UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO...

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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO PEDAGÓGICO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO VASTI GONÇALVES DE PAULA CORREIA PROCESSOS DE INCLUSÃO ESCOLAR: UM OLHAR PROSPECTIVO E MULTIRREFERENCIAL SOBRE OS SABERES-FAZERES DE UM GRUPO DE EDUCADORES VITÓRIA 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO PEDAGÓGICO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

VASTI GONÇALVES DE PAULA CORREIA

PROCESSOS DE INCLUSÃO ESCOLAR: UM OLHAR PROSPECTIVO E

MULTIRREFERENCIAL SOBRE OS SABERES-FAZERES DE UM GRUPO DE

EDUCADORES

VITÓRIA

2006

1

VASTI GONÇALVES DE PAULA CORREIA

PROCESSOS DE INCLUSÃO ESCOLAR: UM OLHAR PROSPECTIVO E

MULTIRREFERENCIAL SOBRE OS SABERES-FAZERES DE UM GRUPO DE

EDUCADORES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação.

Orientadora: Profª Drª Denise Meyrelles de Jesus.

VITÓRIA

2006

2

Aos profissionais da escola pesquisada,

que deram significado e sentido à

produção deste texto.

Àqueles que desejam fazer cumprir o

compromisso de ensinar a todos,

garantindo o direito de qualquer criança a

uma educação de qualidade.

AGRADECIMENTOS

3

A Deus, autor e grande arquiteto do Universo!

Nele encontramos forças nos momentos de “pressão” e ansiedade...

Nele fomos sustentada, quando nos víamos enfraquecida pelo excesso de

trabalho e de estudos...

E Nele encontramos a possibilidade maior de sabedoria e discernimento nos

principais momentos da produção de nosso trabalho.

Cremos nele, incondicionalmente, como fonte de sabedoria infinita!

À profª Drª Denise Meyrelles de Jesus pelo carinho, respeito e, sobretudo, pela

competência, com que me orientou. Este trabalho também lhe pertence.

À profª Elizabeth Maria Aragão, que me possibilitou ampliar, no início dos

estudos, a visão para uma área ainda não explorada por mim.

Ao meu marido, Jackson, pela tolerância quanto ao “exagero” de minha dedicação

na produção deste trabalho...

Ao meu filhinho, Jackson Júnior, pela indescritível compreensão quanto às minhas

ausências e por suas tentativas de compreender os objetivos de tanto esforço.

Aos meus pais, José Rosa e Ana, grandes exemplos em minha vida, pela

persistência, garra, coragem e enfrentamento de desafios, que somente eles

poderiam ter me ensinado.

Aos meus irmãos, Ezir e Washington, e cunhados, Adesil e Cristiane, que, em

vários momentos, me “socorreram”...

Aos professores amigos e colegas de trabalho, Rafael, Tânia, Gleice e Rejane.

Cada um a seu modo, marcou presença durante este meu percurso...

À profª Drª Sonia Lopes Victor e ao Profº Drº Claudio Roberto Baptista, por

terem aceitado o convite para, não só examinar, mas para também contribuir com

outros olhares senão o nosso.

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“Essa questão da verdade é muito antiga. Mas até hoje constitui um desafio e nos amedronta. Cada um de nós tem, a seu modo, certo medo da verdade. Porque ela nos ameaça. Ameaça real ou imaginária [...]. Por vezes designamos o que ela não é: mentira, erro, ilusão, engodo [...]. E é justamente esta crença que nos leva a conferir ao sistema científico as virtudes de poder nos revelar a ‘realidade última das coisas’ e das ações humanas. Mas a verdade científica não é algo que cai do céu. Ela nasce e é cultivada na ‘terra’. Não deve ser convertida em dogma nem em ídolo [...]. Nem filósofos, nem cientistas, nem místicos possuem a verdade. Todos nós a procuramos. Tentamos conquistá-la. Nessa busca, o que devemos eliminar é a possibilidade de erros e ilusões.” Hilton Japiassú

5

RESUMO

Considerar os processos de inclusão escolar a partir do olhar multirreferencial foi uma

possibilidade tomada neste estudo, uma vez que a ausência desse olhar, em paradigmas

educacionais tradicionais, só fez aumentar a angústia e os sentimentos de “impotência” e

incapacidade de grande parte dos educadores na oferta de uma educação de qualidade a

todos que na escola estão. Desse modo, o objetivo central deste trabalho foi identificar,

com os educadores, os seus saberes-fazeres, diante da necessidade e do compromisso

que têm/sentem de fazer cumprir sua função educativa no compartilhamento de saberes

a todos, indistintamente, sobretudo, aos alunos com necessidades educacionais

especiais por deficiência ou não. Assim, com um olhar prospectivo sobre os saberes-

fazeres na/para a diversidade, esses foram considerados como “potenciadores” para

outras novas ações docentes. Este estudo é uma investigação de natureza qualitativa e

está ancorado nos pressupostos da abordagem institucional. A Análise Institucional é aqui

apresentada como aquela que sustenta a idéia de descoberta da ação dos instituídos na

escola, “fazendo” movimentar vontades e desejos pela elucidação de problemas e

simultaneamente a invenção de “soluções”. Pela perspectiva da nova pesquisa-ação de

Lapassade (2005) e pelo olhar “plural” e multirreferencial de Ardoino (1998), foi construída

a possibilidade de os profissionais compreenderem e significarem suas ações, tanto por si

mesmos, quanto pelas ações de outros, estas conhecidas pelas dinâmicas de discussão

e auto-análise ocorridas durante o processo de pesquisa. O lócus investigado foi uma

escola de 1ª a 8ª séries do sistema público do município de Vitória-ES, em um de seus

turnos escolares, durante o período de agosto de 2005 a abril de 2006. Essa escola

integra uma das unidades na qual atuamos profissionalmente com o serviço de

assessoria às questões da Educação Especial. A “leveza da bagagem metodológica”

possibilitou adaptações durante o processo de investigação, em que os recuos e os

avanços eram sinalizados pelos participantes da pesquisa. Os resultados interpretam as

possibilidades de redimensionamento e reestruturação das práticas educativas, a partir

dos questionamentos do grupo ao que estava naturalizado na escola. A evidência disso

foi revelada, por exemplo, pelo processo de experimentação, por alguns professores, de

uma nova ação docente, demonstrada pela “competência” de atuar com sucesso, no

contexto da sala de aula, com um aluno que, durante todo o seu percurso na escola,

esteve acompanhado e “contido” por um(uma) estagiário(a). Como resposta ao desafio da

gestão da aprendizagem a todos, o olhar heterogêneo e múltiplo da abordagem

6

multirreferencial revelou ao grupo possibilidades de compreensão para a inclusão escolar,

uma vez que, integrando um cenário de complexidades, não bastavam os determinismos

e as previsibilidades quanto ao sucesso ou o fracasso de alunos não considerados como

o ideal de aluno pretendido. A proposição e a efetivação de práticas mais coerentes aos

objetivos da “instituição” escola, como um espaço de compartilhamento de

conhecimentos e que pertence a todos, movimenta as ações do grupo.

Palavras-chave: Inclusão escolar. Gestão da aprendizagem na diversidade. Olhar

multirreferencial.

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ABSTRACT

This study aims at identifying the knowledge and practices of educators in view of the

needs and challenges of inclusive education and diversity education, which represent an

important shift from traditional educational paradigms A qualitative methodology, based on

the institutional analysis framework, was chosen for the research. This framework allows

the actors involved in the educational process to understand their own actions and

encourages creative, collaborative solutions of problems encountered. We also used

Lapassade’s (2005) new action research models and Ardoino’s multireferential approach

to ground the self-analysis and group discussions carried in our research. The research

was undertaken at an elementary public school in Vitória, ES from August 2005 through

April 2006. The researcher had been working as a consultant for special needs education

for this school and thus benefited from a deeper, closer standpoint . The flexibility of the

research methodology made changes and adjustments, closer possible, whenever the

advances and setbacks acknowledged by the participants so demanded. The results point

to a change in teaching practices, born out of the issues raised within the groups involved.

This was evidenced by a new teaching practice in the interaction with a student who had

been, until then, under the supervision of a trainee. For the educators involved in the

research, this multireferential view broadened the understanding of the dynamics involved

in inclusive education and diversity education, bringing about new understandings of their

complexities and informed teaching practices in a collaborative setting.

Key-words : Inclusion school. Diversity Education. Multireferential approach.

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SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO.......................................................................................................11

2 DO QUE FALAMOS E DE ONDE FALAMOS............................................................16

3 AS CIÊNCIAS MODERNAS: BASES EPISTEMOLÓGICAS.....................................24

3.1 HERANÇAS DA MODERNIDADE..............................................................................24

3.2 PARADIGMA RACIONALISTA EM DEBATE: “RUPTURAS” E

PERSPECTIVAS........................................................................................................29

3.3 CONTEXTOS INSTITUÍDOS E INSTITUINTES DOS MOVIMENTOS DE

INCLUSÃO: DESAFIOS QUE SE INSURGEM..........................................................31

3.3.1 Fragmentos históricos dos percursos de inclusão: uma pista

para a “ruptura”......................................................................................................35

3.3.2 Educação inclusiva: será uma perspectiva de “ruptura”?.................................38

3.4 O “CAOS” NA PRODUÇÃO CRIATIVA DE MUDANÇAS: POSSIBILIDADES!.......40

3.4.1 Ensinar a todos: eis a função da escola..............................................................46

3.4.2 Os percursos de uma pedagogia ressignificada.................................................53

4 COMPLEXIDADE E MULTIRREFERENCIALIDADE: COMPREENDENDO

O PROCESSO EDUCATIVO...................................................................................58

4.1 MULTIRREFERENCIALIDADE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS...............................67

4.2 MULTIRREFERENCIALIDADE NA EDUCAÇÃO: UMA POSSIBILIDADE

DE COMPREENSÃO DA PRÁTICA EDUCATIVA...................................................69

4.3 ANÁLISE INSTITUCIONAL: CONCEITOS E SUAS RELAÇÕES COM A

ABORDAGEM MULTIRREFERENCIAL..................................................................80

4.3.1 Instituição, multirreferencialidade e implicação.................................................81

5 O CAMINHO INVESTIGATIVO: CONTEXTUALIZANDO NOSSAS

ESCOLHAS..............................................................................................................93

5.1 ANÁLISE INTERNA E NOVA PESQUISA-AÇÃO....................................................96

9

5.2 O GRUPO DE DIAGNÓSTICO COMO SUPORTE METODOLÓGICO

E AGENTE DE FORMAÇÃO...............................................................................109

6 MERGULHO NAS/SOBRE(VIVÊNCIAS) DO GRUPO DA ESCOLA..................113

6.1 DESCREVENDO O PROCESSO DE AUTOFORMAÇÃO: O ESTUDO

SOBRE O CURRÍCULO.......................................................................................114

6.2 OS ESPAÇOS-TEMPOS VIVENCIADOS NO GRUPO DE

DIAGNÓSTICO....................................................................................................136

6.2.1 O diálogo de si para si: os dois primeiros encontros.....................................138

7 CONSTRUINDO REDES DE SIGNIFICAÇÃO: ENTRE OS DESAFIOS

E AS POSSIBILIDADES..........................................................................................185

7.1 AS SUTILEZAS DO AGIR PEDAGÓGICO..............................................................185

7.2 TRABALHO COLABORATIVO: UMA ESTRATÉGIA EM ASCENSÃO....................195

7.3 UM PLANEJAMENTO HABITUAL... UMA IDÉIA FANTÁSTICA!.............................202

7.4 IDÉIAS E POSSIBILIDADES DE ENSINO A UM ALUNO COM

PARALISIA CEREBRAL...........................................................................................205

7.5 O DESAFIO QUE PERSISTE, MAS NÃO FAZ DESISTIR......................................207

8 CONSIDERAÇÕES..................................................................................................212

9 REFERÊNCIAS........................................................................................................219

10

Ficha Catalográfica

11

1 APRESENTAÇÃO

Abrir a escola para todos não é uma escolha entre outras: é a própria vocação dessa instituição, uma exigência consubstancial de sua existência, plenamente coerente com seu princípio fundamental. Uma escola que exclui não é uma Escola: é uma oficina de formação [...]. A Escola, propriamente, é uma instituição aberta a todas as crianças, uma instituição que tem a preocupação de não descartar ninguém, de fazer com que se compartilhem os saberes que ela deve ensinar a todos. Sem nenhuma reserva (MEIRIEU, 2005, p. 44).

O presente trabalho traz em suas páginas, talvez de forma inusitada, uma análise

muito mais prospectiva sobre os saberes-fazeres dos profissionais da escola

investigada, com um olhar convergente para suas potencialidades e possibilidades, do

que apontamentos das vicissitudes do cotidiano, dos impossíveis, dos “erros” e dos

não-fazeres.

Entretanto, esses apontamentos são trazidos, em alguns momentos, para sinalizar

nossas considerações, ainda que com certa sutileza.

Nos questionamentos, discussões e ações reflexivas, que fluíram ao longo do estudo,

esses apontamentos foram apresentados como hipóteses ou condições mobilizadoras

e disparadoras dos processos de mudança.

Cremos que tal postura, assumida por nós, reflete no todo, ou em boa parte, nossa

condição de ser e estar como pessoa, como ser humano e, conseqüentemente, como

profissional. Podemos dizer do valor da produção do outro, não no sentido de aceitar a

sua estagnação, mas como algo que tem feito com que os sujeitos que produzem (ou

são produzidos) no/pelo conhecimento os saberes a serem compartilhados, se vejam

“habilitados” a se projetarem mais, vislumbrando outras novas possibilidades de sua

ação docente.

Acreditamos ser importante situar o leitor sobre essa nossa “tendência”, pois nos

valemos muito dela neste processo de investigação-ação, assim como alertá-lo da

impossibilidade de separar a pessoa, a profissional implicada, da pessoa

pesquisadora.

No desempenho de nossa função profissional, para melhor nos justificar, salientamos

que a tarefa de potencialização dos saberes-fazeres, juntamente com a análise

12

prospectiva que vimos fazendo com os professores com os quais atuamos tem, em

grande medida, propiciado aos que desejam realizar a gestão da aprendizagem a

todos, a apropriação de outros saberes, fortalecendo a capacidade profissional de

cada educador.

Quanto ao percurso teórico-metodológico por nós empreendido, por se ancorar na

abordagem institucional, possibilitou-nos transitar entre as considerações que fazem

os teóricos da Pedagogia Institucional, com ideais de transformação das instituições,

até aqueles que encontram, pelo olhar multirreferencial, especialmente o francês

Jacques Ardoino, uma alternativa para se compreender os fenômenos educativos.

Com uma proposta de natureza qualitativa, este trabalho se sustenta em suas

análises com perspectivas teóricas que consideram e valorizam tanto o pesquisador

quanto o contexto investigado. Tais perspectivas se assentam na pesquisa-ação

institucional de Barbier (1985), que se encontra pelo viés da Análise Institucional com

autores, como Lapassade (1983), Lourau (1995), Ardoino (1971) e Castoriadis (1982).

Tomando a possibilidade do olhar multirreferencial, que no próprio movimento

institucionalista encontra relações, ousamos, pela busca de múltiplas referências,

como a Psicologia, a Sociologia e o referencial histórico-paradigmático, compreender

o fenômeno inclusão e gestão da aprendizagem para todos.

Sob a denominação de microssociologias, segundo expressão de Lapassade (2005),

estão também presentes, neste estudo, o interacionismo simbólico (pela utilização de

dinâmicas de grupo), os dispositivos de observação, estudo e formação e a própria

pesquisa-ação desenvolvidos com o grupo da escola. Lapassade nos apresenta a

definição de Moreno para microssociologia, em que este diz ser o estudo de um

pequeno grupo ou, no máximo, de uma instituição (MORENO, 1952, apud

LAPASSADE, 2005).

O lugar escolhido para a realização deste estudo é uma escola municipal de Ensino

Fundamental de 1ª a 8ª séries, localizada em Vitória-ES. Ressaltamos que essa

escola integra o grupo de escolas nas quais atuamos com o serviço de assessoria e

apoio nas questões da Educação Especial e educação inclusiva, por sermos a

coordenadora do laboratório pedagógico, responsável por prestar atendimento

especializado aos alunos com necessidades educacionais especiais dessa região.

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Nosso interesse principal com este estudo convergiu para a identificação dos saberes-

fazeres de um grupo, na gestão da aprendizagem de todos os seus alunos, na

tentativa de compreender os movimentos, os processos de auto-análise e análise

interna, ante a necessidade e o compromisso que têm, como educadores, de fazer

cumprir sua função educativa no compartilhamento de saberes a todos os alunos.

Sendo assim, alguns objetivos podem ser elencados:

a) identificar e analisar as instituições que permeiam o espaço escolar, utilizando

diversos dispositivos, para que se construam como formação dos educadores

outros e novos possíveis percursos de práticas curriculares;

b) identificar as práticas instituídas na organização escolar, nos seus vários

desdobramentos, fazendo destes objetos de análise, com vistas à sua

transformação

c) buscar pistas/indícios de práticas organizacional-pedagógicas instituintes,

desvelando-as como possibilidades de não aprisionamento e modelização;

d) dar visibilidade ao grupo das possibilidades de um redimensionamento

funcional-pedagógico na instituição escolar, com vistas à gestão de

aprendizagem para todos os alunos.

Algumas questões de investigação foram se delineando e, sendo elas de nosso

interesse, se configuraram sob as seguintes perguntas:

a) Quais as representações dos profissionais da escola diante do desafio da

gestão da aprendizagem na diversidade?

b) É possível produzir saberes, despertar interesses, disparar mudanças pela

potencialização de um “aparente” não-saber?

c) Como transformar o conflito e a angústia da “impotência” e da

“incompetência” em condição de autoprodução e “autofazimento”?

d) De que maneira a instituição escola, em seus vários âmbitos, poderia

redimensionar sua atual estrutura organizacional-pedagógica, considerando

seus aspectos instituídos, latentes e instituintes, para garantir a gestão da

aprendizagem para todos?

e) O que realmente os profissionais desejam ou precisam para que, além do

acolhimento pela matrícula e promoção da inclusão social na classe e na

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escola, possam também compartilhar os saberes que se deve ensinar a todos

os alunos?

No processo de investigação-ação, nossa implicação com a pesquisa se apresenta

duplamente configurada, ou seja, somos a profissional que pesquisa e, ao mesmo

tempo, a pesquisadora que trabalha. Isso nos fez pesquisadora de nossa própria

prática, uma vez que representamos ou evocamos as formas organizacionais do

trabalho pedagógico relativas à Educação Especial e à educação inclusiva instituídas

e instituintes no contexto escolar. Afinal, estávamos e continuávamos ali no exercício

de nossas funções profissionais.

Reiteramos que, pela opção teórico-metodológica na qual nos apoiamos, foi possível

aos envolvidos se colocarem no contexto escolar investigado, assim como validar os

seus feitos, relacionando os seus fazeres individuais com o saber-fazer coletivo do

grupo. Questionando-se a si mesmos, inventando, reiventando e avaliando-se em

frente ao desejo de fazer mais, os educadores podiam, paulatinamente, reconhecer a

necessidade de produção de um movimento que, mesmo que não pudesse “romper”

com os instituídos e com as práticas ali naturalizadas, ao menos poderia direcioná-lo,

por meio de reflexões pontuais, em favor da reestruturação administrativa e

pedagógica no agir cotidiano daquele contexto escolar.

Acreditamos, então, que esses feitos/reflexões representam, entre outras coisas, os

resultados de uma ação processual, que seguramente continuará se fazendo presente

ali como condição precípua de garantia de oferta de educação de qualidade para

todos, indistintamente.

Não pretendíamos, com este estudo, simplesmente registrar e pontualmente assinalar

resultados, em função de nossa participação e intervenção com os profissionais da

escola. Contudo, tínhamos bem presente o desejo de registrar os processos pelos

quais íamos estabelecendo relações, conexões, compreendendo e “fazendo”

compreender suas resistências e suas “incapacidades”. Isso se deu por meio dos

ditos, dos não-ditos e dos “interditos” que, pelas análises e auto-análises, puderam ver

o quanto fazem e o quanto ainda podem fazer.

Acreditamos que, em nosso estudo, no que se refere ao plano metodológico, há três

grandes justificativas que nos balizam quanto à forma não tão rígida pela qual

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optamos em nossa pesquisa: primeiro: o fato de algumas bases de nosso trabalho se

sustentarem na abordagem institucional e que integra os discursos da Pedagogia

Institucional; segundo: as considerações acerca da noção de complexidade que

permeiam nossas discussões, ampliando nosso olhar para além do previsível, certo,

objetivo e excessivamente predefinido; terceiro: o olhar multirreferencial com que nos

convida Ardoino para a compreensão dos fenômenos educacionais.

Conforme escreve Baptista (2005, p. 95), pensamos que a “leveza” da bagagem

metodológica fica, então, justificada, inclusive, “[...] pela compreensão de que, ao

abordar fenômenos complexos, é importante garantir a possibilidade de contínuas

adaptações na ação investigativa [...]”.

No convite que continuamos a fazer ao leitor, para a leitura do presente trabalho,

apresentaremos o que nos foi possível considerar, registrar, traduzir, inferir e analisar

nos capítulos que se seguem:

No segundo capítulo, além de nos apresentar por meio de alguns recortes de nosso

percurso pessoal e profissional, também expomos ao leitor de onde, atualmente,

estamos falando. Trazemos algumas considerações acerca da necessidade que

temos de repensar a escola para todos, assim como pensar nos apoios educacionais

não somente para o aluno, mas também para o docente na gestão da aprendizagem a

todos na classe.

No terceiro capítulo, trazemos o legado das ciências modernas e seus reflexos na

educação. Apresentamos algumas considerações sobre o debate empreendido em

torno de um paradigma que prima pela razão e pela cientificidade, obscurecendo

outros conhecimentos e sabedorias. No entanto, possibilidades de “rupturas” se

insurgem, a partir de desafios que disparam a produção criativa de mudanças no

processo de ensinar a todos.

O quarto capítulo se constitui num aporte teórico que tem suas bases na abordagem

institucional sustentando, desse modo, nossas discussões e idéias de transformação

de práticas e ações naturalizadas, no contexto escolar, pelos processos analíticos da

análise interna e da auto-análise. Apresentamos, ainda, ao leitor nossa interpretação

dos escritos de Ardoino (1998) e de outros autores acerca da abordagem

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multirreferencial nas ciências e na educação, em que o olhar plural e multirreferencial

é trazido como possibilidade de compreensão aos fenômenos educativos.

Nossas escolhas metodológicas são apresentadas no quinto capítulo. O caminho

investigativo pelo qual fomos “colhendo” nossos dados e/ou verificando hipóteses

perpassou por momentos e processos de análise interna e da chamada nova

pesquisa-ação de Lapassade (2005).

O sexto e o sétimo capítulos se dividem na centralidade de nossas análises, que

revelam o vivido com o grupo da escola pelas “leituras” realizadas, por nós e pelo

próprio grupo. O olhar prospectivo que lançávamos sobre as práticas de alguns

profissionais, assim como na consideração e na potencialização de seus saberes e

fazeres, é interpretado pelas sutilezas do agir pedagógico de alguns professores,

assim como os desafios que persistem, mas não os fazem desistir. Essas se traduzem

como expressão de uma escola viva e que está em movimento.

O último capítulo que, apesar de ser o último, não se constitui pra nós a conclusão,

tem o registro de nosso sentimento na produção deste trabalho, assim como

apresentamos ao leitor nossas considerações sobre o quanto podem a “impotência” e

“incapacidade”, na produção e transformação dos processos de aquisição de saberes,

desde que sejam assumidas com responsabilidade e compromisso por parte de quem

as reconhece.

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2 DO QUE FALAMOS E DE ONDE FALAMOS

A questão a que ora nos propomos investigar neste estudo veio se constituindo há

algum tempo em nossa trajetória profissional. Nesse percurso, atuando na docência,

ou fora dela, nos sentimos impulsionada pelo desejo de construir ou fazer parte da

construção de um projeto educativo que levasse em consideração a necessidade do

desenvolvimento de ações pedagógicas, que pudessem acolher e trabalhar com a

diversidade e a diferença presentes nos sujeitos que constituem os espaços

educacionais.

Em nossa análise, esse projeto deve levar em conta as singularidades dos sujeitos

que estão nas escolas, assim como também deve considerar o real o desafio diante

dos propósitos de não excluir ninguém, de não descartar nenhuma criança e de fazer

com que sejam compartilhados os saberes que a escola deve ensinar a todos.

Por considerar tal realidade, é que nos debruçamos com dedicação neste estudo e

investigação. Acreditamos, também, que já não podemos, de modo responsável e

crítico, ficar só nas denúncias e nas constatações das impossibilidades da gestão da

aprendizagem e do conhecimento.

Sendo assim, possibilitar que sejam ouvidos e validar o que dizem aqueles que estão

no cotidiano da escola, sobre suas reais dificuldades, desejos, êxitos, e o que pensam

sobre os fins que a escola se propõe, entre tantos outros aspectos, torna-se

imprescindível aos processos de mudanças. Nesse sentido, vale a consideração de

que esses aspectos muitas vezes são movimentados e mobilizados por situações de

intensos conflitos, desafios e tensões.

Considerando o posicionamento de Bourdieu e Passeron (1992, p. 111), de que “[...] a

análise das transformações da relação pedagógica confirma que toda transformação

do sistema escolar se opera segundo uma lógica na qual se exprime ainda a estrutura

e a função próprias desse sistema”, faz-se necessário elucidar, ou trazer à luz,

algumas questões que, refletidas em si, refletem também a elementos circundantes

que vão da estrutura administrativo-pedagógica da escola até a estrutura macro do

sistema educacional.

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Essa estrutura e essa função podem ser interpretadas como reprodutoras de

condições e exigências implícitas para a manutenção do funcionamento do sistema.

Podem se configurar como uma harmonia preestabelecida que não deve ser

questionada nem tocada. Não se concretizando esse processo, ou seja, persistindo a

manutenção desse funcionamento, surgem, em geral, situações de crise.

Segundo os autores citados, é nesses momentos que se deve “[...] discernir os

pressupostos ocultos de um sistema tradicional e os mecanismos capazes de

perpetuá-lo quando os preliminares de seu funcionamento não estão mais

completamente preenchidos” (p.111).

A reflexão sobre essa “harmonia preestabelecida” (BOURDIEU; PASSERON, 1992),

que mantinha ou mantém este sistema que excluía as interrogações sobre o seu

próprio fundamento, se insurge como um imperativo.

Essa harmonia, em nosso entendimento, parece revelar os motivos da exclusão, da

“falta de condições”, do despreparo profissional, “da incompetência e/ou impotência”

no trabalho com um público, que tem garantido o seu acesso ao sistema escolar, mas

que ainda não tem garantido no contexto educacional o reconhecimento da

diversidade e da diferença que constitui esse público.

A partir dessas questões, pensamos que a abordagem institucional, pela possibilidade

que nos fornece, por meio de seus vários dispositivos de análises, nos possibilita

trazer à tona os elementos que negam e/ou afirmam o projeto de uma escola para

todos, sejam esses elementos relacionados com os âmbitos administrativo,

pedagógico ou das subjetividades.

Acreditamos ainda que essas análises possam elucidar também os anteparos

ideológicos que ocultam ou negam as ações conservadoras, que preservam a

reprodução social e fazem emergir aspectos fundamentais da dialética instituído-

instituinte. Salientamos que a experiência que temos vivido nos últimos quatro anos na

Prefeitura Municipal de Vitória, 1 onde desempenhamos a função de coordenadora de

um laboratório pedagógico, na assessoria a seis escolas de uma região administrativa,

1 Assumimos, em 2002, a função de coordenação de laboratório pedagógico, a qual se constituía em atividades como: avaliação cognitiva de alunos com necessidades educacionais especiais, encaminhamentos pedagógicos e clínicos diversos, orientação e acompanhamento administrativo/pedagógico às escolas da região atendida, entre outras.

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nos possibilitou conhecer as expectativas educativas que professores e pedagogos

vêm nutrindo a respeito de alunos com necessidades educacionais especiais, seja por

deficiência, seja por outra condição, que fogem ou escapam ao ideal de aluno

pretendido/desejado.

Nesses contatos com professores e pedagogos, nos quais se objetivavam realizar

encaminhamentos e tentativas de descoberta e construção de alternativas educativas

aos alunos com necessidades educacionais especiais, ficava quase sempre

evidenciado que o simples fato de esse aluno passar a freqüentar o laboratório

pedagógico, 2 ou iniciar atendimentos em alguma instituição especial, significava a

finalização da obrigação desses profissionais quanto à função educativa com esses

alunos.

Dessa maneira, configurando um sentimento de dever cumprido, por parte daqueles

que solicitavam os encaminhamentos, restavam, ao aluno, no contexto da escola e

especificamente na sala de aula regular, somente as possibilidades de socialização,

tendo em vista a baixa expectativa quanto à sua aprendizagem e desenvolvimento.

Era-nos possível verificar, acerca das práticas, dos saberes e das concepções desses

profissionais, a expressão viva do pensamento de Ferreira (2005) sobre as

percepções que tinham de si e dos alunos, expressando assim uma significativa

consciência da própria incapacidade docente unida a uma baixa expectativa em frente

às possibilidades do aluno.

Isso fortalece em nós a crença de que há certa fragilidade na escola, nos currículos e

na própria ação docente em fazer confluir, de forma sistemática e interativa, seus

projetos e propostas pedagógicas a fim de conseguir um ensino de qualidade na

diversidade.

Nesse sentido, somos levada a dialogar com Charlot (2005) acerca da relação com o

saber, quando este questiona se essa seria uma questão de didática. O autor nos

alerta sobre o risco que corre algumas escolas e educadores quando afirmam que se

determinado aluno vai mal é devido à sua relação com o saber. Isso, segundo ele,

2 Laboratório pedagógico é o espaço organizado em algumas escolas (geograficamente localizadas em regiões que atendam a todas as demais escolas de seu entorno), que dispõe de recursos pedagógicos e professores especialistas nas diversas áreas de deficiência.

20

seria uma forma errônea de relacionar a noção de saber com a noção de deficiência

sociocultural.

É importante salientar que a noção que emerge da relação com o saber não se dá

apenas por uma via, ou seja, a do aluno. Os educadores precisam se questionar sobre

como concebem essa relação em seus cotidianos, entre si e consigo mesmo. Para

obter condições de promoção de saberes a todos que na escola estão, é preciso

também refletir acerca de como nos relacionamos com os nossos próprios saberes,

assim como os dos outros. Charlot (2005, p. 45) nos propõe, então, a seguinte

definição:

A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender [...] é o conjunto das relações que um sujeito estabelece com um objeto, um ‘conteúdo de pensamento’, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber – conseqüentemente, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a atividade no mundo e sobre o mundo [...], como mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação.

Compreender a relação com os saberes é uma importante tarefa, considerando-nos,

sobretudo, como sujeitos que aprendem.

O desafio que se sobrepõe, ou emerge, a partir do que lemos e pesquisamos acerca

das produções que se preocuparam com o ensino com qualidade na diversidade,

assim como pelo olhar e pelas ações e/ou intervenções a partir do exercício de nossas

funções profissionais como assessora, pedagoga ou professora, nos permite ou nos

autoriza dizer que é preciso validar o que as evidências denunciam:

Em primeiro lugar, a de que uma escola, organizada e arquitetada para alunos que

correspondam a um ideal já padronizado e modelizado, desde os mais remotos

tempos, dificilmente produzirá bons resultados no trabalho pedagógico para aqueles

que necessitam de um outro projeto de escola, ou seja, todos os que nela estão

presentes, pois todos são sujeitos singulares. Nesse sentido, a hipótese é: precisa-se

repensar a escola para todos.

Em segundo lugar, o ressentimento de que professores e professoras nutrem acerca

da ausência de um profissional especialista, que teoricamente estaria mais bem

21

preparado para planejar, fazer e executar, junto com eles, os projetos pedagógicos

que pressupõem a participação e o envolvimento de todos os alunos da classe. Sendo

assim, uma segunda hipótese se apresenta: é necessário pensar no apoio não só

para o aluno, mas também para o docente na gestão da aprendizagem a todos

da classe.

Segundo Ferreira (2005, p. 149), na realidade escolar, a prevalência de uma

identidade marcada pelas diferenças e, na maior parte das vezes, negativa em relação

ao aluno, faz com que ele, acabe “[...] ocupando o lugar de falência do ideal, dentro de

um saber instituído que não lhe confere o estatuto de sujeito, e que leva a uma total

distorção no processo educacional”. Dessa maneira, acrescentamos ao pensamento

da autora a questão: quais são as verdadeiras possibilidades da escolarização dessas

crianças com necessidades educacionais especiais?

Acreditamos que as hipóteses acima traçadas se constituem num investimento

profícuo de propostas de ressignificação do cotidiano educacional instituído, em que a

prática pedagógica dos professores, conforme Ferreira (2005), ainda se orienta pela

concepção de que existem duas categorias qualitativamente distintas de alunos: os

“normais”, que freqüentam a escola comum, e os deficientes, que são da alçada

educativa da Educação Especial. Romper com esse paradigma e com essas

concepções constitui-se num grande desafio e igualmente numa grande necessidade.

Também acreditamos num investimento pela via da formação, que trabalhe com a

capacidade de reflexão e ação dos educadores, em que seja possível considerar e

analisar as várias formas de resistências, especialmente aquelas reveladas no

discurso da “impotência” do educador, nas “incapacidades” do aluno e na descrença

de que a educação deva ser para todos, indistintamente.

Ainda de acordo com Ferreira (2005), a presença do aluno diferente do ideal esperado

pela comunidade escolar gera uma desestabilização no sistema, sistema esse que

tem sido pouco flexível na medida em que apresenta uma estrutura que não oferece

muita abertura para ações, segundo as necessidades específicas de cada criança.

Nesse sentido,

[...] a desestabilização mobiliza todos os participantes da escola, podendo criar resistências que impossibilitam a inclusão, mas

22

contraditoriamente a tensão gerada pelo fato altera a rigidez da estrutura escolar e possibilita movimentos favoráveis à plena educação do aluno.

Por sua vez, Meirieu (2005) nos ajuda a refletir sobre essas questões, quando fala

acerca do ceticismo geral em que se vive com relação a um projeto que parece

completamente utópico, que é a ambição dos homens de não excluir ninguém do

processo escolar. Nesse ceticismo, vê-se o posicionamento de alguns educadores:

[...] algumas crianças, com toda evidência, não querem aprender, não têm desejo nem necessidade disso; outras foram maltratadas pela vida, e os estragos são tais que não se pode mais esperar que adquiram conhecimentos complexos; outras, por exemplo, e não se vê motivo para forçá-las ao estudo de noções abstratas literárias, econômicas ou científicas (MEIRIEU, 2005, p. 41).

Ora, diante de tantos obstáculos, de tanto ceticismo, o projeto de uma escola para

todos paradoxalmente passa a ser irrealista para muitos, inviável, quase um combate

perdido. O autor, de modo irônico, “aponta”, então, como possibilidade de “solução”, a

redução de suas ambições de não excluir ninguém do processo.

Para tanto, a sugestão, ou a saída seria adaptar-se aos limites objetivos: de alguns,

pode-se cobrar que estudem História, Física e Filosofia; de outros será exigido

simplesmente que saibam ler e que dominem razoavelmente as quatro operações. Ou

seja, nessa “adaptação”, os alunos estariam pré-selecionados a receber ou não

determinados conhecimentos e a alguns estaria sendo negado o direito ao acesso a

toda produção cultural, artística e científica da humanidade.

Felizmente, esses recuos são captados por “[...] indivíduos mais ou menos

excêntricos e marginais que chamamos de pedagogos” (MEIRIEU, 2005, p. 41),

profissionais inventivos, que investem em todas as possibilidades imagináveis nas

suas práticas pedagógicas. Estes, encurralando os “realistas” em seus próprios

discursos, insistem nas razões que justificariam os abandonos educacionais,

interpelando-os:

Com que direito você diz que esta ou aquela criança não pode ter êxito? Com que direito condena-a ao fracasso, a enclausurar-se em dificuldades que, ao contrário, se deveria ajudá-la a superar? O que lhe garante que a inteligência dela, cuja existência você põe em dúvida, não despertará de repente, quando encontrar os estímulos necessários, as ajudas adequadas, um ambiente favorável. Por que

23

pretender legislar sobre o futuro em nome do passado ou do presente? (MEIRIEU, 2005, p. 42).

As reflexões e os questionamentos aos quais se refere o autor nos remetem, em

alguns momentos, a situações vivenciadas na escola em que realizamos esta

investigação. Tais situações são aqui relatadas como análises realizadas, portanto,

antes de nos apresentarmos na escola como pesquisadora.

Nesse contexto, evidenciava-se, de forma clara, a dificuldade em se lidar com as

diferenças constituídas e desveladas em suas variadas formas, sob alegações

veementes de grande parte dos professores. Os argumentos eram circunscritos à

inviabilidade de ensinar a todos num mesmo espaço/tempo, não havendo, portanto,

expectativas de aprendizagem para determinados alunos.

Nas raras e isoladas experiências contrárias, ou seja, naquelas nas quais foi possível

observar uma gestão de aprendizagem para todos num mesmo espaço-tempo – a

sala de aula regular – avaliamos que esse feito determinava marcas positivas para os

alunos, sem, contudo, disseminar-se como prática corrente.

Na potencialização dessas práticas, nas reflexões dos ditos, “não-ditos” e interditos e

no uso de aportes instrumentais e metodológicos próprios de uma proposta de

investigação-ação, julgamos ter respondido às nossas questões e objetivos iniciais,

assim como aos que se insurgiram ao longo do processo de pesquisa.

Desse modo, podemos dizer que foi a inquietude gerada em nós, ao verificar e, muitas

vezes, constatar as impossibilidades de a escola e de seus profissionais assegurarem

a gestão da aprendizagem para todos e, paralelamente a esse cenário, a possibilidade

de conhecer experiências positivas por parte de alguns profissionais, que nos

motivaram ao estudo e investigação acerca desses movimentos que vêm ocorrendo

nesta escola em nome da inclusão.

As possibilidades de transformação, reestruturação e redimensionamento dos

cotidianos da escola, em função da presença de alunos diferentes do ideal esperado,

são chamadas por nós de um processo instituinte, pois vêm tentando, de alguma

forma, romper com os modelos preestabelecidos de organização pedagógica, de

avaliação, de concepções acerca do desenvolvimento humano, de aprendizagem, de

práticas pedagógicas, entre outros.

24

Essas transformações necessitam fundamentalmente de condições favoráveis, apoios

e engajamento de educadores que, cada vez mais mobilizados e crédulos, buscam

novas formas de atuar pedagogicamente com todos os alunos.

Registramos aqui que os subsídios teórico-metodológicos da Análise Institucional, da

pesquisa-ação institucional e da abordagem multirreferencial nos deram

sustentabilidade para procedermos ao desvelamento, análise, intervenção e “leitura”

das mudanças nesses movimentos no cotidiano investigado.

Para isso, possibilitamos aos profissionais da escola conhecê-los por meio de

dispositivos de análise, nos quais, simultaneamente, num processo de formação e

reflexão-crítica, foram constituídos os espaços de intervenção nas práticas

pedagógicas até então instituídas.

25

3 AS CIÊNCIAS MODERNAS: BASES EPISTEMOLÓGICAS

Neste capítulo, estaremos discutindo a emergência paradigmática das ciências

modernas, uma vez que foi no âmbito da Modernidade que se estruturaram as bases

epistemológicas e também metodológicas que subsidiaram as teorias educacionais e,

conseqüentemente, as práticas educativas dela originadas.

Desse modo, entender as bases nas quais estão calcadas nossas práticas educativas,

assim como entender a influência que os paradigmas da ciência moderna tiveram na

sociedade e na educação, facilitam-nos a “compreensão” do percurso histórico da

educação das pessoas com deficiência e a inclusão delas no ensino regular, como

situação atípica e dissonante para um modelo caracterizado, sobretudo, pelo ideal de

uma escola que está constituída para a formação utilitarista, técnica e científica,

conforme foi concebida.

Pensamos, então, que refletir sobre tal temática nos possibilita um melhor

entendimento das necessidades de mudanças que emergem no atual século em que

vivemos, em frente a indiscutível função da escola que é a de ensinar a todos, sendo

os alunos “ideais” ou não.

3.1 HERANÇAS DA MODERNIDADE

Segundo Japiassu (1996), a visão do mundo é um dos fatores mais importantes para

a organização social e econômica de uma sociedade. Apesar de, para o homem

comum do século XVII, não haver nenhuma importância prática de se saber que a

Terra gira em torno do Sol, a sociedade moderna se viu abalada em suas estruturas,

pelo sistema de Copérnico, quando neste o homem é desalojado do lugar central que

ocupava até então no Universo.

Desse modo, a religião, a filosofia e os mitos, determinantes daquela visão de mundo,

“perdem” sua centralidade nas leis do Universo. É a ciência que passa, então, a

desempenhar esse papel. As explicações sobrenaturais para as epidemias, os raios,

as boas e más colheitas, as tempestades desaparecem, dando lugar a explicações

racionais e objetivas acerca desses fenômenos.

26

Capra (1982) aponta a Física, como um exemplo brilhante de ciência “exata” que, com

explicações racionais e objetivas, vem servindo, desde o século XVII, como modelo

para todas as outras ciências. Durante quase trezentos anos, os físicos se utilizaram

de uma visão mecanicista do mundo, pensando que a matéria era a base de toda a

existência. Nesse contexto, o mundo material era assim visto como uma profusão de

objetos separados.

Nesse sentido, mente e matéria são vistos separadamente e a divisão do

conhecimento em campos especializados se constituiu em única possibilidade de

organização na busca da eficácia em qualquer campo do saber. Isso fez com que a

comunidade científica construísse uma mentalidade reducionista, a tal ponto, que o

homem passou a adquirir uma visão fragmentada não somente das “verdades

científicas”, mas também de si mesmo, de seus valores e dos seus conhecimentos.

Assim, vamos percebendo que, de certa forma, a nossa cultura parece orgulhar-se de

ser científica. Isso acontece quando vemos, por exemplo, o domínio do pensamento

racional, sobre ela, em que o conhecimento científico, via de regra, é a única forma

aceitável de conhecimento. Diz-se, ainda, em nossos dias, que, se não houver

comprovação científica para algumas hipóteses, mesmo “testadas” e visivelmente

“verdadeiras”, mas em dimensões mais subjetivas, não poderão se constituir em

conhecimentos aceitáveis.

Vimos prevalecer o conhecimento científico sobre a sabedoria intuitiva, na qual a

emoção e a psiquê são condicionantes desse saber. Nesse processo, o cientificismo

faz prevalecer a competição sobre a cooperação, a objetividade sobre a subjetividade

e o reducionismo sobre as situações complexas.

Podemos, então, dizer que, no paradigma da modernidade, há uma orientação para o

“[...] saber e a ação propriamente pela ‘razão’ e pela ‘experimentação’, revelando

assim o culto do intelecto e o exílio do coração” (CARDOSO, 1995, p. 31, apud

BEHRENS, 2005, p. 18).

Há uma crença de que apenas os preceitos científicos serão capazes de dissipar as

trevas da ignorância, do obscurantismo e das tradições. Sob essas crenças, cada

sociedade “construiu” sua ciência, conferindo-lhe um estatuto mais ou menos absoluto

27

e, com um corpo de conhecimentos fundamentais, julga-se capaz de explicar a origem

e o sentido do mundo e da vida (JAPIASSU, 1996).

Nesse sentido, acreditamos que, na própria diversidade humana e social, esteja

inscrita também a diversidade científica. Isso nos faz perceber a impossibilidade de a

ciência universalizar verdades absolutas. Pensando assim, lembramo-nos de

Castoriadis (1997), quando lança as seguintes questões: quais são as relações que os

paradigmas sucessivos mantêm entre eles e com todos com aquilo que é visado? Há

uma relação entre a “episteme” do Ocidente contemporâneo e a da Grécia antiga?

Qual seria essa relação? O autor, sobre essas questões, analisando-as como

interditas, diz que a ciência se transforma em uma variedade, ou mesmo em uma

curiosidade etnográfica.

Reelaboramos, então, nosso pensamento por meio das seguintes perguntas: não

estariam, nessas “epistemologias”, presentes as forças sociais invisíveis e que, pela

naturalização e cristalização de suas práticas, acabam assumindo o lugar e o estatuto

de “verdades” científicas? São as práticas socializantes e socializadoras que fazem

perpetuar “verdades” ou é a “verdade” testada e experimentada pela ciência que faz

com que repitamos as mesmas ações, os mesmos fazeres e, pior, os mesmos

prognósticos, especialmente em relação aos alunos com quem cotidianamente

convivemos?

Acreditamos que, se pelo menos nos esforçarmos em refletir acerca de tais perguntas,

chegaremos a um lugar comum a que muitos já chegaram, que é o entendimento, por

exemplo, dessa escola como invenção social, dos comportamentos como ações de

imitação, entre outras “instituições” de negação, de impossibilidades, que se

presentificam na sociedade e na escola.

Diante das complexidades da sociedade moderna, acreditava-se poder entender seus

fenômenos pela teoria matemática de Isaac Newton, pela filosofia de René Descartes

e pela metodologia científica de Francis Bacon. Uma condição, portanto, para tal

entendimento era que tais fenômenos fossem reduzidos aos seus componentes

básicos e se investigassem os mecanismos por meio dos quais esses componentes

interagem (CAPRA, 1982).

28

Lembramos que a influência desse pensamento se perpetuou e se faz presente em

várias áreas. Em uma dessas áreas, a educacional, por exemplo, vemos a

universidade como uma instância que pouco questiona essa influência, haja vista o

papel fundamental que assumiu na reprodução da atividade científica.

De acordo com Behrens (2005), essa influência é sentida na divisão dos cursos em

disciplinas estanques, em períodos, organização em centros, departamentos, divisões

e seções. Esse processo burocrático restringiu cada profissional a uma especialidade,

fazendo-o perder a consciência do global, e provocando o afastamento da realidade

em toda a sua plenitude. Os que se diferenciam disso têm que empreender esforços

individuais e paralelos às suas atividades cotidianas no trabalho.

Tais considerações nos levam à questão amplamente debatida por professores que se

vêem desafiados ante a realidade concreta de ensinar a todos, que é a que se refere à

sua formação inicial. Ou seja, parece não haver coerência entre o que se ensina e se

discute na academia, em frente à realidade com a qual se vai atuar, ou melhor, com o

que a realidade vai “exigir” do atual educador para o atual contexto no qual está

inserida a escola. As especializações e a divisão do conhecimento em partes parece

evidenciar suas conseqüências na prática docente desse profissional. Segundo

Behrens (2005, p. 23):

A visão fragmentada levou os professores e os alunos a processos que se restringem à reprodução do conhecimento. As metodologias utilizadas pelos docentes têm estado assentadas na reprodução, na cópia e na imitação. A ênfase do processo pedagógico recai no produto, no resultado, na memorização do conteúdo, restringindo-se em cumprir tarefas repetitivas que muitas vezes não apresentam sentidos ou significado para quem as realiza.

Mesmo que, na realidade escolar, seja quase impossível encontrar salas de aula

absolutamente silenciosas e com alunos passivos, esse parece ser o ideal e o desejo

de muitos professores, ou seja, poder fazer com que seus alunos permaneçam

organizados nas carteiras, divididos por filas, sem questionar muito, sem expressar

demais seu pensamento e aceitando com passividade toda e qualquer situação de

autoritarismo vinda da escola e dos professores. Talvez porque, em nossa formação

inicial, tenhamos aprendido que tanto os professores, como os alunos deviam aceitar

as coisas da escola como verdades absolutas e inquestionáveis, tais atitudes ainda se

perpetuem pelas ações de muitos de nossos profissionais.

29

Diante das novas exigências históricas da sociedade em que vivemos e pela

consciência de que é preciso uma “nova racionalidade”, sendo necessário lançar mão

de outras abordagens, a fim de entender os fenômenos educacionais, vemos que as

resistências e o sentimento de “impotência” ou “incompetência” profissional se dão

muito mais por se ter tal consciência, do que pela simples negação de fazer e de

querer mudar.

