UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FELIPE BUENO AMARAL

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FELIPE BUENO AMARAL INDIVÍDUO, SOCIEDADE E AMBIENTE: REFLEXÕES A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE UM BOSQUE URBANO CURITIBA 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

FELIPE BUENO AMARAL

INDIVÍDUO, SOCIEDADE E AMBIENTE: REFLEXÕES A PARTIR DA

CONSTITUIÇÃO DE UM BOSQUE URBANO

CURITIBA

2015

FELIPE BUENO AMARAL

INDIVÍDUO, SOCIEDADE E AMBIENTE: REFLEXÕES A PARTIR DA

CONSTITUIÇÃO DE UM BOSQUE URBANO

Dissertação apresentada como requisito

parcial à obtenção do grau de Mestre em

Sociologia, no Curso de Pós-Graduação

em Sociologia, da Universidade Federal

do Paraná.

Orientador: Profº Dr. José Luiz F.

Cerveira Filho

CURITIBA

2015

Para Roberto Souza, que marcou profunda e eternamente

minha vida. Em memória.

À Amanda e Luiz Felipe, que me ensinaram o que é o

amor. Pra quando compreenderem o que o pai faz. Este

texto, mais que para, é por vocês.

AGRADECIMENTOS

Não se pode agradecer sem incorrer em falta. Um trabalho como este, assim

como a própria vida (e os dois não se descolam), é devedor de um mundo de gente,

eventos e ambientes. Reconhecendo a injustiça que vou certamente cometer, preciso

ainda assim fazer algumas menções que guardo na lembrança.

Inicialmente agradeço a Capes pelo auxílio financeiro e suporte para a realização

deste trabalho.

Agradeço imensamente a banca examinadora, pelas contribuições atentas tanto

na qualificação do texto quanto na defesa. Nominalmente, agradeço aos professores

Alfio Brandenburg, Clenio Lago, Dimas Floriani e em especial meu orientador e

parceiro, Zé Luiz!

Ao programa que possibilitou minhas viagens, as organizações e as participações

em eventos, obrigado. Agradeço especialmente ao secretário Katiano Miguel, que dá

uma outra perspectiva ao fazer público. Grato pela amizade, dedicação, atenção e

carinho. Valeu brother – tudo dentro!

Da mesma forma agradeço a todos os professores do meu curso de mestrado que

mesmo quando eu não soube interpretar, sempre fizeram surgir alguma luz no caminho,

obrigado. Aos dois grupos de pesquisa que me acolheram, CERU e Epistemologia &

Sociologia Ambiental, de onde brotou muito diálogo e entrei em um universo

maravilhoso.

Aos amigos e a família que compreenderam meu ‘sumiço’ e o silêncio. Aos

primeiros agradeço a compreensão das festas que não fui; levo no coração Arilda

Arboleya, Caro Cravero, Fragoso, Juan Galigniana, Klayton Thomaz, Lúcio Stival e

Viviane Darif. A família agradeço de coração o apoio e torcida, em especial, minha

irmã Flávia, que me ajudou em um momento ruim. E minha tia Salete, que, sempre

motivadora, me cedeu além do carinho, livros, mesa e cadeira que ficarão comigo a

vida. Nunca esquecerei. Agradeço com carinho a Roberta Souza que me proporcionou

os passos iniciais.

Dois amigos em especial me acompanharam desde o início de 2012: Tabata

Soldan e Vitor Jasper. Ambos, a seu jeito, me ensinaram o que era sociologia e todos os

princípios da amizade desde a resiliência à compreensão. Dizer aqui o que vocês

significam pra mim é impossível, só se expressa nos abraços. De verdade e do fundo do

coração, amo vocês!

Meus pais foram cada um a seu jeito, especiais. Minha mãe na vida, meu pai

pela distância, mais pontual. Não lembro mais que conjunto de coisas e relações me

encaminhou ao mestrado, mas minha mãe com certeza tem muita responsabilidade

nisso. Assumiu a ‘bronca’ quando o ‘bicho pegou’ e não me deixou desanimar em

nenhum momento. Te amo mãe, se estou aqui, e agora vem o doutorado, é

responsabilidade sua! Valeu demais! Meu pai igualmente me apoiou de longe, e foi

essencial. Te amo pai!

Escrever um texto como produto final diz pouco e tem que ser muito. Essa

tensão constante, desde o processo de seleção onde tudo não passa de projeto, ou seja,

muita imaginação, exige carinho, esforço, calor, compreensão. Esse processo seria

certamente mais difícil se todos os dias, quase 24 horas dele, não tivesse alguém que

valesse a pena ao meu lado. Dizer obrigado Camila, também vai ser pouco. Essa relação

que tivemos fez de algum modo a universidade não sair da gente. Isso nasceu na

academia e vai pra dentro de cada detalhe da vida doméstica. Sou grato por todos os

momentos de apoio e incentivo. Sou feliz por estar ao seu lado! Você foi demais pra

mim, alemoa!

Eu já estava há um bom tempo escrevendo Memória do fogo, e

quanto mais escrevia mais fundo ia nas histórias que contava.

Começava a ser cada vez mais difícil distinguir o passado do

presente: o que tinha sido estava sendo, e estava sendo à minha

volta, e escrever era minha maneira de bater e abraçar. Supõe-

se, porém, que os livros de história não são subjetivos.

Comentei isso tudo com José Coronel Urtecho: neste livro que

estou escrevendo, pelo avesso e pelo direito, na luz ou na

contraluz, olhando do jeito que for, surgem à primeira vista

minhas raivas e meus amores.

E nas margens do rio San Juan, o velho poeta me disse que não

se deve dar a menor importância aos fanáticos da objetividade:

- Não se preocupe – me disse. – É assim que deve ser. Os que

fazem da objetividade uma religião, mentem. Eles não querem

se objetivos, mentira: querem ser objetos, para salvar-se da dor

humana.

Eduardo Galeano, 2014. O livro dos abraços.

Este estudo [...] quer partir de um pressuposto diferente. O de

que o dentro é o fora. E o fora é o mais dentro.

Paulo Leminski, 2013. Vida.

O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão

própria, e essa expressão vem-lhe de fora. Cada coisa é a

intersecção de três linhas, e essas três linhas formam essa

coisa: uma quantidade de matéria, o modo como interpretamos,

e o ambiente em que está.

Fernando Pessoa, 2006. Livro do Desassossego.

Há um eu que vive em toda consciência constituinte. Dele nada

se pode dizer, a não ser que ‘através’ dessa visada ele vive um

mundo (coisa, homem, obra de arte, etc.) é ele que percebe,

imagina, sente, quer, etc. o eu do cogito não pode tornar-se

objeto de investigação, ser ‘tematizado’. Só é possível

surpreender suas ‘maneiras de relacionar-se com’. Por

exemplo, como ele presta atenção a..., suspende [o juízo] ou

afirma, mantém passivamente uma percepção, avança

ativamente ajuntando um ato ao outro.

Paul Ricoeur, 2009. Na escola da fenomenologia.

RESUMO

Este texto se insere nas reflexões socioambientais contemporâneas que partem das

contribuições da teoria da ação e da racionalidade desde Max Weber a Anthony

Giddens. Neste estudo nos debruçamos no processo de constituição de um bosque

urbano dentro de uma região de casas de alto padrão, de um pequeno município da

região metropolitana de Curitiba, PR, com interesse de perseguir e compreender as

motivações desta constituição. Com esse intento, a pesquisa foi realizada num período

de dois meses, onde frequentamos o bosque e entrevistamos a comunidade do entorno e

também os organismos da prefeitura do município, relacionados a construção e

manutenção de parques, praças e bosques. Foi possível perceber que dentre as múltiplas

motivações da constituição do bosque estudado, a principal delas resultou de um

conflito social entre dois grupos, entre indivíduos que utilizavam o bosque de modo

distinto. Através disso constatou-se que as noções de natureza e meio ambiente, estão

diminuídas ante outras noções como segurança e legislação, e sobretudo, que o meio

ambiente não está descolado das ações dos indivíduos.

Palavras-chave: Ação; Motivação; Ambiente.

ABSTRACT

This text is inserted in contemporary social and environmental considerations which

stem from the contributions of the action theory and rationality from Max Weber to

Anthony Giddens. In this study we look back in an urban forest formation process

within a region of high standard houses, a small municipality in the metropolitan region

of Curitiba (PR), with interest to pursue and understand the motivations of this

constitution. With this intent, the survey was conducted over a period of two months

where we attend the woods and interviewed the surrounding community as well as the

bodies of the municipal council, related to construction and maintenance of parks,

squares and woods. It could be observed that among the many root causes of the

constitution of the studied forest, the main one was the result of a social conflict

between two groups of individuals who used the differently grove. Through this it was

found that the notions of nature and environment, are reduced compared to other

notions such as security and law, and above all, that the environment is not taken off the

actions of individuals.

Keywords: Action; Motivation; Environment.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11

1.1. Descrição do objeto e problema de pesquisa ............................................................... 17

2. ALGUNS APONTAMENTOS ACERCA DA CIÊNCIA DE MAX WEBER E SUA

RELAÇÃO ENTRE INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA E VALORES: análise da relação

Natureza e Cultura ....................................................................................................................... 21

2.1. Interpretação e compreensão na obra de Max Weber e Wilhelm Dilthey: uma

contribuição da história das ideias .......................................................................................... 26

2.2. Presença da interpretação na metodologia científica em Weber e Dilthey ................. 31

3. O SISTEMA TEÓRICO DE AÇÃO: do indivíduo de Weber ao agente de Giddens ......... 39

4. AÇÃO, SOCIEDADE E AMBIENTE: uma descrição a partir das apreensões do trabalho

de campo ..................................................................................................................................... 51

4.1. Sobre a constituição do bosque urbano ....................................................................... 51

4.1.1. Grupo 1 e as relações com o ambiente ................................................................ 53

4.1.2. Relação do Grupo 1 e o bosque: aparece um novo elemento .............................. 60

4.1.3. Descrição dos usos do bosque pelo Grupo 2: outras motivações ........................ 64

4.2. Apreensões do Grupo 1 em relação ao Grupo 2 .......................................................... 67

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 79

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 85

APÊNDICE ................................................................................................................................. 87

11

1. INTRODUÇÃO

Esta dissertação não começou há dois anos quando ingressei no mestrado em

sociologia desta universidade; este texto – com licença da medida poética – nasce com

minha vontade de ser professor, que ficou mais forte quando iniciei a graduação em

jornalismo, nunca concluída, nesta cidade de Curitiba no ano de 2004. Desde a primeira

experiência com o mundo acadêmico, seus corredores, sua estrutura relacional, a

horizontalidade da transmissão e compartilhamento do conhecimento por meio das

discussões, enfim, o habitus (termo que desconhecia naquele período) desse mundo que

tem pouca ciência e muito mais relação (anos mais tarde já no mestrado confirmo pela

frase de um meu melhor amigo “sociologia se aprende no bar”. Com o jornalismo não

foi diferente).

O curso na faculdade de jornalismo foi interrompido quando tive de mudar de

cidade, sair desta Curitiba de Dalton Trevisan e Paulo Leminski – cidade essa que digo

que nasci por opção – e ir, em meados de 2006, para a pequena São Miguel do Oeste, no

extremo oeste catarinense, onde nasceram meus dois filhos, Amanda e Luiz, e conheci

por oportunidade uma outra forma de vivência acadêmica: a pesquisa.

Na nova cidade, por uma questão muito particular, não continuei no curso de

comunicação social; prestei vestibular para História no ano em que o curso fechou na

única universidade da região. Entre as opções, optei pela Gestão Ambiental, um curso

tecnológico superior. Já havia tido contato com o jornalismo ambiental e me pareceu

que teria mais oportunidades como professor nessa área que insistia em aparecer dentro

de toda reflexão de projeto de futuro.

Me tornei pesquisador de iniciação científica com bolsa integral naquela

instituição onde foi possível primeiro, conhecer o mundo de pesquisas, produção e

difusão de conhecimento; segundo, aprofundar o conhecimento transmitido em sala de

aula e em consequência ter mais acesso aos professores. Foi aí meu primeiro contato

com a sociologia, através do grupo de pesquisa Educação e Conhecimento, que reunia

alunos de várias áreas para discutir textos dos mais variados (aí conheci a obra de

Friedrisch W. Nietzsche [1844-1900], por exemplo, que transformou meu olhar sobre o

mundo).

Recebi o título de graduação em 2011, e em 2012, já de volta à terra das

araucárias, decidi cursar como aluno especial algumas disciplinas do curso do mestrado

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em sociologia da Universidade Federal do Paraná. Foi uma experiência na mesma

medida assustadora e enriquecedora. Tenho convicção de que tal exercício foi

fundamental para meu ingresso como aluno regular no mestrado em sociologia no ano

seguinte, do qual este texto é resultado.

Ele, o texto, teve inicialmente quando ainda era projeto, a motivação de

descobrir as racionalidades envolvidas na constituição de um bosque urbano.

Precisamente, a intenção era investigar tanto as racionalidades do poder público, como

as racionalidades da comunidade em que estava o bosque, investigar quais eram as

visões de mundo que resultaram na construção daquele equipamento urbano, e não em

qualquer outro empreendimento. Essa ideia atravessou todo o trabalho de campo e o

arcabouço teórico e metodológico que foi apresentado à banca de qualificação. Ali, o

texto se transformou e se tornou isso que hoje está aí distribuído nas páginas que se

seguem.

A transformação, em termos teóricos foi sutil, da racionalidade à teoria da ação,

essencial para que fosse possível construir o que estava latente e que se tornou o

embrião de uma noção particularmente encantadora, e que é o principal argumento do

texto: a de que o ambiente (tido aqui enquanto um mundo particular que nasce do

entrejogo entre o indivíduo que o vivencia e as relações por ele estabelecidas) não pode

ser desconsiderado em qualquer análise que se pretenda social (social, nesse sentido,

quer dizer as interações que os sujeitos realizam com outros, de modo dinâmico, ao

longo de suas vidas). Com essas duas definições o leitor já pode ver que a tarefa não é

de todo fácil, e por isso seguimos o conselho de Nietzsche tão remarcado por Bruno

Latour [1947-]: adentramos a questão como alguém que entra num banho frio, e sai tão

rápido quanto entrou.

À guisa de traçar a melhor rota para o estudo, não foi possível encontrar melhor

forma para a estrutura do trabalho que esta que se segue: como primeiro momento do

texto, para apresentar o debate entre natureza e cultura, descrevemos a partir da

discussão weberiana nossa leitura da interpretação dos fatos científicos, precisamente,

das ações investigadas. Em um sentido muito delimitado dentro da vasta literatura

weberiana, o leitor encontrará nas páginas deste texto, as noções de ciência da qual

compartilhamos e em mesma medida, uma breve revisão acerca de sua teoria da ação.

Desta forma, Max Weber [1864-1920] é figura fundamental neste texto por

servir de orientação metodológica e principalmente por auxiliar no modo como

organizamos as reflexões aqui realizadas. Para apresentarmos esta postura

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epistemológica de Weber, estruturamos a apresentação de sua teoria em dois momentos

principais; o primeiro, e não poderia ser de outra forma, nos apoiamos na concepção de

ciência do autor em um diálogo com Wilhem Dilthey [1833-1911], autor de seu tempo e

círculo social.

Num segundo momento do texto, estabelecemos uma discussão que apresenta

nossa posição no debate entre indivíduo e sociedade, dentro de um movimento que

inicia na discussão de Weber e que se delineia com traços mais apurados, quase um

século depois, na teoria da estruturação de Anthony Giddens [1938 -]. Nesse último,

apreendemos a noção de dualidade da ação, fluxo esse recursivo entre sociedade e

indivíduo, através do qual emerge a reflexividade. Desde essa argumentação e a partir

da noção de risco, apontamos uma possibilidade de considerar o ambiente neste

movimento.

Com essa proposta, nos dedicamos a investigar como se estabeleceu então o

processo de constituição do pequeno bosque. Talvez o leitor se pergunte por que

optamos por pesquisar um bosque e não qualquer outro equipamento. A resposta não é

fácil. Se servir de justificativa, numa passagem rápida por um bairro afastado de um

município da região metropolitana, encantados com as belas residências que destoavam

do restante da cidade, nos deparamos com uma área verde, de árvores aparentemente

nativas, e que estava começando a ser cercada. Retornando no dia seguinte imaginamos

como aquilo contribuía como adorno para a região.

Estávamos em tempo de construir um projeto de pesquisa que servisse de

proposta para o ingresso no curso de mestrado em sociologia, na linha de ruralidades e

meio ambiente, e ver aquela construção recém-iniciada do bosque, serviu como

problema de pesquisa: ante uma noção de crise ecológica e ambiental (até o final do

texto trataremos de distingui-las) que fluxo contínuo atravessa nossas reflexões e nosso

cotidiano, afinal, quais são as questões que orientam a constituição de um bosque

urbano? Serão elas estritamente ecológicas? Rascunhamos o projeto com esse problema

(à época pensando em racionalidade ambiental), fizemos algumas leituras necessárias,

submetemos ao exame do processo de seleção do mestrado e este é o produto final.

Em campo (ou, no bosque), orientado por essas questões, nossa pretensão era

entrevistar as pessoas que moravam na região do bosque e a prefeitura do município.

Durante o processo de entrevistas, paralelo ao processo de construção do arcabouço

teórico, encontramos mais um elemento a ser considerado para a pesquisa; um grupo de

moradores retirados da beirada de um rio, vítimas de alagamentos constantes estava

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sendo realocado para aquelas mediações, na quadra vizinha ao bosque. Isto reorienta

nossa pesquisa, como evidenciado nas páginas que se seguem.

Assim, no rastro dos processos que permitiram as análises, observamos a

utilização do bosque, as pessoas que frequentavam e que usos faziam dele. O trabalho

de campo teve duração de dois meses e fomos ao bosque estritamente com intuito de

coletar dados para a pesquisa – entrevistas – durante dez dias. Conciliamos a visita com

a realização de 8 entrevistas realizadas a partir de um roteiro semi estruturado com

moradores da região que participaram da constituição do bosque (e aceitaram participar

da pesquisa mediante assinatura de um termo de consentimento) e também com

membros de dois departamentos da prefeitura daquele município, Departamento de

parques, praças e bosques e Departamento de Planejamento Urbano. Não realizamos

entrevistas com os moradores das casas populares – a partir de agora representado como

Grupo 2 – já que eles não participaram da fase de construção do bosque.

Como veremos ao longo do texto, a implantação do conjunto habitacional foi

paralela a transformação (construção) do bosque. Devemos ressaltar que intentávamos

entrevistar o secretário de meio ambiente, que não aceitou participar alegando pouco

conhecimento sobre a história do bosque, mas nos encaminhou para outros dois órgãos

da prefeitura: Secretaria de Educação ambiental e Departamento de parques, praças e

bosques. Na primeira também não obtivemos sucesso, mas no Departamento de

parques, praças e bosques conseguimos obter nossa primeira entrevista com o

coordenador chefe daquele departamento. No decorrer desta entrevista, fomos

encaminhados para a Secretaria de Planejamento Urbano do município, onde foi

possível obter com a diretora daquela secretaria1, a segunda e última entrevista com

atores da prefeitura.

Avançando nas motivações de constituição, entretanto, constatamos um delicado

jogo social. Um jogo intermediado pela prefeitura – enquanto poder público –, esta

comunidade do entorno do bosque (identificada no texto como Grupo 1) e uma

comunidade oriunda de um conjunto habitacional (identificada no texto como Grupo 2).

Então, se partíamos inicialmente da noção de relação sociedade/natureza desde a

questão que nos levou a pesquisar o bosque, chegamos à constatação

sociedade/sociedade/natureza.

1 Nessa secretaria constatamos que possivelmente teríamos que entrevistar o Departamento de obras do

município. Ao ser contatado, o diretor deste departamento se recusou a participar do processo de coleta de

dados. Neste departamento poderíamos obter informações relativas à manutenção do bosque. No decorrer

da pesquisa isso se mostrou dispensável.

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Dessa forma, num período de dois meses realizamos dez visitas ao bosque, e

quatro visitas à prefeitura do município. Na primeira visita à prefeitura, mais

precisamente na sede da Secretaria de Meio ambiente, tínhamos a intenção de conversar

com o secretário de meio ambiente. Havíamos efetuado uma ligação telefônica prévia

para ter certeza de que ele estive presente na secretaria, e também que pudéssemos

conversar sobre a constituição do bosque.

A secretária, durante esta primeira ligação, procurou extrair a motivação de

nossa visita; ao saber que se tratava de uma pesquisa da área de sociologia, pediu que

comparecesse à sede. Em poucos minutos estávamos lá, e recebemos a notícia de que o

secretário teve de se ausentar, entretanto, que era para deixar o número de telefone para

contato. No dia seguinte ainda pela manhã recebemos uma ligação daquela secretária

agendando para o mesmo dia, na metade da tarde. Lá estávamos, com quinze minutos

de antecedência e uma ansiedade considerável para a realização da primeira entrevista

da pesquisa. A secretária nos recebeu e avisou que em breve seríamos atendidos.

Sentados na ante sala, olhávamos insistentemente para o relógio na parede.

Aquela era uma sala central na secretaria de meio ambiente, por onde todos os que

quisessem entrar na sede, para falar com qualquer pessoa de uma das salas dos extremos

da sede, inevitavelmente teriam de passar. Da sala do secretário podiam se ouvir quatro

vozes, e tentávamos em vão descobrir qual delas era a voz do secretário; isso também

permitiria minimamente saber um pouco sobre seu estado emocional naquele momento.

Enquanto nos distraíamos neste exercício, a secretária olhou para o relógio e logo

depois lançou o olhar em nossa direção, dando entender que podíamos estar

incomodados com aquele atraso de cinco minutos.

