UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO PEDAGÓGICO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
VASTI GONÇALVES DE PAULA CORREIA
PROCESSOS DE INCLUSÃO ESCOLAR: UM OLHAR PROSPECTIVO E
MULTIRREFERENCIAL SOBRE OS SABERES-FAZERES DE UM GRUPO DE
EDUCADORES
VITÓRIA
2006
1
VASTI GONÇALVES DE PAULA CORREIA
PROCESSOS DE INCLUSÃO ESCOLAR: UM OLHAR PROSPECTIVO E
MULTIRREFERENCIAL SOBRE OS SABERES-FAZERES DE UM GRUPO DE
EDUCADORES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª Drª Denise Meyrelles de Jesus.
VITÓRIA
2006
2
Aos profissionais da escola pesquisada,
que deram significado e sentido à
produção deste texto.
Àqueles que desejam fazer cumprir o
compromisso de ensinar a todos,
garantindo o direito de qualquer criança a
uma educação de qualidade.
AGRADECIMENTOS
3
A Deus, autor e grande arquiteto do Universo!
Nele encontramos forças nos momentos de “pressão” e ansiedade...
Nele fomos sustentada, quando nos víamos enfraquecida pelo excesso de
trabalho e de estudos...
E Nele encontramos a possibilidade maior de sabedoria e discernimento nos
principais momentos da produção de nosso trabalho.
Cremos nele, incondicionalmente, como fonte de sabedoria infinita!
À profª Drª Denise Meyrelles de Jesus pelo carinho, respeito e, sobretudo, pela
competência, com que me orientou. Este trabalho também lhe pertence.
À profª Elizabeth Maria Aragão, que me possibilitou ampliar, no início dos
estudos, a visão para uma área ainda não explorada por mim.
Ao meu marido, Jackson, pela tolerância quanto ao “exagero” de minha dedicação
na produção deste trabalho...
Ao meu filhinho, Jackson Júnior, pela indescritível compreensão quanto às minhas
ausências e por suas tentativas de compreender os objetivos de tanto esforço.
Aos meus pais, José Rosa e Ana, grandes exemplos em minha vida, pela
persistência, garra, coragem e enfrentamento de desafios, que somente eles
poderiam ter me ensinado.
Aos meus irmãos, Ezir e Washington, e cunhados, Adesil e Cristiane, que, em
vários momentos, me “socorreram”...
Aos professores amigos e colegas de trabalho, Rafael, Tânia, Gleice e Rejane.
Cada um a seu modo, marcou presença durante este meu percurso...
À profª Drª Sonia Lopes Victor e ao Profº Drº Claudio Roberto Baptista, por
terem aceitado o convite para, não só examinar, mas para também contribuir com
outros olhares senão o nosso.
4
“Essa questão da verdade é muito antiga. Mas até hoje constitui um desafio e nos amedronta. Cada um de nós tem, a seu modo, certo medo da verdade. Porque ela nos ameaça. Ameaça real ou imaginária [...]. Por vezes designamos o que ela não é: mentira, erro, ilusão, engodo [...]. E é justamente esta crença que nos leva a conferir ao sistema científico as virtudes de poder nos revelar a ‘realidade última das coisas’ e das ações humanas. Mas a verdade científica não é algo que cai do céu. Ela nasce e é cultivada na ‘terra’. Não deve ser convertida em dogma nem em ídolo [...]. Nem filósofos, nem cientistas, nem místicos possuem a verdade. Todos nós a procuramos. Tentamos conquistá-la. Nessa busca, o que devemos eliminar é a possibilidade de erros e ilusões.” Hilton Japiassú
5
RESUMO
Considerar os processos de inclusão escolar a partir do olhar multirreferencial foi uma
possibilidade tomada neste estudo, uma vez que a ausência desse olhar, em paradigmas
educacionais tradicionais, só fez aumentar a angústia e os sentimentos de “impotência” e
incapacidade de grande parte dos educadores na oferta de uma educação de qualidade a
todos que na escola estão. Desse modo, o objetivo central deste trabalho foi identificar,
com os educadores, os seus saberes-fazeres, diante da necessidade e do compromisso
que têm/sentem de fazer cumprir sua função educativa no compartilhamento de saberes
a todos, indistintamente, sobretudo, aos alunos com necessidades educacionais
especiais por deficiência ou não. Assim, com um olhar prospectivo sobre os saberes-
fazeres na/para a diversidade, esses foram considerados como “potenciadores” para
outras novas ações docentes. Este estudo é uma investigação de natureza qualitativa e
está ancorado nos pressupostos da abordagem institucional. A Análise Institucional é aqui
apresentada como aquela que sustenta a idéia de descoberta da ação dos instituídos na
escola, “fazendo” movimentar vontades e desejos pela elucidação de problemas e
simultaneamente a invenção de “soluções”. Pela perspectiva da nova pesquisa-ação de
Lapassade (2005) e pelo olhar “plural” e multirreferencial de Ardoino (1998), foi construída
a possibilidade de os profissionais compreenderem e significarem suas ações, tanto por si
mesmos, quanto pelas ações de outros, estas conhecidas pelas dinâmicas de discussão
e auto-análise ocorridas durante o processo de pesquisa. O lócus investigado foi uma
escola de 1ª a 8ª séries do sistema público do município de Vitória-ES, em um de seus
turnos escolares, durante o período de agosto de 2005 a abril de 2006. Essa escola
integra uma das unidades na qual atuamos profissionalmente com o serviço de
assessoria às questões da Educação Especial. A “leveza da bagagem metodológica”
possibilitou adaptações durante o processo de investigação, em que os recuos e os
avanços eram sinalizados pelos participantes da pesquisa. Os resultados interpretam as
possibilidades de redimensionamento e reestruturação das práticas educativas, a partir
dos questionamentos do grupo ao que estava naturalizado na escola. A evidência disso
foi revelada, por exemplo, pelo processo de experimentação, por alguns professores, de
uma nova ação docente, demonstrada pela “competência” de atuar com sucesso, no
contexto da sala de aula, com um aluno que, durante todo o seu percurso na escola,
esteve acompanhado e “contido” por um(uma) estagiário(a). Como resposta ao desafio da
gestão da aprendizagem a todos, o olhar heterogêneo e múltiplo da abordagem
6
multirreferencial revelou ao grupo possibilidades de compreensão para a inclusão escolar,
uma vez que, integrando um cenário de complexidades, não bastavam os determinismos
e as previsibilidades quanto ao sucesso ou o fracasso de alunos não considerados como
o ideal de aluno pretendido. A proposição e a efetivação de práticas mais coerentes aos
objetivos da “instituição” escola, como um espaço de compartilhamento de
conhecimentos e que pertence a todos, movimenta as ações do grupo.
Palavras-chave: Inclusão escolar. Gestão da aprendizagem na diversidade. Olhar
multirreferencial.
7
ABSTRACT
This study aims at identifying the knowledge and practices of educators in view of the
needs and challenges of inclusive education and diversity education, which represent an
important shift from traditional educational paradigms A qualitative methodology, based on
the institutional analysis framework, was chosen for the research. This framework allows
the actors involved in the educational process to understand their own actions and
encourages creative, collaborative solutions of problems encountered. We also used
Lapassade’s (2005) new action research models and Ardoino’s multireferential approach
to ground the self-analysis and group discussions carried in our research. The research
was undertaken at an elementary public school in Vitória, ES from August 2005 through
April 2006. The researcher had been working as a consultant for special needs education
for this school and thus benefited from a deeper, closer standpoint . The flexibility of the
research methodology made changes and adjustments, closer possible, whenever the
advances and setbacks acknowledged by the participants so demanded. The results point
to a change in teaching practices, born out of the issues raised within the groups involved.
This was evidenced by a new teaching practice in the interaction with a student who had
been, until then, under the supervision of a trainee. For the educators involved in the
research, this multireferential view broadened the understanding of the dynamics involved
in inclusive education and diversity education, bringing about new understandings of their
complexities and informed teaching practices in a collaborative setting.
Key-words : Inclusion school. Diversity Education. Multireferential approach.
8
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO.......................................................................................................11
2 DO QUE FALAMOS E DE ONDE FALAMOS............................................................16
3 AS CIÊNCIAS MODERNAS: BASES EPISTEMOLÓGICAS.....................................24
3.1 HERANÇAS DA MODERNIDADE..............................................................................24
3.2 PARADIGMA RACIONALISTA EM DEBATE: “RUPTURAS” E
PERSPECTIVAS........................................................................................................29
3.3 CONTEXTOS INSTITUÍDOS E INSTITUINTES DOS MOVIMENTOS DE
INCLUSÃO: DESAFIOS QUE SE INSURGEM..........................................................31
3.3.1 Fragmentos históricos dos percursos de inclusão: uma pista
para a “ruptura”......................................................................................................35
3.3.2 Educação inclusiva: será uma perspectiva de “ruptura”?.................................38
3.4 O “CAOS” NA PRODUÇÃO CRIATIVA DE MUDANÇAS: POSSIBILIDADES!.......40
3.4.1 Ensinar a todos: eis a função da escola..............................................................46
3.4.2 Os percursos de uma pedagogia ressignificada.................................................53
4 COMPLEXIDADE E MULTIRREFERENCIALIDADE: COMPREENDENDO
O PROCESSO EDUCATIVO...................................................................................58
4.1 MULTIRREFERENCIALIDADE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS...............................67
4.2 MULTIRREFERENCIALIDADE NA EDUCAÇÃO: UMA POSSIBILIDADE
DE COMPREENSÃO DA PRÁTICA EDUCATIVA...................................................69
4.3 ANÁLISE INSTITUCIONAL: CONCEITOS E SUAS RELAÇÕES COM A
ABORDAGEM MULTIRREFERENCIAL..................................................................80
4.3.1 Instituição, multirreferencialidade e implicação.................................................81
5 O CAMINHO INVESTIGATIVO: CONTEXTUALIZANDO NOSSAS
ESCOLHAS..............................................................................................................93
5.1 ANÁLISE INTERNA E NOVA PESQUISA-AÇÃO....................................................96
9
5.2 O GRUPO DE DIAGNÓSTICO COMO SUPORTE METODOLÓGICO
E AGENTE DE FORMAÇÃO...............................................................................109
6 MERGULHO NAS/SOBRE(VIVÊNCIAS) DO GRUPO DA ESCOLA..................113
6.1 DESCREVENDO O PROCESSO DE AUTOFORMAÇÃO: O ESTUDO
SOBRE O CURRÍCULO.......................................................................................114
6.2 OS ESPAÇOS-TEMPOS VIVENCIADOS NO GRUPO DE
DIAGNÓSTICO....................................................................................................136
6.2.1 O diálogo de si para si: os dois primeiros encontros.....................................138
7 CONSTRUINDO REDES DE SIGNIFICAÇÃO: ENTRE OS DESAFIOS
E AS POSSIBILIDADES..........................................................................................185
7.1 AS SUTILEZAS DO AGIR PEDAGÓGICO..............................................................185
7.2 TRABALHO COLABORATIVO: UMA ESTRATÉGIA EM ASCENSÃO....................195
7.3 UM PLANEJAMENTO HABITUAL... UMA IDÉIA FANTÁSTICA!.............................202
7.4 IDÉIAS E POSSIBILIDADES DE ENSINO A UM ALUNO COM
PARALISIA CEREBRAL...........................................................................................205
7.5 O DESAFIO QUE PERSISTE, MAS NÃO FAZ DESISTIR......................................207
8 CONSIDERAÇÕES..................................................................................................212
9 REFERÊNCIAS........................................................................................................219
11
1 APRESENTAÇÃO
Abrir a escola para todos não é uma escolha entre outras: é a própria vocação dessa instituição, uma exigência consubstancial de sua existência, plenamente coerente com seu princípio fundamental. Uma escola que exclui não é uma Escola: é uma oficina de formação [...]. A Escola, propriamente, é uma instituição aberta a todas as crianças, uma instituição que tem a preocupação de não descartar ninguém, de fazer com que se compartilhem os saberes que ela deve ensinar a todos. Sem nenhuma reserva (MEIRIEU, 2005, p. 44).
O presente trabalho traz em suas páginas, talvez de forma inusitada, uma análise
muito mais prospectiva sobre os saberes-fazeres dos profissionais da escola
investigada, com um olhar convergente para suas potencialidades e possibilidades, do
que apontamentos das vicissitudes do cotidiano, dos impossíveis, dos “erros” e dos
não-fazeres.
Entretanto, esses apontamentos são trazidos, em alguns momentos, para sinalizar
nossas considerações, ainda que com certa sutileza.
Nos questionamentos, discussões e ações reflexivas, que fluíram ao longo do estudo,
esses apontamentos foram apresentados como hipóteses ou condições mobilizadoras
e disparadoras dos processos de mudança.
Cremos que tal postura, assumida por nós, reflete no todo, ou em boa parte, nossa
condição de ser e estar como pessoa, como ser humano e, conseqüentemente, como
profissional. Podemos dizer do valor da produção do outro, não no sentido de aceitar a
sua estagnação, mas como algo que tem feito com que os sujeitos que produzem (ou
são produzidos) no/pelo conhecimento os saberes a serem compartilhados, se vejam
“habilitados” a se projetarem mais, vislumbrando outras novas possibilidades de sua
ação docente.
Acreditamos ser importante situar o leitor sobre essa nossa “tendência”, pois nos
valemos muito dela neste processo de investigação-ação, assim como alertá-lo da
impossibilidade de separar a pessoa, a profissional implicada, da pessoa
pesquisadora.
No desempenho de nossa função profissional, para melhor nos justificar, salientamos
que a tarefa de potencialização dos saberes-fazeres, juntamente com a análise
12
prospectiva que vimos fazendo com os professores com os quais atuamos tem, em
grande medida, propiciado aos que desejam realizar a gestão da aprendizagem a
todos, a apropriação de outros saberes, fortalecendo a capacidade profissional de
cada educador.
Quanto ao percurso teórico-metodológico por nós empreendido, por se ancorar na
abordagem institucional, possibilitou-nos transitar entre as considerações que fazem
os teóricos da Pedagogia Institucional, com ideais de transformação das instituições,
até aqueles que encontram, pelo olhar multirreferencial, especialmente o francês
Jacques Ardoino, uma alternativa para se compreender os fenômenos educativos.
Com uma proposta de natureza qualitativa, este trabalho se sustenta em suas
análises com perspectivas teóricas que consideram e valorizam tanto o pesquisador
quanto o contexto investigado. Tais perspectivas se assentam na pesquisa-ação
institucional de Barbier (1985), que se encontra pelo viés da Análise Institucional com
autores, como Lapassade (1983), Lourau (1995), Ardoino (1971) e Castoriadis (1982).
Tomando a possibilidade do olhar multirreferencial, que no próprio movimento
institucionalista encontra relações, ousamos, pela busca de múltiplas referências,
como a Psicologia, a Sociologia e o referencial histórico-paradigmático, compreender
o fenômeno inclusão e gestão da aprendizagem para todos.
Sob a denominação de microssociologias, segundo expressão de Lapassade (2005),
estão também presentes, neste estudo, o interacionismo simbólico (pela utilização de
dinâmicas de grupo), os dispositivos de observação, estudo e formação e a própria
pesquisa-ação desenvolvidos com o grupo da escola. Lapassade nos apresenta a
definição de Moreno para microssociologia, em que este diz ser o estudo de um
pequeno grupo ou, no máximo, de uma instituição (MORENO, 1952, apud
LAPASSADE, 2005).
O lugar escolhido para a realização deste estudo é uma escola municipal de Ensino
Fundamental de 1ª a 8ª séries, localizada em Vitória-ES. Ressaltamos que essa
escola integra o grupo de escolas nas quais atuamos com o serviço de assessoria e
apoio nas questões da Educação Especial e educação inclusiva, por sermos a
coordenadora do laboratório pedagógico, responsável por prestar atendimento
especializado aos alunos com necessidades educacionais especiais dessa região.
13
Nosso interesse principal com este estudo convergiu para a identificação dos saberes-
fazeres de um grupo, na gestão da aprendizagem de todos os seus alunos, na
tentativa de compreender os movimentos, os processos de auto-análise e análise
interna, ante a necessidade e o compromisso que têm, como educadores, de fazer
cumprir sua função educativa no compartilhamento de saberes a todos os alunos.
Sendo assim, alguns objetivos podem ser elencados:
a) identificar e analisar as instituições que permeiam o espaço escolar, utilizando
diversos dispositivos, para que se construam como formação dos educadores
outros e novos possíveis percursos de práticas curriculares;
b) identificar as práticas instituídas na organização escolar, nos seus vários
desdobramentos, fazendo destes objetos de análise, com vistas à sua
transformação
c) buscar pistas/indícios de práticas organizacional-pedagógicas instituintes,
desvelando-as como possibilidades de não aprisionamento e modelização;
d) dar visibilidade ao grupo das possibilidades de um redimensionamento
funcional-pedagógico na instituição escolar, com vistas à gestão de
aprendizagem para todos os alunos.
Algumas questões de investigação foram se delineando e, sendo elas de nosso
interesse, se configuraram sob as seguintes perguntas:
a) Quais as representações dos profissionais da escola diante do desafio da
gestão da aprendizagem na diversidade?
b) É possível produzir saberes, despertar interesses, disparar mudanças pela
potencialização de um “aparente” não-saber?
c) Como transformar o conflito e a angústia da “impotência” e da
“incompetência” em condição de autoprodução e “autofazimento”?
d) De que maneira a instituição escola, em seus vários âmbitos, poderia
redimensionar sua atual estrutura organizacional-pedagógica, considerando
seus aspectos instituídos, latentes e instituintes, para garantir a gestão da
aprendizagem para todos?
e) O que realmente os profissionais desejam ou precisam para que, além do
acolhimento pela matrícula e promoção da inclusão social na classe e na
14
escola, possam também compartilhar os saberes que se deve ensinar a todos
os alunos?
No processo de investigação-ação, nossa implicação com a pesquisa se apresenta
duplamente configurada, ou seja, somos a profissional que pesquisa e, ao mesmo
tempo, a pesquisadora que trabalha. Isso nos fez pesquisadora de nossa própria
prática, uma vez que representamos ou evocamos as formas organizacionais do
trabalho pedagógico relativas à Educação Especial e à educação inclusiva instituídas
e instituintes no contexto escolar. Afinal, estávamos e continuávamos ali no exercício
de nossas funções profissionais.
Reiteramos que, pela opção teórico-metodológica na qual nos apoiamos, foi possível
aos envolvidos se colocarem no contexto escolar investigado, assim como validar os
seus feitos, relacionando os seus fazeres individuais com o saber-fazer coletivo do
grupo. Questionando-se a si mesmos, inventando, reiventando e avaliando-se em
frente ao desejo de fazer mais, os educadores podiam, paulatinamente, reconhecer a
necessidade de produção de um movimento que, mesmo que não pudesse “romper”
com os instituídos e com as práticas ali naturalizadas, ao menos poderia direcioná-lo,
por meio de reflexões pontuais, em favor da reestruturação administrativa e
pedagógica no agir cotidiano daquele contexto escolar.
Acreditamos, então, que esses feitos/reflexões representam, entre outras coisas, os
resultados de uma ação processual, que seguramente continuará se fazendo presente
ali como condição precípua de garantia de oferta de educação de qualidade para
todos, indistintamente.
Não pretendíamos, com este estudo, simplesmente registrar e pontualmente assinalar
resultados, em função de nossa participação e intervenção com os profissionais da
escola. Contudo, tínhamos bem presente o desejo de registrar os processos pelos
quais íamos estabelecendo relações, conexões, compreendendo e “fazendo”
compreender suas resistências e suas “incapacidades”. Isso se deu por meio dos
ditos, dos não-ditos e dos “interditos” que, pelas análises e auto-análises, puderam ver
o quanto fazem e o quanto ainda podem fazer.
Acreditamos que, em nosso estudo, no que se refere ao plano metodológico, há três
grandes justificativas que nos balizam quanto à forma não tão rígida pela qual
15
optamos em nossa pesquisa: primeiro: o fato de algumas bases de nosso trabalho se
sustentarem na abordagem institucional e que integra os discursos da Pedagogia
Institucional; segundo: as considerações acerca da noção de complexidade que
permeiam nossas discussões, ampliando nosso olhar para além do previsível, certo,
objetivo e excessivamente predefinido; terceiro: o olhar multirreferencial com que nos
convida Ardoino para a compreensão dos fenômenos educacionais.
Conforme escreve Baptista (2005, p. 95), pensamos que a “leveza” da bagagem
metodológica fica, então, justificada, inclusive, “[...] pela compreensão de que, ao
abordar fenômenos complexos, é importante garantir a possibilidade de contínuas
adaptações na ação investigativa [...]”.
No convite que continuamos a fazer ao leitor, para a leitura do presente trabalho,
apresentaremos o que nos foi possível considerar, registrar, traduzir, inferir e analisar
nos capítulos que se seguem:
No segundo capítulo, além de nos apresentar por meio de alguns recortes de nosso
percurso pessoal e profissional, também expomos ao leitor de onde, atualmente,
estamos falando. Trazemos algumas considerações acerca da necessidade que
temos de repensar a escola para todos, assim como pensar nos apoios educacionais
não somente para o aluno, mas também para o docente na gestão da aprendizagem a
todos na classe.
No terceiro capítulo, trazemos o legado das ciências modernas e seus reflexos na
educação. Apresentamos algumas considerações sobre o debate empreendido em
torno de um paradigma que prima pela razão e pela cientificidade, obscurecendo
outros conhecimentos e sabedorias. No entanto, possibilidades de “rupturas” se
insurgem, a partir de desafios que disparam a produção criativa de mudanças no
processo de ensinar a todos.
O quarto capítulo se constitui num aporte teórico que tem suas bases na abordagem
institucional sustentando, desse modo, nossas discussões e idéias de transformação
de práticas e ações naturalizadas, no contexto escolar, pelos processos analíticos da
análise interna e da auto-análise. Apresentamos, ainda, ao leitor nossa interpretação
dos escritos de Ardoino (1998) e de outros autores acerca da abordagem
16
multirreferencial nas ciências e na educação, em que o olhar plural e multirreferencial
é trazido como possibilidade de compreensão aos fenômenos educativos.
Nossas escolhas metodológicas são apresentadas no quinto capítulo. O caminho
investigativo pelo qual fomos “colhendo” nossos dados e/ou verificando hipóteses
perpassou por momentos e processos de análise interna e da chamada nova
pesquisa-ação de Lapassade (2005).
O sexto e o sétimo capítulos se dividem na centralidade de nossas análises, que
revelam o vivido com o grupo da escola pelas “leituras” realizadas, por nós e pelo
próprio grupo. O olhar prospectivo que lançávamos sobre as práticas de alguns
profissionais, assim como na consideração e na potencialização de seus saberes e
fazeres, é interpretado pelas sutilezas do agir pedagógico de alguns professores,
assim como os desafios que persistem, mas não os fazem desistir. Essas se traduzem
como expressão de uma escola viva e que está em movimento.
O último capítulo que, apesar de ser o último, não se constitui pra nós a conclusão,
tem o registro de nosso sentimento na produção deste trabalho, assim como
apresentamos ao leitor nossas considerações sobre o quanto podem a “impotência” e
“incapacidade”, na produção e transformação dos processos de aquisição de saberes,
desde que sejam assumidas com responsabilidade e compromisso por parte de quem
as reconhece.
17
2 DO QUE FALAMOS E DE ONDE FALAMOS
A questão a que ora nos propomos investigar neste estudo veio se constituindo há
algum tempo em nossa trajetória profissional. Nesse percurso, atuando na docência,
ou fora dela, nos sentimos impulsionada pelo desejo de construir ou fazer parte da
construção de um projeto educativo que levasse em consideração a necessidade do
desenvolvimento de ações pedagógicas, que pudessem acolher e trabalhar com a
diversidade e a diferença presentes nos sujeitos que constituem os espaços
educacionais.
Em nossa análise, esse projeto deve levar em conta as singularidades dos sujeitos
que estão nas escolas, assim como também deve considerar o real o desafio diante
dos propósitos de não excluir ninguém, de não descartar nenhuma criança e de fazer
com que sejam compartilhados os saberes que a escola deve ensinar a todos.
Por considerar tal realidade, é que nos debruçamos com dedicação neste estudo e
investigação. Acreditamos, também, que já não podemos, de modo responsável e
crítico, ficar só nas denúncias e nas constatações das impossibilidades da gestão da
aprendizagem e do conhecimento.
Sendo assim, possibilitar que sejam ouvidos e validar o que dizem aqueles que estão
no cotidiano da escola, sobre suas reais dificuldades, desejos, êxitos, e o que pensam
sobre os fins que a escola se propõe, entre tantos outros aspectos, torna-se
imprescindível aos processos de mudanças. Nesse sentido, vale a consideração de
que esses aspectos muitas vezes são movimentados e mobilizados por situações de
intensos conflitos, desafios e tensões.
Considerando o posicionamento de Bourdieu e Passeron (1992, p. 111), de que “[...] a
análise das transformações da relação pedagógica confirma que toda transformação
do sistema escolar se opera segundo uma lógica na qual se exprime ainda a estrutura
e a função próprias desse sistema”, faz-se necessário elucidar, ou trazer à luz,
algumas questões que, refletidas em si, refletem também a elementos circundantes
que vão da estrutura administrativo-pedagógica da escola até a estrutura macro do
sistema educacional.
18
Essa estrutura e essa função podem ser interpretadas como reprodutoras de
condições e exigências implícitas para a manutenção do funcionamento do sistema.
Podem se configurar como uma harmonia preestabelecida que não deve ser
questionada nem tocada. Não se concretizando esse processo, ou seja, persistindo a
manutenção desse funcionamento, surgem, em geral, situações de crise.
Segundo os autores citados, é nesses momentos que se deve “[...] discernir os
pressupostos ocultos de um sistema tradicional e os mecanismos capazes de
perpetuá-lo quando os preliminares de seu funcionamento não estão mais
completamente preenchidos” (p.111).
A reflexão sobre essa “harmonia preestabelecida” (BOURDIEU; PASSERON, 1992),
que mantinha ou mantém este sistema que excluía as interrogações sobre o seu
próprio fundamento, se insurge como um imperativo.
Essa harmonia, em nosso entendimento, parece revelar os motivos da exclusão, da
“falta de condições”, do despreparo profissional, “da incompetência e/ou impotência”
no trabalho com um público, que tem garantido o seu acesso ao sistema escolar, mas
que ainda não tem garantido no contexto educacional o reconhecimento da
diversidade e da diferença que constitui esse público.
A partir dessas questões, pensamos que a abordagem institucional, pela possibilidade
que nos fornece, por meio de seus vários dispositivos de análises, nos possibilita
trazer à tona os elementos que negam e/ou afirmam o projeto de uma escola para
todos, sejam esses elementos relacionados com os âmbitos administrativo,
pedagógico ou das subjetividades.
Acreditamos ainda que essas análises possam elucidar também os anteparos
ideológicos que ocultam ou negam as ações conservadoras, que preservam a
reprodução social e fazem emergir aspectos fundamentais da dialética instituído-
instituinte. Salientamos que a experiência que temos vivido nos últimos quatro anos na
Prefeitura Municipal de Vitória, 1 onde desempenhamos a função de coordenadora de
um laboratório pedagógico, na assessoria a seis escolas de uma região administrativa,
1 Assumimos, em 2002, a função de coordenação de laboratório pedagógico, a qual se constituía em atividades como: avaliação cognitiva de alunos com necessidades educacionais especiais, encaminhamentos pedagógicos e clínicos diversos, orientação e acompanhamento administrativo/pedagógico às escolas da região atendida, entre outras.
19
nos possibilitou conhecer as expectativas educativas que professores e pedagogos
vêm nutrindo a respeito de alunos com necessidades educacionais especiais, seja por
deficiência, seja por outra condição, que fogem ou escapam ao ideal de aluno
pretendido/desejado.
Nesses contatos com professores e pedagogos, nos quais se objetivavam realizar
encaminhamentos e tentativas de descoberta e construção de alternativas educativas
aos alunos com necessidades educacionais especiais, ficava quase sempre
evidenciado que o simples fato de esse aluno passar a freqüentar o laboratório
pedagógico, 2 ou iniciar atendimentos em alguma instituição especial, significava a
finalização da obrigação desses profissionais quanto à função educativa com esses
alunos.
Dessa maneira, configurando um sentimento de dever cumprido, por parte daqueles
que solicitavam os encaminhamentos, restavam, ao aluno, no contexto da escola e
especificamente na sala de aula regular, somente as possibilidades de socialização,
tendo em vista a baixa expectativa quanto à sua aprendizagem e desenvolvimento.
Era-nos possível verificar, acerca das práticas, dos saberes e das concepções desses
profissionais, a expressão viva do pensamento de Ferreira (2005) sobre as
percepções que tinham de si e dos alunos, expressando assim uma significativa
consciência da própria incapacidade docente unida a uma baixa expectativa em frente
às possibilidades do aluno.
Isso fortalece em nós a crença de que há certa fragilidade na escola, nos currículos e
na própria ação docente em fazer confluir, de forma sistemática e interativa, seus
projetos e propostas pedagógicas a fim de conseguir um ensino de qualidade na
diversidade.
Nesse sentido, somos levada a dialogar com Charlot (2005) acerca da relação com o
saber, quando este questiona se essa seria uma questão de didática. O autor nos
alerta sobre o risco que corre algumas escolas e educadores quando afirmam que se
determinado aluno vai mal é devido à sua relação com o saber. Isso, segundo ele,
2 Laboratório pedagógico é o espaço organizado em algumas escolas (geograficamente localizadas em regiões que atendam a todas as demais escolas de seu entorno), que dispõe de recursos pedagógicos e professores especialistas nas diversas áreas de deficiência.
20
seria uma forma errônea de relacionar a noção de saber com a noção de deficiência
sociocultural.
É importante salientar que a noção que emerge da relação com o saber não se dá
apenas por uma via, ou seja, a do aluno. Os educadores precisam se questionar sobre
como concebem essa relação em seus cotidianos, entre si e consigo mesmo. Para
obter condições de promoção de saberes a todos que na escola estão, é preciso
também refletir acerca de como nos relacionamos com os nossos próprios saberes,
assim como os dos outros. Charlot (2005, p. 45) nos propõe, então, a seguinte
definição:
A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender [...] é o conjunto das relações que um sujeito estabelece com um objeto, um ‘conteúdo de pensamento’, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber – conseqüentemente, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a atividade no mundo e sobre o mundo [...], como mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação.
Compreender a relação com os saberes é uma importante tarefa, considerando-nos,
sobretudo, como sujeitos que aprendem.
O desafio que se sobrepõe, ou emerge, a partir do que lemos e pesquisamos acerca
das produções que se preocuparam com o ensino com qualidade na diversidade,
assim como pelo olhar e pelas ações e/ou intervenções a partir do exercício de nossas
funções profissionais como assessora, pedagoga ou professora, nos permite ou nos
autoriza dizer que é preciso validar o que as evidências denunciam:
Em primeiro lugar, a de que uma escola, organizada e arquitetada para alunos que
correspondam a um ideal já padronizado e modelizado, desde os mais remotos
tempos, dificilmente produzirá bons resultados no trabalho pedagógico para aqueles
que necessitam de um outro projeto de escola, ou seja, todos os que nela estão
presentes, pois todos são sujeitos singulares. Nesse sentido, a hipótese é: precisa-se
repensar a escola para todos.
Em segundo lugar, o ressentimento de que professores e professoras nutrem acerca
da ausência de um profissional especialista, que teoricamente estaria mais bem
21
preparado para planejar, fazer e executar, junto com eles, os projetos pedagógicos
que pressupõem a participação e o envolvimento de todos os alunos da classe. Sendo
assim, uma segunda hipótese se apresenta: é necessário pensar no apoio não só
para o aluno, mas também para o docente na gestão da aprendizagem a todos
da classe.
Segundo Ferreira (2005, p. 149), na realidade escolar, a prevalência de uma
identidade marcada pelas diferenças e, na maior parte das vezes, negativa em relação
ao aluno, faz com que ele, acabe “[...] ocupando o lugar de falência do ideal, dentro de
um saber instituído que não lhe confere o estatuto de sujeito, e que leva a uma total
distorção no processo educacional”. Dessa maneira, acrescentamos ao pensamento
da autora a questão: quais são as verdadeiras possibilidades da escolarização dessas
crianças com necessidades educacionais especiais?
Acreditamos que as hipóteses acima traçadas se constituem num investimento
profícuo de propostas de ressignificação do cotidiano educacional instituído, em que a
prática pedagógica dos professores, conforme Ferreira (2005), ainda se orienta pela
concepção de que existem duas categorias qualitativamente distintas de alunos: os
“normais”, que freqüentam a escola comum, e os deficientes, que são da alçada
educativa da Educação Especial. Romper com esse paradigma e com essas
concepções constitui-se num grande desafio e igualmente numa grande necessidade.
Também acreditamos num investimento pela via da formação, que trabalhe com a
capacidade de reflexão e ação dos educadores, em que seja possível considerar e
analisar as várias formas de resistências, especialmente aquelas reveladas no
discurso da “impotência” do educador, nas “incapacidades” do aluno e na descrença
de que a educação deva ser para todos, indistintamente.
Ainda de acordo com Ferreira (2005), a presença do aluno diferente do ideal esperado
pela comunidade escolar gera uma desestabilização no sistema, sistema esse que
tem sido pouco flexível na medida em que apresenta uma estrutura que não oferece
muita abertura para ações, segundo as necessidades específicas de cada criança.
Nesse sentido,
[...] a desestabilização mobiliza todos os participantes da escola, podendo criar resistências que impossibilitam a inclusão, mas
22
contraditoriamente a tensão gerada pelo fato altera a rigidez da estrutura escolar e possibilita movimentos favoráveis à plena educação do aluno.
Por sua vez, Meirieu (2005) nos ajuda a refletir sobre essas questões, quando fala
acerca do ceticismo geral em que se vive com relação a um projeto que parece
completamente utópico, que é a ambição dos homens de não excluir ninguém do
processo escolar. Nesse ceticismo, vê-se o posicionamento de alguns educadores:
[...] algumas crianças, com toda evidência, não querem aprender, não têm desejo nem necessidade disso; outras foram maltratadas pela vida, e os estragos são tais que não se pode mais esperar que adquiram conhecimentos complexos; outras, por exemplo, e não se vê motivo para forçá-las ao estudo de noções abstratas literárias, econômicas ou científicas (MEIRIEU, 2005, p. 41).
Ora, diante de tantos obstáculos, de tanto ceticismo, o projeto de uma escola para
todos paradoxalmente passa a ser irrealista para muitos, inviável, quase um combate
perdido. O autor, de modo irônico, “aponta”, então, como possibilidade de “solução”, a
redução de suas ambições de não excluir ninguém do processo.
Para tanto, a sugestão, ou a saída seria adaptar-se aos limites objetivos: de alguns,
pode-se cobrar que estudem História, Física e Filosofia; de outros será exigido
simplesmente que saibam ler e que dominem razoavelmente as quatro operações. Ou
seja, nessa “adaptação”, os alunos estariam pré-selecionados a receber ou não
determinados conhecimentos e a alguns estaria sendo negado o direito ao acesso a
toda produção cultural, artística e científica da humanidade.
Felizmente, esses recuos são captados por “[...] indivíduos mais ou menos
excêntricos e marginais que chamamos de pedagogos” (MEIRIEU, 2005, p. 41),
profissionais inventivos, que investem em todas as possibilidades imagináveis nas
suas práticas pedagógicas. Estes, encurralando os “realistas” em seus próprios
discursos, insistem nas razões que justificariam os abandonos educacionais,
interpelando-os:
Com que direito você diz que esta ou aquela criança não pode ter êxito? Com que direito condena-a ao fracasso, a enclausurar-se em dificuldades que, ao contrário, se deveria ajudá-la a superar? O que lhe garante que a inteligência dela, cuja existência você põe em dúvida, não despertará de repente, quando encontrar os estímulos necessários, as ajudas adequadas, um ambiente favorável. Por que
23
pretender legislar sobre o futuro em nome do passado ou do presente? (MEIRIEU, 2005, p. 42).
As reflexões e os questionamentos aos quais se refere o autor nos remetem, em
alguns momentos, a situações vivenciadas na escola em que realizamos esta
investigação. Tais situações são aqui relatadas como análises realizadas, portanto,
antes de nos apresentarmos na escola como pesquisadora.
Nesse contexto, evidenciava-se, de forma clara, a dificuldade em se lidar com as
diferenças constituídas e desveladas em suas variadas formas, sob alegações
veementes de grande parte dos professores. Os argumentos eram circunscritos à
inviabilidade de ensinar a todos num mesmo espaço/tempo, não havendo, portanto,
expectativas de aprendizagem para determinados alunos.
Nas raras e isoladas experiências contrárias, ou seja, naquelas nas quais foi possível
observar uma gestão de aprendizagem para todos num mesmo espaço-tempo – a
sala de aula regular – avaliamos que esse feito determinava marcas positivas para os
alunos, sem, contudo, disseminar-se como prática corrente.
Na potencialização dessas práticas, nas reflexões dos ditos, “não-ditos” e interditos e
no uso de aportes instrumentais e metodológicos próprios de uma proposta de
investigação-ação, julgamos ter respondido às nossas questões e objetivos iniciais,
assim como aos que se insurgiram ao longo do processo de pesquisa.
Desse modo, podemos dizer que foi a inquietude gerada em nós, ao verificar e, muitas
vezes, constatar as impossibilidades de a escola e de seus profissionais assegurarem
a gestão da aprendizagem para todos e, paralelamente a esse cenário, a possibilidade
de conhecer experiências positivas por parte de alguns profissionais, que nos
motivaram ao estudo e investigação acerca desses movimentos que vêm ocorrendo
nesta escola em nome da inclusão.
As possibilidades de transformação, reestruturação e redimensionamento dos
cotidianos da escola, em função da presença de alunos diferentes do ideal esperado,
são chamadas por nós de um processo instituinte, pois vêm tentando, de alguma
forma, romper com os modelos preestabelecidos de organização pedagógica, de
avaliação, de concepções acerca do desenvolvimento humano, de aprendizagem, de
práticas pedagógicas, entre outros.
24
Essas transformações necessitam fundamentalmente de condições favoráveis, apoios
e engajamento de educadores que, cada vez mais mobilizados e crédulos, buscam
novas formas de atuar pedagogicamente com todos os alunos.
Registramos aqui que os subsídios teórico-metodológicos da Análise Institucional, da
pesquisa-ação institucional e da abordagem multirreferencial nos deram
sustentabilidade para procedermos ao desvelamento, análise, intervenção e “leitura”
das mudanças nesses movimentos no cotidiano investigado.
Para isso, possibilitamos aos profissionais da escola conhecê-los por meio de
dispositivos de análise, nos quais, simultaneamente, num processo de formação e
reflexão-crítica, foram constituídos os espaços de intervenção nas práticas
pedagógicas até então instituídas.
25
3 AS CIÊNCIAS MODERNAS: BASES EPISTEMOLÓGICAS
Neste capítulo, estaremos discutindo a emergência paradigmática das ciências
modernas, uma vez que foi no âmbito da Modernidade que se estruturaram as bases
epistemológicas e também metodológicas que subsidiaram as teorias educacionais e,
conseqüentemente, as práticas educativas dela originadas.
Desse modo, entender as bases nas quais estão calcadas nossas práticas educativas,
assim como entender a influência que os paradigmas da ciência moderna tiveram na
sociedade e na educação, facilitam-nos a “compreensão” do percurso histórico da
educação das pessoas com deficiência e a inclusão delas no ensino regular, como
situação atípica e dissonante para um modelo caracterizado, sobretudo, pelo ideal de
uma escola que está constituída para a formação utilitarista, técnica e científica,
conforme foi concebida.
Pensamos, então, que refletir sobre tal temática nos possibilita um melhor
entendimento das necessidades de mudanças que emergem no atual século em que
vivemos, em frente a indiscutível função da escola que é a de ensinar a todos, sendo
os alunos “ideais” ou não.
3.1 HERANÇAS DA MODERNIDADE
Segundo Japiassu (1996), a visão do mundo é um dos fatores mais importantes para
a organização social e econômica de uma sociedade. Apesar de, para o homem
comum do século XVII, não haver nenhuma importância prática de se saber que a
Terra gira em torno do Sol, a sociedade moderna se viu abalada em suas estruturas,
pelo sistema de Copérnico, quando neste o homem é desalojado do lugar central que
ocupava até então no Universo.
Desse modo, a religião, a filosofia e os mitos, determinantes daquela visão de mundo,
“perdem” sua centralidade nas leis do Universo. É a ciência que passa, então, a
desempenhar esse papel. As explicações sobrenaturais para as epidemias, os raios,
as boas e más colheitas, as tempestades desaparecem, dando lugar a explicações
racionais e objetivas acerca desses fenômenos.
26
Capra (1982) aponta a Física, como um exemplo brilhante de ciência “exata” que, com
explicações racionais e objetivas, vem servindo, desde o século XVII, como modelo
para todas as outras ciências. Durante quase trezentos anos, os físicos se utilizaram
de uma visão mecanicista do mundo, pensando que a matéria era a base de toda a
existência. Nesse contexto, o mundo material era assim visto como uma profusão de
objetos separados.
Nesse sentido, mente e matéria são vistos separadamente e a divisão do
conhecimento em campos especializados se constituiu em única possibilidade de
organização na busca da eficácia em qualquer campo do saber. Isso fez com que a
comunidade científica construísse uma mentalidade reducionista, a tal ponto, que o
homem passou a adquirir uma visão fragmentada não somente das “verdades
científicas”, mas também de si mesmo, de seus valores e dos seus conhecimentos.
Assim, vamos percebendo que, de certa forma, a nossa cultura parece orgulhar-se de
ser científica. Isso acontece quando vemos, por exemplo, o domínio do pensamento
racional, sobre ela, em que o conhecimento científico, via de regra, é a única forma
aceitável de conhecimento. Diz-se, ainda, em nossos dias, que, se não houver
comprovação científica para algumas hipóteses, mesmo “testadas” e visivelmente
“verdadeiras”, mas em dimensões mais subjetivas, não poderão se constituir em
conhecimentos aceitáveis.
Vimos prevalecer o conhecimento científico sobre a sabedoria intuitiva, na qual a
emoção e a psiquê são condicionantes desse saber. Nesse processo, o cientificismo
faz prevalecer a competição sobre a cooperação, a objetividade sobre a subjetividade
e o reducionismo sobre as situações complexas.
Podemos, então, dizer que, no paradigma da modernidade, há uma orientação para o
“[...] saber e a ação propriamente pela ‘razão’ e pela ‘experimentação’, revelando
assim o culto do intelecto e o exílio do coração” (CARDOSO, 1995, p. 31, apud
BEHRENS, 2005, p. 18).
Há uma crença de que apenas os preceitos científicos serão capazes de dissipar as
trevas da ignorância, do obscurantismo e das tradições. Sob essas crenças, cada
sociedade “construiu” sua ciência, conferindo-lhe um estatuto mais ou menos absoluto
27
e, com um corpo de conhecimentos fundamentais, julga-se capaz de explicar a origem
e o sentido do mundo e da vida (JAPIASSU, 1996).
Nesse sentido, acreditamos que, na própria diversidade humana e social, esteja
inscrita também a diversidade científica. Isso nos faz perceber a impossibilidade de a
ciência universalizar verdades absolutas. Pensando assim, lembramo-nos de
Castoriadis (1997), quando lança as seguintes questões: quais são as relações que os
paradigmas sucessivos mantêm entre eles e com todos com aquilo que é visado? Há
uma relação entre a “episteme” do Ocidente contemporâneo e a da Grécia antiga?
Qual seria essa relação? O autor, sobre essas questões, analisando-as como
interditas, diz que a ciência se transforma em uma variedade, ou mesmo em uma
curiosidade etnográfica.
Reelaboramos, então, nosso pensamento por meio das seguintes perguntas: não
estariam, nessas “epistemologias”, presentes as forças sociais invisíveis e que, pela
naturalização e cristalização de suas práticas, acabam assumindo o lugar e o estatuto
de “verdades” científicas? São as práticas socializantes e socializadoras que fazem
perpetuar “verdades” ou é a “verdade” testada e experimentada pela ciência que faz
com que repitamos as mesmas ações, os mesmos fazeres e, pior, os mesmos
prognósticos, especialmente em relação aos alunos com quem cotidianamente
convivemos?
Acreditamos que, se pelo menos nos esforçarmos em refletir acerca de tais perguntas,
chegaremos a um lugar comum a que muitos já chegaram, que é o entendimento, por
exemplo, dessa escola como invenção social, dos comportamentos como ações de
imitação, entre outras “instituições” de negação, de impossibilidades, que se
presentificam na sociedade e na escola.
Diante das complexidades da sociedade moderna, acreditava-se poder entender seus
fenômenos pela teoria matemática de Isaac Newton, pela filosofia de René Descartes
e pela metodologia científica de Francis Bacon. Uma condição, portanto, para tal
entendimento era que tais fenômenos fossem reduzidos aos seus componentes
básicos e se investigassem os mecanismos por meio dos quais esses componentes
interagem (CAPRA, 1982).
28
Lembramos que a influência desse pensamento se perpetuou e se faz presente em
várias áreas. Em uma dessas áreas, a educacional, por exemplo, vemos a
universidade como uma instância que pouco questiona essa influência, haja vista o
papel fundamental que assumiu na reprodução da atividade científica.
De acordo com Behrens (2005), essa influência é sentida na divisão dos cursos em
disciplinas estanques, em períodos, organização em centros, departamentos, divisões
e seções. Esse processo burocrático restringiu cada profissional a uma especialidade,
fazendo-o perder a consciência do global, e provocando o afastamento da realidade
em toda a sua plenitude. Os que se diferenciam disso têm que empreender esforços
individuais e paralelos às suas atividades cotidianas no trabalho.
Tais considerações nos levam à questão amplamente debatida por professores que se
vêem desafiados ante a realidade concreta de ensinar a todos, que é a que se refere à
sua formação inicial. Ou seja, parece não haver coerência entre o que se ensina e se
discute na academia, em frente à realidade com a qual se vai atuar, ou melhor, com o
que a realidade vai “exigir” do atual educador para o atual contexto no qual está
inserida a escola. As especializações e a divisão do conhecimento em partes parece
evidenciar suas conseqüências na prática docente desse profissional. Segundo
Behrens (2005, p. 23):
A visão fragmentada levou os professores e os alunos a processos que se restringem à reprodução do conhecimento. As metodologias utilizadas pelos docentes têm estado assentadas na reprodução, na cópia e na imitação. A ênfase do processo pedagógico recai no produto, no resultado, na memorização do conteúdo, restringindo-se em cumprir tarefas repetitivas que muitas vezes não apresentam sentidos ou significado para quem as realiza.
Mesmo que, na realidade escolar, seja quase impossível encontrar salas de aula
absolutamente silenciosas e com alunos passivos, esse parece ser o ideal e o desejo
de muitos professores, ou seja, poder fazer com que seus alunos permaneçam
organizados nas carteiras, divididos por filas, sem questionar muito, sem expressar
demais seu pensamento e aceitando com passividade toda e qualquer situação de
autoritarismo vinda da escola e dos professores. Talvez porque, em nossa formação
inicial, tenhamos aprendido que tanto os professores, como os alunos deviam aceitar
as coisas da escola como verdades absolutas e inquestionáveis, tais atitudes ainda se
perpetuem pelas ações de muitos de nossos profissionais.
29
Diante das novas exigências históricas da sociedade em que vivemos e pela
consciência de que é preciso uma “nova racionalidade”, sendo necessário lançar mão
de outras abordagens, a fim de entender os fenômenos educacionais, vemos que as
resistências e o sentimento de “impotência” ou “incompetência” profissional se dão
muito mais por se ter tal consciência, do que pela simples negação de fazer e de
querer mudar.
As discussões e a efetivação da inclusão de alunos com necessidades educacionais
especiais no ensino regular assinalam um marco referencial para a mudança de
paradigma, não nos esquecendo obviamente da inviabilidade do modelo e da
estrutura educacional com outros sujeitos que não se adequam ou se moldam a tal
sistema.
