Universidade Federal do Pará A. Sobre a natureza da luz

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Universidade Federal do Pará Licenciatura Plena em Física Física Moderna I Tópico 1- Luz Texto de Apoio Profa. Silvana Perez A. Sobre a natureza da luz... O entendimento da natureza da luz é um excelente exemplo de como a construção de um conceito científico não tem nada de linear, sendo um processo muitas vezes longo, sofrido é polêmico, que envolve cientistas em diferentes momentos da história da humanidade. Abordar um pouco da história da evolução do entendimento da natureza da luz com estudantes da educação básica possibilita, assim, que eles entendam a complexidade da natureza das ciências, e portanto deve ser trabalhada em conjunto com a discussão dos principais aspectos do conceito em si. Estamos acostumados a pensar na dualidade onda-partícula como uma discussão estritamente ligada ao advento da Mecânica Quântica do início do século XX. Entretanto, desde os primórdios da discussão da natureza da luz, implicitamente ele está presente. A escola pitagórica, a partir do século IV a.C. considerava que partículas luminosas eram emitidas por objetos visíveis. Já Aristoteles, mais ou menos na mesma época, entendia que os olhos emitiam ondas que, ao atingir os objetos, permitiam sua visualização. Desde então, esta “dualidade” no entendimento da natureza da luz se arrastou por séculos. Não da mesmo forma que a entendemos agora, com o advento da Mecânica Quântica, mas no sentido de que diferentes pensadores enxergavam ora propriedades corpusculares, ora ondulatórias. Hoje sabemos que dependendo do aparato montado, podemos observar um ou outro comportamento, a luz portanto se comportando como “onda-partícula”. Mas no contexto da Física Clássica, onde a explicação dos fenômenos naturais necessariamente começa pela escolha de um tipo de comportamento único e excludente - ou onda ou partícula - esta interpretação não cabia. De certa forma, enquanto este paradigma clássico de mundo dividido entre fenômenos ondulatórios e corpusculares dominou as ciências naturais, uma visão mais completa do que seria a natureza da luz ficou comprometida. Neste sentido, cada uma das visões tinha suas falhas e acertos na explicação dos fenômenos luminosos. Uma das principais dificuldades associadas com a natureza ondulatória da luz era que, até os anos finais do século XIX, as únicas formas de onda conhecidas eram as ondas mecânicas, que dependiam de um meio para se propagar. Os defensores da teoria corpuscular da luz, então, diziam que não seria possível haver propagação de uma onda, representando a luz, desde o Sol até a Terra, uma vez que havia vácuo entre os dois. Esta explicação fazia todo o sentido, e colocava os defensores da teoria ondulatória em uma “saia justa”. Por outro lado, experimentos como os padrões de interferência produzidos pela luz ao passar por fendas, estudados por Young no início do século XIX, alimentavam a discussão da época, corroborando o seu caracter ondulatório. Vemos assim, que por mais de dois mil anos, a busca pelo entendimento da natureza da luz foi o enredo de um rico debate no meio científico. Como qualquer conceito em construção, este passou por vários momentos da história da humanidade até chegar ao que entendemos hoje. Um momento marcante no entendimento da natureza da luz veio com a apresentação da teoria eletromagnética de Maxwell. As equações de Maxwell, apresentadas no final do século XIX, descrevem, juntamente com a força de Lorentz, todo o eletromagnetismo conhecido na época. Mais ainda, no caso particular de propagação no vácuo, portanto na ausência de cargas e correntes elétricas, descrevem um tipo de propagação específico dos campos elétricos e magnéticos, uma onda eletromagnética, que ocorre independente da existência de um meio de propagação, e que se propaga no vácuo com uma velocidade de m/s. Com esta descoberta, a luz então passa a ser aceita na comunidade científica como sendo uma forma de radiação eletromagnética: uma onda eletromagnética que não necessita de um meio para se propagar. Na verdade, a questão do meio é outra história, a história do éter... 3 × 10 8

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Universidade Federal do ParáLicenciatura Plena em Física

Física Moderna ITópico 1- LuzTexto de Apoio

Profa. Silvana Perez

A. Sobre a natureza da luz... O entendimento da natureza da luz é um excelente exemplo de como a construção de um conceito científico não tem nada de linear, sendo um processo muitas vezes longo, sofrido é polêmico, que envolve cientistas em diferentes momentos da história da humanidade. Abordar um pouco da história da evolução do entendimento da natureza da luz com estudantes da educação básica possibilita, assim, que eles entendam a complexidade da natureza das ciências, e portanto deve ser trabalhada em conjunto com a discussão dos principais aspectos do conceito em si.