Ela levantou de sua mesa e sem receio interrompeu a acalorada reunião que se

tratava da gerência de resíduos de construção civil no município, relacionando com a

legislação, a necessidade de disponibilizar mais caçambas para os locais onde as obras

eram realizadas e os inevitáveis desperdícios de pessoal, caçambas de armazenamento e

combustível, com as construções realizadas nos limites do município, discutindo a qual

município cabia a gestão nesses casos. As vozes cessaram quando ela informou que já

estávamos ali. O secretário prontamente pediu que a reunião continuasse e saiu da sala.

Muito sorridente e solícito, confirmou do que se tratava a pesquisa, e disse que

havia pensado em me encaminhar para o setor de educação ambiental do município, na

figura da responsável pelo setor. O secretário então nos acompanhou até o setor de

educação ambiental e nos apresentou a responsável – percebemos que já haviam

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conversado entre si sobre nossa intenção de pesquisa. Ela me pediu que entrasse em sua

sala, e após ouvir atentamente nossas motivações de pesquisa, nos encaminhou para o

Departamento de parques, praças e bosques. Não foi possível encontrar o coordenador

deste departamento, teríamos de retornar uma terceira vez. Dois dias depois, enfim,

conseguimos agendar com o coordenador daquele departamento e realizar a entrevista

com ele sobre a constituição do bosque. Este mesmo coordenador nos encaminhou para

o setor de planejamento urbano do município para obtermos uma compreensão maior

sobre esta constituição. Assim, o fizemos, contatamos o setor de planejamento urbano e

falamos com sua gestora. Estas duas entrevistas dos departamentos da prefeitura fazem

parte do relato que faremos mais adiante. Uma vez de posse das informações obtidas na

prefeitura, retornamos ao bosque.

No bosque, tiramos algumas fotos e caminhamos pelo seu entorno. Entre todas

as casas próximas ao bosque, intentávamos realizar o maior número de entrevistas

possível. No entorno do bosque existem 32 residências; batemos na porta de todas as

casas em que percebemos movimento de moradores. Fomos atendidos em cinco

residências2. Estabelecemos um roteiro orientador para as entrevistas e de posse dele e

de um gravador, solicitamos consentimento de seis3 moradores para realizar entrevistas

relativas às percepções concernentes ao bosque.

Durante as entrevistas tanto na prefeitura, quanto na comunidade do entorno do

bosque, apreendemos aquela noção que representamos acima no binômio

sociedade/sociedade/natureza. Isto porque a constituição do bosque em uma

comunidade de alto padrão se revelou um meio alternativo para solução de um conflito

social, entre aquela comunidade, e membros de outra comunidade, residentes do outro

lado do bosque, em um conjunto habitacional em plena constituição, de 634 casas.

Bosque havia, mas seus usos não eram controlados: para a comunidade do

entorno (Grupo 1), era como se fosse extensão de suas casas; para a comunidade do

conjunto habitacional (Grupo 2), era um refúgio do controle urbano, um lugar

desafiador para as crianças, ora na diversão entre as árvores, ora se banhando sem roupa

num pequeno lago que se formava dentro de seus limites.

Quando mencionamos esses elementos, o lago e as árvores, é comum que os

relacionemos diretamente com a natureza. Acontece que essa relação acaba por

2 Do total de residências, fomos convidados a entrar em apenas 2, e destas, em apenas uma pudemos

realizar a entrevista sentados. Todas as outras foram realizadas em pé na calçada, de frente para o bosque.

Essa situação de entrevista não permitiu que a conversa fosse realizada com maiores detalhes. 3 Em uma das casas entrevistamos duas pessoas.

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estabelecer uma distinção, ou seja, fora daí não estamos na natureza, estamos na cultura

ou como nos dizem os manuais de gestão ambiental, estamos em um meio ambiente

construído. Discordamos desta distinção. Porém, alertamos desde já: sendo esta a

apreensão obtida desde as entrevistas, nos utilizamos dela para o desenvolvimento da

análise. Então o leitor verá que na parte II do trabalho falamos do bosque como

natureza. Fizemos uma opção arriscada, mas, como o texto não pretende entrar neste

liame, nos resignamos em seus limites.

Fizemos outra opção de risco na forma como apresentamos o texto. Dividimos a

estrutura deste trabalho em duas grandes partes: na parte I, após a apresentação do

objeto e construção do problema, apresentamos uma discussão teórica que embasa nossa

reflexão. Neste trecho apresentamos a teoria, do pensamento de Max Weber, ao

pensamento de Anthony Giddens. Na parte II, optamos por descrever o estudo de campo

para posteriormente, estabelecer um diálogo entre teoria e prática, localizando as

principais motivações da constituição do bosque.

1.1. Descrição do objeto e problema de pesquisa

Já dissemos que o campo por nós investigado foi escolhido a partir de uma

passagem ocasional por uma região de alto padrão de um pequeno município de região

metropolitana. Nesta região, centralizado em meio a um conjunto de residências , está

estabelecido um pequeno bosque urbano que, associado às residências, e ao ritmo de

vida atípico para um município de região metropolitana, constitui uma interessante

paisagem de aspecto bucólico. À época, em 2012, o bosque ainda estava em construção;

onde antes só havia árvores e vegetação rasteira, eram agora erigidos bancos, um lago

sob uma ponte, brinquedos para crianças, academia ao ar livre, trilha para caminhada,

uma pequena casa com banheiros, e postes de luz eram agora estruturados; tudo isso

sendo limitado por uma cerca de metal. Nitidamente, esta estrutura que estava sendo

constituída, era muito mais recente que as residências do seu entorno, ainda que estas

últimas nem de longe pudessem ser chamadas de antigas. Isso despertou nossa atenção.

O bosque que tem uma área total de pouco mais de 12.000 metros quadrados4

está localizado na região nordeste do município. Em termos hidrográficos ele está

situado no divisor de águas daquela região, que tem a 600m a leste, seu principal rio.

4 De acordo com informações extraídas do site da prefeitura do município pesquisado.

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Possui, portanto, um aclive para quem na pista de caminhada se dirige ao norte, e

consequentemente um declive para quem se dirige ao sul. Se colocarmos o leitor dentro

do bosque e olhando para o sul, teremos a seguinte disposição: tendo o bosque uma

posição central naquele ambiente, ao leste temos casas de médio e alto padrão, ao sul,

um condomínio de médio padrão assim como na região oeste. Na região norte, existe

algumas árvores e já fora dos limites do bosque é possível ver alguns telhados do

conjunto habitacional – que se estendem a norte e a leste do outro lado do divisor de

águas.

Deste lado de fora do bosque, na região norte, portanto no lugar mais alto,

constatamos – à distância de 10m do final do bosque (do outro lado da rua) – telhados

de casas em construção. Avançando mais, entrando em meio a essas casas em fase de

construção – algumas já habitadas – nos demos conta de que se tratava de casas com um

mesmo padrão de construção. Algumas casas já pintadas da mesma cor e a presença de

trabalhadores com o uniforme do município nos despertaram a apreensão de se tratar de

casas populares. Não podíamos naquele momento precisar o número exato de casas,

mas os telhados que se nos mostravam dali, e que se estendiam até a margem do rio, nos

chamou a atenção pela segunda vez. Havia ali, um objeto além do objeto?

Observamos que aqui não existe julgamento de valores; havia uma comunidade

de casas de alto padrão no entorno do bosque, e uma comunidade de casas populares

que se perdiam do outro lado do bosque, reconfigurando a paisagem do morro. Em

nosso cenário o bosque tem uma posição central. Sua parte mais alta ao norte é o divisor

de águas, na parte mais baixa ao sul, percebe-se a única entrada com um portal

imponente, o lago e a ponte. A leste e a oeste condomínios. O lado norte no topo do

morro permite visualizar alguns telhados das casas populares. Alguns passos em direção

ao norte, fora do bosque, nos deparamos com um mundo de casas populares.

Desde meados do século passado existe uma tensão mundial acerca das

condições de possibilidade do planeta e de seus recursos naturais, onde o principal

agravante destas possibilidades são as práticas culturais impostas por meio das ações

humanas no planeta. Essa imanência do que chamaríamos de causa ambiental se revelou

presente em nosso campo, como uma das motivações da constituição do bosque. Mas há

algo subjacente que ganhou espaço em nossa análise na medida em que nos

aproximávamos do objeto.

Nesse sentido, o que existe além do bosque é essencial. Deste lugar, foi possível

apreender outras motivações que foram definitivas para a constituição do bosque

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estudado. O que resultou, em termos de análise, num grande desafio para equacionar as

racionalidades que permeavam o bosque. Isso porque tivemos de suspender a noção de

constituição unilateral do bosque, e observar como a comunidade que reside nas casas

populares (Grupo 2) participa nesta constituição. Dessa forma, deslocamos nosso

objeto, ou seja, se antes o interesse era sobre a razão de constituição de um bosque

urbano em uma comunidade de alto padrão, agora era sobre as relações socioambientais

mobilizadas a partir do bosque, sob o prisma das múltiplas razões.

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PARTE I

Apresentamos nesta parte, teórica, a epistemologia que orientou a análise do trabalho

como um todo. Estabelecemos dois grandes eixos principais: 1) discussão da distinção

natureza e cultura desde os autores do final do século XIX, como Max Weber e

Wilhelm Dilthey. Nos concentramos na discussão metodológica da separação dos

termos. Posteriormente, 2) dentro do debate entre sociedade e indivíduo, centramos o

olhar primeiramente em Weber, e demonstramos como o autor compreende o conjunto

da ação dos indivíduos. Em um segundo momento, demonstramos como Anthony

Giddens entra neste debate e sistematiza os conceitos que compõe os passos de sua

estruturação.

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2. ALGUNS APONTAMENTOS ACERCA DA CIÊNCIA DE MAX WEBER E

SUA RELAÇÃO ENTRE INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA E VALORES:

análise da relação Natureza e Cultura

É de todo impossível estabelecer de forma unívoca se alguém vê o

‘vermelho’ de um determinado papel pintado ‘tal’ como eu o vejo,

se essa cor tem o mesmo ‘matriz emocional’ para ele e para mim; a ‘percepção’

[Anschauung] em questão permanece necessariamente

indefinida na sua comunicabilidade.

Max Weber, 1906.

Nesta fase inicial do trabalho, se faz pertinente apresentar a epistemologia dos

autores do final do século XIX– sobretudo na Alemanha – que inseriram o debate

cultural na ciência naturalista daquele período. Desta forma, gostaríamos de discorrer,

ainda que muito brevemente, sobre as considerações de Max Weber relativas ao fazer

científico e a relação com os valores, em diálogo com seu contemporâneo Wilhelm

Dilthey. Ressalte-se que não é objetivo deste capítulo dar conta de toda obra destes dois

autores. Realizamos uma abstração para demonstrar como estas noções nos auxiliam na

reflexão de nossa própria forma de interpretação do mundo e da qual este trabalho é

devedora.

É importante salientar que a metodologia a qual esses dois autores representam

está localizada entre os debates naturalista de um lado, e histórico-cultural de outro

(ciências naturais e ciências humanas), e que emergiam no cenário epistemológico no

final do século XIX (WEBER, [1904] 1965). Max Weber nasceu em Erfut, Turíngia,

Alemanha, em Abril de 1864, e faleceu em Viena, Austria, em Junho de 1920. Os

principais, portanto não os únicos, nomes que aparecem nessa ‘disputa’ são os de

Dilthey, Windelband [1848-1915] e Rickert [1863-1936], alguns contemporâneos com

quem Weber dialoga em seus escritos.

Os debates mencionados referiam-se acerca do método com que se apreendia o

objeto e, portanto, a realidade. Em consequência, essa disputa se converteu em uma

discussão acerca da classificação das ciências e em decorrente separação entre as

ciências humanas e naturais. Não entraremos aqui nas implicações deste debate a partir

do seu círculo linguístico uma vez que foge aos intentos de nosso trabalho5; por hora

basta-nos localizar Weber no movimento histórico com o propósito de reforçar a

necessária abertura epistemológica da qual fez parte. Uma das principais noções que

intentamos demonstrar aqui é a interpretação histórica – e também subjetiva – através

5 Nesse sentido ver Weber [1906] (1965), Gabriel Cohn (2003), Julien Freund (1980).

22

da qual deve ser compreendido um texto ou mesmo uma ação. Nesse sentido, Weber

ensina que,

[...] o conhecimento de leis sociais não é um conhecimento do socialmente

real, mas unicamente um dos diversos meios auxiliares que o nosso

pensamento utiliza para esse efeito, porque nenhum conhecimento dos

acontecimentos culturais poderá ser imaginado de outro modo que não seja

com base na significação que para nós a realidade da vida, sempre

estruturada de modo singular, possui em determinadas relações singulares

(WEBER, 2003, p. 39. Grifo do autor).

Noção similar a esta apreendemos em Dilthey (2008), que concebe a história

como um campo de realização das virtualidades da razão dos homens, ao se referir ao

peso e as possibilidades criativas do tempo histórico, cujos limites ninguém nem

filosofia alguma conseguem ultrapassar. Parece-nos que aqui, há uma importante

conotação de ponto de referência ao qual se olha a história, pois o movimento parece

reverso, ou seja, de um indivíduo que olha para o passado com a intenção de

compreendê-lo, mas que se sabe intérprete, e, enquanto tal, o faz a partir de suas

próprias vivências – para utilizarmos uma expressão cara ao autor.

Essas experiências podem ser modificadas através das apreensões subjetivas que

interpretam o passado desde uma teia particular de múltiplas conexões da qual é

constituída a vivência6 – nesse caso poderíamos falar de vivências. Mas isso não anula a

objetividade da análise, do contrário, fornece a ela sempre uma nova perspectiva.

Assim, “[...] tempo e lembrança desencadeiam o apreender a partir da dependência do

dado e realizam uma escolha daquilo que é significativo para a apreensão” (DILTHEY,

2010, p. 84).

Em Dilthey (2010), que ao mover olhar para os métodos científicos localiza a

interdependência entre os procedimentos investigativos das ciências naturais e das

ciências humanas (do espírito), apreendemos que qualquer análise que se pretenda

objetiva e recorra a um dos dois caminhos, realiza nada mais que uma abstração. Deste

modo, ao investigar qualquer movimento produzido pela ação humana (e aqui nos

referimos à vivência), Dilthey destaca não haver nessa abstração, nenhuma objetividade

pura, nenhuma indeterminação.

6 Nos referimos à vivência porque para Dilthey toda ação humana, seja ela evento ou estrutura, resultam e

são resultantes de vivências. Nas palavras do autor, as vivências “[...] encontram-se em uma conexão que

se mantém permanente em todo o transcurso da vida e em meio a todas as transformações; ela abarca as

nossas representações, as determinações valorativas e os fins, subsistindo como uma ligação entre esses

elos [...]” (2010, p. 20).

23

Ao analisar o trabalho de Dilthey, Franco (2012) afirma que é preciso

reconhecer as influências cruzadas entre as ciências humanas, ou ciências do espírito

como Dilthey se referia, e as ciências naturais, existindo continuidades e

descontinuidades entre as duas. E para fortalecer a posição de Dilthey, não convém nem

separá-las demais, afinal ambas são ciências, e nem aproximá-las demais, já que seus

objetos são diversos.

A maneira que Dilthey encontra para realizar essa tarefa é primeiramente

fundamentar as ciências do espírito, delineando o seu objeto, para então libertá-las dos

métodos das ciências naturais, que eram predominantes na sua época, validando os

métodos qualitativos. Com a delimitação das ciências do espírito se torna possível tanto

articulá-las com as ciências naturais, como também desmembrá-las em áreas de saber

específicas: história, filosofia, psicologia, sociologia, política, artes e direito, para citar

algumas dessas áreas do conhecimento que hoje estão alocadas nos departamentos de

ciências humanas ou sociais.

A preocupação central nas obras de Dilthey (2008; 2010) são as ciências do

espírito e a delimitação destas, que para o autor seriam todas as ciências que

“descrevem, narram, julgam e formam conceitos e teorias em relação ao mesmo grande

fato: a espécie humana” (DILTHEY, 2010, p. 20). A particularidade destas em relação

às ciências naturais – a grande contraposição da sua época – são que as ciências do

espírito não trabalham a partir da cisão entre o físico e o psíquico: o cientista do espírito

estuda a conexão viva entre os dois.

Apesar de realizar abstrações e diferenciações entre o físico e o psíquico, quando

necessário, as ciências do espírito acabam por estudar o ser humano em toda sua

complexidade, como natureza, enquanto corpo biológico e impulsos; como consciência,

em suas diversas manifestações, sejam elas pensamento, comunicação, etc; e também

como cultura e história, olhando as diversas instituições criadas pelos seres humanos

(Estado, igreja, escola).

As ciências do espírito se fomentam, e consolidam seu objeto, na medida em que

estados humanos são vivenciados, em que estes estados ganham significado e expressão

e essas expressões são compreendidas. É justamente nessa conexão entre vivência,

expressão e compreensão que Dilthey (2010) localiza o método para as ciências do

espírito.

Observe-se a importância do conceito de vivência na obra do autor. Dilthey

(2010) defende que é no elemento vivencial que está contido todo o valor da vida: é ele

24

que traz significação, valor e finalidade para as ações. Amaral (2004) completa que a

vivência é a própria vida reduzida nas suas proporções mais significativas, sendo então

a zona limite do conhecimento e, também, o fundamento de todo conhecimento.

Esse movimento diltheyano é um afastamento das ciências da natureza, atente-

se, e não um abandono da natureza enquanto objeto de estudo. Na proposta de filosofia

de Husserl, tanto a natureza como o espírito podem ser igualmente estudados, nenhum

sendo privilegiado metodologicamente ou substantivamente em relação ao outro. O que

Husserl (2008) propõe é uma outra forma de compreender a natureza, mais próxima do

entendimento dos gregos, em que não se analisa a natureza em si, mas sim a

representação da natureza, enquanto uma validação subjetiva.

Aos olhos de Dilthey, a filosofia não pode se contentar em fornecer apenas uma

especulação sobre o mundo, o seu objetivo enquanto ciência deve ser o de fornecer

conhecimentos teóricos e a partir desses conhecimentos teóricos princípios práticos

reguladores para a vida, tanto para os seres individuais como para a sociedade como um

todo (AMARAL, 2004).

Conforme já argumentamos, Dilthey e também Weber rejeitam a ideia de um

confronto das ciências através de uma separação metodológica, ciências naturais versus

ciências humanas. Para eles, a função de um método é fazer avançar o conhecimento e o

saber, longe de qualquer fidelidade idealista ou totalizante e que pretenda um processo

definitivo. Isso por reconhecer que toda ciência é circunstancial, e pode utilizar qualquer

caminho conforme a necessidade da pesquisa (WEBER, 2003; DILTHEY, 2008).

É válido lembrar que também Husserl (2009) – com quem Dilthey teve um

longo e intenso diálogo sobre a epistemologia do início do século –, ao tratar dos

problemas relativos ao fazer científico, critica a ciência concebida enquanto razão, e a

ingenuidade relativa à pressuposição e reprodução daquilo que foi outrora estabelecido

como um fato, sem se retomar os caminhos e procedimentos de sua construção. Para o

autor, “[...] no fazer produtivo (da ciência) não se tem em vista o modo de produção,

mas a obra, a ação [...]7”. Mais adiante no texto, Husserl argumenta sobre a ingenuidade

científica “[...] que não leva em consideração a dimensão de questionamentos

concernentes à razão, à subjetividade produtora, que devem ser questões relativas ao

7 Nesse sentido, Latour (2011, p. 105), ressalta que: “Uma vez construído o fato, não há mais instrumento

para levar em conta, e é por isso que muitas vezes desaparece da ciência popular o esmerado trabalho

necessário para sintonizar os instrumentos. Ao contrário, quando se acompanha a ciência em ação os

instrumentos passam a ser elementos cruciais, situam-se imediatamente depois dos textos técnicos, e para

eles o discordante é conduzido sem apelação”.

25

conhecimento, mas que não podem ter lugar em nenhuma das ciências positivas” (2009,

p. 663).

Em relação ao que chamaríamos de autonomia perspectivista do intérprete,

localizamos em Weber uma posição muito definitiva (se o termo não for ele mesmo um

contrassenso):

O que vale para os matizes da luz, para os timbres, para as gradações

olfativas, vale também, e justamente no mesmo sentido, para os ‘sentimentos

valorativos’ religiosos, éticos, estéticos, pelo que, na sua asserção descritiva

‘cada qual vê o que leva no coração’. Portanto, a interpretação dos processos

psíquicos – enquanto se tratar apenas desta circunstância – opera com

conceitos que, em nenhum outro sentido e, em princípio, não são

determináveis de forma absolutamente unívoca, como deve acontecer, em

geral, em toda a ciência que não abstrai do qualitativo [...] (WEBER, [1906]

2010b, p. 7. Grifos do autor).

Nesta passagem se explicita a noção de valores de Weber que, aliada ao que o

autor compreendia por racionalização ou intelectualização do mundo – que fatalmente

conduzia para o que compreendeu por desencantamento do mundo – encaminhou suas

reflexões sobre as ações racionais e em mesma medida, das inevitáveis ações

irracionais. Arriscando uma interpretação, podemos desenvolver aqui esta noção do real

que está atrelada à concepção mesma de valores da ciência, que em nossa leitura auxilia

a refletir o processo de interpretação e explicação da ação social – mais tarde neste texto

o leitor encontrará um resumido debate sobre o conceito de ação social weberiano.

Neste sentido, sobre a interpretação da ação social, Weber reforça as inevitáveis

diferenças existentes entre a apreensão precisa do que pode ser captado do real, em

relação a quem o observa – isto também em relação à história, ou às diferentes

disciplinas que estudam o mesmo objeto8. Para o autor,

A validade objetiva de todo saber empírico tem por fundamento nada menos

que o seguinte fundamento: a realidade dada é ordenada segundo as

categorias que são subjetivas neste senso específico que constituem a

pressuposição do nosso saber e que estejam relacionadas com a

pressuposição de valor da verdade, que somente o saber empírico pode nos

fornecer. Nada podemos oferecer, com os meios de nossa ciência, àquele que

crê que a verdade não tem valor – pois a crença no valor da verdade científica

8 “Os valores com os quais o sociólogo e o historiador relacionam a realidade são naturalmente variáveis.

