UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE … · pólo oposto da saúde, este trabalho teve...

166
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA LUIZ HENRIQUE DA SILVA LESSA REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE SAÚDE E SEUS INDICADORES A PARTIR DE CANGUILHEM E WINNICOTT Orientador PROF. DR. ANDRÉ MARTINS Rio de Janeiro 2008

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE … · pólo oposto da saúde, este trabalho teve...

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA

LUIZ HENRIQUE DA SILVA LESSA

REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE SAÚDE E SEUS INDICADORES A PARTIR DE CANGUILHEM E

WINNICOTT

Orientador

PROF. DR. ANDRÉ MARTINS

Rio de Janeiro 2008

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA

REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE SAÚDE E SEUS INDICADORES A PARTIR DE CANGUILHEM E

WINNICOTT

LUIZ HENRIQUE DA SILVA LESSA

Dissertação de mestrado em Saúde Coletiva apresentada como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Saúde Coletiva.

Orientador

PROF. DR. ANDRÉ MARTINS

Rio de Janeiro 2008

Lessa, Luiz Henrique da Silva

Reflexão sobre o conceito de saúde e seus indicadores a partir de Canguilhem e Winnicott / Luiz Henrique da Silva Lessa – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2008.

155 f. : il. ; 31 cm

Orientador: André Martins

Dissertação (mestrado) -- UFRJ, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, 2008.

Referências bibliográficas: f. 131-135

1. Saúde. 2. Processo saúde-doença. 3. Indicadores básicos de saúde. 4. Indicadores de morbi-mortalidade. 5. Promoção da saúde. 6. Conhecimento. 7. Vida. 8. Qualidade de vida. 9. Epidemiologia. 10. Psicanálise. 11. Saúde coletiva - Tese. I. Martins, André. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva. III. Título.

LUIZ HENRIQUE DA SILVA LESSA

REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE SAÚDE E SEUS INDICADORES A PARTIR DE CANGUILHEM E WINNICOTT

Dissertação de mestrado em Saúde Coletiva desenvolvida no Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Aprovado em: Rio de Janeiro, 10 de março de 2008

Banca examinadora

_________________________________________________________ Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho (IESC/UFRJ)

________________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme Loureiro Werneck (ENSP/ FIOCRUZ)

________________________________________________________ Prof. Dr. Kenneth Rochel de Camargo Jr. (IMS/UERJ)

À Prof.ª Mônica pelos grandes ensinamentos.

AGRADECIMENTOS Agradeço a Danae pelo amor, apoio, compreensão e entusiasmo em nossa caminhada juntos. À minha mãe pelo apoio, carinho e incentivo de sempre e por me ensinar a gostar de aprender. À minha avó, agradeço o tempero que deixa minha vida mais saborosa. A meu irmão pela paciência, companheirismo e entusiasmo. Vocês quatro aumentam muito a minha saúde. Ao Prof. André Martins minha gratidão pelos ensinamentos, pela paciência, pela orientação cuidadosa e pela alegria de ensinar. Aos professores Kenneth de Camargo Jr. e Guilherme Werneck pelas contribuições à época da qualificação e por me darem a honra de tê-los em minha banca de defesa. Agradeço a meus amigos, Denise, Eduardo e Raphael pelo incentivo, apoio e discussão crítica do projeto de pesquisa. A Catarina e Thaaty, amigas e colegas de orientação, agradeço por partilharem comigo seus saberes e experiências. A meus amigos George, Alessandro, Klaus, Brunos, Renata e Tamara, agradeço a amizade expressa na alegria dos nossos encontros e pelo apoio de sempre. Agradeço a Walter pela revisão do abstract. Aos professores do IESC e IMS/UERJ pelas aulas estimulantes e pelo incentivo de sempre. Aos funcionários do IESC pela atenção e presteza com que sempre me atenderam. E a CAPES pelo apoio financeiro em forma de bolsa

Agradeço ainda a todos aqueles que não foram citados diretamente, mas que contribuíram para a realização desta pesquisa e, sobretudo, para minha caminhada até aqui.

“O meio mais seguro de esclerosar uma idéia é venera-la”.

Boris Cyrulnik in Sobre o signo do afeto

RESUMO

A definição de saúde como ausência de doença – definição negativa – reduz o processo saúde-doença a seus aspectos biológicos, subestimando a importância dos aspectos psíquicos e sociais. Têm-se como conseqüências a supervalorização de ações biomédicas, a hierarquização das profissões em saúde e a adoção de indicadores de saúde baseados em morbidade e mortalidade. Partindo do pressuposto de que a doença não é o pólo oposto da saúde, este trabalho teve como objetivo redefinir saúde positivamente, de forma a valorizar os aspectos psíquicos e sociais desta e relativizar o papel da doença na definição da saúde individual e coletiva. Para tanto, utilizou-se o conceito de normatividade de Canguilhem e criatividade de Winnicott como pontos de referência para a redefinição aqui proposta. Utilizando-se o método filosófico-conceitual de construção e atualização de conceitos de Martins, saúde foi redefinida como a capacidade que um indivíduo, entendido como unidade somatopsíquica, conquistou ao longo do seu desenvolvimento de ser criativo e normativo, de sentir-se e mostrar-se autêntico e potente frente à vida, apesar dos constrangimentos inerentes ao viver, inclusive o adoecimento. Sugere-se, inicialmente, cinco elementos facilitadores da saúde redefinida que poderão no futuro servir de base para a criação de indicadores positivos de saúde, quais sejam: capacidade de ser espontâneo, capacidade de ser inventivo ou de ação e transformação da realidade compartilhada, expectativas em relação ao futuro, sentimentos positivos em relação a si e apoio social. Por fim, conclui-se que definições positivas de saúde podem trazer novo sentido para as políticas e ações de promoção de saúde, fazendo com que estas sejam, por exemplo, baseadas nos elementos facilitadores de saúde aqui apresentados, diferenciando-se assim claramente as ações de promoção de saúde das ações de combate às doenças. Conclui-se ainda que a potencialização do trabalho de clínicos e gestores depende não apenas do desenvolvimento de ferramentas metodológicas, mas, fundamentalmente, do constante debate epistemológico em saúde. Palavras-chave: Conceito de saúde; Indicadores de saúde; Canguilhem; Winnicott

ABSTRACT The definition of health as absence of illness – a negative definition – brings the

health illness process to it’s biological aspect underestimating the importance of social and psychological aspects. As a consequence, we have the over improvement of biomedical actions, the hierarchical aspect related to health professions and health indicators based in health problems, particularly morbidity and mortality. Based on the assumption, that illness in not the opposite of health, this text’s objective is to find a new positive definition, to improve psychical and social aspects of health and to play down the role of illness in the definition of individual and group health. We have then used the concepts of normativity

from Canguilhen and creativity from Winnicott as references points for the new definition proposed in this text. Using the philosophical-conceptual method of construction and updating the concepts of Martins, health has been redefined as the capacity that an individual as somatopsychic unit, has achieved his development as a creative and normative human being, to feel and show it-self as authentic and powerful in the face of life despite all constraints that are inherent in human life, including illness. We propose five elements to redefine health that in the future could be used to create positive health indicators. They are: the capacity to be spontaneous, capacity to be inventive or to act and change their shared reality, expectations for the future, positive feelings toward the self and social support. We then concluded that positive definitions of health could bring new light into political actions and health promotion, based on the concepts presented above. We can then clearly make the difference between those actions that promote health from the ones that prevent and fight illness. We concluded that to turn clinical work and managers more efficient we don not depend only on methodological tools but fundamentally in a continuous epistemological discussion on health. Key words: health concept; health indicators; Canguilhem; Winnicott

SUMÁRIO

Apresentação.......................................................................................................................11 Capítulo 1 – Indicadores de saúde: os desafios de medir a saúde..................................22

1.1 – Definindo indicadores de saúde.......................................................................22 1.2 – Quem indica os indicadores: os critérios para a construção de instrumentos de

mensuração da vida.............................................................................................35 1.3 – O que indicam os indicadores de saúde?.........................................................39 1.4 – O conceito negativo de saúde..........................................................................44 Capítulo 2 – Redefinindo saúde a partir de Canguilhem e Winnicott...........................56 2.1 – A normatividade como modelo de saúde para Canguilhem.............................56 2.1.1 – O risco de uma compreensão solipsística da saúde...........................65

2.2 – Criatividade e espontaneidade: a concepção winnicottiana de saúde..............71 2.3 – A saúde como potência.....................................................................................84 2.4 – Elementos facilitadores da saúde redefinida....................................................90 2.4.1 – Capacidade de ser espontâneo...........................................................92

2.4.2 – Capacidade de ser inventivo ou de ação transformadora da realidade compartilhada.............................................................................................93

2.4.3 – Expectativas positivas em relação ao futuro......................................94 2.4.4 – Sentimentos positivos em relação a si próprio..................................95 2.4.5 – Apoio Social......................................................................................96 2.5 – Críticas à positivação da saúde.........................................................................99 Capítulo 3 – Qualidade de vida e resiliência: duas experiências de positivação do

conceito de saúde.......................................................................................110

3.1 – Qualidade de vida...........................................................................................110 3.2 – Resiliência......................................................................................................123

Conclusão...........................................................................................................................137 Referências.........................................................................................................................143 Anexos................................................................................................................................148 1 – WHOQOL-100………………………………………………………………..149 2 – The Resilience Scale.........................................................................................163 3 – Escala de Resiliência.........................................................................................165

12

APRESENTAÇÃO

A tarefa de definir saúde, de transformar essa palavra em conceito, tem-se

mostrado um dos grandes desafios para o campo da saúde. Apesar da pluralidade de saberes

envolvidos na tarefa e da produção de algumas definições, há uma reconhecida dificuldade

em definir saúde como algo diferente de ‘ausência de doença’, o que chamamos de

definição negativa. O célebre livro O Normal e o Patológico, de Canguilhem, é um

exemplo de como a saúde pode ser definida de maneira positiva e conjugando diferentes

saberes. Entretanto, apesar de aclamada, a obra de Canguilhem se situa numa zona marginal

em relação à definição hegemônica e negativa de saúde. Os indicadores de saúde, por

exemplo, sofreram pouca ou nenhuma influência da definição de Canguilhem – que

concebe a saúde como a capacidade de ser normativo, flexível em relação às exigências do

meio – e mantêm o foco nas taxas de mortalidade e morbidade.

Tomar a saúde como ausência de doença é um problema que atinge o campo da

saúde como um todo e tem como conseqüência primeira a supervalorização dos aspectos

biológicos em detrimento dos aspectos psíquicos e sociais da vida, além da hierarquização

dos saberes e das profissões em saúde. A centralidade dos aspectos biológicos, sobretudo a

categoria doença, nos estudos e ações em saúde pode ser comprovada pelo grande número

de indicadores de saúde baseados em mortalidade e morbidade produzidos pela

Epidemiologia.

Almeida Filho (1990 e 2000a) e Barreto (1990) afirmam que a Epidemiologia, mas

não apenas ela, o campo da saúde como um todo, tem negligenciado a produção conceitual

13

a respeito do objeto saúde e concentrado esforços na produção de métodos de mensuração

da saúde, definida negativamente, e modelos biomédicos de patologia.

Parece-nos que a falta de um referencial teórico que defina saúde de maneira

positiva tem levado o campo da saúde a produzir taxas específicas e chamá-las de

indicadores de saúde. Essa é uma confusão epistemológica que se traduz na figura de

linguagem chamada metonímia. Ou seja, ao medir um determinado atributo da vida

coletiva, toma-se esse atributo como a saúde inteira. Trata-se de tomar a parte pelo todo e

reduzir a saúde a um único atributo.

A partir da recomendação da Organização Mundial de Saúde – OMS – de que os

indicadores de saúde devem cobrir aspectos variados da vida como saneamento, lazer,

educação, liberdade, transporte, economia, habitação, etc, argumentamos que uma taxa

isoladamente não deveria ser considerada indicador de saúde, visto que para cumprir a

recomendação da OMS, um indicador de saúde deveria ser um instrumento complexo

composto por diferentes medidas1 e por métodos não-quantitativos de avaliação da saúde.

Dessa forma, entendemos que o que indica saúde não é a taxa em si, pois esta mede um

atributo muito específico, como mortalidade, por exemplo, mas o conjunto de ferramentas

selecionadas a partir de uma definição prévia de saúde e de critérios dessa saúde definida.

Neste trabalho procuraremos redefinir o conceito de saúde a partir de Canguilhem e

Winnicott e sugerir elementos facilitadores dessa saúde redefinida que possam servir no

futuro para a construção de novos indicadores de saúde.

1 Durante o texto optamos por usar as palavras “medida” e “índice” como sinônimos genéricos de taxas, razões e proporções. Ainda que isto represente uma imprecisão do ponto de vista conceitual-matemático, acreditamos que o texto ganhará em fluidez. Dessa forma, alertamos ao leitor para que entenda por medida e índice toda sorte de expressão matemática ou estatística que busca quantificar o estado de saúde de um indivíduo ou população.

14

Para tanto, apresentamos no primeiro capítulo uma discussão acerca do que são

indicadores de saúde, para que servem e como são escolhidos. Nesse capítulo,

acompanhamos o pensamento de Vermelho, Costa e Kale (2004) na apresentação de uma

série de indicadores de saúde que têm por base índices de mortalidade e morbidade, e

chamamos a atenção para o seguinte comentário dos autores: “paradoxalmente, tais

indicadores expressam a falta, ou ausência de saúde, pois, em sua maioria, são medidas da

freqüência de óbitos em populações humanas”. (Vermelho, Costa & Kale, 2004:54)

Esse comentário nos levou a discutir a partir de Martins (1999), Almeida Filho

(1990, 2000a, 2000b), Almeida Filho & Jucá (2002), Segre & Ferraz (1997) e Barreto

(1990) o conceito de saúde que sustenta os indicadores baseados em morbidade e

mortalidade. Conceito esse que, como denuncia Almeida Filho (2000a), é normalmente

entendido como ausência de doença.

Ao final do capítulo um, argumentamos a favor da redefinição do conceito de saúde

e da construção de indicadores baseados não na doença ou na morte, mas na saúde

entendida como potência que um indivíduo tem de transformar sua própria vida, inclusive

apesar das doenças.

No segundo capítulo, apresentamos a concepção de saúde de Canguilhem (2002),

entendida como normatividade e a concepção de saúde do psicanalista e pediatra inglês

Donald Winnicott (1975, 1983, 1990, 1999, 2000, 2001) que define saúde como a

capacidade de ser criativo e espontâneo.

Canguilhem, em O Normal e o Patológico, sua tese de doutorado, debate com

teóricos da fisiologia e patologia dos séculos XVIII e XIX, principalmente o fisiologista

Claude Bernard (1813-1878), para demonstrar que não há continuidade entre os estados de

15

saúde e doença. Diferentemente de Bernard que afirma a partir de Broussais (1772-1838)

que a diferença entre normal e patológico é de natureza quantitativa, Canguilhem propõe

que normal e patológico são qualitativamente diferentes. Para Canguilherm, os fenômenos

patológicos não são anormais, visto que eles também estabelecem uma norma, uma nova

norma. Entretanto, o que a faz patológica é o fato de ser uma norma inferior, menos flexível

do que a saúde. Nas palavras de Canguilhem (2002):

“Não há indiferença biológica. Pode-se, portanto, falar em normatividade biológica. Há normas biológicas sãs e normas patológicas, e as segundas não são da mesma natureza que as primeiras”. (Canguilhem, 2002:99)

O que o autor diz ao afirmar que não há indiferença biológica, é que a vida cria

modos de operar de acordo com as condições dadas pelo ambiente. Dessa forma, é próprio

da vida, e da saúde, a modificação, a criação de normas que melhor atendam às exigências

do meio. Portanto, não é o fato de modificar sua forma de operar no mundo que faz com

que o organismo seja patológico, mas as conseqüências qualitativas dessa modificação.

Uma das inovações do pensamento de Canguilhem está em valorar um organismo a

partir da relação deste com o mundo e não a partir de médias estatísticas. Para este autor,

saudável é o que mantém e potencializa a vida e patológico é o que suprime ou torna a vida

precária. Segundo Canguilhem (2002):

“Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores – quanto à estabilidade, à fecundidade e à variabilidade da vida – às normas específicas anteriores, serão chamadas patológicas. Se eventualmente, se revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade. O patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida”. (Canguilhem, 2002:114)

16

Como vemos, normal e patológico não se definem pelo fato de haver modificação

da vida, mas pela qualidade da modificação. A flexibilidade biológica é própria da saúde e

caracteriza-se pela capacidade de adaptar-se ativamente às variações do meio, de produzir

novas e melhores normas de vida. Isto é o que Canguilhem chama de normatividade.

