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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE HISTÓRIA
A POLENTA COMO FORMA DE EXPRESSÃO DA CULTURA POPULAR ITALIANA
CURITIBA 2006
GIOVANNA PIFFAR
A POLENTA COMO FORMA DE EXPRESSÃO DA CULTURA POPULAR ITALIANA
Monografia apresentada como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos.
CURITIBA 2006
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AGRADECIMENTOS
A DEUS, por me permitir chegar até aqui. Ao Professor Carlos Roberto Antunes dos Santos, orientador deste trabalho que, além de contribuir significativamente para a sua realização, acreditou em minhas possibilidades, incentivando-me a sempre prosseguir. Agradeço a minha mãe Marianna e ao meu pai Giovanni (in memorian) por sempre apontarem os caminhos a seguir, sendo o meu porto seguro de afeto e amor. À Professora Maria Luiza Andreazza pelas valiosas sugestões apresentadas. As minhas colegas de graduação Erica, Iara, que proporcionaram momentos de troca de saberes, diálogo e aprendizagem. Ao meu amigo Paulo pela compreensão e apoio ao desenvolvimento deste trabalho. A minha família, por toda a consideração e partilhas. De modo especial aos meus cunhados Belmiro e Rubens por disponibilizar incondicionalmente seus conhecimentos de informática, não importando o horário ou o cansaço físico. Ao meu irmão Roberto, pelo seu amor fraternal e solidariedade em todos os momentos. À Lúcia, amiga especial, pelo carinho, atenção, incentivo e cumplicidade. A minha grande amiga Glare (in memorian) minha eterna gratidão, pelo seu carinho, incentivo, generosidade, parceria em muitos momentos. A Associação do Comércio e Indústria de Santa Felicidade, em especial para Beth pela sua cooperação, doçura, delicadeza. Aos descendentes de italianos com quem pude conversar enquanto escrevia este trabalho. Aos organizadores das Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango, em especial ao Tito cuja colaboração foi indispensável no decorrer do trabalho. Finalmente agradeço ao meu amigo Pedrinho Culpi, grande divulgador da cultura italiana, pelas inestimáveis contribuições que enriqueceram este trabalho e tudo mais que não caberia neste trabalho.
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Mérica Mérica Mérica
Cosa sarala sta Mérica
Mérica Mérica Mérica
L'é um bel mazzolino de fior
(Gruppo Folklorístico “Campagni Trentini”)
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SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS............................................................................................................. V
CAPÍTULO I – HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO............................................................10 1.1 HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO ................................................................................10 1.2 ALIMENTO – CÓDIGO SIMBÓLICO.........................................................................12
CAPÍTULO II – MEMÓRIA ................................................................................................17 2.1 HISTÓRIA ORAL .........................................................................................................17 2.2 MEMÓRIAS QUE SE ENTRELAÇAM........................................................................20
CAPÍTULO III – A IMIGRAÇÂO ITALIANA DO VÊNETO.........................................30 3.1 O VÊNETO ....................................................................................................................30 3.2 A IMIGRAÇÃO ITALIANA NO PARANÁ .................................................................33 3.3 A COLÔNIA DE SANTA FELICIDADE .....................................................................36
CAPÍTULO IV – POLENTA: UM LAÇO DE CULTURA ...............................................40 4.1 HISTÓRIA DA POLENTA ...........................................................................................40 4.2 A POLENTA DE SANTA FELICIDADE .....................................................................46 4.3 A POLENTA INVADE O ESPAÇO PÚBLICO ............................................................51 4.4 CONSTRUINDO O UNIVERSO SIMBÓLICO............................................................57 4.5 FESTAS DA UVA E DO VINHO, POLENTA E FRANGO - INSTRUMENTO DE
LEGITIMAÇÃO............................................................................................................60
CONCLUSÃO.........................................................................................................................79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................84
ANEXO....................................................................................................................................89 ANEXO 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTAS...........................................................................89
v
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – QUADRO “LA POLENTA” ...............................................................................44
FIGURA 2 – CONFECÇÃO DA POLENTA NO ANTIGO “FOCOLARE”...........................63
FIGURA 3 – VOLUNTÁRIOS NA POLENTERA DESPEJANDO A FARINHA DE
MILHO NO TACHO GIGANTE .............................................................................................65
FIGURA 4 – VOLUNTÁRIOS PREPARANDO A POLENTA COM A MÊSCOLA.............65
FIGURA 5 – VOLUNTÁRIOS MOVIMENTAM A MÊSCOLA NO INTERIOR DO
TACHO GIGANTE..................................................................................................................66
FIGURA 6 – FUNCIONÁRIO DO RESTAURANTE MADALOSSO TRABALHANDO
A POLENTA ............................................................................................................................68
FIGURA 7 – A POLENTA SENDO DERRAMADA SOBRE O PANARO............................70
FIGURA 8 – VOLUNTÁRIO PASSANDO “LA PALETA” SOBRE A POLENTA..............70
FIGURA 9 – DISPOSIÇÃO DOS PANAROS .........................................................................71
FIGURA 10 – CONVITE DA FESTA DO FRANGO, POLENTA E VINHO .........................72
FIGURA 11 – A POLENTA SENDO DERRAMADA SOBRE O PANARO GIGANTE .......72
FIGURA 12 – PASSANDO “LA PALETA” SOBRE A POLENTA GIGANTE .....................73
FIGURA 13 – DESPEJANDO O MOLHO À BOLONHESA SOBRE A
POLENTA GIGANTE .............................................................................................................74
FIGURA 14 – MEMBROS DO GRUPO FOLCLÓRICO ÍTALO-BRASILEIRO
SALPICAM O QUEIJO RALADO SOBRE A POLENTA......................................................74
FIGURA 15 – MÁQUINA DE CORTAR POLENTA .............................................................76
FIGURA 16 – GRUPO VOCAL I VENETI IN BRASILE .........................................................76
6
INTRODUÇÃO
O presente trabalho “A Polenta como forma de expressão da cultura popular
italiana”, começou a ser pensado e construído a partir do momento em que fazendo a
matrícula para a disciplina de Tópicos Especiais de História e Cultura da Alimentação,
ministrada pelo professor Carlos Roberto Antunes dos Santos, fiquei curiosa, como aluna do
curso de História, em saber que havia uma disciplina que abordava outras áreas do
conhecimento científico. A perspectiva de trabalhar com aspectos mais qualitativos deu
abertura para iniciar a minha pesquisa. Devo considerar também o meu fascínio pelo tema que
envolve aspectos pessoais, pois que sou descendente de italianos e procuro resgatar as minhas
raízes.
Partindo do pressuposto que alimento e comida são categorias históricas e que um
alimento, ao se transformar em comida, revela a identidade étnica de um grupo, a minha
pesquisa foi conduzida. Assim, os hábitos alimentares e o gosto alimentar são condicionados
pela sociedade em que vivemos, estão enraizados na identidade social da espécie humana, são
transmitidos culturalmente. O alimento constitui-se em um dos elementos fixadores da
identidade étnica, uma categoria histórica. A comida assume seu valor simbólico diante dos
hábitos alimentares, que fomentam identidades.
A partir desta perspectiva, escolheu-se como delimitação espacial deste trabalho o
bairro italiano de Santa Felicidade localizado na cidade de Curitiba, antiga colônia italiana
apresenta, ainda hoje, em sua maior parte, uma população homogênea constituída por
descendentes de imigrantes italianos provenientes do Norte da Itália, em especial da região do
Vêneto. Tendo na cultura gastronômica um dos elementos essenciais para a manutenção de
suas tradições.
Para o imigrante italiano a família, a fé, o trabalho e a alimentação eram os princípios
fundamentais aceitos, mantidos pelo grupo e transmitidos de uma geração para outra. Através
dessa análise, optou-se investigar a comida italiana, destacando-se, como objeto desta
pesquisa, um prato da gastronomia italiana do Bairro de Santa Felicidade – a polenta –
presente ainda hoje nos ambientes familiares, em restaurantes que servem a típica comida do
imigrante e nas festas típicas do Bairro de Santa Felicidade, que são as Festas da Uva e do
Vinho, Polenta e Frango. Portanto, a identidade dos descendentes de imigrantes italianos
vênetos é dada pela memória social, tendo na tradição alimentar sua herança cultural. É
através da memória que se resgata a memória gustativa de um grupo étnico.
O objetivo geral deste estudo foi o de verificar de que maneira os descendentes de
7
italianos vênetos se apropriam de um elemento gastronômico como forma de expressão da
cultura popular italiana. O período de análise compreende os anos de 1940 a 2006.
Para a sua execução buscou-se, inicialmente, elaborar um referencial teórico sobre a
História da Alimentação com o intuito de: discutir como algumas culturas imprimem caráter
simbólico para determinados alimentos; compreender como a memória coletiva manifesta a
tradição culinária de um determinado grupo étnico; considerar o processo de imigração
italiana para a província do Paraná, notadamente no contexto da grande imigração, final do
século XIX; e entender a reconstrução da identidade étnica dos descendentes de italianos
vênetos manifestada através da valorização de sua culinária étnica.
As obras do Prof° Carlos Roberto Antunes dos Santos serviram de alicerce para a
construção desta pesquisa. Destacando o seu trabalho “História da Alimentação no Paraná”, o
autor aponta que os padrões de mudança dos hábitos alimentares têm referência na própria
dinâmica imposta pela sociedade, com ritmos diferenciados em função do grau de aceleração
na base do desenvolvimento. Em seu artigo Por uma história da Alimentação, observa-se a
relevância da interdisciplinaridade da micro-história e o florescer da memória gustativa. Na
revista História: Questões e Debates, n. 42, de 2005, o autor apresenta um dossiê sobre a
História da Alimentação, expondo diversos estudos realizados sobre a História da
Alimentação em várias universidades brasileiras, e apresentando, ainda, trabalhos que estão
em andamento, demonstrando a importância da História da Alimentação para o estudo da
História.
Os trabalhos da Profª Altiva Pilatti Balhana em muito contribuíram para a realização
deste trabalho, destacando-se, de forma especial, a obra “Santa Felicidade: um processo de
assimilação”. A autora identifica a polenta como alimento principal no cotidiano do imigrante
italiano recém chegado ao Paraná e ainda presente nas refeições diárias de seus descendentes.
Utilizamos como metodologia a História Oral através de entrevistas gravadas,
conforme Anexo I. Foram realizadas 15 entrevistas gravadas, abertas, sendo os entrevistados
descendentes de italianos, homens e mulheres residentes no Bairro de Santa Felicidade entre
donas de casa, aposentados, contador, professor, agricultor, profissionais autônomos, clérigos,
organizadores de festas e proprietários de restaurantes, inseridos na faixa etária entre 30-75
anos, representando a segunda e terceira geração de descendentes italianos. Como observador
participante, acompanhei eventos, que são as festas típicas realizadas no Bairro de Santa
Felicidade, observando todo o ritual dos voluntários no preparo da polenta, quando foram
realizadas entrevistas gravadas com os organizadores da festa, abordando o preparo da
polenta.
8
Foram usadas fontes de imprensa apoiadas teoricamente na História da Alimentação.
Na pesquisa histórica realizou-se consulta na historiografia paranaense, bem como em outras
bibliografias que permitiram contextualizar a identidade italiana.
Para facilitar a apresentação e discussão do tema em questão, o trabalho foi dividido
em quatro capítulos. No primeiro capítulo trato do referencial teórico acerca da História da
Alimentação, evidenciando o seu caráter simbólico e de construção de identidades. Refletindo
a importância da comida e dos alimentos enquanto categorias históricas, carregadas de
significados simbólicos, indo além dos seus nutrientes. Nesse sentido, analiso como algumas
culturas imprimiram caráter simbólico para o alimento, transformando-o em objeto ritual.
No segundo capítulo parto do conceito de memória coletiva proposto por Maurice
Halbwachs, acentuando como um alimento pode se tornar símbolo de identidade de um
determinado grupo. É através dos depoimentos colhidos dos descendentes de italianos de
Santa Felicidade que procurei resgatar a sua história, tendo como objeto de estudo a polenta,
por entender que a comida é o alimento valorizado por uma cultura e por uma sociedade.
Suscitar a memória dos descendentes de italianos é resgatar as suas lembranças através da
história oral, reconstruindo o passado histórico diante do presente. A transmissão cultural
entre gerações tem na família seu elemento transmissor; é o papel da mulher dentro da
culinária, este repassar do conhecimento culinário de mãe para filha pelo processo de
repetição, o que confirma a importância do sexo feminino na preservação de uma tradição.
No terceiro capítulo descrevo o processo da imigração italiana no Paraná a partir do
final do século XIX, colocando a situação e os motivos que levaram estes imigrantes italianos
a vir para o Brasil. Contextualizo o cenário paranaense partindo do projeto de formação de
campesinato, analisando a formação da Colônia de Santa Felicidade e sua transformação em
bairro turístico, tendo na gastronomia seu elemento principal. Privilegiando a polenta, que foi
o alimento básico dos imigrantes italianos vênetos tanto na Itália, em tempos de privação,
como quando chegados ao Paraná, fazendo parte do cotidiano de Santa Felicidade como um
prato próprio das classes rurais italianas.
No quarto capítulo abordo a questão da reconstrução da identidade social dos
descendentes de italianos de Santa Felicidade, utilizando-me do conceito de identidade
contrastiva de Roberto Cardoso de Oliveira, que a coloca como primordial para a afirmação
de um determinado grupo em relação a outros grupos. A reconstrução da identidade é
constantemente reafirmada pelos descendentes italianos através de seus rituais locais, que são
as festas típicas do bairro - como a Festa da Uva e a Festa do Vinho, Polenta e Frango -, assim
como através de seus restaurantes típicos italianos, que transformam o alimento do passado
9
em símbolo de italianidade, enfocando-se, aqui, a polenta, que era identificada como comida
de carestia, saindo do privado e invadindo o público.
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CAPÍTULO I – HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO
1.1 HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO
O tema da alimentação, nos últimos anos, tem sido objeto de pesquisa de muitas
áreas do conhecimento, ocupando um espaço próprio na contemporaneidade.
A partir do momento que o homem aprendeu a cozinhar seu próprio alimento, estava
se diferenciando dos outros animais. A busca por alimentos, seu cultivo e preparação,
associados a rituais e costumes e o prazer à mesa demonstram que o comer não estava
relacionado somente ao saciar a fome: representava também um feito social e cultural.
Nenhum alimento que consumimos é neutro.
Homem e alimento, uma ligação carregada de historicidade, que inscreve o tema da
alimentação na História, amplia seus horizontes ao receber em seu seio a História da
Alimentação, oferecendo a ela o suporte necessário para o seu desenvolvimento, dando-lhe
personalidade própria. Portanto, ao longo dos últimos anos a História da Alimentação vem
ocupando o seu espaço na História, vencendo barreiras políticas e ideológicas e certas
negligências, buscando, enfim, a sua integração.
Ao situar-se no interior da micro-história, a História da Alimentação apreende vários
ângulos da cultura humana, não se restringindo somente aos aspectos biológicos, fisiológicos
e clínicos. Nesse sentido, os aspectos econômicos, sociais, psicológicos, culturais também
fazem parte da História da Alimentação, demonstrando a importância do estudo da
alimentação para a História, servindo como elo de integração desta disciplina com outros
ramos do saber e abrindo um leque de opções ao interagir com as demais áreas do
conhecimento científico. A História da Alimentação é produto da nova História, ainda que a
alimentação, durante certo tempo e assim como as práticas alimentares, estivesse nos
domínios da Antropologia e da Sociologia.
A micro-história nasce na década de 1980, embora suas raízes sejam respostas às
discussões historiográficas surgidas na década de 1970. Foi através de Lucien Febvre e Marc
Bloch, em seus estudos na década de 1920, que a história inicia uma nova caminhada.
Combatiam a história dedicada aos acontecimentos, ao cenário político, se fechando em si
mesma.
Conforme alerta Ronaldo Vainfas, em “Domínios da História”,1 a nova história
1 VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org). Domínios da história: Ensaio de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
11
buscava ser problematizadora do social e o diálogo com as demais ciências. É importante
ressaltar que foi através de Fernand Braudel que a História da Alimentação adquiriu
identidade própria dentro da pesquisa histórica.
Foi Braudel (apud SANTOS, 2005) um dos primeiros a trabalhar o conceito de
cultura material, apoiado nos estudos de Febvre sobre o consumo de gorduras no território
francês (manteiga, azeite e banha), direcionando seus estudos para a área da comida,
habitação e vestuário. A contribuição de Braudel para a História da Alimentação foi de
privilegiar o tempo longo entre o meio e sociedade, sendo o passado reflexo desse, alargando
os estudos contemporâneos sobre a alimentação.
Em 1974, com a publicação da coletânea “Faire de l'Historie”, a História se abre
para novos paradigmas. Nessa coletânea, organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, o
artigo intitulado “As Mentalidades – Uma História Ambígua”, de Le Goff, é visto por
Vainfas2 como uma verdadeira declaração da Nova História, fundamentando seus direitos,
reivindicando para a Nova História a existência simultânea de diversos tipos de história, ou
seja, oposição à história que se propunha dona da verdade, propondo o que seria mais tarde a
micro-história. Assim, a micro-história se difere da história das mentalidades por ter surgido
na Itália, não se prendendo à totalidade, à contextualização sistemática. As mudanças
históricas, ao serem analisadas dentro de suas estruturas sociais, demonstram que as estruturas
sociais maiores se refletem através de estruturas sociais menores.
“A micro-história, embora ofereça contornos bem delimitados, abre-se para
processos sociais bastante amplos. Diz respeito à quase tudo o que se atém às relações entre
sujeito e sociedade: relações de gênero, ciclos vitais, condições de vida, estudos de gerações,
história das organizações familiares, religiosidades, formação das classes sociais, culturas
populares, eruditas – em movimento no tempo3”.
É a narrativa que fornece o suporte necessário para que a micro-história possa
trabalhar com suas fontes. Portanto, a micro-história é um gênero próprio de narrativa e de
fazer história.
Vainfas, em sua abordagem sobre a micro-história, cita Roger Chartier “que seu
objeto não reside nas estruturas e mecanismos que regem fora de todo subjetivismo, as
relações sociais, mas sim nas racionalidades e estratégias que põem em funcionamento as
2 Op. cit. VANIFAS, 1997. 3 DIAS, Maria Odila Silva. Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto História: trabalhos da memória. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de Historia da USP. São Paulo. n. 17, novembro 1998. p. 237-238.
12
comunidades, as famílias, os indivíduos”.4 Busca contato com outras áreas do saber, criando
relações multidisciplinares e interdisciplinares.
Foi com os historiadores Jean Paul Aron e Jean Louis Flandrin que a História da
Alimentação se inseriu no interior da micro-história. “Deslocam o foco da história em
migalhas para o comer e para aquele que come. Por meio desses novos paradigmas, os
ensinamentos dos Annales, a comida deveria ser levada a sério pelos historiadores”.5 Essa
busca incessante de novas perspectivas para a história, novas visões, faz surgir a História
Oral, importante instrumento metodológico para o historiador, que vincula o historiador ao
sujeitos da história.
1.2 ALIMENTO – CÓDIGO SIMBÓLICO
A relação homem/alimento permite trabalharmos o homem inserido em determinada
cultura, classe social e econômica, evidenciando que o alimento traz consigo um código
simbólico que organiza a produção econômica e as relações sociais dos mais diversos grupos.
Desta maneira, o valor econômico de um alimento é submetido ao seu valor social, ou seja, a
prática alimentar revela a classe de quem o consome. O consumo alimentar tem características
materiais e sociais, revelando que a natureza dos agrupamentos sociais carrega
simbolicamente os modos alimentares de uma sociedade. Assim, a prática alimentar revela o
imaginário e a história da sociedade.
Compreende-se que as práticas alimentares refletem as estruturas do cotidiano; são,
portanto, carregadas de historicidade. Não podemos entender a formação política, econômica,
social, cultural de uma sociedade sem a contribuição da História da Alimentação. Os estudos
de alimentação demonstram como esta deve ocupar o seu lugar na História, sendo um
exemplo literário a obra do historiador Carlos Roberto Antunes dos Santos, intitulado
“História da Alimentação”:
A História da Alimentação, ocupando o seu lugar na História, busca estudar as preferências alimentares, a significação simbólica dos alimentos, as proibições dietéticas e religiosas, os hábitos culinários, a etiqueta e o comportamento à mesa e, de maneira geral, as relações que a alimentação mantém em cada sociedade com os mitos, a cultura e as estruturas sociais, ao sabor dos processos históricos.
6
4 Op cit. VAINFAS, 1997. 5 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. História da alimentação. História: questões & debates. Curitiba, ano 22, n. 42, jan/jun. 2005. p. 14. 6 Ibid. p. 20-21.
13
Partindo da cultura gastronômica podemos observar as relações sociais que se
estabelecem consciente ou inconscientemente entre grupos sociais pertencentes ou não à
mesma sociedade. As diferentes relações sociais demonstram as diversas formas de
sociabilidade, como também a exclusão social. A historicidade da sensibilidade gastronômica,
para Santos7 “explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de
uma época e que marcaram uma época. Neste sentido, o que se come é tão importante quanto
quando se come, onde se come, como se come e com quem se come”. Esse é o lugar da
alimentação na História.
É importante aqui pensarmos que os padrões alimentares são determinados pelas
regras sociais que influenciam no ato de consumir ou não certos alimentos, evidenciando a
sua preparação para o consumo, onde padrões alimentares demonstram seu caráter simbólico.
Lembrando que o ser humano tem o livre arbítrio para mudar seus hábitos e que qualquer
sistema cultural é sempre contínuo, recebendo transformações constantes. Assim, entende-se
que existem fundamentos culturais que permeiam nossos hábitos alimentares.
A comida tem seu papel dual ao revelar o ato de alimentar-se, assim como para
indicar e fixar identidades pessoais e grupais; simboliza a linguagem de uma identidade
social. Identidade social e grupo social são elementos fundamentais para o processo de
identificação. O ser humano busca a sua identificação através da cultura. Para Pertti J. Pelto8:
Cultura é a palavra que usamos para rotular “algo” que foi acrescentado e que explica as grandes diferenças de comportamento entre o homem e os outros animais. A cultura significa, com freqüência, simplesmente a “herança social” de um determinado grupo de pessoas. A herança social não é uma “coisa” que seja transferida intacta, de geração a geração. Toda geração nova remodela e modifica os sistemas de idéias, significados e regras, de modo que a tradição social jamais é fixa e imutável, em nenhuma sociedade.
De maneira similar, Da Matta9 coloca que a palavra cultura “exprime precisamente
um estilo, um modo, um jeito de fazer coisa”. Assim, membros de determinado grupo
partilham um sistema simbólico. A cultura necessita de símbolos para a sua perpetuação e
para entender o significado de um símbolo precisamos compreender a cultura que o criou. O
valor que é dado a certos alimentos envolve diferenças culturais, mas os processos naturais
que ocorrem em todos os alimentos são universais, como o cru e o cozido, que são processos
que colaboram para as transformações sociais. Para Da Matta, o cru refere-se ao que está fora
7 Op cit.12-13. 8 PELTO, J. Pertti. Iniciação ao estudo da antropologia. 5ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 84. 9 DA MATTA, Roberto. O que faz do Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984. p. 17.
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de casa, onde podemos escolher o que comer, um estado de selvageria. O cozido representa a
ocasião, as relações sociais, o momento de celebração. Esses dois processos de elaboração
demonstram as particularidades de uma sociedade, o sentimento de pertencimento a ela.
O regime alimentar de um povo explica seus hábitos, suas condutas, seus tabus. De
acordo com Renato Ortiz10, o consumo de alimentos é delineado por normas particulares que
representam a natureza de agrupamentos sociais. A comida reflete simbolicamente as
permanências e rupturas de uma sociedade. A preservação de certos costumes atua como
fonte de significados culturais, de identificação frente às demais culturas. É nos hábitos
alimentares de uma sociedade que encontramos a sua representação.