Weber chega mesmo a falar de nossos valores, no sentido em que, por exemplo, o sociólogo que estuda o

puritanismo de uma determinada época está em condições de nos dar novos rudimentos sobre esta

doutrina e sobre seu papel, confrontando os valores dos homens daquele tempo com os nossos”

(FREUND, 1980, p. 43).

26

é um produto de certas civilizações e não é um fato da natureza9 (WEBER

[1904] 1965, p. 158. Grifos do autor. Tradução nossa).

A esta relação dos valores subjetivos ou mesmo históricos aplicada à análise da

ação ou relação social, Weber ([1904] 1965) observa que deve ser definido pelo

observador os valores com os quais serão analisados determinada ação (para

permanecermos nos termos weberianos). Isso quer dizer que ao intérprete é permitido

analisar determinado evento histórico com os valores de sua época, do mesmo modo

como lhe é permitido analisar com os valores do período escolhido. A exigência

metodológica é que ao realizar tal análise, o observador distinga cuidadosamente a qual

valores ele está se referindo, a fim de não prejudicar o rigor de seu trabalho científico.

É claro que poderíamos desenvolver melhor estas noções, talvez chegando até as

discussões mais recentes realizadas dentro da sociologia da ciência, mas isso tomaria

um espaço e uma direção não pretendida no texto como um todo. Assim, fazendo as

contas gerais de nossa perspectiva analítica, vejamos agora como estabelecer a partir

destas noções um quadro analítico interpretativo. Para seguir este caminho, optamos

inicialmente por apresentar um ligeiro esforço textual nosso a partir da contribuição da

história das ideias sobre os conceitos de interpretação e compreensão em Weber e

Dilthey, distanciando-nos da explicação combatida por ambos.

2.1. Interpretação e compreensão na obra de Max Weber e Wilhelm Dilthey: uma

contribuição da história das ideias

Este capítulo pretende demonstrar como autores alemães do final do século XIX

concedem então maior valor à interpretação do cientista, de acordo com os valores de

seu tempo, ao analisar a ação humana. Nosso principal interesse neste trecho do

trabalho é demonstrar, em diálogo com Reinhart Koselleck [1923-2006], a noção

interpretativa dos objetos científicos e da própria Ciência, como já apontamos no início

do trabalho.

9 “La validité objective de tout savoir empirique a pour fondement et n'a d'autre fondement que le suivant:

la réalité donnée est ordonnée selon des catégories qui sont subjectives en ce sens spécifique qu'elles

constituent la présupposition de notre savoir et qu'elles sont liées à la présupposition de la valeur de la

vérité que seul le savoir empirique peut nous fournir. Nous ne pouvons rien offrir, avec les moyens de

notre science, à celui qui considère que cette vérité n'a pas de valeur, - car la croyance en la valeur de la

vérité scientifique est un produit de certaines civilisations et n'est pas une donnée de la nature” (WEBER,

1965, p. 158).

27

Tentaremos demonstrar (ou seria melhor utilizar, ‘descrever’?) aqui que o

nascimento da noção perspectivista (a expressão é de Koselleck) ou relativista da

história, não foi somente um evento exclusivo da História10

enquanto área do

conhecimento, mas que, de um modo geral, tomou corpo desde vários movimentos

intelectuais do final do século XIX, e mais precisamente entre intelectuais alemães –

Nosso intento aqui é menos demonstrar como isso foi possível no contexto alemão do

que, como já foi dito, descrever a mudança de concepção do fazer científico através de

seus aspectos metodológicos.

Com certeza, e é possível localizar isso através da obra de Koselleck (2006), a

inclusão perspectivista ocorreu antes do marco da modernidade. No entanto, este

capítulo propõe ilustrar o período onde fundamentalmente essa concepção é incorporada

com maior expressão no cenário científico. É possível como já dissemos, exemplificar

isso através de autores como Dilthey, para quem a história e principalmente a psicologia

ainda mantinham até o final do século XIX fortes traços positivistas que utilizavam

essencialmente o método das ciências naturais, para análise do comportamento e ação

humana (DILTHEY, 2008; DILTHEY, 2010).

Isso pode ser demonstrado num diálogo destes dois historiadores – Reinhart

Koselleck e Wilhelm Dilthey –, que discutem a função da História para compreender a

ação dos indivíduos no mundo. Essa busca de compreensão pode ser percebida menos

no primeiro que no segundo, mas que de qualquer forma se estabelece em Koselleck

através da linguagem e semântica dos conceitos (um refinamento conceitual) e em

Dilthey, por meio das ações dos indivíduos através do desvelamento das conexões

adquiridas da vida psíquica. Isso pode ser demonstrado a partir dos conceitos

articulados por Koselleck, verificar como a categoria histórica de espaço de experiência

se relaciona com a noção interpretativista.

Como não podemos realizar tarefa de tamanha responsabilidade sem

incorrermos em faltas com as teorias que pretendemos analisar, nossa atenção será

voltada de modo específico para a categoria de espaço de experiência de Koselleck.

Acreditamos que através dela se faz possível mobilizar outros conceitos presentes na

obra Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, e também

limitar o máximo nossos débitos para com os autores.

10

O termo aqui é utilizado no sentido proposto por Marcelo Jasmin na apresentação do livro de Koselleck

(2006), para quem era frequente “[...] o uso do termo História [Geschichte] no singular para designar, de

modo confluente, tanto a sequência unificada dos eventos que constituem a marcha da humanidade, como

o seu relato [...]” (JASMIN in KOSELLECK, 2006, p. 11).

28

Koselleck (2006) ao analisar a história, estabelece que tanto os acontecimentos

que podem ser apreendidos pelos próprios contemporâneos (eventos), quanto às

circunstâncias que não se organizam seguindo uma ordem de sucessão dos eventos

passados (estrutura), forjam uma experiência determinada – e poderíamos abusar do

jogo de palavras e dizer que são também determinantes. Portanto, “[...] os eventos são

provocados ou sofridos por determinação dos sujeitos, mas as estruturas permanecem

supra individuais e intersubjetivas” (2006, p. 136).

Evento e estrutura produzem uma experiência, que por sua vez, também gera

expectativa que é ao mesmo tempo “[...] ligada à pessoa e ao interpessoal, [...] se realiza

no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o

que apenas pode ser previsto” (KOSELLECK, 2006, p. 310).

Assim, tanto os acontecimentos singulares, isolados posteriormente aos fatos e

constituintes de uma estrutura, quanto a própria estrutura, são elementos orientadores do

passado em relação ao futuro, ou seja, se asseveram enquanto experiência, e, em

consequência, geram expectativas que orientam o futuro. Mas essa relação não é

simétrica; nem passado e nem futuro podem ser controlados, numa relação causal entre

experiência e expectativa, sobretudo, quando na modernidade, a noção de progresso se

insere no ideário social.

[...] Na modernidade, a diferença entre experiência e expectativa não para de

crescer, ou melhor, que a modernidade só pôde ser concebida como um novo

tempo depois que as expectativas se distanciaram de todas as experiências

anteriores. Esta diferença, como vimos, encontrou sua expressão na ‘história

em si’ e sua qualidade específica de tempo moderno no conceito de

‘progresso’ (KOSELLECK, 2006, p. 322. Grifos do autor).

O autor ensina ainda, que uma determinada experiência pode ser compreendida

pelo historiador de modo distinto dos indivíduos que realizaram ou participaram

daquele evento. Em consequência, se o historiador se puser a analisar e interpretar

determinado evento histórico, ele o fará a partir de seus próprios pressupostos, sob

pontos fixos que buscou compreender. “[...] Dessa forma, o indivíduo histórico

contemporâneo, ao participar da objetivação histórica do passado ou do futuro, torna-se

capaz de objetivar ele mesmo a história” (KOSELLECK, 2006, p. 162-163). Para o

autor experiência

[...] é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e

podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional

29

quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou

que não precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na

experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está

contida e é conservada uma experiência alheia. Neste sentido, também a

história é desde sempre concebida como conhecimento de experiências

alheias (KOSELLECK, 2006, p. 309 - 310).

Essa interpretação determinada possibilita uma constante ‘ressignificação ou

modificação daquele espaço de experiência’ lançando para o futuro novas possibilidades

interpretativas daquele evento que, dessa forma, não se cristalizou no passado.

[...] sempre as coisas podem acontecer diferentemente do que se espera: esta

é apenas uma formulação subjetiva daquele resultado objetivo, de que o

futuro histórico nunca é o resultado puro e simples do passado histórico [...]

Mas [...] seja porque a experiência contém recordações errôneas, que podem

ser corrigidas, seja porque novas experiências abriram perspectivas

diferentes. Aprendemos com o tempo, reunimos novas experiências.

Portanto, também as experiências já adquiridas podem modificar-se com o

tempo (KOSELLECK, 2006, p. 312).

Vale registrar que Pocock (2003), ainda que esse tenha se voltado à análise dos

contextos em que se manifestam os conceitos políticos, também delega ao intérprete a

responsabilidade de compreensão de um momento particular da história.

O mundo do historiador é habitado por agentes responsáveis, mesmo quando

eles são corruptos ou paranoicos, e o historiador toma distância deles como

seus iguais, distinguindo a narração sobre as ações deles da performance dele

próprio. Escrever história dessa maneira é ideologicamente liberal, e o

historiador também pode admitir isso. Ele está pressupondo uma sociedade

em que um indivíduo pode fazer uma enunciação, e outro pode enunciar uma

réplica, efetuada de um ponto de vista que não é o mesmo do primeiro ator.

Houve, e há, sociedades em que essa condição é satisfeita em vários graus, e

essas são as sociedades nas quais o discurso tem uma história (POCOCK,

2003, p. 62. Grifo do autor).

Temos aqui uma perspectiva clara de que mesmo a mais precisa observação de

qualquer evento histórico particular, depende completamente da análise do sujeito que

observa – e interpreta – a história, seja ela um passado curto, ou um evento em que não

se alcance a geração em que foi realizado. É assim que para Koselleck (2006) “A

ciência histórica atual se encontra, portanto, sob duas exigências mutuamente

excludentes: fazer afirmações verdadeiras e, apesar disso, admitir e considerar a

relatividade delas” (KOSELLECK, 2006, p. 161).

30

O presente é analisador e revelador assim como o particular, como já vimos na

exigência diltheyana de abstração do real11

. Isso se aplica em Dilthey (2008; 2010) tanto

na exigência dos métodos de investigação, onde o cientista pode lançar mão de vários

métodos para compor uma análise, e mesmo quanto o fragmento do real selecionado de

antemão pelo mesmo cientista. Ao contemplar – se assim se puder dizer – um

movimento qualquer no tempo, quem observa deve abstrair fragmentos se quiser obter

uma compreensão do todo (sua compreensão do todo). É assim que para Dilthey

[...] nas ciências da natureza, o uniforme constitui a meta principal do

conhecimento; no mundo histórico, pelo contrário, trata-se da

particularização até chegar ao indivíduo. [...] na escala destas

particularizações, não estamos a afastar-nos, mas a aproximar-nos. A história

encontra a sua vida no aprofundamento progressivo do peculiar. Nele existe a

relação viva entre o reino do uniforme e o mundo individual. Impera nela,

não o singular por si, mas esta relação. É disso expressão o facto de a

complexão espiritual de uma época inteira poder estar representada num

indivíduo (2008, p. 126).

Em que medida essas noções se relacionam com a objetividade requerida no

fazer, não só histórico, mas no científico de um modo geral? Percebemos através da

leitura destes textos no que se refere a esta objetividade, que é possível obtê-la por meio

de um método; e que ainda assim, esse método não se arroga preciso, sobretudo nas

chamadas ciências humanas, ou do espírito, a qual se localiza a História enquanto

disciplina. Em Koselleck (2006), percebemos que essa abertura epistêmica, vem sendo

pontuada desde o século XVII na Alemanha.

Não podemos nos furtar aqui de registrar que isso implicou em efeitos para

como concebemos a ciência contemporânea, de um modo geral. Koselleck (2006), ao

estudar o movimento histórico, aplica o método de análise para o estudo do passado

investigando a partir das reflexões teóricas, mais precisamente o estudo da linguagem,

os contornos e as mutações que formaram a modernidade europeia pré-capitalista.

Entretanto, jamais poderíamos nos aproximar, com a mesma profundidade analítica, das

noções articuladas pelo autor.

De acordo com que expusemos nas linhas acima, realizaremos também nossa

abstração. É tempo de olhar para o passado, nos aproximando da epistemologia de

Koselleck, para um momento específico de produção teórica, que em nossa leitura,

11

“Isso não exclui naturalmente o fato de as ciências humanas servirem-se da diferenciação entre o físico

e o psíquico quando os seus fins o requerem. Elas apenas precisam permanecer conscientes de que, nesse

caso, elas trabalham com abstrações, não com entidades, e de que essas abstrações só tem validade no

interior dos limites do ponto de vista sob o qual são projetadas [...]” (DILTHEY, 2010, p. 20).

31

asseverou a interpretação e compreensão como método científico. Para isso,

descreveremos sem pretensão exaustiva ou sistemática, como a interpretação aparece

enquanto método nos autores alemães do final do século XIX. Recorreremos a Max

Weber para demonstrar tal sentença, mais uma vez, em diálogo com Wilhelm Dilthey.

2.2. Presença da interpretação na metodologia científica em Weber e Dilthey

Nesta parte do trabalho, pretendemos demonstrar como Weber e Dilthey, autores

de um mesmo contexto (espaço e tempo) intelectual, recorrem à interpretação, tanto na

fase analítica quanto investigativa de um objeto de estudo particular (para escaparmos

do termo ‘determinado’), quanto tributam ao observador e seus valores a compreensão

desse mesmo objeto – procedimento distinto do método proposto pelas ciências

naturais, por exemplo.

Como obra desses dois autores é muito ampla, nos concentraremos

principalmente, ainda que de modo sumário, em suas concepções de ciência e também,

de modo mais específico, como a noção de interpretação e compreensão toma corpo no

final do século XIX e início do século XX, na Alemanha, e que, segundo nossa leitura,

se assomou como um importante movimento para concepção de ciência hoje.

Nesta proposta, de uma análise multifacetada (termo nosso) do real, é que

Dilthey, compreende a psicologia dentro das ciências do espírito e associa a psicologia

explicativa (que utiliza o método das ciências naturais) à psicologia descritiva e

analítica (que utilizam o método das ciências do espírito). Para ele,

O conceito de uma psicologia descritiva e analítica dimanou em nós da

natureza das nossas vivências psíquicas, da necessidade de uma apreensão

intacta e sem preconceitos da vida anímica, bem como da textura das ciências

do espírito e da função da psicologia em seu seio. Portanto, as suas

propriedades terão de derivar destes motivos, sobretudo da tarefa que lhe

corresponde dentro da conexão das ciências do espírito e da ponderação dos

meios necessários para o seu cumprimento. Duas coisas exige essa tarefa. Por

um lado, importa expor a realidade integral da vida psíquica e, quanto

possível analisá-la; por outro, esta descrição e esta análise terão de possuir o

grau máximo de segurança que se puder conseguir (DILTHEY, 2008, p. 44).

Como já resaltado, Dilthey reconhece a necessidade de associação entre os

métodos das ciências naturais e do espírito (ciências humanas) como essenciais a análise

32

do objeto para se aproximar com o máximo rigor da sua compreensão12

. A referência a

Dilthey é importante na medida em que Weber faz menção a ele em vários momentos e

em que seus comentadores estabelecem uma aproximação entre esses dois autores. Para

nosso propósito aqui, a menção vem ilustrar como esses dois autores se posicionavam

no debate epistemológico13

.

Retomando Weber, temos que avançar desde esta noção epistemológica, para

como ele constrói sua metodologia, que como o próprio autor ressalta, não está

dissociada da teoria e principalmente da formulação e desenvolvimento dos conceitos

(WEBER, 2010).

Optamos para adentrar na teoria weberiana, depois de situar a perspectiva de

ciência do autor, em desenvolver seu conceito de sociologia que ele define como uma

“ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la

causalmente em seu curso e em seus efeitos” (WEBER, 1991, p. 3). Essa definição

carece de alguns desdobramentos para que possamos compreendê-la tal qual como o

autor intentou desde sua formulação14

.

Nosso ponto de partida é a afirmação weberiana de que “compreender significa,

[...], compreensão interpretativa” (WEBER, 2010, p. 18). Para o autor, essa forma de

compreensão serve para evidenciar (expressão de Weber) casos concretos e históricos,

análise sociológica de massa através da construção científica de um tipo ideal, como

veremos na próxima seção deste texto. O autor aponta que a vivência empática pode ser

articulada a essas formas de compreensão para compreender um fenômeno determinado.

O autor ensina que “[...] por meio da submersão no particular e por meio da comparação

desse particular com o outro, formas cada vez mais desenvolvidas, e, desse modo, a

atividade da compreensão conduz a profundezas cada vez maiores do mundo do

espírito” (2010, p. 195). Essa vivência, no entanto, não deve ser confundida com

articulação puramente psicológica. Nas palavras de Gabriel Cohn,

12

Compreensão aqui é expressão diltheyana que indica, tal qual para Weber, uma “consideração

conclusiva” da observação proposta. 13

Uma aproximação mais aprofundada entre Dilthey e Weber, pode ser localizada em Crítica e

resignação: Max Weber e a teoria social, Gabriel Cohn, 2003. 14

Ao dizer isso, não queremos dizer que partilhamos da concepção de uma história dos conceitos que

resgata o sentido exato através de um retorno ao círculo hermenêutico em que o autor estava inserido, ou

então, de seu círculo linguístico. Partilhamos da concepção de que um texto deve ser compreendido tal

qual o sentido que cada leitor em seu tempo acrescenta ao texto, assim como diz Habermas: “[...] entre as

linguagens formalizadas estão, além disso, as regras de comunicação metalinguísticas, com o auxílio das

quais nós podemos reconstruir enunciados dados, isto é, podemos produzi-los por nós mesmo uma vez

mais. O pensamento analítico é com razão contraposto à elucidação hermenêutica” (2011, p. 142).

33

a compreensão ou interpretação, nada tem a ver com qualquer ‘revivência

empática’ de ações alheias, sempre que seu objetivo seja conduzir a um

conhecimento científico de fenômenos empíricos. Nesse particular, sua

argumentação segue duas linhas principais. Primeiro, toda vivência (inclusive

de si próprio) é vaga e confusa, sendo incapaz de ministrar critérios analíticos

seguros para distinguir o significativo do irrelevante nos fenômenos. Para se

chegar à compreensão é preciso romper os limites opacos da vivência,

convertendo-a em objeto da análise. Segundo, a tentativa de captar o

significado de um fenômeno mediante sua revivência acarreta o risco de

confundir a vivência própria com a do sujeito da ação que se pretende

conhecer. Enfim, o recurso à compreensão não envolve, de modo algum,

qualquer modalidade de intuição e nada deve a qualquer tipo de psicologismo

(COHN, 2003, p. 122. Grifos do autor).

Para além do equilíbrio entre compreensão e interpretação, é importante

ressaltar, entretanto, que a interpretação para Weber não tem caráter de ser causalmente

válida, permanecendo apenas como hipótese particularmente plausível. Isto porque “[...]

não é possível avaliar sempre, mesmo que aproximadamente, a força relativa dos

motivos e muito frequentemente não podemos sequer estar certos de nossas próprias

interpretações” (2010, p. 18). A mesma noção localizamos em Dilthey, para quem

compreender é um esforço intelectual “[...] que envolve um esforço extremo, mas que,

contudo nunca pode ser realizado totalmente” (2010, p. 216). Dessa forma, acreditar no

contrário implicaria no risco de cair no vazio, pois em princípio qualquer sentido pode

ser atribuído a qualquer ação singular observada.

Sempre em relação com a interpretação, Weber ressalta que a compreensão pode

ser de duas formas: primeiro, a compreensão empírica direta do significado. A

compreensão direta pode ser obtida numa operação matemática simples, ou como

apreendemos o significado de um acesso de raiva através de expressões faciais e

exclamações. “Trata-se de compreensão direta empírica de reações emocionais

irracionais e pertence à mesma categoria que a observação da ação de um cortador de

madeira, ou alguém que estende a mão para uma maçaneta para fechar a porta”

(WEBER, 2010, p. 17).

A segunda espécie de compreensão é conhecida como compreensão explicativa.

Nesse sentido, podemos compreender as razões pelas quais uma operação matemática

específica é realizada com um propósito também específico, ou ainda, se quem corta

madeira, o faz por diversão ou mesmo por motivações econômicas. Entendemos um

acesso de raiva se sabemos sua causa imediata for ciúmes ou orgulho ferido; portanto,

relacionada a motivos irracionais. “[...] Tal compreensão pode ser aceita como uma

explicação verdadeira do curso real da ação. Para uma ciência que trata do verdadeiro

34

significado da ação, a explicação requer uma apresentação da conexão de sentido dentro

do qual ocorre o curso da ação real” (WEBER, 2010, p. 18). Gabriel Cohn nos alerta

ainda que

na realidade, a compreensão envolve, antes de qualquer suposta “evidência

imediata”, dois recursos analíticos fundamentais: o acesso a um

conhecimento “nomológico”, referente a regularidades observáveis de

conduta dos agentes, e a construção de tipos (COHN, 2003, p. 122. Grifos do

autor).

As construções ideais-típicas expõem como a ação humana seria realizada numa

situação determinada, caso estivesse sendo orientada pelo fim, ou seja, perseguindo o

objetivo proposto para sua realização ou conclusão (WEBER, 1991). Esse caminho

trilhado pelo indivíduo para atingir tal fim, é possível de ser analisado através de tal

construção de uma maneira estritamente racional, sem se deixar perturbar pelas

tradições, emoções ou afetos.

A sociologia compreensiva terá de aceitar, sem dúvida, o fato de que também

para o homem, nas fases primitivas, o primeiro componente é absolutamente

predominante, e não deverá se esquecer de que este, nas fases posteriores de

sua evolução, continua a exercer influência constante (e influência decisiva).