Dessa forma, a saúde entendida como a capacidade de ser normativo nos remete à

complexidade da vida e não, como veremos, ao ideal de saúde da OMS ou, de tal modo, a

definições negativas. A concepção canguilhemiana de saúde inclui a doença, visto que

adoecer é próprio do viver. Nesse sentido, a doença pode ser um momento de reorganização

do organismo, um momento de crise em que se produz uma nova norma, que ao invés de

extinguir a vida, a torna possível por modificá-la. Nas palavras de Canguilhem (2002):

“Quando se diz que a saúde continuamente perfeita é anormal, expressa-se o fato da experiência do ser vivo incluir, de fato, a doença”. (Canguilhem, 2002: 107)

E ainda:

“A doença é ao mesmo tempo, privação e reformulação” (Canguilhem, 2002:149)

A partir da obra de Canguilhem, os conceitos de saúde e doença se redefinem. O

primeiro passa a ser entendido como a capacidade de ser normativo, denotando uma maior

plasticidade, enquanto o segundo é definido como a incapacidade de ser normativo,

portanto, denotando uma maior imutabilidade. Nas palavras do autor:

“O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas”. (Canguilhem, 2002:158)

17

Ou seja, ser saudável é poder viver a vida em sua complexidade, tolerar os

constrangimentos inerentes ao viver e, quando possível, modificar a maneira de viver para

que a vida seja melhor, mais potente e, por que não dizer, mais prazerosa. Nesse sentido, ter

saúde é poder lançar-se no mundo, arriscar e sobreviver aos percalços do viver espontâneo

e criativo. Para Canguilhem, “estar em boa saúde é poder cair doente e se recuperar; é um

luxo biológico”. (Canguilhem, 2002: 160)

Em Winnicott, por sua vez, a saúde é definida como a capacidade de ser criativo e

espontâneo. Capacidade conquistada pelo indivíduo durante seu desenvolvimento, a partir

do cuidado suficientemente bom promovido pela mãe, que o autor chama de mãe-ambiente.

E é esse cuidado, entendido como a adaptação ativa da mãe ao seu filho, que

possibilita o bebê ser espontâneo, vivenciar a experiência de onipotência que o faz sentir

criando o mundo e desenvolver-se satisfatoriamente. Nas palavras de Winnicott (1983)

“Podemos dizer que o ambiente torna possível o progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial”. (Winnicott, 1983: 81)

Ao longo do seu desenvolvimento, a criança vai se integrando, tornando-se um

indivíduo inteiro, em que corpo e mente são aspectos de uma unidade somatopsíquica

indivisível chamada pelo autor de psicossoma.

Esta unidade somatopsíquica é expressa pelo conceito de self. Um dos tradutores de

Winnicott para a língua portuguesa, Marcelo Brandão Cipolla, sintetiza o conceito de self

da seguinte maneira:

“O conceito psicanalítico que inclui o eu (ego) e o não-eu. É a totalidade da própria pessoa. Inclui também o corpo com todas as suas partes, a estrutura psíquica com todas as suas partes, o vínculo com os objetos internos e externos e o

18

sujeito como oposto ao mundo dos objetos”. (Winnicott, 2001:7, nota do tradutor)

O self pode expressar-se de modo verdadeiro ou falso, dependendo sobretudo do

tipo de cuidado que o indivíduo recebeu quando bebê. O verdadeiro self é o resultado dos

cuidados promovidos por um ambiente suficientemente bom, que, ao não ser intrusivo,

possibilitou ao bebê viver a experiência de onipotência, experiência necessária para a sua

espontaneidade. Dessa forma, o verdadeiro self é espontâneo, não tem medo do ambiente e

é capaz de lidar com as frustrações inerentes ao viver.

O falso self é uma adaptação ao mundo para que o self verdadeiro não seja

aniquilado. Isso faz com que a divisão radical entre verdadeiro e falso self seja mais teórica

do que prática em relação à saúde. Um indivíduo saudável utiliza falso self nas relações

sociais, pois nem sempre é possível ser espontâneo. O protocolo social, a etiqueta e a

polidez podem ser considerados aspectos de um falso self saudável.

Entretanto, existe o falso self patológico, aquele que existe enquanto formação

reativa, que também protege o verdadeiro, mas este último encontra pouco ou nenhum

espaço para se manifestar. O falso self é submisso às exigências do mundo. O indivíduo

falso self não se sente autêntico, criativo e criador do mundo, mas manipulado por este. Nas

palavras de Winnicott (2000:312), “o falso-self, desenvolvido com base na submissão, não

pode candidatar-se à independência da maturidade, salvo, quem sabe, a uma

pseudomaturidade”.

Para ser um indivíduo inteiro e criativo, é necessário além da integração do ego,

integrar o mundo. Essa integração acontece no que Winnicott chama de posição depressiva.

Na posição depressiva, o bebê pode integrar na figura de uma única mãe, a mãe boa e a mãe

19

má. A primeira é o aspecto da mãe que o bebê percebe como positivo, a “parte” da mãe

que não falha, e a segunda é o aspecto negativo, a mãe que demora em atender o bebê ou

que se antecipa a ele. Mãe boa e mãe má são aspectos de uma mesma e indivisível mãe,

mas que o bebê percebe como dissociados. Entretanto, ao passar pela posição depressiva, o

bebê integra esses aspectos e aceita a mãe como ela é, ou seja, humana, “boa” e “má” ao

mesmo tempo. Exatamente como o mundo que é bom e mau ao mesmo tempo, que tem

aspectos positivos e negativos, mas que é um único mundo, o mundo que há. Por ser um

autor não dicotômico, Winnicott entende que a saúde é fruto da integração de si e da

integração do mundo pelo bebê, da capacidade de ser criativo, inventivo e verdadeiro self.

A criatividade para o psicanalista inglês é definida como a capacidade de, ao

produzir pequenas soluções para a vida, obter alguma satisfação da experiência de estar

vivo. E isto não depende necessariamente do quadro clínico do indivíduo. Numa

perspectiva winnicottiana é possível ter diabetes, HIV, ser míope, cego ou paraplégico e

ainda assim extrair prazer da vida. Não um prazer idealizado, mas o prazer de estar vivo

apesar dos constrangimentos inerentes ao viver. Nas palavras de Winnicott (1975):

“Tenho a esperança de que o leitor aceite uma referência geral à criatividade [...], evitando que a palavra se perca ao referi-la apenas à criação bem sucedida ou aclamada, e significando-a como um colorido de toda ordem à atitude com relação à realidade externa”. (Winnicott, 1975: 95)

Nesse sentido, saúde é a capacidade de extrair algum prazer da vida, ainda que

acometido de alguma doença física ou psíquica. É sentir-se criador do mundo, potente

frente à vida e autêntico.

No final do capítulo, propomos, a partir de Canguilhem e Winnicott e apoiados no

método filosófico-conceitual de Martins (2004), uma nova definição de saúde. Saúde é a

20

capacidade que um indivíduo, entendido como uma unidade somatopsíquica, conquistou ao

longo do seu desenvolvimento de ser criativo e normativo, sentir-se autêntico e potente

frente à vida, extraindo algum prazer desta, apesar dos constrangimentos inerentes ao viver,

inclusive o adoecimento, sendo o próprio indivíduo ponto de referência de sua saúde. O que

não exclui o combate às enfermidades, porém inserido em um outro âmbito.

Para redefinir saúde utilizamos o método filosófico-conceitual de construção e

atualização de conceitos. Sob a perspectiva do método proposto por Martins (2004), os

conceitos são entendidos como ferramentas para o trabalho teórico e/ou execução de uma

prática. Isso significa valorar os conceitos por sua utilidade e não pelo papel dogmático que

eles possam ter numa teoria. A pertinência de um conceito está em, de fato, vitalizar o

problema pesquisado e potencializar quem executa uma prática. Nas palavras de Martins

(2004):

“Uma metodologia, portanto, filosófico-conceitual, consiste na criação e/ou utilização de conceitos que nos permitam propor modos de ver o mundo, ou um problema específico, que o vitalize, de uma maneira outra que a habitual, por mais que esta um dia possa ter sido questionadora ou inovadora [...]”. (Martins, 2004: 956)

A partir do método filosófico-conceitual, procuramos definir saúde de maneira que

a nova definição sirva não apenas de referencial teórico para a pesquisa em saúde, mas

também de ferramenta para as diferentes práticas na atenção e cuidado em saúde. Para

tanto, propomos inicialmente cinco elementos facilitadores da saúde redefinida, são eles:

capacidade de ser espontâneo, capacidade de ser inventivo ou de ação e transformação da

realidade compartilhada, expectativas em relação ao futuro, sentimentos positivos em

relação a si e apoio social.

21

No terceiro capítulo, apresentamos dois conceitos que buscam, ainda que de

maneira indireta, definir saúde positivamente, são eles: qualidade de vida e resiliência.

Ambos os conceitos se aproximam de nossa concepção de saúde ao tomarem o próprio

indivíduo como ponto de referência de sua saúde. Outro ponto de aproximação é a

definição de critérios da saúde redefinida como qualidade de vida e resiliência para a

construção de instrumentos de mensuração: o WHOQOL–100 para qualidade de vida e a

escala de resiliência para resiliência. Argumentamos que estas duas experiências são

importantes tentativas de criar alternativas ao conceito negativo de saúde. Entretanto,

nenhuma das duas se apresenta como definição de saúde, o que as faz perder força em

nosso entender.

Por fim, concluímos que as medidas utilizadas como indicadores de saúde,

sobretudo as de mortalidade e morbidade, não devem simplesmente ser substituídas ou

abandonadas. Elas são válidas para mapear as causas de morte e apresentar a distribuição

dessas causas por faixas etárias, regiões, etc, e o mesmo em relação às doenças. As

informações produzidas por essas medidas são necessárias para orientar ações e políticas

públicas não apenas no campo da saúde, mas também no da segurança pública, educação,

habitação, infra-estrutura, etc. Entretanto, elas não são capazes de indicar saúde no sentido

positivo que demos ao termo. Como elas operam apoiadas num conceito de saúde que se

define a partir da doença, o que fazem é indicar o nível de doença na população e não de

saúde exatamente. A partir de nosso trabalho, parece-nos equivocado afirmar que o pólo

oposto da saúde é a doença. Esse é um engano provocado pelo conceito negativo de saúde,

que define saúde como ausência de doença. E que peca ao fazer uma distinção radical entre

físico, psíquico e social.

22

Concluímos, ainda, que novos indicadores de saúde devem ser produzidos tendo

como base definições positivas de saúde como a apresentada no capítulo dois desta

dissertação. Nesse contexto, a presente pesquisa pretende contribuir para um estudo futuro

que operacionalize os elementos facilitadores da saúde e os transformem em instrumentos

que comporão um novo indicador de saúde.

Ressaltamos que o estudo ora realizado não esgota o tema, tampouco constitui uma

verdade última. Nosso objetivo foi o de contribuir para que o campo da saúde coletiva

possa debater seus conceitos de saúde e seus indicadores a fim de produzir conceitos mais

operativos e remetidos à prática.

23

CAPÍTULO I

INDICADORES DE SAÚDE: OS DESAFIOS DE MEDIR A SAÚDE

1.1. Definindo indicadores de saúde

A necessidade de coletar dados a respeito da situação de saúde das populações

humanas estimulou o desenvolvimento de instrumentos de mensuração que pudessem

informar aos governos e à sociedade o estado de saúde dessas populações. Esses

instrumentos são os chamados indicadores de saúde. Os primeiros estudos sobre situação de

saúde, próximos dos moldes em que são realizados contemporaneamente, datam do século

XIX e foram desenvolvidos por Willian Farr (OPAS, 2001), baseados em taxas de

mortalidade e expectativa de vida. Hoje, esses instrumentos são amplamente utilizados

como ferramentas na gestão e no planejamento dos sistemas de saúde e no apoio às ações

de prevenção e tratamento de doenças.

Como veremos a seguir, os indicadores de saúde são definidos como medidas que

resumem e expressam, em linguagem matemática, a situação de saúde de uma população. A

Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) define indicador de saúde como:

“uma noção da vigilância em saúde pública que define uma medida da saúde (ex. a ocorrência de uma enfermidade ou de outro evento relacionado com a saúde) ou de um fator associado com a saúde (ex. o estado de saúde ou outro fator de risco) em uma população específica” (OPAS, 2001: 1)

A definição acima, um tanto confusa, é desenvolvida em outro documento, intitulado

‘Indicadores Básicos de Saúde no Brasil: conceitos e aplicações’ da Rede Interagencial de

24

Informações Para a Saúde, ligada à OPAS. Nesse documento, os indicadores são definidos

da seguinte maneira:

“Em termos gerais, os indicadores de saúde são medidas-síntese que contêm informação relevante sobre determinados atributos e dimensões do estado de saúde, bem como do desempenho do sistema de saúde. Vistos em conjunto, devem refletir a situação sanitária de uma população e servir para a vigilância das condições de saúde”. (REDE, 2002: 11)

Uma terceira definição nos é apresentada por Vermelho, Costa & Kale (2004). Para

os autores:

“os indicadores de saúde são, tradicionalmente, medidas (proporções, taxas, razões) que procuram sintetizar o efeito de determinantes de natureza variada (sociais, econômicos, ambientais, biológicos, etc) sobre o estado de saúde de uma determinada população”. (Vermelho, Costa & Cale, 2004: 34)

Apesar de próximas, as três definições apresentadas têm diferenças que devem ser

ressaltadas. A primeira definição, da OPAS, dá ênfase ao caráter de vigilância dos

indicadores, à capacidade desses instrumentos em apontar o número de casos de uma

doença (prevalência) e o número de novos casos (incidência), além de estimar o grau de

risco à saúde a que determinada população está submetida. A definição da REDE mantém o

aspecto de vigilância da saúde, atribuído aos indicadores de saúde pela definição anterior,

mas vai além ao incluir o desempenho do sistema de saúde. Outro aspecto relevante dessa

definição é a idéia de que os indicadores medem atributos do estado de saúde, não a saúde

como um todo, e, por isso, devem ser considerados em conjunto. A terceira definição é a

mais ampla das três, pois reconhece que a saúde é afetada por múltiplos aspectos. Dessa

forma, seus indicadores devem captar a influência desses diversos fatores, o que permitiria

uma abordagem complexa da saúde e de seus indicadores.

25

A definição de Vermelho, Costa & Kale está de acordo com a Organização Mundial

de Saúde (OMS), que recomenda que os indicadores de saúde observem não apenas o

número de doenças e mortes, mas também as condições demográficas, alimentação,

educação, trabalho, transporte, economia, habitação, saneamento básico, vestuário, lazer,

segurança social e liberdade humana a que as populações estudadas estão submetidas. Esta

recomendação da OMS, que está citada no texto de Vermelho, Costa e Kale (2004: 34), nos

induz a conceber os indicadores de saúde como instrumentos complexos, compostos por

diferentes medidas que em conjunto indicariam o estado de saúde de um determinado grupo

humano.

Entretanto, os autores citam uma série de índices de mortalidade como sendo os

principais indicadores de saúde, são eles: Coeficiente de Mortalidade Geral (CMG),

Mortalidade Segundo Sexo, Mortalidade Segundo Idade, Coeficiente de Mortalidade

Infantil. Em relação à mortalidade infantil, destaca-se o TTM5 (Taxa de Mortalidade em

Menores de Cinco Anos) recomendado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância

(UNICEF), que mede as alterações relacionadas ao bem-estar da criança. Perguntamo-nos

como um instrumento que mede morte pode medir bem-estar. Isto nos forçaria a dizer que

estar vivo é igual a estar bem. O que não nos parece correto. E que comentaremos mais

adiante.

Além dos indicadores acima, os autores citam outros treze, sendo onze índices de

mortalidade e dois instrumentos baseados em medidas que buscam expressar mais do que

simplesmente mortalidade e morbidade, apesar de serem baseados em ambas: Expectativa

de Vida e o Disability Adjusted Life Year (DALY), ou, Anos de Vida Perdidos Ajustados

26

por Incapacidade, nome dado à versão em português, utilizado em estudos de carga global

de doença (Leite, 2006).