Nesse sentido, acreditamos num conceito de paradigma como o que é entendido por
Cardoso (1995), como “[...] um modelo de pensar e ser capaz de engendrar
determinadas teorias e linhas de pensamento dando certa homogeneidade a um modo
de o homem ser no mundo, nos diversos momentos históricos” (CARDOSO, 1995, p.
17, apud BEHRENS, 2005, p. 26).
A expressão paradigma, por si só, evoca o sentido dessa “homogeneidade” a partir da
conceituação de Khun (1996), em que o autor diz ser uma constelação de crenças,
valores e técnicas partilhados pelos membros de uma comunidade científica, durante
uma certa época.
Desse modo, mesmo assumindo ou compartilhando as mesmas concepções, valores
e práticas, as teorias científicas nunca estarão aptas a fornecer uma descrição
completa e definitiva da realidade. Segundo o autor, elas “Serão sempre uma
aproximação da verdadeira natureza das coisas” (CARDOSO, 1995, p. 17, apud
BEHRENS, 2005, p. 26). Ou seja, os cientistas não lidam com a verdade; eles lidam
com descrições da realidade limitadas e aproximadas (p. 45).
Um novo paradigma que se institui deverá, então, considerar tanto os elementos
objetivos, quanto os subjetivos da realidade humana, “rompendo” com os conceitos
deterministas e reducionistas de nosso modo de pensar, assim como de nossas
organizações e de nosso desenvolvimento.
30
3.2 PARADIGMA RACIONALISTA EM DEBATE: RUPTURAS E PERPECTIVAS
Nesta seção, pretendemos realizar uma reflexão que tem por objetivo nos conduzir às
necessárias rupturas epistemológicas, em nosso fazer educativo. Esta se dará pela
apresentação e discussão dos desafios que profissionais da educação vêm
apontando. Tal reflexão nos possibilitará perceber a não pertinência e a incoerência
de muitas de nossas práticas educativas diante das novas “solicitações” da atual
sociedade.
Conseqüentemente, a partir da “impotência e incompetência” assumidas, e diante do
“silêncio”, ante as indagações que se fazem e que também fazemos, algumas
perspectivas emergem, frutos da reflexão, da busca, da pesquisa e da
experimentação. Tais atitudes surgem, por exemplo, da inquestionável
responsabilidade e do compromisso da escola de ensinar a todos.
Assim, quando falamos em rupturas epistemológicas, queremos muito mais nos valer
da força que tem tal expressão do que propriamente quebrar, cortar e fazer cessar
drasticamente tudo o que se faz, ou que se fez até então. Queremos, desse modo,
chamar a atenção, por meio da reflexão, para possíveis mudanças diante da realidade
educacional e dos novos contextos nos quais nos vimos inseridos. Fazendo dessa
maneira, poderemos, paulatinamente, caminhar para a desconstrução e a
desnaturalização dos instituídos, levando-nos, então, às desejadas e necessárias
rupturas.
Entretanto é importante refletirmos com Babha (2003) acerca dessa idéia de ir além,
de ultrapassar barreiras, quanto ele escreve:
O presente não pode mais ser encarado simplesmente como uma ruptura ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais uma presença sincrônica: nossa autopresença mais imediata, nossa imagem pública, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias. Diferentemente da mão morta da história que conta as contas do tempo seqüencial como um rosário, buscando estabelecer conexões seriais, causais [...] (BABHA, 2003, p. 23).
Concordamos com o que escreve Behrens (2005), quando diz que a passagem para
um novo paradigma não deve ser abrupta e nem radical, mesmo porque esse novo
paradigma incorpora alguns referenciais significativos do velho paradigma e que ainda
31
atende aos anseios históricos da época. Afinal, nossa condição de vida em sociedade,
assinalada pelas forças do trabalho, da competição e na luta pela sobrevivência,
assim como o imaginário social, há séculos “construído” e instituído, apontam tal
pensamento como prudente e necessário.
Japiassu (1996) nos lembra a necessidade que temos de mitos, talvez muito mais do
que de realidades. Essa pode ser a razão, mesmo estando diante da realidade e dos
contextos vividos, da difícil tarefa de desconstrução e “assimilação”, pelos agentes da
educação, de outros saberes-fazeres, expressos em novas práticas sociais e
pedagógicas. Essas práticas parecem ter se constituído em heranças quase
“mitológicas”, quanto aos fins e objetivos da educação e da escola, bem como das
concepções que se têm de aluno, de homem, de sociedade, de deficiência, de
aprendizagem, de ensino, assim como da inserção social e cultural do sujeito com
deficiência.
Pensamos que a necessidade que nós, profissionais da educação, ainda temos de
nos agarrarmos aos “mitos” educacionais, legados pelas ciências da modernidade,
nos fazem indecisos, angustiados, sobretudo quanto aos nossos desejos de
construção e reconstrução da sociedade.
Ora, se não sabemos para onde queremos ir, como e por que escolhermos este caminho e não aquele outro? Quem dentre os protagonistas de nossa atual ciência sabe verdadeiramente para onde quer ir, não do ponto de vista do ‘puro saber’, mas quanto ao tipo de sociedade que deseja construir e aos meios que a ela conduzem? (JAPIASSU, 1996, p. 45).
Nesses mitos, nessas crenças e, conseqüentemente, nessas indecisões, diante das
realidades, há, segundo Castoriadis (1987, apud JAPIASSU, 1996), duas grandes
falácias quando se analisam as representações que os indivíduos, inclusive os
próprios cientistas, fazem da ciência:
Primeira: a de que, apesar de não ser defendida abertamente, tende a negar o valor
de verdade à ciência. Ou, então, confere ao termo “verdade” um sentido muito prático:
ou seja, “isto funciona”. De acordo com o autor, essa concepção leva ao ceticismo,
pois, se tudo funciona, qualquer coisa funciona, e se só aceitamos como verdadeiras
as teorias que “funcionam”, como saber se elas funcionam? Neste ponto, o relativismo
32
ou o “anarquismo epistemológico” é incapaz de compreender a historicidade da
ciência.
Segunda: a que pretende que a evolução de nosso saber, no tempo, deu-se em
direção a uma verdade cada vez mais objetiva e transparente. Assim, as teorias
científicas cada vez mais foram expressando a realidade das coisas, constituindo-se,
necessariamente, em universalidades. Essa visão conduziu, naturalmente, a um
dogmatismo triunfalista, ou seja, nela residiram as grandes certezas.
Na realidade escolar, em decorrência dos desafios insurgentes de uma prática
pedagógica que tenta “romper”, pouco a pouco, com esses pensamentos, surgem
formas diferenciadas de organização administrativa e pedagógica assumidas pela
escola na produção do conhecimento. Para essa produção, consideram-se, por
exemplo, as diferentes abordagens e perspectivas de “ruptura epistemológica”, como
a sistêmica, a do ensino como pesquisa, a institucional ou a multirreferencial.
Àqueles que assumem não só a necessidade de reconstrução, mas também de busca
de paradigmas inovadores manifesta-lhes as “respostas” aos seus anseios e, quem
sabe, por meio da “escuta poética”, conforme nos fala Prigogine, a ciência
contemporânea esteja devolvendo ao homem o poder de inovar.
3.3 CONTEXTOS INSTITUÍDOS E INSTITUINTES DO MOVIMENTO DE INCLUSÃO:
DESAFIOS QUE SE INSURGEM
Na tentativa de nos situar quanto às questões apontadas e aos desafios que emergem
a partir da inclusão, representados nas exigências que se constituem
sistematicamente aos sistemas de ensino e, conseqüentemente, de crises e conflitos
que se instauram na escola, trazemos algumas considerações a respeito da transição
paradigmática que preeminentes autores situam como emergente nos processos de
crise e de mudanças.
Segundo Capra (1982), a crise mundial a qual, com muita freqüência, nós,
educadores, fazemos referência, não é um fator a ser desconsiderado, uma vez que
essa crise traz no seu bojo uma extensa complexidade de natureza multidimensional.
33
Suas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida, como a saúde, o modo viver, a
qualidade do meio ambiente e das relações sociais, a economia, a tecnologia e a
política.
Assim, por diversas vezes, valemo-nos das mazelas observadas e vivenciadas no dia-
a-dia da sociedade, sobretudo as relacionadas com a miséria, a injustiça social, como
o desemprego, a falta de habitação e de serviços de saúde dignos para muitos, etc.
para alegar, explicitar e justificar as impossibilidades de um fazer educativo diferente,
colocando o movimento social e escolar de inclusão como algo utópico, haja vista os
grandes problemas existentes na sociedade.
Ainda de acordo com Capra (1982), os especialistas, que presumivelmente estariam
aptos a lidar com os problemas nas suas respectivas áreas, se dizem incapacitados
em entender e apontar caminhos. Isso, porém, é de se esperar, considerando a visão
reducionista, mecanicista e fragmentada da concepção cartesiana de tratar as
ciências de forma separada e o conhecimento numa visão de linearidade.
Muitos desses especialistas, segundo Capra (1982), ainda não identificaram o
verdadeiro problema que está subjacente a essa crise de idéias. De acordo com o
autor, isto acontece pelo fato,
[...] de a maioria dos intelectuais que constituem o mundo acadêmico subscrever percepções estreitas da realidade, as quais são inadequadas para enfrentar os principais problemas de nosso tempo. Esses problemas [...] são sistêmicos,3 o que significa que estão intimamente interligados e são interdependentes. Não podem ser entendidos no âmbito da metodologia fragmentada que é característica de nossas disciplinas acadêmicas e de nossos organismos governamentais (CAPRA, 1982, p. 23)
Com relação à organização do conhecimento distribuído e fragmentado entre as
disciplinas, consideramos ainda que as especializações fazem de cada profissional
um especialista isolado em relação às outras disciplinas e aos problemas que estão
no entorno delas. Não há, desse modo, diálogos entre disciplinas e,
conseqüentemente, essa fragmentação inviabiliza os “diálogos” entre os próprios
profissionais.
3 A abordagem sistêmica tem em Gregory Bateson (1986) aprofundamentos inspiradores quanto ao pensamento, aprendizagem e memória.
34
O “privilégio e a valorização” que algumas disciplinas detêm em detrimento de outras,
sob a alegação de serem mais importantes ao exigente mercado capitalista, é outra
situação que emerge dessa especialização. É assim que assistimos, por exemplo, ao
“desprezo” que muitos, inclusive alguns educadores, têm tido em relação a disciplinas
como Artes, Educação Física, Filosofia ou outras.
Um exemplo prático sobre como o saber é distribuído e fragmentado na escola pode
ser observado na forma como esse conhecimento é previamente organizado, em
conteúdos e disciplinas, considerando, inclusive, algumas variáveis, muitas vezes até
limitantes, como idade, tempo, entre outras, que dificultam ou impedem que o aluno
realize a devida contextualização e interconexão entre os saberes “transmitidos”.
A linearidade e a previsibilidade são as marcas dessa visão cartesiana de tratar as
ciências. Na escola, o que foge a isso é motivo de grandes embates, especialmente
entre os professores, que se valem dessas marcas, para sua organização,
antecipações de sucessos e fracassos, entre outras previsibilidades, quanto ao
desenvolvimento e aprendizagem de seus alunos.
Acreditamos que as conseqüências advindas pela decomposição do conhecimento e
sua fragmentação por disciplinas, e pela visão que tem a escola por seus agentes,
acerca de suas práticas de ensino, aprendizagem, avaliação, currículo, etc.faz com
que se instaure uma tendência quase natural nos educadores em agrupar os alunos
em níveis fortes, médios e fracos e, muitas vezes, deficientes.
Ressaltamos que as concepções que se têm, acerca da aprendizagem das crianças e
adolescentes com deficiência, ainda são aquelas marcadas por uma aprendizagem
qualitativamente diferente em relação aos alunos ditos normais. São concepções
“nascidas” na Educação Especial e, na maioria das vezes, já disseminadas na escola
regular. Em nosso olhar, essas conseqüências assim como as referidas concepções,
são “agravadas” por uma estrutura organizacional pedagógica que se mantém
inflexível em frente às diferenças e singularidades dos sujeitos que nela estão,
exigindo exatamente diferenciações, especialismo e adaptações aos que são
“diferentes”.
A forma dominante com que tem sido considerada a aprendizagem das pessoas com
deficiência tem se caracterizado por alguns aspectos, que, já na primeira metade do
35
século passado, eram criticados por Vigostky (1924-1929/1989). Considerando isso,
Vigostky fundamentou a necessidade de mudanças significativas na educação de
crianças com deficiência. De acordo com Martinez (2006), para a organização dos
processos de ensino e aprendizagem, tanto na Educação Especial quanto na
chamada educação inclusiva, deve-se levar em conta:
a) o pessimismo em relação às possibilidades de aprendizagem e
desenvolvimento dessas pessoas. Não se acredita, portanto, no processo de
apropriação cultural mediado pela relação pedagógica;
b) a ênfase no defeito e não no sujeito com defeito com as suas características
positivas e seus pontos fortes, elementos essenciais, e seus pontos fortes,
elementos essenciais para o delineamento das estratégias pedagógicas;
c) a ênfase no déficit cognitivo como explicativo das dificuldades de
aprendizagem;
d) a consideração de que as crianças com deficiência têm formas de
aprendizagem qualitativamente diferentes em relação às crianças ditas normais e
que, para o trabalho com elas, é preciso pessoal especializado;
e) o “outro” é concebido essencialmente como um mero facilitador de um
processo de aprendizagem que se assume limitado pelo próprio déficit
apresentado.
Diante desses aspectos, acreditamos ser necessária uma intensa reflexão acerca dos
novos saberes necessários para se atuar perante as necessidades que se insurgem
para o trabalho educativo que pressupõe, sobretudo, a gestão da aprendizagem para
todos que na escola estão fazendo desmistificar atitudes e ações baseadas em
determinismos e prognósticos na maioria das vezes negativos em relação à pessoa
com deficiência.
De acordo com Mantoan (2002), mudanças paradigmáticas e toda e qualquer
inovação na educação escolar esbarram em dificuldades e oposições, porém, apesar
disso, é urgente questionar esse modelo de compreensão que nos é imposto desde os
36
primeiros passos de nossa formação e que prossegue nos níveis de ensino mais
elevados.
Morin (2004) nos fala da reforma da estrutura de pensamento, dizendo que esta é
originariamente paradigmática e está relacionada com os princípios fundamentais que
governam nossos discursos e teorias.
Entendemos, assim, que nossas práticas escolares têm essencialmente obedecido de
forma cega a “[...] um paradigma de disjunção e de redução” (p. 67), necessitando,
portanto, serem questionadas e avaliadas por aqueles que a produzem.
Um objetivo primordial na constituição de importantes significados e sentidos para o
trabalho pedagógico, na escola inclusiva, seria o entendimento de que, no paradigma
da complexidade, no qual se fazem presentes novos e importantes desafios,
estivessem presentes também a idéia da implicação mútua assim como a idéia de
aprender a conjugar as várias áreas do conhecimento e dos saberes. Essas idéias,
segundo Morin (2004), levam em consideração a dimensão do humano presente em
cada sujeito, além de estarem aliadas à idéia de aprender a não separar.
Concordamos com Mantoan (2002, p. 80), quando diz que é inegável que tudo é muito
novo, porém,
A escola é velha na sua maneira de ensinar, de planejar, de executar e de avaliar seu projeto educativo. O tradicionalismo, o ritualismo de suas práticas cegam a grande maioria de seus professores e dos pais, diante das transformações, dos caminhos diferentes e não obrigatórios do aprender. Persistem, ainda, os regimes seriados de ensino, os conteúdos programáticos hierarquizados, homogeneizadores, que buscam, generalizar, unificar, despersonalizar quem ensina e quem aprende
3.3.1 Fragmentos históricos dos percursos da inclusão: uma pista para a
“ruptura”
Acreditamos que seja pertinente trazer aqui alguns elementos de natureza histórica,
que vêm apontando na direção do crescente movimento de inclusão, assim como as
possibilidades que se elencam na escolarização e educabilidade de sujeitos com
significativo comprometimento cognitivo, incluídos no ensino regular.
37
Mobilizados por inúmeros acordos e declarações internacionais que há tempos vêm
de algum modo qualificando e aprimorando os princípios da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, alguns países têm traduzido e prudentemente interpretado esses
textos, em políticas públicas aos seus sistemas de ensino, no que diz respeito à
educação de pessoas com deficiência, no chamado ensino regular, delineando, dessa
maneira, caminhos possíveis de uma educação que alcance a todos, indistintamente,
denominada, assim, de educação inclusiva.
Carvalho (apud KASSAR, 2004, p. 57) lembra que a fonte de inspiração do conceito
de inclusão foi buscada em documentos históricos, como a citada Declaração dos
Direitos Humanos (1948), Declaração dos Direitos da Criança (1959), Declaração dos
Direitos do Deficiente Mental (1971), Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos
(1975), entre outros.
Lembra, ainda, que todos aqueles acordos contidos nas citadas declarações decorrem
de um movimento mundial, que surge após o período de depressão econômica
(década de 1930), quando foi necessário associar os conceitos de desenvolvimento e
direitos humanos. Como marca expressiva de direito humano, está postulado, na
Declaração dos Direitos Humanos, que “[...] toda pessoa tem direito à educação. A
educação deve ser gratuita, pelo menos no que se refere à instrução elementar
fundamental”.
A ênfase dada pela Declaração de Salamanca (MEC, 1994, p. 18) à educação de
todos, com o texto: “[...] as escolas têm que encontrar a maneira de educar com êxito
todas as crianças, inclusive as que têm deficiências graves”, faz surgir, então, o
conceito de escola inclusiva.
A garantia do processo de construção dessa escola a cada um de seus alunos, no
reconhecimento da diversidade que os constitui, e respondendo a cada um de acordo
com suas peculiaridade e necessidades, dentro do contexto educacional, é o que
chamamos de escola inclusiva (BRASIL, 2003).
É Importante ressaltar que a escola inclusiva se constrói num ambiente educacional
que assegura a construção de um projeto coletivo, que vai desde a reformulação de
seu espaço físico, currículo, trabalho pedagógico, até os critérios avaliativos e as
dinâmicas desenvolvidas em sala de aula.
38
Segundo Capellini (2004), a inclusão, na perspectiva de um ensino de qualidade para
todos, exige da escola novos posicionamentos, a reestruturação e o
redimensionamento das condições atuais para que o ensino se torne efetivo e para
que os professores se aperfeiçoem, adequando as ações pedagógicas à diversidade
do alunado.
Mais do que uma orientação legal, que traduz a lógica de um ponto de vista ético e de
valorização e respeito ao ser humano, a inclusão é convincente, sobretudo sob o
ponto de vista das análises teórico-metodológicas em que, à luz de estudos e
pesquisas sobre esses sujeitos, antes educados à parte de maneira segregada e hoje
matriculados em classe regulares, evidenciam-se os amplos benefícios de educar
crianças com significativos comprometimentos, juntamente com seus pares.
De acordo com Mendes (2005, p. 3-4), isso é importante,
[...] não apenas para prover oportunidades de socialização e de mudar o pensamento estereotipado das pessoas sobre as limitações, mas também para ensinar o aluno a dominar habilidades e conhecimentos necessários para a vida futura (dentro e fora da escola).
Cumpre aqui registrar que a educação dessas crianças delineia percursos e justifica
pedagogicamente o investimento no potencial desses sujeitos, não os deixando à
margem dos processos de escolarização.
Mendes (1995) nos lembra o fato ocorrido no século XIX e que assinala um marco
importante para a educabilidade de pessoas com deficiência mental. O médico Jean
Marc Itard (1801) convence-se de que a inteligência de uma criança de doze anos
com diagnóstico de idiotia era educável. A partir daí, inicia suas primeiras tentativas de
educá-la.
Mais adiante, em 1846, motivado e influenciado por Itard, Edward Seguin, investe no
desenvolvimento de um método fisiológico de treinamento, que consistia em estimular
o cérebro por meio de atividades físicas e sensoriais. Mais tarde, em 1897, Maria
Montessori desenvolveu um método educacional com base no uso e manipulação
sistemáticos de objetos concretos para ensinar pessoas com deficiência mental
• Educação Especial e classes especiais: percursos
39
As tentativas de educação aos sujeitos com deficiência mental desenvolvidas por
esses três pesquisadores, durante quase todo o século XIX, proporcionaram a
ampliação das oportunidades educacionais a tais sujeitos.
A ampliação dessas oportunidades é implementada com a obrigatoriedade da
escolaridade no final do século XIX e, à medida que se descobriam crianças que não
respondiam aos padrões de aprendizagem da escola, foram criadas as classes
especiais nas escolas públicas, o que, em grande medida, se deu graças à
popularização dos testes de inteligência que, naquele contexto, evidenciavam um alto
número de crianças com problemas que consideravam da ordem ou competência da
Educação Especial.
Uma vez ampliadas as oportunidades educacionais às pessoas com deficiência
mental, a Educação Especial assume dois papéis, pois, de acordo com Mendes
(1995), ela:
Por um lado, atende à democratização do ensino à medida que amplia as oportunidades educacionais para a clientela que não se beneficiava dos processos educacionais regulares; por outro lado, ela também responde por um processo de segregação da criança considerada diferente, legitimando a ação seletiva da educação regular (BUENO, 1994, apud MENDES, 1995, p. 238).
A legitimação dessa ação seletiva da escola pode ser compreendida com a
confirmação dos propósitos e objetivos delegados a ela na reprodução dos princípios
e valores construídos e disseminados durante décadas pela sociedade, onde pessoas
que não se encaixam nem se adaptam aos padrões de aprendizagem por ela exigida
são consideradas como impossibilitadas de nela continuar.
Aqui se circunscreve a necessidade de uma importante “ruptura”: A escola não pode
ser para alguns somente, ela hoje é para todos!
É fácil compreender que, tendo a nossa estrutura educacional profundas raízes que se
encontram diante de um aparato de organização de mundo, de sociedade e da própria
escola, herdadas da modernidade, trate os movimentos recentes, como o da
democratização da escola, e o movimento de inclusão de alunos com NEE por
deficiências, como verdadeiros dissonantes à concepção linear e cartesiana dos
processos pedagógicos organizacionais pensados para a escola.
40
3.3.2 Educação inclusiva: será uma perspectiva de “ruptura?”
Considerando o que dizem os textos legais, em especial a Constituição Federal
(BRASIL, 1988), observamos que esta elege, como fundamentos de nossa República,
a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Nesses fundamentos, estão contidos objetivos, tais como a promoção do bem-estar
de todos e a ausência de preconceitos de origem, sexo, raça, idade, cor ou qualquer
outra forma de discriminação. É a partir daí que o sentido de inclusão, numa
circunscrição mais ampla, chegando até à inclusão escolar, se torna uma obviedade,
uma vez que cidadania e dignidade abarcam os princípios que asseguram direitos
inalienáveis a todos os seres humanos, dentre estes o direito à educação.
Desse modo, registra-se um grande passo na história da educação brasileira, quando
percebemos que, por meio dos textos legais, das diretrizes e normatizações, a criança
passa a ter direitos sociais reconhecidos como inerentes a ela, vista, sobretudo, como
sujeito social, com direitos que devem ser garantidos a todos.
A assunção dos princípios de educação para todos e da educação inclusiva pela Lei
nº 9.394/96, a LDBEN, especialmente quando esta traz em seu texto o atendimento
educacional oferecido “[...] preferencialmente na rede regular de ensino, para
educandos portadores de necessidades especiais” (art. 58), passa a ser um marco
inicial de importantes movimentos, que vão desde os conflitos normais que emergem
das novas políticas públicas, até a que, em nosso olhar, se constitui em um expressivo
significado aos processos de mudanças, que é o da verificação e a constatação de
que a escola que temos não atende às necessidades da maioria de nossos alunos,
por não terem respeitadas o que é absolutamente óbvio e inerente aos seres
humanos, que é a diversidade e a diferença que os constituem.
Eis aqui outra perspectiva de “ruptura”: A escola que temos precisa ser
ressignificada em função de seus objetivos com todos os alunos!
Sendo assim, o conceito que temos de educação inclusiva, além de envolver um
repensar radical das políticas, das práticas e da reflexão de um jeito de pensar
fundamentalmente diferente sobre as origens da aprendizagem e as dificuldades de
comportamento dos alunos (MITTLER, 2003), se complementa com a crescente
41
atitude de aceitação, por parte dos educadores, das diferenças dos sujeitos que estão
presentes no contexto da escola, em valorização à diversidade que é inerente aos
seres humanos, criando, desse modo, um ambiente propício ao desenvolvimento das
potencialidades individuais.
Por conseguinte, somos levados a refletir sobre as bases nas quais estão calcadas
nossas concepções de ensino e aprendizagem, bem como dos fins a que a escola se
propõe, avaliando se esse modelo e estrutura educacional, realmente, fomentam
práticas que denotam ser ela uma escola inclusiva.
Questionamos, então, acerca do movimento de inclusão: este implementa o respeito
aos princípios ético-filosóficos na busca do combate a toda forma de discriminação,
preconceito e práticas educativas segregadoras ou, simplesmente, pela obrigação de
fazer cumprir os dispositivos legais, políticos e econômicos, numa política neoliberal
de estado-mínimo, aceita-se essa proposição como solução pacífica e politicamente
correta, haja vista o Brasil ser signatário de documentos que intentam uma educação
para todos?
O objetivo dessa pergunta se fixa, então, além de trazer às claras tal questão, em
explicitar nosso pensamento, acerca da inclusão, concordando com o que coloca
enfaticamente Baumel (oral) 4 que assegura que esta não se faz por decreto e por
legislação, mas deve ser vivida.
3.4 O “CAOS” NA PRODUÇÃO CRIATIVA DE MUDANÇAS: POSSIBILIDADES!
Mesmo avaliando a escola como um espaço não favorecedor à gestão de
aprendizagens na diversidade, tal como está constituída, é possível, a partir de
processos criativos e autopoiéticos, 5 observados ainda de forma incipiente nas
práticas isoladas de alguns profissionais, uma perspectiva de mudança e de “contágio”
àqueles que estão presentes no contexto escolar.
Esses profissionais, preocupados com os sentidos de sua missão ─ ensinar a todos ─,
colocam-se na condição de professores que aprendem numa escola que se põe
4 Palestra proferida no VIII Seminário Capixaba de Educação Inclusiva, em Vitória, 2004. 5 Autopoiésis: produção de si mesmo, “autofazimento”.
42
permanentemente em condições de refletir-se diante dos novos contextos e dos
desafios a ela postos.
Essa é uma escola reflexiva, e Alarcão (2003, p. 83) a define como uma instituição
que continuamente se pensa a si própria, “[...] na sua missão social e na sua
organização e se confronta com o desenrolar da sua actividade num processo
heurístico simultaneamente avaliativo e formativo”.
A necessidade de uma visão ampliada dos profissionais que desejam dinamizar os
processos de mudanças em seus contextos de atuação e que fazem emergir, assim,
outros olhares e outros fazeres, conduzirá à efetivação de uma escola inclusiva,
constituindo mais do que uma possibilidade, revelando, então, uma necessidade.
As possibilidades, os desafios, as resistências, quando analisados e trazidos para
debate, passam a ter novos significados e sentidos no processo escolar. A sua
transposição de um lugar, antes intocado e imutável, ao lugar das transições e das
possíveis mudanças, produz um novo lugar chamado “caos”.
O “caos” aqui não se restringe à compreensão no sentido tradicional e do senso
comum de confusão e desordem, mas na instauração do sentido positivo de caos, em
que somente, pelo poder criativo, próprio das situações caóticas, emergem as ações
de inventividade.
Segundo Assmann (2004, p.142), “No desenrolar dos fenômenos caóticos emergem
estranhos pontos de atração, aglutinação e ao que parece, re-potenciamento ou
debilitamento do processo ou dos sistemas como um todo”.
Como forma de reencantamento da educação, Assmann (2004) traz-nos a idéia de
que já se ousa afirmar que a existência simultânea de caos e ordem, o que
paradoxalmente vem acontecendo em nossos contextos escolares, seja uma forma
criativa e repotenciadora da complexidade que ora vivenciamos.
Em Morin (2002, p. 101), interpretamos essa força criativa, quando o referido autor diz
que “[...] uma minoria de educadores, animados pela fé na necessidade de reformar o
pensamento e de regenerar o ensino [...] já têm, no íntimo, o sentido de sua missão”.
43
O sentido de criatividade e inventividade próprias das situações caóticas e complexas
é bastante peculiar às situações vivenciadas cotidianamente no interior das escolas. A
regulamentação da legislação, para que as crianças com necessidades educacionais
especiais (NEE) por deficiência deixem de receber atendimento exclusivamente nas
instituições especializadas e possam ter garantidas suas matrículas preferencialmente
na rede regular de ensino, mostrou muito mais do que revelam hoje essa situação
caótica e complexa, situações que foram e que ainda são essenciais às reflexões, às
mudanças e aos debates, sobretudo, para a ampliação dos olhares sobre essa escola
na atuação com os demais sujeitos nela presentes.
A inclusão de pessoas com NEE por deficiência tem conotações significativas e
amplas nos vários âmbitos da compreensão das garantias sociais e de direitos
humanos e vem de encontro a uma visão aparente de “ordem”, na maneira de
conceber as questões relativas ao processo de ensino e aprendizagem.
Agrega-se a essa aparente ordem a dimensão estritamente pragmática e diretiva em
seus objetivos, em um projeto de formação e preparação do indivíduo para a vida,
numa condição de utilidade e servialidade social e cognitiva.
Os sujeitos com deficiência, nessa perspectiva, não se encaixam em nenhum dos
propósitos a que a escola se destina, muito menos na visão de homem na qual ela
acredita e investe esforços.
Instaura-se aí uma verdadeira revolução silenciosa. Denominamos silenciosa, porque
a vemos na dimensão das subjetividades, traduzindo, simultânea ou
progressivamente, em práticas educativas favoráveis ou não à aprendizagem
daqueles indivíduos.
O caos aí estabelecido numa visão emergente de pontos de criatividade, de desafios à
nossa capacidade de lidar com o novo, nos convida a refletir novamente com
Assmann (2004, p. 142), quando levanta o seguinte questionamento:
Será que uma boa definição do agir pedagógico não seria a seguinte: recriar constantemente condições iniciais para um caos potenciador no qual determinados atratores estranhos, geralmente relacionados com a sensação de prazer, favoreçam a emergência das experiências de aprendizagem?
44
Mantoan (2002) nos diz, de maneira muito positiva, que a malha do saber vai
invadindo e cruzando sistemas de idéias, criando novas competências, construindo
maneiras diferentes de organizar e de articular os domínios teóricos e práticos.
A complexidade que envolve as questões relativas à sala de aula, quanto à
diversidade, são pontos de relevância e que merecem atenção especial, pois é nesse
espaço, agora constituído o lugar comum para todos os alunos, que se darão as
trocas, as intervenções e, conseqüentemente, as aprendizagens.
Seja qual for o grau de seleção prévia, ensinar é confrontar-se com um grupo heterogêneo (do ponto de vista das atitudes, do capital escolar, do capital cultural, dos projectos, das personalidades, etc... Ensinar é ignorar ou reconhecer estas diferenças, sancioná-las ou tentar neutralizá-las, fabricar o sucesso ou o insucesso através da avaliação formal e informal, construir identidades e trajectórias. Porém, regra geral, as didáticas nada dizem sobre as diferenças; falam de um aluno médio ou de um sujeito epistémico, desconhecem a dificuldade que há em fazer os alunos gostarem de certas disciplinas (PERRENOUD, 1993, p. 28).6
Perrenoud (1993) não faz alusão ao aluno com NEE por deficiência, mas não é difícil
compreender que, em meio a esse palco e platéia de escancaradas diferenças, a
inclusão desses sujeitos vem como uma proposta inigualável de formar coro aos já
excluídos pelo paradigma dominante.
Portanto, as dificuldades e os desafios em lidar com o novo assim como a
necessidade de um novo modelo de organização escolar em favor da inclusão, que
levem em conta as dimensões da prática, das subjetividades e dos fazeres, podem ser
sentidos e ouvidos.
• O que se pode sentir e ouvir?
Apesar das incontestáveis considerações acerca da escola, como um espaço público
e acolhedor de todas as diferenças, ao qual se refere Meirieu (2005), ainda temos que
atentar para os resultados de muitas pesquisas, tanto realizadas em nosso município,
quanto em outras cidades brasileiras, que, na exposição e discussão de inúmeras
questões tidas como desafios, trazem à luz mais as impossibilidades das escolas e de
seus profissionais em lidar pedagogicamente com as diferenças, do que as
possibilidades, diferentemente do que postula o referido autor, que vislumbra este
6 O texto faz parte de obra traduzida em Portugal.
45
espaço, o da escola, como possível da existência simultânea de histórias e opções
individuais, na realização de um projeto comum: o de aprender.
Aguiar, Caetano e Jesus (2001) buscam em uma pesquisa, por meio do estudo de
caso, o que é peculiar ao processo de construção de uma proposta inclusiva em uma
escola regular. Procuram, assim, aprofundar o conhecimento das interações locais,
pela micropolítica do cotidiano.
Desse modo, puderam constatar, no geral, que os grupos/escola analisados, quando
falam de inclusão, ainda se referem a uma visão confusa, baseada no senso comum
e, na maioria dos casos, estigmatizante. Suas representações concentram-se numa
perspectiva de “integração física”. Com relação às noções de diferença e de
necessidades educacionais especiais, os discursos e as práticas pedagógicas
parecem não apontar na direção de uma real proposta inclusiva.
Givigi (1998) faz uma análise do cotidiano da escola por ela pesquisada, no qual
apreende um retrato do fracasso da homogeneização, “[...] onde sujeitos constituídos
de diferentes histórias são levados a trajetórias idênticas, onde o singular não é levado
em conta [...]” (p. 29).
A autora pontua que, utilizando o dispositivo do grupo, toma-o como possibilidade de
espaço de discussões para, então, permitir que as decomposições e composições
dêem lugar à experimentação de outras subjetividades, numa invenção constante de
outros modos de pensar, funcionar, em que processos singulares possam surgir do
coletivo, das multiplicidades e serem balançados pela “diferença”, e que assim
gerarão ações diferenciadas.
Por sua vez, Givigi (1998) cita que, nas discussões, surgem os alunos que não são
“especiais” e que oferecem grandes desafios ao trabalho pedagógico; “[...] os
problemas não são os ‘especiais’, por terem deficiência, mas qualquer um que fuja
aos padrões de aprendizagem regular, ou seja, quase todos” (p. 71).
Trazemos também o estudo de Alves (1999) que teve como finalidade descrever e
analisar o processo de conhecimento de um grupo de alunos com histórico de
fracasso escolar. O autor construiu, juntamente com a professora, um processo de
46
avaliação e diagnose de situação dos alunos, desencadeando a construção de uma
prática pedagógica que lhes possibilitou superar as dificuldades que apresentavam.
Em suas considerações, o autor diz que não será focalizando somente o aluno, o
professor ou a família que serão encontradas estratégias de trabalho que possam
apontar caminhos para a superação do fracasso escolar. A prática pedagógica,
aspectos do currículo escolar, bem como questões político-ideológicas, intra e
extraescolares, devem ser investigadas para que se entenda melhor o processo de
produção do fracasso escolar.
Um ponto altamente significativo na pesquisa de Alves (1999) é a discussão que tece
em torno da idéia de modificação na concepção de deficiência e da Educação
Especial, que tem no aluno o foco de atenção para o diagnóstico e atendimento. O
autor discute a visão de que a deficiência passa a ser considerada em relação a
fatores ambientais e à resposta educacional mais adequada. Desse modo, observa
que a maior ou a menor deficiência, ou dificuldades, estarão vinculadas à maior ou
menor capacidade do sistema educacional em proporcionar recursos apropriados à
aprendizagem.
Caetano (2002), em sua pesquisa sobre a escolarização de alunos com deficiência
mental incluídos nas séries finais do ensino fundamental, relata que a prática
pedagógica observada se mostra inconsistente, por não oferecer a possibilidade de
uma aprendizagem que se efetive de forma contínua e compromissada.
Em sua pesquisa, é possível apreender pontos significativos para que se instalem
alguns processos de mudanças, como “[...] a necessidade de uma reestruturação da
organização escolar [...]” (p.168), e uma denúncia por parte dos professores de que
não existe metodologia para os alunos com deficiência. Quando entrevistados acerca
das possibilidades de trabalho em sala de aula com os alunos com deficiência, os
professores se colocaram como tendo “[...] um sentimento de incompetência,
incompetência realmente” (PROFESSOR de sala regular) ou, ainda, “[...] um
sentimento de impotência, porque eu nunca recebi preparo para trabalhar com ela [...]
[sobre a aluna com deficiência], impotência mesmo [...], cheguei aqui e, de repente
você tem um aluno desses” (PROFESSOR de sala regular).
47
Depreende-se das falas angustiadas desses profissionais que suas formações foram,
sem dúvida, para trabalhar um determinado ideal de aluno e levar conhecimentos a
uns poucos que estão preparados e adaptados para recebê-los. Os demais, que não
compõem esse seleto grupo, não deveriam estar nesse mesmo espaço.
Talvez se os tivessem preparado, e se levassem em conta que, nas salas de aula,
como em qualquer outro lugar, as pessoas não são iguais, não aprendem por uma
única via, e têm estilos diferentes de ser, aprender e expressar, certamente os alunos
com deficiência se beneficiariam muito mais desse processo de inclusão.
Caetano (2002), acertadamente, pontua que todas essas dificuldades se estendem
não somente aos alunos com deficiência, mas também àqueles que desafiam o
modelo-padrão.
Nesse sentido, trazemos como contribuição o que diz Bueno (2001), ao assinalar que
o ensino regular tem excluído sistematicamente larga parcela de sua população sob a
justificativa de que essa parcela não reúne condições para usufruir do processo
escolar, por apresentar problemas pessoais (distúrbios dos mais diversos), problemas
familiares (desagregação ou desorganização da família), ou carências culturais
(provenientes de uma meio social pobre).
3.4.1 Ensinar a todos: eis a função da escola
Diante das “impossibilidades” e da necessidade de novos modos de agir
pedagogicamente, a gestão da aprendizagem na diversidade e sua importância nas
discussões sobre a inclusão escolar passam a ser uma imperiosidade entre os
pesquisadores. Os últimos dez anos têm sido marcados por discussões e produções
acadêmicas que buscaram investigar como se dão essas novas relações, a partir do
movimento de inclusão escolar.
Nessas produções, há registros das representações de professores, pais de alunos
com e sem deficiência, em que, num misto de denúncia das práticas estabelecidas e
correntes nos contextos pesquisados, há emergentes indícios e pistas de quais seriam
as possíveis rotas e percursos ideais para a efetivação com êxito de uma educação
para todos.
48
Há de se levar em conta a diversidade/variedade humana, visivelmente constituída em
nossa sociedade, tendo na escola uma das instituições formais, legal e socialmente
investida de poder na educação de seus atores sociais, escola essa que, pelo fato de
pertencer a todos, como nos diz Meirieu (2005, p. 44),
[...] não pertence a ninguém. Portanto, ninguém pode fazer dela propriedade exclusiva, ninguém pode apropriar-se de seu território, ninguém pode impor-lhe sua lei, suas regras de comportamento, as convicções ou os hábitos de sua comunidade.
Segundo Meirieu (2005), visto que todos devem ter a possibilidade de serem
acolhidos na escola para aprender, a própria escola deve ser construída
imperativamente como um espaço público, que possa verdadeiramente acolher todas
as crianças, onde “[...] ninguém deve sentir-se excluído, atingido em sua integridade
ou desprezado em sua identidade” (p. 45).
A escola, nessa perspectiva, não deve ser o espaço de negação de histórias e de
adesões individuais; deve, sim, ser o lugar possível de coexistência destas e de
realização de um projeto comum.
Em um estudo desenvolvido por Jesus (2002), que teve por objetivo a construção de
uma prática pedagógica reflexiva, foi possível, trabalhando no cotidiano da prática
pedagógica da escola, por meio de várias estratégias, a produção de uma reflexão
autoformadora. Nesse estudo, a pesquisadora nos aponta uma idéia significativa
quanto à intervenção, com vistas à transformação, e argumenta:
Parece fundamental que um projeto de intervenção que vise à transformação passe por um processo, constante, de entender o movimento de cada um e do grupo no seu conjunto. Trata-se de buscar os espaços-tempos experenciados pelo conjunto dos envolvidos [...], as pessoas mudam em ritmos diferenciados, o que deve ser encarado como uma oportunidade de viver a realidade de forma criativa (JESUS, 2002, p. 199).
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que é salutar descobrir ou confirmar as
impossibilidades de um fazer pedagógico que atenda à diversidade, assim como os
seus “porquês”, igualmente é importante verificar que experiências em ações
conjuntas com os profissionais envolvidos na busca por práticas pedagógicas mais
inclusivas, compreendendo, no entanto, os ritmos de mudanças de cada um e de cada
grupo, conduzem à certeza de que é possível uma outra realidade.
49
Almeida (2004) realiza um estudo, no qual busca investigar a transformação da prática
educativa dos professores do ensino, a partir da pesquisa e reflexão crítica da ação
pedagógica, que toma a via de formação continuada em contexto. Nessa pesquisa, a
autora relata que incentivou os profissionais a partilharem seus pontos de vista, seus
valores e perspectivas, com a finalidade da construção de uma escola que trabalhe a
partir da diversidade de seus alunos.
autora relata que incentivou os profissionais a partilharem seus pontos de vista, seus
valores e perspectivas, com a finalidade da construção de uma escola que trabalhe a
partir da diversidade de seus alunos.
A autora, ao possibilitar o confronto de idéias, o partilhamento de pontos de vista,
entre vários outros aspectos, obteve um panorama real das tensões e dificuldades
vividas por aqueles profissionais pesquisados, quais sejam:
a) organização escolar e o trabalho pedagógico em si;
b) trabalho coletivo na escola;
c) formação continuada e a prática do professor;
d) proposta de inclusão definida pelo sistema municipal de ensino.
No esforço por validar uma ação pedagógica reflexiva de professores e de
professoras, o agir pedagógico, que cada vez mais resiste às fórmulas prontas e
acabadas, mostra-se como uma ação vitalizadora nos cotidianos escolares. Essa ação
é essencial ao trabalho pedagógico com indivíduos “não adaptados” a esse modelo de
escola.
Figueiredo (2002, p. 75) lança um importante desafio às escolas inclusivas:
Refazer toda a escola em seus princípios, organização e desenvolvimento das práticas pedagógicas é o grande desafio que se impõe ao conjunto dos educadores e dos representantes do poder político. Essa reformulação se justifica não pela necessidade de atender às crianças com deficiência, mas pela constatação de que a escola que temos não está dando conta da maior parte das necessidades de seu alunado.
50
A autora nos apresenta em pesquisas de Mantoan et al. (2000), 7 a opinião de
professores sobre o redimensionamento da escola, bem como em trabalhos de
Lustosa e Figueiredo (2001) sobre práticas pedagógicas.
Nessas pesquisas, os professores percebem a necessidade de redimensionamento da
escola como condição da própria emancipação, evidenciando um apelo urgente para a
construção de uma nova escola. Nessa nova escola, a leitura e a compreensão desse
espaço/cenário devem partir de seus atores, como agentes instituintes que conhecem
e apontam os vácuos existentes no âmbito da organização do espaço escolar e das
práticas pedagógicas ali desenvolvidas. Declaram, ainda, nessa mesma pesquisa,
dificuldades em exteriorizar os próprios conflitos de ordem política, econômica e
cultural dentro e fora dessa instituição.
• Condições para a permanência com qualidade para todos os alunos: foco
das políticas públicas
A implementação de políticas de apoio, como os serviços especializados na área de
saúde, profissionais especializados para atuarem lado a lado com professores
regentes, potencializado-os no trabalho com os alunos com NEE, formação
continuada em serviço direta ao professor, garantia de escola para todos, não de
forma a superlotar as salas de aula, mas no investimento de construções de novos
prédios escolares, entre tantos outros itens, vem demonstrar o nível de investimento
necessário para uma educação de qualidade não só aos alunos com NEE mas a
todos que nela se encontram.
Essas necessidades, infelizmente, parecem se perder na complexidade de um
sistema macro e, por conseqüência, micro, que ainda busca perseguir objetivos
exclusivamente reprodutores do aluno ideal, producente e a serviço da sociedade
capitalista tal como ela é.
A reconstrução do espaço institucional chamado escola é fator decisivo para a
efetivação da inclusão. Por outro lado, ainda é pertinente lembrar que o sistema
educacional, por meio de textos legais, e do controle burocrático administrativo, tem
impedido a efetivação de práticas de dinâmicas educativas e emancipadoras dos
7 Pesquisa financiada pela Capes, coordenada pela professora Maria Tereza Eglér Mantoan, e realizada pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Diversidade (LEPED) da Unicamp.
51
sujeitos sociais, nas suas mais variadas formas de controle, evidenciadas nos critérios
de promoção e na proposição de um currículo que oferece poucas chances de
trabalho com a diversidade, seja por suas formas de organização, quanto à carga
horária dedicada às áreas do conhecimento, seja pelo tratamento fragmentado dado
aos conteúdos, numa concepção de saber isolado e especializado.
Na tentativa e na busca por favorecer, numa escala de emergência, experiências de
aprendizagem que sejam significativas a todos os alunos indistintamente, procuramos
percorrer um caminho que nos possibilitasse desvelar uma nova lógica para a escola.
Para isso nos colocamos criticamente aberta à perspectiva de mudanças das atuais
práticas, com um olhar “desvelador”, concebendo os processos constituintes de toda a
prática de organização curricular da escola investigada, como o seu “possível”,
utilizando-nos, porém, exatamente desse “possível” para o estabelecimento de outras
lógicas.
Como nos diz Morin (1999, p. 44), a dialógica significa que “[...] duas lógicas
diferentes estão ligadas em uma unidade, de forma complexa (complementar,
concorrente e antagônica) sem que a dualidade se perca da unidade”.
• Ainda se espera que o aluno se “adapte” à escola
A inclusão de alunos com NEE por deficiência, vem, por um lado, engrossar o número
absurdamente grande de alunos que, por se distanciarem do ideal de aluno
pretendido, há muito gritam: “Não fomos feitos pra essa escola!”. Estes, tendo suas
vozes inaudíveis, tentam, na verdade, dizer o que historicamente se concebe acerca
deles.
Essa forma de dizer é vista e conhecida por nós muito bem, pois vem sendo refletida
nas altas taxas de evasão verificadas até bem pouco tempo e em um número sem
igual de analfabetos funcionais, entre outras formas de exclusão não tão explícitas.
A escola, marcada essencialmente por trabalhos pedagógicos com ensinos
ministrados em sua organização disciplinar prioritariamente dentro de salas de aula,
não oferecendo outras experiências de aprendizagem fora desse contexto, encontra
dificuldades visíveis, talvez até compreensíveis de acompanhar e driblar a grande
52
complexidade, que é a de produzir conhecimento numa estrutura fechada e
engessante.
Burocracias, quanto à carga horária, impossibilidade da efetivação de planejamentos
participativos com professores por área e por série e a própria dinâmica escolar como
um todo se colocam como fatores impeditivos de fazeres diferenciados, exigindo que
os professores não fujam às rotinas já estabelecidas, criando, desse modo, uma
desordem no ambiente escolar.
Como forma de resistência à inclusão numa escola que não se propõe a se soltar
dessas amarras, muitos professores insistem pontualmente em discussões em torno
do redimensionamento da escola em sua esfera organizacional e pedagógica.
Mantoan (2003) nos alerta sobre a necessidade de mudanças em virtude da
dificuldade e impossibilidade de se realizar um trabalho em classes heterogêneas,
num modelo tradicional de ensinar, e que não potencializa o desenvolvimento do
alunado a partir do que, naquele momento, ele daria conta. E pontua:
[...] essa resistência é aceitável e compreensível, diante do modelo pedagógico organizacional conservador que vigora na maioria das escolas. Ninguém se arrisca a acolher a idéia de ministrar um ensino inclusivo em uma sala de aula de cadeiras enfileiradas, livro didático aberto na mesma página, uma só tarefa na lousa e uma só resposta válida e esperada nas provas (MANTOAN, 2003, p. 31).
