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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGEM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA ARTHUR JOSÉ PIMENTEL LOPES CORPO E CULTURA: NOÇÕES CONTEMPORÂNEAS CUIABÁ - MT 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGEM

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

ARTHUR JOSÉ PIMENTEL LOPES

CORPO E CULTURA: NOÇÕES CONTEMPORÂNEAS

CUIABÁ - MT

2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGEM

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

ARTHUR JOSÉ PIMENTEL LOPES

CORPO E CULTURA: NOÇÕES CONTEMPORÂNEAS

CUIABÁ - MT

2012

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FICHA CATALOGRÁFICA

L864c Lopes, Arthur José Pimentel. Corpo e cultura: noções contemporâneas / Arthur José Pimentel Lopes. –

2012.

78 f. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Icléia Rodrigues de Lima e Gomes.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Área de Concentração: Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa: Epistemes Contemporâneas, 2012. Bibliografia: p. 77-79. 1. Corpo e cultura. 2. Cultura contemporânea. 3. Corpo – Processos culturais – Relação cursiva. I. Título.

CDU – 316.75 Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931

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ARTHUR JOSÉ PIMENTEL LOPES

CORPO E CULTURA: NOÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Estudos de Cultura

Contemporânea da Universidade Federal

do Mato Grosso como requisito para

obtenção do título de Mestre em Estudos de

Cultura Contemporânea na Área de

Concentração Estudos Interdisciplinares de

Cultura, Linha de Pesquisa Epistemes

Contemporâneas.

ORIENTADORA: Prof (a) Dr(a). ICLÉIA RODRIGUES DE LIMA E GOMES

CUIABÁ - MT

2012

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DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-

GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

_______________________________

PROF. DR. ROGÉRIO DE ALMEIDA (USP)

EXAMINADOR EXTERNO

________________________________

PROF. DR. WALTER GOMIDE DO NASCIMENTO JUNIOR (ECCO - UFMT)

EXAMINADOR INTERNO

________________________________

PROF.DRA. ICLÉIA RODRIGUES DE LIMA E GOMES (ECCO - UFMT)

ORIENTADORA

CUIABÁ, 13 DE ABRIL DE 2012.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a minha família, a Rodrigo Lopes (in memorian), aos

meus amigos e professores.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, ao Amor e a todos os meus entes queridos.

A Deyse Lopes, Nelson Pereira Lopes, Patricia Pimentel, Leonardo Lopes,

Juan Lopes e a pequena Luísa Lopes, meus eternos beijos.

A minha companheira Dêlania Neris, por todo amor, carinho e também muita

paciência!

A coordenação, funcionários do departamento e turmas do ECCO, que

compartilharam bons momentos e experiências que levarei por toda a vida.

Aos professores doutores Icléia Rodrigues de Lima, Walter Gomide e Rogério

de Almeida pela ajuda, broncas, orientações e amizades, fundamentais para o

caminho.

Aos professores doutores José Carlos Leite, Valderez Amaral, Patrícia Osório,

Yuji, Lúcia Helena, Ludmila Brandão, Robert Stan, Ricardo Araújo, Jivaldo Lima,

Maria Cristina Theobaldo, Roberto de Barros e Ari Brito meus agradecimentos pelo

conhecimento compartilhado.

Aos primos Erik Mendes e Domênica, Juliana Pereira, Fabio Lopes e Fabiano

Lopes.

Aos amigos do peito Fabrício Camargo, Daniel Baier, Fabiano, André Moratelli

(dedeco) e Leen Gilles, Ademir (cabinda) e Ade, Gustavo Funk , Dudu Matos, Thiago

Balbino, Zé, Delita, José, Janis Joplin e John Lennon, Wuldson Marcelo, Rodrigo

Severo, mestre Hermes, aos companheiros da banda Negramina, da Capoeira

Angola e do grupo de percussão Batuquenauá, obrigado pela inspiração.

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Não te parece então que aquele que, desde que o mundo é mundo, criou os

homens lhes haja dado,para que lhes fossem úteis, cada um dos órgãos por

intermédio dos quais experimentam sensações, olhos para ver o que é

visível e ouvidos para ouvir os sons? De que nos serviriam os olores se não

tivéssemos narículas? Que idéia teríamos do doce, do amargo, de tudo que

agrada ao paladar, se não existisse a língua para os discernir? Ao demais,

não achas dever olhar-se como ato de previdência que sendo a vista um

órgão frágil, seja munida de pálpebras, que se abrem quando preciso e se

fecham durante o sono; que para proteger a vista contra o vento, estas

pálpebras sejam providas de um crivo de cílios; que os supercílios formem

uma goteira por cima dos olhos,de sorte que o suor que escorra da testa

não lhes possa fazer mal; que o ouvido receba todos os sons sem jamais

encher-se;que em todos os animais os dentes da frente sejam cortantes e

os molares aptos a triturar os alimentos que daqueles recebem;que a boca,

destinada a receber o que excita o apetite, esteja localizada perto dos olhos

e das narículas, de passo que as dejeções, que nos repugnam, têm seus

canais afastados o mais possível dos órgãos dos sentidos? Trepidas em

atribuir a uma inteligência ou ao acaso todas essas obras de tão alta

previdência?

SÓCRATES

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RESUMO

O presente trabalho visa abordar as noções contemporâneas de corpo e

cultura. Descrever alguns modos de como concebemos cultura na

contemporaneidade é um caminho importante para compreendermos o

revigoramento das idéias e a análise sobre o corpo. A noção de cultura, cujo teor

aqui expomos, é a de que os aspectos culturais entrelaçados possuem diferentes

significados e contribuem também para o processo contemporâneo de virtualização

do corpo, com suas novas ferramentas e sua relação com a tecnologia, colaboram

para uma visão diferente, ou pós-moderna a respeito da relação entre corpo e

cultura. De uma noção de corpo vigiado e disciplinado, fruto da modernidade, passa

a ser lentamente na vida contemporânea um corpo controlado e potencialmente

virtualizado. Nessa empresa cabe-nos compreender a relação recursiva do corpo

com seus processos criativos e suas implicações dentro da cultura contemporânea.

O objetivo da pesquisa além de pretender proceder uma revisão bibliográfica em

torno do tema, é analisar a relação do corpo na cultura contemporânea sob as

diversas formas de sua (re)criação e pensar as diferentes concepções de cultura.

Será imprescindível mapear as transformações culturais e identificar as

hibridizações que dialeticamente colaboram para o constante processo autopoiético

entre os corpos e as culturas. Tal qual o nosso processo mental, as culturas criam a

si próprias e através da relação recursiva com os corpos, se auto-geram e se auto-

conservam. Descrever alguns modos de como concebemos cultura na

contemporaneidade e entender seus processos hibridizantes é um dos caminhos

importantes para compreendermos o revigoramento das idéias e a análise sobre o

corpo.

Palavras-Chaves: corpo; relação recursiva; culturas.

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ABSTRACT

The present work aims to address contemporary notions of body and culture.

To describe some ways we use to conceive culture and contemporaneity is an

important way to undestand the strengthening of the ideas and analysis about the

body. The notion of culture, which content we show here,is that the interconnected

cultural aspects have different meaning sand also contribute to contemporary

process of virtualization of the body, with new tools and their relationship with

technology, collaborate for a different or postmodern view about the relationship

between body and culture. From a notion of guarded and disciplined body, result of

modernity, it slowly becomes in contemporary life a controlled and potentially

virtualized body. In this undertaking it´s our duty to understand the recursive relation

of the body with their creative processes and their implications within the

contemporary culture. The objective of the research, besides to proceed a literature

review around the theme is to analyse the relantionship of the body on the

contemporary culture under the multiple ways of (re)creation and reason the different

conceptions of culture. It will be essencial to map the cultural changes and identify

the hybridizations which dialectically collaborate to the constant autopoiético process

between bodies and cultures. As our mental process, the culture create themselves,

and through the recursive relationship with the bodies, the cultures generate and

preserve themselves. To describe some ways we conceive culture in

contemporaneity and understand its hybridization processes is one of the important

paths to understand the strengthening of the ideas and the analysis about the body.

Key Words: body; recursive relationship; cultures.

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Sumário

RESUMO...............................................................................................07 INTRODUÇÃO.......................................................................................10 1.O que é o corpo?................................................................................14 2. O corpo na pós-modernidade............................................................24 2.1.Corpos mutantes.............................................................................38 2.2.O corpo e a cidade contemporânea................................................48 3.Cultura ou culturas?...........................................................................54 3.1.Corpos dionisíacos..........................................................................65 3.2.Hibridização cultural........................................................................69 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................75 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA...........................................................77

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INTRODUÇÃO

“Ter uma identidade fixa é hoje, nesse mundo fluido, uma decisão de certo

modo suicida”

BAUMAN

A busca da definição exata do que é o corpo e qual é a sua relação com a

cultura mutante e transformadora é a principal inquietação dos estudiosos do corpo

na contemporaneidade. As pretensões iluministas da filosofia e da antropologia do

século passado falharam ao pretenderem enquadrar o corpo em um plano repleto de

resquícios metafísicos e unidimensionais. O corpo, por outro lado, tem uma relação

recursiva com a cultura que é abastecida e recriada através de processos criativos e

transformadores, nesse sentido, o corpo é fruto da cultura que, por sua vez, é fruto

dos corpos.

Desde a modernidade por muito tempo vigorava uma visão romântica e

cartesiana que pretendia definir o corpo como provido de uma alma divina criada por

um ser superior. Descartes foi o filósofo que traçou as primeiras linhas sobre o

homem moderno, visão hoje que jaz ultrapassada. O corpo ultrapassa os séculos

pela reprodução humana e diferente dos animais, possui a capacidade de criar um

mundo simbólico, que o alimenta e colabora para a relação recursiva entre corpo e

cultura. O sistema corporal dos seres evolui como tudo a sua volta. Hoje, com o uso

de uma infinidade de máquinas o corpo tem a possibilidade de resistir por mais

tempo, imune à doenças e desastres que com certeza encurtariam seu tempo de

duração.

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Compreender as várias noções a respeito do corpo e como ele colabora no

processo de produção e (re)produção cultural, no sentido de que ele mantém uma

relação complexa com as várias culturas e constantemente é remodelado ao sabor

delas, é o principal objetivo desta pesquisa. Os processos culturais são

influenciados pela ação dos corpos e essa interdependência entre eles remete a

um mundo rico e diverso de noções ou molas conceituais.

O corpo apresenta-se como um rascunho, um esboço, incompleto e mutante.

A noção de corpo na contemporaneidade é vista como parte de um processo

criativo e recursivo entre o homem e cultura. Desde a antiguidade o homem

primitivo já utilizava o corpo como uma representação para o que está além dele,

para o Outro, para o próprio cosmo em que vive. As tattos, as pinturas de guerra, a

autofagia, remetem a uma relação do corpo com o seu dar-se no mundo, para o

mundo, como um acontecimento possuidor de eventualidade e alteridade. O corpo

transmite informação ao mesmo tempo em que se perpetua, se transmuta, perece.

Para os gregos o cultivo de uma mente sadia, refletia em um corpo igualmente

sadio e desprovido de enfermidades e vícios. A palavra corpo para os pitagóricos e

platônicos significava prisão, lugar de paixões e desejos, oposto a alma, que seria

mente individualizada e imortal.

O corpo contemporâneo torna-se um rascunho a ser corrigido, alterado e

moldado conforme as exigências atuais, com a possibilidade de ser acoplado a

máquinas que lhe darão possibilidade de viver normalmente e toda essa tecnologia

no campo da robótica passa a contribuir com os avanços da medicina no que diz

respeito principalmente às cirurgias ortopédicas. Na primeira parte da pesquisa,

analisamos a noção de corpo, através de uma comparação entre o cartesianismo e

o paradigma da complexidade, que propõe uma nova perspectiva frente às

principais questões relativas ao corpo.

A contemporaneidade é marcada como a época de crises e rupturas,

continuidades e progressos sutis. O sujeito cartesiano cedeu lugar ao sujeito

complexo que nos dá possibilidade de entendermos a questão da subjetividade

sob uma perspectiva complexificadora, isto é, nossa tarefa na contemporaneidade

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é entretecer o corpo, sem fantasma, ao intenso mundo efervescente e criativo que

também não deixa de possuir uma dimensão subjetiva. De um lado temos uma

visão cartesiana sobre os corpos, e, de outro, a possibilidade de diálogo entre

diversas áreas do conhecimento para um melhor mapeamento a respeito do corpo

e sua relação complexa e recursiva com a cultura.

Para Michel Maffesoli, é preciso “saber desenvolver um pensamento

audacioso que seja capaz de ultrapassar os limites do racionalismo moderno e, ao

mesmo tempo, de compreender os processos de interação, de mestiçagem, de

interdependência que estão em ação nas sociedades complexas”. (2008, p. 37).

Na segunda parte do trabalho abordamos a mudança paradigmática ocorrida entre

a noção de corpo moderno e contemporâneo, e como se caracteriza essa ruptura

ou distanciamento. A sociedade da disciplina como fora descrita por Foucault

cedeu lugar na contemporaneidade a sociedade de controle, implicando em novas

relações de poder entre o corpo e as instituições contemporâneas, como o

ciberespaço e as redes virtuais.

A cultura na contemporaneidade é resultado de um constante processo de

hibridização, umas sociedades permanecem mantendo alguns aspectos culturais

milenares, outras se transformam completamente, constituindo verdadeiras

caldeiras culturais. Completa-se a isso a hibridização dos corpos, fundindo metais

e outros objetos “estranhos” implantados ou acondicionados ao corpo, dando a ele

um aspecto mutante e interessante. Analisar a relação recursiva entre os corpos e

as diversas culturas existentes e seus efeitos hibridizantes foi o principal ponto

abordado na terceira parte do trabalho. Se por um lado o corpo pretendia-se

totalmente definido, por uma noção limitada vindo do pensamento cartesiano, por

outro lado, há múltiplas possibilidades contemporâneas como o retorno do

dionisíaco e do orgiasmo, como foi mostrado por Maffesoli, reveladores da criação

e manutenção da vida.

Edgar Morin, analisando a relação recursiva entre

indivíduo/sociedade/cultura, nos mostra que sem os processos culturais, pelos

quais se perpetuam os universos simbólicos dos indivíduos, não promoveríamos a

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(re)criação da cultura e dos corpos. Esta perspectiva é fundamental para

compreender a efervescências de culturas híbridas e como elas colaboram para a

recursividade existente em nossos processos complexos e dinâmicos, nos quais

somos produtores e produtos da cultura e do conhecimento.

O retorno do espírito dionisíaco, como é retratado na terceira parte do

trabalho, remete a superação do “sujeito cartesiano”, em uma perspectiva

complexa marcante para a afirmação do individuo contemporâneo e o seu “estar

com” a comunidade. As festas dionisíacas, o coletivo social, a integração do “eu”

ao corpo social, marcam efetivamente o estabelecimento de uma nova realidade

mais complexa e engajante.

Tudo isso nos mostra que na contemporaneidade o corpo é um programa a

ser (re)programado. A relação recursiva entre o corpo/cultura/sociedade é marcada

pelo entretecimento do corpo ao universo simbólico e seus produtos. Dessa forma

o corpo individual revela através do orgiasmo coletivo, novos meios de enriquecer

as complexas engrenagens da vida. As sociedades policulturais, países como o

Brasil ou os Estados Unidos, são um exemplo de como os diversos saberes

dialogam na contemporaneidade, sejam idéias, crenças ou visões de mundo,

compartilhados e distribuídos mundo afora.

Portanto, buscamos compreender a noção de corpo, definindo-o pela ótica

contemporânea de Edgar Morin e de outros pensadores, mostrando a maneira

como antigos paradigmas vão sendo abandonados e como se efetivam no mundo

contemporâneo as culturas resultantes desta relação criativa e dinâmica entre os

produtos e os produtores ou sujeitos do conhecimento, ou seja, os corpos e a

cultura.

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1. O QUE É O CORPO?

O conceito unifica, simplifica, reduz – mas a vida eclode, rebentando todas as

coleiras que lhe tentem (im)pôr, em que, talvez, o interesse da noção, como já

disse, exprime o desejo e a preocupação intelectual sem que, com isso, coaja

ou apenas tangencie. A noção permite que fiquem juntas, cada uma delas

guardando certa autonomia, coisas que foram feitas em pedaços.