Comparando as medidas apresentadas com a definição de indicador de saúde de

Vermelho, Costa & Kale e a orientação da OMS, nos parece haver uma dissonância entre a

definição teórica e as medidas citadas como exemplos de indicadores de saúde. Nos

exemplos dados, ter saúde parece ter-se reduzido a estar vivo.

Outros autores (Rothman, 1987 e Jenicek & Cléroux, 1987) também apresentam

índices de mortalidade como exemplos de indicadores de saúde. Entretanto, Jenicek &

Cléroux (1987) fazem uma interessante classificação dos indicadores de saúde. Os autores

separam os indicadores em dois grandes grupos: indicadores diretos e indicadores indiretos.

Os indicadores diretos têm como foco medidas referentes aos indivíduos e se

subdividem em: (a) indicadores demográficos, que compreendem os índices de natalidade,

fecundidade, esperança de vida, etc; (b) indicadores clínicos, que são os índices de

mortalidade, morbidade e letalidade; (c) indicadores paramédicos, entendidos como os

índices de faltas ao trabalho por motivo de doença; (d) indicadores da qualidade das

funções fisiológicas, como resistência física, por exemplo; (e) indicadores de bem-estar

físico, mental e social, expressos por índices de doenças crônicas, depressão e grau de

estigma social; e (f) os indicadores determinados por especialidades médicas, por exemplo,

mortalidade materna (ginecologia e obstetrícia), mortalidade infantil (pediatria), etc.

Os indicadores indiretos são aqueles que apontam para fatores etiológicos das

doenças, tendo, dessa forma, a idéia de risco no seu bojo. Esses indicadores medem o nível

de risco à saúde a que populações estão expostas ao serem submetidas a determinadas

27

condições. Por exemplo, contaminação ambiental, consumo de cigarros, abuso de álcool,

etc.

A divisão empreendida por Jenicek & Cléroux nos permite ver com nitidez que

apesar de estarem sob a denominação de indicadores de saúde, cada medida se refere a um

aspecto específico da vida das pessoas e são muito diferentes entre si. Isto significa que

uma medida não substitui a outra e que elas devem estabelecer uma relação de

complementaridade a fim de possibilitar uma análise ampla do estado de saúde da

população. Esta parece ser a idéia da OMS, como já apresentamos e está presente no

seguinte comentário dos autores:

“Estes indicadores não podem ser interpretados de forma isolada. Por exemplo, uma alta taxa de natalidade em uma população não constitui um indicador de boa saúde se é acompanhada de uma esperança de vida baixa e uma mortalidade alta”. (Jenicek & Cléroux, 1987: 46)

Ou seja, uma medida isoladamente, ou em outras palavras, um único aspecto da

vida, não indica se os indivíduos de uma população estão ou não em boa saúde. Uma

medida sozinha indica apenas um fenômeno, o que já é muito importante, pois uma alta

taxa de mortalidade alerta as autoridades para o fato de que pessoas estão morrendo.

Entretanto, isoladamente, um índice não é capaz de explicar as causas das mortes, nem

evitá-las. Dessa forma, parece-nos que o que indica não é o índice em si, mas um conjunto

de informações, composto por medidas objetivas que, conjugadas, se prestam à

interpretação. Na prática, nenhuma medida é considera isoladamente, mas sempre em

conjunto de modo a formar um panorama que possibilite pesquisadores, gestores e

profissionais de saúde identificar o estado de saúde de uma dada população. Em

Epidemiologia não existem medidas isoladas, elas estão sempre em realação umas com as

28

outras. Neste sentido, chamar uma medida de “indicador de saúde” nos parece uma

imprecisão semântica, que pode causar (ou causa) a supervalorização dessas medidas

(isoladas ou mesmo em conjunto) e o uso ideológico dessa supervalorização para a

manutenção do status quo político-profissional no campo da Saúde. Por isso, acreditamos,

ainda que não tenha sido essa a intenção, que a divisão empreendida por Jenicek & Cléroux

(1987) deixa o termo ‘indicadores de saúde’ em suspenso, visto que para os autores, para a

OMS e mesmo segundo a definição de Vermelho, Costa & Kale (2004), uma medida é um

indicador daquilo que ela mede, sozinha ela não indica saúde. Por exemplo, na proposta de

Jenicek & Cléroux (1987), o índice de natalidade aparece como de fato é, um indicador

demográfico e não de saúde em si.

O estudo da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (2002) também

apresenta uma classificação dos indicadores de saúde. Chamamos a atenção para o fato de

que, nesse documento, as taxas de mortalidade são classificadas como indicadores

demográficos e indicadores de mortalidade e não indicadores clínicos, como na proposta de

Jenicek & Cléroux (1987). Nos quadros a seguir reproduzimos algumas taxas utilizadas no

estudo citado (REDE, 2002), como exemplo dos principais indicadores de saúde presentes

em estudos epidemiológicos.

Indicadores demográficos2

Denominação Conceituação Método de cálculo

População total Número total de pessoas residentes num determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Utilização direta da base de dados, expressando-se os resultados em números absolutos ou percentuais.

Razão de sexos Número de homens para cada grupo de Número de residentes do sexo

2 O estudo apresenta dezesseis indicadores demográficos, dos quais selecionamos sete como exemplos.

29

cem mulheres na população residente num determinado espaço geográfico, no ano considerado.

masculino dividido pelo número de residentes do sexo feminino multiplicado por cem.

Grau de urbanização

Percentual da população residente em áreas urbanas em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

População urbana residente sobre a população total residente multiplicado por cem.

Taxa bruta de natalidade

Número de nascidos vivos por mil habitantes, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número total de nascidos vivos resi-dentes sobre a população total residente multiplicado por mil.

Taxa bruta de mortalidade

Número total de óbitos, por mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número total de óbitos de residentes sobre a população total residente multiplicado por mil.

Mortalidade proporcional por

idade

Distribuição percentual dos óbitos, por faixa etária, na população residente num determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de óbitos por faixa etária sobre o número total de óbitos de residentes, excluindo os de idade ignorada, multiplicado por cem.

Esperança de vida ao nascer

Número médio de anos de vida esperados para um recém-nascido, mantido o padrão de mortalidade existente, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

A partir de tábuas da vida elaboradas para cada área geográfica, toma-se o número correspondente a uma geração inicial de residentes (Io) e determina-se o tempo cumulativo vivido por esta geração (To) até a idade limite. A esperança de vida ao nascer é o quociente da divisão To por Io.

Quanto à medida “Grau de Urbanização”, apresentada acima, é preciso cautela na

interpretação. Caso consideremos a vida urbana como sinônimo de saúde ou como

necessariamente promotora de saúde, corremos o risco de, erroneamente, tomar o campo

como insalubre e perigoso à saúde. Sem dúvida essa é uma idéia controversa e que

encontra pouco eco na realidade. Basta olhar para megalópoles como Rio de Janeiro, São

Paulo, Porto Alegre, Salvador e Recife que veremos como a urbanização não nos protege

das enfermidades. Em boa parte dos casos ela agrava problemas de saúde, como a dengue

no Rio de Janeiro, e cria outros, como a contaminação de lençóis freáticos, favelização,

30

inundações, acúmulo de lixo, emissão de poluentes na atmosfera e tantos outros. Dessa

forma, é preciso usar a medida do grau de urbanização com parcimônia e critério, visto que

muitos habitantes de zonas rurais vivem comparativamente melhor que habitantes de zonas

urbanas. O grau de urbanização pode contribuir positivamente para a avaliação da saúde de

populações urbanas em cidades urbanas e populações rurais em zonas rurais. Ou seja,

avaliar o quanto a urbanização é efetiva em determinada região urbana, o quanto a

urbanização impede a favelização e a degradação do meio ambiente e o quanto a

urbanização contribuiu para a degradação da saúde de populações rurais. E isso deve ser

feito sem considerar o urbano como sinônimo de saúde, como dissemos anteriormente. Um

exemplo de urbanização que em nada tem a ver com saúde é o bairro da Barra da Tijuca no

Rio de Janeiro. Esse bairro, localizado na zona oeste da cidade, é conhecido pelo grande

número de shoppings centers, pelos condomínios de luxo e pelo baixo índice de

saneamento básico. Grande parte do esgoto produzido pelos condomínios, hospitais,

clínicas veterinárias, etc é jogado in natura na lagoa de Marapendi ou na orla marítima do

bairro. Do que serve esse tipo de urbanização? Por outro lado, indícios de urbanização

podem significar risco à saúde de populações rurais de zonas rurais. Por exemplo, a

instalação de um industrias em uma região imprópria para a atividade industrial pode ter

como conseqüências a contaminação da água e do ar, o aparecimento de poluição sonora,

desmatamento, crescimento populacional desordenado e conseqüente favelização, etc (por

exemplo alguns municípios na Baixada Fluminense e do Norte Fluminense). Portanto, é

preciso ter cuidado para não criar e propagar preconceitos em relação ao campo e

superestimar a cidade urbana.

31

É possível que essa supervalorização do urbano seja ranço da medicina urbana

descrita por Foucault (1982) que está na origem da medicina social. Entretanto, não nos

deteremos nesse assunto, visto que nosso objeto é outro.

Indicadores socioeconômicos3

3 O estudo apresenta nove indicadores socioeconômicos, dos quais selecionamos seis como exemplos.

Denominação Conceituação Método de cálculo

Produto Interno Bruto – PIB –

per capita

Valor médio agregado por indivíduo, em moeda corrente e a preços de mercado, dos bens e serviços finais produzidos em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Valor do PIB sobre população total residente

Taxa de analfabetismo

Percentual de pessoas de quinze anos e mais de idade que não sabem ler nem escrever um simples bilhete, no idioma que conhecem, na população total residente da mesma faixa etária, num determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de pessoas residentes de quinze anos e mais analfabetas sobre a população total residente de mesma faixa etária multiplicado por cem.

Razão de renda Número de vezes que a renda do quinto superior da distribuição de renda (20% mais ricos) é maior que a renda do quinto inferior da distribuição (20% mais pobres) na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Valor agregado do quinto superior de renda domiciliar per capita sobre o valor agregado do quinto inferior de renda domiciliar per capita

Proporção de pobres

Percentual da população residente com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

População residente com renda familiar per capita de até meio salário mínimo sobre a população total residente multiplicado por cem.

Taxa de desemprego

Percentual da população economicamente ativa que se encontra sem trabalho, na semana de referência, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de residentes de dez anos e mais de idade que se encontram desocupados e procurando trabalho, na semana de referência, sobre o número de residentes economicamente ativos da faixa etária considerada multiplicado por cem.

Taxa de trabalho Infantil

Percentual da população residente de dez a quatorze anos de idade que se encontra trabalhando ou procurando trabalho na semana de referência, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de crianças residentes de dez a quatorze anos de idade que se encontrar trabalhando ou procurando trabalho sobre a população total residente dessa faixa etária.

32

Indicadores de mortalidade4

Denominação Conceituação Método de cálculo

Taxa de mortalidade

infantil

Número de óbitos de crianças menores de um ano de idade, por mil nascidos vivos, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Direto: número de óbitos de residentes com menos de um ano de idade, sobre o número total de nascidos vivos de mães residentes.

Taxa de mortalidade

materna

Número de óbitos femininos por causas maternas, por cem mil nascidos vivos, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de óbito de mulheres residentes, por causas e condições consideradas de óbito materno, sobre o número de bebês nascidos vivos de mães residentes multiplicado por cem.

Taxa de mortalidade por

doenças do aparelho

circulatório

Número de óbitos por doenças do aparelho circulatório (códigos 100 a 199 da CID-105), por cem mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de óbitos de residentes por doenças do aparelho circulatório, sobre a população total ajustada ao meio do ano multiplicado por cem mil.

Taxa de mortalidade por causas externas

Número de óbitos por causas externas (acidentes e violências, códigos V01 aY98 da CID-10), por cem mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de óbitos dos residentes por causas externas, sobre a população total ajustada ao meio do ano multiplicado por cem mil.

Taxa de mortalidade por

acidentes de trabalho

Número de óbitos por acidentes de trabalho, por cem mil trabalhadores segurados, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de óbitos por acidentes de trabalho, em segurados pelo SAT6, sobre o número médio anual de segurados pelo SAT.

Indicadores de morbidade e fatores de risco7

Denominação Conceituação Método de cálculo

Incidência de doenças

transmissíveis

Número absoluto de casos novos confirmados da doença (ex. sarampo, febre amarela, raiva humana, dengue), na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Somatório do número de novos casos confirmados em residentes.

Taxa de prevalência de

hanseníase

Número de casos detectados de hanseníase (todas as formas, A30 na CID-10), por dez mil habitantes, existentes na população residente

Número de casos confirmados de hanseníase (todas as formas), até o dia trinta e um de

4 O estudo apresenta dezoito indicadores de mortalidade, dos quais selecionamos cinco como exemplos. 5 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – décima revisão. 6 Seguro Acidente de Trabalho que pode ser público ou privado. 7 O estudo apresenta vinte e dois indicadores de morbidade e fatores de risco dos quais selecionamos cinco como exemplos.

33

em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

dezembro do ano considerado, na população residente, sobre o total da população residente na mesma data multiplicado por dez mil.

Proporção de internações hospitalares (SUS) por

grupos de causas

Distribuição das internações hospitalares pagas pelo Sistema Único de Saúde por grupo de causas selecionadas (capítulos da CID-10), na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de internações de resi-dentes, por grupo de causas, pagas pelo SUS, sobre o número total de internações pagas pelo SUS multiplicado por cem.

Proporção de nascidos vivos

de baixo peso ao nascer

Percentual de nascidos vivos com peso inferior a 2.500 gramas, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de nascidos vivos de mães residentes com peso ao nascer inferior a 2.500 gramas, sobre o número total de nascidos vivos de mães residentes multiplicado por cem.

Taxa de prevalência de

fumantes regulares

Percentual de pessoas com mais de quinze anos de idade que fumam regularmente (diariamente) residentes em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de pessoas com mais de quinze anos de idade que fumam diariamente, sobre a população total residente dessa faixa etária.

Indicadores de recursos8

Denominação Conceituação Método de cálculo

Número de profissionais de

saúde por habitante

Número de profissionais de saúde por mil habi-tantes, segundo categorias, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de profissionais da categoria de saúde específica, sobre a população total residente ajustada pra o meio do ano, multiplicado por mil.

Número de leitos hospitalares por

habitante.

Número de leitos hospitalares públicos e privados, por mil habitantes, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número total de leitos hospitalares públicos e privados, sobre a população total residente ajustada para o meio do ano, multiplicado por mil.

Gasto nacional per capta com

saúde

Gasto total com saúde por habitante, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Valor total da despesa pública e privada com saúde, em reais, sobre a população total residente no ano considerado.

Gasto público com saúde como

proporção do

Percentual do PIB que corresponde ao gasto público em saúde, desagregado por esfera de governo (federal, estadual e municipal), em

Valor total das despesas com ações e serviços públicos de sa-úde, sobre o valor do PIB,

8 O estudo apresenta quatorze indicadores de recursos, dos quais selecionamos cinco como exemplos.

34

PIB determinado espaço geográfico, no ano considerado.

multiplicado por cem.

Gasto público com saneamento como proporção

do PIB

Percentual do PIB que corresponde ao gasto público com saneamento, desagregado por esfera de governo (federal, estadual e municipal), em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Valor total das despesas do setor público com saneamento, sobre o valor do PIB, multiplicado por cem.

Indicadores de cobertura9

Denominação Conceituação Método de cálculo

Número de consultas

médicas (SUS) por habitante

Número médio de consultas médicas apresentadas ao SUS por habitante, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número total de consultas médicas apresentadas ao SUS, sobre o número total da população residente.

Número de procedimentos

complementares por consulta

médica

Número de procedimentos complementares de patologia clínica e imagenologia, por cem consultas médicas apresentadas ao SUS, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número total de procedimentos complementares de patologia clínica e imagenologia apresentados ao SUS, sobre o número total de consultas médicas apresentadas ao SUS.

Proporção de gestantes com

acompanhamento pré-natal

Percentual de gestantes com seis ou mais consultas de acompanhamento pré-natal, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de nascidos vivos de mães residentes com seis ou mais consultas de acompanhamento pré-natal, sobre o total de nascidos vivos de mães residentes, multiplicado por cem.