O que a citada autora traz é que, ainda sob o modelo homogêneo de formação de
classes, o professor, e muitas vezes o corpo técnico-administrativo-pedagógico das
escolas, não consegue colocar em prática outras formas e alternativas de organização
disciplinar e pedagógica que propiciem aprendizagens àqueles alunos que não estão
prontos ao currículo prescritivo, que não seja o famoso “reforço escolar”, que, em
muitos sistemas de ensino, já é componente fixo dos planos de ação para as escolas.
Ressaltamos, ainda, que esse reforço, antecipadamente, é oferecido quando resta a
esses alunos a mínima possibilidade cognitiva de se igualar e parametrizar-se aos
demais colegas da classe, pois aos alunos que, por “suas” deficiências, não
conseguem acompanhar o ritmo da maioria, fica-lhes negada a possibilidade de
aprender, sob quaisquer possibilidades.
53
A escola, em sua extremada valorização à tendência cognitivista dos processos de
ensino e aprendizagem e na busca frenética de privilegiar o pensamento lógico-
matemático e o domínio lingüístico, não consegue visualizar outros saberes ou
conhecimentos para o desenvolvimento de seus alunos com deficiência ou que têm
dificuldades acentuadas de aprendizagem e, de forma intencional ou não, discrimina
aqueles que não se adaptam ao paradigma preestabelecido.
Diante da imperiosidade desse modelo, percebe-se que quem tem que se adaptar à
escola continua sendo o aluno e, apesar de práticas bem-sucedidas verificadas ainda
num certo isolamento, há uma necessidade urgente de operacionalizar mudanças,
talvez radicais, em toda a atual concepção curricular, principalmente no que diz
respeito aos métodos, técnicas e estratégias de ensino, e do processo de avaliação,
sem se esquecer das atitudes (instância subjetiva) em relação aos processos de
mudanças, assim como do fazer político, que muitas vezes faz acontecer.
Baptista (2003) nos diz que, para permitir o atendimento com qualidade a todos os
alunos, é necessário haver profundas alterações na organização do ensino,
[...] colocando em discussão a necessidade de análises coletivas sobre o projeto pedagógico da instituição; questionando; propondo a revisão dos processos de avaliação (avaliação processual que considere o aluno como parâmetro de si mesmo), construindo dispositivos de apoio complementar ao atendimento no ensino comum sem excluir o aluno da sua classe de referência; discutindo amplamente a necessidade de formação continuada dos professores e demais técnicos que atuam junto às escolas. Ou seja, a inclusão estaria associada a um processo de transformação que, em grande parte, podemos dizer ‘trata-se de uma educação de qualidade” (BAPTISTA, 2003, p. 52).
Talvez a garantia à escola de pensar a si própria como uma organização viva, capaz
de refletir o seu fazer e, autonomamente, decidir o seu caminho, pareça ser o
diferencial para efetivar-se a gestão da escola inclusiva.
A inclusão escolar nos faz perceber, cada vez mais e com maior clareza, que não
somos nós os definidores por antecipação dos sucessos ou dos fracassos do alunado.
Para a heterogeneidade constituída a partir da deficiência explícita ou não, e dos
estilos de aprendizagem diferentes da grande maioria, entendemos ser a nossa
formação inicial bastante inconsistente, tendo em vista as necessidades e solicitações
desse contexto de gestão de aprendizagem em meio à diversidade.
54
Se antes, por meio de testes e sondagens, era-nos possível, por todo o
engendramento arquitetado para aquele/este paradigma educacional, fazer previsões
sobre determinados alunos, assim como definir a impossibilidade de se efetivar
aprendizagens em meio à diversidade cultural, social e cognitiva, hoje, descortinam-se
as possibilidades cada vez mais bem-sucedidas de trabalho pedagógico, nos
processos de aprendizagens com alunos com NEE por deficiência, junto aos seus
pares, em suas salas de aula, mesmo que isso para muitos pareça difícil.
Para a compreensão de muitos, mesmo aqueles com uma “visão” meio míope, a
escola tem que ser um espaço de prazer não só na hora da merenda, ou na hora da
aula de Educação Física, ou da realização dos projetos de atividades coletivas
extraclasse, mas sim em todos os momentos e em todos os seus ambientes,
indistintamente.
Percebemos, mesmo de maneira ainda tênue, que a presença da diferença, marcada
essencialmente pela deficiência, opera de forma silenciosa mudanças que são
significativas a todos.
O caos que produz novos sentidos à educação escolar promove situações de
inventividade para esse novo cenário. Rico por sua diversidade e constituído nas/das
diferenças, sejam elas quais forem, poderá ser compreendido como a condição
essencial de se descobrir ou produzir conhecimentos. Esses conhecimentos se
referem em como lidar, como propor esse ir e vir da escola moderna e os muitos e
graves impasses em que ela se encontra hoje, assim como as novas concepções que
emergem, frutos dessa transição.
O que parecia impossível revela-se como possível, o não apto torna-se apto a partir
de suas possibilidades e, seja qual for a diferença, já não nos sentiremos tão
impotentes em propor um ensino que seja realmente inclusivo.
A incipiência ainda verificada e sentida de fazeres em função da presença de alunos
com NEE por deficiência, em propostas de atendimento não segregadoras, só nos faz
acreditar nas possibilidades cada vez maiores de se ampliar a visão de educação para
todos, utilizando o cotidiano escolar como espaço de formação e aprendizado,
sobretudo profissional, para que se efetive e garanta o que recomenda a Declaração
de Salamanca:
55
[...] que todas as crianças, sempre que possível, devem aprender juntas, independentemente de suas dificuldades e diferenças, podendo [...] reconhecer as diferentes necessidades de seus alunos e a elas atender; adaptar-se aos diferentes estilos e ritmos de aprendizagem das crianças e assegurar um ensino de qualidade (BRASIL, 1994, p. 23).
3.4.2 Os percursos de uma pedagogia ressignificada
De acordo com Ardoino e Lourau (2003), no leque das novas pedagogias, é difícil
colocar em perspectiva as abordagens institucionais, pois a instituição é focalizada
diferentemente, segundo as tendências, e as pedagogias institucionais inscrevem-se
na temporalidade-historicidade de um movimento de pesquisa-ação que, no âmbito da
análise institucional, constitui o fundo sobre o qual se destaca a forma-figura dos
métodos pedagógicos.
• Pedagogias institucionais: “reorganização” dos processos educativos
Por volta de 1940, as instituições escolares e educativas francesas se descobrem em
crise. Nesse período, há uma “explosão escolar”, no sentido demográfico, e com isso
emerge a convicção de que os métodos até então adotados não estavam adaptados
ao mundo moderno e às mudanças tecnológicas que se esboçavam.
Desse modo, as pedagogias institucionais começam a surgir à maneira de uma
precipitação, em uma espécie de redemoinho ideológico, procedente de um turbilhão
de correntes contrárias ao que até então se adotava.
Seus fundadores, Fernand Oury, Aida Vasquez, Michel Lobrot, Georges Lapassade, e
René Lourau, recebem assim diversas influências desde os dissidentes do movimento
de Freinet, até aqueles grupos que propagavam uma ótica voltada a ultrapassar os
perímetros da escola ou das instituições educativas especializadas. Estes tinham um
ideal voltado para os meios de trabalho social, formação permanente, educação de
jovens e adultos, etc.
Como resultado de reflexões críticas sobre as práticas educativas e os procedimentoe
escolares, Ardoino e Lourau (2003) dizem que as pedagogias institucionais
abarcavam pelo menos três dimensões:
56
1ª) dimensão material: as técnicas, o tipo de organização e as ferramentas de
trabalho determinam as situações pedagógicas, as relações e os comportamentos;
2ª) dimensão social: a classe é necessariamente atravessada pelos modelos
microssociais, pelas relações de força, pelos conflitos e pelas tensões. São, assim,
problemáticas do poder e da autoridade;
3ª) dimensão inconsciente: o inconsciente está na classe, na organização, no não-
dito institucional. Ele funciona e, nesse sentido, fala até mesmo por meio dos
silêncios.
Sendo assim, os comportamentos e o estilo das relações dependem da qualidade e
do número de trocas. É necessário instaurar novas relações e pô-las em ação pela
pesquisa e prática de novos papéis, novos estatutos, novas regras de vida.
O que observamos atualmente, é que os efeitos nefastos da Pedagogia tradicional,
evidenciados nas burocracias e tecnocracias, nas quais ainda encontram justificativas
e razões de assim se constituir, se fazem sentir muito profundamente nas
representações que muitos professores e pedagogos têm de si, ao interpretarem quais
são realmente suas funções, ou qual é a dimensão real de ser pedagogo numa dada
instituição escolar.
Esses efeitos também se fazem sentir à medida que é possível captar os sentimentos
de solidão, desamparo e impotência que professores e professoras demonstram ao
lidar com as questões que lhes exigem a assunção de seus próprios atos, que lhes
imputem responsabilidades ou que lhes solicitem decisões e iniciativas. Essas
questões, muitas vezes, dizem respeito às suas próprias práticas pedagógicas.
Em outras palavras, o que queremos salientar é que o fenômeno burocrático
institucional, com todo seu engendramento “capitalístico, utilitarista e dominador”, que
aliena seres humanos, retirando-lhes o poder de decisão, iniciativa e
responsabilidades por seus atos, fez da Pedagogia uma pedagogia também
burocrática, em que, a exemplo desse modelo de domínio burocrático, anuncia-se um
modelo de domínio pedagógico.
57
Dessa maneira, os indivíduos que experimentam, durante toda a infância, o modo de
domínio pedagógico nas várias facetas e nuances de uma Pedagogia tradicional,
aceitam facilmente os modos de domínio burocrático de que tanto somos
conhecedores e testemunhas, e que podemos chamar de práticas instituídas, por
força de leis, acordos, decisões, etc.
Segundo Lapassade (1983), numa Pedagogia burocrática, há certa concepção dos
objetivos desejáveis para a criança e assim o problema consiste em fazê-la executar
os atos que correspondem a tais objetivos, pois o êxito da criança é o êxito do
professor e do pedagogo; o fracasso é também o seu fracasso. Daí depreendemos
que é mais fácil ter nas salas de aula alunos “predispostos” ao sucesso, sendo
possível ao professor dizer: “Eu cumpri a totalidade de meu programa, eu obtive os
melhores resultados nas avaliações,” pouco lhe importando os efeitos psicológicos
reais de seu ensino.
Parecem-nos que os efeitos dessa Pedagogia, no presente momento, têm
incomodado a muitos e talvez, em função desse incômodo, foi possível, pelos
processos de análise vivenciados, a compreensão dos fenômenos de dominação
pedagógica ou burocrática, que ainda emperram e não deixam fluir com mais
facilidade os processos de mudanças já percebidos como necessários.
Nesse movimento de se perceber, desejar e não desejar inteiramente foi possível
produzir com a comunidade escolar um enfrentamento contra as burocracias
dominantes que, de uma forma ou de outra, vêm se constituindo em impeditivos às
práticas mais favorecedoras da real inclusão de alunos com NEE. Um exemplo desse
enfrentamento conjunto partiu da seguinte situação:
• Estava instituído, administrativamente, que os estagiários que atuavam nas
classes que tinham alunos com NEE deveriam acompanhá-los durante o período de
quatro horas diárias. Ou seja, não estava prevista inicialmente, em seus horários, a
possibilidade de participação em reuniões coletivas com os professores, em
planejamentos, ou outras atividades coletivas. Quanto mais comprometido fosse o
aluno, mais intenso era esse acompanhamento. A estagiária gastava mais energia em
conter e vigiar o aluno do que propriamente desenvolvia ações pedagógicas,
juntamente com a professora, nas intervenções com ele. Segundo os professores,
58
uma das dificuldades em se propor alternativas e situações de ensino e aprendizagem
aos alunos com NEE residia na falta de planejamentos entre eles, a pedagoga e os
estagiários. Indagados sobre o que poderia ser feito, disseram que uma alternativa
seria compartilhar com as famílias desses alunos suas dificuldades e propor-lhes, a
título de experiência, por período determinado, que seus filhos saíssem, durante três
dias da semana, quarenta minutos mais cedo, para que os estagiários pudessem,
junto com pedagoga e professores disponíveis, conversar “pedagogicamente” sobre o
trabalho a ser feito com o aluno e a classe. Participamos de uma das reuniões para
tratar de tal assunto. Entre várias observações, trazemos a posição de uma mãe.
Entre uma fala ou outra reconstituímos assim:
Bom, apesar de não concordar totalmente, acho que vale a pena tentar [...]. Sei que o Lucas 8 não fica sozinho na classe para ela (a estagiária) planejar com outros professores. Fico pensando [...] se não tiver condições dela estar com os professores antes [...] como ela vai poder ajudar a professora? [...] Ela não está fazendo estágio? E estágio é para aprender, não é?
Nossa posição, na situação acima, transpôs nossa atuação como pesquisadora, pois
ali estávamos, segundo a diretora da escola, “para apresentar as considerações do
grupo acerca do que achavam que poderia dar certo para Lucas”, ante sua
“impotência” de fazer mais do que faziam.
Consideramos que tal atitude, mesmo não sendo a melhor e a ideal, pareceu-nos,
pela forma como foi compartilhada com a família, uma grande possibilidade de
assunção de responsabilidades conjuntas. Demonstrou-se também, nessa situação
algo que, em outros momentos, não se podia ver, que era o incômodo em se fazer
alguma coisa para mudar o que não estava bom.
Esse movimento, bastante tímido, põe em evidência um novo modo de funcionamento
e de relações humanas não burocráticas, pois a escola não exerceu seu “poder” para
determinar coisas, antes, porém, compartilhou suas dificuldades, colocando-se,
também, como “ouvinte” nessa relação.
Essa é uma possibilidade de o grupo assumir a sua própria direção, caminhando para
a sua própria autogestão.
8 Nome fictício.
59
4 COMPLEXIDADE E MULTIRREFERENCIALIDADE: COMPREENDENDO O
PROCESSO EDUCATIVO
As tentativas empreendidas por estudiosos e pesquisadores, tanto para a
compreensão do mundo em sua representação universal, como para compreensão do
próprio mundo interior, com sentidos e significados individualmente construídos pelo
homem, assinalam o quanto persiste a necessidade de se compreender os processos
nos quais estamos inseridos.
No processo de construção de conhecimento que pretende dar conta de trazer
respostas a essa necessidade, encontram-se as várias ciências, como a Filosofia, a
Epistemologia, a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Pedagogia, que revelam a
profunda complexidade desse processo, haja vista não ser possível separar o
conhecimento sobre o mundo exterior e da construção do conhecimento do complexo
mundo que o homem abriga dentro de si.
A partir daí, são revelados também os grandes desafios enfrentados pela própria
escola, como instituição e instância privilegiada do saber, que, como invenção da
sociedade, teve por ela um papel e funções predefinidas.
Segundo Morin (2004), ao confrontar as ciências no século XX, a complexidade
emerge como um grande desafio, considerando que o mundo científico concebia as
ciências sob os três pilares de certeza: 1º) a ordem, a regularidade, a constância e o
determinismo absoluto; 2º) a separabilidade; 3º) a prova absoluta por meio da indução
e dedução, a unicidade da identidade e a recusa da contradição estabelecida pelos
princípios aristotélicos. Esses pilares de acordo com Morin, encontram-se hoje em
estado de desintegração desde o momento em que se começou a compreender e a
admitir a existência, no organizado mundo físico, de outras lógicas, ora
complementares, ora antagônicas.
Verificamos também em Prigogine (1996, p. 13) essa análise, quando diz:
[...] tanto na dinâmica clássica quanto na física quântica, as leis fundamentais exprimem agora possibilidade e não mais certezas. Temos não só leis, mas também eventos que não são dedutíveis das leis, mas atualizam as suas possibilidades.
60
A emergência de uma ciência que se põe em ruptura com os paradigmas da certeza e
da previsibilidade oferece, então, um novo espectro, a partir do qual são criadas
múltiplas possibilidades, sentidos, olhares e experiências. Ao mesmo tempo, essa
mesma multiplicidade é apreendida e significada como o desafio maior da
complexidade nos vários contextos relacionais.
É possível, por exemplo, ouvirmos algumas observações e considerações de
profissionais não só da educação, mas também de outras áreas, sobre as dificuldades
que têm em gerir isoladamente suas funções, tendo em vista as muitas inter-relações
e referências que estabelecem com outras áreas, ou mesmo outras ciências.
Enfim, estamos diante de uma situação de constante interdependência e
interconexões, em que as previsões, as certezas e os determinismos cada vez mais
deixam de operar isolada e simplificadamente. Segundo Prigogine (1996, p.14),
Assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real, uma ciência que permite que se viva a criatividade humana como a expressão singular de um traço fundamental comum a todos os níveis da natureza.
O autor realiza um interessante questionamento em que nos propõe uma análise
acerca dos estudos da Física. Nesses estudos, vemos que o universo é um sistema
termodinâmico gigante, em que, em todos os níveis, encontramos instabilidades e
bifurcações, estando bem longe de ser um sistema equilibrado. Nessa perspectiva,
podemos nos perguntar por que durante tanto tempo o ideal da Física esteve
associado à certeza e à negação do tempo e da criatividade? (p.194).
Essa certeza tanto quanto a negação da criatividade humana aliada à questão do
tempo e do determinismo não se limitam às ciências, conforme pontua Prigogine
(1996), mas está no centro do pensamento ocidental desde a origem do que
chamamos de racionalidade, e que situamos na época pré-socrática. E o autor então
pergunta: “Como conceber a criatividade humana ou como pensar a ética num mundo
determinista?”
Esta questão traduz uma tensão profunda no interior de nossa tradição, que se pretende, ao mesmo tempo, promotora de um saber objetivo e afirmação do ideal humanista de responsabilidade e de liberdade. A democracia e as ciências modernas são ambas herdeiras da mesma história, mas essa história levaria a uma
61
contradição se as ciências fizessem triunfar uma concepção determinista da natureza, ao passo que a democracia encarna o ideal de uma sociedade livre (PRIGOGINE, 1996, p.14).
Desse modo, à medida que outras ciências vêm se constituindo como fundamentais
para o entendimento e a compreensão da vida do ser humano em nosso universo, o
desafio da complexidade é apreendido como aquele que reside na dupla tensão da
religação e da incerteza. Conforme nos diz Morin (2004), é preciso religar o que era
considerado como separado. Ao mesmo tempo, é preciso aprender a fazer com que
as certezas interajam com a incerteza.
Por conseguinte, revela-se que o que aprendemos de forma fragmentada,
descontextualizada, às vezes, e com exagero de cientificismo e racionalidade, tem se
constituído em vários momentos, de forma concreta, como elementos que têm
dificultado nossas ações e atuações, conduzindo-nos, assim, à busca de outros
modos de compreensão, tendo em vista que nossos saberes e nossos conhecimentos
não têm dado conta das múltiplas questões que se sobrepõem em nossos cotidianos.
É, então, com olhar de estranheza e sentimentos de impotência e/ou incompetência,
em frente aos indeterminismos, aos fatores subjetivos e intersubjetivos que envolvem
os dois pólos da relação entre os sujeitos, que começamos a entender a noção de
complexidade e suas implicações em nossos contextos educacionais, pois, quando o
pensamento simplificador encontra seus limites, suas insuficiências e suas carências,
conforme nos diz Martins (2000), a necessidade do pensamento complexo se impõe.
Mesmo assim, a complexidade não extingue a simplicidade.
[...] a complexidade aparece ali onde o pensamento simplificador falha, mas integra em si mesma tudo aquilo que põe ordem, claridade, distinção, precisão no conhecimento. Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as conseqüências mutilantes, reducionistas, unidimensionalizantes e finalmente ocultadoras de suma simplificação [...] (MORIN, apud MARTINS, 2000, p. 61).
O termo complexidade, para Morin, traz, em seu bojo, a idéia de incerteza, confusão e
desordem e expressa “[...] nossa confusão, nossa incapacidade para definir de
maneira simples, para nomear de maneira clara, para pôr ordem em nossas idéias”
(MORIN, apud MARTINS, 2000, p. 60). O autor, ao referir-se ao que é complexo,
acrescenta e esclarece:
62
Designamos algo que, não podendo realmente explicar, vamos chamar de ‘complexo’. Por isso que existe um pensamento complexo, este não será um pensamento capaz de abrir todas as portas [...] mas um pensamento onde estará sempre presente a dificuldade (MORIN, 1996, p. 274).
Em função da tensão entre pensamento simplificador e pensamento complexo, e
diante dos desafios de responder administrativa e pedagogicamente aos fenômenos
educacionais que, em nosso entendimento, se originam, entre tantos aspectos, na
aceitação irrestrita de uma educação para todos, é possível apreendermos ou
depararmos ainda com práticas educacionais especializadas, compartimentalizadas, e
até mesmo segregadas, devido ao preconceito e expectativas negativistas acerca de
alguns alunos em detrimento de outros, por questões relacionadas com os aspectos
voltados à diversidade e diferenças associados à religião, etnia, cognição,
deficiências, etc.
Esses fenômenos educacionais, mais evidenciados no Brasil a partir da
democratização da escola pública nos anos 60, têm se constituído no grande desafio
de construção de uma escola que represente realmente os ideais de democracia de
nossa sociedade.
Entretanto, muitas práticas e ações educacionais, englobando toda sua estruturação
administrativa e pedagógica, foram ou são ainda organizadas como respostas à
grande e realista heterogeneidade de nosso alunado. As classificações e a
segregação, entre outras práticas, são alguns exemplos dessa estruturação. Essa
organização se deve, em muitas situações, a tentativas para driblar a diversidade e as
diferenças, antes mascaradas ou pontualmente colocadas como fatores de exclusão
no seio da escola, por ações pedagógicas explicitamente homogeneizadoras, ou por
ações respaldadas por uma determinada política do sistema educacional. 9
Um exemplo prático pode ser tomado, demonstrando como é organizado e
estruturado o atendimento na educação de crianças e adolescentes com deficiência
em nosso sistema educacional. Para estes há, institucionalmente, mesmo na escola
regular, espaços e tempos demarcados, limites de ação institucional e/ou docente,
tanto no plano administrativo, como no pedagógico, estando estes já naturalizados e 9 Um exemplo próximo de nós (em relação à data), era a organização das classes, principalmente de 5ª a 8ª séries, realizada por muitas escolas a partir de testes de seleção a fim de classificar os alunos em turmas A, B, C, e assim sucessivamente. Outro exemplo era a existência formal de classes especiais na escola, para onde eram encaminhados alunos que não correspondiam e não se adaptavam às exigências do currículo prescritivo.
63
muito pouco questionados. Tais demarcações representam uma forma de amenizar ou
minimizar os impactos de uma inclusão total diante da grande dificuldade que é gerir o
conhecimento a todos, num plano em que as diferenças ainda sinalizam os limites, as
capacidades e as possibilidades dos indivíduos.
Em documentos oficiais, vemos esses limites de ação institucional e/ou docentes
demarcados:
Na organização do atendimento na rede regular de ensino, faz-se necessário prever: professores das classes comuns e da educação especial capacitados e especializados, respectivamente, para o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos; serviços de apoio especializado, realizado na classe comum, mediante atuação de professor da educação especial [...], em salas de recursos, nas quais o professor de educação especial realiza a complementação e/ou suplementação curricular, utilizando equipamentos e materiais específicos [...] (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA - MEC, 2004, p. 339, grifos nossos).
Padilha (1997) realiza uma interessante análise das concepções que marcam as
práticas da escola, como também o que estabelece a própria legislação na criação de
“soluções” aos problemas apresentados por alunos com características interpretadas
como distúrbios, patologias, incapacidades para aprender ou se adaptar ao meio
escolar. Segundo a autora, essas concepções, que consideram os desajustes dos
alunos em frente à estrutura organizativo-pedagógica preestabelecida na escola,
acabam por transformá-los em “deficientes” e “especiais”.
Os procedimentos e critérios utilizados para definir os possuidores de distúrbios,
patologias e incapacidades para aprender e se adaptar ao meio escolar apontam os
problemas como pertencentes unicamente ao indivíduo, centralizando nele os desvios,
que assinalarão as concepções na prática pedagógica, tanto da sala de aula, como na
própria legislação que acaba estabelecendo os subsídios para a organização e
funcionamento de serviços de educação especial.
Na maioria das vezes, fica denegado a esses sujeitos o direito de serem vistos e
tratados simplesmente como alunos como os demais do contexto escolar, que
requerem, tão-somente por suas diferenças, peculiaridades e necessidades diversas,
algumas modificações que devem ser pensadas e executadas não por um grupo de
64
profissionais exclusivamente, mas pela colaboração e participação com todos os
outros profissionais envolvidos no contexto escolar.
Retornando à questão da complexidade, questão de maior relevância aqui discutida, e
apreendida por nós no contexto educacional, voltamos à necessidade que temos de
questionar nosso modo de pensar, de organizar e de atuar que vem exigindo de nós
uma atenção a tudo que emerge no cotidiano escolar. Isso nos chama a atenção para
o que é pensamento complexo.
Segundo Martins (2000), as práticas oriundas de uma abordagem tradicional, aquela
cujos pressupostos se vinculam ao racionalismo cartesiano ou ao positivismo,
objetivam “recortar” o real, decompô-lo em elementos cada vez mais simples e cada
vez mais fundamentais à compreensão e entendimento do que quer que se esteja
lidando ou tratando. A combinação desses elementos decompostos resultaria nas
propriedades do conjunto, ou seja, o todo corresponde à soma de suas partes e vice-
versa.
Entendemos, então, que, nessa abordagem, a previsão, a exatidão e a mensuração
são substantivos que estão inerentes e absolutamente presentes no pensamento, nas
concepções e ações cotidianas, por exemplo, de uma escola, ou de um professor que
toma elementos, ou “recorta” particularidades da realidade de um determinado aluno,
como se estivesse decompondo-a, e aí, não havendo correspondência entre o todo e
a parte e vice-versa, estabelece-se o caos, as impossibilidades, a baixa expectativa e
a profecia do fracasso antecipado.
Apesar de presenciarmos importantes iniciativas e experiências inovadoras no campo
educacional, decorrentes de pesquisas, estudos e/ou questionamentos aprofundados
acerca das práticas curriculares e dos processos instituídos e naturalizados no
sistema educacional brasileiro, percebemos um forte “ranço” e resquícios evidentes de
uma escola que, justificando estar respondendo às demandas da sociedade, planeja e
objetiva suas ações por um ideal de homogeneidade.
Nesse sentido, grande parte de nosso alunado, apesar de estar presente na escola,
continua excluída de um processo educacional que desconsidera a heterogeneidade
cultural, a pluralidade das experiências e do conhecimento, idealizando ainda uma
educação e uma escola mais parecida com “[...] uma oficina de formação, um clube de
65
desenvolvimento pessoal, um curso de treinamento para passar em concursos, uma
organização provedora de mão-de-obra [...]” (MEIRIEU, 2005, p. 44).
Acerca da visão que foi, ou ainda é desenvolvida por muitos profissionais da educação
quanto às respostas que a escola deve dar às demandas da sociedade, sobretudo na
questão da empregabilidade e do sucesso profissional “lá fora”, esta se deve não
somente, porém em grande medida, aos trabalhos de Libâneo, em que percebemos a
grande ênfase dada por ele aos conteúdos e aos seus processos de transmissão,
apesar de entender que o autor jamais associou conteúdo com matéria, mas o discutia
em sentido mais amplo.
Didaticamente o “conteudismo” 10 e a relação transmissão-assimilação foram, por
muito tempo, valorizados, talvez exatamente por ser mais fácil e mais cômodo não se
orientar sobre as demais opiniões que o autor pontuara em seus manuais de Didática,
muito utilizados nos cursos de formação de professores. Essa orientação, segundo
relata o próprio autor, seria a presença nos conteúdos de pelos menos três elementos:
a) sistematização dos conhecimentos pela experiência social da
humanidade e organizados para serem ensinados;
b) habilidades e hábitos vinculados aos conhecimentos, incluindo métodos e
procedimentos;
c) valores, atitudes e convicções nos modos de agir, sentir e enfrentar o
mundo.
Mesmo assim, em uma entrevista organizada por Marisa Vorraber, 11 o autor se coloca
da seguinte maneira:
[...] posso dizer que estou ampliando as idéias que desenvolvi no primeiro livro. 12 Ou seja, continuo vendo a centralidade da escola na cultura, uma cultura crítica, um conhecimento crítico como construção social, portanto subordinado a interesses de grupos e classes sociais, vinculado a relações de poder [...]. Mas hoje não
10 Chamamos “conteudismo” o processo extremado com que algumas escolas e professores organizam seus currículos, “desprezando”, por exemplo, o trabalho de desenvolvimento do aluno, como pessoa, cidadão, “ser político”. Fazendo isso, estariam desqualificando a transmissão dos conhecimentos e do saber cientificamente mais valorizados. 11 Contida no livro A escola tem futuro? da Editora DP&A. 12 Faz referência ao livro Didática, publicado em 1990.
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jogo todo o peso da escolarização no conhecimento científico, acho que eu fazia isso no começo da formação das minhas idéias (LIBÂNEO, 2003, p. 27).
Libâneo, em sua entrevista, fala da importância por ele dada à dimensão ética, à
valorização das práticas do pensar acerca da solidariedade, dos valores, da
veracidade e do reconhecimento das diferenças. Considera também importante, nesse
processo de apropriação de conhecimentos, a valorização da experiência estética e
artística, assim como a capacidade de expressar-se, de sentir o mundo do outro e sua
cultura. O autor revela estar hoje “[...] bem mais convencido do que anos atrás de que
a razão científica e outros tipos de saberes de complementam” (p. 27).
É a compreensão e a aceitação de complementaridade do saber científico com outros
tipos de saberes que dão a tônica ao plano da gestão do trabalho pedagógico de uma
escola em condições de acolher a todos.
A escola com que sonhamos é aquela que assegura a todos a formação cultural e científica para a vida pessoal, profissional e cidadã, possibilitando uma relação autônoma, crítica e construtiva com a cultura em suas várias manifestações: a cultura provida pela ciência, pela técnica, pela estética, pela ética, bem como pela cultura paralela (meios de comunicação de massa) e pela cultura cotidiana. E para quê? Para formar cidadãos participantes em todas as instâncias da vida social contemporânea, o que implica articular os objetivos convencionais da escola [...] às exigências postas pela sociedade [...] (LIBÂNEO, 2001, p. 7-8, grifos nossos).
Considerando a presença de relações entre os mais variados conhecimentos –
científicos ou não – no processo de esclarecimento da realidade, cabe à educação,
segundo Martins (1998, p. 27), “[...] refletir sobre a consistência, a coerência e a
sensibilidade que sustentam as argumentações na busca de novos procedimentos
para enquadrar o conhecimento”. A análise sobre os caminhos por onde se desdobra
o conhecimento é uma análise que compete à educação.
Os estudos realizados por Oliveira (2003) 13 sobre currículos praticados e a leitura que
se faz da complexidade do cotidiano, tendo em vista a produção e a construção de
conhecimentos, revelam a emergência das novas dimensões do saber no novo
paradigma do conhecimento. Em um de seus trabalhos, evidencia-se o diferencial do
13 A autora, além de se voltar para o estudo epistemológico do que é e do que pode ser o cotidiano, relata e analisa as observações e entrevistas realizadas com uma professora que se fez cúmplice de sua pesquisa, discutindo a representação e/ou compreensão do currículo em ação e as formas criativas de trabalho pedagógico desenvolvidas na escola.
67
trabalho pedagógico de alguns professores que se voltam para o reconhecimento de
todo tipo e formas de conhecimento, quando estabelecem um diálogo entre as
diversas culturas sob múltiplas dimensões, presentes nas salas de aula.
Esse diálogo, entre outros, assim como a “[...] a criação cotidiana de alternativas
curriculares numa perspectiva progressista – coletiva solidária e dialógica”
estabelecem vinculações com o conhecimento-emancipação. Segundo Oliveira
(2003), é com base na idéia de práticas de utopias que essas alternativas se
insurgem, ocorrendo,
[...] na medida em que configura a ‘inserção da novidade utópica no que nos está mais próximo’ pela inclusão de valores e crenças na solidariedade entre os diferentes e desenvolvida como auto-organização dos saberes/fazeres/valores a partir da complexidade do real e de suas imprevisibilidades (OLIVEIRA, 2003, p.147).
Como táticas de emancipação, é, então, possível, diante da complexidade do fazer
pedagógico e de tantas demandas e solicitações de nossa sociedade, reorganizar o
que está instituído e o que está posto como regra, “[...] não só ensinando os
conteúdos curriculares oficiais, mas também difundindo os valores que abraça,
praticando, em escala micro, suas utopias pessoais” (OLIVEIRA, 2003, p. 147-148).
Acerca dessa posição utópica seguida por muitos profissionais da educação, trazemos
o pensamento de Santos (2000, p. 36):
Recuperar a esperança significa, neste contexto, alterar o estatuto da espera, tornando-a simultaneamente mais activa e mais ambígua. A utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite lutar pelo conteúdo da espera, não em geral, mas no exacto lugar e tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e excepto naqueles em que ocorreram efetivamente.
A seguir, apresentamos algumas reflexões acerca da abordagem multirreferencial,
que nos é oferecida como possibilidade de entendimento do processo educativo,
analisando-o sob diferentes perspectivas, ante as dificuldades de mantê-lo nos
determinismos e previsibilidades dos paradigmas tradicionais de educação.
68
4.1 MULTIRREFERENCIALIDADE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Recentemente, ao entrarmos em contato com as produções de alguns pesquisadores,
que se utilizaram metodologicamente do olhar/abordagem multirreferencial para com
seus objetos de estudos, ousamos considerar tal abordagem como possibilidade de
análise dos cotidianos, dos sujeitos, do fenômeno educativo chamado inclusão e da
gestão da aprendizagem a todos.
Martins (2000) nos lembra que as visões de conhecimento, de objeto e de sujeito
implícitas no modelo de cientificidade, desenvolvido no âmbito das Ciências Naturais,
subsidiaram tanto a elaboração das teorias educacionais como as práticas educativas
delas decorrentes.
Entretanto, nas últimas décadas, temos compreendido que essas visões não
contemplam a complexidade dos fenômenos sociais e, conseqüentemente, a
complexidade imbricada nos processos educativos, pois o caráter reducionista e
simplificador, bastante utilizado na análise desses fenômenos, ainda se orienta pelos
determinismos e previsilibilidades próprios de um paradigma racionalista.
Sendo assim, uma possibilidade de compreensão em relação aos processos de
inclusão escolar e da gestão da aprendizagem para todos nos é apresentada pela
abordagem multirreferencial, desenvolvida por Jacques Ardoino, por volta dos anos
60, que, conforme escreve Martins (2000, p. 5-6), se apresenta como uma base
teórica “[...] capaz de contribuir, epistemológica e metodologicamente, para a
compreensão da dinâmica dos processos educativos, assegurando-se a complexidade
que lhes é própria”.
Entretanto, a fim de subsidiar o leitor na compreensão dessa abordagem, assim como
para que entenda os nossos limites e “impossibilidades” em relação às análises e
considerações subseqüentes, pensamos ser interessante apresentar os fragmentos
de uma entrevista com Cornelius Castoriadis, em que Ardoino, Barbier e Giust-
Desprairies (1998) discutem com ele sobre a multirreferencialidade. Lembramos que
esses preeminentes pesquisadores, mesmo divergentes em algumas posições,
integram uma mesma matriz filosófica e sociológica, no entendimento e análise das
manifestações sociais e culturais da sociedade.
69
Registramos, então, que, nos fragmentos dessa entrevista, encontramos respaldo,
tanto para trazer o tema multirreferencialidade para este trabalho, quanto para
justificar o fato de não tê-la realizado de maneira “absoluta”, seja pela nossa
“incapacidade e impossibilidade” na utilização de suas ferramentas teórico-
metodológicas, seja pelas “contradições e limitações” nela existentes expressadas por
Castoriadis na referida entrevista.
Solicitado para que expressasse sua opinião acerca do tema, Castoriadis pede a
Ardoino que exponha primeiro suas explicações. Este, então, a expõe assim:
Por multirreferencialidade entendo, portanto, os referenciais, isto é, os sistemas ao mesmo tempo de leitura, de representação, por conseguinte, mas também as linguagens, que são aceitas como plurais, isto é, como necessariamente diferentes umas das outras, como um luto de unidade, se quiserem, e que vão servir para dar conta, no estágio em que estamos da complexidade de um fenômeno e para elucidá-la um pouco (ARDOINO, 1998, p. 69).
Vemos que Ardoino atribui à multirreferencialidade além da pluralidade, também a
característica de heterogeneidade. É possível, então, buscar referências nas várias
ciências e disciplinas, para que por meio de seus registros, possamos “apelar” para a
elucidação ou explicação de alguns fenômenos educativos. Castoriadis pondera e diz
que a questão é extremamente vasta, e que esta envolve quase tudo. Mas nem por
isso discorda da pluralidade de “leitura” que o olhar multirreferencial possibilita e
solicita apenas que tenhamos cuidado com as fantásticas confusões, frutos do
exagero e do ecletismo sem controle (CASTORIADIS, 1998), por exemplo, de uma
multirreferencialidade generalizada. 14
Com essas considerações, o autor assinala a necessidade de precisar os limites da
multirreferencialidade.
Castoriadis diz acreditar ser um erro, por exemplo, um psicanalista querer conceber a
sociedade a partir do funcionamento psíquico, assim como há um erro simétrico do
sociólogo em ver na psique apenas o produto da sociedade e da socialização. Ou
seja, a psique não se reduz à sociedade e nem a sociedade se reduz à psique.
14 Expressão utilizada por René Barbier e tomada por Alain Colon, em seu texto Etnometodologia e
multirreferencialidade, este devidamente relacionado nas referências, nas páginas finais deste trabalho. De acordo com Barbier (1998), a multirreferencialidade generalizada recorreria a disciplinas que até poderiam estar, no limite, em oposição umas às outras.
70
Por conseguinte, o autor, apesar de realizar tais considerações, e que convergem com
as propostas da multirreferencialidade, chama-nos a atenção para o fato de que o
mundo não é coerente, ele é fragmentado, e nessa fragmentação na qual nos
encontramos, não podemos nos mensurar com as mesmas categorias e os mesmos
conceitos de outros seres que aqui vivem.
Apesar disso, concorda que não podemos dispensar alguma exigência de coerência
para entendermos ou explicarmos alguns fenômenos, dentro de suas áreas, e diz: “[...]
no interior de uma área, devemos tentar ser o mais coerentes possível [...]”
(CASTORIADIS, 1998, p. 71).
Nesse sentido, o olhar multirreferencial se justifica, porém, na busca dessa coerência
dentro de determinada área, para explicar e melhor entender determinadas questões,
Castoriadis alerta que não se devem articular de qualquer maneira as diferentes
áreas.
4.2 MULTIRREFERENCIALIDADE NA EDUCAÇÃO: UMA POSSIBILIDADE DE
COMPREENSÃO DA PRÁTICA EDUCATIVA
A realidade educacional brasileira, sobre a qual grandes pesquisadores empreendem
esforços na produção científica, tem apontado, além de propostas e alternativas de
solução, o reconhecimento, antes de tudo, dos “males” da educação brasileira que,
segundo Barbosa (1998), é fundada em uma pedagogia da desautorização, a partir do
momento em que se nega, desde o início da escolaridade, a produção do aluno “[...]
no que se refere ao pensar, ao sentir, ao imaginar, ao decidir, ao agir [...]”, enfim a
negação de seu processo de autoprodução.
Muitas pesquisas, além da investigação e constatação de algumas hipóteses
preliminares, visam, sobretudo, a contribuir com importantes análises sobre questões,
como fracasso e evasão escolar, que, de algum modo, estão estreitamente ligadas à
necessidade de reestruturação administrativa e pedagógica dos sistemas escolares,
bem como à formação inicial e continuada dos profissionais, entre tantas outras
questões que estão imbricadas no processo educacional brasileiro.
Todas essas análises vêm, em nossa interpretação, de maneira acertada,
denunciando as práticas subjacentes de um currículo apoiado nas teorias tradicionais
71
que o vêem estritamente como atividade “conteudista”,15 que implicam muitas vezes
práticas didático-pedagógicas excludentes e com determinados arranjos que revelam,
inclusive, uma organização que privilegia alguns alunos em detrimento de outros, visto
trabalhar com a hipótese de considerar áreas específicas da inteligência. 16
Nesse sentido, quando Barbosa (1998) diz que a educação brasileira está fundada na
pedagogia da desautorização, por negar a produção do aluno, somos levados a
acreditar que essa negação tem relação direta com o tipo de formação profissional
que recebemos, atrelada, evidentemente, a concepções, visões, finalidades e
objetivos atribuídos à escola até tempos bem recentes.
Assim, nossas questões são de natureza estruturais, ou seja, têm a ver com o resgate
do homem como pessoa que se expressa cotidianamente e de diferentes maneiras e
que necessita de uma educação que o “habilite” a ser autor-cidadão, 17 tanto quanto
necessita do conhecimento formal e científico. Para Barbosa (1998, p. 8), ser autor-
cidadão significa:
[...] referir-se a esta árdua e complexa tarefa mobilizadora do sujeito como um todo se se propõe formá-lo (formar-se) para uma maneira ‘integrada’ de atuar no mundo, de se posicionar no público, de se comportar no privado, de agir no trabalho, no sindicato, na igreja, de tratar o filho, o marido, o namorado, a empregada ou empregado, o adolescente, a criança; maneira ‘integrada’ de expressar os próprios sentimentos; de amar, de imaginar, de propor sonhos, objetivos, estratégias [...] de desejar.
Tomando não somente as dificuldades de “forjar” autores-cidadãos, dificuldade essa
muito sentida em todos os demais processos sociais e não apenas no escolar, assim
como tantos outros aspectos reveladores da complexidade evidenciada nos contextos
educacionais, encontramos, no conceito de multirreferencialidade, desenvolvido por
Ardoino (1998), uma importante contribuição a partir do momento em que esta não se
encontra fechada em si, mas aberta à complexidade da realidade e à interioridade
significante do sujeito observador.
15 Não queremos dizer com isso que a escola não deva primar pelo conhecimento científico, didaticamente organizado em disciplinas e conteúdos. Porém, estes não devem se constituir em motivos de exclusão e definições deterministas e que antecipam fracassos, ante o “potencial” e a capacidade de uns em detrimento de outros. 16 Um currículo baseado na teoria tradicional, por privilegiar estritamente o aspecto “conteudista” (disciplinas, matérias, avaliação, notas, etc.), naturalmente privilegia as “inteligências” lingüística e lógico-matemática em detrimento de outras “inteligências”, evidenciadas pelas diferentes formas de linguagem e expressão do pensamento. 17 Expressão cunhada por Joaquim Gonçalves Barbosa.
72
Essa abordagem nos chama a atenção para o desenvolvimento de uma teoria
pedagógica que supere os chamados fundamentos da educação, haja vista a
supervalorização de determinados fundamentos e/ou disciplinas que desenvolvem e
têm à sua disposição seus próprios objetos e métodos.
Soma-se a isso, também, o ecletismo superficial, ao desconsiderar isoladamente tais
fundamentos, redundando, na maioria das experiências, em simplificação da prática
educativa nos contextos escolares.
A construção de uma teoria para a educação, que pretenda considerar os indivíduos
como atores do processo, “autorizados” como cidadãos, e que permita apreender toda
a sua complexidade histórica, filosófica, sociológica, antropológica, psicológica,
econômica, etc., nos é possibilitada por uma abordagem que, utilizada por
pesquisadores, professores de formação, profissionais em formação inicial e,
sobretudo, em formação contínua, permitirá o necessário entendimento da
complexidade do ato educativo, especialmente no tocante à educação brasileira.
De igual modo, pelo respeito às diferentes ciências com suas linguagens próprias,
assim como no estabelecimento de intercâmbios cada vez mais sofisticados, será
possível, por meio da abordagem multirreferencial, multiplicar-se as possibilidades de
ação/intervenção, tanto na dimensão prática, quanto na teórica, em resposta aos
desafios enfrentados cotidianamente em nossa multifacetada realidade educacional.
Apesar de esse conceito ser desenvolvido por Ardoino desde os anos 60, em seus
trabalhos na Universidade de Paris III, na França, só encontraremos a primeira obra
publicada no Brasil, sobre a referida abordagem, em 1997, pelo pesquisador Sérgio da
Costa Borba.
No entanto, ao tomarmos conhecimento dessa abordagem por meio das produções de
alguns dos autores aqui citados, consideramos importante apresentar não só as
considerações que eles têm sobre ela, como também as nossas, em frente às
questões estudadas e investigadas em nosso processo de pesquisa. Assim, algumas
indagações e/ou hipóteses são sutilmente trazidas neste texto.
73
Essas questões podem ser resumidas assim: que sentidos e significações estão
presentes e impregnados na constituição da pessoa? 18 A quais referências (afetivas,
psicológicas, sociais, culturais, etc.) essencialmente seriam importantes nos ater? É
possível, pelo processo do diálogo, do respeito, da ampliação de nossa percepção às
múltiplas dimensões que constituem a pessoa, promover uma educação diferenciada
e com respostas à complexidade na qual estamos imersos?
Em algumas de nossas leituras acerca da perspectiva interacional sustentada no
paradigma da complexidade e da interdependência, percebemos o quanto é
importante a pessoa, 19 em suas redes de relações, estar impregnada e atravessada
pela linguagem. Segundo Rossetti-Ferreira (2004, p. 25), “[...] essa característica
marca o caráter fundante da dialogia na constituição do ser humano e,
consequentemente, a sua multiplicidade”.
A pessoa é múltipla porque são múltiplos e heterogêneos os vários outros com quem interage. A pessoa é múltipla porque são múltiplas as vozes que compõem o mundo social e os espaços e as posições que vai ocupando nas práticas discursivas. Essa multiplicidade de vozes e posições que dialogam entre si submetem a pessoas, mas, ao mesmo tempo, preservam a abertura para a inovação e para a construção de novos posicionamentos e processos de significação acerca do mundo, do outro e de si mesma (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2004, p. 25).
Essa heterogeneidade marcante pelas múltiplas vozes, múltiplas posições presentes
na variedade humana, assim como por suas singulares diferenças, vem
impulsionando e motivando todos aqueles que querem interrogar e investigar, de
forma mais profunda, a complexidade imanente dos processos relacionais,
pedagógicos, entre outros, desvelando, assim, novas maneiras e outras vias para a
compreensão e respostas a tal complexidade.
Entendemos que essa investigação poderá estar presente desde os processos
socializantes iniciais na vida do ser humano. Segundo Smolka (2004, p. 35), as
crianças têm experenciado hoje a intensidade, a premência, a rapidez, a abundância e
a simultaneidade das mais variadas informações, mensagens, apelos e linguagens,
18 A expressão pessoa às vezes é colocada neste texto por nós, também como sujeito ou indivíduo. 19 A autora Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, na oportunidade, justifica a utilização do termo pessoa em substituição a sujeito e indvíduo, tendo em vista que alguns teóricos alegam dificuldades e contradições encontradas diante de tais palavras. Estas, segundo eles, “[...] podem remeter a concepção de ser humano como uma unidade, uma essência e, nesse sentido, sugerindo certa autonomia em relação ao seu meio” (2004, p. 25).
74
diante dos quais estarão aceitando, de maneiras diferentes, as demandas e os
impactos dessas mensagens e linguagens e a elas reagindo ou resistindo.
A nosso ver, essa reflexão é extremamente plausível para justificar a busca de outras
novas maneiras de se olhar para essa pessoa/aluno que, na relação com os outros,
poderá ainda expressar novas reações, aceitações ou resistências. A autora diz:
“Imersas que estão na trama dessas relações, participam, inescapavelmente, das
significações que se produzem” (SMOLKA, 2004, p. 35). E acrescenta:
É impossível ao homem não significar. A significação faz parte da atividade humana. Diz-se que o homem busca sentido, atribui sentidos [...]. Mas que sentidos são esses que se procuram, se buscam, se atribuem? É a significação de algo intrínseco às ações humanas?[...] (SMOLKA, 2004, p. 35).