As discussões e a efetivação da inclusão de alunos com necessidades educacionais

especiais no ensino regular assinalam um marco referencial para a mudança de

paradigma, não nos esquecendo obviamente da inviabilidade do modelo e da

estrutura educacional com outros sujeitos que não se adequam ou se moldam a tal

sistema.

Nesse sentido, acreditamos num conceito de paradigma como o que é entendido por

Cardoso (1995), como “[...] um modelo de pensar e ser capaz de engendrar

determinadas teorias e linhas de pensamento dando certa homogeneidade a um modo

de o homem ser no mundo, nos diversos momentos históricos” (CARDOSO, 1995, p.

17, apud BEHRENS, 2005, p. 26).

A expressão paradigma, por si só, evoca o sentido dessa “homogeneidade” a partir da

conceituação de Khun (1996), em que o autor diz ser uma constelação de crenças,

valores e técnicas partilhados pelos membros de uma comunidade científica, durante

uma certa época.

Desse modo, mesmo assumindo ou compartilhando as mesmas concepções, valores

e práticas, as teorias científicas nunca estarão aptas a fornecer uma descrição

completa e definitiva da realidade. Segundo o autor, elas “Serão sempre uma

aproximação da verdadeira natureza das coisas” (CARDOSO, 1995, p. 17, apud

BEHRENS, 2005, p. 26). Ou seja, os cientistas não lidam com a verdade; eles lidam

com descrições da realidade limitadas e aproximadas (p. 45).

Um novo paradigma que se institui deverá, então, considerar tanto os elementos

objetivos, quanto os subjetivos da realidade humana, “rompendo” com os conceitos

deterministas e reducionistas de nosso modo de pensar, assim como de nossas

organizações e de nosso desenvolvimento.

30

3.2 PARADIGMA RACIONALISTA EM DEBATE: RUPTURAS E PERPECTIVAS

Nesta seção, pretendemos realizar uma reflexão que tem por objetivo nos conduzir às

necessárias rupturas epistemológicas, em nosso fazer educativo. Esta se dará pela

apresentação e discussão dos desafios que profissionais da educação vêm

apontando. Tal reflexão nos possibilitará perceber a não pertinência e a incoerência

de muitas de nossas práticas educativas diante das novas “solicitações” da atual

sociedade.

Conseqüentemente, a partir da “impotência e incompetência” assumidas, e diante do

“silêncio”, ante as indagações que se fazem e que também fazemos, algumas

perspectivas emergem, frutos da reflexão, da busca, da pesquisa e da

experimentação. Tais atitudes surgem, por exemplo, da inquestionável

responsabilidade e do compromisso da escola de ensinar a todos.

Assim, quando falamos em rupturas epistemológicas, queremos muito mais nos valer

da força que tem tal expressão do que propriamente quebrar, cortar e fazer cessar

drasticamente tudo o que se faz, ou que se fez até então. Queremos, desse modo,

chamar a atenção, por meio da reflexão, para possíveis mudanças diante da realidade

educacional e dos novos contextos nos quais nos vimos inseridos. Fazendo dessa

maneira, poderemos, paulatinamente, caminhar para a desconstrução e a

desnaturalização dos instituídos, levando-nos, então, às desejadas e necessárias

rupturas.

Entretanto é importante refletirmos com Babha (2003) acerca dessa idéia de ir além,

de ultrapassar barreiras, quanto ele escreve:

O presente não pode mais ser encarado simplesmente como uma ruptura ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais uma presença sincrônica: nossa autopresença mais imediata, nossa imagem pública, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias. Diferentemente da mão morta da história que conta as contas do tempo seqüencial como um rosário, buscando estabelecer conexões seriais, causais [...] (BABHA, 2003, p. 23).

Concordamos com o que escreve Behrens (2005), quando diz que a passagem para

um novo paradigma não deve ser abrupta e nem radical, mesmo porque esse novo

paradigma incorpora alguns referenciais significativos do velho paradigma e que ainda

31

atende aos anseios históricos da época. Afinal, nossa condição de vida em sociedade,

assinalada pelas forças do trabalho, da competição e na luta pela sobrevivência,

assim como o imaginário social, há séculos “construído” e instituído, apontam tal

pensamento como prudente e necessário.

Japiassu (1996) nos lembra a necessidade que temos de mitos, talvez muito mais do

que de realidades. Essa pode ser a razão, mesmo estando diante da realidade e dos

contextos vividos, da difícil tarefa de desconstrução e “assimilação”, pelos agentes da

educação, de outros saberes-fazeres, expressos em novas práticas sociais e

pedagógicas. Essas práticas parecem ter se constituído em heranças quase

“mitológicas”, quanto aos fins e objetivos da educação e da escola, bem como das

concepções que se têm de aluno, de homem, de sociedade, de deficiência, de

aprendizagem, de ensino, assim como da inserção social e cultural do sujeito com

deficiência.

Pensamos que a necessidade que nós, profissionais da educação, ainda temos de

nos agarrarmos aos “mitos” educacionais, legados pelas ciências da modernidade,

nos fazem indecisos, angustiados, sobretudo quanto aos nossos desejos de

construção e reconstrução da sociedade.

Ora, se não sabemos para onde queremos ir, como e por que escolhermos este caminho e não aquele outro? Quem dentre os protagonistas de nossa atual ciência sabe verdadeiramente para onde quer ir, não do ponto de vista do ‘puro saber’, mas quanto ao tipo de sociedade que deseja construir e aos meios que a ela conduzem? (JAPIASSU, 1996, p. 45).

Nesses mitos, nessas crenças e, conseqüentemente, nessas indecisões, diante das

realidades, há, segundo Castoriadis (1987, apud JAPIASSU, 1996), duas grandes

falácias quando se analisam as representações que os indivíduos, inclusive os

próprios cientistas, fazem da ciência:

Primeira: a de que, apesar de não ser defendida abertamente, tende a negar o valor

de verdade à ciência. Ou, então, confere ao termo “verdade” um sentido muito prático:

ou seja, “isto funciona”. De acordo com o autor, essa concepção leva ao ceticismo,

pois, se tudo funciona, qualquer coisa funciona, e se só aceitamos como verdadeiras

as teorias que “funcionam”, como saber se elas funcionam? Neste ponto, o relativismo

32

ou o “anarquismo epistemológico” é incapaz de compreender a historicidade da

ciência.

Segunda: a que pretende que a evolução de nosso saber, no tempo, deu-se em

direção a uma verdade cada vez mais objetiva e transparente. Assim, as teorias

científicas cada vez mais foram expressando a realidade das coisas, constituindo-se,

necessariamente, em universalidades. Essa visão conduziu, naturalmente, a um

dogmatismo triunfalista, ou seja, nela residiram as grandes certezas.

Na realidade escolar, em decorrência dos desafios insurgentes de uma prática

pedagógica que tenta “romper”, pouco a pouco, com esses pensamentos, surgem

formas diferenciadas de organização administrativa e pedagógica assumidas pela

escola na produção do conhecimento. Para essa produção, consideram-se, por

exemplo, as diferentes abordagens e perspectivas de “ruptura epistemológica”, como

a sistêmica, a do ensino como pesquisa, a institucional ou a multirreferencial.

Àqueles que assumem não só a necessidade de reconstrução, mas também de busca

de paradigmas inovadores manifesta-lhes as “respostas” aos seus anseios e, quem

sabe, por meio da “escuta poética”, conforme nos fala Prigogine, a ciência

contemporânea esteja devolvendo ao homem o poder de inovar.

3.3 CONTEXTOS INSTITUÍDOS E INSTITUINTES DO MOVIMENTO DE INCLUSÃO:

DESAFIOS QUE SE INSURGEM

Na tentativa de nos situar quanto às questões apontadas e aos desafios que emergem

a partir da inclusão, representados nas exigências que se constituem

sistematicamente aos sistemas de ensino e, conseqüentemente, de crises e conflitos

que se instauram na escola, trazemos algumas considerações a respeito da transição

paradigmática que preeminentes autores situam como emergente nos processos de

crise e de mudanças.

Segundo Capra (1982), a crise mundial a qual, com muita freqüência, nós,

educadores, fazemos referência, não é um fator a ser desconsiderado, uma vez que

essa crise traz no seu bojo uma extensa complexidade de natureza multidimensional.

33

Suas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida, como a saúde, o modo viver, a

qualidade do meio ambiente e das relações sociais, a economia, a tecnologia e a

política.

Assim, por diversas vezes, valemo-nos das mazelas observadas e vivenciadas no dia-

a-dia da sociedade, sobretudo as relacionadas com a miséria, a injustiça social, como

o desemprego, a falta de habitação e de serviços de saúde dignos para muitos, etc.

para alegar, explicitar e justificar as impossibilidades de um fazer educativo diferente,

colocando o movimento social e escolar de inclusão como algo utópico, haja vista os

grandes problemas existentes na sociedade.

Ainda de acordo com Capra (1982), os especialistas, que presumivelmente estariam

aptos a lidar com os problemas nas suas respectivas áreas, se dizem incapacitados

em entender e apontar caminhos. Isso, porém, é de se esperar, considerando a visão

reducionista, mecanicista e fragmentada da concepção cartesiana de tratar as

ciências de forma separada e o conhecimento numa visão de linearidade.

Muitos desses especialistas, segundo Capra (1982), ainda não identificaram o

verdadeiro problema que está subjacente a essa crise de idéias. De acordo com o

autor, isto acontece pelo fato,

[...] de a maioria dos intelectuais que constituem o mundo acadêmico subscrever percepções estreitas da realidade, as quais são inadequadas para enfrentar os principais problemas de nosso tempo. Esses problemas [...] são sistêmicos,3 o que significa que estão intimamente interligados e são interdependentes. Não podem ser entendidos no âmbito da metodologia fragmentada que é característica de nossas disciplinas acadêmicas e de nossos organismos governamentais (CAPRA, 1982, p. 23)

Com relação à organização do conhecimento distribuído e fragmentado entre as

disciplinas, consideramos ainda que as especializações fazem de cada profissional

um especialista isolado em relação às outras disciplinas e aos problemas que estão

no entorno delas. Não há, desse modo, diálogos entre disciplinas e,

conseqüentemente, essa fragmentação inviabiliza os “diálogos” entre os próprios

profissionais.

3 A abordagem sistêmica tem em Gregory Bateson (1986) aprofundamentos inspiradores quanto ao pensamento, aprendizagem e memória.

34

O “privilégio e a valorização” que algumas disciplinas detêm em detrimento de outras,

sob a alegação de serem mais importantes ao exigente mercado capitalista, é outra

situação que emerge dessa especialização. É assim que assistimos, por exemplo, ao

“desprezo” que muitos, inclusive alguns educadores, têm tido em relação a disciplinas

como Artes, Educação Física, Filosofia ou outras.

Um exemplo prático sobre como o saber é distribuído e fragmentado na escola pode

ser observado na forma como esse conhecimento é previamente organizado, em

conteúdos e disciplinas, considerando, inclusive, algumas variáveis, muitas vezes até

limitantes, como idade, tempo, entre outras, que dificultam ou impedem que o aluno

realize a devida contextualização e interconexão entre os saberes “transmitidos”.

A linearidade e a previsibilidade são as marcas dessa visão cartesiana de tratar as

ciências. Na escola, o que foge a isso é motivo de grandes embates, especialmente

entre os professores, que se valem dessas marcas, para sua organização,

antecipações de sucessos e fracassos, entre outras previsibilidades, quanto ao

desenvolvimento e aprendizagem de seus alunos.

Acreditamos que as conseqüências advindas pela decomposição do conhecimento e

sua fragmentação por disciplinas, e pela visão que tem a escola por seus agentes,

acerca de suas práticas de ensino, aprendizagem, avaliação, currículo, etc.faz com

que se instaure uma tendência quase natural nos educadores em agrupar os alunos

em níveis fortes, médios e fracos e, muitas vezes, deficientes.

Ressaltamos que as concepções que se têm, acerca da aprendizagem das crianças e

adolescentes com deficiência, ainda são aquelas marcadas por uma aprendizagem

qualitativamente diferente em relação aos alunos ditos normais. São concepções

“nascidas” na Educação Especial e, na maioria das vezes, já disseminadas na escola

regular. Em nosso olhar, essas conseqüências assim como as referidas concepções,

são “agravadas” por uma estrutura organizacional pedagógica que se mantém

inflexível em frente às diferenças e singularidades dos sujeitos que nela estão,

exigindo exatamente diferenciações, especialismo e adaptações aos que são

“diferentes”.

A forma dominante com que tem sido considerada a aprendizagem das pessoas com

deficiência tem se caracterizado por alguns aspectos, que, já na primeira metade do

35

século passado, eram criticados por Vigostky (1924-1929/1989). Considerando isso,

Vigostky fundamentou a necessidade de mudanças significativas na educação de

crianças com deficiência. De acordo com Martinez (2006), para a organização dos

processos de ensino e aprendizagem, tanto na Educação Especial quanto na

chamada educação inclusiva, deve-se levar em conta:

a) o pessimismo em relação às possibilidades de aprendizagem e

desenvolvimento dessas pessoas. Não se acredita, portanto, no processo de

apropriação cultural mediado pela relação pedagógica;

b) a ênfase no defeito e não no sujeito com defeito com as suas características

positivas e seus pontos fortes, elementos essenciais, e seus pontos fortes,

elementos essenciais para o delineamento das estratégias pedagógicas;

c) a ênfase no déficit cognitivo como explicativo das dificuldades de

aprendizagem;

d) a consideração de que as crianças com deficiência têm formas de

aprendizagem qualitativamente diferentes em relação às crianças ditas normais e

que, para o trabalho com elas, é preciso pessoal especializado;

e) o “outro” é concebido essencialmente como um mero facilitador de um

processo de aprendizagem que se assume limitado pelo próprio déficit

apresentado.

Diante desses aspectos, acreditamos ser necessária uma intensa reflexão acerca dos

novos saberes necessários para se atuar perante as necessidades que se insurgem

para o trabalho educativo que pressupõe, sobretudo, a gestão da aprendizagem para

todos que na escola estão fazendo desmistificar atitudes e ações baseadas em

determinismos e prognósticos na maioria das vezes negativos em relação à pessoa

com deficiência.

De acordo com Mantoan (2002), mudanças paradigmáticas e toda e qualquer

inovação na educação escolar esbarram em dificuldades e oposições, porém, apesar

disso, é urgente questionar esse modelo de compreensão que nos é imposto desde os

36

primeiros passos de nossa formação e que prossegue nos níveis de ensino mais

elevados.

Morin (2004) nos fala da reforma da estrutura de pensamento, dizendo que esta é

originariamente paradigmática e está relacionada com os princípios fundamentais que

governam nossos discursos e teorias.

Entendemos, assim, que nossas práticas escolares têm essencialmente obedecido de

forma cega a “[...] um paradigma de disjunção e de redução” (p. 67), necessitando,

portanto, serem questionadas e avaliadas por aqueles que a produzem.

Um objetivo primordial na constituição de importantes significados e sentidos para o

trabalho pedagógico, na escola inclusiva, seria o entendimento de que, no paradigma

da complexidade, no qual se fazem presentes novos e importantes desafios,

estivessem presentes também a idéia da implicação mútua assim como a idéia de

aprender a conjugar as várias áreas do conhecimento e dos saberes. Essas idéias,

segundo Morin (2004), levam em consideração a dimensão do humano presente em

cada sujeito, além de estarem aliadas à idéia de aprender a não separar.

Concordamos com Mantoan (2002, p. 80), quando diz que é inegável que tudo é muito

novo, porém,

A escola é velha na sua maneira de ensinar, de planejar, de executar e de avaliar seu projeto educativo. O tradicionalismo, o ritualismo de suas práticas cegam a grande maioria de seus professores e dos pais, diante das transformações, dos caminhos diferentes e não obrigatórios do aprender. Persistem, ainda, os regimes seriados de ensino, os conteúdos programáticos hierarquizados, homogeneizadores, que buscam, generalizar, unificar, despersonalizar quem ensina e quem aprende

3.3.1 Fragmentos históricos dos percursos da inclusão: uma pista para a

“ruptura”

Acreditamos que seja pertinente trazer aqui alguns elementos de natureza histórica,

que vêm apontando na direção do crescente movimento de inclusão, assim como as

possibilidades que se elencam na escolarização e educabilidade de sujeitos com

significativo comprometimento cognitivo, incluídos no ensino regular.

37

Mobilizados por inúmeros acordos e declarações internacionais que há tempos vêm

de algum modo qualificando e aprimorando os princípios da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, alguns países têm traduzido e prudentemente interpretado esses

textos, em políticas públicas aos seus sistemas de ensino, no que diz respeito à

educação de pessoas com deficiência, no chamado ensino regular, delineando, dessa

maneira, caminhos possíveis de uma educação que alcance a todos, indistintamente,

denominada, assim, de educação inclusiva.

Carvalho (apud KASSAR, 2004, p. 57) lembra que a fonte de inspiração do conceito

de inclusão foi buscada em documentos históricos, como a citada Declaração dos

Direitos Humanos (1948), Declaração dos Direitos da Criança (1959), Declaração dos

Direitos do Deficiente Mental (1971), Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos

(1975), entre outros.

Lembra, ainda, que todos aqueles acordos contidos nas citadas declarações decorrem

de um movimento mundial, que surge após o período de depressão econômica

(década de 1930), quando foi necessário associar os conceitos de desenvolvimento e

direitos humanos. Como marca expressiva de direito humano, está postulado, na

Declaração dos Direitos Humanos, que “[...] toda pessoa tem direito à educação. A

educação deve ser gratuita, pelo menos no que se refere à instrução elementar

fundamental”.

A ênfase dada pela Declaração de Salamanca (MEC, 1994, p. 18) à educação de

todos, com o texto: “[...] as escolas têm que encontrar a maneira de educar com êxito

todas as crianças, inclusive as que têm deficiências graves”, faz surgir, então, o

conceito de escola inclusiva.

A garantia do processo de construção dessa escola a cada um de seus alunos, no

reconhecimento da diversidade que os constitui, e respondendo a cada um de acordo

com suas peculiaridade e necessidades, dentro do contexto educacional, é o que

chamamos de escola inclusiva (BRASIL, 2003).

É Importante ressaltar que a escola inclusiva se constrói num ambiente educacional

que assegura a construção de um projeto coletivo, que vai desde a reformulação de

seu espaço físico, currículo, trabalho pedagógico, até os critérios avaliativos e as

dinâmicas desenvolvidas em sala de aula.

38

Segundo Capellini (2004), a inclusão, na perspectiva de um ensino de qualidade para

todos, exige da escola novos posicionamentos, a reestruturação e o

redimensionamento das condições atuais para que o ensino se torne efetivo e para

que os professores se aperfeiçoem, adequando as ações pedagógicas à diversidade

do alunado.

Mais do que uma orientação legal, que traduz a lógica de um ponto de vista ético e de

valorização e respeito ao ser humano, a inclusão é convincente, sobretudo sob o

ponto de vista das análises teórico-metodológicas em que, à luz de estudos e

pesquisas sobre esses sujeitos, antes educados à parte de maneira segregada e hoje

matriculados em classe regulares, evidenciam-se os amplos benefícios de educar

crianças com significativos comprometimentos, juntamente com seus pares.

De acordo com Mendes (2005, p. 3-4), isso é importante,

[...] não apenas para prover oportunidades de socialização e de mudar o pensamento estereotipado das pessoas sobre as limitações, mas também para ensinar o aluno a dominar habilidades e conhecimentos necessários para a vida futura (dentro e fora da escola).

Cumpre aqui registrar que a educação dessas crianças delineia percursos e justifica

pedagogicamente o investimento no potencial desses sujeitos, não os deixando à

margem dos processos de escolarização.

Mendes (1995) nos lembra o fato ocorrido no século XIX e que assinala um marco

importante para a educabilidade de pessoas com deficiência mental. O médico Jean

Marc Itard (1801) convence-se de que a inteligência de uma criança de doze anos

com diagnóstico de idiotia era educável. A partir daí, inicia suas primeiras tentativas de

educá-la.

Mais adiante, em 1846, motivado e influenciado por Itard, Edward Seguin, investe no

desenvolvimento de um método fisiológico de treinamento, que consistia em estimular

o cérebro por meio de atividades físicas e sensoriais. Mais tarde, em 1897, Maria

Montessori desenvolveu um método educacional com base no uso e manipulação

sistemáticos de objetos concretos para ensinar pessoas com deficiência mental

• Educação Especial e classes especiais: percursos

39

As tentativas de educação aos sujeitos com deficiência mental desenvolvidas por

esses três pesquisadores, durante quase todo o século XIX, proporcionaram a

ampliação das oportunidades educacionais a tais sujeitos.

A ampliação dessas oportunidades é implementada com a obrigatoriedade da

escolaridade no final do século XIX e, à medida que se descobriam crianças que não

respondiam aos padrões de aprendizagem da escola, foram criadas as classes

especiais nas escolas públicas, o que, em grande medida, se deu graças à

popularização dos testes de inteligência que, naquele contexto, evidenciavam um alto

número de crianças com problemas que consideravam da ordem ou competência da

Educação Especial.

Uma vez ampliadas as oportunidades educacionais às pessoas com deficiência

mental, a Educação Especial assume dois papéis, pois, de acordo com Mendes

(1995), ela:

Por um lado, atende à democratização do ensino à medida que amplia as oportunidades educacionais para a clientela que não se beneficiava dos processos educacionais regulares; por outro lado, ela também responde por um processo de segregação da criança considerada diferente, legitimando a ação seletiva da educação regular (BUENO, 1994, apud MENDES, 1995, p. 238).

A legitimação dessa ação seletiva da escola pode ser compreendida com a

confirmação dos propósitos e objetivos delegados a ela na reprodução dos princípios

e valores construídos e disseminados durante décadas pela sociedade, onde pessoas

que não se encaixam nem se adaptam aos padrões de aprendizagem por ela exigida

são consideradas como impossibilitadas de nela continuar.

Aqui se circunscreve a necessidade de uma importante “ruptura”: A escola não pode

ser para alguns somente, ela hoje é para todos!

É fácil compreender que, tendo a nossa estrutura educacional profundas raízes que se

encontram diante de um aparato de organização de mundo, de sociedade e da própria

escola, herdadas da modernidade, trate os movimentos recentes, como o da

democratização da escola, e o movimento de inclusão de alunos com NEE por

deficiências, como verdadeiros dissonantes à concepção linear e cartesiana dos

processos pedagógicos organizacionais pensados para a escola.

40

3.3.2 Educação inclusiva: será uma perspectiva de “ruptura?”

Considerando o que dizem os textos legais, em especial a Constituição Federal

(BRASIL, 1988), observamos que esta elege, como fundamentos de nossa República,

a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Nesses fundamentos, estão contidos objetivos, tais como a promoção do bem-estar

de todos e a ausência de preconceitos de origem, sexo, raça, idade, cor ou qualquer

outra forma de discriminação. É a partir daí que o sentido de inclusão, numa

circunscrição mais ampla, chegando até à inclusão escolar, se torna uma obviedade,

uma vez que cidadania e dignidade abarcam os princípios que asseguram direitos

inalienáveis a todos os seres humanos, dentre estes o direito à educação.

Desse modo, registra-se um grande passo na história da educação brasileira, quando

percebemos que, por meio dos textos legais, das diretrizes e normatizações, a criança

passa a ter direitos sociais reconhecidos como inerentes a ela, vista, sobretudo, como

sujeito social, com direitos que devem ser garantidos a todos.

A assunção dos princípios de educação para todos e da educação inclusiva pela Lei

nº 9.394/96, a LDBEN, especialmente quando esta traz em seu texto o atendimento

educacional oferecido “[...] preferencialmente na rede regular de ensino, para

educandos portadores de necessidades especiais” (art. 58), passa a ser um marco

inicial de importantes movimentos, que vão desde os conflitos normais que emergem

das novas políticas públicas, até a que, em nosso olhar, se constitui em um expressivo

significado aos processos de mudanças, que é o da verificação e a constatação de

que a escola que temos não atende às necessidades da maioria de nossos alunos,

por não terem respeitadas o que é absolutamente óbvio e inerente aos seres

humanos, que é a diversidade e a diferença que os constituem.

Eis aqui outra perspectiva de “ruptura”: A escola que temos precisa ser

ressignificada em função de seus objetivos com todos os alunos!

Sendo assim, o conceito que temos de educação inclusiva, além de envolver um

repensar radical das políticas, das práticas e da reflexão de um jeito de pensar

fundamentalmente diferente sobre as origens da aprendizagem e as dificuldades de

comportamento dos alunos (MITTLER, 2003), se complementa com a crescente

41

atitude de aceitação, por parte dos educadores, das diferenças dos sujeitos que estão

presentes no contexto da escola, em valorização à diversidade que é inerente aos

seres humanos, criando, desse modo, um ambiente propício ao desenvolvimento das

potencialidades individuais.

Por conseguinte, somos levados a refletir sobre as bases nas quais estão calcadas

nossas concepções de ensino e aprendizagem, bem como dos fins a que a escola se

propõe, avaliando se esse modelo e estrutura educacional, realmente, fomentam

práticas que denotam ser ela uma escola inclusiva.

Questionamos, então, acerca do movimento de inclusão: este implementa o respeito

aos princípios ético-filosóficos na busca do combate a toda forma de discriminação,

preconceito e práticas educativas segregadoras ou, simplesmente, pela obrigação de

fazer cumprir os dispositivos legais, políticos e econômicos, numa política neoliberal

de estado-mínimo, aceita-se essa proposição como solução pacífica e politicamente

correta, haja vista o Brasil ser signatário de documentos que intentam uma educação

para todos?

O objetivo dessa pergunta se fixa, então, além de trazer às claras tal questão, em

explicitar nosso pensamento, acerca da inclusão, concordando com o que coloca

enfaticamente Baumel (oral) 4 que assegura que esta não se faz por decreto e por

legislação, mas deve ser vivida.

3.4 O “CAOS” NA PRODUÇÃO CRIATIVA DE MUDANÇAS: POSSIBILIDADES!

Mesmo avaliando a escola como um espaço não favorecedor à gestão de

aprendizagens na diversidade, tal como está constituída, é possível, a partir de

processos criativos e autopoiéticos, 5 observados ainda de forma incipiente nas

práticas isoladas de alguns profissionais, uma perspectiva de mudança e de “contágio”

àqueles que estão presentes no contexto escolar.

Esses profissionais, preocupados com os sentidos de sua missão ─ ensinar a todos ─,

colocam-se na condição de professores que aprendem numa escola que se põe

4 Palestra proferida no VIII Seminário Capixaba de Educação Inclusiva, em Vitória, 2004. 5 Autopoiésis: produção de si mesmo, “autofazimento”.

42

permanentemente em condições de refletir-se diante dos novos contextos e dos

desafios a ela postos.

Essa é uma escola reflexiva, e Alarcão (2003, p. 83) a define como uma instituição

que continuamente se pensa a si própria, “[...] na sua missão social e na sua

organização e se confronta com o desenrolar da sua actividade num processo

heurístico simultaneamente avaliativo e formativo”.

A necessidade de uma visão ampliada dos profissionais que desejam dinamizar os

processos de mudanças em seus contextos de atuação e que fazem emergir, assim,

outros olhares e outros fazeres, conduzirá à efetivação de uma escola inclusiva,

constituindo mais do que uma possibilidade, revelando, então, uma necessidade.

As possibilidades, os desafios, as resistências, quando analisados e trazidos para

debate, passam a ter novos significados e sentidos no processo escolar. A sua

transposição de um lugar, antes intocado e imutável, ao lugar das transições e das

possíveis mudanças, produz um novo lugar chamado “caos”.

O “caos” aqui não se restringe à compreensão no sentido tradicional e do senso

comum de confusão e desordem, mas na instauração do sentido positivo de caos, em

que somente, pelo poder criativo, próprio das situações caóticas, emergem as ações

de inventividade.

Segundo Assmann (2004, p.142), “No desenrolar dos fenômenos caóticos emergem

estranhos pontos de atração, aglutinação e ao que parece, re-potenciamento ou

debilitamento do processo ou dos sistemas como um todo”.

Como forma de reencantamento da educação, Assmann (2004) traz-nos a idéia de

que já se ousa afirmar que a existência simultânea de caos e ordem, o que

paradoxalmente vem acontecendo em nossos contextos escolares, seja uma forma

criativa e repotenciadora da complexidade que ora vivenciamos.

Em Morin (2002, p. 101), interpretamos essa força criativa, quando o referido autor diz

que “[...] uma minoria de educadores, animados pela fé na necessidade de reformar o

pensamento e de regenerar o ensino [...] já têm, no íntimo, o sentido de sua missão”.

43

O sentido de criatividade e inventividade próprias das situações caóticas e complexas

é bastante peculiar às situações vivenciadas cotidianamente no interior das escolas. A

regulamentação da legislação, para que as crianças com necessidades educacionais

especiais (NEE) por deficiência deixem de receber atendimento exclusivamente nas

instituições especializadas e possam ter garantidas suas matrículas preferencialmente

na rede regular de ensino, mostrou muito mais do que revelam hoje essa situação

caótica e complexa, situações que foram e que ainda são essenciais às reflexões, às

mudanças e aos debates, sobretudo, para a ampliação dos olhares sobre essa escola

na atuação com os demais sujeitos nela presentes.

A inclusão de pessoas com NEE por deficiência tem conotações significativas e

amplas nos vários âmbitos da compreensão das garantias sociais e de direitos

humanos e vem de encontro a uma visão aparente de “ordem”, na maneira de

conceber as questões relativas ao processo de ensino e aprendizagem.

Agrega-se a essa aparente ordem a dimensão estritamente pragmática e diretiva em

seus objetivos, em um projeto de formação e preparação do indivíduo para a vida,

numa condição de utilidade e servialidade social e cognitiva.

Os sujeitos com deficiência, nessa perspectiva, não se encaixam em nenhum dos

propósitos a que a escola se destina, muito menos na visão de homem na qual ela

acredita e investe esforços.

Instaura-se aí uma verdadeira revolução silenciosa. Denominamos silenciosa, porque

a vemos na dimensão das subjetividades, traduzindo, simultânea ou

progressivamente, em práticas educativas favoráveis ou não à aprendizagem

daqueles indivíduos.

O caos aí estabelecido numa visão emergente de pontos de criatividade, de desafios à

nossa capacidade de lidar com o novo, nos convida a refletir novamente com

Assmann (2004, p. 142), quando levanta o seguinte questionamento:

Será que uma boa definição do agir pedagógico não seria a seguinte: recriar constantemente condições iniciais para um caos potenciador no qual determinados atratores estranhos, geralmente relacionados com a sensação de prazer, favoreçam a emergência das experiências de aprendizagem?

44

Mantoan (2002) nos diz, de maneira muito positiva, que a malha do saber vai

invadindo e cruzando sistemas de idéias, criando novas competências, construindo

maneiras diferentes de organizar e de articular os domínios teóricos e práticos.

A complexidade que envolve as questões relativas à sala de aula, quanto à

diversidade, são pontos de relevância e que merecem atenção especial, pois é nesse

espaço, agora constituído o lugar comum para todos os alunos, que se darão as

trocas, as intervenções e, conseqüentemente, as aprendizagens.

Seja qual for o grau de seleção prévia, ensinar é confrontar-se com um grupo heterogêneo (do ponto de vista das atitudes, do capital escolar, do capital cultural, dos projectos, das personalidades, etc... Ensinar é ignorar ou reconhecer estas diferenças, sancioná-las ou tentar neutralizá-las, fabricar o sucesso ou o insucesso através da avaliação formal e informal, construir identidades e trajectórias. Porém, regra geral, as didáticas nada dizem sobre as diferenças; falam de um aluno médio ou de um sujeito epistémico, desconhecem a dificuldade que há em fazer os alunos gostarem de certas disciplinas (PERRENOUD, 1993, p. 28).6

Perrenoud (1993) não faz alusão ao aluno com NEE por deficiência, mas não é difícil

compreender que, em meio a esse palco e platéia de escancaradas diferenças, a

inclusão desses sujeitos vem como uma proposta inigualável de formar coro aos já

excluídos pelo paradigma dominante.

Portanto, as dificuldades e os desafios em lidar com o novo assim como a

necessidade de um novo modelo de organização escolar em favor da inclusão, que

levem em conta as dimensões da prática, das subjetividades e dos fazeres, podem ser

sentidos e ouvidos.

• O que se pode sentir e ouvir?

Apesar das incontestáveis considerações acerca da escola, como um espaço público

e acolhedor de todas as diferenças, ao qual se refere Meirieu (2005), ainda temos que

atentar para os resultados de muitas pesquisas, tanto realizadas em nosso município,

quanto em outras cidades brasileiras, que, na exposição e discussão de inúmeras

questões tidas como desafios, trazem à luz mais as impossibilidades das escolas e de

seus profissionais em lidar pedagogicamente com as diferenças, do que as

possibilidades, diferentemente do que postula o referido autor, que vislumbra este

6 O texto faz parte de obra traduzida em Portugal.

45

espaço, o da escola, como possível da existência simultânea de histórias e opções

individuais, na realização de um projeto comum: o de aprender.

Aguiar, Caetano e Jesus (2001) buscam em uma pesquisa, por meio do estudo de

caso, o que é peculiar ao processo de construção de uma proposta inclusiva em uma

escola regular. Procuram, assim, aprofundar o conhecimento das interações locais,

pela micropolítica do cotidiano.

Desse modo, puderam constatar, no geral, que os grupos/escola analisados, quando

falam de inclusão, ainda se referem a uma visão confusa, baseada no senso comum

e, na maioria dos casos, estigmatizante. Suas representações concentram-se numa

perspectiva de “integração física”. Com relação às noções de diferença e de

necessidades educacionais especiais, os discursos e as práticas pedagógicas

parecem não apontar na direção de uma real proposta inclusiva.

Givigi (1998) faz uma análise do cotidiano da escola por ela pesquisada, no qual

apreende um retrato do fracasso da homogeneização, “[...] onde sujeitos constituídos

de diferentes histórias são levados a trajetórias idênticas, onde o singular não é levado

em conta [...]” (p. 29).

A autora pontua que, utilizando o dispositivo do grupo, toma-o como possibilidade de

espaço de discussões para, então, permitir que as decomposições e composições

dêem lugar à experimentação de outras subjetividades, numa invenção constante de

outros modos de pensar, funcionar, em que processos singulares possam surgir do

coletivo, das multiplicidades e serem balançados pela “diferença”, e que assim

gerarão ações diferenciadas.

Por sua vez, Givigi (1998) cita que, nas discussões, surgem os alunos que não são

“especiais” e que oferecem grandes desafios ao trabalho pedagógico; “[...] os

problemas não são os ‘especiais’, por terem deficiência, mas qualquer um que fuja

aos padrões de aprendizagem regular, ou seja, quase todos” (p. 71).

Trazemos também o estudo de Alves (1999) que teve como finalidade descrever e

analisar o processo de conhecimento de um grupo de alunos com histórico de

fracasso escolar. O autor construiu, juntamente com a professora, um processo de

46

avaliação e diagnose de situação dos alunos, desencadeando a construção de uma

prática pedagógica que lhes possibilitou superar as dificuldades que apresentavam.

Em suas considerações, o autor diz que não será focalizando somente o aluno, o

professor ou a família que serão encontradas estratégias de trabalho que possam

apontar caminhos para a superação do fracasso escolar. A prática pedagógica,

aspectos do currículo escolar, bem como questões político-ideológicas, intra e

extraescolares, devem ser investigadas para que se entenda melhor o processo de

produção do fracasso escolar.

Um ponto altamente significativo na pesquisa de Alves (1999) é a discussão que tece

em torno da idéia de modificação na concepção de deficiência e da Educação

Especial, que tem no aluno o foco de atenção para o diagnóstico e atendimento. O

autor discute a visão de que a deficiência passa a ser considerada em relação a

fatores ambientais e à resposta educacional mais adequada. Desse modo, observa

que a maior ou a menor deficiência, ou dificuldades, estarão vinculadas à maior ou

menor capacidade do sistema educacional em proporcionar recursos apropriados à

aprendizagem.

Caetano (2002), em sua pesquisa sobre a escolarização de alunos com deficiência

mental incluídos nas séries finais do ensino fundamental, relata que a prática

pedagógica observada se mostra inconsistente, por não oferecer a possibilidade de

uma aprendizagem que se efetive de forma contínua e compromissada.

Em sua pesquisa, é possível apreender pontos significativos para que se instalem

alguns processos de mudanças, como “[...] a necessidade de uma reestruturação da

organização escolar [...]” (p.168), e uma denúncia por parte dos professores de que

não existe metodologia para os alunos com deficiência. Quando entrevistados acerca

das possibilidades de trabalho em sala de aula com os alunos com deficiência, os

professores se colocaram como tendo “[...] um sentimento de incompetência,

incompetência realmente” (PROFESSOR de sala regular) ou, ainda, “[...] um

sentimento de impotência, porque eu nunca recebi preparo para trabalhar com ela [...]

[sobre a aluna com deficiência], impotência mesmo [...], cheguei aqui e, de repente

você tem um aluno desses” (PROFESSOR de sala regular).

47

Depreende-se das falas angustiadas desses profissionais que suas formações foram,

sem dúvida, para trabalhar um determinado ideal de aluno e levar conhecimentos a

uns poucos que estão preparados e adaptados para recebê-los. Os demais, que não

compõem esse seleto grupo, não deveriam estar nesse mesmo espaço.

Talvez se os tivessem preparado, e se levassem em conta que, nas salas de aula,

como em qualquer outro lugar, as pessoas não são iguais, não aprendem por uma

única via, e têm estilos diferentes de ser, aprender e expressar, certamente os alunos

com deficiência se beneficiariam muito mais desse processo de inclusão.

Caetano (2002), acertadamente, pontua que todas essas dificuldades se estendem

não somente aos alunos com deficiência, mas também àqueles que desafiam o

modelo-padrão.

Nesse sentido, trazemos como contribuição o que diz Bueno (2001), ao assinalar que

o ensino regular tem excluído sistematicamente larga parcela de sua população sob a

justificativa de que essa parcela não reúne condições para usufruir do processo

escolar, por apresentar problemas pessoais (distúrbios dos mais diversos), problemas

familiares (desagregação ou desorganização da família), ou carências culturais

(provenientes de uma meio social pobre).

3.4.1 Ensinar a todos: eis a função da escola

Diante das “impossibilidades” e da necessidade de novos modos de agir

pedagogicamente, a gestão da aprendizagem na diversidade e sua importância nas

discussões sobre a inclusão escolar passam a ser uma imperiosidade entre os

pesquisadores. Os últimos dez anos têm sido marcados por discussões e produções

acadêmicas que buscaram investigar como se dão essas novas relações, a partir do

movimento de inclusão escolar.

Nessas produções, há registros das representações de professores, pais de alunos

com e sem deficiência, em que, num misto de denúncia das práticas estabelecidas e

correntes nos contextos pesquisados, há emergentes indícios e pistas de quais seriam

as possíveis rotas e percursos ideais para a efetivação com êxito de uma educação

para todos.

48

Há de se levar em conta a diversidade/variedade humana, visivelmente constituída em

nossa sociedade, tendo na escola uma das instituições formais, legal e socialmente

investida de poder na educação de seus atores sociais, escola essa que, pelo fato de

pertencer a todos, como nos diz Meirieu (2005, p. 44),

[...] não pertence a ninguém. Portanto, ninguém pode fazer dela propriedade exclusiva, ninguém pode apropriar-se de seu território, ninguém pode impor-lhe sua lei, suas regras de comportamento, as convicções ou os hábitos de sua comunidade.

Segundo Meirieu (2005), visto que todos devem ter a possibilidade de serem

acolhidos na escola para aprender, a própria escola deve ser construída

imperativamente como um espaço público, que possa verdadeiramente acolher todas

as crianças, onde “[...] ninguém deve sentir-se excluído, atingido em sua integridade

ou desprezado em sua identidade” (p. 45).

A escola, nessa perspectiva, não deve ser o espaço de negação de histórias e de

adesões individuais; deve, sim, ser o lugar possível de coexistência destas e de

realização de um projeto comum.

Em um estudo desenvolvido por Jesus (2002), que teve por objetivo a construção de

uma prática pedagógica reflexiva, foi possível, trabalhando no cotidiano da prática

pedagógica da escola, por meio de várias estratégias, a produção de uma reflexão

autoformadora. Nesse estudo, a pesquisadora nos aponta uma idéia significativa

quanto à intervenção, com vistas à transformação, e argumenta:

Parece fundamental que um projeto de intervenção que vise à transformação passe por um processo, constante, de entender o movimento de cada um e do grupo no seu conjunto. Trata-se de buscar os espaços-tempos experenciados pelo conjunto dos envolvidos [...], as pessoas mudam em ritmos diferenciados, o que deve ser encarado como uma oportunidade de viver a realidade de forma criativa (JESUS, 2002, p. 199).

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que é salutar descobrir ou confirmar as

impossibilidades de um fazer pedagógico que atenda à diversidade, assim como os

seus “porquês”, igualmente é importante verificar que experiências em ações

conjuntas com os profissionais envolvidos na busca por práticas pedagógicas mais

inclusivas, compreendendo, no entanto, os ritmos de mudanças de cada um e de cada

grupo, conduzem à certeza de que é possível uma outra realidade.

49

Almeida (2004) realiza um estudo, no qual busca investigar a transformação da prática

educativa dos professores do ensino, a partir da pesquisa e reflexão crítica da ação

pedagógica, que toma a via de formação continuada em contexto. Nessa pesquisa, a

autora relata que incentivou os profissionais a partilharem seus pontos de vista, seus

valores e perspectivas, com a finalidade da construção de uma escola que trabalhe a

partir da diversidade de seus alunos.

autora relata que incentivou os profissionais a partilharem seus pontos de vista, seus

valores e perspectivas, com a finalidade da construção de uma escola que trabalhe a

partir da diversidade de seus alunos.

A autora, ao possibilitar o confronto de idéias, o partilhamento de pontos de vista,

entre vários outros aspectos, obteve um panorama real das tensões e dificuldades

vividas por aqueles profissionais pesquisados, quais sejam:

a) organização escolar e o trabalho pedagógico em si;

b) trabalho coletivo na escola;

c) formação continuada e a prática do professor;

d) proposta de inclusão definida pelo sistema municipal de ensino.

No esforço por validar uma ação pedagógica reflexiva de professores e de

professoras, o agir pedagógico, que cada vez mais resiste às fórmulas prontas e

acabadas, mostra-se como uma ação vitalizadora nos cotidianos escolares. Essa ação

é essencial ao trabalho pedagógico com indivíduos “não adaptados” a esse modelo de

escola.

Figueiredo (2002, p. 75) lança um importante desafio às escolas inclusivas:

Refazer toda a escola em seus princípios, organização e desenvolvimento das práticas pedagógicas é o grande desafio que se impõe ao conjunto dos educadores e dos representantes do poder político. Essa reformulação se justifica não pela necessidade de atender às crianças com deficiência, mas pela constatação de que a escola que temos não está dando conta da maior parte das necessidades de seu alunado.

50

A autora nos apresenta em pesquisas de Mantoan et al. (2000), 7 a opinião de

professores sobre o redimensionamento da escola, bem como em trabalhos de

Lustosa e Figueiredo (2001) sobre práticas pedagógicas.

Nessas pesquisas, os professores percebem a necessidade de redimensionamento da

escola como condição da própria emancipação, evidenciando um apelo urgente para a

construção de uma nova escola. Nessa nova escola, a leitura e a compreensão desse

espaço/cenário devem partir de seus atores, como agentes instituintes que conhecem

e apontam os vácuos existentes no âmbito da organização do espaço escolar e das

práticas pedagógicas ali desenvolvidas. Declaram, ainda, nessa mesma pesquisa,

dificuldades em exteriorizar os próprios conflitos de ordem política, econômica e

cultural dentro e fora dessa instituição.

• Condições para a permanência com qualidade para todos os alunos: foco

das políticas públicas

A implementação de políticas de apoio, como os serviços especializados na área de

saúde, profissionais especializados para atuarem lado a lado com professores

regentes, potencializado-os no trabalho com os alunos com NEE, formação

continuada em serviço direta ao professor, garantia de escola para todos, não de

forma a superlotar as salas de aula, mas no investimento de construções de novos

prédios escolares, entre tantos outros itens, vem demonstrar o nível de investimento

necessário para uma educação de qualidade não só aos alunos com NEE mas a

todos que nela se encontram.

Essas necessidades, infelizmente, parecem se perder na complexidade de um

sistema macro e, por conseqüência, micro, que ainda busca perseguir objetivos

exclusivamente reprodutores do aluno ideal, producente e a serviço da sociedade

capitalista tal como ela é.

A reconstrução do espaço institucional chamado escola é fator decisivo para a

efetivação da inclusão. Por outro lado, ainda é pertinente lembrar que o sistema

educacional, por meio de textos legais, e do controle burocrático administrativo, tem

impedido a efetivação de práticas de dinâmicas educativas e emancipadoras dos

7 Pesquisa financiada pela Capes, coordenada pela professora Maria Tereza Eglér Mantoan, e realizada pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Diversidade (LEPED) da Unicamp.

51

sujeitos sociais, nas suas mais variadas formas de controle, evidenciadas nos critérios

de promoção e na proposição de um currículo que oferece poucas chances de

trabalho com a diversidade, seja por suas formas de organização, quanto à carga

horária dedicada às áreas do conhecimento, seja pelo tratamento fragmentado dado

aos conteúdos, numa concepção de saber isolado e especializado.

Na tentativa e na busca por favorecer, numa escala de emergência, experiências de

aprendizagem que sejam significativas a todos os alunos indistintamente, procuramos

percorrer um caminho que nos possibilitasse desvelar uma nova lógica para a escola.

Para isso nos colocamos criticamente aberta à perspectiva de mudanças das atuais

práticas, com um olhar “desvelador”, concebendo os processos constituintes de toda a

prática de organização curricular da escola investigada, como o seu “possível”,

utilizando-nos, porém, exatamente desse “possível” para o estabelecimento de outras

lógicas.

Como nos diz Morin (1999, p. 44), a dialógica significa que “[...] duas lógicas

diferentes estão ligadas em uma unidade, de forma complexa (complementar,

concorrente e antagônica) sem que a dualidade se perca da unidade”.

• Ainda se espera que o aluno se “adapte” à escola

A inclusão de alunos com NEE por deficiência, vem, por um lado, engrossar o número

absurdamente grande de alunos que, por se distanciarem do ideal de aluno

pretendido, há muito gritam: “Não fomos feitos pra essa escola!”. Estes, tendo suas

vozes inaudíveis, tentam, na verdade, dizer o que historicamente se concebe acerca

deles.

Essa forma de dizer é vista e conhecida por nós muito bem, pois vem sendo refletida

nas altas taxas de evasão verificadas até bem pouco tempo e em um número sem

igual de analfabetos funcionais, entre outras formas de exclusão não tão explícitas.

A escola, marcada essencialmente por trabalhos pedagógicos com ensinos

ministrados em sua organização disciplinar prioritariamente dentro de salas de aula,

não oferecendo outras experiências de aprendizagem fora desse contexto, encontra

dificuldades visíveis, talvez até compreensíveis de acompanhar e driblar a grande

52

complexidade, que é a de produzir conhecimento numa estrutura fechada e

engessante.

Burocracias, quanto à carga horária, impossibilidade da efetivação de planejamentos

participativos com professores por área e por série e a própria dinâmica escolar como

um todo se colocam como fatores impeditivos de fazeres diferenciados, exigindo que

os professores não fujam às rotinas já estabelecidas, criando, desse modo, uma

desordem no ambiente escolar.

Como forma de resistência à inclusão numa escola que não se propõe a se soltar

dessas amarras, muitos professores insistem pontualmente em discussões em torno

do redimensionamento da escola em sua esfera organizacional e pedagógica.