Estamos acostumados a pensar na dualidade onda-partícula como uma discussão estritamente ligada ao advento da Mecânica Quântica do início do século XX. Entretanto, desde os primórdios da discussão da natureza da luz, implicitamente ele está presente. A escola pitagórica, a partir do século IV a.C. considerava que partículas luminosas eram emitidas por objetos visíveis. Já Aristoteles, mais ou menos na mesma época, entendia que os olhos emitiam ondas que, ao atingir os objetos, permitiam sua visualização. Desde então, esta “dualidade” no entendimento da natureza da luz se arrastou por séculos. Não da mesmo forma que a entendemos agora, com o advento da Mecânica Quântica, mas no sentido de que diferentes pensadores enxergavam ora propriedades corpusculares, ora ondulatórias. Hoje sabemos que dependendo do aparato montado, podemos observar um ou outro comportamento, a luz portanto se comportando como “onda-partícula”. Mas no contexto da Física Clássica, onde a explicação dos fenômenos naturais necessariamente começa pela escolha de um tipo de comportamento único e excludente - ou onda ou partícula - esta interpretação não cabia. De certa forma, enquanto este paradigma clássico de mundo dividido entre fenômenos ondulatórios e corpusculares dominou as ciências naturais, uma visão mais completa do que seria a natureza da luz ficou comprometida. Neste sentido, cada uma das visões tinha suas falhas e acertos na explicação dos fenômenos luminosos. Uma das principais dificuldades associadas com a natureza ondulatória da luz era que, até os anos finais do século XIX, as únicas formas de onda conhecidas eram as ondas mecânicas, que dependiam de um meio para se propagar. Os defensores da teoria corpuscular da luz, então, diziam que não seria possível haver propagação de uma onda, representando a luz, desde o Sol até a Terra, uma vez que havia vácuo entre os dois. Esta explicação fazia todo o sentido, e colocava os defensores da teoria ondulatória em uma “saia justa”. Por outro lado, experimentos como os padrões de interferência produzidos pela luz ao passar por fendas, estudados por Young no início do século XIX, alimentavam a discussão da época, corroborando o seu caracter ondulatório. Vemos assim, que por mais de dois mil anos, a busca pelo entendimento da natureza da luz foi o enredo de um rico debate no meio científico. Como qualquer conceito em construção, este passou por vários momentos da história da humanidade até chegar ao que entendemos hoje. Um momento marcante no entendimento da natureza da luz veio com a apresentação da teoria eletromagnética de Maxwell. As equações de Maxwell, apresentadas no final do século XIX, descrevem, juntamente com a força de Lorentz, todo o eletromagnetismo conhecido na época. Mais ainda, no caso particular de propagação no vácuo, portanto na ausência de cargas e correntes elétricas, descrevem um tipo de propagação específico dos campos elétricos e magnéticos, uma onda eletromagnética, que ocorre independente da existência de um meio de propagação, e que se propaga no vácuo com uma velocidade de m/s. Com esta descoberta, a luz então passa a ser aceita na comunidade científica como sendo uma forma de radiação eletromagnética: uma onda eletromagnética que não necessita de um meio para se propagar. Na verdade, a questão do meio é outra história, a história do éter...

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Justo quando se acreditava que a natureza ondulatória da luz havia sido entendida, e o debate encerrado, alguns anos depois, em 1900, um fenômeno foi descoberto, o Efeito Fotoelétrico, que novamente trouxe o debate à tona, resgatando o caráter corpuscular da luz. Estávamos então vivenciando um momento único na História das Ciências, no qual ocorreria uma quebra de paradigma, que entre outras coisas, traz ao palco da discussão a natureza dual da matéria.

É interessante também destacar, como veremos nas próximas seções, que a solução das equações de Maxwell no vácuo leva ao valor da velocidade de propagação de aproximadamente

m/s, valor este válido em qualquer referencial inercial, o que nitidamente vai de encontro a soma de velocidades associada com as transformações de Galileu.