Toda ação tradicional [...] e boa parte do ‘carisma’ [...] enquanto germe de

‘contaminação psíquica e, por isso, portador de ‘estímulos de

desenvolvimento’ sociológicos, estão muito próximas, com transições

imperceptíveis, daqueles processos apenas biologicamente explicáveis, não

suscetíveis de interpretação ou apenas meramente interpretáveis, quanto aos

motivos. Mas tudo isso não dispensa a Sociologia Compreensiva da tarefa,

com plena consciência de seus estreitos limites, fazer o que só ela pode fazer

(WEBER, 1991, p. 11. Grifos do autor).

Talvez esse seja o ponto alto da sociologia weberiana enquanto método:

considerar a imprevisibilidade das ações coletivas, dado a falta de controle da ação

individual, reconhecendo ainda que, as ações se manifestam de modo arbitrário e

imprevisível e que isso decorre de aspectos biológicos e psicológicos, expondo os

limites da análise sociológica. Mas é claro que essa proposta metodológica de modo

algum se pretende exata e inequívoca; Weber alerta para o caráter hipotético e

fragmentário do real. Neste sentido, vale registrarmos uma passagem de Ensaios Sobre

a Teoria das Ciências Sociais:

[...] o conhecimento de leis sociais não é um conhecimento do socialmente

real, mas unicamente um dos diversos meios auxiliares que o nosso

pensamento utiliza para esse efeito, porque nenhum conhecimento dos

acontecimentos culturais poderá ser imaginado de outro modo que não seja

35

com base na significação que para nós a realidade da vida, sempre

estruturada de modo singular, possui em determinadas relações singulares

(WEBER, 2003, p. 39. Grifo do autor).

Retornando a proposição que fundamenta essa discussão sobre compreensão,

Weber afirma ao desenvolver o conceito que “compreensão significa em todos esses

casos apreensão interpretativa do sentido ou da conexão do sentido” (WEBER, 1991, p.

6). Nessa passagem parece não haver confusão entre os conceitos investigados, pois,

está contida nela a noção de processo: para obter uma evidência (compreensão), correta

ou não, de uma ação determinada, é necessária a apreensão daquela ação de modo

fenomenológico, ou seja, que o fenômeno só existe quando é apreendido no intermédio

entre o ato e seu observador; e, uma vez apreendido esse ato, ele pode ser interpretado

de diversas formas enquanto é analisado. A interpretação nos surge então enquanto

momento analítico, enquanto a compreensão é o produto desta análise. Mas Weber nem

sempre as coloca nessa ordem processual; Lembremos pois, como o autor inicia seu

capítulo Sobre algumas categorias da Sociologia Compreensiva, em Metodologia das

Ciências Sociais:

Bem semelhante a todos os fenômenos, o comportamento humano (“exterior”

ou “interior”) revela, no seu decurso, conexões e regularidades. Entretanto,

algo há que é próprio somente do comportamento humano, pelo menos no

seu sentido pleno: o decurso das conexões e das regularidades pode ser

interpretado pela compreensão. Uma compreensão do comportamento

humano que tenha sido obtida pela interpretação acarreta uma “evidência”

qualitativamente específica que é em grau e dimensão, sui generis (WEBER,

1995, p. 313-314. Grifos do autor).

Infelizmente, ou felizmente pra nós, essa passagem nos revela uma complicada

trama “compreensiva.” Que a compreensão obtida pela interpretação acarreta em

evidência, justifica a distinção que estamos problematizando aqui; já, que o decurso das

conexões e regularidades pode ser interpretado pela compreensão não nos deixa saída

senão recorrer a outras passagens para que possamos identificar pistas distintivas entre

esses dois conceitos – muito embora pudéssemos objetar que Weber, ao utilizar o termo

compreensão neste caso, o esteja concebendo enquanto grande área, como a

hermenêutica, por exemplo; além do fato de não termos acesso à obra no idioma

original para confrontar com a tradução.

Prosseguindo nossa análise, sobre a compreensão e a interpretação para Weber,

recorremos a uma passagem de Economia e Sociedade (primeiro volume). A fim de

36

facilitar nossa análise e discussão, optamos por fragmentar o trecho em três partes. A

respeito da interpretação, Weber (1991, p. 7) ensina que

[...] toda interpretação pretende alcançar evidência. Mas nenhuma

interpretação, por mais evidente que seja quanto ao sentido, pode pretender,

como tal e em virtude desse caráter de evidência, ser também a interpretação

causal válida. Em si, nada mais é do que uma hipótese causal de evidência

particular. a) Em muitos casos, supostos ‘motivos’ e ‘repressões’ (isto é,

desde logo, motivos não reconhecidos) ocultam ao próprio agente o nexo real

da orientação de sua ação, de modo que também seus próprios testemunhos

subjetivamente sinceros têm valor apenas relativo. Neste caso, cabe à

Sociologia a tarefa de averiguar essa conexão e fixa-la pela interpretação,

ainda que não tenha sido elevada à consciência, ou, o que se aplica à maioria

dos casos, não o tenha sido plenamente, como conexão ‘visada’

concretamente: um caso limite da interpretação de sentido [...] (Continua).

Ao sentenciar que toda interpretação quer alcançar uma evidência determinada,

percebemos novamente a noção de processo, ou seja, que existe algo a ser alcançado

para além da interpretação. Ao localizar essas inconstâncias, identificamos possíveis

confusões – possíveis porque não consultamos o original, nem tampouco rastreamos os

conceitos em toda extensão da obra – que por certo o autor não pretendeu15

. Assim

sendo, constatamos que a interpretação é algo que está localizado entre a observação da

ação de um agente humano específico ou de vários agentes, e a compreensão

especificamente obtida da ação.

Com compreensão especificamente obtida da ação não queremos dizer outra

coisa senão que se chegou a uma evidência qualquer, a partir dos instrumentos

investigativos propostos pelo próprio autor, considerando também as imperfeições do

conjunto da análise, uma vez que a evidência não pode pretender ser advinda de uma

interpretação causal válida, porque depende exclusivamente da interpretação do

observador. A isso, gostaríamos de lembrar as palavras de Karl Jaspers, que afirma

empregar o termo compreender “para indicar a intuição do psíquico adquirida por

dentro. O conhecimento de conexões causais objetivas, que sempre são vistas de fora,

nunca chamaremos de compreensão, mas sempre de explicação” (JASPERS, 1997, p.

42).

Justamente por ser uma intuição adquirida por dentro, ou seja, pela consciência

do observador (portanto passível de perturbação por valores já que é um dos diversos

15

Por exemplo, ao desenvolver os fundamentos metodológicos de sua teoria, Weber afirma que “toda

interpretação, como a ciência em geral, luta pela clareza e provas verificáveis. Uma tal prova de

compreensão será ou de caráter racional, isto é, lógico ou matemático, ou de um caráter emocionalmente

empático, artisticamente apreciável” (WEBER, 2010, p. 12).

37

meios que o real nos apresenta, mas nem sempre se revela), é que a interpretação tem

valor apenas relativo; lembramos que de modo algum isso faz com que a sociologia

compreensiva perca sua validade, e sim, que Weber é consciente de seus limites.

[...] b) manifestações externas da ação que consideramos ‘iguais’ ou

‘parecidas’ podem basear-se em conexões de sentido bem diversas para o

respectivo agente ou agentes; e, ‘compreendemos’ também ações

extremamente divergentes, ou até opostas quanto ao sentido, em face de

situações que consideramos ‘idênticas’ entre si [...] (Continua).

Nesse ponto podemos voltar à proposição de Jaspers (1997), pois há sempre

diferentes graus de imprecisão entre aquilo que apreendemos ou podemos interpretar da

ação. Justamente pelas conexões internas entre o observador e a ação observada. O

recurso da entropatia ou mesmo da construção de tipos não garante evidência concreta;

ela revela uma compreensão aproximada daquilo que realmente significa enquanto

motivação. Para ele motivo é “uma conexão de sentido que, para o próprio agente ou

para o observador, constitui a razão de um comportamento quanto ao seu sentido”

(1991, p. 8). Em outras palavras, o motivo serve para o observador como que a raiz da

ação, e desta forma é indispensável para sua compreensão.

[...] c) diante das situações dadas, os agentes humanos ativos estão

frequentemente expostos a impulsos contrários que se antagonizam, todos

eles ‘compreensíveis’ para nós. Mas, seja qual for a intensidade relativa com

que costumam se manifestar as diversas referências ao sentido envolvidas na

‘luta dos motivos’ igualmente compreensíveis para nós, é algo que, em regra

e segundo toda a experiência, não se pode avaliar seguramente e, em grande

número de casos, nem aproximadamente. Somente o resultado efetivo da luta

dos motivos nos esclarece a esse respeito. Como em toda hipótese, é

imprescindível, portanto, o controle da interpretação compreensiva do

sentido, pelo resultado no curso efetivo da ação (WEBER, 1991, p. 7. Grifos

do autor).

Weber sustenta, no entanto, que tal controle só pode ser relativamente

alcançado, pois só há a possibilidade de comparar os motivos e impulsos da ação

examinada, com relação ao seu sentido, ou significação. Para ele isso constitui um papel

importante da sociologia comparada. Muitas vezes, entretanto “[...] só resta o meio

inseguro da ‘experiência ideal’, quer dizer, a eliminação imaginada de certos

componentes da cadeia de motivos e a construção do desenvolvimento então provável

da ação, para alcançar uma imputação causal16

” (1991, p. 7. Grifos do autor).

16

Existe uma relação estreita em Weber entre causalidade e possibilidade objetiva, que não

desenvolveremos aqui, por fugir ao nosso propósito.

38

Tal causalidade para Weber significa na verificação a determinado evento

observado, a decorrência de outro evento determinado. É claro que para o autor isso não

tem relação precisa, já que ela é de ordem probabilística. Não só porque é impossível

apreender perfeitamente o curso da ação, “[...] mas também em virtude da

multiplicidade dos antecedentes, dos quais não nos podemos dar conta, de sorte que

somos obrigados a construir um curso imaginário das coisas para definir os que parecem

mais importantes [...]” (FREUND, 1980, p. 58).

Julgamos essas análises suficientes para demonstrarmos como, apesar das

possíveis diferenças em Weber entre compreensão e interpretação – que não

aprofundamos por não contribuir com nossa análise aqui –, esses dois conceitos estão

presentes na metodologia do espaço de experiência dos dois autores analisados – Max

Weber e Wilhelm Dilthey, na Alemanha do final do século XIX.

Nestas poucas linhas tentamos relacionar o que Koselleck entende por espaço de

experiência e, a partir disso descrever a importância da interpretação do observador para

o cenário científico do final do século XIX na Alemanha. Não seguimos os passos

metodológicos de Koselleck, embora deles tenhamos nos aproximado nas análises que

articulamos aqui. Podemos sugerir, entretanto, a partir da análise realizada, que a

interpretação do observador no estudo de tempos passados, proposta por Koselleck é

resultado do empreendimento teórico dos autores do final do século XIX.

De modo similar, verificamos neste trabalho que o espaço em que se realiza uma

determinada experiência, é passível de compreensão mesmo para quem não vivenciou

tal experiência. Isso porque mesmo que um evento qualquer tenha sido realizado num

tempo em que a vivência do observador não alcança, ela pode ser metodologicamente

alcançada por ele a partir de uma abstração, onde os resultados objetivos serão

alcançados, de acordo com sua visão de mundo.

No que diz respeito a Dilthey e Weber, percebemos que esses autores concebem

ao intérprete a obtenção da evidência, assim como posteriormente Koselleck o faz –

também Pocock (2003), a despeito de utilizar outro modelo analítico. Em um estudo

posterior, poder-se-ia articular outros autores para uma análise de maior profundidade.

Talvez verificar ainda na Alemanha, a influência e as transformações das proposições

da metodologia e do conceito de interpretação em busca de evidência, para autores

como Wilhelm Dilthey e Max Weber.

39

3. O SISTEMA TEÓRICO DE AÇÃO: do indivíduo de Weber ao agente de

Giddens

Neste trecho do trabalho vamos expor com brevidade, as reflexões de Weber

sobre a ação social, dentro de um esquema particular construído por ele, onde se

estabelecem para o autor os tipos ideais de ação. Nesta fase tencionamos demonstrar

como desde Weber podemos perceber pistas da não polarização entre indivíduo e

sociedade a partir de seu conceito de ação social. Este conceito está assim definido pelo

autor:

A ação social (incluindo tanto a omissão como aquiescência) pode ser

orientada para as ações passadas, presentes ou futura de outros. Assim, pode

ser causada por sentimentos de vingança de males do passado, defesa contra

perigos do presente ou contra ataques futuros. Os ‘outros’ podem ser

indivíduos conhecidos ou desconhecidos, ou podem constituir uma

quantidade indefinida. Por exemplo, ‘dinheiro’ é um meio de troca que o

indivíduo aceita em pagamento, porque sua ação se orienta na expectativa de

que numerosos, mas desconhecidos e indeterminados ‘outros’ o aceitarão por

sua vez, em algum tempo no futuro, como um meio de troca (WEBER, 2010,

p. 37. Grifos do autor).

Dissemos acima que desde Weber pode-se apreender um movimento recursivo

entre indivíduo e sociedade. Explicamos: uma vez que, se se entender que a ação nutre

em si passado e futuro e a aquiescência ou recusa de outros, numa elaboração

consciente ou mesmo inconsciente do indivíduo, podemos então sugerir que este

indivíduo está agindo de modo reflexivo e mais, que está ação enseja em si

reflexividade – como veremos mais adiante no texto.

A mesma apreensão se pode obter ante a conceituação weberiana de relação

social, onde o termo “[...] será usado para designar a situação em que duas ou mais

pessoas estão empenhadas numa conduta onde cada qual leva em conta o

comportamento da outra de uma maneira significativa, estando, portanto, orientada

nesses termos” (WEBER, 2002, p. 45). Estas considerações são importantes na medida

em que despontam desde Weber a não polarização entre indivíduo e sociedade

perseguida por Anthony Giddens, como será demonstrado na próxima seção deste

trabalho.

Voltando a sistematização weberiana, em seus estudos orientados principalmente

na área econômica, jurídica e religiosa, a maior parte deles sob o olhar sociológico, o

40

autor estabeleceu tipos de ação racional: ação racional com relação a fins; ação racional

com relação a valores; ação racional com relação estritamente afetivo e ação tradicional.

Para Weber, age de maneira racional referente a fins “[...] quem orienta sua ação

pelos fins, meios e consequências secundárias, ponderando racionalmente tanto os

meios em relação às consequências secundárias, assim como os diferentes fins possíveis

entre si [...]” (1991, p. 16). Já a ação racional com relação a valores, em contraposição a

ação com relação a fins carrega em si sempre um caráter não racional. Todos os casos

de ação com referência a valores é uma ação segundo exigências ou mandamentos em

que o indivíduo acredita que foram dirigidos a ele (WEBER, 1991). O autor ensina que

age de modo

[...] puramente racional referente a valores quem, sem considerar as

consequências previsíveis, age a serviço de sua convicção sobre o que

parecem ordenar-lhe o dever, a dignidade, a beleza, as diretivas religiosas, a

piedade ou a importância de uma ‘causa’ de qualquer natureza (WEBER,

1991, p. 15).

O comportamento estritamente tradicional está presente na maioria das nossas

ações cotidianas, e em linhas gerais é o que pode ser chamado de ação orientada pelo

sentido, por ser uma ação que decorre no sentido da atitude enraizada. “[...] A grande

maioria das ações cotidianas habituais aproxima-se desse tipo, que se inclui na

sistemática não apenas como caso-limite mas também porque a vinculação ao habitual

pode ser mantida conscientemente em diversos graus e sentido” (1991, p. 15).

Por fim, o comportamento estritamente afetivo, “[...] pode ser uma reação

desenfreada a um estímulo não-cotidiano. Trata-se de sublimação, quando a ação

afetivamente condicionada aparece como descarga consciente do estado emocional”

(1991, p. 15). Uma ação é considerada afetiva quando se manifesta de modo a satisfazer

um desejo qualquer (vingança ou gozo), tanto de modo contemplativo como numa

descarga brutal de emoções.

Entretanto, devemos ressaltar a observação que Weber faz em relação aos tipos.

Segundo o autor,

só muito raramente a ação, e particularmente a ação social, orienta-se

exclusivamente de uma ou de outra destas maneiras. E, naturalmente, esses

modos de orientação de modo algum representam uma classificação completa

de todos os tipos de orientação possíveis, senão tipos conceitualmente puros,

criados por fins sociológicos, dos quais a ação real se aproxima mais ou

menos ou dos quais – ainda mais frequentemente – ela se compõe. Somente

41

os resultados podem provar sua utilidade para nossos fins (WEBER, 1991, p.

16).

Importante perceber que Weber não determina que esses sejam os únicos tipos

de ação social, nem que uma ação seja manifesta por um único tipo puro, nem tampouco

restringe a construção de outros modelos para que se adequem aos propósitos de cada

pesquisa ou pesquisador. Ao estabelecer isso, o autor abre possibilidades para que se

possa utilizar adequadamente sua metodologia.

A construção dos tipos servem de recurso para interpretação das ações dos

agentes humanos, uma vez que possuem um “elevado valor heurístico para a

investigação, e um enorme valor sistemático para o enunciado, se apenas forem

utilizadas como meios conceituais para comparar e medir relativamente a eles a

realidade. Com esta função, tornam-se quase indispensáveis” (WEBER, 2003, p. 58).

Weber entende que para atingir essa interpretação compreensiva válida, o modo

mais eficaz é através da ação racional com relação a fins. Uma racionalidade define-se

como o “[...] comportamento que se orienta, exclusivamente, por meios tidos por

adequados (subjetivamente) para obter fins determinados, tidos por indiscutíveis

(subjetivamente) [...].” No entanto, ressalta Weber, “[...] de maneira alguma é

compreensível para nós apenas a ação racional com relação a fins: entendemos também

o decurso típico dos afetos e as suas consequências típicas” (1995, p. 314). Mais adiante

em sua discussão, o autor enfatiza que o racional com relação a fins, lhe serve como tipo

ideal para poder avaliar o alcance do não racional com relação a fins.

Os tipos ideais são apresentados por Weber como conceitos definidos a partir de

critérios pessoais, isto é, trata-se de conceituações do que ele entende pelo termo

empregado, de forma a que o leitor perceba claramente do que se trata o tema.

Obtém-se um tipo ideal mediante acentuação unilateral de um ou vários

pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de

fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em

maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam

segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar

um quadro homogêneo do pensamento. Torna-se impossível encontrar

empiricamente na realidade esse quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-

se de uma utopia (WEBER, 2003, p. 50).

Importante ressaltar que os tipos são formulados, inicialmente, através de uma

exageração consciente das características essenciais da ação que interessa ao

pesquisador e, posteriormente, da orientação sintética dessas características em um

42

conceito unificado e desenvolvido com muito rigor, documentando as regularidades das

ações significativas de modo preciso. Conforme ensina Kalberg (2010) os tipos só

poderão ser construídos a partir do contato empírico, com intuito de formar um

constructo homogêneo e preciso, para por fim atingir uma explicação compreensiva

válida – lembramos que também Dilthey utiliza o recurso do tipo para interpretação da

ação.

Devemos ter sempre atenção de que os tipos construídos para estudar uma

determinada realidade empírica, não podem ser confundidos com a noção de modelo;

Weber enfatiza que “[...] trata-se da construção de relações que parecem

suficientemente motivadas para a nossa imaginação e, em consequência, ‘objetivamente

possíveis’ e que parecem adequadas ao nosso saber nomológico” (2003, p. 51. Grifos

do autor).

Há ainda um outro conceito diretamente implicado na compreensão do sentido

da ação, a motivação da ação. Para Weber a motivação [...] refere-se a uma conexão de

sentido que parece ser, para o indivíduo envolvido ou para o observador o fundamento

de sua conduta (2002, p. 21). Para ele a interpretação correta da ação somente pode ser

percebida se os motivos foram adequadamente estabelecidos; dessa forma,

se nenhum sentido se liga a uma tal ação típica, então, independentemente do

grau de uniformidade ou de precisão estatística da probabilidade, ela ainda

permanece uma probabilidade estatística incompreensível, embora lide com

um processo manifesto ou subjetivo (WEBER, 2002, p. 22).

Esta breve revisão acerca da ação em Weber, sobretudo, como utilizá-las na

busca de sentido através da motivação, ilustra como proceder mediante este recurso para

interpretar uma determinada ação em busca de uma evidência válida, para que se possa

a partir dela extrair uma compreensão que seja mais próxima possível do contexto

observado.

Feita essa apresentação muito sumária das relações de natureza e cultura dos

autores do final do século XIX, e a partir disso, como está colocada em nossa leitura a

teoria weberiana da ação, passemos agora para os apontamentos de Anthony Giddens no

qual nos baseamos nas categorias analítico-metodológicas; em Giddens, nos

concentramos principalmente na obra A constituição da sociedade (2009), e nos

restringiremos aos conceitos de sua teoria da estruturação. Entretanto, visitamos outras

obras para uma melhor descrição dos conceitos mobilizados pelo autor.

43

Risco e reflexividade da ação desde Anthony Giddens

Anthony Giddens é um renomado sociólogo britânico que trabalha com questões

relativas a modernidade tardia, num contraponto a noção de pós modernidade, e propõe

uma teoria em que agência (ação) e estrutura (todo social) não podem ser

compreendidos separadamente, chamada a teoria da estruturação. Giddens também

dedicou assumidamente seus esforços a sistematizar a teoria social, desde uma

discussão refinada dos clássicos da sociologia até uma revisão de seus contemporâneos

– se bem que sua análise de modo geral, ficou centrada mais fortemente ao círculo

Europa-Estados Unidos.

Devemos lembrar que Giddens é um autor que sinaliza que a ação, além de ser

recursiva entre indivíduo e sociedade como já mencionado, é sempre envolvida de

reflexividade. É claro, aqui estamos falando de indivíduos delimitados na modernidade,

ou mais precisamente, num período que se entende depois do final da segunda grande

guerra mundial, ao que o autor chama de alta modernidade (GIDDENS, 2002; 2009).