Mantoan (2003) nos alerta sobre a necessidade de mudanças em virtude da

dificuldade e impossibilidade de se realizar um trabalho em classes heterogêneas,

num modelo tradicional de ensinar, e que não potencializa o desenvolvimento do

alunado a partir do que, naquele momento, ele daria conta. E pontua:

[...] essa resistência é aceitável e compreensível, diante do modelo pedagógico organizacional conservador que vigora na maioria das escolas. Ninguém se arrisca a acolher a idéia de ministrar um ensino inclusivo em uma sala de aula de cadeiras enfileiradas, livro didático aberto na mesma página, uma só tarefa na lousa e uma só resposta válida e esperada nas provas (MANTOAN, 2003, p. 31).

O que a citada autora traz é que, ainda sob o modelo homogêneo de formação de

classes, o professor, e muitas vezes o corpo técnico-administrativo-pedagógico das

escolas, não consegue colocar em prática outras formas e alternativas de organização

disciplinar e pedagógica que propiciem aprendizagens àqueles alunos que não estão

prontos ao currículo prescritivo, que não seja o famoso “reforço escolar”, que, em

muitos sistemas de ensino, já é componente fixo dos planos de ação para as escolas.

Ressaltamos, ainda, que esse reforço, antecipadamente, é oferecido quando resta a

esses alunos a mínima possibilidade cognitiva de se igualar e parametrizar-se aos

demais colegas da classe, pois aos alunos que, por “suas” deficiências, não

conseguem acompanhar o ritmo da maioria, fica-lhes negada a possibilidade de

aprender, sob quaisquer possibilidades.

53

A escola, em sua extremada valorização à tendência cognitivista dos processos de

ensino e aprendizagem e na busca frenética de privilegiar o pensamento lógico-

matemático e o domínio lingüístico, não consegue visualizar outros saberes ou

conhecimentos para o desenvolvimento de seus alunos com deficiência ou que têm

dificuldades acentuadas de aprendizagem e, de forma intencional ou não, discrimina

aqueles que não se adaptam ao paradigma preestabelecido.

Diante da imperiosidade desse modelo, percebe-se que quem tem que se adaptar à

escola continua sendo o aluno e, apesar de práticas bem-sucedidas verificadas ainda

num certo isolamento, há uma necessidade urgente de operacionalizar mudanças,

talvez radicais, em toda a atual concepção curricular, principalmente no que diz

respeito aos métodos, técnicas e estratégias de ensino, e do processo de avaliação,

sem se esquecer das atitudes (instância subjetiva) em relação aos processos de

mudanças, assim como do fazer político, que muitas vezes faz acontecer.

Baptista (2003) nos diz que, para permitir o atendimento com qualidade a todos os

alunos, é necessário haver profundas alterações na organização do ensino,

[...] colocando em discussão a necessidade de análises coletivas sobre o projeto pedagógico da instituição; questionando; propondo a revisão dos processos de avaliação (avaliação processual que considere o aluno como parâmetro de si mesmo), construindo dispositivos de apoio complementar ao atendimento no ensino comum sem excluir o aluno da sua classe de referência; discutindo amplamente a necessidade de formação continuada dos professores e demais técnicos que atuam junto às escolas. Ou seja, a inclusão estaria associada a um processo de transformação que, em grande parte, podemos dizer ‘trata-se de uma educação de qualidade” (BAPTISTA, 2003, p. 52).

Talvez a garantia à escola de pensar a si própria como uma organização viva, capaz

de refletir o seu fazer e, autonomamente, decidir o seu caminho, pareça ser o

diferencial para efetivar-se a gestão da escola inclusiva.

A inclusão escolar nos faz perceber, cada vez mais e com maior clareza, que não

somos nós os definidores por antecipação dos sucessos ou dos fracassos do alunado.

Para a heterogeneidade constituída a partir da deficiência explícita ou não, e dos

estilos de aprendizagem diferentes da grande maioria, entendemos ser a nossa

formação inicial bastante inconsistente, tendo em vista as necessidades e solicitações

desse contexto de gestão de aprendizagem em meio à diversidade.

54

Se antes, por meio de testes e sondagens, era-nos possível, por todo o

engendramento arquitetado para aquele/este paradigma educacional, fazer previsões

sobre determinados alunos, assim como definir a impossibilidade de se efetivar

aprendizagens em meio à diversidade cultural, social e cognitiva, hoje, descortinam-se

as possibilidades cada vez mais bem-sucedidas de trabalho pedagógico, nos

processos de aprendizagens com alunos com NEE por deficiência, junto aos seus

pares, em suas salas de aula, mesmo que isso para muitos pareça difícil.

Para a compreensão de muitos, mesmo aqueles com uma “visão” meio míope, a

escola tem que ser um espaço de prazer não só na hora da merenda, ou na hora da

aula de Educação Física, ou da realização dos projetos de atividades coletivas

extraclasse, mas sim em todos os momentos e em todos os seus ambientes,

indistintamente.

Percebemos, mesmo de maneira ainda tênue, que a presença da diferença, marcada

essencialmente pela deficiência, opera de forma silenciosa mudanças que são

significativas a todos.

O caos que produz novos sentidos à educação escolar promove situações de

inventividade para esse novo cenário. Rico por sua diversidade e constituído nas/das

diferenças, sejam elas quais forem, poderá ser compreendido como a condição

essencial de se descobrir ou produzir conhecimentos. Esses conhecimentos se

referem em como lidar, como propor esse ir e vir da escola moderna e os muitos e

graves impasses em que ela se encontra hoje, assim como as novas concepções que

emergem, frutos dessa transição.

O que parecia impossível revela-se como possível, o não apto torna-se apto a partir

de suas possibilidades e, seja qual for a diferença, já não nos sentiremos tão

impotentes em propor um ensino que seja realmente inclusivo.

A incipiência ainda verificada e sentida de fazeres em função da presença de alunos

com NEE por deficiência, em propostas de atendimento não segregadoras, só nos faz

acreditar nas possibilidades cada vez maiores de se ampliar a visão de educação para

todos, utilizando o cotidiano escolar como espaço de formação e aprendizado,

sobretudo profissional, para que se efetive e garanta o que recomenda a Declaração

de Salamanca:

55

[...] que todas as crianças, sempre que possível, devem aprender juntas, independentemente de suas dificuldades e diferenças, podendo [...] reconhecer as diferentes necessidades de seus alunos e a elas atender; adaptar-se aos diferentes estilos e ritmos de aprendizagem das crianças e assegurar um ensino de qualidade (BRASIL, 1994, p. 23).

3.4.2 Os percursos de uma pedagogia ressignificada

De acordo com Ardoino e Lourau (2003), no leque das novas pedagogias, é difícil

colocar em perspectiva as abordagens institucionais, pois a instituição é focalizada

diferentemente, segundo as tendências, e as pedagogias institucionais inscrevem-se

na temporalidade-historicidade de um movimento de pesquisa-ação que, no âmbito da

análise institucional, constitui o fundo sobre o qual se destaca a forma-figura dos

métodos pedagógicos.

• Pedagogias institucionais: “reorganização” dos processos educativos

Por volta de 1940, as instituições escolares e educativas francesas se descobrem em

crise. Nesse período, há uma “explosão escolar”, no sentido demográfico, e com isso

emerge a convicção de que os métodos até então adotados não estavam adaptados

ao mundo moderno e às mudanças tecnológicas que se esboçavam.

Desse modo, as pedagogias institucionais começam a surgir à maneira de uma

precipitação, em uma espécie de redemoinho ideológico, procedente de um turbilhão

de correntes contrárias ao que até então se adotava.

Seus fundadores, Fernand Oury, Aida Vasquez, Michel Lobrot, Georges Lapassade, e

René Lourau, recebem assim diversas influências desde os dissidentes do movimento

de Freinet, até aqueles grupos que propagavam uma ótica voltada a ultrapassar os

perímetros da escola ou das instituições educativas especializadas. Estes tinham um

ideal voltado para os meios de trabalho social, formação permanente, educação de

jovens e adultos, etc.

Como resultado de reflexões críticas sobre as práticas educativas e os procedimentoe

escolares, Ardoino e Lourau (2003) dizem que as pedagogias institucionais

abarcavam pelo menos três dimensões:

56

1ª) dimensão material: as técnicas, o tipo de organização e as ferramentas de

trabalho determinam as situações pedagógicas, as relações e os comportamentos;

2ª) dimensão social: a classe é necessariamente atravessada pelos modelos

microssociais, pelas relações de força, pelos conflitos e pelas tensões. São, assim,

problemáticas do poder e da autoridade;

3ª) dimensão inconsciente: o inconsciente está na classe, na organização, no não-

dito institucional. Ele funciona e, nesse sentido, fala até mesmo por meio dos

silêncios.

Sendo assim, os comportamentos e o estilo das relações dependem da qualidade e

do número de trocas. É necessário instaurar novas relações e pô-las em ação pela

pesquisa e prática de novos papéis, novos estatutos, novas regras de vida.

O que observamos atualmente, é que os efeitos nefastos da Pedagogia tradicional,

evidenciados nas burocracias e tecnocracias, nas quais ainda encontram justificativas

e razões de assim se constituir, se fazem sentir muito profundamente nas

representações que muitos professores e pedagogos têm de si, ao interpretarem quais

são realmente suas funções, ou qual é a dimensão real de ser pedagogo numa dada

instituição escolar.

Esses efeitos também se fazem sentir à medida que é possível captar os sentimentos

de solidão, desamparo e impotência que professores e professoras demonstram ao

lidar com as questões que lhes exigem a assunção de seus próprios atos, que lhes

imputem responsabilidades ou que lhes solicitem decisões e iniciativas. Essas

questões, muitas vezes, dizem respeito às suas próprias práticas pedagógicas.

Em outras palavras, o que queremos salientar é que o fenômeno burocrático

institucional, com todo seu engendramento “capitalístico, utilitarista e dominador”, que

aliena seres humanos, retirando-lhes o poder de decisão, iniciativa e

responsabilidades por seus atos, fez da Pedagogia uma pedagogia também

burocrática, em que, a exemplo desse modelo de domínio burocrático, anuncia-se um

modelo de domínio pedagógico.

57

Dessa maneira, os indivíduos que experimentam, durante toda a infância, o modo de

domínio pedagógico nas várias facetas e nuances de uma Pedagogia tradicional,

aceitam facilmente os modos de domínio burocrático de que tanto somos

conhecedores e testemunhas, e que podemos chamar de práticas instituídas, por

força de leis, acordos, decisões, etc.

Segundo Lapassade (1983), numa Pedagogia burocrática, há certa concepção dos

objetivos desejáveis para a criança e assim o problema consiste em fazê-la executar

os atos que correspondem a tais objetivos, pois o êxito da criança é o êxito do

professor e do pedagogo; o fracasso é também o seu fracasso. Daí depreendemos

que é mais fácil ter nas salas de aula alunos “predispostos” ao sucesso, sendo

possível ao professor dizer: “Eu cumpri a totalidade de meu programa, eu obtive os

melhores resultados nas avaliações,” pouco lhe importando os efeitos psicológicos

reais de seu ensino.

Parecem-nos que os efeitos dessa Pedagogia, no presente momento, têm

incomodado a muitos e talvez, em função desse incômodo, foi possível, pelos

processos de análise vivenciados, a compreensão dos fenômenos de dominação

pedagógica ou burocrática, que ainda emperram e não deixam fluir com mais

facilidade os processos de mudanças já percebidos como necessários.

Nesse movimento de se perceber, desejar e não desejar inteiramente foi possível

produzir com a comunidade escolar um enfrentamento contra as burocracias

dominantes que, de uma forma ou de outra, vêm se constituindo em impeditivos às

práticas mais favorecedoras da real inclusão de alunos com NEE. Um exemplo desse

enfrentamento conjunto partiu da seguinte situação:

• Estava instituído, administrativamente, que os estagiários que atuavam nas

classes que tinham alunos com NEE deveriam acompanhá-los durante o período de

quatro horas diárias. Ou seja, não estava prevista inicialmente, em seus horários, a

possibilidade de participação em reuniões coletivas com os professores, em

planejamentos, ou outras atividades coletivas. Quanto mais comprometido fosse o

aluno, mais intenso era esse acompanhamento. A estagiária gastava mais energia em

conter e vigiar o aluno do que propriamente desenvolvia ações pedagógicas,

juntamente com a professora, nas intervenções com ele. Segundo os professores,

58

uma das dificuldades em se propor alternativas e situações de ensino e aprendizagem

aos alunos com NEE residia na falta de planejamentos entre eles, a pedagoga e os

estagiários. Indagados sobre o que poderia ser feito, disseram que uma alternativa

seria compartilhar com as famílias desses alunos suas dificuldades e propor-lhes, a

título de experiência, por período determinado, que seus filhos saíssem, durante três

dias da semana, quarenta minutos mais cedo, para que os estagiários pudessem,

junto com pedagoga e professores disponíveis, conversar “pedagogicamente” sobre o

trabalho a ser feito com o aluno e a classe. Participamos de uma das reuniões para

tratar de tal assunto. Entre várias observações, trazemos a posição de uma mãe.

Entre uma fala ou outra reconstituímos assim:

Bom, apesar de não concordar totalmente, acho que vale a pena tentar [...]. Sei que o Lucas 8 não fica sozinho na classe para ela (a estagiária) planejar com outros professores. Fico pensando [...] se não tiver condições dela estar com os professores antes [...] como ela vai poder ajudar a professora? [...] Ela não está fazendo estágio? E estágio é para aprender, não é?

Nossa posição, na situação acima, transpôs nossa atuação como pesquisadora, pois

ali estávamos, segundo a diretora da escola, “para apresentar as considerações do

grupo acerca do que achavam que poderia dar certo para Lucas”, ante sua

“impotência” de fazer mais do que faziam.

Consideramos que tal atitude, mesmo não sendo a melhor e a ideal, pareceu-nos,

pela forma como foi compartilhada com a família, uma grande possibilidade de

assunção de responsabilidades conjuntas. Demonstrou-se também, nessa situação

algo que, em outros momentos, não se podia ver, que era o incômodo em se fazer

alguma coisa para mudar o que não estava bom.

Esse movimento, bastante tímido, põe em evidência um novo modo de funcionamento

e de relações humanas não burocráticas, pois a escola não exerceu seu “poder” para

determinar coisas, antes, porém, compartilhou suas dificuldades, colocando-se,

também, como “ouvinte” nessa relação.

Essa é uma possibilidade de o grupo assumir a sua própria direção, caminhando para

a sua própria autogestão.

8 Nome fictício.

59

4 COMPLEXIDADE E MULTIRREFERENCIALIDADE: COMPREENDENDO O

PROCESSO EDUCATIVO

As tentativas empreendidas por estudiosos e pesquisadores, tanto para a

compreensão do mundo em sua representação universal, como para compreensão do

próprio mundo interior, com sentidos e significados individualmente construídos pelo

homem, assinalam o quanto persiste a necessidade de se compreender os processos

nos quais estamos inseridos.

No processo de construção de conhecimento que pretende dar conta de trazer

respostas a essa necessidade, encontram-se as várias ciências, como a Filosofia, a

Epistemologia, a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Pedagogia, que revelam a

profunda complexidade desse processo, haja vista não ser possível separar o

conhecimento sobre o mundo exterior e da construção do conhecimento do complexo

mundo que o homem abriga dentro de si.

A partir daí, são revelados também os grandes desafios enfrentados pela própria

escola, como instituição e instância privilegiada do saber, que, como invenção da

sociedade, teve por ela um papel e funções predefinidas.

Segundo Morin (2004), ao confrontar as ciências no século XX, a complexidade

emerge como um grande desafio, considerando que o mundo científico concebia as

ciências sob os três pilares de certeza: 1º) a ordem, a regularidade, a constância e o

determinismo absoluto; 2º) a separabilidade; 3º) a prova absoluta por meio da indução

e dedução, a unicidade da identidade e a recusa da contradição estabelecida pelos

princípios aristotélicos. Esses pilares de acordo com Morin, encontram-se hoje em

estado de desintegração desde o momento em que se começou a compreender e a

admitir a existência, no organizado mundo físico, de outras lógicas, ora

complementares, ora antagônicas.

Verificamos também em Prigogine (1996, p. 13) essa análise, quando diz:

[...] tanto na dinâmica clássica quanto na física quântica, as leis fundamentais exprimem agora possibilidade e não mais certezas. Temos não só leis, mas também eventos que não são dedutíveis das leis, mas atualizam as suas possibilidades.

60

A emergência de uma ciência que se põe em ruptura com os paradigmas da certeza e

da previsibilidade oferece, então, um novo espectro, a partir do qual são criadas

múltiplas possibilidades, sentidos, olhares e experiências. Ao mesmo tempo, essa

mesma multiplicidade é apreendida e significada como o desafio maior da

complexidade nos vários contextos relacionais.

É possível, por exemplo, ouvirmos algumas observações e considerações de

profissionais não só da educação, mas também de outras áreas, sobre as dificuldades

que têm em gerir isoladamente suas funções, tendo em vista as muitas inter-relações

e referências que estabelecem com outras áreas, ou mesmo outras ciências.

Enfim, estamos diante de uma situação de constante interdependência e

interconexões, em que as previsões, as certezas e os determinismos cada vez mais

deixam de operar isolada e simplificadamente. Segundo Prigogine (1996, p.14),

Assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real, uma ciência que permite que se viva a criatividade humana como a expressão singular de um traço fundamental comum a todos os níveis da natureza.

O autor realiza um interessante questionamento em que nos propõe uma análise

acerca dos estudos da Física. Nesses estudos, vemos que o universo é um sistema

termodinâmico gigante, em que, em todos os níveis, encontramos instabilidades e

bifurcações, estando bem longe de ser um sistema equilibrado. Nessa perspectiva,

podemos nos perguntar por que durante tanto tempo o ideal da Física esteve

associado à certeza e à negação do tempo e da criatividade? (p.194).

Essa certeza tanto quanto a negação da criatividade humana aliada à questão do

tempo e do determinismo não se limitam às ciências, conforme pontua Prigogine

(1996), mas está no centro do pensamento ocidental desde a origem do que

chamamos de racionalidade, e que situamos na época pré-socrática. E o autor então

pergunta: “Como conceber a criatividade humana ou como pensar a ética num mundo

determinista?”

Esta questão traduz uma tensão profunda no interior de nossa tradição, que se pretende, ao mesmo tempo, promotora de um saber objetivo e afirmação do ideal humanista de responsabilidade e de liberdade. A democracia e as ciências modernas são ambas herdeiras da mesma história, mas essa história levaria a uma

61

contradição se as ciências fizessem triunfar uma concepção determinista da natureza, ao passo que a democracia encarna o ideal de uma sociedade livre (PRIGOGINE, 1996, p.14).

Desse modo, à medida que outras ciências vêm se constituindo como fundamentais

para o entendimento e a compreensão da vida do ser humano em nosso universo, o

desafio da complexidade é apreendido como aquele que reside na dupla tensão da

religação e da incerteza. Conforme nos diz Morin (2004), é preciso religar o que era

considerado como separado. Ao mesmo tempo, é preciso aprender a fazer com que

as certezas interajam com a incerteza.

Por conseguinte, revela-se que o que aprendemos de forma fragmentada,

descontextualizada, às vezes, e com exagero de cientificismo e racionalidade, tem se

constituído em vários momentos, de forma concreta, como elementos que têm

dificultado nossas ações e atuações, conduzindo-nos, assim, à busca de outros

modos de compreensão, tendo em vista que nossos saberes e nossos conhecimentos

não têm dado conta das múltiplas questões que se sobrepõem em nossos cotidianos.

É, então, com olhar de estranheza e sentimentos de impotência e/ou incompetência,

em frente aos indeterminismos, aos fatores subjetivos e intersubjetivos que envolvem

os dois pólos da relação entre os sujeitos, que começamos a entender a noção de

complexidade e suas implicações em nossos contextos educacionais, pois, quando o

pensamento simplificador encontra seus limites, suas insuficiências e suas carências,

conforme nos diz Martins (2000), a necessidade do pensamento complexo se impõe.

Mesmo assim, a complexidade não extingue a simplicidade.

[...] a complexidade aparece ali onde o pensamento simplificador falha, mas integra em si mesma tudo aquilo que põe ordem, claridade, distinção, precisão no conhecimento. Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as conseqüências mutilantes, reducionistas, unidimensionalizantes e finalmente ocultadoras de suma simplificação [...] (MORIN, apud MARTINS, 2000, p. 61).

O termo complexidade, para Morin, traz, em seu bojo, a idéia de incerteza, confusão e

desordem e expressa “[...] nossa confusão, nossa incapacidade para definir de

maneira simples, para nomear de maneira clara, para pôr ordem em nossas idéias”

(MORIN, apud MARTINS, 2000, p. 60). O autor, ao referir-se ao que é complexo,

acrescenta e esclarece:

62

Designamos algo que, não podendo realmente explicar, vamos chamar de ‘complexo’. Por isso que existe um pensamento complexo, este não será um pensamento capaz de abrir todas as portas [...] mas um pensamento onde estará sempre presente a dificuldade (MORIN, 1996, p. 274).

Em função da tensão entre pensamento simplificador e pensamento complexo, e

diante dos desafios de responder administrativa e pedagogicamente aos fenômenos

educacionais que, em nosso entendimento, se originam, entre tantos aspectos, na

aceitação irrestrita de uma educação para todos, é possível apreendermos ou

depararmos ainda com práticas educacionais especializadas, compartimentalizadas, e

até mesmo segregadas, devido ao preconceito e expectativas negativistas acerca de

alguns alunos em detrimento de outros, por questões relacionadas com os aspectos

voltados à diversidade e diferenças associados à religião, etnia, cognição,

deficiências, etc.

Esses fenômenos educacionais, mais evidenciados no Brasil a partir da

democratização da escola pública nos anos 60, têm se constituído no grande desafio

de construção de uma escola que represente realmente os ideais de democracia de

nossa sociedade.

Entretanto, muitas práticas e ações educacionais, englobando toda sua estruturação

administrativa e pedagógica, foram ou são ainda organizadas como respostas à

grande e realista heterogeneidade de nosso alunado. As classificações e a

segregação, entre outras práticas, são alguns exemplos dessa estruturação. Essa

organização se deve, em muitas situações, a tentativas para driblar a diversidade e as

diferenças, antes mascaradas ou pontualmente colocadas como fatores de exclusão

no seio da escola, por ações pedagógicas explicitamente homogeneizadoras, ou por

ações respaldadas por uma determinada política do sistema educacional. 9

Um exemplo prático pode ser tomado, demonstrando como é organizado e

estruturado o atendimento na educação de crianças e adolescentes com deficiência

em nosso sistema educacional. Para estes há, institucionalmente, mesmo na escola

regular, espaços e tempos demarcados, limites de ação institucional e/ou docente,

tanto no plano administrativo, como no pedagógico, estando estes já naturalizados e 9 Um exemplo próximo de nós (em relação à data), era a organização das classes, principalmente de 5ª a 8ª séries, realizada por muitas escolas a partir de testes de seleção a fim de classificar os alunos em turmas A, B, C, e assim sucessivamente. Outro exemplo era a existência formal de classes especiais na escola, para onde eram encaminhados alunos que não correspondiam e não se adaptavam às exigências do currículo prescritivo.

63

muito pouco questionados. Tais demarcações representam uma forma de amenizar ou

minimizar os impactos de uma inclusão total diante da grande dificuldade que é gerir o

conhecimento a todos, num plano em que as diferenças ainda sinalizam os limites, as

capacidades e as possibilidades dos indivíduos.

Em documentos oficiais, vemos esses limites de ação institucional e/ou docentes

demarcados:

Na organização do atendimento na rede regular de ensino, faz-se necessário prever: professores das classes comuns e da educação especial capacitados e especializados, respectivamente, para o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos; serviços de apoio especializado, realizado na classe comum, mediante atuação de professor da educação especial [...], em salas de recursos, nas quais o professor de educação especial realiza a complementação e/ou suplementação curricular, utilizando equipamentos e materiais específicos [...] (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA - MEC, 2004, p. 339, grifos nossos).

Padilha (1997) realiza uma interessante análise das concepções que marcam as

práticas da escola, como também o que estabelece a própria legislação na criação de

“soluções” aos problemas apresentados por alunos com características interpretadas

como distúrbios, patologias, incapacidades para aprender ou se adaptar ao meio

escolar. Segundo a autora, essas concepções, que consideram os desajustes dos

alunos em frente à estrutura organizativo-pedagógica preestabelecida na escola,

acabam por transformá-los em “deficientes” e “especiais”.

Os procedimentos e critérios utilizados para definir os possuidores de distúrbios,

patologias e incapacidades para aprender e se adaptar ao meio escolar apontam os

problemas como pertencentes unicamente ao indivíduo, centralizando nele os desvios,

que assinalarão as concepções na prática pedagógica, tanto da sala de aula, como na

própria legislação que acaba estabelecendo os subsídios para a organização e

funcionamento de serviços de educação especial.

Na maioria das vezes, fica denegado a esses sujeitos o direito de serem vistos e

tratados simplesmente como alunos como os demais do contexto escolar, que

requerem, tão-somente por suas diferenças, peculiaridades e necessidades diversas,

algumas modificações que devem ser pensadas e executadas não por um grupo de

64

profissionais exclusivamente, mas pela colaboração e participação com todos os

outros profissionais envolvidos no contexto escolar.

Retornando à questão da complexidade, questão de maior relevância aqui discutida, e

apreendida por nós no contexto educacional, voltamos à necessidade que temos de

questionar nosso modo de pensar, de organizar e de atuar que vem exigindo de nós

uma atenção a tudo que emerge no cotidiano escolar. Isso nos chama a atenção para

o que é pensamento complexo.

Segundo Martins (2000), as práticas oriundas de uma abordagem tradicional, aquela

cujos pressupostos se vinculam ao racionalismo cartesiano ou ao positivismo,

objetivam “recortar” o real, decompô-lo em elementos cada vez mais simples e cada

vez mais fundamentais à compreensão e entendimento do que quer que se esteja

lidando ou tratando. A combinação desses elementos decompostos resultaria nas

propriedades do conjunto, ou seja, o todo corresponde à soma de suas partes e vice-

versa.

Entendemos, então, que, nessa abordagem, a previsão, a exatidão e a mensuração

são substantivos que estão inerentes e absolutamente presentes no pensamento, nas

concepções e ações cotidianas, por exemplo, de uma escola, ou de um professor que

toma elementos, ou “recorta” particularidades da realidade de um determinado aluno,

como se estivesse decompondo-a, e aí, não havendo correspondência entre o todo e

a parte e vice-versa, estabelece-se o caos, as impossibilidades, a baixa expectativa e

a profecia do fracasso antecipado.

Apesar de presenciarmos importantes iniciativas e experiências inovadoras no campo

educacional, decorrentes de pesquisas, estudos e/ou questionamentos aprofundados

acerca das práticas curriculares e dos processos instituídos e naturalizados no

sistema educacional brasileiro, percebemos um forte “ranço” e resquícios evidentes de

uma escola que, justificando estar respondendo às demandas da sociedade, planeja e

objetiva suas ações por um ideal de homogeneidade.

Nesse sentido, grande parte de nosso alunado, apesar de estar presente na escola,

continua excluída de um processo educacional que desconsidera a heterogeneidade

cultural, a pluralidade das experiências e do conhecimento, idealizando ainda uma

educação e uma escola mais parecida com “[...] uma oficina de formação, um clube de

65

desenvolvimento pessoal, um curso de treinamento para passar em concursos, uma

organização provedora de mão-de-obra [...]” (MEIRIEU, 2005, p. 44).

Acerca da visão que foi, ou ainda é desenvolvida por muitos profissionais da educação

quanto às respostas que a escola deve dar às demandas da sociedade, sobretudo na

questão da empregabilidade e do sucesso profissional “lá fora”, esta se deve não

somente, porém em grande medida, aos trabalhos de Libâneo, em que percebemos a

grande ênfase dada por ele aos conteúdos e aos seus processos de transmissão,

apesar de entender que o autor jamais associou conteúdo com matéria, mas o discutia

em sentido mais amplo.

Didaticamente o “conteudismo” 10 e a relação transmissão-assimilação foram, por

muito tempo, valorizados, talvez exatamente por ser mais fácil e mais cômodo não se

orientar sobre as demais opiniões que o autor pontuara em seus manuais de Didática,

muito utilizados nos cursos de formação de professores. Essa orientação, segundo

relata o próprio autor, seria a presença nos conteúdos de pelos menos três elementos:

a) sistematização dos conhecimentos pela experiência social da

humanidade e organizados para serem ensinados;

b) habilidades e hábitos vinculados aos conhecimentos, incluindo métodos e

procedimentos;

c) valores, atitudes e convicções nos modos de agir, sentir e enfrentar o

mundo.

Mesmo assim, em uma entrevista organizada por Marisa Vorraber, 11 o autor se coloca

da seguinte maneira:

[...] posso dizer que estou ampliando as idéias que desenvolvi no primeiro livro. 12 Ou seja, continuo vendo a centralidade da escola na cultura, uma cultura crítica, um conhecimento crítico como construção social, portanto subordinado a interesses de grupos e classes sociais, vinculado a relações de poder [...]. Mas hoje não

10 Chamamos “conteudismo” o processo extremado com que algumas escolas e professores organizam seus currículos, “desprezando”, por exemplo, o trabalho de desenvolvimento do aluno, como pessoa, cidadão, “ser político”. Fazendo isso, estariam desqualificando a transmissão dos conhecimentos e do saber cientificamente mais valorizados. 11 Contida no livro A escola tem futuro? da Editora DP&A. 12 Faz referência ao livro Didática, publicado em 1990.

66

jogo todo o peso da escolarização no conhecimento científico, acho que eu fazia isso no começo da formação das minhas idéias (LIBÂNEO, 2003, p. 27).

Libâneo, em sua entrevista, fala da importância por ele dada à dimensão ética, à

valorização das práticas do pensar acerca da solidariedade, dos valores, da

veracidade e do reconhecimento das diferenças. Considera também importante, nesse

processo de apropriação de conhecimentos, a valorização da experiência estética e

artística, assim como a capacidade de expressar-se, de sentir o mundo do outro e sua

cultura. O autor revela estar hoje “[...] bem mais convencido do que anos atrás de que

a razão científica e outros tipos de saberes de complementam” (p. 27).

É a compreensão e a aceitação de complementaridade do saber científico com outros

tipos de saberes que dão a tônica ao plano da gestão do trabalho pedagógico de uma

escola em condições de acolher a todos.

A escola com que sonhamos é aquela que assegura a todos a formação cultural e científica para a vida pessoal, profissional e cidadã, possibilitando uma relação autônoma, crítica e construtiva com a cultura em suas várias manifestações: a cultura provida pela ciência, pela técnica, pela estética, pela ética, bem como pela cultura paralela (meios de comunicação de massa) e pela cultura cotidiana. E para quê? Para formar cidadãos participantes em todas as instâncias da vida social contemporânea, o que implica articular os objetivos convencionais da escola [...] às exigências postas pela sociedade [...] (LIBÂNEO, 2001, p. 7-8, grifos nossos).

Considerando a presença de relações entre os mais variados conhecimentos –

científicos ou não – no processo de esclarecimento da realidade, cabe à educação,

segundo Martins (1998, p. 27), “[...] refletir sobre a consistência, a coerência e a

sensibilidade que sustentam as argumentações na busca de novos procedimentos

para enquadrar o conhecimento”. A análise sobre os caminhos por onde se desdobra

o conhecimento é uma análise que compete à educação.

Os estudos realizados por Oliveira (2003) 13 sobre currículos praticados e a leitura que

se faz da complexidade do cotidiano, tendo em vista a produção e a construção de

conhecimentos, revelam a emergência das novas dimensões do saber no novo

paradigma do conhecimento. Em um de seus trabalhos, evidencia-se o diferencial do

13 A autora, além de se voltar para o estudo epistemológico do que é e do que pode ser o cotidiano, relata e analisa as observações e entrevistas realizadas com uma professora que se fez cúmplice de sua pesquisa, discutindo a representação e/ou compreensão do currículo em ação e as formas criativas de trabalho pedagógico desenvolvidas na escola.

67

trabalho pedagógico de alguns professores que se voltam para o reconhecimento de

todo tipo e formas de conhecimento, quando estabelecem um diálogo entre as

diversas culturas sob múltiplas dimensões, presentes nas salas de aula.

Esse diálogo, entre outros, assim como a “[...] a criação cotidiana de alternativas

curriculares numa perspectiva progressista – coletiva solidária e dialógica”

estabelecem vinculações com o conhecimento-emancipação. Segundo Oliveira

(2003), é com base na idéia de práticas de utopias que essas alternativas se

insurgem, ocorrendo,

[...] na medida em que configura a ‘inserção da novidade utópica no que nos está mais próximo’ pela inclusão de valores e crenças na solidariedade entre os diferentes e desenvolvida como auto-organização dos saberes/fazeres/valores a partir da complexidade do real e de suas imprevisibilidades (OLIVEIRA, 2003, p.147).

Como táticas de emancipação, é, então, possível, diante da complexidade do fazer

pedagógico e de tantas demandas e solicitações de nossa sociedade, reorganizar o

que está instituído e o que está posto como regra, “[...] não só ensinando os

conteúdos curriculares oficiais, mas também difundindo os valores que abraça,

praticando, em escala micro, suas utopias pessoais” (OLIVEIRA, 2003, p. 147-148).

Acerca dessa posição utópica seguida por muitos profissionais da educação, trazemos

o pensamento de Santos (2000, p. 36):

Recuperar a esperança significa, neste contexto, alterar o estatuto da espera, tornando-a simultaneamente mais activa e mais ambígua. A utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite lutar pelo conteúdo da espera, não em geral, mas no exacto lugar e tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e excepto naqueles em que ocorreram efetivamente.

A seguir, apresentamos algumas reflexões acerca da abordagem multirreferencial,

que nos é oferecida como possibilidade de entendimento do processo educativo,

analisando-o sob diferentes perspectivas, ante as dificuldades de mantê-lo nos

determinismos e previsibilidades dos paradigmas tradicionais de educação.

68

4.1 MULTIRREFERENCIALIDADE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Recentemente, ao entrarmos em contato com as produções de alguns pesquisadores,

que se utilizaram metodologicamente do olhar/abordagem multirreferencial para com

seus objetos de estudos, ousamos considerar tal abordagem como possibilidade de

análise dos cotidianos, dos sujeitos, do fenômeno educativo chamado inclusão e da

gestão da aprendizagem a todos.

Martins (2000) nos lembra que as visões de conhecimento, de objeto e de sujeito

implícitas no modelo de cientificidade, desenvolvido no âmbito das Ciências Naturais,

subsidiaram tanto a elaboração das teorias educacionais como as práticas educativas

delas decorrentes.

Entretanto, nas últimas décadas, temos compreendido que essas visões não

contemplam a complexidade dos fenômenos sociais e, conseqüentemente, a

complexidade imbricada nos processos educativos, pois o caráter reducionista e

simplificador, bastante utilizado na análise desses fenômenos, ainda se orienta pelos

determinismos e previsilibilidades próprios de um paradigma racionalista.

Sendo assim, uma possibilidade de compreensão em relação aos processos de

inclusão escolar e da gestão da aprendizagem para todos nos é apresentada pela

abordagem multirreferencial, desenvolvida por Jacques Ardoino, por volta dos anos

60, que, conforme escreve Martins (2000, p. 5-6), se apresenta como uma base

teórica “[...] capaz de contribuir, epistemológica e metodologicamente, para a

compreensão da dinâmica dos processos educativos, assegurando-se a complexidade

que lhes é própria”.

Entretanto, a fim de subsidiar o leitor na compreensão dessa abordagem, assim como

para que entenda os nossos limites e “impossibilidades” em relação às análises e

considerações subseqüentes, pensamos ser interessante apresentar os fragmentos

de uma entrevista com Cornelius Castoriadis, em que Ardoino, Barbier e Giust-

Desprairies (1998) discutem com ele sobre a multirreferencialidade. Lembramos que

esses preeminentes pesquisadores, mesmo divergentes em algumas posições,

integram uma mesma matriz filosófica e sociológica, no entendimento e análise das

manifestações sociais e culturais da sociedade.

69

Registramos, então, que, nos fragmentos dessa entrevista, encontramos respaldo,

tanto para trazer o tema multirreferencialidade para este trabalho, quanto para

justificar o fato de não tê-la realizado de maneira “absoluta”, seja pela nossa

“incapacidade e impossibilidade” na utilização de suas ferramentas teórico-

metodológicas, seja pelas “contradições e limitações” nela existentes expressadas por

Castoriadis na referida entrevista.

Solicitado para que expressasse sua opinião acerca do tema, Castoriadis pede a

Ardoino que exponha primeiro suas explicações. Este, então, a expõe assim:

Por multirreferencialidade entendo, portanto, os referenciais, isto é, os sistemas ao mesmo tempo de leitura, de representação, por conseguinte, mas também as linguagens, que são aceitas como plurais, isto é, como necessariamente diferentes umas das outras, como um luto de unidade, se quiserem, e que vão servir para dar conta, no estágio em que estamos da complexidade de um fenômeno e para elucidá-la um pouco (ARDOINO, 1998, p. 69).

Vemos que Ardoino atribui à multirreferencialidade além da pluralidade, também a

característica de heterogeneidade. É possível, então, buscar referências nas várias

ciências e disciplinas, para que por meio de seus registros, possamos “apelar” para a

elucidação ou explicação de alguns fenômenos educativos. Castoriadis pondera e diz

que a questão é extremamente vasta, e que esta envolve quase tudo. Mas nem por

isso discorda da pluralidade de “leitura” que o olhar multirreferencial possibilita e

solicita apenas que tenhamos cuidado com as fantásticas confusões, frutos do

exagero e do ecletismo sem controle (CASTORIADIS, 1998), por exemplo, de uma

multirreferencialidade generalizada. 14

Com essas considerações, o autor assinala a necessidade de precisar os limites da

multirreferencialidade.

Castoriadis diz acreditar ser um erro, por exemplo, um psicanalista querer conceber a

sociedade a partir do funcionamento psíquico, assim como há um erro simétrico do

sociólogo em ver na psique apenas o produto da sociedade e da socialização. Ou

seja, a psique não se reduz à sociedade e nem a sociedade se reduz à psique.

14 Expressão utilizada por René Barbier e tomada por Alain Colon, em seu texto Etnometodologia e

multirreferencialidade, este devidamente relacionado nas referências, nas páginas finais deste trabalho. De acordo com Barbier (1998), a multirreferencialidade generalizada recorreria a disciplinas que até poderiam estar, no limite, em oposição umas às outras.

70

Por conseguinte, o autor, apesar de realizar tais considerações, e que convergem com

as propostas da multirreferencialidade, chama-nos a atenção para o fato de que o

mundo não é coerente, ele é fragmentado, e nessa fragmentação na qual nos

encontramos, não podemos nos mensurar com as mesmas categorias e os mesmos

conceitos de outros seres que aqui vivem.

Apesar disso, concorda que não podemos dispensar alguma exigência de coerência

para entendermos ou explicarmos alguns fenômenos, dentro de suas áreas, e diz: “[...]

no interior de uma área, devemos tentar ser o mais coerentes possível [...]”

(CASTORIADIS, 1998, p. 71).

Nesse sentido, o olhar multirreferencial se justifica, porém, na busca dessa coerência

dentro de determinada área, para explicar e melhor entender determinadas questões,

Castoriadis alerta que não se devem articular de qualquer maneira as diferentes

áreas.

4.2 MULTIRREFERENCIALIDADE NA EDUCAÇÃO: UMA POSSIBILIDADE DE

COMPREENSÃO DA PRÁTICA EDUCATIVA

A realidade educacional brasileira, sobre a qual grandes pesquisadores empreendem

esforços na produção científica, tem apontado, além de propostas e alternativas de

solução, o reconhecimento, antes de tudo, dos “males” da educação brasileira que,

segundo Barbosa (1998), é fundada em uma pedagogia da desautorização, a partir do

momento em que se nega, desde o início da escolaridade, a produção do aluno “[...]

no que se refere ao pensar, ao sentir, ao imaginar, ao decidir, ao agir [...]”, enfim a

negação de seu processo de autoprodução.

Muitas pesquisas, além da investigação e constatação de algumas hipóteses

preliminares, visam, sobretudo, a contribuir com importantes análises sobre questões,

como fracasso e evasão escolar, que, de algum modo, estão estreitamente ligadas à

necessidade de reestruturação administrativa e pedagógica dos sistemas escolares,

bem como à formação inicial e continuada dos profissionais, entre tantas outras

questões que estão imbricadas no processo educacional brasileiro.

Todas essas análises vêm, em nossa interpretação, de maneira acertada,

denunciando as práticas subjacentes de um currículo apoiado nas teorias tradicionais

71

que o vêem estritamente como atividade “conteudista”,15 que implicam muitas vezes

práticas didático-pedagógicas excludentes e com determinados arranjos que revelam,

inclusive, uma organização que privilegia alguns alunos em detrimento de outros, visto

trabalhar com a hipótese de considerar áreas específicas da inteligência. 16

Nesse sentido, quando Barbosa (1998) diz que a educação brasileira está fundada na

pedagogia da desautorização, por negar a produção do aluno, somos levados a

acreditar que essa negação tem relação direta com o tipo de formação profissional

que recebemos, atrelada, evidentemente, a concepções, visões, finalidades e

objetivos atribuídos à escola até tempos bem recentes.

Assim, nossas questões são de natureza estruturais, ou seja, têm a ver com o resgate

do homem como pessoa que se expressa cotidianamente e de diferentes maneiras e

que necessita de uma educação que o “habilite” a ser autor-cidadão, 17 tanto quanto

necessita do conhecimento formal e científico. Para Barbosa (1998, p. 8), ser autor-

cidadão significa:

[...] referir-se a esta árdua e complexa tarefa mobilizadora do sujeito como um todo se se propõe formá-lo (formar-se) para uma maneira ‘integrada’ de atuar no mundo, de se posicionar no público, de se comportar no privado, de agir no trabalho, no sindicato, na igreja, de tratar o filho, o marido, o namorado, a empregada ou empregado, o adolescente, a criança; maneira ‘integrada’ de expressar os próprios sentimentos; de amar, de imaginar, de propor sonhos, objetivos, estratégias [...] de desejar.

Tomando não somente as dificuldades de “forjar” autores-cidadãos, dificuldade essa

muito sentida em todos os demais processos sociais e não apenas no escolar, assim

como tantos outros aspectos reveladores da complexidade evidenciada nos contextos

educacionais, encontramos, no conceito de multirreferencialidade, desenvolvido por

Ardoino (1998), uma importante contribuição a partir do momento em que esta não se

encontra fechada em si, mas aberta à complexidade da realidade e à interioridade

significante do sujeito observador.

15 Não queremos dizer com isso que a escola não deva primar pelo conhecimento científico, didaticamente organizado em disciplinas e conteúdos. Porém, estes não devem se constituir em motivos de exclusão e definições deterministas e que antecipam fracassos, ante o “potencial” e a capacidade de uns em detrimento de outros. 16 Um currículo baseado na teoria tradicional, por privilegiar estritamente o aspecto “conteudista” (disciplinas, matérias, avaliação, notas, etc.), naturalmente privilegia as “inteligências” lingüística e lógico-matemática em detrimento de outras “inteligências”, evidenciadas pelas diferentes formas de linguagem e expressão do pensamento. 17 Expressão cunhada por Joaquim Gonçalves Barbosa.

72

Essa abordagem nos chama a atenção para o desenvolvimento de uma teoria

pedagógica que supere os chamados fundamentos da educação, haja vista a

supervalorização de determinados fundamentos e/ou disciplinas que desenvolvem e

têm à sua disposição seus próprios objetos e métodos.

Soma-se a isso, também, o ecletismo superficial, ao desconsiderar isoladamente tais

fundamentos, redundando, na maioria das experiências, em simplificação da prática

educativa nos contextos escolares.

A construção de uma teoria para a educação, que pretenda considerar os indivíduos

como atores do processo, “autorizados” como cidadãos, e que permita apreender toda

a sua complexidade histórica, filosófica, sociológica, antropológica, psicológica,

econômica, etc., nos é possibilitada por uma abordagem que, utilizada por

pesquisadores, professores de formação, profissionais em formação inicial e,

sobretudo, em formação contínua, permitirá o necessário entendimento da

complexidade do ato educativo, especialmente no tocante à educação brasileira.

De igual modo, pelo respeito às diferentes ciências com suas linguagens próprias,

assim como no estabelecimento de intercâmbios cada vez mais sofisticados, será

possível, por meio da abordagem multirreferencial, multiplicar-se as possibilidades de

ação/intervenção, tanto na dimensão prática, quanto na teórica, em resposta aos

desafios enfrentados cotidianamente em nossa multifacetada realidade educacional.

Apesar de esse conceito ser desenvolvido por Ardoino desde os anos 60, em seus

trabalhos na Universidade de Paris III, na França, só encontraremos a primeira obra

publicada no Brasil, sobre a referida abordagem, em 1997, pelo pesquisador Sérgio da

Costa Borba.

No entanto, ao tomarmos conhecimento dessa abordagem por meio das produções de

alguns dos autores aqui citados, consideramos importante apresentar não só as

considerações que eles têm sobre ela, como também as nossas, em frente às

questões estudadas e investigadas em nosso processo de pesquisa. Assim, algumas

indagações e/ou hipóteses são sutilmente trazidas neste texto.

73

Essas questões podem ser resumidas assim: que sentidos e significações estão

presentes e impregnados na constituição da pessoa? 18 A quais referências (afetivas,

psicológicas, sociais, culturais, etc.) essencialmente seriam importantes nos ater? É

possível, pelo processo do diálogo, do respeito, da ampliação de nossa percepção às

múltiplas dimensões que constituem a pessoa, promover uma educação diferenciada

e com respostas à complexidade na qual estamos imersos?

Em algumas de nossas leituras acerca da perspectiva interacional sustentada no

paradigma da complexidade e da interdependência, percebemos o quanto é

importante a pessoa, 19 em suas redes de relações, estar impregnada e atravessada

pela linguagem. Segundo Rossetti-Ferreira (2004, p. 25), “[...] essa característica

marca o caráter fundante da dialogia na constituição do ser humano e,

consequentemente, a sua multiplicidade”.

A pessoa é múltipla porque são múltiplos e heterogêneos os vários outros com quem interage. A pessoa é múltipla porque são múltiplas as vozes que compõem o mundo social e os espaços e as posições que vai ocupando nas práticas discursivas. Essa multiplicidade de vozes e posições que dialogam entre si submetem a pessoas, mas, ao mesmo tempo, preservam a abertura para a inovação e para a construção de novos posicionamentos e processos de significação acerca do mundo, do outro e de si mesma (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2004, p. 25).

Essa heterogeneidade marcante pelas múltiplas vozes, múltiplas posições presentes

na variedade humana, assim como por suas singulares diferenças, vem

impulsionando e motivando todos aqueles que querem interrogar e investigar, de

forma mais profunda, a complexidade imanente dos processos relacionais,

pedagógicos, entre outros, desvelando, assim, novas maneiras e outras vias para a

compreensão e respostas a tal complexidade.

Entendemos que essa investigação poderá estar presente desde os processos

socializantes iniciais na vida do ser humano. Segundo Smolka (2004, p. 35), as

crianças têm experenciado hoje a intensidade, a premência, a rapidez, a abundância e

a simultaneidade das mais variadas informações, mensagens, apelos e linguagens,

18 A expressão pessoa às vezes é colocada neste texto por nós, também como sujeito ou indivíduo. 19 A autora Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, na oportunidade, justifica a utilização do termo pessoa em substituição a sujeito e indvíduo, tendo em vista que alguns teóricos alegam dificuldades e contradições encontradas diante de tais palavras. Estas, segundo eles, “[...] podem remeter a concepção de ser humano como uma unidade, uma essência e, nesse sentido, sugerindo certa autonomia em relação ao seu meio” (2004, p. 25).

74

diante dos quais estarão aceitando, de maneiras diferentes, as demandas e os

impactos dessas mensagens e linguagens e a elas reagindo ou resistindo.

