que são,

como vimos anteriormente, o homem mais bonito, a mulher mais bonita

(empatados no número de atribuições com 14.81% cada um) e o homem mais

velho. Juntos, eles correspondem a 40.74% de todas as indicações de

estelionatários (tabela 7).

H2

Atribuições 14.81

M1

Atribuições 14.81

H12

Atribuições 11.11

Tabela 7: mais indicados como estelionatários

Uma característica que não parece pesar no perfil do estelionatário é o

sexo. Ao todo 12 personagens foram apontados, sendo 6 homens e 6

mulheres. Além do equilíbrio entre a mulher e o homem mais indicados como

estelionatários, os homens tiveram, ao todo, 51.85% das indicações.

Outra surpresa são as vítimas. Ao contrário do que se poderia esperar,

as vítimas não são os de perfil oposto ao dos estelionatários, mas praticamente

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os mesmos. Foram mais apontados como vítimas: M12, M1 e H12 (a mulher

mais velha, a mais bonita e o homem mais velho, respectivamente). Os três

juntos correspondem a 59.26% das indicações de vítimas de estelionato (tabela

8).

M12

Atribuições 25.92

M1

Atribuições 22.22

H12

Atribuições 11.11

Tabela 8: mais indicados como vítimas de estelionato

Se comparadas com os estelionatários, percebe-se uma preferência

pelos mais velhos e, em especial, pela mulher mais velha que, sozinha, teve

25.92% das indicações. Esta preferência por mulheres como vítima de

estelionato se reflete no número de indicações (66.67%). Além da maior

presença de mulheres, a idade avançada é outra característica desta amostra.

Crime sexual

Responderam ao formulário sobre crime sexual 26 participantes, sendo

20 homens (76,9%) e seis mulheres (23,1%) de idades entre 23 e 53 anos (M =

32; DP = 7,75). Ao contrário dos demais formulários que citaram um crime, este

cita uma categoria de crimes que podem ir desde um exibicionismo até o

estupro violento. Apesar dessa amplitude, optou-se pelo gênero para evitar

crimes diretamente associados a autores masculinos, como é o caso do

estupro que, apesar de alteração na lei penal que admite a mulher como

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estupradora, este crime ainda é bastante associado a homens. Esperou-se

com isso deixar o participante à vontade para indicar como autora de crime

sexual uma mulher. O formulário teve o seguinte cabeçalho: Dentre os retratos

falados abaixo, há a imagem de “A” um(a) criminoso(a) sexual e “B”, vítima

de crime sexual. Assinale quem (apenas um), na sua opinião, seria “A” e “B”.

Apesar da amplitude do crime proposto, com exceção de um

participante, todos apontaram homens como autores de crime sexual e não

houve personagem masculino que não tivesse, ao menos, uma indicação. A

única mulher apontada foi M5, que também foi a única caracterizada em alguns

formulários da primeira coleta como “travesti”. Dentre todos os crimes citados

até agora, com exceção do fato de haver uma preferência quase unânime por

criminosos masculinos, este foi o que apresentou a maior amplitude de

personagens masculinos citados, de maneira que nenhum deles teve

significativo destaque com relação aos demais. Foram os mais citados que,

juntos, correspondem a 69.23 % das indicações: H2, H7, H5 e H12 (tabela 9).

H2

Atrib 19.23

H7

Atrib 19.23

H5

Atrib 15.38

H12

Atrib 15.38

Tabela 9: mais indicados como criminosos sexuais

Além dos citados, todos os demais personagens masculinos tiveram

3.84% das indicações cada um. Dentre os mais indicados, há o homem mais

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bonito, o mais velho e dois dentre os mais feios já apontados como assassino e

sequestrador. Se comparados os dois mais apontados, temos o homem mais

bonito e o segundo mais feio. Estes extremos e amplitude de homens citados

permitem concluir que o criminoso sexual apresenta como característica

apenas o fato de ser homem, sem maior influência de fatores como idade,

beleza ou posição social. Esta falta de um perfil específico também pode ser

atribuída à grande amplitude do conceito de crime sexual, sugerido no

cabeçalho.

Com relação às vítimas, porém, essa amplitude e abrangência não

ocorre. Há uma claríssima preferência por M1 (a mulher mais jovem e mais

bonita) que, sozinha, corresponde a 46.15% do total de indicações (tabela 10).

Nenhum homem foi apontado como vítima e a única mulher não indicada foi

M12, a mulher mais velha. Mesmo o participante que assinalou a mulher M5

como criminosa, indicou M1 como sua vítima. Além de M1, foram citadas M3,

M5 e M8 com mais de 11% de atribuições cada uma.

M1

Atrib 46.15

M3

Atrib 11.53

M5

Atrib 11.53

M8

Atrib 11.53

Tabela 10: mais indicados como vítimas de crimes sexuais

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Discussão

Analisados em conjunto os resultados para os cinco crimes, há uma

correspondência direta entre feiura e criminalidade, segundo os bacharéis em

Direito participantes. Os mais feios são apontados preferencialmente como

autores dos crimes mais violentos, ao passo em que os mais bonitos são

apontados como vítimas. A média dos índices de Beleza dos mais apontados

como assassinos, sequestradores e traficantes (considerada aqui a média dos

personagens) é de 1.65, enquanto que o de suas vítimas é de 2.57. Nenhum

dos personagens apontados como autores desses 3 crimes tem beleza acima

da média das vítimas (a menos feia é a traficante M3, com beleza 2.28).

Considerada a média de todas as amostras de crimes, os criminosos

apresentam beleza de 1.91 contra 2.60 das vítimas (figura 1).

Figura 2: comparativo de médias de beleza entre criminosos e vítimas por crime.

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O estelionato é o único dos crimes analisados em que a média da

beleza dos criminosos é maior do que a média das vítimas: 2.83 para os

estelionatários e 2.34 para suas vítimas. Também é o crime onde o perfil das

vítimas mais se assemelha ao dos criminosos.

Os crimes sexuais, são os que mais apresentam uma desproporção

entre homens e mulheres tanto como criminosos quanto como vítimas. Há uma

clara preferência pela mulher mais bonita M1 em detrimento de todos os

homens e da mulher M12 (a mais velha), não citados. Em suma, os

participantes creem que crimes sexuais são praticados por qualquer homem

contra mulheres jovens e bonitas. As idosas e os homens estão a salvo desse

flagelo. É preciso destacar que os participantes que responderam a esse

formulário eram em sua maioria (76,9%) homens, o que qualifica esta amostra

como uma representação predominantemente masculina dos crimes sexuais.

Com relação a beleza, idade e vida de homens e mulheres, há ligeira

vantagem das mulheres com relação aos homens, sendo as mulheres

consideradas mais bonitas, velhas e com maiores índices “vida” que os

homens. A pequena diferença nos três quesitos demonstra o equilíbrio entre os

retratos masculinos e femininos apresentados aos participantes (figura 2).

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Figura 3: comparativo de médias de beleza e vida entre homens e mulheres.

No entanto, se consideramos as diferenças fenotípicas entre os

retratados, percebemos claras diferenças entre, de um lado, negros e mulatos

e do outro, os brancos (figura 3). Em média, os brancos foram apontados como

mais bonitos e com melhor vida que os negros e pardos. Mesmo entre mulatos

e negros, as notas de beleza, idade e vida da mulher parda é maior que as

médias dos negros.

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Figura 4: comparativo de médias de beleza e vida entre negros, pardos e brancos.

Do total de 16 personagens que foram apresentados no segundo

formulário (avaliando a inocência) quatro possuíam traços do fenótipo negro,

sendo caracterizados pelos participantes na primeira coleta (avaliando a

beleza) como negros ou pardos. Apesar dessa desproporção numérica, os

negros e pardos aparecem entre os mais indicados como criminosos entre os

assassinos, traficantes e sequestradores e são pouco indicados dentre os

estelionatários. Além disso, não há crime em que os negros não tenham sequer

uma indicação, ao passo em que vários brancos não são citados nos diversos

crimes. Dois deles não são citados como criminosos em nenhum crime e um

deles é indicado como criminoso somente uma vez. Apenas a mulher parda M3

não é citada como criminosa em todos os crimes. No item “vida”, são os que

mais têm atribuição de marginalidade, com adjetivos como marginal, bandido,

pivete e vagabundo, por exemplo.

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No rol das vítimas, nenhum homem negro é citado e apenas a mulher

mulata M3 aparece uma única vez dentre as principais: nos crimes sexuais. Em

contrapartida, brancos e, em especial, a mulher branca M1, tida como a mais

jovem e bonita, é a vítima mais indicada no assassinato, sequestro e crime

sexual, a segunda mais indicada no estelionato e não está entre os mais

apontados como usuário de drogas.

Retomando a comparação com Lombroso, parece claro que, apesar de

toda a crítica à Antropologia Criminal do século XIX, as mesmas disposições de

espírito condenatórias de feios e protetivas de belos que alimentaram os

resultados e interpretações daquelas pesquisas, ainda estão presentes entre

nossos juristas. Há mesmo uma “corroboração” do “perfil” lombrosiano, sendo

os crimes mais violentos atribuídos aos mais feios, o estelionato e as fraudes

aos mais belos e os crimes sexuais, de perfil mais difuso, aos homens em

geral.

Os resultados deixam claro que não há, para os juristas, uma única RS

para todo e qualquer criminoso, como afirma o lugar comum segundo o qual

“bandidos são todos iguais”, mas representações distintas de criminosos para

crimes distintos. Evidenciam também que a aparência de criminoso é um de

seus elementos. É como se para cada crime houvesse um “perfil” de criminoso

específico onde alguns, no caso dos estelionatários, são bonitos e de boa

posição social, outros, como no caso de crimes mais violentos, feios e pobres.

Estas atribuições, apesar de serem idênticas aos resultados apontados

por Lombroso (1983), se mostram desfocados da realidade. Segundo os dados

estatísticos do Ministério da Justiça (Waiselfisz, 2011) as principais vítimas de

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crimes violentos são jovens entre dezoito e vinte e quatro anos, de áreas rurais

e urbanas pobres, que respondem por cerca de 40% do total de vítimas de

homicídio doloso no Brasil. Os participantes, contudo, apontaram como vítimas

preferenciais dos crimes violentos pessoas brancas, acima dos 30 anos e de

média a alta posição social.

A existência de um “perfil” nas atribuições dos participantes é exemplo

do fenômeno que Moscovici denominou de objetivação (2012, p. 100). Na

explicação de Jodelet (1998), a objetivação é um processo que “colocando em

imagens noções abstratas, dando uma textura material às ideias, faz

corresponder as coisas às palavras, dando corpo aos esquemas conceituais”

(p. 371). De uma forma mais simples, se pode afirmar que a objetivação é uma

forma de tomar algo confuso e abstrato, como a violência tal qual nos aparece

aos sentidos, por algo concreto, material, existente e, por conseguinte,

“manipulável”.

Jodelet (1998, p. 371-5) descreve o processo de objetivação típico das

representações sociais em três etapas que aplicadas ao objeto desta pesquisa

nos auxiliam na melhor compreensão do conceito e de suas características. I)

A construção seletiva, que reduz a complexidade e a quantidade das

informações de forma a selecionar uns poucos aspectos ou imagens que

formarão a imagem objetificada. Tomando como exemplo o conceito de

“acumulação social da violência” de Misse (1999), das imagens percebidas

sobre a violência, seleciona-se as atitudes de algumas pessoas – bandidos -,

estigmatizadas segundo fatores sociais, para compor o esquema de ideias que

explicam e significam a violência urbana. II) Esquematização estruturante, que

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corresponde à construção de um núcleo figurativo que vai “reproduzir de

maneira visível um esquema conceitual” (p. 372), como palavras-chave

organizadas na forma de um estrutura de pensamento como pobreza = feiura =

maldade = perigo = crime ou, no caso das vítimas, riqueza = beleza =

vulnerabilidade = vítima. III) Naturalização, que indica a conversão de uma

ideia abstrata objetivada, que nada mais é do que uma maneira de perceber o

mundo, em realidade. É tomar o objeto significado como uma evidência

percebida. No caso, o “bandido”, efeito de um processo de objetificação da

violência, é representado como um fenômeno natural, o que legitima tomadas

de posição discriminantes e violentas contra os que possuem o “perfil”

criminógeno.

Conclusão

A pesquisa realizada com juristas indica que há uma relação entre a

aparência e o grau de atribuição, por parte de juristas, de culpa ou inocência

diante de determinado crime. Pessoas tidas como mais feias são mais

apontadas como criminosos nos crimes mais violentos, moralmente mais

condenáveis e com maiores penas. As tidas como mais bonitas são mais

apontadas como vítimas dos crimes mais violentos.

Os negros e pardos foram considerados mais feios e apontados mais

vezes como autores dos crimes mais graves. Esta preferência por negros como

criminosos coincide com os dados estatísticos do sistema penitenciário

brasileiro, onde quanto mais escura a cor da pele, maior a diferença percentual

entre os presos e a população em geral.

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O padrão de atribuição de periculosidade e inocência dos indivíduos

sofre alteração em dois crimes analisados: o estelionato, onde os mais bonitos

aparecem tanto como autores quanto vítimas e os crimes sexuais, nos quais os

homens aparecem como criminosos e a aparência parece influir menos do que

nos demais crimes, já as vítimas preferenciais deste crime seriam mulheres

bonitas e jovens. Esse padrão é muito semelhante ao encontrado no século

XIX em pesquisas da então chamada Antropologia Criminal, escola e estudos

hoje amplamente denunciados pela criminologia crítica como racistas.

Há um descompasso aparente entre a ideologia declarada nos discursos

dos juristas e na criminologia contemporânea que, por um lado, nega a

desigualdade e a discriminação e a prática do direito que no caso desta

pesquisa, mostrou-se influenciada por critérios discriminatórios. Essa aparente

contradição demonstra, em primeiro lugar que ideologia ou discurso não

coincide com a representação social do crime. Em segundo lugar, que

discursos e práticas também não coincidem. No entanto, as representações

sociais do crime podem ser tidas como critérios que permitem que tanto

discursos como práticas se complementem para realizar algo mais fundamental

com relação ao crime: identificações, diferenciações e hierarquização dos

indivíduos de um grupo social.

Consideradas sua eficácia relativa (Rouquette, 2000, p.44), função de

orientação (Abric, 1994, p.16) e consequências do processo de objetivação

(Jodelet, 1998 e Moscovici, 2012), é possível afirmar que não existe uma

representação social do crime, mas representações sociais diferentes para

crimes diferentes. Estas representações, apesar de socialmente estruturadas,

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atuam como critérios estruturantes de comportamentos e juízos por parte dos

operadores do campo jurídico, com grau de coerção variável, de maneira que a

constatação de que a aparência é um de seus elementos não significa que,

necessariamente, os que se encaixem no padrão de criminoso esperado para o

crime sejam condenados, mas que uma série de atitudes e juízos torne mais

fácil a condenação de alguém cuja aparência coincida com o esperado para o

crime do qual é acusado. Contrariamente, pessoas fora do “perfil” são mais

dificilmente condenadas do que as demais.

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72

2.2 Em busca do bandido: um estudo comparativo das representações sociais de juristas e não-juristas sobre os criminosos

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73

Em busca do bandido: um estudo comparativo das representações

sociais de juristas e não-juristas sobre os criminosos

Sumário: 1. Introdução – 2. Objetivos – 3. Método – 4. Resultados: 4.1

Não-juristas; 4.2 Juristas. – 5 Discussão e conclusões.

Resumo: Pesquisa empírica sobre as representações sociais de

criminosos formuladas por juristas e não-juristas. Coletamos discursos de

juristas em artigos da RBCCrim e nos Boletins do IBCCrim. Para comparação,

coletamos os discursos de não-juristas em comentários a uma notícia recente

sobre os 20 anos transcorridos desde o famoso “massacre do Carandiru”,

postados livremente em um portal de notícias. Os dados foram submetidos a

análise de discurso e análise lexicográfica estatística com o software

ALCESTE. Os resultados indicaram semelhanças entre juristas e não-juristas

na representação de criminosos. Divergem, porém, na forma de sua

objetivação. Enquanto os não-juristas os apontam como assassinos,

estupradores e ladrões, os juristas se referem a corruptos, políticos e

empresários.

Palavras-chave: representações sociais, bandido, senso comum,

violência, criminalização, juristas, mídia.

In pursuit of the outlaw: a comparative study of social representations of

jurists and not-jurists about criminals

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Summary: 1. Introduction - 2.Objectives - 3.Method - 4. Results: 4.1 Non-

jurists; 4.2 Jurists. - 5 Discussion and conclusions.

Abstract: Empirical research on social representations of jurists and non-

jurists about criminals. We collected speeches of lawyers in “RBCCrim” and

“IBCCrim Bulletins” articles. For comparison, we collect the non-lawyers

speeches in comments to a recent news story about the 20 years since the

famous "massacre do Carandirú", posted freely in a news website. Data were

subjected to discourse analysis and lexical analysis with statistical software

ALCESTE. Results indicated similarities between lawyers and non-lawyers in

representing criminals. Differ, however, in the form of its objectification. While

the jurists represent them as murderers, rapists and thieves, lawyers refer to

corrupt politicians and businessmen.

Keywords: social representations, outlaw, common sense, violence,

criminalization, jurists, mass media.

1. Introdução

A violência é comumente alardeada como uma epidemia crescente. Um

mal, uma praga da qual devemos nos livrar. Crimes e mais crimes nos são

apresentados todos os dias e não raras vezes sob a afirmação de que desta

vez as coisas “passaram dos limites”. De notícia em notícia a violência

transbordaria os limites, enquanto soluções para sua contenção são

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constantemente demandadas. Uma resposta comum dos agentes políticos é o

aumento dos tipos penais e das penas nos tipos já existentes, medida

denunciada e muito criticada por juristas alinhados com a chamada

criminologia crítica1 não só porque seriam, segundo eles, medidas ineficazes,

como também socialmente injustas, pois tenderiam a criminalizar com mais

rigor atitudes cometidas apenas por parcelas mais pobres da sociedade,

enquanto os mais afortunados praticariam outras tantas violências sem que

estas fossem sequer classificadas como violência, mesmo que tais atitudes

sejam consideradas pelas leis penais como crimes.

Estes fatos apontam, por um lado, para a complexidade da conceituação

de violência e, portanto, das dificuldades de apontar qualquer direção segura

para o seu combate. Por outro lado, demonstram também que tornar uma

conduta criminosa à luz da lei penal, não significa necessariamente na

reprovação moral, por parte da sociedade, de seu agente. Para esclarecer

melhor o problema, vamos nos valer dos conceitos de Misse2 de

criminalização, criminação e incriminação. O primeiro se refere ao processo

político e social de considerar uma conduta criminosa, criando um tipo penal

1Como por exemplo, BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução

à sociologia do Direito Penal. Trad. de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan. 2002. BATISTA,

Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan. 2011. CERVINI, Raul.

Los processos de decriminalizacion. 2ª ed. Montevideo: Editorial Universidad. 1993. HULSMAN, Louk,

& CELIS, Jacqueline Bernat de. Peinesperdues: le système penal en question. Paris: EditionsduCenturion,

1982. SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

2MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. In Civitas [versão eletrônica],

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descritor da conduta e fixando-lhe uma sanção. O segundo, ao ato de

interpretar uma norma penal, à atribuição de sentido que permita relacioná-la a

uma conduta específica. Já a incriminação seria a atribuição de culpa a alguém

pela prática de um crime. Trabalhos como os de Wacquant3, Adorno4 e

Chiricos, Welch e Gertz5, ao denunciarem a seletividade dos procedimentos de

interpretação e aplicação da lei penal no Brasil e nos EUA, e mais diretamente

Misse6 e Soares e Viegas7, demonstram que a criminalização, criminação e

incriminação são processos que, apesar de interconectados, ocorrem com

relativa autonomia, o que justifica seus estudos como dimensões diferenciadas

de um mesmo processo social. Em comum, os três processos podem ser

considerados como consequentes diretos da violência, tentativas de reação à

violência tal qual os atores reagentes a percebem.

3WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro:

Freitas Bastos Editora, 2001.

4ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. In NovosEstudosCebrap, v. 43,

p. 45-63, 1995.

5CHIRICOS, Ted., WELCH, Kelly. and GERTZ, Marc. Racial typification of crime and support for

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6MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. In Civitas [versão eletrônica],

8(3), p. 371 – 385, 2008. Disponível em:

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/4865/3641. Acesso em

26/12/2012.

7SOARES, José Luiz de Oliveira; VIÉGAS, Rodrigo Nuñez. Para uma sociologia do crime ambiental:

passos na construção de uma agenda de pesquisa. In Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis,

v. 3, n. 2, p. 1-26, 2008. Disponível em: http://150.162.1.115/index.php/interthesis/article/view/814.

Acessado em: 15/06/2013.

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Como aponta Zaluar8, a violência é um tema de difícil conceituação.

Refere-se, a princípio, a um modo exagerado ou ilegítimo de uso de força onde

tanto a ideia de força potencialmente violenta quanto a dos limites entre o

adequado e o exagero ou o legítimo e ilegítimo de seu emprego são

imprecisos. A violência não é um objeto natural, mas social. O reconhecimento

de uma ação como violenta dependerá da percepção variável – histórica e

culturalmente - da perturbação ou do sofrimento que esta ação infligirá a um

grupo social específico. É pelos efeitos sentidos e percebidos, pelas suas

representações sociais, e não pela natureza ou qualidade da ação em si que a

violência é significada.

Segundo definição de Jodelet, as representações sociais são “uma

forma de conhecimento, socialmente elaborado e compartilhado, que tem um

objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um

conjunto social”9. Segundo Abric10, expoente da perspectiva estruturalista da

teoria das representações sociais, este “objetivo prático” apontado por Jodelet

se traduz em funções das representações sociais: a) Função de saber, que

corresponde ao papel de critério de organização e mesmo de constituição da

realidade desempenhado pelas representações sociais. b) Função identitária

que “define a identidade e salvaguarda a identidade do grupo”. c) Função

8ZALUAR, Alba. Um debate disperso: violência e crime no Brasil da redemocratização. São Paulo em

Perspectiva, v. 13, n. 3, p. 3-17, 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-

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9JODELET, Denise.Représentationssociales: undomaine en expansion. In JODELET, Denise (Ed.) Les

représentationssociales. Paris: PUF, 1989, pp. 31-61, p. 34.

10 ABRIC, Jean-Claude. Les représentationssociales: aspects théoriques. In ABRIC, Jean-Claude (org.),

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justificadora, que permitiria justificar, a posteriori, o comportamento e tomadas

de posição de elementos do grupo. d) Por último, uma função de orientação de

comportamento e práticas.

O fato de ser representacional requer que toda compreensão da

violência e de seus efeitos seja realizada a partir de sua gênese, onde fatos e

suas representações sejam relacionados. Dentre os poucos estudos

conduzidos com essa preocupação, merecem destaque os de Misse11 e o de

Zaluar12 que descrevem o que Misse conceituou como o processo histórico de

“acumulação social da violência”. Trata-se do desenvolvimento de uma

representação social da violência como efeito das profundas transformações

sociais ocorridas no Rio de Janeiro, mas que pode ser tomado como

paradigma da violência urbana de todo o Brasil, a partir dos anos 50 e que

acabaram por produzir as condições de possibilidade para a emergência de

grupos de justiçamento como os Esquadrões da Morte dos anos 70 e o

comércio armado do narcotráfico nas favelas cariocas e milícias dos dias

atuais13.