Proporção de partos cesáreos

Percentual de partos cesáreos em relação ao total de partos, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

Número de nascidos vivos de partos cesáreos de mães residentes, sobre o número total de nascidos vivos de partos hospitalares de mães residentes, com tipo de parto informado, multiplicado por cem.

Cobertura de serviços de

coleta de lixo

Percentual da população residente atendida por serviço regular de coleta de lixo domiciliar em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

População residente atendida pelo serviço de coleta domiciliar regular de lixo, sobre a população total residente em domicílios, multiplicado por cem.

9 O estudo apresenta dezenove indicadores de cobertura, dos quais selecionamos cinco como exemplos.

35

Essa divisão é ainda mais extensa do que a proposta por Jenicek & Cléroux (1987).

Ela serve para nos mostrar que sob a mesma designação – indicadores de saúde – estão

medidas muito diferentes. Cada uma mede um fragmento muito específico da vida em

coletividade. Será possível determinar quanto uma população é saudável olhando apenas

uma medida de mortalidade? Se a taxa é baixa, isso significa que as pessoas estão vivendo

bem, com saúde? E caso a taxa seja alta, podemos dizer que os vivos estão em melhores

condições de vida do que as condições que levaram as outras pessoas à morte? Será que as

pessoas que vivem em zonas urbanas têm uma saúde melhor do que os habitantes de zonas

rurais? E o que é mais saudável: parto natural ou cesáreo? Qual é a relação

médico/habitantes para se ter saúde? Quem é mais saudável: aquele que vai muitas vezes ao

médico por ano ou aquele que nunca vai? Essas são perguntas que levam a outras, como:

afinal, se os indicadores medem fragmentos da vida, será que eles medem saúde? E o que é

saúde?

Essas são perguntas para cuja resposta esperamos contribuir ao longo desta

pesquisa. Mais adiante discutiremos o que medem os indicadores e a concepção de saúde

que sustenta os indicadores. Porém, antes é necessário entender como uma taxa passa a ser

considerada um indicador de saúde.

1.2. Quem indica os indicadores: os critérios para a construção de instrumentos de

mensuração da saúde

Para que taxas, índices e proporções sejam considerados bons indicadores de saúde,

eles devem obedecer alguns critérios estabelecidos internacionalmente e recomendados

pela OMS (OPAS, 2001). O primeiro deles é que o indicador deve ser abrangente, cobrir

36

um grande número de casos em uma população definida. Além disso, o indicador deve

utilizar dados de boa qualidade, com metodologia padronizada e de fontes

reconhecidamente seguras, como governos, universidades, institutos de pesquisa, etc.

Alguns critérios objetivos (OPAS, 2001) devem ser observados para a construção de

um indicador, são eles: (a) Validade. Que diz respeito ao fato de o indicador medir

exatamente aquilo que ele se propõe medir; (b) Confiabilidade. Atributo que garante que o

instrumento produza resultados semelhantes em situações parecidas; (c) Especificidade. O

indicador deve medir somente o fenômeno para o qual foi construído; (d) Sensibilidade. É a

capacidade de captar as mudanças do fenômeno observado; (e) Mensurabilidade. O

instrumento deve ser baseado em dados disponíveis ou de fácil aquisição; (f) Relevância.

Capacidade de dar respostas claras às políticas públicas; e (g) Custo-benefício. Os

resultados produzidos pelo instrumento devem justificar os investimentos técnico e

financeiro empregados na sua construção.

A adoção de critérios metodológicos para a construção de indicadores de saúde é um

outro elemento que permite a comparação internacional e a própria validação do

instrumento. Entretanto, nos perguntamos se mesmo com todo o rigor metodológico os

indicadores realmente indicam saúde. Por serem instrumentos tão específicos, parece-nos

inadequado chamá-los de indicadores de saúde, ainda que eles estejam de acordo com as

definições apresentadas. Caso consideremos que, por definição, indicador é aquilo que

indica alguma coisa, deveríamos esperar que um indicador de saúde indicasse saúde e não o

aspecto específico da vida que ele mede. Porém, reconhecemos que indiretamente os

indicadores de saúde são capazes de apontar problemas para os quais eles não foram

especificamente criados. Por exemplo, ao detectar que num contingente populacional há

37

altos índices de mortalidade de crianças até cinco anos, o indicador de “mortalidade de

crianças até cinco anos” nos chama a atenção para questões que vão além das mortes em si.

Se as crianças estão morrendo é provável que as causas estejam nas condições de vida a que

essas crianças estão submetidas. Dessa forma, o resultado obtido pelo indicador pode ser

cruzado com o resultado de outros indicadores (renda, escolaridade, saneamento, etc) e

dependendo do resultado desse cruzamento de informações pode-se supor que essa

população está submetida a uma situação de degradação social que leva não apenas à morte

de crianças pequenas, mas muito provavelmente a problemas de saúde de toda a população.

Acreditamos que essa capacidade difusa dos indicadores de saúde de apontar questões além

da sua especificidade poderia ser potencializada e explicitada caso eles fossem forjados a

partir de um conceito positivo de saúde. Um indicador de saúde deveria trazer consigo uma

definição de saúde, para então indicá-la a partir dos instrumentos que melhor servissem à

tarefa. Deveríamos considerar indicador de saúde um determinado conjunto de ferramentas

que, como um todo, indicasse saúde.

Um exemplo de proposta de construção de indicadores que considera indicador como a

conjugação de vários instrumentos para o fim de indicar algo, é encontrado no trabalho de

Drachler et al (2003). No artigo intitulado ‘Proposta metodológica para selecionar

indicadores de desigualdade em saúde visando definir prioridades de políticas públicas no

Brasil’, Drachler et al (2003) definem o que é saúde e o que é desigualdade. Este é um

passo que consideramos fundamental para a construção de um indicador, definir o seu

objeto. Neste caso, os autores desejavam construir um meio de medir a desigualdade em

saúde. Para eles:

38

“Saúde é definida pela qualidade de vida e pela capacidade de ser e agir de mulheres e homens; e desigualdade social, pelas diferenças produzidas socialmente que sejam moralmente injustas. Assim, desigualdade social em saúde refere-se às diferenças produzidas socialmente na qualidade de vida e na capacidade de ser e agir dos grupos sociais e indivíduos, porque essas diferenças são moralmente injustas. Nesse sentido, a saúde reflete características vitais aparentemente elementares como estar vivo e sem doença, estar bem, ter respeito próprio e ser respeitado e capaz de exercer ação política”.(Drachler et al, 2003: 463)10

Ao definir saúde e desigualdade em saúde, torna-se possível selecionar medidas,

que os autores chamam de indicadores, para que juntos possam indicar se há ou não e em

que grau há desigualdade em saúde. No estudo considerado, os autores selecionaram os

seguintes índices: expectativa de vida ao nascer, mortalidade, morbidade, estado nutricional

e acesso às estruturas e procedimentos de atenção à saúde.

Ainda que os autores chamem os índices selecionados de indicadores de

desigualdade em saúde, parece-nos inapropriado considerá-los como tal. Afinal, expectativa

de vida ao nascer, mortalidade ou qualquer outra medida isoladamente não indica

desigualdade em saúde. O que torna possível medir a desigualdade em saúde é o conjunto

de medidas selecionadas a partir da definição prévia do que é saúde e desigualdade em

saúde.

Dessa forma, acreditamos que a classificação feita no documento da REDE (2002)

traduz melhor o que de fato os índices são, ou seja, indicadores específicos (indicadores

demográficos, de mortalidade, de cobertura, de morbidade, etc) e não indicadores de saúde.

Entendemos que para um índice isoladamente ser considerado indicador de saúde, a

definição de saúde deveria corresponder ao atributo medido pelo índice, o que seria

10 Grifo dos autores.

39

necessariamente um erro, visto que seria uma redução artificial da saúde a um único

aspecto.

Nesse sentido, o que deve indicar um ‘indicador’ (índice ou medida, para

mantermos a coerência) não deve ser simplesmente o cumprimento de critérios

internacionais, como os adotados pela OMS. Os critérios são importantes para que os

indices sejam eficientes naquilo que eles se propõem avaliar especificamente, mas a seleção

de índices ou mesmo de outros instrumentos não quantitativos para a composição, agora

sim, de um indicador de saúde, deve obedecer ao critério de coerência com a definição de

saúde utilizada. Por exemplo, se considerarmos a saúde como cidadania, como Drachler et

al (2003) parecem conceber, será preciso mais do que índices de mortalidade e morbidade

para indicar saúde.

De alguma maneira estamos, a partir das definições apresentadas e da recomendação

da OMS, redefinindo o que são indicadores de saúde, visto que para indicarem saúde, eles

não podem ser considerados isoladamente, ou seja, sozinhas as medidas não indicam

diretamente saúde. Deveríamos entender por indicadores de saúde o conjunto de

ferramentas quantitativas e/ou qualitativas que indiquem o nível de saúde da população a

partir de uma definição conceitual prévia de saúde e de critérios de saúde. Entretanto, como

veremos adiante, há na prática o uso de medidas específicas como indicadores de saúde.

1.3 O que indicam os indicadores de saúde?

Essa é uma pergunta cuja resposta pode parecer óbvia: saúde. E o argumento

poderia ser: “O nome já diz tudo. Indicadores de saúde indicam saúde”. Porém, como

40

vimos, as definições consideram as medidas como indicadores, mesmo elas medindo

atributos muito específicos e não definindo o que estão considerando como saúde.

Um exemplo do uso de medidas como indicadores de saúde em si é o estudo ‘Saúde

Brasil 2004: uma análise da situação de saúde’, do Ministério da Saúde. No capítulo um, o

documento apresenta números sobre a cobertura de serviços de saneamento básico,

escolaridade da população, distribuição das unidades de saúde pelo país, distribuição de

médicos e enfermeiros. O capítulo dois aborda a “saúde reprodutiva” e apresenta números

em relação à assistência pré-natal, parto e baixo peso entre os recém-nascidos. Os capítulos

três, quatro e cinco são dedicados à farta estatística sobre mortalidade. E o sexto capítulo

versa sobre a prevalência de doenças transmissíveis, ou seja, morbidade.

Nesse estudo, encontramos uma estrutura parecida com o documento da REDE

(2002). Trata-se de uma espécie de inventário sobre os temas abordados em cada capítulo.

Será que índices de mortalidade, morbidade, cobertura de serviços de saneamento básico

traduzem o nível de saúde da população? O que o estudo considera como saúde? Esta

pergunta não está respondida no texto em questão. Podemos considerar que viver em uma

região com água tratada, esgoto encanado, serviços de saúde públicos e de qualidade, baixo

índice de mortalidade e morbidade aumenta a chance de se viver com saúde, mas não

garante saúde. Será que viver em um distrito rural sem cobertura de água, esgoto ou

serviços de saúde próximos é mais insalubre do que viver num bairro estruturado de uma

metrópole?

Apesar de não definir saúde, o ‘Saúde Brasil 2004’ tem méritos ao observar as

recomendações da OMS e utilizar não apenas índices de mortalidade e morbidade em suas

análises. Porém, saber se as pessoas morrem mais ou menos do que as taxas toleráveis ou se

41

vivem em locais com o número padrão de profissionais de saúde, não nos permite dizer se a

população está ou não saudável. Falta definir saúde.

Outro estudo, de Simões (2002), intitulado ‘Perfis de saúde e de mortalidade no

Brasil: uma análise de seus condicionantes no Brasil’, torna mais clara a falta que uma

definição de saúde faz em estudos desse tipo. O trabalho de Simões apresenta uma vasta

estatística sobre mortes no Brasil. É, sem dúvida, uma obra importante, sobretudo porque

aponta a violência como uma das principais causas de morte de jovens no país. Entretanto,

o estudo não pode ser considerado um perfil de saúde da população. A não ser que, mais

uma vez, consideremos estar vivo como sinônimo de saúde. O problema está em considerar

os indicadores de mortalidade como indicadores de saúde. Nesse caso, a saúde seria

simplesmente estar vivo dentro da expectativa de vida ao nascer. O trabalho de Simões tem

muitos méritos como um perfil de mortalidade do Brasil, mas não poderia ser considerado

um inventário sobre a saúde da população brasileira.

Um terceiro estudo chamado ‘As condições de saúde no Brasil’, de Mello Jorge &

Gotlieb (2000) é ainda mais exemplar na ênfase dada aos índides de mortalidade. O

trabalho das autoras está dividido em quatro capítulos: A população brasileira,

Nascimentos, Mortalidade e Morbidade. O terceiro capítulo, Mortalidade, é o maior,

ocupando duzentas das pouco mais de duzentas e setenta páginas do estudo. Trata-se

também de um inventário sobre o assunto de cada capítulo e que também nos leva a deduzir

que saúde é entendida como estar vivo e sem doença. Mas, saúde se reduz à ausência de

doença? E viver sem doença é necessariamente viver com saúde? Ou ainda: só se tem saúde

com uma ausência total de doenças, de qualquer ordem e em qualquer grau de limitação?

Se assim for, não há um único ser humano saudável no planeta.

42

Os estudos citados medem mortalidade, morbidade, nascimentos e cobertura de

serviços de saúde e saneamento. Seria saúde a vida urbana planejada e livre de doenças?

Será por isso que os estudos sobre as condições de saúde da população dão ênfase à

mortalidade e morbidade? Vermelho, Costa & Kale (2004) tentam esclarecer de alguma

maneira essa questão. Para os autores:

“Diante das inúmeras dificuldades para se mensurar a saúde de uma população, o que se faz é quantificar e descrever a ocorrência de determinados agravos à saúde, doença e morte. Olha-se, portanto, a ausência de saúde, ou como habitualmente é dito, a saúde pelo seu lado negativo”. (Vermelho, Costa & Kale, 2004, p. 34)

E ainda:

“[...] opta-se assim pelas estatísticas de mortalidade. Estas, por utilizarem uma mesma metodologia, isto é, informações registradas na declaração de óbito (DO), padronizada internacionalmente, podem ser de cobertura universal e, portanto, ampla e internacionalmente comparáveis.” (Vermelho, Costa & Kale, 2004, p. 34)

Há duas importantes idéias nas citações acima. A primeira é a afirmação de que os

indicadores de saúde, as medidas em geral, não medem saúde, mas os aspectos específicos

para os quais foram construídos. Ou seja, os indicadores de morbidade indicam doença e

não saúde, assim como os de mortalidade indicam morte e não saúde. Isto significa que a

mensuração da saúde é feita a partir da doença, levando por dedução à seguinte lógica:

onde há doença não há saúde. A segunda é o fato de se utilizar a mortalidade por conta da

melhor comparabilidade entre as regiões e os países. Nessa perspectiva, onde se morre

menos, tem-se melhores condições de saúde. Certamente, altos índices de mortalidade ou

morbidade indicam que algo vai mal em determinada região, mas elas não são suficientes

para informar como está a saúde das pessoas vivas ou que não estão com doenças

diagnosticadas.

43

Apesar de Vermelho, Costa & Kale afirmarem que há dificuldade em mensurar a

saúde, e que por isso medem doença, os autores não dizem que dificuldades são essas. A

partir de Almeida Filho (2000a), suspeitamos que a dificuldade seja de natureza conceitual

e se traduz na falta de um conceito positivo de saúde. Para Almeida Filho:

“[...] por causa de seu subdesenvolvimento epistemológico e conceitual, a epidemiologia não tem sido capaz de produzir uma referência teórica eficaz sobre o objeto saúde. Minha hipótese é que isto ocorre simplesmente porque o conceito de ‘saúde’ constitui um dos pontos cegos paradigmáticos da ciência epidemiológica”. (Almeida Filho, 2000a: 6)

E ainda:

“Há um consenso em relação à centralidade da noção de ‘doença’ para o discurso científico e práxico da Clínica. Clavreul (1983) chega a apontar uma incapacidade heurística da Clínica em definir os estados fisiológicos da saúde, salvo como ausência de doença”. (Almeida Filho, 2000a: 9)

É possível que a ênfase dada à mensuração da saúde pelo seu “lado negativo” não

seja apenas fruto de um problema metodológico como parecem apontar Vermelho, Costa &

Kale (2004), mas antes de uma confusão epistemológica, que na falta de uma definição

melhor, toma a saúde como ausência de doença. A dificuldade em definir saúde de maneira

positiva é um dos embates enfrentados pela Epidemiologia no seu interior para definir-se

como ciência independente e buscar alguma unidade conceitual. Barreto (1990) nos mostra

como a história da Epidemiologia é marcada pela luta por conquistar respeitabilidade

científica, o que levou a disciplina em alguns momentos a se preocupar mais com a técnica

do que com a construção de conceitos próprios e úteis à investigação das condições de

saúde da população. Barreto (1990:29) afirma que “a falta de conceitos que limitem com

nítida precisão o que seja saúde e o que seja doença tem trazido sérias questões para o

interior da disciplina”. Um dos problemas é a ênfase excessiva na doença e a dificuldade de

44

apresentar estudos sobre a saúde de fato. Segundo o autor, o enfrentamento desse e de

outros problemas epistemológicos por setores da Epidemiologia tem alimentado um

movimento chamado ‘Epidemiologia da saúde’, que procurar afastar-se do modelo

biomédico, centrado na doença, e aproximar-se das ciências humanas.