Assim, a carne de vaca é proibida aos hindus, pois representa animal sagrado, sendo
um tabu a ingestão de sua carne. A vaca representa ancestral de um espírito sagrado,
simboliza o princípio de reencarnação. Porém, não há impedimento ao consumo de seu leite,
que é considerado um alimento precioso, que protege a vida de quem o bebe. Do mesmo
modo que a carne de porco é proibida aos muçulmanos e judeus, embora para muitas pessoas
a sua ingestão esteja associada à sujeira. O consumo de carne está relacionado, em várias
culturas, com a religião. Outro aspecto é relacionar a carne com o sexo, uma vez que ela
representa a “continuidade entre carne animal e carne humana. A carne pode despertar apetite
ou excitação, mas continua sendo carne”.11
Para a culinária francesa, rãs e escargots são considerados pratos finos, mas para
muitos chega a causar repugnância. Para determinados grupos orientais da China e da Coréia
do Sul, carne de cachorro é uma iguaria. Determinadas raças são criadas em fazendas para
este fim. Para nós, brasileiros, essa carne não é comestível, pois o cachorro representa um
animal de estimação. Outro animal que para nós é considerado animal de estimação é o gato;
porém, para os chineses, é fonte de carne e esses animais são utilizados também na preparação
de poções medicinais, misturando a sua carne e pele a temperos.
Cada grupo tem a sua própria linguagem, seus costumes e a cultura lhes atribui
significados. As cozinhas orientais possuem um grau de ritualização significativo, sendo um
código de símbolos partilhados pelos membros da mesma cultura. Para a cerimônia do chá, o
chanoyuy, os orientais se vestem com trajes apropriados, usam louças e utensílios especiais e
o procedimento segue todo um ritual que leva à calma e à paz.
Outro exemplo oriental é o preparo do sushi, que envolve gestos e técnicas especiais
10 ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000. 11 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. Por uma história da alimentação. História: questões & debates.. Curitiba, ano 14, n. 26/27, dez. 1997. p. 159.
15
como, por exemplo, a mão que pega o arroz para modular ou a rapidez de corte, tornando o
prato carregado de simbolismo. O preparo do baiacu, uma espécie de peixe cuja carne é
considerada venenosa, requer todo um cuidado especial ao prepará-lo. Sua carne não deve
conter o veneno que pode levar à morte; portanto, prepará-lo significa afastar a morte de
quem o ingere, significa a vida sempre ameaçada sendo, assim, um prato bastante
representativo.
Nesse sentido, entender como algumas culturas imprimem caráter simbólico para o
alimento é analisá-lo revestido de simbologia e, portanto, se transforma em objeto ritual.
Como destaca Ariovaldo Franco12:
Existe íntima relação entre alimento e crenças religiosas. Os alimentos e bebidas são adotados pelos ritos de uma religião bem, como a proibição de alguns deles, refletem a geografia e a cultura do território onde ela se originou. [...] O alimento sempre esteve associado de maneira íntima a comemorações e é, muitas vezes, parte essencial de seus ritos.
Nas antigas crenças egípcias era costume colocar no interior dos túmulos certos
alimentos, a fim de garantir a sobrevivência dos mortos em outras vidas. Outro exemplo da
preocupação em alimentar os mortos durante sua passagem para uma outra vida é
representado pelos chineses, que costumam depositar uma tigela de arroz cozido aos pés do
morto, fazendo o mesmo durante o Ano Novo, quando colocam uma tigela de arroz no altar
no interior de suas casas para seus antepassados, pedindo proteção. Em vida, o arroz
representa a própria vida e a fertilidade.
Em Bali existe a crença da alma dos arrozais, sendo construídos pequenos templos
para as cerimônias religiosas. Os terraços de arrozais de Bali e Banau, na Indonésia e nas
Filipinas traduzem a sua cultura, com rituais e costumes perpetuados pelo arroz. O ciclo do
arroz, desde o seu plantio até a colheita, simboliza o ciclo da vida, da renovação.
Importante citar o sal como elemento simbólico nas culturas mediterrâneas, que era
usado para a conservação dos alimentos e se transformou, com o advento do cristianismo, em
símbolo de renovação. Na religião católica, durante muito tempo foi usado na cerimônia do
batismo.
O milho, para as culturas ameríndias, representa o grão divino. Pela sua facilidade de
adaptação, ganhou grande popularidade entre os continentes. Nas culturas ameríndias o milho
não era usado para alimentar os animais por ser considerado planta dos deuses. Os mexicanos,
12 FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. 2ed. São Paulo: Senac, 2001. p. 26.
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ainda hoje, não comercializam o milho, pois fazê-lo, na cultura mexicana, significa “vender a
si próprio”.
Para os italianos do Norte da Itália, o milho representou o alimento quotidiano,
transformando-se em um prato de origem milenar, a polenta, que assumiu um significado de
comida de penúria e como comida presente em grandes banquetes. Prepará-la exige todo um
ritual. Como poderiam os vênetos viver sem este precioso cereal?
O alimento constitui-se em uma categoria histórica, representa trocas alimentares,
símbolos partilhados pelos membros de uma mesma cultura através de formas particulares de
cultura, e não de uma cultura homogênea.
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CAPÍTULO II – MEMÓRIA
2.1 HISTÓRIA ORAL
O que é a História Oral? A História Oral pode receber vários termos peculiares,
como Inquérito Oral, ou Fontes ou Memórias Orais. No entanto, História Oral é um método
de trabalho de grande importância para a pesquisa histórica. Através dela podemos
compreender melhor as representações, significados de indivíduos, grupos ou sociedades.
Janaína Ferreira Amado13 coloca a história oral como inovadora pelos seus:
Objetos, pois dá atenção especial aos “dominados”, aos silenciosos e aos excluídos da história (mulheres, proletários, marginais, etc) à história do cotidiano e da vida privada, [...]. Em segundo lugar seria inovadora por suas abordagens que dão preferência a uma “história vista de baixo”, atenta às maneiras de ver e sentir. E que às estruturas “objetivas” e às determinações coletivas prefere as visões subjetivas e os percursos individuais numa perspectiva decididamente “micro-história”.
De acordo com Joan Del Alcázar Garrido14, a História deve trabalhar com os
aspectos estruturais e superestruturais, com o habitual, o diário da vida dos sujeitos da história
que são os homens e mulheres. Para ele, não devemos falar em história oral, mas em fontes
orais, porque para fazer história fazemos uso das fontes orais. As fontes orais também são
fontes documentais, fazendo o entrelaçamento do historiador aos protagonistas da história.
Entender a história oral simplesmente como registro histórico é negar-lhe a primazia
de envolver novas fontes para a pesquisa histórica através de depoimentos orais, o que implica
a utilização de regras metodológicas que possibilitem a constituição do trabalho dentro dos
princípios fundamentais dos preceitos científicos e metodológicos. Assim, para Amado e
Ferreira15 “fazer história oral significa, portanto, produzir conhecimentos históricos,
científicos, e não simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experiência”.
Garrido, em sua obra “As Fontes Orais na Pesquisa Histórica”, corrobora as
informações apresentadas por Amado e Ferreira, citando Paul Thompson, que fala das fontes
orais e seu sentido humano, entendendo-as como portadoras da “democratização da própria
história e da vitalidade de uma história que devolve às pessoas seu próprio passado com suas
próprias palavras, reafirmando-lhe um protagonismo que haviam perdido em benefício de uns
13 AMADO, Janaína Ferreira. Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. 5ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 04. 14 GARRIDO, Joan Del Alcázar. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/MARCO ZERO. v. 25/26, set. 1992/ago. 1993. p. 33. 15 Op. cit. AMADO, 2002. p. 17.
18
poucos.”16
As fontes orais, além de possibilitar que novos sujeitos façam parte da edificação do
discurso histórico, nos levam para novas abordagens, situando a importância de colocações
até então passadas despercebidas, incompletas, desarticuladas.
Para Heródoto, ver e ouvir podiam ser considerados fontes. Durante o período
Medieval, cronistas utilizavam os testemunhos orais, em especial para a narração de milagres.
No fim da Era Moderna, devido ao grande número de documentos escritos e à função
legitimadora dos Estados, a memória escrita ganha espaço, atrelado à invenção da imprensa,
ao crescimento no índice de alfabetizados e da cultura letrada, sendo a fonte escrita, os
documentos, considerados como eixo da contemporaneidade.
O Positivismo e o Cientismo oitocentistas delegam aos documentos escritos a
veracidade do passado, ficando oral para a Antropologia, mais especificamente para a
Etnologia. A partir do século XX, investigadores norte-americanos utilizam inquéritos nas
populações de imigrantes polacos. É o ressurgimento da oralidade, que tem nos seus
percussores a preocupação com o estudo do quotidiano, pelo progresso dos estudos sobre a
compreensão antropológica da história e sobre a discussão em torno da legitimidade das
fontes escritas que também podiam, como as fontes orais, serem questionadas quanto à sua
validade. Foi o desenvolvimento das técnicas de registro magnético, de gravadores de som e
de imagem que possibilitou à história oral novas técnicas de abordagem. Na década de 1970
surgem as primeiras revistas temáticas, divulgando o trabalho realizado com testemunhos
orais e legitimando o uso do método para a História.
O uso de fonte oral como registro histórico sempre foi e continua sendo discutido,
gerando controvérsias entre os historiadores. Para muitos estudiosos o depoimento oral só é
válido quando ganha sua acepção em comparação com o documento escrito. De acordo com
Thompson17, esse tipo de problema “pode vir a acontecer em qualquer tipo de fonte, seja
escrita, oral ou visual, e que é necessário um criterioso treinamento do historiador para que ele
possa ler e interpretar suas fontes convenientemente”.
É o quotidiano passado, condizente ou não por fenômenos históricos que ganha
significação diante da história oral. Assim são abordados temas de características especiais,
como a alimentação popular. Os testemunhos orais também são fontes suscetíveis a erros e
desvirtuações, mas o testemunho oral dá ao passado a sua representação, fazendo com que o
presente assuma a sua significação.
16 Op cit. GARRIDO, 1993. p. 152. 17 THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 69.
19
A história oral busca a recuperação e reapropriação do passado; assim, podemos
entender como um alimento popular ganha maior significado no interior de determinado
grupo ou sociedade, seu código simbólico. Portanto, os hábitos alimentares permeiam a
identidade social. Nesse sentido, para Santos18:
Os padrões de mudanças dos hábitos alimentares têm referenciais na própria dinâmica imposta pela sociedade, com ritmos diferenciados em função do grau de aceleração na busca de seu desenvolvimento. Á medida que uma sociedade se desenvolve, as novas condições de hábitos e de consumo alimentares adquirem maior significado e transformação vinculada ao estilo de vida.
Os imigrantes italianos vênetos do Bairro de Santa Felicidade, ao valorizar um prato,
a polenta, estão buscando recuperar a identidade social do grupo.
A história oral é uma metodologia que se diferencia das demais fontes orais. Aqui,
os depoimentos coletados não são simplesmente narrativas, uma vez que existe todo o
desenvolvimento de um trabalho histórico com técnicas específicas, que nos leva à
reconstrução de épocas passadas, a entender a construção de experiências individuais e
grupais, resgatando memórias individuais e coletivas.
Reconstruindo o passado a partir do presente, neste estudo buscou-se, através dos
depoimentos, entender o significado de um prato - a polenta – para os descendentes de
italianos do Bairro de Santa Felicidade, suscitando suas lembranças, utilizando-se, para isso,
de entrevistas gravadas. As pessoas selecionadas para as entrevistas estão inseridas em faixa
etária entre 30-75 anos, representando a segunda e terceira geração. A opção por tais sujeitos
da pesquisa fundamentou-se no pressuposto que estas auxiliariam o desenvolvimento do
estudo com seus depoimentos, trazendo informações sobre o objeto pesquisado.
Como entender o valor que os descendentes de imigrantes vênetos atribuem à
polenta, sem as fontes orais? Assim, as principais fontes deste trabalho foram as entrevistas,
as quais me possibilitaram reconstruir o passado histórico a partir do presente.
As fontes orais não podem ser vistas como somatória de entrevistas independentes
entre si. Deve-se analisar o conjunto, para que se compreenda o seu real significado.
Ao fazer uso desta metodologia, buscamos entender a tradição dos descendentes de
italianos vênetos de comer a polenta, hábito que se mantém seja no ambiente doméstico, nas
festas típicas ou nos restaurantes típicos do Bairro de Santa Felicidade, pressupondo uma
forma de identificação e reafirmação de sua identidade étnica.
18 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. História da alimentação no Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. p. 123.
20
Neste contexto, a história oral tornou-se fundamental para a análise do verdadeiro
significado da polenta para os descendentes de italianos vênetos.
2.2 MEMÓRIAS QUE SE ENTRELAÇAM
Para construção de identidades e reafirmação de um grupo frente aos demais, a
memória constitui-se em um elemento primordial. É através da maneira pela qual se realiza a
memorização que podemos reconstruir, manter e redefinir identidades individuais ou
coletivas, um processo sucessivo.
As tradições culturais, hábitos e costumes de um grupo nos levam à organização
social da memória. Nesse sentido, a alimentação também é memória, pois está ligada ao odor,
ao sabor, ao paladar, ao sentir.
“A polenta fica quarenta minutos, uma hora no fogão é o ponto dela. Qual é o ponto:
o nariz, o olfato. Começa a soltar as bolhas de vapor com aquele cheirinho que está pronta”
(A T., proprietário de restaurantes de Santa Felicidade).
A alimentação se apropria da memória para que esta nos possibilite sentir e
compreender tradições que não são faladas, mas que revelam a cultura de um povo. A
memória é essencial para a construção da identidade individual e coletiva, denotando a
importância da escolha desta metodologia para o desenvolvimento do presente trabalho.
Ecléa Bosi, em sua obra “Memória e Sociedade: lembrança de velhos”, cita o
trabalho de Henri Bergson, “Matière et Mémoire”19, onde o autor analisa a questão da
memória, atribuindo à ela a função de mantenedora do passado. O passado reside em nosso
inconsciente e a memória é alimentada pelo presente através da lembrança ou sobrevive por si
só, em estado inconsciente. Para Bosi20, Bergson coloca a questão da memória em um
patamar espiritual: “O método introspectivo conduz a uma reflexão sobre a memória em si
mesma, como subjetividade livre e conservação espiritual do passado, sem que lhe parecesse
pertinente fazer intervir quadros condicionantes de teor social ou cultural”.
Bergson não trabalha com a memória dos sujeitos que se inter-relacionam, a sua
relação com o objeto que foi lembrado, bloqueando o curso da memória. Para ele, a
subjetividade é o espírito ligado à memória e a exterioridade que é a matéria ligada à
percepção.
19 A sua primeira edição saiu em 1896. 20 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. p. 16.
21
A teoria psicosocial de Maurice Halbwachs, herdeiro da sociologia francesa, vem
preencher essa lacuna deixada por Bérgson, ao trabalhar a memória apenas com elementos
psicológicos e espirituais. Halbwachs, estudioso de Emile Durkheim, para quem os fatos
sociais são representados pelos indivíduos em seus comportamentos externos, com forte poder
coercitivo, o social agiria sobre o individual. Halbwachs aprofunda suas pesquisas sobre a
abordagem durkheimiana de fatos sociais, onde o “eixo das investigações sobre a "psique” e o
“espírito” se deslocam para as funções que as representações e idéias dos homens exercem no
interior do seu grupo e da sociedade em geral”21. Estuda a memória como quadros sociais,
onde as funções positivas que a memória exerce de fortalecer a coesão social, através de laços
de afetos que dão ao grupo essa concordância afetiva, chamando de comunidade afetiva.
Assim, existem duas memórias: a individual, que abriga as lembranças particulares
que são somente suas e, por ser individual, não permite decompor o passado; e a memória
coletiva, que é essencialmente social, formada de memórias individuais. A memória leva ao
grupo, à uma interação com o mundo que nos relacionamos. A memória individual, para
sobreviver, necessita da memória coletiva. O ser humano busca interagir com os demais
grupos e instituições, e é dentro deste processo que a lembrança cria suas raízes. Assim, a
lembrança é o fio condutor desta relação sujeito e grupo, não deixando de considerar o espaço
que o sujeito ocupa no grupo e suas relações.
Para Halbwachs, o fato do ser humano buscar sempre viver em grupo faz com que as
lembranças possam ser reconstruídas ou representadas através da compreensão de outros. “A
lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no
conjunto de representações que povoam nossa consciência atual” 22.
Interessante notar que, em sua maioria, os entrevistados evocam recordações
relacionadas ao moinho, às pedras para moagem, à textura do fubá, demonstrando a
importância da transformação do milho em fubá para fazer a polenta. O milho que era
plantado por eles necessitava passar por este processo para servir de alimento, o alimento do
cotidiano. São significados presentes na memória coletivas do grupo.
“As famílias que moravam levava este milho para moer nessas pedras que eram
tocadas a base de água. Aquela roda ia rodando, moendo o milho e caindo aquele pozinho.
Aquele pozinho era a farinha do milho, com ela se fazia a polenta” (H. C., descendente de
imigrantes italianos vênetos).
21 Op. cit. BOSI, 1979. p. 16. 22 Ibid. p. 17.
22
O meu sonho é ter um moinho, mas não um moinho mecânico, comum, mas de pedra. A pedra dá um sabor especial a farinha, ela esquenta a farinha. São duas pedras, uma fixa e outra que rola. Então ela rola e esmaga o milho, esmaga mais que corta. Os moinhos mecânicos cortam mais a farinha e tiram o bom do milho, toda casca, todo o amido e deixam só a parte dura do milho. Com a pedra ela aproveita parte da casca, todo o amido e esquenta o milho e faz a farinha esmagando. É mais trabalhoso, mas é muito gostosa a polenta feita deste milho. Eu comprei as pedras e estão aqui guardadas, existe pedra feita para isso, são pedras redondas muito grandes. Essas pedras têm o formato de uma roda e são muito pesadas e grossas. Pesa mais ou menos meio quilo, ela é feita como roda e de um furo no meio e a parte interna é toda estriada, onde o milho entra e é esmagado, esquenta o milho. A farinha sai tão quente que não se pode segurar na mão na hora. Aquela vai dar um sabor especial. (M. C., descendente de italiano). A primeira preocupação destes imigrantes foi construir o seu primeiro moinho, porque o milho deveria ser moído para se tornar fubá e então começou o primeiro moinho em Santa Felicidade, era o moinho de um alemão Weigert, foi um dos primeiros moinhos italianos de posse da produção do milho. Mandavam moer e com isso obtinham o seu fubá para se fazer a polenta e outros derivados do milho também. Depois foi o Boscardin que foi o segundo moinho construído pela família destes Boscardin, vêneto também, que inclusive esta lá de pé o moinho construído da D. Carolina, Casa dos Gerânios, lá nos fundos também uma parte do moinho que pertenceu a Nicolau Boscardin. Depois vieram os Manosso, outras famílias que também tiveram os seus moinhos. (P. J. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
Assim, a memória coletiva se apropria de lembranças pessoais, acaba fazendo uma
nova disposição dessas lembranças. A nível grupal, os componentes deste grupo têm um
passado em comum e interesses coletivos. Percebe-se que Halbwachs acaba enfatizando o
papel individual da memória em relação ao indivíduo como ser único com sua própria história
de vida; embora as lembranças necessitem de outras para sobreviver, estão guardadas no
inconsciente do ser humano, conferindo a cada ser humano seu significado próprio.
O entrelaçamento da memória coletiva com a memória individual ocorre quando não
deixamos de pertencer a um grupo e que também não deixamos de concordar com suas
memórias e que “haja suficientes pontes de contato entre ela e os outros para que a lembrança
que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum”.23
Quando deixamos de pertencer a esse grupo, as lembranças tendem a se apagar em
nossa memória. Isso nos permite compreender a memória coletiva como espaço de tradição,
uma vez que ela é alimentada pelo grupo. Cabe salientar que a memória é seletiva, o que leva
o grupo a selecionar suas lembranças. Enquanto sobrevive o grupo, a tradição permanece;
quando isso não mais ocorre, a unidade é desfeita e o passado deixa de pertencer a todos os
membros do grupo.
O sentimento de pertencimento ao grupo está relacionado com a vivência de
23 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. p. 12.
23
elementos culturais importantes para o grupo naquele momento e com a forma como esse
grupo participa desta cultura compartilhada. Os descendentes de italianos vênetos do Bairro
de Santa Felicidade estão enraizados neste sentimento de pertencer ao grupo que conserva
heranças do passado, as quais são perpetuadas nos rituais locais. Assumem seu próprio
referencial, ou seja, envolve todo o simbolismo da memória coletiva, dando continuidade à
tradição e passando até mesmo a se identificarem a si próprios como italianos.
A memória coletiva se transforma em elo que prende este grupo para que haja
continuidade e manutenção social através da tradição.
É a própria comunidade desde fim do século XIX, principio do XX, 1900 e pouco é que começaram as tradições religiosas que não deixa de ser também tradições culturais, porque junto com a religião vem a cultura do povo e ai destaca-se então o cultivo desta comida típica do italiano que é a polenta (A. C. C., Pároco da Igreja de Santa Felicidade).
A memória coletiva está presente na identidade étnica, o que leva o grupo étnico ao
passado e às suas origens como forma de auto-afirmação de si próprio e perante os demais. A
memória coletiva colabora para esse sentimento de pertencimento ao grupo, ao seu passado.
A polenta sempre foi para o povo vêneto à alimentação básica e com ela os imigrantes vindos daquela região trouxeram esta tradição e podemos assim dizer também a forma de alimentação básica que há era da sua região na Itália e trouxeram junto com eles esta forma e esta maneira de ser em todos os sentidos. Podemos disser que a polenta era básica como alimentação dos contadinos, isto é, aquele povo que não tinha grandes recursos e até de sobrevivência pela alimentação, acha visto que, naquela região do Vêneto produzia-se bastante granturco, o milho e do milho vem à farinha de fubá e do fubá se faz a polenta.. A custo baixo o povo se alimentava basicamente deste, porque outros alimentos ficavam muito caro. A Itália passava por situação gravíssima, situação política, situação econômica péssima, retalhada. A Itália estava invadida, de difícil situação e os vênetos tinham que sobreviver, então por isso, repito, basicamente o povo vêneto se alimentava da polenta. (P. J. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
O homem enraizado comunica-se com grupos que mantém heranças do passado
porque guarda uma memória comum. Assim, o ser humano, ao se referir ao seu passado,
necessita das lembranças dos outros. “A lembrança é a sobrevivência do passado. O passado,
conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-
lembranças”.24 As imagens-lembranças se encontram na sociedade, segundo Halbwachs, para
que possam ser reconhecidas e reconstruídas. Quando pertencemos a um grupo, nossa
memória individual também deve estar relacionada ao passado do grupo, ao seu passado
24 Op. cit. BOSI, 1979. p. 15.
24
efetivo.
Observa-se, nos depoimentos, como a memória está relacionada com a preocupação
com a qualidade do fubá, enaltecendo a farinha de fubá branca para o preparo da deliciosa
polenta, o que demonstra uma memória diretamente ligada ao paladar e aos sabores.
Uma coisa que eu acho interessante nessa região, eu acho exclusivo da nossa região é a polenta branca. Então isso começou com os restaurantes aqui essa tradição de usar o fubá branco. Na Itália não sei se é assim, eu acho que a polenta é amarela. Mas acho que essa tradição começou aqui. Então nossa polenta é branca, alguns visitantes ainda estranham, “Mas a polenta é branca, branca?” A farinha é um pouco mais fina que a outra e ela fica mais crocante quando você vai fritar ela, eu acho que isso dá um sabor especial. (T. A.; um dos organizadores responsáveis pelas Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango).