A nosso ver, essa reflexão é extremamente plausível para justificar a busca de outras

novas maneiras de se olhar para essa pessoa/aluno que, na relação com os outros,

poderá ainda expressar novas reações, aceitações ou resistências. A autora diz:

“Imersas que estão na trama dessas relações, participam, inescapavelmente, das

significações que se produzem” (SMOLKA, 2004, p. 35). E acrescenta:

É impossível ao homem não significar. A significação faz parte da atividade humana. Diz-se que o homem busca sentido, atribui sentidos [...]. Mas que sentidos são esses que se procuram, se buscam, se atribuem? É a significação de algo intrínseco às ações humanas?[...] (SMOLKA, 2004, p. 35).

É, então, na tentativa de compreender os fenômenos educacionais, entre tantas

outras manifestações oriundas de uma determinada prática ou concepções,

essencialmente aquelas que provêm do distanciamento e da diferenciação do que é

ou do que tem sido concebido na ótica do paradigma cartesiano e positivista, que

trazemos, para discussão, os pressupostos da abordagem multirreferencial

desenvolvida por Jacques Ardoino (1998).

Alguns dos fenômenos educacionais, como sinalizados anteriormente no início deste

capítulo, são, em nossa análise, expressos e evidenciados, por exemplo, pela

concreta realidade de heterogeneidade, marcada pela diversidade e diferenças das

pessoas/alunos no momento da produção e construção dos conhecimentos, na

expressão, por essas pessoas, de suas subjetividades, seus modos de pensar, sentir

e agir na construção e no desenvolvimento de uma visão de ser e estar no mundo.

Ao considerar a concretude dessa realidade no cotidiano da escola, perpassada pelas

múltiplas dimensões com as quais estão permanentemente interconectadas, emerge o

que chamamos de fenômenos educacionais, ou seja, os elementos fluidos de uma

complexidade que exige de todos e a todo momento sua compreensão.

• Entendendo a abordagem multirreferencial e suas propostas

Como teórico da multirreferencialidade, Jacques Ardoino (1998) tem sido a principal

fonte para os pesquisadores brasileiros nos últimos anos. Alguns desses

75

pesquisadores 20 realizaram um percurso intelectual nos anos 80 e 90, ou pela leitura

de livros ainda não traduzidos para o português, ou na realização de doutorado ou

pós-doutorado, em Paris V e Paris VIII, estando, desse modo, aproximando e

compreendendo a fundamentação do conceito de multirreferencialdade com Ardoino,

entre outros, como Georges Lapassade e René Barbier.

Ardoino (1998), em um de seus textos reunidos na obra de Joaquim G. Barbosa

(1998), diz que, ao assumir plenamente a hipótese da complexidade, até mesmo da

hipercomplexidade, da realidade a respeito da qual nos questionamos, a abordagem

multirreferencial propõe-se:

[...] a uma leitura plural de seus objetos (práticos e teóricos), sob diferentes pontos de vista, que implicam tanto visões específicas quanto linguagens apropriadas às descrições exigidas, em função de sistemas de referências distintos, considerados, reconhecidos explicitamente como não-redutíveis uns aos outros, ou seja, heterogêneos (ARDOINO, 1998a, p. 24).

A abordagem multirreferencial vem se apresentando como uma resposta ao caráter

extremamente complexo da prática social e, principalmente, das práticas educativas.

De acordo Ardoino (1998), a complexidade tem trazido, para professores, pedagogos

e psicólogos, muitas dificuldades na interpretação e compreensão de suas próprias

práticas, e isso se desdobra em dificuldades na tomada de decisões (ARDOINO, apud

MARTINS, 2004).

Ao investigarmos, com maior interesse e profundidade, a proposta de Ardoino,

verificamos que é na complexidade imanente das relações estabelecidas no processo

educativo, quaisquer que sejam elas, que são forjados o conceito e as propostas da

abordagem multirreferencial. O autor, em sua análise acerca de tal complexidade,

leva em consideração questões como a autonomia relativa da escola e a forma como

esta se expressa por meio de um fazer social-histórico que postula uma dialética do

instituído e do instituinte.

20 Joaquim Gonçalves Barbosa toma contato com a abordagem multirreferencial de Ardoino pela leitura do livro de Georges Devereux: Da angústia ao método das ciências do comportamento. Paris: Flammarion, 1980; Teresinha Fróes Burnham, com suas pesquisas sobre currículo, encontra em Ardoino, por meio da multirreferencialidade, complementaridade às suas questões de investigação; Roberto Macedo, no início da década de 90, faz um doutorado em Paris; e Paulo Coelho Filho por meio de seu doutorado em Paris V e pós-doutorado em Paris VIII.

76

Nesse sentido, as finalidades políticas, mesmo subjacentes, evocam uma

intencionalidade predominantemente coletiva. Há, então, certa autoridade e uma

legitimidade nela como instituição, no exercício de um “poder”. No entanto, sua

relativa autonomia assim como o reconhecimento das relações de força e de interesse

de classe dão a essa representação da realidade social um caráter naturalmente

polêmico em frente às determinações sociais (ARDOINO, 1998, p. 34).

Um pesquisador, ou qualquer pessoa interessada em compreender os fenômenos

educacionais, há de considerar a essência do vivido e construído no âmbito da escola

que representa e significa muito mais do que simplesmente aparenta, ou do que lhe é

determinado como função social, a partir do momento em que é vista como,

[...] um lugar de vida, uma comunidade, que reúne um conjunto de pessoas e de grupos em interação recíproca. As relações que o vivido coletivo tece no decorrer das situações sucessivas estão inscritas numa duração, carregadas de história (e de “histórias” que estabelecem uma contenda entre os protagonistas) e se encontram mesmo assim determinadas mais pela dinâmica das pulsões inconscientes e da vida afetiva, pela ação dos fenômenos tranferenciais e contra-transferenciais, pelas incidências das implicações que têm nos papéis ou nas associações, pelo peso próprio das estruturas psíquicas, pelos vieses específicos que decorrem das bagagens intelectuais de uns e de outros, do que pela lógica de um sistema que pretende dividir funções e estabelecer tarefas para bem conduzir missões (ARDOINO, 1998, p. 34).

Diante dessa emaranhada realidade, imbricada de múltiplos níveis e perspectivas que

se delineiam a partir dos mitos, das crenças, das opiniões, das normas, das proibições

e dos desejos-angústias de transgressão, resultantes dos valores pessoais e culturais

dos envolvidos no processo educativo, inevitavelmente, fluem atitudes de contestação,

questionamento e interrogações acerca do que é e do representa a escola na e para a

sociedade.

Ou seja, na tentativa de compreender o que realmente significa a sociedade, os

questionamentos passam a se dirigir não somente à questão do sentido e importância

da escola na constituição dos sujeitos para essa sociedade, querendo sempre moldá-

los e “prepará-los”, como se todos fossem exercer os mesmos papéis e as mesmas

funções, porém, muito mais à questão de saber que sujeitos essa sociedade vem

forjando, constituindo e necessitando para manter a sua existência.

77

Os processos de inclusão escolar e a gestão da aprendizagem na diversidade

emergem nesse sentido como “protagonistas” e impulsores aos vários

questionamentos da escola que temos e que aí está dimensionada.

Lançar um olhar para a questão, para além do aqui e agora, ou seja, para sua história,

seus enredamentos, sua constituição/compreensão, segundo outras ciências ou

outras culturas, possibilita a efetivação de melhores práticas educativas, não só aos

que diretamente estão envolvidos nas questões (como, por exemplo, os alunos com

deficiências), mas a todos os envolvidos na comunidade escolar.

Victor e Barreto (2005) nos lembram que, apesar de, nos últimos trinta anos, muitos

de nós termos apresentado trajetórias que envolveram três grandes ciências, a

Psicologia, a Política e a Filosofia, ainda temos muita dificuldade em identificar essas

ciências na Educação Especial, mesmo que esta tenha se configurado por essas

áreas. As autoras, então, perguntam:

Será que, em decorrência dessas bases epistemológicas, estamos conceituando os termos da mesma forma ou estamos apensas falando das mesmas coisas com sentidos e significados diferentes devido aos lugares, marcas e marcações próprias? (VICTOR; BARRETO, 2005, p. 414).

É bom lembrarmos que a escola como invenção da sociedade, e sendo a sociedade,

segundo Castoriadis (1987), a criação de si mesma, muito nos ajudará a elucidar, de

maneira prática, as questões sobre o significado e a função dessa escola na

sociedade.

De maneira pontual, Castoriadis (1987) realiza uma interpretação a partir dos

postulados de Aristóletes e Marx acerca da divisão do trabalho e da

convenção/instituição estabelecida pela e para a sociedade, como condição de sua

existência, afirmando que a sociedade não comporta de fato e por acidente a

diferença, ou melhor, a alteridade dos indivíduos, mas implica necessária e

essencialmente essa alteridade.

De modo ilustrativo, o autor fala sobre a constituição da sociedade como troca entre o

“médico” e o “lavrador”:

Pois não é a partir de dois médicos que a sociedade advém (ginetai), mas a partir de um médico e de um lavrador, os quais são

78

absolutamente outros (holôs heterôn) e não iguais; e no entanto é preciso que estes sejam igualizados (ARISTÓLETES, apud CASTORIADIS, 1987, p. 386).

A constituição da sociedade, como troca entre o “médico” e o “lavrador”, exige a

solução desse enigma: igualizar o que é absolutamente outro.

Médico e lavrador só podem existir comungando/comunicando (koinôneim) e só podem comungar/comunicar trocando; para que troquem, devem ser eles próprios, seus ‘produtos’, estes por aqueles ou o inverso igualizados. Por trás da troca constituída, há a troca constituinte – e esta ainda exige, implica uma comensurabilidade ou ‘igualdade’ (CASTORIADIS, 1987, p. 386-387).

Compreendendo, então, a “necessidade” e possibilidade de comunicação, comunhão

e troca entre o “outro”, como condição de existência da sociedade, será possível

estabelecer ou visualizar a “igualização” exatamente nesse processo de comunicação

e comunhão.

Na transposição de tais idéias e conceitos para as práticas cotidianas da escola,

verificaremos a urgência de sua aplicação diante do grande conflito que se estabelece

entre os seus envolvidos, quando estes, por vezes, erroneamente, vêem a escola

como um lugar mais parecido com uma oficina, uma fábrica de formação, um curso de

treinamento para passar em concursos ou uma organização provedora de mão-de-

obra, como nos diz Meirieu (2005), do que um lugar de compartilhamento de saberes,

não demarcando previamente o futuro ou lugar que ocuparão uns ou outros, por sua

condição intelectual, física, étnica, religiosa, entre outras.

Na efervescência de tal complexidade, a emergência pela busca de outras referências

e/ou abordagens se revela como alternativa para a compreensão e/ou resposta à

nossa realidade educacional, a fim de explicar, justificar, propor, ou dar conta daquilo

que sonhamos ou pretendemos. como escola, como um importante espaço na

constituição dos sujeitos para e na sociedade.

Na defesa de uma abordagem que se ancora em múltiplos olhares e na compreensão

do caráter plural dos fenômenos sociais, Ardoino (1998) se posiciona afirmando que a

síntese das abordagens das diferentes vertentes (psicológicas, psicossociais ou

psicanalíticas), e que para nós é o que vem sendo realizado, a despeito dos

fundamentos e da história da educação brasileira, ”[...] não poderia efetuar-se sem

79

riscos graves de mutilação da realidade, a partir de um só referencial, com uma

linguagem única” (ARDOINO, 1998, p. 35).

Ardoino (1998) esclarece o quanto essa abordagem se revela inteiramente útil, por

exemplo, àqueles que praticam a formação continuada, aos professores de modo

geral, aos pesquisadores ou mesmo aos que estão em formação inicial. Ressalta, de

modo especial, o proveito que têm aqueles que estão em “formação contínua”, no seu

lócus de trabalho, haja vista sua experiência decorrente da complexidade, verificada

na dificuldade profissional que encontram em suas respectivas áreas de atuação.

Tendo em vista que, em grande medida, os pesquisadores, no âmbito da educação,

são profissionais que paralelamente desenvolvem seus projetos de pesquisa, é

comum a grande expectativa de solução concreta aos problemas evidenciados por

esses pesquisadores. Diante disso, o objetivo maior da abordagem multirreferencial

não será fornecer respostas à complexidade encontrada, ou tornar sua leitura dirigida,

mas

[...] constitui muito mais o apelo deliberado através da pluralidade de olhares e de linguagens, reconhecidos como necessários à compreensão dessa suposta complexidade (emprestada ao objetos), de um questionamento epistemológico, atualmente imprescindível nessas áreas, antecessor de todas operacionalização de métodos e de dispositivos (ARDOINO, 1998, p. 41).

As implicações dos estudos, discussões e pesquisas para a educação acerca da

complexidade e da multirreferencialidade que Ardoino, Morin, Barbier e Castoriadis

têm realizado, trazem, com ampla possibilidade de aplicação de seus pressupostos,

significativas contribuições para que possamos refletir sobre uma possível e sonhada

modificação sob uma reestruturação administrativa e pedagógica na instituição

escolar, refletindo no seu conseqüente papel na sociedade contemporânea.

Entendemos que, para a formação de cidadãos que atuarão na sociedade, e que para

essa formação se exige a construção de sujeitos coletivos, indivíduos sociais, num

permanente, tenso e duplo processo de instituição/continuidade, é imprescindível a

compreensão do papel do currículo nessa construção (BURHAM, 1998, p. 36).

Tratar o currículo a partir de paradigmas específicos e delimitantes, sem nos ater às

heterogêneas redes de relações que o constitui, é querer vencer, de maneira

80

simplista, o desafio que nos é imposto cotidianamente, haja vista apreendermos, 21

tanto dos docentes quanto de outros envolvidos no processo educativo, sua

perplexidade ante a natureza complexa do “fazer e trabalhar na educação”. 22

É desse modo que creditamos à perspectiva multirreferencial de Ardoino (1998) e

seus seguidores a possibilidade que esta nos apresenta, ao considerar o currículo não

somente como algo construído historicamente para a socialização, entre outras

finalidades, mas também, como responsável pela construção de todos os sujeitos nele

envolvidos pela construção de suas próprias identidades sociais.

Finalmente, pensamos neste currículo como algo que contribui para o duplo processo

de continuidade/instituição de uma sociedade, isto é, para a manutenção/construção/

reconstrução/criação das relações dos sujeitos sociais no complexo das relações de

um mundo histórico-socialmente construído e instituído e em permanente processo de

reconstrução e criação (BURHAM, 1998, p. 48).

Ao acolhermos a idéia da reestruturação curricular que reconheça a importância da

imagem, dos sonhos da pessoa, as diferentes linguagens e expressões, que

considera as emoções, a afetividade, as diferenças e as necessidades que cada

indivíduo traz consigo, fazendo-as presentes criativamente em todas as atividades

curriculares, estaremos realmente formando cidadãos, autores-cidadãos e não mais

fabricando mão-de-obra para a sociedade. Assim como nos convida Castoriadis

(1992), acreditamos que esse desafio poderá ser enfrentado, pois também queremos:

[...] indivíduos autônomos, isto é, capazes de uma atividade refletida própria. Contudo [...] os meios e os objetos dessa atividade, e mesmo seus meios e métodos só podem ser fornecidos pela imaginação radical da psique. É aí que se encontra a fonte de contribuição do indivíduo à criação social-histórica. E é por isso que uma educação não mutilante, uma verdadeira paideia é de uma importância capital (CASTORIADIS, 1992, p. 160-161).

21 Sejam em falas informais, sejam em entrevistas ou pelas ações docentes, é possível verificar o quanto os profissionais se põem em condições de impotência e/ou perplexos diante da complexidade que eles mesmos atribuem ao agir pedagógico. 22 Expressão comumente usada pelos profissionais da educação: “É complicado fazer educação”.

81

4.3 ANÁLISE INSTITUCIONAL: CONCEITOS E SUAS RELAÇÕES COM A

ABORDAGEM MULTIRREFERENCIAL

Nesta seção, apresentaremos e discutiremos alguns conceitos, como instituição, auto-

análise, autogestão e implicação, que, presentes na Análise Institucional e uma que

vez nosso estudo a utiliza como pano de fundo para as discussões aqui tecidas, trarão

uma maior compreensão acerca das opções teórico-metodológicas trabalhadas nesta

pesquisa.

Sobre a relação existente entre a Análise Institucional e a abordagem multirreferencial,

traremos as considerações de Ardoino e Lourau (1995) a partir dos anos 80, quando

se dá a tomada de consciência mais generalizada do caráter multirreferencial da

Análise Institucional.

• Análise Institucional: sua história

Segundo Lapassade (2005), a Análise Institucional francesa nasceu entre 1940 e

1968, de práticas microssociais relativas à Psicoterapia, à intervenção

psicossociológica e à Pedagogia, áreas consideradas fonte da Análise Institucional.

Num primeiro momento, a Psicoterapia Institucional, praticada nos estabelecimentos

hospitalares, chamados de instituição, faz surgir o conceito de Análise Institucional. Já

a Psicossociologia, uma segunda corrente da Análise Institucional, surgiu de uma

prática crítica do grupo de formação em Psicossociologia de grupo, o Training Group,

ou T. Group. 23

O projeto de Análise Institucional era, por meio da auto-análise coletiva desse grupo,

levar em consideração os quadros espaço-temporais da experiência, até então

negligenciados, do que se passava no “aqui e agora”, na instituição analisada. Por

último, porém, na mesma época, por volta da década de 60, um grupo de professores

de Paris, dissidentes da Escola Moderna (de Freinet), interessou-se pela Análise

Institucional que a Psicossociologia, a corrente anterior, desenvolvia com os grupos e

definiu-a de Pedagogia Institucional Autogestionária.

23 Forma privilegiada de formação do tipo dinâmica de grupo criada nos E.U.A., e amplamente difundida na França e em toda a Europa. O Training Group ou grupo de formação é chamado, na França, de grupo de base ou Grupo de Diagnóstico.

82

De acordo com René Lourau (1995), a Análise Institucional trata de descobrir a ação

do instituído em toda e qualquer organização. O que a movimenta não é a vontade de

atingir a verdade, mas sim a vontade política de produzir novos problemas e a vontade

da invenção (RODRIGUES; LEITÃO; BARROS, 1992).

Segundo Rodrigues e Souza (1987), o objetivo da Análise Institucional seria trazer à

luz a dialética instituinte-instituído, de maneira generalizada em todos os âmbitos e

realizada por todos. Lembramos que o interesse e o otimismo de alguns professores

daquela época em se tornarem “[...] promotores e propagadores de uma ótica voltada

a ultrapassar os perímetros da escola ou das instituições educativas especializadas

[...]” (ARDOINO; LOURAU, 2003, p. 9) fizeram nascer as Pedagogias Institucionais (já

apresentadas neste texto), da possibilidade oferecida pelas opções metodológicas da

Análise Institucional (AI).

4.3.1 Instituição, multirreferencialidade e implicação

De acordo com Ardoino (1998), só poderemos falar verdadeiramente em

multirreferencialidade, no quadro da AI, com a emergência da noção de implicação e,

sobretudo, quando esta última tiver se liberado suficientemente de seu disfarce

habitual: o engajamento.

Nesse sentido, percebemos uma maior fluidez da multirreferencialidade na AI, pois há

nela um ponto fundamental, que é justamente a hipótese de que a instituição, a

organização ou o grupo não pode se nomear, se descrever e muito menos se analisar

a partir de uma única linguagem de referência.

Acreditamos que tal hipótese faz com que haja um discernimento a partir “[...] dos

efeitos provindos de uma situação especificamente grupal e a ação própria das

estruturas da organização-estabelecimento que, no entanto, já se chama de instituição

[...]” (ARDOINO, 1998, p. 48) e que se delineia mais em termos de metodologias ou de

ideologias do que de epistemologia.

Desse modo, a presença da multirreferencialidade na AI pode ser vista, quando são

revisitadas as relações entre ideologia mascarada das práticas de grupo e as

problemáticas mais abertamente políticas.

83

Como anunciado, passaremos a discutir os principais conceitos presentes na Análise

Institucional:

A) Instituição: evolução de seus conceitos

Segundo Lapassade (apud RODRIGUES; SOUZA, 1987), num primeiro momento, a

terminologia instituição é pensada como estabelecimento de cuidados, num duplo

sentido: um estabelecimento que merece ser cuidado (terapeutizado) e que, desse

modo, pode ser mobilizado a serviço da ação terapêutica. Assim, instituições são

todos os estabelecimentos ou organizações com existência material e/ou jurídica:

escolas, hospitais, empresas, associações, etc. Esse sentido está presente em

afirmações como: “Trabalho em uma instituição”, “Estamos em uma instituição”.

Em um segundo momento, as instituições seriam dispositivos instalados no interior

dos estabelecimentos, e não mais os próprios estabelecimentos. O trabalho de

Análise Institucional consistiria numa atuação que fizesse uso de tais dispositivos. Os

grupos de discussão, assembléias, equipes de trabalhos, conselhos de classe

instalados no interior dos estabelecimentos são exemplos dessa segunda idéia de

instituição.

O terceiro momento, entretanto, segundo Lapassade (apud RODRIGUES; SOUZA,

1987), a partir dos movimentos antiinstitucionais (antipsiquiatria, antiescola), sinaliza

uma redefinição do conceito de instituição. Esses movimentos introduzem um sentido

mais conceitual e não meramente empírico do termo instituição, que é pensada como

produto da sociedade instituinte em tal momento de sua história ou como a forma

geral de relações sociais que se estabelecem em uma determinada sociedade.

Segundo Castoriadis (1982, p. 141),

Uma sociedade só pode existir se uma série de funções são constantemente preenchidas [...], mas ela não se reduz só a isso, nem suas maneiras de encarar seus problemas são ditadas uma vez por todas por sua ‘natureza’; ela inventa e define para si mesma tanto novas maneiras de responder às suas necessidades, como novas necessidades.

A consideração que faz o autor nos leva à compreensão de que não há fundamentos

para o não questionamento dos instituídos. Dessa maneira, são infundadas as

respostas que muitos têm elaborado para justificar os seus não-fazeres. Isso quer

84

dizer que, diante das necessidades e “exigências” do contexto, tanto a sociedade,

quanto as suas instituições inventarão, definirão ou redefinirão novos modos de

organização, em resposta aos seus novos e velhos desafios ante às suas

necessidades.

Pensando especificamente na escola, esse entendimento nos remete à consideração

de que os próprios estabelecimentos escolares, que inscrevem inúmeras

determinações sobre a maneira de se transmitir conhecimentos, vinculam-se a uma

escolha geral e estrutural que aparece na história em um determinado momento. Ou

seja, sua constituição não pode ser pensada como atemporal e com caráter de

imutabilidade.

Instituição, nesse sentido, aparece “[...] como algo imediatamente problemático, como

algo não localizável” (RODRIGUES; SOUZA, 1987, p. 23). Nessa concepção, certas

práticas são tomadas como universais e instrumentam algumas hipóteses de base

que precisam, em primeiro lugar, “[...] ser interrogadas quanto às condições históricas

de sua produção e reprodução” (p. 24).

De acordo com Castoriadis (1982), a instituição é uma rede simbólica, socialmente

sancionada, em que há a combinação tanto em proporções, quanto em relações

variáveis, componentes funcionais e componentes imaginários.

Em resumo, trabalhamos com a idéia de instituição que pode ser enunciada, de

acordo com Lourau (apud BARBIER, 1985, p. 135), como:

1º- o momento da universalidade. O seu conteúdo é a ideologia, os sistemas de normas, os valores estabelecidos (instituído);

2º- o momento da particularidade. Constituído pelo conjunto de determinações materiais e sociais que vêm negar a universalidade imaginária do primeiro momento (instituinte);

3º- o momento da singularidade. O seu conteúdo são as formas organizacionais, que são necessárias para atingir dado objetivo, ou dada finalidade (institucionalização).

Barbier (1985) conclui, então, que a instituição é a matriz essencial do sistema dos

habitus das pessoas e dos grupos sociais de determinada sociedade, sendo, então:

A célula simbólica, matriz dos habitus, com uma dinâmica dialética instituída e instituinte, com uma estrutura oculta e ocultante,

85

inscrita na temporalidade e socialmente sancionada, que busca o controle da historicidade agindo de uma maneira funcional e imaginária, instaurada pelas relações sociais forçosamente conflitantes, provenientes da atividade transformadora dos grupos humanos [...], da sua produção desejante [...], e do seu duplo imaginário social [...] (BARBIER, 1985, 156).

B) A auto-análise e a autogestão

Dentro desse referencial, o conceito de auto-análise no trabalho com grupos

relaciona-se com a idéia de que esta consiste em prática que incita um determinado

grupo ou comunidade constituída a serem protagonistas de seus problemas, de suas

necessidades, de suas demandas, para que possam enunciar, compreender e adquirir

condições próprias que lhes permitam saber mais sobre si. Desse modo, não é

necessário que alguém, especialmente de fora ou de cima, venha para dizer-lhes

quem são, de que necessitam e o que devem pedir ou fazer.

Segundo Baremblitt (1992), a auto-análise é simultânea ao processo de autogestão,

em que a comunidade, nesse caso a escolar-docente, se articula, se institucionaliza,

se organiza para construir os dispositivos necessários para produzir, ela mesma, ou

para conseguir os recursos de que precisa para o melhoramento de suas práticas, de

seus cotidianos, criando, assim, condições cada vez mais autônomas de gestão.

Nesse sentido, a prática da autogestão começa a ser construída.

De acordo com Lobrot (apud BARBIER, 1985, p. 229), “[...] a autogestão de um grupo

de formação só será realizada de fato quando o sistema de pertencimento institucional

desse grupo também for autogerido, isto é, quando a autogestão se estender ao

conjunto das relações sociais”.

A autogestão pedagógica e a auto-análise, mesmo sendo processos diferenciados, se

constituem em processos simultâneos e articulados na produção de saberes, no

conhecimento dos problemas, das necessidades, demandas e de recursos para a

transformação da situação analisada (BAREMBLIT, 1992).

Ressaltamos que, na busca da prática da auto-análise e da autogestão, a construção

de grupos de discussão não deve ser somente entre si, mas, em alguns momentos, a

86

colaboração dos experts 24 se constitui em uma necessidade, pois eles, sem dúvida,

“[...] com sua disciplina, seus instrumentos, têm acumulada uma grande quantidade

de saber importante e não inteiramente alienado não necessariamente distorcido”

(BAREMBLIT, 1992, p. 18).

Acreditamos que essa colaboração se deu fundamentalmente pela nossa presença

como pesquisadora que, ao optar pelo dispositivo do Grupo de Diagnóstico, 25 este

permitiu que os próprios profissionais enunciassem seus problemas e suas

necessidades, ao mesmo tempo em que, como propósito do próprio Grupo de

Diagnóstico, desencadeou-se o processo de formação em profundidade.

Sobre os processos de intervenção individual, grupal e institucional, Baremblit (1984,

p. 99) toma especialmente a análise grupal, apontando suas conclusões acerca de um

trabalho crítico-produtivo, elencando-as assim:

a) Toda análise deve incluir a dimensão institucional do grupo, tanto a partir da perspectiva do instituído como a partir da do instituinte; b) Todo o grupo deve ser abordado a partir da abertura e da heterogeneidade, e não como uma estrutura homogênea e totalizadora; c) Não nos importa o grupo como totalização, interessa-nos como espaço tático onde se vê a produção de efeitos singulares, insólitos e criativos; d) A alternativa no grupo não deve ser vista entre o todo e as partes, e sim entre a produção, por um lado, e a repetição ou estereotipia, por outro; e) No grupo, o terapêutico consiste em buscar os pontos de encontro, as encruzilhadas, as linhas de contradição entre o prazer e o trabalho, entre o desejo e a produção; f) O trabalho grupal inclui sempre uma análise política, uma análise de classe e uma elucidação da fantasmática inconsciente; g) Não há prazer no grupo fora do processo de trabalho. Igualmente, não há produção que não inclua a prática de uma análise da vida cotidiana, o chamado âmbito das relações afetivas e pessoais;

24 Segundo Baremblit, os experts são os profissionais conhecedores da estrutura e do processo da sociedade em si. Eles pertencem aos vários ramos produtivos, primários, secundários e terciários. Sobre os problemas de educação, psicológicos e subjetivos, em geral, supõe-se que sejam decididos por esses experts. Dentro da proposta de estudo e pesquisa, designamos aqui a pesquisadora como intelectual e expert, a colaborar nos processos de auto-análise e autogestão dos grupos pesquisados. 25 Processo de formação do tipo dinâmica de grupo, que trata essencialmente de uma experiência vivida por todo o grupo, discutida em comum, sob orientação de um monitor (formador, pesquisador). É, portanto, uma invenção pedagógica, que consiste em formar um grupo que, sendo sujeito e objeto de experiência, cada um se forma e aprende no conjunto do processo.

87

h) Toda crise grupal, toda comoção institucional, deve ser tomada como analisador, como dado revelador de uma certa verdade do grupo.

A opção por um trabalho que toma os grupos como instância que faz efervescer suas

verdades, observando as dimensões do inconsciente, não num sentido de absoluta

terapeutização, mas que a considera, se justificou por si só, como condicionante

essencial em nossa proposta de trabalho.

Não menos importante é considerar este trabalho sob a ótica da análise política, de

classe e da vida cotidiana, nas imbricadas relações afetivas e pessoais, que tanto nos

interessam, sobretudo ao levar em conta que, dentro de cada professor/profissional,

há uma pessoa.

Aragão (1992), partindo da Análise Institucional em uma escola da rede pública de

Vitória, utiliza-se do grupo como dispositivo de análise das instituições que perpassam

o espaço escolar, tentando desvelar práticas instituídas e instaurando novas outras

formas de instituir. Segundo a autora, foram criados “[...] dispositivos que permitiram o

aflorar de movimentos instituintes, travando uma luta permanente de compromisso

com a vida, com a superação do estagnado” (p.120).

Aragão relata ainda que, durante sua pesquisa, em função de tudo que viveu, de

todos os vínculos estabelecidos, de suas implicações política, ideológica e afetiva com

o trabalho, pôde aprender sobre:

a) o dia-a-dia de uma escola pública;

b) a problemática teórico-técnica das intervenções socioanalíticas;

c) a vivência do dia-a-dia de um estabelecimento como dispositivo possível

numa intervenção socioanalítica;

d) a necessidade de efetivação de novos modelos de pesquisas educativas e

alguns limites do discurso acadêmico.

Reiteramos que o que apreendemos em falas e também em registros pela

comunidade docente, acerca do processo de gestão da aprendizagem para todos na

escola, tanto de nosso envolvimento profissional com essa instituição, como durante o

88

processo de pesquisa, era algo que precisava ser enunciado, compreendido, pois os

profissionais necessitavam saber mais, para que, no lugar do instituído, emergissem

outros saberes.

A escola, como está constituída e instituída em todos os seus processos, traz, no seu

bojo e no âmago de seus objetivos, os interesses hegemônicos de uma determinada

sociedade, que pensa o homem nas dimensões da competitividade, da possibilidade

de ser “útil” à sociedade, preservando ainda o seu papel na reprodução social. Essas

são, entre outras, algumas contribuições que muitos experts, intelectuais e

especialistas do passado legaram à escola de hoje, como num círculo vicioso, que vai

desde a formação profissional até a formação das novas gerações.

Analisar esta instituição, a escola, sob a ótica de sua constituição e essencialmente

sobre suas práticas pedagógicas até então instituídas pareceu-nos um dos caminhos

para a construção de uma nova proposta educacional, pelo menos no que diz respeito

à escola a ser pesquisada.

A possibilidade que tínhamos de constituir profissionais/integrantes da pesquisa para

serem seus próprios analistas, permitindo, inclusive, a possibilidade de essas pessoas

fazerem a nova pesquisa-ação, foi tomada por nós como um importante eixo de

trabalho.

Segundo Boumad (apud LAPASSADE, 2005), esses profissionais da prática se

tornam pesquisadores e a conduzem desde dentro, afirmando, assim, que eles fazem

a análise interna. As intervenções, de caráter individual ou grupal, tenderão, portanto,

a potencializar esses profissionais a serem analistas de seus contextos e

estabelecimentos escolares, promovendo a autogestão pedagógica.

Acreditamos que, pela adaptação das intervenções socioanalíticas francesas,

pudemos, com o aporte teórico da AI, utilizá-las na realidade pesquisada.

C) Implicação: conceito e análise

Alguns questionamentos feitos por Lourau (1998), acerca da implicação ou não

implicação, nos parecem extremamente interessantes e por essa razão os traremos

aqui:

89

• Em que momento o observador está implicado e em qual não está?

• O “rigor” inegável das observações “fechadas” e em seguida

matematicamente “tratadas” tem uma relação evidente com o conhecimento do

outro – e de si mesmo?

• A “referência” de uma pesquisa é puramente conceitual?

• Uma pesquisa não contém referências da vida pregressa e atual do

pesquisador?

A temática é instigante e, apesar de várias discussões em torno dela, ainda persiste a

“incerteza” por parte de alguns, quanto à cientificidade e rigor nas análises e nas

“descobertas” realizadas por pesquisadores implicados ou “superimplicados” com o

campo ou com a instituição, nos quais realizam seus estudos e investigações.

Lourau (apud ALTOÉ, 2004), inspirado em um modelo construído por Henri Lefebvre,

em Sociolingüística, nos apresenta alguns níveis da implicação, dentre os quais

tomamos dois, por evidenciarem um pouco a forma como nos vimos implicada em

nosso processo de pesquisa:

• implicação paradigmática: é aquela que é mediatizada pelo saber e pelo não-

saber sobre o que é possível e sobre o que não é possível fazer e pensar;

• implicação simbólica: é a que determina o lugar onde todos os materiais graças

aos quais se articula a sociabilidade. Esse lugar revela, ao mesmo tempo, sua

função, entre outras coisas, como a própria sociabilidade, o laço social, o fato

de vivermos juntos, de nos compreendermos e de nos confrontarmos.

Nessas condições, considerando esses dois níveis da implicação, encontramos em

Lourau (1998) a apresentação da multirreferencialidade, tal como ocorre na análise da

implicação. Segundo ele, ela aparece como “[...] a única possibilidade de “trabalhar”,

do interior, a instituição científica e cultural (e educativa), a fim de transformá-la

radicalmente [...]” (p. 115).

O trabalho de análise, a partir do olhar multirreferencial, constitui, desse modo, uma

aprendizagem do indeterminado que, de acordo com Lourau (1998) começa (e nunca

termina) com a análise de nossa implicação.

90

• A medida de nossa implicação

Por considerar impossível a ausência de um registro acerca de nossas implicações

nesta pesquisa, visto ser uma questão fundamental no ensino e na pesquisa,

reportamo-nos a algumas situações/vivências, que consideramos relevantes e

imprescindíveis de serem citadas, dos percursos de nossa vida profissional.

Essas situações/vivências, num primeiro plano, se constituíram como impulsoras à

nossa pesquisa, especialmente no tocante à opção teórico-metodológica. Num

segundo plano, consideramos a experiência vivida na Rede Municipal de Ensino de

Vitória, que nos permitiu e ainda permite um “ouvir” e um “conhecer” mais de perto as

realidades nas quais se configuram os processos de inclusão de crianças e

adolescentes com necessidades educacionais especiais.

De acordo com Barbier (1985), a implicação no campo das ciências humanas, é

definida como:

O engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis científica, em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passada e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sociopolítico em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento (BARBIER, 1985, p. 120).

É admitindo a condição de implicada, assim como todos os atores sociais com os

quais lidamos em nossa prática profissional, que nos colocamos e nos desvelamos

nesse processo de pesquisa, visto abrigarmos em nossa existência uma história que,

confrontada com nosso projeto sociopolítico atual, veio se configurando e se

desenrolando integralmente diante das escolhas realizadas por nós.

Coimbra (1995) diz que a Análise Institucional, em oposição ao intelectual neutro-

positivista, vai nos falar do intelectual implicado e o define como:

[...] aquele que analisa as implicações de suas pertenças e referências institucionais, analisando também o lugar que ocupa na divisão social do trabalho, da qual é um legitimador. Portanto, analisa-se o lugar que se ocupa nas relações sociais em geral e não apenas no âmbito da intervenção que está sendo realizada; os diferentes lugares que se ocupa no cotidiano e em outros locais da vida profissional; em suma, na história (COIMBRA, 1995, p. 66).

91

Assim, acreditamos que nossas escolhas são tangenciadas, e aí já se delineia uma

situação de implicação, por posições passadas em nossas relações de produção e de

classe. Como exemplo, evocamos que, quando no exercício das funções de

professora, coordenadora pedagógica e diretora em escolas, de Educação Infantil ao

Ensino Médio, trazíamos permanentemente conosco a preocupação e a

responsabilidade de uma prática engajada e coerente.

Salientamos que, em boa parte desse período, estivemos no exercício concomitante

dessas funções, sendo possível nos nutrir cotidianamente dos discursos e orientações

de natureza mais teórica e administrativa (funções de pedagoga e direção) e da

prática, propriamente dita, da sala de aula.

Como professora, atuávamos efetivamente a partir das inúmeras possibilidades de

ação pedagógica em favor da aprendizagem e do desenvolvimento de todos os

alunos, considerando as diferenças muito mais pelas necessidades pedagógicas delas

advindas.

Essas experiências eram embasadas em grande medida em experiências de

formação continuada no lócus da escola, e em tentativas pedagógicas que, sem medo

de errar, evidenciavam mais acertos do que fracassos. Isso nos convidava à

persistência de fazer da reflexão-ação-crítica uma prática permanente.

Toda essa trajetória parece nos conduzir a elementos fundamentais de nossa

proposta de investigação e análise, como o campo de pesquisa escolhido, o problema,

os sujeitos, o referencial teórico e a metodologia, tomados como possibilidades de

concretização de desejos e sonhos, considerando o que diz Barbier (1985, p.106): “[...]

o contexto do pesquisador, sua formação, seus grupos de referência, os gostos

intelectuais do momento desempenham um papel decisivo”.

Assim, acreditamos que nossos sonhos e desejos não nos colocaram num lugar de

sonhadora e fanática. De acordo com Barbier (1985), pela rigidez da tradição científica

e dos objetos de estudo tidos como “científicos” e afiançados pela comunidade

acadêmica, isso poderia acontecer.

92

Ao contrário, pensamos que os profissionais nos consideraram muito mais uma

parceira lúcida, com quem se dispunham a partilhar os sonhos da construção de um

projeto educativo que contemplasse a todos indistintamente.

Nesse sentido, nossas implicações evidenciaram os pontos de convergência e

divergência no agir pedagógico da escola e, no decorrer de uma pesquisa desta

natureza, esses pontos vieram à tona. Assim, na condição de pesquisadora,

observadora e analista, nos defrontamos com a “exigência” ou a “necessidade” de

exercermos nossa “ação/responsabilidade/competência” profissional, porém, em

outros momentos, fomos “responsabilizada” por esta ou aquela situação desvelada e

analisada, que o cotidiano escolar suscitou.

É salutar considerar as nossas implicações, tanto individual quanto coletiva,

observando que, em Análise Institucional, a implicação estaria nas formas, nos modos

que os indivíduos se vinculam às várias instituições.

Segundo Lourau (1993, p. 14), a análise de nossas implicações seria a análise dos

“lugares” que ocupamos, ativamente, neste mundo, ou seja, considerar esses lugares,

tanto os de outrora, como os de hoje, é se dispor e se submeter permanentemente à

análise das implicações que possam decorrer desse histórico-existencial, assim como

da implicação estrutural-profissional de que fala Barbier (1985).

Como pesquisadora ou não, somos nós, de forma categórica e instituída, que

assumimos determinadas e importantes responsabilidades perante esta instituição

(estabelecimento e/ou dispositivos).

Assim como o contexto do pesquisador, sua formação, seus grupos de referência, os

gostos intelectuais do momento desempenham um papel decisivo, conforme pontua

Barbier (1985), nos colocamos na condição de interrogadora de nossa implicação

histórico-existencial, ao darmos conta de que, seja investigando, analisando, fazendo

emergir os não-ditos em provocações instituintes, fazemos aquilo que Max Pagés, no

envolvimento de seus projetos, relata:

Cada vez mais [...], tornam-se para mim um acontecimento ligado à minha própria vida, à minha história, onde a minha existência está em jogo e onde trabalho o mais profundamente possível os meus problemas (apud BARBIER, 1985, p. 111).

93

Estar implicada, ou seja, realizar ou aceitar a análise de nossas próprias implicações

é, ao fim de tudo, admitir que estamos objetivada por aquilo que pretendemos

objetivar, no campo das idéias, dos grupos, dos acontecimentos, enfim, daquilo que

nos propomos realizar.

Intervindo ou analisando, fomos co-partícipes de todos os processos instituintes. A

análise de nossas implicações, no campo de pesquisa, foi feita também pelo grupo

(como dispositivo/instituição), uma vez nos considerarmos como pesquisadora

coletiva, acreditando no que diz Barbier (1985, p.126), que “O direito de todos a essa

análise deve ser reconhecido na ação a fim de denunciar a pseudo-objetividade do

erudito em ciências humanas que, indiferente ao trabalho dos outros, entra na sua

torre de marfim”.

Com Ardoino (apud BARBIER, 1985), compartilhamos dessa possibilidade de, como

pesquisadora, podermos construir juntos e intervir a partir de demandas desveladas,

descobertas ou mesmo “produzidas” no coletivo, nos processos latentes ou

manifestos das instituições (sejam quais forem elas). O autor assim escreve:

A indiferença com que cada um considera o trabalho do outro é chocante num mundo onde o pesquisador, o especialista ou o escritor deveriam estar junto com o homem de ação, ou seja, com o militante. Pois uma reforma não pode ser promovida apenas de fora, no patamar das superestruturas e dos decretos institucionais, se não for também feita de dentro, pelas aspirações daqueles que afinal vão efetuá-las (apud BARBIER, 1985, p.126).

94

5 CAMINHO INVESTIGATIVO: CONTEXTUALIZANDO NOSSAS ESCOLHAS

Na informalidade dos diálogos que se travam no cotidiano da escola, um importante

desafio se insurge quando se fala em gestão da aprendizagem, levando-se em conta

as diferenças e a diversidade presentes no alunado.

Considerando que o que se apreende nesses diálogos representa muito mais do que

simplesmente a expressão da dificuldade rotineira e cotidiana no agir docente de

professores, assumimos o desafio de propor ao grupo pesquisado trilhar conosco um

processo de investigação e análises de suas práticas, tomando, sobretudo, seus

saberes-fazeres, em suas ações instituídas e instituintes no contexto da escola.

A construção conjunta de possíveis respostas às dificuldades e desafios, na gestão da

aprendizagem para todos os alunos, pareceu encantar os profissionais da escola,

revelando-se desde já vontade e disposição em integrar um grupo de análise e

discussões que, mais adiante, neste texto, explicitaremos melhor.

Nesse processo de discussão, nossa função, como pesquisadora, seria a de estar

muito mais como mediadora e catalisadora do que como formadora, ou seja, não

estaríamos como aquela que aponta o que é certo ou errado.

Acreditamos que esse processo relacional entre pesquisadora e sujeitos da pesquisa

(aqui considerando os profissionais), deve levar em conta, como nos diz Jesus (2002,

p. 19), “[...] os educadores com suas dificuldades, resistências e avanços”.

Tal atitude, considerada pela autora, converge plenamente com o que desejamos e

vimos realizando no nosso fazer cotidiano como profissional e, nesse sentido,

conforme o leitor vá caminhando conosco em nossas reflexões, perceberá o reflexo

dessa profissional pesquisadora, pelas dinâmicas utilizadas, pela forma que

escrevemos e analisamos ou pelas “leituras” que realizamos em nosso processo de

investigação.

Assim, o desenho que traçamos acerca de nossa metodologia é a expressão do que

esta nos possibilitou, pois os aportes teórico-metodológicos com os quais

trabalhamos, especialmente a pesquisa-ação institucional em Barbier (1985), situam o

investigador como aquele sujeito que está “vivo”, que sente, se ressente e intervém,

95

sem nenhum temor. Desse modo, foi possível “ultrapassarmos”, em vários momentos

de nossa investigação, os limites de distância do objeto estudado.

Assinalamos que o percurso teórico metodológico escolhido por nós foi o que nos

permitiu livre expressão de nossos sujeitos em estudo e foi também o que nos deu

condições de considerar plausíveis suas solicitações de intervenção-ação, assim

como nos deu liberdade de assumir nossa dupla condição, ou seja, a de profissional e

a de pesquisadora de nossa prática.

Ressaltamos que os desafios e “impossibilidades” que o grupo de profissionais da

escola pesquisada apontavam eram por nós conhecidos, em função de nossa atuação

profissional, anterior e durante o processo de investigação, e que, nesse processo,

éramos, de certa forma, participante. 26 Foi assim, e deste lugar, que nos constituímos

e transitamos, cotidianamente, como profissional e pesquisadora simultaneamente.

Como pesquisadora de nossa própria prática coletiva, uma interrogação nos

perseguia: é possível assumir, concomitantemente, o duplo papel de pesquisadora e

profissional em um processo de investigação? Como percorrer esse caminho sem

perder o rigor científico “exigido” em um trabalho como este?

No entanto, sem nos deixar sucumbir ante as barreiras epistemológicas e acreditando

na possibilidade de assim nos constituirmos, consideramos, além da proposta de

pesquisa-ação, assumindo-a, como nos diz Barbier, como um modelo aberto de

pesquisa-ação, a centralidade do que dispõe o conceito de multirreferencialidade,

segundo Jacques Ardoino (1998).

De acordo com Barbosa (1998), a contribuição dada aos pesquisadores pela

multirreferencialidade, como método de análise e de leitura aplicado a situações

relacionais, decorre por essa ser uma “[...] abordagem não fechada em si, mas aberta

à complexidade da realidade e à interioridade significante do sujeito observador”

(BARBOSA, 1998, p. 11).

Sendo a realidade escolar uma realidade complexa, em seus fenômenos e ações,

acreditamos haver coerência na utilização do conceito de multirreferencialidade.

26 Dizemos que é de certa forma, pois nossa relação profissional com a escola estava circunscrita ao trabalho de assessoria quanto às questões relacionadas com a Educação Especial. Sendo assim, nossas visitas aconteciam ora semanais, ora quinzenais.

96

Apreciamos, também, conforme diz Menenguci (2005), a complexidade, de maneira

que seja possível a busca por abordagens teórico-metodológicas que permitam

expressar complexidades.

Constatar a complexidade não basta, uma vez que já sabemos dela e/ou convivemos

com ela. O importante, sobretudo a nós, pesquisadores, é como faremos para

mergulhar.

De acordo com Mello (2003, p. 83),

É necessário pôr em discussão metodologias e teorias do cotidiano num movimento coerente de superar dualidades características da ciência moderna, como teoria-prática, e forma-conteúdo. Construir a ciência do complexo, do fluido, do irrepetível, do incerto, do diferente, vem sendo um desafio para todos os que crêem que historicamente, e a partir dos parâmetros da ciência moderna, as formas com aprendemos a pensar, para pensar, excluem.

Nesse sentido, o desejo de superar os métodos de pesquisa próprios das diferentes

ciências, e que não raro são adotados com fidelidade nas pesquisas em educação,

assim como superar o “beco sem saída” do ecletismo ou da descrição simplificada da

prática educativa, como pontua Barbosa (1998), nos fez empreender um caminhar e

um olhar numa direção multirreferencial, que a nós significou a possibilidade de

apreender e analisar a complexidade do ato educativo, levando em conta tanto a

dimensão prática, quanto a teórica, no agir dos profissionais pesquisados.

Lembramos ao leitor que, para assegurar a ruptura epistemológica necessária na

relação entre sujeito observador e objeto observado, nos ancoramos tanto nos

pressupostos da pesquisa-ação institucional quanto nos da abordagem

multirreferencial, como principais suportes teóricos de nossa escolha metodológica.

A ruptura a qual nos referimos acima se deu não na perspectiva de nossa negação

como observadora, mas na perspectiva do reconhecimento de nossa implicação com

o objeto “desvendado”.

A pluralidade de olhares e de esclarecimentos que supõe, por sua vez, diferentes

linguagens descritivas e interpretativas nos é dada pela abordagem multirreferencial.