(MAFFESOLI, Conhecimento Comum)

A noção do que é o corpo, fundamental para compreendermos sua relação

recursiva com a cultura, diz respeito também ao processo evolutivo do homem,

interminável e que constantemente é renovado, transformando não somente os

corpos em seus processos (re)criativos, mas também tudo ao seu redor. Segundo

Morin (1977, p. 86), “todo o conhecimento, seja ele qual for, supõe um espírito

cognoscente cujas possibilidades e limites são os do cérebro humano, e cujo

suporte lógico, linguistico e informal vem duma cultura, e portanto duma sociedade

hic et nunc”.

Os seres humanos nascem possuindo um corpo no seio de uma cultura. O

corpo é, segundo Descartes, aquilo que é extenso em comprimento, largura e

altura (1997, p. 31). Quando fomos trazidos ao mundo, herdamos um corpo, que

vai se desenvolvendo e tecendo relações complexas como mundo e com os seres.

A visão cartesiana a respeito do que é o corpo caiu por terra, paralelamente ao

avanço dos estudos relacionados a epistemologia da mente e do desenvolvimento

das diversas ciências na contemporaneidade. Edgar Morin atualmente nos mostra

uma perspectiva diferente da cartesiana, já atento com as novas possibilidades de

entretecimentos entre os corpos e suas forças geradoras, para o autor, “o corpo é

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uma república de dezenas de milhares de milhões de células, isto é, de seres-

máquinas computantes e cujas inter-poli-computações organizacionais produzem

continuamente essa realidade a que chamamos corpo”. (1996, p. 75). O corpo,

desta forma, é o meio que nos utilizamos para explorar esse mundo de

magnetismo e sabedoria, e que estabelece, através de seus processos culturais e

simbólicos uma relação recursiva com o mundo, estabelecendo uma espécie de

(re)encantamento.

O corpo é, na época contemporânea, não mais aquele fantasma cartesiano,

isolado em sua abóbada celeste, imune a todas as condições que o cerca. O

caminho da complexidade, proposto por Edgar Morin, principalmente, sugere

admitirmos outras noções mais reveladoras e complexificadoras do corpo. A

contribuição dos novos pensadores, em detrimento ao paradigma de Descartes que

jaz ultrapassado, nos fornece novas imagens e possibilidades que metaforicamente

falando arrancam o “véu de maia” das mentes iludidas pelo subjetivismo moderno.

Para Morin, o corpo necessitaria mais do que apenas um espectro da

imaginação para dar conta de sua evolução física e do seu desenvolvimento

intelectual e social.

As competências e atividades cognitivas humanas necessitam de um

aparelho cognitivo, o cérebro, que é uma formidável máquina bio-física-

química, o qual o cérebro necessita da existência biológica de um

indivíduo;as aptidões cognitivas humanas não podem desabrochar senão no

seio de uma cultura que produziu, conservou, transmitiu uma linguagem,

uma lógica, um capital de saberes, de critérios de verdade. É neste quadro

que o espírito humano elabora e organiza o seu conhecimento utilizando os

meios culturais de que dispõe. (1996, p.15).

De acordo com o argumento moriniano, todo o desenvolvimento humano no

âmbito cultural se deu em meio a saberes gerados a partir da relação entre o

homem e o conjunto de processos culturais do qual ele faz parte. As

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consequências de tal pensamento marcam este distanciamento entre a noção de

corpo na modernidade e a noção de corpo contemporâneo que aqui analisaremos.

Descartes, postulou que a afirmação “eu penso, logo existo”, ou seja, o cogito

cartesiano, seria o primeiro princípio de sua filosofia. A alma é definida por ele

como aquilo que pensa e o corpo como extensão ou matéria. (1997, p. 31). O autor

argumenta que:

Também podemos considerar o pensamento e a extensão como as coisas

principais que constituem a natureza da substância inteligente e corporal; e

por isso só devemos concebê-las como a própria substância que pensa e

que é extensa, isto é, como a alma e o corpo, pois desta forma conhecemo-

los clara e distintamente. Torna-se mesmo mais fácil conhecer uma

substância pensante ou uma substância extensa do que a substância em si,

deixando de lado a questão de saber se ela pensa ou se é extensa. (ibidem,

p. 51).

Segundo Santaella, Descartes “definiu o humano como a mistura de duas

substâncias distintas: de um lado, o corpo, um objeto da natureza como outro

qualquer (res extensa), de outro lado, a substância imaterial da mente pensante,

cujas origens, misteriosas, só poderiam ser divinas”. (2004, p.14). Para Le Breton,

que compartilha de semelhante visão a respeito da filosofia cartesiana, o homem

moderno é aquele profundamente marcado pelo enclausuramento do sujeito em si

mesmo, enquanto que na pós-modernidade o sujeito se desvencilha de seu

pretenso fantasma para assumir seu corpo de forma plena e efetiva.

Não que o dualismo cartesiano seja o primeiro a operar uma cisão entre o

espírito (ou alma) e o corpo,mas esse dualismo é de outra espécie, ele não

está mais fundado sobre um solo religioso, ele nomeia um aspecto social

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manifesto, cujas etapas nós evocamos anteriormente: a invenção do corpo

ocidental; o batente do corpo como limite à própria individualidade. Em uma

sociedade onde o caráter individualista exerce seus primeiros efeitos

significativos, o enclausuramento do sujeito em si mesmo faz do corpo uma

realidade ambígua, a marca mesma da individualidade. (LE BRETON, 2011,

p. 105 -106).

O corpo, entendido do ponto de vista cartesiano, é puramente extensão,

enquanto o verdadeiro responsável pelas atividades cognitivas seria a mente. Ora,

como então dar conta do rico universo simbólico que cerca o homem, sem recorrer

à instâncias divinas como antes pretendera Descartes? Há, para tanto, a

necessidade de analisarmos o cogito cartesiano e também a opinião de alguns

pesquisadores posteriores a respeito das principais questões no campo da

epistemologia do corpo. Stuart Hall, é um dos que buscou compreender como foi

cunhado o sujeito pensante e individualizado de Descartes e nos desvelar a face

cartesiana ante o problema corpo e mente, perene nos campos filosóficos.

Descartes postulou duas substâncias distintas – a substância espacial

(matéria) e a substância pensante (mente). Ele refocalizou, assim, aquele

grande dualismo entre a 'mente' e a 'matéria' que tem afligido a Filosofa

desde então. As coisas devem ser explicadas, ele acreditava, por uma

redução aos seus elementos essenciais à quantidade mínima de elementos

e, em última análise, aos seus elementos irredutíveis. No centro da 'mente'

ele colocou o sujeito individual, constituído por sua capacidade para

raciocinar e pensar. 'Cogito, ergo sum' era a palavra de ordem de

Descartes: 'Penso, logo existo' (ênfase minha). Desde então, esta

concepção do sujeito racional, pensante e consciente, situado no centro do

conhecimento, tem sido conhecida como 'sujeito cartesiano'. (HALL, 2006,

p. 27).

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Maffesoli nos traz uma interessante do que é o corpo identificando-o pelo

termo “couraça”, (1985, p. 20), “A angústia do tempo que passa tende a produzir a

mônada individual, nutrindo ainda o que se pode chamar de couraça caracterial”. O

corpo é possuidor de linguagem, atributo essencial do sujeito pensante. Como

trazer a noção do que é o corpo na contemporaneidade senão caracterizando-o

devidamente através da sua relação complexa com os processos culturais e com

os elementos simbólicos existentes: crenças, idéias, valores, tabus, etc. De acordo

com a opinião de Santaella (2004, p.18) “É através da linguagem que os humanos

se constituem a si próprios como sujeitos, porque é apenas a linguagem que pode

estabelecer a capacidade de a pessoa se colocar como sujeito, como a unidade

psíquica que transcende a totalidade das experiências reais que ela reúne,

produzindo a permanência de consciência”.

O mundo está repleto de símbolos e experiências. Nutrimo-nos

constantemente destas experiências para complexificar a nossa existência.

Perceber essas relações é tecer novos meios de compreensão da realidade

através do entrecruzamento cultural e da relação recursiva entre o corpo e as

diversas culturas que o cercam.

Para David Le Breton (2011, p. 7), “viver consiste em reduzir continuamente o

mundo ao seu corpo, a partir do simbólico que ele encarna. A existência do homem

é corporal”. Em outras palavras, o homem faz algo a seu corpo a partir da sua

relação de abertura com o mundo, porém, de nenhuma forma está isolado dos

outros processos interativos existentes, sendo sua parte “interna” um aspecto do

corpo e não sua essência. As crenças, idéias, religiões, de certa forma, também

fazem parte do emaranhado simbólico que dá sentido e sentimentalizam os

homens, que se utilizam destas ferramentas, evoluem e constroem novas

realidades.

O corpo é essencialmente simbólico. Nesse sentido a opinião de Le Breton

aproxima-se da visão de Ernst Cassirer, quando nos fala que o homem vive em um

universo repleto de signos e experiências. De acordo com Cassirer:

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Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um

universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são parte desse

universo. São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da

experiência humana. Todo o progresso humano em pensamento e experiência

é refinado por essa rede, e a fortalece”. (2005, p. 48).

Descartes, um dos primeiros a fazer a associação do corpo com a máquina,

dizia que o corpo humano funcionava a maneira de um relógio mecânico. Porém,

ele afirmava também que “somos uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que

afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que

odeia, que quer e não quer, que também imagina e que sente”. (1973, p. 107). O

corpo, no entender do filósofo é o que imagina, e ao mesmo tempo sente, e que

também tem a capacidade de racionalizar quando simplesmente poderia estar

restrito ao mero legislar dos impulsos e das paixões. Analisando as afirmações

cartesianas, Le Breton diz que “o homem de Descartes é uma colagem no qual se

friccionam um espírito que só encontra sentido em pensar, e um corpo, ou antes,

uma máquina corporal, redutível exclusivamente à sua extensão”. (2011, p. 107).

Descobrir a natureza do corpo, de certa forma, é descobrir sua relação com o seu

pensar e com a sua maneira de viver no mundo. A cultura age como mediador

entre a vontade e a ação do corpo. Ao mesmo tempo em que ela é criada pela

mente que coordena a atividade cerebral, ela é criadora de um conjunto de

símbolos produtos da diversidade humana. As culturas estão repletas de elementos

simbólicos, que, entrecruzados, contribuem para a construção do conhecimento

humano e para o desenvolvimento de um olhar complexo nas análises sobre o

corpo.

O corpo é um tipo de organismo não isolável e de nenhuma forma encontra-

se imune as influências e transformações ocorridas no ambiente em que se

(re)produz e que se vive. Aberto a receber novas informações, o corpo interage

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com o mundo e recebe dele, e apenas dele, as coordenadas e os “programas”

necessários a sua (re)produção e sua (re)criação. Segundo Cassirer:

Cada organismo, mesmo o mais simples, não está apenas em um sentido

mais vago, adaptado (angespasst) como também inteiramente ajustado

(eigenpasst) ao seu ambiente. De acordo com sua estrutura anatômica, ele

possui um certo merknetz e um certo wirknetz – um sistema receptor e um

sistema efetuador. Sem a cooperação e o equilíbrio desses dois sistemas, o

organismo não poderia sobreviver. O sistema receptor, através do qual uma

espécie biológica recebe os estímulos externos, e o sistema efetuador, pelo

qual reage a eles, estão em todos os casos intimamente entrelaçados.

(2005, p. 47).

A diferença principal dos homens para os demais organismos vivos, é que

além de receber os estímulos externos, somos essencialmente mais

interdependentes das interações com as teias simbólicas que nós mesmos

tecemos para darmos conta de nossa realidade, do que os seres que são

desprovidos destes sistemas de símbolos. Cassirer desenvolve o argumento de

nosso sistema simbólico ofereceu-nos uma outra realidade rompendo com aquela

experimentada pelos outros seres viventes.

Entre o sistema receptador e o efetuador, que são encontrados em todas as

espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos

descrever como o sistema simbólico. Essa nova aquisição transforma o

conjunto da vida humana. Comparado aos outros animais, o homem não

vive apenas em uma realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma

nova dimensão da realidade. (2005, p.48).

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Na contemporaneidade, com as transformações do corpo e da sua relação

com os programas simbólicos, Para Geertz, “o ser físico do homem evoluiu,

através dos mecanismos usuais de variação genética e seleção natural, até o

ponto em que sua estrutura anatômica chegou a mais ou menos à situação em que

hoje o encontramos: começou o desenvolvimento cultural”. (1989, p. 34). Com a

criação dos computadores, auxiliadores na guerra e na vida cotidiana urbana, o

homem passa a lidar com um mundo antes somente conhecido através das idéias

de sua mente.

Entre o padrão cultural, o corpo e o cérebro, foi criado um sistema de

realimentação (feedback) positiva, no qual cada um modelava o progresso

do outro, um sistema no qual a interação entre o uso crescente das

ferramentas, a mudança da anatomia da mão e a representação expandida

do polegar no córtex é apenas um dos exemplos mais gráficos.

Submetendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a

produção de artefatos, organizando a vida social ou expressando emoções,

o homem determinou, embora inconscientemente, os estágios culminantes

do seu próprio destino biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele

próprio se criou. (GEERTZ, 1989, p. 35)

As idéias de Geertz sugerem também um olhar complexo a respeito de como

o ser humano utilizando-se dos recursos simbólicos existentes evolui

constantemente, dos primórdios da sociedade até os dias atuais. A cultura emerge

do conjunto das interações simbólicas como os corpos, que, por sua vez, vão se

adaptando aos novos desafios, ou seja, novos sistemas simbólicos atuantes em um

sujeito com identidades múltiplas e fluídicas. Nesse sentido, Stuart Hall nos mostra

que:

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O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável,

está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias

identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.

Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais

'lá fora' e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as

'necessidades' objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como

resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de

identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. (2005, p.12).

De acordo com o argumento de Stuart Hall o sujeito estava antigamente preso

a uma espécie de identidade imutável. Isso não corresponde mais a noção

contemporânea de corpo, que neste caso é revelador de inúmeras possibilidades

no campo da identidade. A identidade unitária seria aquela herdada culturalmente e

transmitida de geração a geração, a outra face, ou “as outras”, seriam resultado

das diversas mudanças ocorridas no plano das identidades. Para o autor, “a

identidade é realmente algo formado, ao logo do tempo, através de processos

inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do

nascimento”. (idem, ibidem, p. 38). Edgar Morin argumenta, por sua vez, que, com

o surgimento da cultura, dos diversos saberes, dentre outros avanços da

sociedade, os homens puderam então complexificar suas relações uns com os

outros e como se encontram entretecidos homem, cultura e sociedade, a relação é

caracteristicamente recursiva e que desta forma contribui para a produção de

novos conhecimentos. Este salto só foi possível com o desenvolvimento dos

diversos processos culturais (hibridizações) e da influência deles nos processos

humanos.

É na evolução dos primatas que se operam com o homem sapiens, duas

mutações-chave no desenvolvimento maquinal das sociedades. A primeira

caracteriza as sociedades arcaicas. Surge a cultura. Memória generativa

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depositária das regras de organização social, é fonte reprodutiva dos

saberes, saber-fazer, programas de comportamento e a linguagem

conceptual permite uma comunicação em princípio ilimitada entre indivíduos

membros duma mesma sociedade.(MORIN, 1977, p. 159).

Portanto, entender os mecanismos do surgimento cultural é fundamental e

necessário para compreendermos a noção contemporânea de corpo. A partir do

desenvolvimento das artes, dos saberes e dos programas comportamentais, o

homem complexificou suas relações com o mundo e modificando não sua própria

constituição física, como também seu campo subjetivo, com suas idéias e

pensamentos fluídicos.

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2. O CORPO NA PÓS-MODERNIDADE

O filósofo é bom em conceitos, e em falta de conceitos, ele sabe quais são

inviáveis, arbitrários e inconsistentes, não resistem um instante, e quais, ao

contrário, são bem feitos e testemunham uma criação, mesmo se inquietante

ou perigosa.

DELEUZE&GUATTARI

A visão de corpo descrito por Descartes foi, de certa forma, superada a algum

tempo e isso se deu pelo fato de que há, de fato, um corpo moderno a ser superado,

ultrapassado, em uma nova mutação, e que essa transformação está intimamente

ligada aos avanços da ciência e a relação entre corpo, cultura e tecnologia, que se

torna cada vez mais efetiva na contemporaneidade. O distanciamento entre a noção

contemporânea do que é o corpo, rompendo com o discurso metafísico cartesiano,

marca esse novo período, em que admitimos novos elementos até então ignorados

pela filosofia vigente. O pós-modernismo aparece como o momento em que o

pensamento rompe com suas amarras pretensiosamente iluministas e “salvadoras”,

para estabelecer novos rumos, abandonando as pretensões cartesianas e expondo

os seus principais erros.