Fenômenos sociais reativos que combatem violências diversas com

outras tantas formas de violência, onde operadores de violências diversas se

11

MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de

Janeiro. Tese de doutorado em sociologia. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1999. Disponível em:

http://www.necvu.ifcs.ufrj.br/images/tese%20michel.pdf. Acesso em:27/12/2012.

12ZALUAR, Alba.A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São

Paulo: Brasiliense, 1985.

13MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. In Civitas [versão

eletrônica], 8(3), p. 371 – 385, 2008. Disponível em:

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/4865/3641. Acesso em

26/12/2012.

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enfrentam a título de eliminação da violência, sem que necessariamente

percebam que desenvolvem, ao longo desse processo, um verdadeiro “ethos

de classe...um sistema de valores implícitos que as pessoas interiorizam desde

a infância e a partir do qual engendram respostas a problemas extremamente

diferentes”14. Esse ethos facilmente reconhecido em grupos sociais de

operadores de violência como traficantes e milicianos, também pode ser

encontrado de forma difusa na sociedade e que emerge na forma de apoio

social a operações policiais violentas, ao extermínio de “bandidos” e, de forma

mais extrema e direta, em linchamentos15.

Um dos efeitos políticos das representações dos criminosos, resultante

dos processos de acumulação social da violência é a chamada “cultura do

medo”16 que, difundida através de coberturas midiáticas sensacionalistas de

crimes permitiria, em sociedades capitalistas globalizadas, legitimar soluções

policiais para problemas sociais17. Outro fator influente do papel dos meios são

as novas tecnologias que permitem, por exemplo, que o espectador, antes

receptor passivo de mensagens, participe ativamente na significação das

mensagens dos meios através de comentários às notícias em sítios eletrônicos.

14

BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século. 2003. pp. 238-239.

15MENANDRO, Paulo Rogério Meira. SOUZA, Lídio de. Linchamentos no Brasil - A justiça que não

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16SOBRINHO, Sergio Francisco Carlos Graziano. Globalização e sociedade de controle: a cultura do

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17PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo e Democracia: um paradoxo brasileiro.Mediações-

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80

No entanto, também não se pode tributar apenas aos meios de

comunicação o medo da violência criminosa. Dowler18 (2003) e Evans e

Fletcher19 sugerem que fatores como a incivilidade ou a desordem urbana

também afetam o modo como se teme a violência criminosa, de tal maneira

que é possível perceber variações geográficas nos níveis de medo mesmo se

neste mesmo espaço há igual cobertura dos meios de comunicação.

Efeito da acumulação social da violência, a forma medonha de se

representar a criminalidade urbana legitima a adoção de tomadas de posição

violentas, entendidas como reações legítimas e justas, ante uma percepção de

violência ou perigo de violência, entendidos como ilegítimos e injustos. Estas

estigmatizações são necessárias para a expiação do medo desagregador

gerado pela violência, operando na identificação de um agente e sua punição,

como o sacrifício de um bode expiatório dos temores sociais difusos

decorrentes do acúmulo de violência20. O elemento central deste processo é o

sujeito associado à cultura e aos lugares violentos, a personificação do perigo

social, a figura cujo suplício e morte pode ser relacionada à destruição da

própria violência, os “„tipos sociais‟ de agentes demarcados (e acusados)

socialmente pela pobreza, pela cor e pelo estilo de vida. Seus crimes os

18

DOWLER, Kenneth. Media consumption and public attitudes toward crime and justice: The

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20FAUCONNET, Paul. La responsabilité: études de sociologie. 2ª ed. Paris: Librairie Félix Alcan. 1928.

GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.

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diferenciam de todos os outros autores de crime, não são apenas criminosos;

são „marginais‟, „violentos‟, „bandidos‟”21.

A forma como os autores de crimes são representados, se “bandidos” ou

apenas “criminosos”, depende mais dos efeitos estigmatizantes do processo de

acumulação social da violência do que do ato efetivamente praticado por quem

é acusado da prática de algum crime, pode influenciar diretamente os

processos de criminalização,criminação e incriminação– como denunciam os

criminalistas citados. Este efeito seria ainda mais preocupante se flagrado na

conduta de juristas, pessoas cuja formação e posições sociais ocupadas os

legitimam à condução da justiça criminal. Por outro lado, seria ingênuo

acreditar que, apesar de afirmar seu saber como diverso do dominante no

senso comum, o próprio jurista fosse completamente infenso às forças e efeitos

dos valores e representações havidas na sociedade à qual pertence. Também

comungando representações sociais geradas num processo de acumulação de

violência, os juristas podem atuar, sem que percebam isso de forma clara no

seu julgar quotidiano, de forma tão preconceituosa e estigmatizada quanto - ou

pior - a que comumente atribui ao senso comum e à mídia.

O que propomos neste trabalho é o estudo comparado de

representações sobre “bandidos” produzidos pela opinião pública e por juristas.

Será, portanto, uma comparação entre o imaginário de juristas e não-juristas

sobre os mais reprováveis autores de crimes e sobre como essa categoria é

utilizada nos discursos de ambos. Dada a sua importância na gênese de

21

MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a

categoria "bandido". in Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (79), 2010, p. 15-38. p. 18. Disponível

em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-6445201000010000326. Acesso em: 05/12/2012.

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representações dos criminosos, incidentalmente, serão avaliadas as

observações destes dois grupos sociais sobre a mídia.

2. Objetivos

Considerando a expressão “bandido” um elemento da representação

social de autores de crimes, procuramos analisar o seu uso e efeitos em

discursos tanto do senso comum, colhidos através de opiniões provocadas por

matéria jornalística sobre o massacre do Carandiru, quanto nos discursos

jurídicos, obtidos em acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, no Boletim do

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – BIBCCrim -, e na Revista Brasileira

de Ciências Criminais - RBCCrim. Isto nos permitirá compreender melhor as

atitudes e conflitos de opiniões entre agentes destes dois campos.

3. Método

Coletamos discursos do senso comum em comentários a uma matéria

jornalística sobre crime que tenha tido grande número de comentários de

leitores, o que indica sua grande repercussão. Com relação aos juristas,

coletamos decisões judiciais e trechos de fontes acadêmicas de publicação na

área criminal em que a expressão “bandido” aparecia. Foram nossas fontes:

A) Matéria jornalística intitulada “Massacre que matou 111 presos no

Carandiru completa 20 anos”, publicada no portal G122. Esta matéria gerou 526

comentários em 72 horas, sendo a mais comentada do portal de notícias neste

22

Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/10/massacre-que-matou-111-presos-no-

carandiru-completa-20-anos.html. Acesso em: 15/06/2013.

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período. Nenhum critério de seleção dos comentários foi utilizado, de maneira

que incluímos todos na composição do corpus.

B) 45 artigos extraídos dos Boletins do Instituto Brasileiro de Ciências

Criminais – BIBCCrim - e 68 da Revista Brasileira de Ciências Criminais –

RBCCRIM -, coletados ao longo de 2012 e que abrangem um período de

publicação entre 1993 e dezembro de 2012. Ambos são publicações do

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim – associação sem fins

lucrativos criada em 1992 e que é uma referência para acadêmicos e

operadores do direito nas áreas de direito e processo penal e criminologia. Os

BIBCCrim, de periodicidade mensal, são destinados à publicação de decisões

judiciais consideradas relevantes e pequenos artigos sobre temas atuais. A

RBCCrim é sua publicação em formato acadêmico, com periodicidade

bimestral e grande influência na área jurídica entre os criminalistas. É

classificada como A2 no sistema Qualis (Capes), sendo a revista de ciências

criminais mais bem avaliada do país.

Os dados foram analisados separados em dois corpora, um composto

pelos comentários notícia sobre os 20 anos transcorridos desde o massacre do

Carandiru. O segundo, por extratos dos BIBCCrim e da RBCCrim. Os dois

primeiros corpora foram analisados em duas etapas, seguindo as sugestões de

Nascimento eMenandro23. Na primeira etapa foi realizada análise de

discurso24e na segunda foi utilizado o software ALCESTE25. Tanto o conteúdo

23

NASCIMENTO, Adriano Afonso Roberto do & MENANDRO, Paulo Rogério Meira. Análise lexical e

análise de conteúdo: uma proposta de utilização conjugada. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 6( 2), p.

72-88, 2006. Disponível em: http://www.revispsi.uerj.br/v6n2/artigos/pdf/v6n2a07.pdf. Acesso em:

12/01/2013.

24BARDIN, Lawrence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011.

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dos artigos acadêmicos quanto o estilo das notícias foram levados em conta na

análise.

A opção pela análise em separado dos dados levou em conta as

diferenças tanto da origem dos dados – revista acadêmica e comentário a

notícia – quanto a natureza dos autores das falas coletadas – juristas cujos

textos foram submetidos a avaliação por pares e pessoas que livremente se

manifestam em um portal de notícias -. Além disso, considerando que só há

possibilidade de atribuição de sentido a um discurso por comparação com outro

discurso, pela denotação de suas diferenças e semelhanças26 que são,

também, indicativas das diferenças e semelhanças entre os seus porta-vozes,

a produção de análises em separado torna-se essencial para perceber as

eventuais singularidades tanto do “senso comum” produzido por leitores-

comentadores de matérias jornalísticas, quanto do conhecimento produzido por

juristas.

Procedemos na análise dos comentários na primeira etapa realizando

uma primeira leitura de cada corpus buscando identificar regularidades que nos

permitissem categorizar trechos destes comentários. Após isso, numa segunda

leitura, dividimos o corpus em unidades de conteúdo – UC – e as classificamos

segundo as categorias anteriormente extraídas. Neste momento, nos

permitimos rever as categorias nos valendo do amadurecimento de nosso

contato com o corpus. Finalmente, numa etapa propriamente analítica,

contabilizamos a frequência de determinada categoria a fim de verificarmos sua

25

REINERT, Max. Alceste. Version 4.0 – Windows (Manual). Toulouse: Societé IMAGE, 1998. 26

VERÓN, Eliseo. A produção de sentido. São Paulo: Cultrix, 1980. KALAMPALIKIS, Nikos. Lápport

de la méthodeAlcestedanslánalyse des répresentationssociales. In Jean-Claude Abric (org.).

Méthodesd’étude des représentationssociales. Paris: Éres, 2003, p. 147-163.

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importância para o corpus e verificamos as proximidades e relações entre as

categorias nos comentários dos sujeitos. Para facilitar estes procedimentos

analíticos, reunimos num único arquivo todas as UC de uma mesma categoria,

o que nos permitiu ter uma visão do seu significado conjunto. Após isto,

retornamos ao corpus e relemos as UC de cada categoria na sua posição

original no corpus, a fim de melhor verificar suas inter-relações. A segunda

etapa, realizada com o auxílio do software ALCESTE, possibilitou a análise

lexicográfica e estatística do corpus a partir de seu reagrupamento em

unidades de contexto elementar – UCE – definidas pelo compartilhamento de

vocabulário.

4. Resultados

4.1 Não-juristas

A notícia “Massacre que matou 111 presos no Carandiru completa 20

anos” foi publicada em 2 de outubro de 2012 no sítio “www.g1.globo.com”. Ela

relembra a morte de 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo em 2 de

outubro de 1992, episódio que ficou conhecido como o “massacre do

Carandiru” e faz um histórico dos desdobramentos deste caso marcante ao

longo dos últimos 20 anos, apontando que nenhum policial militar foi

condenado pela participação no episodio. Lista os policiais cujo julgamento, por

lesão corporal ou homicídio, ainda está por vir e cita declarações dos seus

advogados de defesa que afirmam que a polícia agiu naquela ocasião em

legítima defesa aos ataques dos presos. Informa, ainda, que movimentos de

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defesa dos direitos humanos e familiares dos presos mortos planejam protestos

contra a impunidade dos envolvidos.

Isto provocou 526 comentários, sendo a notícia mais comentada do dia

de sua publicação em todo o portal de notícias G1, um dos maiores do país,

mas apenas uma pequena parte deles estavam acessíveis e compõe o corpus

que denominamos Carandiru. São 219 sujeitos (ou UCE), sendo 190 homens

(86,75%) e apenas 29 mulheres (13,25%). Possui tamanho suficiente para uma

análise produtiva por parte do ALCESTE, com 9775 palavras e 50195

caracteres (sem considerar os espaços). A primeira análise do corpus resultou

na sua divisão em 248 UC, classificadas em 6 categorias (figura 1).

Figura 1: Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “Carandiru”

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Há uma enorme concentração neste corpus de falas criminantes. A

defesa dos direitos humanos compõe apenas 6% do total e foram classificados

na categoria “defende os direitos humanos”. São falas que, em sua maioria,

demonstram terem sido provocadas por outros comentários e não pela notícia.

São réplicas de comentários criminantes, portanto. Outros defendem os direitos

humanos não como um princípio que seria aplicado a todos e a qualquer um,

mas como um direito de proteção apenas dos mais fracos, o que fica

demonstrado pela ocorrência de falas descriminantes dos presos e criminantes

de políticos e empresários numa mesma fala.

Sendo réplicas, as falas em defesa dos direitos humanos geraram

tréplicas, que estão concentradas nas categorias “só bandido tem direitos

humanos” e “critica a notícia”. Aquela reúne falas que acusam os defensores

dos direitos humanos de se preocuparem apenas com os bandidos, de não

ligarem para os direitos humanos dos “policiais”, “trabalhadores” e “pessoas de

bem” e até de serem cúmplices da “bandidagem”. No mesmo tom, aparecem

as críticas à notícia. Não são críticas à qualidade jornalística, mas a seu viés

favorável aos direitos humanos ou da alegada militância em prol destes direitos

por parte da mídia.

As falas mais fortemente criminantes são as incluídas nas categorias

“morte aos bandidos” e “parabéns à polícia”. São libelos em defesa do

genocídio, que muitas vezes evocam o lema “bandido bom é bandido morto”.

Não apenas aplaudem a morte dos 111 presos no Carandiru, como lamentam

este tipo de ação policial não ser mais frequente. Expressam satisfação com as

mortes dos “bandidos” enaltecendo a boa ação da polícia na matança dos

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presos. Muitos dos comentários elogiosos aos policiais foram causados pelo

conteúdo da notícia, cujo destaque era a não condenação judicial dos policiais

participantes do massacre. Alguns comentários expressavam, de forma irônica,

que os policiais envolvidos no caso deveriam sim ser punidos, mas por

incompetência, pois mataram apenas 111 presos e não todos. Estes últimos

foram classificados na primeira destas categorias.

Em falas contidas nas várias categorias, foram indicados os crimes que,

segundo os sujeitos que opinaram, os “bandidos” mortos no Carandiru teriam

cometido. Dos crimes listados (figura 2), o assassinato corresponde a pouco

mais da metade (54%). Optamos pela expressão assassinato e não um tipo

penal específico, como homicídio, em primeiro lugar porque “assassinos” foi a

expressão predominante nas falas coletadas, em segundo lugar, porque dão a

entender que não se trata de qualquer tipo de homicídio, mas de algo próximo

ao que o Ministério da Justiça brasileiro qualifica como crime violento letal

intencional ou “violentos letais”, que abrange não somente os homicídios

dolosos, mas os latrocínios e as lesões corporais seguidas de morte. Seriam,

no caso destas atribuições, as mortes violentas e intencionais, explicáveis

somente pela maldade supostamente inerente ao assassino.

Em seguida vem o estupro (21%), os roubos e furtos (13%) e o tráfico

(5%). A categoria “outros” (7%) reúne aquelas qualificações que não

correspondem propriamente a um crime, como “humilha” ou as que

correspondem a crimes pouco citados, no caso, pedofilia (1 citação) e

sequestro (2 citações). Outras descrições de violência foram classificadas

conforme o crime a que correspondem, assim esquartejamento e degolação

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foram classificados como assassinato, enquanto drogar pessoas o foi como

tráfico. Apesar do grande número de tipos penais existentes na legislação

brasileira, apenas uns poucos caracterizariam o bandido. Pode-se concluir que

bandido não é qualquer criminoso, mas principalmente aquele mata de forma

cruel e/ou estupra. O que se impõe de forma violenta e indevida sobre os

cidadãos de bem, retirando-lhes os pertences e os humilhando.

Figura 2: Distribuição das atribuições de crimes aos “bandidos”, retiradas do corpus

“Carandiru”.

A aplicação do ALCESTE ao corpus resultou no aproveitamento de 65%

de seu conteúdo composto por 8089 formas (cada forma corresponde a um

conjunto de palavras com o mesmo radical. Assim, a forma band+ pode

significar bandido, bandidos, bandidagem etc.), sendo 2087 distintas, e riqueza

de vocabulário de 95,69%, gerando 5 classes estáveis (figura 3).

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Figura 3: Classes resultantes da análise do software ALCESTE realizada sobre o corpus

“Carandiru”

A classe 1, denominada “não foi chacina, foi limpeza”, corresponde a

22% das UCE e é composta por 27 formas. É a segunda maior classe e possui

uma elevada especificidade de vocabulário, o que é possível pela presença de

muitas “palavras de ordem” na defesa da morte de criminosos como “bandido

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bom é bandido morto” e “pena de morte já”. A presença das formas reduzidas

dess+ (Khi2 22), deste+ (Khi2 18) e Carandiru (Khi2 15) são utilizadas no

sentido de apontar o caso como exemplar da boa atuação da polícia, algo que

deveria se repetir. As formas rebeli+ (Khi2 14), limp+ (Khi2 12), faxina+ (Khi2

11) e massacre+ (Khi2 7) expressam que o evento não foi um massacre, mas

uma limpeza, uma faxina. Ano+ (Khi2 8) e mês+ (Khi2 14) indicam a

periodicidade com que a limpeza deveria ocorrer nos presídios.

A classe 4, denominada “parem de defender os bandidos”, corresponde

a 12% do total classificado e contém os discursos de ataque aos defensores

dos direitos humanos ou que respondem contrariamente a qualquer argumento

no sentido de vitimizar os presos que foram assassinados. Apesar de pequeno

– é a menor das três classes – apresenta uma especificidade mediana e 30

formas, número maior do que o da classe 1, o que aponta para a falta de

homogeneidade das falas agrupadas nesta classe. Dirigidas a antagonistas

diferentes, como familiares (Khi2 = 15) de mortos no Carandiru, jornalistas

(Khi2 = 4), ou às pessoas que defendem direitos humanos, a quem se faz

referência com expressões variadas o bastante para que uma delas tenha

relevância estatística, é natural que a variedade de fórmulas dos discursos

desta classe também seja grande.

São muito significativas, também, as formas indicadoras de quem se

fala, no caso, dos “bandidos”. Preso+ (Khi2 = 32), crimin+ (Khi2 = 14), detentos

(Khi2 = 9), conden+ (Khi2 = 6), estupradores (Khi2 = 4), ladr+ (Khi2 = 3), são

acompanhadas de outras não tão obvias como coitadinho (Khi2 = 11), neste

caso, afirmando o que eles não são. Em suma, são falas variadas que se

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alinham, em parte, com as categorias “critica a notícia” e “só bandido tem

direitos humanos”, em menor escala com outras como “morte aos bandidos” e

“parabéns à polícia”, resultantes da primeira análise.

A classe 5, denominada “policial que mata bandido merece medalha”,

corresponde a 21% das UCE deste corpus e concentra os discursos que

respondem à notícia, que alerta para a ausência de punição dos policiais

envolvidos no massacre, defendendo que eles cumpriram seu dever ou foram

além, agindo heroica e corajosamente, merecendo por isso medalhas, bustos e

outras homenagens. É composto por 49 UCE e 37 formas. Possui a menor

especificidade de vocabulário dentre todas as classes analisadas.

As formas reduzidas medalha+ (Khi2 = 36), parabéns (Khi2 = 26), ganh+

(Khi2 = 15) são as que representam com clareza a ideia de que os militares

envolvidos deveriam ser premiados. As formas reduzidas polici+ (Khi2 = 21),

ubirata (Khi2 = 18) – referência ao Coronel Ubiratã Guimarães, comandante da

operação policial de invasão do Carandiru –, coronel (Khi2 = 18) e tropa (Khi2 =

7) referem-se aos “heróis”. As formas dever (Khi2 = 12), serviço (Khi2 = 18) e

ação (Khi2 = 8) descaracterizam a operação policial como criminosa e a

qualificam como um ato de cumprimento do dever ou um bom serviço prestado

à população.

Juntas, as classes 1, 4 e 5 representam 55% da UCE. Pela sua

proximidade, compõe o grupo que chamamos de “em defesa do genocídio”.

Cada uma delas apresenta falas que se complementam num discurso de

aplauso à chacina dos presos e mortes de “bandidos” em geral, repúdio aos

direitos humanos e enaltecimento dos policiais “matadores de bandidos”. O

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raciocínio destas três classes pode ser resumido e exemplificado na fala da

mulher 105: “Homenagem para esses policiais que fizeram um favor para a

nossa nação, direitos humanos para que? Para defender assassinos, bandidos,

ladrões, estupradores e etc. Justiça brasileira está muito abaixo de uma justiça

mesmo. Pena de morte para quem mata.”.

A classe 2, com 31% das UCE, é a maior dentre as deste corpus. Possui

especificidade de vocabulário elevada e é composto por 38 formas. Seguindo a

regra deste corpus, também apresenta discursos criminantes dos presos e

bandidos. Sua especificidade está na forma como a fala está organizada. São

discursos que legitimam o massacre dos presos, pena de morte e violência

letal contra bandidos a partir da vitimização dos “trabalhadores” e dos “homens

de bem”. Também são discursos de contraposição aos direitos humanos,

entendidos aqui mais como um grupo social – o de seus defensores - do que

como um conjunto de direitos. Expressam uma visão maniqueísta, de maneira

que ou você está do lado dos “trabalhadores de bem”, ou está com os

“bandidos”.

Também focada na proteção das vítimas dos “bandidos”, a classe 3

representa 14% das UCE e possui 39 formas analisadas, sendo o maior

conjunto de formas caracterizadoras de UCE dentre todas as classes. Apesar

disso, possui especificidade alta de vocabulário. É bastante semelhante às

falas da classe 2 quanto ao sentido, com a diferença de que as vítimas focadas

são categorias ligadas à ideia de família. Isto implica em diferenças na

estrutura das falas. Enquanto na classe 2 prevalecem os raciocínios

maniqueístas, nesta a argumentação por exemplos tem destaque. Formas

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reduzidas imagin+ (Khi2 = 9) filho+ (Khi2 = 44), pai+ (Khi2 = 38), irm+ (Khi2 =

31), mãe+ (Khi2 = 31) e casa (Khi2 = 9), associadas às formas mat+ (Khi2 =

38), morr+ (Khi2 = 35) e mortos (Khi2 = 5) indicam o exemplo do “imagine se

matassem seu...” como argumento de convencimento à aceitação de posições

favoráveis ao extermínio de “bandidos”.