Esta, segundo Barbosa (1998), representa um esforço de se pensar a educação de

97

forma a quebrar o imobilismo teórico na direção da autonomia pessoal e social dos

envolvidos em um processo de investigação.

5.1 ANÁLISE INTERNA E NOVA PESQUISA-AÇÃO

Tendo em vista que a centralidade de nosso estudo foi um grupo de educadores, e

isso nos remete à microssociologia, trazemos de Blackledge e Hunt (1985, apud

LAPASSADE, 2005, p. 23), alguns princípios básicos da microssociologia

interacionista, dentre os quais destacaremos dois, por evidenciarem pertinência com

as questões por nós investigadas: O levar em conta as atividades cotidianas e as

interações.

O primeiro, considera o que os professores, os alunos e a equipe técnica fazem no

dia-a-dia, para assim compreendermos alguma coisa acerca de seus saberes-fazeres,

ou sobre a educação como um todo. O segundo, considera as interações de cada um

com os outros e, nesse processo de significação de nossas ações,

conseqüentemente, significaremos as ações daqueles que nos cercam.

Considerando a importância dos princípios acima, acreditamos que, pelo processo da

análise interna e da nova pesquisa-ação, as ações neles contidas poderiam vir a se

potencializar nos fazeres do grupo.

Sendo assim, verificamos que, a partir da década de 80, alguns debates na

Universidade de Paris VIII, sobre a descrição de uma prática social a partir de seu

interior, na abordagem “pesquisadores-práticos”, disparam reflexões sobre a análise

interna e o início da elaboração de uma metodologia que se aproximava da nova

pesquisa-ação inglesa, que tem em Carr e Kemmis grande sustentabilidade teórica.

A corrente autogestionária presente na Análise Institucional, por meio dos dispositivos

de grupos, é retomada pela idéia da análise interna, concebendo como desnecessário

o especialista, sendo este um eventual recurso para o grupo. Ao potencializar os

integrantes, participantes de uma pesquisa, que vivem cotidianamente seus conflitos,

tensões e desafios, especialmente no que diz respeito à gestão da aprendizagem e do

conhecimento na escola, que é aberta a todos, o trabalho com o grupo encontra

sentido no dispositivo da análise interna, quando este acena para a possibilidade de

98

transformar os atores do contexto analisado/pesquisado em socioanalistas na prática

e no cotidiano.

A idéia de tomar o especialista como eventual recurso, considerando-o até como

desnecessário, chama-nos a atenção para que este especialista, o pesquisador, não

seja visto como o detentor de saberes e práticas, centrando nele as soluções, mas sim

como aquele que é mediador de discussões, e que se oferece como um elemento

facilitador entre os desafios postos e desvelados.

A capacidade de analisar e de se constituir como autogestores de suas práticas

pedagógicas não pode estar atrelada à presença constante de especialistas, de

detentores de um certo saber, e não exclui, necessariamente, em alguns momentos, a

colaboração desses especialistas (entendido aqui o pesquisador).

Importante também é considerar que as questões aqui colocadas, em relação aos

desafios da inclusão escolar, assim como os movimentos instituintes de

ressignificação e transformação de práticas educativas, em favor dessa inclusão,

constituem-se em determinantes reais e favoráveis de construção coletiva da

capacidade de análise e autogestão escolar.

Hoje, parece que não é mais necessário esperar momentos históricos extraordinários para constatar a capacidade coletiva de analisar o social que está sendo constituído. Tampouco é preciso esperar o apocalipse de um instituinte excepcional, para observar a atividade instituinte que também existe, e para começar, na vida ordinária (LAPASSADE, 2005, p. 59).

Os procedimentos analíticos que realizamos nesta pesquisa convergiram para a

potencialização/formação desse profissional que, a despeito da presença do

pesquisador/analisador, continuará desenvolvendo suas funções na escola.

A Análise Institucional, preocupada essencialmente ─ pois é a base de seu paradigma

─ com a relação entre o instituído e o instituinte, traz, de acordo com Lapassade

(2005, p. 66), “[...] um novo e importante esclarecimento quando evidencia uma

dimensão institucional escondida, mas presente, na situação analisada”.

Sendo assim, a “nova pesquisa-ação” de que fala Lapassade pareceu-nos uma via de

continuidade dos processos analíticos que vivenciamos por meio da abordagem

institucional na escola.

99

Como analisadores internos de seu estabelecimento escolar e de suas práticas na

sala de aula, os profissionais acabam por deixar de ser apenas professor/professora

de uma determinada classe e passam a ser pesquisadores de sua própria prática.

Sobre o conceito de prática, Lapassade (2005) traz de Carr e Kemmis aquela prática

que designa uma ação informada e implicada. Segundo ele, os autores Carr e Kemmis

(1983) tomam a noção de práxis 27 como algo que é preciso compreender dentro de

seu contexto histórico e que é uma ação informada por uma “teoria prática” e que, por

sua vez, informa e transforma essa teoria numa relação dialética. Nesse sentido,

práxis designa ações associadas a estratégias, em resposta a um problema levantado

concretamente, em situações nas quais o autor está envolvido. De acordo com

Lapassade (2005, p. 106):

O conhecimento, assim adquirido, está em constante relação dialética com a prática. Ele é processo cooperativo ou coletivo de reconstrução interna de um grupo de pesquisadores praticantes. O ponto crucial é que somente o prático pode ter acesso às perspectivas que informam uma ação particular enquanto práxis e, conseqüentemente, a práxis pode ser estudada apenas pelo próprio ator social.

A relação lógica e fundamental nos preceitos da Análise Institucional, análise interna e

pesquisa-ação institucional, associada à possibilidade do “olhar” plural da abordagem

multirreferencial, significou, para nós e para o grupo, uma lógica que compreende que

os problemas práticos e/ou fenômenos educacionais (neste caso, os processos de

inclusão e gestão da aprendizagem na diversidade) são problemas/questões cuja

“solução”e/ou compreensão, poderão ser encontrados, a partir do desejo e vontade de

fazer mais e melhor.

O trabalho educativo que prima pela inovação e pela busca de novos significados e

compreensão para os reais sentidos de ensinar, de aprender e para as relações que

há entre o desenvolvimento e a aprendizagem, se inscreve como um trabalho que se

efetiva para a qualidade do ensino como um todo. Desse modo, as pessoas que

empreendem o trabalho educativo revêem seus papéis, suas posturas e práticas para

todos os alunos da escola e não somente para os alunos com deficiência.

27 Segundo Lapassade (2005), a noção que Carr e Kemmis (1983) utilizam para práxis é em referência à noção marxiana tal qual é elaborada por J. Habermas, referência teórica fundamental para esses autores.

100

Essa perspectiva se amplia para uma educação total e global, que acredita não haver

saberes especializados, metodologias e práticas diferentes (e sim diversificadas),

muito menos em fórmulas especiais, que dêem conta de educar o diferente.

Seguramente, essas práticas decorrem de uma formação continuada do professor e

da crença numa instituição que pensa a si própria e no sentido de sua existência.

• Nova pesquisa-ação e a pesquisa-ação institucional

A nova pesquisa-ação de Lapassade (2005) se apresenta de forma complementar à

pesquisa ação institucional de Barbier (1985), pois é uma proposta metodológica que

intenta, de maneira explícita, promover mudanças necessárias e desejadas nos

contextos estudados e pesquisados, considerando, essencialmente, a prática.

Nessa intenção e promoção de mudanças, está contida um dos principais objetivos da

pesquisa-ação institucional, que é o questionamento fundamental das estruturas

sociais estabelecidas.

Por meio da análise de suas práticas, os atores sociais, considerando aqui os

professores, tornam-se pesquisadores práticos. Lapassade, especificando sua

intenção, baseado em Carr e Kemmis, anuncia que o sentido da prática só pode ser

estabelecido no seu contexto prático em que:

Somente o prático tem acesso às implicações e às teorias práticas que informam a (sua) práxis; só o prático pode estudar a (sua) práxis. A pesquisa-ação, enquanto ciência da práxis, será então uma pesquisa interna na prática singular do praticante (CARR; KEMMIS, 1986, apud LAPASSADE, 2005, p. 106-107).

É importante ressaltar que, na “nova pesquisa-ação”, ao contrário da pesquisa-ação

clássica, são os profissionais da prática que se tornam pesquisadores e conduzem

sua pesquisa desde dentro, fazendo assim, a análise interna de sua prática

(BOUMARD, 1989, apud, LAPASSADE, 2005, p. 105). Sobre a pesquisa-ação

institucional, Barbier (1985, p. 156), diz ser esta:

Um tipo particular de pesquisa-ação cujo objeto refere-se ao campo institucional no qual gravita o grupo em questão. Trata-se de desconstruir, através de um método analítico, a rede de significações das quais a instituição é portadora enquanto célula simbólica

101

Pressupõe-se, pela pesquisa-ação institucional, uma abordagem voltada para os

fatores psíquicos e emocionais, com a finalidade de captar os fenômenos

psicossociais presentes no grupo e na instituição. Portanto, caracteriza-se por se

constituir numa abordagem bem mais sociopolítica. Considerando esses fatores num

processo de pesquisa-ação institucional, Ardoino diz:

É a consideração das estruturas de organização social [...], e a análise das linhas de força do campo institucional que vão mostrar as novas formas, cada vez mais epifenomênicas, das relações humanas e do jogo intersubjetivo [...] (ARDOINO, apud BARBIER, 1985, p. 165).

Barbier (1985) apresenta-nos alguns princípios da pesquisa-ação institucional, dentre

os quais destacamos:

a) a pesquisa-ação institucional tem por objeto o conhecimento preciso e

esclarecido da práxis institucional do grupo, dando a possibilidade de

saber mais e de poder agir melhor sobre a realidade;

b) uma relação dialética entre o grupo (pesquisador coletivo) e o objeto de

sua pesquisa é necessária, assim como o esclarecimento da sua rede de

implicações;

c) a pesquisa está subordinada à práxis do grupo, pesquisador coletivo na

instituição;

d) o material simbólico ou prático, tal como os fenômenos marginais

(geralmente rejeitados pela academia positivista) é considerado de modo

privilegiado na pesquisa-ação institucional.

Registramos que o processo de pesquisa-ação institucional, assim como a idéia da

nova pesquisa-ação, permitiu-nos refletir sobre os currículos praticados e vivenciados

com e pelos alunos com NEE, assim como agir conjuntamente com os profissionais da

escola na ressiginificação de práticas educativas para um maior e melhor

desenvolvimento desses alunos.

Metodologicamente, a pesquisa-ação é a que mais favorece tais ações e/ou atitudes

e, particularmente, no meio educativo, esta deverá satisfazer às seguintes exigências,

segundo Carr e Kemmis (1986, apud LAPASSADE, 2005, p. 107):

102

a) romper com as concepções positivistas da “racionalidade”, da

“objetividade” e da “verdade”;

b) empregar as categorias interpretativas dos docentes e de outros

participantes do processo educativo;

c) procurar os meios de distinguir as idéias e as interpretações que são

sistematicamente deformadas pela ideologia das que não os são;

mostrar como a distorção de suas próprias idéias pode ser superada;

d) esforçar-se por identificar o que, na ordem social existente, bloqueia a

mudança racional e seja capaz de propor interpretações teóricas das

situações que permitam os participantes do processo educativo

superarem tais bloqueios;

e) fundamentar-se no reconhecimento explícito de que ela é prática, e a

questão de sua verdade será resolvida pela prática.

• O cenário de investigação: procurando desvelar o contexto

No ano anterior a esta pesquisa, fomos convidada a estar com esse mesmo grupo,

com o qual realizamos esse processo de investigação, exceto dois ou três

profissionais, para que discutíssemos com eles acerca da temática: “Escola inclusiva:

desafios e possibilidades”. 28

Durante três encontros de uma hora e meia cada um, realizamos uma tentativa de

desvendamento de quais eram na realidade os desafios que se insurgiam em suas

tarefas de ensinar na diversidade. Entre discussões, dúvidas e “certezas” iniciais,

propusemos ao grupo o estudo de um texto de Isabel Alarcão (2003) que versa sobre

a escola e o professor reflexivos, como possibilidade de antecipar-lhes as ferramentas

necessárias para a busca e a efetivação de novas práticas educativas, mediante uma

“leitura” reflexiva de suas práticas.

Após as primeiras discussões, sistematizamos, por meio de questionários semi-

abertos, as respostas do grupo. As questões tinham relação com os saberes-fazeres

instituídos e os “necessários” a fim de assegurar o ensino de qualidade a todos os

alunos da escola, inclusive aos alunos com necessidades educacionais especiais. As

28 Esses encontros foram realizados por ocasião da reestruturação do Projeto-Político-Pedagógico da escola.

103

respostas do referido questionário foram apresentadas em slides, para as discussões

finais.

Numa análise geral acerca do que trouxeram os profissionais, consideramos que as

dificuldades e os desafios apontados por eles eram atribuídos, em grande medida, à

ausência de estudos e discussões na formação inicial sobre práticas pedagógicas que

levassem em conta a realidade educacional, tal como ela se constitui em seu

contexto, assim como a insuficiência e/ou incipiência dos programas de formação

continuada propostos pelo sistema de ensino.

Assim, tínhamos conosco que os professores não fazem, não porque não querem

fazer, mas porque não sabem, ou porque se vêem “impotentes e incompetentes” ante

a necessidade de ressignificarem os “saberes” recebidos ou aprendidos em sua

formação.

Posto isso, soma-se, ainda, que na visão de muitos professores, a estrutura

organizacional-pedagógica na qual a unidade escolar se vê submetida, não oferece

condições e/ou situações de autonomia para a construção de uma escola mais

inclusiva. Alegam, com isso, a ausência de maiores apoios, como os de estagiários,

recursos materiais, além de contarem com número elevado de alunos na sala de aula.

Percebemos, mesmo que tal consideração seja extremante pertinente, que ainda

perpassa a idéia de transferência de responsabilidades ou apontamento de culpados.

As resistências, nas circunstâncias e condições em que se deram, comunicaram-nos

algo que precisava ser esclarecido melhor, impulsionando-nos, inclusive, para o

presente estudo e investigação, pois essas resistências se configuravam, além das

explicitadas, da seguinte maneira:

primeiro: ou consideravam não serem detentores de saberes que lhes

possibilitassem investir no desenvolvimento de alunos com NEE incluídos na sala de

aula regular; segundo: ou imaginavam haver um especialismo no trabalho educativo

com eles. Assim, mantinham uma baixa expectativa de aprendizagem em relação a

esses sujeitos por conta de suas deficiências; terceiro: ou denunciavam que a escola,

em sua organização funcional-pedagógica, não favorece a real inclusão dessas

pessoas, impedindo-as de fazerem mais por esses alunos.

104

O que observamos, em última instância, era um processo contínuo de culpabilização e

transferência de responsabilidades pela maioria dos educadores.

Esses elementos, entretanto, foram tomados como aspectos fundamentais em nosso

processo de pesquisa para se descobrir, exatamente, junto a esses educadores, quais

dispositivos e propostas pedagógicas, em nível de sala de aula e da escola como um

todo, podiam melhor acolher e valorizar as diferenças, uma vez que acreditávamos ser

necessário ouvir e entender algumas lógicas do discurso da “impotência” dos

professores.

Esse caminho, na verdade, se constituiu em estratégia de potenciamento de seus

saberes-fazeres, como condição essencial de fazer emergir as possibilidades

“invisíveis”, presentes na ação, tanto do professor quanto do aluno, nos respectivos

processos de ensinar e aprender, ou vice-versa, considerando que nem sempre é

somente o professor que ensina.

Assim, descrevemos para o leitor o que já “conhecíamos” desse contexto, tendo,

então, pistas e indícios que nos convidavam a caminhar juntos, numa perspectiva

teórico-metodológica, que nos permitisse as trocas, os erros, as paradas, os retornos,

as continuidades e descontinuidades, entre outras condições naturais entre sujeitos

que se fazem e se refazem no coletivo.

• Processo de coleta de dados: alguns eixos orientadores

Embora tenhamos realizado nossa investigação, sem nos ater rigidamente em uma

determinada ordem espaço-temporal, pensamos ser importante apresentar

didaticamente alguns eixos que nos orientaram nesse processo de coleta de dados.

Antes, porém, queremos registrar que permanecemos na escola no período agosto de

2005 a abril de 2006.

Nesse contexto, nossa perspectiva de trabalho centrou-se no cotidiano da escola,

compreendendo todos os espaços-tempos oferecidos aos alunos, assim como os

dedicados aos profissionais, ou seja, reuniões administrativas, pedagógicas, grupos

de estudo, conselhos de classe, momentos informais (comemorações sociais,

105

descanso na sala de professores), etc. Os sujeitos envolvidos no estudo foram os

seguintes (Tabela 1):

Tabela 1 – Sujeitos da pesquisa e forma de envolvimento

TIPO DE ENVOLVIMENTO

NÚMERO

SUJEITOS

Somente por entrevistas

13

10 alunos (sem NEE)

3 pais

Somente por questionários

2

2 pais

Participação no Grupo de Diagnóstico e

r respondentes de questionários ou entrevistas

25

1 diretora

2 pedagogas

2 coordenadoras

de turno

18 professores

3 estagiários

Focos principais de análises e discussões (05

participantes por entrevista)

6

6 alunos (com NEE)

SUJEITOS ENVOLVIDOS NA PESQUISA

46

106

Sendo assim, teceremos algumas considerações acerca dos eixos que nos

conduziram neste processo, como anunciado, assim como também apresentaremos

os momentos nos quais estabelecemos nossa relação como pesquisadora.

Eixo 1: A consideração de uma professora que disse que se sentia muito à vontade

em ter sua prática “investigada” formalmente por esta pesquisadora, uma vez que ela

nos considerava como “de dentro”. Segundo ela, de nós receberia com mais

tranqüilidade qualquer observação, o que não seria a mesma coisa com uma pessoa

“estranha”. A condição de pessoa implicada emergia desde já. Era preciso, portanto,

considerar os pontos de positividade que essa condição nos legava.

Eixo 2: Uma situação expressa por um professor. Em sua visão, deveríamos

considerar como sujeitos da pesquisa não somente os alunos com NEE por

deficiência, mas todos os sujeitos que oferecessem qualquer tipo de desafio ao

trabalho pedagógico na escola. Segundo ele, as dificuldades da maioria dos

profissionais não estariam somente em lidar com as diferenças explicitadas pelas

deficiências, mas sob outras configurações, ou seja, eram desafiantes todos aqueles

que não se “encaixavam” naquilo que era esperado e pretendido para eles.

Eixo 3: A expectativa e a disposição das pessoas em fazer parte do processo de

investigação, expressando suas opiniões e desejos acerca da formatação de alguns

detalhes, principalmente na constituição do grupo de discussão.

Eixo 4: A organização na qual já se encontrava o grupo, em um processo, que

denominamos aqui de autoformação. 29 Pela forma como este nasceu, e por todos os

seus desdobramentos, esse processo veio a se constituir para nós em um dispositivo

“desvelador” dos desejos, dos sentimentos, das angústias, da vontade de mudar e dos

questionamentos endereçados às suas práticas, à instituição escola, ao sistema e à

sociedade, entre outros. Esses momentos foram significativos, pois nos trouxeram

algumas pistas e indícios para nossas análises posteriores acerca dos fazeres do

grupo, no trabalho pedagógico, diante do desafio de ensinar, considerando a

diversidade e a diferença do alunado.

29 Esse processo será analisado em um outro momento neste texto.

107

Eixo 5: A dinâmica escolhida por nós para trazer para o grupo de discussão e análise,

as crenças e as representações que tinham os profissionais sobre várias questões

relacionadas com a gestão da aprendizagem dos alunos da escola.

Eixo 6: O respeito aos ritmos de cada professor, a valorização da produção e

invenção nos modos de ensinar e gerir a aprendizagem de seus alunos, assim como a

liberdade e a confiança sentidas pelos profissionais da escola em relação a nós,

durante todo o processo de investigação.

Os eixos citados tanto marcaram e delinearam nosso percurso durante o processo de

pesquisa, assinalando o tom que esta ia assumindo, como foram se constituindo em

orientadores, não no sentido de delimitação, para o processo de análise de todos os

dados coletados durante os quase oito meses em que estivemos na escola.

Sobre o grupo de discussão e análise, percebemos que tal dispositivo se tornou o eixo

central de nossas considerações, pois, de certa forma, tal dinâmica fez com que os

profissionais refletissem e agissem simultaneamente, de acordo com seus discursos.

Na apresentação e análises desses momentos, veremos que em grande medida suas

reflexões e ações eram quase sempre perspectivadas, ainda que considerando os

desafios, para possibilidades e desejos de fazer melhor aquilo que faziam.

Um destaque especial, nesse processo, é dado por nós à presença da diretora da

escola, como verdadeira animadora e mobilizadora de “seus profissionais”,

evidenciando liderança de uma equipe que trabalha cooperativa e eficientemente.

Cremos, portanto, que, em grande medida, o sucesso de uma escola inclusiva reside

no compromisso e na responsabilidade de seu gestor, expressos pela vontade política

de promover mudanças com a construção de novas formas de relacionamento no

contexto educacional, considerando, sobretudo, o potencial e interesse dos alunos,

assim como de seus professores.

Desse modo, acreditamos que

A direção de uma escola precisa ser dinâmica, comprometida e motivadora para a participação de todos os atores sociais. Ela necessita saber delegar poderes e estimular a autonomia, valorizando a atuação e a produção de cada um. Ela precisa ser

108

uma figura presente, ponto de referência da personalidade e missão da escola (BRASIL, 2004, p.13).

Para nós, foi extremamente relevante e, por que não dizer, fácil, esse modo de ser e

estar da diretora da escola. Poderíamos, então, afirmar que nosso “trânsito” na escola

estava respaldado, apoiado e, em muitas situações, facilitado pela cumplicidade de

interesses, ou seja, os de conhecer, promover mudanças, etc.

• Recursos, técnicas e dispositivos na coleta dos dados

Dentre as várias formas possíveis de coleta de dados em um processo de

investigação-ação como o presente trabalho, registramos a seguir as que foram

utilizadas por nós:

1º - Observação e participação direta e indireta nos cotidianos da escola, com

registros sistemáticos em um diário de bordo, em momentos como: salas de aula,

recreio, reuniões individuais e coletivas com pais dos alunos, planejamentos entre

pedagogas e professores, momentos de conversas/orientações disciplinares e

pedagógicas, entre coordenadores de turno, pedagogas e diretora com alunos, grupos

de estudos, conselhos de classe, festividades, hora do café, etc. Entre observações e

intervenções diretamente na sala de aula, pudemos contabilizar um total de 59

momentos.

2º - Entrevistas do tipo semi-estruturadas com profissionais da escola, alunos e pais

de alunos, acerca das representações que trazem quanto às expectativas que

mantêm sobre a inclusão dos alunos com NEE. Realizamos entrevistas com dez

profissionais, dezesseis alunos e três pais. Pela inviabilidade de entrevistar todos os

sujeitos, aplicamos ainda um questionário a quinze profissionais e dois pais.

Com relação ao uso da entrevista, queremos considerar que, apesar de aqui

relacioná-la como um procedimento de coleta de dados, vemos esse recurso muito

mais do que isso, ou seja, nela se estabelece uma possibilidade de interação entre

pesquisador e sujeito entrevistado, que supera a simplicidade da entrevista, vista

apenas como técnica. Autores, como Manzini (1989), Manzini (2005) e Dias e Omote

(1995), a concebem nessa perspectiva.

109

Como exemplo, temos o que pontua Manzini: “[...] entrevistar significa envolver-se em

processo de interação, significa interagir [...]. Desta forma, a entrevista pressupõe a

existência de pessoas e a possibilidade de interação social” (MANZINI, 2005, apud

MANZINI, 1989, p.150).

Numa perspectiva fenomenológica, a entrevista é também considerada por Gomes

(1997) como uma possibilidade que ultrapassa a condição de técnica simplesmente,

pois serve como um veículo de comunicação. Vejamos suas considerações:

A entrevista é organizada em torno de um roteiro direcionado para certos temas, mas aberto para ambigüidades. A entrevista explora o mundo vivido do entrevistado, definido como experiência consciente, e está à procura do sentido que este mundo vivido tem para o entrevistado. Neste processo, a consciência do entrevistador, como expressa no roteiro da entrevista, modifica-se, amplia-se, atualiza-se na interação com o entrevistado. O movimento corretivo é possível pela reversibilidade das percepções e expressões do entrevistador e do entrevistado. O entrevistador deixa-se conduzir pela expressão do entrevistado e oferece suas percepções, reduzidas na expressão, para ser, especificadas pelo entrevistado [...] (GOMES, 1997, p. 320, apud MANZINI, 2005, p. 370).

Salientamos desse modo, que essas foram as concepções que nos guiaram quando

entrevistamos os sujeitos acima mencionados.

3º - Constituição, a partir do terceiro mês em já estávamos na escola, de um grupo,

denominado de Grupo de Diagnóstico, 30 no qual, por meio de técnicas e vivências

diversificadas, foram trazidas, para discussão e análise, as observações e os

acompanhamentos realizados, tendo como referência principal as práticas

pedagógicas e suas inter-relações com os processos de ensinar e aprender na

perspectiva da coletividade da classe, assim como os aspectos da ambiência escolar

no contexto de inclusão. Os elementos pertinentes aos processos que se referem à

gestão da aprendizagem, contidos nas entrevistas, foram, por meio de dinâmicas

próprias, também trazidos para o grupo.

4º - Participação em alguns planejamentos, por área de conhecimento (5ª a 8ª séries)

que aconteciam quinzenalmente, e por séries (1ª a 4ª séries), semanalmente. Nossas

participações nesses planejamentos tinham, como objetivo, o apoio pedagógico e

reflexivo diante das escolhas e opções didático-metodológicas feitas pelos

30 Em uma nota anterior, conceituamos Grupo de Diagnóstico.

110

professores, a serem desenvolvidas em sala de aula, com vistas ao trabalho educativo

para todos os alunos da classe, considerando as necessidades e possibilidades dos

alunos com NEE inseridos nessas classes.

Em nossas intervenções nesses planejamentos, esteve presente, estrategicamente, a

intenção de desencadear um “debate” acerca das questões gerais que envolvem o

trabalho pedagógico, ou seja: escolha dos temas/conteúdos, planejamento de

atividades, recursos didáticos, metodologias e avaliação, possibilitando aos docentes

desses pequenos grupos (área/série) uma reflexão sobre as suas escolhas.

Nesses momentos, pudemos rever, conjuntamente, o sentido das pretendidas ações

docentes, convergindo-as em favor das potencialidades e necessidades que

apresentavam seus alunos com deficiência e aparentemente “sem chances” de

participar da atividade ou da proposta de estudo do dia ou da semana.

Percebemos que, à medida que os “debates” se efetivavam, em decorrência das

análises e discussões sobre os contextos observados e/ou acompanhados, nos

pequenos grupos de planejamentos ou no grupo maior, o Grupo de Diagnóstico,

parecia tornar-se evidente a alguns professores a importância de determinadas

práticas, sobretudo as que consideram o aluno como partícipe do coletivo da classe e

que ali está também para se desenvolver, como os demais, pelas situações de

aprendizagens que lhe forem oferecidas, no plano individual ou coletivo: “[...] eu sei

que é importante a gente planejar, pois quando a gente conversa, considera as

condições do menino, escolhe as atividades, os recursos, [...], o menino faz, participa,

fica feliz. Isso é inclusão de verdade!” (PROFESSORA de 5ª a 8ª série).

Consideramos, então, que as situações de intervenção possibilitaram, além da natural

e esperada contribuição que se tem do pesquisador, que alguns professores

repensassem suas ações, avaliando-as para melhor agir com seus alunos e suas

classes como um todo. Desse modo, vimos nesse processo, uma oportunidade de

formação e desenvolvimento profissional dos professores, assegurando-lhes, por meio

da análise e da reflexão de suas práticas, em seu próprio contexto de ação, a sala de

aula, a possibilidade de construção de um pesquisador prático.

111

5.2 O GRUPO DE DIAGNÓSTICO COMO SUPORTE METODOLÓGICO E AGENTE

DE FORMAÇÃO

Como citado, anteriormente, neste capítulo, constituímos como espaço e dispositivo

de formação o Grupo de Diagnóstico. Neste, várias questões foram sistematizadas por

nós, registrando que foram apreendidas nas “leituras” que realizamos em observações

e participações nos cotidianos da escola, assim como pelos “ditos” e os “não-ditos”

nas entrevistas e questionários.

De acordo com Ardoino (1971), o Grupo de Diagnóstico provém do T. Group (Training

Group), inserido numa vasta corrente de desenvolvimento da Psicossociologia

americana. O novo método de formação nas relações humanas aconteceu com o

primeiro seminário experimental de Training Group, com uma formação do tipo

“experencial”, que queria chegar a uma modificação em profundidade das atitudes.

Adaptado ao meio francês, o T. Group passou por modificações de suas formas

teóricas e técnicas diversas, sendo amplamente difundido e adotado em diferentes

organizações empresariais, especialmente nas instituições hospitalares e educativas.

Lapassade (1983) contribuiu de maneira significativa para melhor utilizar os benefícios

desse tipo de formação, descrevendo o Grupo de Diagnóstico numa perspectiva de

grupos institucionais, orientados para a Análise Institucional-AI e a autogestão.

Ardoino (1971) enfatiza o Grupo de Diagnóstico como espaço que assegura a

capacidade do que ele denomina formação em profundidade. A função do

pesquisador/formador nesse processo é, então, de ser muito mais um catalisador do

que um agente de formação, no sentido habitual do termo.

De acordo com o citado autor, o pesquisador/formador, no plano do grupo, tem as

seguintes funções:

a) catalisar as reações pessoais, interpessoais ou coletivas que constituem a

vida do grupo;

b) fazer os participantes tomarem consciência, por meio de suas

intervenções, avaliações ou interpretações, dos dados e elementos

analisados, discutidos e estudados;

112

c) marcar a posição, isto é, constituir para o grupo uma memória, assegurar

a função histórica, ligar sintomas, fatos que, de outra maneira,

permaneceriam esparsos e insignificantes, ou seja, ele deverá estar atento

e convidar o grupo a realizar esse exercício de atenção às pistas e

indícios que porventura se fizerem possíveis de rastrear.

O grupo em formação torna-se o suporte principal, a fonte da formação e a fonte

privilegiada do conhecimento, promovendo, desse modo, mudança de atitudes,

crenças e, por conseguinte, de práticas. Esse processo é a “formação em

profundidade”.

A abordagem institucional que, neste estudo, toma como dispositivo o Grupo de

Diagnóstico se apresenta nessa perspectiva como um suporte e um fomentador dos

processos de formação, ações essas que não poderão estar isoladas das demais

atividades do cotidiano.

Essa formação não poderá tomar seu lugar na instituição escolar, senão quando uma

larga reflexão trouxer uma resposta clara ao “porquê” desta. Aqui vale a ressalva do

pensamento do autor em relação ao diagnóstico como algo que se constrói durante

todo um processo de intervenção, melhor dizendo, o G.D. não é pensado como aquele

que vai apontar uma situação particular num único momento, determinando

prognósticos mais positivos ou negativos. Ao contrário, pressupõe-se que o

diagnóstico se faça durante todo o tempo de trabalho, pois, a cada movimento grupal,

uma nova configuração se apresenta e precisa ser captada.

Podemos aqui dizer de nossa satisfação por descobrir que os fundamentos teórico-

metodológicos do Grupo de Diagnóstico se alinhavaram com as intenções e desejos

iniciais de nossa proposta de pesquisa. No início da apresentação deste trabalho,

escrevemos sobre isso.

Ao “deslocar” os educadores para o espaço constituído como Grupo de Diagnóstico

como “ajuntamento” de pessoas/profissionais, ficou evidente para eles a idéia de que

esse grupo não era somente o fruto de uma tensão entre os perigos, os desafios e os

problemas comuns existentes em seus fazeres. Quando constituído, o grupo foi

trabalhado dialeticamente para entender e “resolver” suas contradições.

113

Pudemos perceber, assim, o potenciamento e/ou repotenciamento de seus discursos,

que pouco a pouco podiam ser sentidos e vistos de maneira mais concreta nas

práticas de seus fazeres cotidianos.

A formação, como resposta às necessidades desse contexto escolar, correspondeu a

estratégias que visam precisamente a atingir objetivos. Nesse sentido, em frente às

principais questões discutidas pelo grupo, tínhamos, permeados, por essas

discussões, os seguintes objetivos de um processo de formação em contexto:

a) conhecer fundamentalmente as bases legais, sociopolíticas e filosóficas da

inclusão;

b) compreender e estabelecer relações entre as profundas mudanças

ocorridas nos campos sociais, político, econômico e cultural de toda a

sociedade mundial e brasileira com as práticas administrativo-pedagógicas

até então instituídas;

c) justificar e dar sustentabilidade teórica às práticas pedagógicas instituídas

ou instituintes;

d) possibilitar o desenrolar de discussões, relatos de experiências, desabafos

acerca do que pensam, das angústias, frustrações e também de alegrias, e

das descobertas, sendo possível a mediação por parte da pesquisadora.

Na dialética desenvolvida e vivenciada no Grupo de Diagnóstico em torno das

questões trazidas, foi possibilitado ao grupo retocar suas estruturas, diferenciando

papéis, distribuindo tarefas, revisando seus projetos, reavaliando seus objetivos,

definindo novos percursos e experenciando, por fim, um modelo de auto-regulação, na

prática de uma escola para todos e que, portanto, é inclusiva.

A possibilidade, dada pelo olhar multirreferencial, com o qual éramos continuamente

“convidados” e levados a buscar referências na Psicologia, na Sociologia, assim como

nos elementos históricos da constituição da escola, para melhor compreensão acerca

do que discutíamos, foi em grande medida uma “solução” encontrada pelos

profissionais, em várias situações vividas no Grupo de Diagnóstico.

114

6 MERGULHO NAS/SOBRE (VIVÊNCIAS) DO GRUPO DA ESCOLA

Pretendemos, neste capítulo, compartilhar com o leitor dois diferentes e importantes

momentos, vivenciados com o grupo da escola Prisma. Por uma questão didática, nos

antecipamos com uma breve explicação sobre cada um deles:

1º momento – será aqui denominado por processo de autoformação. Cumpre

ressaltar, que, quando iniciamos o presente estudo e investigação na escola Prisma, o

grupo encontrava-se já envolvido nesse processo. Nossa participação nesse grupo

nos possibilitou uma visibilidade e um maior conhecimento acerca dos sujeitos nele

presentes, emanados por suas expressões de desejos, angústias, resistências e

diversos outros comportamentos.

Ressaltamos, acerca das diversas expressões dos participantes do grupo, que elas

denotavam uma leitura positiva ou negativa em frente ao processo de formação ali

instituído e também em frente às significações que a temática evocava no tocante às

suas práticas pedagógicas. Entre tantas e variadas formas, mesmo que sutis, de se

conhecer as pessoas, pouco a pouco, fomos estabelecendo algumas inter-relações

entre os discursos, ali enfaticamente proferidos, em convergência ou não com

algumas das práticas por nós observadas nos cotidianos do contexto escolar.

2º momento – será por nós denominado de Grupo de Diagnóstico (G.D.). Neste, os

sujeitos participantes tomavam a si próprios em análise, quando se referiam às suas

práticas, conceituações e representações acerca de várias questões do cotidiano, o

que, invariavelmente, conduzia o grupo a um processo de análise de toda a equipe.

Lembramos ao leitor que, no processo de discussão e reflexão, tanto do primeiro

momento, quanto do segundo, os dados coletados em observações, as cenas

apreendidas do cotidiano, entre outras “capturas” realizadas, foram se delineando e

emergindo naturalmente, dentre os “acontecimentos” e vivências do grupo. Desse

modo, o que apresentaremos como discussão e reflexão reflete aspectos e elementos

imbricados e interconectados por aquilo que observamos diretamente nas práticas, de

acordo com o que ouvimos, tanto em diálogos, como discursivamente, em ambos os

momentos.

115

Destacamos, também, que as “respostas” e/ou “soluções” apontadas pelos

participantes no Grupo de Diagnóstico se constituíram em recursos objetivos para que

pudéssemos estar tecendo, ao longo do texto, nossas tentativas de apreender e

captar os sentidos e significados que o grupo atribuía aos seus fazeres e saberes.

Acrescentamos, ainda, que o G.D. se constituiu como um campo de grande

centralidade de nosso estudo, como poderá ser observado pelo leitor.

6.1 DESCREVENDO O PROCESSO DE AUTOFORMAÇÃO: O ESTUDO SOBRE

CURRÍCULO

No intercurso das observações e acompanhamentos aos contextos do cotidiano

escolar, tivemos a oportunidade de participar do que aqui denominamos de processo

de autoformação como anunciado anteriormente. Antes de discorrer com mais

profundidade na análise desse processo, é importante descrever quais as motivações

dos profissionais da escola para a constituição desse grupo de estudos, assim como

sobre sua organização e divisão. Para tal, necessitaremos realizar um breve retorno a

alguns momentos históricos vivenciados pelo grupo.

No 2º semestre de 2004, a escola se envolveu plenamente no processo de

reformulação de seu Projeto Político-Pedagógico (P.P.P.), ação essa dinamicamente

disparada pelas pedagogas, daquele turno escolar.

Destacamos que, entre os vários e importantes temas e questões abordados, um se

revelou de grande relevância para o grupo, tendo sido apontado como um tema que

demandava alguns momentos de estudos e reflexões, pois partia da visão e do

entendimento do que aquela escola era, para todos, ainda que isso implicasse alguns

importantes desafios. Tal tema estava relacionado com a inclusão dos alunos com

necessidades educacionais especiais.

Emergia, assim, do grupo, a necessidade de melhor compreensão dos princípios

ético-filosóficos da inclusão, assim como os possíveis e esperados desdobramentos

em termos de uma melhor organização para aquele contexto escolar, no que diz

respeito tanto ao acolhimento, quanto à gestão da aprendizagem de todos os alunos,

sobretudo aqueles que apresentavam sérias implicações cognitivas. Desse modo,

alguns pontos essenciais e que justificam e asseguram de maneira contundente tal

política foram, durante quatro encontros, estudados e discutidos. Essa iniciativa,

116

associada a outras de menor impacto 31 já desenvolvidas na escola, tem assim

conduzido o grupo pesquisado à busca de alguns caminhos que respondam aos

desafios enfrentados diante da diversidade de seu alunado.

No início de 1º semestre de 2005, os profissionais da escola sinalizam o desejo de se

aprofundarem nos grupos de estudo, sobre as questões da diferença, da constituição

de identidades, sobre quais conhecimentos deveriam assegurar aos alunos, entre

outras. Em resumo, era evidente que o desejo do grupo convergia para uma reflexão

acerca do currículo e da contribuição dessa discussão para renovar a visão que se

tinha da realidade daquela escola. Decidiram, então, entre algumas opções, realizar

um estudo do livro: Documentos de identidade: uma introdução às teorias do

currículo, de Tomaz Tadeu da Silva.

Registramos que a pedagoga que assumiu a escola nesse ano, ao captar esse anseio

do grupo, propôs-lhe uma dinâmica de estudos e discussões do livro, a ser

desenvolvida pelos próprios profissionais, organizando, para isso, os subgrupos de

estudos, partes do texto e estabelecendo datas de apresentação, ainda no 1º

semestre de 2005.

Nesse período, estando na condição de assessora da escola e, ao mesmo tempo

integrando um grupo de pesquisa da UFES, 32 e ainda não ciente das intenções dos

profissionais da escola, apresentamos uma proposta de ciclo de palestras sobre

educação inclusiva, 33 que, por questões do próprio projeto, só poderia ser

desenvolvido naquele semestre. Avaliando a proposta e o seu conteúdo, assim como

considerando que a organização dos estudos sobre currículo poderia se desenvolver

após o ciclo de palestra, o grupo decidiu, unanimemente, pelo ciclo de palestras.

Em julho de 2005, já concluído o ciclo de palestras, iniciamos, então, já no processo

de pesquisa, com a participação nos encontros de discussão do livro Documentos de

identidade: uma introdução às teorias do currículo.

31 Chamamos de menor impacto as atividades periódicas de assessoria prestadas pela coordenação do laboratório pedagógico e do Ensino Fundamental às questões relacionadas com a inclusão de alunos com NEE. 32 O grupo se constitui em 2003 a fim de realizar uma aproximação entre os estudos e a pesquisa, desenvolvidos na Universidade, sobre educação inclusiva em frente às práticas educativas dos profissionais de algumas escolas regulares que atuavam no Sistema de Educação do Município de Vitória. 33 Os principais objetivos do ciclo de palestras eram: refletir conceitual, histórica e filosoficamente a educação de alunos com necessidades educacionais especiais a partir do paradoxo diversidade/diferença/desigualdade e discutir acerca de práticas pedagógicas possíveis para o trabalho com a diversidade e a diferença. Os encontros aconteceram às 6ª feiras, nos momentos já reservados para reuniões e estudos do grupo.

117

Esse livro foi dividido em pequenas partes, distribuídas a grupos de três e quatro

pessoas, que eram, então, responsáveis por estudar e organizar a dinâmica de

apresentação e a discussão, para os demais colegas, semanalmente. Com tal

organização, o livro foi discutido em oito encontros, com duração de uma hora e vinte

minutos cada encontro.

Cumpre aqui registrar que participar de tais momentos foi mergulhar num espaço rico

em discursos e, sobretudo, marcados de boas intencionalidades. Esse discurso,

inevitável e perturbadoramente, remetia a elementos da prática daquele cotidiano,

uma vez que a distância entre um e outro quase inexistia, considerando que os

sujeitos que naquela sala discutiam eram os mesmos que no dia seguinte estariam

envolvidos nas práticas de suas várias funções.

Era perceptível o cuidado e esmero dos grupos na preparação do que lhes coubera

apresentar e discutir com os colegas no momento reservado ao estudo. Durante a

semana, percebamos um movimento entre os professores, trocando idéias, acertando

a metodologia e estratégias para a apresentação, entre outros detalhes.

No dia e hora predefinidos, exceto uma ou duas professoras, que às vezes se

atrasava alguns minutos, 34 ninguém chegava com atraso para os encontros. Havia

sempre uma expectativa no ar pelo conteúdo/temática em pauta ou pela oportunidade

de assistir à exposição dos colegas, situação essa pouco ou nunca vivenciada por

grande parte dos profissionais ali presentes.

Essa forma de estudos se mostrava para eles mesmos como algo novo e, sobretudo,

importante, pois se constituía em ação efetivamente surgida e gestada no e pelo

grupo, marcada essencialmente pelo desejo de aprofundamento teórico, que os

orientasse em suas práticas educativas.

Quando falamos de processos de formação, sejam estes formais, sejam

institucionalizados pelos sistemas de ensino, ou não, como é a experiência que aqui

descrevemos e analisamos, nos vêm à tona alguns pressupostos que devem ser

trazidos nesse texto. De acordo com Veiga (2006, p. 471), esses pressupostos

merecem nossa atenção, pois a formação:

34 Estas alegavam ter muito material pra guardar e se mostravam muito envolvidas com seus alunos, atendendo-os até o último minuto, inclusive seus pais, caso houvesse questões importantes a serem tratadas.

118

a) é ação contínua e progressiva que envolve várias instâncias e que valoriza de

maneira significativa a prática pedagógica. Isso não quer dizer que, ao valorizá-la

como componente formador, esteja assumindo a visão dicotômica da relação

teoria-prática;

b) é contextualizada histórica e socialmente e constitui-se como um ato político.

Deve, então, ser compatível com o contexto no qual se dá, estando

comprometida com a construção de perspectivas emergentes e emancipatórias

que se ajustem com a inclusão social;

c) implica preparar os professores para o incerto e para os processo de

mudança;

d) significa uma articulação entre formação pessoal e profissional, em que,

mesmo sendo uma “[...] auto-formação pelo estudo e reflexão individual não

deixa de ser uma forma de confronto de experiências vivenciadas por outros”

(FÁVERO, 2001, p. 67, apud VEIGA, 2006).

e) é um processo coletivo de construção docente e uma reflexão conjunta, não

estando isenta de conflitos, porém, se é partilhada, essa reflexão se torna

produtiva.

Conforme nos lembra Jesus (2005), acreditamos que o desenvolvimento pessoal,

profissional e organizacional desse grupo de profissionais, concretamente, provocou

um maior empenho em criar uma escola melhor para todos os seus alunos,

concordando com Alarcão (2003, p.45), mesmo quando aponta que, para isso “[...] é

preciso vencer inércias, é preciso vontade e persistência”.

O processo de autoformação em tela nos possibilitou confirmar, também, a grande

importância do papel da docência. Percebíamos, nos professores, uma grande

recorrência às experiências vividas dentro da sala de aula. Isso fortaleceu a idéia de

que a sala de aula ainda é o grande palco, em que estar como expectadores ou atores

significa, entre outras coisas, uma inversão de papéis, naturalmente assumidos por

professores e alunos que tratam da dimensão do conhecimento e do saber como um

processo de construção não dado, transmitido ou transferido.

119

Nesse sentido, lembramo-nos do que afirma Freire (1998, p. 25), ficando para nós

muito claro esse processo de formar-se quando se forma e vice-versa: “[...] quem se

forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma-se ao ser formado”.

Assim, os estudos e discussões realizados pelo grupo em sua totalidade, dos quais,

mais adiante, no texto, discorreremos sobre algumas partes, realizaram uma

aproximação discursiva, assim como uma aproximação a campos teóricos de uma das

questões mais desafiantes ao trabalho pedagógico, em se tratando do acolhimento a

todos na escola, que é a inclusão de alunos com necessidades educacionais

especiais.

Tal aproximação leva em consideração os desafios advindos de tentativas de

superação aos significados e determinações instituídos em relação às diferenças,

assinalados ou não pela deficiência, assim como às questões do ponto de vista

prático, relacionadas, por exemplo, com a gestão da aprendizagem.

Os discursos por nós analisados demonstram que, ao estabelecer relação e/ou

salientar a importância que têm os estudos culturais, como aquele que concebe a

cultura como espaço/campo de lutas em torno da significação social, o currículo passa

a ser tomado como a “instituição” centralmente forjada para que ele esteja na base, ou

seja, sustentando todos os movimentos presentes no cotidiano escolar.

O grupo manifestava uma consciência de que é no currículo e pelo currículo que se

viabiliza a produção de conhecimentos a todos, com múltiplos usos, significados e

sentidos, não importando os domínios conceituais prévios deste ou daquele conteúdo,

a fim de se apropriar de outros novos conhecimentos.

Nesse sentido, quando dicutiam etnia, sexualidade, diversidade, diferença e as

implicações e experiências reais de cada um ali presente, era possível,

indubitavelmente, vir à tona o aluno com deficiência e o aluno que “não se adapta” aos

moldes dessa escola, tal como está constituída, mesmo não tendo deficiência. Assim,

as representações de cada profissional acerca do currículo que temos em frente à

necessidade de sua reformulação eram frontalmente debatidas.

Observamos que o questionamento que se deve realizar aos processos institucionais

e discursivos do atual currículo, ou seja, no âmbito sistêmico, ia compondo o discurso

120

do grupo, que atrelava, inclusive, a discussão sobre a importância desse

questionamento à educação de qualidade, aos sujeitos com necessidades

educacionais especiais por deficiência, sobretudo os que estudam nessa escola.

Foi possível observar, por aqueles que se manifestavam, uma concordância e um

entendimento profundo acerca das discussões do autor e suas opiniões. Essa

concordância e entendimento foram apreendidos por nós quando das correlações

entre tais discussões e as situações reais vividas por aquele grupo, por exemplo, ao

evocar suas próprias práticas conscientes e inconscientes, 35 e associá-las ao campo

teórico analisado pelo autor, assim como em proposições em assumir um projeto de

desconstrução do atual currículo, iniciando-o na sala de aula, atingindo, como se fosse

em forma de espiral, outros níveis do sistema.

Em suas manifestações, os professores expressam de forma refletida suas intenções,

apontando a possibilidade de incorporar ou permitir que, cotidianamente, em todas as

disciplinas, se constitua, como objetivo maior, o respeito à diversidade, presente na

classe, assim como a desconstrução paulatina de um currículo rígido e inflexível, seja

nos conteúdos, seja nas formas mais burocráticas de se tratar as várias questões

vividas na escola.