É, então, na tentativa de compreender os fenômenos educacionais, entre tantas
outras manifestações oriundas de uma determinada prática ou concepções,
essencialmente aquelas que provêm do distanciamento e da diferenciação do que é
ou do que tem sido concebido na ótica do paradigma cartesiano e positivista, que
trazemos, para discussão, os pressupostos da abordagem multirreferencial
desenvolvida por Jacques Ardoino (1998).
Alguns dos fenômenos educacionais, como sinalizados anteriormente no início deste
capítulo, são, em nossa análise, expressos e evidenciados, por exemplo, pela
concreta realidade de heterogeneidade, marcada pela diversidade e diferenças das
pessoas/alunos no momento da produção e construção dos conhecimentos, na
expressão, por essas pessoas, de suas subjetividades, seus modos de pensar, sentir
e agir na construção e no desenvolvimento de uma visão de ser e estar no mundo.
Ao considerar a concretude dessa realidade no cotidiano da escola, perpassada pelas
múltiplas dimensões com as quais estão permanentemente interconectadas, emerge o
que chamamos de fenômenos educacionais, ou seja, os elementos fluidos de uma
complexidade que exige de todos e a todo momento sua compreensão.
• Entendendo a abordagem multirreferencial e suas propostas
Como teórico da multirreferencialidade, Jacques Ardoino (1998) tem sido a principal
fonte para os pesquisadores brasileiros nos últimos anos. Alguns desses
75
pesquisadores 20 realizaram um percurso intelectual nos anos 80 e 90, ou pela leitura
de livros ainda não traduzidos para o português, ou na realização de doutorado ou
pós-doutorado, em Paris V e Paris VIII, estando, desse modo, aproximando e
compreendendo a fundamentação do conceito de multirreferencialdade com Ardoino,
entre outros, como Georges Lapassade e René Barbier.
Ardoino (1998), em um de seus textos reunidos na obra de Joaquim G. Barbosa
(1998), diz que, ao assumir plenamente a hipótese da complexidade, até mesmo da
hipercomplexidade, da realidade a respeito da qual nos questionamos, a abordagem
multirreferencial propõe-se:
[...] a uma leitura plural de seus objetos (práticos e teóricos), sob diferentes pontos de vista, que implicam tanto visões específicas quanto linguagens apropriadas às descrições exigidas, em função de sistemas de referências distintos, considerados, reconhecidos explicitamente como não-redutíveis uns aos outros, ou seja, heterogêneos (ARDOINO, 1998a, p. 24).
A abordagem multirreferencial vem se apresentando como uma resposta ao caráter
extremamente complexo da prática social e, principalmente, das práticas educativas.
De acordo Ardoino (1998), a complexidade tem trazido, para professores, pedagogos
e psicólogos, muitas dificuldades na interpretação e compreensão de suas próprias
práticas, e isso se desdobra em dificuldades na tomada de decisões (ARDOINO, apud
MARTINS, 2004).
Ao investigarmos, com maior interesse e profundidade, a proposta de Ardoino,
verificamos que é na complexidade imanente das relações estabelecidas no processo
educativo, quaisquer que sejam elas, que são forjados o conceito e as propostas da
abordagem multirreferencial. O autor, em sua análise acerca de tal complexidade,
leva em consideração questões como a autonomia relativa da escola e a forma como
esta se expressa por meio de um fazer social-histórico que postula uma dialética do
instituído e do instituinte.
20 Joaquim Gonçalves Barbosa toma contato com a abordagem multirreferencial de Ardoino pela leitura do livro de Georges Devereux: Da angústia ao método das ciências do comportamento. Paris: Flammarion, 1980; Teresinha Fróes Burnham, com suas pesquisas sobre currículo, encontra em Ardoino, por meio da multirreferencialidade, complementaridade às suas questões de investigação; Roberto Macedo, no início da década de 90, faz um doutorado em Paris; e Paulo Coelho Filho por meio de seu doutorado em Paris V e pós-doutorado em Paris VIII.
76
Nesse sentido, as finalidades políticas, mesmo subjacentes, evocam uma
intencionalidade predominantemente coletiva. Há, então, certa autoridade e uma
legitimidade nela como instituição, no exercício de um “poder”. No entanto, sua
relativa autonomia assim como o reconhecimento das relações de força e de interesse
de classe dão a essa representação da realidade social um caráter naturalmente
polêmico em frente às determinações sociais (ARDOINO, 1998, p. 34).
Um pesquisador, ou qualquer pessoa interessada em compreender os fenômenos
educacionais, há de considerar a essência do vivido e construído no âmbito da escola
que representa e significa muito mais do que simplesmente aparenta, ou do que lhe é
determinado como função social, a partir do momento em que é vista como,
[...] um lugar de vida, uma comunidade, que reúne um conjunto de pessoas e de grupos em interação recíproca. As relações que o vivido coletivo tece no decorrer das situações sucessivas estão inscritas numa duração, carregadas de história (e de “histórias” que estabelecem uma contenda entre os protagonistas) e se encontram mesmo assim determinadas mais pela dinâmica das pulsões inconscientes e da vida afetiva, pela ação dos fenômenos tranferenciais e contra-transferenciais, pelas incidências das implicações que têm nos papéis ou nas associações, pelo peso próprio das estruturas psíquicas, pelos vieses específicos que decorrem das bagagens intelectuais de uns e de outros, do que pela lógica de um sistema que pretende dividir funções e estabelecer tarefas para bem conduzir missões (ARDOINO, 1998, p. 34).
Diante dessa emaranhada realidade, imbricada de múltiplos níveis e perspectivas que
se delineiam a partir dos mitos, das crenças, das opiniões, das normas, das proibições
e dos desejos-angústias de transgressão, resultantes dos valores pessoais e culturais
dos envolvidos no processo educativo, inevitavelmente, fluem atitudes de contestação,
questionamento e interrogações acerca do que é e do representa a escola na e para a
sociedade.
Ou seja, na tentativa de compreender o que realmente significa a sociedade, os
questionamentos passam a se dirigir não somente à questão do sentido e importância
da escola na constituição dos sujeitos para essa sociedade, querendo sempre moldá-
los e “prepará-los”, como se todos fossem exercer os mesmos papéis e as mesmas
funções, porém, muito mais à questão de saber que sujeitos essa sociedade vem
forjando, constituindo e necessitando para manter a sua existência.
77
Os processos de inclusão escolar e a gestão da aprendizagem na diversidade
emergem nesse sentido como “protagonistas” e impulsores aos vários
questionamentos da escola que temos e que aí está dimensionada.
Lançar um olhar para a questão, para além do aqui e agora, ou seja, para sua história,
seus enredamentos, sua constituição/compreensão, segundo outras ciências ou
outras culturas, possibilita a efetivação de melhores práticas educativas, não só aos
que diretamente estão envolvidos nas questões (como, por exemplo, os alunos com
deficiências), mas a todos os envolvidos na comunidade escolar.
Victor e Barreto (2005) nos lembram que, apesar de, nos últimos trinta anos, muitos
de nós termos apresentado trajetórias que envolveram três grandes ciências, a
Psicologia, a Política e a Filosofia, ainda temos muita dificuldade em identificar essas
ciências na Educação Especial, mesmo que esta tenha se configurado por essas
áreas. As autoras, então, perguntam:
Será que, em decorrência dessas bases epistemológicas, estamos conceituando os termos da mesma forma ou estamos apensas falando das mesmas coisas com sentidos e significados diferentes devido aos lugares, marcas e marcações próprias? (VICTOR; BARRETO, 2005, p. 414).
É bom lembrarmos que a escola como invenção da sociedade, e sendo a sociedade,
segundo Castoriadis (1987), a criação de si mesma, muito nos ajudará a elucidar, de
maneira prática, as questões sobre o significado e a função dessa escola na
sociedade.
De maneira pontual, Castoriadis (1987) realiza uma interpretação a partir dos
postulados de Aristóletes e Marx acerca da divisão do trabalho e da
convenção/instituição estabelecida pela e para a sociedade, como condição de sua
existência, afirmando que a sociedade não comporta de fato e por acidente a
diferença, ou melhor, a alteridade dos indivíduos, mas implica necessária e
essencialmente essa alteridade.
De modo ilustrativo, o autor fala sobre a constituição da sociedade como troca entre o
“médico” e o “lavrador”:
Pois não é a partir de dois médicos que a sociedade advém (ginetai), mas a partir de um médico e de um lavrador, os quais são
78
absolutamente outros (holôs heterôn) e não iguais; e no entanto é preciso que estes sejam igualizados (ARISTÓLETES, apud CASTORIADIS, 1987, p. 386).
A constituição da sociedade, como troca entre o “médico” e o “lavrador”, exige a
solução desse enigma: igualizar o que é absolutamente outro.
Médico e lavrador só podem existir comungando/comunicando (koinôneim) e só podem comungar/comunicar trocando; para que troquem, devem ser eles próprios, seus ‘produtos’, estes por aqueles ou o inverso igualizados. Por trás da troca constituída, há a troca constituinte – e esta ainda exige, implica uma comensurabilidade ou ‘igualdade’ (CASTORIADIS, 1987, p. 386-387).
Compreendendo, então, a “necessidade” e possibilidade de comunicação, comunhão
e troca entre o “outro”, como condição de existência da sociedade, será possível
estabelecer ou visualizar a “igualização” exatamente nesse processo de comunicação
e comunhão.
Na transposição de tais idéias e conceitos para as práticas cotidianas da escola,
verificaremos a urgência de sua aplicação diante do grande conflito que se estabelece
entre os seus envolvidos, quando estes, por vezes, erroneamente, vêem a escola
como um lugar mais parecido com uma oficina, uma fábrica de formação, um curso de
treinamento para passar em concursos ou uma organização provedora de mão-de-
obra, como nos diz Meirieu (2005), do que um lugar de compartilhamento de saberes,
não demarcando previamente o futuro ou lugar que ocuparão uns ou outros, por sua
condição intelectual, física, étnica, religiosa, entre outras.
Na efervescência de tal complexidade, a emergência pela busca de outras referências
e/ou abordagens se revela como alternativa para a compreensão e/ou resposta à
nossa realidade educacional, a fim de explicar, justificar, propor, ou dar conta daquilo
que sonhamos ou pretendemos. como escola, como um importante espaço na
constituição dos sujeitos para e na sociedade.
Na defesa de uma abordagem que se ancora em múltiplos olhares e na compreensão
do caráter plural dos fenômenos sociais, Ardoino (1998) se posiciona afirmando que a
síntese das abordagens das diferentes vertentes (psicológicas, psicossociais ou
psicanalíticas), e que para nós é o que vem sendo realizado, a despeito dos
fundamentos e da história da educação brasileira, ”[...] não poderia efetuar-se sem
79
riscos graves de mutilação da realidade, a partir de um só referencial, com uma
linguagem única” (ARDOINO, 1998, p. 35).
Ardoino (1998) esclarece o quanto essa abordagem se revela inteiramente útil, por
exemplo, àqueles que praticam a formação continuada, aos professores de modo
geral, aos pesquisadores ou mesmo aos que estão em formação inicial. Ressalta, de
modo especial, o proveito que têm aqueles que estão em “formação contínua”, no seu
lócus de trabalho, haja vista sua experiência decorrente da complexidade, verificada
na dificuldade profissional que encontram em suas respectivas áreas de atuação.
Tendo em vista que, em grande medida, os pesquisadores, no âmbito da educação,
são profissionais que paralelamente desenvolvem seus projetos de pesquisa, é
comum a grande expectativa de solução concreta aos problemas evidenciados por
esses pesquisadores. Diante disso, o objetivo maior da abordagem multirreferencial
não será fornecer respostas à complexidade encontrada, ou tornar sua leitura dirigida,
mas
[...] constitui muito mais o apelo deliberado através da pluralidade de olhares e de linguagens, reconhecidos como necessários à compreensão dessa suposta complexidade (emprestada ao objetos), de um questionamento epistemológico, atualmente imprescindível nessas áreas, antecessor de todas operacionalização de métodos e de dispositivos (ARDOINO, 1998, p. 41).
As implicações dos estudos, discussões e pesquisas para a educação acerca da
complexidade e da multirreferencialidade que Ardoino, Morin, Barbier e Castoriadis
têm realizado, trazem, com ampla possibilidade de aplicação de seus pressupostos,
significativas contribuições para que possamos refletir sobre uma possível e sonhada
modificação sob uma reestruturação administrativa e pedagógica na instituição
escolar, refletindo no seu conseqüente papel na sociedade contemporânea.
Entendemos que, para a formação de cidadãos que atuarão na sociedade, e que para
essa formação se exige a construção de sujeitos coletivos, indivíduos sociais, num
permanente, tenso e duplo processo de instituição/continuidade, é imprescindível a
compreensão do papel do currículo nessa construção (BURHAM, 1998, p. 36).
Tratar o currículo a partir de paradigmas específicos e delimitantes, sem nos ater às
heterogêneas redes de relações que o constitui, é querer vencer, de maneira
80
simplista, o desafio que nos é imposto cotidianamente, haja vista apreendermos, 21
tanto dos docentes quanto de outros envolvidos no processo educativo, sua
perplexidade ante a natureza complexa do “fazer e trabalhar na educação”. 22
É desse modo que creditamos à perspectiva multirreferencial de Ardoino (1998) e
seus seguidores a possibilidade que esta nos apresenta, ao considerar o currículo não
somente como algo construído historicamente para a socialização, entre outras
finalidades, mas também, como responsável pela construção de todos os sujeitos nele
envolvidos pela construção de suas próprias identidades sociais.
Finalmente, pensamos neste currículo como algo que contribui para o duplo processo
de continuidade/instituição de uma sociedade, isto é, para a manutenção/construção/
reconstrução/criação das relações dos sujeitos sociais no complexo das relações de
um mundo histórico-socialmente construído e instituído e em permanente processo de
reconstrução e criação (BURHAM, 1998, p. 48).
Ao acolhermos a idéia da reestruturação curricular que reconheça a importância da
imagem, dos sonhos da pessoa, as diferentes linguagens e expressões, que
considera as emoções, a afetividade, as diferenças e as necessidades que cada
indivíduo traz consigo, fazendo-as presentes criativamente em todas as atividades
curriculares, estaremos realmente formando cidadãos, autores-cidadãos e não mais
fabricando mão-de-obra para a sociedade. Assim como nos convida Castoriadis
(1992), acreditamos que esse desafio poderá ser enfrentado, pois também queremos:
[...] indivíduos autônomos, isto é, capazes de uma atividade refletida própria. Contudo [...] os meios e os objetos dessa atividade, e mesmo seus meios e métodos só podem ser fornecidos pela imaginação radical da psique. É aí que se encontra a fonte de contribuição do indivíduo à criação social-histórica. E é por isso que uma educação não mutilante, uma verdadeira paideia é de uma importância capital (CASTORIADIS, 1992, p. 160-161).
21 Sejam em falas informais, sejam em entrevistas ou pelas ações docentes, é possível verificar o quanto os profissionais se põem em condições de impotência e/ou perplexos diante da complexidade que eles mesmos atribuem ao agir pedagógico. 22 Expressão comumente usada pelos profissionais da educação: “É complicado fazer educação”.
81
4.3 ANÁLISE INSTITUCIONAL: CONCEITOS E SUAS RELAÇÕES COM A
ABORDAGEM MULTIRREFERENCIAL
Nesta seção, apresentaremos e discutiremos alguns conceitos, como instituição, auto-
análise, autogestão e implicação, que, presentes na Análise Institucional e uma que
vez nosso estudo a utiliza como pano de fundo para as discussões aqui tecidas, trarão
uma maior compreensão acerca das opções teórico-metodológicas trabalhadas nesta
pesquisa.
Sobre a relação existente entre a Análise Institucional e a abordagem multirreferencial,
traremos as considerações de Ardoino e Lourau (1995) a partir dos anos 80, quando
se dá a tomada de consciência mais generalizada do caráter multirreferencial da
Análise Institucional.
• Análise Institucional: sua história
Segundo Lapassade (2005), a Análise Institucional francesa nasceu entre 1940 e
1968, de práticas microssociais relativas à Psicoterapia, à intervenção
psicossociológica e à Pedagogia, áreas consideradas fonte da Análise Institucional.
Num primeiro momento, a Psicoterapia Institucional, praticada nos estabelecimentos
hospitalares, chamados de instituição, faz surgir o conceito de Análise Institucional. Já
a Psicossociologia, uma segunda corrente da Análise Institucional, surgiu de uma
prática crítica do grupo de formação em Psicossociologia de grupo, o Training Group,
ou T. Group. 23
O projeto de Análise Institucional era, por meio da auto-análise coletiva desse grupo,
levar em consideração os quadros espaço-temporais da experiência, até então
negligenciados, do que se passava no “aqui e agora”, na instituição analisada. Por
último, porém, na mesma época, por volta da década de 60, um grupo de professores
de Paris, dissidentes da Escola Moderna (de Freinet), interessou-se pela Análise
Institucional que a Psicossociologia, a corrente anterior, desenvolvia com os grupos e
definiu-a de Pedagogia Institucional Autogestionária.
23 Forma privilegiada de formação do tipo dinâmica de grupo criada nos E.U.A., e amplamente difundida na França e em toda a Europa. O Training Group ou grupo de formação é chamado, na França, de grupo de base ou Grupo de Diagnóstico.
82
De acordo com René Lourau (1995), a Análise Institucional trata de descobrir a ação
do instituído em toda e qualquer organização. O que a movimenta não é a vontade de
atingir a verdade, mas sim a vontade política de produzir novos problemas e a vontade
da invenção (RODRIGUES; LEITÃO; BARROS, 1992).
Segundo Rodrigues e Souza (1987), o objetivo da Análise Institucional seria trazer à
luz a dialética instituinte-instituído, de maneira generalizada em todos os âmbitos e
realizada por todos. Lembramos que o interesse e o otimismo de alguns professores
daquela época em se tornarem “[...] promotores e propagadores de uma ótica voltada
a ultrapassar os perímetros da escola ou das instituições educativas especializadas
[...]” (ARDOINO; LOURAU, 2003, p. 9) fizeram nascer as Pedagogias Institucionais (já
apresentadas neste texto), da possibilidade oferecida pelas opções metodológicas da
Análise Institucional (AI).
4.3.1 Instituição, multirreferencialidade e implicação
De acordo com Ardoino (1998), só poderemos falar verdadeiramente em
multirreferencialidade, no quadro da AI, com a emergência da noção de implicação e,
sobretudo, quando esta última tiver se liberado suficientemente de seu disfarce
habitual: o engajamento.
Nesse sentido, percebemos uma maior fluidez da multirreferencialidade na AI, pois há
nela um ponto fundamental, que é justamente a hipótese de que a instituição, a
organização ou o grupo não pode se nomear, se descrever e muito menos se analisar
a partir de uma única linguagem de referência.
Acreditamos que tal hipótese faz com que haja um discernimento a partir “[...] dos
efeitos provindos de uma situação especificamente grupal e a ação própria das
estruturas da organização-estabelecimento que, no entanto, já se chama de instituição
[...]” (ARDOINO, 1998, p. 48) e que se delineia mais em termos de metodologias ou de
ideologias do que de epistemologia.
Desse modo, a presença da multirreferencialidade na AI pode ser vista, quando são
revisitadas as relações entre ideologia mascarada das práticas de grupo e as
problemáticas mais abertamente políticas.
83
Como anunciado, passaremos a discutir os principais conceitos presentes na Análise
Institucional:
A) Instituição: evolução de seus conceitos
Segundo Lapassade (apud RODRIGUES; SOUZA, 1987), num primeiro momento, a
terminologia instituição é pensada como estabelecimento de cuidados, num duplo
sentido: um estabelecimento que merece ser cuidado (terapeutizado) e que, desse
modo, pode ser mobilizado a serviço da ação terapêutica. Assim, instituições são
todos os estabelecimentos ou organizações com existência material e/ou jurídica:
escolas, hospitais, empresas, associações, etc. Esse sentido está presente em
afirmações como: “Trabalho em uma instituição”, “Estamos em uma instituição”.
Em um segundo momento, as instituições seriam dispositivos instalados no interior
dos estabelecimentos, e não mais os próprios estabelecimentos. O trabalho de
Análise Institucional consistiria numa atuação que fizesse uso de tais dispositivos. Os
grupos de discussão, assembléias, equipes de trabalhos, conselhos de classe
instalados no interior dos estabelecimentos são exemplos dessa segunda idéia de
instituição.
O terceiro momento, entretanto, segundo Lapassade (apud RODRIGUES; SOUZA,
1987), a partir dos movimentos antiinstitucionais (antipsiquiatria, antiescola), sinaliza
uma redefinição do conceito de instituição. Esses movimentos introduzem um sentido
mais conceitual e não meramente empírico do termo instituição, que é pensada como
produto da sociedade instituinte em tal momento de sua história ou como a forma
geral de relações sociais que se estabelecem em uma determinada sociedade.
Segundo Castoriadis (1982, p. 141),
Uma sociedade só pode existir se uma série de funções são constantemente preenchidas [...], mas ela não se reduz só a isso, nem suas maneiras de encarar seus problemas são ditadas uma vez por todas por sua ‘natureza’; ela inventa e define para si mesma tanto novas maneiras de responder às suas necessidades, como novas necessidades.
A consideração que faz o autor nos leva à compreensão de que não há fundamentos
para o não questionamento dos instituídos. Dessa maneira, são infundadas as
respostas que muitos têm elaborado para justificar os seus não-fazeres. Isso quer
84
dizer que, diante das necessidades e “exigências” do contexto, tanto a sociedade,
quanto as suas instituições inventarão, definirão ou redefinirão novos modos de
organização, em resposta aos seus novos e velhos desafios ante às suas
necessidades.
Pensando especificamente na escola, esse entendimento nos remete à consideração
de que os próprios estabelecimentos escolares, que inscrevem inúmeras
determinações sobre a maneira de se transmitir conhecimentos, vinculam-se a uma
escolha geral e estrutural que aparece na história em um determinado momento. Ou
seja, sua constituição não pode ser pensada como atemporal e com caráter de
imutabilidade.
Instituição, nesse sentido, aparece “[...] como algo imediatamente problemático, como
algo não localizável” (RODRIGUES; SOUZA, 1987, p. 23). Nessa concepção, certas
práticas são tomadas como universais e instrumentam algumas hipóteses de base
que precisam, em primeiro lugar, “[...] ser interrogadas quanto às condições históricas
de sua produção e reprodução” (p. 24).
De acordo com Castoriadis (1982), a instituição é uma rede simbólica, socialmente
sancionada, em que há a combinação tanto em proporções, quanto em relações
variáveis, componentes funcionais e componentes imaginários.
Em resumo, trabalhamos com a idéia de instituição que pode ser enunciada, de
acordo com Lourau (apud BARBIER, 1985, p. 135), como:
1º- o momento da universalidade. O seu conteúdo é a ideologia, os sistemas de normas, os valores estabelecidos (instituído);
2º- o momento da particularidade. Constituído pelo conjunto de determinações materiais e sociais que vêm negar a universalidade imaginária do primeiro momento (instituinte);
3º- o momento da singularidade. O seu conteúdo são as formas organizacionais, que são necessárias para atingir dado objetivo, ou dada finalidade (institucionalização).
Barbier (1985) conclui, então, que a instituição é a matriz essencial do sistema dos
habitus das pessoas e dos grupos sociais de determinada sociedade, sendo, então:
A célula simbólica, matriz dos habitus, com uma dinâmica dialética instituída e instituinte, com uma estrutura oculta e ocultante,
85
inscrita na temporalidade e socialmente sancionada, que busca o controle da historicidade agindo de uma maneira funcional e imaginária, instaurada pelas relações sociais forçosamente conflitantes, provenientes da atividade transformadora dos grupos humanos [...], da sua produção desejante [...], e do seu duplo imaginário social [...] (BARBIER, 1985, 156).
B) A auto-análise e a autogestão
Dentro desse referencial, o conceito de auto-análise no trabalho com grupos
relaciona-se com a idéia de que esta consiste em prática que incita um determinado
grupo ou comunidade constituída a serem protagonistas de seus problemas, de suas
necessidades, de suas demandas, para que possam enunciar, compreender e adquirir
condições próprias que lhes permitam saber mais sobre si. Desse modo, não é
necessário que alguém, especialmente de fora ou de cima, venha para dizer-lhes
quem são, de que necessitam e o que devem pedir ou fazer.
Segundo Baremblitt (1992), a auto-análise é simultânea ao processo de autogestão,
em que a comunidade, nesse caso a escolar-docente, se articula, se institucionaliza,
se organiza para construir os dispositivos necessários para produzir, ela mesma, ou
para conseguir os recursos de que precisa para o melhoramento de suas práticas, de
seus cotidianos, criando, assim, condições cada vez mais autônomas de gestão.
Nesse sentido, a prática da autogestão começa a ser construída.
De acordo com Lobrot (apud BARBIER, 1985, p. 229), “[...] a autogestão de um grupo
de formação só será realizada de fato quando o sistema de pertencimento institucional
desse grupo também for autogerido, isto é, quando a autogestão se estender ao
conjunto das relações sociais”.
A autogestão pedagógica e a auto-análise, mesmo sendo processos diferenciados, se
constituem em processos simultâneos e articulados na produção de saberes, no
conhecimento dos problemas, das necessidades, demandas e de recursos para a
transformação da situação analisada (BAREMBLIT, 1992).
Ressaltamos que, na busca da prática da auto-análise e da autogestão, a construção
de grupos de discussão não deve ser somente entre si, mas, em alguns momentos, a
86
colaboração dos experts 24 se constitui em uma necessidade, pois eles, sem dúvida,
“[...] com sua disciplina, seus instrumentos, têm acumulada uma grande quantidade
de saber importante e não inteiramente alienado não necessariamente distorcido”
(BAREMBLIT, 1992, p. 18).
Acreditamos que essa colaboração se deu fundamentalmente pela nossa presença
como pesquisadora que, ao optar pelo dispositivo do Grupo de Diagnóstico, 25 este
permitiu que os próprios profissionais enunciassem seus problemas e suas
necessidades, ao mesmo tempo em que, como propósito do próprio Grupo de
Diagnóstico, desencadeou-se o processo de formação em profundidade.
Sobre os processos de intervenção individual, grupal e institucional, Baremblit (1984,
p. 99) toma especialmente a análise grupal, apontando suas conclusões acerca de um
trabalho crítico-produtivo, elencando-as assim:
a) Toda análise deve incluir a dimensão institucional do grupo, tanto a partir da perspectiva do instituído como a partir da do instituinte; b) Todo o grupo deve ser abordado a partir da abertura e da heterogeneidade, e não como uma estrutura homogênea e totalizadora; c) Não nos importa o grupo como totalização, interessa-nos como espaço tático onde se vê a produção de efeitos singulares, insólitos e criativos; d) A alternativa no grupo não deve ser vista entre o todo e as partes, e sim entre a produção, por um lado, e a repetição ou estereotipia, por outro; e) No grupo, o terapêutico consiste em buscar os pontos de encontro, as encruzilhadas, as linhas de contradição entre o prazer e o trabalho, entre o desejo e a produção; f) O trabalho grupal inclui sempre uma análise política, uma análise de classe e uma elucidação da fantasmática inconsciente; g) Não há prazer no grupo fora do processo de trabalho. Igualmente, não há produção que não inclua a prática de uma análise da vida cotidiana, o chamado âmbito das relações afetivas e pessoais;
24 Segundo Baremblit, os experts são os profissionais conhecedores da estrutura e do processo da sociedade em si. Eles pertencem aos vários ramos produtivos, primários, secundários e terciários. Sobre os problemas de educação, psicológicos e subjetivos, em geral, supõe-se que sejam decididos por esses experts. Dentro da proposta de estudo e pesquisa, designamos aqui a pesquisadora como intelectual e expert, a colaborar nos processos de auto-análise e autogestão dos grupos pesquisados. 25 Processo de formação do tipo dinâmica de grupo, que trata essencialmente de uma experiência vivida por todo o grupo, discutida em comum, sob orientação de um monitor (formador, pesquisador). É, portanto, uma invenção pedagógica, que consiste em formar um grupo que, sendo sujeito e objeto de experiência, cada um se forma e aprende no conjunto do processo.
87
h) Toda crise grupal, toda comoção institucional, deve ser tomada como analisador, como dado revelador de uma certa verdade do grupo.
A opção por um trabalho que toma os grupos como instância que faz efervescer suas
verdades, observando as dimensões do inconsciente, não num sentido de absoluta
terapeutização, mas que a considera, se justificou por si só, como condicionante
essencial em nossa proposta de trabalho.
Não menos importante é considerar este trabalho sob a ótica da análise política, de
classe e da vida cotidiana, nas imbricadas relações afetivas e pessoais, que tanto nos
interessam, sobretudo ao levar em conta que, dentro de cada professor/profissional,
há uma pessoa.
Aragão (1992), partindo da Análise Institucional em uma escola da rede pública de
Vitória, utiliza-se do grupo como dispositivo de análise das instituições que perpassam
o espaço escolar, tentando desvelar práticas instituídas e instaurando novas outras
formas de instituir. Segundo a autora, foram criados “[...] dispositivos que permitiram o
aflorar de movimentos instituintes, travando uma luta permanente de compromisso
com a vida, com a superação do estagnado” (p.120).
Aragão relata ainda que, durante sua pesquisa, em função de tudo que viveu, de
todos os vínculos estabelecidos, de suas implicações política, ideológica e afetiva com
o trabalho, pôde aprender sobre:
a) o dia-a-dia de uma escola pública;
b) a problemática teórico-técnica das intervenções socioanalíticas;
c) a vivência do dia-a-dia de um estabelecimento como dispositivo possível
numa intervenção socioanalítica;
d) a necessidade de efetivação de novos modelos de pesquisas educativas e
alguns limites do discurso acadêmico.
Reiteramos que o que apreendemos em falas e também em registros pela
comunidade docente, acerca do processo de gestão da aprendizagem para todos na
escola, tanto de nosso envolvimento profissional com essa instituição, como durante o
88
processo de pesquisa, era algo que precisava ser enunciado, compreendido, pois os
profissionais necessitavam saber mais, para que, no lugar do instituído, emergissem
outros saberes.
A escola, como está constituída e instituída em todos os seus processos, traz, no seu
bojo e no âmago de seus objetivos, os interesses hegemônicos de uma determinada
sociedade, que pensa o homem nas dimensões da competitividade, da possibilidade
de ser “útil” à sociedade, preservando ainda o seu papel na reprodução social. Essas
são, entre outras, algumas contribuições que muitos experts, intelectuais e
especialistas do passado legaram à escola de hoje, como num círculo vicioso, que vai
desde a formação profissional até a formação das novas gerações.
Analisar esta instituição, a escola, sob a ótica de sua constituição e essencialmente
sobre suas práticas pedagógicas até então instituídas pareceu-nos um dos caminhos
para a construção de uma nova proposta educacional, pelo menos no que diz respeito
à escola a ser pesquisada.
A possibilidade que tínhamos de constituir profissionais/integrantes da pesquisa para
serem seus próprios analistas, permitindo, inclusive, a possibilidade de essas pessoas
fazerem a nova pesquisa-ação, foi tomada por nós como um importante eixo de
trabalho.
Segundo Boumad (apud LAPASSADE, 2005), esses profissionais da prática se
tornam pesquisadores e a conduzem desde dentro, afirmando, assim, que eles fazem
a análise interna. As intervenções, de caráter individual ou grupal, tenderão, portanto,
a potencializar esses profissionais a serem analistas de seus contextos e
estabelecimentos escolares, promovendo a autogestão pedagógica.
Acreditamos que, pela adaptação das intervenções socioanalíticas francesas,
pudemos, com o aporte teórico da AI, utilizá-las na realidade pesquisada.
C) Implicação: conceito e análise
Alguns questionamentos feitos por Lourau (1998), acerca da implicação ou não
implicação, nos parecem extremamente interessantes e por essa razão os traremos
aqui:
89
• Em que momento o observador está implicado e em qual não está?
• O “rigor” inegável das observações “fechadas” e em seguida
matematicamente “tratadas” tem uma relação evidente com o conhecimento do
outro – e de si mesmo?
• A “referência” de uma pesquisa é puramente conceitual?
• Uma pesquisa não contém referências da vida pregressa e atual do
pesquisador?
A temática é instigante e, apesar de várias discussões em torno dela, ainda persiste a
“incerteza” por parte de alguns, quanto à cientificidade e rigor nas análises e nas
“descobertas” realizadas por pesquisadores implicados ou “superimplicados” com o
campo ou com a instituição, nos quais realizam seus estudos e investigações.
Lourau (apud ALTOÉ, 2004), inspirado em um modelo construído por Henri Lefebvre,
em Sociolingüística, nos apresenta alguns níveis da implicação, dentre os quais
tomamos dois, por evidenciarem um pouco a forma como nos vimos implicada em
nosso processo de pesquisa:
• implicação paradigmática: é aquela que é mediatizada pelo saber e pelo não-
saber sobre o que é possível e sobre o que não é possível fazer e pensar;
• implicação simbólica: é a que determina o lugar onde todos os materiais graças
aos quais se articula a sociabilidade. Esse lugar revela, ao mesmo tempo, sua
função, entre outras coisas, como a própria sociabilidade, o laço social, o fato
de vivermos juntos, de nos compreendermos e de nos confrontarmos.
Nessas condições, considerando esses dois níveis da implicação, encontramos em
Lourau (1998) a apresentação da multirreferencialidade, tal como ocorre na análise da
implicação. Segundo ele, ela aparece como “[...] a única possibilidade de “trabalhar”,
do interior, a instituição científica e cultural (e educativa), a fim de transformá-la
radicalmente [...]” (p. 115).
O trabalho de análise, a partir do olhar multirreferencial, constitui, desse modo, uma
aprendizagem do indeterminado que, de acordo com Lourau (1998) começa (e nunca
termina) com a análise de nossa implicação.
90
• A medida de nossa implicação
Por considerar impossível a ausência de um registro acerca de nossas implicações
nesta pesquisa, visto ser uma questão fundamental no ensino e na pesquisa,
reportamo-nos a algumas situações/vivências, que consideramos relevantes e
imprescindíveis de serem citadas, dos percursos de nossa vida profissional.
Essas situações/vivências, num primeiro plano, se constituíram como impulsoras à
nossa pesquisa, especialmente no tocante à opção teórico-metodológica. Num
segundo plano, consideramos a experiência vivida na Rede Municipal de Ensino de
Vitória, que nos permitiu e ainda permite um “ouvir” e um “conhecer” mais de perto as
realidades nas quais se configuram os processos de inclusão de crianças e
adolescentes com necessidades educacionais especiais.
De acordo com Barbier (1985), a implicação no campo das ciências humanas, é
definida como:
O engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis científica, em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passada e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sociopolítico em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento (BARBIER, 1985, p. 120).
É admitindo a condição de implicada, assim como todos os atores sociais com os
quais lidamos em nossa prática profissional, que nos colocamos e nos desvelamos
nesse processo de pesquisa, visto abrigarmos em nossa existência uma história que,
confrontada com nosso projeto sociopolítico atual, veio se configurando e se
desenrolando integralmente diante das escolhas realizadas por nós.
Coimbra (1995) diz que a Análise Institucional, em oposição ao intelectual neutro-
positivista, vai nos falar do intelectual implicado e o define como:
[...] aquele que analisa as implicações de suas pertenças e referências institucionais, analisando também o lugar que ocupa na divisão social do trabalho, da qual é um legitimador. Portanto, analisa-se o lugar que se ocupa nas relações sociais em geral e não apenas no âmbito da intervenção que está sendo realizada; os diferentes lugares que se ocupa no cotidiano e em outros locais da vida profissional; em suma, na história (COIMBRA, 1995, p. 66).
91
Assim, acreditamos que nossas escolhas são tangenciadas, e aí já se delineia uma
situação de implicação, por posições passadas em nossas relações de produção e de
classe. Como exemplo, evocamos que, quando no exercício das funções de
professora, coordenadora pedagógica e diretora em escolas, de Educação Infantil ao
Ensino Médio, trazíamos permanentemente conosco a preocupação e a
responsabilidade de uma prática engajada e coerente.
Salientamos que, em boa parte desse período, estivemos no exercício concomitante
dessas funções, sendo possível nos nutrir cotidianamente dos discursos e orientações
de natureza mais teórica e administrativa (funções de pedagoga e direção) e da
prática, propriamente dita, da sala de aula.
Como professora, atuávamos efetivamente a partir das inúmeras possibilidades de
ação pedagógica em favor da aprendizagem e do desenvolvimento de todos os
alunos, considerando as diferenças muito mais pelas necessidades pedagógicas delas
advindas.
Essas experiências eram embasadas em grande medida em experiências de
formação continuada no lócus da escola, e em tentativas pedagógicas que, sem medo
de errar, evidenciavam mais acertos do que fracassos. Isso nos convidava à
persistência de fazer da reflexão-ação-crítica uma prática permanente.
Toda essa trajetória parece nos conduzir a elementos fundamentais de nossa
proposta de investigação e análise, como o campo de pesquisa escolhido, o problema,
os sujeitos, o referencial teórico e a metodologia, tomados como possibilidades de
concretização de desejos e sonhos, considerando o que diz Barbier (1985, p.106): “[...]
o contexto do pesquisador, sua formação, seus grupos de referência, os gostos
intelectuais do momento desempenham um papel decisivo”.
Assim, acreditamos que nossos sonhos e desejos não nos colocaram num lugar de
sonhadora e fanática. De acordo com Barbier (1985), pela rigidez da tradição científica
e dos objetos de estudo tidos como “científicos” e afiançados pela comunidade
acadêmica, isso poderia acontecer.
92
Ao contrário, pensamos que os profissionais nos consideraram muito mais uma
parceira lúcida, com quem se dispunham a partilhar os sonhos da construção de um
projeto educativo que contemplasse a todos indistintamente.
Nesse sentido, nossas implicações evidenciaram os pontos de convergência e
divergência no agir pedagógico da escola e, no decorrer de uma pesquisa desta
natureza, esses pontos vieram à tona. Assim, na condição de pesquisadora,
observadora e analista, nos defrontamos com a “exigência” ou a “necessidade” de
exercermos nossa “ação/responsabilidade/competência” profissional, porém, em
outros momentos, fomos “responsabilizada” por esta ou aquela situação desvelada e
analisada, que o cotidiano escolar suscitou.
É salutar considerar as nossas implicações, tanto individual quanto coletiva,
observando que, em Análise Institucional, a implicação estaria nas formas, nos modos
que os indivíduos se vinculam às várias instituições.
Segundo Lourau (1993, p. 14), a análise de nossas implicações seria a análise dos
“lugares” que ocupamos, ativamente, neste mundo, ou seja, considerar esses lugares,
tanto os de outrora, como os de hoje, é se dispor e se submeter permanentemente à
análise das implicações que possam decorrer desse histórico-existencial, assim como
da implicação estrutural-profissional de que fala Barbier (1985).
Como pesquisadora ou não, somos nós, de forma categórica e instituída, que
assumimos determinadas e importantes responsabilidades perante esta instituição
(estabelecimento e/ou dispositivos).
Assim como o contexto do pesquisador, sua formação, seus grupos de referência, os
gostos intelectuais do momento desempenham um papel decisivo, conforme pontua
Barbier (1985), nos colocamos na condição de interrogadora de nossa implicação
histórico-existencial, ao darmos conta de que, seja investigando, analisando, fazendo
emergir os não-ditos em provocações instituintes, fazemos aquilo que Max Pagés, no
envolvimento de seus projetos, relata:
Cada vez mais [...], tornam-se para mim um acontecimento ligado à minha própria vida, à minha história, onde a minha existência está em jogo e onde trabalho o mais profundamente possível os meus problemas (apud BARBIER, 1985, p. 111).
93
Estar implicada, ou seja, realizar ou aceitar a análise de nossas próprias implicações
é, ao fim de tudo, admitir que estamos objetivada por aquilo que pretendemos
objetivar, no campo das idéias, dos grupos, dos acontecimentos, enfim, daquilo que
nos propomos realizar.
Intervindo ou analisando, fomos co-partícipes de todos os processos instituintes. A
análise de nossas implicações, no campo de pesquisa, foi feita também pelo grupo
(como dispositivo/instituição), uma vez nos considerarmos como pesquisadora
coletiva, acreditando no que diz Barbier (1985, p.126), que “O direito de todos a essa
análise deve ser reconhecido na ação a fim de denunciar a pseudo-objetividade do
erudito em ciências humanas que, indiferente ao trabalho dos outros, entra na sua
torre de marfim”.
Com Ardoino (apud BARBIER, 1985), compartilhamos dessa possibilidade de, como
pesquisadora, podermos construir juntos e intervir a partir de demandas desveladas,
descobertas ou mesmo “produzidas” no coletivo, nos processos latentes ou
manifestos das instituições (sejam quais forem elas). O autor assim escreve:
A indiferença com que cada um considera o trabalho do outro é chocante num mundo onde o pesquisador, o especialista ou o escritor deveriam estar junto com o homem de ação, ou seja, com o militante. Pois uma reforma não pode ser promovida apenas de fora, no patamar das superestruturas e dos decretos institucionais, se não for também feita de dentro, pelas aspirações daqueles que afinal vão efetuá-las (apud BARBIER, 1985, p.126).
94
5 CAMINHO INVESTIGATIVO: CONTEXTUALIZANDO NOSSAS ESCOLHAS
Na informalidade dos diálogos que se travam no cotidiano da escola, um importante
desafio se insurge quando se fala em gestão da aprendizagem, levando-se em conta
as diferenças e a diversidade presentes no alunado.
Considerando que o que se apreende nesses diálogos representa muito mais do que
simplesmente a expressão da dificuldade rotineira e cotidiana no agir docente de
professores, assumimos o desafio de propor ao grupo pesquisado trilhar conosco um
processo de investigação e análises de suas práticas, tomando, sobretudo, seus
saberes-fazeres, em suas ações instituídas e instituintes no contexto da escola.
A construção conjunta de possíveis respostas às dificuldades e desafios, na gestão da
aprendizagem para todos os alunos, pareceu encantar os profissionais da escola,
revelando-se desde já vontade e disposição em integrar um grupo de análise e
discussões que, mais adiante, neste texto, explicitaremos melhor.
Nesse processo de discussão, nossa função, como pesquisadora, seria a de estar
muito mais como mediadora e catalisadora do que como formadora, ou seja, não
estaríamos como aquela que aponta o que é certo ou errado.
Acreditamos que esse processo relacional entre pesquisadora e sujeitos da pesquisa
(aqui considerando os profissionais), deve levar em conta, como nos diz Jesus (2002,
p. 19), “[...] os educadores com suas dificuldades, resistências e avanços”.
Tal atitude, considerada pela autora, converge plenamente com o que desejamos e
vimos realizando no nosso fazer cotidiano como profissional e, nesse sentido,
conforme o leitor vá caminhando conosco em nossas reflexões, perceberá o reflexo
dessa profissional pesquisadora, pelas dinâmicas utilizadas, pela forma que
escrevemos e analisamos ou pelas “leituras” que realizamos em nosso processo de
investigação.
Assim, o desenho que traçamos acerca de nossa metodologia é a expressão do que
esta nos possibilitou, pois os aportes teórico-metodológicos com os quais
trabalhamos, especialmente a pesquisa-ação institucional em Barbier (1985), situam o
investigador como aquele sujeito que está “vivo”, que sente, se ressente e intervém,
95
sem nenhum temor. Desse modo, foi possível “ultrapassarmos”, em vários momentos
de nossa investigação, os limites de distância do objeto estudado.
Assinalamos que o percurso teórico metodológico escolhido por nós foi o que nos
permitiu livre expressão de nossos sujeitos em estudo e foi também o que nos deu
condições de considerar plausíveis suas solicitações de intervenção-ação, assim
como nos deu liberdade de assumir nossa dupla condição, ou seja, a de profissional e
a de pesquisadora de nossa prática.
Ressaltamos que os desafios e “impossibilidades” que o grupo de profissionais da
escola pesquisada apontavam eram por nós conhecidos, em função de nossa atuação
profissional, anterior e durante o processo de investigação, e que, nesse processo,
éramos, de certa forma, participante. 26 Foi assim, e deste lugar, que nos constituímos
e transitamos, cotidianamente, como profissional e pesquisadora simultaneamente.
Como pesquisadora de nossa própria prática coletiva, uma interrogação nos
perseguia: é possível assumir, concomitantemente, o duplo papel de pesquisadora e
profissional em um processo de investigação? Como percorrer esse caminho sem
perder o rigor científico “exigido” em um trabalho como este?
No entanto, sem nos deixar sucumbir ante as barreiras epistemológicas e acreditando
na possibilidade de assim nos constituirmos, consideramos, além da proposta de
pesquisa-ação, assumindo-a, como nos diz Barbier, como um modelo aberto de
pesquisa-ação, a centralidade do que dispõe o conceito de multirreferencialidade,
segundo Jacques Ardoino (1998).
De acordo com Barbosa (1998), a contribuição dada aos pesquisadores pela
multirreferencialidade, como método de análise e de leitura aplicado a situações
relacionais, decorre por essa ser uma “[...] abordagem não fechada em si, mas aberta
à complexidade da realidade e à interioridade significante do sujeito observador”
(BARBOSA, 1998, p. 11).
Sendo a realidade escolar uma realidade complexa, em seus fenômenos e ações,
acreditamos haver coerência na utilização do conceito de multirreferencialidade.
26 Dizemos que é de certa forma, pois nossa relação profissional com a escola estava circunscrita ao trabalho de assessoria quanto às questões relacionadas com a Educação Especial. Sendo assim, nossas visitas aconteciam ora semanais, ora quinzenais.
96
Apreciamos, também, conforme diz Menenguci (2005), a complexidade, de maneira
que seja possível a busca por abordagens teórico-metodológicas que permitam
expressar complexidades.
Constatar a complexidade não basta, uma vez que já sabemos dela e/ou convivemos
com ela. O importante, sobretudo a nós, pesquisadores, é como faremos para
mergulhar.
De acordo com Mello (2003, p. 83),
É necessário pôr em discussão metodologias e teorias do cotidiano num movimento coerente de superar dualidades características da ciência moderna, como teoria-prática, e forma-conteúdo. Construir a ciência do complexo, do fluido, do irrepetível, do incerto, do diferente, vem sendo um desafio para todos os que crêem que historicamente, e a partir dos parâmetros da ciência moderna, as formas com aprendemos a pensar, para pensar, excluem.
Nesse sentido, o desejo de superar os métodos de pesquisa próprios das diferentes
ciências, e que não raro são adotados com fidelidade nas pesquisas em educação,
assim como superar o “beco sem saída” do ecletismo ou da descrição simplificada da
prática educativa, como pontua Barbosa (1998), nos fez empreender um caminhar e
um olhar numa direção multirreferencial, que a nós significou a possibilidade de
apreender e analisar a complexidade do ato educativo, levando em conta tanto a
dimensão prática, quanto a teórica, no agir dos profissionais pesquisados.
Lembramos ao leitor que, para assegurar a ruptura epistemológica necessária na
relação entre sujeito observador e objeto observado, nos ancoramos tanto nos
pressupostos da pesquisa-ação institucional quanto nos da abordagem
multirreferencial, como principais suportes teóricos de nossa escolha metodológica.
A ruptura a qual nos referimos acima se deu não na perspectiva de nossa negação
como observadora, mas na perspectiva do reconhecimento de nossa implicação com
o objeto “desvendado”.
A pluralidade de olhares e de esclarecimentos que supõe, por sua vez, diferentes
linguagens descritivas e interpretativas nos é dada pela abordagem multirreferencial.
Esta, segundo Barbosa (1998), representa um esforço de se pensar a educação de
97
forma a quebrar o imobilismo teórico na direção da autonomia pessoal e social dos
envolvidos em um processo de investigação.