Se 'moderno' e 'pós-moderno' são termos genéricos, é imediatamente visível

que o prefixo 'pós' (post) significa algo que vem depois, uma quebra ou uma

ruptura com o moderno, definida em contraposição a ele. Ora, o termo 'pós-

modernismo' apóia-se mais vigorosamente numa negação do moderno, num

abandono, rompimento ou afastamento percebido das características

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decisivas do moderno, com uma ênfase marcante no sentido de

deslocamento relacional. (FEATHERSTONE, 1995, p. 19).

As mudanças sociais e culturais introduzem novos meios de transformação do

corpo ao lado de velhas formas de representação. Um exemplo é o de como a

tecnologia amplia e embeleza as pinturas permanentes corporais. Podemos em

nosso corpo, criar, recriar e até mesmo apagar aquilo que é indesejável. Outro

exemplo é que o corpo passa a ter outras relações com as instituições criadas para

controlar e através destas novas relações emergem corpos virtualizados e

desterritorializados. Para Featherstone “[...] falar em pós-modernidade é sugerir a

mudança de uma época para outra ou a interrupção da modernidade, envolvendo a

emergência de uma nova totalidade social, com seus princípios organizadores

próprios e distintos”. (ibidem, p. 20). Isso significa, segundo o autor, uma profunda

mudança na organização da sociedade, afetando os corpos que por sua vez, agem e

terminam por afetar toda a estrutura social.

Foucault tratou das relações entre corpo e sociedade na modernidade.

Segundo ele, o controle social pretende a disciplinarização do corpo, ou seja, tornar

os corpos dóceis e obedientes. Isso lembra-nos a opinião de Morin sobre o efeito no

indivíduo da normatização e do conformismo, que segundo ele, remetem a

programas disponíveis no seio da cultura, muitas vezes são acessados através de

um imprinting cultural e implantados no indivíduo corpo, como, por exemplo, a

uniformização, padronização de comportamentos, tabus e regras. O imprinting ou

selo cultural inibe as possibilidades de autonomia do indivíduo, sendo caracterizado

principalmente por ser transmitido desde nossa tenra infância pela imposição e

normalização. As formas contemporâneas das velhas instituições como as escolas e

as igrejas colaboram para negligenciarmos tudo aquilo que foge as regras e padrões

usuais. Para Foucault o que existe não é mais o corpo supliciado como antigamente,

mas sim, o corpo controlado como “o que deve ser formado, reformado, corrigido, o

que deve adquirir aptidões, receber certo número de qualidades, qualificar-se como

corpo capaz de trabalhar”. (FOUCAULT, apud MUCHAIL, 2004, p. 67). A responsável

pela disciplinarização do corpo seria a sociedade disciplinar “um modo de organizar

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o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamente o indivíduo e sua

conduta”. (MUCHAIL, 2004, p. 61). Atualmente, o uso constante de câmeras

eletrônicas de vigilância em casas e lojas das grandes cidades como São Paulo e

Rio de Janeiro, apresenta-se como uma possível concretização da idéia do

Panóptico descrito por Foucault. Hoje, o indivíduo deixa de ser vigiado, porém pode

ser controlado constantemente, desde o momento que sai de sua moradia, enquanto

que caminha pelas ruas, dentro do trabalho e também em estabelecimentos

comerciais. Desta forma, pode ser igualmente punido se ocorrido algum ato de

transgressão.

Segundo David Harvey, Foucault “trata o espaço do corpo como o elemento

irredutível do nosso esquema de coisas social, visto ser sobre esse espaço que se

exercem as forças de repressão, da socialização, da disciplina e da punição”. (2011,

p.196). O Panoptismo, que remetia a utopia de uma sociedade também pode ser

pensado na contemporaneidade, pois a maioria das instituições como hospitais,

escolas e prisões possuem atualmente várias câmeras de vídeo registrando

constantemente os corpos, podendo até gravá-los em banco de dados, e, enfim, ter

um possível controle sobre os corpos, a partir de meios eletrônicos, podendo até

inibir atos de violência ou furto em alguns casos, como no caso de câmeras que

possuem ampliadores de imagens identificando fisionomias em meio à multidões. Os

rostos são registrados, seguidos e eletronicamente gravados em questão de

segundos. Entretanto, a identidade humana passa a ser digitalizada e disponível na

ampla rede de computadores. Lá, ela pode ser modificada, moldada à deriva, pois a

rede tem amplas possibilidades de mutações, transpondo os limites entre o que é o

real e o que não é, e formando rostos e corpos que são a concretização dos

avatares modernos. Segundo Foucault (1996, p.146), “aquilo que tornava forte o

poder passa a ser aquilo por que ele é atacado". Agora, afirma Foucault, "o poder

penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio corpo”. (ibidem, p.147).

A criação da rede mundial de internautas propiciou o nascimento do terreno

no qual as identidades, os rostos são apresentáveis segundo a vontade dos

indivíduos, isso quer dizer que estamos diante de uma promoção do rosto antes

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jamais vista. O rosto retratado cada vez mais pode ser manipulado através de

programas que possui inúmeras técnicas de embelezamento, atraentes para o

público do ciberespaço. A face, os olhos e a boca são (re)criados e disponíveis em

um amplo mercado de cirurgias estéticas.

Não há, com o advento do mundo virtual, o esquecimento do sujeito ou

mesmo sua negação. O homem pode ser aquilo que ele pensa que é (rosto

simétrico, corpo perfeito), sendo limitado, claro, pelo fato dele estar em frente à uma

tela manipulando um mouse. De acordo com Foucault, o mesmo controle ou

tentativa de repressão por outro lado estimula também o desejo entre os corpos.

Apesar dos inúmeros programas de controle de privacidade e outras formas de

tentar disciplinar o acesso dos navegadores virtuais em locais restritos, há também a

constante recriação de espaços e redes sociais nos quais os indivíduos são

expostos e estão passíveis de novos ataques ao seu avatar digital, podendo ser

falseados e caluniados como qualquer outro que esteja conectado na rede.

Foucault tratou também da relação entre corporeidade e poder na sua célebre

obra “Vigiar e Punir”, traçando novos rumos para aquele que, agora por toda a parte

é controlado e tem sua obediência cobrada com forte repressão física ou através de

estratégias sutis, ou seja, corpos compactuando com a submissão e o controle. Ao

analisar as relações entre corpo e poder, o autor demonstrou que os corpos, eterno

objeto dos espetáculos, se tornaram objeto do espetáculo político, através

supressão da dor e sofrimento causados pelos suplícios públicos. Na

contemporaneidade, entretanto, há novas ferramentas usadas pelo Estado para

controlar e domesticar os corpos. Uma equipe de técnicos especializados substitui a

figura do carrasco como falara Foucault, e as penas capitais, em alguns países,

podem ser substituídas por outras punições como pagamento de multa ou prestação

de serviços comunitários. O corpo não é mais perseguido e esquartejado, porém o

controle social o oprime de tal maneira, que as condições a que são submetidos os

indivíduos que cometem crimes reduzem seus corpos a um amontoado de gente

empilhada em presídios e cadeias públicas. Para Foucault:

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“No entanto, um fato é certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o

corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado, simbolicamente no rosto

ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o

corpo como alvo da repressão penal". (1996, p.14).

Antes, o uso da figura do carrasco, posteriormente a guilhotina que

proporcionava a mesma morte para todos os crimes, no passado a decapitação,

hoje, infelizmente, ainda há o uso da cadeira elétrica e da injeção letal, ou de outras

formas de punição. Tudo isso evidencia que o corpo passa a ser “cuidado” cada vez

mais num novo cenário de execução penal, onde a figura dos antigos carrascos é

substituída por médicos, psicólogos e enfermeiros que cuidarão até de checar a

pressão do condenado e o alimentar dignamente no momento do cumprimento de

sua sentença.

A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse

implicar de espetáculo desde então terá cunho negativo; e como as funções

de cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser compreendidas, ficou a

suspeita de que tal ritos que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele

afinidade espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria,

acostumando os telespectadores a uma ferocidade de que todos queriam

vê-los afastados, mostrando-lhes a freqüência dos crimes, fazendo o

carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no

último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de

admiração.(idem, ibidem.).

Hoje, as punições são retratadas e transformadas em espetáculo de tal forma,

que os carrascos são os telespectadores, das redes de televisão e das redes

virtuais, e os crimes são perpetuados através de câmeras e teatralizações ou

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filmagens do acontecido, entretendo uma população ávida em ver a justiça sendo

feita a qualquer custo.

O suplício era a grande ferramenta do Estado para garantir a ordem e com o

passar do tempo, o braço violento do carrasco ganhou outras formas, sendo

aperfeiçoado na contemporaneidade. O corpo não é mais tocado, martirizado em

praça pública e o linchamento (execução por meio de multidão) é visto como algo

execrável, sendo reprimido veemente pelas autoridades. O corpo não é o alvo,

pretende-se outra coisa com o criminoso, ou seja, modificar aquilo que pode trazer

utilidade para a sociedade. O corpo, do modo como foi explicitado por Foucault, nos

remete a uma essência humana modelada historicamente e politicamente, com a

possibilidade (na maioria dos países) de sofrer penas que não utilizem da dor e do

suplício humano.

Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que

não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão, a reclusão, os trabalhos

forçados, a servidão dos forçados, a interdição de domicílio, a deportação –

que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são penas

“físicas”: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo. A relação

castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-

se aí em posição de instrumento ou de intermediário: qualquer intervenção

sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o

indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e

como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema

de coação e de privação, de obrigações e de interdições. (idem, ibidem,

p.16).

Nos dias atuais multiplicam-se novas formas de punição atreladas ao uso da

tecnologia para tentar resolver, por exemplo, o problema da superlotação carcerária.

O corpo tem a possibilidade de ser monitorado digitalmente, e com isso diminui-se a

necessidade de submetê-lo a espaços físicos inadequados e insuficientes para o

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cumprimento de sua pena. O vigia, aos poucos vai sendo substituído pelo técnico

em informática, que seria o controlador de um programa que permitiria acompanhar

o réu em qualquer lugar. Para Foucault:

[...] por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio

substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os

médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua

simples presença ao lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de

que ela precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos

últimos de sua ação punitiva.(idem, ibidem.).

Para Foucault, (ibidem, p.17), os rituais modernos da execução capital

evidenciam “um duplo processo – supressão do espetáculo, anulação da dor”. Isso

significa que a dor, processo do qual ninguém gosta de passar, passa a ser

suprimida e não mais recomendada na execução das sentenças. Um exemplo disso

é que se um agente policial executar um criminoso sem o devido processo legal, ele

responderá por homicídio e poderá ser expulso da corporação. Os criminosos

possuem direito a integridade física antes e depois do julgamento independente da

natureza de seu crime.

Do mesmo modo, todo o processo penal sofre modificações, nesses tempos

atuais, o corpo pode fornecer cada dado essencial à investigação criminal. Exames

de DNA, câmeras de vigilância, amostras de sangue, pele, tudo mostra o quanto o

corpo está “presente” e deixa seus vestígios por qualquer lugar que passe, por isso,

“a operação penal inteira carregou-se de elementos e personagens extrajurídicos”.

(ibidem, p. 25). Com suas objeções a respeito da relação entre os métodos de

punição e as relações de poder entre corpo e sociedade, Foucault tentou, através de

seus estudos explicar a “metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma história

de uma tecnologia política do corpo na qual se poderia ler uma história comum das

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relações de poder e das relações de objeto”. (ibidem, p. 26). De acordo com

Foucault:

Os historiadores vêm abordando a história do corpo há muito tempo.

Estudaram-no no campo de uma demografia ou de uma patologia históricas;

encararam-no como sede de necessidades e de apetites, como lugar de

processos fisiológicos e de metabolismos, como alvo de ataques

microbianos ou de vírus: mostraram até que ponto os processos históricos

estavam implicados no que se poderia considerar a base puramente

biológica da existência; e que lugar se deveria conceder na história das

sociedades a “acontecimentos” biológicos como a circulação dos bacilos, ou

o prolongamento da duração da vida. Mas o corpo também está diretamente

mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato

sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a

trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais.(ibidem, p. 28).

No mundo contemporâneo estabeleceu-se a idéia de que os corpos possuem

múltiplas identidades, podendo ser modificadas e transportadas para um universo

digital, tendo suas individualidades desmanchadas e integradas em uma realidade

totalmente diferente da natural. O espaço construído no meio digital passa a ser o

palco para que os atores se apresentem ao público como lhes convém. Realidade

distorcida, multifacetada, ampla arena de evocações e transformações, nela, o corpo

permanece preso ao sujeito e a realidade material, mesmo assim, não é possível

viver só na realidade virtual em detrimento às suas necessidades corporais. Sobre a

relação homem-sociedade, diz Hall que “a identidade é formada na 'interação' entre

o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o 'eu

real', mas forma-se e modifica-se num diálogo contínuo com os mundos culturais

'exteriores' e as identidades que estes mundos oferecem”. (2006, p.11). Segundo

Maffesoli, a própria existência humana é “fragmentada, polissêmica, feita de

sombras e luz ou, numa só palavra, o que é cada vez mais admitida, obra de um

homem, ao mesmo tempo sapiens e demens”. (2007, p. 205). O homem controla o

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destino de seu corpo, apresentável em pequenas doses de modificações,

importantes para sua afirmação em um grupo ou para si mesmo acima de tudo. Não

impera mais o determinismo biológico que o levava a se conformar com aquilo que a

natureza havia dado a ele e no meio digital e em realidades fantasiosas, o corpo é

pavoneado, na expressão de Maffesoli, para adaptar-se as novas exigências

contemporâneas. O corpo biológico é esquecido para dar lugar a um rosto

modificado ou transmutado à mercê de seu portador.

O corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo

submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou

da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força,

agir sobre elementos materiais sem, no entanto ser violenta; pode ser

calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso

de armas nem de terror, e, no entanto continua a ser de ordem física.

(FOUCAULT, 1996, p. 28).

Foucault fala em sua obra da sutileza com que o Estado procurou propagar a

idéia de controle dos corpos. A diminuição do espaço público e do tempo de

descanso dos trabalhadores pode ser vistos como formas de manter os corpos

obedientes e servis, maneiras essas que não utilizam da violência, mas tampouco

deixam de ser incisivas na mensagem que tais medidas querem passar, ou seja,

ocupar os corpos todo o tempo, mantê-los prevenidos do contato e da propagação

de idéias que remetam à ociosidade ou lazer. Trabalhar os corpos para que os

homens não tenham descanso. Segundo Foucault, (1996, p. 30) “não é a atividade

do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o

poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que

determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento”.

Ainda, para o autor, a relação entre corpo e política remete a um estudo de

um “corpo político”, visto como um “conjunto dos elementos materiais e das técnicas

que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio

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para as relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os

submetem fazendo deles objetos de saber”. (idem, ibidem.).

De acordo com Foucault, com o desenvolvimento de instituições como

hospícios e prisões tentam-se corrigir os corpos mantendo experiências de controle

do tempo e estabelecendo relações de poder.

O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais,

rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade

na medida em que ele é instrumento e vetor de poder; era toda essa

tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” - a dos

educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras – não consegue mascarar nem

compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos.

(ibidem, p. 32).

Na contemporaneidade o uso de computadores, por exemplo, através do

contato somente virtual entre técnicos, juristas e os réus, sem a necessidade de

presença física, tende a reforçar a atitude sutil de controle do Estado com relações

aos corpos mesmo estando eles em regiões de difícil acesso, ou também a idéia de

que o estado gasta muito dinheiro no transporte de presos de alta periculosidade em

audiências judiciais. Os corpos, desta forma, são acessíveis virtualmente (tele-

presença) e suas sentenças podem ser dadas à distância. A tecnologia é usada para

discipliná-los e mantê-los dóceis, sem o recurso de violência e coerção por parte

executores da lei. Poderemos ver em poucos anos que a presença física do réu não

se fará necessária em nenhum momento do processo legal, podendo ter sua

sentença proferida a centenas de quilômetros.