Não seria prudente enveredar para discussão do glossário completo de Anthony

Giddens – assim como de Weber; isso porque nem a tarefa seria realizada com o crédito

que merece, mas, sobretudo, porque o alcance das análises desses dois autores, excedem

em muito nossa discussão aqui. Talvez o leitor sinta falta da discussão de conceitos

caros e em certa medida indispensáveis para as reflexões pautadas pela obra de Giddens.

Mas gostaríamos de assinalar aqui apoiados nas discussões do autor, alguns conceitos

que servirão para a reflexão de nosso objeto. Dessa forma, assumimos o risco da

instrumentalização dos conceitos.

Já dissemos que as reflexões que o autor mobiliza são a partir da segunda

modernidade, a modernidade pós-industrial, em seus termos, a alta modernidade. Esta,

nas palavras do autor, é caracterizada pela sociedade pós-industrial, ocidental, adequada

ao modo de produção capitalista onde os modos e os estilos de vida estão radicalizados.

Giddens (1990) estabelece três categorias principais de caracterização dessa

modernidade radicalizada: o distanciamento tempo-espaço, os mecanismos de

desencaixe e a reflexividade.

O primeiro diz respeito à ruptura da conexão entre tempo e espaço na realização

de transações comerciais e comunicacionais num mundo globalizado. Aí então,

utilizamos como mediação um mecanismo de desencaixe (uma ficha simbólica) como o

dinheiro ou mesmo um outro tipo que o autor chama sistema de peritos, que possuem

44

competência profissional para organizar nossas vidas. Nisso, segundo o autor, está

implicada a noção de confiança.

A confiança por sua vez implica as noções de risco e perigo, ou seja, os

processos de manutenção da vida envolvem sempre algum tipo de perigo, sempre estão

sujeitos ou ao fracasso ou a introduzirem em nossas vidas algo que não desejamos. O

equilíbrio entre confiar e aceitar o risco segundo o autor, fera uma segurança

situacional, que pode se transformar em segurança ontológica caso estejamos certo da

permanência da nossa auto-identidade e na continuidade de nosso mundo frente a uma

situação dada.

A terceira característica da modernidade vem do equilíbrio entre a segurança e o

risco aceitável, que prevê uma experiência anterior do indivíduo no mundo, e que o leva

a organizar suas ações frente as diversas situações. Esse projetar da ação no mundo de

acordo com a experiência subjetiva o autor chama de reflexividade, que nada mais é que

um exame, uma prática social reformada a luz da informação.

Em Giddens, a ação ganha novos contornos ante a noção que apreendemos em

Weber; como já dissemos o primeiro sistematiza a teoria social na noção de

estruturação, onde a ação deve ser analisada a partir da dualidade da estrutura. Para ele,

a ação é um processo, “um fluxo, em que a monitoração reflexiva que o indivíduo

mantém é fundamental para o controle do corpo que os atores ordinariamente sustentam

até o fim de suas vidas no dia-a-dia” (2009, p. 11). Para o autor podemos definir

monitoramento reflexivo como

[...] uma característica crônica da ação cotidiana e envolve a conduta não

apenas do indivíduo mas também de outros. Quer dizer, os atores não só

controlam e regulam continuamente e regulam continuamente o fluxo de suas

atividades e esperam que outros façam o mesmo por sua própria conta, mas

também monitoram rotineiramente aspectos, sociais e físicos, dos contextos

em que se movem (2009, p. 6).

O autor vai além deste conceito quando desenvolve o conceito de agência; para

ele agência se refere à capacidade do indivíduo de realizar uma determinada ação, que

por sua vez está diretamente relacionada com a noção de poder, já que sob a noção de

agência o ator poderia a qualquer momento mudar o curso de sua ação. Vale ainda

enfatizar que a ação “depende da capacidade do indivíduo de ‘criar uma diferença’ em

relação ao estado de coisas ou curso de eventos preexistente. Um agente deixa de o ser

45

se perde a capacidade para ‘criar uma diferença’, isto é, para exercer alguma espécie de

poder” (2009, p. 17. Grifos do autor).

Já a motivação em Giddens, diferentemente do modo como é apreendida por

Weber, diz respeito a um estado de sentimentos com relação a formas inconscientes,

através dos quais a segurança ontológica é forjada.

A motivação deve então ser analisada em termos das características do

sistema básico de segurança, tal como descrito anteriormente. Mais

especificamente, os motivos estão envolvidos com as emoções ligadas às

primeiras relações de confiança. Estas podem ser entendidas em termos da

formação de laços sociais – laços emotivamente carregados de dependência

em relação a outras pessoas, a começar por aqueles desenvolvidos com os

adultos responsáveis (GIDDENS, 2002, p. 64-65).

Ou seja, ela refere-se muito mais ao disparador da ação do que o modo como a

relação é executada pelos indivíduos. “[...] os motivos tendem a ter uma influência

direta na ação apenas em circunstâncias relativamente incomuns, situações que, de

algum modo, quebram a rotina [...]” (GIDDENS, 2009, p. 7). Distintamente, a intenção

diz respeito a um ato que o indivíduo planeja e a partir disso, acredita, que será realizada

conforme seu desejo. Mais adiante, quando falarmos de motivação da construção do

bosque, de modo algum pensamos que houve intenção, ou ao menos, não analisamos a

constituição do bosque por esse prisma, e sim, de suas motivações sociais, em relação a

seus sentimentos de segurança.

Posto isso, a fim de delimitar as noções que gostaríamos de mobilizar aqui,

prontamente apontaríamos para a discussão de risco mobilizada por Giddens e

posteriormente encampada por outros autores de sua rede teórica, como Ulrich Beck,

por exemplo. Para Giddens, a sociedade moderna está constantemente rodeada pela

noção do risco – acrescentaríamos que na noção de risco ambiental num sentido amplo

(GIDDENS, 1990). Assim que, “a dúvida, característica generalizada da razão crítica

moderna, permeia a vida cotidiana assim como a consciência filosófica, e constitui uma

dimensão existencial geral do mundo social contemporâneo” (GIDDENS, 2002, p. 10).

Para o autor a modernidade é uma cultura do risco, e nesse sentido, é

fundamental para o desenvolvimento de nossas ações a noção de confiança. Sem esta,

não sairíamos em casa, ou nosso cotidiano seria um completo caos. “A confiança nesse

sentido é fundamental para um ‘casulo protetor’ que monta guarda em torno do eu em

suas relações com a realidade cotidiana” (2002, p. 11. Grifo do autor). A confiança –

aliada a outros conceitos do quadro analítico do autor – transforma-se em segurança

46

ontológica na medida em que se consolida para o indivíduo. Nas palavras do autor, a

segurança ontológica é “a confiança em que os mundos natural e social são como

parecem ser, incluindo os parâmetros existenciais básicos do self e da identidade social”

(2009, p. 444). Em outras palavras, a segurança ontológica é que permite que passemos

o dia em casa ou no trabalho sem temer que o teto nos caia à cabeça.

Nas condições de modernidade, o futuro é continuamente trazido para o

presente por meio da organização reflexiva dos ambientes de conhecimento.

É como se um território fosse escavado e colonizado. Mas essa colonização,

por sua própria natureza, não pode se completar: pensar em termos de risco é

vital para aferir até que ponto os resultados reais poderão vir a divergir das

previsões de projeto. A aferição do risco requer a precisão e mesmo a

quantificação, mas por sua própria natureza é imperfeita (GIDDENS, 2002,

p. 11).

Neste trecho Giddens descreve como que uma síntese do que vínhamos

discutindo até aqui. Talvez aqui se assinale melhor a noção de reflexividade da ação

contida sob a escavação do passado e aferições das previsões do futuro, para melhor

cálculo das ações do presente. Note-se que a reflexividade para o autor não se trata de

uma ação egoísta de um indivíduo que reflete isolado; ela provém dessas análises de

passado e futuro que estão – agora sim – refletidas no indivíduo para projetos do

presente. Como explica Giddens (2009),

[...] a ‘reflexividade’ deve ser entendida não meramente como

‘autoconsciência’, mas como o caráter monitorado do fluxo contínuo da vida

social. Ser um ser humano é ser um agente intencional, que tem razões para

suas atividades e também está apto, se solicitado, a elaborar discursivamente

essas razões (inclusive mentindo a respeito delas) (p. 3. Grifos do autor).

Nisto estão presentes noções diversas de riscos como de guerras e controles

internacionais, ciência e tecnologia para o desenvolvimento de armas, risco ecológico

por meio do desmatamento de florestas e da escassez de água, risco de pobreza e de

trabalho escravo, entre outros. Ou seja, os mais variados riscos estão diária e

permanentemente distribuídos nas tomadas de decisões dos indivíduos na forma de

monitoração reflexiva (GIDDENS, 2002; 2009). Para ele, “[...] o planejamento de vida

reflexivamente organizado, que normalmente pressupõe a consideração de riscos

filtrados pelo contato com o conhecimento especializado, torna-se uma característica

central da estruturação da auto-identidade” (2002, p.13). Quer dizer, ação recursiva –

por meio da reflexividade – entre indivíduo e sociedade, entre ação local e ação global

47

(CERVEIRA, 2007; 2012). De certa forma esse jogo recursivo entre sujeito e objeto

retoma aquela noção de Theodor W. Adorno [1903-1969] acerca das relações sociais,

onde o autor ressalta que

[...] não há indivíduos no sentido social do termo, ou seja, homens aptos à

possibilidade de existir e existentes como pessoas, dotados de exigências

próprias e, sobretudo, atuantes no trabalho, a não ser com referência à

sociedade em que vivem e que forma indivíduos em seu âmago. [...] também

não há sociedade sem que seu próprio conceito seja mediado pelos

indivíduos, pois o processo pelo qual ela se preserva é, afinal, o processo de

vida, do trabalho, o processo de produção e reprodução que se conserva

mediante os indivíduos isolados, socializados na sociedade (ADORNO,

2008, p. 120).

É claro, devemos assinalar que principalmente Anthony Giddens (2009) refina

conceitualmente a teoria da ação social por meio de sua estruturação, assim como já

havia realizado Talcott Parsons17

, ante a produção weberiana, sobretudo, em uma

delimitação clara da não polarização sujeito/sociedade. Entretanto, e o leitor entenderá,

não podemos descrever a esquematização de Giddens em sua totalidade dado a

qualidade e o rigor com que o autor a estrutura. Ficaremos satisfeitos se, ao fim deste

texto, conseguirmos demonstrar sua aplicabilidade.

Isto que estamos chamando de não polarização, se apresenta em Giddens (2009)

enquanto dualidade da estrutura. O autor explica que

A constituição de agentes e estruturas não são dois conjuntos de fenômenos

dados independentemente – um dualismo -, mas apresentam uma dualidade.

De acordo com a noção de dualidade da estrutura, as propriedades estruturais

de sistemas sociais são, ao mesmo tempo, meio e fim das práticas que elas

recursivamente organizam. A estrutura não é ‘externa’ aos indivíduos:

enquanto traços mnêmicos e exemplificada em práticas sociais, é, num certo

sentido durkheimiano (GIDDENS, 2009, p. 30).

Assim que, para o autor, o dualismo deve ser reconceituado para dualidade.

Significa isso que em sua concepção de estrutura (distinta do estruturalismo, que

enfatiza a preeminência do todo social sobre partes individuais) a distinção

sujeito/objeto, advinda do acento em questões epistemológicas (ou em suas disputas),

gera um dualismo entre objetivismo e subjetivismo. Nesse sentido sua teoria da

17

Neste trabalho não apresentamos as contribuições de Parsons, principalmente de sua teoria voluntarista

da ação, já que nos deteríamos demasiadamente na discussão ‘dura’ da teoria. Entretanto, este autor não

pode ser desconsiderado. Para uma maior apreensão das reflexões deste autor do início do século,

consultar: PARSONS, Talcott. A estrutura da ação social: um estudo de teoria social com especial

referência a um grupo de autores europeus recentes. Vol. I e II. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

48

estruturação se centra em interesses ontológicos. A dualidade da estrutura é tema central

na estruturação do autor e que, além de pressupor sempre a reflexividade, não dispensa

também a relação espaço tempo.

[...] o estudo do contexto, ou das contextualidades de interação, é inerente à

investigação da reprodução social. O “contexto” envolve o seguinte: a) as

fronteiras espaço-temporais (sendo usualmente marcos simbólicos ou físicos)

em torno das faixas de interação; b) a co-presença de atores, possibilitando a

visibilidade de uma diversidade de expressões faciais, gestos corporais,

linguagem e outros veículos de comunicação; c) percepção consciente e uso

desses fenômenos reflexivamente para influenciar ou controlar o fluxo de

interação (GIDDENS, 2009, p. 332-333. Grifos do autor).

A noção de contexto é que permite pensar em Giddens (2009) a ação, ou, se se

quiser, o fluxo da interação em seu ambiente. Para o autor, aos olhos do pesquisador,

essas ações dos indivíduos devem estar sempre relacionadas, com o contexto em que

ocorrem, na relação espaço-tempo. Desse modo, analisar a coordenação espaço-

temporal das atividades sociais “[...] significa estudar as características contextuais de

locais onde os atores sociais se movimentam em seus percursos cotidianos e a

regionalização de locais que se estendem através do tempo-espaço (GIDDENS, 2009, p.

337).”

Entretanto em Giddens esta noção diz respeito ao “encenamento da interação, os

atores co-presentes e a comunicação entre eles” (2009, p. 440). Em nossa concepção

esta definição aponta para extremos do fluxo da ação, onde o ambiente representa a

cena, a moldura, o local onde a ação se desenrola. Isto é, ação aqui, e o ambiente de

fundo. Em uma outra passagem onde o autor descreve sobre as relações – tempo,

espaço, contexto -, é possível igualmente perceber que o ambiente está ai contido nesta

tríade, e que, não se descola de todo das ações, mas ao contrário, funcionando assim

como condição de possibilidade ou limitador das ações.

Toda a vida social ocorre em – e é constituída por – interseções de presença e

ausência no ‘escoamento’ do tempo e na ‘transformação gradual’ do espaço.

As propriedades físicas do corpo e os milieux nos quais ele se movimenta

inevitavelmente conferem à vida social um caráter serial, e limitam os modos

de acesso a outros ‘ausentes’ através do espaço (GIDDENS, 2009, p. 155.

Grifos do autor).

Toda argumentação apresentada até aqui encaminha para a seguinte síntese: o

indivíduo, sob a noção de risco e reflexividade, reflete o e sobre o movimento da

sociedade no e do mundo; assim, o mundo – permitam-nos utilizar o termo ‘ambiente’ –

49

torna possível que os indivíduos acessem uns aos outros e os demais materiais que

viabilizem o acesso ao conhecimento. E isso em muito se deve a reflexividade social em

torno do risco ecológico. Esta proposição fica melhor evidenciada em uma obra síntese

organizada posteriormente por Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash, chamada

Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna, do ano

de 1995 (nossa edição é de 1997)18

, onde os autores alertam desde o prefácio: [...] O

‘ambiente’ soa como um contexto externo à ação humana. Porém as questões ecológicas

só vieram à tona porque o ‘ambiente’ na verdade não se encontra mais alheio à vida

social humana, mas é completamente penetrado e reordenado por ela (BECK,

GIDDENS, LASH, 1997, p. 9).

Iniciamos esse diálogo com os autores com o propósito de demonstrar qual é

nossa perspectiva epistemológica, quer dizer, de uma ciência que se pretende aberta,

destronada de um lugar de sabedoria verticalizada, em geral, mas não somente, centrada

em uma visão naturalista de mundo. Ao mesmo tempo, não faz sentido reproduzir a

noção corrente na teoria social, de uma separação entre indivíduo e sociedade; de nossa

parte não acreditamos que a ação está totalmente subordinada à estrutura, mas que,

essas formam um todo recursivo a partir da capacidade de refletir (como um espelho)

dos agentes. Então suas motivações ora ganham um contorno de proteção subjetiva, ora

de uma dada ordem social, que não entendemos como perene. Com isso estamos

pensando as motivações de nosso objeto de pesquisa, o bosque, e os arranjos sociais que

foram constituídos para sua formação e que, hoje, tais arranjos talvez nem existam – de

acordo com a máxima latouriana de que não existem grupos e sim, formação de grupos.

Mas há ainda um outro elemento que gostaríamos de apontar nessa reflexão: a

presença do ambiente como um componente da estrutura, para se analisar como se dão

as ações e as interações dos indivíduos. No texto não podemos diretamente localizar

isso nos clássicos, como em Weber, por exemplo, mas é possível encontrar como foi

demonstrado em Giddens através de sua noção de contexto na relação tempo-espaço. De

nossas reflexões, e isso será demonstrado na segunda parte do trabalho quando

descrevemos nosso trabalho de campo, essa é uma importante consideração dentro da

teoria social. Sabemos que do ponto de vista epistemológico ainda temos de avançar

para defender essa tese, mas ficam aqui esses apontamentos.

18

Lembramos que a obra A constituição da Sociedade foi escrita em 1984 e estamos utilizando a edição

de 2009.

50

PARTE II

Após a apresentação de nossa perspectiva teórica, que aponta mais as dificuldades que

as possíveis soluções quando pensamos o campo, desde as noções de uma ciência que

não pretende emoldurar o real dentro de sistemas teóricos, vamos enfim buscar

descrever as impressões do resultado de investigação sobre a constituição do bosque.

Não pretendemos ser definitivos em nossa análise, e nosso caminho analítico desde já se

mostra desafiador: articular estas 1) noções de ciência que não se pretende objetiva, às

2) múltiplas motivações da ação que apreendemos em campo. Nosso objeto revelou

múltiplas razões para aquela constituição e seria um reducionismo metodológico

qualquer análise por meio de categorias herméticas. Partimos daqui com muitas

incertezas, e pretendemos chegar ao final estabelecendo alguns apontamentos e

questões. Nessa parte, iniciaremos descrevendo as apreensões do campo, para

posteriormente realizarmos nossa análise.

51

4. AÇÃO, SOCIEDADE E AMBIENTE: uma descrição a partir das apreensões

do trabalho de campo

4.1. Sobre a constituição do bosque urbano

Desde já, a partir das investigações de constituição do bosque por nós escolhido,

apontaremos para as descrições que remontam suas motivações. Decidimos seguir a

metodologia diltheyana do estabelecimento de sua psicologia compreensiva, qual seja,

descrição, análise e compreensão (2008). Para tanto, optamos por estabelecer a

construção do problema a partir do seguinte caminho descritivo: a) uma descrição sobre

a relação entre o Grupo 1 e seu ambiente e, b) uma descrição entre as relações entre o

Grupo 2 e seu ambiente. A composição destas descrições será realizada a partir das

noções apreendidas tanto na prefeitura, quanto na comunidade do entorno do bosque.

Imagem 1: Área total do bosque

Fonte: Google Maps

52

Imagem 2: Foto da entrada do Bosque

Fonte: Os autores

Imagem 3: Vista aérea do bosque e do Grupo 1

Fonte: Google Maps.

53

Imagem 4: Foto aérea da região onde atualmente está instalado o Grupo 2

Fonte: Google Maps

4.1.1. Grupo 1 e as relações com o ambiente

Ao falar do bosque em questão, não estamos falando de uma área verde que

pertence estritamente a uma determinada comunidade, ou seja, não podemos entendê-la

como uma área particular pertencente a um grupo específico. A partir desta noção,

trataremos nesta seção das motivações de constituição de um bosque (específico)

através do que chamamos de razões técnicas, ou seja, as razões instrumentais (no

sentido weberiano) para a constituição de um equipamento como um bosque. O bosque,

apesar das regras de conduta estabelecidas desde sua constituição, é de direito difuso,

ainda que seus usos atualmente sejam moderados pela prefeitura.

Já dissemos que, as motivações desta pesquisa são justamente verificar as

relações sociais que foram estabelecidas a partir deste equipamento público. Também já

dissemos que em nossa investigação essas relações se delimitaram no estudo da

comunidade do entorno do bosque, onde aplicamos os instrumentos de pesquisa

(gravação de entrevistas a partir de um questionário semiestruturado). Realizamos

também entrevista na prefeitura, no Departamento de Planejamento Urbano e também

no Departamento de parques, praças e bosques. A partir das informações extraídas na

54

prefeitura e nas entrevistas realizadas na comunidade em torno do bosque, constatamos

a participação de uma segunda comunidade nesta constituição. Esta comunidade reside

em conjuntos habitacionais nas proximidades do bosque e com eles não realizamos

entrevistas. Chamaremos a comunidade do entorno, a fim de identificação, de Grupo 1 e

a segunda, Grupo 2. Vejamos então, a partir de uma narrativa descritiva, como essas

relações resultaram na constituição do bosque.

No Departamento de Planejamento Urbano, e também no Departamento de

parques, praças e bosques apreendemos que a noção de contexto histórico (crise

ecológica) revela o que seria a motivação essencial da criação do bosque. Para a diretora

do primeiro departamento, as alterações do município são causalmente determinadas

pelas necessidades de proteção ambiental, ou seja, o desenvolvimento e criação de

equipamentos públicos segue essa noção do contexto. Dessa forma, em relação a

constituição do bosque em questão podemos perceber que sua fala vai nesse sentido:

Algumas coisas por força do tempo, que aconteceria em algum tempo, às

vezes são melhores administradas num período, às vezes melhor em outro, e

até por força das necessidades que surgiu e que o administrador é obrigado

a se adaptar a ela, seja conjuntura econômica, social ou ambiental19

(Diretora do Departamento de Planejamento Urbano).

Da mesma forma, o diretor do Departamento de parques, praças e bosques,

relatou que

[...] o meio ambiente, você vê que de uns tempos pra cá, ele virou a bola da

vez né, antigamente, vamos sair um pouco do bosque, de repente né, a cidade

era criada assim, na louca, as ruas eram estreitas, sem planejamento sem

nada, hoje não, todas as cidades mesmo que seja, num interiorzão lá longe,

elas estão tendo um planejamento um planejamento bem antes, e analisado

bem antes, analisando pra daqui há 40 anos, mais ou menos.