Outra característica desta classe é a composição dos indivíduos. Há

uma presença significativa de mulheres nesta classe (Khi2 = 4). Já com a

classe 1 e 5 ocorre o contrário, com presença significativa de homens (Khi2 = 4

na classe 1 e = 2 na classe 5). Isto mostra uma maior presença masculina nos

discursos em defesa do genocídio de bandidos, enquanto as mulheres se

mostram mais preocupadas com a defesa da família.

Os dados sobre a relevância estatística das formas associadas à família

permitem inferir uma ordem de importância na necessidade de proteção.

Primeiro os filhos (Khi2 de filh+ = 44), seguido de irmão e mãe (Khi2 de irm+ =

31 e de mãe+ = 31). Apesar da maior presença de“pai” (Khi2 de pai+ = 38), do

que “mãe” e “irmãos” nas falas da classe 3, não se pode inferir uma

importância maior a ele atribuída, pois esta forma aparece muito relacionada à

expressão “pai de família”, usada como sinônimo de “cidadão de bem” ou

“trabalhador”. Contudo, a escolha da fórmula “pai de família”, também reforça o

caráter protetivo da família nas falas desta classe. No mesmo sentido, chama à

atenção as ausências significativas da forma reduzida famili+ nas duas classes

em que os homens são maioria significativa (Khi2 = -7 na classe 1 e -6 na

classe 5).

4.2 Juristas

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Diferentemente do corpus anterior, este não foi composto por

comentários a notícia de crime, mas por partes de artigos acadêmicos e

ensaios. São textos mais elaborados e que, pelo seu teor, apresentam grande

parte de seu conteúdo composto pelo jargão e fórmulas discursivas comuns ao

campo jurídico.

Todos os 114 participantes deste corpus possuem algum tipo de

formação na área jurídica, ainda que incompleta. São identificados, além do

gênero, pelo tipo de engajamento que possui no campo jurídico – determinado

por autoatribuição -. 21 são mulheres (18,42%), 89 homens (78,07%) e quatro

cujo gênero não pudemos identificar (3,5%). Quanto ao engajamento jurídico,

48 (42,1%) se identificam como advogados, 13 (11,4%) como juízes, 12

(10,52%) como promotores ou procuradores de justiça, 22 (19,29%) como

professores de direito, seis (5,26%) como estudantes de direito, três (2,63%)

como policiais militares, quatro (3,5%) como policiais civis ou delegados de

polícia, todos bacharéis em direito. Seis (5,26%) foram classificados como

“outros” e se apresentam como agente penitenciário, cartorário, servidor da

justiça, militar das Forças Armadas, agente da Fundação Casa e oficial de

justiça, tendo em comum a graduação em direito.

Consultada a íntegra dos bancos de dados do IBCCrim disponível na

internet, o que abrange a totalidade dos artigos da RBCCRim e dos BIBCCrim,

selecionamos apenas os trechos que contém a expressão “bandido”. O

resultado foi um corpus composto por 114 UCI, 12.764 palavras, sendo 3.445

distintas e 69.710 caracteres, sem considerar os espaços. A riqueza de

vocabulário é de 96.75%.

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A primeira etapa de análise resultou na divisão do corpus em apenas 4

categorias (figura 4). O método utilizado para a criação destas categorias foi

diferente do utilizado no corpus anterior. Enquanto naquele o objetivo era

compreender o sentido semântico dos curtos comentários gerados por um

único fato - a notícia -, neste as falas se referem a conteúdos completamente

distintos, tendo em comum apenas o uso do vocábulo “bandido”. O objetivo foi

compreender em que contexto ele é utilizado e qual o significado que lhe é

atribuído.

Figura 5: Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “IBCCrim”

A menor destas categorias, denominada “bandido é mito”, é composta

por falas que apontam o erro da visão maniqueísta “cidadão de

bem”versus“bandido” e representa apenas 7,5% do total de UCE. Não são

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falas que apareçam como a conclusão de uma argumentação a comprovar a

falácia desta oposição ou categorização de indivíduos, mas afirmações da

impertinência de tais colocações, às vezes com argumentos jurídicos, mas que

não chegam a, de fato, significar uma argumentação, como o apontamento de

que tratamentos diferenciados contrariam o princípio da igualdade.Mais

denunciam o equívoco de defender a existência do “bandido” como um sujeito

diferenciado do que tentam convencer alguém disso.

Noutros casos, procura persuadir o leitor a renegar a dicotomia,

apontando que ela se presta somente a afastar a aplicação dos direitos

humanos. Um dos motivos desta falta de argumentação pode ser o fato de que

os textos são produzidos por juristas para serem lidos por outros juristas e que,

portanto, o apelo a valores e fórmulas comungadas entre os agentes do

campo, como a necessidade da defesa dos direitos humanos por princípio,

pode ser considerado suficientemente convincente e persuasivo.

As categorias “bandido é coisa da mídia” e “bandido é coisa do senso

comum” correspondem a 11,5% e 30,5% do corpus, respectivamente. São

compostas por falas nas quais os juristas atribuem o maniqueísmo “bandido”

versus “cidadão de bem” a outros. São discursos em primeira pessoa, mas

produzidos como reprodução do pensamento de terceiros. Seu uso tem ao

mesmo tempo efeito de contraexemplo, ao dizer o que não se deve defender, e

legitimador dos pontos de vista favoráveis aos direitos humanos, pois refutá-los

seria coisa da “mídia” e do “senso comum”, de não-juristas, portanto. Tanto

mídia quanto o senso comum são apresentados com alguma especificidade. O

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senso comum é relacionado à classe média e a mídia ao cinema, televisão e,

principalmente, à imprensa.

As falas apontam para uma relação de mão única entre mídia e senso

comum, de maneira que o que é produzido na mídia molda o senso comum.

Para uns a mídia transmitiria seus discursos contrários aos direitos humanos e

aos valores do campo jurídico com o interesse na venda de seus produtos

impulsionada pelo sensacionalismo. Para outros, a mídia o faz por servir a

poderosos que teriam interesse na manutenção do medo na população como

forma de fácil dominação política. Em ambos os casos, o “povo”, a “classe

média” ou o “senso comum” são representados como passivos manipuláveis e

incapazes, por princípio, de se contrapor à sua manipulação. A libertação desta

passividade manipulada seria o conhecimento, no caso, o conhecimento

jurídico. Cabedal de discursos, princípios, frases latinas e normas que

tornariam o sujeito infenso à dominação simbólica da mídia e, portanto, saber

superior ao dos portadores do senso comum, posto que incapaz de libertá-los.

As três categorias apresentadas até aqui possuem em comum o fato de

serem falas que se visam à defesa dos direitos humanos e aos valores do

campo jurídico. Dão a impressão de que o discurso que denunciam não seja,

de modo algum, aceitável ou útil ao campo jurídico. A categoria “criminoso”

mostra, contudo, que não é bem assim. Ela é a maior do corpus,

correspondendo a pouco mais da metade (50,5%) das falas. Reúne as

manifestações em que a expressão “bandido” é utilizada como sinônimo de

criminoso. Algumas das vezes ela apenas faz coro ao repúdio do pensamento

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maniqueísta anteriormente exposto, noutras ela compõe o mesmo tipo de

discurso que é, em outras circunstâncias, desqualificado.

Há uma teoria política nas falas dos sujeitos do campo jurídico na qual a

desqualificação dos direitos humanos é desejada pelas classes dominantes,

veiculada pelas mídias, que lhes pertencem, mas tornada força social concreta

na dominação simbólica da classe média, responsável por permitir a operação

violenta da dominação das classes mais baixas. Em resumo, a classe alta

domina a classe média simbolicamente, e a classe baixa violentamente. Mas o

campo jurídico, apesar de composto em sua maioria por indivíduos das classes

alta e média, mostra-se como grupo de esclarecidos opositores desta perversa

dominação. Defendem os direitos humanos e, com isso, protegem as classes

mais baixas da sociedade. Mas quando o desprotegido é de classe alta, a

necessidade de proteção parece perder o sentido. Políticos, empresários e

poderosos em geral são facilmente rotulados como bandidos quando

incriminados (figura 5).

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Figura 6: Distribuição das atribuições de crimes aos “bandidos”, retiradas do corpus “IBCCrim”.

Noutras vezes, há distinção mais de estilo do que de conteúdo quanto

ao uso da expressão. Reproduzem, nas mesmas circunstâncias, os mesmos

discursos atribuídos ao “senso comum” e à “mídia manipuladora”. Noutras, o

uso é quase um ato falho, fala na qual o “bandido” aparece como um inocente

sinônimo de criminoso em análises de problemas gerais do sistema normativo,

da justiça criminal ou do sistema punitivo.

Na segunda etapa de análise, com o auxílio do ALCESTE, foram obtidas

três classes estáveis a partir do aproveitamento de 60% do corpus (figura 6).

Enquanto nossa primeira análise se preocupou com o uso da expressão

“bandido”, o ALCESTE, seguindo seu procedimento padrão, analisou o corpus

na íntegra, o que nos permitiu um resultado complementar aos dados já

extraídos.

Traficante / PCC 32%

Corrupto / político 37%

Rico / corporação 21%

Outros 10%

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Figura 7: Classes resultantes da análise do software ALCESTE realizada sobre o corpus

“IBCCrim”

A classe um, que denominamos “segundo a Constituição”, reúne as UCE

que apresentam discussões em torno de normas e princípios constitucionais

aplicados a casos penais específicos. Pondera-se, muitas vezes, a aplicação

das normas penais a partir de outras normas da Constituição, utilizada aqui

como fonte dogmática de princípios e valores comumente associados aos

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direitos humanos, como dignidade da pessoa humana, igualdade, presunção

de inocência etc. Representa 13% do total de UCE analisadas e possui

vocabulário composto por 25 formas. A alta especificidade de vocabulário é

causada pelo grande uso de jargões de direito constitucional.

Dentre as formas reduzidas estatisticamente relevantes na classe,

constitucion+ (Khi2 = 28), direito_pena+ (Khi2 = 28), artigo+ (Khi2 = 16),

princípio+ (Khi2 = 19), problema+ (Khi2 = 14), constituição (Khi2 = 10), exig+

(Khi2 = 8) e represent+ (Khi2 = 8), apontam para o contexto em que os apelos

ao direito Constitucional se dão. São problemas discutidos a partir de casos

concretos provocados por decisões judiciais ou leis – ou ainda a falta delas –.

Apelam a artigos da Constituição e a princípios para apontar o caminho da

solução dos problemas analisados.

Dentre os casos discutidos, um tem grande destaque. São casos que

envolvem escutas telefônicas, o que explica a presença das formas reduzidas

telefon+ (Khi2 = 42), escut+ (Khi2 = 21), conden+ (Khi2 = 14) e punição (Khi2 =

8). As discussões em torno da questão das escutas é exemplar. As opiniões se

dividem entre os que apoiam o uso das escutas, no caso, juízes e promotores

principalmente, e os que a criticam, advogados em sua maioria. Os defensores

das escutas argumentam que só com elas é possível pegar os “bandidos”, que

seu uso é chancelado pela Constituição e seus princípios. Os que são

contrários à medida, usam a mesma Constituição para defender sua

incompatibilidade com os princípios relacionados aos direitos humanos.

Situação semelhante ocorre em discussões sobre a delação premiada,

não tão estatisticamente significativos no corpus quanto o caso anterior. A

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delação facilitou o trabalho de juízes, promotores e policiais, mas dificultou o

dos advogados. Nova oposição. Para uns, a defesa da Constituição e dos

direitos humanos requer a delação premiada, pois só assim é possível punir os

criminosos das “camadas mais favorecidas”. Para outros, pelos mesmos

motivos, a delação seria contrária aos direitos humanos, uma imoralidade de

um Estado de viés autoritário que se valeria da alcaguetagem para reprimir

criminalmente os menos favorecidos.

A classe dois reúne as falas mais diretamente ligadas aos direitos

humanos. Falam de seu conteúdo como um conjunto de normas jurídicas e

princípios válidos porque inerentes ao homem e não apenas por serem

inscritos na Constituição. Diferencia-se da classe um, portanto, tanto pelo

conteúdo quanto pela estrutura das falas, menos focadas em casos concretos

e mais voltadas para a necessidade de se respeitarem os direitos humanos.

Apelidamos essa classe de “é preciso defender os direitos humanos”.

Corresponde a 14% do total de UCE e possui 32 formas. Sua especificidade é

relativamente alta, também pela presença de jargão jurídico, desta vez de

direitos humanos.

Como foi apontado na descrição das categorias “bandido é coisa da

mídia” e “bandido é coisa do senso comum”, obtidas na primeira análise, as

falas sobre os direitos humanos aparecem em circunstâncias de ameaça à sua

eficácia. São direitos tolamente rechaçados pelo “senso comum” e violentados

pela “mídia”, por isso é preciso defendê-los. Os participantes falam como

incompreendidos. Conscientes de que são minoritários, mas que, ainda assim,

não desistem de seus princípios.

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As formas reduzidas dignidade (Khi2 = 50), homem (Khi2 = 43), direito

(Khi2 = 43), human+ (Khi2 = 37), direitos_human+ (Khi2 = 25), homen+ (Khi2 =

24), humanos (Khi2 = 24) e pesso+ (Khi2 = 11) dão uma clara visão de seu

conteúdo focado principalmente em apelos ao respeito da dignidade humana,

princípio ligado à ideia kantiana de que, por natureza, os homens possuem um

valor intrínseco e inerente à sua condição, que independente de qualquer

atribuição social de valor, seja social, econômica e até mesmo moral. À luz da

natureza, todos seriam dignos e é esta dignidade que as normas jurídicas e o

Estado deveriam respeitar. Os juristas defensores dos direitos humanos se

caracterizam pela autoatribuição da função social de lutar para que se respeite

tal dignidade. Já que ela é tida como inerente ao homem, são dispensáveis

apelos à Constituição para sua legitimação, o que implica na ausência das

formas reduzidas a ela relacionadas.

As formas reduzidas mínimo+ (Khi2 = 18), defensor+ (Khi2 = 12),

defesa+ (Khi2 = 9), perd+ (Khi2 = 7) e preserv+ (Khi2 = 7) apontam para o

caráter defensivo das falas desta classe, na qual os direitos humanos estão

sob ameaça, ou os seus defensores ameaçados pela incompreensão alienada

da população, mas que mesmo assim é preciso garantir que ao menos um

mínimo de dignidade não se perca nas engrenagens de uma máquina punitiva

socialmente injusta.

Esta classe mantem em comum com as falas da classe um a ideia de

ameaça ao direito. Está-se em luta por eles, seja a Constituição, ameaçada por

más leis ou decisões, sejam os direitos humanos, ameaçados por modos

autoritários e violentos de exercício do poder político e pelo obscurantismo do

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“senso comum” de um povo manipulado e amedrontado. Esta semelhança nos

levou a classificá-los numa mesma categoria denominada “o direito”.

No dendograma apresentado no gráfico 6, contudo, as classes um e dois

aparecem separadas, o que demonstra pouca proximidade entre as UCE que

as compõe no corpus. Em contrapartida, há grande proximidade entre a classe

dois e a classe três, onde aparecem as UCE cujo conteúdo mais se aproxima

dos discursos maniqueístas e contrários aos direitos humanos. Isto se dá pela

composição particular dos textos, onde os discursos equivocados da mídia e do

senso comum são primeiro apresentados para depois serem corrigidos pelo

discurso dos direitos humanos. A distância entre as classes um e dois se

devem ao uso alternativo do direito constitucional ou dos direitos humanos

contra o “senso comum”, de maneira que onde há a defesa dos direitos

constitucionais, pouco se precisa falar dos direitos humanos e vice-versa.

Isto não significa grande distância entre eles, ao contrário, o conteúdo

dos direitos humanos é semelhante ao constitucional, a começar pela

dignidade da pessoa humana, valor nos direitos humanos e norma no direito

constitucional. Mas como já apontamos, possuem usos instrumentais diferentes

e alternativos. O discurso constitucional afirma que regras devem ser

obedecidas porque são normas constitucionais e esta, por sua vez, deve ser

obedecida pelo que significa em termos políticos – a norma fundamental que

organiza o poder político e o sistema jurídico de uma nação -. Já os direitos

humanos deveriam ser obedecidos porque seriam inerentes ao homem, a

tradução jurídica da ideia de dignidade humana, e não porque seriam uma

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escolha política, como a Constituição. Quem apela para um direito

transcendente, não precisa de argumentos de ordem política para validá-lo.

A classe três, por sua vez, é a maior do corpus, correspondendo a

impressionantes 73% das UCE classificadas. Possui apenas 18 formas, mas

apesar disso, sua grandeza compromete a especificidade do conteúdo,

apresentando alguma dispersão. Isto se dá pela baixa quantidade de fórmulas

jurídicas e seu jargão próprio nas UCE desta classe. Possuem, ao contrário, a

riqueza de fórmulas que os discursos do senso comum possuem.

Denominamos esta classe de “crimes e criminosos”.

As formas reduzidas crime+ (Khi2 = 12), viol+ (Khi2 = 5), combat+ (Khi2

= 4), cade+ (Khi2 = 3), arma+ (Khi2 = 2) e organiz+ (Khi2 = 2), indicam

considerações sobre a criminalidade, a violência e as organizações criminosas

como um todo, sem necessariamente especificá-las ou conceituá-las. Fala-se

do fenômeno social da violência que, por efeito de seu acúmulo social, se

permitem tratá-la como algo evidente ao ponto de dispensar maiores

explicações. Quando contrapostos aos direitos humanos ou ao direito

constitucional, é dos efeitos dessa violência que os juristas falam, como o

medo, os preconceitos, e, sobretudo, a ideia de que a repressão violenta dos

criminosos é que solucionaria o problema da violência. Outras UCE são

discursos de terceiros, do “senso comum” ou da “mídia”. Outras, ainda, falas

em primeira pessoa muito semelhantes aos conteúdos associados pelos

juristas ao “senso comum”, porém utilizados geralmente na reivindicação da

aplicação rigorosa da lei penal aos corruptos e criminosos poderosos.

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Tão significativas quanto as formas reduzidas presentes na classe três

são as formas ausentes. Dignidade (-22), direitos_hum+ (-20), homem (-19) e

direito+ (-18) marcam a distância semântica destas UCE das da classe dois,

cujo conteúdo se refere aos direitos humanos. A proximidade estatística entre

as classes, entretanto, deixam claro o uso do discurso do senso comum como

antagônico aos direitos humanos.

Sendo a classe em que mais se fala de crimes e criminosos, é possível

extrair dela um conteúdo mais específico para a representação de bandido. As

reproduções dos discursos do senso comum, associando bandidos a

assassinos e estupradores, estão presentes nesta classe, mas são ampliados

pela indicação de outro tipo de criminoso, no caso, traficantes de armas,

corruptos – em especial empresários, políticos e policiais -, estelionatários que

cometem crimes virtuais, membros de facções criminosas, terroristas,

praticantes de racha etc..

Apesar de apontarem para práticas criminosas diversas, há algo em

comum entre elas, o poder social dos criminosos, muito superior ao dos

bandidos do senso comum, representados pelos sujeitos desta classe como

produzidos por uma sociedade desigual. Vítimas de injustiça social no passado

que agora vitimam criminalmente. É como se dissessem, “sim, há bandidos

violentos que matam e estupram, mas há outros até piores, como os corruptos

e os traficantes de armas, mas vocês que não são juristas só pedem a punição

dos bandidos menores e ainda querem que o façamos de qualquer maneira,

mesmo desrespeitando a dignidade humana”. Advogam o abrandamento do

sistema penal por um lado, mas reivindicam sua severidade por outro. Também

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repudiam seus “bandidos”, mas não defendem sua morte e sim a aplicação das

leis penais.

5. Discussão e conclusões

O “bandido”, pode ser conceituado como o criminoso que mereça as

maiores reprovações morais, aquele para quem crime e personalidade se

confundem ao ponto de sua conduta criminosa não ser considerada como uma

atitude eventual, mas o efeito de um princípio criminoso de ação que marcará

não apenas uma conduta específica, mas todo o seu agir. Uma qualidade e

não uma circunstância. Assim, o “bandido” assassino não é o que matou

alguém circunstancialmente, mas o que matou e matará novamente, assim

como o “bandido” corrupto é o que se permitiu corromper – ou corrompeu

alguém – e se corromperá novamente, pois corrupta é sua alma. Ao falar das

ações praticadas pelos “bandidos”, a qualidade se transforma em quantidade.

O “bandido” é o que mata muito, estupra muito e corrompe muito e a reação às

quantidades de mal praticadas são também quantitativas: mais prisões, mais

poder investigativo, mais escutas, mais policiais e mais mortes de bandidos.

Apesar de portador de um mal essencial, a qualidade desse mal é

diferentemente representada por juristas e não-juristas. Para os últimos, o

“bandido” é autor contumaz de crimes “de sangue”, como o assassinato e o

estupro ou patrimoniais com contato físico, como roubos e furtos. São uma

ameaça ao indivíduo, ao seu corpo e ao seu patrimônio pessoal e, por

extensão, às pessoas que lhes são queridas. Já para os juristas, o bandido é

acima de tudo alguém poderoso. Um corruptor do poder político e econômico a

seu favor. Enquanto não-juristas defendem o corpo, juristas se apresentam

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como defensores da sociedade, mesmo às custas de prejuízos individuais. São

comuns nas falas dos juristas acusações de individualismo e falta de uma visão

social tanto dos fatores que geram a criminalidade quanto de seus efeitos por

parte de não-juristas. As diferenças de atribuição de periculosidade entre os

dois implica também em diferenças no perfil socioeconômico dos “bandidos”,

sendo os representados por juristas de maior nível social do que os

representados por não-juristas.

Há, por outro lado, tanto entre os juristas quanto entre os não-juristas, os

que percebem o bandido como uma qualidade atribuída e, ainda que

diagnostiquem suas ações a partir de quantidades, refutam respostas

quantitativas ao problema da violência. São, por exemplo, os sujeitos que

defendem os direitos humanos por princípio e tecem críticas ao sistema de

justiça criminal, conscientes de que o problema da violência não se combate

com mais do mesmo sistema, mas com mudanças qualitativas tanto no sistema

quanto nas representações de crime e criminoso. Mas estes discursos, apesar

de mais frequentes entre juristas do que entre não-juristas, são minoritários nos

dois grupos.

Para os dois grupos a mídia foi objeto de discussões. Juristas

representam a mídia como contrária aos diretos humanos, já os não-juristas

fazem o oposto. Em ambos os casos, a justificativa para a defesa ou ataque

aos direitos humanos é a de que a mídia faria parte de uma conspiração para

dominar a sociedade não apenas ideologicamente, mas violentamente.

Alimentaria o medo para justificar a repressão violenta dos pobres para uns,

defenderia os bandidos pobres – reivindicando direitos humanos para estes -

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para permitir que os bandidos ricos – políticos, banqueiros e empresários –

possam dominar as classes média e baixa. Em ambos os casos, as teorias

conspiratórias representam a população em geral como facilmente

manipulável, sendo exceção o sujeito que denuncia esta conspiração. Tanto

juristas quanto não–juristas dizem “a mídia manipula, mas não a mim”.