5.1 ANÁLISE INTERNA E NOVA PESQUISA-AÇÃO
Tendo em vista que a centralidade de nosso estudo foi um grupo de educadores, e
isso nos remete à microssociologia, trazemos de Blackledge e Hunt (1985, apud
LAPASSADE, 2005, p. 23), alguns princípios básicos da microssociologia
interacionista, dentre os quais destacaremos dois, por evidenciarem pertinência com
as questões por nós investigadas: O levar em conta as atividades cotidianas e as
interações.
O primeiro, considera o que os professores, os alunos e a equipe técnica fazem no
dia-a-dia, para assim compreendermos alguma coisa acerca de seus saberes-fazeres,
ou sobre a educação como um todo. O segundo, considera as interações de cada um
com os outros e, nesse processo de significação de nossas ações,
conseqüentemente, significaremos as ações daqueles que nos cercam.
Considerando a importância dos princípios acima, acreditamos que, pelo processo da
análise interna e da nova pesquisa-ação, as ações neles contidas poderiam vir a se
potencializar nos fazeres do grupo.
Sendo assim, verificamos que, a partir da década de 80, alguns debates na
Universidade de Paris VIII, sobre a descrição de uma prática social a partir de seu
interior, na abordagem “pesquisadores-práticos”, disparam reflexões sobre a análise
interna e o início da elaboração de uma metodologia que se aproximava da nova
pesquisa-ação inglesa, que tem em Carr e Kemmis grande sustentabilidade teórica.
A corrente autogestionária presente na Análise Institucional, por meio dos dispositivos
de grupos, é retomada pela idéia da análise interna, concebendo como desnecessário
o especialista, sendo este um eventual recurso para o grupo. Ao potencializar os
integrantes, participantes de uma pesquisa, que vivem cotidianamente seus conflitos,
tensões e desafios, especialmente no que diz respeito à gestão da aprendizagem e do
conhecimento na escola, que é aberta a todos, o trabalho com o grupo encontra
sentido no dispositivo da análise interna, quando este acena para a possibilidade de
98
transformar os atores do contexto analisado/pesquisado em socioanalistas na prática
e no cotidiano.
A idéia de tomar o especialista como eventual recurso, considerando-o até como
desnecessário, chama-nos a atenção para que este especialista, o pesquisador, não
seja visto como o detentor de saberes e práticas, centrando nele as soluções, mas sim
como aquele que é mediador de discussões, e que se oferece como um elemento
facilitador entre os desafios postos e desvelados.
A capacidade de analisar e de se constituir como autogestores de suas práticas
pedagógicas não pode estar atrelada à presença constante de especialistas, de
detentores de um certo saber, e não exclui, necessariamente, em alguns momentos, a
colaboração desses especialistas (entendido aqui o pesquisador).
Importante também é considerar que as questões aqui colocadas, em relação aos
desafios da inclusão escolar, assim como os movimentos instituintes de
ressignificação e transformação de práticas educativas, em favor dessa inclusão,
constituem-se em determinantes reais e favoráveis de construção coletiva da
capacidade de análise e autogestão escolar.
Hoje, parece que não é mais necessário esperar momentos históricos extraordinários para constatar a capacidade coletiva de analisar o social que está sendo constituído. Tampouco é preciso esperar o apocalipse de um instituinte excepcional, para observar a atividade instituinte que também existe, e para começar, na vida ordinária (LAPASSADE, 2005, p. 59).
Os procedimentos analíticos que realizamos nesta pesquisa convergiram para a
potencialização/formação desse profissional que, a despeito da presença do
pesquisador/analisador, continuará desenvolvendo suas funções na escola.
A Análise Institucional, preocupada essencialmente ─ pois é a base de seu paradigma
─ com a relação entre o instituído e o instituinte, traz, de acordo com Lapassade
(2005, p. 66), “[...] um novo e importante esclarecimento quando evidencia uma
dimensão institucional escondida, mas presente, na situação analisada”.
Sendo assim, a “nova pesquisa-ação” de que fala Lapassade pareceu-nos uma via de
continuidade dos processos analíticos que vivenciamos por meio da abordagem
institucional na escola.
99
Como analisadores internos de seu estabelecimento escolar e de suas práticas na
sala de aula, os profissionais acabam por deixar de ser apenas professor/professora
de uma determinada classe e passam a ser pesquisadores de sua própria prática.
Sobre o conceito de prática, Lapassade (2005) traz de Carr e Kemmis aquela prática
que designa uma ação informada e implicada. Segundo ele, os autores Carr e Kemmis
(1983) tomam a noção de práxis 27 como algo que é preciso compreender dentro de
seu contexto histórico e que é uma ação informada por uma “teoria prática” e que, por
sua vez, informa e transforma essa teoria numa relação dialética. Nesse sentido,
práxis designa ações associadas a estratégias, em resposta a um problema levantado
concretamente, em situações nas quais o autor está envolvido. De acordo com
Lapassade (2005, p. 106):
O conhecimento, assim adquirido, está em constante relação dialética com a prática. Ele é processo cooperativo ou coletivo de reconstrução interna de um grupo de pesquisadores praticantes. O ponto crucial é que somente o prático pode ter acesso às perspectivas que informam uma ação particular enquanto práxis e, conseqüentemente, a práxis pode ser estudada apenas pelo próprio ator social.
A relação lógica e fundamental nos preceitos da Análise Institucional, análise interna e
pesquisa-ação institucional, associada à possibilidade do “olhar” plural da abordagem
multirreferencial, significou, para nós e para o grupo, uma lógica que compreende que
os problemas práticos e/ou fenômenos educacionais (neste caso, os processos de
inclusão e gestão da aprendizagem na diversidade) são problemas/questões cuja
“solução”e/ou compreensão, poderão ser encontrados, a partir do desejo e vontade de
fazer mais e melhor.
O trabalho educativo que prima pela inovação e pela busca de novos significados e
compreensão para os reais sentidos de ensinar, de aprender e para as relações que
há entre o desenvolvimento e a aprendizagem, se inscreve como um trabalho que se
efetiva para a qualidade do ensino como um todo. Desse modo, as pessoas que
empreendem o trabalho educativo revêem seus papéis, suas posturas e práticas para
todos os alunos da escola e não somente para os alunos com deficiência.
27 Segundo Lapassade (2005), a noção que Carr e Kemmis (1983) utilizam para práxis é em referência à noção marxiana tal qual é elaborada por J. Habermas, referência teórica fundamental para esses autores.
100
Essa perspectiva se amplia para uma educação total e global, que acredita não haver
saberes especializados, metodologias e práticas diferentes (e sim diversificadas),
muito menos em fórmulas especiais, que dêem conta de educar o diferente.
Seguramente, essas práticas decorrem de uma formação continuada do professor e
da crença numa instituição que pensa a si própria e no sentido de sua existência.
• Nova pesquisa-ação e a pesquisa-ação institucional
A nova pesquisa-ação de Lapassade (2005) se apresenta de forma complementar à
pesquisa ação institucional de Barbier (1985), pois é uma proposta metodológica que
intenta, de maneira explícita, promover mudanças necessárias e desejadas nos
contextos estudados e pesquisados, considerando, essencialmente, a prática.
Nessa intenção e promoção de mudanças, está contida um dos principais objetivos da
pesquisa-ação institucional, que é o questionamento fundamental das estruturas
sociais estabelecidas.
Por meio da análise de suas práticas, os atores sociais, considerando aqui os
professores, tornam-se pesquisadores práticos. Lapassade, especificando sua
intenção, baseado em Carr e Kemmis, anuncia que o sentido da prática só pode ser
estabelecido no seu contexto prático em que:
Somente o prático tem acesso às implicações e às teorias práticas que informam a (sua) práxis; só o prático pode estudar a (sua) práxis. A pesquisa-ação, enquanto ciência da práxis, será então uma pesquisa interna na prática singular do praticante (CARR; KEMMIS, 1986, apud LAPASSADE, 2005, p. 106-107).
É importante ressaltar que, na “nova pesquisa-ação”, ao contrário da pesquisa-ação
clássica, são os profissionais da prática que se tornam pesquisadores e conduzem
sua pesquisa desde dentro, fazendo assim, a análise interna de sua prática
(BOUMARD, 1989, apud, LAPASSADE, 2005, p. 105). Sobre a pesquisa-ação
institucional, Barbier (1985, p. 156), diz ser esta:
Um tipo particular de pesquisa-ação cujo objeto refere-se ao campo institucional no qual gravita o grupo em questão. Trata-se de desconstruir, através de um método analítico, a rede de significações das quais a instituição é portadora enquanto célula simbólica
101
Pressupõe-se, pela pesquisa-ação institucional, uma abordagem voltada para os
fatores psíquicos e emocionais, com a finalidade de captar os fenômenos
psicossociais presentes no grupo e na instituição. Portanto, caracteriza-se por se
constituir numa abordagem bem mais sociopolítica. Considerando esses fatores num
processo de pesquisa-ação institucional, Ardoino diz:
É a consideração das estruturas de organização social [...], e a análise das linhas de força do campo institucional que vão mostrar as novas formas, cada vez mais epifenomênicas, das relações humanas e do jogo intersubjetivo [...] (ARDOINO, apud BARBIER, 1985, p. 165).
Barbier (1985) apresenta-nos alguns princípios da pesquisa-ação institucional, dentre
os quais destacamos:
a) a pesquisa-ação institucional tem por objeto o conhecimento preciso e
esclarecido da práxis institucional do grupo, dando a possibilidade de
saber mais e de poder agir melhor sobre a realidade;
b) uma relação dialética entre o grupo (pesquisador coletivo) e o objeto de
sua pesquisa é necessária, assim como o esclarecimento da sua rede de
implicações;
c) a pesquisa está subordinada à práxis do grupo, pesquisador coletivo na
instituição;
d) o material simbólico ou prático, tal como os fenômenos marginais
(geralmente rejeitados pela academia positivista) é considerado de modo
privilegiado na pesquisa-ação institucional.
Registramos que o processo de pesquisa-ação institucional, assim como a idéia da
nova pesquisa-ação, permitiu-nos refletir sobre os currículos praticados e vivenciados
com e pelos alunos com NEE, assim como agir conjuntamente com os profissionais da
escola na ressiginificação de práticas educativas para um maior e melhor
desenvolvimento desses alunos.
Metodologicamente, a pesquisa-ação é a que mais favorece tais ações e/ou atitudes
e, particularmente, no meio educativo, esta deverá satisfazer às seguintes exigências,
segundo Carr e Kemmis (1986, apud LAPASSADE, 2005, p. 107):
102
a) romper com as concepções positivistas da “racionalidade”, da
“objetividade” e da “verdade”;
b) empregar as categorias interpretativas dos docentes e de outros
participantes do processo educativo;
c) procurar os meios de distinguir as idéias e as interpretações que são
sistematicamente deformadas pela ideologia das que não os são;
mostrar como a distorção de suas próprias idéias pode ser superada;
d) esforçar-se por identificar o que, na ordem social existente, bloqueia a
mudança racional e seja capaz de propor interpretações teóricas das
situações que permitam os participantes do processo educativo
superarem tais bloqueios;
e) fundamentar-se no reconhecimento explícito de que ela é prática, e a
questão de sua verdade será resolvida pela prática.
• O cenário de investigação: procurando desvelar o contexto
No ano anterior a esta pesquisa, fomos convidada a estar com esse mesmo grupo,
com o qual realizamos esse processo de investigação, exceto dois ou três
profissionais, para que discutíssemos com eles acerca da temática: “Escola inclusiva:
desafios e possibilidades”. 28
Durante três encontros de uma hora e meia cada um, realizamos uma tentativa de
desvendamento de quais eram na realidade os desafios que se insurgiam em suas
tarefas de ensinar na diversidade. Entre discussões, dúvidas e “certezas” iniciais,
propusemos ao grupo o estudo de um texto de Isabel Alarcão (2003) que versa sobre
a escola e o professor reflexivos, como possibilidade de antecipar-lhes as ferramentas
necessárias para a busca e a efetivação de novas práticas educativas, mediante uma
“leitura” reflexiva de suas práticas.
Após as primeiras discussões, sistematizamos, por meio de questionários semi-
abertos, as respostas do grupo. As questões tinham relação com os saberes-fazeres
instituídos e os “necessários” a fim de assegurar o ensino de qualidade a todos os
alunos da escola, inclusive aos alunos com necessidades educacionais especiais. As
28 Esses encontros foram realizados por ocasião da reestruturação do Projeto-Político-Pedagógico da escola.
103
respostas do referido questionário foram apresentadas em slides, para as discussões
finais.
Numa análise geral acerca do que trouxeram os profissionais, consideramos que as
dificuldades e os desafios apontados por eles eram atribuídos, em grande medida, à
ausência de estudos e discussões na formação inicial sobre práticas pedagógicas que
levassem em conta a realidade educacional, tal como ela se constitui em seu
contexto, assim como a insuficiência e/ou incipiência dos programas de formação
continuada propostos pelo sistema de ensino.
Assim, tínhamos conosco que os professores não fazem, não porque não querem
fazer, mas porque não sabem, ou porque se vêem “impotentes e incompetentes” ante
a necessidade de ressignificarem os “saberes” recebidos ou aprendidos em sua
formação.
Posto isso, soma-se, ainda, que na visão de muitos professores, a estrutura
organizacional-pedagógica na qual a unidade escolar se vê submetida, não oferece
condições e/ou situações de autonomia para a construção de uma escola mais
inclusiva. Alegam, com isso, a ausência de maiores apoios, como os de estagiários,
recursos materiais, além de contarem com número elevado de alunos na sala de aula.
Percebemos, mesmo que tal consideração seja extremante pertinente, que ainda
perpassa a idéia de transferência de responsabilidades ou apontamento de culpados.
As resistências, nas circunstâncias e condições em que se deram, comunicaram-nos
algo que precisava ser esclarecido melhor, impulsionando-nos, inclusive, para o
presente estudo e investigação, pois essas resistências se configuravam, além das
explicitadas, da seguinte maneira:
primeiro: ou consideravam não serem detentores de saberes que lhes
possibilitassem investir no desenvolvimento de alunos com NEE incluídos na sala de
aula regular; segundo: ou imaginavam haver um especialismo no trabalho educativo
com eles. Assim, mantinham uma baixa expectativa de aprendizagem em relação a
esses sujeitos por conta de suas deficiências; terceiro: ou denunciavam que a escola,
em sua organização funcional-pedagógica, não favorece a real inclusão dessas
pessoas, impedindo-as de fazerem mais por esses alunos.
104
O que observamos, em última instância, era um processo contínuo de culpabilização e
transferência de responsabilidades pela maioria dos educadores.
Esses elementos, entretanto, foram tomados como aspectos fundamentais em nosso
processo de pesquisa para se descobrir, exatamente, junto a esses educadores, quais
dispositivos e propostas pedagógicas, em nível de sala de aula e da escola como um
todo, podiam melhor acolher e valorizar as diferenças, uma vez que acreditávamos ser
necessário ouvir e entender algumas lógicas do discurso da “impotência” dos
professores.
Esse caminho, na verdade, se constituiu em estratégia de potenciamento de seus
saberes-fazeres, como condição essencial de fazer emergir as possibilidades
“invisíveis”, presentes na ação, tanto do professor quanto do aluno, nos respectivos
processos de ensinar e aprender, ou vice-versa, considerando que nem sempre é
somente o professor que ensina.
Assim, descrevemos para o leitor o que já “conhecíamos” desse contexto, tendo,
então, pistas e indícios que nos convidavam a caminhar juntos, numa perspectiva
teórico-metodológica, que nos permitisse as trocas, os erros, as paradas, os retornos,
as continuidades e descontinuidades, entre outras condições naturais entre sujeitos
que se fazem e se refazem no coletivo.
• Processo de coleta de dados: alguns eixos orientadores
Embora tenhamos realizado nossa investigação, sem nos ater rigidamente em uma
determinada ordem espaço-temporal, pensamos ser importante apresentar
didaticamente alguns eixos que nos orientaram nesse processo de coleta de dados.
Antes, porém, queremos registrar que permanecemos na escola no período agosto de
2005 a abril de 2006.
Nesse contexto, nossa perspectiva de trabalho centrou-se no cotidiano da escola,
compreendendo todos os espaços-tempos oferecidos aos alunos, assim como os
dedicados aos profissionais, ou seja, reuniões administrativas, pedagógicas, grupos
de estudo, conselhos de classe, momentos informais (comemorações sociais,
105
descanso na sala de professores), etc. Os sujeitos envolvidos no estudo foram os
seguintes (Tabela 1):
Tabela 1 – Sujeitos da pesquisa e forma de envolvimento
TIPO DE ENVOLVIMENTO
NÚMERO
SUJEITOS
Somente por entrevistas
13
10 alunos (sem NEE)
3 pais
Somente por questionários
2
2 pais
Participação no Grupo de Diagnóstico e
r respondentes de questionários ou entrevistas
25
1 diretora
2 pedagogas
2 coordenadoras
de turno
18 professores
3 estagiários
Focos principais de análises e discussões (05
participantes por entrevista)
6
6 alunos (com NEE)
SUJEITOS ENVOLVIDOS NA PESQUISA
46
106
Sendo assim, teceremos algumas considerações acerca dos eixos que nos
conduziram neste processo, como anunciado, assim como também apresentaremos
os momentos nos quais estabelecemos nossa relação como pesquisadora.
Eixo 1: A consideração de uma professora que disse que se sentia muito à vontade
em ter sua prática “investigada” formalmente por esta pesquisadora, uma vez que ela
nos considerava como “de dentro”. Segundo ela, de nós receberia com mais
tranqüilidade qualquer observação, o que não seria a mesma coisa com uma pessoa
“estranha”. A condição de pessoa implicada emergia desde já. Era preciso, portanto,
considerar os pontos de positividade que essa condição nos legava.
Eixo 2: Uma situação expressa por um professor. Em sua visão, deveríamos
considerar como sujeitos da pesquisa não somente os alunos com NEE por
deficiência, mas todos os sujeitos que oferecessem qualquer tipo de desafio ao
trabalho pedagógico na escola. Segundo ele, as dificuldades da maioria dos
profissionais não estariam somente em lidar com as diferenças explicitadas pelas
deficiências, mas sob outras configurações, ou seja, eram desafiantes todos aqueles
que não se “encaixavam” naquilo que era esperado e pretendido para eles.
Eixo 3: A expectativa e a disposição das pessoas em fazer parte do processo de
investigação, expressando suas opiniões e desejos acerca da formatação de alguns
detalhes, principalmente na constituição do grupo de discussão.
Eixo 4: A organização na qual já se encontrava o grupo, em um processo, que
denominamos aqui de autoformação. 29 Pela forma como este nasceu, e por todos os
seus desdobramentos, esse processo veio a se constituir para nós em um dispositivo
“desvelador” dos desejos, dos sentimentos, das angústias, da vontade de mudar e dos
questionamentos endereçados às suas práticas, à instituição escola, ao sistema e à
sociedade, entre outros. Esses momentos foram significativos, pois nos trouxeram
algumas pistas e indícios para nossas análises posteriores acerca dos fazeres do
grupo, no trabalho pedagógico, diante do desafio de ensinar, considerando a
diversidade e a diferença do alunado.
29 Esse processo será analisado em um outro momento neste texto.
107
Eixo 5: A dinâmica escolhida por nós para trazer para o grupo de discussão e análise,
as crenças e as representações que tinham os profissionais sobre várias questões
relacionadas com a gestão da aprendizagem dos alunos da escola.
Eixo 6: O respeito aos ritmos de cada professor, a valorização da produção e
invenção nos modos de ensinar e gerir a aprendizagem de seus alunos, assim como a
liberdade e a confiança sentidas pelos profissionais da escola em relação a nós,
durante todo o processo de investigação.
Os eixos citados tanto marcaram e delinearam nosso percurso durante o processo de
pesquisa, assinalando o tom que esta ia assumindo, como foram se constituindo em
orientadores, não no sentido de delimitação, para o processo de análise de todos os
dados coletados durante os quase oito meses em que estivemos na escola.
Sobre o grupo de discussão e análise, percebemos que tal dispositivo se tornou o eixo
central de nossas considerações, pois, de certa forma, tal dinâmica fez com que os
profissionais refletissem e agissem simultaneamente, de acordo com seus discursos.
Na apresentação e análises desses momentos, veremos que em grande medida suas
reflexões e ações eram quase sempre perspectivadas, ainda que considerando os
desafios, para possibilidades e desejos de fazer melhor aquilo que faziam.
Um destaque especial, nesse processo, é dado por nós à presença da diretora da
escola, como verdadeira animadora e mobilizadora de “seus profissionais”,
evidenciando liderança de uma equipe que trabalha cooperativa e eficientemente.
Cremos, portanto, que, em grande medida, o sucesso de uma escola inclusiva reside
no compromisso e na responsabilidade de seu gestor, expressos pela vontade política
de promover mudanças com a construção de novas formas de relacionamento no
contexto educacional, considerando, sobretudo, o potencial e interesse dos alunos,
assim como de seus professores.
Desse modo, acreditamos que
A direção de uma escola precisa ser dinâmica, comprometida e motivadora para a participação de todos os atores sociais. Ela necessita saber delegar poderes e estimular a autonomia, valorizando a atuação e a produção de cada um. Ela precisa ser
108
uma figura presente, ponto de referência da personalidade e missão da escola (BRASIL, 2004, p.13).
Para nós, foi extremamente relevante e, por que não dizer, fácil, esse modo de ser e
estar da diretora da escola. Poderíamos, então, afirmar que nosso “trânsito” na escola
estava respaldado, apoiado e, em muitas situações, facilitado pela cumplicidade de
interesses, ou seja, os de conhecer, promover mudanças, etc.
• Recursos, técnicas e dispositivos na coleta dos dados
Dentre as várias formas possíveis de coleta de dados em um processo de
investigação-ação como o presente trabalho, registramos a seguir as que foram
utilizadas por nós:
1º - Observação e participação direta e indireta nos cotidianos da escola, com
registros sistemáticos em um diário de bordo, em momentos como: salas de aula,
recreio, reuniões individuais e coletivas com pais dos alunos, planejamentos entre
pedagogas e professores, momentos de conversas/orientações disciplinares e
pedagógicas, entre coordenadores de turno, pedagogas e diretora com alunos, grupos
de estudos, conselhos de classe, festividades, hora do café, etc. Entre observações e
intervenções diretamente na sala de aula, pudemos contabilizar um total de 59
momentos.
2º - Entrevistas do tipo semi-estruturadas com profissionais da escola, alunos e pais
de alunos, acerca das representações que trazem quanto às expectativas que
mantêm sobre a inclusão dos alunos com NEE. Realizamos entrevistas com dez
profissionais, dezesseis alunos e três pais. Pela inviabilidade de entrevistar todos os
sujeitos, aplicamos ainda um questionário a quinze profissionais e dois pais.
Com relação ao uso da entrevista, queremos considerar que, apesar de aqui
relacioná-la como um procedimento de coleta de dados, vemos esse recurso muito
mais do que isso, ou seja, nela se estabelece uma possibilidade de interação entre
pesquisador e sujeito entrevistado, que supera a simplicidade da entrevista, vista
apenas como técnica. Autores, como Manzini (1989), Manzini (2005) e Dias e Omote
(1995), a concebem nessa perspectiva.
109
Como exemplo, temos o que pontua Manzini: “[...] entrevistar significa envolver-se em
processo de interação, significa interagir [...]. Desta forma, a entrevista pressupõe a
existência de pessoas e a possibilidade de interação social” (MANZINI, 2005, apud
MANZINI, 1989, p.150).
Numa perspectiva fenomenológica, a entrevista é também considerada por Gomes
(1997) como uma possibilidade que ultrapassa a condição de técnica simplesmente,
pois serve como um veículo de comunicação. Vejamos suas considerações:
A entrevista é organizada em torno de um roteiro direcionado para certos temas, mas aberto para ambigüidades. A entrevista explora o mundo vivido do entrevistado, definido como experiência consciente, e está à procura do sentido que este mundo vivido tem para o entrevistado. Neste processo, a consciência do entrevistador, como expressa no roteiro da entrevista, modifica-se, amplia-se, atualiza-se na interação com o entrevistado. O movimento corretivo é possível pela reversibilidade das percepções e expressões do entrevistador e do entrevistado. O entrevistador deixa-se conduzir pela expressão do entrevistado e oferece suas percepções, reduzidas na expressão, para ser, especificadas pelo entrevistado [...] (GOMES, 1997, p. 320, apud MANZINI, 2005, p. 370).
Salientamos desse modo, que essas foram as concepções que nos guiaram quando
entrevistamos os sujeitos acima mencionados.
3º - Constituição, a partir do terceiro mês em já estávamos na escola, de um grupo,
denominado de Grupo de Diagnóstico, 30 no qual, por meio de técnicas e vivências
diversificadas, foram trazidas, para discussão e análise, as observações e os
acompanhamentos realizados, tendo como referência principal as práticas
pedagógicas e suas inter-relações com os processos de ensinar e aprender na
perspectiva da coletividade da classe, assim como os aspectos da ambiência escolar
no contexto de inclusão. Os elementos pertinentes aos processos que se referem à
gestão da aprendizagem, contidos nas entrevistas, foram, por meio de dinâmicas
próprias, também trazidos para o grupo.
4º - Participação em alguns planejamentos, por área de conhecimento (5ª a 8ª séries)
que aconteciam quinzenalmente, e por séries (1ª a 4ª séries), semanalmente. Nossas
participações nesses planejamentos tinham, como objetivo, o apoio pedagógico e
reflexivo diante das escolhas e opções didático-metodológicas feitas pelos
30 Em uma nota anterior, conceituamos Grupo de Diagnóstico.
110
professores, a serem desenvolvidas em sala de aula, com vistas ao trabalho educativo
para todos os alunos da classe, considerando as necessidades e possibilidades dos
alunos com NEE inseridos nessas classes.
Em nossas intervenções nesses planejamentos, esteve presente, estrategicamente, a
intenção de desencadear um “debate” acerca das questões gerais que envolvem o
trabalho pedagógico, ou seja: escolha dos temas/conteúdos, planejamento de
atividades, recursos didáticos, metodologias e avaliação, possibilitando aos docentes
desses pequenos grupos (área/série) uma reflexão sobre as suas escolhas.
Nesses momentos, pudemos rever, conjuntamente, o sentido das pretendidas ações
docentes, convergindo-as em favor das potencialidades e necessidades que
apresentavam seus alunos com deficiência e aparentemente “sem chances” de
participar da atividade ou da proposta de estudo do dia ou da semana.
Percebemos que, à medida que os “debates” se efetivavam, em decorrência das
análises e discussões sobre os contextos observados e/ou acompanhados, nos
pequenos grupos de planejamentos ou no grupo maior, o Grupo de Diagnóstico,
parecia tornar-se evidente a alguns professores a importância de determinadas
práticas, sobretudo as que consideram o aluno como partícipe do coletivo da classe e
que ali está também para se desenvolver, como os demais, pelas situações de
aprendizagens que lhe forem oferecidas, no plano individual ou coletivo: “[...] eu sei
que é importante a gente planejar, pois quando a gente conversa, considera as
condições do menino, escolhe as atividades, os recursos, [...], o menino faz, participa,
fica feliz. Isso é inclusão de verdade!” (PROFESSORA de 5ª a 8ª série).
Consideramos, então, que as situações de intervenção possibilitaram, além da natural
e esperada contribuição que se tem do pesquisador, que alguns professores
repensassem suas ações, avaliando-as para melhor agir com seus alunos e suas
classes como um todo. Desse modo, vimos nesse processo, uma oportunidade de
formação e desenvolvimento profissional dos professores, assegurando-lhes, por meio
da análise e da reflexão de suas práticas, em seu próprio contexto de ação, a sala de
aula, a possibilidade de construção de um pesquisador prático.
111
5.2 O GRUPO DE DIAGNÓSTICO COMO SUPORTE METODOLÓGICO E AGENTE
DE FORMAÇÃO
Como citado, anteriormente, neste capítulo, constituímos como espaço e dispositivo
de formação o Grupo de Diagnóstico. Neste, várias questões foram sistematizadas por
nós, registrando que foram apreendidas nas “leituras” que realizamos em observações
e participações nos cotidianos da escola, assim como pelos “ditos” e os “não-ditos”
nas entrevistas e questionários.
De acordo com Ardoino (1971), o Grupo de Diagnóstico provém do T. Group (Training
Group), inserido numa vasta corrente de desenvolvimento da Psicossociologia
americana. O novo método de formação nas relações humanas aconteceu com o
primeiro seminário experimental de Training Group, com uma formação do tipo
“experencial”, que queria chegar a uma modificação em profundidade das atitudes.
Adaptado ao meio francês, o T. Group passou por modificações de suas formas
teóricas e técnicas diversas, sendo amplamente difundido e adotado em diferentes
organizações empresariais, especialmente nas instituições hospitalares e educativas.
Lapassade (1983) contribuiu de maneira significativa para melhor utilizar os benefícios
desse tipo de formação, descrevendo o Grupo de Diagnóstico numa perspectiva de
grupos institucionais, orientados para a Análise Institucional-AI e a autogestão.
Ardoino (1971) enfatiza o Grupo de Diagnóstico como espaço que assegura a
capacidade do que ele denomina formação em profundidade. A função do
pesquisador/formador nesse processo é, então, de ser muito mais um catalisador do
que um agente de formação, no sentido habitual do termo.
De acordo com o citado autor, o pesquisador/formador, no plano do grupo, tem as
seguintes funções:
a) catalisar as reações pessoais, interpessoais ou coletivas que constituem a
vida do grupo;
b) fazer os participantes tomarem consciência, por meio de suas
intervenções, avaliações ou interpretações, dos dados e elementos
analisados, discutidos e estudados;
112
c) marcar a posição, isto é, constituir para o grupo uma memória, assegurar
a função histórica, ligar sintomas, fatos que, de outra maneira,
permaneceriam esparsos e insignificantes, ou seja, ele deverá estar atento
e convidar o grupo a realizar esse exercício de atenção às pistas e
indícios que porventura se fizerem possíveis de rastrear.
O grupo em formação torna-se o suporte principal, a fonte da formação e a fonte
privilegiada do conhecimento, promovendo, desse modo, mudança de atitudes,
crenças e, por conseguinte, de práticas. Esse processo é a “formação em
profundidade”.
A abordagem institucional que, neste estudo, toma como dispositivo o Grupo de
Diagnóstico se apresenta nessa perspectiva como um suporte e um fomentador dos
processos de formação, ações essas que não poderão estar isoladas das demais
atividades do cotidiano.
Essa formação não poderá tomar seu lugar na instituição escolar, senão quando uma
larga reflexão trouxer uma resposta clara ao “porquê” desta. Aqui vale a ressalva do
pensamento do autor em relação ao diagnóstico como algo que se constrói durante
todo um processo de intervenção, melhor dizendo, o G.D. não é pensado como aquele
que vai apontar uma situação particular num único momento, determinando
prognósticos mais positivos ou negativos. Ao contrário, pressupõe-se que o
diagnóstico se faça durante todo o tempo de trabalho, pois, a cada movimento grupal,
uma nova configuração se apresenta e precisa ser captada.
Podemos aqui dizer de nossa satisfação por descobrir que os fundamentos teórico-
metodológicos do Grupo de Diagnóstico se alinhavaram com as intenções e desejos
iniciais de nossa proposta de pesquisa. No início da apresentação deste trabalho,
escrevemos sobre isso.
Ao “deslocar” os educadores para o espaço constituído como Grupo de Diagnóstico
como “ajuntamento” de pessoas/profissionais, ficou evidente para eles a idéia de que
esse grupo não era somente o fruto de uma tensão entre os perigos, os desafios e os
problemas comuns existentes em seus fazeres. Quando constituído, o grupo foi
trabalhado dialeticamente para entender e “resolver” suas contradições.
113
Pudemos perceber, assim, o potenciamento e/ou repotenciamento de seus discursos,
que pouco a pouco podiam ser sentidos e vistos de maneira mais concreta nas
práticas de seus fazeres cotidianos.
A formação, como resposta às necessidades desse contexto escolar, correspondeu a
estratégias que visam precisamente a atingir objetivos. Nesse sentido, em frente às
principais questões discutidas pelo grupo, tínhamos, permeados, por essas
discussões, os seguintes objetivos de um processo de formação em contexto:
a) conhecer fundamentalmente as bases legais, sociopolíticas e filosóficas da
inclusão;
b) compreender e estabelecer relações entre as profundas mudanças
ocorridas nos campos sociais, político, econômico e cultural de toda a
sociedade mundial e brasileira com as práticas administrativo-pedagógicas
até então instituídas;
c) justificar e dar sustentabilidade teórica às práticas pedagógicas instituídas
ou instituintes;
d) possibilitar o desenrolar de discussões, relatos de experiências, desabafos
acerca do que pensam, das angústias, frustrações e também de alegrias, e
das descobertas, sendo possível a mediação por parte da pesquisadora.
Na dialética desenvolvida e vivenciada no Grupo de Diagnóstico em torno das
questões trazidas, foi possibilitado ao grupo retocar suas estruturas, diferenciando
papéis, distribuindo tarefas, revisando seus projetos, reavaliando seus objetivos,
definindo novos percursos e experenciando, por fim, um modelo de auto-regulação, na
prática de uma escola para todos e que, portanto, é inclusiva.
A possibilidade, dada pelo olhar multirreferencial, com o qual éramos continuamente
“convidados” e levados a buscar referências na Psicologia, na Sociologia, assim como
nos elementos históricos da constituição da escola, para melhor compreensão acerca
do que discutíamos, foi em grande medida uma “solução” encontrada pelos
profissionais, em várias situações vividas no Grupo de Diagnóstico.
114
6 MERGULHO NAS/SOBRE (VIVÊNCIAS) DO GRUPO DA ESCOLA
Pretendemos, neste capítulo, compartilhar com o leitor dois diferentes e importantes
momentos, vivenciados com o grupo da escola Prisma. Por uma questão didática, nos
antecipamos com uma breve explicação sobre cada um deles:
1º momento – será aqui denominado por processo de autoformação. Cumpre
ressaltar, que, quando iniciamos o presente estudo e investigação na escola Prisma, o
grupo encontrava-se já envolvido nesse processo. Nossa participação nesse grupo
nos possibilitou uma visibilidade e um maior conhecimento acerca dos sujeitos nele
presentes, emanados por suas expressões de desejos, angústias, resistências e
diversos outros comportamentos.
Ressaltamos, acerca das diversas expressões dos participantes do grupo, que elas
denotavam uma leitura positiva ou negativa em frente ao processo de formação ali
instituído e também em frente às significações que a temática evocava no tocante às
suas práticas pedagógicas. Entre tantas e variadas formas, mesmo que sutis, de se
conhecer as pessoas, pouco a pouco, fomos estabelecendo algumas inter-relações
entre os discursos, ali enfaticamente proferidos, em convergência ou não com
algumas das práticas por nós observadas nos cotidianos do contexto escolar.
2º momento – será por nós denominado de Grupo de Diagnóstico (G.D.). Neste, os
sujeitos participantes tomavam a si próprios em análise, quando se referiam às suas
práticas, conceituações e representações acerca de várias questões do cotidiano, o
que, invariavelmente, conduzia o grupo a um processo de análise de toda a equipe.
Lembramos ao leitor que, no processo de discussão e reflexão, tanto do primeiro
momento, quanto do segundo, os dados coletados em observações, as cenas
apreendidas do cotidiano, entre outras “capturas” realizadas, foram se delineando e
emergindo naturalmente, dentre os “acontecimentos” e vivências do grupo. Desse
modo, o que apresentaremos como discussão e reflexão reflete aspectos e elementos
imbricados e interconectados por aquilo que observamos diretamente nas práticas, de
acordo com o que ouvimos, tanto em diálogos, como discursivamente, em ambos os
momentos.
115
Destacamos, também, que as “respostas” e/ou “soluções” apontadas pelos
participantes no Grupo de Diagnóstico se constituíram em recursos objetivos para que
pudéssemos estar tecendo, ao longo do texto, nossas tentativas de apreender e
captar os sentidos e significados que o grupo atribuía aos seus fazeres e saberes.
Acrescentamos, ainda, que o G.D. se constituiu como um campo de grande
centralidade de nosso estudo, como poderá ser observado pelo leitor.
6.1 DESCREVENDO O PROCESSO DE AUTOFORMAÇÃO: O ESTUDO SOBRE
CURRÍCULO
No intercurso das observações e acompanhamentos aos contextos do cotidiano
escolar, tivemos a oportunidade de participar do que aqui denominamos de processo
de autoformação como anunciado anteriormente. Antes de discorrer com mais
profundidade na análise desse processo, é importante descrever quais as motivações
dos profissionais da escola para a constituição desse grupo de estudos, assim como
sobre sua organização e divisão. Para tal, necessitaremos realizar um breve retorno a
alguns momentos históricos vivenciados pelo grupo.
No 2º semestre de 2004, a escola se envolveu plenamente no processo de
reformulação de seu Projeto Político-Pedagógico (P.P.P.), ação essa dinamicamente
disparada pelas pedagogas, daquele turno escolar.
Destacamos que, entre os vários e importantes temas e questões abordados, um se
revelou de grande relevância para o grupo, tendo sido apontado como um tema que
demandava alguns momentos de estudos e reflexões, pois partia da visão e do
entendimento do que aquela escola era, para todos, ainda que isso implicasse alguns
importantes desafios. Tal tema estava relacionado com a inclusão dos alunos com
necessidades educacionais especiais.
Emergia, assim, do grupo, a necessidade de melhor compreensão dos princípios
ético-filosóficos da inclusão, assim como os possíveis e esperados desdobramentos
em termos de uma melhor organização para aquele contexto escolar, no que diz
respeito tanto ao acolhimento, quanto à gestão da aprendizagem de todos os alunos,
sobretudo aqueles que apresentavam sérias implicações cognitivas. Desse modo,
alguns pontos essenciais e que justificam e asseguram de maneira contundente tal
política foram, durante quatro encontros, estudados e discutidos. Essa iniciativa,
116
associada a outras de menor impacto 31 já desenvolvidas na escola, tem assim
conduzido o grupo pesquisado à busca de alguns caminhos que respondam aos
desafios enfrentados diante da diversidade de seu alunado.
No início de 1º semestre de 2005, os profissionais da escola sinalizam o desejo de se
aprofundarem nos grupos de estudo, sobre as questões da diferença, da constituição
de identidades, sobre quais conhecimentos deveriam assegurar aos alunos, entre
outras. Em resumo, era evidente que o desejo do grupo convergia para uma reflexão
acerca do currículo e da contribuição dessa discussão para renovar a visão que se
tinha da realidade daquela escola. Decidiram, então, entre algumas opções, realizar
um estudo do livro: Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
currículo, de Tomaz Tadeu da Silva.
Registramos que a pedagoga que assumiu a escola nesse ano, ao captar esse anseio
do grupo, propôs-lhe uma dinâmica de estudos e discussões do livro, a ser
desenvolvida pelos próprios profissionais, organizando, para isso, os subgrupos de
estudos, partes do texto e estabelecendo datas de apresentação, ainda no 1º
semestre de 2005.
Nesse período, estando na condição de assessora da escola e, ao mesmo tempo
integrando um grupo de pesquisa da UFES, 32 e ainda não ciente das intenções dos
profissionais da escola, apresentamos uma proposta de ciclo de palestras sobre
educação inclusiva, 33 que, por questões do próprio projeto, só poderia ser
desenvolvido naquele semestre. Avaliando a proposta e o seu conteúdo, assim como
considerando que a organização dos estudos sobre currículo poderia se desenvolver
após o ciclo de palestra, o grupo decidiu, unanimemente, pelo ciclo de palestras.
Em julho de 2005, já concluído o ciclo de palestras, iniciamos, então, já no processo
de pesquisa, com a participação nos encontros de discussão do livro Documentos de
identidade: uma introdução às teorias do currículo.
31 Chamamos de menor impacto as atividades periódicas de assessoria prestadas pela coordenação do laboratório pedagógico e do Ensino Fundamental às questões relacionadas com a inclusão de alunos com NEE. 32 O grupo se constitui em 2003 a fim de realizar uma aproximação entre os estudos e a pesquisa, desenvolvidos na Universidade, sobre educação inclusiva em frente às práticas educativas dos profissionais de algumas escolas regulares que atuavam no Sistema de Educação do Município de Vitória. 33 Os principais objetivos do ciclo de palestras eram: refletir conceitual, histórica e filosoficamente a educação de alunos com necessidades educacionais especiais a partir do paradoxo diversidade/diferença/desigualdade e discutir acerca de práticas pedagógicas possíveis para o trabalho com a diversidade e a diferença. Os encontros aconteceram às 6ª feiras, nos momentos já reservados para reuniões e estudos do grupo.
117
Esse livro foi dividido em pequenas partes, distribuídas a grupos de três e quatro
pessoas, que eram, então, responsáveis por estudar e organizar a dinâmica de
apresentação e a discussão, para os demais colegas, semanalmente. Com tal
organização, o livro foi discutido em oito encontros, com duração de uma hora e vinte
minutos cada encontro.
Cumpre aqui registrar que participar de tais momentos foi mergulhar num espaço rico
em discursos e, sobretudo, marcados de boas intencionalidades. Esse discurso,
inevitável e perturbadoramente, remetia a elementos da prática daquele cotidiano,
uma vez que a distância entre um e outro quase inexistia, considerando que os
sujeitos que naquela sala discutiam eram os mesmos que no dia seguinte estariam
envolvidos nas práticas de suas várias funções.
Era perceptível o cuidado e esmero dos grupos na preparação do que lhes coubera
apresentar e discutir com os colegas no momento reservado ao estudo. Durante a
semana, percebamos um movimento entre os professores, trocando idéias, acertando
a metodologia e estratégias para a apresentação, entre outros detalhes.
No dia e hora predefinidos, exceto uma ou duas professoras, que às vezes se
atrasava alguns minutos, 34 ninguém chegava com atraso para os encontros. Havia
sempre uma expectativa no ar pelo conteúdo/temática em pauta ou pela oportunidade
de assistir à exposição dos colegas, situação essa pouco ou nunca vivenciada por
grande parte dos profissionais ali presentes.
Essa forma de estudos se mostrava para eles mesmos como algo novo e, sobretudo,
importante, pois se constituía em ação efetivamente surgida e gestada no e pelo
grupo, marcada essencialmente pelo desejo de aprofundamento teórico, que os
orientasse em suas práticas educativas.
Quando falamos de processos de formação, sejam estes formais, sejam
institucionalizados pelos sistemas de ensino, ou não, como é a experiência que aqui
descrevemos e analisamos, nos vêm à tona alguns pressupostos que devem ser
trazidos nesse texto. De acordo com Veiga (2006, p. 471), esses pressupostos
merecem nossa atenção, pois a formação:
34 Estas alegavam ter muito material pra guardar e se mostravam muito envolvidas com seus alunos, atendendo-os até o último minuto, inclusive seus pais, caso houvesse questões importantes a serem tratadas.
118
a) é ação contínua e progressiva que envolve várias instâncias e que valoriza de
maneira significativa a prática pedagógica. Isso não quer dizer que, ao valorizá-la
como componente formador, esteja assumindo a visão dicotômica da relação
teoria-prática;
b) é contextualizada histórica e socialmente e constitui-se como um ato político.
Deve, então, ser compatível com o contexto no qual se dá, estando
comprometida com a construção de perspectivas emergentes e emancipatórias
que se ajustem com a inclusão social;
c) implica preparar os professores para o incerto e para os processo de
mudança;
d) significa uma articulação entre formação pessoal e profissional, em que,
mesmo sendo uma “[...] auto-formação pelo estudo e reflexão individual não
deixa de ser uma forma de confronto de experiências vivenciadas por outros”
(FÁVERO, 2001, p. 67, apud VEIGA, 2006).
e) é um processo coletivo de construção docente e uma reflexão conjunta, não
estando isenta de conflitos, porém, se é partilhada, essa reflexão se torna
produtiva.
Conforme nos lembra Jesus (2005), acreditamos que o desenvolvimento pessoal,
profissional e organizacional desse grupo de profissionais, concretamente, provocou
um maior empenho em criar uma escola melhor para todos os seus alunos,
concordando com Alarcão (2003, p.45), mesmo quando aponta que, para isso “[...] é
preciso vencer inércias, é preciso vontade e persistência”.
O processo de autoformação em tela nos possibilitou confirmar, também, a grande
importância do papel da docência. Percebíamos, nos professores, uma grande
recorrência às experiências vividas dentro da sala de aula. Isso fortaleceu a idéia de
que a sala de aula ainda é o grande palco, em que estar como expectadores ou atores
significa, entre outras coisas, uma inversão de papéis, naturalmente assumidos por
professores e alunos que tratam da dimensão do conhecimento e do saber como um
processo de construção não dado, transmitido ou transferido.
119
Nesse sentido, lembramo-nos do que afirma Freire (1998, p. 25), ficando para nós
muito claro esse processo de formar-se quando se forma e vice-versa: “[...] quem se
forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma-se ao ser formado”.
Assim, os estudos e discussões realizados pelo grupo em sua totalidade, dos quais,
mais adiante, no texto, discorreremos sobre algumas partes, realizaram uma
aproximação discursiva, assim como uma aproximação a campos teóricos de uma das
questões mais desafiantes ao trabalho pedagógico, em se tratando do acolhimento a
todos na escola, que é a inclusão de alunos com necessidades educacionais
especiais.
Tal aproximação leva em consideração os desafios advindos de tentativas de
superação aos significados e determinações instituídos em relação às diferenças,
assinalados ou não pela deficiência, assim como às questões do ponto de vista
prático, relacionadas, por exemplo, com a gestão da aprendizagem.
Os discursos por nós analisados demonstram que, ao estabelecer relação e/ou
salientar a importância que têm os estudos culturais, como aquele que concebe a
cultura como espaço/campo de lutas em torno da significação social, o currículo passa
a ser tomado como a “instituição” centralmente forjada para que ele esteja na base, ou
seja, sustentando todos os movimentos presentes no cotidiano escolar.
O grupo manifestava uma consciência de que é no currículo e pelo currículo que se
viabiliza a produção de conhecimentos a todos, com múltiplos usos, significados e
sentidos, não importando os domínios conceituais prévios deste ou daquele conteúdo,
a fim de se apropriar de outros novos conhecimentos.
Nesse sentido, quando dicutiam etnia, sexualidade, diversidade, diferença e as
implicações e experiências reais de cada um ali presente, era possível,
indubitavelmente, vir à tona o aluno com deficiência e o aluno que “não se adapta” aos
moldes dessa escola, tal como está constituída, mesmo não tendo deficiência. Assim,
as representações de cada profissional acerca do currículo que temos em frente à
necessidade de sua reformulação eram frontalmente debatidas.
Observamos que o questionamento que se deve realizar aos processos institucionais
e discursivos do atual currículo, ou seja, no âmbito sistêmico, ia compondo o discurso
120
do grupo, que atrelava, inclusive, a discussão sobre a importância desse
questionamento à educação de qualidade, aos sujeitos com necessidades
educacionais especiais por deficiência, sobretudo os que estudam nessa escola.
Foi possível observar, por aqueles que se manifestavam, uma concordância e um
entendimento profundo acerca das discussões do autor e suas opiniões. Essa
concordância e entendimento foram apreendidos por nós quando das correlações
entre tais discussões e as situações reais vividas por aquele grupo, por exemplo, ao
evocar suas próprias práticas conscientes e inconscientes, 35 e associá-las ao campo
teórico analisado pelo autor, assim como em proposições em assumir um projeto de
desconstrução do atual currículo, iniciando-o na sala de aula, atingindo, como se fosse
em forma de espiral, outros níveis do sistema.
Em suas manifestações, os professores expressam de forma refletida suas intenções,
apontando a possibilidade de incorporar ou permitir que, cotidianamente, em todas as
disciplinas, se constitua, como objetivo maior, o respeito à diversidade, presente na
classe, assim como a desconstrução paulatina de um currículo rígido e inflexível, seja
nos conteúdos, seja nas formas mais burocráticas de se tratar as várias questões
vividas na escola.