Outra motivação que foi possível apreender para constituição do bosque, foi

mobilizada através da legislação federal nº 6.766/79, que determina que, quando uma

grande parcela de terra é adquirida por uma empresa, nesse caso uma construtora, parte

deste terreno deve ser destinada a prefeitura para execução de obras públicas de

interesse da sociedade. Devemos remarcar que o bosque em questão existe há pouco

mais de dois anos, em um loteamento que foi fracionado há quinze anos – isso pode ser

uma pista de outros condicionantes para criação do bosque, como veremos mais tarde.

19

As citações longas dos entrevistados serão assinaladas em itálico, para distinguir das citações longas

dos autores.

55

O bosque na verdade originalmente não foi concebido como um bosque

exatamente, ele tomou esse nome e esse formato agora bem recentemente de

dois anos pra cá, não mais do que isso, mas em 1998 quando houve a

aprovação do loteamento, que era uma gleba que foi parcelada, a legislação

requer que o loteador tenha áreas de uso institucional dentro do seu

parcelamento. Que são áreas além do sistema viário que não é uma área de

uso institucional, mas é uma área pública o loteador é obrigado a passar

para poder público áreas para implantação de equipamentos. Na época da

legislação que foi aprovado o loteamento era 35% de área do loteamento,

pela lei 6.766/79 que é a lei federal do parcelamento, é obrigado a passar

pro poder público, e isso incorpora o sistema viário necessário para ter

acesso aos lotes, bem como lotes nos quais você possa implantar

equipamentos pra essa população que você vai estar instalando ali de

alguma forma, né (Diretora do Departamento de Planejamento Urbano).

Podemos por hora perceber duas noções originárias da constituição do bosque;

a) temos a crise ecológica que está em pleno debate desde meados do século passado, e

também a b) legislação de parcelamento de lotes. Pode-se constatar aqui que estas duas

noções se referem às razões técnicas. Em outras palavras, ambas fazem parte das

necessidades instrumentais para se constituir um equipamento desta natureza, pois, se

por um lado a lei de parcelamentos garante legalmente uma reserva de terra para a

sociedade, por outro e aliada à primeira, a concepção de crise ecológica resultou que

aquele espaço fosse transformado em um bosque, por estabelecer uma referência direta

com natureza ou meio ambiente.

Neste sentido, foi possível captar algumas noções de meio ambiente,

relacionadas com a noção de proteção e cuidado com os representantes da natureza não

social20

; nos dois departamentos da prefeitura que tivemos acesso, essas impressões se

revelam, inclusive relatando as características daquele ambiente. Entre a constituição

inicial daquele ambiente (e aqui falamos somente da área do bosque) pode-se perceber

também aqui uma relação com a técnica, que resulta na forma como ele está atualmente.

Essa área era uma gleba e que tinham alguns condicionantes, como nascente

e vegetação de bosque nativo que é essa parcela que está ali hoje no bosque.

E foi feito um trabalho de engenharia; a nascente não era exatamente ali

onde está hoje o lago constituído, ela era um pouquinho mais acima, foi feito

um trabalho de rebaixamento desta nascente, se constituiu ali um lago e uma

área verde aberta que incorporava o bosque, um gramado e um lago que foi

20

Estamos utilizando aquela noção de ruptura de Bruno Latour (2004), a partir da qual a natureza não

social seria “uma parte do mundo submissa à estrita causalidade e somente ao reino da necessidade; nesse

sentido, a natureza opõe-se ao reino da sociedade humana, de sua subjetividade, marcada, ao contrário,

pelo reino e pela suspensão da estrita causalidade” (p. 96). Por hora vamos estabelecer esta divisão –

natureza social e natureza não social –, já que esta é a noção que se está apreendendo a partir da fala dos

entrevistados.

56

ampliado, daí foi construído, ele não é original daquele lugar, ele foi

construído ali, e foi passado para o poder público como uma área de uso

institucional, uma área verde, que é uma área preservada ou conservada

(Diretora do Departamento de Planejamento Urbano).

Nesta fala se pode verificar como as razões técnicas foram fundamentais para a

constituição do bosque. Da mesma forma, na citação abaixo, se constata o mesmo

argumento onde se relacionam técnica e elementos da natureza não social presentes na

construção daquele equipamento.

Então o bosque foi criado já com planejamento, já vinha sendo estudado já

há tempo.Claro que falta ainda muitas coisas ali ainda, né, praticamente a

mata ainda é nativa então a gente está plantando alguma coisa, e, aquele

lago vai ser melhorado também, porque ele falta oxigênio, a gente tem uns

peixes ali e de vez em quando a gente precisa fazer uma emergência por

causa daqueles peixes, por causa de oxigênio. Aquele lago é mais alto que o

nível da rua, e sai muita água, dá muita infiltração e vai embora água

rápido, então a gente está estudando que vai ser melhorado o lago também

(Diretor Departamento de parques, praças e bosques).

Um dos elementos disto que chamamos de técnica está melhor evidenciado nesta

última fala. A nascente que lá existe foi rebaixada fazendo com que o lago fosse

alterado de seu lugar original. Por essa razão, a água que ali se concentra não encontra

estabilidade do solo para manter o nível correspondente a capacidade (estabelecida pela

intervenção humana) e infiltra para o encanamento de esgoto. Não foi possível extrair

um documento, mesmo nas falas com gravador, nem em fotos, mas, através de

conversas informais soubemos que há cada quinze dias um caminhão pipa é destinado

ao bosque para encher o lago – Não estamos aqui para criticar as falas ante a qualquer

posicionamento teórico que defendamos; nosso objetivo é analisar as relações sociais a

partir do bosque. Devemos assinalar, no entanto, que incalculáveis litros de água

potável são desperdiçados com a manutenção do lago. Não somente em seu

reabastecimento mensal, mas acima de tudo, temos de lembrar que existe uma nascente

que origina o lago, e que esta água que ali verte, infiltra e é canalizada para a rua.

57

Imagem 5: Foto do lago existente na área do bosque

Fonte: Os autores

Ainda na prefeitura captamos uma outra motivação, que posteriormente na fase

de campo também foi apreendida através das entrevistas com os moradores do entorno

do bosque. Existe outro bosque na cidade, temporalmente anterior a este que

analisamos, e que, devido seu sucesso, serviu como ‘modelo’ para este último – uma

terceira motivação e que podemos relacionar também às razões técnicas. O sucesso a

que nos referimos vem da frequentação que este primeiro bosque tem, propiciando que

as pessoas do município não tenham que se deslocar para a capital em busca de lazer e

um contato direto com a natureza (não social). Segundo a diretora do Departamento de

Planejamento Urbano, explicando sobre o ambiente investigado, “a transformação dela

em bosque com a estrutura que tem hoje, está muito mais relacionado ao sucesso do

bosque aqui da área central, do que propriamente já de origem ter a ideia: aqui será um

belo bosque”. E ela conclui dizendo que

[...] ficou realmente muito bonito e o formato que ele tinha e o formato da

área pública deste bosque era muito próximo, então, uma área pública que

tinha um bosque nativo, uma nascente né, e um potencial pra se tornar uma

boa área de lazer e recreação, então no conceito os dois são muito próximos,

58

né, enquanto uma área pra localizar um equipamento desses (diretora do

Departamento de Planejamento Urbano).

Outra motivação que pode ser associada às razões técnicas, é o padrão das casas

do entorno do bosque, que na apresentação deste texto identificamos como de alto

padrão alta. Essa noção é importante para o que queremos demonstrar ao fim desta

descrição. E é importante na medida em que nos dá pistas, ainda que não definitivas, de

uma das motivações de criação do bosque. Temos de reforçar desde já: não partimos da

premissa de que o bosque foi criado por uma motivação unilateral; de início, encontrar o

bosque localizado nesta comunidade nos fez construir hipóteses das mais variadas, e

estabelecer conexões de causalidade que posteriormente, afastados os preconceitos,

percebemos não ser verdadeiras. Por hora, basta confirmar o que dissemos sobre o

padrão das casas através das falas obtidas na prefeitura. Vamos então associar este

padrão também às razões técnicas, mas essa associação é mais valorativa que as

anteriores, ou seja, estamos veiculando a construção (técnica) do bosque às possíveis

necessidades desta comunidade do entorno.

Imagem 6: Foto do interior do bosque e as casas do entorno (Grupo 1)

Fonte: Os autores

59

Segundo informações obtidas no Departamento de Planejamento Urbano, no

início da constituição do bosque, “[...] o loteamento foi todo infraestruturado, e as áreas

foram vendidas a terceiros, os lotes estão praticamente todos construídos lá né, um

loteamento com padrão relativamente bom para o município, principalmente em relação

do que se tinha a época né”. Essa característica da região fica melhor definida na fala

abaixo:

Ali naquela região a maior parte das ocupações eram ocupações de alto

padrão baixa, e o bosque ele já tem uma característica da alto padrão pra

alta, já é um público um pouco diferente, mas ele ficou até pouco tempo

atrás, até uns três ou quatro anos atrás, ele ficou uma área é... pública, mas

não com um uso pela comunidade, um uso efetivo pela comunidade (diretora

do Departamento de Planejamento Urbano).

Nesta fala, além de asseverar o perfil da região, ou seja, estamos falando de uma

região de alto padrão alta, percebemos a primeira informação de utilização daquele

ambiente; o bosque era subutilizado por aquela comunidade – aqui temos uma pista para

a análise que faremos no próximo capítulo. Ainda na visão do poder público, vamos

apresentar uma fala que ratifica essa noção de alto padrão, mas agora vindo do outro

departamento (parques, praças e bosques):

[...] melhoraram muito em volta aquelas casas em volta do bosque, antes não

tinha tanto assim. A vida cresceu também o pessoal apostou mais, né. Porque

os terrenos ali antes do bosque, vamos imaginar assim, custavam quase a

metade do preço. Os terrenos valorizaram muito também.

Para não deixarmos escapar nosso percurso analítico vamos retomar os pontos

até aqui identificados. Vimos através dos relatos do poder público, na figura da diretora

de planejamento urbano e do Departamento de parques, praças e bosques, que uma das

motivações da criação do bosque foi a) o contexto atual de crise ecológica; outras duas

motivações apreendidas foram, b) a lei de parcelamento de lotes, e c) a referência ao

sucesso do primeiro bosque do município. Uma quarta razão, mas a partir de uma

instrumentalização valorativa nossa, é a d) criação do bosque em uma relação estética

com o padrão das residências do entorno. Assim, a partir do contexto, aquela área

reservada à prefeitura foi utilizada para a constituição do bosque, sinalizando que essa

opção se relaciona diretamente com a necessidade de conservação daquilo que estamos

chamando de natureza não social. A isto, acrescentamos a noção de causalidade entre a

comunidade de alto padrão e uma possível reivindicação da transformação daquele

60

espaço em um bosque. Estas quatro motivações definimos como razões técnicas; da

mesma forma chamamos como técnica aqueles movimentos pelos quais foram sendo

forjados os equipamentos que em conjunto constituíram aquilo que hoje é chamado de

bosque.

Se pudéssemos esquematizar a fim de sintetizar as apreensões até aqui obtidas,

poderíamos ensaiar um quadro que estabelecesse a relação entre a prefeitura, o bosque e

o grupo I, nessa ordem. Nesse sentido, o bosque teria o papel central como fim para a

solução dos problemas ambientais e legais de um lado, e estético ou paisagístico

advindo do Grupo 1, de outro, conforme ilustrado na figura abaixo:

Figura 1: Síntese das motivações de transformação do bosque I

Fonte: Os autores.

4.1.2. Relação do Grupo 1 e o bosque: aparece um novo elemento

A partir dos quatro elementos descritos na seção anterior – a) o contexto atual de

crise ecológica; b) a lei de parcelamento de lotes; c) a referência ao sucesso do primeiro

bosque do município e, d) a criação do bosque em uma relação com o padrão das

residências do entorno – vamos avançar na busca das motivações que implicaram na

constituição do bosque. Tendo em vista os pontos acima mencionados, foi possível

investigar com maiores detalhes outra motivação, que como foi demonstrado até aqui,

não é facilmente apreendida; nesta fase do texto, nos dedicaremos a ela, ou seja, o

Grupo 2.

Mencionamos nas páginas anteriores que o Grupo 1 possui, de um modo geral,

um padrão de alto padrão. Também foi relatado até aqui, que este grupo, reside no

entorno do bosque e que, segundo as motivações apresentadas até aqui, não participou

Bosque

Poder público

Grupo 1

61

de modo efetivo na constituição do bosque, já que segundo a diretora do Departamento

de Planejamento Urbano, “[...] poucas pessoas da comunidade (Grupo 1) usufruíam, até

porque tinha já trilha dentro do bosque e tudo, mas como era tudo muito aberto e sem

controle também havia o risco, a insegurança do uso dessa área”. Entretanto, a partir

desta seção vamos descrever o aparecimento de um novo elemento que se insere na

relação do Grupo 1 com o bosque: entra em cena o Grupo 2 e seus usos do bosque.

Prosseguindo com nossa descrição acerca das motivações de constituição do

bosque, vamos agora descrever as impressões do poder público e do Grupo 1, sobre as

relações entre o Grupo 2 e o bosque – insistimos que não investigamos as impressões

deste grupo com relação ao bosque, já que foi demonstrado no decorrer da pesquisa que

a participação desta sociedade, apesar de ter se demonstrado efetiva na constituição

(transformação) do bosque, não foi documentada. Tampouco houve intenção na

constituição daquele equipamento para a configuração que ele está atualmente. Nos

resignamos em investigar somente um dos lados, porém, como já dissemos, sempre com

a consciência da multilateralidade das motivações ou razões de constituição do bosque.

Na introdução deste trabalho, relatamos que na fase de campo, além daquela

comunidade de alto padrão que rodeava o bosque, encontramos uma outra comunidade

que não aparece para quem está em frente ao seu portal de entrada. Relatamos que

durante as entrevistas, essa comunidade não tinha lugar de ser em nossa pesquisa, já que

não contemplava os objetivos desta. No entanto, durante a composição do roteiro da

entrevista, decidimos questionar a relação daquelas casas, com a transformação do

bosque, uma vez que as casas estavam sendo construídas junto com o bosque. Levamos

então esta questão aos dois representantes dos departamentos da prefeitura; no

Departamento de parques, praças e bosques, o diretor nos informou que havia relação,

que a construção das casas estava programada com a transformação do bosque,

conforme pode ser percebido no depoimento abaixo:

Sim, já estava. Já estava porque ali o perigo para os moradores já existia,

né, e quando viessem todas essas casas (634) mais a população toda, com

mato abandonado que tinha ali, com certeza que ia dar muito mais trabalho

tanto para a polícia militar quanto para a guarda municipal. Então, chego

até a crer que foi criado... um dos motivos.... seria esse.

A mesma questão foi feita ao Departamento de Planejamento Urbano e

obtivemos que:

62

Não tem relação. Mas, o usuário do bosque hoje é uma boa parcela dessa

população que foi realocada da margem do rio pra essas unidades ali. [...]

Tem toda a questão do cercamento, tem toda a questão né de um controle

mínimo das coisas pelo poder público, tem lá uma administração, um apoio,

a guarda sempre está andando, mas você não vê grupos de atividades

suspeitas, ou que inibam o uso da família, né... não se vê grupinhos de

viciados, você não vê isso, não se vê pichação, pelo menos não observei

nenhuma ainda lá, depredação.

Se analisarmos as respostas atentamente, elas não diferem nem em conteúdo

nem mesmo em discurso, ou seja, a relação entre a construção das casas do Grupo 2 e a

transformação do bosque é inquestionável. Nesse momento se estabelece uma inversão,

ou seja, a relação não vem do Grupo 1 e o bosque (entre uma possível ligação entre o

padrão das casas e a forma do bosque) como apontado na seção anterior, e sim do

Grupo 2. O aparente dissenso entre o início das respostas não permite que tenhamos

outra apreensão, significa dizer que, esta que estamos chamando de Grupo 2, segundo

relatos da prefeitura, tem participação efetiva na constituição do bosque. Seus usos são

qualificados pela prefeitura e a partir disso, decidiu-se transformar o bosque, com a

instalação de postes de iluminação, cerca, e vigilância 24 horas por dia por parte da

guarda municipal, entre outros equipamentos.

O que se pode apreender até aqui, é que o Grupo 2 estabeleceu uma relação com

o bosque, que possibilita uma motivação da transformação do bosque diferente das

outras até aqui apontadas. Isso é, o Grupo 2, tinha um uso daquele espaço, anterior a

constituição dele assim como vemos hoje. É importante ressaltar mais uma vez que essa

relação (Grupo 2 – bosque) não estava presente no discurso da prefeitura, e não

sabíamos o quão importante era essa relação no momento das entrevistas.

Durante a entrevista no Departamento de Planejamento Urbano, assim que

identificada a relação entre a criação do bosque e a construção das casas do conjunto

habitacional, julgamos prudente intervir para se aprofundar nesta relação, nesta

informação que estava até então alheia de nosso horizonte (assim como é da perspectiva

do observador que se coloca ante ao portal de entrada do bosque, ou mesmo dos

moradores – Grupo 1 – do entorno do bosque). Reforçamos que o ambiente investigado

se encontra em uma região de topo de morro tendo de um lado o bosque e de outro, o

conjunto habitacional. Dessa forma nossa intervenção com a diretora do planejamento

urbano foi no sentido de assinalar que acreditávamos que o bosque havia sido

constituído ou transformado em uma relação com os moradores do entorno.

Demonstrando surpresa, a diretora nos informou que

63

muito pelo contrário. Imagino eu que se você fizesse uma enquete ali com

aqueles moradores lindeiros eles certamente (certamente) iam querer, uma

cerca, uma segurança e tal, mas no momento que relacionassem isso ao uso

intenso de uma comunidade muito maior do que aquela, eles provavelmente

(risos) não quereriam. Muito provavelmente não quereriam (Diretora do

Departamento de Planejamento Urbano).

E prossegue relatando sobre a valorização dos imóveis da região; segundo ela,

se fossemos usar uma balancinha pra essa valorização imobiliária, ao

mesmo tempo que a infraestruturação da área trouxe um valor, agregou um

valor ao imóvel, o fato de nós estarmos implantando um loteamento de

interesse social ali, desvalorizou na condição de morador, de proprietário,

não na concepção do poder público. Desvalorizou mais do que valorizou.

Então, eles se sentem... muitos ligam com vários questionamentos. Queriam

inclusive fechar com muro, cercar o loteamento com muro porque eles se

sentiram muito agredidos com a implantação de um loteamento de interesse

social (Diretora do Departamento de Planejamento Urbano).

Sem descartar as motivações até aqui apontadas; soma-se a elas uma quinta, ou

seja, e) os usos que o Grupo 2 faz do bosque. Suas práticas não provém de razões

técnicas, ao que se pode observar até aqui. Há uma relação com o bosque,

independentemente de como se qualifique essa ação, o bosque está se relacionando fora

das esferas de técnicas de racionalidade. Não se trata mais de crise ecológica, nem

tampouco da legislação de parcelamento de lotes, sucesso de algum outro bosque, ou

mesmo pra atender a comunidade do entorno daquele ambiente. Os motivos daquela

sociedade para utilização do bosque não são instrumentalizadas, o bosque então deixa

de ser um fim, e passa a ser um meio para as práticas. O fim seria agora a diversão, o

entorpecimento, satisfação e o acúmulo, ainda que se possa questionar, de bens. Se

antes a comunidade não fazia um uso efetivo do bosque, agora percebemos que através

do Grupo 2 existe um uso, se desenvolvem experiências, e essas devem agora ser

controladas; o bosque é de domínio público e como tal, seus usos devem ser moderados.

Mas estamos nos adiantando; localizamos um novo elemento de motivação da

criação do bosque e que está na contramão das razões técnicas, em nossa leitura. E se

tivéssemos de tipificá-lo, também não encontraríamos uma categoria de ação ideal

conforme a tipificação proposta por Weber e exposta na primeira parte deste trabalho.

Seria incoerente sem investigá-los, saber de suas motivações reais, sua percepção do

processo de mudança do bosque; como não os entrevistamos, na próxima seção,

descreveremos esse processo a partir da visão que tem deles o poder público. Em um

64

momento posterior, em um trabalho com outro enfoque, poderíamos adentrar nas

condições de vida desses moradores realocados, investigar quais suas impressões sobre

o programa e mesmo sobre o novo local para constituição de suas vivências.

4.1.3. Descrição dos usos do bosque pelo Grupo 2: outras motivações

Quando estas famílias vieram pra cá, a primeira coisa que as crianças

destas famílias fizeram, foi atravessar este belo campo (estendendo a palavra

belo) que tinha aqui (agora região da nova relocação) e ir brincar no lago

do bosque e isto foi muito complicado

Diretora do Departamento de Planejamento Urbano.

Com esta fala iniciamos nossa descrição das práticas do Grupo 2 no bosque.

Esta fala começa a lançar luz sobre essas práticas, e além disso, sobre as formas de

apreensão do que se fazia naquele ambiente por parte dos moradores do entorno do

bosque. Aqui pode-se perceber a forma como as crianças se relacionavam com o

bosque, mas será demonstrado ao longo da descrição que as crianças brincando no lago

constituem apensas um dos elementos de representação de uso do bosque por parte do

Grupo 2.

Até aqui, o leitor percebe que chamamos de Grupo 1, os moradores de alto

padrão que residem no entorno do bosque e que, denominamos Grupo 2, os moradores

que residem nas proximidades do bosque, no conjunto habitacional próximo ao bosque.