Também ambos representam, em última análise, uma visão de luta de classes,

coincidindo quanto ao “lugar” de onde falam. Isto significa que quanto ao

alinhamento ideológico de classe, os sujeitos desta pesquisa, juristas e não-

juristas, demonstram ser da mesma classe social, no caso, a julgar pela forma

como denunciam elites e se associam às classes baixas referidas como

diferentes de sua própria, indicam ser de classe média.

Isto aponta para o fato de que as representações conflitantes de bandido

extraídas dos corpora – assassinos, estupradores e ladrões para uns, políticos

e poderosos em geral para outros – são pontos de vista dicotômicos de uma

mesma classe social – média - manifestada em campos sociais distintos de

maneiras também distintas. Inferior às classes altas, detentoras do poder

político e econômico, tendem a criminalizar suas práticas. Superior às classes

baixas e desejosa de manter sua superioridade social, corroboram os discursos

de criminalização e criminação dos “bandidos” violentos, pretos e pobres. Duas

faces de uma mesma moeda ideológica que, ainda que os campos sociais aqui

analisados defendam com predominância faces diferentes.

O modo de julgar da opinião pública - rápido, sem chances para o

contraditório e baseado apenas em um punhado de fatos veiculados pelos

meios de comunicação - é denunciado por juristas como preconceituoso e

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equivocado por princípio. Incompatível com a boa prática da justiça criminal.

Sua denúncia e rejeição pública é parte do exercício constante de

diferenciação e consequente legitimação do saber jurídico e dos seus porta-

vozes, os juristas, como os mais aptos a julgar com justiça os acusados da

prática de algum crime. Mais do que uma característica, a diferenciação do

“saber jurídico” do “senso comum” é parte importante das estratégias que

sustentam a pretensão dos juristas ao exercício do monopólio dos julgamentos

legítimos e justos de crimes e criminosos. Não defender tal separação seria

admitir que o campo jurídico não possuiria autonomia com relação à sociedade

da qual faz parte e que seu ofício se resumiria à repetição do que fora decidido

em instâncias sociais diversas, como a mídia ou instituições de pesquisa e

mensuração da opinião pública, por exemplo.

Pelo mesmo motivo, a ciência jurídica é apresentada por juristas como

um saber autônomo como estratégia para afirmar sua independência científica

na forma de uma teoria pura do direito27, de um sistema relativamente

autônomo28, como um sistema autopoiético29 ou mesmo em lições menos

sofisticadas do que as grandes teorias, mas profundamente difundidas e

incorporadas ao “senso comum dos juristas”30, como a distinção entre a

validade da norma jurídica – sujeita apenas a sua passagem pelos trâmites

legislativos e independente de qualquer inferência de ordem moral – e sua

27

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 11ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 28

LARENZ, Carl. Metodologia da ciência do direito. 6ª ed. Lisboa: FindaçãoCalousteGulbenkian,

2011.ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 4ª ed.

São Paulo: Saraiva, 2009. 29

TEUBNER, Günter. Autopoietic law: a new approach to law and society. Berlin: De Gruyter, 1987. 30

WARAT, Luiz. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Sequencia, 3(5), 1982, p. 51-57.

Disponível em: http://www.journal.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/17121/15692. Acesso em

28/01/2013.

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eficácia – a sua aceitação social -, distinção que se presta tão somente a

permitir que o jurista julgue ainda que com uma norma socialmente rejeitada,

por exemplo. Bourdieu resume a questão com perspicácia:

A reivindicação de autonomia absoluta do pensamento e da ação

jurídicos afirma-se na constituição em teoria de um modo de

pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa

de Kelsen para criar uma teoria pura do direito não passa do limite

ultraconsequente do esforço de todo o corpo dos juristas para construir

um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos

constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu

próprio fundamento.31.

Em suma, a construção do saber jurídico pelos juristas,

autorreferenciada em seus próprios valores e com vistas à legitimação do seu

exercício do monopólio da função social de julgar legitimamente os criminosos,

resulta na negação do caráter social e político do direito e, por conseguinte,

dos próprios juristas. Isto os permite afirmar valores particulares do campo

jurídico ou da classe social à qual pertencem como sendo universais e

impessoais. Isto resulta nos tipos de discursos flagrados no corpus “IBCCrim”,

onde falas contrárias aos direitos humanos, que exceto pelas diferenças de

estilo, são idênticas às produzidas pelos sujeitos no corpus “Carandiru”, são

31

BOURDIEU. Pierre. La force dudroit: elementspour une sociologieduchampjuridique. In Actes de

larechercheensciencessociales [versão eletrônica], (64), p. 3-16. 1986. p. 3.Disponível em:

http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_1986_num_64_1_2332. Acesso

em: 07/01/2013.

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sucedidas por discursos de defesa dos direitos humanos numa estratégia de

legitimação dos valores e saberes propriamente jurídicos pela deslegitimação

do senso comum e dos não-juristas, seus porta-vozes.

É preciso distinguir-se tanto simbólica quanto discursivamente. Os

ambientes, as vestes, comportamentos e falas, todos de uso incomum,

praticamente exclusivos dos ritos forenses, demarcam o espaço próprio dos

rituais de julgamento e avisa aos não pertencentes ao campo que está a

acontecer ali algo importante. Afirma-se que julgam bem porque julgam a partir

de critérios melhores do que os utilizados por não-juristas, como as leis, os

princípios e a doutrina propriamente jurídica. Critérios apresentados como

universalmente válidos e impessoais, gerando a força de seu discurso pela

ocultação de seu viés de pertencimento a um grupo social específico – o dos

juristas -. Faz-se crer que se legitimam pelo conteúdo de seu conhecimento,

quando, de fato, a forma dos rituais e, particularmente, da linguagem jurídica é

que lhes permite um efeito legitimador. A força do direito está na forma - e não

no conteúdo - de seus rituais. Na forma rebuscada, exagerada, “latinosa” e

rocambolesca de sua linguagem e de seus rituais.

A preferência pela criminação de condutas de pessoas poderosas –

sejam elas portadores de poder social, econômico, político ou mesmo de um

poder criminoso, como no caso dos membros de fações criminosas como o

PCC ou o Comando Vermelho – que flagramos nas falas do Corpus “IBCCrim”

- pode estar ligada não apenas à ideologia própria do campo jurídico,

influenciada por ideais de justiça social e do humanismo do século XVI e

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114

seguintes32 -, mas pelo modo particular como os juristas imaginam seu papel

social de defensores de ideais de justiça.

32

COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey. 2003

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2.3 Não são bandidos: representações sociais sobre autores de crimes em comentários de notícias policiais

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Não são bandidos: representações sociais sobre autores de crimes

em comentários de notícias policiais

Resumo

Este trabalho visa colaborar para a compreensão das distorções entre a

criminalização de uma conduta e os efeitos criminantes e incriminantes

advindos deste mesmo fato. Para tanto, analisamos as opiniões de leitores de

portais eletrônicos de notícias sobre os autores de dois crimes noticiados, uma

injúria racial e o homicídio culposo de um bebê. Ambos crimes de grande

repercussão nos meios publicados. Os dados foram analisados com o auxílio

do software ALCESTE (Reinert, 1998) e análise do discurso (Bardin, 2006).

Constatamos que apesar do indutor das respostas dos participantes serem

notícias de crimes, os sujeitos incriminados não foram representados como

criminosos ou “bandidos”. Os resultados nos permitem afirmar que a grande

reprovação moral do ato e o fato dele ser tipificado como crime não implica, por

si só na estigmatização de alguém como “bandido”.

Palavras-chave: Representações sociais, Opinião pública, Incriminação,

Racismo, Bandido.

They are not bandits: social representations of criminals in criminal news

comments

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Abstract

This work aims to contribute to understanding the distortion between the

criminal conduct judgments and the appointment someone as a criminal by the

same criminal fact. Therefore, we analyzed the opinions of readers of electronic

news portals about the authors of two crimes reported a racial insults and

manslaughter of a baby. Both crimes of great repercussion in the media

published. Data were analyzed with the aid of software ALCESTE (Reinert,

1998) and discourse analysis (Bardin, 2006). We note that despite the inducer

of participants' responses were news of crimes, the accused persons were not

represented as criminals or "bad guys". The results allow us to affirm that the

great moral disapproval of the act and the fact that it is considered a crime does

not in itself the stigma of someone as "bandit".

Keywords: Social representations, public opinion, Criminalisation, Racism,

Outlaw.

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No son bandidos: representacionessociales de losdelincuentesen

comentários a noticias de policia

Resumen

Este trabajo pretende contribuir a lacomprensión de ladistorsión entre

lacriminalización de laconducta y de losefectoscriminantes y

incriminatoriosconsecuentes de este mismohecho. Por lo tanto, se

analizaronlasopiniones de loslectores de portales de noticias electrónicos sobre

los autores de dos delitos denunciados, un insulto racial y elhomicidio de un

bebé. Ambos crímenes de granrepercusiónenlosmedios de comunicaciónenel

que se publicaron. Los datosfueronanalizadosconlaayudadel software

ALCESTE (Reinert, 1998) y elanálisisdel discurso (Bardin, 2006). Tomamos

nota de que a pesar delinductor de respuestas de los participantes eran

noticias de crímenes, lossujetos no estaban representados como delincuentes

o "malos". Los resultados nos permiten afirmar que lagrandesaprobación moral

de laley y elhecho de que se considera un delito no implica, por símisma, el

estigma de una persona como "bandido".

Palabras clave:Representacionessociales, Opinión pública, Acusación,

Racismo, Bandido.

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Introdução

A violência é um tema discutido de forma recorrente. Seja através das

artes audiovisuais como cinema ou programas televisivos, da literatura, da

pauta jornalística ou de trabalhos acadêmicos, a mensagem constantemente

transmitida é a de que ela nos assola. Às vezes é apresentada de forma

espetacular, como uma epidemia social de proporções quantitativas e

qualitativas inéditas. Estes discursos trazem embutidos, inerentes à sua razão

de ser, a ideia da contraviolência, de seu antídoto (Misse, 1999). No cinema,

por exemplo, as maldades de poderosos vilões encontram fim nos punhos

fortes e mira precisa de um herói autoconfiante. Nas matérias jornalísticas,

muitas vezes sensacionalistas, a mensagem de que é preciso mais policiais

nas ruas para deter a onda de violência. Em trabalhos acadêmicos esta

dialética também se repete. A violência é diagnosticada como se fosse um

conceito preciso a ensejar respostas igualmente precisas quando, de fato, pode

referir-se a ocorrências tão diversas como o estupro ou a falsificação de um

documento.

Zaluar (1999), destacando a dificuldade de conceituação da violência,

aponta que ela significa, a princípio, um modo exagerado ou ilegítimo de uso

de força onde tanto a ideia de força potencialmente violenta quanto a dos

limites entre o adequado e o exagero ou o legítimo e ilegítimo de seu emprego

são imprecisos. A violência não é um objeto natural, reconhecido por

características objetivas, mas social, dependendo da maneira como um evento

é valorado e significado por determinado grupo social. O reconhecimento de

uma ação como violenta dependerá da percepção variável – histórica e

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culturalmente - da perturbação ou do sofrimento que esta ação infligirá a um

grupo social específico. Para a autora, é pelos efeitos sentidos e percebidos e

não pela natureza ou qualidade da ação em si que a violência é significada.

Foi com a consciência desta dificuldade conceitual acerca da violência

que Misse (1999; 2008) criou a noção de “acumulação social da violência”,

como forma de orientar seu trabalho para uma abordagem abrangente e não

enviesada de fenômenos sociais rotulados como violentos e suas

consequências para o cenário brasileiro atual.

Abdico de operar com um conceito de violência, qualquer que ele seja, e

tomo-o como referente da representação social de um perigo, de uma

negatividade social que é assimilada a uma seleção de práticas e

agentes cujos cursos de ação, heterogeneamente motivados,

carregariam seu signo uniforme. Refiro-me à representação social de um

perigo, de uma negatividade social que é assimilada a uma seleção de

práticas e agentes cujos cursos de ação, heterogeneamente motivados,

carregariam seu signo uniforme. Refiro-me à representação de um

poderoso fantasma social, ao seu crescimento quantitativo, à sua

crescente abrangência e diferenciação, mas também às representações

de seus tipos ideais, de sua localização urbana, de sua história, de seus

motivos e do que é necessário fazer para destruí-lo (Misse, 1999, p. 46).

A tese de Misse se desenvolve pontuando o processo histórico, ocorrido

no Rio de Janeiro a partir dos anos 50, de desenvolvimento de uma

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representação social da violência como efeito das profundas transformações

sociais ocorridas no Brasil desde então e que acabaram por produzir as

condições de possibilidade para a emergência de grupos de justiçamento nos

anos 70 como os Esquadrões da Morte e o comércio armado do narcotráfico

nas favelas cariocas e milícias dos dias atuais (Misse, 2008). Fenômenos

sociais reativos que combatem violências diversas com outras tantas formas de

violência, onde operadores de violências diversas se enfrentam a título de

eliminação da violência, sem que necessariamente percebam que

desenvolvem, ao longo desse processo, um verdadeiro ethos de classe, “um

sistema de valores implícitos que as pessoas interiorizam desde a infância e a

partir do qual engendram respostas a problemas extremamente diferentes”

(Bourdieu, 2003, pp. 238-239). Esse ethos facilmente reconhecido em grupos

sociais de operadores de violência como traficantes e milicianos, também pode

ser encontrado de forma difusa na sociedade e que emerge na forma de apoio

social a operações policiais violentas, ao extermínio de “bandidos” e, de forma

mais extrema e direta, em linchamentos (Souza, 1999; Menandro& Souza,

1991).

Os efeitos representacionais da acumulação da violência são, segundo

Misse (2010), estigmatizantes de pessoas, lugares e atitudes. São atos de

atribuição de sentido a uma realidade social que geram efeitos segregadores e

permitem a adoção de tomadas de posição violentas, entendidas como reações

legítimas e justas, ante uma percepção de violência ou perigo de violência,

entendidos como ilegítimos e injustos. A expiação do medo socialmente

desagregador gerado pela violência se daria pela sua objetivação na forma de

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um agente causador desta violência e sua punição, como o sacrifício de um

bode expiatório dos temores sociais difusos decorrentes do acúmulo de

violência (Fauconnet, 1928 e Girard, 2008). Um elemento central deste

processo é o sujeito associado à cultura e aos lugares violentos, a figura

conhecida como “bandido”:

o sujeito criminal que é produzido pela interpelação da polícia, da

moralidade pública e das leis penais. Não é qualquer sujeito incriminado,

mas um sujeito por assim dizer "especial", aquele cuja morte ou

desaparecimento podem ser amplamente desejados. Ele é agente de

práticas criminais para as quais são atribuídos os sentimentos morais

mais repulsivos, o sujeito ao qual se reserva a reação moral mais forte e,

por conseguinte, a punição mais dura: seja o desejo de sua definitiva

incapacitação pela morte física, seja o ideal de sua reconversão à moral

e à sociedade que o acusa. (Misse, 2010, p. 17).

As representações sociais

Segundo definição de Jodelet (1989), as RS são “uma forma de

conhecimento, socialmente elaborado e compartilhado, que tem um objetivo

prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto

social” (1989, p. 36). Sua natureza social implica que não há representação

social eterna e nem universal, sendo ela sempre a representação de algum

objeto formulada por determinado grupo em determinado momento. São

construídas e se transformam através de processos comunicativos entre os

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participantes de um determinado grupo ao longo do tempo, mas isso não

significa que elas coincidam com aquilo que se diz acerca de determinado

objeto valorado e significado. As representações sociais não são um discurso,

ainda que possam ser expressas discursivamente e a ordem dos discursos

seja, em boa medida, um de seus efeitos. Elas são um saber - uma modalidade

de conhecimento, como prefere Jodelet (1989) - que organiza e estrutura a

percepção de um sujeito. Discursos e atitudes são seus efeitos, não sua

natureza revelada. Isto implica que a compreensão das representações sociais

exige mais do que a apreensão dos discursos dos sujeitos de um campo social

acerca de determinado objeto. É necessária a compreensão de como esse

discurso se adequa a práticas, a ações, a comportamentos e em quais

circunstâncias práticas elas se transformam e a partir de qual processo

histórico e metassistemas elas são formadas e se transformam.

Neste sentido, Jodelet (2008 p.50 e ss.) defende que os estudos sobre

Representações Sociais devem contemplar três “esferas de pertinência”.

Considerando que a representação social é sempre a representação de um

sujeito e de um objeto e que tanto um como outro devem ser pensados a partir

de suas características inter-relacionais, ou seja, a partir de um sujeito

pensante que seja um ator social inserido numa série de conflitos, identidades

e posições relacionais; e de um objeto que tem seu significado e valor definido

a partir da forma como é representado por um determinado sujeito. Em suma,

todo estudo sobre representações sociais deveria levar em conta tanto os

fatores intersubjetivos - o campo social e as relações dos sujeitos estudados

com outros sujeitos desse campo e estranhos - quanto os subjetivos - os

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sujeitos entrevistados e seus discursos e atitudes em determinada situação - e

os transubjetivos - os fatos, processos de comunicação e acontecimentos

atuais e históricos que singularizam o espaço público de relações no campo

social -.

Esta investigação procura contemplar duas destas dimensões. A

subjetiva ao analisar os discursos produzidos pelo senso comum frente a

notícias de crimes. A transubjetiva ao considerar na análise os conteúdos das

notícias sobre crimes indutoras dos discursos de leitores destas notícias.

Consideradas as afirmações de Fauconnet (1928) e Girard (2004) de que a

estigmatização de determinados indivíduos é forma de lidar com o medo

consequente da violência, os discursos midiáticos sobre a violência criminal

podem constituir um dos fatores transubjetivos de formação e transformação

das representações sociais de criminosos. Neste sentido, correlações entre o

medo da violência criminal e o número e formas de divulgação das notícias

sobre crimes podem ser um indicativo dos fatores que influenciam na dinâmica

destas representações.

A relação entre crime e medo é de tal ordem complexa que chega a ser

uma grosseira simplificação dizer que um é causa do outro. Trabalhos como o

de Schafer, Huebner e Bynum (2006); Evans e Fletcher (2000) e Garofalo

eLaub (1978) demonstram não só a inexistência de relação de causalidade

direta entre aumento do número de crimes e medo, como apontam que às

vezes se dá o oposto, com a redução do medo de ser vitimado por criminosos

em momentos de aumento de crimes e vice-versa. Isto pode ser explicado por

uma lógica simples. Uns são vítimas de crimes, outros os testemunham, mas

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uma quantidade enorme de pessoas apenas recebe diariamente notícias de

crimes através dos meios de comunicação ou de pessoas próximas que

tenham sofrido ou testemunhado algum tipo de violência, de maneira que é

bastante razoável concluir pela influência das formas de se noticiar crimes nos

processos representacionais da violência e, portanto, do medo e da

representação de “bandido”, seja pela mídia ou outras formas de comunicação.

Trabalhos como o de Coelho, Oliveira, Rosa e Souza (2009), que a partir

de entrevistas realizadas em rede com vítimas e pessoas social e afetivamente

próximas a elas, apontam que as não-vítimas apresentaram “maior abalo

emocional, maior modificação de comportamentos, bem como uma sensação

maior de insegurança, entre outros” (p. 0), o que indica que além das notícias

de crimes atingirem diretamente mais pessoas do que o próprios crimes

noticiados, a influência emocional desta notícia pode ser maior do que o do

próprio crime.

Trabalhos como os de Romer, Jamieson eAday (2003), que analisam

correlações estatísticas entre as variações de ocorrências criminais, as notícias

de crimes e a sensação de insegurança em determinada região, sugerem que

o modo como a violência é apresentada pelos meios de comunicação afeta

mais significativamente o medo da violência criminal do que o aumento do

número de ocorrências criminais. Heath e Gilbert (1996), ao analisarem

correlações entre formas diferentes de se noticiar os mesmos crimes e as

recepções destas mensagens por parte de leitores de regiões específicas,

apontam que, independente do tipo de crime que se noticia, as características

das mensagens tais como o sensacionalismo, o quanto a notícia criminosa

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ocupa de espaço entre as demais notícias, o local do crime e de divulgação da

notícia, a existência ou não de elementos dramáticos nas narrativas

jornalísticas e se as notícias apresentam ou não um desfecho em que a justiça

é reparada influenciam diretamente no aumento ou diminuição do medo.

No entanto, também não se pode tributar apenas à quantidade de

notícias de crimes veiculadas pelos meios de comunicação o medo da violência

criminosa. Wilson (2003) e Evans eFletcher (2000) sugerem que fatores como

a incivilidade ou a desordem urbana também afetam o modo como se teme a

violência criminosa, de tal maneira que é possível perceber variações

geográficas nos níveis de medo mesmo se neste mesmo espaço há igual

cobertura dos meios de comunicação.

Isto indica que os meios de comunicação e o modo como a violência

criminal é comunicada – e não nos referimos aqui apenas aos jornais

impressos e televisivos, mas ao cinema, à literatura e às narrativas populares e

comentários intersubjetivos sobre crimes – influencia diretamente na formação

e transformação das representações criminais dos sujeitos estigmatizados

como representantes e produtores de toda uma violência urbana difusamente

temida. Como observa Rouquette (2000), as representações sociais seriam

uma “condição de coerção variável” do comportamento (p. 44), o que significa

dizer que uma vez estigmatizados os tipos ideais ou os “bandidos” para cada

tipo de crime, este estigma funcionaria como um dado objetivo a orientar, ainda

que de forma não absoluta, o comportamento incriminador de pessoas e

condutas.

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Teríamos, então, dois dados objetivos a considerar com relação aos

julgamentos criminais, o primeiro seria a criminalização de determinada

conduta - o ato político de definir, a partir de uma lei e na forma de um tipo

penal que descreve uma conduta e a ela atribui uma sanção, uma atitude como

criminosa -. O segundo dado seria o ato de imputar esta conduta a alguém, que

Misse define como criminação (2008). Ele aponta como uma das

consequências do processo social de acumulação social da violência o

descompasso entre a criminalização de uma conduta e os processo de

criminação de alguém nestes mesmos crimes, ou seja, estigmatizadas algumas

pessoas, por suas características sociais e culturais, como os criminosos ideais

de determinado crime, efetivamente incriminá-los por estas práticas torna-se

mais recorrente do que a incriminação de pessoas que não corresponderiam

ao “perfil”.