As lembranças vêm junto com o sabor e o aroma da polenta feita de fubá branco, e
através destas deliciosas lembranças é reavivada a história de sua região e a figura de seus
entes queridos, a transmissão de um saber culinário, a simplicidade da vida de um colono
carregada de sabedoria, resgatada por intermédio de um prato simples dos contadinos, do
camponês, a polenta. São momentos de sabedoria que jamais se apagam no tempo.
Porque o milho branco se adaptou melhor em Santa Felicidade. É bom frisar que na região predominante do próprio vêneto e junto com a Itália o milho era mais amarelado, óbvio. Mas existe também segundo minhas próprias pesquisas que lá também já se fazia a polenta branca, o milho branco granturco bianco. E como foram necessárias muitas décadas, muitos anos para que o milho branco sobrevivesse, para que o milho branco pudesse sobreviver, digamos assim, porque o costume era mesmo o amarelo. Mas não se pode negar que no Vêneto o milho branco já existia e incluindo algumas províncias. Por exemplo, a Província de Belluno, era polenta amarela mesmo e o meu nonno que eu conheci, tive o prazer de conviver com o meu nonno, Giovanni Budel, que venho com 27 anos de idade da Província da Comune de Cesiomaggiore, claro que eu o conheci, faleceu com mais ou menos 100 anos de idade. Eu era curioso, tive o prazer de perguntar quando jovem, com doze anos de idade. Mas nonno perchè aqui se mangia a poenta bianca. ‘É ostreca, ele falava no dialeto de Belluno, ostreca, é perchè noi abiamo só a poenta bianca, mas anche em Venezia, a Vicenza, a Treviso já hanno o granturco bianco.’ Mas vejam que províncias como Treviso, Vicenza, Venezia, capital, já existiam as sementes de milho branco, eu creio que aqui em Santa Felicidade também por herdar uma cultura mais vicentina da Província de Vicenza, porque é bom citar isso que as primeiras famílias que fundaram a Colônia de Santa Felicidade, todas elas oriundas da Província de Vicenza. Depois vieram de outras províncias vênetas, muito pouco chegou aqui ou quase zero da Província de Veneza. É bom citar isso de Veneza, quase não se saía, não havia necessidade de imigrar, porque Veneza sempre foi uma região de mais poder aquisitivo, havia trabalho, era diferenciada. Mas as outras seis: Belluno, Verona, Vicenza, Rovigo, Treviso e Padova eram pessoas que havia carência de trabalho, de comida, faltava, meu Deus. Então vejam só esta forma de chegarem aqui e plantar. O milho branco venho de lá e o milho amarelo lógico, lógico. (P. J. C.; descendente de imigrantes italianos vênetos).
O tempo assume o seu papel contínuo, porém, a lembranças necessitam do tempo
25
fluido, para que a memória possa encontrar o seu caminho. Indivíduos buscam viver em
sociedade; durante sua vida participa de vários grupos e, desta forma, também de vários
tempos coletivos. Assim, durante os três dias de festa, os descendentes de italianos vênetos
mergulham em um tempo coletivo, cultivando lembranças que estão vinculadas ao passado do
grupo. O preparo da polenta, a comida típica italiana, as canções italianas e o espaço familiar
reconstroem o passado a partir do presente.
Para Halbwachs25, “o pensamento contínuo retém do passado somente aquilo que
ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Por definição não
ultrapassa os limites desse grupo”.
A lembrança só sobrevive porque existe um grupo. O grupo detém a memória
coletiva que, para fluir, necessita de um espaço para se articular. Os elementos de uma
cultura, nesse quadro especial, necessitam do processo de difusão para se irradiar vinculada à
tradição. De acordo com Renato Ortiz26, a tradição se refere à “transmissão de conteúdos
culturais, de uma geração para outra [...]. A tradição opera essencialmente em termos de
tempo, a difusão em temos de espaço”.
A tradição nos transporta, portanto, para a relação entre passado e presente. Segundo
Halbwachs, o passado é um chamado à memória coletiva e à história, embora a memória
coletiva e a história apresentem diferenciação. O autor trabalha o conceito de História como a
História Tradicional dos grandes fatos, grandes eventos, grandes heróis, restringindo-se a
acontecimentos já ocorridos, à representação do passado. A memória trabalha com o presente.
Já Jacques Le Goff, realça a relação entre história e memória. Para aquele autor, a
memória participa da edificação de uma concepção histórica. “A memória, onde cresce a
história, que por sua vez alimenta, procura o passado para servir o presente e o futuro”.27
A colocação de Le Goff é pertinente ao objeto deste estudo – a polenta – como
elemento simbólico de um passado, representado pelos descendentes de italianos vênetos do
Bairro de Santa Felicidade.
Pierre Nora28 também trabalha com a distinção entre história e memória. Para ele, a
memória é apreendida pela história passando pelo processo de filtragem, o que faz com que
não ocorram distinções entre memória história e memória coletiva, porque tudo é história, são
lugares de memória. O estudo empreendido por Nora em parte corrobora com as informações
25 Op. cit. HALBWACHS, 1990. p. 81. 26 Op. cit. ORTIZ, 2000.p. 74. 27 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. p. 477. 28 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: História e Cultura. Projeto História. São Paulo, 1993. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados do Departamento de História da PUC-SP. n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
26
apresentadas por Halbwachs, quando este coloca que, enquanto as lembranças do grupo
existem não podemos retê-la por escrito. Somente quando as lembranças deixam de existir a
tradição não é mais alimentada, passando a pertencer à história.
Entendemos que memória individual, memória coletiva e memória histórica se
entrelaçam. Recuperar o passado significa atualizá-lo frente ao presente, com a reinvenção de
tempos e espaços. Neste ponto, é importante salientar que os imigrantes italianos viveram em
determinada época, envolvidos por outras situações, com suas memórias individuais, e
formaram, também, suas memórias coletivas. As suas vivências são de um período que não é
mais de seus descendentes, mas é por intermédio das lembranças do grupo familiar que se
reconstroem a história dos primeiros imigrantes italianos vênetos chegados a Colônia de Santa
Felicidade, é através da história vivida de cada imigrante, de sua família que a memória se
apóia. A transmissão de bens simbólicos de uma geração a outra transforma a família em
espaço transitório, onde cada descendente torna-se, mesmo que inconscientemente,
responsável pela transmissão e preservação de valores culturais.
“Reunia-se a família para comer a polenta em torno da mesa, minha mãe ela reunia.
Nós chegávamos da roça, da lavoura e quando chegávamos íamos saborear a polenta. Desde
que me conheço por gente quando comecei entender o que era a polenta, a gente na família”
(H. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
As memórias reconstruídas e coletadas através das entrevistas remetem os
entrevistados ao seu passado e aos seus antepassados, acentuando períodos difíceis quando
não tinham o que comer.
“A mulher fazia a polenta para o almoço e para a janta. Não era fácil na época, não
tinha trigo para ter o pão nosso de cada dia. O que era o café da manhã, polenta assada na
chapa, não era frita. Era polenta fria assada na chapa tomada com leite puro frio, leite com
café” (F. M., proprietária de restaurantes em Santa Felicidade).
“A mãe fazia polenta colocava num panaro, numa mesa redonda, cortava em fatias e
colocava na grade para assar, era a polenta brustolada. Então a gente comia com a polenta
com queijo, com salame...Vida simples, mas não se passava fome... A polenta sempre
presente” (A. C., Padre da Igreja de Santa Felicidade).
É a memória fixada pela re-elaboração de um prato. A polenta leva, consciente ou
mesmo inconscientemente, os entrevistados a um retorno ao passado, à sua infância.
Lembram de suas bisavós, avós e mães que preparavam a polenta. As imagens vêm para o
presente tão reais que seus gestos e falas revelam o desejo de transmitir e de ensinar a arte de
uma cozinha étnica.
27
“Fazia-se a polenta em uma panela especial que minha avó chamava caliero e
quando a água começava a ferver, jogava o sal e depois a farinha de milho devagar. E ai
quando começava a embolotar pegava a mêscola e mexia-se para obter boa consistência.
Também procura amansá-la contra as paredes do caliero para que não conservassem torrões
de farinha” (G. P., descendente de italiano).
A minha mãe e a minha avó me lembram que antes de colocar a farinha de milho, tirava do caliero uma caneca de água fervente para depois colocar durante o cozimento da polenta, caso ela endurecesse. E também era costume de minha mãe e avó retirar um pouco de água do caliero depois de ter colocado um pouco de farinha no tacho. Isso formava uma espécie de caldo denso, uma sopa que meu pai e avô gostavam de tomar antes de comer a polenta. (P. F., descendente de italianos).
A transmissão culinária constitui-se no repassar de conhecimentos culinários de mãe
para filha pelo processo de repetição. Assim, para F. M., proprietária de restaurante no Bairro
de Santa Felicidade “A mãe da gente ensinava a fazer comida, a polenta”. O relato confirma a
importância do sexo feminino na preservação de uma tradição culinária, de resgatar a
ancestralidade pelo ato de cozinhar, pelo degustar, e reporta à conservação de uma cultura
gastronômica. As lembranças vêm junto com os utensílios usados para fazer a polenta:
“[...] lá de vez em quando eu mexo nas minhas panelinhas de ferro e faço a polenta,
fica uma delícia. Tenho várias panelas de ferro guardadas, eu preservo” (H. C.; descendente
de imigrantes italianos vênetos).
Denotando o seu valor simbólico para esses descendentes de imigrantes vênetos.
“Quando vieram para o Brasil, a primeira coisa que eles queriam era polenta e eu até
hoje conservo as panelas de ferro que a gente costumava fazer polenta, desde que era menina
e que minha mãe fazia eu conservo até hoje essas panelas” (H. C., descendente de imigrantes
italianos vênetos).
O hábito de comer a polenta, passado de geração a geração, colaborou para que os
descendentes de imigrantes italianos de Santa Felicidade afirmassem sua identidade étnica
frente aos demais.
As festas típicas, os restaurantes típicos do bairro estão reafirmando a cozinha étnica
dos imigrantes italianos, oferecendo aos seus visitantes o sabor desta cozinha. Salientando-se
que na Festa do Vinho, Polenta e Frango é servida no primeiro dia de festa a polenta com
molho, relembrando a comida de seus antepassados. O imigrante comia a polenta com molho
ou simplesmente sem nenhum acompanhamento. A polenta frita não era muito consumida
pelos imigrantes. Os restaurantes de comida típicas de Santa Felicidade servem a polenta frita,
28
acreditando-se que seja pela sua facilidade de preparo.
“Na Festa do Vinho, Polenta e Frango é mais frio, até tentamos fazer a polenta como
molho. Dá um trabalho danado, não pode ficar muito tempo cozinhando, é pouca a demanda
desta polenta e nós decidimos só pela polenta frita” (T. A., descendente de italiano, um dos
responsáveis pela organização das Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango).
O mínimo de um cozimento de polenta no tacho deve ser de 45 minutos de fogo forte para que ela fique bem cozida e depois tombada no panaro. Se você quiser deixar esfriar para no dia seguinte você corta e fatia e come a seu gosto. Foi o que aconteceu com os restaurantes de Santa Felicidade, fizeram isso pelos menos os primeiros restaurantes coloniais... ficava bem fritinha e ai o resultado você encontra uma polenta frita. (P. J. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
As reminiscências dos descendentes de imigrantes italianos adquirem valor
simbólico quando seu significado é reconstruído pelo grupo. A memória coletiva é um
instrumento de poder, na medida em que as sociedades cuja “memória social é, sobretudo,
oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor permita
compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição”.29
A memória coletiva também pode ser analisada como tradição, como Da Matta relata
que a memória social é vulgarmente chamada de tradição. “Pois o homem é o único animal
que se constrói pela lembrança, pela recordação e pela saudade, e se desconstrói pelo
esquecimento e pelo modo ativo com que consegue deixar de lembrar”.30
“Falando dos costumes e tradições dos povos, é muito interessante porque cada povo
se destaca pelo modo de viver, vestir, de fazer as coisas, de comer” (A. C. C., pároco da Igreja
de Santa Felicidade).
Ao entendermos a memória coletiva como lugar de tradição, as lembranças para
poderem ser evocadas precisam ser fixadas. Compreendendo que rituais e valores simbólicos
necessitam do processo de repetição para se fixarem, estabelecendo continuidade com o
passado. O que coloca nosso objeto de estudo na mais perfeita invenção das tradições. Cultuar
a tradição de comer polenta implica em preservar a cultura do grupo, consolidando sua
identidade étnica.
Para que as tradições não se percam frente à globalização é necessário que ocorra a
invenção das tradições. Novos elementos são a ela anexados ou conservar suas tradições em
condições novas, talvez o culto à tradição esteja articulado à modernidade e ao progresso. A
globalização acaba forjando novas identificações culturais. Percebe-se a preocupação dos
29 Op. cit. LE GOFF. 1990. p.476. 30 Op. cit. DA MATTA, 1984. p. 68.
29
organizadores da festa para a permanente ritualização, para que o passado não seja preenchido
pela modernidade.
A preocupação em manter esta tradição também é manifestada pela Associação do
Comércio e Indústria de Santa Felicidade (ACISF), que implantou na Casa dos Contos o
turismo educacional, que promove passeios para as crianças de escolas de Curitiba,
abrangendo mais crianças da terceira e quarta série do Ensino Fundamental. É uma maneira
das crianças conhecerem um pouco mais sobre a história do Bairro de Santa Felicidade,
resgatando e preservando a cultura deste povo. O passeio dura, em média, duas horas e meia,
e é acompanhado sempre por um funcionário da própria ACISF. Quando as crianças chegam à
Casa dos Contos são recepcionadas por uma senhora descendente de imigrantes italianos
provenientes do Vêneto, vestida com trajes típicos de nonna italiana . A nonninha conta às
crianças a história dos primeiros imigrantes que chegaram à região na linguagem do vêneto.
Em seguida, as crianças são convidadas a fazer um passeio até o Restaurante Novo
Madalosso. Conforme o horário da visita ao restaurante, é servido à elas polenta frita e todas
ganham um pequeno regalo, uma lembrança típica italiana. Por fim, o passeio termina na
Igreja de São José, onde são recebidas pelo pároco da igreja. Aqui, as crianças conhecem um
pouco mais sobre a cultura italiana, enaltecendo os valores mais importantes para os italianos
que são o trabalho, religião e a família, aprendendo como isto esteve sempre presente até
mesmo na construção desta igreja com seus elementos arquitetônicos.
A polenta é referência para o enraizamento da memória coletiva do grupo. A polenta
possui história, memória individual, memória coletiva, sendo uma fonte de legitimidade. As
experiências vividas pelos seus antepassados perpetuam-se nas suas memórias através da
gastronomia presente em um bairro, antiga colônia fundada por seus familiares, hoje
referência gastronômica na cidade de Curitiba e, também, no mundo.
Aqui em Santa Felicidade a população em quase a sua totalidade são de origem italiana e tem seus costumes muitos típicos que se destaca no Estado do Paraná e também na cidade de Curitiba.Quem vem a Curitiba hoje não deixa de visitar Santa Felicidade como quem vai a Roma não deixa de visitar o Papa. Então eu acho que merece uma consideração toda especial que diz respeito a cultura deste povo de Santa Felicidade. Aqui o que se destaca são os famosos restaurantes com comida típica, destacando-se de modo especial a polenta. (A. C. C.; pároco da Igreja de Santa Felicidade).
30
CAPÍTULO III – A IMIGRAÇÂO ITALIANA DO VÊNETO
3.1 O VÊNETO
O fenômeno imigratório ocorrido do século XIX ao século XX, na Europa, foi
apoiado na expansão do capitalismo europeu e também relacionado com as modificações
ocorridas mos sistemas políticos, econômicos e sociais na Europa. Na Itália, a emigração foi a
resposta encontrada para a crise de desemprego que assolava o país desde 1870.
A migração italiana não pode ser analisada apenas como fenômeno ocorrido após a
sua unificação. Ao analisarmos a situação geográfica da Itália percebemos um país de regiões
montanhosas e colinas de difícil acesso ao cultivo, pouco favorecido pelas suas condições
climáticas. Suas planícies, embora pudessem ser cultiváveis, eram escassas e necessitavam de
drenagem. Sua economia era baseada no pasto e no cultivo de cereais, o que obrigava seus
habitantes, especialmente os que moravam em regiões montanhosas, a procurar alimento em
outras regiões da Itália ou em países vizinhos. O processo migratório, na Itália, não era algo
novo; esteve calcado, em um primeiro momento, na busca de alimentos para sobrevivência.
No entanto, a emigração de massa, que marcou o século XIX, esteve associada a aspectos
diferentes, como a busca de novas a oportunidades para construir sua vida “Fare la Merica”31.
A Itália apresenta extensão geográfica limitada. Sua economia foi
predominantemente agrícola até o início do século XIX, absorvendo lentamente o
desenvolvimento capitalista. As mudanças na economia agrícola ocorreram de forma
diferenciada: enquanto em algumas regiões ocorreu de forma total, em outras regiões foi
precária e nas demais regiões ainda não havia ocorrido. Com a unificação da Itália, esses
problemas se acentuaram; a industrialização não conseguiu abranger todo o contingente
populacional vindo da zona agrícola. A unificação trazia a esperança da formação de uma
única nacionalidade, o que não ocorreu. A italianidade não existia, não se identificavam como
italianos, mas como sicilianos, calabreses, lombardos, piemonteses, vênetos. As diferenças
regionais ainda persistiam, originárias de longos séculos de diferenciação e isolamento.
Aliada a estes fatores, havia a precariedade em que viviam as populações rurais
italianas. Com a industrialização, a Itália se abre para o mercado internacional. Em algumas
regiões o mercado industrial absorve a mão-de-obra vinda do campo. Quando isso não
ocorria, num primeiro momento ocorria a emigração temporária para outras regiões da Itália,
31 Fazer a América.
31
ou para países europeus e, finalmente, diante da impossibilidade de uma mudança estrutural,
ocorria a emigração definitiva. Podemos, assim, colocar que no Sul da Itália a economia
agrícola visava mais o mercado local, enquanto que na região Norte havia uma agricultura
mais capitalista.
A emigração italiana pode ser vista dentro de um processo de equilíbrio sócio-
econômico, diante do crescimento econômico da região norte-ocidental, como também como
suporte para o desenvolvimento econômico ocasionado pelo desequilíbrio que se estabeleceu
entre as regiões Norte e Sul, aliada à grande massa populacional.
De acordo com Altiva Pilatti Balhana, a Itália apresentou altos índices de natalidade
até o final do século XIX, com uma economia voltada para a agricultura, “desta situação
decorreram dois fatos de importância – pressão demográfica e incapacidade, por falta de
equipamento industrial, para absorver o excedente populacional das zonas rurais”.32 São
vários os fatores que contribuíram para a imigração italiana, mas estes parecem os principais
dentro do processo migratório italiano.
Nesse sentido, pode-se entender que o processo imigratório ocorreu de forma
distinta, de acordo com cada uma das regiões. A região que ofereceu o maior contingente de
imigrantes foi o Vêneto. A região é composta por áreas de colinas e montanhas, como
Vicenza, Treviso, Belluno, e regiões de planícies, como Verona, Rovigo, Padova e Venezia.
A economia vêneta era baseada na produção de cereais e vinhedos, no trabalho familiar. Seus
núcleos familiares eram formados por pequenos e médios proprietários, instalados em áreas
de montanhas e colinas, e por grandes proprietários nas áreas de planície. Os núcleos eram
compostos de doze a quinze pessoas, que viviam, comumente, em péssimas condições. Suas
moradas eram pequenos casebres, com falta de higiene e expostos a várias doenças. Sua dieta
alimentar baseava-se na polenta, uma vez que o milho custava barato. Atrelado a essas
condições temos alterações climáticas, ocasionadas pela destruição das florestas, a falta de
melhores condições na agricultura e a cobrança de altas taxas de impostos, o que levava o
pequeno proprietário à dívida e ao confisco de suas propriedades.
Como outras regiões da Itália, o Vêneto apresentava grandes índices populacionais.
A agricultura não conseguia reter toda essa mão-de-obra, o mercado industrial não tinha
condições de ofertar um grande número de empregos e o seu atraso na industrialização foram
fatores que colaboraram para tal situação.
De um modo geral, esses fatores levaram a Itália a fornecer o maior número de mão-
32 BALHANA, Altiva Pilatti. Santa Felicidade: um processo de assimilação. Curitiba: João Haupt, 1958. p. 23.
32
de-obra para o mercado externo. Este cenário acentua-se na região do Vêneto pelas suas
particularidades, onde a pequena propriedade passou a significar sinal de carestia, de pobreza,
sendo a região prejudicada pela crise econômica que a Itália atravessou a partir da década de
1850.
A emigração italiana teve como traço principal ser essencialmente rural, condição
acentuada pela sua economia essencialmente agrícola, independente e de pouca extensão. Para
Balhana33 em “Santa Felicidade, uma Paróquia Vêneta no Brasil”, entre 1869 a 1970 saíram
da Itália 20.830.000 emigrantes, dos quais 11.348.000 para os países europeus e 9.482.000
para os países além-mar. Diante desses dados houve um fluxo migratório que ora privilegiava
as migrações continentais, ora as migrações transoceânicas. As migrações continentais eram
direcionadas para a Bélgica, França, Áustria, Alemanha e Inglaterra. As migrações
transoceânicas eram dirigidas para os Estados Unidos do Norte, Argentina e Brasil.
Segundo Sebastião Ferrarini, os imigrantes italianos entraram no Brasil já em 1850,
no reinado de D. Pedro I, para prestação de serviços a convite do Imperador.
Durante o governo de D. Pedro II, o Brasil manteve uma política interessante, a fim de atrair o maior número possível de imigrantes europeus. Adotou a seguinte técnica: imprimir folhetos em vários idiomas, espalhando-os em países europeus, cujo conteúdo mostrava aos interessados as vantagens que o Brasil oferecia à agricultura, pecuária e à indústria, bem como, quanto à aquisição de terras, era feita em ótimas condições: mostrava ainda o número de emigrantes estabelecidos em várias províncias do Império Brasileiro.34
O processo de internacionalização de mão-de-obra não afetou somente a Itália na
década de 1850, mas também outros países da Europa. O Brasil acaba participando deste
sistema de modernização capitalista. A promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, visava
a completa extinção da escravidão no Brasil, embora de forma lenta e gradativa, gerando no
país a escassez de mão-de-obra para a agricultura e, conseqüentemente, carência no
abastecimento de produtos de subsistência.
A Itália, na segunda metade do século XIX, atravessava um período de
transformações, com a pobreza no campo atingindo um grande número de camponeses,
situação que coincidiu com a dificuldade do Brasil em obter mão-de-obra, como resultado da
extinção do tráfico negreiro.
O problema da falta de mão-de-obra, no Brasil, data antes da sua Independência,
33 Op. cit. p. 10. 34 FERRARINI, Sebastião. A imigração italiana na província do Paraná e o município de Colombo. Curitiba: Lítero-Técnica, 1973. p. 50.
33
quando D.João VI já via a necessidade do Brasil atrair colonos para preencher a falta desta,
porém, não ainda, em substituição da mão-de-obra escrava. Com o avanço da cultura do café
e o desaparecimento do trabalho escravo nas lavouras com o advento da Abolição, o trabalho
livre acabou sendo aceito como medida econômica satisfatória. Outros fatores preponderantes
para a entrada de imigrantes europeus no Brasil, em especial aqueles oriundos da região Norte
da Itália, foram a proibição da saída de imigrantes alemães para o Brasil e a falta de interesse
do “governo italiano em diminuir a emigração que oferecia muitas vantagens e soluções ao
governo, livrando-os de realizar reformas mais radicais, a emigração não só foi tolerada, mas
por falta de uma solução nacional à crise, foi sentida como um alívio.35 Um outro fator
determinante foi a concessão de terras pelos governos estaduais brasileiros para o
estabelecimento de colônias.