Para Featherstone ”O pós-modernismo é percebido antes como um

aprofundamento das tendências antinômicas do modernismo, com o desejo, o

instintivo e o prazer liberados para levar a lógica modernista a suas últimas

consequências, exacerbando as tensões estruturais da sociedade e a disjunção dos

domínios” (1995, p. 26). O corpo encarna a batalha entre o homem prometéico e o

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dionisíaco, e, como veremos mais adiante, segundo as palavras de Maffesoli, o

retorno de Dioniso nos remete a superação do passado racionalizante, fechado em

metafísicas e respostas absolutas, sendo que agora temos a noção de corpo como

ente aberto para o mundo, para os novos contatos e meios de interação, e que

inclusive produz-se a si próprio.

A noção de corpo na pós-modernidade é marcada por ser um

ultrapassamento com relação à pretensão de alguns filósofos do passado,

principalmente Descartes, de situar o sujeito em instâncias “divinas” e dotá-lo de um

“fantasma” responsável por comandar as atividades do corpo. Para Stuart Hall

(2005, p.10), “[...] nós somos também 'pós' relativamente a qualquer concepção

essencialista ou fixa de identidade – algo que, desde o Iluminismo, se supõe definir o

próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamentar nossa existência como

sujeitos humanos”. Assim, nos desvencilhamos do velho paradigma da identidade

fixa, solitária, vigente na época passada para nos ancorarmos em múltiplas

possibilidades de concepção e reformulação das novas identidades em

efervescência social. O corpo é palco da representação dessas diversas facetas do

ser humano, ele mesmo capaz de se adaptar e reorganizar novos planos identitários.

A cibercultura e mundo virtual são espaços desprovidos de corpos físicos

possuidores de uma entidade real que foge as nossas simples regras e convenções.

Na Internet, a rede mundial de computadores, milhares de verdades espalham-se à

velocidade da luz. Afinal, como se inventa e se consolida a verdade no mundo

contemporâneo? Através dos efeitos da globalização as distâncias jamais

percorridas encurtam-se pelo acesso tecnológico, uma idéia dissemina-se sem

nenhum tipo de controle e através dos ideais pré-fabricados que a vida inteira se

imitou no nosso processo criativo, sendo assim, invertemos a lógica grega e criamos

a síntese dos nossos anti-heróis, surgidos a partir da notoriedade que alguns crimes

alcançam na mídia. O pós-modernismo se caracteriza, sobretudo, pelo fato de que:

assinala a morte dessas 'metanarrativas', cuja função terrorista secreta era

fundamentar e legitimar a ilusão de uma história humana 'universal'. Estamos

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agora no processo de despertar do pesadelo da modernidade, com sua razão

manipuladora e seu fetiche de totalidade, para o pluralismo retornado do pós-

moderno, essa gama heterogênea de estilos de vida e jogos de linguagem

que renunciou ao impulso nostálgico de totalizar e legitimar a si mesmo...A

ciência e a filosofia devem abandonar suas grandiosas reivindicações

metafísicas e ver a si mesmas, mais modestamente, como apenas outro

conjunto de narrativas. (Eagleton apud David Harvey, 2011, p. 19 – 20).

Fala-se em crise na cultura contemporânea, não se esgotam os estudos e as

publicações sobre os mistérios da mente humana. Numa atitude exclusivamente

mental, dedicamo-nos a um mundo virtual e com isso desprezamos o corpo e a sua

saúde. Por causa disso também conservamos uma atitude extremamente passiva

diante do corpo e cultuamos os corpos dos atletas dos dias de hoje como se eles

fossem seres de outro mundo, possuidores de uma força de vontade milagrosa,

longe da nossa realidade. Depreciamos os concertos, o teatro, as galerias de arte,

os museus, para vivermos a mercê de uma programação cultural pobre e efêmera.

A morte da arte é um daqueles termos que descrevem, ou, melhor,

constituem, a época do fim da metafísica como Hegel a profetiza, como

Nietzsche a vive e como Heidegger a registra. Nessa época, o pensamento

se acha, diante da metafísica, numa posição de Verwindung: com efeito, não

se abandona a metafísica como um traje que já não se usa, porque ela nos

constitui destinalmente: somos remetidos a ela, somos remetidos por ela,

ela é remetida a nós, como algo que nos é destinado (VATTIMO, 1996, p.

40).

Para Vattimo a palavra Verwindung remete ao conceito de ultrapassamento

que tem em si as características da aceitação e do aprofundamento. Nesse sentido,

significa também convalescença, resignação. O homem tem a capacidade de

(re)inventar a cultura, através do processo criativo mental. Essa capacidade

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geradora movimenta o corpo que lhe assegura a ação. Todo o mundo virtual inexiste

ante a falta da ferramenta humana. O mesmo homem que constrói bombas, também

pode plantar árvores e reaproveitar o lixo. Objetivando boas idéias cria-se uma

extensão até as nossas últimas criações, como a Internet, hoje nosso principal

veículo comunicacional, e determinamos qual conteúdo será utilizável no futuro.

Segundo Villaça e Góes, “nesse momento de crise, o corpo deixa de funcionar como

dado de identidade fixa e natural, lugar de delimitação e referência estável, para

tornar-se a expressão da identificação pela mutação e pela performance”. (1998,

p.13). Isso significa nova postura do homem frente aos desafios presentes na

contemporaneidade, com uma forte tendência a superá-los.

A cibercultura extingue as fronteiras e o mundo antes desconhecido abre suas

portas, ocorrendo o entrecruzamento das mais variadas culturas. Cada homem por

toda parte torna-se um cidadão do mundo e pode se comunicar com seus

compatriotas universais. O espaço virtual é criado com o objetivo de interligar

cidadãos desenvolvendo programas que são adotados pelos internautas conectados

na rede. Morin tratou em sua obra “O Método – Vol. 4” das condições culturais do

conhecimento. Para isso, utilizou o termo imprinting para fundamentar sua

argumentação. Segundo ele, o sujeito cognoscente procede perante as condições

sócio-culturais determinantes do conhecimento por dois caminhos: o do imprinting e

o da normalização. O termo imprinting é usado para indicar uma forma de

estabilização – e conseqüente normalização – da mente/consciência que se dá ao

longo da constituição de determinado caldo cultural”. O imprinting é termo que

Konrad Lorenz propôs para traduzir a marca inapagável imposta pelas primeiras

experiências do jovem animal”. (MORIN, 1992, p. 25). Tal imprinting é constituído e

mantido através de processos normativos (regras, tabus). As conseqüências, muitas

vezes, é o determinismo e a normalização. Para Morin (1991, p. 17), “cultura e

sociedade estão em relação geradora mútua”, sendo os indivíduos responsáveis

pela transmissão cultural no processo cognitivo. Destas atividades emergem inter-

retroações dialógicas do poliprograma sócio-cultural que comanda o processo de

produção simbólica no corpo/mente.

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De acordo com Morin, “há um imprinting cultural que marca os humanos,

desde o nascimento, com o selo da cultura, primeiro familiar e depois escolar, e que

prossegue na universidade ou no exercício da profissão” (1992, p. 25). O autor

conclui pela existência do “processo ininterrupto de um anel bio-antropo-(cérebro-

psico)-cultural” (1991, p. 19). Isso implica dizer que o processo de conhecimento é

um jogo dialógico entre produtor e produto, no qual o produto gera o produtor e o

produtor é regenerado pelo produto. O conhecimento se dá neste processo interativo

e dialógico. O corpo cria e transmite a cultura, ao mesmo tempo em que é também

um produto e um reflexo dessa mesma cultura. A mente trabalha para a

concretização das idéias que criam a cultura ao mesmo tempo (re)criadora dela. Há

a possibilidade de um novo homem. Nas palavras de Nietzsche, (1994, p. 15), “O

homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima

do abismo”. O corpo é símbolo da cultura, transmitindo e reproduzindo seus mitos,

crenças, idéias e religiões. Uma abordagem antropológica da relação entre corpo e

cultura na contemporaneidade é talvez um olhar atento as novas transformações

que ocorrem com o corpo e sua inserção neste processo criativo entre indivíduo,

sociedade e cultura. De acordo com os argumentos de Morin, (1996, p. 74), “é

preciso que os códigos linguisticos e simbólicos sejam engramados e transmitidos

numa cultura para que haja emergência do espírito”.

Como diz Vattimo, (1996, p. 149), “a antropologia cultural é pensada aqui

como discurso sobre as “outras” culturas, e o antropólogo aparece como aquele que

– para retomar uma expressão de Remo Guidieri - “vai o mais longe possível”. Essa

tentativa permanece e, ao mesmo tempo em que tentamos compreender o

surgimento e a extinção do “outro”, há a resistência de culturas e também uma

espécie de manutenção das velhas práticas em detrimento à parafernália

tecnológica contemporânea. Ainda segundo Vattimo:

[...] o antropólogo se vê, com freqüência cada vez maior, tomando

consciência de uma condição que talvez seja própria de toda a antropologia

ocidental, desde o seu surgimento, mas que hoje chegou de certo modo a

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seu ponto extremo: o fato de que, como escreve Remo Guidieri “a

ocidentalização do mundo está hoje consumada”, ainda que isso, como se

verá em breve, não indique que as outras culturas tenham desaparecido

(1996, p.155).

As culturas não desaparecem, nem são substituíveis. Elas são mesclas de

processos hibridizantes e por isso colaboram no processo de formação do homem e

é parte dele. Os processos culturais são criados pelos corpos em movimento, sendo

estes (re)criadores de novas formas de cultura. Essa relação recursiva entre corpo e

cultura torna efetivamente o homem mais rico e complexo, representando o que ele

é para si e para o mundo.

2.1. Corpos Mutantes

Segundo Stuart Hall, (2006, p. 7), o argumento que prevalece na

contemporaneidade é o de que “velhas identidades, que por tanto tempo

estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e

fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”. O

corpo é e será o eterno rascunho, inacabado, modificado constantemente,

(re)adaptado e (re)significado. Apreendido por alguns instantes em abóbadas

mecânicas, o corpo desafia o homem a desligá-lo de suas reminiscências cósmicas,

de seu corpo-comunidade, restando apenas o homem indivíduo, sendo sua “couraça

caracterial” um acessório, uma matéria prima para idealizações estéticas.

Conforme Le Breton apregoou “nas sociedades de tipo comunitário, em que o

sentido da existência do homem marca uma submissão fiel ao grupo, ao cosmo e à

natureza, o corpo não existe como elemento de individuação, uma vez que o próprio

indivíduo não se distingue do grupo [...]”. (2011, p. 33). Por outro lado o corpo, na

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contemporaneidade, sendo fruto e produtor da cultura, exala a arte e o desvio, torna-

se o símbolo do contemporâneo. A arte das tatoos, dos artefatos extracorpóreos que

adornam desde as tribos do Quênia até os jovens de Tókio, nelas o corpo expressa

sua arte e torna-se produtor dela, ao mesmo tempo em que é produzido (rosto,

membros) pelo movimento artístico da moda ou da arte alternativa (desvio). A obra

“Mãos que desenham” de M. C. Escher retrata a imagem de uma mão desenhando

outra sobre uma folha de papel. A teoria da recursividade presente nesta obra de

arte revela o sublime momento da criação artística, isto é, o corpo que desenha a si

mesmo.

Para Michel Maffesoli “O corpo não é apenas veículo de aparência

enganosa, mas lugar de fascínio, sedução, criação de alianças, via pactos estéticos

que celebram o prazer, a criatividade e o humor”. (2006, p. 33). O autor fala de um

corpo que se pavoneia, ou é “adornado” na contemporaneidade:

Assim, o corpo que se pavoneia [...], é causa e efeito de toda socialidade

dinâmica. É também, como se compreenderá facilmente, a manifestação

privilegiada da estética, no sentido preciso que dou a esse termo: o de

experimentar juntos emoções, participar do mesmo ambiente, comungar dos

mesmos valores, perder-se, enfim, numa teatralidade geral, permitindo,

assim, a todos esses elementos que fazem a superfície das coisas e das

pessoas, fazer sentido. (2005, p.163).

Como lembra Deleuze “o corpo é linguagem porque é essencialmente

“flexão”. Na reflexão, a flexão corporal se acha como desdobrada, cindida, oposta a

si, refletida sobre si; ela aparece enfim por si mesma, liberada de tudo o que a

esconde ordinariamente". (2003, p. 294). De acordo com Deleuze “se a linguagem

imita os corpos, não o faz pela onomatopéia, mas pela flexão. E se os corpos imitam

a linguagem, não o é pelos órgãos, mas pelas flexões”. (ibidem, p. 295). No teatro

contemporâneo dos corpos, o indivíduo transmite o mundo simbólico no qual está

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encarnado através de seu ser-estar como o mundo. Quando está perante outros

atores, desempenha o papel de transmissor de sentido. Tudo o que o corpo faz e

exprime no palco, representa o que ele é para si, para os outros e para o mundo.

O corpo é linguagem. Mas ele pode ocultar a palavra que é, pode encobri-la.

O corpo pode desejar e deseja geralmente o silêncio a respeito de suas

obras. Então, recalcada pelo corpo, mas também projetada, delegada,

alienada, a palavra torna-se o discurso de uma bela alma, que fala das leis e

das virtudes e que silencia sobre o corpo. (ibidem, p. 298 -299).

O corpo tornou-se objeto de extrema preocupação, ocupar-se de sua alma é

ocupar-se de seu corpo (Foucault). As análises da relação entre corpo e linguagem

são os fios condutores para entendermos o corpo do ponto de vista da

complexidade. David Le Breton, demonstrou a tese de que o corpo está se

modificando para ser no futuro uma espécie de corpo-máquina, tornando aquela

antiga vestimenta biológica ultrapassada e pouco a pouco abandonada. Os gregos

antigos, como os gnósticos, acreditavam que o corpo era o cativeiro da alma e que

seria liberada após a morte.

Descartes, que segundo Le Breton formulou o princípio de que o modelo do

corpo humano é a máquina, ou seja, “uma mecânica discernível das outras apenas

pelas singularidades das suas engrenagens”, (2003, p.18), comparou o corpo

humano à máquina deixando de lado o fato de que, diferentemente das máquinas a

vida humana tem uma duração certa e suas peças não podem ser trocadas

infinitamente. Para Morin (1977, p. 152), a comparação entre o corpo e a máquina se

deve ao fato de que “uma máquina é uma organização práxica onde as formas se

fazem, se desfazem e se refazem, e, nas máquinas vivas como na arquimáquina

solar, o trabalho de transformação simultaneamente destrói, constrói e

metamorfoseia”. Ainda na opinião de Morin “todo ser físico cuja atividade comporta

trabalho, transformação, produção, pode ser concebido como máquina”. (ibidem, p.

150). Na visão de Breton o corpo “é um rascunho a ser corrigido”. (ibidem, p. 16). As

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cirurgias estéticas e as modificações corporais provam isso. A ciência pretende

amenizar a fragilidade e a sujeição à morte na velhice dos homens, e tentam de

todas as maneiras disfarçarem e até mesmo adiar esse momento com uso de

drogas e órgãos artificiais. A morfina, por exemplo, medicamento desenvolvido para

ser usada por militares em combate, passou a ser usada também nas operações em

hospitais da rede pública. O uso da tecnologia, aliado as conquistas na área da

medicina pode gerar recursos fundamentais para o homem sentir menos a

fragilidade de seus órgãos e atenuar as dores adquiridas na convivência com as

intempéries humanas.

O corpo torna-se objeto de cuidados antes jamais pensados, como anestesias

e cirurgias reparatórias. Todos os seres humanos, de soldados a trabalhadores têm

o direito ao corpo corrigido, livre dos sofrimentos e da dor causados pelos membros

dilacerados em um acidente. De acordo com Le Breton (ibidem, p. 17), “corrigir o

corpo, torná-lo uma mecânica, associá-lo à idéia da máquina ou acoplá-lo a ela é

tentar escapar desse prazo, apagar a insustentável leveza do ser (Kundera)". O

envelhecimento do corpo e sua inadiável morte rendem milhões aos cientistas

responsáveis pelas modernas fórmulas da juventude. São pesquisas com plantas

raras, implante de metais preciosos, próteses e estuda-se até a possibilidade de

criarmos ciborgues - segundo Le Breton, organismos humanos hibridados com

máquinas - para tentarmos compreender a vida dos seres humanos que raramente

ultrapassa um século.