Se esta diferenciação entre incriminação e criminalização ocorre, o

simples fato de apontar alguém como autor de um crime, ainda que em tom

sensacionalista e apesar de toda a influência que isto pode ter na formação das

representações sociais da violência criminal, pode não ser suficiente para que

haja a efetiva incriminação do sujeito apontado, com atitudes de reprovação

moral de sua conduta e condenação de sua atitude. Isto aponta para a relativa

autonomia dos critérios subjetivos de incriminação de alguém, tendo como

consequência a influência nos julgamentos criminais do modo como o

criminoso é objetivado nas representações sociais de crimes. Esta regra valeria

tanto para condenação de alguns agentes quanto para a absolvição de outros

que sejam discrepantes do perfil definido pelo modo como o criminoso de

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determinado crime é objetivado. O que buscamos nesta investigação é

identificar os discursos em torno desta discrepância, recolhidos em

comentários sobre crimes que, apesar da grande reprovação moral que

demonstram ter pelo ato, os leitores tratam de forma descriminante o acusado

pelo crime. Acreditamos que esta análise possa contribuir para melhor

compreender as representações sociais de crimes e sobretudo o papel que

desempenha nos processos de julgamento o modo como o criminoso é

objetivado.

Objetivos

Apontar as representações sociais de leitores de notícias na internet,

tratados aqui como representantes do senso comum, sobre os autores de dois

crimes (injúria racial e homicídio culposo) noticiados em portais eletrônicos de

notícias e analisar como elas influenciam nos processos de criminação e

incriminação dos sujeitos apontados como autores destes crimes.

Método

Selecionamos duas notícias sobre crimes dos portais eletrônicos:

g1.globo.com e Band.com.br, descritas na apresentação dos resultados. Elas

foram escolhidas por terem sido nos dias de sua publicação as mais

comentadas pelos leitores destes sítios. Somadas as duas notícias, foram

coletadas as opiniões de 573 sujeitos, sendo 317 mulheres e 245 homens,

além de 11 sujeitos cujo gênero não pode ser identificado.

Os dados foram analisados separados em dois corpora, cada um

composto pelos comentários a uma das notícias, e analisados em duas etapas,

seguindo as sugestões de Nascimento eMenandro (2006). Na primeira etapa

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foi realizada uma análise de discurso (Bardin, 2006) e na segunda foi utilizado

o software ALCESTE (Reinert, 1998). Tanto o conteúdo quanto o estilo das

notícias foram levados em conta na análise.

Procedemos na análise dos comentários realizadas na primeira etapa

realizando uma primeira leitura de cada corpus buscando identificar

regularidades que nos permitissem categorizar trechos destes comentários.

Após isso, numa segunda leitura, dividimos o corpus em unidades de conteúdo

– UC – e as classificamos segundo as categorias anteriormente extraídas.

Neste momento, nos permitimos rever as categorias nos valendo do

amadurecimento de nosso contato com o corpus. Finalmente, numa etapa

propriamente analítica, contabilizamos a frequência de determinada categoria a

fim de verificarmos sua importância para o corpus e verificamos as

proximidades e relações entre as categorias nos comentários dos sujeitos.

Para facilitar estes procedimentos analíticos, reunimos num único arquivo todas

as UC de uma mesma categoria, o que nos permitiu ter uma visão do seu

significado conjunto. Após isto, retornamos ao corpus e relemos as UC de cada

categoria na sua posição original no corpus, a fim de melhor verificar suas

interrelações.

Resultados

Corpus 1: Racismo

A matéria “Mulher é detida por injúria racial contra médico negro do

Samu na BA” (G1, 2012) narra a prisão de uma professora de 45 anos presa

em flagrante pelo crime de injúria racial, cuja pena varia de um a três anos de

reclusão e multa – artigo 20 da Lei 7.716/89 -, em Juazeiro, Bahia. Ela teria

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chamado o médico que realizava os primeiros procedimentos para o transporte

de seu marido até um hospital de “negrinho metido a besta”. Foi solta após o

pagamento de fiança no valor de um salário mínimo. Consta da matéria

entrevista com o ofendido que justificou o acionamento da polícia não pela

ofensa racial, mas pela agressão que dá a entender ser corriqueira às equipes

do SAMU. Ilustra a reportagem uma foto do médico vitimado pela injúria. Não há

fotos ou entrevista com a indiciada.

Dos 517 comentários a esta notícia, apenas os de 217 sujeitos, divididos

entre 91 mulheres, 121 homens e cinco sujeitos cujo sexo não pode ser

identificado, estão acessíveis e compuseram o corpus desta análise. A análise

inicial resultou em 236 UC classificadas em uma dentre sete categorias (Figura

1).

Figura 1: Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “Racismo”

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Nas três primeiras categorias, “critica ou ofende a acusada”, “elogia a

vítima” e “defende a punição”, estão concentrados os discursos incriminantes

da acusada e representam 57,5% do total analisado, o que indica que a maioria

dos sujeitos reprova a ação da acusada e/ou defende as punições às quais ela

está sujeita. Os juízos de condenação são fortemente concentrados na pessoa

da acusada e não no racismo.

A primeira categoria “critica ou ofende a acusada” é composta por

comentários que ofendem diretamente a pessoa da acusada por ser uma

professora que se comporta de modo racista ou pelo nome que possui,

Creuzenilda, considerado feio. Com base apenas no nome e profissão

(professora), muitos sujeitos traçaram dela a imagem de uma mulher feia,

rabugenta, pobre e arrogante.

Este conteúdo difamatório apareceu fortemente ligado ao segundo

“elogia a vítima”, em que os sujeitos, quase sempre mulheres, elogiavam a

beleza do médico injuriado, muitas vezes acompanhados de manifestações de

interesse em conhecê-lo pessoalmente. Outros elogiaram sua atitude de

denunciar a injúria racial, neste caso os sujeitos se disseram negros.

Os que defendem a punição, o fazem atrelado a elogios à atitude do

médico em denunciar a injúria ou, mais frequentemente, a análises sobre o

racismo no Brasil e a importância de sua criminalização. Outros acham a

punição possível, de um a três anos de reclusão em regime fechado, pequena

diante da gravidade do caso e criticam o sistema penal brasileiro.

A categoria “critica a punição”, que corresponde a apenas 10% do

corpus, contem os discursos mais diretamente descriminantes da conduta da

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acusada. A maioria não nega a importância da criminalização da injúria racial,

mas vê o caso como um exagero. Outros, no entanto, criticam a criminalização

do racismo considerando sua prática algo sem importância. Defendem a tese

de que o racismo não existe no Brasil ou, ainda que existente, sua

criminalização é injusta para com os brancos ou outras minorias que não teriam

o “privilégio” que os negros têm com tal proteção legal.

Na quarta categoria, “analisa o caso” foram incluídos os trechos de

comentários que se limitaram a manifestar opiniões gerais sobre o caso, muitas

vezes ponderando hipóteses sobre a personalidade dos envolvidos ou os fatos,

sem emitir juízo de valor. A sexta categoria foi composta por críticas à matéria

jornalística por erros de português, trechos que geraram dúvidas no leitor e,

principalmente, por uma discrepância entre a manchete da primeira página do

site e o conteúdo da notícia.

A segunda etapa de análise, com o auxílio do software ALCESTE,

resultou em aproveitamento de 86% do corpus, composto por 6359 formas,

sendo 1635 distintas. A riqueza de vocabulário é de 95,72%. Foram apontadas

três classes estáveis (Figura 2).

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Figura 2 - Classes resultantes da análise do software ALCESTE realizada sobre o

corpus “racismo”

A classe 1 contem 35 UCE e representa 12% do conteúdo analisado.

Apenas 12 formas compõem as palavras-chave desta classe, o que garante

uma alta especificidade de vocabulário. Apelidada de “elogios, xingamentos e

cantadas”, esta classe contém os discursos que equivalem às categorias

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“critica ou ofende a acusada” e “elogia a vítima”. Ele é composto em sua

maioria por mulheres, havendo, portanto, uma ausência significativa de

homens (Khi2 -3).

O que o vocabulário e a análise de conteúdo realizada na primeira fase

apontam é para um discurso de desqualificação da pessoa da acusada não

pelo ato que ela praticou, segundo a notícia, mas por ser, supostamente, uma

mulher feia. As mulheres que compõe esta classe produzem o discurso de

crítica à atitude de rejeição de um homem bonito por parte de uma mulher feia.

Já os homens da classe, induzindo pelo nome e profissão que ela seja pobre

e/ou arrogante, criticam sua “autoridade” para ofender alguém. Alguns inclusive

apontam o fato dela ser professora e ele médico.

Em ambos os casos, as falas pressupõe a injúria como uma

desqualificação indevida de alguém, no caso, desqualificação da beleza ou da

posição social. As falas não giram em torno da questão racial propriamente

dita, o que é indicado pela ausência significativa das formas reduzidas típicas

das falas em que se discute a questão racial, como rac+ (Khi2 -6), negr+ (Khi2

-4), branc+ (Khi2 -4), negro+ (Khi2 -4), cor+ (Khi2 -2) e pel+ (Khi2 -2). Para

estes sujeitos, a questão em tela não é racial, mas de hierarquia social.

Apesar da existência de grande condenação moral da acusada de injúria

- no caso desta classe, mais por ser ela quem é do que por sua atitude -, em

todo o corpus não há a expressão “bandido”. Mesmo sendo a maioria dos

comentários claramente contrários à autora da injúria racial – somados os

trechos que criticam ou ofendem a autora, elogiam a vítima e defendem a

punição, chega-se a 57,5% do total, enquanto a crítica à punição representa

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apenas 10% do corpus – e maior parte dos comentários – 26% - ofensivos. Foi

chamada de “criminosa”, “desqualificada”, “imbecil”, “arrogante”, “retardada”,

“lixo miserável”, “filha do cruz-credo” e “excremento”. Expressaram grande

reprovação moral do fato e da acusada, mas ainda assim, essa pessoa tão

ricamente ofendida, não foi qualificada como bandida.

A classe 2, chamada por nós de “morreu ou passa bem?” representa

apenas 6% do corpus. Possui 17 UCE e vocabulário composto por 20 palavras-

chave. Possui uma especificidade de vocabulário mais baixa que a da primeira

classe, mas ainda assim consistente. É composta pelas falas que criticam a

matéria jornalística, identificado em 8% do corpus na primeira etapa de análise.

Seu conteúdo é resultado de um erro grave na apresentação da notícia no site

de notícias, que deixa dúvidas sobre o que teria acontecido com o paciente

atendido pelo médico injuriado, se morreu ou passa bem.

A classe 3 abrange quase todo o corpus (82%). Com tal grandeza, não

se pode esperar grande consistência, como se constata pela baixa relevância

estatística (Khi2) das formas reduzidas mais significativas desta classe. O

vocabulário é composto por 24 palavras-chave. Nela estão as falas sobre a

questão racial, motivo pelo qual a apelidamos de “discutindo o racismo”.

O seu conteúdo não pode ser classificado, como na primeira etapa de

análise, em criminantes ou descriminantes, pois as formas reduzidas pesso+

(Khi2 7), branc+ (Khi2 7), negros (Khi2 7), negr+ (Khi2 3), branquel+ (Khi2 3),

servem tanto a falas de condenação do racismo e da injúria racial quanto à sua

prática. As ausências bastante significativas das formas creuzenilda (Khi2 -97)

e nome (Khi2 -67) denotam a distância desta classe com relação à classe 1, o

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que significa que os discursos raciais estão distantes dos que fortemente

condenam a acusada. A ausência significativa das formas morr+ (Khi2 -49) e

paciente (Khi2 -39) indicam a desconexão entre os discursos raciais e as

criticadas inconsistências da notícia típicas da classe 2.

As formas reduzidas crime (Khi2 2) e culp+ (Khi2 2) indicam que parte

do conteúdo da classe 3 é composta por falas que defendem a criminalização

do racismo, mas sem que haja a partir disso uma clara incriminação da

acusada que justifique classificá-la como bandida.

Corpus 2: Pai mata a filha

A notícia “Bebê morre após ser esquecido em carro no RJ” (Primeiro

Jornal, 2012) é uma reprodução, no portal de notícias da rede bandeirantes de

televisão, de um trecho do programa jornalístico “Primeiro Jornal”. Estão

disponíveis um vídeo de pouco mais de três minutos e um pequeno texto.

Noticiam a morte, por asfixia, de uma menina de dez meses que foi esquecida

por seu pai no banco de trás do carro. O programa jornalístico é bastante

sensacionalista e o apresentador emite claros juízos de reprovação moral do

pai em comentários como: “será que ele esquece de tomar uma com os

amigos, de ir a um churrasco, de bater uma bola, será? Esquece de sair com

uma mulher, sei lá quem?” (Primeiro Jornal, 2012, vídeo). Já o texto que

acompanha o vídeo se limita a narrar os fatos da notícia.

O corpus foi composto pela totalidade dos comentários realizados por

356 sujeitos (compondo número igual de UCI), sendo 226 mulheres (63,48%),

124 homens (34,83%) e 6 (1,68%) sujeitos cujo sexo não puderam ser

identificados. Foram excluídos alguns que não possuíam pertinência com o

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tema noticiado, como propagandas. O número final de comentários analisados

foi de 356 (UCI), composto por 23.633 palavras ou 113.497 caracteres sem

considerar os espaços. Na primeira etapa de análise, o texto foi lido e dividido

em 443 UC, que foram classificadas em uma dentre 11 categorias (Figura 3).

Figura 3 – Tipos de categorias de classificação das UC do corpus “Pai mata a filha”

As duas primeiras categorias, “foi uma fatalidade” (14,5%) e “o remorso

é a maior punição” (11,5%), abrangem os comentários que, de alguma forma,

se solidarizam com o acusado. Analisam o evento sem vilões, apenas vítimas.

A diferença entre elas é que a primeira é composta por opiniões sobre

existência ou não de culpa por parte do pai, já a segunda, por comentários

sobre a necessidade ou não de uma punição judicial, independente de

qualquer conclusão sobre a sua responsabilidade. Todas as críticas ao

jornalista (6,5%) são por sua postura sensacionalista e também demonstram

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solidariedade para com o pai, porém, sem expressar diretamente juízo quanto

à culpa do acusado ou à pertinência de uma eventual punição judicial. Juntas,

estas três categorias formam o corpo dos argumentos em defesa do acusado –

UC descriminalizadoras – e somam 32% das UC.

As categorias “analisa o caso” e “expressam sentimentos” limitam-se, no

caso da primeira categoria, a tecer comentários sobre argumentos trazidos em

outros comentários ou na própria notícia, ou a divagar sobre questões

incidentais ao caso. Os comentários classificados como expressão de

sentimentos são em sua totalidade manifestações de espanto, horror, tristeza

ou pena. Pela ausência de conclusões pró ou contra a culpa do pai, estes

comentários não podem ser computados como acusatórios ou defensores.

O conjunto das UC criminalizadoras do pai é composto pelas categorias

“defende a punição” – que considera o acontecimento como o efeito de uma

banalização da vida que pode ser evitada se houver uma punição judicial, em

especial a prisão –; “quem ama não esquece” – frase que resume o principal

argumento dos que, por um lado, negam que o evento tenha sido uma

fatalidade e, por outro, afirmam que esquecer um filho é impossível e apenas

quem não é um verdadeiro pai o faz – e “defende a punição”, que reúne os

apelos à punição do pai como forma de se fazer justiça ou de evitar que

eventos assim se repitam. Estas duas categorias somam 21% do total de UC

analisadas.

Foram contabilizadas outras duas categorias incidentais: “mãe é melhor

do que pai” (1%) e “pai é igual a mãe” (2%). Eles compõem dois lados de uma

discussão sobre os papéis desempenhados por pai e mãe na criação de filhos

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e possuem conexão direta com as opiniões elencadas na categoria “quem ama

não esquece”. Apesar de percentualmente baixa a sua ocorrência, seu registro

foi realizado na releitura do corpus quando percebemos que as representações

postas nos comentários não eram de criminosos ou bandidos, mas de “pai”.

Na segunda etapa de análise, o software ALCESTE classificou 72% do

vocabulário do corpus, que apresentava uma porcentagem de riqueza de

vocabulário de 97,51%. Isto resultou em 646 UCE divididas em 3 classes

estáveis (Figura 4).

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Figura 4. Classes resultantes da análise do software ALCESTE realizada sobre o

corpus “pai mata filha”

A classe 1, cujo conteúdo pode ser resumido à frase “carregará a culpa

pelo resto da vida”, é composta de 70 UCE, o que corresponde a 15% do

conteúdo classificado. É a menor das três classes e seu vocabulário (57

palavras analisadas). As palavras-chave desta classe indicam discurso

compatível com a categoria “o remorso é a maior punição”, emitindo juízo

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quanto à desnecessidade de uma punição judicial ao pai, já sendo suficiente a

culpa que supostamente o afligirá pelo resto da vida. A palavra “bandido”

aparece nesta classe com relevância estatística (Khi2 = 6), seu uso, porém,

está associada aos argumentos que reforçam a desnecessidade de uma

punição judicial, pois o pai não seria um “bandido”.

A classe 2, apelidada de “quem somos nós para julgar?”, é composta de

246 UCE, o que corresponde a 54% do conteúdo classificado (99 palavras

analisadas). Seu conteúdo é composto por análises do caso que buscam, por

um lado, refutar os argumentos que defendem punição judicial para o pai ou

que acentuam sua irresponsabilidade ou falta de amor pela filha, por outro,

afirmam que o ocorrido foi uma fatalidade, que um esquecimento como aquele

pode acontecer com qualquer um ou denotam um discurso religioso através de

variações do ditado bíblico “não julgueis e não sereis julgados”.

Esta classe apresenta plena correspondência com a categoria “foi uma

fatalidade”, encontrada na primeira fase, mas possui interface em parte com

várias outras, como a “analisa o caso”, “critica jornalista” e “o remorso é a maior

punição”. Isto ocorre, em parte, pela amplitude da categoria e baixa

especificidade do vocabulário, mas sobretudo pelas diferenças de critério na

classificação do corpus. Enquanto o ALCESTE se baseia na detecção de

regularidades das formas reduzidas do vocabulário, a análise da primeira etapa

é focada no sentido de trechos das opiniões coletadas.

A expressão “bandido” não aparece nesta classe que, em comum com a

classe 1 apresenta o fato de ser composta de discursos que são

descriminantes do pai, seja pela não atribuição de responsabilidade – foi uma

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fatalidade e, por isso, não podemos julgá-lo - ou pela atribuição de

responsabilidade sem condenação moral que implique em punição – o pai é

responsável, mas foi uma fatalidade e poderia ter acontecido com qualquer um.

A classe 3 ou “quem ama não esquece”, contém os discursos de

condenação moral e incriminação do pai, sendo compatível com as categorias

“o pai foi irresponsável”, “quem ama não esquece” e “defende a punição”,

resultantes da primeira etapa de análise. Ela é composta por 144 UCE,

correspondendo a 31% do total, com 65 palavras analisadas. Antes da emissão

dos juízos condenatórios os sujeitos desta classe, relatam o caso, o que

colocam as palavras carro, bebê, banco (relativo a banco traseiro do carro),

almoço (quando ocorreu o evento) em evidência. As palavras “bebê” e “objeto”,

além de várias citações de objetos como celular, carteira ou mochila aparecem

em raciocínios que reforçam o desamor do pai pela filha, pois quem esquece

um bebê, o trata como a um objeto, cujo esquecimento seria corriqueiro e

legítimo. Seu conteúdo, de uma forma geral, abrange tanto os apelos à punição

judicial do pai quanto afirmações de sua responsabilidade moral e jurídica.

A negação da possibilidade de alguém esquecer a filha e a associação

desta negação ao amor paterno e materno indica que a representação evocada

por esta notícia não foi a de um crime ou criminoso, propriamente, mas a de

“pai”. As hierarquizações entre pai e mãe ou, mais especificamente, entre o

amor materno e o paterno, já apontados, reforçam esta conclusão.

Os sujeitos da classe 3 não falam de julgamento, julgam. Não se referem

ao pai usando o pronome demonstrativo “desse”, o que torna a referência mais

impessoal, dando a impressão de que se fala de um personagem sem

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singularidade relevante, um dentre outros tantos. Usam em seu lugar o

pronome “ele” ou “este” (pai, idiota, celerado, etc.), denotando tratar-se de um

sujeito específico, de um pai único, que não ama sua filha, um canalha que a

trata como um objeto ao ponto de esquecê-la, alguém muito diferente de um

pai ou de uma mãe normais.

Ao invés de se contraporem aos apelos pelo perdão punitivo nos

mesmos termos que os usados pelos indivíduos da classe 1, os sujeitos da

classe 3 preferem tecer digressões e hipóteses sobre a personalidade do pai, o

que levaria à conclusão da ausência de dor pela perda da filha e necessidade

de puni-lo. Este pai seria um “idiota irresponsável [...] mais preocupado com

almoço com amigos do que a filha” (sujeito 137, homem), ou alguém que

esqueceu a filha por causa de “poder, dinheiro e ganância” (sujeito 121,

mulher), ou ainda alguém cujas prioridades não são o ser humano, mas

“trabalho, negócios, dinheiro, ter, ter, ter, conquistar, ganhar mais” (sujeito 303,

mulher).

Apesar das várias formas indiretas de qualificar o pai causador da morte

da filha, a palavra chave de sua representação é pai e não criminoso, bandido

ou quaisquer dos vários adjetivos que lhe foram atribuídos nas opiniões

analisadas. Ao esquecer a filha, o pai teria, para os que ancoram suas falas em

representações mais novas de paternidade (Trindade &Menandro, 2002, p. 21),

falhado no exercício de suas atribuições de cuidador. Para os que representam

a paternidade de forma tradicional e mais comum, o que implica na divisão de

tarefas entre a mãe cuidadora e carinhosa - que nunca esqueceria o filho - e o

pai provedor e protetor, o esquecimento do pai foi resultado de uma

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impertinente assunção de uma função - a de cuidador - que caberia

naturalmente à mãe.

Conclusão

Apesar das notícias apontarem os responsáveis pelos crimes

apresentados, não houve criminação severa por parte dos leitores das notícias.

Significaram o conteúdo das notícias a partir de suas representações sociais

que, no caso da primeira notícia, foram as relativas a posições sociais e no

caso da segunda, as de “pai”. Mesmo quando a notícia possuía conteúdo

sensacionalista ou outros elementos que pudessem influenciá-los.

A notícia da morte da criança esquecida pelo pai foi apresentada de

maneira bastante sensacionalista, o que influenciou alguns comentários que

chegaram a repetir os argumentos do apresentador. Para outros, contudo, o

sensacionalismo gerou o efeito contrário, provocando críticas ao jornalista. O

motivo destas reações é que o sensacionalismo foi significante o bastante para

pautar as reações dos comentadores, mas não para influenciá-los diretamente.

Como o que foi evocado pelos agentes foram as representações de “pai” e não

de “bandido”, o discurso sensacionalista foi recepcionado por alguns como

incompatível com os fatos e criticado como um exagero. Outros, valendo-se

das mesmas representações, mas reconhecendo o sujeito como um mau pai,

recepcionaram o discurso criminalizador como pertinente.