A mão-de-obra européia veio substituir o escravo, em especial nas lavouras de café,
em São Paulo. A opção era pelo europeu branco que, além de trazer tecnologia, auxiliava no
processo de branqueamento da população brasileira, reduzindo, com o passar dos anos, a
população negra e mulata.
A imigração para o Brasil não esteve somente vinculada à troca de braço escravo
pelo trabalhador agrícola europeu no Sul do Brasil; a finalidade era a colonização, ou seja, a
criação de núcleos destinados à produção para atender o mercado interno e urbano e ampliar a
ocupação do território. De um modo geral pode-se falar de uma forma de economia que via,
na figura do imigrante, a oportunidade de criar novas atividades e a obtenção do seu
conhecimento sobre técnicas que ajudariam no crescimento econômico do país.
3.2 A IMIGRAÇÃO ITALIANA NO PARANÁ
O sul do Brasil apresentava condições favoráveis para o desenvolvimento da
imigração italiana: o sonho de tornar-se proprietário de um pequeno pedaço de terra - muitas
vezes perdido na Itália pelas situações econômicas que o país atravessava - parecia mais
próximo frente às facilidades que o governo brasileiro oferecia através da concessão de terras
para que este sonho se realizasse e a situação climática favorável ao plantio de produtos que já
estavam habituados a plantar em sua terra natal.
A professora Altiva Pilatti Balhana descreve muito bem o pensamento do imigrante
35 UBALDI, Pietro. L'espansione Coloniale e Comercialle Del Italia nel Brasile. Roma, Loescher, 1911. p. 17.
34
italiano, em especial da região do Vêneto, sobre o sul do Brasil.
As regiões meridionais foram as mais procuradas pelos imigrantes italianos, porque suas condições gerais de vida apresentavam certa semelhança com aquelas de procedência dos imigrantes europeus, e a procura de terra de condições propícias ao desenvolvimento do mesmo gênero de vida daquele levado no país de origem [...]. O Sul do Brasil é terra tipicamente de imigração, e foi por isto procurado preferencialmente pelos imigrantes que acorreram no grande fluxo imigratório, os que se fixaram, sobretudo em São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.36
Com sua emancipação política e administrativa em 1853, o Paraná dá um novo rumo
para a imigração. Desenvolve novo plano de colonização nos arredores de Curitiba,
garantindo a sua subsistência. De acordo com o Pe. Jacir Francisco Braido 37, “sua população,
em 1872, data do I Recenseamento Geral, era de 126.722 habitantes. Doze anos mais tarde, à
época do II Censo, quase duplicaria a população: 249.491”.
No período anterior à sua emancipação, as tentativas de imigração no Paraná não
alcançaram grande sucesso. Em 1820 funda-se a Colônia Rio Negro, com alemães. A Colônia
Tereza, fundada nos sertões do Ivaí (município de Cândido de Abreu), em 1847, com
imigrantes franceses. Em 1852, funda-se a Colônia Superagïi, em Guaraqueçaba, no litoral do
estado, composta por suíços, alemães e franceses. As colônias fundadas faziam parte do
programa do governo Imperial de colonização, visando o preenchimento de espaços
demográficos.
“Embora a área do planalto de Curitiba estivesse à margem desse programa, logo
teve início um movimento espontâneo de reimigração que alteraria a constituição da
população curitibana. Nas décadas de 1830 e 1850, alemães de Rio Negro e da colônia Dona
Francisca, de Santa Catarina, localizaram-se nos arredores de Curitiba, sobretudo nas partes
norte, noroeste e nordeste, em pequenas chácaras38”
Logo após a emancipação política do Paraná surge, em Cerro Azul, a Colônia de
Assungui, composta por imigrantes ingleses, franceses, alemães e italianos. Iniciativa dos
governos Provincial e Central para a escassez dos gêneros alimentícios, formada por colonos
nacionais e estrangeiros. “Desde a sua fundação, em 1860, não havia uma real produtividade
agrícola em função da impropriedade do terreno, da distância dos centros mais populacionais
das despesas para a manutenção dos caminhos existentes e os pesados recursos a serem
investidos numa estrada de rodagem”39. Motivos que também levaram ao fracasso as Colônias
36 Op. cit. BALHANA, 1958. p. 24. 37 BRAIDO, Pe. Jacir Francisco. O bairro que chegou em um navio. Curitiba: Lítero-Técnica, 1978. p. 25. 38 BALHANA, Altiva Pilatti. Um Mazzolino de Fiori. Curitiba: Imprensa Oficial, v. 1, 2002. p. 400-401. 39 Op. cit. SANTOS, 1995. p. 113.
35
de Rio Negro e Tereza.
A primeira colonização italiana no Paraná inicia-se oficialmente em 1871, através de
um acordo realizado entre o Governo Provincial e o agente colonizador Sabino Tripotti, uma
vez que os governos provinciais transferiram todo o processo de colonização às empresas
particulares encarregadas de trazer imigrantes a Província do Paraná.
Os primeiros imigrantes que desembarcaram em Paranaguá foram conduzidos à
Colônia do Assungui. Como o número de imigrantes italianos que chegavam ao litoral
paranaense aumentava, em 1875 é fundada a Colônia Alexandra, dividida em quatro partes:
Sede, São Luis, Piedade e Total. Em 1877 é fundada a Colônia de Nova Itália no litoral do
Estado pelo próprio governo provincial que, insatisfeito com o agente colonizador Sabino
Tripotti, rescindiu o contrato firmado com ele. São formados, então, doze núcleos coloniais,
abrangendo o território dos municípios de Morretes, Antonina e Porto de Cima, destinados a
abrigar novas famílias de imigrantes vindas da região do Vêneto e imigrantes que não se
adaptaram à Colônia Alexandra.
Em 1877 chega ao Paraná a primeira grande leva de imigrantes italianos, constituída
por mais de 800 famílias, quase todas do Vêneto, representando 90% dos italianos. A maioria
das colônias instaladas no litoral durante a década de 1870 não obteve sucesso. Os imigrantes
não se adaptaram ao clima, que propiciava o surgimento de doenças tropicais. Outros fatores
também influenciaram, como a ausência de mercados consumidores e a falta de organização
técnica e econômica.
Nos arredores de Curitiba, entre 1869 a 1875 foi implantado também um plano de
colonização. Constituíram-se pequenas colônias, como a de Argelina, fundada em 1869. Em
1877 a sua população era composta por camponeses de nacionalidade francesa, por argelinos,
alemães, suíços, ingleses e suecos, totalizando 117 habitantes.
Em 1871 foi fundada a Colônia Pilarzinho; em 1873 foi fundada a Colônia
Abranches. No ano de 1877 as duas colônias eram formadas por poloneses silesianos e
irlandeses, totalizando 472 moradores. A Colônia São Venâncio foi inaugurada em 1870. A
sua situação populacional, entre 1875 a 1877, era de alemães e suecos, totalizando 143
habitantes.
O presidente da Província do Paraná, Adolpho Lamenha Lins, desenvolve, em 1875,
um novo plano de colonização, conhecido como Cinturão Verde, nas imediações de Curitiba.
Tal atitude demonstrava o seu descontentamento diante do fracasso das colônias agrícolas
estabelecidas nos governos anteriores. “Diversas colônias de imigrantes europeus foram
estabelecidas em círculo ao redor de Curitiba, em terrenos contíguos às estradas carroçáveis já
36
existentes – Graciosa, Mato Grosso e Assungui -, que ligavam a cidade ao litoral, aos Campos
Gerais e ao Norte da Província”40. Nas imediações de Curitiba foram criadas as colônias de
Santa Cândida, Órleans, Lamenha, Santo Inácio, D. Augusto, D. Pedro, Riviere e Tomaz
Coelho.
O processo migratório em terras paranaenses é assim visto por Trindade e
Andreazza41:
“De qualquer forma, nas diversas regiões em que se instalaram, os estrangeiros
foram agentes de transformação. Nas cidades, porém, contribuíram de forma peculiar para a
construção de uma nova forma de viver urbano que iria caracterizar o cotidiano dos
paranaenses na virada do século”.
3.3 A COLÔNIA DE SANTA FELICIDADE
Em 1878 chega à região do Taquaral42 as quinze primeiras famílias de imigrantes
italianos provenientes do litoral paranaense, onde não haviam encontrado condições
favoráveis para a sua fixação. Estas famílias vinham impressionadas pelos relatos de tropas
que, vindas dos arredores de Curitiba desciam a Serra do Mar rumo a São Paulo, traziam
informações sobre terras que em muito se assemelhavam à sua terra natal e eram apropriadas
ao tipo de vida que estavam acostumados. Apesar da insistência das autoridades provinciais
para que permanecessem na região litorânea, solicitaram ao Ofício de Imigração a sua retirada
do local, fazendo valer o direito dado aos imigrantes de mudar duas vezes seu local de
fixação. Assim, algumas famílias foram instaladas em colônias nos arredores de Curitiba,
outras adquiriram terrenos da municipalidade de Curitiba e outras, com restante de suas
economias adquiriram terrenos particulares em Santa Felicidade, Ferraria, Campo Magro,
Bateias e outros locais.
A Colônia de Santa Felicidade foi fundada em 1878 por imigrantes vênetos. Como
Ferrarini43 nos descreve, “chegados a Curitiba, na Hospedaria dos Imigrantes e informados de
que, a poucos quilômetros desta cidade, poder-se-ia comprar terras a bom preço, foram lá e
40 KLUGE, Maria Fernanda Maranhão. O Vêneto não pode morrer! Um estudo sobre restaurantes, rituais e re(construção) da identidade italiana em Santa Felicidade. Curitiba, 1996. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade Federal do Paraná, Curitiba. p. 16. 41 TRINDADE, Etelvina Maria de Castro; Andreazza, Maria Luiza. Cultura e educação no Paraná. Curitiba: SEED, 2001. p. 60. 42 A região era conhecida por esse nome por ser rodeada de Taquaras. 43 Op. cit. FERRARINI, 1973. p. 147.
37
adquiriram-na. A compra foi feita por 80 mil liras o alqueire”.
O terreno foi adquirido dos irmãos Antonio e Arlindo Borges e de sua irmã,
Felicidade. À parte que coube a cada família foi estabelecida através de sorteio, em novembro
de 1878. A colônia recebeu o nome de Felicidade como forma de homenagear a irmã dos
proprietários, que tanto haviam favorecido a compra das terras. Foi acrescentada ao nome a
palavra Santa, lembrando Santa Felicidade, que foi martirizada em Roma durante o reinado de
Marco Aurélio, no século II, pois os italianos ali instalados eram devotos desta santa.
As quinze primeiras famílias instaladas na Colônia de Santa Felicidade foram:
Giovanni Alberti, Calisto Cumin, Giuseppe Dalla Villa, Luigi e Francesco Buscardin,
Francesco Comparin, Madalena Renato, Giovanni Lucca, Bortolo Muraro, Giovanni
Menegusso, Bortolo Muraro Trevisanello, Bortolo Stampo, Sebastião Taliaro, Giovanni
Poletto, Giuseppe Ravanello e Antonio Pocolin.
No início as coisas não foram fáceis. As moradas eram construídas com troncos de
árvores, de sapé ou então barracos. As primeiras casas construídas pertenceram às famílias
Boscardin e Slompo.
Os produtos cultivados eram a batata, feijão, cevada, trigo, hortaliças, uva e,
principalmente, o milho, o que permitiu a preservação do hábito alimentar da polenta. Após
dois anos da chegada dos primeiros imigrantes, a colônia já comportava mais setenta famílias,
vindas do litoral ou da própria Itália. “Entre 1890 e 1902 a colônia já apresentava o número
total de duzentas famílias italianas”.44
Prevaleceu na colônia o sistema agrário da pequena propriedade, semelhante às
tradições campesinas do Norte da Itália, com dois tipos de áreas cultivadas. A primeira área
era lugar de moradia permanente, com hortas, vinhedo e árvores frutíferas. A segunda área era
constituída por terreno adquirido mais tarde, com plantações de milho e outros cereais, onde
permaneciam durante o período da plantação e colheita.
Dedicados, os homens eram à lavoura e à criação, já as mulheres com enormes lenços coloridos na cabeça dirigiam as famosas carrocinhas, com a pregação cantada dos produtos à venda, indo juntar-se à hora do almoço no Largo da Ordem, aproveitando para descansar os animais. Esses colonos introduziram os artigos de vime, do seu fabrico, no mercado, cultuavam as tradições, os usos e os costumes da mãe pátria.45
44 MARTINI, Giuseppe. Origine e sviluppo della colônia Santa Felicidade. In: CARDOSO, Rosy de Sá (trad). Boletim do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico Paranaense. v. XXXIV. Curitiba, 1978. p. 24. 45 PAULA, Eliane Lídia de. A imigração italiana. Curitiba, 2001. Monografia (Graduação em Relações Internacionais). Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba. p. 30.
38
Sua economia esteve voltada para a agricultura de subsistência e ao pequeno
comércio que realizava com o mercado consumidor de Curitiba, o que acabou fortalecendo
esse tipo de economia e sua estrutura familiar de produção. Com a venda de produtos
hortifrutigranjeiros em Curitiba, foi solicitada, em 1880, a abertura de uma estrada que ligasse
a colônia à cidade. Em 1940 essa estrada foi ampliada e macadamizada, passando a se chamar
Estrada do Cerne, e ligava Curitiba ao Norte do Paraná. Em 1948, este trecho da estrada que
atravessava a colônia passou a ser chamada Avenida Manoel Ribas.
Pelo seu crescimento econômico, a Colônia de Santa Felicidade, em 25 de março de
1916 torna-se distrito judiciário no município de Curitiba. Atualmente, Santa Felicidade é
uma região administrativa de Curitiba composta por dezesseis bairros, localizada a 7 km do
centro de Curitiba.
Com o crescimento de Curitiba, em muitas áreas de Santa Felicidade passa a haver
uma valorização dos terrenos; conseqüentemente, surgem novos loteamentos e as chácaras
acabam perdendo parte de seu tamanho e, em muitos casos, chegando a desaparecer.
O desenvolvimento trouxe novas oportunidades à Santa Felicidade, em especial na
área da alimentação, pois a comida do imigrante acabou por fazer parte do cardápio de
pequenos restaurantes que abriram suas portas inicialmente com o objetivo de alimentar
caminhoneiros que passavam pela Estrada do Cerne, tornando-se ponto obrigatório de parada.
Com o sucesso, a comida do imigrante italiano de Santa Felicidade tornou-se referencial
gastronômico. Atualmente o Bairro de Santa Felicidade possui 50 restaurantes, entre bares e
cantinas, sendo que alguns restaurantes possuem capacidade para atender mais de mil pessoas.
O vime e a uva são também são presenças marcantes no Bairro de Santa Felicidade.
Com o crescimento, se transformaram em produtos comerciáveis, como as casas de móveis
que se dedicam ao trabalho com vime e junco. Em paralelo desenvolveu-se o comércio
moveleiro, com lojas de móveis de vários estilos, com mais de sessenta lojas de móveis
somente na Av. Manoel Ribas e vinte lojas dedicadas ao artesanato local.
As primeiras vinícolas instaladas atraíram muitas pessoas ao bairro para degustar o
vinho da colônia. Hoje, além das três primeiras vinícolas instaladas - Santa Felicidade,
Durigan, Dall' Armi – existem ainda outras pequenas indústrias e cantinas de vinho.
O turismo está presente nos restaurantes, lojas e vinícolas; porém, Santa Felicidade
também impressiona pelas casas que ainda preservam a arquitetura italiana, tombadas pelo
Patrimônio Histórico Cultural. Um exemplo é a Casa dos Contos, que fica junto ao Hotel
Holiday Inn Express, que foi restaurada pelo grupo LN Empreendimentos Imobiliários
resgatando a história local, e abriga em seu acervo contos e anedotas relatados pelos
39
moradores do bairro. Na Casa dos Contos também funciona a ACISF, sede da Associação do
Comércio e Indústria de Santa Felicidade – fundada em 1987 – que visa atender empresários
do comércio e da indústria do Bairro de Santa Felicidade, e cujo objetivo é a manutenção da
tradição e da cultura de Santa Felicidade. Lá funciona um Posto de Informação Turística
credenciado pela Prefeitura de Curitiba que fornece orientações às pessoas que visitam o
Bairro.
Contam os moradores de Santa Felicidade que quem construiu a casa onde hoje funciona a Casa dos Contos foi Luiz Muraro, vindo na primeira leva de imigrantes italianos da Região do Vêneto em 1878. Considerando-se que a primeira casa deva ter sido construída ainda em madeira, a casa atual – que chegou a ser quase totalmente destruída com o tempo – tem idade aproximada de 95, 100 anos. Originalmente, o imóvel possuía, na parte de trás, uma área destinada à cozinha e um grande paiol de madeira ao lado, usado para guardar ferramentas, a carroça e outros utensílios de propriedade rural. Em todos esses anos de história passou pelas mãos de vários outros proprietários, ficando, por último, com a família Vardânega, que a arrendou para a família Pianaro. Dizem, no bairro, que os Pianaro – o casal e mais cinco filhos – eram extremamente caprichosos, chegando a varrer as ruas no entorno da propriedade para deixá-la ainda mais bonita. Nas terras eles plantavam verduras, frutas e hortaliças variadas, além de criar vacas e ouros animais. Tudo o que produziam no terreno original de 24 mil metros quadrados, hoje dividido pela Via Vêneto e outras ruas, vendiam em uma quitandinha montada embaixo da Castanheira, que até hoje se encontra na parte frontal da casa .46.
Outro belo exemplo de preservação é a Casa Culpi, construída em 1897, que
funcionava como armazém e moradia da família Culpi e fornecia produtos hortifrutigranjeiros
aos imigrantes para serem vendidos em Curitiba. Em 1990 passou a funcionar como espaço
cultural, designada como “Memorial da Imigração Italiana”. Abriga em seu interior um
museu, resgatando diversos equipamentos, objetos, peças, fotos antigas de imigrantes
italianos. Seu espaço cultural abriga exposições e um atelier, oferecendo cursos de língua
italiana e também no local funciona a sede do Circolo Vicentini Nel Mondo.
Santa Felicidade tornou-se uma grande família de descendentes de imigrantes
italianos vênetos comprometidos em dar continuidade ao trabalho de seus ancestrais na
manutenção da italianidade, preservando e valorizando a tradição cultural do bairro.
46 Informações cedidas pela Associação do Comércio e Indústria de Santa Felicidade (ACISF) em 23/08/2006.
40
CAPÍTULO IV – POLENTA: UM LAÇO DE CULTURA
4.1 HISTÓRIA DA POLENTA
A tradicional culinária italiana está presente em restaurantes, em festas e na mesa dos
descendentes de italianos. Fazem parte dessa culinária pratos típicos como o risoto, o frango
frito, a salada de radici, entre outros, destacando-se a polenta, um alimento carregado de
simbolismo. A polenta, como elemento simbólico, reforça a autenticidade da italianidade dos
descendentes de italianos do Bairro de Santa Felicidade. A privação de alimentos que
passaram os colonos na Itália após sua unificação, bem como quando recém-chegados no
Paraná, nos primeiros anos da imigração, fez com que certos alimentos ultrapassassem o seu
valor biológico e o significado de alimentar, chegando a fixar-se como identidade grupal,
reunindo as famílias de imigrantes em torno de uma tradição. A polenta tornou-se elemento
difusor da gastronomia étnica do bairro de Santa Felicidade. Para entendermos o valor
simbólico atribuído a este alimento devemos conhecer um pouco da história da polenta.
De origem latina, a palavra polenta significa pollen, ou “flor de farinha”. Os romanos
teriam sido os primeiros a consumir este alimento chamado de puls ou pulmentum, a “papa de
cereais”. Os solos férteis da Itália Central favoreciam o plantio de diferentes espécies de trigo,
cevada, favas e espelta47. Na Etrúria, encontrava-se alguma subespécie do trigo, de qualidade
superior àquela encontrada nas demais regiões, como o milho miúdo (milium) e o milho
graúdo (milhete) com os quais podiam preparar o pão, ocupando o lugar da puls. De acordo
com Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari em “História da Alimentação”48, são poucas
as informações sobre o uso da farinha originada de cereais. As pesquisas falam da má
qualidade dos cereais, não permitindo a panificação dessa farinha. Essa farinha, misturada
com água e leite, servia principalmente para preparar pratos semi-líqüidos como a puls, uma
espécie de polenta tão popular e difundida entre os romanos que os gregos jocosamente os
chamavam de Plauto, pultiphagi (comedores de puls) ou pultiphagonids (grandes comedores
de puls).49
Já os etruscos consumiam uma puls à base de espelta, segundo achados
arqueológicos. Embora o cultivo de grãos tenha se iniciado no Egito a 6.000 a.C. os egípcios
foram também os pioneiros em utilizar duas pedras aquecidas para moer os grãos, chegando à
47 Espécie de trigo de qualidade inferior. Fonte: Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. 48 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. 49 Ibid. p. 189.
41
farinha, e os primeiros na fabricação de pão branco. “Alimentação à base de cereal seja para
os gregos (amaza), os romanos (a puls), os eslavos (a Kaha), os germanos (papas de sêmola
de aveia) apenas sabiam fazer as papas ou bolos não levedados com cereais”50. Para os
gregos que se alimentavam de puls de cevada, o alimento dos romanos puls de espelta,
significava o alimento itálico primordial.
Luis de Câmara Cascudo cita:
Naturalmente, não creio que os gregos ensinaram a papa aos de Roma por intermédio dos etruscos. E que os egípcios fossem os professores na primeira decantação. E os romanos levaram a papa, espalhando o modo de preparar por onde andassem. Creio que estes povos ao redor do Mediterrâneo, franceses antes da França, alemães antes da viagem de Tácito, os iberos, gente dos Bálcãs, tiveram papa, a papa local, conforme os cereais existentes e o poder de improvisação grupal.51
O livro de culinária romano intitulado De re coquinaria, com 468 receitas, cujo mais
antigo manuscrito data do século IV, teve, porém, suas primeiras edições publicadas no final
do século XV em Veneza e Milão, E com o passar dos anos foi recebendo acréscimos, sendo
nele encontrados receitas de puls. A puls punica levava em seu preparo queijo fresco, mel e
uma gema de ovo; já a puls juliana era feita com vinho aromático e miolos de animais. Essa
sopa de cereais, que se assemelhava a um mingau mais consistente, também foi um dos
principais alimentos consumidos pelos pobres, uma vez que até os primeiros anos da Era
Cristã o pão foi um alimento caro. Foi utilizado como alimento pelos soldados de César, que
transportavam consigo a farinha dos grãos para matar a fome e a preparavam com água ou
leite.
A polenta preparada com farinha de milho, água e sal surgiu no Norte da Itália, após
a descoberta da América pelo navegador genovês Cristóvão Colombo em 1493. Colombo, ao
regressar, trouxe consigo algumas sementes desse cereal, que foi cultivado inicialmente na
Espanha, em Castel, Andaluzia e Catalunha; a partir de 1520, no Leste de Portugal; em 1523,
no Sudeste da França e entre 1530-1540 chega ao Norte da Itália, através de Veneza.