De acordo com Silva (2003), um currículo assim pensado concebe as diversas formas
de conhecimento de modo equiparado, não separando as ciências de maneira a
privilegiar uma em detrimento da outra. Nesse currículo, o conhecimento
tradicionalmente escolar não se separa do conhecimento cotidiano das pessoas
envolvidas. Ambos expressam significado social e culturalmente construído, pois
influenciam e modificam as pessoas. Cumpre aqui ressaltar que as discussões acima
apontam muito mais o desejo e ideais que os educadores têm como coletivo que
pensa, sonha e questiona, do que efetivamente o que vêm “conseguindo” realizar em
suas práticas docentes. Ou seja, estão manifestadas conscientemente ali, no grupo,
suas fraquezas, “impotência”, angústias. Porém, ali também emerge com força maior
o não conformismo, a não aceitação e o questionamento acerca de seus fazeres.
Uma nova perspectiva se descortina aos profissionais do grupo, quando
compreendem que um currículo baseado nos estudos culturais oferece benefícios e
35 Chamamos de práticas inconscientes aquelas pelas quais alguns profissionais diziam desconhecer os benefícios ou malefícios desencadeados por elas.
121
que, por conseguinte, se descobrem desejosos deles, questionando os porquês de
eles não existirem. Tal questionamento vem ao encontro do que reflete Padilha (2004,
p. 268), quando escreve:
O ‘daltonismo cultural’ ou a cegueira para as diferentes culturas e para a diversidade cultural presente na escola é resultado, também, de uma política educacional que, além de não se preocupar com a educação permanente dos professores, não enfrenta efetivamente os problemas de sua prática.
Apesar de não desconsiderarmos a necessidade de construção e efetivação de
práticas docentes mais engajadas no cotidiano escolar, estas, como práticas
instituintes e superadoras do “daltonismo cultural”, como escreve Padilha, não
podemos nos furtar à denúncia de que não se verificam políticas educacionais mais
arrojadas para o incentivo ao professor e à escola de superação à pedagogia
monocultural.
Tais políticas não incentivam os professores a trabalharem o contexto do
desenvolvimento de pesquisas, com a participação dos alunos, nem, tampouco,
instrumentalizam-os culturalmente. Salienta o autor, entretanto, que essa
instrumentalização, além de não ser possível, não é suficiente, dependendo muito
mais de uma atitude permanentemente reflexiva, investigativa e crítica por parte dos
docentes.
[...] enfrentar o desafio, na sala de aula e na escola, de trabalhar com o diferente, com as diferenças e saber construir um processo educacional no encontro dessas diferenças que, longe de constituir algo linear, fácil, calmo, é espaço de conflitos, de explicitação de interesses, de jogo de poder, logo, de divergências (PADILHA, 2004, p. 269).
Ressaltamos, então, que o processo de autoformação vivenciado pelos profissionais
dessa escola significou-lhes uma experiência rica e produtiva, pois, estudando,
discutindo e refletindo, se voltavam com tranqüilidade, cada um a seu tempo, à análise
de suas práticas, numa situação de autocrítica permanente.
Verificamos, assim, que a formação propicia naturalmente um aprofundamento
científico-pedagógico, que capacita os professores a enfrentarem as questões
fundamentais que emergem na escola como instituição social, explicitadas nas
122
práticas que implicam centralmente as déias de formação, reflexão e crítica (VEIGA,
2006)
O movimento de formação, reflexão e crítica tem mobilizado os educadores à criação
de um espaço criativo e inventivo, pois, interpretando as palavras de Padilha (2004),
quando há divergências, posicionamentos diferentes, um novo cenário pode emergir,
um novo contexto se configura, constituindo um novo referencial para as relações
humanas, pessoais e interpessoais na escola.
Pudemos verificar que, numa perspectiva de um trabalho que se pretenda
intercultural, o professor, além de se avaliar permanentemente em busca de sua
própria identidade, preocupa-se em criar condições para que os alunos estejam em
constante comunicação, apesar de se reconhecerem diferentes (VIEIRA, apud
PADILHA, 2004).
6.1.1 Um exemplo de interação com a diferença
Relatamos um dos momentos de envolvimento de todos os professores e alunos da
escola nessa comunicação entre os diferentes. Após decisão, pelo coletivo de
profissionais da escola, sobre a programação de atividades para a Semana da
Consciência Negra, uma comissão formada por alguns professores organizou um
desfile em que alunos e alunas da escola pudessem se inscrever livremente.
Em uma das turmas de 7ª série, uma aluna com necessidades educacionais especiais
por deficiência, ainda limitada em sua condição de escolha, de decisão e ação,
demonstrava interesse em desfilar, mas faltava-lhe algo que a motivasse realmente.
Mesmo os professores convidando-a, não conseguiam convencê-la. Percebendo sua
indecisão e timidez, seus colegas a incentivam e com extrema facilidade a convencem
a desfilar com eles. Sob gritos e ovações, a aluna foi à passarela, recebendo,
também, como vários de seus colegas, os votos e aplausos da platéia.
A comunicação entre os diferentes foi, nessa situação relatada, extremamente eficaz,
e é o ponto nodal no qual deveremos investir nossos esforços para que continue
acontecendo em quaisquer situações, desde as mais simples até as mais complexas.
123
Participar dos encontros semanais de autoformação significou poder conhecer o grupo
sob uma dimensão um pouco incomum. Para nós, que pretendíamos conhecer como
a instituição escola, nos seus vários âmbitos, poderia redimensionar sua estrutura
organizativo-pedagógica, para garantir a aprendizagem a todos, essa auto-
organização, para estudos, já sinalizava algo bom, pois denotava a preocupação que
tinham com as questões que circundam o campo prático e real do currículo.
Essas preocupações, presentes naqueles profissionais, revelaram, para nós, como
pesquisadora, quais percursos já tinham trilhado, de que desafios realmente falavam,
assim como do que precisavam e aonde queriam realmente chegar.
Reiteramos que, no período em que se desdobraram os encontros para o estudo e
discussão do livro Documentos de Identidade, estivemos observando e
acompanhando os movimentos da escola. Tais observações e acompanhamentos
deram-se nos vários espaços e tempos da escola onde transitam alunos, pais e
profissionais.
Em sala de aula, observamos e acompanhamos 56 aulas das diferentes áreas do
conhecimento às respectivas turmas escolhidas. Tivemos, assim, a oportunidade de
conhecer várias situações nas quais estavam presentes o aluno real e perceber as
sutilezas entre o dizer e o fazer, ou o querer fazer e o efetivo ato de realizar, tão
presentes nos discursos e diálogos travados nos momentos de estudos do grupo.
Feitas as observações e análises da totalidade dos encontros, passaremos agora a
discorrer sobre algumas particularidades extraídas das exposições e manifestações
discursivas do grupo acerca das partes estudadas do referido livro.
Por uma questão metodológica, organizamos os oito encontros em dois blocos de
análises. O primeiro direcionado ao estudo do 1º e 2º capítulos do livro. Esses se
desdobraram em quatro encontros, e o segundo bloco está relacionado com o 3º e 4º
capítulos finais da obra, estes também desdobrados em outros quatro encontros.
Os quatro primeiros encontros são, então, aqui trazidos sob três grandes categorias
de análise:
124
A) Teorias do currículo: quais suas implicações na prática escolar?
Uma ênfase significativa à etimologia da palavra currículo foi dada pelos grupos
quando das apresentações das duas primeiras partes do livro, estas referentes a: I-
Introdução - Teorias do currículo: o que é isso? e II- Das teorias tradicionais às
teorias críticas. Segundo Silva (2003 p. 15), currículo vem do latim curriculum, “pista
de corrida”, e é no curso dessa “corrida” “[...] que acabamos por nos tornar o que
somos” .
A compreensão da veracidade da análise pontualmente colocada por Tomaz Tadeu
acerca de sermos o que somos em virtude do currículo no qual estamos mergulhados
provocou uma intensa discussão no grupo em direção à questão ainda extremamente
visível e valorizada nos contextos educacionais, que é a questão do conhecimento.
Tal questão evidenciada pelo autor, e que indiscutivelmente constitui o currículo, está
centralmente envolvida na constituição e na expressão de nossa identidade e de
nossa subjetividade. Currículo, então, é identidade, além de expressar conhecimento.
Na discussão advinda e alavancada pelas proposições dos grupos, registramos
algumas falas de profissionais, nas quais se verifica um misto de preocupação e
entendimento concomitantes.
Quando eu ensino determinado conteúdo, na verdade não posso acreditar que é só isso que estou ensinando; tanto eu como o aluno que está ali, temos nossa visão, nossa leitura das coisas que nos cercam, temos nossa história anterior acerca do assunto tratado [...] (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).
Apreendemos, na manifestação da professora acima citada, a clareza e o
entendimento de que as identidades e subjetividades do(a) aluno(a) e do(a)
professor(a) estão presentes e interligadas à questão do conhecimento. Na
expressão da professora, verificamos, ainda, que o conhecimento não é estanque e
isolado; a ele, portanto, estão, como em redes e conexões, todas as demais relações,
percepções e vivências dos sujeitos com ele envolvidos.
Por outro lado, podemos verificar, também, que o sentimento de impotência para se
construir um processo dinâmico e que considere outras dimensões que vão além do
conteúdo prescritivo está presente na fala da professora que se segue, assim como os
125
apontamentos direcionados às questões inerentes aos aspectos instituídos de
organização da realidade escolar.
Acontece que a forma de organização dos horários, das disciplinas, a falta de espaços para planejamentos integrados, assim como algumas exigências de natureza burocrática, pouco favorece pra esse envolvimento, pra essa construção mais ampla no aluno [...], a gente sente essa necessidade [...], é fácil falar [...], a gente precisava pensar e planejar mais como um todo. Essa separação só dificulta (PROFISSIONAL DO C.T.A.). 36
A idéia da existência de uma complexidade parece emergir nas discussões do grupo,
em que, sob o ângulo das regularidades e obedecendo aos princípios de ordem e de
organização, tudo seria mais simples. Porém, o mundo e, conseqüentemente, todas
as instâncias nas quais nos vimos envolvidos se complexifica, a partir do momento,
segundo Ardoino (2004, p. 551), em que “[...] uma inteligência da desordem se elabora
para refinar, enriquecer e tornar mais sutil o olhar que se dirige aos fenômenos”.
Considerar outras dimensões do trabalho pedagógico, para além das práticas
curriculares comumente desenvolvidas pela escola, muitas vezes contidas nas
propostas curriculares dos sistemas educacionais, é pensar a complexidade
admitindo-se sua heterogeneidade constitutiva e sua natureza plural. Um pensamento
complexo, então, diferentemente de complicado, não pode ser confundido, na medida
em que é percebido que a complexidade se ordena simultaneamente em diversas
perspectivas contraditórias, exigindo, assim, falar-se de leituras plurais. De acordo
com Ardoino (2004), a noção de complexidade será aquilo que faz com que a analítica
cartesiana fracasse ao tentar decompor.
Ao questionar a organização curricular estabelecida na escola e no sistema em seus
múltiplos efeitos, fica visível que os profissionais, mesmo de maneira inconsciente
para alguns, discutem o currículo para além da noção do que é visto apenas como
complicado. Nesse questionamento, trazem a idéia de que há fracasso nos modos de
organização originários da visão cartesiana e linear no processo de produção do
conhecimento e do saber.
O grupo prossegue apresentando suas considerações acerca do currículo, em direção
às teorias do currículo elencadas pelo Tomaz Tadeu. Esse, talvez, em nossa análise,
36 Corpo Técnico Administrativo da escola (diretora, coordenadores de turno, assistente técnico de direção e pedagogas).
126
foi o momento de maior tensão captado por nós, tendo em vista que, confrontando-se
a si mesmos, se viram diante da questão talvez mais essencial, no que tange à
reflexão sobre o currículo, com formulações e questionamentos pontuais não para o
outro, mas para o nós ali representado.
Tais questionamentos refletem para nós certa maturidade daqueles profissionais, fruto
evidentemente de um percurso anterior de formação e autoquestionamentos que
muitos dos presentes já se faziam em suas práticas profissionais. Estes, assim,
puderam ser interpretados e registrados por nós como:
� Nosso trabalho pedagógico está centralmente marcado por quais práticas
cotidianas?
� Realizamos algumas indagações quanto ao porquê da escolha ou da
aceitação desses conhecimentos e não de outros?
� Perguntamos-nos por que privilegiar e valorizar um determinado tipo de
identidade ou subjetividade e não outras? (isso direcionado a todos os atores
envolvidos no processo escolar).
� Qual tem sido a idéia central que direciona e impulsiona o trabalho
pedagógico em nossa escola? Estamos apenas buscando as melhores formas
de transmitir os conhecimentos, determinados e elencados em algum momento,
ou estamos preocupados com as “[...] conexões entre saber, identidade e
poder?” (SILVA, 2003, p.17).
� Será que adianta apontar culpados, nos angustiar, ou apenas nos sentirmos
frontalmente incomodados diante das burocracias e formalidades a nós
impostas? Não será necessária uma profunda mudança ou uma revisão refletida
dos significados e sentidos de tudo o que está instituído? Não será esse um dos
caminhos?
Como que buscando um alento para todos, diante de tais indagações, uma
profissional se pronuncia:
Acho que se escolhemos estudar e nos aprofundar sobre esse assunto demonstra que nós aqui na escola estamos muito à frente de outros, pois estamos em busca de algo, estamos sim questionando e avaliando nossas ações [...] (PROFISSIONAL do C.T.A.).
127
Observamos que as reflexões e pontuações daquele grupo sinalizavam, sem dúvidas,
preocupações já instaladas bem antes do estudo e discussões instigadas por Tomaz
Tadeu. No entanto, a relevância para tal era a de dar visibilidade e possibilidade a
todos os profissionais de analisar os conceitos presentes nas teorias em que, por
escolha consciente ou não, estariam pautando suas práticas.
Analisando e discutindo tais conceitos, presentes em cada teoria do currículo, tornava-
se possível a cada um ali presente estabelecer as devidas relações e autocríticas de
si mesmos e do contexto escolar como um todo. Os referidos conceitos, elencados em
cada teoria do currículo, convocam, desse modo, nossa atenção a certos aspectos,
que sem eles não veríamos (SILVA, 2003).
Os conceitos da teoria crítica ou pós-crítica, por exemplo, inevitavelmente farão com
que organizemos e estruturemos nossa forma de ver a realidade, conforme assinala
Silva (2003). Desse modo, tais teorias, “[...] ao deslocar a ênfase dos conceitos
simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem para os conceitos de ideologia
e poder [...]” (p.17), nos farão ver a educação a partir de uma nova perspectiva.
Encerram-se aqui as análises referentes aos dois capítulos iniciais do livro de Tomaz
Tadeu, que, de uma forma ou de outra, acompanharam os profissionais ao longo de
suas jornadas de trabalho.
B) Das reflexões teóricas à estruturação de ações significantes e significadas no
cotidiano
Nos fundamentos da Sociologia fenomenológica, toma-se como verdadeiro que o
conhecimento é construído intersubjetivamente na interação entre professor e alunos
na sala de aula. Tal premissa assenta-se nas situações de aprendizagens que
ocorrem em outros contextos sociais, ao se verificar que um conhecimento real só é
constituído a partir dos significados construídos na interação social entre os sujeitos.
Geoffrey Esland (apud SILVA, 2003) destaca que é importante analisar tanto a visão
subjetiva de professores quanto dos alunos, porém uma importância maior deve ser
direcionada para o conhecimento dos professores, ou seja, é imprescindível
compreender quais são as perspectivas do professor ao assumir uma sala de aula,
128
qual sua visão de mundo e quais visões serão construídas e desenvolvidas nessa sala
de aula.
• Uma prática e várias possibilidades
Na tentativa de estabelecer uma relação entre os discursos captados nos grupos de
estudo, estando nós, paralelamente a tais estudos, observando e participando no
cotidiano escolar dos profissionais, vimos, assim, destacar, nas práticas da professora
Cristal, 37 que atua nas séries iniciais, alguns indicativos de que o conhecimento esteja
sendo construído a partir do exposto acima. Para tornar o mais explícita possível a
experiência e também os percursos da referida professora, trazemos alguns registros
pontuais de sua ação docente. “De início ao assumir uma sala tento desenvolver em
mim um olhar perceptivo para as diferenças, para dar a partida no trabalho, tanto
coletivo quanto individual [...]” (PROFESSORA de 1ª a 4ª séries).
Nesse olhar “cuidadoso” da professora, destaca-se, em suas próprias palavras, ser
necessário “[...] um certo envolvimento” que ultrapasse a simples relação de ensinar e
produzir conhecimentos, “[...] é preciso conhecer minimamente de onde vem essa
criança, o que a motiva, quais suas necessidades, porque age desse e não de outro
jeito” [...].
Muitos teóricos delineiam suas posições acerca do conhecimento prévio que
professores têm de seus alunos, podendo assim determinar a forma como eles irão
tratá-los. Assinala-se, evidentemente, que, numa visão determinista, alguns
professores se valem desse conhecimento para rotulações futuras, bem como a
criação da chamada baixa expectativa em relação aos alunos.
No entanto, tal professora utiliza-se exatamente desse recurso, conhecendo
previamente seus alunos, a fim de assegurar uma interação suficiente para o
atendimento às necessidades de seus alunos, facilitando, desse modo, o processo de
construção de conhecimentos.
[...] aí não dá pra ser só professora, é preciso ser mais, ou seja, envolver-se mais, inclusive com a família. A atenção que dispenso à família é fundamental, pois, assim, criamos uma parceria para o desenvolvimento dos alunos que vemos como mais comprometidos cognitivamente.
37 Nome fictício.
129
Nos momentos de observação e participação na turma, pudemos registrar algumas
situações que confirmam os benefícios do conhecimento prévio. Um exemplo foi a
organização de um teatro.
A professora, de forma planejada e organizada, antes de tudo, leu a história para a
turma, enfatizando as falas dos personagens, suas características, para que a turma
pudesse ter clareza no momento das escolhas dos personagens que desejariam
representar no teatro. Ressaltou também que todos teriam papéis nas cenas. Uns
falariam mais, tendo um destaque maior, outros falariam menos e outros apenas
comporiam o elenco em alguns momentos específicos.
Segundo uma declaração da professora Cristal, ela desejava muito que um de seus
alunos, o João, 38 se interessasse por um dos papéis de maior expressão, pois esse
aluno, avaliado, não em relação à classe, mas tendo como parâmetro a si próprio,
tinha obtido grandes avanços até o presente momento, no entanto havia muito por se
desenvolver, sobretudo em sua oralidade.
Por conhecê-lo e estar sempre atenta às suas necessidades, precisava despertar nele
o interesse e também confiança na escolha de um dos papéis. Foi com alegria que a
professora me comunicou que, ao apresentar os personagens no contexto da história,
o aluno João escolheu o personagem D. Ratão. 39
João foi seu aluno no ano anterior e demonstrava não se sentir à vontade na maior
parte das atividades que promoviam manifestações pessoais por meio de opiniões,
sugestões e interações maiores, como o teatro, ou outras formas de expressão em
público.
O teatro, após dois meses de ensaio, confecção coletiva dos figurinos, entre outras
organizações necessárias, 40 foi apresentado para todos os alunos de (1ª a 4ª) com a
presença dos professores e pais dos alunos da classe da professora Cristal. João, um
dos alunos da classe mais comprometidos cognitiva e psicologicamente, emocionou
sobremaneira sua professora e, em especial, as professoras que o atendiam no
laboratório pedagógico, que, convidadas por ele, vieram prestigiá-lo.
38 Nome fictício. 39 Personagem da história encenada “Dona Baratinha”. 40 Houve um envolvimento de vários professores em apoio à professora Cristal. Os alunos tiveram ampla participação na confecção dos figurinos e cenário.
130
Em um dos momentos no grupo de estudos, em que a discussão girava em torno do
currículo para além das prescrições, diretrizes e parâmetros ou referenciais
curriculares, lembramos que a professora Cristal expõe de maneira brilhante seu
posicionamento ao grupo acerca da necessidade de se conhecer de forma mais
profunda quem são nossos alunos, com questionamentos como: de onde vêm? O que
fazem quando não estão na escola? Onde moram? Qual a melhor forma de
“comunicar-me” com ele? O que fazer para que os conhecimentos da escola se
mostrem desejáveis e significantes para os meus alunos?
Segundo a professora, agindo assim e obtendo respostas para tais questionamentos
acerca de nossos alunos, teremos condições de oferecer e organizar um ensino de
melhor qualidade e que atenda às suas reais necessidades, aliando e conjugando as
respostas de tais questionamentos às formalidades de nosso currículo prescritivo, por
exemplo, os conteúdos, que, via de regra, vêm separados por áreas do conhecimento.
A reflexão tecida pela professora, em nossa interpretação, é extraordinária e, sem
dúvida, vem agindo como disparadora de múltiplas reflexões por parte dos seus
colegas, haja vista partir de uma profissional que tem por esses mesmos colegas um
grande respeito e admiração, pela seriedade, compromisso e idealismo que carregam
consigo.
A discussão se enredava, desse modo, por entre questões e questionamentos sobre o
que vêm a ser aprendizagens sociais relevantes, uma vez que estas se concretizam,
segundo uma conceituação de currículo oculto, de forma implícita no ambiente
escolar.
Sendo assim, algumas perguntas são feitas quanto aos sujeitos que nesse ambiente
transitam:
a) O que estão aprendendo fundamentalmente?
b) Que atitudes são desejáveis?
c) Quais comportamentos são socialmente aceitos pela sociedade?
d) Quais valores são exaltados como os melhores?
e) Como considerar a possibilidade de ocorrência dessas aprendizagens no
ambiente escolar, sem nos ater às experiências desses indivíduos?
131
f) Como não incorrer no desrespeito e na desconsideração às diferenças
culturais, às histórias de vida dos alunos desse contexto escolar?
No calor das discussões, a professora Cristal, então, relata uma visita que fez no dia
anterior à Casa da Menina, 41 local esse em que moravam duas de suas alunas. No
decorrer de seu relato, pareceu-nos, verificando os olhares, gestos e movimentos dos
participantes presentes, a compreensão absoluta da importância de tais
questionamentos.
À medida que relatava as condições precárias e sofríveis em que viviam suas alunas,
um e outro participante contava o que conhecia das histórias de vida de outros alunos
em situações parecidas, assim como das diferenças já observadas por eles no modo
de ser e estar daquelas crianças no ambiente escolar.
Os que não puderam se expressar oralmente utilizaram-se de outras linguagens,
concordando que não é possível e aceitável desconsiderar tais conhecimentos
prévios, não somente daqueles alunos relatados, mas de tantos outros ali presentes.
A estrutura de organização do espaço escolar, do tempo, entre outras manifestações
do currículo, desconsiderando aspectos essenciais relativos à individualidade e à
história cultural dos indivíduos, acaba por estereotipar práticas muito comuns, como a
de tornar explícitos os mais capazes e os menos capazes, o mais indisciplinado e o
mais obediente, o mais questionador ou o mais conformado, etc.
Retornando à experiência da professora Cristal, compreendemos que o êxito de seu
trabalho docente é fruto de uma atenção às múltiplas diferenças existentes em sala,
sobretudo quando ela vai em busca de pistas e indícios acerca da história das
identidades de seus alunos, não no sentido de demarcar tais diferenças com atitudes,
posturas ou rótulos, mas com apoios necessários e essenciais ao crescimento de
cada aluno, dando-lhes possibilidades, acima de tudo, oportunidades de manifestarem
seu conhecimento de múltiplas maneiras.
41 Instituição que acolhe meninas em situação de risco social.
132
C) Os desejos de mudanças movimentando a dialética instituído-instituinte
A produção de conhecimento, segundo Cortesão e Stoer (apud SILVA, 2003),
depende do grau do desenvolvimento do campo de recontextualização pedagógica.
De acordo com os autores citados, essa recontextualização é absolutamente crucial
para que os professores possam fazer a gestão da aprendizagem na diversidade.
É, então, no âmbito da ação pedagógica que tal recontextualização encontrará
significados. Em primeiro lugar, como num processo de investigação-ação, o
professor, progressivamente, vai se apropriando de um maior conhecimento das
características socioculturais e psicoafetivas de seus alunos. Características essas
pouco visíveis, exigindo muitas vezes algumas estratégias de aproximação do próprio
aluno ou de suas famílias, entre outras.
Percebemos daí, no decurso da relação pedagógica e durante as intervenções do
professor, ser possível verificar alterações, tanto no grau e na qualidade do
conhecimento, bem como nos comportamentos que se tinham em relação aos alunos.
Em segundo lugar, a produção de conhecimento tem lugar garantido e fluido, após se
ultrapassar o nível do simples reconhecimento de quem são os alunos, quais suas
características individuais ou mesmo do grupo como um todo.
A partir daí, essas informações possibilitarão a “tradução” ou simplificação do
conhecimento científico, atentando-se para a recriação de conteúdos e metodologias
adequadas àquele contexto e àqueles alunos especificamente (CORTESÃO; STOER,
apud SILVA, 2003). Essa ação pedagógica assim concebida terá influência direta nos
programas oficiais sistematizados, exigindo dos profissionais sua revisão, adequação
e complementações. Nisso consiste o movimento instituinte de novas práticas.
À medida que esse processo vai se configurando, percebemos, por meio das
considerações de Veiga (2006), o sentido dado à docência, estando nela imbricadas
as múltiplas facetas da profissionalidade do professor, quando a ele cabem algumas
responsabilidades, habilidades e conhecimentos específicos para exercê-la
adequadamente. Segundo a autora, uma característica da docência está ligada à
inovação, quando esta
133
[...] rompe com a forma conservadora de ensinar, aprender, pesquisar e avaliar; reconfigura saberes, procurando superar as dicotomias entre conhecimento científico o e senso comum, ciência e cultura, educação e trabalho, teoria e prática, etc.; explora novas alternativas teórico-metodológicas em busca de outras possibilidades de escolhas; procura a renovação da sensibilidade ao alicerçar-se na dimensão estética, no novo, no criativo, na inventividade; ganha significado quando é exercida com ética (VEIGA, 2006, p. 469).
Nas discussões do grupo acerca das cobranças que recebem, direta ou indiretamente,
para o cumprimento a determinadas exigências, como provas e notas em datas ou
períodos definidos, pressões em relação à aprovação/reprovação, muitos professores
colocavam em debate a seguinte questão: será que é realmente possível promover
adequações, inserir práticas no currículo que garantam o atendimento às
individualidades, para a produção de conhecimentos a todos, tendo nós que atender
às demandas já instituídas pelo sistema escolar e até mesmo a algumas
estabelecidas pela sociedade?
Ao mesmo tempo, em frente a tal impasse, registramos a seguinte fala :
[...] não sei se é porque sou nova aqui na escola, mas acho que o trabalho que aqui vem sendo desenvolvido, principalmente com as crianças especiais, demonstra tanto desse respeito às diferenças, acho que refletir sobre currículo tem tudo a ver com o que já fazemos aqui, o acolhimento, as adequações, a avaliação diferenciada, a oportunidade das crianças serem elas mesmas, acho que é fácil ampliar nossas práticas para com todos (PROFISSIONAL do C.T.A.).
Acreditamos que a profissional estava chamando a atenção de todos para a seguinte
questão: para garantir um ensino de qualidade a todos, pressupõe-se que seja
necessário adequar-se às peculiaridades de cada aluno, realizando para isso um
planejamento adequado, escolhendo conteúdos e atividades mais significativos, assim
como oferecendo condições e oportunidades de acesso a outros conhecimentos
disponíveis.
Nesse sentido, é elementar que qualidade no ensino tem relação direta com o sentido
e o significado que o ensino tem para todos os envolvidos no processo de produção
do conhecimento. Cabe, então, refletir acerca das características e peculiaridades que
marcam nosso alunado.
134
Os registros e reflexões que fizemos acerca desses quatro primeiros encontros do
grupo, nesse processo de autoformação, nos deu, como dito, grande visibilidade
acerca das intenções, desejos, desafios e possibilidades que esse grupo expressava.
Percebemos e também ouvimos determinadas expressões, por alguns professores,
afirmando que não deveriam se conformar ou se acomodar às práticas docentes que
não representassem ao menos algumas mudanças, resultantes dos debates,
discussões, proposições diversas e também de relatos emocionados.
Em seguida, registramos o que apreendemos nos quatro últimos encontros, no estudo
do terceiro e quarto capítulos do livro Documentos de Identidade, os quais abordam:
III – As teorias pós-críticas; IV – Depois das teorias críticas e pós-críticas.
Sob a ótica dos estudos culturais, todo conhecimento, na medida em que se constitui
num sistema de significação, é cultural. Nesse sentido, embora a própria Antropologia
não deixasse de criar suas próprias relações de saber-poder, contribuiu para tornar
aceitável a idéia de que não se pode estabelecer uma hierarquia entre as culturas
humanas e de que todas as culturas são epistemológica e antropologicamente
equivalentes (SILVA, 2003).
A tentativa de transposição do que está postulado no parágrafo acima, para as
situações vividas nos cotidianos do contexto escolar, levou o grupo a considerar várias
questões em relação ao seu alunado.
Alguns exemplos eram, então, trazidos de suas experiências e, evidentemente, de
forma simplificada e reduzida àquilo que entendiam como estabelecimento de
hierarquias entre as culturas humanas.
Alguns deles são: a) os gordinhos tratados em sua grande maioria com desrespeito e
desdém, ficando de fora, às vezes, somente os “bonzinhos”, amigos e prestativos; b)
os adolescentes que, por sua grande necessidade de afirmação e construção de
identidade, escolhem modos de vestir e comportar-se ou ainda os ritmos/letras/estilos
musicais que parecem trazer marcas, até estereotipadas, do negro e do pobre, como
culturalmente inferior; c) aqueles que elegem os padrões fixos de beleza, sobretudo as
meninas, determinando-lhes, sobremaneira, a perda ou aumento de sua auto-estima.
135
Os exemplos são simples, porém concordamos com o grupo, quando apontam que
essas questões estão colocadas num plano hierarquicamente inferior em relação às
culturas humanas. Ou seja, o gordo não tem lugar, onde a maioria é magra, o
adolescente negro e pobre, porém com as mesmas necessidades de qualquer outro
adolescente que, se vendo à margem das oportunidades, identifica-se com quem mais
se aproxima de seus ideais, sonhos e desejos.
Reconhecemos, dessa maneira, que essas questões estão em grande medida
submergidas pelo privilegiamento de uma cultura hegemônica entre as pessoas e que,
por meio dos diversos canais de disseminação (mídia, TV, etc.), faz perpetuar normas,
regras, verdades, modos de comportamentos, de ser, de estar, etc.
O respeito que se deve ter com as diferentes opções de vida, em relação à
sexualidade e à religião, entre outros aspectos, costumes, modos de ser e estar, que
diferenciam pessoas e culturas, também foi discutido e debatido pelo grupo, levando-
os a um discurso uno de que, quando se respeita, ensina-se e constrói-se a idéia de
respeito para ser disseminada aos demais sujeitos em interação com nossos alunos.
Ou seja, esse respeito se construirá aqui na escola e, conseqüentemente, se
desdobrará nas demais relações que os alunos mantêm fora dela.
O fracasso escolar foi também discutido, sendo apontado e, ao mesmo tempo,
questionado pelo grupo, como uma questão reincidente entre os alunos pertencentes
a grupos étnicos e raciais minoritários, assim como entre os alunos que apresentam
necessidades educacionais por deficiências ou não. A baixa expectativa que se
mantém, em relação tanto a um como ao outro grupo, foi apontada como um elemento
avassalador ao desenvolvimento e à aprendizagem dos alunos.
Ferreira (2005) nos diz que, sendo a escola uma instituição organizada para alunos
que correspondam a um ideal-padrão, desconsiderando o sujeito real que é o aluno,
“[...] implementa sua atividade pedagógica a partir de um sistema de ensino
organizado por um currículo não flexível; e seleciona os conteúdos segundo uma
seqüência rígida [...]” (FERREIRA, 2005, p. 148). Dessa maneira, o aluno que,
antecipadamente, não se encaixa nesse modelo, nem demonstra acompanhar os
objetivos desta escola, passa a ser olhado com poucas condições de
desenvolvimento, restando, sobretudo aos alunos com deficiência, só o processo de
socialização, este sendo apresentado como um objetivo distinto e de segunda ordem.
136
Lembramos que, em análises anteriores, frutos de importantes estudos e pesquisas
de vários estudiosos, a raiz desse fracasso se concentrava nos mecanismos sociais e
institucionais que, de forma geral, deixavam de questionar o tipo de conhecimento que
estava no centro do currículo que era oferecido às crianças, ou seja, o currículo não
era problematizado.
O problema residia centralmente nas origens desse aluno, nas questões trazidas com
ele para a escola, na sua incapacidade de adaptação, na sua falta de prontidão em
receber os conhecimentos elencados no currículo ou ainda na consideração de que a
escola não é lugar para determinados sujeitos, por exemplo, as crianças com
deficiências e que exigem significativas mudanças na estrutura pedagógica da escola.
Felizmente, os questionamentos atuais parecem focalizar outras direções, assumindo-
se o estatuto da não culpabilização do aluno ou de suas condições como as únicas
responsáveis por seu fracasso.
Outros elementos e aspectos passam a ser considerados, focalizando, desse modo,
outras instâncias já instituídas em nosso sistema educacional, como as concepções e
práticas de ensino e aprendizagem, estas muito voltadas a um ideal de aluno
pretendido, e também a não funcionalidade e a falta de sentido e significados de
determinados conteúdos ante a realidade na qual está inserido o aluno.
Ressaltamos, ainda, que os modos de organização e estruturação do currículo como
um todo passam a ser olhados como passíveis de mudanças, pois se mostram como
dissonantes a um processo de construção do indivíduo que traz em si uma
multiplicidade de experiências, necessidades e possibilidades.
A não flexibilidade posta pela regulação do tempo e do espaço na construção do
conhecimento, diante da fragmentação do conteúdo por disciplinas, aliada à maneira
excludente, coercitiva e com funções e objetivos distantes do que realmente deve ser
um processo de avaliação, revela essa dissonância nos contextos escolares.
Consideramos, então, que as discussões dos dois últimos capítulos da obra de Tomaz
Tadeu, além de oferecer um aprofundamento acerca do conhecimento sobre as várias
nuances do currículo, permitiram uma problematização das práticas, tanto individuais,
quanto do coletivo da escola.
137
Exemplos de atitudes, trabalhos em sala de aula desenvolvidos pelos professores,
entre outros projetos da escola, foram lembrados como práticas muito positivas na
construção de um currículo multicultural, assim como outras práticas foram avaliadas
pelo grupo como dissonantes a um projeto pedagógico que prima pela construção e
respeito às identidades representadas por todos os atores do contexto escolar.
Sendo assim, limitar-nos-emos às reflexões até aqui realizadas, uma vez que
consideramos que já tenham conduzido o leitor, conforme nossa intenção, ao
entendimento do lugar em que estávamos e que minimamente possa imaginar quem
são esses profissionais, em face das angústias, intenções e desejos por nós
apreendidos e aqui registrados.
Consideramos, também, que tenha ficado evidente ao leitor que os profissionais
integrantes do grupo têm percorrido um caminho em que nele estiveram entrelaçados
os múltiplos momentos e situações por eles vivenciados. Nesse entrelace, estavam
os desafios, resistências, sentimentos de “incompetência e impotência” até a
descoberta das possibilidades, pela busca/ampliação dos conhecimentos sobre temas
como: ensino, aprendizagem, aluno, escola, avaliação, currículo inclusivo, etc.
Acreditamos que essa busca os fez aprimorar suas práticas, pelo questionamento,
pela formação, autoformação, entre outros processos de desenvolvimento pessoal.
Lembramos, por fim, que a própria escolha e opção pela temática estudada e
discutida no processo de autoformação, o qual acabamos de concluir, se deu em
função também desse percurso marcado por questionamentos e buscas.
Mesmo existindo outras questões, que foram apresentadas e debatidas pelo grupo
nos últimos quatro encontros, e não sendo menos pertinentes ao nosso estudo e
objetivos, estaremos encerrando aqui nossas reflexões sobre o processo de
autoformação.
6.2 OS ESPAÇOS-TEMPOS VIVENCIADOS NO GRUPO DIAGNÓSTICO
A seguir, discutiremos o processo vivenciado no Grupo de Diagnóstico, apresentando,
além da dinâmica utilizada na abordagem e envolvimento dos profissionais, as
discussões por nós consideradas pertinentes, a partir do aporte teórico que tem
sustentado e fundamentado nosso pensamento.
138
O referido processo se desdobrou em nove encontros que aconteceram durante o
período de outubro de 2005 a abril de 2006, 42 com a duração de uma hora e vinte
minutos cada encontro. Para uma melhor compreensão do leitor sobre o processo
como um todo, fizemos uma organização em que os encontros foram tratados e
analisados sob os seguintes tópicos:
a) 1º e 2º encontros: Diálogo de si para si – os primeiros encontros;
b) 3º ao 6º encontros: O diálogo, o debate e as descobertas com o outro e
para o outro;
c) os três últimos encontros, ocorridos já no primeiro semestre de 2006: Redes de
significados em construção: entre os desafios e as possibilidades.
Lembramos que a constituição do Grupo de Diagnóstico (G.D.) se deu assim que se
encerraram os grupos de estudos de autoformação, já em andamento na escola. Na
ocasião, apresentamo-nos com a intenção formal de realização do presente
estudo/investigação.
Por conter em sua proposta a idéia de formação em profundidade, sem, no entanto,
tomar a figura do pesquisador ou de um formador para tal, o G.D. veio se constituindo
como uma “instituição” que comportava a expressão livre de desejos, sentimentos,
angústias, proposições, questionamentos, resistências e possibilidades numa
coletividade, que agregava ali, naquele momento, os profissionais envolvidos no
processo educativo dos alunos e alunas da escola.
As expressões que partiam de si para o outro e com o outro, não de alguém que diz a
outrem o que deve ser feito, mas que “se dizem” o que fazer, porque fazem juntos e
desejam realizar mais do que realizam, revelaram-se como fonte de aprendizagem,
formação e produção de conhecimentos, promovendo, desse modo, mudança de
atitudes, crenças e, por conseguinte, de práticas.
Pensando, então, numa organização didática que favorecesse um melhor
entendimento de nossa proposta, bem como sobre as discussões emanadas desses
encontros, trazemos, logo no tópico que se segue, a apresentação e considerações
acerca dos dois primeiros encontros, como anunciado.
42 Destacamos que, desde agosto de 2005, já estávamos na escola em processo de investigação e coleta de dados.
139
Após o referido tópico, traremos as discussões de outros quatro encontros do grupo,
os quais serão analisados e discutidos em sua totalidade e apresentados em três
blocos categoriais.
6.2.1 O diálogo de si para si – os dois primeiros encontros
Provocar interesse em um grupo requer, além do conhecimento de suas necessidades
e desejos, uma sensibilidade na escolha de dinâmicas para sua abordagem. Essa
escolha pode conduzir o grupo a abrir-se à possibilidade de se humanizar e de se
identificar como seres humanos nos planos da subjetividade e da intersubjetividade.
Esse fenômeno, acreditamos, emerge das relações que se estabelecem com o outro,
consigo mesmo e com o mundo.
Na instituição escolar, as marcas dessas relações são profundas e de grande
significado, sobretudo pela formalidade de suas relações. Essas marcas impingem
certos comportamentos e o surgimento de várias outras instituições no seio da escola.
As relações formais, tanto quanto as informais que na escola são constituídas, são
marcadas pelas contingências sociopolíticas e culturais dos contextos históricos que
trazem cada sujeito, membro desse grupo, que, de maneira explícita ou não, são
atravessadas pelas dimensões corporal, afetiva e cognitiva.
Nosso objetivo para o primeiro encontro 43 desse grupo foi permitir aos participantes,
de maneira lúdica, uma aproximação mais refletida e indagadora a respeito de alguns
alunos daquele espaço escolar. Os participantes podiam também se colocar como
sujeitos indagados, em função de suas relações com os alunos.
Antes, porém, de discorrer sobre o desenrolar desse encontro, é importante acenar
para alguns direcionamentos teóricos e caminhos possíveis que tal abordagem
dinâmica nos permite.
A dinâmica escolhida possibilitou delinear e situar os níveis pessoa, pessoa-pessoa,
grupo, organizações e instituições, referenciadas por Ardoino (1971). De forma mais
43 Por opção de natureza metodológica, estaremos nos referindo assim apenas nas análises desse primeiro encontro. As análises e discussões dos demais encontros serão diluídas em todo o texto, na tentativa de organização de grandes categorias.
140
elaborada e sob uma leitura moreniana, 44 a Diretoria de Ensino e Ciência(DEC), 45
segundo Fleury e Marra (2005), os representa assim:
• A pessoa – é representada por você e eu, cada um com uma história de vida,
marcada por relações. No pensamento moreniano, diz-se estar diante da “[...] menor
unidade social viva: A pessoa e seu átomo sociocultural” (MORENO, 1992, p.159,
apud FLEURY; MARRA, 2005). Para o autor, a pessoa é intrinsecamente relacional:
constrói-se na articulação dos papéis que vive (psicossomáticos, imaginários e
sociais).
• Pessoa-pessoa – você e eu, ele e eu, nós, o biocorporal, o interpessoal, a
possibilidade de construção de vínculo na partilha de afetos, de idéias, do mundo
comum, ou na experiência de estranhamento e desencontro.
Neste plano, percebe-se que as relações já acontecem sempre tendo por base um
espaço social: é o filho, o amigo, o profissional. Esse lugar é permeado de
expectativas e condutas esperadas das pessoas em suas relações. Numa perspectiva
social, são os scripts, as regras e as normas prescritas pela cultura, que norteiam os
comportamentos.
• O grupo – temos aqui o “nós” ampliado: eu, você, ele, mais um... e cada qual com
cada outro. Uma teia se forma, um campo de forças que nos liga por necessidades e
motivações comuns, constituindo-se, desse modo, numa matriz relacional.
Segundo as autoras, é nessa instância que damos conta da vida cotidiana: na escola,
é a classe, ou nossos colegas de trabalho; no trabalho que não seja a escola, é a
seção, a equipe. O grande desafio e diferencial é não sermos meros amontoados,
“agrupamentos”, mas construirmos uma vida em relação.
• As organizações – aqui, vamos percorrer o plano dos estabelecimentos, com seus
regimentos, suas normas. Sabe-se que as estruturas formais podem ser ocasiões de
relações autoritárias, permeadas pela burocracia, ou seja, a separação entre os que
decidem e os que fazem. No entanto, o contato “face a face” entre os que compõem a
44 Jacob Levy Moreno, médico, educador e psicoterapeuta, criador da Pedagogia Sociopsicodramática, diz que toda escola “[...] deve possuir um placo de psicodrama como laboratório de orientação que trace diretrizes
para os seus problemas cotidianos [...]” (MORENO, 1992, apud, FLEURY; MARRA, 2005, p. 27). 45 Essa diretoria se refere à gestão 2003-2004 da Federação Brasileira de Psicodrama.
141
organização vai ganhando amplitude nas novas e complexas estruturas, ante os
critérios que objetivam o exercício da ação estética, ética e política que se impõe na
vida relacional cotidiana.
• As instituições – estas constituem o plano mais abrangente, se olharmos para o
sistema social articulado pelo Estado, entendido como o conjunto de leis que rege a
conduta social e política de um povo constituído historicamente. Porém é, ao mesmo
tempo, o plano mais invisível, se olharmos os padrões de comportamento inscritos na
cultura. Segundo Lapassade (1983), a dimensão institucional criva a vida das
organizações, dos grupos e das pessoas, atravessando nossos papéis psicossociais,
legando-nos o “instituído”. Desse modo, ao analisar e considerar os níveis aqui
descritos, perceberemos a sua presença na tensão entre o instituído e instituinte, em
uma constante dialética, assim como um convite para participarmos do desafio de
ressignificar o instituído e a se “[...] preservar e ousar realizar rupturas com o que
perdeu o sentido [...]” (FLEURY; MARRA, 2005, p. 29). Isso requer de nós presença e
responsabilidade diante da necessidade de mudanças pessoais e sociais.
Tendo suscitado a compreensão do leitor para os fundamentos que nos motivaram à
organização e preparação desse primeiro encontro do grupo, aqui chamado de Grupo
Diagnóstico, passamos a mergulhá-lo nos diálogos “consigo”, “com o outro” e “para o
outro”. Apresentamos, a seguir, a dinâmica de trabalho para aquele momento:
1º disponibilizamos massas de modelar, palitos e outros objetos que pudessem
facilitar o trabalho de modelagem;
2º orientamos o grupo informando que tanto poderiam estar sozinhos ou em
duplas para a realização da tarefa;
3º solicitamos que, com as massinhas, construíssem alguns sujeitos (alunos ou
não) daquela realidade escolar, que se constituíam, de alguma forma, em
objeto de indagação e curiosidade acerca de quaisquer questões de sua vida,
tendo como motivadores seus comportamentos positivos e negativos,
favoráveis ou desfavoráveis dentro do contexto escolar.
142
Aos poucos, envolvidos pela melodia suave que invadia o ambiente, foram, ora
sozinhos, ora em duplas, escolhendo os materiais, cuidando na escolha das cores
adequadas e/ou desejadas.
Percebemos que, no processo de reprodução de seus “sujeitos”, e à medida em que
construíam suas “esculturas”, realizavam tentativas de “diálogos” com eles, ao que
eram despertados a uma conversa consigo mesmos.
Como num processo de criação e recriação, pois, faziam e refaziam suas esculturas,
iam surgindo formas, inanimadas, sim, mas de modo incrivelmente belo, que
convidava o escultor ao diálogo com sua obra de criação, ou melhor, reprodução.
Parte desse diálogo, apreendido nos primeiros instantes, pode assim ser registrado:
“Ah! só serve aluno? Preciso me fazer também!”
“Vou questioná-lo! Quero saber, preciso saber por que tanta desmotivação!”
“Ah! Também, você quer o quê? Falta tudo pra ele, lazer, comida...”
“Minhas indagações não são só para os alunos com deficiência. Tem muita coisa que não sei sobre os outros.”
“É [...], agora vejo quanta coisa falta saber sobre esses meninos! É só se debruçar, pensar um pouco e vemos que sabemos tão pouco!”
“Será que, se eu tiver algumas respostas para essas perguntas, vou poder ajudá-lo mais?”
“Tem coisas que não daremos conta nunca!”
“Por que você mudou tanto, menino! O que aconteceu com você?”
“Tem um jeito melhor da gente se comunicar? Você parece não entender o que eu falo!”
Nesse contexto de livre expressão, em que o diálogo assume um papel de grande
relevância, afirmamos que o diálogo de si para si, com o outro (com o seu aluno) e
com os outros (seus colegas) serviu claramente como um processo de construção de
conhecimentos.
Lembramos de Alarcão (2003), quando nos fala que o processo de reflexão é inato no
ser humano, porém é necessário um contexto que favoreça o seu desenvolvimento.
143
Tínhamos, seguramente, um contexto, aqui chamado de G.D., que lhes permitiu o
início de um processo reflexivo.
O próprio diálogo com a própria situação, que nos fala ou nos comunica algo, se
constituiu, então, em estratégia importante para a produção desse conhecimento num
contexto que podemos chamar de formativo.
A simples possibilidade de direcionar um espaço e um tempo de reflexão e indagação
acerca de alguns sujeitos que se mostram como um desafio ao trabalho dos
profissionais daquele grupo faz com que venha à tona, antes mesmo de nossa
solicitação para que questionem e indaguem pontualmente (isso seria registrado por
eles), vários elementos que circundam e permeiam o imaginário de todos ali
presentes. Esses elementos iam desde a negação total de solução dos problemas,
colocando-se totalmente impotentes para intervir neles, até à formulação de hipóteses
para a explicação de tais problemas.
É importante lembrarmos que o diálogo, segundo Alarcão (2003), não pode se
circunscrever meramente num nível descritivo. A explicação e a crítica têm que
permitir aos professores “[...] agir e falar com o poder da razão” (p.46). Para isso, será
preciso que os professores e demais envolvidos no processo de diálogo realizem um
grande esforço para passar do nível meramente descritivo ou narrativo, para o nível
em que se buscam interpretações articuladas e justificadas e sistematizações
cognitivas daquilo ou daquele de quem falam.