Estes resultados demonstram que tornar uma conduta criminosa à luz da

lei penal, não significa necessariamente na reprovação moral de seu agente

por parte da sociedade. No caso dos sujeitos incriminados desta pesquisa,

apesar da grande reprovação moral dos crimes a eles relacionados, seus

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autores não foram considerados “bandidos”. Faltaram-lhes elementos que

permitissem aos comentadores significa-los como tal. Isto corrobora as

afirmações de Misse (1999, 2010) quanto à existência de discrepâncias entre

os critérios de criminalização das condutas e a incriminação dos sujeitos

apontados como autores de crimes. No caso das representações sociais,

aquelas relativas aos sujeitos – pai e posição social - e não às relativas ao

crime é que aparecem nos comentários, o que demonstra que nos julgamentos

criminais, ao contrário do que afirmam os manuais de processo penal como

sendo diretrizes éticas de julgamento (Lima, 2012; Tourinho Filho, 2013;

Oliveira, 2013), julgam-se pessoas e não os fatos independente de quem seja o

acusado pelo crime.

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2.4O bandido na justiça: representações sociais dos juízes sobre criminosos na jurisprudência do STJ

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O bandido na justiça: representações sociais dos

juízes sobre criminosos na jurisprudência do STJ

JUDGE’S SOCIAL REPRESENTATIONS ABOUT CRIMINALS IN STJ’S

JURISPRUDENCE

Resumo:

Pesquisa empírica sobre representações sociais (Moscovici, 2012) de

juízes sobre criminosos. Foram analisadas 206 decisões monocráticas cíveis e

criminais de ministros do Superior Tribunal de Justiça – escolhido pela

variedade regional de seus componentes - publicadas entre janeiro de 2000 e

dezembro de 2012. O termo de busca de decisões no sítio eletrônico do STJ foi

a palavra “bandido”, considerada como expressão de formas estigmatizadas de

julgar (Misse, 2010). Os resultados foram analisados segundo as formas

tradicionais de análise de conteúdo (Bauer, 2012; Kelle, 2012), com o auxílio

do software MAXQDA (Kuckartz, 2007). Os resultados apontam para

representações de criminosos e crimes discrepantes entre juízes criminais e

civis, o que aponta para modos diferentes de julgar quando a “personalidade do

agente” torna-se um elemento central – âncora (Tversky e Kahneman, 1974) -

da decisão.

Palavras-chave: Representações sociais; Análise de conteúdo; Jurisprudência;

Crime; Imparcialidade.

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Abstract:

Empirical research on judges social representations (Moscovici, 2012)

about criminals. Analyzed 206 monocratic civil and criminal STJ justice‟s

decisions - court chose by regional variety of its components - published

between January 2000 and december 2012. The STJ‟s website search term

was the word "bandit", considered an expression of stigmatized forms of judging

(Misse, 2010). The results were analyzed according to traditional forms of

content analysis (Bauer, 2012; Kelle, 2012), with the aid of MAXQDA software

(Kuckartz, 2007). The results point to representations of criminals and crimes

discrepant between criminal and civil judges, pointing to different ways of

judging when the "agent's personality" becomes a central element - anchor

(Tversky and Kahneman, 1974) - of the decision.

Keywords: Social representations; Content analysis; Jurisprudence; Crime;

Impartiality.

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152

Introdução

Julgar requer imparcialidade – não se antecipar ao julgamento, tomando

parte de um dos lados do conflito, antes que todas as provas e argumentos

tenham sido apresentados - e impessoalidade – não se permitir influenciar por

critérios subjetivos, emoções ou preconceitos -. Neste sentido, julgar segundo o

senso comum, que seria caracterizado pela crença na existência de “„tipos

sociais‟ de agentes demarcados (e acusados) socialmente pela pobreza, pela

cor e pelo estilo de vida” (Misse, 2010, p. 18), é considerado uma perigosa

distorção dos critérios justos de julgamento criminal, que deveriam ser focados

nos atos praticados pelo acusado e não em suas características sociais

(Schecaira, 2012; Batista, 2011; Baratta, 2002; Hulsman&Celis, 1982; Cervini,

1993).

A diferenciação entre saber jurídico e senso comum é uma estratégia de

legitimação de decisões jurídicas. Elas seriam melhores do que as não-

jurídicas porque o juiz que as proclama não o faria segundo suas paixões ou

influência social, mas tão somente pelo “saber jurídico”, de forma imparcial e

impessoal. Por outro lado, os juízes seriam imparciais e impessoais – e

demonstram estas qualidades - pelo simples fato de afirmarem que julgam

segundo o “saber jurídico” e não segundo o senso comum. Imparcial porque

jurídico, ao mesmo tempo, jurídico porque imparcial. Como o Barão de

Münchausen, que teria saído de uma poça de lama puxando a si mesmo pelos

cabelos, os juristas autolegitimam sua função social e virtudes a partir de uma

tautologia (Löwy, 1994). Como o “saber jurídico” não é nada mais do que o

saber próprio dos juristas, não é pelo seu conteúdo que ele se diferencia do

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senso comum, mas pelos rituais de sua enunciação pelos juristas. A força do

direito, anunciado como saber esotérico, está na forma - e não no conteúdo -

de seus rituais. Na forma rebuscada, exagerada, “latinosa” e rocambolesca de

sua linguagem e de seus rituais. (Bourdieu, 1986).

No formalismo ritualístico e linguístico dos juristas, a expressão

“bandido” (Misse, 2010) é denunciada como construção do “senso comum” e

denotaria uma forma preconceituosa ou estigmatizada de julgar, na qual o

critério de julgamento seria o foco na personalidade do acusado e não em suas

ações. Pouco importaria a classe social, a aparência ou as atitudes de quem é

apresentado para julgamento; o jurista seria imune, pelo saber que lhe é

próprio, desse preconceito tão comum ao senso comum e dominante nos

julgamentos feitos pela opinião pública.

No lugar de “bandidos”, haveria criminosos ou “sujeitos ativos de delitos”

na linguagem forense (Polastri Lima, 2012; Grecco Filho, 2012; Tourinho Filho,

2012). Exemplo interessante desse policiamento da linguagem que afasta

expressões como “bandido” pode ser encontrado no sítio do Tribunal de Justiça

do Estado de São Paulo na internet. Nele há um manual intitulado Técnica de

Redação Forense. Não é um documento oficial, apesar do endereço virtual o

ser, mas obra do Desembargador aposentado Alexandre Moreira Germano

(Germano, 2007). O propósito do manual não é a apresentação de questões

gramaticais, mas de estilo. Ensina o que se deve e o que não se deve escrever

numa peça processual, além de como fazê-lo com elegância - qualidade

essencial e distintiva de um texto jurídico - Segundo o manual,

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A boa redação é elegante. Escrever com elegância significa escrever

com escolha, com gosto, com distinção (em latim, elegantia vem de

eligere, eleger, escolher). A linguagem elegante é elevada, trata os

temas com dignidade, usa palavras selecionadas [...]. A redação

elegante não ofende nem agride, trata os temas com elevação, evita o

óbvio. Assim, em matéria jurídica, nunca se deve escrever “o facínora”,

“o bandido”, “o malfeitor”, “o marginal”, mas apenas o que está no

Código: o réu (eventualmente, o acusado). (p. 9).

O manual cria uma exceção para permitir o uso não só de expressões

como “bandido”, mas até mesmo de palavras chulas e muito distantes do

vocabulário vetusto dos juristas, como palavrões e expressões vulgares. É o

caso das transcrições de testemunhos para os autos dos processos.

Dificilmente o discurso dos acusados é transcrito em sua integralidade

linguística para os autos. Poucas são as varas criminais no país que contam

com estenógrafos para transcrever literalmente o que for dito, o uso de

recursos eletrônicos como câmeras de vídeo para registro dos depoimentos

ainda é visto com muitas ressalvas pelos juristas e seu uso é realizado mais

em caráter experimental do que rotineiro.

O que geralmente acontece é o registro nos autos não da fala do

interrogado, mas do juiz, que a “traduz” numa linguagem mais objetiva –

segundo a perspectiva do próprio juiz -, enxuta e asséptica, onde os efeitos

simbólicos de violência da linguagem são catequizados na forma de conceitos

jurídicos. Assim, enquanto o acusado diz que “deu uma porrada em fulano”, o

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juiz faz constar que “o acusado chegou às vias de fato contra fulano”. Esta

prática, reconhecida pelo manual de Germano, é censurada em parte.

Reconhecendo os eventuais prejuízos que este ato de censura pode trazer aos

autos como instrumento de julgamento justo, prefere “que fique constando a

palavra usada, tal como foi dita, do que procurar aleatoriamente substitui-la por

outra, que nem sempre corresponde ao que foi dito pela testemunha na sua

simplicidade ou sinceridade” (Germano, 2007, p. 40).

Regras de elegância e policiamento linguístico à parte, a expressão

“bandido”, utilizada em referência a um acusado criminalmente, é encontrada e

repetida em decisões judiciais em circunstâncias que podem indicar se tratar

não de uma inadequação da linguagem, mas da influência nos juízes do senso

comum acerca dos tipos sociais estigmatizados pela violência (Misse, 2010),

representada como a acumulação de transgressões que constantemente

estariam a extrapolar limites, na forma da ousadia e maldade dos criminosos e

contra a qual seria preciso reagir (Misse, 1999). Segundo os critérios do campo

jurídico para a construção da decisão correta, esta influência seria um erro no

“raciocínio jurídico” (Monteiro, 2012; Madeira Filho, 2005).

Estudos de psicologia cognitiva sobre como os juízes julgam, baseados

em estudos mais gerais sobre os processos de tomadas de decisões

complexas, como os realizados por Dhami (2003), Tversky e Kahneman

(1974), Hans e Vidmar (2001) e Guthrie, Rachlinski e Wistrich (2000), definem

o raciocínio típico dos juízes em deliberações como as referentes a

julgamentos judiciais como “heurísticos”. Como explica Gunthrieet all. (2000, p.

782), é normal que em tomadas de decisão complexas adotemos atalhos

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mentais, ou seja, que decidamos levando-se em conta não todas as questões

que tenham alguma relevância para o caso, ponderados segundo a sua real

importância, mas que simplifiquemos o raciocínio considerando apenas

algumas destas questões, a este tipo de simplificação é denominado raciocínio

heurístico.

Decisões heurísticas não são necessariamente ruins, desde que as

questões a serem consideradas nas decisões sejam realmente relevantes.

Estudos empíricos sobre o pensamento heurístico realizado com juízes como

os de Guthrie, Rachlinski e Wistrich (2000) e de Englich, Mussweiler e Strack

(2006) apontam para a ocorrência de erros sistemáticos de decisão entre juízes

pela ocorrência de “ancoragem” nas decisões heurísticas. As investigações

sobre o chamado efeito de ancoragem demonstram que um padrão escolhido

aleatoriamente numa tarefa julgamento comparativo pode influenciar

dramaticamente os julgamentos subsequentes. Na experiência de Tversky e

Kahneman (1974), por exemplo, foi perguntado a um grupo de voluntários se a

porcentagem de nações africanas na ONU é superior ou inferior a um número

arbitrário (âncora). As respostas variavam na razão direta da “âncora” que lhes

era apresentada.

Nestas experiências citadas, as “âncoras” eram argumentos ou ideias

apresentados poucos instantes antes do julgamento a ser realizado pelos

participantes. A ideia central dos erros de ancoragem é o de que argumentos

ou ideias irrelevantes para o julgamento, presentes de alguma forma no

momento da decisão, podem acabar assumindo uma predominância no

raciocínio decisório e levar o juiz a erro. Este seria o caso de uma decisão

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judicial baseada não nos fatos cometidos por alguém, mas por quem ele é aos

olhos do juiz; pelos seus estigmas (Goffman, 2008).

Argumentos de condenação baseados em considerações sobre a

pessoa acusada podem ser indicativos de julgamentos ancorados na pessoa

do agente e, portanto, enviesado por estigmas. Este tipo de consideração em

decisões criminais são comuns – e até obrigatórias – em algumas

circunstâncias previstas no Código Penal – CP – utilizando-se para isso a

expressão “personalidade do agente”. Ela aparece cinco vezes no CP, em

normas que definem critérios de avaliação de possível substituição da pena

restritiva de liberdade por pena alternativa (inciso III do artigo 44 do Código

Penal – CP); ou de quantificação da pena a ser aplicada (artigos 59, 67,

parágrafo único do artigo 71, todos do CP); ou ainda de avaliação da

possibilidade de suspensão condicional da pena (inciso II do artigo 77 do CP).

Todas estas normas pressupõem que a condenação do acusado já tenha

acontecido, tratando agora apenas de definir as consequências a aplicar, o que

significa que a “personalidade do agente” não é, segundo o CP, um critério

para a condenação propriamente dita.

Não sendo possível, ou pelo menos razoável supor, que se conheça de

fato a personalidade de alguém através da análise de peças processuais como

depoimentos, fotos e discursos, fica evidente que a personalidade é o produto

não de uma descoberta por parte do juiz – como afirmam com frequência em

decisões – mas de uma atribuição do seu significado. Ela é algo representado

mentalmente e não descoberto intelectualmente. A teoria das representações

sociais de Moscovici (2012) nos auxilia na compreensão deste processo.

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Segundo definição de Jodelet (1989, p. 36), as representações sociais

são “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e compartilhado, que

tem um objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum

a um conjunto social”. Elas são, por um lado, um processo cognitivo de

apreensão de uma dada realidade na forma não de sua fiel imagem

reproduzida mentalmente, como se a mente fosse um espelho da realidade,

mas como uma reprodução reduzida, simplificada e significada da realidade e,

por outro, o critério mediador dos modos de se relacionar com dada realidade.

“Reconhece-se, geralmente, que as representações sociais, como sistemas de

interpretação, que regem nossa relação com o mundo e com os outros,

orientando e organizando as condutas e as comunicações sociais. Igualmente

intervêm em processos tão variados quanto a difusão e a assimilação dos

conhecimentos, no desenvolvimento individual e coletivo, na definição das

identidades pessoais e sociais, na expressão dos grupos e nas transformações

sociais” (Jodelet, 1989 p. 37).

A “personalidade do agente” utilizada de forma a direcionar a decisão

criminal e não apenas como um critério de modulação dos efeitos de uma

condenação – como a quantificação da pena atribuída, por exemplo – pode ser

um reflexo da forma como o “bandido” típico de determinado crime é objetivado

pelos juízes. As formas como os criminosos são referidos pelos juízes e os

efeitos práticos das inferências acerca de sua personalidade ou outras

características pessoais nos julgamentos podem nos auxiliar a conhecer as

representações sociais dos juízes acerca dos criminosos e apontar alguns

efeitos destas representações na prática da justiça.

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Objetivo

Identificar as formas de referência a criminosos nos dois tipos

processuais de decisões monocráticas existentes no Superior Tribunal de

Justiça (STJ): cíveis e criminais; e analisar os tipos de expressão utilizados, as

circunstâncias da referência aos criminosos e os sentidos destas expressões

nestes processos. Estes resultados são reveladores das representações

sociais (Moscovici, 2012) de juízes sobre criminosos e podem indicar modos

enviesados de se julgar nos casos em que a “personalidade do agente”,

conforme se a representa, é tomada como argumento de fundamentação de

decisões de mérito.

Método

Amostra

A partir de uma série de pesquisas de jurisprudência no sítio eletrônico do

Superior Tribunal de Justiça (STJ), utilizando o termo de busca “bandido”,

coletamos 206 decisões monocráticas publicadas entre janeiro de 2000 e

dezembro de 2012, sendo 77 (37,4%) de natureza criminal e 129 (62,6%) de

natureza civil derivada de algum crime. Para cada decisão coletada anotamos

o ano de sua publicação, o tipo de ação e o Ministro que a proferiu.

A escolha do STJ como fonte da coleta se deve ao fato de que, por ter

competência processual para apreciar recursos em processos originados em

todos os judiciários estaduais e na Justiça Federal, suas decisões

necessariamente abrangem conteúdos produzidos por todo o judiciário

nacional, fato que nos permite simplificar a coleta sem comprometer a

abrangência.

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Análise dos dados

Realizamos análise de conteúdo com o auxílio do software para análise

qualitativa de dados MAXQDA (Kuckartz, 2007). A análise de conteúdo com o

auxílio deste recurso consiste na realização, por parte dos pesquisadores, de

categorizações de trechos escolhidos dos discursos que compõe o corpus,

trechos estes a que chamamos de unidades de contexto elementar ou UCE.

Estas categorizações, que depois puderam ser analisadas em suas

coocorrências e frequências no corpus com recursos estatísticos do MAXQDA,

são baseadas no significado de determinada expressão ou trecho,

considerando seu contexto.

As UCE foram analisadas por categorias, sendo estas subdivididas em rótulos

– apresentados nos resultados -. Os critérios de categorização e rotulagem

foram criados após uma primeira leitura do corpus e revista na medida em que

novas leituras foram sendo realizadas, obedecendo assim às etapas da análise

clássica de conteúdo: leitura preliminar, leitura, classificação e quantificação

(Bauer, 2012; Kelle, 2012).

Resultados

Criminoso

A categoria “criminoso” (Figura 1) foi atribuída para os trechos tanto

descritivo/transcritivos quanto decisórios em que a expressão “bandido” foi

utilizada como sinônimo de criminoso. É a forma mais moralmente neutra de

sua utilização no corpus, sem indicação de grandes reprovações morais do

acusado. Nas decisões criminais ela aparece sempre no plural e em trechos

decisórios. É utilizada, geralmente, para designar outros criminosos que não

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aquele que é parte no processo em julgamento. São referências a comparsas,

a outras pessoas que participaram de alguma forma na história do crime ou a

criminosos em geral. São exemplos deste uso: “Há Informes de atuarem de

modo arbitrário não apenas contra bandidos, mas até mesmo contra pessoas

normais, a exemplo do constrangimento de pequenos comerciantes” (decisão

010, habeas corpus, 2012) ou “informaram que os pacientes estavam

associados para o tráfico ilícito de entorpecentes, roubo, receptação de cargas

e repassar informações privilegiadas a bandidos.” (decisão. 062, habeas

corpus, 2011).

Figura 1 – Sentido atribuído à expressão “bandido” em decisões criminais e cíveis. Dados

quantificados por número de ocorrências no corpus.

Algumas vezes a expressão é também utilizada como argumento

retórico de fundamentação de uma reprovação moral de alguma conduta, como

ocorre na decisão 135: “Ora, tolerar tal tipo de atitude e conferir a esses

bandidostratamento mais brando, a título de serem tais meliantes vítimas

36

28 27

84

44

14

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

Criminoso Homem mau Contrário homem de bem

Sentenças criminais

Sentenças cíveis

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sociais, é premiá-los e ir contra os interesses maiores da população

trabalhadora...” (habeas corpus, 2007).

Nos casos de reprovação moral de um sujeito específico ela aparece em

umas poucas decisões em que os envolvidos são policiais, empresários ou

políticos, pessoas que poderiam ser consideradas, de alguma forma,

poderosas, o que indica uma maior reprovação moral de criminosos poderosos

do que daqueles que constituem os frequentadores habituais da justiça

criminal, os pobres; como na decisão 032: “extorquem bens de cidadãos

indefesos, em conduta que, caso comprovada em sede judicial, mostra-se pior

que aquela praticada pelos bandidos que têm o dever legal de combater.”

(habeas corpus, 2011) ou “De qualquer forma, os crimes investigados são

gravíssimos, praticados por pessoas que se escondem atrás de empresas,

como falsos comerciantes probos, quando, na verdade, são bandidos da pior

estirpe.” (decisão 107, habeas corpus, 2008).

Da mesma forma como ocorre nas decisões em processos de natureza

civil, a utilização da expressão “bandido” como sinônimo de criminoso também

é predominante em trechos decisórios. Somado ao fato desta ser a forma de

utilização da expressão mais comum em todo o corpus, podemos concluir que

este é o uso comum realizado por juízes em seus discursos em primeira

pessoa, restando as demais categorias (“contrário de homem de bem” e

“homem perigoso”) como pertencentes a outros agentes do campo jurídico

como advogados, promotores e partes nos processos. Isto é compatível tanto

com a imparcialidade que se espera de magistrados quanto da parcialidade

que se espera de advogados, promotores e partes.

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Já nas decisões cíveis, a expressão também tem um sentido mais

genérico e um frequente uso no plural, mas que difere deste uso semelhante

em decisões criminais pela expressão servir não apenas como a designação

de um grupo de sujeitos numa narrativa, mas também como elemento retórico

de decisões nas quais a maior ou menor gravidade de um crime serve de

parâmetro para a justificativa de uma decisão de natureza civil. Ela tem mais

frequentemente um sentido moral condenatório de crimes e criminosos ou

expressam, ainda, algum tipo de desprezo por criminosos. “... apontado, para

que alguém não se renda aos caprichos dos bandidos. E nem se diga que a

colocação de uma escolta de segurança poderia evitar o evento. Os bandidos

estão cada vez mais ousados.” (decisão 112, agravo de instrumento, 2008).

Há também a presença de discursos nos quais o ministro expõe seus

pensamentos acerca da criminalidade, dos criminosos ou das vítimas.

“Ressalto que a meu ver nenhuma reação contra um homicida é

voluntariamente uma imprudência da vítima que se opõe inutilmente a um

assalto, porque senão nenhuma vítima sobreviveria a ataques de qualquer

bandido.” (decisão 128, recurso especial, 2007); “entendo, data maxima vênia,

que houve imprudência e negligência por parte da infortunada consumidora ao

cair nas mãos desse bandido que conseguiu dela subtrair patrimônio.” (decisão

001, agravo em recurso especial, 2012); ou “Abro um parêntese para registrar

por meio deste voto a realidade de uma sociedade que muitas vezes se sente

ameaçada tanto pelos bandidos quanto pela polícia, e consignar a infeliz

constatação de que tal confusão muitas vezes é fruto de um mal entendido,

que leva aos constitucionalmente investidos da manutenção da ordem a

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compreender que impor respeito e autoridade implica em agir com brutalidade.”

(decisão 081, agravo de instrumento, 2010).

Falas deste tipo em decisões criminais poderiam ser facilmente

interpretadas como demonstração de parcialidade do juiz e comprometer sua

atuação no processo, mas em se tratando de decisões de natureza civil onde,

em tese ao menos, os fatos em julgamento, ainda que derivados de um crime,

independem da maior ou menor gravidade do crime ou da periculosidade de

seus autores. Em resumo, nas decisões de natureza civil os ministros se

mostram menos contidos ao expressarem seus sentimentos acerca da

violência criminal.

Homem mau

A categoria “homem mau” foi atribuída a trechos do corpus onde a

expressão “bandido” foi utilizada como sinônimo de uma personalidade

violenta, como indicação de um criminoso perigoso seja por sua personalidade,

seja pela história de seu crime. Utilizamos como critério não apenas a

expressão em si, mas o contexto de sua utilização, de maneira que a sua

relação com outros adjetivos que denotam a maldade ou periculosidade do

criminoso do qual se fala ou elementos narrativos que denotam a

dramaticidade da ação dos criminosos nos serviu de referência para a

atribuição desta categoria.