De acordo com Silva (2003), um currículo assim pensado concebe as diversas formas

de conhecimento de modo equiparado, não separando as ciências de maneira a

privilegiar uma em detrimento da outra. Nesse currículo, o conhecimento

tradicionalmente escolar não se separa do conhecimento cotidiano das pessoas

envolvidas. Ambos expressam significado social e culturalmente construído, pois

influenciam e modificam as pessoas. Cumpre aqui ressaltar que as discussões acima

apontam muito mais o desejo e ideais que os educadores têm como coletivo que

pensa, sonha e questiona, do que efetivamente o que vêm “conseguindo” realizar em

suas práticas docentes. Ou seja, estão manifestadas conscientemente ali, no grupo,

suas fraquezas, “impotência”, angústias. Porém, ali também emerge com força maior

o não conformismo, a não aceitação e o questionamento acerca de seus fazeres.

Uma nova perspectiva se descortina aos profissionais do grupo, quando

compreendem que um currículo baseado nos estudos culturais oferece benefícios e

35 Chamamos de práticas inconscientes aquelas pelas quais alguns profissionais diziam desconhecer os benefícios ou malefícios desencadeados por elas.

121

que, por conseguinte, se descobrem desejosos deles, questionando os porquês de

eles não existirem. Tal questionamento vem ao encontro do que reflete Padilha (2004,

p. 268), quando escreve:

O ‘daltonismo cultural’ ou a cegueira para as diferentes culturas e para a diversidade cultural presente na escola é resultado, também, de uma política educacional que, além de não se preocupar com a educação permanente dos professores, não enfrenta efetivamente os problemas de sua prática.

Apesar de não desconsiderarmos a necessidade de construção e efetivação de

práticas docentes mais engajadas no cotidiano escolar, estas, como práticas

instituintes e superadoras do “daltonismo cultural”, como escreve Padilha, não

podemos nos furtar à denúncia de que não se verificam políticas educacionais mais

arrojadas para o incentivo ao professor e à escola de superação à pedagogia

monocultural.

Tais políticas não incentivam os professores a trabalharem o contexto do

desenvolvimento de pesquisas, com a participação dos alunos, nem, tampouco,

instrumentalizam-os culturalmente. Salienta o autor, entretanto, que essa

instrumentalização, além de não ser possível, não é suficiente, dependendo muito

mais de uma atitude permanentemente reflexiva, investigativa e crítica por parte dos

docentes.

[...] enfrentar o desafio, na sala de aula e na escola, de trabalhar com o diferente, com as diferenças e saber construir um processo educacional no encontro dessas diferenças que, longe de constituir algo linear, fácil, calmo, é espaço de conflitos, de explicitação de interesses, de jogo de poder, logo, de divergências (PADILHA, 2004, p. 269).

Ressaltamos, então, que o processo de autoformação vivenciado pelos profissionais

dessa escola significou-lhes uma experiência rica e produtiva, pois, estudando,

discutindo e refletindo, se voltavam com tranqüilidade, cada um a seu tempo, à análise

de suas práticas, numa situação de autocrítica permanente.

Verificamos, assim, que a formação propicia naturalmente um aprofundamento

científico-pedagógico, que capacita os professores a enfrentarem as questões

fundamentais que emergem na escola como instituição social, explicitadas nas

122

práticas que implicam centralmente as déias de formação, reflexão e crítica (VEIGA,

2006)

O movimento de formação, reflexão e crítica tem mobilizado os educadores à criação

de um espaço criativo e inventivo, pois, interpretando as palavras de Padilha (2004),

quando há divergências, posicionamentos diferentes, um novo cenário pode emergir,

um novo contexto se configura, constituindo um novo referencial para as relações

humanas, pessoais e interpessoais na escola.

Pudemos verificar que, numa perspectiva de um trabalho que se pretenda

intercultural, o professor, além de se avaliar permanentemente em busca de sua

própria identidade, preocupa-se em criar condições para que os alunos estejam em

constante comunicação, apesar de se reconhecerem diferentes (VIEIRA, apud

PADILHA, 2004).

6.1.1 Um exemplo de interação com a diferença

Relatamos um dos momentos de envolvimento de todos os professores e alunos da

escola nessa comunicação entre os diferentes. Após decisão, pelo coletivo de

profissionais da escola, sobre a programação de atividades para a Semana da

Consciência Negra, uma comissão formada por alguns professores organizou um

desfile em que alunos e alunas da escola pudessem se inscrever livremente.

Em uma das turmas de 7ª série, uma aluna com necessidades educacionais especiais

por deficiência, ainda limitada em sua condição de escolha, de decisão e ação,

demonstrava interesse em desfilar, mas faltava-lhe algo que a motivasse realmente.

Mesmo os professores convidando-a, não conseguiam convencê-la. Percebendo sua

indecisão e timidez, seus colegas a incentivam e com extrema facilidade a convencem

a desfilar com eles. Sob gritos e ovações, a aluna foi à passarela, recebendo,

também, como vários de seus colegas, os votos e aplausos da platéia.

A comunicação entre os diferentes foi, nessa situação relatada, extremamente eficaz,

e é o ponto nodal no qual deveremos investir nossos esforços para que continue

acontecendo em quaisquer situações, desde as mais simples até as mais complexas.

123

Participar dos encontros semanais de autoformação significou poder conhecer o grupo

sob uma dimensão um pouco incomum. Para nós, que pretendíamos conhecer como

a instituição escola, nos seus vários âmbitos, poderia redimensionar sua estrutura

organizativo-pedagógica, para garantir a aprendizagem a todos, essa auto-

organização, para estudos, já sinalizava algo bom, pois denotava a preocupação que

tinham com as questões que circundam o campo prático e real do currículo.

Essas preocupações, presentes naqueles profissionais, revelaram, para nós, como

pesquisadora, quais percursos já tinham trilhado, de que desafios realmente falavam,

assim como do que precisavam e aonde queriam realmente chegar.

Reiteramos que, no período em que se desdobraram os encontros para o estudo e

discussão do livro Documentos de Identidade, estivemos observando e

acompanhando os movimentos da escola. Tais observações e acompanhamentos

deram-se nos vários espaços e tempos da escola onde transitam alunos, pais e

profissionais.

Em sala de aula, observamos e acompanhamos 56 aulas das diferentes áreas do

conhecimento às respectivas turmas escolhidas. Tivemos, assim, a oportunidade de

conhecer várias situações nas quais estavam presentes o aluno real e perceber as

sutilezas entre o dizer e o fazer, ou o querer fazer e o efetivo ato de realizar, tão

presentes nos discursos e diálogos travados nos momentos de estudos do grupo.

Feitas as observações e análises da totalidade dos encontros, passaremos agora a

discorrer sobre algumas particularidades extraídas das exposições e manifestações

discursivas do grupo acerca das partes estudadas do referido livro.

Por uma questão metodológica, organizamos os oito encontros em dois blocos de

análises. O primeiro direcionado ao estudo do 1º e 2º capítulos do livro. Esses se

desdobraram em quatro encontros, e o segundo bloco está relacionado com o 3º e 4º

capítulos finais da obra, estes também desdobrados em outros quatro encontros.

Os quatro primeiros encontros são, então, aqui trazidos sob três grandes categorias

de análise:

124

A) Teorias do currículo: quais suas implicações na prática escolar?

Uma ênfase significativa à etimologia da palavra currículo foi dada pelos grupos

quando das apresentações das duas primeiras partes do livro, estas referentes a: I-

Introdução - Teorias do currículo: o que é isso? e II- Das teorias tradicionais às

teorias críticas. Segundo Silva (2003 p. 15), currículo vem do latim curriculum, “pista

de corrida”, e é no curso dessa “corrida” “[...] que acabamos por nos tornar o que

somos” .

A compreensão da veracidade da análise pontualmente colocada por Tomaz Tadeu

acerca de sermos o que somos em virtude do currículo no qual estamos mergulhados

provocou uma intensa discussão no grupo em direção à questão ainda extremamente

visível e valorizada nos contextos educacionais, que é a questão do conhecimento.

Tal questão evidenciada pelo autor, e que indiscutivelmente constitui o currículo, está

centralmente envolvida na constituição e na expressão de nossa identidade e de

nossa subjetividade. Currículo, então, é identidade, além de expressar conhecimento.

Na discussão advinda e alavancada pelas proposições dos grupos, registramos

algumas falas de profissionais, nas quais se verifica um misto de preocupação e

entendimento concomitantes.

Quando eu ensino determinado conteúdo, na verdade não posso acreditar que é só isso que estou ensinando; tanto eu como o aluno que está ali, temos nossa visão, nossa leitura das coisas que nos cercam, temos nossa história anterior acerca do assunto tratado [...] (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).

Apreendemos, na manifestação da professora acima citada, a clareza e o

entendimento de que as identidades e subjetividades do(a) aluno(a) e do(a)

professor(a) estão presentes e interligadas à questão do conhecimento. Na

expressão da professora, verificamos, ainda, que o conhecimento não é estanque e

isolado; a ele, portanto, estão, como em redes e conexões, todas as demais relações,

percepções e vivências dos sujeitos com ele envolvidos.

Por outro lado, podemos verificar, também, que o sentimento de impotência para se

construir um processo dinâmico e que considere outras dimensões que vão além do

conteúdo prescritivo está presente na fala da professora que se segue, assim como os

125

apontamentos direcionados às questões inerentes aos aspectos instituídos de

organização da realidade escolar.

Acontece que a forma de organização dos horários, das disciplinas, a falta de espaços para planejamentos integrados, assim como algumas exigências de natureza burocrática, pouco favorece pra esse envolvimento, pra essa construção mais ampla no aluno [...], a gente sente essa necessidade [...], é fácil falar [...], a gente precisava pensar e planejar mais como um todo. Essa separação só dificulta (PROFISSIONAL DO C.T.A.). 36

A idéia da existência de uma complexidade parece emergir nas discussões do grupo,

em que, sob o ângulo das regularidades e obedecendo aos princípios de ordem e de

organização, tudo seria mais simples. Porém, o mundo e, conseqüentemente, todas

as instâncias nas quais nos vimos envolvidos se complexifica, a partir do momento,

segundo Ardoino (2004, p. 551), em que “[...] uma inteligência da desordem se elabora

para refinar, enriquecer e tornar mais sutil o olhar que se dirige aos fenômenos”.

Considerar outras dimensões do trabalho pedagógico, para além das práticas

curriculares comumente desenvolvidas pela escola, muitas vezes contidas nas

propostas curriculares dos sistemas educacionais, é pensar a complexidade

admitindo-se sua heterogeneidade constitutiva e sua natureza plural. Um pensamento

complexo, então, diferentemente de complicado, não pode ser confundido, na medida

em que é percebido que a complexidade se ordena simultaneamente em diversas

perspectivas contraditórias, exigindo, assim, falar-se de leituras plurais. De acordo

com Ardoino (2004), a noção de complexidade será aquilo que faz com que a analítica

cartesiana fracasse ao tentar decompor.

Ao questionar a organização curricular estabelecida na escola e no sistema em seus

múltiplos efeitos, fica visível que os profissionais, mesmo de maneira inconsciente

para alguns, discutem o currículo para além da noção do que é visto apenas como

complicado. Nesse questionamento, trazem a idéia de que há fracasso nos modos de

organização originários da visão cartesiana e linear no processo de produção do

conhecimento e do saber.

O grupo prossegue apresentando suas considerações acerca do currículo, em direção

às teorias do currículo elencadas pelo Tomaz Tadeu. Esse, talvez, em nossa análise,

36 Corpo Técnico Administrativo da escola (diretora, coordenadores de turno, assistente técnico de direção e pedagogas).

126

foi o momento de maior tensão captado por nós, tendo em vista que, confrontando-se

a si mesmos, se viram diante da questão talvez mais essencial, no que tange à

reflexão sobre o currículo, com formulações e questionamentos pontuais não para o

outro, mas para o nós ali representado.

Tais questionamentos refletem para nós certa maturidade daqueles profissionais, fruto

evidentemente de um percurso anterior de formação e autoquestionamentos que

muitos dos presentes já se faziam em suas práticas profissionais. Estes, assim,

puderam ser interpretados e registrados por nós como:

� Nosso trabalho pedagógico está centralmente marcado por quais práticas

cotidianas?

� Realizamos algumas indagações quanto ao porquê da escolha ou da

aceitação desses conhecimentos e não de outros?

� Perguntamos-nos por que privilegiar e valorizar um determinado tipo de

identidade ou subjetividade e não outras? (isso direcionado a todos os atores

envolvidos no processo escolar).

� Qual tem sido a idéia central que direciona e impulsiona o trabalho

pedagógico em nossa escola? Estamos apenas buscando as melhores formas

de transmitir os conhecimentos, determinados e elencados em algum momento,

ou estamos preocupados com as “[...] conexões entre saber, identidade e

poder?” (SILVA, 2003, p.17).

� Será que adianta apontar culpados, nos angustiar, ou apenas nos sentirmos

frontalmente incomodados diante das burocracias e formalidades a nós

impostas? Não será necessária uma profunda mudança ou uma revisão refletida

dos significados e sentidos de tudo o que está instituído? Não será esse um dos

caminhos?

Como que buscando um alento para todos, diante de tais indagações, uma

profissional se pronuncia:

Acho que se escolhemos estudar e nos aprofundar sobre esse assunto demonstra que nós aqui na escola estamos muito à frente de outros, pois estamos em busca de algo, estamos sim questionando e avaliando nossas ações [...] (PROFISSIONAL do C.T.A.).

127

Observamos que as reflexões e pontuações daquele grupo sinalizavam, sem dúvidas,

preocupações já instaladas bem antes do estudo e discussões instigadas por Tomaz

Tadeu. No entanto, a relevância para tal era a de dar visibilidade e possibilidade a

todos os profissionais de analisar os conceitos presentes nas teorias em que, por

escolha consciente ou não, estariam pautando suas práticas.

Analisando e discutindo tais conceitos, presentes em cada teoria do currículo, tornava-

se possível a cada um ali presente estabelecer as devidas relações e autocríticas de

si mesmos e do contexto escolar como um todo. Os referidos conceitos, elencados em

cada teoria do currículo, convocam, desse modo, nossa atenção a certos aspectos,

que sem eles não veríamos (SILVA, 2003).

Os conceitos da teoria crítica ou pós-crítica, por exemplo, inevitavelmente farão com

que organizemos e estruturemos nossa forma de ver a realidade, conforme assinala

Silva (2003). Desse modo, tais teorias, “[...] ao deslocar a ênfase dos conceitos

simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem para os conceitos de ideologia

e poder [...]” (p.17), nos farão ver a educação a partir de uma nova perspectiva.

Encerram-se aqui as análises referentes aos dois capítulos iniciais do livro de Tomaz

Tadeu, que, de uma forma ou de outra, acompanharam os profissionais ao longo de

suas jornadas de trabalho.

B) Das reflexões teóricas à estruturação de ações significantes e significadas no

cotidiano

Nos fundamentos da Sociologia fenomenológica, toma-se como verdadeiro que o

conhecimento é construído intersubjetivamente na interação entre professor e alunos

na sala de aula. Tal premissa assenta-se nas situações de aprendizagens que

ocorrem em outros contextos sociais, ao se verificar que um conhecimento real só é

constituído a partir dos significados construídos na interação social entre os sujeitos.

Geoffrey Esland (apud SILVA, 2003) destaca que é importante analisar tanto a visão

subjetiva de professores quanto dos alunos, porém uma importância maior deve ser

direcionada para o conhecimento dos professores, ou seja, é imprescindível

compreender quais são as perspectivas do professor ao assumir uma sala de aula,

128

qual sua visão de mundo e quais visões serão construídas e desenvolvidas nessa sala

de aula.

• Uma prática e várias possibilidades

Na tentativa de estabelecer uma relação entre os discursos captados nos grupos de

estudo, estando nós, paralelamente a tais estudos, observando e participando no

cotidiano escolar dos profissionais, vimos, assim, destacar, nas práticas da professora

Cristal, 37 que atua nas séries iniciais, alguns indicativos de que o conhecimento esteja

sendo construído a partir do exposto acima. Para tornar o mais explícita possível a

experiência e também os percursos da referida professora, trazemos alguns registros

pontuais de sua ação docente. “De início ao assumir uma sala tento desenvolver em

mim um olhar perceptivo para as diferenças, para dar a partida no trabalho, tanto

coletivo quanto individual [...]” (PROFESSORA de 1ª a 4ª séries).

Nesse olhar “cuidadoso” da professora, destaca-se, em suas próprias palavras, ser

necessário “[...] um certo envolvimento” que ultrapasse a simples relação de ensinar e

produzir conhecimentos, “[...] é preciso conhecer minimamente de onde vem essa

criança, o que a motiva, quais suas necessidades, porque age desse e não de outro

jeito” [...].

Muitos teóricos delineiam suas posições acerca do conhecimento prévio que

professores têm de seus alunos, podendo assim determinar a forma como eles irão

tratá-los. Assinala-se, evidentemente, que, numa visão determinista, alguns

professores se valem desse conhecimento para rotulações futuras, bem como a

criação da chamada baixa expectativa em relação aos alunos.

No entanto, tal professora utiliza-se exatamente desse recurso, conhecendo

previamente seus alunos, a fim de assegurar uma interação suficiente para o

atendimento às necessidades de seus alunos, facilitando, desse modo, o processo de

construção de conhecimentos.

[...] aí não dá pra ser só professora, é preciso ser mais, ou seja, envolver-se mais, inclusive com a família. A atenção que dispenso à família é fundamental, pois, assim, criamos uma parceria para o desenvolvimento dos alunos que vemos como mais comprometidos cognitivamente.

37 Nome fictício.

129

Nos momentos de observação e participação na turma, pudemos registrar algumas

situações que confirmam os benefícios do conhecimento prévio. Um exemplo foi a

organização de um teatro.

A professora, de forma planejada e organizada, antes de tudo, leu a história para a

turma, enfatizando as falas dos personagens, suas características, para que a turma

pudesse ter clareza no momento das escolhas dos personagens que desejariam

representar no teatro. Ressaltou também que todos teriam papéis nas cenas. Uns

falariam mais, tendo um destaque maior, outros falariam menos e outros apenas

comporiam o elenco em alguns momentos específicos.

Segundo uma declaração da professora Cristal, ela desejava muito que um de seus

alunos, o João, 38 se interessasse por um dos papéis de maior expressão, pois esse

aluno, avaliado, não em relação à classe, mas tendo como parâmetro a si próprio,

tinha obtido grandes avanços até o presente momento, no entanto havia muito por se

desenvolver, sobretudo em sua oralidade.

Por conhecê-lo e estar sempre atenta às suas necessidades, precisava despertar nele

o interesse e também confiança na escolha de um dos papéis. Foi com alegria que a

professora me comunicou que, ao apresentar os personagens no contexto da história,

o aluno João escolheu o personagem D. Ratão. 39

João foi seu aluno no ano anterior e demonstrava não se sentir à vontade na maior

parte das atividades que promoviam manifestações pessoais por meio de opiniões,

sugestões e interações maiores, como o teatro, ou outras formas de expressão em

público.

O teatro, após dois meses de ensaio, confecção coletiva dos figurinos, entre outras

organizações necessárias, 40 foi apresentado para todos os alunos de (1ª a 4ª) com a

presença dos professores e pais dos alunos da classe da professora Cristal. João, um

dos alunos da classe mais comprometidos cognitiva e psicologicamente, emocionou

sobremaneira sua professora e, em especial, as professoras que o atendiam no

laboratório pedagógico, que, convidadas por ele, vieram prestigiá-lo.

38 Nome fictício. 39 Personagem da história encenada “Dona Baratinha”. 40 Houve um envolvimento de vários professores em apoio à professora Cristal. Os alunos tiveram ampla participação na confecção dos figurinos e cenário.

130

Em um dos momentos no grupo de estudos, em que a discussão girava em torno do

currículo para além das prescrições, diretrizes e parâmetros ou referenciais

curriculares, lembramos que a professora Cristal expõe de maneira brilhante seu

posicionamento ao grupo acerca da necessidade de se conhecer de forma mais

profunda quem são nossos alunos, com questionamentos como: de onde vêm? O que

fazem quando não estão na escola? Onde moram? Qual a melhor forma de

“comunicar-me” com ele? O que fazer para que os conhecimentos da escola se

mostrem desejáveis e significantes para os meus alunos?

Segundo a professora, agindo assim e obtendo respostas para tais questionamentos

acerca de nossos alunos, teremos condições de oferecer e organizar um ensino de

melhor qualidade e que atenda às suas reais necessidades, aliando e conjugando as

respostas de tais questionamentos às formalidades de nosso currículo prescritivo, por

exemplo, os conteúdos, que, via de regra, vêm separados por áreas do conhecimento.

A reflexão tecida pela professora, em nossa interpretação, é extraordinária e, sem

dúvida, vem agindo como disparadora de múltiplas reflexões por parte dos seus

colegas, haja vista partir de uma profissional que tem por esses mesmos colegas um

grande respeito e admiração, pela seriedade, compromisso e idealismo que carregam

consigo.

A discussão se enredava, desse modo, por entre questões e questionamentos sobre o

que vêm a ser aprendizagens sociais relevantes, uma vez que estas se concretizam,

segundo uma conceituação de currículo oculto, de forma implícita no ambiente

escolar.

Sendo assim, algumas perguntas são feitas quanto aos sujeitos que nesse ambiente

transitam:

a) O que estão aprendendo fundamentalmente?

b) Que atitudes são desejáveis?

c) Quais comportamentos são socialmente aceitos pela sociedade?

d) Quais valores são exaltados como os melhores?

e) Como considerar a possibilidade de ocorrência dessas aprendizagens no

ambiente escolar, sem nos ater às experiências desses indivíduos?

131

f) Como não incorrer no desrespeito e na desconsideração às diferenças

culturais, às histórias de vida dos alunos desse contexto escolar?

No calor das discussões, a professora Cristal, então, relata uma visita que fez no dia

anterior à Casa da Menina, 41 local esse em que moravam duas de suas alunas. No

decorrer de seu relato, pareceu-nos, verificando os olhares, gestos e movimentos dos

participantes presentes, a compreensão absoluta da importância de tais

questionamentos.

À medida que relatava as condições precárias e sofríveis em que viviam suas alunas,

um e outro participante contava o que conhecia das histórias de vida de outros alunos

em situações parecidas, assim como das diferenças já observadas por eles no modo

de ser e estar daquelas crianças no ambiente escolar.

Os que não puderam se expressar oralmente utilizaram-se de outras linguagens,

concordando que não é possível e aceitável desconsiderar tais conhecimentos

prévios, não somente daqueles alunos relatados, mas de tantos outros ali presentes.

A estrutura de organização do espaço escolar, do tempo, entre outras manifestações

do currículo, desconsiderando aspectos essenciais relativos à individualidade e à

história cultural dos indivíduos, acaba por estereotipar práticas muito comuns, como a

de tornar explícitos os mais capazes e os menos capazes, o mais indisciplinado e o

mais obediente, o mais questionador ou o mais conformado, etc.

Retornando à experiência da professora Cristal, compreendemos que o êxito de seu

trabalho docente é fruto de uma atenção às múltiplas diferenças existentes em sala,

sobretudo quando ela vai em busca de pistas e indícios acerca da história das

identidades de seus alunos, não no sentido de demarcar tais diferenças com atitudes,

posturas ou rótulos, mas com apoios necessários e essenciais ao crescimento de

cada aluno, dando-lhes possibilidades, acima de tudo, oportunidades de manifestarem

seu conhecimento de múltiplas maneiras.

41 Instituição que acolhe meninas em situação de risco social.

132

C) Os desejos de mudanças movimentando a dialética instituído-instituinte

A produção de conhecimento, segundo Cortesão e Stoer (apud SILVA, 2003),

depende do grau do desenvolvimento do campo de recontextualização pedagógica.

De acordo com os autores citados, essa recontextualização é absolutamente crucial

para que os professores possam fazer a gestão da aprendizagem na diversidade.

É, então, no âmbito da ação pedagógica que tal recontextualização encontrará

significados. Em primeiro lugar, como num processo de investigação-ação, o

professor, progressivamente, vai se apropriando de um maior conhecimento das

características socioculturais e psicoafetivas de seus alunos. Características essas

pouco visíveis, exigindo muitas vezes algumas estratégias de aproximação do próprio

aluno ou de suas famílias, entre outras.

Percebemos daí, no decurso da relação pedagógica e durante as intervenções do

professor, ser possível verificar alterações, tanto no grau e na qualidade do

conhecimento, bem como nos comportamentos que se tinham em relação aos alunos.

Em segundo lugar, a produção de conhecimento tem lugar garantido e fluido, após se

ultrapassar o nível do simples reconhecimento de quem são os alunos, quais suas

características individuais ou mesmo do grupo como um todo.

A partir daí, essas informações possibilitarão a “tradução” ou simplificação do

conhecimento científico, atentando-se para a recriação de conteúdos e metodologias

adequadas àquele contexto e àqueles alunos especificamente (CORTESÃO; STOER,

apud SILVA, 2003). Essa ação pedagógica assim concebida terá influência direta nos

programas oficiais sistematizados, exigindo dos profissionais sua revisão, adequação

e complementações. Nisso consiste o movimento instituinte de novas práticas.

À medida que esse processo vai se configurando, percebemos, por meio das

considerações de Veiga (2006), o sentido dado à docência, estando nela imbricadas

as múltiplas facetas da profissionalidade do professor, quando a ele cabem algumas

responsabilidades, habilidades e conhecimentos específicos para exercê-la

adequadamente. Segundo a autora, uma característica da docência está ligada à

inovação, quando esta

133

[...] rompe com a forma conservadora de ensinar, aprender, pesquisar e avaliar; reconfigura saberes, procurando superar as dicotomias entre conhecimento científico o e senso comum, ciência e cultura, educação e trabalho, teoria e prática, etc.; explora novas alternativas teórico-metodológicas em busca de outras possibilidades de escolhas; procura a renovação da sensibilidade ao alicerçar-se na dimensão estética, no novo, no criativo, na inventividade; ganha significado quando é exercida com ética (VEIGA, 2006, p. 469).

Nas discussões do grupo acerca das cobranças que recebem, direta ou indiretamente,

para o cumprimento a determinadas exigências, como provas e notas em datas ou

períodos definidos, pressões em relação à aprovação/reprovação, muitos professores

colocavam em debate a seguinte questão: será que é realmente possível promover

adequações, inserir práticas no currículo que garantam o atendimento às

individualidades, para a produção de conhecimentos a todos, tendo nós que atender

às demandas já instituídas pelo sistema escolar e até mesmo a algumas

estabelecidas pela sociedade?

Ao mesmo tempo, em frente a tal impasse, registramos a seguinte fala :

[...] não sei se é porque sou nova aqui na escola, mas acho que o trabalho que aqui vem sendo desenvolvido, principalmente com as crianças especiais, demonstra tanto desse respeito às diferenças, acho que refletir sobre currículo tem tudo a ver com o que já fazemos aqui, o acolhimento, as adequações, a avaliação diferenciada, a oportunidade das crianças serem elas mesmas, acho que é fácil ampliar nossas práticas para com todos (PROFISSIONAL do C.T.A.).

Acreditamos que a profissional estava chamando a atenção de todos para a seguinte

questão: para garantir um ensino de qualidade a todos, pressupõe-se que seja

necessário adequar-se às peculiaridades de cada aluno, realizando para isso um

planejamento adequado, escolhendo conteúdos e atividades mais significativos, assim

como oferecendo condições e oportunidades de acesso a outros conhecimentos

disponíveis.

Nesse sentido, é elementar que qualidade no ensino tem relação direta com o sentido

e o significado que o ensino tem para todos os envolvidos no processo de produção

do conhecimento. Cabe, então, refletir acerca das características e peculiaridades que

marcam nosso alunado.

134

Os registros e reflexões que fizemos acerca desses quatro primeiros encontros do

grupo, nesse processo de autoformação, nos deu, como dito, grande visibilidade

acerca das intenções, desejos, desafios e possibilidades que esse grupo expressava.

Percebemos e também ouvimos determinadas expressões, por alguns professores,

afirmando que não deveriam se conformar ou se acomodar às práticas docentes que

não representassem ao menos algumas mudanças, resultantes dos debates,

discussões, proposições diversas e também de relatos emocionados.

Em seguida, registramos o que apreendemos nos quatro últimos encontros, no estudo

do terceiro e quarto capítulos do livro Documentos de Identidade, os quais abordam:

III – As teorias pós-críticas; IV – Depois das teorias críticas e pós-críticas.

Sob a ótica dos estudos culturais, todo conhecimento, na medida em que se constitui

num sistema de significação, é cultural. Nesse sentido, embora a própria Antropologia

não deixasse de criar suas próprias relações de saber-poder, contribuiu para tornar

aceitável a idéia de que não se pode estabelecer uma hierarquia entre as culturas

humanas e de que todas as culturas são epistemológica e antropologicamente

equivalentes (SILVA, 2003).

A tentativa de transposição do que está postulado no parágrafo acima, para as

situações vividas nos cotidianos do contexto escolar, levou o grupo a considerar várias

questões em relação ao seu alunado.

Alguns exemplos eram, então, trazidos de suas experiências e, evidentemente, de

forma simplificada e reduzida àquilo que entendiam como estabelecimento de

hierarquias entre as culturas humanas.

Alguns deles são: a) os gordinhos tratados em sua grande maioria com desrespeito e

desdém, ficando de fora, às vezes, somente os “bonzinhos”, amigos e prestativos; b)

os adolescentes que, por sua grande necessidade de afirmação e construção de

identidade, escolhem modos de vestir e comportar-se ou ainda os ritmos/letras/estilos

musicais que parecem trazer marcas, até estereotipadas, do negro e do pobre, como

culturalmente inferior; c) aqueles que elegem os padrões fixos de beleza, sobretudo as

meninas, determinando-lhes, sobremaneira, a perda ou aumento de sua auto-estima.

135

Os exemplos são simples, porém concordamos com o grupo, quando apontam que

essas questões estão colocadas num plano hierarquicamente inferior em relação às

culturas humanas. Ou seja, o gordo não tem lugar, onde a maioria é magra, o

adolescente negro e pobre, porém com as mesmas necessidades de qualquer outro

adolescente que, se vendo à margem das oportunidades, identifica-se com quem mais

se aproxima de seus ideais, sonhos e desejos.

Reconhecemos, dessa maneira, que essas questões estão em grande medida

submergidas pelo privilegiamento de uma cultura hegemônica entre as pessoas e que,

por meio dos diversos canais de disseminação (mídia, TV, etc.), faz perpetuar normas,

regras, verdades, modos de comportamentos, de ser, de estar, etc.

O respeito que se deve ter com as diferentes opções de vida, em relação à

sexualidade e à religião, entre outros aspectos, costumes, modos de ser e estar, que

diferenciam pessoas e culturas, também foi discutido e debatido pelo grupo, levando-

os a um discurso uno de que, quando se respeita, ensina-se e constrói-se a idéia de

respeito para ser disseminada aos demais sujeitos em interação com nossos alunos.

Ou seja, esse respeito se construirá aqui na escola e, conseqüentemente, se

desdobrará nas demais relações que os alunos mantêm fora dela.

O fracasso escolar foi também discutido, sendo apontado e, ao mesmo tempo,

questionado pelo grupo, como uma questão reincidente entre os alunos pertencentes

a grupos étnicos e raciais minoritários, assim como entre os alunos que apresentam

necessidades educacionais por deficiências ou não. A baixa expectativa que se

mantém, em relação tanto a um como ao outro grupo, foi apontada como um elemento

avassalador ao desenvolvimento e à aprendizagem dos alunos.

Ferreira (2005) nos diz que, sendo a escola uma instituição organizada para alunos

que correspondam a um ideal-padrão, desconsiderando o sujeito real que é o aluno,

“[...] implementa sua atividade pedagógica a partir de um sistema de ensino

organizado por um currículo não flexível; e seleciona os conteúdos segundo uma

seqüência rígida [...]” (FERREIRA, 2005, p. 148). Dessa maneira, o aluno que,

antecipadamente, não se encaixa nesse modelo, nem demonstra acompanhar os

objetivos desta escola, passa a ser olhado com poucas condições de

desenvolvimento, restando, sobretudo aos alunos com deficiência, só o processo de

socialização, este sendo apresentado como um objetivo distinto e de segunda ordem.

136

Lembramos que, em análises anteriores, frutos de importantes estudos e pesquisas

de vários estudiosos, a raiz desse fracasso se concentrava nos mecanismos sociais e

institucionais que, de forma geral, deixavam de questionar o tipo de conhecimento que

estava no centro do currículo que era oferecido às crianças, ou seja, o currículo não

era problematizado.

O problema residia centralmente nas origens desse aluno, nas questões trazidas com

ele para a escola, na sua incapacidade de adaptação, na sua falta de prontidão em

receber os conhecimentos elencados no currículo ou ainda na consideração de que a

escola não é lugar para determinados sujeitos, por exemplo, as crianças com

deficiências e que exigem significativas mudanças na estrutura pedagógica da escola.

Felizmente, os questionamentos atuais parecem focalizar outras direções, assumindo-

se o estatuto da não culpabilização do aluno ou de suas condições como as únicas

responsáveis por seu fracasso.

Outros elementos e aspectos passam a ser considerados, focalizando, desse modo,

outras instâncias já instituídas em nosso sistema educacional, como as concepções e

práticas de ensino e aprendizagem, estas muito voltadas a um ideal de aluno

pretendido, e também a não funcionalidade e a falta de sentido e significados de

determinados conteúdos ante a realidade na qual está inserido o aluno.

Ressaltamos, ainda, que os modos de organização e estruturação do currículo como

um todo passam a ser olhados como passíveis de mudanças, pois se mostram como

dissonantes a um processo de construção do indivíduo que traz em si uma

multiplicidade de experiências, necessidades e possibilidades.

A não flexibilidade posta pela regulação do tempo e do espaço na construção do

conhecimento, diante da fragmentação do conteúdo por disciplinas, aliada à maneira

excludente, coercitiva e com funções e objetivos distantes do que realmente deve ser

um processo de avaliação, revela essa dissonância nos contextos escolares.

Consideramos, então, que as discussões dos dois últimos capítulos da obra de Tomaz

Tadeu, além de oferecer um aprofundamento acerca do conhecimento sobre as várias

nuances do currículo, permitiram uma problematização das práticas, tanto individuais,

quanto do coletivo da escola.

137

Exemplos de atitudes, trabalhos em sala de aula desenvolvidos pelos professores,

entre outros projetos da escola, foram lembrados como práticas muito positivas na

construção de um currículo multicultural, assim como outras práticas foram avaliadas

pelo grupo como dissonantes a um projeto pedagógico que prima pela construção e

respeito às identidades representadas por todos os atores do contexto escolar.

Sendo assim, limitar-nos-emos às reflexões até aqui realizadas, uma vez que

consideramos que já tenham conduzido o leitor, conforme nossa intenção, ao

entendimento do lugar em que estávamos e que minimamente possa imaginar quem

são esses profissionais, em face das angústias, intenções e desejos por nós

apreendidos e aqui registrados.

Consideramos, também, que tenha ficado evidente ao leitor que os profissionais

integrantes do grupo têm percorrido um caminho em que nele estiveram entrelaçados

os múltiplos momentos e situações por eles vivenciados. Nesse entrelace, estavam

os desafios, resistências, sentimentos de “incompetência e impotência” até a

descoberta das possibilidades, pela busca/ampliação dos conhecimentos sobre temas

como: ensino, aprendizagem, aluno, escola, avaliação, currículo inclusivo, etc.

Acreditamos que essa busca os fez aprimorar suas práticas, pelo questionamento,

pela formação, autoformação, entre outros processos de desenvolvimento pessoal.

Lembramos, por fim, que a própria escolha e opção pela temática estudada e

discutida no processo de autoformação, o qual acabamos de concluir, se deu em

função também desse percurso marcado por questionamentos e buscas.

Mesmo existindo outras questões, que foram apresentadas e debatidas pelo grupo

nos últimos quatro encontros, e não sendo menos pertinentes ao nosso estudo e

objetivos, estaremos encerrando aqui nossas reflexões sobre o processo de

autoformação.

6.2 OS ESPAÇOS-TEMPOS VIVENCIADOS NO GRUPO DIAGNÓSTICO

A seguir, discutiremos o processo vivenciado no Grupo de Diagnóstico, apresentando,

além da dinâmica utilizada na abordagem e envolvimento dos profissionais, as

discussões por nós consideradas pertinentes, a partir do aporte teórico que tem

sustentado e fundamentado nosso pensamento.

138

O referido processo se desdobrou em nove encontros que aconteceram durante o

período de outubro de 2005 a abril de 2006, 42 com a duração de uma hora e vinte

minutos cada encontro. Para uma melhor compreensão do leitor sobre o processo

como um todo, fizemos uma organização em que os encontros foram tratados e

analisados sob os seguintes tópicos:

a) 1º e 2º encontros: Diálogo de si para si – os primeiros encontros;

b) 3º ao 6º encontros: O diálogo, o debate e as descobertas com o outro e

para o outro;

c) os três últimos encontros, ocorridos já no primeiro semestre de 2006: Redes de

significados em construção: entre os desafios e as possibilidades.

Lembramos que a constituição do Grupo de Diagnóstico (G.D.) se deu assim que se

encerraram os grupos de estudos de autoformação, já em andamento na escola. Na

ocasião, apresentamo-nos com a intenção formal de realização do presente

estudo/investigação.

Por conter em sua proposta a idéia de formação em profundidade, sem, no entanto,

tomar a figura do pesquisador ou de um formador para tal, o G.D. veio se constituindo

como uma “instituição” que comportava a expressão livre de desejos, sentimentos,

angústias, proposições, questionamentos, resistências e possibilidades numa

coletividade, que agregava ali, naquele momento, os profissionais envolvidos no

processo educativo dos alunos e alunas da escola.

As expressões que partiam de si para o outro e com o outro, não de alguém que diz a

outrem o que deve ser feito, mas que “se dizem” o que fazer, porque fazem juntos e

desejam realizar mais do que realizam, revelaram-se como fonte de aprendizagem,

formação e produção de conhecimentos, promovendo, desse modo, mudança de

atitudes, crenças e, por conseguinte, de práticas.

Pensando, então, numa organização didática que favorecesse um melhor

entendimento de nossa proposta, bem como sobre as discussões emanadas desses

encontros, trazemos, logo no tópico que se segue, a apresentação e considerações

acerca dos dois primeiros encontros, como anunciado.

42 Destacamos que, desde agosto de 2005, já estávamos na escola em processo de investigação e coleta de dados.

139

Após o referido tópico, traremos as discussões de outros quatro encontros do grupo,

os quais serão analisados e discutidos em sua totalidade e apresentados em três

blocos categoriais.

6.2.1 O diálogo de si para si – os dois primeiros encontros

Provocar interesse em um grupo requer, além do conhecimento de suas necessidades

e desejos, uma sensibilidade na escolha de dinâmicas para sua abordagem. Essa

escolha pode conduzir o grupo a abrir-se à possibilidade de se humanizar e de se

identificar como seres humanos nos planos da subjetividade e da intersubjetividade.

Esse fenômeno, acreditamos, emerge das relações que se estabelecem com o outro,

consigo mesmo e com o mundo.

Na instituição escolar, as marcas dessas relações são profundas e de grande

significado, sobretudo pela formalidade de suas relações. Essas marcas impingem

certos comportamentos e o surgimento de várias outras instituições no seio da escola.

As relações formais, tanto quanto as informais que na escola são constituídas, são

marcadas pelas contingências sociopolíticas e culturais dos contextos históricos que

trazem cada sujeito, membro desse grupo, que, de maneira explícita ou não, são

atravessadas pelas dimensões corporal, afetiva e cognitiva.

Nosso objetivo para o primeiro encontro 43 desse grupo foi permitir aos participantes,

de maneira lúdica, uma aproximação mais refletida e indagadora a respeito de alguns

alunos daquele espaço escolar. Os participantes podiam também se colocar como

sujeitos indagados, em função de suas relações com os alunos.

Antes, porém, de discorrer sobre o desenrolar desse encontro, é importante acenar

para alguns direcionamentos teóricos e caminhos possíveis que tal abordagem

dinâmica nos permite.

A dinâmica escolhida possibilitou delinear e situar os níveis pessoa, pessoa-pessoa,

grupo, organizações e instituições, referenciadas por Ardoino (1971). De forma mais

43 Por opção de natureza metodológica, estaremos nos referindo assim apenas nas análises desse primeiro encontro. As análises e discussões dos demais encontros serão diluídas em todo o texto, na tentativa de organização de grandes categorias.

140

elaborada e sob uma leitura moreniana, 44 a Diretoria de Ensino e Ciência(DEC), 45

segundo Fleury e Marra (2005), os representa assim:

• A pessoa – é representada por você e eu, cada um com uma história de vida,

marcada por relações. No pensamento moreniano, diz-se estar diante da “[...] menor

unidade social viva: A pessoa e seu átomo sociocultural” (MORENO, 1992, p.159,

apud FLEURY; MARRA, 2005). Para o autor, a pessoa é intrinsecamente relacional:

constrói-se na articulação dos papéis que vive (psicossomáticos, imaginários e

sociais).

• Pessoa-pessoa – você e eu, ele e eu, nós, o biocorporal, o interpessoal, a

possibilidade de construção de vínculo na partilha de afetos, de idéias, do mundo

comum, ou na experiência de estranhamento e desencontro.

Neste plano, percebe-se que as relações já acontecem sempre tendo por base um

espaço social: é o filho, o amigo, o profissional. Esse lugar é permeado de

expectativas e condutas esperadas das pessoas em suas relações. Numa perspectiva

social, são os scripts, as regras e as normas prescritas pela cultura, que norteiam os

comportamentos.

• O grupo – temos aqui o “nós” ampliado: eu, você, ele, mais um... e cada qual com

cada outro. Uma teia se forma, um campo de forças que nos liga por necessidades e

motivações comuns, constituindo-se, desse modo, numa matriz relacional.

Segundo as autoras, é nessa instância que damos conta da vida cotidiana: na escola,

é a classe, ou nossos colegas de trabalho; no trabalho que não seja a escola, é a

seção, a equipe. O grande desafio e diferencial é não sermos meros amontoados,

“agrupamentos”, mas construirmos uma vida em relação.

• As organizações – aqui, vamos percorrer o plano dos estabelecimentos, com seus

regimentos, suas normas. Sabe-se que as estruturas formais podem ser ocasiões de

relações autoritárias, permeadas pela burocracia, ou seja, a separação entre os que

decidem e os que fazem. No entanto, o contato “face a face” entre os que compõem a

44 Jacob Levy Moreno, médico, educador e psicoterapeuta, criador da Pedagogia Sociopsicodramática, diz que toda escola “[...] deve possuir um placo de psicodrama como laboratório de orientação que trace diretrizes

para os seus problemas cotidianos [...]” (MORENO, 1992, apud, FLEURY; MARRA, 2005, p. 27). 45 Essa diretoria se refere à gestão 2003-2004 da Federação Brasileira de Psicodrama.

141

organização vai ganhando amplitude nas novas e complexas estruturas, ante os

critérios que objetivam o exercício da ação estética, ética e política que se impõe na

vida relacional cotidiana.

• As instituições – estas constituem o plano mais abrangente, se olharmos para o

sistema social articulado pelo Estado, entendido como o conjunto de leis que rege a

conduta social e política de um povo constituído historicamente. Porém é, ao mesmo

tempo, o plano mais invisível, se olharmos os padrões de comportamento inscritos na

cultura. Segundo Lapassade (1983), a dimensão institucional criva a vida das

organizações, dos grupos e das pessoas, atravessando nossos papéis psicossociais,

legando-nos o “instituído”. Desse modo, ao analisar e considerar os níveis aqui

descritos, perceberemos a sua presença na tensão entre o instituído e instituinte, em

uma constante dialética, assim como um convite para participarmos do desafio de

ressignificar o instituído e a se “[...] preservar e ousar realizar rupturas com o que

perdeu o sentido [...]” (FLEURY; MARRA, 2005, p. 29). Isso requer de nós presença e

responsabilidade diante da necessidade de mudanças pessoais e sociais.

Tendo suscitado a compreensão do leitor para os fundamentos que nos motivaram à

organização e preparação desse primeiro encontro do grupo, aqui chamado de Grupo

Diagnóstico, passamos a mergulhá-lo nos diálogos “consigo”, “com o outro” e “para o

outro”. Apresentamos, a seguir, a dinâmica de trabalho para aquele momento:

1º disponibilizamos massas de modelar, palitos e outros objetos que pudessem

facilitar o trabalho de modelagem;

2º orientamos o grupo informando que tanto poderiam estar sozinhos ou em

duplas para a realização da tarefa;

3º solicitamos que, com as massinhas, construíssem alguns sujeitos (alunos ou

não) daquela realidade escolar, que se constituíam, de alguma forma, em

objeto de indagação e curiosidade acerca de quaisquer questões de sua vida,

tendo como motivadores seus comportamentos positivos e negativos,

favoráveis ou desfavoráveis dentro do contexto escolar.

142

Aos poucos, envolvidos pela melodia suave que invadia o ambiente, foram, ora

sozinhos, ora em duplas, escolhendo os materiais, cuidando na escolha das cores

adequadas e/ou desejadas.

Percebemos que, no processo de reprodução de seus “sujeitos”, e à medida em que

construíam suas “esculturas”, realizavam tentativas de “diálogos” com eles, ao que

eram despertados a uma conversa consigo mesmos.

Como num processo de criação e recriação, pois, faziam e refaziam suas esculturas,

iam surgindo formas, inanimadas, sim, mas de modo incrivelmente belo, que

convidava o escultor ao diálogo com sua obra de criação, ou melhor, reprodução.

Parte desse diálogo, apreendido nos primeiros instantes, pode assim ser registrado:

“Ah! só serve aluno? Preciso me fazer também!”

“Vou questioná-lo! Quero saber, preciso saber por que tanta desmotivação!”

“Ah! Também, você quer o quê? Falta tudo pra ele, lazer, comida...”

“Minhas indagações não são só para os alunos com deficiência. Tem muita coisa que não sei sobre os outros.”

“É [...], agora vejo quanta coisa falta saber sobre esses meninos! É só se debruçar, pensar um pouco e vemos que sabemos tão pouco!”

“Será que, se eu tiver algumas respostas para essas perguntas, vou poder ajudá-lo mais?”

“Tem coisas que não daremos conta nunca!”

“Por que você mudou tanto, menino! O que aconteceu com você?”

“Tem um jeito melhor da gente se comunicar? Você parece não entender o que eu falo!”

Nesse contexto de livre expressão, em que o diálogo assume um papel de grande

relevância, afirmamos que o diálogo de si para si, com o outro (com o seu aluno) e

com os outros (seus colegas) serviu claramente como um processo de construção de

conhecimentos.

Lembramos de Alarcão (2003), quando nos fala que o processo de reflexão é inato no

ser humano, porém é necessário um contexto que favoreça o seu desenvolvimento.

143

Tínhamos, seguramente, um contexto, aqui chamado de G.D., que lhes permitiu o

início de um processo reflexivo.

O próprio diálogo com a própria situação, que nos fala ou nos comunica algo, se

constituiu, então, em estratégia importante para a produção desse conhecimento num

contexto que podemos chamar de formativo.

A simples possibilidade de direcionar um espaço e um tempo de reflexão e indagação

acerca de alguns sujeitos que se mostram como um desafio ao trabalho dos

profissionais daquele grupo faz com que venha à tona, antes mesmo de nossa

solicitação para que questionem e indaguem pontualmente (isso seria registrado por

eles), vários elementos que circundam e permeiam o imaginário de todos ali

presentes. Esses elementos iam desde a negação total de solução dos problemas,

colocando-se totalmente impotentes para intervir neles, até à formulação de hipóteses

para a explicação de tais problemas.