Na opinião de Le Breton (ibidem, p.18) “a biotecnologia ou a medicina

moderna privilegia o mecanismo corporal, o arranjo sutil de um organismo percebido

como uma coleção de órgãos e funções potencialmente substituíveis”. Os órgãos

físicos agora são substituídos por próteses mecânicas, e futuramente, amputados e

vítimas de acidentes poderão também receber órgãos artificiais que obedecerão a

comandos neurológicos. As tentativas de torná-lo imune a doenças e fatalidades

levam os pesquisadores a desenvolver novas técnicas de reparação corporal. Isso

significa que num futuro bem próximo o corpo será o principal objeto de estudo de

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cientistas e médicos, ávidos do mercado de órgão artificiais, em substituição aos

órgãos biológicos dos pacientes.

De cirurgias plásticas ao corpo-máquina, o corpo se transforma em artefato

incompleto e moldável, podendo ter suas forças potencializadas ou reprimidas. Em

contrapartida, Le Breton (ibidem, p. 19), revela que “a doença e a morte são o preço

pago pela relativa perfeição do corpo. O prazer e a dor são os atributos da carne,

implicam o risco da morte e da simbólica. A máquina é igual, fixa, nada sente porque

escapa à morte e ao simbólico”. O homem, ao mesmo tempo símbolo e carne, tem a

morte do corpo e a permanência no campo simbólico, a “couraça caracterial”

supranumerária de que fala o autor, segundo ele, o corpo é “vestígio multimilenar da

origem não-técnica do homem. Corpo supranumerário ao qual o homem deve sua

precariedade e que é importante tornar imune ao envelhecimento ou à morte, ao

sofrimento ou à doença”. (idem, ibidem, p. 20). Paralelo ao sentimento de abandono

do corpo reina a idolatria dos corpos. Os mesmos devem aparecer nos meios

midiáticos musculosos e esculpidos. A televisão, por sua vez, só é capaz de

perpetuar e propagar imagens belas ou transformadas.

O corpo pode ser recriado, remodelado, se o consumidor de cirurgias

estéticas for insatisfeito com a aparência herdada da beleza de seus pais. Na

contemporaneidade, são oferecidas no mercado as partes de corpos de artistas e

atletas, devidamente fotografados e replicados. É comum o roubo de imagens dos

modelos para a montagem de fotos “fakes” (falsas), com a ajuda de recursos

eletrônicos como photoshop, um programa de computador que altera a imagem

retratada originalmente e a molda conforme a vontade do operador, retocando e

corrigindo imperfeições, sejam das mais simples até as mais complexas. Mas, não

só os programas virtuais colaboram para a modelação do corpo, ou seja, centenas

de aparelhos de exercícios físicos estão surgindo para aliar tecnologia a bons

resultados estéticos, porém, tais aparelhos ainda são inacessíveis para a maior parte

da população.

A criação de máquinas que auxiliam o homem a fazer exercícios físicos como

as esteiras de caminhada e o aparelho de abdominais poupam o homem do trabalho

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que ele teria se tivesse que usar o seu próprio corpo. As promessas são de um belo

corpo físico sem esforço e cansaço. De certa maneira, o homem não deixa de se

exercitar quando está acoplado às máquinas, porém o que ele não pode é tornar-se

extremamente confiante no poder de eficiência de seu uso e dispensar aquelas

velhas práticas que não dependem de máquinas como caminhadas ao ar livre,

natação e outros esportes. O homem passa cada vez mais a utilizar só parcialmente

a sua força física e entrega o restante do esforço às máquinas, só acessíveis para

pessoas com algum poder aquisitivo. As máquinas de lavar e torcer roupa são

exemplo de como a vida contemporânea está cada vez mais ambientada em

ambiente de máquinas multifuncionais caras e com uma vida útil cada vez menor.

O personal trainner (ginástica), o personal style (moda) são profissionais

dispostos a fabricar corpos sadios e bem vestidos. Indústrias do combate a olheiras,

celulites e outros adereços do corpo disseminam seus produtos cada vez mais

usados por aqueles que querem disfarçar as marcas do cotidiano, assim, o corpo

estabelece uma relação de poder com o homem. Já não é o corpo caído, preterido,

prisão, como quisera os órficos, é o corpo produz a si mesmo e se reinventa a todo o

momento na relação recursiva que mantém com a cultura e a sociedade. O corpo

“exaltado” só é considerado exibível se obedecer a certo padrão de beleza

hegemônico entre os povos, ou seja, não ser escuro demais, não ser gordinho ou

não ter deficiência alguma. Segundo Mafesoli, (2005, p.159), “a vida urbana é

mesmo a das aparências. O espetáculo cotidiano não está mais acantonado a

lugares fechados, capilarizou-se na rede densa do mundo físico e social”. Para o

autor, a vida social é o campo de atuação dos corpos, construídos para serem vistos,

admirados em espetáculo, devidamente assistidos pelos mais diversos técnicos

responsáveis por essa “preparação”.

Raramente percebemos que pouco a pouco nos entregamos a uma vida

sedentária e que com o passar da idade a tendência é piorar e sofrer com as

doenças relacionadas ao desuso e atrofiamento do corpo. Simplesmente

esperamos, na contemporaneidade, a medicina criar uma pílula que nos ajude a

recuperar aquele corpo da flor da idade ou um aparelho que faça a ginástica por nós.

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Para ilustrar esse fato, recordamos a pesquisa de cientistas há algum tempo atrás,

que resolveram comparar os atletas atuais aos antigos caçadores para perceberem

as mudanças no aparato biológico do homem ao longo dos tempos. Conclusão: o

homem pode não ser o mais veloz dos animais, porém é o animal com mais

resistência corporal para percorrer distâncias longas e vencer seus adversários pelo

cansaço, seja por sua auto-refrigeração (suor, respiração), seja por sua mente

indecifrável e capaz de prodígios.

A indústria tecnológica facilita a vida do homem, isso é evidente, porém torna

o corpo físico despreparado para qualquer desgaste eventual. Os exemplos disso

são as proliferações de elevadores, escadas rolantes, carrinhos motorizados,

criados para que o homem esqueça-se de seu aparato físico e se entregue ao

sedentarismo. O computador, outro fruto dos grandes combates entre os homens

como as guerras mundiais e as guerras econômicas, por exemplo, hoje é o apanágio

do homem contemporâneo. A máquina de dados e imagens é o centro das atenções

na vida contemporânea. Esquece-se a vida real, privilegia-se a vida virtual.

O corpo não é mais apenas, em nossas sociedades contemporâneas, a determinação

de uma identidade intangível, a encarnação irredutível do sujeito, o ser-no-mundo,

mas uma construção, uma instância de conexão, um terminal, um objeto transitório e

manipulável suscetível de muitos emparelhamentos. (LE BRETON, 2003, p. 28).

Hoje, no campo da informação, substitui-se a velha fórmula das mensagens,

emissor-receptor, para uma nova fórmula onde o emissor é indefinido, é hibridizado,

sendo que a informação é uma criação partilhada entre dois ou mais usuários da

rede mundial de computadores, rede que nos liga ao mundo todo. Para Bauman

(1999, p. 85), no universo da web, a maioria está movimentando-se, mesmo se

fisicamente parada. O corpo virtual, elemento surgido na contemporaneidade é

criado a partir da interação entre o homem e a máquina, seja através do deslizar do

mouse, seja através de comandos neurológicos avançados.

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Multiplicam-se na contemporaneidade as técnicas de modificação do corpo,

body building, marca corporal, cirurgia estética, transexualismo e outra formas de se

ver e produzir os corpos. Segundo Le Breton (2003, p. 22), “não é mais o caso de

contentar-se com o corpo que se tem, mas de modificar suas bases para completá-lo

ou torná-lo conforme a idéia que dele se faz”. Símbolo da constante metamorfose

dos seres, o corpo cria seus apetrechos para vencer a fadiga, o cansaço, a

impotência ou a superexcitação e a agitação. O corpo-máquina tem de ser

abastecido constantemente com os aditivos disponíveis para sua manutenção, custe

o que custar.

[...] tomam-se produtos para dormir, para acordar, para ficar em forma, para

ter energia, aumentar a memória, suprimir a ansiedade, o estresse etc., tantas

próteses químicas para um corpo percebido como falho pelas exigências do

mundo contemporâneo, para permanecer flutuando em um sistema cada vez

mais ativo e exigente. (idem, ibidem.).

Pode-se visualizar a imagem de um jovem sentado em frente à tela de um

computador, vencendo as horas em um jogo on-line no qual permanece conectado

sem descanso ou pausa. Em suas mãos, drogas a base de anfetamina e os mais

variados energéticos, e seu corpo, após algum tempo sequer é sentido, por muito

pouco nem mesmo se levanta para fazer suas necessidades fisiológicas. Mas, qual a

conseqüência da imersão dos corpos no mundo virtual criado a partir da rede

mundial de computadores, a Internet, e em pleno desenvolvimento nos dias atuais?

Como o corpo se relaciona com o virtual?

David Le Breton argumenta que estamos abertos para uma nova relação com

o mundo, momento que marca a ruptura do contemporâneo com o pensamento

arcaico, libertando o homem daquela espécie de “ascese” simbólica do passado.

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o virtual, figura de destaque da biologia ou do espaço cibernético, por sua

repercussão social, cultural ou política, assinala um novo paradigma da

relação do homem com o mundo. Introduz rupturas simbólicas inéditas cuja

natureza antropológica é colocada em questão em sua capacidade de

estabelecer ligação e dar sentido e gosto de viver na escala do indivíduo, mas

também na da sociedade em seu conjunto. (2003, p. 24).

Segundo Le Breton que a “comunicação sem rosto – sem carne – favorece as

identidades múltiplas, a fragmentação do sujeito comprometido em uma série de

encontros virtuais para os quais a cada vez ele endossa um nome diferente, e até

mesmo uma idade, um sexo, uma profissão escolhidos de acordo com as

circunstâncias”. (idem, ibidem.). Desta forma, o rosto sem corpo pode ser moldado

ao bel prazer do indivíduo multifacetado e mutante.

Para alguns, o corpo não está mais a altura das capacidades exigidas na era

da informação, é lento, frágil, incapaz de memória, etc.; convém livrar-se dele

forjando um corpo biônico (isto é, ampla ou inteiramente ciborguizado), no

qual se inseriria um disquete que contivesse o “espírito”. Trata-se não apenas

de satisfazer as exigências da cultura cibernética ou da comunicação, mas

simultaneamente de suprimir a doença, a morte e todos os entraves ligados

ao fardo do corpo. (ibidem, p. 25).

A identidade na pós-modernidade é o resultado de intensas

transformações. Somos o resultado da comunhão entre os corpos que formam a

efervescência coletiva, a experiência do vivido. Hall argumenta que:

[...]formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais

somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam

(Hall, 1987). É definido historicamente, e não biologicamente. O sujeito

assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não

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são unificadas ao redor de um 'eu' coerente. Dentro de nós há identidades

contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas

identificações estão sendo continuamente deslocadas.(2006, p.12 -13).

No universo contemporâneo, os corpos circulam por novos espaços,

criados a partir da interação humana nos programas de computador. Lá a realidade

é (re)criada e transmutada em outra realidade não menos considerável que a

primeira. Muitos admitem passar boa parte de suas vidas atrás das telas de plasma,

em busca de trabalho ou satisfação pessoal. As cidades hitechs da

contemporaneidade como São Paulo, Tóquio ou Nova Iorque, já possuem uma

ampla e complexa rede digital que contribuem para a desterritorialização de espaços

públicos e profissionais. Alguns mercados já admitem profissionais que trabalham

em suas casas ou até mesmo em um país diferente do qual exerce suas funções.

Enfim como conciliar o crescimento econômico e social das cidades com o

entrecruzamento constante entre corpos e culturas, que ao mesmo tempo em que

perpetua valores hegemônicos produz também diversidade e riqueza cultural? As

cidades mais desenvolvidas do planeta já estão conectadas em rede e isso significa

que um campo complexo de troca de informação e geração de serviços está sendo

formado, transformando as relações humanas e aperfeiçoando as técnicas de

trabalho, resultado de inúmeros aperfeiçoamentos no mundo virtual e em seus

ciberespaços.

No ciberespaço ou espaço virtual, os corpos possuem múltiplas

possibilidades de locomoção apesar de estarem navegando em rede utilizando-se

de um mouse ou de uma tela sensível ao toque dos dedos. Segundo André Lemos,

o ciberespaço é visto como “potencializador das dimensões lúdicas, eróticas,

hedonistas e espirituais na cultura contemporânea” (2008, p. 131). Isso representa a

possibilidade o retorno do dionisíaco, dos saberes renegados, que revelam a volta

do espírito que marcará o tempo, o Dioniso contemporâneo que retorna para habitar

em novos espaços, ou seja, construções virtuais de um mundo fluídico.

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2.2. O Corpo e a Cidade Contemporânea

O corpo é carne, vida, veias, ossos, sangue circulando e fluxo intenso. A

cidade é praça, rua, casas, fixadas em algum lugar a ermo, fluxos comerciais.

Primeiramente o corpo era visto primordialmente do ponto de vista físico-biológico,

isto é, como um aglomerado de células, entidade física ou então para outras

opiniões o corpo pertencia a um ser cósmico sem relações com a natureza e as

coisas, em outras palavras, um objeto sagrado sem mais mistérios a revelar ao

homem. Segundo Le Breton, o corpo se transforma no mundo contemporâneo em

corpo-máquina, sem sujeitos nem afetos, ou seja, “um artefato passível de se

danificado da história humana, que a genética, a robótica ou a informática devem

conseguir reformar ou eliminar”. (2003, p. 16). O mundo caminha para a

virtualização, sendo que para Pierre Lévy (1996) um movimento geral de

virtualização afeta hoje não apenas a informação e a comunicação, mas também os

corpos.

As cidades, segundo Weber é um “local de mercado”. Corpos circulam desde

a época da idade média, em burgos fechados e agora em cidades “hitechs”,

comprando e consumindo os produtos que as cidades oferecem. Com relação às

cidades, vistas antigamente apenas como centros de comércio e aglomeração

humana, elas hoje se tornam virtualizadas, acessíveis a longa distância,

desterritorializada, nos termos de Deleuze, que transpõe seus limites geográficos e

cada vez mais se torna global, ou “não-presentes” num lugar específico. Segundo

Sennet (2003) “a massa de corpos que antes se aglomerava nos centros urbanos

hoje está dispersa, reunindo-se em pólos comerciais, mais preocupada em consumir

do que com qualquer outro propósito mais complexo, político ou comunitário”. É nas

cidades que se encontram culturas, diversidades, multiplicidades e diferenças.

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As tribos urbanas, subculturas que ganham voz e direitos na

contemporaneidade, são a prova de que a cidade é símbolo de efervescência e

emergência cultural. Os cidadãos são produzidos pelas cidades que são produzidas

pelos cidadãos. É o que Morin (1991) chama de anel recursivo e que ele define

como a capacidade auto-recursiva entre indivíduo, sociedade e cultura. Uma cidade

atrai as indústrias devido a dois fatores essenciais como a mão de obra e mercado

e, por sua vez, a indústria desenvolve novas possibilidades de empregos e suscita

serviços, como observou Castells.

Uma cidade é caracterizada pelo fluxo intenso de informações, conexões e

redes. A cidade contemporânea, segundo Castells, vive da transmissão

informacional, que cada vez mais atingem um número maior de pessoas. A

economia é baseada na produção de informações, do rádio à telefonia celular e o

desenvolvimento tecnológico propiciou que os habitantes das cidades estejam

conectados com outros ambientes, sem deixar de pertencer àquela determinada

cidade ou sem ao menos sair da sala onde estão plugados seus computadores. A

cidade, vista somente como selva de pedra, agora se transforma na cidade digital,

acessível a todos que estão conectados a ela em rede, dialogando com os corpos

como se ela mesma representasse analogicamente a estrutura física humana,

cabeça, órgãos e pés, com cada uma dessas partes interagindo com o todo e com

as outras partes, de uma maneira desterritorializada, para usar o termo deleuziano.

Segundo Pierre Lévy (1996) quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma

informação se virtualizam, eles se tornam “não-presentes”, desterritorializam-se.

Existem realmente, mas, por outro lado, habitam um espaço multidimensional e

fluídico.

Os corpos, ao contrário do que se imaginaria na cidade contemporânea -

vivendo livres em espaços amplos - hoje se movimentam por ruas estreitas,

superpovoadas e são confinados em cubículos onde trabalham, moram e se

divertem. A cidade, com isso, perde em socialidade e os indivíduos isolados sentem-

se anônimos na multidão porque não são conhecidos e nem (re) conhecidos nas

suas comunidades.