Nas decisões criminais esta categoria aparece mais em conteúdos

decisórios, sendo que nos trechos descritivo-transcritivos ela é comumente

acompanhada da categoria “contrário de homem de bem”, o que explicaremos

mais adiante. Seu uso, ao contrário do que se dá com os casos da categoria

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anterior, é específico com relação a um criminoso ou a um grupo de criminosos

que também é parte no processo em julgamento, como na decisão 67: “A

vítima estava bastante embriagada quando foi alvejada pelos bandidos, que

fugiram levando consigo a arma do crime, deixando um rastro de terror e

silêncio na localidade.” (habeas corpus, 2011); ou “... o recorrido e seus

comparsas são temidos bandidos no bairro em que residem e que, por várias

vezes, barbarizaram seu comércio, promovendo tiroteios...” (decisão 118,

habeas corpus, 2008)

Todos estes usos aparecem em decisões que negam pedido de habeas

corpus (HC) em casos de prisão preventiva. O HC é uma ação na qual se pede

que uma prisão supostamente ilegal seja anulada e o chamado “paciente” –

termo técnico que indica a pessoa em favor de quem se pede a ordem de HC –

seja solto. Sendo HC em casos de prisão preventiva, os fundamentos da

decisão que negam a soltura do preso devem procurar demonstrar que a

decisão que os prendeu estaria de acordo com Artigo 312 do Código de

Processo Penal (CPP), segundo o qual “A prisão preventiva poderá ser

decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por

conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal,

quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”.

Nestas circunstâncias, o uso da expressão aparece para demonstrar que

a soltura do preso implicaria em risco para a “ordem pública”, pois o bandido

continuaria a aterrorizar a sociedade, ou então prejudicaria a “conveniência da

instrução criminal” porque poderia destruir provas ou ameaçar testemunhas.

Em todos estes casos, apresentar o “paciente” como possuindo uma

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personalidade má, que se solto causaria ocorrências criminais dramáticas ou

de excepcional violência, é usado como argumento válido para a negação do

pedido de HC.

Em outros tipos de processo submetidos a julgamento no STJ, como

embargos ou recursos diversos, onde não se discute se alguém cometeu ou

não o crime, mas se o direito penal e processual penal foi bem aplicado,

qualquer juízo moral contra o acusado seria uma demonstração de

imparcialidade, de tomada de partido antecipada. No caso de HC, sendo esta

uma decisão em um processo, o momento processual exige o contrário da

imparcialidade. O juiz precisa tomar parte e finalmente decidir, no caso, se a

soltura do paciente é ou não conveniente para a segurança da sociedade ou da

instrução criminal.

Este fato torna as decisões em HC relevantes para esta pesquisa sobre

representações sociais uma vez que toda a autocensura discursiva que os

magistrados se impõem a fim de evitar demonstrar alguma imparcialidade

deixa de fazer sentido. Sem censura e com menos formalismos, expõe de

forma mais livre o que pensam que, segundo os dados coletados no corpus,

são pontos de vista com relação à violência e aos criminosos mais severos e

condenatórios do que os discursos predominantes nos manuais de criminologia

(Schecaira, 2012; Batista, 2011 e Baratta, 2002) e direito penal (Zaffaroni

ePierangelli, 1997; Bitencourt, 2013), claramente descriminantes de condutas e

defensores de tratamentos penais brandos e até abolicionistas de prisões

(Hulsman eCelis, 1982; Cervini, 1993) podem fazer crer. Esta severidade se

mostra também em algumas decisões que, assumidamente, tomam posições

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inovadoras e mais severas no sentido de manter os “pacientes” presos, como

na decisão 166: “Registro ainda que, a moderna Jurisprudência,

acompanhando naturalmente a expedição dos inevitáveis Alvarás de Soltura

que colocaram em liberdade bandidos da mais alta periculosidade, com base

no excesso de prazo, vem abrandando a norma inserida no CPP,

reconhecendo como justificado o excesso em diversas circunstâncias.” (habeas

corpus, 2002).

Nas decisões de natureza civil em que a expressão “bandido” aparece

no sentido de “homem perigoso”, apesar de extraídas de tipos distintos de

processos, elas dizem respeito quase que na sua totalidade a um tipo de caso:

pedidos de indenização por danos materiais ou morais em decorrência de

crimes. Estes pedidos não são formulados contra os criminosos, mas contra

terceiros que, segundo os que pedem indenização, deveriam ter agido de

maneira a evitar o crime. São ações de vítimas de crimes contra os

estabelecimentos comerciais onde o crime ocorrera, como supermercados,

lojas e hotéis; ou contra o Estado a quem, por princípio, compete garantir a

segurança de todos.

Nestes casos, compõe a série de argumentos usados para negar os

pedidos é ressaltar a periculosidade, a fúria ou a engenhosidade dos

criminosos. Isto permite afirmar que o crime e os criminosos seriam

imprevisíveis ou incontroláveis pela sua audácia ou fúria, o que desculpa a

parte de quem se pede alguma indenização pelo crime. São exemplos deste

uso decisões como 004: “Na hipótese dos autos, não resta evidenciado a culpa

do apelado. Seus prepostos foram abordados por perigosíssimos bandidos

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fortemente armados com fuzis, não obstante toda a cobertura técnica

estipulada contratualmente, dois carros-fortes com o total de oito seguranças,

inexistindo margem para qualquer tipo de reação para evitar a ocorrência do

crime de roubo.” (recurso especial, 2012); ou a decisão 013: “... a empresa de

transporte ferroviário não tem condições de evitar assalto com arma de fogo,

na plataforma de embarque, quando os bandidos estão enfrentando até mesmo

as próprias forças de segurança do Estado. Trata-se, sem dúvida, de assalto

praticado com violência, cenário capaz de ilidir a presunção de culpa da

transportadora.”(agravo regimental, 2012).

Apesar de estes casos serem os mais abundantes no uso da expressão

“bandidos”, há um segundo tipo de decisões em processos civis que discutem

não a indenização por não ter evitado um crime, mas agora indenizações pela

prática dos crimes de difamação, injúria ou calúnia. O Código Penal Brasileiro

os chama de “crimes contra a honra” e, portanto, uma vez caracterizadas tais

ocorrências, pede-se que a honra da vítima seja restabelecida através de

alguma indenização.

Para atender a estes pedidos, é comum o uso da expressão para

destacar a ofensa recebida, como se dissesse que o autor da ação merece ser

indenizado porque fora chamado de bandido perigoso, algo pior do que ser

chamado de criminoso ou mesmo de bandido. Quanto pior a ofensa, mais

justificada seria condenação de alguém a indenizar a vítima, o que faz com que

a expressão seja utilizada aqui não para negar o pedido do autor, como ocorre

no tipo de caso descrito acima, mas para o deferir, como na decisão 189 “...

sem qualquer vínculo com a causa, o apelado de maneira graciosa, reprovável

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e voluntária, aviltou sua pessoa, proferindo ofensas ardilosas e gratuita,

comparando-a a bandidos e a mal feitores que gostam de se apoderar do

alheio.” (agravo em recurso especial, 2012); ou “sua honra, sua personalidade,

seu estado psicológico e emocional foram totalmente abalados porque no ato

de sua despedida, alegadamente por justa causa, teria sido humilhado e

tratado como marginal, vagabundo e bandido.” (decisão 133, conflito de

competência, 2007).

Contrário de homem de bem.

Na categoria “contrário de homem de bem” foram classificados os

trechos de decisão em que a expressão “bandido” aparece como parte do

vocabulário de frases como “ele não é bandido, mas cidadão de bem” ou de

outras que, apesar de vocabulário diverso deste, transmitem a mesma ideia.

Não se trata de identificar alguém negativamente como bandido, mas de fazer

o contrário. Nas decisões criminais ela aparece predominantemente em trechos

descritivo-transcritivos. São falas de terceiros, no caso, promotores, advogados

e acusados, como na decisão 003: “Relata que o acusado não aparenta ser

traficante e bandido, pelo contrário, provou ser pessoa de bem, sempre

afirmando ter adquirido a droga para o seu próprio uso” (habeas corpus, 2012);

ou “Aduz que inexiste qualquer prova de que, em liberdade, o paciente

represente perigo para a paz social, equivalendo dizer, que não se trata de um

bandido, de um celerado, que coloca em risco, com sua liberdade a ordem

pública” (decisão 040, habeas corpus, 2011).

O tipo de ação predominante deste tipo de discurso também são os HC,

onde o argumento de afirmar que o “paciente” não é um “bandido” faz parte da

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estratégia para se conseguir o relaxamento de alguma prisão preventiva. Na

área civil, seu uso é comum em ações nas quais se pede indenização contra o

Estado pelo uso excessivo da força por parte de policiais, como na decisão

092: “Uma das pessoas que estava em nosso grupo disse que éramos

funcionários da Klabin de São Paulo, que estávamos em Telêmaco Borba a

serviço da empresa, ao que eles contestaram aos gritos e apontando as armas,

como já disse, engatilhadas, para meu colega, como se estivessem se dirigindo

a um bandido.” (recurso especial, 2009); ou “Afirma, nesse sentido, que, não

obstante seja pai de família, honrado e trabalhador, foi humilhado na frente de

sua esposa e filhos e tratado como se bandido fosse.” (decisão 009, agravo em

recurso especial, 2012).

Apesar dos usos distintos, ainda que no mesmo sentido, tanto os

ministros da área criminal quanto os da área civil reconhecem que a expressão

“bandido” é pejorativa e ofensiva, como na decisão civil 097: “A publicação de

matéria ofensiva em panfleto, com autoria confessada, imputando ao ofendido

a condição de bandido, por não pagar suposta dívida de campanha política, e

integrante de bando, causa a este injusta agressão à sua honra, passível de

indenização por dano moral.” (agravo de instrumento, 2009); ou na decisão

criminal 023 “Há nesse ofício indício de ofensas à honra, com possíveis

consequências penais. Ameaça é crime, e colaboração, a qualquer título, a

fraude fiscal, também o é. Referir-se a alguém, no caso, o Querelante, como

bandido, como políticos dessa laia, ofende.” (recurso em habeas corpus, 2012).

Em quase todos estes casos presentes no corpus em que chamar

alguém de “bandido” foi considerado ofensivo, o ofendido era político, juiz ou

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empresário. As exceções em que aparecem pessoas “comuns”, citadas nas

decisões sem nenhuma outra qualificação que o termo processual adequado

para indicar sua condição, como “autor” ou “agravante” por exemplo, são

naqueles em que alguém foi qualificado como “bandido” de forma equivocada

pela imprensa, como na decisão civil 77 onde se julgou o caso da divulgação

em um programa telejornalístico da imagem da vítima como se fosse a autora

de um crime violento: “matéria televisiva com referência ao autor como

bandido, vagabundo, e expectativa que ele, o autor, e a mulher assaltante,

tivessem falecido em consequência dos tiros da polícia, sentença de

procedência com arbitramento do dano moral em R$ 19.000,00, e retratação

pública” (agravo de instrumento, 2010).

Outros termos para os criminosos

Para que possamos fazer uma comparação, analisamos outros termos

utilizados por ministros (nos trechos decisórios) e por juristas em geral (nos

trechos transcritivo-descritivos) para se referir aos criminosos. Isto nos permitiu

analisar melhor as representações dos criminosos realizadas pelos ministros e

juízes eventualmente citados nas decisões do STJ tendo em vista se essa

expressão for “positiva”, o que indica uma representação do criminoso

moralmente positiva; “negativa”, o que indica uma forte condenação moral

ancorada à imagem do criminoso, ou “técnicos”, no caso de tratamento

modulado pela categorização do acusado segundo a lei que rege o caso em

julgamento ou o tipo de processo, o que não permite inferir deste termo

nenhum juízo moral negativo ou positivo com relação ao criminoso (Figura 2).

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Figura 2 – Outras formas para referir-se a criminosos, diferentes de “bandido”, encontradas no

corpus, por tipo de sentença (se criminal ou civil). Dados quantificados por número de ocorrências no corpus.

Também procuramos avaliar se são citados segundo sua profissão,

indicativo de posição social que, conjugado com outros dados no processo

como o tipo de crime do qual se fala e o resultado do julgamento, pode nos

permitir avaliar se a posição social influi na representação do criminoso e no

seu julgamento. Outra forma de avaliar um possível tratamento diferenciado é

pelo uso do nome do criminoso ao invés de um termo técnico ou profissão, isso

pode denotar uma representação humanizada do criminoso o que também

pode influir no modo como ele é julgado.

Na categoria “termo positivo” classificamos os trechos de decisões nas

quais o criminoso é referido segundo termos elogiosos, que destacam aspectos

positivos de sua personalidade, tais como cortês, generoso, estimado e

honrado. Este tipo de referência elogiosa não foi encontrado em nenhuma

decisão civil, aparecendo apenas em decisões criminais. Nestas, os termos

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30

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74

1

7

0

1714

0

10

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80

Profissão Nome Termo positivo

Termo negativo

Termo técnico

Sentenças criminais

Sentenças cíveis

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173

elogiosos aparecem em decisões em HC nas quais a ordem é concedida e o

acusado solto. Estas decisões são realmente raras em decisões monocráticas

– tipo de decisão que compõe o corpus desta pesquisa - na jurisprudência do

STJ.

Nas decisões monocráticas um ministro decide sozinho se concede ou

não a liberdade ao acusado. Ele não tem contato pessoal com o acusado, com

as vítimas e na maioria das vezes sequer com os advogados do acusado. Tem

que decidir apenas com os dados documentais contidos nos autos do processo

à sua frente. Com poucos recursos para formar sua convicção quanto à

periculosidade do causado, opta-se geralmente, como regra de prudência, por

negar o pedido. Os poucos casos em que uma ordem destas é deferida estão

relacionados geralmente a crimes sem gravidade, com penas inferiores a

quatro anos, situações nas quais o acusado, mesmo se for condenado, não

ficará preso. São decisões técnicas onde apenas a questão jurídica é discutida.

Apesar de identificarmos este tipo de decisão na jurisprudência do STJ, não

encontramos nenhuma decisão deste tipo no corpus.

Como exceção a esta regra, encontramos no corpus decisões em HC

nas quais a ordem foi deferida e na fundamentação da sentença há referências

elogiosas ao acusado. A decisão 167 é exemplar desta exceção. Ela defere um

pedido de HC em favor de um advogado acusado de ser o mandante de um

duplo homicídio duplamente qualificado. Ele teria mandado matar sua ex-

amante após ser rejeitado. Na execução do crime, um pistoleiro baleou a ex-

amante e uma amiga que a acompanhava. Para dificultar as investigações, o

pistoleiro ateou fogo aos cadáveres. Segundo a perícia, uma das mulheres foi

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queimada ainda viva. Crimes graves como este são comumente utilizados

para, a partir dos fatos descritos, descrever o que seria a personalidade do

criminoso, sempre tão terrível quanto o crime narrado, mas nesta decisão

ocorreu o oposto:

É consabido que a prisão preventiva, como garantia da ordem

pública, só é cabível, consoante preleciona Fernando da Costa Tourinho

Filho, quando o agente está praticando novas infrações penais, fazendo

apologia de crime, incitando à prática de crime, reunindo-se em

quadrilha ou bando etc., ou ainda quando se trata de bandido de alta

periculosidade e inequívoca tendência criminosa, de sorte a fazer

presumir que o mesmo, em liberdade, voltará a delinquir e por em risco a

paz social. Ao contrário disso, o paciente é cidadão honrado, pacífico,

invariavelmente cortês e generoso, infenso a qualquer tipo de violência,

por isso mesmo respeitado e estimado no meio da sociedade cearense,

sendo de ressaltar que os seus méritos morais e de advogado creditado

foram reconhecidos e proclamados pelo venerando Tribunal de Justiça

do Ceará, que por duas vezes incluiu seu nome em lista tríplice para

nomeação de Juiz do colendo Tribunal Regional Eleitoral, figurando

atualmente como Juiz Substituto da mencionada Corte Eleitoral.

(decisão 167, habeas corpus, 2011)

Apesar de não haver no corpus decisões em processos civis onde

contem referências positivas a acusado, também rompendo com a regra

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anteriormente para as decisões em que se defere ou não pedidos de

indenização por danos morais e materiais ocorridos quando a imprensa de

forma equivocada ou irresponsável apresenta algum cidadão como criminoso,

e obedecendo à mesma lógica do caso narrado acima, encontramos uma

decisão em que se pedia indenização de um jornal e de seu entrevistado

porque a manchete e o conteúdo da entrevista chamavam policiais militares de

bandidos. O pedido de indenização foi negado com o seguinte argumento:

Primeiro, importante destacar que na referida reportagem, em

uma das notas, com subtítulo Policias bandidos abusam do poder, diz

professor, o artigo jornalístico reporta-se a entrevista com o então ínclito

Professor de Direito Processual da Universidade de São Paulo, hoje

ilustre Desembargador que honra os Quadros deste Tribunal e da

Magistratura Paulista, pontuando nesta Colenda Câmara, [nome da

parte], que teria concedido entrevista na condição de ex-secretário

municipal de Negócios Jurídicos, afirmando que não é atribuição da

polícia judiciária fiscalizar estabelecimentos veterinários. É tarefa da

Vigilância Sanitária do município, explica. (decisão 090, agravo de

instrumento, 2009)

Os elogios só não permitem enquadrar o trecho na categoria “termo

positivo” porque elas não são referências a um acusado de crime. Estes dois

casos são os que mais contém trechos com referências positivas a qualquer

pessoa, seja ela criminoso, vítima, testemunha ou qualquer outro tipo de

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personagem que figure numa decisão judicial. Não há em nenhuma delas outro

tipo de argumento ou informação que justifique sua discrepância com relação

às demais decisões do tipo, salvo o fato de terem como réus juristas de

renome.

Já com relação aos termos negativos, estes são menos raros no corpus.

Classificamos nesta categoria os trechos de decisões que continham

referências desabonadoras e injuriosas, que pelo contexto de sua aparição

denotam desprezo ou uma imagem negativa qualquer dos criminosos, como

meliante, facínora, biltre, vagabundo e marginal, estes dois termos os mais

comuns, correspondendo juntos a pouco mais de 60% do total de termos

negativos encontrados no corpus. A sua aparição nas decisões segue a

mesma lógica do uso da expressão “bandido” no sentido de homem mau, ou

seja, reforçando decisões que negam indenizações por danos decorrentes de

crimes nas decisões civis e negando ordens de HC nas criminais.

Tanto os termos negativos quanto os positivos são pouco significativos

se comparados aos termos técnicos utilizados nas referências aos criminosos.

Foram classificados nesta categoria as referências aos criminosos que

estavam de acordo com sua condição criminal ou processual, como

sequestrador, homicida, contraventor, paciente, acusado ou réu. Eles

correspondem a pouco mais da metade do total de referências aos criminosos

neste corpus, considerando que o termo utilizado na sua constituição visou

propositalmente conteúdos que não utilizavam o termo técnico correto,

podemos concluir que tanto nas decisões criminais quanto nas civis, o termo

técnico é a regra.

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A diferença no uso do termo técnico para referir-se a criminosos

encontrado entre as decisões criminais e civis se deve ao fato de que nas

decisões criminais sempre há um acusado de crime de quem se fala, ao passo

que nas decisões civis coletadas há um crime, mas não há necessariamente

um criminoso a quem se possa referir de alguma forma. Assim sendo, quanto

ao uso de termos técnicos em referência a criminosos não há diferenças entre

decisões de natureza civil e criminal.

Classificamos como “profissão” e “nome” as referências aos criminosos

feitas apenas por sua profissão, nome ou apelido, sem a concorrência de

outros termos. Tanto nos casos civis quanto criminais, a referência aos nomes

dos criminosos se dá quando há mais de um acusado por algum crime e se faz

necessário explicar como cada um deles contribuiu para o crime ou qual tipo de

medida judicial a ser aplicado a cada um. A profissão é utilizada algumas vezes

no mesmo sentido, como se fosse um substituto do nome. Noutras, ela aparece

como um agravante da condição do criminoso, como ao destacar que um

policial militar, que deveria proteger o cidadão, o mata. Apenas quatro

profissões aparecem no corpus sendo citadas neste contexto: prefeito, policial,

guarda civil e advogado. Em todos estes casos as decisões são contrárias aos

acusados.

Os crimes

Apesar do número de tipos penais ser grande na legislação brasileira –

somente o CP possui 241 artigos contendo tipos penais, fora outros que

derivam de subdivisões de artigos – as decisões coletadas se referem a uns

poucos tipos penais. Para simplificar a categorização e análise, classificamos

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os crimes a partir de grupos de tipos cujas condutas típicas são semelhantes.

Desta maneira, classificamos como “patrimoniais” os crimes contra o

patrimônio como furto, roubo e apropriação indébita. Na categoria “quadrilha”,

as referências a crimes praticados por organizações criminosas como formação

de quadrilha e associação para o tráfico. Como “tráfico” todos os tipos penais

relativos ao tráfico de drogas ou armas, exceto a associação para o tráfico. Em

“corrupção”, todas as formas de crimes contra a administração pública e o

patrimônio público, como a corrupção ativa e a passiva, além de crimes contra

o sistema financeiro nacional. Como “sequestro” as extorsões mediante

sequestro e sequestro relâmpago. Os crimes intencionais que resultam em

morte como o homicídio doloso, o latrocínio e a lesão corporal seguida de

morte, classificamos como “violento letal”, referente à categoria “crime violento

letal intencional”, utilizada pelo Ministério da Justiça para a contabilização de

ocorrências policiais. Como “outros” classificamos todos os demais crimes

estranhos às categorias anteriores (Figura 3).

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Figura 3 – Categorias de crimes por tipo de sentença (se criminal ou civil). Dados

quantificados por número de ocorrências no corpus.

Há diferenças entre os poucos tipos de crimes citados em decisões civis

e criminais. A categoria predominante nas decisões criminais é “outros”. Foram

classificados nesta categoria o disparo de arma de fogo, porte de arma,

ameaça, apologia ao crime e estupro, por exemplo. Exceto por este último, que

representa apenas dois casos no corpus, todos são crimes com penas

relativamente pequenas, se comparados os das outras categorias, o que indica

que a desimportância penal de um crime não implica em sua desimportância

processual, uma vez que seu julgamento se estende até um tribunal superior. A

predominância desta categoria se deve menos à frequência dos crimes nela

contidos do que à diversidade da categoria, além disso, nem todos os crimes

acabam por gerar uma ação civil, ao passo que todo crime gera uma ação

penal. Nas categorias “tráfico”, “sequestro”, “corrupção” e “quadrilha”, as

decisões criminais ocorrem em maior número do que nas decisões civis,

mesmo o número total de decisões civis sendo maior do que o de criminais, o

1612

106

16

25

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53

51

2723

0

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40

50

60

Sentenças criminais

Sentenças cíveis

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que indica que estes crimes são mais discutidos em decisões criminais do que

em civis.

Já nas categorias “violento letal” e “patrimoniais”, as decisões civis são

maioria, o que indica que as discussões civis decorrentes de crimes estão

concentradas nos poucos crimes desta categoria. A predominância da

categoria de crimes patrimoniais nas decisões civis indica que os pedidos

comuns em decisões civis como indenizações por danos materiais ou morais

ocorrem principalmente como consequência de um crime patrimonial. A não

menos significativa presença dos crimes violentos letais intencionais é

explicada pelo fato de que várias decisões coletadas são de processos em que

vítimas de violência letal pedem indenização ao Estado pela falta de segurança

– que deveria ter sido por ele garantida – ou por violência praticada por

policiais, guardas ou agentes penitenciários.