A substituição dos cereais pelo milho no campo ocorreu de forma lenta. Inicialmente
eram cultivados para serem utilizados como forragem ou cultivados em terras de camponeses,
que o utilizavam para sua própria alimentação. Pouco a pouco, porém, começou a despertar a
50 SOUZA, Elsa Vieira de. Santa Felicidade (Curitiba-Paraná): na polenta, uma história de hospitalidade. Balneário Camboriú, 2005. Dissertação (Mestrado em Turismo e Hotelaria). Universidade do Vale do Itajaí, Camboriú. p. 98. 51 CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2 vol. 1968. p. 199.
42
atenção dos grandes proprietários de terras pela sua facilidade no plantio, crescimento rápido,
fácil multiplicação, custo menor que os demais cereais e pelo seu ótimo paladar, excitando os
camponeses ao seu consumo. Aliado a este fator, o alto índice populacional da Europa, que
enfrentava crises de subsistência. Os camponeses, inicialmente, demonstraram resistência à
esse alimento, conforme nos relata Flandrin e Montanari52:
“Resistência justificada, porque desde que as bolachas e as papas de cevada ou de
milho foram substituídas pelas bolachas pela polenta de milho, surgiram epidemias de
pelagra. Provocada pela carência de vitamina PP, ausente no milho, essa doença primeiro
cobre o corpo de chagas purulentas, depois leva à loucura e morte”.
Com a introdução desta nova cultura, diminuem os casos de subsistência alimentar
na Europa. Os cereais tradicionais como o milho miúdo, o trigo mouro, a cevada e o milhete
perdem gradativamente a sua importância frente ao consumo de milho, alterando a base
alimentar do Norte da Itália. O milho não afetou diretamente a dieta alimentar européia. Para
os italianos da região Norte da Itália, o milho foi um alimento de subsistência pelos seus
valores nutricionais, transformando-se em um prato saboreado por diversas classes sociais.
Entre os diversos modos de preparar esse cereal, o que cativou o gosto dos italianos
foi cozinhá-lo em água fervente por uma hora ou mais, formando um creme consistente, a
polenta. A sua granulação sofre variações de acordo com a região. Na região norte da Itália
como Verona, Padova, Veneza, Mantova e Ferrara é costume usar a farinha branca. Já em
outras regiões consome-se mais a amarela. Nas regiões do Vêneto e do Friuli Veneza Giulia a
farinha é mais fina. Na região do Lazio sua granulação é mais delgada. Na Lombardia e na
região do Trento o gosto é pela granulação mais densa.
Um ponto de desencontro entre os italianos refere-se à paternidade da polenta, alvo
de disputa entre as regiões do Friuli Venezia Giulia e a Lombardia. Os friulanos atestam que
já no século XVI comercializavam a farinha de milho, possuindo documentos que comprovam
o fato. Para os lombardos, a documentação dos friulanos pode comprovar a primazia
comercial, mas não comprova que eles criaram o prato, uma vez que os lombardos foram os
primeiros a apresentar receitas italianas de polenta no século XVII, em Bergamo, uma de suas
cidades mais antigas.
“Os italianos do Norte têm há muito tempo o hábito de comer polenta: polenta
branca, feita de milhete na Idade Média, depois a polenta cinza de trigo-mouro na Renascença
e por fim polenta amarela de milho que faz desaparecerem as anteriores53”
52 Op. cit. FLANDRIN, 1998. p. 540. 53 Ibid. p. 590.
43
Atualmente, na Itália, a polenta é feita a partir da farinha de milho, com variantes em
seu consumo. No Friuli Venezia Giulia serve-se à polenta sob filés de rodovalho (espécie de
linguado) aromatizados com alho, enquanto que no Vêneto a polenta vem acompanhada por
receitas de bacalhau. Para os venezianos a polenta deve ser servida com molho de carne ou
cortadas em pedaços e depois fritos, acompanhando vários tipos de ensopados. Na Lombardia,
é ainda servida com passarinhos no espeto, dourados na manteiga. No Piemonte é consumida
com ovo frito na manteiga e lâminas de trufas brancas, colocada sobre finas fatias de polenta.
Já na região central da Itália é costume saboreá-la com lingüiça de trufa branca.
O Norte da Itália tornou-se o berço oficial da polenta. Com a escassez de alimentos
no século XIX, uma agricultura voltada mais para o mercado, a falta de incrementos agrícolas
e alta taxação de impostos, a industrialização não atendia a demanda do campo e a polenta
acabou se transformando em alimento básico para o camponês, sendo consumida
praticamente todos os dias da semana. Constata-se, nesse período, uma diferenciação
alimentar até mesmo em relação aos membros de uma mesma família. Como relatam Flandrin
e Montanari, durante a estação do verão em Cremona, na região da Lombardia, um camponês
com 42 anos de idade recebia alimentação padrão diária de 3,5 Kg de polenta, enquanto a
mulher com idade de 40 anos tinha o direito a consumir pouco mais de 2 Kg de polenta.
Demonstrando que a polenta matou a fome de muitos camponeses do Norte da Itália em
períodos de escassez de alimento, criando uma diferenciação alimentar no consumo deste
alimento, prevalecendo o sexo masculino, o pai de família.
A importância da polenta para os italianos, em especial do Norte da Itália, é ilustrada
na arte. O poema épico “Orlando Furioso”, escrito pelo poeta italiano Ludovico Ariosto, em
1505, fala do herói que morre após se fartar com uma variação de polenta. O poema
representa como a comida de pobres, a polenta, acabou invadindo todas as classes sociais,
dominando a culinária italiana. Outro exemplo é o livro “Pantagruel”, do escritor e humorista
francês François Rabelais, datado do século XVI, que faz referência ao millorque, que é a
farinha de milho cozida na água no cardápio do cozinheiro Maschecroutte. No século XVIII,
o dramaturgo veneziano Carlo Goldoni fez o personagem Arlequim ir para a cozinha preparar
polenta. Goldoni, em sua peça “La donna di garbo”, escrita em 1743, através da personagem
Isaura, uma fêmea de muitos atrativos, dá a receita de como preparar uma saborosa polenta
usando a delicadeza feminina. O mais belo exemplo da importância desse prato para os
italianos é o quadro do veneziano Pietro Longhi, denominado “La Polenta” (1735 – 1740)
eternizando o prato, onde uma mulher do povo derrama da panela uma massa dourada ao som
de instrumento de corda.
44
FIGURA 1 – QUADRO “LA POLENTA”
Fonte: Gastronomia ItaliaOggi, 2006.
A arte popular revela características de um povo, sua simplicidade, seu modo de
viver, expressando sua cultura, revelando sua alma popular. Em trabalho realizado na década
de 1950, a Profª Altiva Pilatti, em sua obra “Santa Felicidade” mostra como um processo de
assimilação é capaz de demonstrar a importância das tradições orais, que são os provérbios,
ditos populares e narrativas. Ao referir-se aos provérbios, destaca que estes “transmitem de
uma forma simples, profunda e poética, o bom senso popular e a experiência acumulada pelas
gerações mais velhas, encerrando um conteúdo moral ou social”.54 Os descendentes de
imigrantes italianos vênetos de Santa Felicidade transmitem, através de provérbios, a
importância da polenta, de comer a polenta. Esta transmissão, que passa de geração para
geração, como no provérbio “História de um menino que só comia polenta”:55
Una volta ghe gera um toseto che andava a scuola. El si ciamava Gionin. El Prete
54 Op. cit. BALHANA, 1958. p. 225. 55 Tradução: Era uma vez menino que ia à escola. Ele se chamava Joãozinho. O padre perguntava-lhe todos os dias que cousa havia ele comido: - “Que cousa tu comeste hoje Joãozinho?” – “Polenta” – “Quantas fatias?” – “Três fatias”. Joãozinho disse em casa: “Mãe, o padre pergunta-me todos os dias que cousa eu como”. – “Que cousa tu lhe dizes?” – “Polenta, três fatias”. – “Diga que comeste sopa hoje”. Na escola, o padre: - “Que cousa tu comeste hoje Joãozinho?” – “Sopa”. – “Quantos pratos?” – “Três fatias”. BALHANA, Altiva Pilatti. p. 230.
45
ghe domandava tutti i di cosa ch ' el magnava:
− “Cosa ghe tu magnà uncó Gionin?”
− “Poenta”.
− “Quante Fette?”
Gioanin ga eto a casa:
− “Mama, el Prete mi domandi tutti i di, cosa che magno”.
− “E cosa ghe dise tu ti?”
− “Poenta, tre fette”.
− “Diga Che te ga magna minestre uncò”.
A scuola el Prete:
− “Cosa ghe tu magna uncò Gioanin?”
− “Minestra”.
− “Quanti piatti?”.
− “Tre Fette”.
A Casa dos Contos possui em seu acervo vários contos populares, que são narrativas
faladas ou escritas relatadas pelos antigos moradores do Bairro de Santa Felicidade que estão
sendo resgatados pela Casa dos Contos, como este:
As festas de Santa Felicidade, hoje tão famosas, já tiveram seus tempos de
dificuldades. No começo, a organização batia de porta em porta. Depois, começou a ser
procurada por pessoas interessadas em participar. De quermesse de igreja, virou evento
turístico.
Foi na Bocca Maledetta, ponto de encontro já extinto de alguns italianos, que surgiu
a idéia da polenta gigante. Uma matéria na televisão dizia que em Erechim (RS) tinha sido
produzida uma polenta de 600 quilos. Assim, a Festa do Vinho de Santa Felicidade também
deveria aparecer na televisão, no programa de televisão “Fantástico” e a polenta gigante seria
o motivo. A idéia foi amadurecendo, alguns italianos começaram a emprestar seus tachos,
outros já começaram a inventar um fogão e uma colher movida pelo motor de uma furadeira
para dar conta de mexer a polenta. E o resultado foi uma polenta de 21 metros e 70
centímetros. Com ela, o bairro conseguiu 15 segundos no “Fantástico” na segunda Festa do
Vinho, há vinte anos atrás.
Com isso, veio o reconhecimento, mas também um outro problema. A Festa da Uva,
que já tinha 23 anos não tinha, ainda, uma atração como a polenta gigante. A solução foi
46
inventar a macarronada gigante. Só na primeira edição foram distribuídos mais de seis mil
pratos de macarronada, com molho e queijo parmesão.56
A polenta está também presente nas letras de músicas folclóricas. Em tempos de
carestia, o camponês italiano, conforme Marcelo Polinari57 “utilizou-se de outra estratégia que
fez da família a sua fortaleza. Nas letras não há predominância de fadas e outros seres que
resolviam a sua vida, mas sonhos nas letras de montanhas que se transformam em polenta e
rios”:
Polenta e Bacalhau
Se o lago fosse molho
E o Baldo uma polenta
O mãe, que comilança
Se o mar fosse molho
E os montes polenta
O mãe, comilança!
Polenta e bacalhau58
A polenta está presente na vida do italiano, seja nos momentos difíceis, sejam nos
momentos alegres. Esse prato – a polenta – representa um povo e a sua perpetuação na
história.
4.2 A POLENTA DE SANTA FELICIDADE
Os primeiros imigrantes italianos que chegaram à Colônia de Santa Felicidade
oriundos da região do Vêneto, norte da Itália, encontraram condições favoráveis para o
desenvolvimento de suas tradições campesinas. Altiva Pilatti Balhana descreve esta
influência, quando relata: “Também no estabelecimento do núcleo de Santa Felicidade
prevaleceu o pequeno lote rural como unidade de base no sistema de propriedade”.59
56 Extraído do acervo da Casa dos Contos de Santa Felicidade, em 23 de agosto de 2006. 57 POLINARI, Marcelo. Cantando a Vida. A mentalidade do Imigrante Italiano nas letras de Músicas Folclóricas. Curitiba, 1991. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. p. 112. 58 Ibid. p. 179. 59 BALHANA, Altiva Pilatti. Santa Felicidade, uma paróquia vêneta no Brasil. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1978.
47
A economia paranaense, até meados do século XIX, esteve pautada em um tipo de
produção agrícola restrita. Os mercados de Curitiba e Paranaguá destinavam-se à
comercialização de produtos básicos para a subsistência. Já na metade do século XIX, o
Paraná passa por um período de mudanças agroalimentares, colaborando para as modificações
dos hábitos alimentares. Para Carlos Roberto Antunes dos Santos60:
“O alimento constitui uma categoria histórica, pois deve ser explicados a sua
produção, circulação e consumo à luz dos níveis de desenvolvimento de uma determinada
formação econômica e social. Daí o aperfeiçoamento das técnicas da cultura e do sistema de
produção”.
Com sua emancipação política e administrativa, em 1853, o Paraná passa por um
período de grandes transformações. Com a abolição do tráfico de escravos e depois a abolição
da escravatura, ocorre abertura para o trabalho livre. Mediante a Lei de Terras imposta pelo
Governo Imperial, os imigrantes ficavam proibidos de adquirir terras devolutas por outro
título que não o da compra e a economia do mate atravessa um período de crise internacional.
Como nota Santos, em “História da Alimentação no Paraná” 61:
Diante de tais desafios, os governos provinciais passam a implementar políticas buscando a diversificação da estrutura econômica paranaense, com a introdução do processo imigratório e colonizador; com a aplicação de verbas em melhoramentos de obras públicas; com o início da construção da estrada da Graciosa ligando o planalto ao litoral e com o estabelecimento de duas colônias, a de Assungui e a de Superagui.
O milho era produzido nos núcleos agrícolas e nas pequenas roças e sítios. Nesse
cenário, a Colônia de Santa Felicidade participou da formação de um sistema de produção
agroalimentar. Entre os gêneros alimentares de maior importância para o Paraná, na segunda
metade do século XIX, destacava-se o milho, considerado gênero de primeira necessidade.
Para os imigrantes vênetos, que já estavam acostumados ao plantio deste tipo de cereal em seu
país de origem, o milho representava também aqui o alimento básico de sua dieta alimentar.
Observa-se que o milho era o alimento de subsistência, tanto para os colonos de Santa
Felicidade como para os seus animais de criação, destinado ao consumo doméstico e
dificilmente era comercializado. Balhana fala da agricultura de subsistência de Santa
Felicidade até meados do século XX, com policultura de gêneros para o seu próprio consumo
e para o intercâmbio comercial que realizava com o mercado urbano de Curitiba. Até a década
de 1950 prevaleceu a economia voltada para a subsistência, favorecida pela estrutura familiar
60 Op. cit. SANTOS, 1995. p. 124. 61 Ibid. p. 35.
48
de produção e pelo isolamento da colônia, o que contribuiu para o processo de sociabilidade
específica entre eles.
Considerando-se que o gosto por determinado alimento é transmitido culturalmente,
os imigrantes vênetos trouxeram consigo seus hábitos alimentares e procuraram adaptá-los ao
local onde se estabeleceram, cultivando os alimentos a que estavam acostumados. Assim,
trouxeram consigo algumas sementes do cereal, pois para os colonos vênetos o plantio do
milho daria o alimento básico para a sua sobrevivência, quando iniciavam uma nova vida,
cheia de privações, mas carregada de esperanças. A polenta era o alimento de sobrevivência,
representava uma dieta de vigor, de sustento, de manutenção de uma tradição alimentar,
carregada de simbolismo. Os imigrantes italianos vênetos trouxeram este hábito alimentar,
que foi repassado aos seus descendentes.
Ariovaldo Franco, ao tratar dos hábitos alimentares, fala “que cada sociedade escolhe
entre os alimentos virtuais de que dispõe, os alimentos que formarão seus hábitos alimentares,
que geralmente é um carboidrato que traduz saciedade”.62 Na mesa do imigrante vêneto da
Colônia de Santa Felicidade a polenta era o prato principal; constituía-se de água, fubá e sal, o
necessário para alimentar sua família.
A polenta faz parte, em primeiro lugar, da cultura italiana, porque era um prato que
custava pouco para eles, como um prato de muita saúde, sustentava para trabalhar, era o
sustento” (F. M., proprietária de restaurante em Santa Felicidade).
O preparo da polenta representa um ritual, e seus ingredientes são os mais simples
possíveis. Para os imigrantes italianos de Santa Felicidade, a manutenção do regime alimentar
significava manter laços com seus país de origem, prevalecendo a etnia do grupo.
“A polenta realmente é um costume italiano, mas é praticamente nosso aqui do
imigrante que vieram para cá” (I.B., descendente de italianos, um dos organizadores
responsável pelas Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango).
A polenta preparada pelos imigrantes italianos obedecia aos seguintes passos. Em
uma panela especial de ferro ou tacho de cobre, chamada de caliero, era colocada a água e o
sal. Esperava-se a água começar a ferver, quando se juntava a farinha de milho lentamente. O
fubá escorria entre os dedos da mão esquerda, enquanto na mão direita ficava uma pá de
madeira, “mêscola”; com ela, mexia-se a polenta até obter boa consistência, ficando sobre o
fogo em média de uma hora. Ao adquirir boa consistência, a polenta é retirada do fogo e
despejada sobre um tablado de madeira, o “panaro”; em seguida, é arrumada em forma de um
62 Op. cit. FRANCO, 2001. p. 26.
49
bolo e uma pequena pá, a “paleta”, já molhada em água fria, é passada sobre a polenta para
deixá-la lisinha.
Era tradição cortá-la com barbante sempre no sentido das bordas para o centro e
depois servi-la.
A gente amarrava barbante neste panaro e cortava-se a polenta com barbante, jamais se cortava a polenta com faca, porque os italianos antigos não deixavam, a faca tirava o sabor da polenta. Então era cortada com barbante, uma linha grossa e cortava, cada um cortava o seu pedaço, comia, se quiser repetir, mas deveria ser cortado com este barbante. (H. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
O que sobrava era reservado para ser preparada sobre uma grade de ferro, a qual era
colocada sobre o braseiro, preparando-se a chamada “polenta brustola” ou “brustolada”,
polenta torrada. Só poderia ser retirada do fogo quando formasse uma crosta torrada. Os
imigrantes italianos de Santa Felicidade também saboreavam a polenta doce, preparada com
fubá, açúcar, leite ou água, ovos e uma pitada de bicarbonato. Levada ao fogo ou na frigideira
para assar. Balhana nos relata que as crianças menores comiam polenta mole (itaioi), que não
poderia adquirir consistência, devendo ser retirada da panela ainda mole, como uma papa, e
era servida amassada com leite.
“Comia de manhã, meio-dia e a noite, era o sustento da família a polenta com leite...
Eram onze irmãos, todos criados com polenta e leite” (M. C., descendente de italiano).
[...] o costume era se alimentar bem de manhã, esta que é feita no dia anterior, não tinha geladeira, deixava lá encima. Jogava de manhã ela na chapa, chamada polenta brustolada, ela cria uma casquinha gostosa que as crianças gostavam de comer e ai você coloca leite numa tigela, não precisa disser que ela sustenta. Isso era gostoso, o breakfast italiano, era comer polenta com leite. (A. T., italiano, proprietário de restaurantes em Santa Felicidade).
Uma polenta deliciosa e apetitosa só poderia ser preparada com fubá fresco de boa
qualidade. Assim, era reservada a quantia necessária de fubá para o consumo. A dificuldade
que apresentava a preparação do fubá em casa exigia que o cereal fosse levado até o moinho
da colônia.
“[...] tinha um moinho de pedra e aquela pedra ia rolando, moendo o milho e aquele
milho se transformando em pó, que era polenta” (H. C., descendentes imigrantes italianos
vênetos).
Elsa Vieira dos Souza cita Sérgio Caparasso no Jornal Folha de Santa Felicidade, “o
crédito pelo uso de fubá branco devesse à figura de Nicolau Boscardin, que o fabricava em
50
seu moinho”.63
Era milho branco, branco. Muitos anos depois que veio o fubá amarelo, mas os italianos gostavam muito do fubá amarelo, mais eles gostam mais da polenta branca. Eles acham que a polenta branca é a principal, eles eram acostumados a comer na Itália, mas a amarela também tem muita qualidade. (H. C., descendente dos primeiros imigrantes italianos chegados ao bairro).
“Porque a polenta você pega água, ferve, joga o sal e o fubá branco. Esta aqui a
diferença dos italianos. O fubá amarelo para os italianos no Brasil era alimento para as
criações. O milho branco é moído duas vezes, bem fininho quase igual ao talco” (P. J. C.;
descendente de imigrantes italianos vênetos).
Quando os colonos iam à cidade com suas carroças, para vender seus produtos
hortigranjeiros, passavam antes pelo moinho, deixando lá a quantidade necessária de milho
para ser transformado em fubá. Ao regressarem, o fubá já tinha passado pelo processo de
moagem. A moagem custava barato, era cobrada por quilo e os colonos tinham o direito de
levar a casca do milho para os seus animais.
“[...] a gente levava de cinco a dez quilos de milho e trocava por cinco quilos de fubá
e a gente pagava a moagem para o senhor Napoleão, pagava e levava o fubá para casa
prontinho, era só fazer a polenta e comer” (H. C., descendente de imigrantes italianos
vênetos).
“Eles pegavam o milho, limpavam e punha para moer. Saía três tipos de farinha na
peneira: a bem fininha para fazer pão, a média para fazer mistura e a grossa para quem queria
e ainda saía o farelo para alimentar os porcos e galinhas” (M. C., descendente de italiano).
Em seu trabalho “Santa Felicidade: um processo de assimilação”, Balhana dedica um
capítulo à alimentação quotidiana do colono de Santa Felicidade. A autora se refere à polenta
feita com fubá, água e sal substituindo o pão, cujo consumo era de pequena relevância. Relata
como as refeições eram divididas, salientando que a polenta estava sempre presente.
A primeira refeição (magnare del matino) é realizado por volta das 6 horas. Nesta refeição comiam fatias de polenta torrada com vinho ou café. [...] às 9 horas, tomam uma segunda refeição (colazion), que geralmente consta de algumas fatias de polenta torrada,,ovos fritos ou lingüiça, com o vinho ou café. [...] ao meio-dia tem lugar uma das principais refeições é o almoço (desinare) que consta sempre de uma sopa (minestra). [...] completam o almoço com alguma fatia de polenta. [...] então o almoço e a ceia há a merenda (marenda) que é feita às 15 horas, quando tomam café com polenta torrada. Finalmente, às 19 horas, tem lugar a segunda refeição principal do dia que é o jantar (cena). Nele comem polenta e uma salada.64
63 Op. cit. SOUZA, 2005. p.124. 64 Op. cit. BALHANA, 1958. p. 110.
51
É interessante reproduzir a fala de dois entrevistados em relação à distribuição das
refeições:
A gente levantava muito cedo, de madrugada e ia para a roça. Tomava-se café bem reforçado. Levava numa cesta toda cortadinha, fatiazinha, embrulhada numa toalha branca, a polenta. E quando era lá pelas 9:00 horas da manhã, a gente fazia a chamada colazion, que era mais lanche que a gente fazia. Comia polenta com queijo, com carne e fazia lanche, colazion. Depois na hora do almoço se tivesse arroz, feijão e uma salada,, não se usava a polenta. Usava a polenta mais no jantar. (H. C., descendente de imigrantes italianos vênetos). De manhã bem cedo ao clarear do dia, depois a segunda refeição às 9:00 horas era a base e ai a polenta brustolada. Nas roças, nas campanhas onde se faziam espetos de mandiocas e se fritava a polenta a ao meio-dia ai assim adaptado ao feijão e se tinha o arroz, e a sobremesa era a polentinha.Às 3:00 horas, entre 3.30 da tarde, mesmo quem estava em casa e fora de casa na lavoura a polenta era indispensável, polenta, o queijo com chá de mate doce. (P. J. C.; descendente de imigrantes italianos vênetos).
Geralmente a polenta era comida com a mão e o uso do garfo e de outros talhares era
restrito. A polenta estava também presente nos mutirões, onde famílias inteiras se dirigiam
para o trabalho na roça. Ela representava o sustento para um dia pesado de trabalho,
representava solidariedade, elo de ligação de um grupo étnico reafirmando sua identidade.