Assim, o entendimento da natureza da luz, que se iniciou a mais de dois milênios, levou no início do século XX, as duas grandes teorias que deram suporte para o desenvolvimento da da Física Moderna: a Relatividade Especial de A. Einstein e a Mecânica Quântica.

B. Equações de Maxwell e a velocidade da luz

As equações de Maxwell, propostas por volta de 1860, são dadas por:

onde e são respectivamente as densidades volumétricas de cargas e correntes elétricas encerradas em um dado volume e e são a permeabilidade magnética e a permissividade elétrica do vácuo. Na ausência de cargas e correntes elas são escritas como:

Estas equações diferenciais acopladas representam campos magnéticos e elétricos oscilando no vácuo, de forma acoplada. É possível separar os dois campos e obter duas novas equações diferenciais, onde os campos aparecem desacoplados:

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∇ ⋅ E =ρϵ0

∇ ⋅ B = 0

∇ × E = −∂ B∂t

∇ × B = μ0ϵ0∂ E∂t

+ μ0 j

ρ jϵ0 μ0

∇ ⋅ E = 0

∇ ⋅ B = 0

∇ × E = −∂ B∂t

∇ × B = μ0ϵ0∂ E∂t

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Cada uma destas equações representa uma onda que se propaga com velocidade:

.

O impressionante é que ao substituirmos os valores das constantes chegamos a m/s, e que este valor independe do referencial inercial adotado. Em outras palavras, dois referenciais inerciais com velocidade relativa , enxergam o mesmo valor de velocidade da luz: a teoria da relatividade especial, proposta por Einstein alguns anos mais tarde, já estava aí, nestas equações...

C. Sobre a velocidade da luz...

Acabamos de apresentar um resultado surpreendente derivado das equações de Maxwell: a existência de uma onda, de natureza até então nunca vista, ou seja, capaz de se propagar no vácuo, relacionada com as oscilações acopladas de campos elétricos e magnéticos. Mais ainda, o valor de propagação desta onda depende de somente duas constantes, sendo portanto constante também, independente do referencial adotado. No contexto da Física Clássica conhecida até então, isso não fazia o menor sentido. De fato, de acordo com as transformações de Galileu, fenômenos descritos em diferentes referenciais inerciais, necessariamente teriam diferentes representações de trajetória, embora estivessem sujeitos às mesmas leis físicas, as leis de Newton. Para entender melhor este resultado, considere um trem que se move na superfície da Terra com velocidade constante em uma única direção. Sobre este trem é posto um canhão fixo que disparar balas. Existem infinitas formas de representar a trajetória descrita pelas balas, após saírem do canhão, já que a representação da sua velocidade depende do referencial adotado. Vamos considerar dois deles: um (S) colocado na superfície da Terra (que por simplicidade, vamos considerar como um referencial inercial) e outro (S’) que se move com em relação a S. Se em relação a S’ a bala é lançada do canhão com velocidade ’, conforme a figura ao lado, então em relação a S, sua velocidade, no instante de lançamento é calculada pela soma de velocidades de Galileu, sendo dada por:

.

Os valores de velocidade nos dois referenciais podem experimentalmente ser medidos e são consistentes com esta previsão. Se agora substituirmos o canhão de balas por um canhão que emite um feixe de luz, seria de se esperar que o valor da velocidade da luz não fosse o mesmo nos dois referenciais.

Vários experimentos foram propostos para medir a variações na velocidade da luz em diferentes referenciais, tentando por exemplo, detectar a presença do éter. Michelson e Morley buscaram, utilizando um interferômetro, observar diferenças de tempo de propagação de luz por

∇2 E −1v2

∂2 E∂t2

= 0

∇2 B −1v2

∂2 B∂t2

= 0

v =1ϵ0μ0

c ∼ 3 × 108

u

u

u

v

v = v′ + u

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diferentes caminhos. Entretanto, nenhum deles foi capaz de encontrar tal diferença. Em 1905, Einstein propôs então, que a velocidade da luz no vácuo seria uma nova constante da natureza.

D. Leituras complementares

Leitura 1. A natureza da luz. Carlos Lenz Cesar, pp 6-02 a 6-05.

Leitura 2.

http://propg.ufabc.edu.br/mnpef-sites/relatividade-restrita/equacoes-de-maxwell-e-a-velocidade-da-luz/

Leitura 3. Introdução à Teoria da Relatividade. Sérgio R. Muniz. Escola de Física Contemporânea, IFSC-USP, 2015.