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Richard Sennet (2003), pesquisando as relações entre corpo e cidade

reconhece que “as relações entre os corpos humanos no espaço é que determinam

suas reações mútuas, como se vêem e se ouvem, como se tocam ou se distanciam”.

O corpo que se desloca na cidade, segundo Sennet, se move passivamente,

anestesiado no espaço, para destinos fragmentados e descontínuos. Como nos

lembra Le Breton, (2003, p. 20), “certamente nunca como hoje em nossas

sociedades ocidentais os homens utilizaram tão pouco seu corpo, sua mobilidade,

sua resistência”. Em outras palavras, as máquinas fazem agora praticamente todo o

trabalho para os corpos, como o carro substituindo a caminhada, escadas rolantes e

outros meios sendo utilizados para suprimir o esforço humano.

A idéia de cidade virtual e corpo virtual remetem a capacidade dos corpos de

transitarem pela cidade não fisicamente, mas sim digitalmente, como passear pelo

Google earth ou fazer compras em uma loja virtual. Segundo Lévy a palavra virtual

vem do latim virtualis, e seria um complexo problemático, o nó de tendências ou de

forças que acompanham uma situação. Espaço de fluxo intenso de pessoas e

informações, assim como o corpo, a cidade possui suas veias e possui virtus, força,

potência, remetendo no aristotelismo ao que existe em potência e não em ato. O

espaço urbano pode ser visto como um sistema orgânico, suas ruas, shoppings e

praças formam espaços de troca e consumo. Novos espaços surgem

constantemente, como o ciberespaço e com eles novas possibilidades de

convivência. Pierre Lévy nos traz o exemplo de uma empresa virtual, que não pode

mais ser situada precisamente, segundo ele, “seus elementos são nômades,

dispersos, e a pertinência de sua posição geográfica decresceu muito”. (1996, p.19).

A empresa virtual segundo Lévy é virtualizada no sentido de que faz das

coordenadas espaço-temporais do trabalho um problema sempre repensado e não

uma solução estável. A empresa pode não possuir mais um endereço “fixo”, e seus

dirigentes podem estar sentados na varanda de casa com um notebook participando

de uma reunião através da tele-presença.

O corpo, segundo Lévy (1996), virtualiza-se na cidade contemporânea e

igualmente tem seus sentidos virtualizados, o telefone pode ser visto como um

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prolongamento da audição, a televisão para a visão, e essas experiências é

compartilhada coletivamente, mesmo os corpos não estando “presentes”. Para o

autor a virtualização reinventa uma cultura nômade, não por conta de uma volta às

antigas civilizações, mas fazendo surgir um meio de interações sociais onde as

relações se reconfiguram com um mínimo de inércia. Quando uma pessoa, uma

cidade se virtualizam, eles se tornam “não-presentes”, se desterritorializam.

Toda a economia, a cultura, o saber, a política do século XXI, vão passar (e já estão passando) por

um processo de negociação, distorção, apropriação a partir da nova dimensão espaço-temporal de

comunicação e informação planetárias que é o ciberespaço. (LEMOS, 2008, p. 127).

As cidades em processo de virtualização de seus espaços e serviços nos

ajudam a refletir também sobre a corporeidade e seus processos simbólicos, pois

elas se tornam, de certa forma, a extensão virtual de nós mesmos, fazendo com que

nossos sonhos sejam transformados em realidade. Entre os corpos e as cidades não

haverá mais distância, mas sim, interação e coletividade, ou seja, novos caminhos

para compreensão da realidade.

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3. CULTURA OU CULTURAS?

Errante e estável, deus próximo dos homens, que estabelece com eles

contatos de um tipo diferente do que em geral prevalece na religião grega,

uma relação muito mais íntima, mais personalizada, mais próxima, Dioniso

mantém com seus devotos uma espécie de relação cara a cara. Mergulha o

seu olhar no de seu devoto e este fixa os olhos hipnotizados na figura,na

máscara de Dioniso.

VERNANT

A noção antropológica do que é cultura é chave para entendermos as

modificações corporais na contemporaneidade. As culturas influenciam os corpos

que são influenciados pela cultura. Depois da célebre definição de Edward Tylor

apregoando que cultura é o todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte,

moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo

homem na condição de membro da sociedade, surgiram também outras

perspectivas importantes para tentar decifrar o mistério, notadamente Clifford Geertz

e Edgar Morin. O conceito clássico estabelecido por Tylor representa a visão

evolucionista de cultura, pois sugere que na sociedade existam grupos considerados

inferiores, por exemplo, uma tribo africana ou de indígenas brasileiros, e no ápice da

pirâmide estaria a sociedade européia e seus representantes. Isso se traduz em um

desenvolvimento social unilinear, que não abarca a tal complexidade de que falava

Tylor.

Edward Tylor argumenta que “progresso, degradação, sobrevivência,

renascimento e modificação são, todos eles, aspectos da conexão que liga a

complexa rede da civilização". (2005, p. 89). Quando examinamos os jogos

populares, costumes, superstições, por exemplo, nota-se a sobrevivência de alguns

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hábitos independente de novas práticas ou de modificações na sociedade, como os

costumes das pequenas cidades do agreste brasileiro. Por outro lado, há uma

supremacia do dito estilo de vida ocidental, partindo da idéia de que os europeus e

ocidentais devem ter suas práticas culturais “copiadas” pelos povos primitivos e ditos

“inferiores”.

Definitivamente os antropólogos decidiram substituir a definição tyloriana de

cultura, por um ponto de vista que daria conta de reconhecer as riquezas e a lógica

própria das mais variadas sociedades sendo elas européias ou não. Geertz possui

um olhar complexo a respeito da relação entre cultura e indivíduo, sua visão recebeu

influência de Max Weber e é a perspectiva adotada na presente pesquisa. De acordo

com ele, “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo

teceu, assumo a cultura como sendo uma dessas teias e sua análise, portanto, não

como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência

interpretativa, à procura do significado". (ibidem, p. 4). Deste modo, Geertz faz

referência ao modelo tyloriano de investigação da cultura, que buscava formular leis

a partir da observação dos fatos da natureza. Para o autor, cultura são sistemas

entrelaçados de signos interpretáveis, e mais, a cultura depende de um contexto, de

ser considerada em seus próprios termos (ibidem, p. 10). A cultura desta maneira

pode ser vista como um elemento pluralizado e efêmero. Os aspectos culturais

peculiares de diferentes agrupamentos humanos estão em intercâmbio constante

desde os tempos remotos.

As culturas na contemporaneidade podem ser consideradas híbridas e

também são fruto da “colisão” de diversas sociedades em vários níveis de

desenvolvimento social (LEVI-STRAUSS, 2009, p. 92). O termo “hibridismo” foi

tomado emprestado dos biólogos pelos contemporâneos e remete certamente a

aquilo que não é puro, que é misturado, a que é múltiplo e não único, enfim, aquilo

que é combinado, naturalmente ou artificialmente. Segundo Peter Burke (2003, p.

53), “o termo foi originalmente cunhado por botânicos para se referir a uma

variedade de planta adaptada a um determinado ambiente pela seleção natural”.

Canclini em sua obra “Culturas Híbridas” nos revela que as hibridações são

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processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de

forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.

(1997, p.xix). Nas sociedades contemporâneas as estruturas e práticas sociais

sofrem constantes mudanças para dar conta de novas realidades, por exemplo, a

inclusão dos países em desenvolvimento conhecidos pela sigla BRINC - Brasil,

China, Índia e Chile - nas principais discussões mundiais é o início de um novo

diálogo entre as culturas, e também da disseminação dos aspectos culturais desses

povos. Segundo o autor:

Os estudos sobre narrativas identitárias com enfoques teóricos que levam

em conta os processos de hibridação (Hannerz, Hall) mostram que não é

possível falar das identidades como se tratasse apenas de um conjunto de

traços fixos, nem afirmá-las como a essência de uma etnia ou de uma

nação. A história dos movimentos identitários revela uma série de operações

de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos

hegemônicos em um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e

eloqüência. (idem, p.xxiii).

De acordo com Canclini, novas realidades sugerem diferentes atitudes frente

aos desafios da contemporaneidade. Não existem identidades puras ou culturas

hegemônicas imutáveis, sendo os processos sócio-culturais fatores importantes para

entendermos o que são corpos híbridos e culturas híbridas. A visão de corpos

“híbridos” é aquela em que o corpo é produto de colagens e transformações, sendo

preterido o corpo herdado geneticamente, que às vezes não é adequado aos seus

ideais ou tem de ser modificado para servir de passaporte para um grupo social ou

uma rede virtual de amizade. O corpo passa a ser portador de acessórios que o

integra a realidade atual, como deficientes portadores de cadeiras de rodas

motorizadas, órgãos artificiais, ou mesmo brandings e piercings que são

apresentados como parte da epiderme, artisticamente modelados e colocados em

locais de destaque no corpo.

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O corpo-vitrine, uma das modalidades do corpo, é mais evidenciado na

contemporaneidade, seja por seus adeptos servir-se de redes sociais na internet e

dos locais mais freqüentados no meio urbano de laboratório para novas práticas,

seja através da reutilização de velhas performances ou reafirmando sempre a

condição de corpo-produtor e corpo-consumidor nos processos culturais, afinal,

segundo Le Breton o corpo “é uma construção simbólica, não uma realidade em si”.

(2011, p.18).

Canclini, traz uma noção mais adequada do fenômeno de hibridização sofrida

pelas culturas e quais as consequências disso sobre a sociedade contemporânea e

sobre nós mesmos. Nas palavras do autor, “a hibridação, como processo de

interseção e transações é o que torna possível que a multiculturalidade evite o que

tem de segregação e se converta em interculturalidade”. (1997, p. xxvii). Estamos

assim, frente ao novo desafio da contemporaneidade, que é conciliar a

efervescência cultural e os entrecruzamentos humanos com os velhos dilemas e

preconceitos que teimam em distanciar culturas diferentes. A lei americana contra

imigrantes ilegais, imposta com mais rigidez nos últimos tempos, a política de

deportação européia, a recusa na aceitação da Turquia como país pertencente à

união européia, enfim, o racismo e a intolerância poderão ser gradativamente

consumidos pela inevitável convergência de valores que começa a existir entre os

povos. A valorização das indústrias transnacionais e o contato dos países em

desenvolvimento com a alta tecnologia proporcionarão a imersão de novos

profissionais, antes excluídos, no mercado de trabalho das multinacionais e uma

participação ativa dos consumidores na elaboração e produção dos produtos que

consome, atestando o caráter recursivo entre as grandes indústrias com os

consumidores, cujas opiniões são fundamentais para a fabricação de novos

utensílios.

No mundo contemporâneo os corpos perambulantes trocam informações em

um ritmo frenético, e os aspectos culturais de um determinado povo podem ser

absorvidos rapidamente por povos pertencentes à outra cultura. O Brasil é um bom

exemplo para ilustrar a apropriação cultural entre os povos, tendo recebido desde a

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época colonial boa parte da população mundial e acolhido tanto fugitivos de guerras,

quanto imigrantes em busca de melhores oportunidades profissionais.

De acordo com Geertz (1989, p.17), uma abordagem semiótica da cultura,

permite-nos ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os nossos sujeitos,

de forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles.

Vimos que o autor propõe duas idéias essenciais sobre cultura. A primeira é de que

o termo cultura é mais bem vista não como um complexo sistema de padrões

concretos de comportamento – costumes, usos, tradições e hábitos -, como tem sido

o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle – planos,

receitas, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam

“programas”) - para governar o comportamento. (ibidem, p. 32). A segunda idéia de

Geertz é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente

dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais

programas culturais, para ordenar seu comportamento. (ibidem, p. 33). A utilização

de próteses artificiais de órgãos e a possibilidade de substituição desses por outros

criados em laboratório leva o homem a opor-se a si mesmo, utilizando-se da

tecnologia para promover alterações em seu corpo e consequentemente em seu

destino. Segundo Geertz, “um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode

ser, finalmente, que todos nós começamos com um equipamento natural para viver

milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”

(ibidem, p. 33). Apesar disso, cada vez mais temos a possibilidade de ampliar a

expectativa de vida dos indivíduos e prepará-los para viver mais.

Na opinião de Geertz, o homem também é condicionado culturalmente e, de

certa forma, depende dos padrões culturais para governar seu comportamento e

nortear suas ações.

Não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos

significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável,

um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua

experiência não teria praticamente qualquer forma. A cultura, a totalidade

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acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência

humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base de sua

especificidade. (idem, ibidem.).

A visão complexa de Geertz se aproxima da idéia da análise cultural

recursiva, apregoada por Edgar Morin, um dos principais teóricos da complexidade

quando diz que “sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de certa

forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens”.

(ibidem, p. 36)

A teoria da complexidade, proposta por Edgar Morin nos apresenta uma

relação recursiva entre indivíduo, sociedade e cultura. Conforme Morin, o corpo é

portador de uma espécie de imprinting, ou caldo cultural, que condiciona seus atos

de uma forma conformista e normatizada. A influência de culturas desviantes, isto é,

aquelas que não se submetem aos padrões de uma cultura dominante são

consideradas por ele como um meio de resistência do corpo e de seu poder criativo

e adaptativo sobre novas formas de ver e conceber o mundo, não indo por uma só

via ou por um só consenso cultural limitado.

A Black music, estilo musical oriundo de locais como as praças jamaicanas,

guetos americanos e a periferia brasileira, por exemplo, e também a medicina sul-

americana, principalmente com relação a ervas medicinais e cirurgias plásticas,

mostra-nos que a relação entre produto cultural e produtor cultural é recursiva, ou

seja, aquilo que é produzido também é produtor no processo cultural. A cultura ou as

culturas são resultado de apropriações e resistências, em um processo no qual os

elementos de uma cultura estão entrecruzados e em constante transformação, isto

é, nada é imutável ou está imune ao contato entre as culturas diversas.

Na afirmação de Geertz (1989, p. 36) “entre o que o nosso corpo diz e o que

devemos saber a fim de funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos

preencher, e nós o preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida

pela nossa cultura”. Isso significa que a informação transmitida de uma cultura à

outra é feita, na contemporaneidade, de modo mais fluido e instantâneo. Na era da

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informação digital, milhares de programas e idéias são disseminados numa

velocidade jamais imaginada. O indivíduo se acopla à máquina e seus movimentos

são copiados e digitalizados. A partir daí pode-se criar um avatar, isto é, um corpo

digital, para navegar no universo virtual, sendo que uma parte é corpo, e outra parte

é máquina. Todos são elementos participantes do processo produtivo e recursivo,

sendo o produto cultural usufruto daqueles que fizeram parte da produção. Não

existe mais a relação de passividade entre produtores e consumidores. O conjunto

dessas idéias forma as diretrizes para a produção cultural futura, baseada em

pesquisas de opinião e dados estatísticos.

Atualmente as gôndolas dos mercados e os links de um site na internet

oferecem caminhos pré-marcados para o corpo, como comprar desodorantes para a

sua cor de pele, simular o corte de cabelo ou a cirurgia plástica, marcar encontros

com pessoas que muitas vezes não correspondem à imagem real, porque o corpo

pode ser visto como não padronizado e impublicável. Para resolver isso os

programas de computador do tipo photoshop, encarregam-se de transformar a

imagem real na imagem virtual. De acordo com Mafesoli (2005, p. 41) “esse corpo

só é construído para ser visto. É teatralizado ao mais alto grau. Na publicidade, na

moda, na dança, só o é paramentado para ser apresentado em espetáculo”. Isso

implica em dizer que somos influenciados pelos padrões culturais estabelecidos

pelos indivíduos que por sua vez colaboram para a criação de novos padrões, como

os estabelecidos para o teatro dos corpos no mundo virtual, mais precisamente

falando.

Para Geertz (1989, p. 37), “tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos

tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados

criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção

às nossas vidas”. Edgar Morin ao analisar as relações entre sociedade, cultura e

corpo, diz que “as sociedades só existem e as culturas só se formam, conservam,

transmitem e desenvolvem através das interações cerebrais/espirituais entre os

indivíduos”. (1991, p.17). A organização recursiva de que fala Morin é aquela na qual

o que é produzido e gerado se torna produtor e gerador daquilo que o produz ou

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gera. Segundo o autor “a cultura, que é característica da sociedade humana é

organizada/organizadora via o veículo cognitivo coletivo dos conhecimentos

adquiridos, das aptidões aprendidas, das experiências vividas, da memória histórica,

das crenças míticas de uma sociedade”. (idem, ibidem.). O corpo, como sede do

conhecimento só torna-se, ou “transforma-se” de acordo com que é estabelecido

pela organização social.