Entretanto, a idéia de saúde como ausência de doença ainda é muito forte e está

apoiada num modelo de ciência que ainda é dominante. No próximo item discutiremos o

conceito de saúde por trás do uso dos índices em geral, mas, sobretudo, os de mortalidade e

morbidade, como indicadores de saúde.

1.4 O conceito negativo de saúde

Saúde antes de ser um conceito das ditas ciências da vida, é uma palavra de origem

etimológica variada. Como nos mostra Almeida Filho (2000b), em português e espanhol,

saúde e salud derivam da raiz latina salus que significa inteiro, intacto, íntegro. Que por sua

vez deriva do termo grego holos, que nos remete ao sentido de totalidade e é raiz dos

termos holismo e holístico. A palavra francesa santé e o verbete castelhano sanidad, assim

como o adjetivo ‘são’ da língua portuguesa, derivam do latim sanus, que significa puro,

imaculado, correto e verdadeiro. A palavra inglesa health tem origem no termo höl do

idioma germânico antigo, que também dá origem à palavra inglesa holy (sagrado), que

reencontra, por sua vez, o grego holos.

Como vemos, saúde deriva da idéia de inteireza e totalidade. A origem etimológica

da palavra saúde pode nos levar a, pelo menos, três interpretações a respeito do que é

saúde. A primeira seria que a saúde é a integralidade do indivíduo, a qualidade de ser uma

45

totalidade, uno, inteiro. A segunda interpretação possível conceberia a saúde como inteireza

das partes do corpo, sem chagas, deformações e amputações. Ou seja, inteiro no sentido de

que não falta nenhuma parte do corpo e íntegro no sentido de que as partes são “como

deveriam ser”. A terceira trataria a saúde como o sagrado, o imaculado, o metafísico.

Aquilo que existe apenas como ideal e, portanto, sem correspondente na imanência do

mundo material.

As duas últimas interpretações estão intimamente ligadas quando se considera saúde

a ausência de doença. Nesse caso, a idéia de ausência de doença ganha o status de perfeição

e serve como referência para classificar quem tem ou não saúde. As interpretações que

demos aos diferentes significados da palavra saúde não são elucubrações, existem e podem

ser encontradas na literatura, inclusive científica, como veremos mais adiante. As duas

últimas interpretações encontram-se apoiadas numa tradição filosófica que começa em

Platão e deságua no paradigma dominante de ciência contemporânea, que chamaremos de

ciência clássico-moderna.

Segundo Martins (1999), a ciência clássico-moderna tem uma dupla origem. A

primeira data do final do século XII, quando a obra de Aristóteles chega ao ocidente através

de filósofos árabes e judeus interpretados pelos escolásticos. Naquele momento, a ciência

era baseada nos escritos do filósofo grego. Aristóteles propunha uma ciência do universal e

um método de demonstração de verdades universais, que tinha como pilares a pesquisa

experimental e a investigação da natureza.

A ênfase dada por Aristóteles à experiência deve-se ao pressuposto de que as

essências que definem a universalidade das coisas e que são as próprias formas, estão

incorporadas na matéria. Dessa forma, a observação da natureza é o meio privilegiado para

46

que o intelecto possa, a partir de casos particulares, apreender o universal. Entretanto, não

foi o próprio Aristóteles quem transformou suas teorias em verdades absolutas, em dogmas,

portanto. Nas palavras de Martins:

“[...] a história modificou a importância dada por Aristóteles à observação: a escolástica, sobretudo a escolástica dita tardia, tomou os escritos de Aristóteles não como resultados da prática de seu pensamento e de sua observação, mas como verdades incontestáveis em si; enfim, tomou-os como dogmas, e tomou o raciocínio segundo à lógica aristotélica como uma prova da veracidade de suas afirmações específicas, independentemente do que se observa na natureza.” (Martins, 1999: 85)

Com o decorrer da história, o paradigma aristotélico vai ganhando novos elementos.

A partir de Copérnico e, sobretudo com Galileu, a matemática consolida-se como a

linguagem científica e como ferramenta de extração de verdades da natureza (Koyré, 2006).

Com Descartes e Newton o mecanicismo - que atribui à natureza uma organização regida

por leis da mecânica -, o reducionismo e o racionalismo tornaram-se os princípios da

ciência.

Esses princípios estão fortemente presentes na ciência moderna. O desejo de

controlar a natureza e dar sentido à organização própria do mundo inerentes ao

mecanicismo, reducionismo e racionalismo, encontra correlatos na ênfase dada na ciência

contemporânea ao método e ao controle. No caso do uso de taxas como indicadores de

saúde, parece-nos que o método de cálculo tornou-se mais importante do que o próprio

conceito de saúde. Grosseiramente, diríamos que não importa o que se quer medir, desde

que a régua – o método – seja considerada científica.

Uma segunda origem da ciência clássico-moderna está em Platão, que

diferentemente de Aristóteles, afirma que a essência das coisas, as idéias nos termos de

47

Platão, está no mundo inteligível, separado do mundo sensível, onde habitam as cópias das

idéias. Platão valoriza as idéias em detrimento da matéria – da corporeidade, que seria fonte

de impureza e confusão. Essa divisão de mundos empreendida pelo filósofo e a

conseqüente desvalorização do corpo estão na base das dicotomias da ciência clássico-

moderna, como por exemplo: natureza e cultura, racional e afetivo, saúde e doença. Nos

termos de Martins:

“Platão fora o primeiro, portanto, a menosprezar o corpo, a matéria e os sentidos; a menosprezar o mundo real em prol de um mundo moral, racional, idealizado; a sentir a vida como perigosa, e a desejar uma ordem que a cristalize, que a domine, que a controle, que legisle. E esse domínio somente pode se dar a partir daquilo que nos leva para o mundo do controle, do não tempo: a razão, que deve, pois, impor sua lei sobre o real, a carne, o corpo, a matéria, a natureza, assim como sobre os entes e os povos que não a detêm”. (Martins, 1999: 88-89)

Esses elementos platônico-aristotélico-cartesianos, esse desejo de controle,

influenciam fortemente um sentimento, reforçado pela mídia, de que a ciência é a porta-voz

da verdade (como se houvesse uma!) e a redentora das incertezas e dos percalços inerentes

ao viver. Essa relação dogmática com a ciência, o cientificismo, como bem alerta Martins

(1999), não é partilhada por todos os cientistas. Entretanto, mostra-se muito forte em

discursos que afirmam que determinado fenômeno que ainda não encontra explicação, terá

no futuro, com o desenvolvimento da ciência, uma resposta lógica, convincente e

apaziguadora.

Martins (1999) lembra que a ciência não se reduz a este modelo clássico-moderno e

que, portanto, outros paradigmas de ciência existem e ainda outros podem ser criados. O

autor propõe um paradigma de ciência complexo, que utilize as reduções, quando

necessárias, e os conceitos, como suportes de compreensão do real. Esses suportes de

48

compreensão devem sempre reenviar o pesquisador para a complexidade do real e não para

a simplificação deste. O paradigma proposto por Martins entende que os objetos da ciência

não são naturais, dados espontaneamente, mas criações humanas, abstrações, que servem

para construção de explicações parciais acerca do mundo e não para a decretação de

verdades absolutas.

Entretanto, a definição de saúde como ausência de doença está fortemente apoiada

no modelo clássico-moderno de ciência. Um exemplo é a Teoria Bioestatística da Saúde –

TBS – de Cristopher Boorse. A teoria de Boorse, que se diz naturalista, é um contraponto

ao normativismo. Para esse autor, o normativismo definiria saúde e doença puramente

como julgamentos de valor. O que para Boorse é um absurdo, visto que se fosse a saúde um

valor, nesse caso um valor humano, não se poderia falar em saúde ou doença em plantas ou

animais não-humanos. Dessa forma, Boorse, a partir da biologia evolutiva, constrói uma

teoria em que os conceitos de saúde e doença são, supostamente, descritivos, isentos de

valor.

Para tanto, o autor faz uma distinção entre doença e enfermidade:

“A questão é que enfermidade é uma mera subclasse da doença, isto é, aquelas doenças que têm certas características normativas refletidas nas instituições da prática médica. Uma enfermidade deve ser, primeiro, uma doença razoavelmente séria com efeitos incapacitantes que a fazem indesejável [...] Segundo, chamar uma doença de enfermidade é considerar seu portador como merecedor de tratamento especial e com responsabilidade moral diminuída” (Boorse, 1975 apud Almeida Filho & Jucá, 2002: 880)

Neste trecho, Boorse tenta estabelecer um conceito teórico, doença, e outro prático,

enfermidade. Doença seria qualquer diferença que uma função ou órgão apresente em

relação ao nível normal de funcionamento esperado para a sua espécie, gênero e idade,

49

estabelecido estatisticamente. E enfermidade seria a doença em seu aspecto grave. Dessa

forma, a saúde teria duas definições negativas: uma teórica, o oposto de doença e outra

prática, o oposto de enfermidade.

Com estas definições, Boorse acredita ter construído uma base conceitual para a

saúde totalmente livre de julgamentos de valor, pois saúde seria a ausência de doença.

Porém, algumas questões permanecem. Qual seria a pertinência de se ter um conceito

teórico e outro prático de saúde, visto que a vida só se dá na imanência? Boorse parece

inspirar-se em Platão ou na interpretação religiosa da origem etimológica da palavra saúde,

visto que concebe um conceito que só tem existência enquanto abstração absoluta. Nesse

sentido, para que a saúde teórica exista não é necessária a saúde ‘prática’, saúde de fato em

pessoas reais. Da mesma maneira que para Platão, o mundo inteligível existiria

independentemente do mundo material.

Outro ponto que não ficou claro na definição de Boorse é a diferença entre doença e

enfermidade. A idéia de efeitos indesejáveis, que caracterizariam a enfermidade, nos parece

pouco descritiva e muito mais normativa. Afinal os efeitos são indesejáveis em que sentido

e para quem? E o que significa “responsabilidade moral diminuída?” Estas são questões

que ficam em aberto.

Segundo Almeida Filho e Jucá (2002), a teoria de Boorse é teleológica, visto que

para ele as funções biológicas servem para a consecução de determinados objetivos,

principalmente a sobrevivência e a reprodução. E qualquer queda na eficiência de uma das

funções biológicas, representa um processo patológico, visto que se afasta do nível

esperado para aquela função. Nas palavras do autor:

50

“a condição de uma dada parte ou processo em um organismo é patológica quando a capacidade dessa parte ou processo para executar uma ou mais de suas funções biológicas espécie-típicas cai abaixo de uma faixa central de distribuição estatística para aquela capacidade em parte ou processos correspondentes nos membros de uma classe de referência apropriada da espécie.” (Boorse, 1987 apud Almeida Filho & Jucá, 2002: 883)

Neste sentido, a dedução lógica de Boorse é que a saúde é a ausência de qualquer

alteração considerada patológica, alterações tratáveis (enfermidade) ou não (doença). De

maneira geral, a saúde permanece sendo a ausência de doença. Boorse sintetiza sua

concepção de saúde da seguinte forma:

“Saúde teórica é a ausência de doença [...] então a classificação de estados humanos como saudáveis ou doentes é uma questão objetiva, a ser extraída dos fatos biológicos da natureza sem necessidade de juízos de valor. Designemos esta posição geral como naturalismo – o oposto do normativismo, a visão de que juízos de saúde são ou incluem julgamentos de valor”. (Boorse 1997 apud Almeida Filho & Jucá, 2002: 883)

A tentativa de Boorse de definir o que é saúde é louvável. Entretanto, o autor

recorre a uma prática típica da ciência clássica, o reducionismo. Boorse reduz a vida ao seu

aspecto biológico, incute uma teleologia fundamental neste, e desconsidera a experiência

humana de viver. Será que vivemos para cumprir metas biológicas? Será que a vida tem

uma meta objetiva independentemente desta ser desejável, como considera o autor?

Afirmar isso, apostar nisso, não é, já, estabelecer um valor?

Boorse construiu uma teoria baseada na biologia e na estatística para afirmar que a

saúde é a ausência de doença. Sua idéia parece encontrar eco em boa parte da

epidemiologia, mesmo sem esta possuir uma teoria acerca da saúde. Para nos

aproximarmos da concepção de saúde utilizada de maneira geral pela epidemiologia, seria

51

interessante definirmos o objeto dessa ciência que tem como uma de suas tarefas medir

saúde.

Almeida Filho (1990) nos apresenta uma série de tentativas de definição do objeto

da ciência epidemiológica. Para Miettinem (apud Almeida Filho, 1990: 205), a

Epidemiologia é definida como “a ciência da ocorrência de doença”. Para outro autor,

Gordon (apud Almeida Filho, 1990), o objeto da Epidemiologia são as doenças em massa.

Mahon, Pugh & Ipsen (apud Almeida Filho, 1990:206) afirmam que a Epidemiologia tem

como objeto a “prevalência de doenças no homem”.

O autor reconhece o valor dessas tentativas de definição do objeto da Epidemiologia.

Entretanto, argumenta que tais tentativas pecam pelo excesso de pragmatismo que reduz o

objeto da Epidemiologia ao estudo da saúde e doença em populações humanas. Entretanto,

o problema persiste, pois, ainda que aceitemos que o objeto da epidemiologia seja a saúde e

a doença, este objeto continua impreciso, visto que não há uma definição clara do que é

saúde, salvo como já mostramos, como ausência de doença.

Almeida Filho (2000a) acredita que falta à Epidemiologia consistência epistemológica

que lhe permita definir saúde de maneira positiva a partir de critérios que não tenham a

doença como ponto central. O autor aponta o fato de que a falta de conceitos positivos de

saúde não é exclusividade da epidemiologia e atinge todo o campo da saúde:

“É certo que esta lacuna não é exclusiva da Epidemiologia. Em todas as disciplinas que constituem o chamado campo da saúde, noto um flagrante desinteresse em constituir conceitualmente o objeto saúde. Em contraste, pode-se facilmente constatar uma razoável concentração de esforços no sentido de produzir modelos biomédicos de patologia, com forte inspiração mecanicista ou, no máximo, sistêmica que, ao enfatizar os níveis de análise individual e subindividual, terminam por reduzir o alcance das suas contribuições”. (Almeida Filho, 2000a: 6-7)

52

O autor argumenta ainda que a falta de um conceito positivo de saúde faz a

Epidemiologia tentar conceituar e medir saúde de maneira indireta e dependente de

definições clínicas de doença. Nas palavras do autor:

“Penso que nem mesmo a coletivização da doença através do conceito de morbidade consegue indicar ‘essa coisa chamada saúde’. Não é por acaso que os textos epidemiológicos sobre saúde mostram-se sinuosos e inconvincentes; os seus formuladores patinam sobre metáforas, inventam maneiras indiretas de falar sobre saúde, porém o seu objeto continua sendo a enfermidade e a morte”. (Almeida Filho, 2000a: 7)

Uma tentativa de definição da saúde de maneira positiva, ou seja, diferente de

ausência de doença, foi a definição dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Para

a OMS, “saúde é definida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e

não consiste somente em ausência de doença ou enfermidade11”.