Dessa forma, os diálogos foram se estruturando e se interpenetrando, sendo, ao
mesmo tempo, para si mesmos, para o outro e com os outros, ultrapassando os
limites da descrição para a crítica e a explicação. Alguns então diziam: “Temos muitos
sujeitos que são realmente incógnitas, isso não deveria acontecer!”.
O que é uma incógnita? Será um enigma, um segredo? Será que é assim mesmo que
muitos de nossos alunos são percebidos na escola? Direcionar-lhes perguntas e
questionamentos, a fim de conhecer ou desvendar seus segredos pode, mesmo que
simbolicamente, ajudá-los a descobrir ou “construir” respostas para si mesmos, além
de, pela tentativa do desvendamento, obter a certeza de que talvez não haja
respostas, nem caminhos predefinidos à solução.
144
Solicitamos, assim, depois de terminada a tarefa (modelagem e das tentativas de
“diálogos”), que escrevam todas as indagações e questionamentos aos sujeitos que ali
estavam, simbolicamente representados por esculturas nas massas de modelar, para
os quais gostariam ou necessitariam de respostas
Percebemos, então, que os desafios enunciados e registrados acerca desses sujeitos
estavam circunscritos, em sua maioria, entre limites por eles apresentados em relação
à aprendizagem, ao comportamento “socialmente adequado”, ao interesse e
comprometimento que deveriam ter com os estudos, os desejos e expectativas quanto
ao seu futuro.
No calor das discussões, já tinha sido possível apreendermos algumas contradições
em seus diálogos. Vejamos: ao mesmo tempo em diziam que os limites que
apresentavam se opunham frontalmente àquilo que desejavam ou idealizavam, em
referência aos seus alunos sem deficiência, afirmavam reconhecer e compreender
esses limites, necessidades e possibilidades de uns ou outros com deficiência.
Daí algumas questões importantes emergem: será impossível aos professores
conjugarem seus ideais, desejos e sonhos mantidos por um ideal de aluno, em frente
à realidade expressa nos sujeitos concretos, presentes no espaço escolar (alunos com
deficiência ou outra condição comprometedora)? Os sonhos se diferem de acordo
com o aluno? Em relação a uns, posso me resignar, “aceitar” e conformar-me às suas
impossibilidades e limitações, mas, em relação a outros, tenho que me frustrar? Não
deveríamos nutrir o mesmo sentimento em relação a todos os nossos alunos?
Questionados sobre tal contradição, reelaboram suas colocações, sobretudo ao
considerarem suas “lembranças” acerca de alguns alunos em anos anteriores e os
desafios maiores que eles apresentavam, parecendo-lhes quase insuperáveis.
As lembranças dos desafios vividos em anos anteriores, comparadas com o que
podiam avaliar de suas práticas, como do desenvolvimento de seus alunos, os fazia
agora refletir que tais desafios, quase insuperáveis, eram insuperáveis muito mais,
considerando-se os seus saberes e fazeres quanto à gestão da aprendizagem desse
aluno, do que o desafio inscrito no aluno por suas limitações.
145
Refletiam ainda acerca dos desafios “insuperáveis” e das impossibilidades,
observando que estes estão intimamente relacionados com a visão que temos ou
projetamos da situação, podendo esta ser/estar em função de qualquer aluno.
Isso podia ser comprovado, ao verificarmos que seus alunos modelados eram, em
grande maioria, alunos sem deficiência, demonstrando, consciente ou
inconscientemente, aquilo que pensavam.
Dentre os sujeitos representados/modelados, trazemos aqui aqueles que melhor
traduzem o objetivo da referida tarefa, considerando, no entanto, que todos os
sujeitos, eram, na visão do grupo, a expressão dos desafios.
Vejamos agora algumas considerações acerca dos sujeitos que elegemos para aqui
apresentar e realizar algumas reflexões:
Pedro
Foto 1: Sujeito aprendiz e que fez aprende
Este é o Pedro. 46 Na verdade tive o prazer em ser professora dele, sobretudo quando vejo, apesar de todas as dificuldades que enfrentamos, o quanto ele era e ainda é capaz. Será que, se contássemos, alguém acreditaria? Quero dizer também que a mãe dele nos ajudou muito, pois ela compartilhava com a gente as dificuldades que tinha com o filho. Ela tinha consciência da nossa limitação, e que era devagar que iríamos aprender como ajudá-lo aqui na escola (PROFESSORA da 5ª série).
Pedro (Foto 1) é aluno da escola desde a 1ª série. Seu diagnóstico inicial apontava
hiperatividade com déficit de atenção, porém, em função de todas as questões e mitos
que envolvem a hiperatividade, Pedro apresentava um comportamento e um
desenvolvimento, até a 3ª e 4ª séries, de um aluno com deficiência mental. Sua
aprendizagem estava muito comprometida e sua relação com o outro era
46 Nome fictício.
146
extremamente prejudicada. Tinha ações inesperadas de agressividade e por isso
dependia de apoio de estagiários constantemente. A simples possibilidade da
professora ou da estagiária sair por algum momento apavorava Pedro. Enfim, diante
da realidade na qual fora descrito o aluno, uma baixa expectativa quanto ao seu
desenvolvimento pairava para a maioria na escola.
Registramos que o aluno, até 2004, era acompanhado em horário integral, na sala de
aula, por uma estagiária. Sobre isso, analisamos a questão das ações instituídas no
espaço escolar, que determinam ou não certas atitudes, muitas vezes impedindo
reflexões, questionamentos e a adoção de novas posturas no trabalho educativo.
O referido aluno tinha inscrito em si o estereótipo da deficiência, a marca da
impossibilidade: impossibilidade de ficar sozinho, impossibilidade de fazer as tarefas
escolares, entre outras. Essa incompetência e impossibilidades foram geradas e
determinadas por suas incapacidades cognitivas e comportamentais, vistas como não
“adequadas e ideais”, em avaliações anteriores.
Porém, mesmo sendo visível seu desenvolvimento, sua história de impossibilidades o
acompanhava. O medo e a insegurança 47 de tentar deixar Pedro caminhar sozinho,
enfrentar seus desafios, suas frustrações, como os demais alunos enfrentam, ainda
faziam com que alguns profissionais alegassem também a necessidade absoluta de
ser o aluno acompanhado por um estagiário.
Ressaltamos, entretanto, um dos importantes momentos da escola e que, em nosso
olhar, veio contribuindo e reforçando paulatinamente alguns processos de mudança
silenciosos naquele contexto escolar. Esse momento foi o início do processo de
avaliação e reestruturação do Projeto Político-Pedagógico (P.P.P.) da escola.
O referido processo se deu no período de 2004 e, dentre os vários tópicos discutidos e
debatidos pelos profissionais, surge a necessidade de se aprofundarem em questões
fundamentais acerca do que é ser uma escola inclusiva, revelando-se esta como um
tópico emergente.
47 Esses medos e inseguranças partiam em grande medida da família que considerava impossível o aluno realizar suas atividades na escola sem o acompanhamento direto da estagiária. Isso fortalecia a crença nos profissionais da escola de que realmente era impossível. Parece que o medo de um alimentava o medo do outro.
147
As pedagogas que estavam, naquele período, junto à equipe de professores
convidaram-nos 48 para coordenar os grupos de estudos. Esses se deram em três
encontros, nos quais abordamos, como temática central, o trabalho com a diversidade,
tomando especificamente a função e a atribuição do professor em ser professor de
todos os alunos da classe, e não de alguns somente.
Com ênfase maior, apresentamos e discutimos a relação que deve haver entre o
professor reflexivo e a escola reflexiva, a fim de cumprir os objetivos centrais
atribuídos a ambos.
Baseamos, assim, nossas discussões, nos apontamentos de Alarcão (2003), quando
assegura que o professor não poderá agir isoladamente na sua escola, haja vista ser
ali que ele construirá sua profissionalidade docente.
A questão última e tônica de grande parte das discussões esteve relacionada ainda
com a necessidade ou não de estagiários. Perguntas como: o apoio do estagiário se
direciona a quem? Ao professor ou especificamente ao aluno com deficiência?
Essas, entre outras discussões, acreditamos, foram as bases para o convite à reflexão
para que se pudesse, por exemplo, pensar em novas possibilidades de apoio aos
alunos com necessidades educacionais especiais naquela escola, que não fossem
exclusivamente pelos estagiários.
Retomando nossa reflexão sobre o aluno Pedro, percebemos, já em 2005, que ele se
encontrava mais independente. Salientamos que, devido a várias questões de
organização do próprio setor que cadastra, avalia e envia os estagiários, o aluno
passou a freqüentar algumas aulas sem o referido apoio.
Essa situação, mesmo que originada inicialmente fora do âmbito daquela instância
institucional, forçosamente, foi desvelando alguns mitos construídos em torno do
comportamento de Pedro, formulados talvez sobre algumas bases verdadeiras e
concretas, mas que não tinham que persistir pra sempre.
A partir do mês de outubro de 2005 em diante, o aluno passa a estar sem o estagiário
em classe, desenvolvendo todas as tarefas, devidamente organizadas e orientadas à
48 Lembramos o leitor que tínhamos, nesse período, a função de Coordenação e Assessoria à Educação Especial na região à qual pertencia a escola na qual realizamos este estudo.
148
sua possibilidade de realização. Os problemas de comportamento, insegurança e
medos, gradativamente, foram sendo superados.
De volta ao que registra a professora acerca do aluno Pedro, é bom destacar que ela
atua na escola desde 1996 e faz questão de ressaltar que conhece o aluno, entre
alguns aspectos de sua história de vida, seja por participações em alguns conselhos
de classe, mesmo naquela época não sendo sua professora, seja nas demais
atividades cotidianas de seu percurso na escola.
A escolha por modelar esse sujeito, diz a professora: “[...] é ele ser um exemplo pra
nós de que é preciso acreditar [...], ele lê, escreve, é lógico que não é possível
compará-lo aos demais da classe, mas, avaliando-o em relação a ele mesmo, ele é
10!”
Os profissionais do grupo, em frente à exposição acerca de Pedro, demonstram
concordância, fazendo breves comentários pontuais de uma situação ou outra
vivenciadas por eles, sobretudo relativas às resistências que o aluno demonstrava.
Notamos, no entanto, que um dos profissionais, após as reflexões, comenta o
seguinte:
É interessante observarmos que não só o Breno amadureceu, desenvolveu-se pouco a pouco e adaptou-se às várias normas e regras sociais estabelecidas na escola, mas também, nós nos adaptamos às necessidades dele, buscamos conhecê-lo melhor.
A compreensão de que, em muitas situações, não é o aluno que terá que se adaptar
ao modelo já determinado de escola e, sim, a escola é que deve conhecer as
necessidades de seu alunado, assim como redefinir as formas e as estratégias de
tornar qualquer criança um aluno de verdade, vem revelar crescimento e um grande
ganho nas reflexões desse grupo.
Meirieu (2002), ao discorrer sobre o momento pedagógico, faz referência à descoberta
pelo professor do aluno concreto e acrescenta que esse momento se traduz no
[...] no instante em que, sejam quais forem nossas convicções e nossos métodos pedagógicos, aceitamos ser surpreendidos diante desse rosto, diante de sua estranheza, de sua radical e compreensível estranheza (MEIRIEU, 2002, p. 60).
149
Paulo
Foto 2: Sujeito “especial”
Sobre o sujeito acima modelado, a profissional que o reproduziu faz o seguinte
comentário:
Não pensei nos alunos especiais. Pensei nos nossos alunos em geral. Esse é o Paulo. 49 Ele tem 15 anos e está na 6ª série. Ele disse que não quer saber de estudar [...]. Ele é diferente. Não consigo tocá-lo. Conversei com ele e ele nem aí. Me senti um zero à esquerda [...]. Na verdade ele não agüenta o peso dos apelidos. Chamam ele de blue (PROFISSIONAL do CTA).
A distância, demonstrada pelo aluno, pelos estudos e pela escola, parece se constituir
em uma forma de resistência àquela que lhe causa tanto sofrimento, ou seja, o de não
ser respeitado pelos colegas, o de ser oprimido devido à cor, entre outras opressões.
Resgatar Paulo significa, para a profissional que o elegeu como um sujeito-desafio,
uma questão de resgate à sua própria auto-estima.
Cada grupo/duplas ia expondo suas dificuldades, seus questionamentos àqueles que
se colocavam como “incógnitas”, como expressou anteriormente uma professora, ou
desafiava os padrões instituídos e a ordem estabelecida, ou seja, a de se esperar ou
desejar os mesmos resultados, ainda que de sujeitos diferentes.
O sujeito acima apresentado, como aquele que aparentemente não “está nem aí” pra
nada à sua volta, muito menos para os estudos e o que eles podem significar para sua
vida presente e/ou futura, representa um convite aos profissionais para que se
interroguem acerca do que realmente o faz assim.
Será que o sentimento e angústia de não ser respeitado como sujeito negro, como pessoa e como ser humano como qualquer outro ali, ao seu redor, desencadeia tanto desestímulo e falta de vontade? (PROFESSORA de 5ª a 8ª série).
49 Nome fictício.
150
Não acho que seja somente isso. Essa dificuldade de lidar com o apelido e com a humilhação que deve sentir, deve vir de uma história anterior à escola, sabe, as pessoas que não acreditam nele, a própria família [...] (PROFISSIONAL do C.T.A.).
O que se mostra bastante interessante é que talvez, nesse diálogo, seja possível, por
várias hipóteses que eram tecidas e construídas, chegar a algumas respostas e/ou
soluções.
É preciso trilhar esse caminho investigativo sobre os nossos alunos e não se
conformar em absoluto com determinados comportamentos. Se esses nos transmitem
a sensação de entrega das forças, da capacidade de lutar, da sensação do não poder,
do não ser, como formas de sujeição e fracasso inscritos, seja pelo peso da diferença
étnica, da deficiência, seja pelas questões socioeconômicas, seja por quaisquer outras
que possam causar sentimentos de não pertença ao grupo, aí, sim, é que temos que
redirecionar nossas ações.
Profª Crista l
Foto 3: Sujeito que se indaga
Tendo modelado a si mesma, a professora Cristal (Foto 3) indaga-se, questionando-se
sobre como tem sido sua atuação:
O que eu tenho feito tem sido suficiente para atender às necessidades de meus alunos? E as minhas necessidades? Do que eu preciso como sujeito com responsabilidades e compromissos tão sérios? Que sentimentos me movem?
O grupo não esperava que alguém dentre eles se manifestasse, questionando-se a si
próprio, mesmo que a sugestão/orientação para a dinâmica tenha deixado em aberto
tal possibilidade. Após o estranhamento inicial, diante das perguntas da professora,
alguns começaram a compartilhar com ela alguns de seus questionamentos,
chegando até a expressar respostas.
151
É interessante que, ao apresentarem os seus sujeitos, os demais ouvintes se
arriscavam a dar respostas, informações sobre as famílias, entre outras que ou eram
conhecidas por uns, ou eram totalmente novas para o grupo.
Percebemos aí um envolvimento e um interesse singular em contribuir com aqueles
que se mostram particularmente angustiados e em busca de alternativas, tendo em
vista atuarem diretamente com os alunos apresentados.
Há no grupo certa sintonia, um pertencimento e, conseqüentemente, um desejo
coletivo em resolver tanto os seus como os problemas de seu alunado. Talvez o que
falta ou o que precisa ser pontualmente questionado e analisado tenha relação direta
com o que expressam alguns profissionais, conforme resumo:
a) A escola não agrada a maioria dos que aqui estão; tudo lá fora é diferente,
aqui fazemos quase exatamente o que fazíamos há dez, quinze anos atrás, não
mudamos quase nada.
b) Há pouca novidade.
c) A fase desses meninos é muito complicada.
d) Tentar moldá-los é impossível.
e) Somos limitados em nossas ações: é o programa, é a prova, é a nota, é a
disciplina, é a grade curricular, é a sociedade com suas cobranças, é tudo
muito aprisionante.
f) Como fazer diferente?
Trazer à tona esses anseios, discuti-los e expor o desejo de impor uma nova ordem,
mesmo se deparando com as instituições 50 já demarcadas, sinalizam ou disparam a
possibilidade de novas ações concretas para os cotidianos daquela escola.
Percebemos, nas falas dos professores, mesmo de forma não consciente, o
entendimento ou o reconhecimento de estarem transitando o espaço da
complexidade, pois, ao considerarem determinada questão, remetem-na às
50 O termo instituição aqui é utilizado para expressar os “códigos” que estão escritos e não escritos.
152
imbricadas relações que mantêm com a totalidade (relações sociais, familiares e
subjetivas, etc.).
Nesse sentido, o exercício que se empreende para compreender uma realidade,
entendendo-a como complexa, por exemplo, os vários apontamentos que fazem os
professores ali naquele momento, significa entender a interdependência entre todos
os fenômenos implicados em tal realidade.
Entretanto, mesmo entender a existência de vários fenômenos em situações reais não
garantirá “[...] a absoluta compreensão completa e definitiva da realidade” (ABREU
JÚNIOR, apud MARTINS, 1998, p. 24), ou seja, compreender que, nos dias de hoje,
estamos mergulhados cada vez mais em um cenário de complexidade é reconfortante,
à medida que se retira do paradigma positivista a idéia de que do conhecimento
científico emanam todas as verdades e respostas.
No âmbito da complexidade, a ciência, com suas previsibilidades, é concebida como
uma entre outras formas de representação do conhecimento, caracterizada desse
modo como uma, dentre muitas possibilidades de interpretação da realidade
(MARTINS, 1998).
O grupo de profissionais, nesse primeiro momento, em sua maioria, considera que há
vários elementos interdependentes, intrínsecos ou extrínsecos aos alunos, e que na
maioria das vezes os explicitam de maneiras diferenciadas, ou seja: uns resistem
apaticamente, outros resistem rompendo frontalmente com as normas, outros também
resistem quando não conseguem se expressar de uma forma ou de outra.
Parece haver uma frustração e uma angústia diante do reconhecimento dessas
resistências, tendo em vista, como nos diz Martins (1998), ainda sonharem com uma
espécie de unidade, na formação integral dos educandos.
Repensar algumas características de nosso sistema educacional, e no quanto este
desconsidera a heterogeneidade, a pluralidade da experiência e do conhecimento
advindos dos sujeitos/atores que ali estão cotidianamente envolvidos, é perseguir um
caminho que nos levará à noção de que não mais é possível simplificar e delimitar
para solucionar, uma vez que cada questão, cada problema ou mesmo solução estão
emaranhados em múltiplas redes de significação.
153
Isso nos faz refletir sobre a complexidade que vemos pairar na realidade escolar, na
tentativa de melhor compreender os fenômenos educativos, assim como descobrir que
implicações essa reflexão poderá ter nas práticas do dia-a-dia da escola, em todos os
fazeres.
Burhan (1993, apud MARTINS, 1998, p.26) explica um pouco mais sobre a noção de
complexidade, apoiando-se em Jacques Ardoino:
[...] complexidade é o que contém, engloba [...], o que reúne diversos elementos distintos, até mesmo heterogêneos, envolvendo uma polissemia notável, Tratar com a complexidade para esse autor (refere-se a Ardoino) implica lançar mão de um estatuto de análise bem diferenciado daquele da análise cartesiana, em que esta significa instrumento de decomposição, desmonte, desconstrução de um todo em suas partes elementares, com vista a uma síntese, uma explicação ulterior.
Outros autores preeminentes como Morin (2003, 2004), Padilha (2004), Barbosa
(1998), Garcia (2003) e Oliveira (2004), têm argumentado sobre a importância de nos
atermos a essa noção.
Ousando proposições um pouco mais práticas, considerando as análises teóricas até
então tecidas, compete aos que se debruçam nos múltiplos questionamentos, ou seja,
aos que fazem educação, refletir sobre a consistência, a coerência e a sensibilidade
que sutentam grande parte das argumentações na busca de novos procedimentos na
produção de conhecimento. Burhan (1993, apud MARTINS, 1998, p.27) nos aponta o
seguinte:
O que é importante nessa [...] análise é a aceitação de heterogeneidade que constitui o complexo e, portanto, a compreensão de que o exercício da reflexibilidade requerido por ela vai exigir um amplo espectro de referenciais [...], a observação, a investigação, a escuta, o entendimento, a descrição dessa complexidade, como bem dizem Ardoino e Barbier, dá-se por óticas e sistemas de referências diferentes, aceitos como definitivamente irredutíveis uns aos outros e escritos em linguagens distintas.
Os sistemas de referências diferentes para Ardoino, como apresentamos e discutimos,
significam as múltiplas possibilidades que se tem pelo olhar multirreferencial que
professores e demais profissionais da educação passam a desenvolver.
Compreendemos, então, a partir do desenvolvimento, ou melhor, do aprimoramento
desse olhar, que uma única forma de avaliar uma determinada questão ou situação no
154
interior da escola, um único e predefinido “enquadramento” de tal problema, uma visão
conceitual de homem unilateral e, conseqüentemente, de expectativas e prognósticos
preestabelecidos, já não são suficientes para o entendimento necessários que exigem
tanto a sociedade atual, quanto a própria escola, dos fenômenos educacionais
cotidianamente fluidos.
Uma possível saída que vem se descortinando ou se desvelando é a compreensão,
pelos profissionais da educação, desses fenômenos, que, representados pelos
desafios advindos de uma sociedade globalizada e plural, encontra na abordagem
multirreferencial uma proposta de
[...] estabelecer um ‘novo’ olhar sobre o humano, mais plural, a partir da conjugação de várias correntes teóricas, o que se desdobra em nova perspectiva epistemológica na construção do conhecimento sobre os fenômenos sociais, principalmente os educativos (MARTINS, 2004, p. 26).
6.2.2 O diálogo, o debate e as descobertas com o outro e para o outro
Como anunciando, estaremos, nesta seção, reunindo os elementos de maior
significado e relevância apreendidos por nós nos quatro encontros do G.D.,
discorrendo acerca das opiniões individuais e coletivas de algumas questões
relacionadas com as práticas cotidianas instituídas na escola, em relação aos alunos
com necessidades educacionais por deficiência ou não.
As questões previamente organizadas por nós, 51 em torno das práticas cotidianas,
coletadas durante nossas observações, participação nos encontros de autoformação e
nas entrevistas e questionários, objetivavam, na verdade, uma tentativa de
desvelamento no interior do próprio grupo, de suas principais concepções e
representações acerca de várias questões como:
a) Qual a finalidade dessa escola?
b) A quem ela deve servir
c) Como se processa a construção das identidades dos sujeitos envolvidos
no processo educativo?
51 Tais questões representam a fruição das práticas, das interrogações e questionamentos apreendidos por nós em entrevistas, observações, etc.
155
d) A organização do trabalho pedagógico aos alunos com NEE compete
exclusivamente aos “especialistas” da Educação Especial, ou a todos os
envolvidos no processo de escolarização dessas crianças?
e) Quem é o principal articulador dos movimentos de mudança e do próprio
currículo?
f) Qual é a “cara” de nossa escola?
g) O que nos é possível fazer a fim de que nossa escola cumpra o seu papel
de educar e compartilhar os saberes a todos, e não somente a uns?
Propomos, então, ao grupo a seguinte dinâmica:
a) já organizados em forma de círculo, cada dupla receberia uma questão
sobre a qual deveria registrar, no espaço reservado, suas considerações
acerca do problema/pergunta;
b) tendo já registradas suas observações, deveriam colocá-las dentro de
uma bola, 52 que circularia de mãos em mãos ao som de uma música;
c) na interrupção da música, quem estivesse com a bola deveria retirar,
aleatoriamente, uma questão, lê-la, emitir sua opinião sobre o tema e,
posteriormente, abrir para o grupo para as possíveis discussões.
A idéia subjacente à ação de passar a bola, assim como das tentativas e estratégias
de se esquivar, adiantando ou não sua passagem, logo veio à tona após a primeira
rodada. Uma integrante do grupo faz o seguinte comentário: “Vamos passar a bola só
na brincadeira, viu, gente!”. Estava contido, nesse comentário, a partir de nossa
análise, conscientemente ou não, um alerta aos colegas.
Uma analogia poderia ser estabelecida entre a dinâmica e o cotidiano vivido por todos
daquele grupo e poderia fazê-los, então, se voltarem às situações reais vivenciadas
por eles, pois, em primeiro lugar, sabiam que, dentro daquela bola, havia questões
desafiantes, instigadoras e problematizadoras, uma situação análoga aos sujeitos
concretos de suas salas de aula. Em segundo lugar, tais sujeitos, a exemplo da bola,
ora são seus alunos em um ano, ora são de outros professores no ano seguinte e, em
52 A bola tinha formato e design reais de uma verdadeira bola, o que remeteu a questões instigantes que serão ainda aqui apresentadas e discutidas.
156
terceiro lugar, estando frente a frente com a bola ou com o sujeito/aluno em sua
classe, subjaz a idéia, ou pelo menos surge a necessidade de conhecê-lo, investigá-lo
a fundo e tentar, desse modo, responder às dúvidas e às incertezas que se verificam
normalmente nas situações de intenso desafio.
Passar a bola, não deixá-la cair e retê-la, no exato momento em que todos esperam
com expectativa para saber o que há dentro dela, remete a algumas práticas positivas
para uns, porém igualmente negativas para outros. Assim, uns se alegravam quando a
bola lhes chegava às mãos, reclamando que ela nunca parava neles. Outros, porém,
passavam-na ligeiro, segurando-a como se estivessem com algo que lhes queimasse
as mãos. Novamente outro integrante do grupo comenta: “Gente, pra que tanta
euforia? É só ler o que o colega escreveu e manifestar sua posição e depois abrir para
a discussão!”.
Em meio a essas múltiplas interpretações e significações simbólicas do passar a bola,
traremos, a partir de agora, as representações, os apontamentos, as “soluções” e
invenções dos novos modos de agir e de organizar que o grupo apontava para si
mesmo.
Dentre as significações e sentidos que o grupo vai construindo em torno das questões
que lhe são colocadas, vamos também tecendo nossas reflexões entre idas e vindas,
que aqui chamamos de deslocamento imaginário que íamos realizando das práticas
daqueles profissionais, pelas observações e participações que tínhamos em seus
cotidianos, diante do que representavam, por meio dos discursos, do diálogo com
outro, da convergência e divergência de idéias e pelos posicionamentos quanto às
questões ali discutidas.
Como uma instância de formação em profundidade, num contexto de coletividade, o
Grupo de Diagnóstico permitiu, assim cremos, a produção de saberes e valores
próprios, ao se constituir em espaço-tempo para o desenvolvimento de atitudes de
cooperação, solidariedade, crítica, autocrítica e invenção de novos modos de ser,
estar e agir que, necessariamente, passam pela “[...] descoberta do outro e pela
elaboração de pensamentos autônomos e críticos que dêem aos sujeitos o poder de
decidir por si mesmos” (VEIGA, 1999, p. 181, apud VEIGA, 2006).
157
• Perguntas e respostas: Será o começo ou a continuidade da tecitura de
uma rede?
Agrupadas em blocos categoriais de análise, apresentamos nossas discussões a
partir do que nos foi possível captar com os participantes nesses quatro encontros do
Grupo de Diagnóstico.
Tais discussões e análises surgem do confronto entre os registros por escrito
(respostas das questões utilizadas na dinâmica), com nossas observações,
acompanhamentos e participações que tivemos nos vários cotidianos da escola, assim
como de questionários e entrevistas com eles realizados.
1º BLOCO: Reporta-se a questões do especialismo “conferido” à Educação Especial
e à delimitação de competências e/ou responsabilidades entre: professor de
ensino regular X professor educação especial X estagiário X trabalho colaborativo.
Uma das questões que vêm sendo amplamente discutidas nos seminários de
pesquisas da área, bem como em discussões realizadas por profissionais que já
desenvolveram uma nova visão acerca do profissional da Educação Especial e do
ensino regular se circunscreve no grande nó que o “especialismo”, outrora conferido
ao profissional da Educação Especial, instituiu no imaginário dos profissionais da
educação, “destituindo-lhes” da responsabilidade e competência, que naturalmente
deveriam desenvolver, ante a idéia que está subjacente aos princípios da inclusão
escolar.
Segundo Anache (2005), a especificidade da atuação da Educação Especial, por ser
ditada pelo modelo biomédico, com a finalidade de adaptar as intervenções às
peculiaridades dos déficits diagnosticados, fez emergir uma hipótese de que, nessa
perspectiva, o especial relaciona-se mais com as diferentes especialidades imbricadas
nas diversas disciplinas que compõem o campo de referência, do que com o processo
de ensino e aprendizagem.
Entretanto, devemos compreender que o aluno com deficiência que está inserido no
ensino regular deverá, como os demais alunos, estar inserido naturalmente nos
processos que circunscrevem um contexto institucional, ou seja, a escola, no
momento em que interpretamos que ensino e aprendizagem é processo de
158
comunicação humana e que tem “[...] como principal característica a intencionalidade,
e nele se desenrolam estratégias necessárias para possibilitar a aprendizagem”
(ANACHE, 2005, p. 231).
Em nossa dinâmica de discussão, duas profissionais se colocam diante de uma
questão, seguida de sua problematização. Nessa questão/problema, a
responsabilidade de ensinar, elaborar estratégias de intervenção e avaliar o aluno com
deficiência, num olhar, que pressupõe o especialismo, seria de competência do
professor da Educação Especial. Os demais alunos, sem deficiência, são do professor
do ensino regular.
Não concordamos com isso. Todo aluno independente de limitações ou especialidades é de competência da escola de modo geral (professores e funcionários). Isso não quer dizer que o apoio técnico especializado é desnecessário, pelo contrário ele é bem-vindo (PROFESSORAS de 1ª a 8ª séries).
Ao nos perguntar que processos pedagógicos são necessários para atender às
demandas das diferentes necessidades de nosso alunado, somos também conduzida
a uma importante reflexão que busca compreender, a partir de algumas indagações,
conforme faz Ferreira (2005), sobre o seguinte:
a) Que necessidades especiais seriam da esfera da Educação Especial em
colaboração com o ensino regular?
b) Quais seriam as pertinentes ao ensino regular?
c) O que poderia ser caracterizado como necessidades especiais na educação
básica, considerando os alunos com acentuadas dificuldades para aprender?
Tentando responder às necessidades que cada aluno tem, considerando-as desde as
relativas aos processos de ensino, avaliação, até as que nos parecem mais simples,
ou seja, acessibilidade física, recursos materiais, etc., estaremos respondendo a que
tipo de apoio necessitam tanto os alunos, como também os professores.
Tais necessidades nos indicarão se o que precisam, por exemplo, é de [...] um lócus
educacional complementar [...] (FERREIRA, 2005, p.141), investigando-se a partir daí
qual a natureza dessa complementariedade, ou simplesmente de um trabalho de
colaboração entre professores da Educação Especial e ensino regular, a fim de
potencializar saberes que assegurem aos alunos com necessidades especiais
159
desenvolvimento e aprendizagem, objetivos esses que estão no cerne de todo
processo educacional
Problematizamos com o grupo o seguinte: “Qual é a hipótese para essa demarcação
de competências e especialismos?” Uma profissional se posiciona:
Eu acho que isso veio se constituindo ao longo do tempo, é da sociedade essa questão do diferente. Se, até na própria sociedade, não cabia todos, a escola, conseqüentemente, não foi criada para todos. Aí pra dar conta, seleciona-se quem é de sua competência, quem não é [...]. Essa construção do que é normal e do que não é, é então, social, e alguns ainda vêm respondendo a isso demarcando lugares, os especialismos, etc. E aí eu pergunto: o que é certo? O que é diferente? O que é normal? Isso não deve acontecer, ‘normais’ ‘ou não’, todos são alunos da classe (PROFISSIONAL do CTA).
Há, na fala da profissional, uma tentativa de justificar os motivos de a escola demarcar
os saberes e sua competência, ao mesmo tempo em que os questiona, sinalizando
possibilidades de se reverter tais posturas, mesmo sendo elas originárias da formação
da sociedade em geral e argumenta, ainda, que a escola deve ser a instância
privilegiada para se quebrar paradigmas hegemônicos de exclusão e segregação,
advindos do contexto social macro.
É na escola que se abrem as possibilidades de desconstrução dos muros da
separação entre o “normal” e o “anormal”, entre o “capaz” e o “incapaz”. A escola
precisa questionar isso.
A construção social e histórica na educação de pessoas com deficiência é assinalada
e demarcada pela segregação. Diante de toda a história de exclusão, até de eugenia
que se verificava em séculos passados, a idéia da educação, mesmo de forma
segregada, era a salvação, o avanço máximo ou a explicitação e o exemplo maior de
respeito aos direitos humanos. 53
Eu penso que essa questão da escola é porque a educação [...] é um processo de dez anos. Aí parece que se fecha um ciclo [...]..A inclusão é coisa recente, então ainda persiste o discurso: o pessoal da Educação Especial [...]. Temos que levar em conta que na formação inicial do profissional, poucos são os cursos que fazem a abordagem devida sobre educação inclusiva, sob vários aspectos,
53 Tal educação de forma segregada é ainda por muitos aclamada e desejada, em alegações que vão desde a questão social do preconceito, até ao questionamento dos benefícios quanto ao desenvolvimento dos sujeitos incluídos na escola regular.
160
não só da deficiência. O profissional é formado para trabalhar com gente e alunos iguais (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).
Há uma latente preocupação no grupo sobre a necessidade de não demarcar seu
trabalho pedagógico para alunos “normais” e alunos da Educação Especial, porém
eles insistem e tentam explicar que sua “impotência” e “incompetência” decorrem dos
vários fatores que vão desde a concepção de normalidade que impera na sociedade
e, conseqüentemente, sobre a função social da escola, até às questões da formação
inicial, propriamente dita.
Recorremos, neste momento, ao que pressupõe a abordagem multirreferencial, ou
seja, buscamos compreender tais fenômenos nas ciências sociais, como a Sociologia
e a Psicologia. De acordo com Marques (2005), o que caracteriza a deficiência como
anormalidade é a marca do pensamento moderno que traz implícito o referencial de
normalidade como parâmetro para tal caracterização.
Nesse sentido, como conseqüência desse pensamento, vemos que a escola reproduz
o que socialmente foi construído. Outras ciências, por exemplo, a Psicologia,
influenciadas pelas práticas sociais fundadas na normatização e no controle
disciplinar, desenvolveram seus estudos acerca do ensino, aprendizagem, etc.
considerando a inserção dos sujeitos em uma polarização da normalidade versus
anormalidade.
Marques (2001, p. 2) diz que: “[...] o fato de se tornar evidente o traço da
anormalidade alheia traz em si o simultâneo evidenciamento da normalidade de
outrem. O anormal constitui, pois, o contraponto necessário para o estabelecimento e
a manutenção do referencial de normalidade”.
Nesse contexto, mesmo compreendendo a existência de um deslocamento de sentido
na direção da superação de modelos excludentes, nos últimos anos, por um novo
modelo fundado no reconhecimento e no respeito à diferença (MARQUES, 2005),
observamos a necessidade que tem os professores de buscar solução para as
questões práticas e cotidianas de seus fazeres.
Acho que a questão do sucesso da educação inclusiva, além de ter a ver sim com a aceitação que temos do diferente [...], e não é de deficiência ou de preconceitos somente, mas com coisas que têm relação com nossa visão de ser humano, de mundo [...], tem muito a ver com a forma como o sistema operacionaliza seu apoio, pela
161
formação continuada que a gente tem lá na SEME, pelo apoio contínuo de outros profissionais [...], enfim, não dá pra aceitar que alguém ou o Sistema pensem que inclusão é simplesmente matricular o aluno e esperar que professores que nunca imaginaram uma escola assim, para todos, simplesmente num ‘estalo’, do nada, consigam realizar as devidas adaptações, consigam administrar as múltiplas situações que surgem, com a formação que a maioria teve na faculdade (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).
As discussões prosseguem em torno do reconhecimento da importância dos
processos inclusivos e demonstram que o sentido e significado destes exigem uma
forma de compreensão que vá além daquela que se restringe ao aqui e agora em
relação a tais processos.
As falas oscilam, assim, entre a necessidade de fazer mais, porém, ao mesmo tempo,
apontam para si como agentes de fazeres que superam expectativas, haja vista suas
formações e ausência de um apoio sistemático. Consideram, então, como
imprescindível, o apoio de profissionais mais experientes na educação de alunos com
necessidades educacionais especiais.
Lembramos aqui o que Nóvoa (1997, apud VEIGA, 2006) escreve acerca da
identidade profissional, em que a construção dessa profissionalidade se dá no
significado dos movimentos reivindicatórios dos docentes e no sentido que o
profissional confere a seu trabalho, definindo o que se quer, o que não se quer e o que
se pode como professor.
Alguns professores que tiveram oportunidade de vivenciar esse apoio, que
reivindicam, 54 se manifestam, relembrando os momentos em que planejavam suas
ações com a professora especialista de Educação Especial e no quanto isso significou
para o seu aprendizado, além de um maior desenvolvimento do aluno.
A consideração real das significativas diferenças de cada aluno dispara uma
discussão acerca do currículo flexibilizado, 55 de formas mais abertas do trabalho
pedagógico e da utilização de outros espaços-tempos para o ensino e construção dos
conhecimentos. A avaliação, a disciplina, os conteúdos, entre outros aspectos, são
tomados como instâncias de reflexão. 54 Tal apoio refere-se ao acompanhamento semanal de uma profissional especialista do laboratório pedagógico de uma outra escola, em momentos de planejamento da professora com a estagiária na escolha e elaboração de atividades, reflexão e avaliação do desenvolvimento do aluno com NEE que ela atendia naquele no L.P.
162
Alguns relembram as discussões sobre currículo do livro Documentos de Identidade,
de Tomaz Tadeu da Silva, realizada há alguns meses, e estabelecem as conexões
devidas, discutindo sobre algumas práticas curriculares que têm ou não algum sentido
e significados dentro do universo das possibilidades e necessidades de cada aluno.
Que lógica há, por exemplo, a gente achar que o Carlos 56 precisa aprender equações? Isso parece até desrespeito. Não é mais interessante pensar coisas a partir de suas possibilidades reais, em que ele se veja crescendo, aprendendo pouco a pouco? (PROFISSIONAL do C.T.A.).
É interessante registrar que, nesse sentido, o trabalho que considera as necessidades
de cada aluno passa a ser ponto de discussão em relação a todos os alunos e não só
dos que têm necessidades educacionais especiais.
Interpretamos que muitos professores se vêem presos à idéia tradicional de
considerar tudo sob um único ponto de vista ou sob um único referencial. Acreditam,
no entanto, que, pelo questionamento e pela não aceitação de certas imposições e/ou
modelos vindos do sistema, isso possa ser mudado, tendo em vista que o trabalho,
em situações de grande complexidade como a que vivemos atualmente, tem “exigido”
novas posturas e novos arranjos para ofertarmos uma educação que tenha sentidos e
significados para cada aluno na escola.
Apesar dessa compreensão, os educadores assumem não conseguir viabilizar
situações práticas e exeqüíveis no plano dos limites da ação educativa, que melhor
conduzam o aluno numa sociedade real, que cobra e exige igualmente de todos que
nela estão:
Mesmo a gente sabendo que só entenderemos este aluno que aqui está se ampliarmos nosso olhar para suas múltiplas constituições, sabendo quem ele é, de onde vem, [...] sabe? Como a colega Cristal contou aquele dia, sobre sua visita à casa da menina, 57 onde moram algumas de nossas alunas, ainda assim ciente de tudo isso acabamos por ter que fazê-los adequar aos vários detalhes da organização já instituída, é disciplina, avaliação, carga horária delimitada, conteúdos. Como reorganizar tudo isso, os conhecimentos necessários, dando a eles condições de competição ao emprego, vida digna lá fora? (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).
56 Nome fictício. 57 A professora Cristal relatou em um dos momentos de estudos do livro Documentos de Identidade acerca de sua visita à Casa da Menina. Disse que lá ela pôde apreender um pouco mais das múltiplas referências que constituíam aquelas meninas, por meio de conversas com os responsáveis pela casa.
163
As provocações, em forma de discursos, que fazem os participantes do grupo,
parecem dividir opiniões entre a impotência e as possibilidades. Assim, alguns se
lembram do poder dos fazeres diferenciados, por menores que sejam, desde que
estejam revestidos de uma intencionalidade renovadora e questionadora.
Esses fazeres têm que estar apoiados na idéia de que podem se constituir em forças
de microações e em micropolíticas. Nesse fio de possibilidades que se descortina,
acredita-se que é possível desestabilizar as forças de poder instituído e representado
nas várias instituições presentes na escola, por meio de práticas inventivas e
criadoras.
Certeau (1994), interpretando Focault acerca dos mecanismos de disciplina e
procedimentos normativos e técnicos, traz a problemática dos aparelhos que exercem
o poder, explicitados pelas instituições localizáveis, repressivas e legais, sendo
substituídas pelas instituições dos “dispositivos” que “vampirizaram” as instituições e
reorganizaram o funcionamento do poder pelos procedimentos técnicos, “minúsculos”,
atuando sobre os detalhes.
Perguntamos, então: não seriam os procedimentos disciplinares da escola, avaliativos,
conteudistas, 58 limitadores ao processo de pensar e refletir, tanto de professores
como de alunos, os representativos do poder? Não seriam estes os que determinam
formas e modos de agir, segundo uma organização de sociedade predefinida e
impositiva?
Certeau (1994, p. 41) pergunta:
Que maneiras de fazer formam a contrapartida do lado dos dominados, dos procedimentos mudos que organizam a ordenação sócio-política? Essas ‘maneiras’ de fazer constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural (CERTEUAU, 1994, p. 41).
58 Leia-se por conteudistas as práticas que resumem o trabalho educativo unicamente pelo acúmulo de conteúdos, não atribuindo, inclusive, significado e sentido a outras atividades escolares que não pressuponham os conhecimentos socialmente mais cobrados (conhecimentos matemáticos, lingüísticos, conceitos científicos).
164
Lembramos aqui as “maneiras” e as “mil práticas” da professora Cristal sobre a forma
de organização que dá ao seu conteúdo e a utilização do espaço-tempo por ela
administrado na preparação do teatro que envolveu toda a classe. 59
Tal organização demonstra inventividade de uma prática não prescrita no currículo
formal. Tecnicamente, a professora Cristal não dispunha de horários extras para
ensaios, confecção de figurinos, cenários, entre outros. No entanto, numa proposta
que também envolve outros profissionais, descobre condições de gerir a
aprendizagem de seus alunos dentro de todas as prescrições curriculares instituídas.
Acreditando no desenvolvimento das múltiplas competências cognitivas, que seus
alunos vinham estruturando durante todo o processo de preparação do teatro, não lhe
ficou a sensação como se fosse um vácuo quanto à questão do volume de conteúdos
a serem trabalhados e/ou aprendidos pelos alunos.
A experiência da professora Cristal demonstra que não é suficiente apenas dizer das
impossibilidades de um fazer diferenciado, é preciso agir e inventar, inclusive burlando
algumas regras. Não basta dizer ou vislumbrar ações ideais, precisa-se desejá-las ao
ponto de romper com algumas amarras, por mais simples que sejam.
Quando Cristal reserva, em sua carga horária semanal, os dias e horários que se
dedicará com os alunos à organização do seu espetáculo teatral, convidando,
inclusive, os professores de Artes e Educação Física a se envolverem em tal tarefa,
ela se arrisca durante dois meses a “perder” horas do trabalho formal com conteúdos,
e assim “não cumprir” o que está formalmente prescrito no currículo; se arrisca
também a “perder” o controle disciplinar da turma, pela forma dinâmica que tem a
organização de tal atividade, e se arrisca ainda a ser questionada pelos pais sobre
essa forma de ensinar e aprender por meio do teatro, dentre outros riscos não
imagináveis.
Buscando estabelecer relações do trabalho da professora Cristal, nas observações
que realizamos em sua sala, com o questionário por ela respondido, destacamos sua
crença na necessidade de novas outras formas de organização do trabalho
pedagógico para melhor atender às diferenças na sala de aula. “Eu acredito que há
outras formas sim. Tem que haver [...]”. 59 Já discorremos sobre a organização de tal atividade neste texto.
165
Essa crença de que deve haver outras formas de gerir a aprendizagem a todos na
sala de aula talvez se origine daquilo que acredita ser a profissionalidade docente,
quando, em sua avaliação, em um questionário por ela respondido, diz da
responsabilidade e compromisso que devem ter os professores com a aprendizagem
de todos os alunos, devendo estes serem capazes e preparados para ensinar não a
uns somente, mas a todos. Não exclui, nessa avaliação, portanto, a necessidade de
apoios e suportes necessários a algumas situações mais específicas, em que a
colaboração de outros profissionais seguramente agrega força e sensação de não se
estar sozinha no processo.
A professora Cristal explica como tem realizado seu trabalho no atendimento às
diferenças individuais, a partir de deficiências ou não:
[...] é preciso identificar primeiro que necessidades têm o aluno, qual então deverá ser a melhor forma de ajudá-lo. Buscar trabalhar de forma que o aluno com necessidades educacionais especiais, possa interagir com a classe e vice-versa. Essa prática é uma excelente alternativa de crescimento social e intelectual para ele, assim como as atividades desenvolvidas em grupo.
Registramos que não percebemos no grupo, mesmo em professores que não contam
com apoio de estagiários para seus alunos com necessidades educacionais especiais,
a não aceitação de suas responsabilidades, quanto ao acolhimento e quanto a algum
esforço, no sentido de ensiná-los e incluí-los nas atividades da classe.
No entanto, pudemos verificar, a partir das entrevistas e questionários realizados, o
quanto clamam por apoios na organização de uma proposta de trabalho mais efetivo
com os alunos especiais, seja na escolha conjunta e na preparação dos recursos
auxiliares, com outros profissionais mais experientes, seja no processo de avaliação
do desenvolvimento de tais alunos.
Nas observações que realizamos no lócus da sala de aula, destacamos não haver
uma só situação na qual não houvesse, por mínima que fosse, a atenção dos
professores para os alunos com NEE. Entretanto, essa atenção focava-se quase
sempre em aspectos da socialização, do cuidado e atenção. Em alguns momentos,
porém, aproximavam-se do aluno, na tentativa de ajudá-lo na realização de alguma
tarefa ou encaminhamentos, por exemplo, o de solicitar a monitoria de determinado
colega ao aluno com NEE.
166
Registramos uma forma de acompanhamento realizado por duas professoras de 5ª a
8ª, que nos pareceu ideal, para aquele contexto. Previamente, elas selecionavam
várias atividades, retiradas de livros de 1ª a 4ª séries que tinham pertinência com os
temas trabalhados, haja vista que as atividades do livro adotado na classe, ofereciam
um nível de dificuldade muito superior às possibilidades do aluno.
Desde modo, após participarem da aula, ouvindo, respondendo a algumas perguntas
e participando, dentro do que era possível em alguns grupos que a professora
organizava na classe, elas lhe davam as atividades, orientando os alunos na
realização das tarefas.
Víamos que tal ação fazia com que o aluno 60 permanecesse na sala por um tempo
maior, envolvido por suas tarefas, apesar de “desestruturar” a rotina da classe e exigir
vigilância contínua da estagiária e professoras, tendo em vista seu comportamento de
não aceitação das regras de convívio, entre outras dificuldades que ele apresentava.
Consideramos, pois, que muito acrescentaria ao trabalho pedagógico de todos os
professores uma melhor estruturação de seus momentos de planejamentos, nos quais
eles seriam incentivados ou motivados a partir de algumas reflexões acerca das
limitações de uns, das possibilidades de outros alunos, dedicando-se a elaborar, criar
e inventar “mil maneiras” de fazer com que seus alunos viessem a se sentir realmente
seus e participantes da dinâmica de ensinar e aprender que é cotidianamente
desenvolvida na classe.