Uma cultura abre e fecha as potencialidades bio-antropológicas de

conhecimento. Abre-as e atualiza-as fornecendo aos indivíduos o seu saber

acumulado, a sua linguagem, os seus paradigmas, a sua lógica, os seus

esquemas, os seus métodos de aprendizagem, de investigação, de verificação,

etc., mas, ao mesmo tempo, fecha-os e inibe-os com as suas normas, regras,

proibições, tabus, com seu etnocentrismo, a sua auto-sacralização, com a

ignorância da sua ignorância. (idem, ibidem, p.18):

O corpo submete-se aos tabus que a sociedade transmite aos indivíduos. Há

na contemporaneidade o corpo multifacetado, como o corpo- limpo, corpo-belo,

corpo-dócil, corpo-controlado, que ao mesmo tempo em que transmite através de

sua imagem resistência a hegemonia e à padronização, como a body art, as

modificações corporais, as próteses, adereços corporais como chifres e argolas, há

também a cirurgia estética sendo feita não para fins médicos, mas para fins artísticos

ou para visar concursos de beleza, por exemplo.

O corpo fornece os dados do mundo exterior regido pelos programas que o

cérebro acumula e que transmite, através da interação com outros corpos, sendo os

cérebros computantes, os grandes responsáveis pela manutenção e pela

perpetuação de tais programas. Trata-se de um conjunto de regras e saberes, que

mesmo comparados a programas computacionais nos fornece a imagem necessária

para visualizarmos de que maneira os corpos são construídos e moldados por efeito

do jogo dialógico existentes entre os cérebros (indivíduos) e o mundo simbólico do

qual fazem parte.

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De acordo com Edgar Morin, mesmo com essa constante interação entre os

indivíduos, conservamos nosso aparato individual e mantemos nossa autonomia

com relação aos outros seres, podendo receber ou não as “coordenadas”

necessárias para a (re)alimentação das atividades cognitivas. Sobre a emergência

de tais atividades, Morin diz que:

Se podemos chamar 'programa' a um conjunto de princípios, regras e

instruções que comandam/controlam operações cognitivas, podemos dizer

que as atividades cognitivas do ser humano emergem de inter-retro-ações

dialógicas entre um poli-programa de origem sociocultural, comportando cada

um destes poli-programas instâncias complementares, concorrentes e

antagônicas. (1991, p.18).

Os programas, por exemplo, as regras e tabus, de alguma maneira são

aceitos ou adaptados à realidade do indivíduo, que pode resistir, ou submeter-se ao

caldo cultural transmitido desde sua infância. O imprinting é resultado da tríplice

relação entre o homem, sua comunidade e seu ambiente cultural. Todas as

informações e regras que recebemos nas instituições sejam na escola, igreja ou

agrupamento social fazem parte desse caldo cultural ao qual estamos submetidos e

do qual dificilmente não colaboramos para perpetuar.

Segundo Morin, “tudo que é língua, lógica, consciência, tudo o que é espírito

e pensamento, constitui-se no encontro destes dois poli-programas, isto é, no

processo ininterrupto de um anel bio-antropo-(cérebro-psico)-cultural. (idem,

ibidem.). As culturas modernas, para o autor, “justapõem, alternam, opõem,

complementam uma grande diversidade de princípios, regras, métodos de

conhecimento (racionalistas, empiristas, místicos, poéticos, religiosos, etc.). (idem,

ibidem, p.19). O autor mostra, dessa maneira, que na contemporaneidade os novos

programas culturais são formados a partir da interação entre os indivíduos de

diferentes culturas, de seus conhecimentos e suas técnicas.

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O corpo, na concepção de Morin, acima de qualquer determinismo biológico

ou cultural, pode ser reorganizado a partir das inter-retroações entre os dados

culturais e os aparatos físicos, sendo estes possuidores de novos meios disponíveis

para complexificar a relação entre as partes. O corpo, reafirmamos, não possui um

ente isolado e invisível como pretendera os metafísicos, sendo que aqui, na

contemporaneidade sua existência é marcada por processos criativos e recursivos

que não isentam sua responsabilidade na construção efetiva da realidade. O autor, a

respeito do corpo e da maneira como se organiza o conhecimento nos fala que:

[...]é por isso que o espírito individual se pode autonomizar em relação à sua

determinação biológica (utilizando as suas fontes e recursos socioculturais) e

em relação à sua determinação cultural (utilizando a sua aptidão bio-

antropológica para organizar o conhecimento). (ibidem, p. 19 -20).

Isso lembra-nos na contemporaneidade das próteses médicas artificiais

substituindo órgãos biológicos e das conquistas materiais dos países pobres com o

advento da internet. Na verdade, poucos países têm acesso à tecnologia e cirurgias

caras para obter o efeito desejado em seus corpos, e desta forma, os indivíduos

inventam novas modificações corporais para sentirem-se aceitos em seus grupos,

sendo o corpo biológico e social moldado conforme as regras do momento, por

exemplo: body art, piercings e próteses cirúrgicas. A juventude estabelece novos

programas a partir daqueles existentes e através do entrecruzamento de

informações contidas nesses programas, apontam diretrizes para a criação do que

será visto e consumido por todos os jovens. De acordo com Morin:

A relação entre os espíritos individuais e a cultura não é indistinta, mas sim

hologramática e recursiva. Hologramática: a cultura está nos espíritos

individuais, e estes estão na cultura. Recursiva: tal como os seres vivos vão

buscar a sua possibilidade de vida do seu ecossistema, o qual só existe a

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partir das inter-retro-reações entre esses seres vivos, também os indivíduos

só podem formar e desenvolver o seu conhecimento no seio de uma cultura,

a qual ganha vida a partir das inter-retro-ações cognitivas entre os indivíduos:

as interações cognitivas entre os indivíduos regeneram a cultura, que

regenera essas interações cognitivas. (idem, ibidem.).

Para Morin, os homens de uma cultura produzem a cultura, que produz o seu

modo de conhecimento, ou seja, “a cultura gera os conhecimentos que regeneram a

cultura. O conhecimento depende de múltiplas condições socioculturais, e, em

retorno, condiciona essas condições”. (ibidem, p. 21). As culturas entrecruzadas

alimentam os novos caldos culturais (imprintings) e atuam sobre os indivíduos, que

dispõem de um vasto cardápio cultural, podendo criar, transmitir e absorver os

produtos de uma determinada cultura, hibridizados e disseminados livremente, de

drogas ilícitas às próteses modeladoras do corpo. Com a liberação do corpo, visto

antes como a sede do pecado, e através do culto à imagem corporal, novas

possibilidades de ação são possíveis, principalmente no meio virtual, que é o palco

do desfile de corpos modificados, avatares e outros elementos do mundo simbólico.

Os retratos expostos na mídia digital representam a emancipação do indivíduo

de seus laços comunitários, segundo Le Breton (2011, p. 66), “o retrato se torna um

quadro por si só, suporte de uma memória, de uma celebração pessoal sem outra

justificação. O indivíduo não é mais o membro inseparável da comunidade, do

grande corpo social; ele se torna um corpo exclusivamente seu”. No mundo virtual,

por exemplo, um avatar digital é uma criação unicamente atribuída ao indivíduo,

provido de suas vontades e desejos para moldar a imagem que quer transmitir em

um novo espaço de conhecimento e ação.

A relação entre corpo e cultura, portanto, na contemporaneidade é

efetivamente autopoiética e recursiva. O princípio da organização recursiva é aquele

me que os efeitos e produtos são necessários a sua própria produção. Desta forma,

percebemos o corpo como sendo fruto da cultura, sendo esta mesma formada pela

interação entre os corpos individuais.

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A imaterialidade da consciência e do espírito deixa de ser um escândalo

biológico ou físico por um lado, porque a consciência e o espírito não podem

ser concebidos independentemente de processos e transformações físicas, e,

por outro lado, porque a própria organização é já imaterial estando porém

ligada à materialidade física. A partir daí, podemos abandonar tanto o

dualismo cartesiano em que o espírito e o cérebro, vindos cada um de um

universo diferente, se encontravam na glândula pineal, como o círculo vicioso

em que o espírito e o cérebro remetem um para o outro de maneira ao

mesmo tempo inevitável e absurda. Em contrapartida, podemos conceber um

anel recorrente-produtivo em que, última emergência da evolução cerebral, o

espírito é continuamente gerado-regenerado pela actividade cerebral, por sua

vez gerada-regenerada pela actividade de todo o ser, e onde o espírito

desempenha o seu papel activo e organizador essencial ao conhecimento e à

acção. (MORIN, 1996, p. 78)

As atividades humanas emergem de instâncias produtoras que são, por sua

vez, ao mesmo tempo, o produto e o produtor das interações entre os seres. A

relação, na opinião de Morin, é hologramática e recursiva, ou seja,

as instâncias produtoras do conhecimento co-produzem-se umas às outras;

há unidade recursiva complexa entre produtores e produtos do conhecimento,

ao mesmo tempo que há relação hologramática entre cada uma das

instâncias produtoras e produzidas, cada uma delas contendo as outras, e,

neste sentido,cada uma contendo o todo enquanto todo. (idem,ibidem, p.19).

O argumento de Morin é fundamental para entendermos o mecanismo

autopoiético desenvolvido pelos corpos com relação a sua autonomia no processo

criativo entre corpo e cultura, bem como suas implicações. Uma visão complexa a

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respeito destes processos nos mostra que devemos estar atentos as mudanças e os

novos meios de (re)criação existentes. De uma maneira definitiva abandonamos o

discurso cartesiano que buscava estabelecer uma “essência” corporal,

individualizada e imune de qualquer transformação. Como observou o autor do

método:

O espírito não é aqui nem a emanação de um corpo, nem um sopro vindo do

alto. É a esfera das actividades cerebrais em que os processos computantes

assumem forma cogitante, isto é, de pensamento, linguagem, sentido, valor, e

onde são actualizados ou virtualizados fenômenos de consciência. O espírito

não é uma substância pensante, é uma actividade pensante, que produz uma

esfera ((espiritual)) ela mesmo objectiva. De facto, existe uma realidade

objectiva da linguagem, das suas regras, do pensamento, das idéias, da sua

lógica. (idem, ibidem, p. 80).

Morin nos fala de uma nova dimensão do sujeito, liberto das reminiscências

cartesianas e que se abre para um mundo complexo e livre de amarras simbólicas

que prejudicariam seu desenvolvimento. De acordo com o autor necessitamos do

aparato cerebral para organizarmos o conhecimento e produzir os processos

culturais, sendo que estes produzem constantemente os corpos. Afirma Morin que:

Os processos espirituais necessitam dos processos cerebrais, que

necessitam dos processos cerebrais, que necessitam dos processos

fisiológicos;a máquina do corpo assegura a pressão do sangue, o ritmo

cardíaco, as secreções gastro-intestinais, as quais são controladas pelo

sistema neurovegetativo, o qual é regulado pelo aparelho neurocerebral, o

qual...((Um ser humano cria-se e recria-se num processo autofundador de

animação/corporalização. O espírito não é nem locatário nem proprietário do

corpo. O corpo não é nem hardware nem servo do espírito. São ambos

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constitutivos de um ser individual dotado da qualidade de sujeito)).

(idem,ibidem, p. 81).

Segundo Maturana e Varela (2001, p. 52), uma relação autopoiética é aquela

cujos elementos produzem a si próprios de modo contínuo. Sendo assim, a própria

cultura é gerada pelos corpos que são moldados e estruturados de acordo com o

que lhes dita os padrões culturais disponíveis. A relação é recursiva, pois instâncias

diferentes e interdependentes co-produzem umas às outras. Isso quer dizer que os

indivíduos só absorvem e acumulam conhecimento se inseridos em uma sociedade,

e esses conhecimentos dependem de inúmeras condições socioculturais para se

tornarem efetivos.

3.1. Corpos dionisíacos

Dioniso representava no panteão grego a figura do diferente e do obscuro,

características peculiar ao mais admirado e cultuado dos deuses. Na

contemporaneidade as festas carnavalescas encarnam o universo dionisíaco no qual

os foliões e os seguidores de Dioniso são a representação mais clara do individuo,

que de certa maneira se dissolve junto ao coletivo social, através da vivência do

orgiasmo, termo usado por Michel Maffesoli para explicar a fusão das emoções e a

libertação do espírito e do saber dionisíaco. Para Maffesoli, o orgiasmo é

“essencialmente, uma das modalidades de relação com a alteridade”. (1985, p. 63).

O homem dionisíaco é aquele que nos remete a um corpo individual que se integra

no corpo social justamente no momento da efervescência orgiástica. As festividades

na contemporaneidade unem a emergência dos prazeres e da sensualidade com o

desejo de comunhão social, favorecendo a experiência do orgiasmo. O autor explica

que:

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Só podemos ser nós mesmos pelo outro, e, acrescentaria eu, pelo outro

coletivo. Trata-se de uma transcendência imanente que confere ao divino sua

verdadeira medida mundana. O que aqui se disse da sensação poderia dizer-

se da sensualidade: é ela que inaugura a relação com o mundo, isto é, com

os outros; é dela que surge a fantasia que, de múltiplas maneiras, dá sentido

e interesse à nossa curta deambulação existencial – e que permite a partição

dos afetos, fundamento de toda ordem simbólica. (idem, ibidem, p. 83).

O carnaval, festa contemporânea que contém elementos hibridizados do

passado, e também tendo sido resultado dos entrecruzamentos culturais, favorece o

ressurgimento do chamado “espírito dionisíaco”, que nada mais é do que, segundo

Maffesoli, “uma recuperação da existência que se ia esvaindo, que se ia deixando

vencer, isto é, da existência que se sentia ameaçada”. (idem, ibidem, p. 114). A

festividade possui aqui uma dimensão simbólica, rica por propiciar a eclosão do

orgiasmo, que remete a uma integração do corpo individual ao coletivo social,

significando a perda das individualidades e dos sujeitos pré-estabelecidos, frutos do

paradigma (cartesiano) anterior. Se de um lado a festa é lugar de excessos e de

morte, por outro lado, ela favorece a exaltação da vida e dos encontros corporais,

isto é, corpos esbarrando-se uns nos outros, seja por um contato forçado, seja por

um contato natural ocorrido entre eles.

Enquanto momento cristalizador da força societal, a festa encerra uma forte

carga de descomedimentos e de morte; todavia, por este mesmo

procedimento, a festa administra a morte, acomoda-se à sua presença

constante e chega mesmo a brincar astuciosamente com ela. O orgiasmo é,

assim, uma destas formas festivas que, ao integrar a morte, participa do vasto

processo de fecundidade. (idem, ibidem, p. 98).

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Para Maffesoli o ritual do orgiasmo remete a uma profunda dissolução do

corpo individual no corpo social, caldeirão das paixões e dos saberes dionisíacos

que brinca na dupla oposição e entre as luzes e as sombras, “no orgiasmo, o fator

destrutivo (a parte de sombras) que estrutura o indivíduo é ritualizado. E mais do que

isso: é utilizado para provocar o estilhaçamento do próprio corpo, o que chamamos

'a couraça' caracterial, permitindo assim consolidar-se a ordem coletiva ou

simbólica”. (ibidem, p.123). A cultura contemporânea está repleta de exemplos

fecundos que favorecem a um olhar complexo e desmistificado da realidade que

possibilita uma reorganização do social. Maffesoli argumenta que:

Uma nova relação com o corpo, que se torna objeto de fruição, e danças

modernas que não deixam de lembrar as inumeráveis e imemoriais danças

fálicas, assim como o reaparecimento das festas de nítido recorte orgíaco [...]

como o carnaval, o primeiro de maio e outras, todas com forte carga

antropológica, atestam um retorno ao/do dionisíaco. (1985, p.173).