Reconhecemos que a definição de saúde da OMS procura avançar em relação à

definição negativa, pois tenta defender a idéia de que saúde não é a ausência de doença, o

que é um ponto muito positivo. Porém, apesar da flagrante boa intenção, a maneira como a

definição está redigida suprime a intenção de avançar e num certo sentido piora a definição

negativa já apresentada. Ao afirmar que a saúde é “um estado de completo bem-estar físico,

mental e social e não consiste somente em ausência de doença ou enfermidade”, a OMS

está dizendo que além de saúde ser a ausência de doença, é ainda o completo bem-estar

físico, mental e social. Dizer que não consiste somente é dizer que não é apenas ausência

de doença, mas também. Como vemos, da maneira como está escrita, essa definição, que

deveria expressar a idéia de que saúde não é a ausência de doença, mas sentir-se bem nos

11 No original: “la santé est definie comme un état de complet bien-être physique, mental et social et ne consiste pas seulement en une absence de maladie ou d’infermité.” Disponível em: <http://www.who.int/about/fr/>. Acessado em 9 de setembro de 2005. A tradução livre é nossa.

53

vários aspectos que compõem a vida, tomou a ausência de doença não mais como saúde,

mas como condição sine qua non para a saúde que deve ser somada a um sentimento de

completude. Há, portanto, um outro aspecto criticável dessa definição, a idéia de completo

bem-estar. Saúde é ser completo em que sentido? Significa viver uma vida cor-de-rosa,

ideal? A idéia de uma existência fantástica fica mais forte com o termo bem-estar. A

definição não nos ajuda a entender o que é bem-estar. Será a mesma coisa que estar bem?

Considerando o sentido da definição como um todo, parece-nos que estar bem e bem-estar

não são sinônimos, visto que estar bem não exclui ter alguma doença ou alguma dor no

sentido filosoficamente trágico do termo, de dores da vida.

Um terceiro ponto que nos parece questionável na definição da OMS é a distinção

feita entre físico, psíquico e social. Porém, este não é um problema apenas dessa definição.

Nenhuma das taxas que apresentamos diz respeito ao aspecto psíquico da vida ou da saúde.

As que abordam a questão social a reduzem à classe social, visto que medem basicamente

renda e acesso a serviços públicos. Tanto os atributos psíquicos e sociais (estes entendidos

como as relações sociais, o sentimento de pertencimento a um grupo, a rede de apoio social

de um indivíduo, etc) são desconsiderados na prática de medição de saúde, assim como, nas

tentativas de definição do objeto saúde. No caso da definição da OMS, a segmentação da

saúde em partes, físico, mental e social, expressa e ratifica o olhar especializado que o

campo da saúde tanto diz combater. A idéia de transdisciplinaridade em saúde é

incompatível com uma definição de saúde que não integre esses aspectos e não considere o

ser humano uma unidade somatopsíquica e relacional. Segre & Ferraz (1997) fazem a

seguinte crítica à definição da OMS:

54

“A definição de saúde da OMS está ultrapassada porque ainda faz destaque entre o físico, o mental e o social. Mesmo a expressão ‘medicina psicossomática’, encontra-se superada, eis que, graças à vivência psicanalítica, percebe-se a inexistência de uma clivagem entre a mente e o soma, sendo o social também inter-agente, de forma nem sempre muito clara, com os outros dois aspectos mencionados”. (Segre, M. & Ferraz, F. C., 1997:540)

Acreditamos que uma definição operativa e inovadora de saúde deve

necessariamente superar falsas dicotomias como mente-corpo e natureza-cultura. E

considerar como problema de saúde a impossibilidade de um indivíduo sentir-se inteiro e

uno. A respeito desse assunto, discutiremos de maneira efetiva no capítulo dois.

Parece-nos que a definição negativa de saúde desempenha um papel fundamental no

uso de índices, sobretudo os de mortalidade e morbidade, como indicadores de saúde. Há

alguma lógica, ainda que questionável, em, a partir da idéia de saúde como ausência de

doença, medi-la no que seria seu aspecto negativo, a doença. Nesse caso, os índices de

morbidade seriam de alguma maneira indicadores dessa saúde concebida de forma

negativa. Entretanto, a doença não é o pólo oposto da saúde.

A ausência de um referencial teórico consistente, que defina a saúde de maneira

positiva, tem levado pesquisadores e governos a produzirem quantidades imensas de dados

que, apesar de serem úteis para uma série de coisas, não medem saúde, visto que, como

veremos no capítulo 2, a saúde é um valor atribuído ao indivíduo a partir da sua experiência

de viver potentemente. Almeida Filho (1990: 215) parece concordar com essa idéia quando

afirma o seguinte: “o que concretamente existe em uma população não é a morbidade,

doença ou saúde, mas sim sujeitos doentes ou sadios, membros dos grupos considerados”.

55

Portanto, é necessário redefinir o conceito de saúde de maneira a abarcar e dar

ênfase à experiência de viver, para somente então construirmos critérios e indicadores dessa

saúde redefinida.

Parece-nos que Canguilhem e Winnicott podem ser de grande serventia neste

momento, pois são autores que relacionam saúde à experiência de viver e que a definem

como a capacidade de ser criativo, espontâneo, de criar soluções para melhor viver e extrair

algum prazer da vida mesmo quando acometido por alguma enfermidade ou limitação.

56

CAPÍTULO II

REDEFININDO SAÚDE A PARTIR DE CANGUILHEM E

WINNICOTT

2.1 A normatividade como modelo de saúde para Canguilhem

Canguilhem em sua tese de doutorado O Normal e o Patológico discute a diferença

entre os fenômenos da saúde e os fenômenos patológicos, argumentando que há diferenças

qualitativas entre os primeiros e os segundos. Esse debate se dá em contraposição à

perspectiva de Broussais, mais tarde defendida por Auguste Comte e Claude Bernard, de

que o patológico seria uma variação, uma diferença quantitativa do normal, entendido como

saúde. Segundo Canguilhem (2002), para Broussais, a doença seria uma perturbação

anatômica ou funcional dos tecidos de forma a produzir uma variação, para mais ou para

menos, da excitação normal. Neste sentido, a condição de saudável estaria próxima à idéia

hipocrática de equilíbrio, aqui entendido como o equilíbrio do meio interno, do organismo,

que deve funcionar num estado ótimo, nem hiperexcitado tampouco deprimido.

A tese da homogeneidade entre saúde e estado patológico é retomada e reforçada

por Claude Bernard ao afirmar que:

“A saúde e a doença não são dois modos que diferem essencialmente [...]. É preciso não fazer da saúde e da doença princípios distintos, entidades que disputam uma à outra o organismo vivo [...]. Na realidade, entre estas duas maneiras de ser há apenas diferenças de grau: a exageração, a desproporção, a desarmonia dos fenômenos normais constituem o estado doentio”. (Bernard apud Canguilhem, 2002: 48-49)

57

Esta é uma idéia ainda bastante presente nos dias de hoje e que parece apoiar-se na

compreensão mecânica do funcionamento do corpo formulada por Descartes. Sendo o

corpo uma máquina, a diferença entre o funcionamento correto ou esperado dessa máquina

– a saúde – e o mau funcionamento – o estado patológico – seria uma questão de regulação,

de equilíbrio, de ajuste dos seus componentes ou funções. Essa idéia bastante

contemporânea pode ser encontrada, por exemplo, no modelo computacional da mente,

muito utilizado pelas neurociências e pela psicologia cognitiva. Como nos diz Canguilhem:

“Quase sempre procura-se, a partir da estrutura e do funcionamento da máquina já constituída, explicar a estrutura e o funcionamento do organismo; mas raramente procura-se compreender a construção mesma da máquina a partir da estrutura e do funcionamento do organismo” (Canguilhem, 1975: 101)

De fato, é curioso utilizarmos o funcionamento da máquina, criação humana, para

explicar o funcionamento do seu criador. Entretanto, essa compreensão mecânica do

funcionamento orgânico serve fortemente para sustentar a tese da homogeneidade entre

saúde e estado patológico. Afinal, não existe adoecimento da máquina, o que há é uma

desregulação do seu funcionamento esperado. Ou nas palavras de Canguilhem (1990:21)

“não há a doença da máquina, pois o fato é que não há a morte da máquina”. Nessa

perspectiva mecânica, conhecer o ponto ótimo do funcionamento da máquina humana é

fundamental para reconhecer os defeitos assim que eles surgirem. A fisiologia e a anatomia

são, em parte, expressões desse desejo de conhecer os padrões de funcionamento do

organismo-máquina e estabelecer de maneira objetiva o normal e o anormal, a desregulação

do corpo humano.

58

Para uma máquina, funcionar em seu estado ótimo ou funcionar precariamente é

apenas uma questão de nível de regulação dos seus componentes e funções. As máquinas

não são dotadas de subjetividade; logo, para elas, tudo que se passa é indiferente. O

desgaste das engrenagens provocado pelo atrito de uma peça com outra é normal, o

superaquecimento que pode ocorrer também é normal do ponto de vista da termodinâmica.

Mesmo na natureza não há fenômenos anormais. Uma célula hospedar um vírus é

absolutamente banal do ponto de vista da biologia, um asteróide se chocar com algum

planeta também é um fenômeno bastante vulgar na perspectiva do cosmos. Entretanto, do

ponto de vista humano todos esses fenômenos ganham significado, ganham valor. Se para a

natureza uma célula hospedar um vírus é algo corriqueiro e sem importância, para nós é

motivo de completa reformulação da maneira de viver se o vírus for o HIV e a célula for

nossa. Logo, a diferença entre estar saudável ou enfermo não é definida apenas pelo nível

de resposta imunológica do organismo infectado, mas pela qualidade da experiência de

estar infectado. A pessoa com aids se vê obrigada a modificar sua maneira de viver. Isto

não significa que ela não possa viver bem, mas o fato é que sua vida será diferente quando

comparada com o período em que ela não estava infectada. Viver com ou sem aids são

experiências qualitativamente distintas que dependem apenas em parte da variação

quantitativa de médias biométricas. É neste sentido que Canguilhem discorda da tese

bernardiana, de origem broussainiana, de homogeneidade entre saúde e estado patológico.

Nas palavras do autor:

“Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores – quanto à estabilidade, à fecundidade e à variabilidade da vida – às normas específicas anteriores, serão chamadas patológicas. Se eventualmente, se

59

revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade. O patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida”. (Canguilhem, 2002: 114)

E ainda:

“Não há indiferença biológica. Pode-se, portanto, falar em normatividade biológica. Há normas biológicas sãs e normas patológicas, e as segundas não são da mesma natureza que as primeiras”. (Canguilhem, 2002: 99)

Os trechos acima demonstram bem a virada paradigmática que Canguilhem propõe.

O autor recusa a idéia de que o estado patológico seja um caos orgânico e também

estabelece uma sutil, porém importante diferença entre doença e estado patológico. A

doença, ainda que indesejável e de alguma maneira restritiva, somente teria um caráter

patológico quando estabelecesse uma norma de vida que fosse muito restritiva; por

exemplo, a ponto de não permitir ao organismo em questão viver em outro meio diferente

do exigido por sua doença ou, quando ainda mais grave, se opusesse de tal maneira à vida

que a extinguisse. O estado patológico seria não um caos, mas uma organização

extremamente rígida que reduz a possibilidade de vida a uma situação estritamente

controlada. Neste sentido, entendemos que uma doença não é necessariamente patológica

em si mesma. O caráter patológico depende do tipo de doença, é verdade, mas, sobretudo

da relação do indivíduo acometido pela doença com o seu meio. Em outras palavras, de

quão restritiva é a doença em questão.

Ao dizer que não há indiferença biológica, o autor chama atenção para a sua

concepção do que é saúde. Na perspectiva canguilhemiana, saúde e enfermidade (estado

patológico) seriam valores vivenciados na experiência pelos próprios viventes (humanos ou

60

não). Nessa redefinição de saúde e enfermidade, a primeira passa a ser entendida como o

valor preferido pelo ser vivo, enquanto a segunda seria uma reação às injúrias

eventualmente sofridas pela vida. Nas palavras do autor:

“O verbete do Vocabulaire philosophique parece supor que o valor só pode ser atribuído a um fato biológico por ‘aquele que fala’, isto é, evidentemente, o homem. Achamos, ao contrário, que, para um ser vivo, o fato de reagir por uma doença a uma lesão, a uma infestação, a uma anarquia funcional, traduz um fato fundamental: é que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa”. (Canguilhem, 2002: 96)

Num outro momento, Canguilhem é ainda mais incisivo ao defender a idéia de que

os seres vivos atribuem, de alguma maneira, valor à experiência de viver. E essa valoração

da vida se daria na primazia da experiência, indiferente às leis propostas pelas ciências da

vida. Canguilhem nos diz:

“Achamos que a vida de qualquer ser vivo, mesmo que seja uma ameba, não reconhece as categorias de saúde e doença, a não ser no plano da experiência, que é, em primeiro lugar, provação no sentido afetivo do termo, e não no plano da ciência. A ciência explica a experiência, mas nem por isso a anula”. (Canguilhem, 2002: 160)

O autor, ao contrário do que se possa imaginar, não está desqualificando as

contribuições das diversas ciências para a compreensão da vida, mas nos alertando para os

seus limites, para o fato de que a ciência trabalha com reduções e generalizações – como,

aliás, não poderia ser diferente – e que entre o real e a abstração científica há a experiência

de cada ser vivo. Talvez seja este o motivo pelo qual Canguilhem tão repetidas vezes

destaca a importância da experiência para se distinguir a saúde do estado patológico. Ao

colocar o organismo, ou no caso dos seres humanos, o indivíduo como parâmetro de sua

própria saúde, o autor dá uma importância secundária às médias biométricas, pensando-as

talvez como referências gerais, e recusa definitivamente a idéia de que saúde e doença

61

seriam diferenças de grau de um mesmo fenômeno. Tomando como ponto de referência a

experiência de viver, saúde e enfermidade são fenômenos qualitativamente distintos, pois

estar saudável ou não implica em modos de vida diferentes. Isto equivale a dizer que basta

ter se sentido enfermo uma vez para saber o quão diferente é a enfermidade da saúde, elas

são coisas diferentes.

A crítica de Canguilhem à tese de Claude Bernard fica ainda mais clara na análise

de Martins (2005):

“Dito de outra maneira, aos olhos de Canguilhem, é falso afirmar que entre o normal e o patológico existe uma diferença de grau de uma mesma constituição fisiológica. Não é falso que a doença não vem de um fora da natureza, não é falso que entre tecidos normais e tecidos alterados há uma diferença quantitativa, o que é falso é concluir que existe uma correspondência entre esta alteração e o estado patológico, assim como entre uma certa normalidade e o estado saudável. Resumindo, não existe, nos quer mostrar Canguilhem, tecido doente ou tecido são, senão metaforicamente, mas esta metáfora é perigosa porque pode conduzir a pensar que a saúde e a doença se referem ao estado de um órgão ou função e não ao estado do indivíduo, na complexidade de sua experiência efetiva. A experiência da saúde, poderíamos dizer, a capacidade ou a potência de agir, pode bem coexistir com as alterações ou graus fisiológicos fora da normalidade, estes presos ao sentido de média ou de um tipo ideal.” (Martins, 2005: 7)

O que vemos a partir da própria obra de Canguilhem e da análise acima de Martins

é que o autor francês recusa não apenas a tese da homogeneidade entre os fenômenos da

saúde e da patologia, como também recusa a identidade entre normal e saúde, visto que a

idéia de normalidade depende de um valor que é anterior e, portanto, externo ao organismo

real. Tomar o normal, seja a média ou o tipo ideal, como saúde implica em desejar que um

determinado organismo se comporte da maneira que ele supostamente deveria se

comportar, que ele opere segundo aquilo que as ciências naturais e da vida estabeleceram

como o correto, seja por medida ou por especulação. Identificar o normal à saúde é, em

62

última análise, fazer uma moral do corpo ou uma verdade do corpo (Canguilhem, 1990).

Em contraposição, Canguilhem propõe a normatividade como expressão da saúde e a

capacidade de ser normativo como o estado saudável.