É importante lembrarmos que o diálogo, segundo Alarcão (2003), não pode se

circunscrever meramente num nível descritivo. A explicação e a crítica têm que

permitir aos professores “[...] agir e falar com o poder da razão” (p.46). Para isso, será

preciso que os professores e demais envolvidos no processo de diálogo realizem um

grande esforço para passar do nível meramente descritivo ou narrativo, para o nível

em que se buscam interpretações articuladas e justificadas e sistematizações

cognitivas daquilo ou daquele de quem falam.

Dessa forma, os diálogos foram se estruturando e se interpenetrando, sendo, ao

mesmo tempo, para si mesmos, para o outro e com os outros, ultrapassando os

limites da descrição para a crítica e a explicação. Alguns então diziam: “Temos muitos

sujeitos que são realmente incógnitas, isso não deveria acontecer!”.

O que é uma incógnita? Será um enigma, um segredo? Será que é assim mesmo que

muitos de nossos alunos são percebidos na escola? Direcionar-lhes perguntas e

questionamentos, a fim de conhecer ou desvendar seus segredos pode, mesmo que

simbolicamente, ajudá-los a descobrir ou “construir” respostas para si mesmos, além

de, pela tentativa do desvendamento, obter a certeza de que talvez não haja

respostas, nem caminhos predefinidos à solução.

144

Solicitamos, assim, depois de terminada a tarefa (modelagem e das tentativas de

“diálogos”), que escrevam todas as indagações e questionamentos aos sujeitos que ali

estavam, simbolicamente representados por esculturas nas massas de modelar, para

os quais gostariam ou necessitariam de respostas

Percebemos, então, que os desafios enunciados e registrados acerca desses sujeitos

estavam circunscritos, em sua maioria, entre limites por eles apresentados em relação

à aprendizagem, ao comportamento “socialmente adequado”, ao interesse e

comprometimento que deveriam ter com os estudos, os desejos e expectativas quanto

ao seu futuro.

No calor das discussões, já tinha sido possível apreendermos algumas contradições

em seus diálogos. Vejamos: ao mesmo tempo em diziam que os limites que

apresentavam se opunham frontalmente àquilo que desejavam ou idealizavam, em

referência aos seus alunos sem deficiência, afirmavam reconhecer e compreender

esses limites, necessidades e possibilidades de uns ou outros com deficiência.

Daí algumas questões importantes emergem: será impossível aos professores

conjugarem seus ideais, desejos e sonhos mantidos por um ideal de aluno, em frente

à realidade expressa nos sujeitos concretos, presentes no espaço escolar (alunos com

deficiência ou outra condição comprometedora)? Os sonhos se diferem de acordo

com o aluno? Em relação a uns, posso me resignar, “aceitar” e conformar-me às suas

impossibilidades e limitações, mas, em relação a outros, tenho que me frustrar? Não

deveríamos nutrir o mesmo sentimento em relação a todos os nossos alunos?

Questionados sobre tal contradição, reelaboram suas colocações, sobretudo ao

considerarem suas “lembranças” acerca de alguns alunos em anos anteriores e os

desafios maiores que eles apresentavam, parecendo-lhes quase insuperáveis.

As lembranças dos desafios vividos em anos anteriores, comparadas com o que

podiam avaliar de suas práticas, como do desenvolvimento de seus alunos, os fazia

agora refletir que tais desafios, quase insuperáveis, eram insuperáveis muito mais,

considerando-se os seus saberes e fazeres quanto à gestão da aprendizagem desse

aluno, do que o desafio inscrito no aluno por suas limitações.

145

Refletiam ainda acerca dos desafios “insuperáveis” e das impossibilidades,

observando que estes estão intimamente relacionados com a visão que temos ou

projetamos da situação, podendo esta ser/estar em função de qualquer aluno.

Isso podia ser comprovado, ao verificarmos que seus alunos modelados eram, em

grande maioria, alunos sem deficiência, demonstrando, consciente ou

inconscientemente, aquilo que pensavam.

Dentre os sujeitos representados/modelados, trazemos aqui aqueles que melhor

traduzem o objetivo da referida tarefa, considerando, no entanto, que todos os

sujeitos, eram, na visão do grupo, a expressão dos desafios.

Vejamos agora algumas considerações acerca dos sujeitos que elegemos para aqui

apresentar e realizar algumas reflexões:

Pedro

Foto 1: Sujeito aprendiz e que fez aprende

Este é o Pedro. 46 Na verdade tive o prazer em ser professora dele, sobretudo quando vejo, apesar de todas as dificuldades que enfrentamos, o quanto ele era e ainda é capaz. Será que, se contássemos, alguém acreditaria? Quero dizer também que a mãe dele nos ajudou muito, pois ela compartilhava com a gente as dificuldades que tinha com o filho. Ela tinha consciência da nossa limitação, e que era devagar que iríamos aprender como ajudá-lo aqui na escola (PROFESSORA da 5ª série).

Pedro (Foto 1) é aluno da escola desde a 1ª série. Seu diagnóstico inicial apontava

hiperatividade com déficit de atenção, porém, em função de todas as questões e mitos

que envolvem a hiperatividade, Pedro apresentava um comportamento e um

desenvolvimento, até a 3ª e 4ª séries, de um aluno com deficiência mental. Sua

aprendizagem estava muito comprometida e sua relação com o outro era

46 Nome fictício.

146

extremamente prejudicada. Tinha ações inesperadas de agressividade e por isso

dependia de apoio de estagiários constantemente. A simples possibilidade da

professora ou da estagiária sair por algum momento apavorava Pedro. Enfim, diante

da realidade na qual fora descrito o aluno, uma baixa expectativa quanto ao seu

desenvolvimento pairava para a maioria na escola.

Registramos que o aluno, até 2004, era acompanhado em horário integral, na sala de

aula, por uma estagiária. Sobre isso, analisamos a questão das ações instituídas no

espaço escolar, que determinam ou não certas atitudes, muitas vezes impedindo

reflexões, questionamentos e a adoção de novas posturas no trabalho educativo.

O referido aluno tinha inscrito em si o estereótipo da deficiência, a marca da

impossibilidade: impossibilidade de ficar sozinho, impossibilidade de fazer as tarefas

escolares, entre outras. Essa incompetência e impossibilidades foram geradas e

determinadas por suas incapacidades cognitivas e comportamentais, vistas como não

“adequadas e ideais”, em avaliações anteriores.

Porém, mesmo sendo visível seu desenvolvimento, sua história de impossibilidades o

acompanhava. O medo e a insegurança 47 de tentar deixar Pedro caminhar sozinho,

enfrentar seus desafios, suas frustrações, como os demais alunos enfrentam, ainda

faziam com que alguns profissionais alegassem também a necessidade absoluta de

ser o aluno acompanhado por um estagiário.

Ressaltamos, entretanto, um dos importantes momentos da escola e que, em nosso

olhar, veio contribuindo e reforçando paulatinamente alguns processos de mudança

silenciosos naquele contexto escolar. Esse momento foi o início do processo de

avaliação e reestruturação do Projeto Político-Pedagógico (P.P.P.) da escola.

O referido processo se deu no período de 2004 e, dentre os vários tópicos discutidos e

debatidos pelos profissionais, surge a necessidade de se aprofundarem em questões

fundamentais acerca do que é ser uma escola inclusiva, revelando-se esta como um

tópico emergente.

47 Esses medos e inseguranças partiam em grande medida da família que considerava impossível o aluno realizar suas atividades na escola sem o acompanhamento direto da estagiária. Isso fortalecia a crença nos profissionais da escola de que realmente era impossível. Parece que o medo de um alimentava o medo do outro.

147

As pedagogas que estavam, naquele período, junto à equipe de professores

convidaram-nos 48 para coordenar os grupos de estudos. Esses se deram em três

encontros, nos quais abordamos, como temática central, o trabalho com a diversidade,

tomando especificamente a função e a atribuição do professor em ser professor de

todos os alunos da classe, e não de alguns somente.

Com ênfase maior, apresentamos e discutimos a relação que deve haver entre o

professor reflexivo e a escola reflexiva, a fim de cumprir os objetivos centrais

atribuídos a ambos.

Baseamos, assim, nossas discussões, nos apontamentos de Alarcão (2003), quando

assegura que o professor não poderá agir isoladamente na sua escola, haja vista ser

ali que ele construirá sua profissionalidade docente.

A questão última e tônica de grande parte das discussões esteve relacionada ainda

com a necessidade ou não de estagiários. Perguntas como: o apoio do estagiário se

direciona a quem? Ao professor ou especificamente ao aluno com deficiência?

Essas, entre outras discussões, acreditamos, foram as bases para o convite à reflexão

para que se pudesse, por exemplo, pensar em novas possibilidades de apoio aos

alunos com necessidades educacionais especiais naquela escola, que não fossem

exclusivamente pelos estagiários.

Retomando nossa reflexão sobre o aluno Pedro, percebemos, já em 2005, que ele se

encontrava mais independente. Salientamos que, devido a várias questões de

organização do próprio setor que cadastra, avalia e envia os estagiários, o aluno

passou a freqüentar algumas aulas sem o referido apoio.

Essa situação, mesmo que originada inicialmente fora do âmbito daquela instância

institucional, forçosamente, foi desvelando alguns mitos construídos em torno do

comportamento de Pedro, formulados talvez sobre algumas bases verdadeiras e

concretas, mas que não tinham que persistir pra sempre.

A partir do mês de outubro de 2005 em diante, o aluno passa a estar sem o estagiário

em classe, desenvolvendo todas as tarefas, devidamente organizadas e orientadas à

48 Lembramos o leitor que tínhamos, nesse período, a função de Coordenação e Assessoria à Educação Especial na região à qual pertencia a escola na qual realizamos este estudo.

148

sua possibilidade de realização. Os problemas de comportamento, insegurança e

medos, gradativamente, foram sendo superados.

De volta ao que registra a professora acerca do aluno Pedro, é bom destacar que ela

atua na escola desde 1996 e faz questão de ressaltar que conhece o aluno, entre

alguns aspectos de sua história de vida, seja por participações em alguns conselhos

de classe, mesmo naquela época não sendo sua professora, seja nas demais

atividades cotidianas de seu percurso na escola.

A escolha por modelar esse sujeito, diz a professora: “[...] é ele ser um exemplo pra

nós de que é preciso acreditar [...], ele lê, escreve, é lógico que não é possível

compará-lo aos demais da classe, mas, avaliando-o em relação a ele mesmo, ele é

10!”

Os profissionais do grupo, em frente à exposição acerca de Pedro, demonstram

concordância, fazendo breves comentários pontuais de uma situação ou outra

vivenciadas por eles, sobretudo relativas às resistências que o aluno demonstrava.

Notamos, no entanto, que um dos profissionais, após as reflexões, comenta o

seguinte:

É interessante observarmos que não só o Breno amadureceu, desenvolveu-se pouco a pouco e adaptou-se às várias normas e regras sociais estabelecidas na escola, mas também, nós nos adaptamos às necessidades dele, buscamos conhecê-lo melhor.

A compreensão de que, em muitas situações, não é o aluno que terá que se adaptar

ao modelo já determinado de escola e, sim, a escola é que deve conhecer as

necessidades de seu alunado, assim como redefinir as formas e as estratégias de

tornar qualquer criança um aluno de verdade, vem revelar crescimento e um grande

ganho nas reflexões desse grupo.

Meirieu (2002), ao discorrer sobre o momento pedagógico, faz referência à descoberta

pelo professor do aluno concreto e acrescenta que esse momento se traduz no

[...] no instante em que, sejam quais forem nossas convicções e nossos métodos pedagógicos, aceitamos ser surpreendidos diante desse rosto, diante de sua estranheza, de sua radical e compreensível estranheza (MEIRIEU, 2002, p. 60).

149

Paulo

Foto 2: Sujeito “especial”

Sobre o sujeito acima modelado, a profissional que o reproduziu faz o seguinte

comentário:

Não pensei nos alunos especiais. Pensei nos nossos alunos em geral. Esse é o Paulo. 49 Ele tem 15 anos e está na 6ª série. Ele disse que não quer saber de estudar [...]. Ele é diferente. Não consigo tocá-lo. Conversei com ele e ele nem aí. Me senti um zero à esquerda [...]. Na verdade ele não agüenta o peso dos apelidos. Chamam ele de blue (PROFISSIONAL do CTA).

A distância, demonstrada pelo aluno, pelos estudos e pela escola, parece se constituir

em uma forma de resistência àquela que lhe causa tanto sofrimento, ou seja, o de não

ser respeitado pelos colegas, o de ser oprimido devido à cor, entre outras opressões.

Resgatar Paulo significa, para a profissional que o elegeu como um sujeito-desafio,

uma questão de resgate à sua própria auto-estima.

Cada grupo/duplas ia expondo suas dificuldades, seus questionamentos àqueles que

se colocavam como “incógnitas”, como expressou anteriormente uma professora, ou

desafiava os padrões instituídos e a ordem estabelecida, ou seja, a de se esperar ou

desejar os mesmos resultados, ainda que de sujeitos diferentes.

O sujeito acima apresentado, como aquele que aparentemente não “está nem aí” pra

nada à sua volta, muito menos para os estudos e o que eles podem significar para sua

vida presente e/ou futura, representa um convite aos profissionais para que se

interroguem acerca do que realmente o faz assim.

Será que o sentimento e angústia de não ser respeitado como sujeito negro, como pessoa e como ser humano como qualquer outro ali, ao seu redor, desencadeia tanto desestímulo e falta de vontade? (PROFESSORA de 5ª a 8ª série).

49 Nome fictício.

150

Não acho que seja somente isso. Essa dificuldade de lidar com o apelido e com a humilhação que deve sentir, deve vir de uma história anterior à escola, sabe, as pessoas que não acreditam nele, a própria família [...] (PROFISSIONAL do C.T.A.).

O que se mostra bastante interessante é que talvez, nesse diálogo, seja possível, por

várias hipóteses que eram tecidas e construídas, chegar a algumas respostas e/ou

soluções.

É preciso trilhar esse caminho investigativo sobre os nossos alunos e não se

conformar em absoluto com determinados comportamentos. Se esses nos transmitem

a sensação de entrega das forças, da capacidade de lutar, da sensação do não poder,

do não ser, como formas de sujeição e fracasso inscritos, seja pelo peso da diferença

étnica, da deficiência, seja pelas questões socioeconômicas, seja por quaisquer outras

que possam causar sentimentos de não pertença ao grupo, aí, sim, é que temos que

redirecionar nossas ações.

Profª Crista l

Foto 3: Sujeito que se indaga

Tendo modelado a si mesma, a professora Cristal (Foto 3) indaga-se, questionando-se

sobre como tem sido sua atuação:

O que eu tenho feito tem sido suficiente para atender às necessidades de meus alunos? E as minhas necessidades? Do que eu preciso como sujeito com responsabilidades e compromissos tão sérios? Que sentimentos me movem?

O grupo não esperava que alguém dentre eles se manifestasse, questionando-se a si

próprio, mesmo que a sugestão/orientação para a dinâmica tenha deixado em aberto

tal possibilidade. Após o estranhamento inicial, diante das perguntas da professora,

alguns começaram a compartilhar com ela alguns de seus questionamentos,

chegando até a expressar respostas.

151

É interessante que, ao apresentarem os seus sujeitos, os demais ouvintes se

arriscavam a dar respostas, informações sobre as famílias, entre outras que ou eram

conhecidas por uns, ou eram totalmente novas para o grupo.

Percebemos aí um envolvimento e um interesse singular em contribuir com aqueles

que se mostram particularmente angustiados e em busca de alternativas, tendo em

vista atuarem diretamente com os alunos apresentados.

Há no grupo certa sintonia, um pertencimento e, conseqüentemente, um desejo

coletivo em resolver tanto os seus como os problemas de seu alunado. Talvez o que

falta ou o que precisa ser pontualmente questionado e analisado tenha relação direta

com o que expressam alguns profissionais, conforme resumo:

a) A escola não agrada a maioria dos que aqui estão; tudo lá fora é diferente,

aqui fazemos quase exatamente o que fazíamos há dez, quinze anos atrás, não

mudamos quase nada.

b) Há pouca novidade.

c) A fase desses meninos é muito complicada.

d) Tentar moldá-los é impossível.

e) Somos limitados em nossas ações: é o programa, é a prova, é a nota, é a

disciplina, é a grade curricular, é a sociedade com suas cobranças, é tudo

muito aprisionante.

f) Como fazer diferente?

Trazer à tona esses anseios, discuti-los e expor o desejo de impor uma nova ordem,

mesmo se deparando com as instituições 50 já demarcadas, sinalizam ou disparam a

possibilidade de novas ações concretas para os cotidianos daquela escola.

Percebemos, nas falas dos professores, mesmo de forma não consciente, o

entendimento ou o reconhecimento de estarem transitando o espaço da

complexidade, pois, ao considerarem determinada questão, remetem-na às

50 O termo instituição aqui é utilizado para expressar os “códigos” que estão escritos e não escritos.

152

imbricadas relações que mantêm com a totalidade (relações sociais, familiares e

subjetivas, etc.).

Nesse sentido, o exercício que se empreende para compreender uma realidade,

entendendo-a como complexa, por exemplo, os vários apontamentos que fazem os

professores ali naquele momento, significa entender a interdependência entre todos

os fenômenos implicados em tal realidade.

Entretanto, mesmo entender a existência de vários fenômenos em situações reais não

garantirá “[...] a absoluta compreensão completa e definitiva da realidade” (ABREU

JÚNIOR, apud MARTINS, 1998, p. 24), ou seja, compreender que, nos dias de hoje,

estamos mergulhados cada vez mais em um cenário de complexidade é reconfortante,

à medida que se retira do paradigma positivista a idéia de que do conhecimento

científico emanam todas as verdades e respostas.

No âmbito da complexidade, a ciência, com suas previsibilidades, é concebida como

uma entre outras formas de representação do conhecimento, caracterizada desse

modo como uma, dentre muitas possibilidades de interpretação da realidade

(MARTINS, 1998).

O grupo de profissionais, nesse primeiro momento, em sua maioria, considera que há

vários elementos interdependentes, intrínsecos ou extrínsecos aos alunos, e que na

maioria das vezes os explicitam de maneiras diferenciadas, ou seja: uns resistem

apaticamente, outros resistem rompendo frontalmente com as normas, outros também

resistem quando não conseguem se expressar de uma forma ou de outra.

Parece haver uma frustração e uma angústia diante do reconhecimento dessas

resistências, tendo em vista, como nos diz Martins (1998), ainda sonharem com uma

espécie de unidade, na formação integral dos educandos.

Repensar algumas características de nosso sistema educacional, e no quanto este

desconsidera a heterogeneidade, a pluralidade da experiência e do conhecimento

advindos dos sujeitos/atores que ali estão cotidianamente envolvidos, é perseguir um

caminho que nos levará à noção de que não mais é possível simplificar e delimitar

para solucionar, uma vez que cada questão, cada problema ou mesmo solução estão

emaranhados em múltiplas redes de significação.

153

Isso nos faz refletir sobre a complexidade que vemos pairar na realidade escolar, na

tentativa de melhor compreender os fenômenos educativos, assim como descobrir que

implicações essa reflexão poderá ter nas práticas do dia-a-dia da escola, em todos os

fazeres.

Burhan (1993, apud MARTINS, 1998, p.26) explica um pouco mais sobre a noção de

complexidade, apoiando-se em Jacques Ardoino:

[...] complexidade é o que contém, engloba [...], o que reúne diversos elementos distintos, até mesmo heterogêneos, envolvendo uma polissemia notável, Tratar com a complexidade para esse autor (refere-se a Ardoino) implica lançar mão de um estatuto de análise bem diferenciado daquele da análise cartesiana, em que esta significa instrumento de decomposição, desmonte, desconstrução de um todo em suas partes elementares, com vista a uma síntese, uma explicação ulterior.

Outros autores preeminentes como Morin (2003, 2004), Padilha (2004), Barbosa

(1998), Garcia (2003) e Oliveira (2004), têm argumentado sobre a importância de nos

atermos a essa noção.

Ousando proposições um pouco mais práticas, considerando as análises teóricas até

então tecidas, compete aos que se debruçam nos múltiplos questionamentos, ou seja,

aos que fazem educação, refletir sobre a consistência, a coerência e a sensibilidade

que sutentam grande parte das argumentações na busca de novos procedimentos na

produção de conhecimento. Burhan (1993, apud MARTINS, 1998, p.27) nos aponta o

seguinte:

O que é importante nessa [...] análise é a aceitação de heterogeneidade que constitui o complexo e, portanto, a compreensão de que o exercício da reflexibilidade requerido por ela vai exigir um amplo espectro de referenciais [...], a observação, a investigação, a escuta, o entendimento, a descrição dessa complexidade, como bem dizem Ardoino e Barbier, dá-se por óticas e sistemas de referências diferentes, aceitos como definitivamente irredutíveis uns aos outros e escritos em linguagens distintas.

Os sistemas de referências diferentes para Ardoino, como apresentamos e discutimos,

significam as múltiplas possibilidades que se tem pelo olhar multirreferencial que

professores e demais profissionais da educação passam a desenvolver.

Compreendemos, então, a partir do desenvolvimento, ou melhor, do aprimoramento

desse olhar, que uma única forma de avaliar uma determinada questão ou situação no

154

interior da escola, um único e predefinido “enquadramento” de tal problema, uma visão

conceitual de homem unilateral e, conseqüentemente, de expectativas e prognósticos

preestabelecidos, já não são suficientes para o entendimento necessários que exigem

tanto a sociedade atual, quanto a própria escola, dos fenômenos educacionais

cotidianamente fluidos.

Uma possível saída que vem se descortinando ou se desvelando é a compreensão,

pelos profissionais da educação, desses fenômenos, que, representados pelos

desafios advindos de uma sociedade globalizada e plural, encontra na abordagem

multirreferencial uma proposta de

[...] estabelecer um ‘novo’ olhar sobre o humano, mais plural, a partir da conjugação de várias correntes teóricas, o que se desdobra em nova perspectiva epistemológica na construção do conhecimento sobre os fenômenos sociais, principalmente os educativos (MARTINS, 2004, p. 26).

6.2.2 O diálogo, o debate e as descobertas com o outro e para o outro

Como anunciando, estaremos, nesta seção, reunindo os elementos de maior

significado e relevância apreendidos por nós nos quatro encontros do G.D.,

discorrendo acerca das opiniões individuais e coletivas de algumas questões

relacionadas com as práticas cotidianas instituídas na escola, em relação aos alunos

com necessidades educacionais por deficiência ou não.

As questões previamente organizadas por nós, 51 em torno das práticas cotidianas,

coletadas durante nossas observações, participação nos encontros de autoformação e

nas entrevistas e questionários, objetivavam, na verdade, uma tentativa de

desvelamento no interior do próprio grupo, de suas principais concepções e

representações acerca de várias questões como:

a) Qual a finalidade dessa escola?

b) A quem ela deve servir

c) Como se processa a construção das identidades dos sujeitos envolvidos

no processo educativo?

51 Tais questões representam a fruição das práticas, das interrogações e questionamentos apreendidos por nós em entrevistas, observações, etc.

155

d) A organização do trabalho pedagógico aos alunos com NEE compete

exclusivamente aos “especialistas” da Educação Especial, ou a todos os

envolvidos no processo de escolarização dessas crianças?

e) Quem é o principal articulador dos movimentos de mudança e do próprio

currículo?

f) Qual é a “cara” de nossa escola?

g) O que nos é possível fazer a fim de que nossa escola cumpra o seu papel

de educar e compartilhar os saberes a todos, e não somente a uns?

Propomos, então, ao grupo a seguinte dinâmica:

a) já organizados em forma de círculo, cada dupla receberia uma questão

sobre a qual deveria registrar, no espaço reservado, suas considerações

acerca do problema/pergunta;

b) tendo já registradas suas observações, deveriam colocá-las dentro de

uma bola, 52 que circularia de mãos em mãos ao som de uma música;

c) na interrupção da música, quem estivesse com a bola deveria retirar,

aleatoriamente, uma questão, lê-la, emitir sua opinião sobre o tema e,

posteriormente, abrir para o grupo para as possíveis discussões.

A idéia subjacente à ação de passar a bola, assim como das tentativas e estratégias

de se esquivar, adiantando ou não sua passagem, logo veio à tona após a primeira

rodada. Uma integrante do grupo faz o seguinte comentário: “Vamos passar a bola só

na brincadeira, viu, gente!”. Estava contido, nesse comentário, a partir de nossa

análise, conscientemente ou não, um alerta aos colegas.

Uma analogia poderia ser estabelecida entre a dinâmica e o cotidiano vivido por todos

daquele grupo e poderia fazê-los, então, se voltarem às situações reais vivenciadas

por eles, pois, em primeiro lugar, sabiam que, dentro daquela bola, havia questões

desafiantes, instigadoras e problematizadoras, uma situação análoga aos sujeitos

concretos de suas salas de aula. Em segundo lugar, tais sujeitos, a exemplo da bola,

ora são seus alunos em um ano, ora são de outros professores no ano seguinte e, em

52 A bola tinha formato e design reais de uma verdadeira bola, o que remeteu a questões instigantes que serão ainda aqui apresentadas e discutidas.

156

terceiro lugar, estando frente a frente com a bola ou com o sujeito/aluno em sua

classe, subjaz a idéia, ou pelo menos surge a necessidade de conhecê-lo, investigá-lo

a fundo e tentar, desse modo, responder às dúvidas e às incertezas que se verificam

normalmente nas situações de intenso desafio.

Passar a bola, não deixá-la cair e retê-la, no exato momento em que todos esperam

com expectativa para saber o que há dentro dela, remete a algumas práticas positivas

para uns, porém igualmente negativas para outros. Assim, uns se alegravam quando a

bola lhes chegava às mãos, reclamando que ela nunca parava neles. Outros, porém,

passavam-na ligeiro, segurando-a como se estivessem com algo que lhes queimasse

as mãos. Novamente outro integrante do grupo comenta: “Gente, pra que tanta

euforia? É só ler o que o colega escreveu e manifestar sua posição e depois abrir para

a discussão!”.

Em meio a essas múltiplas interpretações e significações simbólicas do passar a bola,

traremos, a partir de agora, as representações, os apontamentos, as “soluções” e

invenções dos novos modos de agir e de organizar que o grupo apontava para si

mesmo.

Dentre as significações e sentidos que o grupo vai construindo em torno das questões

que lhe são colocadas, vamos também tecendo nossas reflexões entre idas e vindas,

que aqui chamamos de deslocamento imaginário que íamos realizando das práticas

daqueles profissionais, pelas observações e participações que tínhamos em seus

cotidianos, diante do que representavam, por meio dos discursos, do diálogo com

outro, da convergência e divergência de idéias e pelos posicionamentos quanto às

questões ali discutidas.

Como uma instância de formação em profundidade, num contexto de coletividade, o

Grupo de Diagnóstico permitiu, assim cremos, a produção de saberes e valores

próprios, ao se constituir em espaço-tempo para o desenvolvimento de atitudes de

cooperação, solidariedade, crítica, autocrítica e invenção de novos modos de ser,

estar e agir que, necessariamente, passam pela “[...] descoberta do outro e pela

elaboração de pensamentos autônomos e críticos que dêem aos sujeitos o poder de

decidir por si mesmos” (VEIGA, 1999, p. 181, apud VEIGA, 2006).

157

• Perguntas e respostas: Será o começo ou a continuidade da tecitura de

uma rede?

Agrupadas em blocos categoriais de análise, apresentamos nossas discussões a

partir do que nos foi possível captar com os participantes nesses quatro encontros do

Grupo de Diagnóstico.

Tais discussões e análises surgem do confronto entre os registros por escrito

(respostas das questões utilizadas na dinâmica), com nossas observações,

acompanhamentos e participações que tivemos nos vários cotidianos da escola, assim

como de questionários e entrevistas com eles realizados.

1º BLOCO: Reporta-se a questões do especialismo “conferido” à Educação Especial

e à delimitação de competências e/ou responsabilidades entre: professor de

ensino regular X professor educação especial X estagiário X trabalho colaborativo.

Uma das questões que vêm sendo amplamente discutidas nos seminários de

pesquisas da área, bem como em discussões realizadas por profissionais que já

desenvolveram uma nova visão acerca do profissional da Educação Especial e do

ensino regular se circunscreve no grande nó que o “especialismo”, outrora conferido

ao profissional da Educação Especial, instituiu no imaginário dos profissionais da

educação, “destituindo-lhes” da responsabilidade e competência, que naturalmente

deveriam desenvolver, ante a idéia que está subjacente aos princípios da inclusão

escolar.

Segundo Anache (2005), a especificidade da atuação da Educação Especial, por ser

ditada pelo modelo biomédico, com a finalidade de adaptar as intervenções às

peculiaridades dos déficits diagnosticados, fez emergir uma hipótese de que, nessa

perspectiva, o especial relaciona-se mais com as diferentes especialidades imbricadas

nas diversas disciplinas que compõem o campo de referência, do que com o processo

de ensino e aprendizagem.

Entretanto, devemos compreender que o aluno com deficiência que está inserido no

ensino regular deverá, como os demais alunos, estar inserido naturalmente nos

processos que circunscrevem um contexto institucional, ou seja, a escola, no

momento em que interpretamos que ensino e aprendizagem é processo de

158

comunicação humana e que tem “[...] como principal característica a intencionalidade,

e nele se desenrolam estratégias necessárias para possibilitar a aprendizagem”

(ANACHE, 2005, p. 231).

Em nossa dinâmica de discussão, duas profissionais se colocam diante de uma

questão, seguida de sua problematização. Nessa questão/problema, a

responsabilidade de ensinar, elaborar estratégias de intervenção e avaliar o aluno com

deficiência, num olhar, que pressupõe o especialismo, seria de competência do

professor da Educação Especial. Os demais alunos, sem deficiência, são do professor

do ensino regular.

Não concordamos com isso. Todo aluno independente de limitações ou especialidades é de competência da escola de modo geral (professores e funcionários). Isso não quer dizer que o apoio técnico especializado é desnecessário, pelo contrário ele é bem-vindo (PROFESSORAS de 1ª a 8ª séries).

Ao nos perguntar que processos pedagógicos são necessários para atender às

demandas das diferentes necessidades de nosso alunado, somos também conduzida

a uma importante reflexão que busca compreender, a partir de algumas indagações,

conforme faz Ferreira (2005), sobre o seguinte:

a) Que necessidades especiais seriam da esfera da Educação Especial em

colaboração com o ensino regular?

b) Quais seriam as pertinentes ao ensino regular?

c) O que poderia ser caracterizado como necessidades especiais na educação

básica, considerando os alunos com acentuadas dificuldades para aprender?

Tentando responder às necessidades que cada aluno tem, considerando-as desde as

relativas aos processos de ensino, avaliação, até as que nos parecem mais simples,

ou seja, acessibilidade física, recursos materiais, etc., estaremos respondendo a que

tipo de apoio necessitam tanto os alunos, como também os professores.

Tais necessidades nos indicarão se o que precisam, por exemplo, é de [...] um lócus

educacional complementar [...] (FERREIRA, 2005, p.141), investigando-se a partir daí

qual a natureza dessa complementariedade, ou simplesmente de um trabalho de

colaboração entre professores da Educação Especial e ensino regular, a fim de

potencializar saberes que assegurem aos alunos com necessidades especiais

159

desenvolvimento e aprendizagem, objetivos esses que estão no cerne de todo

processo educacional

Problematizamos com o grupo o seguinte: “Qual é a hipótese para essa demarcação

de competências e especialismos?” Uma profissional se posiciona:

Eu acho que isso veio se constituindo ao longo do tempo, é da sociedade essa questão do diferente. Se, até na própria sociedade, não cabia todos, a escola, conseqüentemente, não foi criada para todos. Aí pra dar conta, seleciona-se quem é de sua competência, quem não é [...]. Essa construção do que é normal e do que não é, é então, social, e alguns ainda vêm respondendo a isso demarcando lugares, os especialismos, etc. E aí eu pergunto: o que é certo? O que é diferente? O que é normal? Isso não deve acontecer, ‘normais’ ‘ou não’, todos são alunos da classe (PROFISSIONAL do CTA).

Há, na fala da profissional, uma tentativa de justificar os motivos de a escola demarcar

os saberes e sua competência, ao mesmo tempo em que os questiona, sinalizando

possibilidades de se reverter tais posturas, mesmo sendo elas originárias da formação

da sociedade em geral e argumenta, ainda, que a escola deve ser a instância

privilegiada para se quebrar paradigmas hegemônicos de exclusão e segregação,

advindos do contexto social macro.

É na escola que se abrem as possibilidades de desconstrução dos muros da

separação entre o “normal” e o “anormal”, entre o “capaz” e o “incapaz”. A escola

precisa questionar isso.

A construção social e histórica na educação de pessoas com deficiência é assinalada

e demarcada pela segregação. Diante de toda a história de exclusão, até de eugenia

que se verificava em séculos passados, a idéia da educação, mesmo de forma

segregada, era a salvação, o avanço máximo ou a explicitação e o exemplo maior de

respeito aos direitos humanos. 53

Eu penso que essa questão da escola é porque a educação [...] é um processo de dez anos. Aí parece que se fecha um ciclo [...]..A inclusão é coisa recente, então ainda persiste o discurso: o pessoal da Educação Especial [...]. Temos que levar em conta que na formação inicial do profissional, poucos são os cursos que fazem a abordagem devida sobre educação inclusiva, sob vários aspectos,

53 Tal educação de forma segregada é ainda por muitos aclamada e desejada, em alegações que vão desde a questão social do preconceito, até ao questionamento dos benefícios quanto ao desenvolvimento dos sujeitos incluídos na escola regular.

160

não só da deficiência. O profissional é formado para trabalhar com gente e alunos iguais (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).

Há uma latente preocupação no grupo sobre a necessidade de não demarcar seu

trabalho pedagógico para alunos “normais” e alunos da Educação Especial, porém

eles insistem e tentam explicar que sua “impotência” e “incompetência” decorrem dos

vários fatores que vão desde a concepção de normalidade que impera na sociedade

e, conseqüentemente, sobre a função social da escola, até às questões da formação

inicial, propriamente dita.

Recorremos, neste momento, ao que pressupõe a abordagem multirreferencial, ou

seja, buscamos compreender tais fenômenos nas ciências sociais, como a Sociologia

e a Psicologia. De acordo com Marques (2005), o que caracteriza a deficiência como

anormalidade é a marca do pensamento moderno que traz implícito o referencial de

normalidade como parâmetro para tal caracterização.

Nesse sentido, como conseqüência desse pensamento, vemos que a escola reproduz

o que socialmente foi construído. Outras ciências, por exemplo, a Psicologia,

influenciadas pelas práticas sociais fundadas na normatização e no controle

disciplinar, desenvolveram seus estudos acerca do ensino, aprendizagem, etc.

considerando a inserção dos sujeitos em uma polarização da normalidade versus

anormalidade.

Marques (2001, p. 2) diz que: “[...] o fato de se tornar evidente o traço da

anormalidade alheia traz em si o simultâneo evidenciamento da normalidade de

outrem. O anormal constitui, pois, o contraponto necessário para o estabelecimento e

a manutenção do referencial de normalidade”.

Nesse contexto, mesmo compreendendo a existência de um deslocamento de sentido

na direção da superação de modelos excludentes, nos últimos anos, por um novo

modelo fundado no reconhecimento e no respeito à diferença (MARQUES, 2005),

observamos a necessidade que tem os professores de buscar solução para as

questões práticas e cotidianas de seus fazeres.

Acho que a questão do sucesso da educação inclusiva, além de ter a ver sim com a aceitação que temos do diferente [...], e não é de deficiência ou de preconceitos somente, mas com coisas que têm relação com nossa visão de ser humano, de mundo [...], tem muito a ver com a forma como o sistema operacionaliza seu apoio, pela

161

formação continuada que a gente tem lá na SEME, pelo apoio contínuo de outros profissionais [...], enfim, não dá pra aceitar que alguém ou o Sistema pensem que inclusão é simplesmente matricular o aluno e esperar que professores que nunca imaginaram uma escola assim, para todos, simplesmente num ‘estalo’, do nada, consigam realizar as devidas adaptações, consigam administrar as múltiplas situações que surgem, com a formação que a maioria teve na faculdade (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).

As discussões prosseguem em torno do reconhecimento da importância dos

processos inclusivos e demonstram que o sentido e significado destes exigem uma

forma de compreensão que vá além daquela que se restringe ao aqui e agora em

relação a tais processos.

As falas oscilam, assim, entre a necessidade de fazer mais, porém, ao mesmo tempo,

apontam para si como agentes de fazeres que superam expectativas, haja vista suas

formações e ausência de um apoio sistemático. Consideram, então, como

imprescindível, o apoio de profissionais mais experientes na educação de alunos com

necessidades educacionais especiais.

Lembramos aqui o que Nóvoa (1997, apud VEIGA, 2006) escreve acerca da

identidade profissional, em que a construção dessa profissionalidade se dá no

significado dos movimentos reivindicatórios dos docentes e no sentido que o

profissional confere a seu trabalho, definindo o que se quer, o que não se quer e o que

se pode como professor.

Alguns professores que tiveram oportunidade de vivenciar esse apoio, que

reivindicam, 54 se manifestam, relembrando os momentos em que planejavam suas

ações com a professora especialista de Educação Especial e no quanto isso significou

para o seu aprendizado, além de um maior desenvolvimento do aluno.

A consideração real das significativas diferenças de cada aluno dispara uma

discussão acerca do currículo flexibilizado, 55 de formas mais abertas do trabalho

pedagógico e da utilização de outros espaços-tempos para o ensino e construção dos

conhecimentos. A avaliação, a disciplina, os conteúdos, entre outros aspectos, são

tomados como instâncias de reflexão. 54 Tal apoio refere-se ao acompanhamento semanal de uma profissional especialista do laboratório pedagógico de uma outra escola, em momentos de planejamento da professora com a estagiária na escolha e elaboração de atividades, reflexão e avaliação do desenvolvimento do aluno com NEE que ela atendia naquele no L.P.

162

Alguns relembram as discussões sobre currículo do livro Documentos de Identidade,

de Tomaz Tadeu da Silva, realizada há alguns meses, e estabelecem as conexões

devidas, discutindo sobre algumas práticas curriculares que têm ou não algum sentido

e significados dentro do universo das possibilidades e necessidades de cada aluno.

Que lógica há, por exemplo, a gente achar que o Carlos 56 precisa aprender equações? Isso parece até desrespeito. Não é mais interessante pensar coisas a partir de suas possibilidades reais, em que ele se veja crescendo, aprendendo pouco a pouco? (PROFISSIONAL do C.T.A.).

É interessante registrar que, nesse sentido, o trabalho que considera as necessidades

de cada aluno passa a ser ponto de discussão em relação a todos os alunos e não só

dos que têm necessidades educacionais especiais.

Interpretamos que muitos professores se vêem presos à idéia tradicional de

considerar tudo sob um único ponto de vista ou sob um único referencial. Acreditam,

no entanto, que, pelo questionamento e pela não aceitação de certas imposições e/ou

modelos vindos do sistema, isso possa ser mudado, tendo em vista que o trabalho,

em situações de grande complexidade como a que vivemos atualmente, tem “exigido”

novas posturas e novos arranjos para ofertarmos uma educação que tenha sentidos e

significados para cada aluno na escola.

Apesar dessa compreensão, os educadores assumem não conseguir viabilizar

situações práticas e exeqüíveis no plano dos limites da ação educativa, que melhor

conduzam o aluno numa sociedade real, que cobra e exige igualmente de todos que

nela estão:

Mesmo a gente sabendo que só entenderemos este aluno que aqui está se ampliarmos nosso olhar para suas múltiplas constituições, sabendo quem ele é, de onde vem, [...] sabe? Como a colega Cristal contou aquele dia, sobre sua visita à casa da menina, 57 onde moram algumas de nossas alunas, ainda assim ciente de tudo isso acabamos por ter que fazê-los adequar aos vários detalhes da organização já instituída, é disciplina, avaliação, carga horária delimitada, conteúdos. Como reorganizar tudo isso, os conhecimentos necessários, dando a eles condições de competição ao emprego, vida digna lá fora? (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).

56 Nome fictício. 57 A professora Cristal relatou em um dos momentos de estudos do livro Documentos de Identidade acerca de sua visita à Casa da Menina. Disse que lá ela pôde apreender um pouco mais das múltiplas referências que constituíam aquelas meninas, por meio de conversas com os responsáveis pela casa.

163

As provocações, em forma de discursos, que fazem os participantes do grupo,

parecem dividir opiniões entre a impotência e as possibilidades. Assim, alguns se

lembram do poder dos fazeres diferenciados, por menores que sejam, desde que

estejam revestidos de uma intencionalidade renovadora e questionadora.

Esses fazeres têm que estar apoiados na idéia de que podem se constituir em forças

de microações e em micropolíticas. Nesse fio de possibilidades que se descortina,

acredita-se que é possível desestabilizar as forças de poder instituído e representado

nas várias instituições presentes na escola, por meio de práticas inventivas e

criadoras.

Certeau (1994), interpretando Focault acerca dos mecanismos de disciplina e

procedimentos normativos e técnicos, traz a problemática dos aparelhos que exercem

o poder, explicitados pelas instituições localizáveis, repressivas e legais, sendo

substituídas pelas instituições dos “dispositivos” que “vampirizaram” as instituições e

reorganizaram o funcionamento do poder pelos procedimentos técnicos, “minúsculos”,

atuando sobre os detalhes.

Perguntamos, então: não seriam os procedimentos disciplinares da escola, avaliativos,

conteudistas, 58 limitadores ao processo de pensar e refletir, tanto de professores

como de alunos, os representativos do poder? Não seriam estes os que determinam

formas e modos de agir, segundo uma organização de sociedade predefinida e

impositiva?

Certeau (1994, p. 41) pergunta:

Que maneiras de fazer formam a contrapartida do lado dos dominados, dos procedimentos mudos que organizam a ordenação sócio-política? Essas ‘maneiras’ de fazer constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural (CERTEUAU, 1994, p. 41).

58 Leia-se por conteudistas as práticas que resumem o trabalho educativo unicamente pelo acúmulo de conteúdos, não atribuindo, inclusive, significado e sentido a outras atividades escolares que não pressuponham os conhecimentos socialmente mais cobrados (conhecimentos matemáticos, lingüísticos, conceitos científicos).

164

Lembramos aqui as “maneiras” e as “mil práticas” da professora Cristal sobre a forma

de organização que dá ao seu conteúdo e a utilização do espaço-tempo por ela

administrado na preparação do teatro que envolveu toda a classe. 59

Tal organização demonstra inventividade de uma prática não prescrita no currículo

formal. Tecnicamente, a professora Cristal não dispunha de horários extras para

ensaios, confecção de figurinos, cenários, entre outros. No entanto, numa proposta

que também envolve outros profissionais, descobre condições de gerir a

aprendizagem de seus alunos dentro de todas as prescrições curriculares instituídas.

Acreditando no desenvolvimento das múltiplas competências cognitivas, que seus

alunos vinham estruturando durante todo o processo de preparação do teatro, não lhe

ficou a sensação como se fosse um vácuo quanto à questão do volume de conteúdos

a serem trabalhados e/ou aprendidos pelos alunos.

A experiência da professora Cristal demonstra que não é suficiente apenas dizer das

impossibilidades de um fazer diferenciado, é preciso agir e inventar, inclusive burlando

algumas regras. Não basta dizer ou vislumbrar ações ideais, precisa-se desejá-las ao

ponto de romper com algumas amarras, por mais simples que sejam.

Quando Cristal reserva, em sua carga horária semanal, os dias e horários que se

dedicará com os alunos à organização do seu espetáculo teatral, convidando,

inclusive, os professores de Artes e Educação Física a se envolverem em tal tarefa,

ela se arrisca durante dois meses a “perder” horas do trabalho formal com conteúdos,

e assim “não cumprir” o que está formalmente prescrito no currículo; se arrisca

também a “perder” o controle disciplinar da turma, pela forma dinâmica que tem a

organização de tal atividade, e se arrisca ainda a ser questionada pelos pais sobre

essa forma de ensinar e aprender por meio do teatro, dentre outros riscos não

imagináveis.

Buscando estabelecer relações do trabalho da professora Cristal, nas observações

que realizamos em sua sala, com o questionário por ela respondido, destacamos sua

crença na necessidade de novas outras formas de organização do trabalho

pedagógico para melhor atender às diferenças na sala de aula. “Eu acredito que há

outras formas sim. Tem que haver [...]”. 59 Já discorremos sobre a organização de tal atividade neste texto.

165

Essa crença de que deve haver outras formas de gerir a aprendizagem a todos na

sala de aula talvez se origine daquilo que acredita ser a profissionalidade docente,

quando, em sua avaliação, em um questionário por ela respondido, diz da

responsabilidade e compromisso que devem ter os professores com a aprendizagem

de todos os alunos, devendo estes serem capazes e preparados para ensinar não a

uns somente, mas a todos. Não exclui, nessa avaliação, portanto, a necessidade de

apoios e suportes necessários a algumas situações mais específicas, em que a

colaboração de outros profissionais seguramente agrega força e sensação de não se

estar sozinha no processo.

A professora Cristal explica como tem realizado seu trabalho no atendimento às

diferenças individuais, a partir de deficiências ou não:

[...] é preciso identificar primeiro que necessidades têm o aluno, qual então deverá ser a melhor forma de ajudá-lo. Buscar trabalhar de forma que o aluno com necessidades educacionais especiais, possa interagir com a classe e vice-versa. Essa prática é uma excelente alternativa de crescimento social e intelectual para ele, assim como as atividades desenvolvidas em grupo.

Registramos que não percebemos no grupo, mesmo em professores que não contam

com apoio de estagiários para seus alunos com necessidades educacionais especiais,

a não aceitação de suas responsabilidades, quanto ao acolhimento e quanto a algum

esforço, no sentido de ensiná-los e incluí-los nas atividades da classe.

No entanto, pudemos verificar, a partir das entrevistas e questionários realizados, o

quanto clamam por apoios na organização de uma proposta de trabalho mais efetivo

com os alunos especiais, seja na escolha conjunta e na preparação dos recursos

auxiliares, com outros profissionais mais experientes, seja no processo de avaliação

do desenvolvimento de tais alunos.

Nas observações que realizamos no lócus da sala de aula, destacamos não haver

uma só situação na qual não houvesse, por mínima que fosse, a atenção dos

professores para os alunos com NEE. Entretanto, essa atenção focava-se quase

sempre em aspectos da socialização, do cuidado e atenção. Em alguns momentos,

porém, aproximavam-se do aluno, na tentativa de ajudá-lo na realização de alguma

tarefa ou encaminhamentos, por exemplo, o de solicitar a monitoria de determinado

colega ao aluno com NEE.

166

Registramos uma forma de acompanhamento realizado por duas professoras de 5ª a

8ª, que nos pareceu ideal, para aquele contexto. Previamente, elas selecionavam

várias atividades, retiradas de livros de 1ª a 4ª séries que tinham pertinência com os

temas trabalhados, haja vista que as atividades do livro adotado na classe, ofereciam

um nível de dificuldade muito superior às possibilidades do aluno.

Desde modo, após participarem da aula, ouvindo, respondendo a algumas perguntas

e participando, dentro do que era possível em alguns grupos que a professora

organizava na classe, elas lhe davam as atividades, orientando os alunos na

realização das tarefas.

Víamos que tal ação fazia com que o aluno 60 permanecesse na sala por um tempo

maior, envolvido por suas tarefas, apesar de “desestruturar” a rotina da classe e exigir

vigilância contínua da estagiária e professoras, tendo em vista seu comportamento de

não aceitação das regras de convívio, entre outras dificuldades que ele apresentava.

Consideramos, pois, que muito acrescentaria ao trabalho pedagógico de todos os

professores uma melhor estruturação de seus momentos de planejamentos, nos quais

eles seriam incentivados ou motivados a partir de algumas reflexões acerca das

limitações de uns, das possibilidades de outros alunos, dedicando-se a elaborar, criar

e inventar “mil maneiras” de fazer com que seus alunos viessem a se sentir realmente

seus e participantes da dinâmica de ensinar e aprender que é cotidianamente

desenvolvida na classe.