A pós-modernidade pode ser caracterizada como o retorno de Dioniso, da

volta dos prazeres corporais e do orgiasmo. Segundo Le Breton, “nos regozijos do

carnaval, por exemplo, os corpos se misturam, indistintivamente, participam de um

mesmo estado de comunidade levado à sua incandescência. (2011, p. 45). De

acordo com o autor, a festa carnavalesca é lugar de comunhão social e

efervescência entre os corpos, momento em que se combinam os pequenos retalhos

da complexa realidade contemporânea. Os desvios, as transgressões, a sexualidade

reprimida, os crimes, são símbolos que caracterizam esse retorno do dionisíaco,

seja corpo como objeto de fruição ou como sede dos prazeres. Para Le Breton “O

carnaval institui a regra da transgressão, conduz os homens a uma liberação das

pulsões habitualmente reprimidas”. (idem, ibidem.).

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O sujeito contemporâneo, segundo Le Breton, é aquele que possui um corpo

inacabado, rascunhado, transformado, moldado em um universo simbólico que se

alimenta dos corpos individuais. A festa é o espaço do encontro e da fruição dos

prazeres. Para o autor, “o carnaval é o revelador de um regime do corpo que não se

restringe somente ao sujeito, mas transborda sua inserção para verter seus

elementos constitutivos e sua energia no mundo que se avizinha”. (2011, p. 49). De

acordo com Le Breton,

O corpo não é um universo independente, fechado em si mesmo, à imagem

do modelo anatômico, dos códigos de saber-viver ou do modelo mecanicista.

O homem, bem em carne (no sentido simbólico), é um campo de força em

poder de ação sobre o mundo, e sempre a ponto de ser influenciado por ele.

(2011, p. 50).

Nesse sentido, a opinião de Le Breton condiz com a de Michel Maffesoli no

que diz respeito a abertura do indivíduo, no seu “estar com” a comunidade para uma

ordem simbólica já desprovida dos efeitos racionalizantes do século passado. Os

rituais contemporâneos, com seus excessos e emoções exacerbadas demonstram

certamente o retorno do espirito dionisíaco e de seus decretos, sendo que um deles

é o de que o homem se desfaça de suas amarras metafísicas para ter a

possibilidade de sentir a experiência do vivido, a mágica da recursividade e da

metamorfose corporal.

O corpo é o veículo capaz de conter todos os sistemas simbólicos, que se

alteram quando recursivamente são (re)produzidos pelos corpos que se auto-

produzem e se auto-organizam, em uma relação de interdependência com o meio

que os cercam. Portanto, da complexa relação entre corpo e cultura, percebemos

processos hibridizantes nos quais emergem sociedades igualmente ricas em

diversidade e comércio cultural.

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3.2. Hibridização cultural

A questão da hibridização cultural já vem sendo já discutida há muitos anos.

O mundo contemporâneo está cada vez mais globalizado e este processo, apesar

de ser lento, não é menos instigante. Dentro de um novo cenário mutante os

personagens povoam a selva tupiniquim. O fruto do contato intenso é um imenso

caldeirão cultural que a tudo engloba. A tendência é misturar cada vez mais, e neste

momento, falar de uma única cultura é desnecessário. A paisagem requer que

olhemos para o que se mostra diferente de tudo aquilo que nossa visão estava

acostumada a ver. Segundo Maffesoli, “não se trata de fanfarronada, mas, sim,

desejo de participar de um debate intelectual que ultrapasse as habituais categorias

de um cartesianismo, que tenha engendrado a visão de um mundo contratual, regido

por um voluntarismo racional”. (2008, p.15).

A cidade é o palco da diversidade, antes mero ponto de comércio, hoje ponte

para o mundo global. A cidade conecta diferentes seres, sendo que ela própria faz

parte dessa simbiose cultural entre o meio social e seus habitantes. As ruas da

cidade contemporânea se tornam o próprio local de expressões culturais, políticas e

artísticas. Nas cidades é que se encontram as diferenças, tensões conflitantes, por

outro lado estão as múltiplas identidades, convivendo entre si, em confrontos

milenares (ex: brancos X negros, índios X não-índios) que, enfim, se tocam e

também se hibridizam.

O Brasil é um país híbrido que começou colonizado por portugueses e

espanhóis, mas logo foi invadido também por holandeses, franceses e vários outros

povos que contribuíram para essa mestiçagem cultural. O passaporte brasileiro é o

produto falsificado mais caro do mercado negro pelo fato do povo brasileiro possuir

inúmeras raízes étnicas. O brasileiro não tem uma só “cara”. As metrópoles

brasileiras possuem comunidades de várias partes do mundo, unidas pelas crenças,

hábitos e relações cotidianas chegando a formar verdadeiras pequenas cidades

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natais dentro desse diferente e novo espaço global chamado “cidade” que a todos

aceita e acolhe.

A hibridização cultural foi essencial no processo de criação das artes

brasileiras. Segundo Peter Burke, (2003, p. 30), “a música fornece outra rica gama

de exemplos de hibridização”. A bossa nova é um exemplo disso. Nascida da

mistura do jazz com o samba teve na figura de músicos como João Gilberto e

posteriormente Tom Jobim, o real exemplo de como a música americana extrapolou

suas fronteiras, assim como o fato de a música brasileira ter se adaptado ao refinado

estilo dos jazzistas americanos. Conta-se que o próprio Luís Gonzaga, o famoso rei

do baião, teria dito após ouvir o reggae jamaicano de Bob Marley, que aquilo era um

xote “safado”. Assim, vemos que o ritmo genuinamente pernambucano teria

ganhado sua versão na ilha do rei do reggae.

O mesmo cenário pernambucano de onde veio o xote, o frevo, o coco, o

baião, musicalmente falando, também foi o ponto do encontro de culturas mundiais,

um outro exemplo típico é o maracatu, ritmo nascido da mistura de batidas africanas

com as toadas brasileiras proferidas pelos mestres e batuqueiros de Recife, que no

passado havia sofrido influência dos holandeses e portugueses. A presença de

inúmeros escravos e a anuência portuguesa para os festejos populares propiciou

que todos se misturassem e pudessem manter e hibridizar suas tradições. Os

tambores africanos foram substituídos pelas alfaias celtas. As roupas usadas nos

cortejos eram semelhantes à das cortes portuguesas. As loas (músicas) eram

cantadas em português e não mais no dialeto africano.

A tendência brasileira a hibridização teve várias consequências e uma delas

foi, no campo do sincretismo cultural, a tolerância religiosa. As religiões das diversas

partes do mundo compartilham, no Brasil, espaços físicos próximos uns dos outros,

algo muito difícil de ser visto em um outro país do mundo. Pesquisas tentam

descobrir uma identidade religiosa para o brasileiro, mas ele, geralmente responde

quando perguntado sobre religião, que prática uma determinada religião, mas

também simpatiza com outra, sendo nenhuma das duas anteriores a religião de seus

pais. O resultado é uma miscelânea religiosa completa, onde graças a um

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temperamento dócil e pacífico, o assunto liberdade religiosa até certo ponto não

provoca aqui sequelas dignas de menção mundial.

Um exemplo típico de troca cultural nas religiões brasileiras é o uso de

instrumentos musicais e ritmos urbanos como o rock e o axé nas igrejas ortodoxas e

protestantes, antes usados somente nas nos círculos populares. Até mesmo a água

benzida dos católicos e espíritas agora é utilizada também nos meios evangélicos e

adaptadas à mensagem deles, de certa forma a água tornou-se divina, ou seja,

aceitar outros comportamentos, outros rituais, outros modos construção do real faz

parte da realidade brasileira, ainda carente de recursos básicos, porém

transformadora e criadora de diversidade.

O fato de que no Brasil temos múltiplas etnias, culturas, torna a própria

identidade brasileira multifacetada. Somos o “todo” fragmentado, espalhado, em

cada canto desse país, de tênis americano/chinês, carro britânico/argentino, roupa

italiana/paulista e de pensamentos em Paris. Hoje, as meninas de quinze anos não

querem mais ir pra Disney, agora sonham em ir para as terras européias, ganhar

euros, enfim, sonhar como a cinderela da fábula medieval. As criancinhas do mundo

hithec dominam photoshops, simuladores e transformam toda a realidade pobre em

que vivem num mundo virtual no qual cada vez mais se assiste a proliferação de

lans house e cyber cafés, lugares onde elas dão vazão ao corpo virtual que as

integra a outros seres igualmente conectados em sua rede. Os seres se unem

virtualmente, os sites de relacionamento pessoal são um dos primeiros contatos

culturais virtual dos seres humanos. Em contatos com outros seres, nesses locais

eles tomam consciência de um mundo sem fronteiras e sem homogeneizações

perturbantes.

O perigo da hibridização na cultura, seja na arte ou na música, traduz-se no

desrespeito de alguns para com a preservação cultural. Um artefato indígena raro

num museu europeu já não tem o mesmo valor do que se fosse mantido no seu local

de origem. Uma flauta bororo, por exemplo, usada fora de um contexto ritualístico

indígena, não ganhará a atenção dos bororos quando usada num concerto de

música contemporânea. No final parece que tudo é um grande “sampler”, parecido

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com esse aparelho que une partes de melodias e passa por cima de direitos

autorais. Até que ponto as culturas devem ser respeitadas e mantidas intactas?

Serão sempre taxadas de culturas inferiores e incivilizadas ou irão finalmente admitir

que são culturas influenciadas e influenciadoras? Segundo Villaça e Góes, (1998, p.

152), “hoje é necessário levar em conta processos de hibridização, ou seja, as

maneiras desiguais com que os grupos se apropriam dos bens simbólicos,

combinando-os e transformando-os”, ou seja, é importante na contemporaneidade

admitir a interculturalidade principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento

tecnológico e aos movimentos de globalização atuais.

Um dos fenômenos hibridizantes que ocorrem no Brasil é a chamada “troca”

cultural. Se por um lado as índias brasileiras usam o batom da Avon, por outro lado,

as madames suburbanas podem perfeitamente usar uma pena indígena como brinco

e os colares de sementes como jóias. Outro exemplo é que as negras brasileiras

usam alisadores das indústrias americanas, enquanto que as alvas princesas da

elite podem fazer trancinhas com as baianas de Salvador. Nosso país proporciona o

espetáculo da diversidade cultural, une as diferenças e luta para resgatar sua cultura

(afro-brasileira principalmente) desprezada e esquecida. Os casamentos inter-raciais

são mais comuns no Brasil do que em qualquer outro lugar do mundo. Enquanto a

mídia nacional insiste em reproduzir uma realidade que não é a brasileira, nas tevês

e nas vitrines mundiais, isto é, nas ruas das cidades, vemos a África, o Japão, a

Alemanha, e outros países representados em cada esquina. A hibridização cultural,

na forma de mestiçagem ou mistura racial, é forte e evidente aqui nas terras

brasileiras e um dos principais fatores é essa aceitação do que é diferente, do Outro,

raro em outros países.

A arquitetura brasileira, citando como exemplo a obra de Oscar Niemeyer, é

fruto de um estilo híbrido de arquitetura que combina elementos de diferentes

tradições. O arquiteto da criação de Brasília foi influenciado pelo arquiteto francês Le

Corbusier e também pelo curvilínea silhueta brasileira, o país das curvas havia

ganhado mais um fã seguidor que as traduz nas formas sinuosas de suas criações.

Os artistas brasileiros, antes influenciados pelas linhas retas dos móveis ingleses,

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passaram a suavizar os ângulos e arredondar as formas dos artefatos. Segundo a

opinião de Peter Burke citando Gilberto Freire, “as linhas retas e os ângulos dos

móveis ingleses foram suavizados quando seus designs foram copiados no início do

século XIX no Brasil”. (2003, p. 25).

O Brasil possui milhares de corpos híbridos e sua cultura é essencialmente

híbrida. Os rostos brasileiros são de anglo-americanos, afro-americanos, árabes

negros, indígenas caboclos. O corpo é também aqui, elemento simbólico construtor

e transformador da realidade. Estes exemplos, mais apropriados a uma

“senso(comu)nologia”, seguindo o argumento maffesoliano, são fragmentos de um

cotidiano complexo e carente de imagens ou noções que abarquem as nossas

expectativas com relação ao tema abordado. Descobrir o corpo contemporâneo, ou

seja, defini-lo e entretece-lo no manto cultural, configurou-se em uma tarefa

extremamente árdua e cansativa, e que por uma vez ou outra, nos permitimos ter

recorrido a imagens da vida comum e das cenas rotineiras dos meros mortais. Na

opinião de Maffesoli:

Vivemos um momento dos mais interessante, em que a notável expansão do

vivido convida a um conhecimento plural; e que a análise disjuntiva, as

técnicas de segmentação e apriorismo conceitual devem ceder lugar a uma

fenomenologia complexa, que saiba integrar a participação, a descrição, as

histórias de vida e as diversas manifestações dos imaginários coletivos.

(2007, p. 246).

A riqueza do pensamento complexo, aliado as transformações do corpo e da

cultura, emergentes no mundo contemporâneo e que afeta não só os corpos como

todo o modo de se conceber e organizar a realidade, conserva-nos na condição de

(re)criadores dela, e nos faz perceber outro alicerce teórico fundamental para a

compreensão dos processos culturais, já pensados sobre bases contemporâneas do

conhecimento.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Vimos que o corpo, redefinido pelos pensadores contemporâneos, é peça-

chave para compreendermos a superação do paradigma cartesiano, mais

precisamente com relação ao dualismo corpo/alma, devendo ser agora

compreendido sob uma perspectiva complexa, que dê conta de suas dimensões

simbólicas, criativas e auto-organizativas. As contribuições de Geertz, Morin e

Maffesoli, foram fundamentais para buscarmos noções apropriadas com relação a

definição do que é o corpo e entretece-las à grande colcha de retalhos cultural

existente.

Percebemos que a noção do que é o corpo na contemporaneidade perpassa

pelo âmbito antropológico, simbólico e complexo. Notamos que relação recursiva

entre o corpo, cultura e sociedade não só foi responsável pela evolução do homem

desde as épocas imemoriais, como, através dela, possibilita-se um mundo simbólico

que é sempre (re)alimentado com novos elementos (idéias, programas, códigos),

essenciais para a produção do conhecimento. Nesse sentido, buscamos trazer as

idéias de Morin a respeito do imprinting e da normalização, para fundamentar como

se produz e se organiza a cultura.

Tentamos mostrar de que maneira a cultura influencia na concepção

contemporânea do corpo, ao mesmo tempo em que os dados culturais são

influenciados pelo corpo em seus processos criativos. Buscamos tratar de algumas

transformações corporais, e para isso utilizamos as obras de David Le Breton, no

que tange sua opinião a respeito do corpo, visto por ele como rascunho, um objeto

incompleto e inacabado. O autor destaca que a associação entre o corpo humano e

as máquinas tem suas limitações, isto é, o corpo não tem a mesma duração das

máquinas, imunes a doenças e a morte, elas podem ter suas peças renovadas

constantemente. Já o corpo, por outro lado, cada vez mais é adornado com novos

produtos da tecnologia (piercings, próteses), revelando sua essência mutante e

criativa.

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O corpo se auto-organiza, se (re)cria, e torna possível, a partir da sua

atividade cerebral a construção da realidade e de sua configuração simbólica. Sem a

interação entre os computadores individuais (corpos) e os programas criados por

ele, dificilmente viveríamos distantes de nossos antepassados primatas. O comércio

cultural, a circulação das idéias, informações, enfim, tudo isso tornou possível o

surgimento de corpos hibridizados em ambientes multidimensionais.

O ciberespaço, que é o novo palco das atuações contemporâneas mostra-nos

as possibilidades futuras de recursividade entre o corpo e a cultura. O corpo possui

nova gama de símbolos e a contribuição dos autores André Lemos e Pierre Lévy, foi

importante para traçarmos o panorama complexo da realidade atual sempre fonte de

novas indagações e conhecimentos. O espaço virtual favorece a criação de redes

sociais, empregos virtuais, sites, que ampliam o leque das relações humanas e

permitem novos processos de recursividade entre os corpos e a cultura.

Portanto, o corpo na contemporaneidade é um objeto a ser (re)definido e

entretecido a imensa teia cultural que o cerca e que amplia os seus horizontes. Com

sua capacidade de organizar todo o sistema simbólico e de (re)adaptar novos

elementos a essa relação recursiva que mantém com a cultura, o corpo é modelável

conforme organiza os meios culturais de que dispõe, mantendo certa autonomia no

processo criativo e ao mesmo tempo em que é criador de conhecimento é também

objeto do conhecimento. Isso possibilita, sobretudo, compreendermos a noção de

corpo e cultura na contemporaneidade pela ótica da recursividade e da

complexidade, transformando-se em verdadeiros pontos de luz para a nossa viagem

epistemológica.

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