Assim, a verdadeira unificação italiana ocorreu aqui. Para os imigrantes que aqui chegaram, a
unificação da Itália representou um acontecimento isolado de suas vidas e só passou a se
constituir em um fator importante aqui, determinante para construção de sua identidade étnica
frente a novas situações. Formavam um grupo coeso, tendo na gastronomia um de seus traços
unificador; aqui se tornaram italianos. A polenta estabelece vínculos sociais, símbolo de
identificação de uma cultura popular, de integração social.
4.3 A POLENTA INVADE O ESPAÇO PÚBLICO
Ao analisarmos o significado simbólico que a polenta assumiu perante os
descendentes de imigrantes italianos vênetos do Bairro de Santa Felicidade, percebe-se como
símbolo de fronteira étnica, desvalorizada no passado pelos curitibanos que a consideravam
“comida de cachorro”. O curitibano tinha o hábito de alimentar seu cão com uma mistura de
fubá, água e sobra de refeições, formando um tipo de papa semelhante à polenta consumida
pelos imigrantes. A polenta se tornou elemento de estigmação para a população curitibana e
os italianos passaram a ser chamados de “italiano cara de polenta”.
“Me lembro quando tinha 15 anos que estudava, me chamavam de italiano polenteiro
52
e a gente era mesmo, porque reclamar. O costume era falar “Oi, italiano, gigio polenteiro” a
gente comia polenta, mesmo” (A. T., proprietário de restaurantes em Santa Felicidade).
Basicamente a polenta era de manhã quando preparavam com café da manhã, acompanhada de polenta frita ou que se diz quente ou a polenta brustolada que se fazia na chapa e que se comia com café, leite, queijo, salame e se fazia verdadeiros banquetes e eles achavam vergonhoso comer polenta, que era mangiare de contadinos, comida de pobre pela falta de alimentação na Itália, achava que era ser miserável comer polenta. (P. J. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
Essa mesma polenta, estigmatizada no passado, hoje faz parte do cardápio de vários
restaurantes de Curitiba.
Quando vinham os estranhos nas casas dos colonos eles queriam a polenta brustolada, encima da chapa, e isso aconteceu exatamente isso, que ela deixou de ser exclusiva do colono para se tornar popular, a ponto de se tornar parte desejada de qualquer restaurante da região especialmente de Santa Felicidade que foi o primeiro, elaborando tanto a polenta frita quanto a polenta tombada no panaro em uma tabua apropriada, que ainda se degusta assim com tanto prazer e alegria. (P. J. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
A polenta servida hoje na maioria dos restaurantes de Santa Felicidade é a polenta
frita. Nas churrascarias da cidade, a polenta frita foi transformada em um prato pasteurizado,
embora a polenta represente um prato clássico italiano que sofreu transformações ao longo do
tempo. À medida que certos elementos característicos passam pelo processo de modernização
podem ser tornarem localizados. Essas características culturais tendem a se etnicizar,
prevalecendo suas características étnicas.
Mas hoje aqui ainda é tradição comer polenta, muitas famílias de descendentes continuam a fazer polenta, tem o hábito da polenta. Fora do bairro de Santa Felicidade tem várias famílias que costumam fazer polenta. Tem várias famílias em Campo Largo, que eu tenho conhecimento, têm em São José dos Pinhais, Colombo, lugares onde os imigrantes se espalharam na época, 1878 quando vieram os primeiros imigrantes. (H. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
A polenta invade o espaço público saindo do espaço privado. Roberto Da Matta65 em
“A Casa & A Rua”, aponta a distinção entre comida de rua e a comida de casa. A comida de
rua é informal, individualizada e a comida de casa exprime sociabilidade e está ligada à
afeição, ao intimo.
A comida do imigrante está presente nos vários restaurantes de Santa Felicidade.
65 DA MATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
53
Para Brillat-Savarin, ao trabalhar o homem e a comida em “A Fisiologia do Gosto”, cita em
particular que “entre os que acorrem em multidão aos restaurantes, poucos já pararam para
pensar que o homem que criou o primeiro restaurante teria sido um gênio e um profundo
observador da natureza humana66”.
A origem dos restaurantes do Bairro de Santa Felicidade tem relação com a Estrada
do Cerne, que ligava Curitiba ao Norte do Paraná, e por onde caminhoneiros passavam rumo
ao Porto de Paranaguá para escoamento das suas safras. Foi Dª Júlia Toaldo a primeira a abrir
um pequeno restaurante à beira da estrada, “servindo, na década de 1940, um prato único na
saída da missa de domingo, por volta das 11 horas da manhã. Em sua própria casa, servia um
prato composto de bife à milanesa com molho de carne picadinha, tendo como
acompanhamento pão e vinho67”.
Foi com a Estrada do Cerne que a Colônia de Santa Felicidade começou a crescer, e
o crescente fluxo de caminhões na estrada fez com que algumas famílias começassem a servir
refeições aos caminhoneiros. Em 1965, com a inauguração da Rodovia do Café, a Estrada do
Cerne perde seu movimento original. Porém, o asfalto chega à Avenida Manoel Ribas
também em 1965, o que incentivou alguma famílias a ampliar seu comércio e, assim, a
comida do imigrante italiano passou a fazer parte do cardápio de muitos restaurantes de Santa
Felicidade. Para Kluge68:
“As carroças que levavam as italianas à cidade para vender os produtos da colônia,
foram, aos poucos, se tornando apenas lembranças. Santa Felicidade não precisava mais “ir a
Curitiba”. Os curitibanos agora vinham até ela comprar o vinho e o vime, comercializados nas
adegas, nas fábricas e lojas de artesanato. E, principalmente, acorrem aos restaurantes de
‘mesa farta e comida boa’”.
O primeiro restaurante a servir a comida italiana em Curitiba, de acordo com Valério
Hoerne Júnior, foi o restaurante “Vagão do Armistício”, situado na Avenida Capanema, hoje
Avenida Afonso Camargo, que era de propriedade de Julia e Isaac Lazzarotto. O restaurante
abriu suas portas em 1937, servindo almoço aos oficiais da Subsistência do Exército. Servia
comida italiana mesclada à comida brasileira, e o sucesso foi tal que acabou se tornando ponto
de referência de pessoas do meio político, como Manoel Ribas e Moyses Lupion, além de
ponto de encontro de vários artistas, como Procópio Ferreira e Linda Batista. O segredo
estava no seu risoto, que vinha acompanhado de galinha assada, polenta com lingüiça e salada
66 BRILLAT-SAVARIN. A fisiologia do gosto. Rio de Janeiro: Salamandra, 1989. p. 279. 67 Op. cit. KLUGE, 1996. p. 67. 68 Ibid. p. 35.
54
amarga. A partir de 1954, o “Vagão do Armistício” lentamente encerra suas atividades nesse
ramo. Nesse mesmo período, alguns dos pequenos restaurantes instalados à beira da Estrada
do Cerne começam a criar sua identidade gastronômica, atraindo a atenção da população de
Curitiba.
Em 1952, é inaugurado, no Bairro de Santa Felicidade, o Restaurante Cascatinha, de
propriedade da família Trevisan.
A família em 1946 comprou esta propriedade aqui da família Manosso e já tinha uma agroindústria de moinho. A hidráulica da represa, a roda de água fornecia tudo. O cereal de milho da família Manosso foi comprado, o moinho Trevisan que funcionou com a queda da água que movia esta roda. A roda tinha o diâmetro de 3,5 de raio e 7 de altura, movia a engrenagens. Ai as carroças paravam, deixavam de manhã um saco de milho escrito com os nomes dos italianos e quando eles voltavam lá por meio-dia, pegavam o milho moído de fubá. E se ele não tinham dinheiro deixavam uma parte do produto, escambo como moeda. Não tinha dinheiro pagava com o produto. (A. T., proprietário de restaurantes em Santa Felicidade)
O sucesso do restaurante iniciou-se com Ogênio e Fiordalice Trevisan, que abriram,
na Estrada do Cerne, o Bar Cascatinha, servindo salgados aos curitibanos que aos domingos
vinham até a região desfrutar de um banho de cachoeira e fazer piquenique. Era, também,
servido almoço aos funcionários que trabalhavam nas pedreiras da região e para os carroceiros
e caminhões que por ali transitavam.
Era costume os caminhoneiros pararem para almoçar e o que se servia não era comida italiana, era prato feito: arroz, feijão, fritas, carne. Mas daí aqui tinha muitas pedreiras e as pessoas vinham comer aqui e eles viam que nós não comíamos arroz e feijão, que as pessoas da família comiam frango a passarinho, polenta e eles também queriam comer essa comida e ai a gente começou, resolveu abrir o restaurante à noite, a gente só abria de dia para os caminhoneiros. Era um recanto aqui, as pessoas passavam o final de semana, lazer, passavam o dia, chegavam de manhã e a tarde iam embora, isso nos anos 1950, 1960. Começamos a fazer essa comida a noite: radici com bacon, frango a passarinho, polenta e risoto. E essa sopa que a gente chama de brodo. (A. T., proprietário de restaurantes em Santa Felicidade).
O restaurante foi o primeiro a servir a típica comida italiana: frango a passarinho,
polenta, salada de radici e risoto. Interessante notar o relato do entrevistado sobre o
significado do prato frango a passarinho:
...quando moravam no sítio a 35 km daqui e a gente perguntava para meu tio mais velho quando não tinham o que comer o que faziam. A gente ia ao mangueiral do porco pegava a espingarda, dava um tiro e matava rolinhas e fazia com polenta, passarinho com polenta, não era sabiá, era rolinha que hoje tem na cidade. Então eles comiam isso na caçarola de pedra, fazia com polenta, o frango era o passarinho. Depois surgiu movimento ecológico e a própria conscientização e nunca mais se matou passarinho é isso, substitui o passarinho pelo frango, por isso ficou o nome
55
frango a passarinho. Cortado igual ao passarinho, o frango numa média de 28 a 32 dias de granja, não é mais caipira. Então por isso ficou o nome frango a passarinho, é uma adaptação. (A. T., proprietário de restaurantes em Santa Felicidade).
Hoje, seu cardápio destaca-se por continuar servindo a tradicional comida de
imigrante, com pequenas alterações. Dele faz parte o risoto com caldo, risoto seco, lasanha,
macarronada, frango prensado, frango a passarinho, fígado e moela de frango, polenta frita e
salada de escarola. Para a família Trevisan, pioneira da gastronomia italiana em Santa
Felicidade, determinação e trabalho construíram o sucesso do Restaurante Cascatinha. Hoje
são proprietários dos restaurantes Cascatinha e Castelo Trevizzo.
Na década de 1960 surgiu o Restaurante Madalosso. A família Madalosso chegou em
Curitiba em 1949 vinda de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, para o cultivo de uva. A
mudança de atividade para a família Madalosso ocorreu em 1963, quando Dª Flora e seu
esposo, Admar Bertolli, se interessaram em comprar o Restaurante Flórida, que ficava em
frente à casa dos Madalosso. O Restaurante Flórida possuía somente 24 lugares. Em três
meses de funcionamento já foi possível fazer a primeira reforma para melhor atender aos seus
clientes, investindo na divulgação do restaurante.
Três meses depois a gente começou a aumentar já o restaurante, sempre pensando em crescer um pouquinho mais, mas tendo a polenta sempre como carro chefe. Então como é que eu fazia a polenta. A gente começou a fazer num fogão de lenha, colocava cedo a panela e fazia duas toneladas por dia no começo de 15 quilos cada uma, ficava com ela duas a três horas no fogão a lenha, em cima do fogão até ferver a água. Na época não tinha máquina, nos fazíamos tudo no fogão a lenha, não tinha fogão a gás na época. E aí fomos crescendo, criando novas coisas, conforme as dificuldades domésticas, movimento crescendo e a polenta é o sucesso até hoje, até hoje. Foi no Velho Madalosso que tudo começou. (F. M., proprietária de restaurantes em Santa Felicidade).
Hoje, o Velho Madalosso dispõe de 340 lugares. Seu cardápio é distinto de outros
restaurantes típicos de Santa Felicidade por apresentar variedade de massas, servindo oito
tipos e carnes nobres.
Nós compramos o restaurante em 1963, eu comecei fazendo polenta e até hoje todos os dias. Ai a gente começou a fritar a polenta, fazia polenta hoje para servir amanhã, tem que cortar, fritar e comecei a servir frita. Fui uma das primeiras a servir polenta frita, sim. Fica mais prático pela demanda...Frango, polenta que era o carro chefe até hoje e risoto, salada, maionese. (F. M., proprietária de restaurantes em Santa Felicidade).
O grande sucesso levou, em 1970, à construção do Novo Madalosso, com dois
salões e 450 lugares. Atualmente, o Restaurante Novo Madalosso disponibiliza seis salões
56
com cinco mil lugares, e é mencionado no Guiness Book como o segundo maior restaurante
do mundo e da América Latina por quatro edições consecutivas. Seu cardápio consta de 15
opções de pratos servidos na forma de rodízio, como massas, polenta frita, frango e saladas.
Na mesa fica o frango, a polenta, risoto e as saladas e os garçons vão passando para servir quente toda hora, a polenta não fica na mesa fria, vão trocando sempre quentinha.... A polenta de domingo é feita sempre no sábado, nós fazemos na sexta-feira para servir no sábado. Porque corta bem fininho para fritar para ela não quebrar, você até pode fritar morno, mas ai ela não funciona pelo tipo de movimento que nós temos, é muito rápido. (F. M., proprietária de restaurantes em Santa Felicidade).
Percebe-se, durante a entrevista, a preocupação da proprietária com o gosto e com o
sabor da polenta, demonstrando a preocupação em servir bem seus clientes, enaltecendo a
qualidade da comida:
São apenas duas horas e meia, no máximo três horas no domingo para servir 2.000 pessoas e o nosso frango e polenta é frita na hora. Nós guardamos na câmara numa temperatura sempre de dois a três graus acima, não pode ser abaixo porque ela congelada perde o gosto, alem de perder o gosto ela fica congelada parece que vira toda a farinha. Eu não gosto que congele, ela perde o gosto, tira o gosto. (F. M., proprietária de restaurantes em Santa Felicidade).
A família Madalosso é também proprietária da Cantina Famiglia Fadanelli, que serve
22 variedades de massa e 15 opções de filet mignon. Assim, segundo F. M. , proprietária do
restaurante, “O Madalosso é uma referência, a polenta ajudou a atrair o turista”.
Santa Felicidade se tornou cartão de visitas de Curitiba, e os restaurantes que servem
comida típica dos oriundi são os responsáveis pelo sucesso do bairro, seu referencial turístico.
Seus restaurantes típicos, além de servir a farta e boa comida italiana, se diferenciam dos
demais restaurantes pelo seu aspecto informal. São espaços de sociabilidade. Ao discorrer
sobre os restaurantes do Bairro de Santa Felicidade, Kluge69 registra que:
São espaços onde se vai com a família ou em grupo de amigos. Onde existe a liberdade de tomar os alimentos com as mãos, a exemplo da polenta frita. Enfim, um ambiente “familiar” caracterizado pelo ruído dos pratos, pelo barulho das conversas , pelas crianças em suas “cadeirinha” altas [...], pela correria dos garçons equilibrando inúmeros pratos em eu braço. Enfim, estes restaurantes se caracterizam pela comida farta e barata, pelo ambiente descontraído e informal.
A comida típica do imigrante vêneto que passou a fazer parte do cardápio dos
restaurantes do Bairro de Santa Felicidade representa valores culturais de um grupo étnico
69 Op. cit. KLUGE, 1996. p. 82.
57
que, a partir cultura gastronômica, preserva a sua tradição e reencontra sua ancestralidade pelo
gosto. Os imigrantes italianos buscavam reconstruir sua identidade e, para tal, se apropriam de
sua culinária como elemento simbólico e a transformam em um prato típico, a polenta, o carro
chefe dessa representação.
A culinária do Vêneto foi adaptada ao gosto nacional e ir aos restaurantes de Santa
Felicidade tornou-se um hábito aos curitibanos. Saborear a polenta, um código simbólico, que
invade o espaço público dos restaurantes e as festas típicas italianas.
“A polenta não inovou, é igual. Faz parte da Gastronomia particular de Curitiba” (A.
T., proprietário de restaurantes em Santa Felicidade).
4.4 CONSTRUINDO O UNIVERSO SIMBÓLICO
A reconstrução da identidade dos italianos de Santa Felicidade é constantemente
reafirmada pelos seus descendentes através dos rituais locais, que são as festas típicas do
bairro: Festa da Uva e a Festa do Vinho, Polenta e Frango. Está presente também nos seus
restaurantes típicos. O alimento do passado é transformado em símbolo de italianidade, em
especial a polenta, identificada no passado como comida de carestia.
Cada grupo humano elege seu caráter alimentar. O gosto por determinado alimento
com o passar dos anos acaba se tornando parte constituinte de suas necessidades biológicas.
Nesse sentido, o alimento pode se transformar em comida quando um grupo de indivíduos o
assume socialmente e culturalmente, estabelecendo ou reforçando vínculos, criando
dependência recíproca entre membros do mesmo grupo. São nos momentos festivos que
certos pratos carregados de sentimentos e emoções revelam um passado distante que é
transportado para o presente pelos seus descendentes através de rituais, aqui a Festa do Vinho,
Polenta e Frango. Para seus descendentes existe um vínculo emocional ligado aos hábitos
alimentares de seus ancestrais e, portanto, uma cultura tradicional que os identifica enquanto
vênetos. Assim, as Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango representam verdadeiros
rituais de auto-afirmação e atualização da etnicidade italiana. É através da memória culinária
que buscam a perpetuação de seus hábitos alimentares, a identidade do imigrante italiano.
Nesse sentido, o trabalho de Da Matta , intitulado “Sobre o simbolismo da comida no
Brasil”70, demonstra que o alimento pode se transformar em comida quando um grupo de
70 DA MATTA, Roberto. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. In: Correio da Unesco, Rio de Janeiro, v. 15, n. 7, jul. 1987.
58
indivíduos o assume socialmente e culturalmente. E, como observa o mesmo autor, se
alimento é tudo aquilo que ingerimos para nos manter vivo, é universal; comida é tudo aquilo
que comemos com prazer, habitual. “A comida ajuda a estabelecer uma identidade, definindo,
por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa”.71
Ressalta-se que as Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango são momentos
especiais onde se recupera o tempo, o espaço e as relações sociais. O sentimento de
pertencimento traz orgulho aos descendentes italianos, revelado em suas atitudes, falas e em
sua cultura gastronômica. A construção da tradição é fortificada pela afeição, pelo amor à
cultura italiana. Este sentimento enaltecedor pela suas tradições faz com que os “italianos de
Santa Felicidade” se sintam distintos em relação aos curitibanos e aos outros italianos. As
festas típicas do Bairro de Santa Felicidade são rituais de celebração e de auto-afirmação de
um grupo étnico. Roberto Cardoso de Oliveira cita Fredrik Barth, dizendo que “grupo étnico é
unidade portadora de cultura, um tipo de organização social”.72
Observamos que diante da modernidade certas características culturais tendem a se
etnicizar, evidenciando certos elementos étnicos. Em Santa Felicidade, o elemento escolhido
pelos descendentes de italianos é a polenta.
Embora o Bairro de Santa Felicidade esteja dentro do processo de transformações
modernizadoras, os descendentes de italianos priorizam o passado e buscam sempre cultuá-lo.
Este culto à tradição se harmoniza com a modernidade e o progresso. Referindo-se à
preservação das tradições, falamos de tradições inventadas que, para Eric Hobsbawn, se
caracteriza em estabelecer com o passado histórico uma continuidade, ou seja, são atitudes
frente a situações novas que tem relação com situações anteriores, ou que estabelecem seu
próprio passado através da repetição. Este mesmo autor, quando se refere à invenção das
tradições, afirma que: “Por tradições inventadas, entende-se um conjunto de práticas
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição o que implica automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”73.
O processo de assimilação dos imigrantes não pode ser visto apenas como a junção à
sociedade de adoção. Ocorre a adaptação entre o imigrante e a sociedade que o adotou. Nesse
sentido, pode-se concordar com Balhana74, quando diz:
71 Op. cit. p. 59. 72 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia, e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976. p. 01. 73 HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997. p. 09. 74 Op. cit. BALHANA, 2002. p.267-268.
59
“Ninguém assimila sem ser transformado. Por outro lado, a assimilação não exige
necessariamente a substituição de todos os traços culturais originalmente adquiridos. [...].
Assim, estar assimilado não implica em perder totalmente os padrões culturais de origem, mas
em dar do seu contingente básico elementos que somados aos da cultura da sociedade de
adoção, juntos passam a fazer parte do patrimônio cultural”.
O imigrante, ao sair de seu país de origem, traz consigo os hábitos de sua terra, mas
frente a novas situações encontra na culinária sua referência diante da resistência à
aculturação. Entre os pratos típicos vênetos servidos nos restaurantes e nas festas típicas de
Santa Felicidade, a polenta se caracteriza pelo seu valor simbólico, representativo da
identidade vêneta, fornecendo à Santa Felicidade a identidade de bairro gastronômico. As
identidades não se originam de heranças culturais, mas são respostas de uma invenção
sucessiva de traços culturais. A identidade passa pelo processo de (re)criação de símbolos
diante de um passado histórico que agora é reinventado. As próprias festas típicas do Bairro
de Santa Felicidade representam espaços de reconstrução de valores étnicos, reinventando a
Itália.
A reconstrução de valores étnicos impõe a busca, a (re)criação de símbolos de
identificação que podem ser raciais, culturais ou lingüísticos. Esses símbolos representam a
integração social de um grupo; envolve, portanto, a identidade social ou coletiva que “surge
como a atualização do processo de identificação e envolve a noção de grupo, particularmente
a de grupo social. Porém a identidade social não descarta a identificação pessoal, pois está
também de algum modo é um reflexo daquela”.75
Para o estabelecimento da identidade social em sua expressão étnica é necessário que
ocorra a apropriação de alguns elementos de identificação que revele o processo de
identificação, ou seja, a sua auto-afirmação. Devemos perceber que a identidade étnica é vista
como um dos alicerces da identidade social. Assim, a identidade contrastiva é a origem da
identidade étnica. Para Oliveira76, identidade contrastiva “implica a afirmação de nós diante
dos outros. Quando uma pessoa ou grupo se afirma como tais, o fazem como meio de
diferenciação em relação alguma pessoa ou grupo com que se confrontam”.
É através da cultura culinária que os descendentes vênetos reafirmam sua identidade
étnica, reforçam a autenticidade da italianidade. As Festas da Uva e do Vinho, Polenta e
Frango operam como dogmas que representa o apego dos descendentes de italianos às suas
tradições, à busca da manutenção da identidade. O processo de repetição das tradições sempre
75 Op. cit. OLIVEIRA, 1976. p. 05. 76 Ibid.
60
recupera o passado que estabelece a memória de um grupo. “Nas sociedades atuais, a
ritualização deve ser permanente, sem o que o presente se esvairia na sua incessantemente
reatualizadas para que o vazio do tempo possa ser preenchido”.77
Os vênetos constroem a sua Itália, suas origens em torno de uma cultura
gastronômica. Um prato, a polenta, significou a privação, a carestia em tempo difíceis; hoje,
representa uma iguaria, o imaginário entre seu país de origem e o Brasil que os adotou,
ultrapassando as fronteiras étnicas.
“O italiano veio sem o feijão, o arroz para o Brasil, para eles era a polenta. Muitas
refeições eram feitas com polenta, frango e vinho” (F. M., proprietária de restaurantes em
Santa Felicidade).
Comer polenta, seja ela frita ou acompanhada de molhos, se tornou um prato do
curitibano. Embora a comida do imigrante de Santa Felicidade tenha sofrido transformações
ao longo do tempo, os curitibanos a adotaram, colaborando com a (re)construção do Vêneto e
de seu passado histórico. Esse processo reflete assimilação de certos pratos na dieta alimentar
do curitibano, denunciando o seu entrosamento com o clássico arroz com feijão.