Normatividade é para Canguilhem a capacidade que o organismo tem de estabelecer

novas e melhores normas de vida. Também deve ser entendida como a capacidade de ser

flexível frente às exigências do meio, sem que isso signifique adaptação total. Um

organismo extremamente adaptado, a ponto de somente sobreviver ou viver bem sob

determinadas condições, é um organismo que perdeu a sua capacidade de ser normativo e,

portanto, teve sua saúde diminuída ou, mesmo podemos dizer, está enfermo. Canguilhem

define normativo e normatividade da seguinte maneira:

“Em filosofia entende-se por normativo qualquer julgamento que aprecie ou qualifique um fato em relação a uma norma, mas essa forma de julgamento está subordinada, no fundo, àquele que institui as normas. No pleno sentido da palavra, normativo, é o que institui as normas. E é neste sentido que propomos falar sobre uma normatividade biológica”. (Canguilhem, 2002: 96-97)

Como vemos, a normatividade é capacidade de instituir normas, de preferir uma a

outra norma de vida, de valorar a experiência que se tem ao viver. Entretanto, e esse é um

ponto fundamental para esclarecer a maneira como interpretamos o pensamento de

Canguilhem, não nos parece correto acreditar que tendo a experiência do vivente, do

organismo, no centro da definição do que é saúde e enfermidade, a questão da saúde ficaria

reduzida ao julgamento do organismo. Ou seja, a questão da definição da saúde não poderia

ser uma enquete à qual o organismo responderia sim ou não à pergunta: você tem saúde?

Esse erro é fruto de uma compreensão baseada no princípio da racionalidade do

julgamento. Princípio esse refutado pelo próprio Canguilhem nas citações apresentadas nas

63

páginas 53 e 54 desta dissertação. Mas adiante retomaremos este debate. Por ora, nos

parece suficiente ressaltar a idéia de que o julgamento envolvido na normatividade não é a

mesma coisa que opinar sobre si mesmo.

O que nos parece fundamental na normatividade é a idéia de que ter saúde é poder

ser flexível, criativo ou inventivo, no sentido de ser capaz de produzir novas normas de

vida, de se reinventar e reinventar o mundo de alguma forma. Como exemplo disso que

Canguilhem chama de normatividade, podemos pensar nas pessoas que superam

deficiências físicas ou mentais e inventam maneiras próprias de se locomover, trabalhar e

construir lugares sociais. Podemos citar ainda as pessoas que convivem com alguma doença

crônica, mas que apesar da doença vivem bem e se sentem potentes, como muitas pessoas

com alergia, diabetes, hipertensão, aids, etc.

A compreensão que Canguilhem tem acerca da saúde não é um elogio à doença,

porém, tampouco é uma ficção científica em que ter saúde é imitar organicamente todos os

tratados de fisiologia e anatomia. Uma das inovações do pensamento do autor francês é

incluir a doença nos fenômenos normais, no sentido de comuns, da vida. A doença não é o

pólo oposto da saúde na perspectiva canguilhemiana, ela é um modo de vida diferente em

relação à saúde. Um modo que pode inclusive ser compatível com a vida. O que o autor

considera anormal, incomum, é viver sem jamais adoecer. Quanto a isso, Canguilhem nos

fala o seguinte: “Quando se diz que a saúde continuamente perfeita é anormal, expressa-se

o fato da experiência do ser vivo incluir, de fato, a doença”. (Canguilhem, 2002: 107)

Afirmar a doença como um aspecto normal da vida, aprová-la, no sentido

nietzschianamente trágico do termo, é colocar em questão a idéia, subjacente às definições

negativas de saúde, que se pode ou, ao menos, se deveria viver sem doença; que a vida

64

saudável seria uma vida asséptica, controlada de forma a não correr riscos. Talvez não seja

à toa que a noção de risco tenha um papel fundamental na epidemiologia e na construção de

indicadores de saúde. A questão que fica em aberto é: pode-se viver livremente sem correr

riscos, sobretudo, o risco de adoecer? Canguilhem parece responder que não ao considerar

a saúde uma salvaguarda do organismo, uma margem de tolerância às agressões do meio

que permite o organismo se expandir, se desenvolver, arriscar:

“O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas”. (Canguilhem, 2002: 158)

E ainda:

“A saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio. [...] Estar em boa saúde é poder cair doente e se recuperar; é um luxo biológico”. (Canguilhem, 2002: 159-160)

A normatividade proposta por Canguilhem se afasta definitivamente da idéia de

equilíbrio, estabilidade, adaptação e nos apresenta uma perspectiva dinâmica da saúde. Ser

saudável é ter a capacidade contínua de modificar-se, expandir-se no mundo, mesmo que

isso implique em eventualmente adoecer.

Com o conceito de normatividade, o autor retira da biologia o monopólio

epistemológico de definição do que é saúde. Da perspectiva canguilhemiana, a saúde

extrapola o campo da fisiologia e anatomia, pois deixa de ser determinada pelas médias

biométricas, por padrões estritamente mensuráveis e passa a ter no centro da sua definição a

experiência do vivente. Sendo a saúde uma qualidade da vida, um valor, torna-se

impossível defini-la apenas à luz dos saberes biomédicos, definir saúde passa a ser uma

tarefa de diversos saberes, a fim de contemplar seus aspectos sociais e psíquicos. Nas

palavras do autor:

65

“O homem, tendo prolongado seus órgãos por meio de instrumentos, considera seu corpo apenas como um meio de todos os meios de ação possíveis. É, portanto, além do corpo que é preciso olhar, para julgar o que é normal ou patológico para esse mesmo corpo”. (Canguilhem, 2002: 162)

2.1.1 O risco de uma compreensão solipsística da saúde

Ao tomar o vivente como parâmetro de sua própria saúde, poderíamos pensar que

caberia somente a ele a avaliação de sua saúde. Isto implicaria afirmar que saúde seria uma

questão de domínio privado e, portanto, inacessível pela experiência de outros, visto que

somente cada indivíduo teria acesso direto a sua experiência de estar vivo e à qualidade da

vida que se vive. Uma das possíveis conseqüências da adoção dessa perspectiva seria a

extinção de qualquer saber sobre saúde. Todas as teorias e práticas em saúde tornar-se-iam

obsoletas, pois todas, em maior ou menor grau, são baseadas numa concepção coletiva. Da

mesma maneira como não há ciência do caso isolado, não há terapêutica do caso particular,

ainda que a qualidade de qualquer tratamento terapêutico seja diretamente proporcional a

sua capacidade de adaptação às características e necessidades singulares do vivente em

tratamento.

Dessa forma, a adoção de uma compreensão solipsística da saúde representaria a

rejeição de todas as conquistas da humanidade nesse campo. Vacinas, acupuntura,

transplantes, fitoterapia, saneamento, psicanálise, próteses, farmacologia são alguns

exemplos de como a produção coletiva de saber sobre o tema saúde tem ajudado a

humanidade a manter e recuperar a saúde, além de se prevenir de algumas doenças. É

igualmente verdade que o conhecimento produzido pelo homem tem provocado efeitos

desastrosos, inclusive a diminuição da saúde e o controle da vida. Porém, nos perguntamos

se a “descoletivização” da saúde teria necessariamente como conseqüência o aumento da

66

potência dos indivíduos. Ou se, por outro lado, ela não produziria uma radical

individualização da vida a ponto de corrermos o risco de negligenciar a própria saúde

individual e coletiva em nome de uma suposta soberania dos indivíduos.

Canguilhem (1990), em sua conferência12 intitulada A saúde, conceito vulgar e

questão filosófica, defende a tese de que a saúde seria algo do domínio privado dos

indivíduos, algo tão da ordem de um solipsismo, que não haveria cabimento em falar de

ciência da saúde, visto que não há ciência do particular. O fundamento dessa posição do

autor parece estar na leitura que ele faz de Merleau-Ponty, e que o leva a supor “[...] a

existência de um lado do corpo humano vivo ‘inacessível aos outros, acessível somente ao

seu titular’”. (Merleau-Ponty apud Canguilhem, 1990:31) Com essa suposição, Canguilhem

parece se afastar ou recusar qualquer perspectiva científica em relação ao objeto saúde. O

autor é categórico ao afirmar que a “saúde não e um conceito científico, é um conceito

vulgar. Não quero dizer trivial, mas simplesmente comum, ao alcance de todos”.

(Canguilhem, 1990: 14) Canguilhem radicaliza um aspecto da normatividade, proposta por

ele quarenta e cinco anos antes da citada conferência, a capacidade que um ser vivo tem de

preferir uma ou outra condição de vida. O autor parece reduzir a saúde a uma mera questão

de opinião. Neste sentido, cada indivíduo humano seria literalmente juiz de sua saúde. Não

haveria nenhum aspecto objetivo ou mensurável na saúde. Canguilhem transforma a saúde

num valor humano, toma partido de maneira antropocêntrica em relação ao tema de tal

forma que não poderíamos mais falar em saúde dos animais, das plantas13, ou ainda saúde

do bebê, tampouco poderíamos falar simplesmente em normatividade biológica, mas

12 Proferida em 1988 e publicada em 1990. 13 Crítica inclusive feita por Boorse para justificar sua proposta de radical matematização da saúde. (ver páginas 43 - 45 desta dissertação)

67

apenas em normatividade do organismo humano, visto que para cada modificação orgânica

corresponderia um juízo de valor. Esta individuação da saúde seria o motivo da

impossibilidade de sua mensuração. Caponi (1997) resume da seguinte maneira esta nova

proposição de Canguilhem:

“Podemos dizê-lo de outro modo. A saúde não pertence à ordem dos cálculos, não é o resultado de tabelas comparativas, leis ou médias estatísticas e, portanto, não pertence ao âmbito dos iniciados. É, ao contrário, um conceito que pode estar ao alcance de todos, que pode ser enunciado por qualquer ser humano vivo”. (Caponi, 1997: 289)

Caponi não apenas resume o pensamento de Canguilhem como parece corroborar a

proposta do autor francês ao justificar a radical individualização da saúde da seguinte

maneira:

“Se nos negarmos a aceitar a associação corpo-mecanismo [feita por

Descartes] e pensarmos que para uma máquina seu estado de funcionamento não é sua saúde e que sua regulação nada tem a ver com a enfermidade, então devemos excluir do conceito de saúde as exigências de cálculo (contabilidade) que pouco a pouco absorveram seu sentido individual e subjetivo”.14 (Caponi, 1997: 290)

Embora Canguilhem localize a saúde no âmbito da experiência vivencial,

acreditamos que a posição adotada pelo autor e apoiada por Caponi tem alguns problemas.

O primeiro é a supervalorização da capacidade de julgamento dos indivíduos. Ao supor que

são os indivíduos, e somente eles, que devem dizer se têm ou não saúde, o autor privilegia a

razão e a consciência, o que neste momento o aproxima mais de Descartes do que o

contrário, em detrimento dos atributos inconscientes da vida mental que também interferem

na formação de juízos de valor. A psicanálise nos ensina que é absolutamente possível um

indivíduo desejar algo que lhe faz mal sem que ele tenha consciência disto. A mídia, o

marketing, a publicidade contribuem fortemente para que as pessoas valorem o mundo a

14 O comentário entre colchetes e em itálico é nosso.

68

partir de valores que são externos a elas e que, na maioria das vezes, em nada contribuem

para o seu aumento de potência, sua saúde. Por exemplo, o modelo de corpo exibido pela

mídia como bonito, sensual e saudável leva um número enorme de pessoas, sobretudo

jovens, a cometer excessos durante o treinamento, a ingerirem, sem acompanhamento

médico, fórmulas milagrosas para o emagrecimento e até mesmo a usarem esteróides

anabolizantes. É a mesma mídia que estimula, ao contrário do exemplo anterior, um certo

hedonismo expresso no consumo de alimentos de baixíssimo valor nutritivo e alto valor

calórico em nome de um suposto prazer. Podemos dizer ainda que alguém pode estar tão

adoecido que pode desejar e achar bom usar drogas em excesso e dizer que está saudável.

Logo, acreditar que a consciência individual é o melhor juiz para definir a saúde é correr o

risco de propor uma anti-saúde ou, ainda mais grave, promover uma desresponsabilização

dos governos em relação às medidas relativas ao tema.

Um segundo problema é a desnaturalização do homem. Será que apesar da

singularidade de cada indivíduo não há nada que nos seja comum, inclusive em relação à

saúde? Afinal, não constituímos uma espécie? Canguilhem contribui enormemente com a

questão da saúde ao incluir a experiência dos seres vivos na sua definição. Entretanto, dizer

que há algo de singular na saúde, afirmar que saúde não se reduz aos seus aspectos

biológicos, e que mesmo estes não devem ser tomados como absolutos invariáveis, não

significa abrir mão do que a ciência tem de positivo para oferecer. Apontar os limites da

ciência e dos seus instrumentos não deve ser entendido como uma negação da ciência.

Atribuir a ela os erros cometidos pela humanidade é dotá-la de uma subjetividade que ela

não tem. A ciência não é boa nem ruim, ela não quer controlar ou lucrar. Quem é bom e

ruim, quem deseja controlar a natureza, lucrar não importa de que maneira é o homem. E

69

isso fica claro em determinadas orientações ideológicas que em nome da saúde se propõem

controlar a vida das coletividades, como bem denuncia o autor no trecho a seguir:

“O corpo é um produto na medida em que sua atividade de inserção num meio característico, seu modo de vida escolhido ou imposto, esporte ou trabalho, contribuem para moldar seu fenótipo, isto quer dizer modificar sua estrutura morfológica e, portanto, singularizar suas capacidades. É aqui que um certo discurso encontra ocasião e justificativa. Esse discurso é o da Higiene, disciplina médica tradicional, doravante recuperada e travestida por uma ambição sócio-político-médica de regular a vida dos indivíduos”. (Canguilhem, 1990: 23-24)

A crítica canguilhemiana à Higiene nos parece perfeita. Porém, ela não deve ser

tomada como uma crítica à ciência de maneira geral, apesar da conferência do autor dar

margem a esse tipo de interpretação. Não devemos confundir Higiene com Saúde Pública,

menos ainda com Saúde Coletiva. O fato de existirem saberes com ambição de regulação

da vida coletiva não significa que todo saber sobre saúde tenha a mesma ambição. Logo,

não nos parece que seja o melhor argumento para justificar a adoção de uma concepção

solipsística da saúde a suspeita de que toda e qualquer contribuição científica, ou mesmo

popular de base coletiva, acerca da saúde, tenha como intuito ou resultado o controle das

individualidades.

Apesar de localizar o conceito de saúde no campo da opinião pessoal, o autor parece

reconhecer o risco de se cair numa moral da saúde, ou uma moral naturista que teria na sua

base o que Canguilhem chama de saúde selvagem, entendida como uma saúde em estado

bruto, sem elaboração intelectual. Ou seja, como se saúde fosse alguma coisa em si mesma

e não uma construção, inclusive racional. O naturalismo e os diversos tipos de

vegetarianismo são exemplos de propostas de vida, de uma certa ética pessoal, que se

tomadas como a nova verdade da saúde, tornam-se morais e até mesmo geram

70

comportamentos caricaturais ao pregarem uma naturalização, no sentido de uma

descivilização. É como se para viver integrados à natureza tivéssemos que deixar de ser

quem somos para virarmos selvagens. Nas palavras de Canguilhem:

“Essa defesa e ilustração da saúde selvagem privada, por desconsideração da saúde cientificamente condicionada, tomou todas as formas possíveis, inclusive as mais ridículas”. (Canguilhem 1990: 34)

Nesse trecho, já no final da transcrição da conferência, Canguilhem parece

relativizar suas próprias idéias ao considerar o risco de se forjar um conceito de saúde que

não seja fruto de reflexão crítica e que, inclusive, não tenha utilidade prática para a

resolução de problemas coletivos. Como já dissemos, tão grave quanto reduzir a vida a seus

aspectos biológicos, é reduzi-la ao seu aspecto cognitivo, no caso dos humanos. É, portanto,

necessário construir um conceito de saúde que leve em consideração a complexidade da

vida, a coletividade e que seja operativo, que possa de alguma maneira contribuir para as

diversas práticas clínicas, para a formulação de políticas públicas e para a construção de

instrumentos de aferição dessa saúde redefinida.

Para tanto, tomaremos como contribuição para a nossa formulação do que é saúde,

apresentada no item 3 deste capítulo, a normatividade proposta por Canguilhem em O

normal e o patológico. Sempre que nos referirmos à normatividade, será em relação àquela

entendida como a capacidade orgânica de ser flexível frente às exigências do meio.

No item seguinte apresentaremos a concepção de saúde do pediatra e psicanalista

inglês Donald Winnicott. Enquanto Canguilhem discutiu saúde do ponto de vista do

organismo, Winnicott privilegiará os aspectos psíquicos, sem que isto implique em

desconsiderar a corporeidade.