A primeira delas é mais fácil delimitar, ou seja, são somente os moradores do entorno

do bosque. Quanto a outra sociedade, esta delimitação apresenta um pouco mais de

dificuldades, ou seja, é à essas pessoas que na seção anterior o diretor do Departamento

de parques, praças e bosques se referiu ao mencionar as 634 famílias, e relacionar o

bosque como uma área abandonada, e que a partir da instalação delas naquele ambiente,

a polícia militar e a guarda municipal teriam mais problemas. Mas nosso Grupo 2, é

maior que isso. E são estas que aparecem na fala de abertura desta seção; onde antes era

um “belo campo” – segundo a caracterização da diretora do Departamento de

Planejamento Urbano –, que as crianças atravessavam para chegar ao bosque, é agora o

conjunto vizinho ao bosque. Isso quer dizer que existiam já outros conjuntos

habitacionais próximos àquele das 634 casas. Então existe uma noção temporal aqui que

não contemplamos; assim, para tomarmos uma posição, quando falarmos em Grupo 2,

estamos falando de todos esses moradores oriundos dos conjuntos habitacionais.

65

Imagem 7: Foto da área onde reside o Grupo 2

Fonte: Os autores

O desenvolvimento de transformação do bosque portanto extrapola a

implantação das casas populares. Podemos constatar essa informação também neste

relato:

As crianças estavam acostumadas a brincar nas cavas dos rios, sem regras

né, sem um comportamento muito civilizado como toda criança, então eles

não tinham trajes adequados, comportamentos adequados e realmente é... a

população que morava de frente pra aquela área que quando comprou achou

linda e maravilhosa tomou um choque, e foi realmente a forma de uso

totalmente inadequada. Primeiro que o lago não é pra banho. Imagina de um

dia para o outro, e nós fizemos a relocação em outubro de 1998, já é uma

época que começa a aquecer né, você imagina aquela criançada de beira de

rio, né, criada solta, porque é o modo de vida dessas famílias, uma relação

com o espaço totalmente diferente com aquele que está acostumado com a

cerquinha né? E houveram assim ‘N’ queixas, reclamações, foram muitos os

problemas, além do perigo porque não havia um controle do uso desse lago,

então a criançada tirava a roupa e se lançavam pra dentro d’água e os

vizinhos ficavam horrorizados (Diretora de planejamento urbano).

Podemos sintetizar várias passagens anteriores nesta última fala. Primeiro aqui

a noção de temporalidade está presente, ou seja, o Grupo 2, que foi retirada da beira de

rio e instalada nas proximidades do bosque desde 1998, começa a acessá-lo, com

comportamentos ditos inadequados e a partir disso o Grupo 1, que escolheu aquele

66

ambiente para residir, mobiliza o poder público para resolver aquilo que os

horrorizavam e assustavam. Segundo a diretora do Departamento de Planejamento

Urbano, isso provocou uma ligeira tensão na prefeitura, já que um grupo determinado

(Grupo 2) estava invadindo o pretenso espaço de outro grupo determinado (Grupo 1) e

se comportando de modo, julgado por eles, inadequado.

Mas infelizmente, desprovido de qualquer preconceito, o impacto que essa

população causou naquele pequeno laguinho, foi quase o do pisoteio do

gado na borda do lago. Porque foi tão intenso, tão imediato, e não estavam

preparados pra isso, então foi assim, além do choque sociocultural que era

esperado, e nós estamos passando isso da mesma maneira com esse novo

loteamento, não está sendo diferente, porque aquela população que está ali,

né, instalada, mora há quase 20 anos e acha que está numa condição

diferente, se enxerga diferente, está tendo dificuldade em conviver, não com

todos óbvio, mas com alguns desses novos moradores que não são assim

pessoas que tem o hábito da cidadania, da convivência coletiva e da

delimitação do espaço (Diretora do Departamento de Planejamento Urbano).

O que se pode observar aqui é que na interpretação da prefeitura, o Grupo 1,

estabelece uma relação de distinção a partir de suas convicções morais, em direção às

ações dos representantes do Grupo 2 que frequentam o bosque. Pedimos que o leitor

atente para a expressão ‘choque cultural’ utilizada pela diretora. Voltaremos a isso com

maior atenção na próxima seção do trabalho onde daremos voz aos membros do Grupo

1 por nós entrevistados. Por hora basta, assinalar que estes usos do Grupo 2, demandou

uma reação do Grupo 1, solicitando que o poder público interviesse no sentido de coibir

aquelas ações. Segundo o diretor do Departamento de parques, praças e bosques, “o

maior fiscal de qualquer órgão público são os moradores. Então eles viam aquilo lá,

ponto de droga na frente da casa deles, a molecada tomando banho numa água suja.

Então reclamação total né.” E conclui mencionando uma dada união do Grupo 1 com a

prefeitura: “aí se cria a comunidade junto com a prefeitura, junto com a secretaria, claro,

já sabiam que o terreno era da prefeitura, e eu acho que foi um ponto muito positivo

fazer aquele bosque ali” (diretor do Departamento de parques, praças e bosques).

Nesta seção foi possível perceber que esse novo elemento que se insere, o Grupo

2, não está presente em nenhum dos motivos apontados no início das descrições, pelo

menos não como uma forma de clara motivação de transformação do bosque - Talvez

essa seja a principal motivação e arriscaríamos dizer aqui que nossa maior descoberta,

ainda que muitas vezes não tenhamos moderado nossos valores. Antes de investigarmos

as apreensões do Grupo 1 sobre o Grupo 2, vamos ver como se deslocam as

racionalidades desde a transformação do bosque, a partir deste novo elemento; o Grupo

67

2 se firma como motivador da constituição do bosque, como representado através da

figura abaixo.

Figura 2: Síntese da constituição do bosque II

Fonte: Os autores.

4.2. Apreensões do Grupo 1 em relação ao Grupo 2

Nesta fase do texto, traremos as apreensões do Grupo 1 em relação ao bosque e

o Grupo 2. Optamos por apresentar as falas de um modo em que a descrição seja

realizada a partir de cada entrevistado. Assim, as entrevistas serão descritas aqui na

ordem em que foram realizadas. Posteriormente, no último capítulo deste trabalho,

analisaremos as falas integrando as motivações e percepções que são mobilizadas a

partir do bosque.

A primeira entrevista que fizemos, depois de caminhar em frente as 32 casas que

circundam o bosque, e tocar algumas campainhas, foi com uma mulher de meia idade e

sua filha, aluna do primeiro ano do curso de fisioterapia. Apesar de termos sido

convidados a entrar na casa, realizamos as entrevistas há poucos passos da porta da

entrada e em pé. Seguimos o roteiro de entrevista em anexo – o mesmo utilizado nos

departamentos da prefeitura. Na descrição identificaremos a mãe como Entrevistada 1 e

a filha como Entrevistada 2. Temos de entender que, ainda que as duas habitem na

mesma casa e tenham uma relação parental, podem ter usos e percepções distintas do

bosque.

Bosque

Poder público

Grupo 1

Grupo 2

68

Em um diálogo tenso entre pesquisador, proprietária e sua filha, a Entrevistada 2

disse não frequentar o bosque, e que somente seus pais fazem caminhadas diárias na

pista do bosque. Sobre a motivação do bosque, a Entrevistada 1 disse ter sido criado em

relação ao primeiro bosque. Segundo ela, o que motivou a criação do equipamento “é

que aqui na região não tinha área de lazer pra população, né. Então é isso que eu sei que

o prefeito, o pessoal lá que achava que tinha que ter mais área de lazer, e daí foi feito

aquele outro bosque, e depois esse” (Entrevistada 1). Novamente aparece aqui uma das

razões técnicas que apontamos no início desta parte, ou seja, c) a referência ao sucesso

do primeiro bosque do município. A Entrevistada 2 acrescenta que “nessa área aqui tava

meio perdida e aproveitaram pra ter área de lazer pras crianças. E normalmente escolas

trazem para fazer passeio. A guarda acompanha. Mais como área de lazer.” Ressaltamos

aqui que, em nossa compreensão, a utilização do bosque como área para passeio e lazer

das crianças, não é motivadora da constituição do bosque, e sim, uma alternativa ante

sua existência e disponibilidade.

Imagem 8: Pista de caminhada na mata nativa no interior do bosque

Fonte: Os autores.

Como já havíamos realizado as entrevistas nos departamentos da prefeitura,

resolvemos questionar sobre outra motivação de criação questionando sobre a segurança

69

do bosque antes da criação – esta questão surgiu após o aparecimento em nosso

horizonte do Grupo 2. A está noção de segurança, a Entrevistada 2 respondeu que

com certeza. Porque como era aberto essas casas aqui mais pro fundo, creio

que quase todas elas foram assaltadas, como era aberto eles escondiam ali

dentro do bosque e na hora que voltavam a noite aproveitavam para entrar

junto. Aconteceu isso algumas vezes. E de usar drogas e essas coisas sempre

tinha também (Entrevistada 2).

Aqui tornamos a perceber que a criação do bosque tinha relação com um tipo

determinado de uso que se fazia dele. Apreendemos novamente aquela motivação

descrita nas linhas acima, a partir das análises dos departamentos da prefeitura – e) os

usos que o Grupo 2 faz do bosque. Em relação com esses usos limites ou marginais,

podemos avançar na descrição apontando mais duas falas. Na primeira, após ser

questionada como estava o movimento no bosque a Entrevistada 1 disse que o

movimento de crianças aumentou bastante, mas que não havia problemas para ela.

Apesar disso, aponta saber de moradores que não compartilham deste pensamento. Para

ela, “[...] vem pessoas de longe aqui fazer caminhada, trazer as crianças pra brincar.

Mas tem moradores que aqui que não concordam com a chegada deles. Tem até

residências pra vender por conta disso...” A Entrevistada 2 concorda dizendo que “eles

acham que vai vir bandido, né. Mas, não é por que a casa deles é daquele jeito, que é

doada né... que vai ter só bandido. Aqui quem me garante que não tem? Então, isso não

quer dizer nada. É claro que deve ter, mas...” e a Entrevistada 1 conclui enfatizando:

Pessoas boas e más têm em qualquer lugar. Pessoas assim existem em

qualquer lugar. Então têm pessoas que falam meio discriminando assim, eu

acho que não é certo. Por que esse pessoal foi alocado pra cá porque

moravam em área de risco, em beiras de rios, né, ai por um programa do

governo eles trouxeram pra cá. Pra mim é indiferente eles ali. Não posso

dizer que depois que eles vieram mudou. A única coisa que tem é que a gente

ta acostumado com as pessoas que você vê, né. Ai esses dias comentei com

ela (apontando para a Entrevista 2) que tem bastante gente diferente

(Entrevistada 1).

Após este diálogo, agradecemos e deixamos a residência. A partir de então, não

tínhamos somente a noção da prefeitura sobre as formas de compreensão do Grupo 1.

Seus membros também localizavam entre si, pessoas que enxergavam nos

representantes do Grupo 2, um comportamento inadequado e que manifestavam a partir

disso, um sentimento de insegurança. Essa insegurança, minimizou muito a partir da

instalação da guarita da guarda municipal em tempo integral. A iluminação no interior e

70

a cerca que limita os extremos do bosque, também garante que as pessoas possam entrar

e sair de suas casas com menor temor.

A Entrevistada 3, nos recebeu na sala de sua casa, onde residem ela e o marido, e

permitiu que nos sentássemos no sofá. O casal reside ali desde 2013, data de

inauguração do bosque. Souberam da criação do bosque, antes da residência ficar pronta

e quando se mudaram, ficaram sabendo da construção do conjunto habitacional. Ligado

o gravador, realizamos a primeira questão do questionário, no intento de saber se ela

frequentou ou frequenta o bosque. Segundo ela, antes da transformação, as idas ao

bosque eram mais frequentes.

Olha como é interessante. Antes eu frequentei mais do que depois da

reforma. Porque você vê, era um lugar assim, não era um lugar feio, mas

não tinha nada de bom ali, apesar de a gente daí, como somos amigos ali da

(nome de uma das vizinhas) ai a gente aos domingos ficava ali, naquele

gramado, naquele morro, conversando, olhando algumas pessoas que

vinham ali também. Mas frequento. Claro, vou lá dou ama olhada, uma

caminhada. Mas pra você saber que bem curioso que eu me liguei agora que

eu frequentava mais antes (Entrevistada 3).

Percebe-se novamente aqui uma forma de uso do bosque por parte do Grupo 1.

Apesar de não ter se envolvido na transformação do bosque, a Entrevistada 3 relata que

o lugar era inseguro antes de ser concluída a construção. “Era muito inseguro. Os

moleques vinham a noite. Tinha drogas. E daí as pessoas ficavam inseguras aqui, não

sei, por preconceito, não sei... e era muito escuro antes da reforma aqui né.” E conclui

relembrando que “quando nós começamos a construir aqui, claro, minha casa né, lógico,

a gente tava animado. Mas pensava um pouco na segurança. Ficava um pouco

temeroso. Mas daí não né foi ótimo porque a gente sabia que ia melhorar tudo.”

Sobre a implantação do conjunto habitacional a entrevistada nos traz uma

perspectiva diferente:

Infelizmente eu também não gostei. Também acho que preconceito, com

certeza. Mas isso foi no começo lá, quando eles começaram a construir tudo.

Você fica assim já... mas depois eu fiquei sabendo que era pras pessoas que

eles iam trazer pra cá as pessoas necessitadas e tal da beira do rio, ai eu

fiquei mais tranquila. Ai passou aquilo. Num primeiro momento assim eu

quase que fiquei revoltada, sabe. Porque a gente vem morar aqui com tanto

sacrifício e eles... porque aqui eu considero um bom lugar pra morar, e daí

pra falar sinceramente com você vem essas pessoas vem assim de graça, né,

morar junto com a gente que... mas depois passou... foi passando, porque era

preciso fazer isso. Enfim tranquilo, hoje ta tudo bem, algumas pessoas já

estão ali (Entrevistada 3).

71

Pode-se perceber aqui que há uma noção clara de descontentamento que parece

ir de encontro às outras motivações, ou seja, com essas famílias viriam insegurança,

maus hábitos, drogas, etc. Mas ela pode ser extrapolada aqui. Como a Entrevistada 3

escolheu aquela região para morar, em conjunto com seu companheiro, ela achou

injusto compartilhar a mesma região, a mesma sensação; em nossa compreensão isso se

dá muito mais por um valor comercial da residência do que um privilégio de classe.

Essa noção classista pode ser interpretada em um outro momento do processo de

aquisição do imóvel, ou antes, na compra, ou em uma possível venda em razão daqueles

conjuntos estarem ou não ali instalados. Isso pode ser percebido na concepção de

sacrifício para conquistar aquela residência. O que queremos demonstrar aqui é que

reconhecemos nessa noção um teor de legitimidade, apesar da palavra preconceito

aparecer na fala da Entrevistada 3.

Talvez uma fala que demonstre que a noção de preconceito não pode ser tão

valorizada em nossa análise, esteja presente neste trecho: “Pra mim é muito bom né.

Acordo lá no meu quarto, na minha sacada, abro a janela e tenho essa visão (árvores do

bosque). Eu acho que eu fui privilegiada de vir morar aqui, na frente de um lugar desse”

(Entrevistada 3).

Essa impressão de privilégio pela região onde reside é compartilhada de um

modo geral por todos os entrevistados. Percebemos isso sobretudo quando

entrevistamos as entrevistadas 4 e 5. A Entrevista foi realizada na calçada em frente a

casa de uma delas – Entrevistada 5. Como essas duas moradoras residem há mais de 10

anos naquele local e viram todo o processo de transformação do loteamento, pode-se

apreender uma satisfação exacerbada para com o local; principalmente na contramão de

tudo o que foi relatado até aqui como um problema, como segurança por exemplo.

Essas categorias negativas apareceram de outro modo na fala das duas entrevistadas, e

que não é possível representar no texto – assinalamos aqui uma das dificuldades em

transmitir ao leitor a impressão exata do real através do texto escrito. A entrevistada 4,

relata sobre sua percepção do bosque:

Antes eu não frequentava porque antes tinha maloqueiro ai dentro. Antes de

fechar ai tinha drogado ai dentro e coisa e tinha. É claro, chamava a polícia

e eles vinham. Mas sempre tinha uns drogados ai no meio. Vinham usar

drogas ai dentro. Então as pessoas se cuidavam. Gerava um pouco de

insegurança porque eles não incomodavam a gente aqui. Foi aumentando

assim os moradores, e um ficava cuidando e quando viam já chamavam a

polícia e eles vinham, então, eu não posso me queixar desse lugar aqui

(Entrevistada 4).

72

Essa noção de insegurança com relação ao Grupo 2, está presente como já

dissemos em todas as falas, nesse sentido, os discursos entre poder público e Grupo 1

são coerentes. Da mesma forma como a relação com o ambiente de um modo geral,

tanto em termos valorativos quanto em termos econômicos. Como essas categorias

estão se repetindo na fala dos moradores do Grupo 1, vamos assinalar os detalhes, em

busca de novas categorias e apreensões. Por exemplo, sobre as impressões diretas acerca

não só do modo de se comportar no bosque – elemento de interação entre as duas

sociedades – do Grupo 2, mas também seu comportamento na transformação de

suas residências. Sobre a população do conjunto habitacional que foi implantado

próximo ao bosque, e portanto, próximo da comunidade do entorno do bosque,

obtivemos esta resposta da Entrevistada 4 “não posso dizer nada porque até agora não

incomodaram. Eu tava com medo né, mas graças a deus. A gente não sabia quem que

vinha pra cá. A gente só sabia que era turma da beirada do rio. Mas ali não é turma da

beira do rio. Pode ser que lá embaixo. Aqui em cima não é.” Em expressarmos surpresa

quanto a este último comentário, ela conclui dizendo que “[...] porque quem mora na

beirada do rio não tem móveis que nem eles têm ali. Carro zerinho tudo. (Risos) Você

passe ali pra ver o que eles têm (Entrevistada 4). A entrevistada 5 ratificava todas essas

falas, e nos deu uma pista importante sobre a reação do Grupo 1, sobre a ação do Grupo

2 no bosque:

A Lú (apelido de uma moradora) sempre brigava por esse bosque né. Mas só

que não deu tempo dela ver. Ela faleceu antes. Mas o pessoal antes sempre

foi muito unido em questão disso daqui. A gente fazia mutirão pra varrer o

bosque quando não era fechado aqui. Então a gente juntava todos os

vizinhos aqui e um varria, porque era muito carro ali, e era muito escondido,

então eles faziam de motel ali pra cima. Então a gente tinha que fazer sabe, o

recolhimento das..... então a gente pegava sacos e sacos... ela dali, nós

aqui... tudo se juntava um cortava a grama,... agora não né. Olhe que beleza

[...] (Entrevistada 5).

Para além da questão do mutirão, em que se estabelece a noção talvez de

pertencimento desta sociedade ao ambiente, há uma outra muito importante nessa

direção: havia uma moradora que fazia abaixo assinados, coletava assinaturas dos

moradores do Grupo 1 e encaminhava para a prefeitura. A partir desta informação

procuramos saber onde ela morava e se havia alguém da família que pudesse nos ajudar

na obtenção desses documentos. Conseguimos falar com seu marido, apresentados pela

Entrevistada 5, e este nos informou que teria de procurar mas que cederia os

73

documentos, já que para ele não faziam diferença. Nos colocamos a disposição e

retornamos algumas vezes mas não conseguimos obter esses documentos para anexar na

pesquisa. Tentamos também através da prefeitura, mas não obtivemos sucesso também

lá.

As apreensões do Entrevistado 6 – a entrevista também foi realizada em frente

da casa, na calçada, com o portão entreaberto –, seguem o mesmo modelo dos demais

entrevistados, incluindo a vinculação deste bosque com o primeiro bosque do município

e, a sensação de insegurança gerada pelos indivíduos do Grupo 2 naquele ambiente. No

entanto, através desta conversa, pudemos perceber pela primeira vez, o bosque como

sendo representante ou fragmento da Natureza. “[...] Eu gostava mais antes. Não tinha

essa ´muvuca´. Sábado e domingo fica cheio e tal né. Fica um monte de gente. Povão.

Nada contra, mas na verdade eu não curto assim muito. Eu gosto bastante da natureza,

mas eu vou longe assim.” Além dos outros elementos que se repetem constantemente

nas falas desses moradores, gostaríamos ainda um vez apresentar uma reação de

completa aversão ao Grupo 2, apreendida anteriormente na prefeitura: a criação de um

muro que garantisse a permanência da tranquilidade, civilidade e valorização do imóvel.

Eu achei que ia me incomodar mais. Achei que eram pessoas favela e tal.

Mas que eu notei desde que eles estão estabelecidos ali, tranquilo. Eu tenho

um conhecido que vendeu aqui e começou a “povo vamos vender que os

caras vão fazer um conjunto residencial ali atrás né” até eles queriam fechar

na verdade. Aquela passagem, eles queriam fechar ali atrás. Mas não é meu

estilo ficar fazendo essas associações ali, não tenho tempo (Entrevistado 6).

Aqui finalizamos a descrição da fala dos entrevistados e demonstramos ao longo

destas seções, como o Grupo 1, se impõe através do poder público ao Grupo 2. Mais do

que isso, chegamos ao final desta fase com o bosque deslocado de seu papel central, e

também de seu lugar de Natureza (não social). O deslocamento do papel central nas

relações se demonstra através das noções do Grupo 1, e suas menções a insegurança,

valor, civilidade, etc., pois, podemos conjecturar que se não fosse um bosque com

árvores, lago e trilhas, elementos que propiciaram a prática de comportamentos

inadequados, e sim qualquer outro empreendimento como um condomínio por exemplo,

os membros daquela sociedade, não sentiriam insegurança. Também é possível

conjecturar que, mantida a constituição inicial do bosque, e as práticas fossem voltadas

para execução de esportes ou dinâmicas artísticas, por exemplo, da mesma forma a

sensação de insegurança não seria um problema essencial, e a preocupação

74

possivelmente seria outra, ou seja, a centralidade está na ação, e não no bosque

enquanto tal. O bosque é deslocado de seu papel central.

Figura 3: Síntese da constituição do bosque III

Fonte: Os autores.