Como a relação e o entendimento do que seja “apoio”, nas escolas da rede de Vitória

estão muito ligadas à idéia do estagiário, percebemos, nas discussões, que tal

questão estava sempre emergindo, ora sob a compreensão de que este se constituía

em apoio ao professor, na gestão da classe como um todo, ora sob a idéia de que,

para alguns alunos, esse apoio deveria estar focado nele, haja vista o acentuado grau

de comprometimento, quanto às limitações físicas, ou para a contenção, devido ao

comportamento “anti-social”

Trazemos abaixo o que responde uma profissional, numa das discussões acerca do

que estava sendo problematizado, ou seja, se, necessariamente, todos os alunos com

60 Esse aluno era acompanhado pela estagiária em tempo integral e era, na expressão de todos da escola, o desafio maior que enfrentavam naquele contexto.

167

deficiência tinham necessidades educacionais especiais e sobre a importância de se

ter pessoas na escola, entre essas, os estagiários, para formarem uma rede de

colaboração a todos que dela precisassem:

Cada caso é um caso, ainda que haja uma tendência a se pensar que, tendo deficiência, precisa de ajuda de estagiário. Alguns talvez nem precisarão. O que a gente começa a perceber ao longo da experiência, é que o trabalho integrado fortalece a todos: alunos, professores e escola. O desenvolvimento não somente das crianças com NEE, mas de todas da classe depende realmente de uma rede de colaboração em que o coletivo sai beneficiado (PROFESSORES de 5ª a 8ª séries).

Ante a colocação da professora, em frente à “leitura” que fizemos na expressão não-

verbal de alguns poucos, felizmente, procuramos, então, provocar o grupo trazendo

uma situação real:

No momento de uma matrícula, a secretária pergunta à mãe:

─ A criança tem alguma deficiência?

─ Sim, minha filha tem Síndrome de Down. A secretária registra então na ficha da criança. A mãe então lhe pergunta:

─ Quando eu posso trazer minha filha pra escola?

A secretária pede-lhe, cuidadosamente, que aguarde até que a pedagoga entre em contato, pois sendo sua filha uma aluna especial, a SEME terá que enviar uma estagiária para acompanhá-la na classe.

Alguns dias se passaram sem que o órgão central enviasse o estagiário para

acompanhar a referida aluna, sob alegação de terem esgotado a lista de interessados

em realizar estágios. Porém, diante das constantes ligações da mãe para saber

quando poderia levar sua filha à escola, assim como de nossa intervenção 61 sobre a

importância de conhecer as necessidades reais da aluna, não condicionando sua

freqüência à vinda antecipada da estagiária, decide-se, após conversas entre

professora, pedagoga, diretora e assessoria da Educação Especial, que a aluna

começaria a estudar.

Alguns professores iniciam um diálogo em que pareciam desejar compreender os

limites da necessidade de se ter o estagiário, em frente aos objetivos para os quais a

61 Nossa intervenção se deu em função de nosso trabalho na Rede Municipal.

168

escola justifica sua existência, ou seja, além de o aluno vir à escola para se socializar

e conviver com outros, ele também vem pra aprender, como todos os outros:

─ Engraçado, mas vocês sabiam que só no nosso município é que tem essa política de estagiários? Os outros municípios não têm isso não! Imediatamente uma outra professora questiona:

─ Aí o professor se vira sozinho? Como isso é possível?

─ Ora, o que é importante saber é qual é a utilidade desse estagiário, é pra conter o aluno? É pra ficar agindo como uma babá dele ou é pra ajudar o professor a ensiná-lo?

─ Em muitas situações esse estagiário vai ajudar a conter, vai correr atrás do aluno, mas não é somente disso que o aluno precisa.

─ Na verdade, acho que é nessa hora que entra a atuação do pedagogo, da professora especialista, dos outros apoios [...] (PROFESSORES de 1ª a 8ª séries; PROFISSIONAIS do C.T.A.).

Retomamos com o grupo as questões inicialmente apresentadas acerca da matrícula

da aluna com deficiência e depreendemos que, em tal situação, as expectativas

criadas sobre crianças com Síndrome de Down, ou qualquer outra questão de

deficiência, significavam literalmente problemas e dificuldades diferentes das que

normalmente demandavam as outras crianças.

Estavam ali instituídas, antecipadamente, as condições para a freqüência de um aluna

dita especial, prevendo-se apenas problemas, dificuldades e impossibilidades, não

lhes ocorrendo que aquela aluna poderia ser somente mais uma criança e, por ser

criança, suas questões poderiam ser semelhantes às dos demais alunos de sua idade,

com algumas variações comportamentais e intelectuais evidentemente; estas, porém,

próprias e inerentes ao sujeito singular que é o próprio ser humano.

Para surpresa de todos e como mais uma experiência de aprendizado aos

profissionais daquela escola, a aluna rompe com todas as expectativas, que

essencialmente estavam perpassadas pela impossibilidade de se estar entre os

demais alunos, sem maiores comprometimentos e, sobretudo, rompe com a

expectativa de incapacidade e impotência dos profissionais em acolhê-la, em propor-

lhe situações de interação e aprendizagem, entre tantas outras tarefas que tem o

professor e/ou os demais profissionais da escola, com a educação e o

desenvolvimento de todos os outros alunos que ali estão.

169

A pedagoga revela, após alguns dias do início da nova aluna na classe, o grande

engano e “erro” que cometera ao acreditar ser impossível acolher uma aluna, por uma

predefinida hipótese de que essa criança precisaria de um apoio, que só a estagiária

poderia dar, ou seja, sendo a grande maioria dos estagiários quase sempre

inexperientes, seu apoio, então, seria “tomar conta”, “vigiar”, ser uma espécie de

“babá”, estando assim muito distante do que se propõe e objetiva uma escola de

qualidade para qualquer outra criança.

Descobrem-se, desse modo, outras formas de apoio à nova aluna, apoios esses,

porém, diretamente relacionados com a organização e preparação de um plano de

trabalho a partir do conhecimento global que passariam a ter da aluna, com propostas

que objetivassem seu desenvolvimento intelectual, afetivo e social, comparando-a

estritamente e tão-somente às possibilidades, capacidades e limites revelados por si

mesma e não tomando como parâmetro os outros alunos da classe.

Observamos, ainda, que todas as formas de apoio que foram constituídas naquele

espaço, até mesmo o apoio formal de uma outra profissional, que posteriormente viera

para a classe em que estava matriculada a aluna, significaram, para todos, um grande

passo para a autoformação e autodesenvolvimento no processo de gestão da

aprendizagem a todos.

Após essa nossa provocação com o relato e as considerações realizadas pelo grupo,

uma professora de 1ª a 4ª séries se manifesta: “[...] é o medo de errar! A gente pensa

que não sabe o que fazer!”

Outros justificam tal postura, referindo-se ao nosso relato, dizendo que a própria Rede

Municipal foi quem instituiu tal apoio, destituindo o professor de sua função de ser

professor de todos, “permitindo-lhe” que fizesse uma transferência silenciosa ou

muitas vezes gritante, aos estagiários, das suas principais responsabilidades, ou seja,

a de conhecer as características de cada aluno, propondo situações de aprendizagem

a todos e avaliando-os segundo suas peculiaridades:

As pessoas na escola [...], os professores erroneamente cometem tais absurdos, generalizando as coisas, acham que as soluções devem ser únicas e aí desconsideram as particularidades. Deixam de pensar, analisar que cada situação pode ser diferente da outra. Parece que a SEME realmente em algum momento criou uma política de apoio através dos estagiários, o que, ao meu ver, em

170

alguns casos, ao invés de facilitar o trabalho e o desenvolvimento das práticas do professor para o processo de inclusão do aluno especial o afasta deste processo, pois o aluno é literalmente entregue nas mãos desse estagiário (PROFISSIONAL C.T.A.).

O poder que emana de uma determinada “instituição”, conforme diz Castoriadis

(1982), conduz às práticas naturalizadas nos cotidianos escolares. Localizáveis ou

não, constituem-se em forças aparentemente difíceis de se romper. Não é incomum

percebermos atitudes, como a da citada pedagoga e/ou da escola, que ao serem

convidados a analisarem a situação, por meio de outras perspectivas, vislumbram

alternativas diferenciadas e vêem até com estranhamento aquilo que achavam natural,

óbvio, tendo em vista sempre terem agido assim.

Sendo assim, ao ser problematizada, naquele momento, a situação específica daquela

aluna, com alguns questionamentos ─ Nós a conhecemos? Sabemos de suas

possibilidades? Do que ela realmente precisa? ─ permitiu aos envolvidos na

questão, repensar suas atitudes em frente ao que parecia estar naturalizado,

identificando com clareza os porquês de determinadas coisas serem assim e não de

outra forma.

A partir daí, esses educadores dão-se conta de que não é possível dar a todas as

questões ou situações as mesmas respostas, uma vez que, para cada situação, nesse

caso tomando a inclusão de alunos com deficiência, remete-se a um sujeito singular,

com características próprias.

A instituição “apoio de estagiários”, em nossa interpretação, tem impedido a

descoberta e a invenção de novos modos de organização do trabalho pedagógico

para a diversidade, sobretudo considerando as diferenças dos sujeitos nela contidas,

assim como em outras possibilidades de apoio e colaboração aos professores do

ensino regular na gestão de sua classe.

Percebemos, nas falas, que um grande número de professores acredita existir outras

formas de ser apoiado. Uns dizem que realmente é mais fácil contar com o estagiário

para determinados alunos mais “incontidos”. Chegam a citar os nomes desses alunos,

assumindo que realmente, em vários momentos, torna-se impossível administrarem a

coletividade da classe sem o apoio formal de um outro adulto na sala de aula. Outros

já colocam que ver o estagiário como um sujeito que está ali para apoiá-lo, e não

171

exclusivamente para o aluno com deficiência, faz toda a diferença no seu processo de

inclusão nas atividades da classe:

Eu tenho uma preocupação comigo, sabe! Tento o máximo para que minha classe não veja a Esmeralda, 62 com a estagiária que ali está por conta dos alunos João e Ricardo, aí eu troco de função com ela. Um dia ela passa atividades no quadro, outro dia ela sai de mesa em mesa, como eu, ajudando e orientando todos, e não só aos meninos especiais. Acho que isso tem feito a diferença. Mesmo assim, alguns percebem os motivos dela estar ali.

Outra profissional se posiciona:

Se o professor levar em conta que, apesar de ser diferente, o aluno que está ali é aluno como os demais, as responsabilidades desde o planejamento das atividades, os recursos, a avaliação serão compartilhados tanto com o estagiário como com o pedagogo. Acho que deveria ser assim [...] é assim que os professores vão aprendendo a criar oportunidades de ensinar aos alunos especiais. O estagiário é pra mim do professor, da escola, e não do menino. Isso não faz muito sentido! (PROFISSIONAL do C.T.A).

Novamente as questões relativas às especificidades são tomadas, para as quais

consideram essencial o apoio do estagiário, como a segurança e proteção ao aluno

com deficiência, mas ressaltam também que esse apoio não precisa ser em tempo

integral, sufocante, pois o aluno ficaria impedido de vivenciar alguns desafios e até

mesmo frustrações que, em alguns momentos, também significam aprendizado e

desenvolvimento emocional, afetivo e social.

Nas várias manifestações, traduzem com clareza a compreensão que têm acerca do

apoio do estagiário, até mesmo na fala de quem diz e daqueles que concordam com

esse apoio:

[...] agora, em relação ao Lucas, 63 é impossível produzir qualquer coisa sem o apoio da estagiária. O pouco que ele fica sozinho na sala é bastante pra ele bater [...] acho que é quase uma questão de resguardar a integridade física dele e dos demais. Lembram o que aconteceu no ano passado? 64 (PROFESSORA de 5ª a 8ª série).

Finalizando as discussões acerca do especialismo “conferido” à Educação Especial e

à delimitação de competências e/ou responsabilidades entre: professor de ensino

62 Nome fictício da estagiária. 63 Nome fictício. 64 A professora faz referência ao problema ocorrido em sala entre Lucas e dois outros alunos em que, por questão de minutos, inicia-se uma briga entre eles resultando em pequenas lesões.

172

regular X professor Educação Especial X estagiário e trabalho colaborativo, assim

como dos apoios necessários à operacionalização do trabalho pedagógico na gestão

da aprendizagem para todos, registramos o que fala uma professora que, até aquele

momento, não se manifestara, mas consideramos de extrema importância:

Eu acho que pra mudar isso, tem que ter uma mudança de cultura na escola [...], essas discussões que a gente faz muito naturalmente, devagar, sem perceber, a gente vai perdendo determinadas resistências, vai começando a ver outras possibilidades, porque, quando o aluno é visto como aluno de toda a escola [...] a gente percebe que é preciso haver como se fosse uma rede, [...], é uma rede que tem funcionar com todos os alunos (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).

A professora faz referência à experiência que tem tido na escola Prisma 65 e sobre os

processos de mudanças por ela desencadeados em seu modo de ver e agir acerca do

trabalho pedagógico com alunos com NEE no ensino regular e conclui sua fala:

[...] essa escola abre pra possibilidades, é tanta coisa que eu já mudei, por exemplo, de coisas que eu pensava sobre inclusão de alunos com deficiência, dificuldades e impossibilidades, a gente vai mudando de perspectiva. Na verdade, é no convívio com eles que a gente acaba aprendendo, vendo o crescimento intelectual [...] a gente vai perdendo, sim, os medos iniciais. A gente acaba sendo melhor professora para todos, pois ninguém é igual na sala!

Provocar tais reflexões no grupo significou, para nós, e, conseqüentemente, para os

próprios participantes, trazer-lhes possibilidades, assim como potencializá-los para a

busca e a descoberta de novos saberes e novos fazeres.

As discussões fizerem com que outras experiências, inclusive de outras escolas,

fossem relatadas exemplificando a superação dos desafios iniciais, em suas atuações

em classes com alunos com comprometimentos diversos.

A profissional relata sua experiência no acolhimento a um aluno com deficiências

múltiplas:

[...] ninguém sabia o que fazer! Meu Deus, mas alguma coisa tinha de ser feito, mas o quê? Uma coisa era certa: ele não podia ficar ali sem fazer nada! Peguei um livro [...], ele olhava para tudo [...] alguma coisa ele tem que fazer, pintar, rasgar [...] Ah! Eu quero ver o que ele faz, o que gosta. Daí descobri seus interesses pouco a pouco [...]. Olha, esse menino começou a responder a algumas

65 A profissional chegou nessa escola nesse ano, no entanto já é servidora desse município há alguns anos.

173

coisas que inicialmente nem pensávamos que daria certo (PROFISSIONAL do C.T.A.).

A tentativa, sem medo de errar, foi um caminho, não interessando, em princípio, se

estava certo, errado, apropriado; mas na perspectiva de que apontasse um caminho

inicial. Não aceitar determinadas situações pode ser o diferencial no processo de fazer

e produzir com o aluno. Na situação acima, a profissional relata seu apoio como

pedagoga à professora, citando que, nesse município, não há uma política de apoio

vinda dos estagiários.

2º BLOCO: Refere-se às considerações dos professores, com um olhar avaliativo,

acerca de suas práticas administrativas e pedagógicas, quanto ao espaço e tempo de

formação e planejamento da ação docente.

Acreditamos cada dia mais no valor inestimável que tem um processo de formação,

que parta, sobretudo, dos interesses e necessidades dos indivíduos. A experiência

que apresentamos neste texto, sobre o processo de autoformação e que, inclusive,

em vários momentos trouxemos para nossas análises, dá conta, em nosso

entendimento, de mostrar a riqueza das idéias e das intenções que ali fluíram.

Segundo Jesus (2005), não há dúvida de que um processo de formação continuada

entre os professores se faz crítica e mandatória, devendo ter como ponto de partida as

suas dificuldades, e as lacunas que se apresentam em sua formação. Acreditamos,

assim, que esse seja o diferencial para que sejam capazes de compreender e refletir

sobre as suas práticas, assim como também de serem “ [...] capazes de transformar

as lógicas de ensino” (p. 206).

Uma escola estimulada pelos desafios e que sabe que faz parte de uma complexidade

que não diz respeito apenas a uns, mas a todos (EIZIRIK, 2003, apud JESUS, 2005)

está no caminho de ser uma escola inclusiva.

De acordo com dois professores, nas discussões do G.D., os sentidos e significados

de um processo de estudos, como o que eles vivenciaram, 66 que objetivou discutir, à

luz da teoria, várias questões, sobretudo, a questão do currículo:

66 Referiam-se ao processo de autoformação, no estudo do livro de Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de

Identidade.

174

[...] permitiu e vem permitindo uma reflexão para reavaliarmos nossas práticas pedagógicas e administrativas. Estamos sempre nos questionando: isso que estou fazendo faz sentido na construção global desse aluno, ou é só matéria, conteúdo, completamente desconectados de sua realidade, de seu contexto, de sua cultura e de seus interesses. A gente tem se preocupado mais (PROFESSORES de 1ª a 8ª séries).

Juntamente com o registro positivo de reflexão e preocupação nos planejamentos dos

professores, no que se refere ao sentido e significado das ações docentes para o

processo de construção e respeito às múltiplas identidades constituídas no espaço

escolar, registramos, também, um depoimento que, ao mesmo tempo em que deixa

escapar uma angústia e um desabafo, deixa também escapar sua crença no potencial

que cada professor ali tem demonstrado:

Percebo ainda, em alguns de nossos professores, certa cultura em fazer perpetuar práticas limitadoras à ação de pensar, refletir e de criar de nossos alunos, de considerar o ponto de vista do outro, de considerar as experiências do outro e valorizá-las. Vejo isso porque estou sempre entrando nas salas de aula e aí quando às vezes vou propor determinadas tarefas, que fogem um pouco daquelas mais rotineiras, tradicionais [...], eles ficam como se nunca tivessem vivenciado tais situações, ficando ou muito agitados ou parados [...] (PROFISSIONAL do C.T.A.).

Uma análise que fazemos de grande importância é que, mesmo a profissional tendo

lançado sua angústia diretamente às práticas de alguns colegas, de forma geral,

evidentemente, não percebemos que nenhum deles tenha ficado magoado ou se

posicionado em discordância diante do que pontuou a colega.

Contrário à nossa expectativa, para aquele momento, pois a profissional se

pronunciara um tanto quanto vibrante, de forma entusiástica e veemente, o grupo

aceitou com tranqüilidade suas observações emitindo, inclusive, algumas justificativas

e até mesmo assumindo tais práticas como não ideais e construtivas.

Com posturas visíveis de reflexão e compreensão do que seria mais coerente e

próximo aos objetivos reais de construção de sujeitos críticos e ativos, no processo de

produção do conhecimento, sugeriam modos de agir diferenciados, uns, associando

esses modos diferentes de agir às concepções e práticas que são desenvolvidas com

as crianças pequenas da Educação Infantil.

175

A profissional retoma suas observações de maneira absolutamente respeitosa,

colocando-se, além de tudo, também como professora atuante, 67 mas convidando a

todos a uma reflexão, como quem falava de um mesmo lugar naquele momento, ou

seja, a de professora de sala de aula:

Se quisermos que nosso aluno fale bem, respeite seu colega, considere o ponto de vista do outro, aprenda a se comportar em atividades em grupo [...], é preciso que se trabalhe com propostas que garantam o exercício dessas competências. Como posso querer que eles saibam trabalhar em grupo, se nunca ofereço tal oportunidade? Como quero que eles aprendam a falar em público, se expressem e argumentem bem seus pensamentos, se não tenho paciência de deixá-los se expressarem? Como vão escrever bem, se dou tudo pronto no livro, no quadro, etc.?

A profissional ainda faz referência a quanto se torna penoso a quem deseja propor

alguma atividade, que se diferencie das práticas habituais, ou seja, atividades sempre

individuais, silenciosas, pois ou os alunos se alvoroçam, pelo tom de liberdade que

determinada atividade lhes soa, transformando a sala de aula quase num campo de

guerra, ou se mostram extremamente tímidos, calados e passivos, quando a atividade

lhes exige argumentos, posicionamentos pessoais, levantamento de hipóteses e

criatividade na solução de situações-problema, etc. :

Tudo o que se faz de mais diferente do habitual, implica numa trabalheira dobrada! Parece que a gente rompe muito drasticamente com as dinâmicas e práticas pedagógicas para a construção de um sujeito mais participante, mais envolvido na ação de pensar, raciocinar, respeitar as opiniões do outro, trabalhar em equipe [...] Essas práticas parecem se encerrar quando os alunos chegam da pré-escola.

Algumas referências são feitas ao que discute Tomaz Tadeu acerca das práticas

educativas que se atêm às diferenças e singularidades dos sujeitos nos espaços da

escola, e os professores destacam que muitas delas precisariam, de forma mais

efetiva, fazer parte de suas práticas curriculares por privilegiarem atitudes

investigativas, questionadoras e críticas.

Percebemos que as questões trazidas pela profissional apontam um eixo central, que

se dirige exatamente aos aspectos que exigem não só reflexão, mas efetivamente

ações de mudança em torno do currículo que é praticado e vivido nos cotidianos da

67 A profissional é professora em outro município. Nessa escola, atua em outra função.

176

escola, remetendo às questões de ordem prática e operacional que ali estão

instituídas.

Nesse sentido, os elementos reais da prática de uma sala de aula, originários, por

exemplo, das metodologias de ensino, da utilização dos recursos didático-

pedagógicos, das concepções acerca dos processos de ensino e aprendizagem,

disciplina e avaliação, necessitam ser revisitados, objetivando, com essa revisão e

reflexão, o questionamento crítico de pontos, muitas vezes determinantes ao processo

de mudança ou não e que, de uma forma ou de outra, estão diretamente ligadas às

estruturas administrativas e pedagógicas, 68 que muitas vezes se constituem em

desafios aos novos modos de atuar e reinventar.

Esses desafios, considerados talvez como desafios menores, por muitas vezes se

travarem em torno de concepções, posturas, opiniões ou determinações individuais,

estão ainda aliados às determinações legais e formais de uma organização do próprio

sistema de ensino.

O sistema, considerado como um desafio de maiores proporções, pois a ele está

diretamente ligada a gestão de seus recursos humanos, revela um investimento

econômico cada vez menor, 69 que tem interferido sensivelmente em questões que

vão desde a distribuição de carga horária efetiva, com aulas dadas pelos professores,

com planejamentos e horários de estudos insuficientes, até as questões salariais

propriamente ditas, que, na prática, têm levado grande parte dos profissionais a

dobrarem ou triplicarem suas jornadas de trabalho diário.

Em resumo às questões aqui pontuadas, uma professora se coloca acerca da

necessidade imperiosa de se rever conceitos, posturas, entre outras várias reflexões,

deixando fluir, no entanto, a pessoa nela contida em frente às questões reais vividas

por ela e por muitos de seus colegas. Apresenta assim suas considerações:

Bom, eu concordo, acho que temos que pensar nessas coisas, sim, mas acho que tem coisas, dados da realidade que têm que ser levados em conta. Por exemplo, por que a gente nunca tem tempo suficiente para refletir, planejar, fazer? Por que não pode dispensar

68 Alguns professores observaram que, muitas vezes, algumas propostas de atividades em grupos, coletivas ou outra qualquer que venha de algum modo limitar-lhes o “controle” disciplinar da classe, assim como a realização de um processo diferenciado de avaliação, pareciam incomodar a organização instaurada na escola, desejada por alguns de seus membros, inclusive pais da comunidade. 69 Os recursos destinados à educação no município de Vitória caíram de 35% para 25%.

177

o aluno nunca para a realização de um bom planejamento? Acham realamente que o que importa é o aluno ficar aqui os duzentos dias letivos, e a gente correndo de uma escola pra outra, sem tempo até pra almoçar?

A professora apresenta dados que dizem respeito a um grande número de

professores ali presentes e a maioria concorda com o que ela coloca. Alguns

comentam o quanto as “prioridades” do sistema educacional fogem às prioridades por

eles detectadas, ou seja, as que emanam de uma escola real, viva, que emerge da

pluralidade social de seus atores.

Demonstram suas frustrações e assumem frustrarem as expectativas da sociedade

em geral e, como bem coloca a professora Célia Linhares, tal frustração educacional

vem construindo um tipo de culpa político-pedagógica que vem sendo, pouco a pouco,

impingida aos professores.

[...] o professor assume muitas culpas, muitas. Vou adiante: quando a gente se propõe em fazer alguma coisa diferente numa sala lotada, você se mata. Eu não vou me matar! Não sou mártir! E ninguém tem que ser mártir! Acho que certas coisas são quase impossíveis diante de nossas limitações como pessoas, seres humanos. Quando digo do quanto eu mudei, digo de minha percepção, do entendimento crítico de que aqui estamos para ensinar a todos, mas isso acaba sendo até mais frustrante, a gente querer fazer, e estarmos no limite de nossas forças (PROFESSORA de 5ª A 8ª séries).

Em um efusivo e caloroso discurso, é possível ver a professora pessoa, ser humano

se manifestar. Não é possível separar a profissional do sujeito que nela habita.

Parecem-nos reais e concretas as questões por ela assinaladas. Duas, das salas de

aula em que essa professora atua, têm quase 40 alunos, dentre os quais estão

presentes alunos com NEE por deficiência.

Compatibilizar desejos, anseios e lutas por uma educação de qualidade em frente a

realidades já incansavelmente denunciadas, como responsáveis pelos problemas

escolares, pela desistência ou até pela não opção de profissionais mais qualificados,

entre outros, como a apatia e o desânimo nos fazeres cotidianos da escola, configura-

se quase que num embate diário aos professores que se sentem comprometidos com

sua profissionalidade. Recorremos, então, ao que escreve Linhares (2006), alertando-

nos a não nos iludir:

178

[...] vamos precisar assumir formas de produção coletiva de conceitos, forjando uma inteligência mais solidária, com exercícios contínuos de um pensamento-ação em que politicamente prevaleçam funcionamentos autônomos e includentes, com todos os empenhos contra as desigualdades como a favor de todas as diferenças (LINHARES, 2006, p. 25).

Trazemos, ainda, acerca desse compromisso e responsabilidade, o complemento do

“discurso” iniciado pela professora no grupo de discussão. Ela lança para os colegas o

desafio pela busca de melhores condições para o exercício de seu compromisso de

educar a todos e do desejo que têm de fazer diferente. Considera que o esforço não

deva proceder unicamente de nós e se revele, às vezes, como possibilidade de

“morte” para alguns, devido às “loucuras” que professores e professoras empreendem

a fim de cumprirem até três jornadas de trabalho.

Assim, modificações simples, mas de extremo significado à realidade escolar, tanto

dos alunos, quanto dos professores, como ampliação da carga horária para

planejamentos e estudos, redução do número de alunos por sala, incentivos e

melhorias salariais, entre outras ações modificadoras, poderiam implicar maior

qualidade profissional e pessoal aos trabalhadores da educação e,

conseqüentemente, em maior qualidade no ensino de nossas crianças e

adolescentes.

[...] o que vejo nesse nosso grupo aqui da escola é que aqui há pessoas comprometidas, pessoas que querem o melhor, e que se vêem frustradas diante das muitas dificuldades. Eu conheço muita gente assim. Eu me acho uma pessoa comprometida, mas o que acontece é que [...] sendo nós pessoas que ainda não caíram no desânimo total, podemos “brigar” conjuntamente, olhar nessa mesma direção, a da mudança sabe! Mudar essa cultura do aluno, do professor, da sociedade, em fazer coisas por repetição, tudo igual. Aí, sim a escola vai crescer, o aluno vai crescer, vai aceitar vivenciar coisas diferentes (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).

Uma outra profissional acrescenta: “Éh, quando pouco a pouco essas práticas se

instituírem, contaminando um a um dos profissionais, a cultura escolar vai mudando, a

cara da escola vai se transformando, novos rumos vão se delineando”.

Registramos, no grupo, a presença de uma professora, contadora de histórias, que foi

convidada, a exemplo de outros profissionais, que nesse dia desenvolveram uma série

de atividades e oficinas diversificadas. A profissional comenta:

179

Quero parabenizar o grupo pela discussão e agradecer por poder participar aqui hoje com vocês. Os alunos que trabalhei hoje foram maravilhosos. A professora Rubi 70 me alertou para não passar do horário, mas eles se envolveram tanto que (...). Esses momentos diferentes que a gente possibilita aos alunos são extraordinários. Lá na escola em que trabalho, já vimos realizando isso, é muito positivo, instaura uma outra forma de estar na escola, de se apropriar dos conhecimentos. Vocês estão de parabéns!”

Uma profissional do C.T.A., que não se manifestara ainda, lembra que todas as

reflexões e discussões acerca do currículo, da diversidade e respeito às diferenças

inscritas em nossos alunos, e as implicações delas decorrentes são fundamentais

para a melhoria de nossas práticas com os nossos alunos com necessidades

educacionais especiais.

Desse modo, abrem-se para eles mais chances e possibilidades de participação e

ação no processo de aprendizagem. Quanto menos formal, linear e conteudista for o

tratamento dado aos conhecimentos em nossas aulas, mais oportunidades terão

aqueles que não se adaptam a tais formalidades.

3º BLOCO: Quem precisa ser incluído? Saberes e fazeres em frente às “exigências”

da sociedade X sentido e significados dados ao saber.

O hábito de utilizar o termo inclusão como referência absoluta às pessoas com

deficiência descentra o olhar dos educadores de muitos alunos que transitam o

espaço da escola e exigem de nós atitudes, posturas de acolhimento às suas

diferenças, assim com a constante reflexão acerca das práticas curriculares que

temos, ante a necessidade de oferecer muito mais, a fim de nos considerarmos

realmente como escola inclusiva.

Alguns professores lembram que, por questões diversas, é possível que cada sala de

aula tenha alunos que exigirão de nós posturas diferenciadas, nos modos de ensinar,

tratar, abordar, avaliar, etc. Nesse contexto, está aquele aluno que tem dificuldades de

se relacionar, haja vista o clima e o ambiente agressivo em que vive, ou aquele aluno

que não encontra motivação em estudar, pois sua família, apesar de não o incentivar,

destrói sua auto-imagem por questões referentes à sua sexualidade, entre outras

várias situações, que não podemos desconsiderar.

70 Nome fictício.

180

Assim, ao utilizarmos o termo inclusão, não podemos nos referir somente aos alunos

com deficiência, pois a idéia de escola inclusiva deve ser aquela que, sob nenhum

pretexto, venha desconsiderar ou desqualificar nossos alunos.

Mesmo sem deficiência, estes estão na condição de alunos que necessitam da escola

para acolhê-los em seus diferentes modos de ser e estar.

Ao serem perguntados se há alunos sem deficiência que precisam ser incluídos na

escola, dois professores respondem:

Sim, pela dificuldade que eles têm e trazem de suas próprias vivências em família, na sociedade em geral [...], aí não conseguem também conviver em grupo, se adaptar às normas da escola, em conseqüência, vem a baixa auto-estima, o desinteresse e o baixo rendimento escolar (PROFESSORES de 5ª séries).

Percebemos que a “inadaptação” desses alunos aos critérios e normas da escola os

faz excluídos dos grupos. Conseqüentemente, por não encontrar referências,

acolhimento ao seu jeito diferente de ser, desencadeiam-se outros processos de

rejeição, apatia, dificuldades, indisciplina, agressividade, violência, etc.

Uma pedagoga questiona:

Por que temos que seguir as normas e as condições dessa sociedade? É ela quem deve ditar os caminhos para a escola seguir? Temos que copiar tudo o que ela impõe?Será que o que ela aponta é tudo certo? Vamos então castigar [...] esse é um dos pensamentos instituídos na sociedade. Parece que, se não fizermos assim, não tem jeito com o menino que desobedece, não aceita as regras. Será que é isso que faz com esses alunos estejam sendo ‘excluídos’ mesmo sendo ‘normais’? É porque exigimos que ele cumpra, cumpra, só siga as normas? Se não se adequam, aí a gente exclui, o considera o diferente. Aí é que acho que devemos refletir que os nossos excluídos aqui, nesse sentido, são muitas vezes produzidos pelo modelo de escola, do sistema educacional que ainda impera.

Linhares (2006, p. 27) afirma que “[...] não podemos esquecer o depoimento de Albert

Einstein sobre os processos insidiosos que ele viveu na escola e que o levaram a

criticá-la, [...]”. O grande cientista lembra suas ameaças aos desejos de saber, que

tantas vezes foi expresso nas curiosidades, sendo estas os guias potentes da

aprendizagem:

181

Na verdade, é quase um milagre que os métodos modernos de instrução não tenham exterminado completamente a sagrada sede de saber, pois essa planta frágil da curiosidade científica necessita, além de estímulo, especialmente de liberdade; sem ela, fenece e morre. É um grave erro supor que a satisfação de observar e pesquisar pode ser promovida por meio da coerção e da noção do dever. Muito ao contrário, acredito que seria possível eliminar por completo a voracidade de um animal predatório, obrigando-o, à força,a se alimentar continuamente, mesmo quando não tem fome, especialmente se o alimento usado para a coerção for escolhido para isso (EINSTEIN, 1982, apud LINHARES, 2006, p. 27).

Linhares (2006) considera que, quando Einstein nos mostra os malefícios da

imposição, do desrespeito aos modos singulares de aprender e viver dos sujeitos, nos

faz ver, também, ao mesmo tempo, o quanto é relevante que nós, os professores,

experimentemos permanentemente o desejo de saber, instigando, questionando a

realidade para melhorá-la e aproximando-a de nossos anseios profissionais e desejos

éticos e existenciais.

Uma profissional que atua com turmas de 5ª a 8ª séries comenta que, ao realizar

tarefas que fogem ao habitus implementado ao cotidiano, apesar de oferecer outras

formas e recursos de aprendizagem mais interessantes, mais envolventes e até mais

inclusivos, permitindo várias expressões, ainda percebe, nos alunos, pais e até em

colegas, a necessidade de se aterem aos referenciais balizadores do saber, como o

livro didático, os exercícios de fixação, de revisão, a prova e a nota. De acordo com

essa profissional, isso decorre já da construção social que se tem de escola, de

imposição e de rigidez.

Por mais que abramos múltiplas possibilidades de aprender e ensinar, acabamos por

ter que enquadrar essas possibilidades, depois, em formatos que atendam às

prescrições, às normas e às exigências burocráticas. Isso, muitas vezes, não fará

sentido, por exemplo, aos alunos com deficiências, embora fazer prova, tirar nota,

passar, reprovar não devesse ter um sentido e um significado tão fortes pra ninguém,

alunos e professores, pois a função precípua da escola é ensinar, produzir

conhecimentos e avaliar pra melhor intervir.

Mesmo concordando com o que estavam colocando os colegas do grupo acerca de o

tratamento do conhecimento e do saber não se dar de forma tão linear e pautando-o

só em livros didáticos, treinamentos de exercícios, entre outras práticas assim

182

semelhantes, uma professora traz uma situação real na qual se viu obrigada a atender

à solicitação dos pais de seus alunos.

Relata a professora que os alunos de sua sala iriam, em um bom número, tentar uma

prova se seleção, ou melhor, um Bolsão para ingresso em uma grande renomada

escola da rede privada, para a 5ª série. A ansiedade dos pais e, conseqüentemente,

dos alunos fez com que ela se dedicasse a revisar repetidamente os conteúdos que

constavam do programa, pois se viu duplamente comprometida, primeiro, em atender

e ajudar os pais naquele momento, segundo, em garantir ao máximo o sucesso de

seus alunos no tal provão, visto estar ela acompanhando esses alunos desde a 1ª

série.

A pedagoga se manifesta novamente:

Apesar de vermos esse exemplo da colega, o conteúdo não deveria ser mais o centro do currículo escolar. Será que todos precisam realmente dele? Todos vão fazer o bolsão pra a escola X? A educação tem que ter outra proposta pra que o aluno possa entrar no mercado de trabalho!

Os exemplos se seguem, à medida que os professores verificam que têm, em suas

ações docentes, algumas que se aproximam daquelas que têm sido responsáveis pela

promoção de um melhor aprendizado, de uma maior integração entre todos na classe,

do envolvimento não somente dos alunos que já dominam o processo de leitura e

escrita, mas algumas ações que possibilitam condições de participação por todos na

classe.

Ainda que recorrente essa pedagoga cita o trabalho da professora Cristal como

exemplo de uma prática mais aberta à participação integral de todos os alunos da

classe, inclusive dos dois alunos com NEE:

É, mas eu acho que tem também muito essa questão de gostar, de ter afinidade com determinadas propostas, mas eu não fiz nada sozinha. A professora Ametista 71 me ajudou muito. Outros colegas cederam e estiveram em suas aulas comigo. Enfim, foi uma relação de ajuda com toda a equipe para que saísse esse espetáculo. A professora de informática muito nos ajudou, o colega que trabalha na portaria, a estagiária que, além de estar o tempo todo do meu lado, ainda foi o ‘elefante’ da história. Tivemos uma grande audiência dos pais, das professoras do L.P .72 da educação

71 Nome fictício. 72 Laboratório Pedagógico.

183

especial. Os resultados, após a exibição do teatro, foram fantásticos. Os alunos, os pais comentam até hoje [...] (PROFESSORA Cristal).

Uma das profissionais do C.T.A. diz que a idéia do trabalho com teatro é excelente,

por suas múltiplas linguagens e, apesar de implicar um amplo e organizado

planejamento “[...] mesmo dando muito trabalho”, valem a pena os resultados, pela

possibilidade de participação a todos os alunos, “[...] é uma pena este tipo de trabalho

não ser muito escolhido!”

Auxiliada pela professora que tem por opção o trabalho com teatro, ela cita as várias

possibilidades de aproveitá-lo para além de seus objetivos mais explícitos:

Pode-se, por exemplo, reescrever as falas dos personagens, reproduzir por escrito a história, ou até escrever roteiros. Podem-se pesquisar alguns elementos e aspectos de curiosidades que tenham no enredo da história [...]. Com relação aos conhecimentos gramaticais, pode-se, por exemplo, utilizar-se fartamente do que oferece o texto teatral, desde a acentuação gráfica, até classificação das palavras (verbos, substantivos...). Além dessas possibilidades há o desenvolvimento da oralidade, de várias outras competências que o trabalho em equipe garante.

Uma professora lembra um trabalho realizado com toda a classe sobre o Estado do

Espírito Santo, desde o planejamento, as orientações para pesquisas, as consultas à

internet, as visitas a alguns pontos turísticos no centro da cidade, até à produção de

textos e construção de maquetes por todos os alunos da classe. “Foi um trabalho

longo”, diz a professora.

Trabalhamos todas as etapas com o envolvimento de toda a classe. As famílias contribuíram cada uma como podia. Eles se lembram até hoje e me perguntam quando faremos um trabalho tipo aquele! Ninguém ficou sem participar. Aprenderam todo o conteúdo, mas de uma maneira bem legal!

Trabalhar na perspectiva de uma educação inclusiva, pensando concretamente o

aluno com NEE, por deficiência ou não, em sala de aula, pressupõe um trabalho e

uma organização pedagógica mais aberta e flexibilizada, de modo a atender às

necessidades, não só de uns, mas de todos. Isso é ser professor de todos.

È necessário, antes de tudo, pensar em várias maneiras de ensinar, vários recursos e estratégias. Uma visão de trabalho homogêneo tem que ser descartada. É preciso também dispor de tempo maior para planejamento, para escolher as atividades adequadas e até pensar em outros espaços para se trabalhar que não seja só a sala de aula (PROFESSORES de 1ª a 4ª séries).

184

Sob esse pensamento, acreditamos ser possível efetuarem-se reestruturações e

redimensionamento do tempo, do espaço, das ações de planejamento, entre outras

“instituições” já naturalizadas e talvez tidas como inquestionáveis no contexto escolar.

Consideramos pertinente o relato da professora Roseli Baumel, na qual faz algumas

considerações pertinentes à utilidade de alguns importantes e conceituados conteúdos

presentes nas várias disciplinas escolares, questionando a extremada valoração dada

por professores a tais conteúdos, sem, contudo, revelar ou antecipar sua utilidade.

Baumel 73relata algumas de suas experiências:

─ Professor, qual será para mim a utilidade do Teorema de Piágoras? O professor lhe responde:

─ Um dia você saberá.

Igualmente relata que, numa aula de Educação Física, se viu em situação de

avaliação nas seguintes tarefas: salto em distância, lançamento de peso e corrida de

100 metros. Ao questionar a professora sobre os motivos que teria pra realizar tais

tarefas, uma vez que não deseja ou se interessa por tais esportes, ela pediu-lhe que

não discutisse e realizasse as provas.

Sem explicações ou argumentações pela professora que lhe fizesse compreender que

seria importante empreender esforços no desenvolvimento de algumas daquelas

habilidades, Baumel relata que, anos mais tarde, se viu numa situação que a fez se

lembrar das aulas de Educação Física:

Ao deparar-me com grandes poças de água nas ruas da Universidade de São Paulo (USP), após uma enorme chuva, restava-me exatamente a alternativa nada ‘esportiva’ de: salto em distância! Saltei e me esparramei inteira dentro da poça d’água! (BAUMEL, 2006). 74

O exemplo da professora vem corroborar os muitos exemplos vividos por nós em

nossas infâncias e adolescências, vindo, posteriormente, até compreender que, se

nos tivessem explicado melhor os significados e sentidos de tudo aquilo, teríamos,

inclusive, aprendido e nos saído melhor nos exames e provas.

73 Palestra proferida no X Seminário Capixaba de Educação Inclusiva em Vitória-ES, no ano de 2006. 74 Idem Palestra.

185

7 CONSTRUINDO REDES DE SIGNIFICADOS: ENTRE OS DESAFIOS E AS

POSSIBILIDADES

Por acreditar que são as práticas do cotidiano que nos fornecerão as pistas para

apreendermos os sentidos e os significados dos saberes e fazeres ali tecidos e

construídos, traremos, nesta seção, algumas situações e eventos que foi possível

captar como enredamentos de saberes, percepções e sentimentos presentes no agir

pedagógico e administrativo da escola na qual realizamos este estudo.

Tais pistas sinalizam, diante de todas as questões discutidas pelo grupo, assim como

a complexidade que perpassa essas questões, o quanto demonstram esses

profissionais, em seus saberes fazeres, uma expressão de desejo, de busca e de

preocupação e angústia por não fazerem mais do que fazem.

O fato de não realizarem tudo, ou o ideal desejado, não nos faz desconsiderar as

sutilezas presentes no agir dos profissionais, em prol de uma escola melhor a todos

que nela transitam.

7.1 AS SUTILEZAS NO AGIR PEDAGÓGICO DE UM GRUPO

Consideramos como sutileza o processo manso, tênue e sem muito barulho que

alguns professores vêm desenvolvendo em suas práticas cotidianas. Alguns alunos e

professores são, desse modo, pontualmente trazidos no texto, como expressão de

seus fazeres, que, pouco a pouco, vão sendo tecidos, desvelando para si mesmos e

para os demais professores, os significados de uma prática docente voltada à

construção de uma educação de qualidade a todos.

Diante da impossibilidade de escrever tudo o que consideramos como sutilezas no

agir dos profissionais da escola, estaremos nos limitando a apresentar ações de

alguns professores que atuam com seis dos doze alunos que apresentam

significativos comprometimentos em relação ao processo de aprendizagem,

decorrentes ou não da deficiência. São eles: 75

� Pedro, aluno da 5ª série;

� Lucas e Carlos, alunos da 6ª série;

� João e Ricardo, da 2ª série; 75 Nomes fictícios.

186

� Luís, da 4ª série.

Lembramos que as séries desses alunos se referem ao ano de 2005. Exceto o aluno

Luís, todos, em 2006, estavam em séries posteriores.

Pedro é um dos alunos já trazido anteriormente neste texto. Incansavelmente, foi

apontado como um sujeito que abrigava em si “respostas” para muitos de seus

professores, ou seja, a de que era possível ensinar e também compartilhar

conhecimentos, respeitando, no entanto, o tempo, o espaço, as limitações e suas

diferenças no modo de aprender, de ser, agir, de ver o mundo, etc.

O aluno Pedro também é apresentado como aquele sujeito que faz desencadear

importantes reflexões para as ações de docentes. Um exemplo dessa reflexão surge

quando expressam suas experiências em um fazer pedagógico diferenciado:

Quando eu cheguei aqui na escola o Pedro tinha uma estagiária, e eu o deixei por conta dela [...] é uma situação, sabe [...], uma turma muito complicada! É como se fosse um alívio, menos um aluno, porém percebi que o que fazia mais efeito é quando eu me aproximava dele, chamava sua atenção, acho que ele foi se tornando meu aluno a partir do momento que comecei a me sentir responsável por ele. A estagiária me ajuda, ela funciona como meu apoio (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).

Em observações realizadas nas salas de aula, verificamos, acerca da ação docente

em relação aos alunos com NEE que, em algumas situações, desenvolviam um

trabalho pedagógico que indicava ter havido um planejamento antecipado e refletido

para que pudessem assegurar o ensino e a aprendizagem de todos na classe.

Percebíamos, também, que, mesmo sem tal planejamento, alguns professores

demonstravam, pelas intervenções e solicitações que faziam aos alunos, como um

todo, uma grande habilidade em promover situações de aprendizagem àqueles alunos

que não conseguiam acompanhar o ritmo, mais ou menos, evidenciado pela turma.

No entanto, também verificamos, em algumas dessas observações, que havia

situações em que o aluno era totalmente “desconsiderado”, não tendo sido lembrado

pelos professores quando do planejamento daquele conteúdo, atividade ou projeto.

Trazemos alguns exemplos das situações de trabalho pedagógico que, em nosso

olhar, expressam essas habilidades, pela intervenção e mediação que faziam alguns

187

professores, bem como aqueles originados de um planejamento prévio para o trabalho

em classe com os alunos com NEE.

1º exemplo: Em uma aula de Geografia, observamos que a atividade oferecida a toda

a classe era adequada às condições de realização de Pedro, ou seja, não havia textos

densos e sim pequenas informações, em que era solicitada a observação de uma

determinada cena, a fim de identificar problemas na natureza, campo e cidade,

causados pela ação do homem. Verificamos, nessa atividade, possibilidades de

realização por toda a classe, haja vista a solicitação exigir, entre outros requisitos,

competências cognitivas que eram de domínio de todos os alunos, mesmo sendo elas

em maior grau para uns e menor para outros.

Após explicações a toda a classe e verificada a compreensão por todos, acerca da

atividade, a professora se certifica se Pedro também compreendeu. Como ele diz que

não entendeu tudo, ela, em poucos minutos, de modo individualizado, orienta-o. Isso

bastou para que ele, com tranqüilidade, fosse, pouco a pouco, desenvolvendo a

tarefa. Ao término da aula, constatamos que ele não conseguiu terminar, mas

observamos também que a professora lhe deu a oportunidade de acabar em casa e

trazer para a próxima aula.

2º exemplo: Acompanhando algumas aulas da professora de Artes, verificamos, na

confecção de mandalas, 76 feitas individualmente, um desafio momentaneamente

instalado. O aluno Carlos, com deficiência física, dependente de cadeira de rodas e

bastante comprometido em seus movimentos de pinça, equilíbrio e preensão, até

então absolutamente envolvido na tarefa de aplicar o gesso na forma, etc. não tinha

como utilizar o estilete ou o palito de churrasco, que eram os instrumentos que

estavam sendo usados para realizar os cortes das figuras desenhadas no gesso, pois

esses movimentos, devido às limitações motoras do aluno, poderiam se transformar

em riscos (cortes, perfurações, arranhões, etc..) tanto para ele como para quem o

estava ajudando. Percebendo a atividade dos demais colegas, víamos a ansiedade

em seu rosto, como se nos perguntasse: e agora, como vou continuar a tarefa? Só,

então, a professora percebe a inviabilidade do uso daqueles instrumentos e,

76 A professora iniciou naquele bimestre um estudo acerca de algumas expressões artísticas em diferentes culturas. Já tinha exibido vídeos, realizado pesquisa na internet, entre outros estudos. Nas aulas em que participamos, sua proposta já era a de confecção de mandalas. Para isso, era necessário, depois de endurecido o gesso na fôrma, que desenhassem formas diversas e, posteriormente, as contornassem com um objeto cortante ou pontiagudo, para depois pintarem.