“No início enfrentou-se primeiro as diferenças culturais, depois alimentares e houve
um certo entrosamento o que se comia aqui, o feijão, mandioca e raramente verduras, polenta
não conheciam aqui. Foi preciso que os italianos começassem a fazer seus jantares, almoços
colocando sempre a polenta” (P. J. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
Desta maneira pode-se concordar com Wilson Martins78, quando diz “realmente a
polenta é também alimento comum ao homem paranaense”.
4.5 FESTAS DA UVA E DO VINHO, POLENTA E FRANGO - INSTRUMENTO DE
LEGITIMAÇÃO
O universo da culinária italiana está presente nas festas típicas do Bairro de Santa
Felicidade, que são encontros familiares que buscam a valorização de certos costumes e
tradições. Assim, as tradições permitem a manutenção das raízes, podendo ser criadas,
inventadas ou reinventadas. Segundo Ortiz, as festas transpõem a totalidade das relações
capitalistas. Assim, a tradição é penetrada e sofre mudanças nos seus elementos essenciais. A
77 Op. cit. ORTIZ, 2000. p. 133. 78 MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente: ensaio sobre fenômenos de aculturação no Paraná. 2ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989. p. 312.
61
culinária gastronômica passa por esse processo, como muito bem destaca o mesmo autor “A
inovação, isto é, os pratos que vem de “de fora” se adaptam ao paladar local, sendo
“sincretizados” segundo as regras culinárias vigentes. O pesos dos costumes os enraíza à
terra”.79
As Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango são realizadas todo ano no Bosque
São Cristóvão, no Bairro de Santa Felicidade, conhecido como Bosque Italiano. É um espaço
reservado para eventos típicos e como área de lazer. O Bosque passou por transformações em
sua estrutura, em um trabalho realizado pela Prefeitura de Curitiba. Abriga o Memorial da
Imigração Italiana, a réplica da primeira matriz de Igreja de Santa Felicidade e as arcadas neo-
romanas. São festas familiares, em benefício da Paróquia de São José de Santa Felicidade,
sendo organizadas pela comissão administrativa da Paróquia. Têm a duração de um final de
semana, iniciando-se, oficialmente, na sexta-feira e terminando no domingo à noite.
A Festa da Uva é realizada no início do mês de fevereiro, e neste ano de 2006 foi
realizada a quadragésima oitava festa. A iniciativa da festa foi de um grupo de jovens
chamadas “filhas de Maria”, incentivadas pelo pároco da paróquia de Santa Felicidade.
Naquela época, havia muitas parreiras na região e a preocupação era o que fazer com as
sobras da uva. Assim, pensou-se em fazer a festa para que a produção fosse comercializada. A
primeira festa foi realizada no pátio da Igreja. No relato abaixo se percebe que a polenta
representava comida de pobre para os descendentes de italianos, e, como tal, não poderia ser
servida em ocasiões especiais. Hoje, porém, assume toda uma simbologia carregada de
orgulho para os descendentes de italianos.
Dependuraram os cachos de uva na parede da Igreja, arrumaram um banquinho com mesa e comercializaram uma quantidade de uvas. Fizeram churrasco porque não iam servir polenta para as visitas. A polenta era considerada comida de italiano pobre. Porque quando eles vieram da Itália para cá eles não tinham o que comer, vieram os pobres italianos para cá. A polenta era o alimento dos pobres, não iam servir polenta, serviram churrasco. (I. B., descendente de italiano, um dos organizadores responsáveis pela Festa da Uva e do Vinho, Polenta e Frango).
Somente três anos depois que a festa foi transferida para o Bosque São Cristóvão,
com a compra do terreno pela paróquia, recebeu o nome de São Cristóvão em devoção ao
santo padroeiro dos transportes, como forma de homenagear também o meio de transporte dos
colonos, as suas carrocinhas. No primeiro dia da festa é distribuído gratuitamente macarrão
como molho de carne moída. São comercializados pratos típicos do imigrante italiano, como
risoto, frango a passarinho com polenta frita e macarrão. Segundo informações fornecidas 79 Op. cit. ORTIZ, 2000. p. 78.
62
pelos organizadores da Festa da Uva, estiveram presentes este ano, nos três dias de festa,
cerca de 22 mil pessoas.
A Festa do Vinho, Polenta e Frango é sempre realizada no mês de julho. Inicialmente
chamada de Festa do Vinho, nasceu em 1982 com a idéia dos organizadores da Festa da Uva
que, preocupados com o excesso de chuva ocorrido naquela região, que provavelmente
afetaria a comercialização de mais de 4.000 kg de uva. Assim, os “organizadores decidiram,
então, transformar tudo em vinho na Cantina Dall'Armi, criando a Festa do Vinho alguns
meses depois. A Festa da Uva, realizada em fevereiro, comemora a vindima – a colheita da
uva; enquanto a Festa do Vinho, realizada em julho, festeja a safra anual do vinho”.80 É
somente a partir de 2003 que recebeu o nome de Festa do Vinho, Polenta e Frango, como
mais um atrativo principal.
A festa é realizada no Bosque São Cristóvão, e seu espaço abriga uma cozinha
especial, chamada de Polentera, que foi construída especialmente para a Festa do Vinho,
Polenta e Frango. De acordo com os organizadores da festa, a Polentera foi construída
durante o mandato do Prefeito Rafael Greca de Macedo. Sua construção foi planejada para
que o público participante da festa acompanhe todo o ritual do preparo da polenta, e sua
arquitetura retangular com nichos vazados em forma de arcos possibilita a celebração do ritual
de preparação.
Balhana descreve como era a cozinha do imigrante italiano de Santa Felicidade:
Nos rés do chão ficava a cozinha (cosina) [...] No interior da cozinha que é sempre ampla, ocupava lugar de destaque o fogão (focolare) de tipo aberto circundado por um pequeno muro de tijolos que se elevava a 40 ou 50 cms do solo. Este fogão de forma quadrada ou retangular ficava encostado a uma das paredes da cozinha. Os recipientes que estavam, ao fogo eram sustentados por correntes dependuradas em um gancho preso ao alto do fogão.81
80 Op. cit. KLUGE, 1996. p. 121-122. 81 Op cit. BALHANA, 1958. p. 51.
63
FIGURA 2 – CONFECÇÃO DA POLENTA NO ANTIGO “FOCOLARE”
Fonte: Acervo de Altiva Balhana
O caliero ficava preso em uma espécie de trava através de uma corrente, o que
permitia levantar movimentar a panela, seja para abaixá-la ou levantá-la.
A importância da cozinha no cotidiano dos italianos representa espaço de
sociabilidade, de trabalho, de transmissão do saber culinário. O fogão significa o instrumento
que vai fazer a transformação do fubá em polenta. Quando o odor da polenta exalava pela
casa, a polenta estava pronta.
A Polentera, a cozinha gigante do Bosque São Cristóvão, significa o resgate de
muitas lembranças preservadas na memória deste grupo étnico. Tradição renovada diante do
agora, do presente. Pode-se concordar com Da Matta82, ao citar o antropólogo americano
Clifford Geertz, que o mundo das comidas nos transporta para nossos familiares, amigos e
aqui me atrevo a colocar, para nossas origens.
O preparo das festas é algo que exige colaboração e trabalho árduo de seus
organizadores. De acordo com um dos organizadores da festa são 50 voluntários na cozinha e
350 voluntários na festa. Durante os três dias de festa são 50 casais se revezando na cozinha.
“Nós fazemos questão que sejam casais. Nós trabalhamos muito, o que trabalhamos
três dias inteiros precisa de ambiente familiar e de respeito e ao mesmo tempo alegre para
transmitir ao pessoal que aqui os italianos estão trabalhando para que a festa seja mais alegre,
ainda” (T. A., um dos organizadores responsáveis pelas Festas da Uva e do Vinho, Polenta e
82 Op. cit. DA MATTA, 1984. p. 53.
64
Frango).
Os valores sagrados para os imigrantes italianos, a família, a religião, o trabalho e a
alimentação, estão presentes na vida dos seus descendentes. Além de vínculos de
solidariedade, mantêm a coesão cultural do grupo.
A primeira reunião de montagem da festa é realizada com antecedência. A cozinha
fica fechada por um período, e o pessoal da cozinha começa semanas antes o trabalho de
limpeza do local. Os organizadores da festa se reúnem à noite para organizar a festa com
antecedência de duas a três semanas antes do dia da abertura da festa. A manutenção do
bosque é constante; assim que termina uma festa, já se começa a pensar na próxima,
investindo na melhoria do local e, assim, para T. A., um dos organizadores responsáveis pela
Festa do Vinho, Polenta e Frango, “a gente faz a tradição”.
São os homens que preparam a polenta na cozinha ao ar livre, a Polentera; as
mulheres ficam em uma outra cozinha situada em um grande pavilhão coberto. Neste pavilhão
são dispostas várias mesas compridas e bancos, que possibilitam às pessoas saborearem a
típica comida do imigrante italiano juntas, em um espaço de sociabilidade. Existe também no
pavilhão um palco para apresentação de shows musicais e vários quiosques, nos quais são
comercializados vinho, bebidas e refrigerantes. São as mulheres que cuidam dos detalhes na
cozinha, deixando tudo organizado para a festa. Na cozinha é preparado o jantar para todos os
voluntários com risoto, polenta com molho de carne moída e saladas e estas refeições
constituem-se em momentos de descontração para essa grande equipe.
“A Polenta é preparada com vários dias de antecedência. Porque é impossível fazer
isso nos dias da Festa, ela necessita de um tempo de repouso e será difícil atender a demanda.
Na festa da Uva deste ano foram 75 panaros, o que resulta entre 2.300 a 2.500 pedaços de
polenta frita” (T. A.; um dos organizadores responsáveis pela Festa do Vinho, Polenta e
Frango).
Na Polentera cabem 10 tachos de ferro pesando, em média, 50 quilos cada um; cada
tacho recebe 8 pacotes de fubá branco e 36 litros de água.
65
FIGURA 3 - VOLUNTÁRIOS NA POLENTERA DESPEJANDO A FARINHA DE MILHO
NO TACHO GIGANTE
Fonte: Acervo próprio
“Então eu imagino que no começo talvez se fazia um tacho deste só para uma festa.
Se você imaginar que há dois anos atrás nós fazíamos 3 mil quilos de polenta por festa, isso
que cada tacho deste tem 50 quilos, você imagina a quanto tempo estamos fazendo polenta,
aqui” (T. A.; um dos organizadores responsáveis pela Festa do Vinho, Polenta e Frango).
O seu preparo segue todo um ritual. Inicialmente são 10 pessoas do sexo masculino
que ficam mexendo continuamente a polenta por mais de uma hora, para não formar grumos.
FIGURA 4 – VOLUNTÁRIOS PREPARANDO A POLENTA COM A MÊSCOLA
Fonte: Acervo próprio.
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Dentro e fora da Polentera ficam posicionados de 05 a 10 homens aguardando a sua
vez para trabalhar a polenta. À medida que um deles se cansa é imediatamente substituído.
Enquanto aguardam a sua vez contam piadas, relembram histórias de seus antepassados. A
polenta fica quase uma hora cozinhando sobre um fogão retangular de tijolos.
É todo um ritual muito especial este cerimonial, não deixa de ser uma liturgia, é uma liturgia. Tem a liturgia sacral e tem também a liturgia que envolve gestos. Porque litus em grego significa gestos, palavras, ações e então não é uma liturgia naturalmente sacra, mas profana, é gastronômica. Se todo um ritual seja de colocar a farinha, o sal, a mêscola, que é a pá onde se mexe a farinha para não queimar. Cozinhar é produzir aquele gesto gostoso. Então além de todo este pessoal que prepara a polenta chega o momento da fritagem da polenta e ai também se desenvolve um ritual muito especial em torno do fogo. De um lado estão os homens fritando a polenta e de outro lado estão as mulheres, é o momento de servir que é muito gostoso. O povo faz filas enormes para conseguir obter seu prato de polenta. (A. C. C., pároco da Igreja de Santa Felicidade).
Os utensílios usados para preparação da polenta são: o tacho, panela especial para o
preparo da polenta; o desmoronador, usado logo no início para desmanchar a farinha de
milho; e a mêscola (pá de madeira), que é usada para mexer a polenta. Os voluntários
movimentam a mêscola sempre no mesmo sentido, o que ajuda a dar boa consistência à
polenta.
FIGURA 5 – VOLUNTÁRIOS MOVIMENTAM A MÊSCOLA NO INTERIOR DO
TACHO GIGANTE
Fonte: Acervo próprio
Os utensílios usados nesse momento assumem valor simbólico. São utensílios que
foram utilizados pelos imigrantes vênetos no preparo da polenta e que ainda são usados para
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tal em festas típicas e na casa de alguns descendentes. Neste momento, o valor simbólico
destes utensílios invade o espaço público, resgatando a memória impregnada de significados.
Nosso costume italiano, nós fazíamos polenta no caliero que é tacho em português, caliero no dialeto. Nós fazíamos uma polenta enorme neste tacho, daí nós tínhamos a tabua, de virar. Nós cozinhávamos uma hora e tinha que fica mexendo o fubá, uma hora ficava mexendo. Então tínhamos uma madeira que meu pai, meu avô fez para nós, que chamava panaro. É a tabua da polenta, no nosso dialeto chama panaro. (H. C., descendente de imigrantes italianos vênetos).
Aqui se observa a preocupação dos voluntários com a preparação da polenta, que
estabelece laços entre seus voluntários no preparo:
Espera-se chegar quase ao ponto de fervura, começa-se a desmanchar a polenta.. É uma polenta mais consistente porque ela vai ser frita, não aquela polenta que se come com molho. Ela sai daqui, eles a despejam em um panaro. Ela fica descansando, evaporando ainda alguma umidade e ai ela vai para câmara fria para pegar um choque térmico e daí ela fica com aquela consistência para o corte. (T. A.; um dos organizadores responsáveis pela Festa do Vinho, Polenta e Frango).
Percebe-se que o ritual de preparo da polenta é essencialmente masculino, como nos
coloca Kluge83 “o ritual masculino do preparo da polenta gigante reforça a idéia de que o
domínio público é o lugar dos homens para os italianos de Santa Felicidade”. Quando a
cozinha assume o espaço fora, como na preparação do churrasco, geralmente a churrasqueira
é à parte da casa, e o preparo fica a cargo do sexo masculino, sendo que as mulheres cuidam
dos acompanhamentos. O referencial masculino invade o espaço privativo das mulheres.
Observa-se, também, o papel desempenhado por esses voluntários do sexo masculino
no preparo da polenta, tanto nos dias que antecedem a festa como no próprio dia da festa,
quando assumem a função de polenteiros. São horas dedicadas ao preparo da polenta, longe
de suas atividades, do seu cotidiano, e o espaço da cozinha torna-se essencialmente
masculino. É um trabalho que exige habilidade, força, cuidados especiais com relação à
segurança. São anos de prática e também de prazer.
São quarenta e nove anos que eu faço polenta, desde o início. E que faz eu continuar, a vontade de não sair daqui. Porque aqui eu estou com os amigos, brinco, converso, dou risada, converso um com outro. Há dois anos estive doente, mais mesmo assim eu venho. Só deixo de fazer polenta o dia em que eu morrer. (L. A.; voluntário no preparo da polenta).
83 Op. cit. KLUGE, 1996. p. 129.
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Durante os três dias de festa, na cozinha diante das panelas de fritura da polenta e do
frango não existem mulheres trabalhando, são os homens que trabalham.
Olhe só o tamanho do fogão e veja o tamanho da mêscola. Neste fogão cabe 32 quilos de gás de alta pressão, é muito calor. As bombas ficam o tempo todo funcionando, filas enormes esperando para comprar uma polentinha frita. As mulheres são mais delicadas, se pegar muito calor... aqui são os homens que ficam. As mulheres servem as pessoas. (T. A.; um dos organizadores responsáveis pela Festa do Vinho, Polenta e Frango).
Na Polentera cabem 10 tachos, na cozinha mais quatro tachos de polenta para
completar o volume capaz de atender à demanda da festa. A polenta é feita à base de lenha,
porém existem restaurantes que possuem máquina industrial de fazer polenta, como o
restaurante Novo Madalosso, que foi o primeiro em Santa Felicidade a adquirir a máquina de
fazer polenta. A máquina foi fabricada no Rio Grande do Sul e funciona como um misturador
com água fervente.
FIGURA 6 – FUNCIONÁRIO DO RESTAURANTE MADALOSSO TRABALHANDO A
POLENTA
Fonte: Acervo próprio
“Hoje nós fazemos polenta nesta panela industrial... o segredo é cozinhar muito bem.
Ai nesta panela a gente bate ela bem e vai cuidando da polenta, não precisa ficar mexendo
como antigamente” (F. M., proprietária de restaurantes em Santa Felicidade).
Temos a maquina elétrica. Há vinte anos atrás nos fizemos de uma batedeira de
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sorvete fizemos uma batedeira de polenta, o mesmo principio da sorveteira. A única coisa é que na sorveteira embaixo vai álcool, com temperatura baixa...Com a batedeira de sorvete nós fazemos a polenteira. Hoje eles compram a maquina industrial de polenta, mas é bem diferente do que temos. Eles copiaram, elas são semelhantes a betoneira da construção civil. As polenteiras elétricas são semelhantes a betoneiras, de fazer concreto. A nossa é batedeira mesmo, feita no tacho de alumínio. (A. T.; proprietário de restaurantes em Santa Felicidade).
O que acabou criando a profissão de polenteiro, que fica observando o bater a
polenta e, em caso de formar pelotas, deve dissolvê-las.
Isso é uma tradição de fazer aqui, nós chamamos de Polentera. Essa polenta é à base de lenha, hoje existem as maquinas. Os restaurantes fazem na máquina, a polenta fica batendo na máquina. Nós queremos manter a tradição, porque nós italianos gostamos de nos reunir, de conversar, de contar história, de dançar, é assim alegre e sempre assim. Nós não queremos perder essa tradição, que vem também com a polenta. Então a polenta serve como uma identificação da cultura, da identificação dos costumes do povo italiano. (T. A.; um dos organizadores responsáveis pela Festa do Vinho, Polenta e Frango).
O processo de identificação é determinado pela auto-atribuição e a atribuição por
outros. Para Giralda Seyferth 84, as características que o próprio indivíduo revela como
primordiais são aquelas que eles selecionam. E, aqui, os descendentes de imigrantes se
definem como “italianos de Santa Felicidade”.
Nos dias que antecedem a Festa do Vinho, Polenta e Frango o preparo da polenta
exige todo um ritual que começa na Polentera. Quando a polenta adquiriu a consistência ideal,
em cada tacho é colocado uma espécie de cabo que segura o tacho de uma extremidade a
outra. O tacho é transportado até o pavilhão coberto e a polenta é despejada em um panaro
(tablado de madeira).
84 SEYFERTH, Giralda. Nacionalismo e identidade étnica. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1981.
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FIGURA 7 – A POLENTA SENDO DERRAMADA SOBRE O PANARO
Fonte: Acervo próprio.
Enquanto os outros homens aguardam o tacho, ficam contando os minutos que cada
dupla leva para sair da Polentera e descer até o local onde se encontra o panaro, uma disputa
alegre com brincadeiras e muita piada, um momento de sociabilidade. Logo em seguida, é
passada sobre a polenta “la paleta” (pá de madeira) para alisar e dar forma.
FIGURA 8 – VOLUNTÁRIO PASSANDO “LA PALETA” SOBRE A POLENTA
Fonte: Acervo próprio.
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Em seguida, a polenta é transportada por meio de um carrinho para a outra cozinha,
a fim de ser colocada em cima de um balcão para esfriar até que ela forme uma casquinha
que, na hora de fritar, é retirada.
FIGURA 9 – DISPOSIÇÃO DOS PANAROS
Fonte: Acervo próprio.
A seguir, a polenta é levada para uma câmara fria, onde os panaros ficam todos
empilhados para que o ar possa entrar. No dia da festa ela está pronta para ser frita.
A abertura da Festa do Vinho, Polenta e Frango acontece na sexta-feira, a partir das
18 horas, com a apresentação da Banda Lyra da Fundação Cultural de Curitiba. Às 19 horas
ocorre a abertura oficial, com a presença do pároco, do prefeito de Curitiba e vereadores do
bairro. Em seguida, é tocado o Hino do Paraná, o Hino do Brasil, e o Grupo Vocal I Veneti in
Brazile canta o Hino da Itália. São momentos de muita emoção. Mesmo os participantes da
festa que não entendem o idioma italiano acompanham sua melodia, emocionados.
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FIGURA 10 – CONVITE DA FESTA DO FRANGO, POLENTA E VINHO
Fonte: Associação do Comércio e Indústria de Santa Felicidade
No primeiro dia da Festa do Vinho, Polenta e Frango é servida, gratuitamente,
polenta com molho de tomate e carne moída. O preparo da polenta, neste dia, é acompanhado
pelo público participante desde o seu início na Polentera. O preparo segue os mesmos passos
daquele realizado nos dias que antecedem a festa, porém, neste dia, se torna um momento
mágico. É o retorno ao passado, à história desses imigrantes italianos que chegaram ao Brasil
repletos de sonhos e que souberam transformá-los em realidade, com muito amor à sua Itália e
à esta cidade que os acolheu.
Cada tacho com a polenta é carregado por dois voluntários, uma dupla de cada vez,
que descem até a área coberta do pavilhão onde é derramada sobre um gigante panaro de 30
metros. Este é o momento mais esperado da festa, a derrubada da polenta sobre o panaro.
FIGURA 11 – A POLENTA SENDO DERRAMADA SOBRE O PANARO GIGANTE
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Fonte: Acervo próprio
À medida que a polenta é despejada sobre o panaro gigante é passado sobre ela “la
paleta” para deixá-la uniforme, evitando que ela transborde.
FIGURA 12 – PASSANDO “LA PALETA” SOBRE A POLENTA GIGANTE
Fonte: Acervo próprio
O trabalho é realizado por um dos mais antigos representantes do grupo de
organizadores da festa. Em seguida, é jogado sobre a polenta o suculento molho à bolonhesa,
feito com muito carinho pelas mulheres da cozinha que também participam deste ritual
fazendo o molho, a partir de uma receita que passou de mãe para filha.
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FIGURA 13 – DESPEJANDO O MOLHO À BOLONHESA SOBRE A POLENTA
GIGANTE
Fonte: Acervo próprio.
E, finalmente, o último toque: é salpicado sobre a polenta queijo parmesão ralado.
FIGURA 14 – MEMBROS DO GRUPO FOLCLÓRICO ÍTALO-BRASILEIRO SALPICAM
O QUEIJO RALADO SOBRE A POLENTA
Fonte: Acervo próprio
As pessoas acompanham todo o processo da polenta sendo despejada sobre o panaro,
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aplaudindo em meio a uma grande coluna de vapor. Todos ficam aguardando com seus pratos
de plástico nas mãos a distribuição da polenta pelos jovens componentes do Grupo Folclórico
Ítalo-Brasileiro de Santa Felicidade, vestidos com seus trajes típicos. Quando a polenta
começa a ser servida, o pavilhão inteiro já está impregnado pelo aroma da polenta cozida. A
polenta fumegante rouba a atenção do público participante da festa, em um verdadeiro
momento de entrelaçamento de culturas, que são enriquecidos com as vozes do Grupo Vocal I
Veneti in Brasile que canta junto com o público “La Bella Polenta”.