Este texto pretendeu demonstrar, no encontro da teoria mobilizada e o exercício

do trabalho empírico apresentados nas páginas anteriores, a forma como entendemos

como deve ser compreendido um trabalho científico. Nesse sentido, assumimos a

interpretação dos dados analisados. Vale ressaltar que o conceito de ação nesse texto

deve ser compreendido como um movimento do indivíduo, que envolve a ação de

outros e que envolve constantemente a reflexividade. Por fim, importa dizer que é

indispensável para a compreensão do sentido da ação, a compreensão de seus motivos,

seu ponto de partida, ou seja, suas razões.

Se soubemos conduzir o leitor na nossa percepção de quais foram as motivações

de constituição do bosque, concordaremos que as principais foram estas que

relacionamos: a) o contexto atual de crise ecológica; b) a lei de parcelamento de lotes;

c) a referência ao sucesso do primeiro bosque do município, d) a criação do bosque em

uma relação com o padrão das residências do entorno e por fim, e) os usos que o Grupo

2 fazia do bosque.

Poder público

Grupo 1

Grupo 2

Bosque

75

Pôde-se perceber que alocamos no capítulo anterior as quatro primeiras às razões

técnicas, mas temos de fazer uma distinção entre elas. As duas primeiras dizem respeito

a um conhecimento perito no sentido que Giddens (1990; 2002; 2009) aponta como uma

característica da modernidade radicalizada. O contexto de crise ecológica (note-se que

entendemos que a crise ecológica é um dos fatores da crise ambiental) a despeito de

algumas controvérsias, tornou-se uma definição comum quando sentimos mais calor no

verão ou mais frio que o ano anterior no inverno – no momento em que escrevemos

estas linhas, os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, aqui no Brasil, sofrem com a

falta de água nos reservatórios e a questão é permeada de controvérsias: é uma questão

política, científica, divina? Ao mesmo tempo no leste europeu, o exército da Rússia

disfarçado nos caminhões da ONU, invadiu a Ucrânia para contenção de rebeldes

separatistas ucranianos; novamente, é uma questão política, científica, divina?.

Este ‘conhecimento’ de crise ecológica em vários momentos pode servir de

motivação para algumas decisões pautadas por um argumento científico. No caso do

bosque isso foi demonstrado, e bastaria como uma razão sine qua non para justificar a

transformação especificamente daquele espaço em bosque, tendo em vista que não se

trata de uma região comercial ou industrial, e possivelmente não seria oferecido acordo

econômico para alguma possível empresa. Estamos pensando que o mesmo espaço em

uma região comercial, o argumento de crise ecológica não seria válido; também, como

foi demonstrado ao longo do texto, o Grupo 1 não apresentou argumentos relativos a

natureza, e sim, às ameaças comportamentais exercidas pelo Grupo 2. Como já

dissemos, parece-nos que do ponto de vista dos moradores do entorno do bosque, um

empreendimento que oferecesse iluminação e segurança à conservação de suas práticas

cotidianas (e de suas personalidades), seria de fato uma solução.

A segunda motivação localizada no texto foi a lei de parcelamento de lotes, em

que, a construtora responsável por aquele loteamento, teve de conceder 35% do

loteamento para o município, para construção de ruas, instalação de equipamentos para

iluminação e saneamento, e, a construção de algum espaço que dê retorno à

comunidade, que pode ser um posto de saúde, uma creche ou escola, uma praça, etc.. O

bosque foi a opção da prefeitura. Muito provavelmente por haver uma nascente no

terreno e que exigiria um trabalho de contenção maior que a solução encontrada de

canalizar a água para o lago artificial, por exemplo. Essa é uma razão técnica não pelo

fato da lei, e sim, pelo trabalho de engenharia que foi ali realizado. Também por não

76

derivar de nenhuma paixão ou motivação subjetiva; é federal a lei 6.766/79 de

parcelamentos.

Numa relação muito estrita com a legislação de parcelamento, a referência ao

primeiro bosque demonstra a reflexividade do poder público, que percebeu nele a saída

de lazer para a população daquele pequeno município, que antes passava os finais de

semana nos parques de Curitiba (PR). Se pode perceber assim que lazer e saúde são

motivadores essenciais para a permanência dos habitantes no município. A quarta

motivação da mesma forma – a construção do bosque em relação ao padrão das casas do

entorno –, apesar de ter aparecido em somente uma das entrevistas, também pode ser

considerada como razão técnica, num sentido reflexivo de adequação estética, que por

sua vez, implica em valorização dos imóveis do entorno do equipamento urbano.

Das razões que exploramos neste texto, a tensão entre os dois grupos em relação

àquele ambiente, foi o que permitiu que desenvolvêssemos a tese de que o ambiente não

pode ser desconsiderado de qualquer análise da teoria da ação social. A partir das

pressões do Grupo 1 ao poder público, decidiu-se construir aquele equipamento;

lembramos que tais demandas eram provenientes de uma insatisfação do

comportamentos ou usos que o Grupo 2 fazia do bosque. Isso nos leva a refletir que,

não é possível dizer que as ações de um grupo determinado, são dependentes somente

das interações e do momento histórico. Desde a confecção deste trabalho, percebemos

que o ambiente físico e cultural, é fundamental no curso das ações dos indivíduos; seria

pensar que sem a existência do bosque, o Grupo 2 não existiria, e tampouco uma

motivação reflexiva de segurança que atravessou as preocupações do Grupo 1,

resultando naquele equipamento assim como ele está.

Temos de lembrar, o que estamos chamando de grupo, de modo algum refere-se

a uma reunião social duradoura e que se movimenta com as mesmas motivações por

conta de compartilhar um mesmo espaço social. Estamos chamando de grupo essa

organização que ocorreu para a constituição do bosque, ou seja, pessoas de um mesmo

espaço social que num dado momento se organizaram para obter mais segurança; essa é

a primeira questão a ser ressaltada. A segunda questão, é que, ainda que esse

movimento tenha existido e que tenham sido elaborados abaixo-assinados para

constituir o bosque, as motivações eram distintas. Apesar de termos em todo momento

tipificado a motivação orientadora como segurança, por ter aparecido em quase todas as

entrevistas, acreditamos que as motivações de quem tem filhos que frequentavam o

bosque, foram distintas dos que não tinham, e, ainda, aqueles que tinham um sistema de

77

proteção individual como portões altos, cercas elétricas e alarme, certamente não tinham

as mesmas razões, dos que não tinham. Isso demonstra que a reflexividade não pode ser

entendida de modo geral, social, senão que de modo individual, desde as experiências

subjetivas.

78

Quadro de conceitos:

Ação Conjunto de movimentos ou atos do indivíduo que

envolve sempre a análise da reação de outros,

tanto na sua aceitação quanto na recusa.

Ambiente Espaço material onde se dão as relações entre os

indivíduos, e destes com o mundo.

Ciência Forma de conhecimento do mundo (ou de um

mundo) passível de interpretação subjetiva.

Compreensão Uma evidência qualquer, a partir dos instrumentos

investigativos propostos pelo pesquisador,

considerando também as imperfeições do conjunto

da análise, uma vez que a evidência não pode

pretender ser advinda de uma interpretação causal

válida, porque depende exclusivamente da

interpretação do observador.

Grupo Organização de indivíduos num espaço (podendo

este ser virtual) e momento determinados.

Intenção

Cálculo que o indivíduo faz para realização da

ação da forma por ele planejada.

Interpretação Algo localizado entre a observação da ação de um

agente humano específico ou de vários agentes, e a

compreensão especificamente obtida da ação.

Motivação Ponto de partida ou razão da ação individual.

Natureza não social Ver ambiente.

Natureza social Ver ambiente.

Reflexividade Experiências acumuladas pelos indivíduos, sempre

reestruturadas a partir dos novos conhecimentos, e

que são acessadas em cada ação.

Risco Dúvida característica da modernidade, que

atravessa todo o cotidiano e todas as ações dos

indivíduos.

Fonte: Os autores.

79

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ação e experiência se aplicam a todas as dimensões do viver.

A reflexão, própria do ser humano, apoia-se na linguagem

que contém o mundo, pelo fazer de alguém em particular e em algum lugar.

Dimas Floriani, 2010.

Como foi dito na introdução deste texto nossa proposta inicial era investigar

desde as contribuições do clássico alemão Max Weber até as reflexões pós-

estruturalistas do mexicano Enrique Leff, as racionalidades ambientais envolvidas na

constituição do bosque pesquisado. Com esse intento elaboramos todo o enredo do

trabalho e fomos surpreendidos igualmente tanto com essa participação do Grupo 2 na

constituição do bosque, quanto no deslocamento do mesmo do papel central – enquanto

objetificado –, fazendo parte, enquanto relação, do contexto da ação.

É claro que isto nos levou a se aproximar e a reler alguns autores que defendem

esta tese – ainda que por vias diferentes – como Gregory Bateson, Bruno Latour,

Humberto Maturana e Francisco Varela, e outros que ainda precisamos ler mais como,

Tim Ingold ou mesmo Isabelle Stengers, etc. Então o leitor deve se perguntar a razão de

não termos mobilizado antes aqui esta discussão e estes enfoques. Ora, seria

irresponsabilidade de nossa parte se desde o início pretendêssemos construir uma

discussão marginalizada ante a teoria sociológica sem antes compreendê-la, em seu

momento, suas derivações, suas nuances.

É claro que fizemos uma escolha e, dentro dela, outras escolhas. Partimos de

Max Weber, e utilizamos o Weber heterodoxo e tributário da escola historicista. O

mesmo foi feito com Giddens, fomos quase cirúrgicos. Então tecer este trabalho assim

como aqui o apresentamos, pode parecer dado ao volume uma negligência acadêmica.

Preferimos correr este risco dado à extensão de nosso exercício, do que à profundidade

da teoria.

Mas quando falamos desse caminho teórico, de Weber a Giddens, já estamos nos

referindo a este trabalho que se centrou nas motivações e não naquele que se referia às

racionalidades. No entanto, ainda que o objetivo tivesse sido localizar quais

racionalidades estavam envolvidas naquela constituição, o leitor pôde ver que nossa

hipótese central, depois de haver realizado o trabalho de campo, permaneceu a mesma:

que o ambiente não pode ser desconsiderado na análise da ação social. E percebemos

isso pela essência do bosque enquanto um representante da natureza, pela sua forma

material, pela nossa constatação a partir das entrevistas, de que o bosque poderia ser

80

substituído por outra coisa desde que, em troca, lhes proporcionasse segurança.

Sobretudo, percebemos que o bosque esteve presente no conjunto das ações,

provocando as ações, as reações as intenções e as motivações; o bosque deve ser

compreendido na nossa leitura enquanto relação.

Nesse sentido, o exercício de confecção deste trabalho envolveu um processo de

construção que apresenta desde a teoria sociológica clássica até a contemporânea, a não

separação entre natureza e cultura, a dualidade ou recursividade das ações entre

indivíduo e sociedade e, a inserção do ambiente na análise do conjunto da ação.

Procuramos na descrição do texto manter essa vigilância epistemológica.

Com essa vigilância apresentamos no primeiro momento do trabalho, uma breve

revisão do círculo hermenêutico de Weber no intento de demonstrar como cultura e

natureza não podem ser compreendidas de modo distinto já que seus limites não são

passíveis de estabelecimento. Dessa forma, um trabalho científico pode mobilizar tanto

os recursos das ciências naturais quanto os recursos das ciências humanas ou do

espírito, para interpretação de seu objeto. Ainda do mesmo círculo intelectual,

apreendemos que os acontecimentos históricos bem como as ações individuais não

podem ser compreendidos senão a partir das múltiplas experiências que fizeram parte da

trajetória do intérprete.

Como segundo momento do texto, procuramos demonstrar como não podemos

entender a ação centrada apenas no indivíduo ou, de modo contrário, apenas na

sociedade. Isso quer dizer, não entendemos uma distinção indivíduo-sociedade no

processo que exprime o conjunto da ação. A dualidade ou recursividade da estrutura

deve ser considerada no processo. Em outras palavras, as linhas anteriores descrevem

um movimento que apresentou um conjunto de ações individuais, realizadas em

interação pelo Grupo 1 (e também pelo Grupo 2, por outro lado) e que foram motivadas

essencialmente pelas questões descritas no texto ( a) o contexto atual de crise ecológica;

b) a lei de parcelamento de lotes; c) a referência ao sucesso do primeiro bosque do

município, d) a criação do bosque em uma relação com o padrão das residências do

entorno e, e) os usos que o Grupo 2 fazia do bosque).

O leitor percebe que essas motivações envolvem a comunidade do entorno do

bosque e também os membros da prefeitura que concederam a entrevista. Nesse caso

estamos estabelecendo aqui uma espécie de tipos ideais de motivação que foram

estabelecidos a partir do contato com o campo e que nos ajuda a refletir e a responder

nossos objetivos com esta pesquisa. Mas isso não é tudo.

81

Se perseguirmos o dualismo e a reflexividade que discutimos em Weber e

Giddens, estas motivações deixam de existir em sua simplificação típica. Se refletirmos

um momento, elas servem somente para interpretação e compreensão do real, mas de

uma parte deste real que podemos alcançar somente ante nossa interpretação, desde

nosso lugar. A motivação individual profunda não se pode alcançar, mas somente supor

desde o conjunto de ações que se assomaram para constituição do bosque, assim como

nos ensina Ricoeur (2009) apresentado na epígrafe de abertura deste trabalho. E, no

entanto, há uma parte deste eu individual que realiza a experiência socialmente, que

aprende com e pela sociedade, e este é o outro polo da estrutura dual.

A experiência com o mundo social (leve-se em conta aqui o ambiente) é

fundamental e determinante na constituição do indivíduo e esse é o lugar de onde ele se

vê refletido. Isto está presente na noção de risco, desta dúvida constante que por vezes

atormenta, mas que em geral é despercebida no conjunto de atos que compõe a ação. E a

isso muito diz o lugar deste indivíduo no mundo, a experiência que experenciou

(emprestando a expressão fenomenológica). Assim que, quando Giddens (1990; 2009)

fala da reflexividade ou do risco, e Weber (1991; 1995) reflete sobre a ação e relação

social, estão aí implicados não um componente em uníssono social, em que se baseiam

as ações individuais, mas onde cada indivíduo ou sujeito reage a partir das experiências

por ele realizadas. Estamos nos repetindo, mas dito de outra forma, cada um acessa os

conhecimentos que tem ao beber uma xícara de café pela manhã ou em qualquer outro

momento... o risco é social mas sua importância é subjetiva.

Dentro desta perspectiva dualista da ação temos ainda mais uma vez que reforçar

como consideramos então os grupos (1 e 2) neste trabalho. Tendo exposto que a ação é

recursiva dentro do movimento reflexivo entre indivíduo e sociedade, não seria possível

ser compreendido que, o que chamamos de Grupo 1 e Grupo 2 fosse lido com um tecido

perene. Além das motivações entre os indivíduos divergirem a partir de cada

experiência subjetiva, pode se afirmar ainda que o modo como usamos o termo grupo

não quer ilustrar um coletivo de indivíduos (atores) que comungam dos mesmos ideais.

No momento de reivindicação de constituição do bosque – e é uma pena não termos tido

acesso aos documentos que foram assinados pelo Grupo 1 e enviados à prefeitura do

município – os moradores do entorno ratificaram uns aos outros quanto as motivações e

validaram um documento que os representava. A partir disso, a causa os motivava, o

que estava lá contido nos documentos (abaixo-assinado) validava suas motivações. Só a

82

partir disso se pode afirmar que, mesmo em termos aproximados, que as motivações

eram as que descrevemos na parte II deste texto.

De modo que hoje muito provavelmente, uma vez o bosque lá constituído, outras

demandas surgiram, e o que antes era um grupo hoje foi reformulado, não fazendo mais

sentido para nós pesquisadores e para o leitor que nos acompanha chamar os mesmos

entrevistados de grupo. Assim vale dizer, não houve grupo, houve uma formação de

grupo como dissemos no final do capítulo 4 nos referindo às noções de Bruno Latour

(2012).

O leitor percebe que neste trabalho nos dedicamos a interpretar as motivações

que deram origem a constituição do bosque, apresentamos as motivações da

comunidade do entorno e também do poder público ante as noções que viemos até aqui

discutindo. Mas vale rascunhar aqui o que deixamos de discutir no texto. Importa ainda

se perguntar: e as motivações do Grupo 2? Bem, do modo como entendemos, a

motivação é uma razão, um ponto de partida da ação que move os indivíduos em seus

ideais; é um disparador. Na constituição do bosque eles não tinham motivação já que

não foram consultados quanto à transformação do espaço; de certa forma aquele espaço

tornou-se o que é, contra eles – ainda que individualmente exista a possibilidade de que

membros do Grupo 2 desejassem tal mudança.

Mas o caso é que os membros do Grupo 2 foram reféns das mudanças por assim

dizer. Se compreendemos corretamente o conceito de intenção como um cálculo para

que a ação se realize como planejado, podemos então supor que frente ao bosque esses

indivíduos tinham a intenção de realizar as atividades (como uso de drogas, nadar no

‘lago’, namorar, etc.) que serviram, entre outras, de motivação para os moradores do

entorno constituírem o que na nossa representação é o Grupo 1, e demandar ao poder

público a alteração do espaço.

Entretanto, à proposta deste texto, a investigação do trabalho de campo fez

surgir uma hipótese a qual não esperávamos quando da confecção de seu projeto e que

se tornou central em nossa análise como já foi dito: o desvelamento da atuação (da

agência, diria Giddens) do ambiente no conjunto da ação. O leitor acompanhou neste

texto que, enquanto perseguíamos as motivações de constituição do bosque, ocorria um

deslocamento de seu papel central, ou seja, de seu lugar de objeto no centro de uma

disputa silenciosa, fria.

Pôde-se constatar que enquanto percorríamos as motivações de constituição do

bosque, entrevistando a prefeitura do município e os moradores mais próximos àquele

83

equipamento urbano, encontramos uma motivação na qual nos debruçamos com maior

atenção: o comportamento de um grupo de indivíduos no bosque, ou mais precisamente,

diante da casa das pessoas que residem em frente a ele.

Esta motivação de transformação do espaço apareceu tanto na prefeitura quanto

nos moradores do entorno, e em consequência, fez com que obtivéssemos duas

apreensões que nos fizeram atentar para este novo lugar do bosque em nossa pesquisa.

A primeira razão adveio da percepção de que o ambiente (bosque) é o principal

motivador das ações dos dois grupos em relação a sua existência. Assim que o bosque é

algo em si nas relações que provocaram sua transformação. As relações em torno dele

têm muito de reflexividade da ação já que aquela experiência (que envolvem as

intenções e motivações das ações) somente é possível por meio da existência do bosque.

O bosque deixa de ser cenário, insurge como ator na relação.

Na contramão deste primeiro deslocamento identificamos que o bosque –

enquanto representante da natureza (desta natureza não social) –, em razão de ter sido

motivado essencialmente por uma noção de segurança, de acordo com nossa leitura da

fala dos entrevistados, poderia ser convertido em qualquer outro empreendimento, desde

que oferecesse segurança aos moradores. Esta segurança é física, de proteção da família

e das coisas do cotidiano, ou seja, de uma ecologia diferente daquela que pede a

conservação do solo, das árvores e das nascentes, como fontes de manutenção e

conservação da vida. O bosque deixa de representar a natureza; iluminado e cercado

representa agora segurança.

O leitor pode ver aonde chegamos; se estivemos distinguindo a todo o momento

natureza social e natureza não social, e as reunimos dentro disso que estamos chamando

de ambiente no texto, em uma conotação – que acreditamos! – de que não há separação

entre estas duas naturezas, nos colocamos uma armadilha da qual não podemos sair:

utilizamos em nossa segunda razão de deslocamento do bosque, a justificativa de que o

mesmo deixa de ser um representante da natureza. Não encontramos outra saída senão

reforçar aqui, que estabelecemos uma distinção utilizando o argumento dos

entrevistados e usamos esta apreensão para compreender as motivações. Dentro deste

quadro, a primeira motivação (contexto de crise ecológica) deixa de ter significado em

si, já que aquela conservação tinha outro fim.

Quando se inicia um trabalho científico, tateando no escuro, algumas questões

desconfortam, trazem insegurança. Esse desconforto deixa o pesquisador sem saber ao

certo quais ‘armas levar para a batalha’. Nos preparamos com o conhecimento de

84

mundo que tínhamos e com a teoria que julgamos melhor para a temática. Por essa

razão não nos dedicamos a discutir o conceito de natureza nesta pesquisa, já que esta

questão esteve alheia aos objetivos deste. A tese de que o ambiente não pode escapar

das análises surgiu deste exercício teórico. Fica aqui, portanto, o compromisso de

avançar nesta questão para que em trabalhos posteriores possamos nos dedicar a ela

com maior clareza.

Esperamos ter cumprido o objetivo de nossa proposta nesta dissertação. Por

certo que a investigação poderia ter sido mais longa e o que de certa forma encerra os

esforços de uma pesquisa são ou o desamor pelo texto (como ensinou Foucault), ou seus

prazos. Nos localizamos nesta última razão, e isso de algum modo é positivo já que se

não existissem os prazos muito provavelmente uma análise como esta só seria entregue

depois de anos de dedicação. Não necessariamente no cumprimento do objetivo central

do texto – investigar as motivações da constituição do bosque – mas na defesa disso que

surgiu como hipótese desde a construção do trabalho, de que o ambiente não pode ser

objetificado na análise da ação dos indivíduos.

85

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87

APÊNDICE

APÊNDICE 1 – Roteiro da entrevista

88

APÊNDICE 1

Questionário:

1) Você frequentou ou frequenta o bosque?

2) Você sabe o que motivou a criação do bosque?

3) Houve participação dos moradores nessa criação? De que forma?

4) Sobre o processo de criação, havia algo planejado que não se concretizou? (mais

saúde, mais estrutura, etc...)

5) Como era o espaço antes? Quem frequentava?

6) E hoje, qual sua opinião sobre o espaço? Quem frequenta hoje?

7) Na sua opinião, falta algo ainda no bosque? Algo precisa ser mudado?