Considerando que em todas as decisões coletadas consta a expressão

“bandido”, e que o seu uso no sentido de “homem mau” indica o maior grau de

reprovação moral do criminoso assim qualificado, analisamos a coocorrência

entre esta categoria e os diversos crimes citados na decisão. Para que

pudéssemos ter uma melhor compreensão da relevância do número de cada

uma destas coocorrências, calculamos o quanto ela significa, em termos

percentuais, do total de cada um dos crimes (Figura 4).

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Figura 4 – Coocorrência entre “homem mau” e as diversas categorias de crimes. Dados

quantificados por porcentagem e total de ocorrências em cada categoria de crime.

As categorias de crimes “quadrilha”, “sequestro”, “violento letal” e

“patrimonial” apresentam correlação com “homem mau” acima de 40%, o que

indica que para os ministros do STJ, os piores criminosos são os membros das,

por eles citadas, organizações criminosas que atuam a partir do sistema

penitenciário, como o PCC – Primeiro Comando da Capital -, Comando

Vermelho; os sequestradores; os assassinos e latrocinas em geral e,

principalmente, os ladrões (58,2% de coocorrência). O alto índice de

coocorrência atingido pelos crimes patrimoniais é devido ao fato de que estes

crimes são muito numerosos nas decisões civis – maioria no corpus – que,

como vimos, usam como argumento para negar pedidos de indenização a

“periculosidade” ou “maldade” dos criminosos.

A coocorrência de 40,4% nos “violentos letais” é causada tanto por sua

presença nas decisões civis quanto nas criminais, tendo significados diferentes

em cada uma destas. Nas decisões criminais, considerando que a quase

2114 15

9

67

52

68

47,6

7,1 6,6

44,4

58,2

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0

10

20

30

40

50

60

70

80

Total de coocorrências entre as categorias "tipo de crime" e "homem mau"

Percentual de coocorrências entre as categorias "tipo de crime" e "homem mau"

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totalidade delas são negativas de ordem de HC, indica que o “paciente” não

pode ser solto porque ele é um “homem mau”. Já no caso das decisões civis,

que alguma indenização não pode ser paga porque os “homens maus” é que

são responsáveis pela violência e não aquele que é processado. O mesmo se

pode dizer dos crimes categorizados em “sequestro” e “quadrilha”, para cujos

acusados de cometê-los, ou de serem participantes de alguma facção

criminosa, o simples fato de serem acusados destes crimes já é motivo para

deduzir que sejam maus e perigosos.

Conclusões

Há diferenças qualitativas no uso da expressão “bandido” entre as

decisões em ações criminais e nas civis. Nas primeiras, a expressão aparece

de forma frequente em transcrições de depoimentos ou de discursos de

advogados ou promotores de justiça contidos em outras peças dos autos em

julgamento. Às vezes é utilizada em referência a pessoas condenadas em

outros processos ou em citações de casos em tese, de exemplos hipotéticos.

Nunca é utilizada para referir-se a algum dos acusados, ainda que outras

expressões negativas sejam utilizadas.

Já nos casos de direito civil, a expressão aparece com mais frequência.

As partes são menos poupadas deste rótulo, e desta vez ela compõe o

vocabulário do juiz. Seu uso se dá em circunstâncias em que a decisão de

natureza civil é uma consequência de um crime anteriormente cometido. Muitas

vezes, de um evento onde o criminoso já fora sentenciado criminalmente ou,

pelo menos, o fato descrito considerado de forma inequívoca como crime.

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O uso da expressão “bandido” e as demais formas de referência ao

criminoso, assim como as referências ao seu comportamento e personalidade

nas decisões civis e criminais, apontam fortemente para a possibilidade de que

a chamada “personalidade do agente”, no caso do acusado de um crime, atua

como uma “âncora” cognitiva (Tversky e Kahneman, 1974) e distorça

julgamentos tanto criminais quanto civis. Na ausência de um criminoso, o

próprio crime assume a função de ancoragem de decisões, o que ocorre com

mais frequência nas de natureza civil, onde, por exemplo, pedidos de

indenização pela negligência de uma empresa em garantir segurança a

consumidores e funcionários pode ser decidido avaliando-se apenas a grande

quantidade de crimes e a ousadia dos criminosos atuais, desconsiderando o

que a empresa fez, deixou de fazer ou deveria ter feito. Isto corrobora os

trabalhos sobre erros sistemáticos em decisões judiciais, que indicam a forte

ocorrência de erros de ancoragem em decisões judiciais (Guthrie, Rachlinski

eWistrich, 2000; Englich, Mussweiler eStrack, 2006).

Considerando que a chance da “personalidade do agente” ou do crime

ancorar a decisão de um juiz depende também das suas representações

sociais dos crimes e de seus criminosos, nos crimes contra o patrimônio e nos

“violentos letais” os juízes civis se mostram inclinados a ancorar suas decisões

em representações acentuadamente negativas destes crimes e de seus

agentes. Já com relação aos juízes criminais, a gama de crimes é mais ampla,

tendo destaque as organizações criminosas e a corrupção. Isto faz com que,

seguindo estes erros de ancoragem, juízes criminais tendam a serem mais

rígidos com crimes que envolvam corrupção – nos casos analisados nesta

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pesquisa, os corruptos eram em grande maioria servidores públicos, em

especial da área de segurança - e naqueles em que há algum tipo de facção

criminosa ou quadrilha. Já os juízes civis, tendem a ser mais rígidos nos casos

civis decorrentes de crimes contra o patrimônio e os “violentos letais”.

Isto aponta para representações distintas de crimes e criminosos entre

juízes civis e criminais. Enquanto os juízes criminais representam a violência e

a criminalidade com mais gravidade atribuída a crimes cometidos por pessoas

de alguma forma poderosas – considerando aqui tanto o poder administrativo

dos servidores públicos como o poder bélico das associações criminosas -,

objetivada nos crimes que envolvem corrupção e quadrilha; os juízes civis

representam a violência e a criminalidade mais objetivada nos crimes

patrimoniais, cujos autores são, mais comumente, pobres.

Apesar de não ter sido objeto da pesquisa, encontramos também

indícios de decisões enviesadas a favor de outros juristas, desde que

ocupantes de posição elevada no campo social dos juristas. O fato deste tipo

de decisão não estar no escopo desta pesquisa, não analisamos uma

quantidade suficiente delas para saber se isto se deveu a um erro de

ancoragem, por uma distorção de representatividade – quando uma informação

importante é ignorada em favor de outra informação pessoal do decisor – ou

por algum tipo de protecionismo ou corporativismo.

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III) CONCLUSÃO

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Toda pesquisa empírica reserva surpresas ao pesquisador. Ainda que

não existam hipóteses – como é o caso desta tese, predominantemente

construída a partir de pesquisas qualitativas – por certo que há expectativas.

Com este trabalho não foi diferente. As expectativas foram alimentadas por

discursos críticos sobre a aplicação do Direito penal (Adorno, 1995; Shecaira,

2012) que afirmam, resumidamente, que a justiça criminal é apenas para os

pobres, pretos e prostitutas. Três características que aliadas a outras como

cultura ou origem social são verdadeiros estigmas (Goffman, 2008), marcas

que permitiriam representá-lo como bandido, aquele que corresponderia ao que

Lombroso (1983) denominou “criminoso nato”, o homem mau por natureza,

cuja criminalidade seria elemento essencial e não acidental de seu

comportamento. Os julgamentos ocorreriam de forma maniqueísta,

condenando “bandidos” e absolvendo “não-bandidos”. Os resultados frustraram

em parte essas expectativas.

A primeira investigação, intitulada Beleza e Inocência, teve como meta

demonstrar a existência de uma forma de objetivação dos criminosos, entre os

juristas, que poderiam enviesar seu julgamento. Os resultados foram além.

Quando os participantes foram convidados a apontarem criminosos e suas

vítimas para crimes diferentes, esperava-se que os mais feios e pobres, os

portadores dos estigmas de bandidos por sua condição social, fossem sempre

apontados como criminosos. O que se viu ao final, no entanto, foi uma variação

no “perfil” do criminoso conforme o crime. Quanto mais “sangrento” o crime,

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mais feio e pobre o criminoso apontado, ao ponto de no caso do estelionato, os

criminosos apontados serem os mais bonitos e ricos.

Isto nos permitiu concluir duas coisas importantes nesta investigação, a

primeira que a variação no “perfil” contraria a máxima de que aos olhos da

justiça “bandido é tudo igual”. Ao contrário, o que os resultados demonstram é

que juristas representam os criminosos com típicos ou não do crime pelo qual

são acusados. Isto indica para uma maior facilidade na incriminação de sujeitos

cujo “perfil” corresponda ao da forma como o criminoso daquele crime é

objetivado, mas também uma maior dificuldade quando não se encaixa no

“perfil”. A segunda é que crime - ou a conduta típica e seu valor moral – e

criminoso são ambos elementos de uma mesma representação social, de

maneira que não existe representação social de crime sem o criminoso ideal

como um de seus elementos, da mesma maneira que não existe a

representação de um criminoso apartada de seu crime típico.

Com relação às vítimas também há distorções, mas não com relação

aos crimes. Para todos – exceto no caso dos crimes sexuais, onde gênero e

idade da vítima foram bastante característicos – as vítimas foram as mesmas,

os mais bonitos e ricos. Isto corrobora as críticas sociológicas (Baumann, 2003;

Wacquant, 2001) e criminológicas (Zaffaroni&Pierangelli, 1997; Hulsman&Celis,

1982; Cervini, 1993, Sobrinho, 2010) de que o sistema penal é estruturado a

partir de uma lógica social injusta, servindo de instrumento de proteção aos

ricos pela criminalização dos pobres ou, dito de outra forma, que os processos

de criminalização – definição legal das condutas a serem reprimidas pelo

sistema penal -, criminação – atribuição de significado e valor às normas

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penais de maneira a definir os critérios práticos de sua aplicação – e

incriminação – imputar a alguém a prática de um crime -, são todos orientados

por uma ideologia burguesa da luta de classes.

A existência de um perfil lembra de forma perturbadora a antropologia

criminal de Lombroso (1983), que considerava o crime não como o resultado

de uma má deliberação moral, mas como um evento natural, uma resposta a

um instinto primitivo que insistiria em permanecer, apesar da evolução da

espécie humana. Um atavismo, um percalço no processo evolucionário que,

com o tempo, provavelmente seria eliminado. Este discurso – e toda a

fundamentação ética e científica da antropologia criminal – foram e continuam

sendo denunciados como equivocados, injustos e racistas, dentro e fora do

campo jurídico. Apesar disso, os juristas que participaram desta pesquisa

geraram os mesmos tipos de resultado que Lombroso apesenta em seu

L‟Uomo delinquente de 1871.

Mas guardadas as semelhanças de resultado e – talvez – de motivação,

os critérios que orientaram Lombroso são diferentes dos que orientaram, por

sua vez, os participantes desta pesquisa. Os discursos colhidos em artigos

acadêmicos e sentenças que compuseram os corpora das duas últimas

investigações demonstram que enquanto Lombroso justificava a existência de

criminosos natos a partir da genética – eugenia -, os juristas o fazem a partir de

discursos sociológicos, justificando seus “bandidos” não como criminosos

natos, mas socialmente construídos, porém frutos de uma construção que não

pode ser descontruída. Poderiam dizer: “não nasceram como, mas tornaram-se

bandidos de forma irremediável”.

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Isto demonstra que as representações sociais dos criminosos na cultura

europeia do século XIX, que apenas ganharam um ar de cientificidade com o

trabalho dos antropólogos criminais (Darmon, 1991; Foucault, 1999), mantém

semelhanças com as representações de juristas brasileiros do século XXI,

coincidindo na forma como os “bandidos” são esteticamente objetivados –

como feios – mas diferenciando-se com relação aos modos como tal realidade

representada é justificada. De lá para cá, as representações dos criminosos

parecem apenas ter sido ancoradas em discursos científicos diferentes,

mostrando também que as formas de apropriação dos discursos científicos –

no caso sociológicos – no campo jurídico segue a mesma dinâmica estudada

por Moscovici (2012) com relação à recepção do discurso científico pelo senso

comum. Sendo o direito um saber prático e desenvolvido a partir da prática dos

juristas (Bourdieu, 1986; Posner, 2009), os processos de representação dos

criminosos se transformaram mantendo velhas práticas ancoradas em novos

saberes objetivados de maneira particular.

Sendo qualquer representação social a representação de alguém sobre

alguma coisa, para que pudéssemos afirmar que os resultados encontrados na

primeira investigação possuíam algum tipo de singularidade com relação aos

juristas que nos permitissem afirmar que elas seriam típicas dos juristas e não

de outros grupos, investigamos também o senso comum com relação aos

criminosos nas duas pesquisas que se seguiram. A segunda comparou os

discursos de juristas e não-juristas sobre os criminosos, promovendo com isso

o confronto “senso comum” versus “senso comum dos juristas” (Warat, 1982).

A terceira avaliou crimes que, apesar de sua gravidade e real condenação

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moral por parte de porta-vozes do senso comum, apresentavam criminosos

atípicos para os crimes.

Os resultados destas duas investigações confirmam algumas

singularidades com relação às representações sociais dos juristas sobre os

criminosos. Considerando que também no senso comum existem “perfis” de

criminosos típicos e que também há a ideia de dois tipos básicos de criminoso:

o eventual e o bandido. Os que são apontados como bandidos, ou seja, o pior

dos criminosos, o irremediável, aquele cuja eliminação – pela morte ou penas

definitivas e cruéis – se deseja (Misse, 1999, 2010), são objetivados de forma

diferente segundo juristas – no caso da terceira investigação, apenas

criminalistas – e não-juristas. Considerando que crime e criminoso compõe

uma mesma representação, para os juristas criminalistas os crimes dos

“bandidos” são a corrupção, o abuso de poder ou a participação em

organizações criminosas. Ele seria alguém poderoso, pela força das armas, do

dinheiro ou influência política. Não é propriamente a riqueza ou cor da pele que

o singulariza – contrariando o senso comum -, mas o poder. Já para o “senso

comum” o bandido é um ladrão, assassino ou estuprador. Alguém pobre e

socialmente inferior.

Os resultados apresentados nestas investigações parecem discrepantes

com relação aos encontrados na primeira investigação, afinal, enquanto os

juristas da primeira investigação apontaram como criminosos para os piores

crimes os feios e pobres, os juristas da segunda pesquisa apontaram ricos e

poderosos. Por sua vez as representações de não-juristas parecem mais

próximas das representações expressadas pelos juristas da primeira pesquisa.

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A última investigação nos permite compreender melhor estes resultados.

Ao analisar sentenças criminais e civis monocraticamente produzidas por

ministros do Superior Tribunal de Justiça, encontramos divergência entre os

usos da expressão “bandido” e outras que demonstram uma visão negativa de

acusados de crimes entre juízes criminais e civis. Enquanto os criminalistas do

STJ coincidem em suas representações e crimes com relação aos juristas

analisados na segunda investigação, os ministros civilistas estão mais

próximos do senso comum.

Isto demonstra que, em primeiro lugar, ao contrário do que afirmam os

juristas (Bourdieu, 1986), o direito que anunciam é fortemente influenciado pela

sociedade e, no caso, pelo senso comum. Em segundo, que o campo jurídico

não é homogêneo, havendo formas diferentes de se representar criminosos e

crimes a depender da área do direito à qual o indivíduo pertença. Aqui

identificamos ao menos dois subcampos, o dos criminalistas, cujas

representações de criminosos é bastante singular, e a dos civilistas que pouco

se distinguem dos não-juristas. Seria preciso investigar juristas pertencentes a

outras áreas do direito para verificar se estas representações não possuiriam

outras singularidades.

Por último, estes dados nos permitem concluir que a maioria dos

participantes da primeira pesquisa eram juristas não-criminalistas, o que é

compreensível, uma vez que a seleção dos participantes daquela pesquisa não

teve como preocupação verificar previamente a vinculação dos participantes a

uma ou outra área do direito. Por outro lado, sendo a seleção daquela pesquisa

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aleatória quanto a este aspecto, é de supor que a influência do senso comum

no campo jurídico seja maior do que o discurso típico dos criminalistas.

Por outro lado, considerando que a justiça criminal é composta por

juristas criminalistas – ao menos de forma muito predominante – são as

representações deste subcampo que mais influenciam os julgamentos

criminais, ainda que possa haver um maior número de juízes que os representa

a partir de referenciais mais coincidentes com o senso comum. Isto significa

que a pobreza ou a feiura não é o principal critério de estigmatização do

“bandido” por juízes criminais, mas o poder. Há poderosos ricos e pobres, uns

se impõe pela força das relações, outros do medo, isto parece mais

significativo do que propriamente a origem social, riqueza ou mesmo a cor da

pele. Isto explica discrepâncias entre pesquisas como a de Borin (2006) que

analisando processo de furto e roubo em São Paulo não encontrou tratamentos

diferenciados entre brancos e negros – com maior incriminação destes do que

daqueles – e trabalhos como os de Adorno (1995, 2002) que concluem pelo

funcionamento racista da máquina penal a partir dos resultados desiguais de

prisões de negros e brancos ou do histórico das heranças culturais

institucionais preconceituosas e elitistas, por exemplo.

Ambos levam em conta apenas o critério racial como possível explicação

para a desigualdade resultante dos tratamentos policiais e judiciário

dispensados a brancos – geralmente não pobres - e negros – geralmente

pobres - acusados de crimes, sem considerar que as representações de

criminosos podem conter outros elementos a orientar práticas discriminantes. A

considerar os consistentes trabalhos de investigação antropológica de Kant de

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Lima (1999), Kant de Lima e Carnavais (1989) e sociológica Misse (1999,

2011) sobre a atuação das polícias na repressão de crimes, possivelmente as

representações sociais de policiais sobre criminosos estejam mais próximas

das representações do senso comum. Isto também é corroborado em parte

pelos dados da segunda de nossas investigações onde o senso comum

mostra-se, por sua vez, elogioso das tomadas de posição violentas por parte

de policiais contra bandidos – tal qual eles os representam -.

Quando o acusado é apresentado à justiça, o predomínio passa a ser de

juristas criminalistas, o que significa que o elemento “poder” atua de forma mais

significativa do que outros fatores. A consequência seria que, por um lado,

bandidos aos olhos do senso comum, incriminados facilmente pela população e

pela polícia, possam ser vistos por juízes criminais como não-bandidos ou

meros criminosos comuns e receber tratamento mais leniente do que o que o

senso comum poderia esperar. Por outro lado, este mesmo juiz libertário pode

se mostrar mais severo com outros acusados, desde que reconhecido nele

algum tipo de poder que o torne um bandido para este juiz. Isto explica os

porquês do ditado popular que afirma que “a polícia prende, mas o juiz solta”.

A ausência de criminosos de classe média ou alta condenados

cumprindo efetivamente penas privativas de liberdade sugere que, apesar do

alto grau de condenação moral destes “poderosos” por parte de juízes

criminais, um segundo juízo, relativo à adequação da pena ao sujeito

condenado, pode indicar que, apesar de se tratar de um grande “bandido”, a

prisão não seria adequada a alguém de “boa formação”. Outro indício deste

juízo de adequação está na desproporção entre as decisões que determinam o

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encarceramento de pessoas “poderosas” – raras e reticentes – e aquelas que

aplicam multas, penas alternativas e declare perda de bens – aplicadas com

dureza e severidade -. Especulações à parte, o que podemos concluir é que

tentativas de explicar as distorções do funcionamento da justiça criminal

apenas por critérios raciais ou econômicos pode resultar em rasteiras

simplificações dos modos pelos quais a justiça criminal atua.

As investigações também nos permite compreender melhor os

processos de decisão em casos criminais. A terceira pesquisa apresentou um

resultado incidental. Os sujeitos apontados como criminosos nas notícias

comentadas não foram efetivamente representados como bandidos pelos

participantes. As representações dizem respeito a paternidade e posição social,

coisas muito diferentes de crimes. Apesar disso, os sujeitos incriminados nas

notícias foram também criticados pelos participantes. Produziram imagens

negativas sobre suas personalidades apenas com base em umas poucas

informações. Isto pareceu claramente ter um uso instrumental no sentido de

reforçar os juízos condenatórios tidos por princípio, indicando que a

condenação do sujeito incriminado antecedeu à construção da objetivação de

sua personalidade.

Levando-se em conta a proximidade entre as representações de não-

juristas e parte significativa dos juristas, é possível que não apenas os

conteúdos das representações, mas as atitudes tomadas a partir delas também

coincidam, o que pode significar julgamentos enviesados nos quais a

“personalidade do agente”, critério que segundo o Código Penal deveria ser

levado em conta apenas para fins de atribuição da pena, funcione como uma

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âncora na sequência de raciocínios complexos implicados num julgamento

criminal (Dhami, 2003; Tversky& Kahneman, 1974). Na quarta e última

pesquisa, duas decisões parecem corroborar esta afirmação. São duas

decisões em que o tratamento dado ao acusado de crime foi bastante leniente,

elogioso até, e o resultado claramente favorável. Em ambos os casos os

acusados eram juristas de renome. Casos semelhantes e muitos relativos a

crimes menos graves tiveram tratamento muito mais severo por parte dos

ministros do que estes dois achados. Nestes dois casos exemplares, não foram

certamente os fatos e tampouco o direito que favorecia os acusados, mas tão

somente quem eles eram aos olhos dos juízes.

Todos estes resultados tem importância na medida em que as

representações sociais, apesar de serem critérios de significação socialmente

estruturados são, ao mesmo tempo, estruturantes de atitudes como

julgamentos. No entanto, como aponta Rouquette (2000), as representações

sociais seriam não propriamente uma causa das ações - considerando uma

relação direta e imediata de causa e efeito -, mas um critério de coerção

variável do comportamento. O maior ou menor grau de coerção efetiva de uma

representação depende não de sua estrutura, mas dos fatores societais que

atuam em cada circunstância, fatores estes que são os mesmos que

influenciam na difusão e manutenção da representação. Por exemplo, num

grupo social em que atitudes em desacordo com a representação são punidos

severamente tem maiores chances desta representação apresentar maior grau

de coerção do que noutro grupo no qual tal atitude sofre censura social branda.

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Os rituais típicos da justiça criminal, que envolvem a atenção a regras

procedimentais que tem por finalidade a garantia da ampla defesa e do

contraditório, assim como as censuras explícitas a julgamentos que violem os

princípios procedimentais da impessoalidade e da imparcialidade, por visarem

eliminar a influência de critérios subjetivos do juiz, podem interferir

positivamente no sentido de evitar que as representações sociais dos

criminosos interfiram de forma negativa nos julgamentos criminais, facilitando

que se julgue alguém segundo as representações do juiz sobre o acusado –

seja ele um bandido segundo o senso comum ou segundo as representações

dos criminalistas - e não segundo os fatos por este cometidos.

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