Como a relação e o entendimento do que seja “apoio”, nas escolas da rede de Vitória
estão muito ligadas à idéia do estagiário, percebemos, nas discussões, que tal
questão estava sempre emergindo, ora sob a compreensão de que este se constituía
em apoio ao professor, na gestão da classe como um todo, ora sob a idéia de que,
para alguns alunos, esse apoio deveria estar focado nele, haja vista o acentuado grau
de comprometimento, quanto às limitações físicas, ou para a contenção, devido ao
comportamento “anti-social”
Trazemos abaixo o que responde uma profissional, numa das discussões acerca do
que estava sendo problematizado, ou seja, se, necessariamente, todos os alunos com
60 Esse aluno era acompanhado pela estagiária em tempo integral e era, na expressão de todos da escola, o desafio maior que enfrentavam naquele contexto.
167
deficiência tinham necessidades educacionais especiais e sobre a importância de se
ter pessoas na escola, entre essas, os estagiários, para formarem uma rede de
colaboração a todos que dela precisassem:
Cada caso é um caso, ainda que haja uma tendência a se pensar que, tendo deficiência, precisa de ajuda de estagiário. Alguns talvez nem precisarão. O que a gente começa a perceber ao longo da experiência, é que o trabalho integrado fortalece a todos: alunos, professores e escola. O desenvolvimento não somente das crianças com NEE, mas de todas da classe depende realmente de uma rede de colaboração em que o coletivo sai beneficiado (PROFESSORES de 5ª a 8ª séries).
Ante a colocação da professora, em frente à “leitura” que fizemos na expressão não-
verbal de alguns poucos, felizmente, procuramos, então, provocar o grupo trazendo
uma situação real:
No momento de uma matrícula, a secretária pergunta à mãe:
─ A criança tem alguma deficiência?
─ Sim, minha filha tem Síndrome de Down. A secretária registra então na ficha da criança. A mãe então lhe pergunta:
─ Quando eu posso trazer minha filha pra escola?
A secretária pede-lhe, cuidadosamente, que aguarde até que a pedagoga entre em contato, pois sendo sua filha uma aluna especial, a SEME terá que enviar uma estagiária para acompanhá-la na classe.
Alguns dias se passaram sem que o órgão central enviasse o estagiário para
acompanhar a referida aluna, sob alegação de terem esgotado a lista de interessados
em realizar estágios. Porém, diante das constantes ligações da mãe para saber
quando poderia levar sua filha à escola, assim como de nossa intervenção 61 sobre a
importância de conhecer as necessidades reais da aluna, não condicionando sua
freqüência à vinda antecipada da estagiária, decide-se, após conversas entre
professora, pedagoga, diretora e assessoria da Educação Especial, que a aluna
começaria a estudar.
Alguns professores iniciam um diálogo em que pareciam desejar compreender os
limites da necessidade de se ter o estagiário, em frente aos objetivos para os quais a
61 Nossa intervenção se deu em função de nosso trabalho na Rede Municipal.
168
escola justifica sua existência, ou seja, além de o aluno vir à escola para se socializar
e conviver com outros, ele também vem pra aprender, como todos os outros:
─ Engraçado, mas vocês sabiam que só no nosso município é que tem essa política de estagiários? Os outros municípios não têm isso não! Imediatamente uma outra professora questiona:
─ Aí o professor se vira sozinho? Como isso é possível?
─ Ora, o que é importante saber é qual é a utilidade desse estagiário, é pra conter o aluno? É pra ficar agindo como uma babá dele ou é pra ajudar o professor a ensiná-lo?
─ Em muitas situações esse estagiário vai ajudar a conter, vai correr atrás do aluno, mas não é somente disso que o aluno precisa.
─ Na verdade, acho que é nessa hora que entra a atuação do pedagogo, da professora especialista, dos outros apoios [...] (PROFESSORES de 1ª a 8ª séries; PROFISSIONAIS do C.T.A.).
Retomamos com o grupo as questões inicialmente apresentadas acerca da matrícula
da aluna com deficiência e depreendemos que, em tal situação, as expectativas
criadas sobre crianças com Síndrome de Down, ou qualquer outra questão de
deficiência, significavam literalmente problemas e dificuldades diferentes das que
normalmente demandavam as outras crianças.
Estavam ali instituídas, antecipadamente, as condições para a freqüência de um aluna
dita especial, prevendo-se apenas problemas, dificuldades e impossibilidades, não
lhes ocorrendo que aquela aluna poderia ser somente mais uma criança e, por ser
criança, suas questões poderiam ser semelhantes às dos demais alunos de sua idade,
com algumas variações comportamentais e intelectuais evidentemente; estas, porém,
próprias e inerentes ao sujeito singular que é o próprio ser humano.
Para surpresa de todos e como mais uma experiência de aprendizado aos
profissionais daquela escola, a aluna rompe com todas as expectativas, que
essencialmente estavam perpassadas pela impossibilidade de se estar entre os
demais alunos, sem maiores comprometimentos e, sobretudo, rompe com a
expectativa de incapacidade e impotência dos profissionais em acolhê-la, em propor-
lhe situações de interação e aprendizagem, entre tantas outras tarefas que tem o
professor e/ou os demais profissionais da escola, com a educação e o
desenvolvimento de todos os outros alunos que ali estão.
169
A pedagoga revela, após alguns dias do início da nova aluna na classe, o grande
engano e “erro” que cometera ao acreditar ser impossível acolher uma aluna, por uma
predefinida hipótese de que essa criança precisaria de um apoio, que só a estagiária
poderia dar, ou seja, sendo a grande maioria dos estagiários quase sempre
inexperientes, seu apoio, então, seria “tomar conta”, “vigiar”, ser uma espécie de
“babá”, estando assim muito distante do que se propõe e objetiva uma escola de
qualidade para qualquer outra criança.
Descobrem-se, desse modo, outras formas de apoio à nova aluna, apoios esses,
porém, diretamente relacionados com a organização e preparação de um plano de
trabalho a partir do conhecimento global que passariam a ter da aluna, com propostas
que objetivassem seu desenvolvimento intelectual, afetivo e social, comparando-a
estritamente e tão-somente às possibilidades, capacidades e limites revelados por si
mesma e não tomando como parâmetro os outros alunos da classe.
Observamos, ainda, que todas as formas de apoio que foram constituídas naquele
espaço, até mesmo o apoio formal de uma outra profissional, que posteriormente viera
para a classe em que estava matriculada a aluna, significaram, para todos, um grande
passo para a autoformação e autodesenvolvimento no processo de gestão da
aprendizagem a todos.
Após essa nossa provocação com o relato e as considerações realizadas pelo grupo,
uma professora de 1ª a 4ª séries se manifesta: “[...] é o medo de errar! A gente pensa
que não sabe o que fazer!”
Outros justificam tal postura, referindo-se ao nosso relato, dizendo que a própria Rede
Municipal foi quem instituiu tal apoio, destituindo o professor de sua função de ser
professor de todos, “permitindo-lhe” que fizesse uma transferência silenciosa ou
muitas vezes gritante, aos estagiários, das suas principais responsabilidades, ou seja,
a de conhecer as características de cada aluno, propondo situações de aprendizagem
a todos e avaliando-os segundo suas peculiaridades:
As pessoas na escola [...], os professores erroneamente cometem tais absurdos, generalizando as coisas, acham que as soluções devem ser únicas e aí desconsideram as particularidades. Deixam de pensar, analisar que cada situação pode ser diferente da outra. Parece que a SEME realmente em algum momento criou uma política de apoio através dos estagiários, o que, ao meu ver, em
170
alguns casos, ao invés de facilitar o trabalho e o desenvolvimento das práticas do professor para o processo de inclusão do aluno especial o afasta deste processo, pois o aluno é literalmente entregue nas mãos desse estagiário (PROFISSIONAL C.T.A.).
O poder que emana de uma determinada “instituição”, conforme diz Castoriadis
(1982), conduz às práticas naturalizadas nos cotidianos escolares. Localizáveis ou
não, constituem-se em forças aparentemente difíceis de se romper. Não é incomum
percebermos atitudes, como a da citada pedagoga e/ou da escola, que ao serem
convidados a analisarem a situação, por meio de outras perspectivas, vislumbram
alternativas diferenciadas e vêem até com estranhamento aquilo que achavam natural,
óbvio, tendo em vista sempre terem agido assim.
Sendo assim, ao ser problematizada, naquele momento, a situação específica daquela
aluna, com alguns questionamentos ─ Nós a conhecemos? Sabemos de suas
possibilidades? Do que ela realmente precisa? ─ permitiu aos envolvidos na
questão, repensar suas atitudes em frente ao que parecia estar naturalizado,
identificando com clareza os porquês de determinadas coisas serem assim e não de
outra forma.
A partir daí, esses educadores dão-se conta de que não é possível dar a todas as
questões ou situações as mesmas respostas, uma vez que, para cada situação, nesse
caso tomando a inclusão de alunos com deficiência, remete-se a um sujeito singular,
com características próprias.
A instituição “apoio de estagiários”, em nossa interpretação, tem impedido a
descoberta e a invenção de novos modos de organização do trabalho pedagógico
para a diversidade, sobretudo considerando as diferenças dos sujeitos nela contidas,
assim como em outras possibilidades de apoio e colaboração aos professores do
ensino regular na gestão de sua classe.
Percebemos, nas falas, que um grande número de professores acredita existir outras
formas de ser apoiado. Uns dizem que realmente é mais fácil contar com o estagiário
para determinados alunos mais “incontidos”. Chegam a citar os nomes desses alunos,
assumindo que realmente, em vários momentos, torna-se impossível administrarem a
coletividade da classe sem o apoio formal de um outro adulto na sala de aula. Outros
já colocam que ver o estagiário como um sujeito que está ali para apoiá-lo, e não
171
exclusivamente para o aluno com deficiência, faz toda a diferença no seu processo de
inclusão nas atividades da classe:
Eu tenho uma preocupação comigo, sabe! Tento o máximo para que minha classe não veja a Esmeralda, 62 com a estagiária que ali está por conta dos alunos João e Ricardo, aí eu troco de função com ela. Um dia ela passa atividades no quadro, outro dia ela sai de mesa em mesa, como eu, ajudando e orientando todos, e não só aos meninos especiais. Acho que isso tem feito a diferença. Mesmo assim, alguns percebem os motivos dela estar ali.
Outra profissional se posiciona:
Se o professor levar em conta que, apesar de ser diferente, o aluno que está ali é aluno como os demais, as responsabilidades desde o planejamento das atividades, os recursos, a avaliação serão compartilhados tanto com o estagiário como com o pedagogo. Acho que deveria ser assim [...] é assim que os professores vão aprendendo a criar oportunidades de ensinar aos alunos especiais. O estagiário é pra mim do professor, da escola, e não do menino. Isso não faz muito sentido! (PROFISSIONAL do C.T.A).
Novamente as questões relativas às especificidades são tomadas, para as quais
consideram essencial o apoio do estagiário, como a segurança e proteção ao aluno
com deficiência, mas ressaltam também que esse apoio não precisa ser em tempo
integral, sufocante, pois o aluno ficaria impedido de vivenciar alguns desafios e até
mesmo frustrações que, em alguns momentos, também significam aprendizado e
desenvolvimento emocional, afetivo e social.
Nas várias manifestações, traduzem com clareza a compreensão que têm acerca do
apoio do estagiário, até mesmo na fala de quem diz e daqueles que concordam com
esse apoio:
[...] agora, em relação ao Lucas, 63 é impossível produzir qualquer coisa sem o apoio da estagiária. O pouco que ele fica sozinho na sala é bastante pra ele bater [...] acho que é quase uma questão de resguardar a integridade física dele e dos demais. Lembram o que aconteceu no ano passado? 64 (PROFESSORA de 5ª a 8ª série).
Finalizando as discussões acerca do especialismo “conferido” à Educação Especial e
à delimitação de competências e/ou responsabilidades entre: professor de ensino
62 Nome fictício da estagiária. 63 Nome fictício. 64 A professora faz referência ao problema ocorrido em sala entre Lucas e dois outros alunos em que, por questão de minutos, inicia-se uma briga entre eles resultando em pequenas lesões.
172
regular X professor Educação Especial X estagiário e trabalho colaborativo, assim
como dos apoios necessários à operacionalização do trabalho pedagógico na gestão
da aprendizagem para todos, registramos o que fala uma professora que, até aquele
momento, não se manifestara, mas consideramos de extrema importância:
Eu acho que pra mudar isso, tem que ter uma mudança de cultura na escola [...], essas discussões que a gente faz muito naturalmente, devagar, sem perceber, a gente vai perdendo determinadas resistências, vai começando a ver outras possibilidades, porque, quando o aluno é visto como aluno de toda a escola [...] a gente percebe que é preciso haver como se fosse uma rede, [...], é uma rede que tem funcionar com todos os alunos (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).
A professora faz referência à experiência que tem tido na escola Prisma 65 e sobre os
processos de mudanças por ela desencadeados em seu modo de ver e agir acerca do
trabalho pedagógico com alunos com NEE no ensino regular e conclui sua fala:
[...] essa escola abre pra possibilidades, é tanta coisa que eu já mudei, por exemplo, de coisas que eu pensava sobre inclusão de alunos com deficiência, dificuldades e impossibilidades, a gente vai mudando de perspectiva. Na verdade, é no convívio com eles que a gente acaba aprendendo, vendo o crescimento intelectual [...] a gente vai perdendo, sim, os medos iniciais. A gente acaba sendo melhor professora para todos, pois ninguém é igual na sala!
Provocar tais reflexões no grupo significou, para nós, e, conseqüentemente, para os
próprios participantes, trazer-lhes possibilidades, assim como potencializá-los para a
busca e a descoberta de novos saberes e novos fazeres.
As discussões fizerem com que outras experiências, inclusive de outras escolas,
fossem relatadas exemplificando a superação dos desafios iniciais, em suas atuações
em classes com alunos com comprometimentos diversos.
A profissional relata sua experiência no acolhimento a um aluno com deficiências
múltiplas:
[...] ninguém sabia o que fazer! Meu Deus, mas alguma coisa tinha de ser feito, mas o quê? Uma coisa era certa: ele não podia ficar ali sem fazer nada! Peguei um livro [...], ele olhava para tudo [...] alguma coisa ele tem que fazer, pintar, rasgar [...] Ah! Eu quero ver o que ele faz, o que gosta. Daí descobri seus interesses pouco a pouco [...]. Olha, esse menino começou a responder a algumas
65 A profissional chegou nessa escola nesse ano, no entanto já é servidora desse município há alguns anos.
173
coisas que inicialmente nem pensávamos que daria certo (PROFISSIONAL do C.T.A.).
A tentativa, sem medo de errar, foi um caminho, não interessando, em princípio, se
estava certo, errado, apropriado; mas na perspectiva de que apontasse um caminho
inicial. Não aceitar determinadas situações pode ser o diferencial no processo de fazer
e produzir com o aluno. Na situação acima, a profissional relata seu apoio como
pedagoga à professora, citando que, nesse município, não há uma política de apoio
vinda dos estagiários.
2º BLOCO: Refere-se às considerações dos professores, com um olhar avaliativo,
acerca de suas práticas administrativas e pedagógicas, quanto ao espaço e tempo de
formação e planejamento da ação docente.
Acreditamos cada dia mais no valor inestimável que tem um processo de formação,
que parta, sobretudo, dos interesses e necessidades dos indivíduos. A experiência
que apresentamos neste texto, sobre o processo de autoformação e que, inclusive,
em vários momentos trouxemos para nossas análises, dá conta, em nosso
entendimento, de mostrar a riqueza das idéias e das intenções que ali fluíram.
Segundo Jesus (2005), não há dúvida de que um processo de formação continuada
entre os professores se faz crítica e mandatória, devendo ter como ponto de partida as
suas dificuldades, e as lacunas que se apresentam em sua formação. Acreditamos,
assim, que esse seja o diferencial para que sejam capazes de compreender e refletir
sobre as suas práticas, assim como também de serem “ [...] capazes de transformar
as lógicas de ensino” (p. 206).
Uma escola estimulada pelos desafios e que sabe que faz parte de uma complexidade
que não diz respeito apenas a uns, mas a todos (EIZIRIK, 2003, apud JESUS, 2005)
está no caminho de ser uma escola inclusiva.
De acordo com dois professores, nas discussões do G.D., os sentidos e significados
de um processo de estudos, como o que eles vivenciaram, 66 que objetivou discutir, à
luz da teoria, várias questões, sobretudo, a questão do currículo:
66 Referiam-se ao processo de autoformação, no estudo do livro de Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de
Identidade.
174
[...] permitiu e vem permitindo uma reflexão para reavaliarmos nossas práticas pedagógicas e administrativas. Estamos sempre nos questionando: isso que estou fazendo faz sentido na construção global desse aluno, ou é só matéria, conteúdo, completamente desconectados de sua realidade, de seu contexto, de sua cultura e de seus interesses. A gente tem se preocupado mais (PROFESSORES de 1ª a 8ª séries).
Juntamente com o registro positivo de reflexão e preocupação nos planejamentos dos
professores, no que se refere ao sentido e significado das ações docentes para o
processo de construção e respeito às múltiplas identidades constituídas no espaço
escolar, registramos, também, um depoimento que, ao mesmo tempo em que deixa
escapar uma angústia e um desabafo, deixa também escapar sua crença no potencial
que cada professor ali tem demonstrado:
Percebo ainda, em alguns de nossos professores, certa cultura em fazer perpetuar práticas limitadoras à ação de pensar, refletir e de criar de nossos alunos, de considerar o ponto de vista do outro, de considerar as experiências do outro e valorizá-las. Vejo isso porque estou sempre entrando nas salas de aula e aí quando às vezes vou propor determinadas tarefas, que fogem um pouco daquelas mais rotineiras, tradicionais [...], eles ficam como se nunca tivessem vivenciado tais situações, ficando ou muito agitados ou parados [...] (PROFISSIONAL do C.T.A.).
Uma análise que fazemos de grande importância é que, mesmo a profissional tendo
lançado sua angústia diretamente às práticas de alguns colegas, de forma geral,
evidentemente, não percebemos que nenhum deles tenha ficado magoado ou se
posicionado em discordância diante do que pontuou a colega.
Contrário à nossa expectativa, para aquele momento, pois a profissional se
pronunciara um tanto quanto vibrante, de forma entusiástica e veemente, o grupo
aceitou com tranqüilidade suas observações emitindo, inclusive, algumas justificativas
e até mesmo assumindo tais práticas como não ideais e construtivas.
Com posturas visíveis de reflexão e compreensão do que seria mais coerente e
próximo aos objetivos reais de construção de sujeitos críticos e ativos, no processo de
produção do conhecimento, sugeriam modos de agir diferenciados, uns, associando
esses modos diferentes de agir às concepções e práticas que são desenvolvidas com
as crianças pequenas da Educação Infantil.
175
A profissional retoma suas observações de maneira absolutamente respeitosa,
colocando-se, além de tudo, também como professora atuante, 67 mas convidando a
todos a uma reflexão, como quem falava de um mesmo lugar naquele momento, ou
seja, a de professora de sala de aula:
Se quisermos que nosso aluno fale bem, respeite seu colega, considere o ponto de vista do outro, aprenda a se comportar em atividades em grupo [...], é preciso que se trabalhe com propostas que garantam o exercício dessas competências. Como posso querer que eles saibam trabalhar em grupo, se nunca ofereço tal oportunidade? Como quero que eles aprendam a falar em público, se expressem e argumentem bem seus pensamentos, se não tenho paciência de deixá-los se expressarem? Como vão escrever bem, se dou tudo pronto no livro, no quadro, etc.?
A profissional ainda faz referência a quanto se torna penoso a quem deseja propor
alguma atividade, que se diferencie das práticas habituais, ou seja, atividades sempre
individuais, silenciosas, pois ou os alunos se alvoroçam, pelo tom de liberdade que
determinada atividade lhes soa, transformando a sala de aula quase num campo de
guerra, ou se mostram extremamente tímidos, calados e passivos, quando a atividade
lhes exige argumentos, posicionamentos pessoais, levantamento de hipóteses e
criatividade na solução de situações-problema, etc. :
Tudo o que se faz de mais diferente do habitual, implica numa trabalheira dobrada! Parece que a gente rompe muito drasticamente com as dinâmicas e práticas pedagógicas para a construção de um sujeito mais participante, mais envolvido na ação de pensar, raciocinar, respeitar as opiniões do outro, trabalhar em equipe [...] Essas práticas parecem se encerrar quando os alunos chegam da pré-escola.
Algumas referências são feitas ao que discute Tomaz Tadeu acerca das práticas
educativas que se atêm às diferenças e singularidades dos sujeitos nos espaços da
escola, e os professores destacam que muitas delas precisariam, de forma mais
efetiva, fazer parte de suas práticas curriculares por privilegiarem atitudes
investigativas, questionadoras e críticas.
Percebemos que as questões trazidas pela profissional apontam um eixo central, que
se dirige exatamente aos aspectos que exigem não só reflexão, mas efetivamente
ações de mudança em torno do currículo que é praticado e vivido nos cotidianos da
67 A profissional é professora em outro município. Nessa escola, atua em outra função.
176
escola, remetendo às questões de ordem prática e operacional que ali estão
instituídas.
Nesse sentido, os elementos reais da prática de uma sala de aula, originários, por
exemplo, das metodologias de ensino, da utilização dos recursos didático-
pedagógicos, das concepções acerca dos processos de ensino e aprendizagem,
disciplina e avaliação, necessitam ser revisitados, objetivando, com essa revisão e
reflexão, o questionamento crítico de pontos, muitas vezes determinantes ao processo
de mudança ou não e que, de uma forma ou de outra, estão diretamente ligadas às
estruturas administrativas e pedagógicas, 68 que muitas vezes se constituem em
desafios aos novos modos de atuar e reinventar.
Esses desafios, considerados talvez como desafios menores, por muitas vezes se
travarem em torno de concepções, posturas, opiniões ou determinações individuais,
estão ainda aliados às determinações legais e formais de uma organização do próprio
sistema de ensino.
O sistema, considerado como um desafio de maiores proporções, pois a ele está
diretamente ligada a gestão de seus recursos humanos, revela um investimento
econômico cada vez menor, 69 que tem interferido sensivelmente em questões que
vão desde a distribuição de carga horária efetiva, com aulas dadas pelos professores,
com planejamentos e horários de estudos insuficientes, até as questões salariais
propriamente ditas, que, na prática, têm levado grande parte dos profissionais a
dobrarem ou triplicarem suas jornadas de trabalho diário.
Em resumo às questões aqui pontuadas, uma professora se coloca acerca da
necessidade imperiosa de se rever conceitos, posturas, entre outras várias reflexões,
deixando fluir, no entanto, a pessoa nela contida em frente às questões reais vividas
por ela e por muitos de seus colegas. Apresenta assim suas considerações:
Bom, eu concordo, acho que temos que pensar nessas coisas, sim, mas acho que tem coisas, dados da realidade que têm que ser levados em conta. Por exemplo, por que a gente nunca tem tempo suficiente para refletir, planejar, fazer? Por que não pode dispensar
68 Alguns professores observaram que, muitas vezes, algumas propostas de atividades em grupos, coletivas ou outra qualquer que venha de algum modo limitar-lhes o “controle” disciplinar da classe, assim como a realização de um processo diferenciado de avaliação, pareciam incomodar a organização instaurada na escola, desejada por alguns de seus membros, inclusive pais da comunidade. 69 Os recursos destinados à educação no município de Vitória caíram de 35% para 25%.
177
o aluno nunca para a realização de um bom planejamento? Acham realamente que o que importa é o aluno ficar aqui os duzentos dias letivos, e a gente correndo de uma escola pra outra, sem tempo até pra almoçar?
A professora apresenta dados que dizem respeito a um grande número de
professores ali presentes e a maioria concorda com o que ela coloca. Alguns
comentam o quanto as “prioridades” do sistema educacional fogem às prioridades por
eles detectadas, ou seja, as que emanam de uma escola real, viva, que emerge da
pluralidade social de seus atores.
Demonstram suas frustrações e assumem frustrarem as expectativas da sociedade
em geral e, como bem coloca a professora Célia Linhares, tal frustração educacional
vem construindo um tipo de culpa político-pedagógica que vem sendo, pouco a pouco,
impingida aos professores.
[...] o professor assume muitas culpas, muitas. Vou adiante: quando a gente se propõe em fazer alguma coisa diferente numa sala lotada, você se mata. Eu não vou me matar! Não sou mártir! E ninguém tem que ser mártir! Acho que certas coisas são quase impossíveis diante de nossas limitações como pessoas, seres humanos. Quando digo do quanto eu mudei, digo de minha percepção, do entendimento crítico de que aqui estamos para ensinar a todos, mas isso acaba sendo até mais frustrante, a gente querer fazer, e estarmos no limite de nossas forças (PROFESSORA de 5ª A 8ª séries).
Em um efusivo e caloroso discurso, é possível ver a professora pessoa, ser humano
se manifestar. Não é possível separar a profissional do sujeito que nela habita.
Parecem-nos reais e concretas as questões por ela assinaladas. Duas, das salas de
aula em que essa professora atua, têm quase 40 alunos, dentre os quais estão
presentes alunos com NEE por deficiência.
Compatibilizar desejos, anseios e lutas por uma educação de qualidade em frente a
realidades já incansavelmente denunciadas, como responsáveis pelos problemas
escolares, pela desistência ou até pela não opção de profissionais mais qualificados,
entre outros, como a apatia e o desânimo nos fazeres cotidianos da escola, configura-
se quase que num embate diário aos professores que se sentem comprometidos com
sua profissionalidade. Recorremos, então, ao que escreve Linhares (2006), alertando-
nos a não nos iludir:
178
[...] vamos precisar assumir formas de produção coletiva de conceitos, forjando uma inteligência mais solidária, com exercícios contínuos de um pensamento-ação em que politicamente prevaleçam funcionamentos autônomos e includentes, com todos os empenhos contra as desigualdades como a favor de todas as diferenças (LINHARES, 2006, p. 25).
Trazemos, ainda, acerca desse compromisso e responsabilidade, o complemento do
“discurso” iniciado pela professora no grupo de discussão. Ela lança para os colegas o
desafio pela busca de melhores condições para o exercício de seu compromisso de
educar a todos e do desejo que têm de fazer diferente. Considera que o esforço não
deva proceder unicamente de nós e se revele, às vezes, como possibilidade de
“morte” para alguns, devido às “loucuras” que professores e professoras empreendem
a fim de cumprirem até três jornadas de trabalho.
Assim, modificações simples, mas de extremo significado à realidade escolar, tanto
dos alunos, quanto dos professores, como ampliação da carga horária para
planejamentos e estudos, redução do número de alunos por sala, incentivos e
melhorias salariais, entre outras ações modificadoras, poderiam implicar maior
qualidade profissional e pessoal aos trabalhadores da educação e,
conseqüentemente, em maior qualidade no ensino de nossas crianças e
adolescentes.
[...] o que vejo nesse nosso grupo aqui da escola é que aqui há pessoas comprometidas, pessoas que querem o melhor, e que se vêem frustradas diante das muitas dificuldades. Eu conheço muita gente assim. Eu me acho uma pessoa comprometida, mas o que acontece é que [...] sendo nós pessoas que ainda não caíram no desânimo total, podemos “brigar” conjuntamente, olhar nessa mesma direção, a da mudança sabe! Mudar essa cultura do aluno, do professor, da sociedade, em fazer coisas por repetição, tudo igual. Aí, sim a escola vai crescer, o aluno vai crescer, vai aceitar vivenciar coisas diferentes (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).
Uma outra profissional acrescenta: “Éh, quando pouco a pouco essas práticas se
instituírem, contaminando um a um dos profissionais, a cultura escolar vai mudando, a
cara da escola vai se transformando, novos rumos vão se delineando”.
Registramos, no grupo, a presença de uma professora, contadora de histórias, que foi
convidada, a exemplo de outros profissionais, que nesse dia desenvolveram uma série
de atividades e oficinas diversificadas. A profissional comenta:
179
Quero parabenizar o grupo pela discussão e agradecer por poder participar aqui hoje com vocês. Os alunos que trabalhei hoje foram maravilhosos. A professora Rubi 70 me alertou para não passar do horário, mas eles se envolveram tanto que (...). Esses momentos diferentes que a gente possibilita aos alunos são extraordinários. Lá na escola em que trabalho, já vimos realizando isso, é muito positivo, instaura uma outra forma de estar na escola, de se apropriar dos conhecimentos. Vocês estão de parabéns!”
Uma profissional do C.T.A., que não se manifestara ainda, lembra que todas as
reflexões e discussões acerca do currículo, da diversidade e respeito às diferenças
inscritas em nossos alunos, e as implicações delas decorrentes são fundamentais
para a melhoria de nossas práticas com os nossos alunos com necessidades
educacionais especiais.
Desse modo, abrem-se para eles mais chances e possibilidades de participação e
ação no processo de aprendizagem. Quanto menos formal, linear e conteudista for o
tratamento dado aos conhecimentos em nossas aulas, mais oportunidades terão
aqueles que não se adaptam a tais formalidades.
3º BLOCO: Quem precisa ser incluído? Saberes e fazeres em frente às “exigências”
da sociedade X sentido e significados dados ao saber.
O hábito de utilizar o termo inclusão como referência absoluta às pessoas com
deficiência descentra o olhar dos educadores de muitos alunos que transitam o
espaço da escola e exigem de nós atitudes, posturas de acolhimento às suas
diferenças, assim com a constante reflexão acerca das práticas curriculares que
temos, ante a necessidade de oferecer muito mais, a fim de nos considerarmos
realmente como escola inclusiva.
Alguns professores lembram que, por questões diversas, é possível que cada sala de
aula tenha alunos que exigirão de nós posturas diferenciadas, nos modos de ensinar,
tratar, abordar, avaliar, etc. Nesse contexto, está aquele aluno que tem dificuldades de
se relacionar, haja vista o clima e o ambiente agressivo em que vive, ou aquele aluno
que não encontra motivação em estudar, pois sua família, apesar de não o incentivar,
destrói sua auto-imagem por questões referentes à sua sexualidade, entre outras
várias situações, que não podemos desconsiderar.
70 Nome fictício.
180
Assim, ao utilizarmos o termo inclusão, não podemos nos referir somente aos alunos
com deficiência, pois a idéia de escola inclusiva deve ser aquela que, sob nenhum
pretexto, venha desconsiderar ou desqualificar nossos alunos.
Mesmo sem deficiência, estes estão na condição de alunos que necessitam da escola
para acolhê-los em seus diferentes modos de ser e estar.
Ao serem perguntados se há alunos sem deficiência que precisam ser incluídos na
escola, dois professores respondem:
Sim, pela dificuldade que eles têm e trazem de suas próprias vivências em família, na sociedade em geral [...], aí não conseguem também conviver em grupo, se adaptar às normas da escola, em conseqüência, vem a baixa auto-estima, o desinteresse e o baixo rendimento escolar (PROFESSORES de 5ª séries).
Percebemos que a “inadaptação” desses alunos aos critérios e normas da escola os
faz excluídos dos grupos. Conseqüentemente, por não encontrar referências,
acolhimento ao seu jeito diferente de ser, desencadeiam-se outros processos de
rejeição, apatia, dificuldades, indisciplina, agressividade, violência, etc.
Uma pedagoga questiona:
Por que temos que seguir as normas e as condições dessa sociedade? É ela quem deve ditar os caminhos para a escola seguir? Temos que copiar tudo o que ela impõe?Será que o que ela aponta é tudo certo? Vamos então castigar [...] esse é um dos pensamentos instituídos na sociedade. Parece que, se não fizermos assim, não tem jeito com o menino que desobedece, não aceita as regras. Será que é isso que faz com esses alunos estejam sendo ‘excluídos’ mesmo sendo ‘normais’? É porque exigimos que ele cumpra, cumpra, só siga as normas? Se não se adequam, aí a gente exclui, o considera o diferente. Aí é que acho que devemos refletir que os nossos excluídos aqui, nesse sentido, são muitas vezes produzidos pelo modelo de escola, do sistema educacional que ainda impera.
Linhares (2006, p. 27) afirma que “[...] não podemos esquecer o depoimento de Albert
Einstein sobre os processos insidiosos que ele viveu na escola e que o levaram a
criticá-la, [...]”. O grande cientista lembra suas ameaças aos desejos de saber, que
tantas vezes foi expresso nas curiosidades, sendo estas os guias potentes da
aprendizagem:
181
Na verdade, é quase um milagre que os métodos modernos de instrução não tenham exterminado completamente a sagrada sede de saber, pois essa planta frágil da curiosidade científica necessita, além de estímulo, especialmente de liberdade; sem ela, fenece e morre. É um grave erro supor que a satisfação de observar e pesquisar pode ser promovida por meio da coerção e da noção do dever. Muito ao contrário, acredito que seria possível eliminar por completo a voracidade de um animal predatório, obrigando-o, à força,a se alimentar continuamente, mesmo quando não tem fome, especialmente se o alimento usado para a coerção for escolhido para isso (EINSTEIN, 1982, apud LINHARES, 2006, p. 27).
Linhares (2006) considera que, quando Einstein nos mostra os malefícios da
imposição, do desrespeito aos modos singulares de aprender e viver dos sujeitos, nos
faz ver, também, ao mesmo tempo, o quanto é relevante que nós, os professores,
experimentemos permanentemente o desejo de saber, instigando, questionando a
realidade para melhorá-la e aproximando-a de nossos anseios profissionais e desejos
éticos e existenciais.
Uma profissional que atua com turmas de 5ª a 8ª séries comenta que, ao realizar
tarefas que fogem ao habitus implementado ao cotidiano, apesar de oferecer outras
formas e recursos de aprendizagem mais interessantes, mais envolventes e até mais
inclusivos, permitindo várias expressões, ainda percebe, nos alunos, pais e até em
colegas, a necessidade de se aterem aos referenciais balizadores do saber, como o
livro didático, os exercícios de fixação, de revisão, a prova e a nota. De acordo com
essa profissional, isso decorre já da construção social que se tem de escola, de
imposição e de rigidez.
Por mais que abramos múltiplas possibilidades de aprender e ensinar, acabamos por
ter que enquadrar essas possibilidades, depois, em formatos que atendam às
prescrições, às normas e às exigências burocráticas. Isso, muitas vezes, não fará
sentido, por exemplo, aos alunos com deficiências, embora fazer prova, tirar nota,
passar, reprovar não devesse ter um sentido e um significado tão fortes pra ninguém,
alunos e professores, pois a função precípua da escola é ensinar, produzir
conhecimentos e avaliar pra melhor intervir.
Mesmo concordando com o que estavam colocando os colegas do grupo acerca de o
tratamento do conhecimento e do saber não se dar de forma tão linear e pautando-o
só em livros didáticos, treinamentos de exercícios, entre outras práticas assim
182
semelhantes, uma professora traz uma situação real na qual se viu obrigada a atender
à solicitação dos pais de seus alunos.
Relata a professora que os alunos de sua sala iriam, em um bom número, tentar uma
prova se seleção, ou melhor, um Bolsão para ingresso em uma grande renomada
escola da rede privada, para a 5ª série. A ansiedade dos pais e, conseqüentemente,
dos alunos fez com que ela se dedicasse a revisar repetidamente os conteúdos que
constavam do programa, pois se viu duplamente comprometida, primeiro, em atender
e ajudar os pais naquele momento, segundo, em garantir ao máximo o sucesso de
seus alunos no tal provão, visto estar ela acompanhando esses alunos desde a 1ª
série.
A pedagoga se manifesta novamente:
Apesar de vermos esse exemplo da colega, o conteúdo não deveria ser mais o centro do currículo escolar. Será que todos precisam realmente dele? Todos vão fazer o bolsão pra a escola X? A educação tem que ter outra proposta pra que o aluno possa entrar no mercado de trabalho!
Os exemplos se seguem, à medida que os professores verificam que têm, em suas
ações docentes, algumas que se aproximam daquelas que têm sido responsáveis pela
promoção de um melhor aprendizado, de uma maior integração entre todos na classe,
do envolvimento não somente dos alunos que já dominam o processo de leitura e
escrita, mas algumas ações que possibilitam condições de participação por todos na
classe.
Ainda que recorrente essa pedagoga cita o trabalho da professora Cristal como
exemplo de uma prática mais aberta à participação integral de todos os alunos da
classe, inclusive dos dois alunos com NEE:
É, mas eu acho que tem também muito essa questão de gostar, de ter afinidade com determinadas propostas, mas eu não fiz nada sozinha. A professora Ametista 71 me ajudou muito. Outros colegas cederam e estiveram em suas aulas comigo. Enfim, foi uma relação de ajuda com toda a equipe para que saísse esse espetáculo. A professora de informática muito nos ajudou, o colega que trabalha na portaria, a estagiária que, além de estar o tempo todo do meu lado, ainda foi o ‘elefante’ da história. Tivemos uma grande audiência dos pais, das professoras do L.P .72 da educação
71 Nome fictício. 72 Laboratório Pedagógico.
183
especial. Os resultados, após a exibição do teatro, foram fantásticos. Os alunos, os pais comentam até hoje [...] (PROFESSORA Cristal).
Uma das profissionais do C.T.A. diz que a idéia do trabalho com teatro é excelente,
por suas múltiplas linguagens e, apesar de implicar um amplo e organizado
planejamento “[...] mesmo dando muito trabalho”, valem a pena os resultados, pela
possibilidade de participação a todos os alunos, “[...] é uma pena este tipo de trabalho
não ser muito escolhido!”
Auxiliada pela professora que tem por opção o trabalho com teatro, ela cita as várias
possibilidades de aproveitá-lo para além de seus objetivos mais explícitos:
Pode-se, por exemplo, reescrever as falas dos personagens, reproduzir por escrito a história, ou até escrever roteiros. Podem-se pesquisar alguns elementos e aspectos de curiosidades que tenham no enredo da história [...]. Com relação aos conhecimentos gramaticais, pode-se, por exemplo, utilizar-se fartamente do que oferece o texto teatral, desde a acentuação gráfica, até classificação das palavras (verbos, substantivos...). Além dessas possibilidades há o desenvolvimento da oralidade, de várias outras competências que o trabalho em equipe garante.
Uma professora lembra um trabalho realizado com toda a classe sobre o Estado do
Espírito Santo, desde o planejamento, as orientações para pesquisas, as consultas à
internet, as visitas a alguns pontos turísticos no centro da cidade, até à produção de
textos e construção de maquetes por todos os alunos da classe. “Foi um trabalho
longo”, diz a professora.
Trabalhamos todas as etapas com o envolvimento de toda a classe. As famílias contribuíram cada uma como podia. Eles se lembram até hoje e me perguntam quando faremos um trabalho tipo aquele! Ninguém ficou sem participar. Aprenderam todo o conteúdo, mas de uma maneira bem legal!
Trabalhar na perspectiva de uma educação inclusiva, pensando concretamente o
aluno com NEE, por deficiência ou não, em sala de aula, pressupõe um trabalho e
uma organização pedagógica mais aberta e flexibilizada, de modo a atender às
necessidades, não só de uns, mas de todos. Isso é ser professor de todos.
È necessário, antes de tudo, pensar em várias maneiras de ensinar, vários recursos e estratégias. Uma visão de trabalho homogêneo tem que ser descartada. É preciso também dispor de tempo maior para planejamento, para escolher as atividades adequadas e até pensar em outros espaços para se trabalhar que não seja só a sala de aula (PROFESSORES de 1ª a 4ª séries).
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Sob esse pensamento, acreditamos ser possível efetuarem-se reestruturações e
redimensionamento do tempo, do espaço, das ações de planejamento, entre outras
“instituições” já naturalizadas e talvez tidas como inquestionáveis no contexto escolar.
Consideramos pertinente o relato da professora Roseli Baumel, na qual faz algumas
considerações pertinentes à utilidade de alguns importantes e conceituados conteúdos
presentes nas várias disciplinas escolares, questionando a extremada valoração dada
por professores a tais conteúdos, sem, contudo, revelar ou antecipar sua utilidade.
Baumel 73relata algumas de suas experiências:
─ Professor, qual será para mim a utilidade do Teorema de Piágoras? O professor lhe responde:
─ Um dia você saberá.
Igualmente relata que, numa aula de Educação Física, se viu em situação de
avaliação nas seguintes tarefas: salto em distância, lançamento de peso e corrida de
100 metros. Ao questionar a professora sobre os motivos que teria pra realizar tais
tarefas, uma vez que não deseja ou se interessa por tais esportes, ela pediu-lhe que
não discutisse e realizasse as provas.
Sem explicações ou argumentações pela professora que lhe fizesse compreender que
seria importante empreender esforços no desenvolvimento de algumas daquelas
habilidades, Baumel relata que, anos mais tarde, se viu numa situação que a fez se
lembrar das aulas de Educação Física:
Ao deparar-me com grandes poças de água nas ruas da Universidade de São Paulo (USP), após uma enorme chuva, restava-me exatamente a alternativa nada ‘esportiva’ de: salto em distância! Saltei e me esparramei inteira dentro da poça d’água! (BAUMEL, 2006). 74
O exemplo da professora vem corroborar os muitos exemplos vividos por nós em
nossas infâncias e adolescências, vindo, posteriormente, até compreender que, se
nos tivessem explicado melhor os significados e sentidos de tudo aquilo, teríamos,
inclusive, aprendido e nos saído melhor nos exames e provas.
73 Palestra proferida no X Seminário Capixaba de Educação Inclusiva em Vitória-ES, no ano de 2006. 74 Idem Palestra.
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7 CONSTRUINDO REDES DE SIGNIFICADOS: ENTRE OS DESAFIOS E AS
POSSIBILIDADES
Por acreditar que são as práticas do cotidiano que nos fornecerão as pistas para
apreendermos os sentidos e os significados dos saberes e fazeres ali tecidos e
construídos, traremos, nesta seção, algumas situações e eventos que foi possível
captar como enredamentos de saberes, percepções e sentimentos presentes no agir
pedagógico e administrativo da escola na qual realizamos este estudo.
Tais pistas sinalizam, diante de todas as questões discutidas pelo grupo, assim como
a complexidade que perpassa essas questões, o quanto demonstram esses
profissionais, em seus saberes fazeres, uma expressão de desejo, de busca e de
preocupação e angústia por não fazerem mais do que fazem.
O fato de não realizarem tudo, ou o ideal desejado, não nos faz desconsiderar as
sutilezas presentes no agir dos profissionais, em prol de uma escola melhor a todos
que nela transitam.
7.1 AS SUTILEZAS NO AGIR PEDAGÓGICO DE UM GRUPO
Consideramos como sutileza o processo manso, tênue e sem muito barulho que
alguns professores vêm desenvolvendo em suas práticas cotidianas. Alguns alunos e
professores são, desse modo, pontualmente trazidos no texto, como expressão de
seus fazeres, que, pouco a pouco, vão sendo tecidos, desvelando para si mesmos e
para os demais professores, os significados de uma prática docente voltada à
construção de uma educação de qualidade a todos.
Diante da impossibilidade de escrever tudo o que consideramos como sutilezas no
agir dos profissionais da escola, estaremos nos limitando a apresentar ações de
alguns professores que atuam com seis dos doze alunos que apresentam
significativos comprometimentos em relação ao processo de aprendizagem,
decorrentes ou não da deficiência. São eles: 75
� Pedro, aluno da 5ª série;
� Lucas e Carlos, alunos da 6ª série;
� João e Ricardo, da 2ª série; 75 Nomes fictícios.
186
� Luís, da 4ª série.
Lembramos que as séries desses alunos se referem ao ano de 2005. Exceto o aluno
Luís, todos, em 2006, estavam em séries posteriores.
Pedro é um dos alunos já trazido anteriormente neste texto. Incansavelmente, foi
apontado como um sujeito que abrigava em si “respostas” para muitos de seus
professores, ou seja, a de que era possível ensinar e também compartilhar
conhecimentos, respeitando, no entanto, o tempo, o espaço, as limitações e suas
diferenças no modo de aprender, de ser, agir, de ver o mundo, etc.
O aluno Pedro também é apresentado como aquele sujeito que faz desencadear
importantes reflexões para as ações de docentes. Um exemplo dessa reflexão surge
quando expressam suas experiências em um fazer pedagógico diferenciado:
Quando eu cheguei aqui na escola o Pedro tinha uma estagiária, e eu o deixei por conta dela [...] é uma situação, sabe [...], uma turma muito complicada! É como se fosse um alívio, menos um aluno, porém percebi que o que fazia mais efeito é quando eu me aproximava dele, chamava sua atenção, acho que ele foi se tornando meu aluno a partir do momento que comecei a me sentir responsável por ele. A estagiária me ajuda, ela funciona como meu apoio (PROFESSORA de 5ª a 8ª séries).
Em observações realizadas nas salas de aula, verificamos, acerca da ação docente
em relação aos alunos com NEE que, em algumas situações, desenvolviam um
trabalho pedagógico que indicava ter havido um planejamento antecipado e refletido
para que pudessem assegurar o ensino e a aprendizagem de todos na classe.
Percebíamos, também, que, mesmo sem tal planejamento, alguns professores
demonstravam, pelas intervenções e solicitações que faziam aos alunos, como um
todo, uma grande habilidade em promover situações de aprendizagem àqueles alunos
que não conseguiam acompanhar o ritmo, mais ou menos, evidenciado pela turma.
No entanto, também verificamos, em algumas dessas observações, que havia
situações em que o aluno era totalmente “desconsiderado”, não tendo sido lembrado
pelos professores quando do planejamento daquele conteúdo, atividade ou projeto.
Trazemos alguns exemplos das situações de trabalho pedagógico que, em nosso
olhar, expressam essas habilidades, pela intervenção e mediação que faziam alguns
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professores, bem como aqueles originados de um planejamento prévio para o trabalho
em classe com os alunos com NEE.
1º exemplo: Em uma aula de Geografia, observamos que a atividade oferecida a toda
a classe era adequada às condições de realização de Pedro, ou seja, não havia textos
densos e sim pequenas informações, em que era solicitada a observação de uma
determinada cena, a fim de identificar problemas na natureza, campo e cidade,
causados pela ação do homem. Verificamos, nessa atividade, possibilidades de
realização por toda a classe, haja vista a solicitação exigir, entre outros requisitos,
competências cognitivas que eram de domínio de todos os alunos, mesmo sendo elas
em maior grau para uns e menor para outros.
Após explicações a toda a classe e verificada a compreensão por todos, acerca da
atividade, a professora se certifica se Pedro também compreendeu. Como ele diz que
não entendeu tudo, ela, em poucos minutos, de modo individualizado, orienta-o. Isso
bastou para que ele, com tranqüilidade, fosse, pouco a pouco, desenvolvendo a
tarefa. Ao término da aula, constatamos que ele não conseguiu terminar, mas
observamos também que a professora lhe deu a oportunidade de acabar em casa e
trazer para a próxima aula.
2º exemplo: Acompanhando algumas aulas da professora de Artes, verificamos, na
confecção de mandalas, 76 feitas individualmente, um desafio momentaneamente
instalado. O aluno Carlos, com deficiência física, dependente de cadeira de rodas e
bastante comprometido em seus movimentos de pinça, equilíbrio e preensão, até
então absolutamente envolvido na tarefa de aplicar o gesso na forma, etc. não tinha
como utilizar o estilete ou o palito de churrasco, que eram os instrumentos que
estavam sendo usados para realizar os cortes das figuras desenhadas no gesso, pois
esses movimentos, devido às limitações motoras do aluno, poderiam se transformar
em riscos (cortes, perfurações, arranhões, etc..) tanto para ele como para quem o
estava ajudando. Percebendo a atividade dos demais colegas, víamos a ansiedade
em seu rosto, como se nos perguntasse: e agora, como vou continuar a tarefa? Só,
então, a professora percebe a inviabilidade do uso daqueles instrumentos e,
76 A professora iniciou naquele bimestre um estudo acerca de algumas expressões artísticas em diferentes culturas. Já tinha exibido vídeos, realizado pesquisa na internet, entre outros estudos. Nas aulas em que participamos, sua proposta já era a de confecção de mandalas. Para isso, era necessário, depois de endurecido o gesso na fôrma, que desenhassem formas diversas e, posteriormente, as contornassem com um objeto cortante ou pontiagudo, para depois pintarem.