Quando si pianta la bella polenta. La bella polenta si pianta cosí. Si pianta cosí...
oh, oh, oh bella polenta cosi. Cia cia pon – Cia cia pon – Cia cia pon pon pon pon
.../ Quando la cresce la bella polenta. La bella polenta si cresce cosi. Si cresce
cosí... Oh, oh, oh bela polenta cosí. Cia cia pon – Cia cia pon – Cia cia pon pon pon
pon .../ Quando fiorisce la bella polenta. La bella polenta fiorisce cosí. Si fiorisce
cosí... Oh, oh, oh bella polenta cosí. Cia cia pon – Cia cia pon – Cia cia pon pon
pon pon.../ Quando si coglie la bella polenta. La bella polenta si coglie cosí. Si
coglie cosí... Oh, oh, oh bella polenta cosí. Cia cia pon – Cia cia pon – Cia cia pon
pon pon pon.../ Quando si masna la bella polenta. La bella polenta si masna cosí. Si
masna cosí... Oh, oh, oh bella polenta cosí. Cia cia pon – Cia cia pon – Cia cia pon
pon pon pon.../ Quando si cose la bella polenta. La bella polenta si cose cosí. Si
cose cosí... Oh, oh, oh bella polenta cosí. Cia cia pon – Cia cia pon – Cia cia pon
pon pon pon.../ Quando si taglia la bella polenta. La bella polenta si taglia cosí. Si
taglia cosí... Oh, oh, oh bella polenta cosí. Cia cia pon – Cia cia pon – Cia cia pon
pon pon pon.../ Quando si mangia la bella polenta. La bella polenta si mangi cosí.
Si mangia cosí... Oh, oh, oh bella polenta cosí. Cia cia pon – Cia cia pon – Cia cia
pon pon pon pon.../ Quando si gusta la bella polenta. La bella polenta si gusta cosí.
Si gusta cosi... Oh, oh, oh bella polenta cosí. Cia cia pon – Cia cia pon – cia cia pon
– Cia cia pon pon pon pon...“85
Ver que junto com esta polenta existe o canto, a parte cultural do canto, da música, então alguns pegam seus pratos e vão dançando com os pratos na mão, fazendo como que uma cantarola. O embalo que a gente faz para a criança dormir e assim também parece que este prato com polenta é uma maneira de embalar-se dentro daquele ritmo da música, da dança, da alegria e a gente vai comendo, vai rindo, vai cantando enfim toda uma liturgia que realmente não deixa de expressar a vida de um povo, a cultura de um povo, a alegria de estar vivendo o momento de muita festa, de muito amor, muita paz.(A. C. C., pároco da Igreja de Santa Felicidade).
Durante os dias da Festa do Vinho, Polenta e Frango, a polenta é retirada da câmara
fria e trazida até a cozinha da comunidade, onde é frita. A polenta não é cortada com uma
linha especial, como era o costume dos imigrantes italianos.
A pessoa que vai cortar tem um medidor, então ele já sabe os tamanhos dos
85 Tradução de A Bela Polenta: “Quando se planta a bela polenta. A bela polenta se planta assim. Se planta assim...oh, oh, oh bela polenta assim/ Quando cresce a bela polenta. A bela polenta ela cresce assim. Cresce assim...Oh, oh, oh bela polenta assim/ Quando floresce a bela polenta. A bela polenta floresce assim/ Quando se colhe a bela polenta. A bela polenta se colhe assim. Se colhe assim/ Quando se mói a bela polenta. A bela polenta se mói assim/ Quando se cozinha a bela polenta. A bela polenta se cozinha assim/ Quando se corta a bela polenta. A bela polenta se corta assim/ Quando se come a bela polenta. A bela polenta se come assim/ Quando se saboreia a bela polenta. A bela polenta se saboreia assim... (Tradução cedida por Pedrinho Culpi, divulgador da cultura italiana).
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pedacinhos. Ele corta com a faca, tira a casca primeiro. Eles não cortam muito, dependendo do movimento. Eles não cortam muito para deixar para o estoque fora, porque nós não gostamos de deixar a polenta fora senão ela não fica muito boa para cortar, então eles vão tirando meio que certinho. Cada panaro chega a dar 2.330 a 2.500 pedaços de polenta. (T. A.; um dos organizadores responsáveis pela Festa do Vinho, Polenta e Frango).
De acordo com B. C., responsável por cortar a polenta em pedaços, no começo era
difícil cortar a polenta em quadradinhos mais ou menos iguais.
“Fazia-se um quadradinho de polenta e colocava-se pendurado na parede para que na
hora de cortar a polenta servisse de modelo”.
O Restaurante Madalosso, hoje, possui uma máquina de cortar polenta.
FIGURA 15 – MÁQUINA DE CORTAR POLENTA
Fonte: Acervo próprio
Nos dias que segue a festa, são vendidas porções de polenta frita acompanhada de
frango a passarinho, risoto, macarronada e salada. São dias de muita alegria, festividades
regadas com apresentações musicais de grupos locais com repertório genuinamente italiano.
FIGURA 16 – GRUPO VOCAL I VENETI IN BRASILE
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Fonte: Acervo próprio.
“A famosa Festa da Polenta não deixa também de entrelaçar amizades, gente que se
convida, gente que vem de longe, gente que é convidada para se encontrar. Também a polenta
é o símbolo do encontro, de amigo, de família unida nesta cultura italiana, muito interessante
todo este aspecto da Festa da Polenta” (A. C. C.; pároco da Igreja de Santa Felicidade).
As Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango tornaram-se festas tradicionais de
Curitiba de grande popularidade, perdendo apenas para a Festa de São Francisco de Assis, no
Largo da Ordem, que é realizada no mês de setembro.
Santa Felicidade é o segundo pólo turístico do Paraná, perdendo somente para Foz de Iguaçu. Então o pessoal sabe que aqui em Santa Felicidade tem a comida e o pessoal vem para comer comida italiana, lógico que eles aproveitam o show, os grupos folclóricos que se apresentam, mas a comida típica italiana é o grande foco. Em uma reportagem na última Festa do Vinho, Polenta e Frango o repórter entrevistou um japonês. E perguntou sobre a festa e ele respondeu assim: “O japonês por alguns dias e algumas horas se torna italiano comendo polenta fritinha na hora”. (T. A.; um dos organizadores responsáveis pela Festa do Vinho, Polenta e Frango).
Segundo informações cedidas pela ACISF, estiveram presentes nos três dias da Festa
do Vinho, Polenta e Frango vinte e cinco mil pessoas e foram consumidos quarenta três mil
quilos de polenta.
A região de Santa Felicidade transformou-se em ponto de referência tanto para os
descendentes de imigrantes italianos como para as pessoas que a visitam. Para os
entrevistados, quando se fala de Santa Felicidade está se referindo àquele trecho onde ficam
os restaurantes, os pontos comerciais. Santa Felicidade, hoje, continua representando um sinal
78
de demarcação para identidade étnica desse grupo vêneto. O fato de ser reconhecido e
reconhecer-se frente aos demais está dentro do processo de transformação, de movimento.
Um grupo étnico não sobrevive sozinho, são necessários outros grupos para compartilhar, os
quais se identificam e é identificado, reafirmando suas diferenças. “A auto-afirmação e
atribuição que envolvem o problema de identificação dos membros do grupo usando critérios
comuns”.86
Apesar da interação que ocorre entre o público da festa e a tradição italiana, percebe-
se que existem duas festas. Na parte de cima do bosque encontramos o pavilhão coberto com
a cozinha comunitária, barracas de vinho, mesas e bancos enormes, o palco e a Polentera. Na
parte de baixo do Bosque temos as barraquinhas que comercializam produtos artesanais,
salgados, bebidas e, também, os locais de diversão infantil. O que é percebido nas festas
típicas do Bairro de Santa Felicidade, é que de um lado temos o ambiente familiar, o consumo
de pratos típicos dos imigrantes italianos e, de outro, temos barracas com diversos produtos
para venda, inclusive alimentar, onde ocorre o distanciamento do tradicional, entrando na
modernidade, aproximando comportamentos de consumo. A globalização acaba forjando
novas identificações culturais. Quando saímos do pavilhão o momento mágico se desfaz,
aquele pedacinho da Itália é deixado para trás e entramos no mundo da modernidade, da
homogeneização. “Temos um grupo que preserva suas origens, sua história “num passado tão
distinto que eles se perdem nas brumas do tempo”.87
Uma vez que identidades, diante da globalização tendem, conforme relata Stuart88:
“A se tornarem desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e
tradições especificas [...] Há também uma fascinação com a diferença e com a
mercantilização da etnia. Parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir as
identidades nacionais. É mais provável que ela vá produzir simultaneamente novas
identificações globais e novas identificações locais”.
Como símbolo de identificação, a polenta representa a gastronomia de um povo, sua
cozinha étnica que recorda o país de origem de seus antepassados. Conservar a tradição de
preparar a polenta e de degustá-la representa perpetuar uma memória coletiva, seu sentimento
de pertencimento a uma etnia, tendo na gastronomia seu elemento transmissor. Os
entrevistados se preocupam em manter o hábito de comer a polenta, e com estas colocações é
possível afirmar a valorização desse prato e sua tradição.
86 Op. cit. SEYFERTH, 1981. p. 05. 87 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997. p. 59. 88 Ibid. p. 79-83.
79
“Eu faço uma vez por semana polenta, claro que eu faço pouco... Mas hoje aqui
ainda tem a tradição, muitas famílias de descendentes continuam a fazer polenta, tem o hábito
da polenta” (H. C.; descendente de imigrantes italianos vênetos).
“Nós como vivemos no restaurante, a esposa faz uma carne, faz macarronada e a
polenta comemos aqui no restaurante” (A. T.; proprietário de restaurantes em Santa
Felicidade).
“Aqui em casa tem o hábito de jantar polenta e frango e quando hospedo italianos da
Itália eu faço polenta” (H. S.; descendente de italianos).
“Tenho o hábito de comer polenta de quatro a cinco vezes por semana, tanto tombada
como frita, quando sobra do dia anterior” (P. J. C.; descendente de italianos vênetos).
“Meus filhos gostam e reconhecem que a polenta é uma tradição, identificação, mas
pela vida e pelo trabalho não fazem. Mas sempre vão aos restaurantes comer polenta frita”
(M. C.; descendente de italiano).
A continuidade de um passado histórico é que define um grupo étnico. Para Arlene
Renk89 o grupo étnico, para se estabelecer, precisa “Fazer parte do convívio com outros
grupos, das suas relações sociais, usa alguns traços culturais para definir-se enquanto tal.
Esses traços culturais recebem o nome de idiomas de etnicidade”.
Entre os vários idiomas de etnicidade temos a religião, a língua e também a
alimentação. Os descendentes de imigrantes italianos de Santa Felicidade se apropriam desses
idiomas de etnicidade e aqui, de forma especial, de um prato de sua culinária, a polenta, para
perpetuar suas tradições. Cultuar uma tradição implica na reconstrução da identidade étnica, o
que, por sua vez, implica na invenção das tradições.
CONCLUSÃO
89 RENK, Arlene. Dicionário nada convencional sobre a exclusão no oeste catarinense. Chapecó: Grafos, 1997. p. 41.
80
O presente trabalho teve por objetivo pesquisar um elemento gastronômico da cultura
italiana, no caso a polenta, e o seu processo de desenvolvimento, destacando-a como símbolo
de identidade dos descendentes de italianos do Bairro de Santa Felicidade.
A imigração italiana no Paraná inicia-se oficialmente em 1871 com a instalação dos
primeiros imigrantes italianos no litoral paranaense. Com o surgimento de alguns problemas
de adaptação à região, os imigrantes transferiram-se espontaneamente para o planalto de
Curitiba, onde o clima e a terra contribuíram para sua fixação, favorecendo o nascer de uma
economia urbana, tendo no imigrante italiano um elemento urbanizador.
Para as primeiras famílias de imigrantes italianos oriundos da região Norte da Itália,
a compra de um pedaço de terra significava o início da realização de um sonho “fare la
Merica”, e assim nascia a Colônia de Santa Felicidade, hoje o tradicional Bairro de Santa
Felicidade, uma referência gastronômica.
Para o imigrante italiano chegado à Colônia de Santa Felicidade, em sua maioria da
região do Vêneto, o isolamento espacial a que estavam submetidos, bem como a dificuldade
de adaptação ao idioma e aos hábitos alimentares brasileiros auxiliaram na formação deste
grupo étnico. Para estes imigrantes, a Itália era vista como um país fragmentado, sem uma
identidade própria; identificavam-se apenas pela sua região de origem, como friulanos,
lombardos, trentinos, vênetos. Frente às mais diversas dificuldades encontradas, passaram a se
identificar como “italianos”; assim, mesmo longe de seu país de origem, a Itália constituiu-se
em lugar de referência. Aqui se tornaram todos italianos, não importando a região de onde
vinham, construindo sua identidade étnica. A maioria de seus descendentes, hoje, possui a
dupla cidadania, o que leva ao sentimento de orgulho de pertencer à pátria de seus
antepassados. A base para a construção da identidade étnica é a identidade social, entendendo-
se que a identidade social, enquanto expressão étnica, busca elementos de identificação frente
a outros grupos, a outras situações. Temos, aqui, a identidade contrastiva.
Os imigrantes italianos, ao chegarem em Santa Felicidade, traziam consigo não só
esperanças, mas também seus hábitos nativos, e são justamente seus hábitos alimentares que
resistem às transformações ocorridas diante de uma nova vida. Encontram na comida toda
uma simbologia, uma forma de resistência ao processo de aculturação. A polenta se torna uma
forma de identificação, de expressão cultural. Para eles, a polenta também assume a sua
representatividade, pois na Itália, em tempos de pobreza e de falta de comida, foi o alimento
que saciou a fome dos colonos e aqui, começando uma nova vida, a polenta também era o
alimento de carestia.
81
A polenta foi um prato estigmatizado pelos próprios curitibanos, uma vez que o
imigrante italiano era visto como pessoas empobrecidas, que não tinham o que comer em seu
país de origem, criando-se um rótulo para a polenta como sendo “comida de pobre”. Mas à
medida que o tempo foi passando, o imigrante italiano vai vencendo barreiras, cria a sua
autonomia e o que era estigma no passado passa a ser valorizado. A polenta, hoje, se tornou
um prato pasteurizado, sendo servido em vários restaurantes e churrascarias de Curitiba. Nos
restaurantes do Bairro de Santa Felicidade que servem a típica comida do imigrante italiano, a
polenta tornou-se, porém, um elemento simbólico.
Os primeiros restaurantes instalados à beira da Estrada do Cerne deram origem a essa
tradição de servir a típica comida italiana, destacando-se a polenta pela sua representatividade
e simbologia originária dos primeiros imigrantes chegados a Colônia de Santa Felicidade.
Este imigrante, ao valorizar um prato, a polenta, estava criando uma identidade social ao
grupo. Como já foi citado, a polenta saciou a fome de colonos em tempos de privação e foi
eleita por uma comunidade de descendentes de italianos vênetos como elemento transmissor
de uma cultura gastronômica, e é através da memória que ela se mantém.
Falamos de memória coletiva, pois é justamente a memória coletiva que dá
continuidade a essa tradição e fortalece a identidade do grupo. Aqui, a memória coletiva é
entendida como delineador de tradição, de continuidade, não permitindo divisões temporais
entre o passado e o presente.
Percorrendo a trilha da memória foi possível entender esta simbologia dada à
polenta. Nas entrevistas, buscamos compreender o significado atribuído a um prato,
resgatando experiências individuais de cada entrevistado. Entendemos que a memória coletiva
alimenta-se da memória individual, o que faz com que a memória coletiva se transforme em
espaço de tradição. Assim, a historia oral tornou-se fundamental para a análise do significado
atribuído à polenta pelos descendentes de imigrantes italianos do Bairro de Santa Felicidade.
Observou-se que os entrevistados sempre que se referem aos dias difíceis de sua
infância e dos seus antepassados, na chegada à Santa Felicidade, falam de carência, de não ter
o que comer. O milho representa o alimento do quotidiano, que era transformado em farinha
de milho e, depois, em alimento. Por isso é tão presente, nas falas, relatos a respeito dos
moinhos, das pedras que esmagavam o milho e produziam aquela farinha mais fina, quase um
pó que, levada para casa, ia se transformada em um delicioso prato, a polenta. O aroma e o
sabor são muito presentes durante as entrevistas. Quando recordam de sua infância, é como se
esse aroma e o sabor da polenta fossem transportados para o presente, ultrapassando a barreira
do passado.
82
As lembranças do passado enaltecem a qualidade da farinha de fubá branco, próprio
da região do Vêneto, e é o que dá um gostinho todo especial à polenta servida nos restaurantes
e nas festas típicas do bairro. Junto com essas lembranças, é recuperado o valor simbólico de
certos instrumentos usados para fazer a polenta como o “caliero”, espécie de tacho grande
onde é feita a polenta, e a “mêscola”, que é a pá de madeira usada para mexer a polenta
durante seu cozimento impedindo que ela embolote e o barbante para cortar a polenta depois
de pronta, porque a faca tirava o sabor daquela deliciosa polenta feita com tanto carinho e
dedicação para a família e amigos.
A figura da mãe, avó, bisavó é muito presente durante as entrevistas. São elas as
responsáveis pela transmissão do saber, do fazer a polenta que segue todo um ritual e como o
ato de comer a polenta foi passada de uma geração para outra, onde cada membro da família
torna-se responsável pela continuidade dessa tradição. Diante da modernidade a tradição de
preparar a polenta no ambiente doméstico não é muito cultuada. As pessoas mais idosas ainda
continuam a fazer polenta em casa, uma ou mais vezes por semana, prevalecendo a polenta
acompanhada com algum tipo de molho e a polenta frita somente quando é sobra do dia
anterior. Já os mais jovens reconhecem a polenta como símbolo de identificação de
italianidade, porém, não fazem a polenta em casa, seja pelos contratempos da vida moderna
ou porque o preparo da polenta exige quase uma hora perto do fogão. Muitas vezes fazem a
opção pela polenta pronta instantânea, que pode ser conservada por alguns meses em
temperatura ambiente, cujo preparo não exige muito tempo e pode ser frita, assada ou servida
com molho.
Os imigrantes italianos da Colônia de Santa Felicidade saboreavam a polenta
acompanhada com molho, ou simplesmente só a polenta, ou polenta brustolada, feita sobre a
chapa, e também a polenta doce. Não era costume preparar a polenta frita, que hoje é servida
em vários restaurantes de Santa Felicidade. Como surgiu a polenta frita ninguém sabe explicar
realmente, se foi pela facilidade que ela apresenta, para aproveitar as sobras do dia anterior ou
porque foi a polenta frita que caiu no gosto do curitibano e do turista que vai à Santa
Felicidade comer a comida do imigrante. Outro fator que causa polêmica é descobrir entre os
restaurantes que servem a típica comida do imigrante qual foi o primeiro a servir a polenta
frita. Assim, recuperar a memória dos entrevistados é recuperar a memória da polenta.
Os descendentes de italianos vênetos do Bairro de Santa Felicidade estão enraizados
neste sentimento de pertencimento ao grupo que conserva heranças do passado, perpetuadas
na sua gastronomia através dos rituais locais que são as festas típicas do bairro: Festa da Uva
e Festa do Vinho, Polenta e Frango. Participam, também, da manutenção desta herança do
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passado os restaurantes de Santa Felicidade que servem a comida típica do imigrante italiano,
tendo na polenta seu carro chefe, responsável por transformar o Bairro de Santa Felicidade no
centro da gastronomia italiana em Curitiba. Nos restaurantes encontramos um ambiente de
sociabilidade, onde famílias vão saborear a típica comida do imigrante italiano e desfrutar de
um ambiente familiar. A gastronomia do Bairro de Santa Felicidade tornou-se patrimônio
cultural de Curitiba.
As Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango, destacando-se a Festa do Vinho,
Polenta e Frango buscam a reconstrução dos valores étnicos e de sua identidade, reforçando
sua italianidade. De modo especial os descendentes vênetos,uma vez que dos imigrantes
italianos chegados à Colônia de Santa Felicidade, 90% eram oriundos da região do Vêneto.
Perante isso, pudemos observar a preocupação dos organizadores da Festa com a manutenção
da tradição, a continuidade de uma cultura popular através da sua culinária. A ameaça da
globalização exige dos descendentes uma permanente ritualização para que o passado não se
perca; por isso, as festas típicas do bairro são verdadeiros rituais que restabelecem a ligação
do grupo por intermédio da comida típica do imigrante italiano, em especial, a polenta. Ao
oferecer o seu prato típico estão demarcando seu espaço e, ao mesmo tempo, recebendo neste
lugar delimitado outros grupos. A identidade é fortificada frente à homogeneização da cultura;
podemos falar, portanto, que “lapidam o simbólico”, privilegiando sua dimensão simbólica.
A tradição é apoiada em conteúdos culturais que são passados de uma geração para
outra. Os momentos festivos refletem o universo simbólico, a relação entre o passado,
presente e futuro. O passado está arraigado na memória que é dividida com a coletividade.
Entender porque as festas típicas do Bairro de Santa Felicidade são momentos de ritualização,
em que se busca resgatar a história de um grupo de imigrantes, os vênetos, que deixaram seu
país de origem em busca de melhores condições de vida, focalizando um período limitado e
determinado de tempo, implica para seus descendentes que o passado não pode ser esquecido;
ele traz a história, a memória de um povo que viu na emigração uma solução para os
problemas internos que afetavam seu país e a eles próprios.
A força de vontade e a persistência são os fios condutores dessa história que é
contada de geração para geração. Para os descendentes vênetos, deve-se comemorar
anualmente a história de seus ancestrais como exemplo de luta, trabalho e dignidade para que
esta história não se apague no tempo. A repetição é a continuação de um passado elaborado
segundo os acontecimentos que são marcados a partir do presente. Ao ser venerado em
ocasiões especiais, simboliza recriar esse passado reconhecido pelos seus descendentes, que
se auto-afirmam perante um mundo globalizado, de mundialização da cultura.
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Ao buscar o passado, festejam a “invenção” deste passado para o presente. Tornar o
passado presente é uma forma de mantê-lo vivo, sendo constantemente atualizado para que
não se perca diante dos horizontes abertos pela modernidade. Nesse sentido, entende-se que as
Festas da Uva e do Vinho, Polenta e Frango de Santa Felicidade representam momentos em
que os descendentes vênetos compartilham seus principais valores: Família, Trabalho,
Religião e Alimentação, com a comunidade. Todos estão convidados a participar destes
momentos, quando ocorre o entrelaçamento de identidades.
A polenta transformou o Bairro de Santa Felicidade em lugar de memória.
Terminando a minha conclusão, coloco a frase de um proprietário de restaurante do Bairro de
Santa Felicidade que reflete a importância deste prato, a polenta, para os descendentes de
italianos.
“A polenta é a história do Bairro de Santa Felicidade”.
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ANEXO
ANEXO 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTAS
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� Dados Pessoais: nome, idade, profissão, escolaridade.
� O que levou seus antepassados a escolher a cidade de Curitiba para fixar residência.
� Que atividade se dedicaram inicialmente.
� Como foi a adaptação a nova vida, em um país distante da sua terra natal.
� Em relação aos hábitos alimentares, como foi o processo de assimilação. Mantiveram os
hábitos alimentares de seu país de origem.
� Sabemos que certos pratos italianos ainda hoje mantém-se na mesa de seus descendentes.
Falando da polenta poderia falar o que esse prato representou para seus antepassados e o
que representa para você.
� Para você a polenta continua sendo um alimento diário nas refeições familiares. Quantas
vezes por semana é consumida em sua casa.
Como fonte complementar visitei alguns restaurantes do Bairro de Santa Felicidade que
servem a típica comida do imigrante italiano, em entrevista com os proprietários destes
restaurantes a pergunta formulada foi:
� O restaurante oferece a polenta em seu cardápio e por que?