71

2.2 Criatividade e espontaneidade: a concepção winnicottiana de saúde

Winnicott é um autor que dedicou a maior parte de sua vida ao trabalho clínico e

sua obra reflete seu percurso profissional. Conceitos diretamente relacionados com o

manejo clínico e com a observação do desenvolvimento de crianças com as mais variadas

histórias de vida dão à psicanálise de Winnicott um vigor que o triângulo edipiano,

proposto por Freud, parece ter perdido na contemporaneidade. Uma importante diferença

entre Freud e Winnicott é o modelo de explicação do desenvolvimento humano. Enquanto o

primeiro teoriza em termos do desenvolvimento da energia sexual, a libido, e estabelece

como etapas desse desenvolvimento as fases oral, anal e fálica que teriam como desfecho a

escolha do objeto sexual ao fim do complexo de Édipo (por volta dos seis anos de vida), o

segundo procura compreender o desenvolvimento humano a partir do cuidado que o bebê

recebe desde os primeiros dias e meses de vida e, portanto, da relação da pessoa com o

ambiente.

Como veremos, para Winnicott a saúde é o resultado de um desenvolvimento

satisfatório, é uma conquista do indivíduo a partir da capacidade de se sentir uma pessoa

inteira, espontânea e criativa. Podemos separar, apenas para fim de apresentação teórica, o

desenvolvimento proposto por Winnicott em três momentos: integração, personalização e

realização ou relação de objeto. Esses três momentos apesar de diferentes estabelecem entre

si uma relação de complementaridade e simultaneidade. Tudo que favorece a integração,

favorece também a personalização e a realização.

O termo integração refere-se à constituição do ego, ao surgimento gradual, durante

o cuidado provido pela mãe, de uma delimitação entre o bebê e o mundo. Winnicott (1983:

72

55) define ego da seguinte maneira: “pode-se usar a palavra ego para descrever a parte da

personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se integrar em uma unidade”.

Para esse autor, todo bebê que não tem lesão cerebral traz consigo a capacidade de

desenvolver-se satisfatoriamente. Entretanto, esse desenvolvimento depende de cuidados

adequados providos pelo ambiente que cerca o bebê. Ambiente no sentido winnicottiano

não é apenas o espaço físico, mas o que ele chama de "mãe-ambiente". Ou seja, uma mãe,

biológica ou substituta, que se adapte ativamente às necessidades de seu bebê. Por adaptar-

se ativamente devemos entender a habilidade que as mães saudáveis têm de prover

cuidados no momento certo, quando o bebê demanda, e na quantidade adequada, o

necessário para satisfazer o bebê. Caso a relação mãe-bebê seja suficientemente boa, o bebê

terá as condições necessárias para se desenvolver. Nos termos de Winnicott:

"Podemos dizer que o ambiente favorável torna possível o progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial". (Winnicott, 1983: 81)

Apesar da tendência inata a desenvolver-se, o bebê no início de sua vida é

absolutamente dependente do cuidado alheio. Trata-se da incapacidade do bebê de dar

conta de suas necessidades, nesse caso necessidades somáticas como a fome. No início de

sua vida, o bebê não está integrado, não é uma unidade, mas um ser indiferenciado do

ambiente. Do ponto de vista do bebê, tudo que acontece – da sensação de fome à atenção a

essa necessidade – vem dele e é por ele criado. Na verdade a própria categoria "ele" não faz

sentido ainda. Neste momento inicial de sua vida, o bebê não está maduro o suficiente para

descobrir que tem bordas, limites de um corpo que é seu e separado de tudo aquilo que o

cerca. A aquisição de um senso de unidade será resultado dos cuidados ofertados pela mãe-

73

ambiente. Nesse estágio, o mundo e o bebê são uma coisa só e é desejável que seja assim.

O seio que alimenta a criança é uma extensão dela, ou melhor, uma criação do bebê. O

lactente, como o chama Winnicott, precisa ter essa experiência ilusional de criar o mundo e

cabe à mãe em sua adaptação ativa garantir essa experiência ao bebê. Como diz Winnicott

(2000: 327), “a mãe, por adaptar-se quase cem por cento, proporciona ao bebê a

possibilidade de ter a ilusão de que o seio é uma parte dele”.

É pela repetição dessa adaptação da mãe ao seu bebê que ela introduz a

exterioridade. Paradoxalmente, é permitindo que o bebê tenha uma experiência de

onipotência que a mãe vai apresentando ao seu filho a existência de duas polaridades, a

interioridade e a exterioridade, ou o “eu” e tudo aquilo que é não-eu. Nas palavras de

Winnicott:

"A adaptação da mãe à necessidade do bebê quando suficientemente boa, dá a este a ilusão de que existe uma realidade externa que corresponde à sua capacidade de criar. Dito de outro modo, há uma superposição entre o que a mãe fornece e o que o bebê é capaz de conceber. [...] O bebê concebe o seio somente na medida em que um seio poderia ser criado ali e então". (Winnicott, 2000: 328)

Ao ser cuidado de modo a ter observado seu direito à onipotência, o bebê tem a

experiência do que Winnicott chama de continuar existindo. Isto significa não sofrer

nenhuma retaliação pela sua espontaneidade, por exemplo, se movimentar no berço da sua

própria maneira, mamar no momento em que sentir fome, ter suas necessidades atendidas

no momento certo. Essa vivência onipotente que preserva a espontaneidade do bebê é a

origem da capacidade de ser espontâneo (isto não é a mesma coisa que ser inconveniente)

ao longo de toda a vida e está na base da criatividade. Ao integrar-se, o bebê começa a

poder suportar uma também gradual desadaptação da mãe. Quanto a isto o autor nos diz:

74

“É parte do repertório da grande maioria das mães prover uma desadaptação gradativa, e isto está muito bem orientado para o rápido desenvolvimento que o lactente revela. Por exemplo, há o começo da compreensão intelectual, que se desenvolve como uma vasta extensão de processos simples, como o reflexo condicionado. (Imaginem um lactente esperando a alimentação. Vem o tempo em que o lactente pode esperar uns poucos minutos porque os ruídos na cozinha indicam que a comida está prestes a aparecer. Ao invés de ficar simplesmente excitado pelos ruídos, o lactente usa esses novos itens para se capacitar a esperar." (Winnicott, 1983: 83)

A capacidade de esperar pela mãe é uma conquista do bebê que tem a sua

dependência absoluta agora relativizada. A partir desse momento ele começa a desenvolver

alguns recursos mentais15 para suportar a desadaptação da mãe. Entretanto, como já

dissemos, o bebê só desenvolve essa capacidade se pôde viver plenamente sua onipotência.

Caso os cuidados dispensados ao bebê sejam insuficientes, ou nos termos de Winnicott, se

o ambiente for intrusivo, por excesso ou negligência, o bebê terá que desenvolver

precocemente atributos mentais para dar conta da intrusão sofrida. Isso significa

desenvolver uma mente cuja experiência será separada do corpo. Uma das conseqüências

da ocorrência de problemas na integração, aliás, é a psicose.

A integração é um elemento fundamental para a concepção de saúde de Winnicott.

Tornar-se uma unidade, no sentido de diferenciar-se dos objetos não-eu é condição para a

aquisição futura de um senso de self, de inteireza, e, conseqüentemente, de um devir

criativo e potente. Ter vivido a onipotência de maneira satisfatória facilitará o bebê crescer

sem medo de sofrer retaliações à sua espontaneidade por parte do ambiente. Isto não 15 A capacidade de esperar pela mãe indica que o bebê está usando a intelectualidade. Essa intelectualidade não é uma racionalidade (no sentido normal de razão), um entendimento, mas uma ação imaginativa a partir de experiências sensoriais. Tampouco é um reflexo condicionado puro, um "bebê pavloviano", afinal, não se trata de uma questão de arco reflexo, um estímulo (sons da cozinha) que provocam uma resposta (por exemplo, o bebê salivar). Estamos falando de algo mais sutil que está relacionado ao que Winnicott chama de psicossoma, uma unidade somatopsíquica que permite pensarmos em uma experiência intelectual não-racional, uma intelectualidade pré-simbólica apoiada na experiência corpórea.

75

significa ser ingênuo a ponto de supor que o mundo é sempre amistoso e que não há nada

com que se preocupar. Entretanto, confiar no ambiente significa não ter uma vivência

persecutória, não acreditar que o mundo é simplesmente hostil e que se está a todo tempo

na iminência de se sofrer uma intrusão tal como acontecia na tenra infância. Neste sentido,

confiar no ambiente e em si mesmo é viver os problemas reais, e não os imaginários frutos

de uma paranóia neurótica ou psicótica, e sentir-se potente para enfrentá-los e superá-los

sempre que possível. A integração é conseqüência de cuidados adequados e, por sua vez,

base do sentimento de confiança. Em relação à integração Winnicott diz o seguinte:

“A integração está intimamente ligada à função ambiental de segurança. A conquista da integração se baseia na unidade. Primeiro vem o 'eu' que inclui 'todo resto é não-eu'. Então vem 'eu sou, eu existo, adquiro experiências, enriqueço-me e tenho urna interação introjetiva e projetiva com o não-eu, o mundo real da realidade compartilhada'" (Winnicott, 1983: 60)

Após a integração, esse momento de delimitação do ego que podemos sintetizar pela

frase “eu existo, sou um e tenho um corpo”, vem a personalização, a acomodação do ego no

corpo, um momento em que o indivíduo passa do “eu tenho um corpo” para o “eu sou o

meu corpo”. Este é o momento teórico em que se dá a consolidação do psicossoma, uma

unidade somatopsíquica divisível apenas no campo teórico. Winnicott (2001: 8) diz que a

personalização é o estágio em que “a psique e o soma já aprenderam a conviver”. Quando

algo dá errado e a personalização não acontece, ocorre o surgimento de uma vida mental

dissociada da corporeidade que lhe seria correspondente. O indivíduo desenvolve uma

mente que tem vida própria e está alojada em algum lugar de um corpo. Winnicott nos

apresenta como exemplo dessa dissociação entre vida mental e existência corporal o caso

de uma paciente psicótica que “em análise deu-se conta que durante a maior parte do tempo

76

ela vivia em sua cabeça, atrás de seus olhos. Enxergava através dos olhos como se fosse

através de janelas, e, portanto não podia saber o que seus pés estavam fazendo" (Winnicott,

2000: 223). A personalização leva o indivíduo a uma vivência integradora dos diferentes

atributos da sua existência, a ter mais do que uma mente e um corpo, mas a ser um

psicossoma.

O psicossoma é talvez um dos mais importantes e inovadores conceitos

winnicottianos. Esse conceito sintetiza o espírito do pensamento desse psicanalista, um

pensamento não dicotômico, que não separa mente e corpo. Para Winnicott, a mente não é

uma entidade, mas uma função somatopsíquica, uma função do psicossoma. Ou seja, a

mente não está em lugar algum, a não ser no indivíduo como um todo. Assim, o pensar não

é uma atividade puramente mental, mas corpórea também, como no exemplo do bebê com

um pensamento pré-reflexivo, sensório, que aguarda a mãe trazer sua refeição. Para o autor,

a mente é “a especialização da parte psíquica do psicossoma” (Winnicott, 2000: 333). Neste

sentido, a personalização bem sucedida faz o indivíduo experimentar mais do que uma

existência egóica, mental, dissociada da corporeidade, mas um sentimento de inteireza, de

self.

Por ser o psicossoma uma unidade e o ego apenas uma experiência mental,

Winnicott desenvolveu um outro conceito para tratar da experiência do indivíduo ser

inteiro, integrado: o conceito de self. Uma definição sintética desse conceito está na nota do

tradutor Marcelo Brandão Cipolla que diz que self é:

"o conceito psicanalítico que inclui o eu (ego) e o não-eu. É a totalidade da própria pessoa. Inclui também o corpo com todas as suas partes, a estrutura psíquica com todas as suas partes, o vínculo com os objetos internos e externos e o sujeito como oposto ao mundo dos objetos". (in: Winnicott, 2001:7, nota de rodapé)

77

A aquisição de um senso de self nos leva ao terceiro momento do desenvolvimento

emocional proposto por Winnicott, a realização ou relação de objeto. Como vemos na

definição de Cipolla, o conceito de self refere-se à experiência de ser uma unidade no

mundo, um indivíduo relacional que tem uma existência somatopsíquica num determinado

tempo e espaço que é anterior a ele, mas ao mesmo tempo, e em algum grau, é por ele

criado. Para esclarecer como se dá a realização é preciso antes apresentar alguns conceitos

como verdadeiro e falso self, objetos transicionais e fenômenos transicionais.

O self pode ser verdadeiro ou falso dependendo da reação ao tipo de ambiente que

acolheu o bebê. O verdadeiro self surge como resultado da espontaneidade do bebê e pela

capacidade da mãe em tolerar e permitir que seu filho seja espontâneo. Isto se dá ao

permitir que o bebê sinta confiança no ambiente, ou seja, que ele vivencie o ambiente como

algo não intrusivo e, como vimos, a ilusão tem papel fundamental nesse processo. É como

se o cuidado suficientemente bom desse um recado ao bebê: seja você mesmo e não tenha

medo disso! Ao vivenciar os impulsos do Id sem retaliações, o lactente tem a possibilidade

de ir se integrando, personalizando, crescendo e se tornar uma pessoa inteira, espontânea e

capaz de lidar com as frustrações inerentes ao viver. Um exemplo de espontaneidade a

partir da confiança no ambiente é a criança na escola que não tem medo de levantar o braço

e tirar uma dúvida com o professor; mesmo que seus colegas zombem.

O falso self por sua vez é uma adaptação ao mundo para que o self verdadeiro não

seja aniquilado. Isto faz com que a divisão radical entre verdadeiro e falso self seja mais

teórica do que prática em relação à saúde. Um indivíduo saudável utiliza falso self nas

relações sociais, afinal não é possível ser espontâneo o tempo todo. Assim, o protocolo

78

social, a polidez e a etiqueta podem ser considerados aspectos de um falso self “saudável”.

Entretanto, existe o falso self patológico, aquele que existe enquanto formação reativa, que

também protege o verdadeiro, mas este último pouco encontra espaço para se manifestar. O

falso self é uma adaptação submissa às exigências do mundo para evitar retaliações que

poderiam ser sentidas como perigosas à frágil integração. Nesse sentido, o indivíduo que

vive a partir de um falso self é quase sempre reativo e pouco espontâneo, ele não se sente

autêntico, criativo e criador do mundo, mas manipulado por este. Segundo Winnicott

(2000:312), “O falso self, desenvolvido com base na submissão, não pode candidatar-se à

independência da maturidade, salvo, quem sabe, a uma pseudomaturidade num ambiente

psicótico”. Porém, muitos falsos self aparentam ser maduros e autênticos. Por exemplo, a

racionalização pode ser um aspecto de falso self. O bebê que não experimenta a ilusão de

criar o seio materno, que é exposto a um ambiente intrusivo, pode desenvolver

precocemente, reativamente, uma intelectualidade para dar conta da negligência materna.

Ou seja, uma criança pequena muito esperta não significa necessariamente uma criança

saudável e feliz. E o mesmo vale para os adultos.

A capacidade de estabelecer relações com os objetos não-eu (pessoas, animais,

crenças, etc) de maneira autêntica e produtora de alguma satisfação pessoal depende da

experiência de onipotência do bebê e também de um outro tipo de ilusão típica das crianças

pequenas: os fenômenos transicionais que por sua vez são facilitados pelos objetos

transicionais. Winnicott nos explica estes conceitos da seguinte forma:

“Introduzi as expressões 'objeto transicional' e 'fenômeno transicional' para designar a área intermediária da experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação objetal, entre a atividade da criatividade primária e a projeção do que já teria sido introjetado, entre a não consciência primária da dívida e o

79

reconhecimento da dívida”. (Winnicott, 2000: 317)

Para Winnicott há, além da realidade interna (os sonhos, os pensamentos, as

sensações, por exemplo) e da realidade compartilhada, um espaço intermediário, o espaço

potencial. Voltemos a pensar em termos da vida dos bebês. Para o lactente não há diferença

entre ele e o mundo, mas à proporção que ele vai amadurecendo e se integrando, sua

realidade interna encontra a externa. O objeto transicional é – como o próprio nome diz –

um facilitador desse encontro, ajuda a fazer a transição entre a realidade interna e a externa,

ele é a primeira posse de um objeto não-eu. Um objeto tão importante para a criança que

chega a substituir a mãe em alguns momentos, um objeto que é em parte criado pela criança

e em parte percebido como exterior a ela. Outra importante função do objeto transicional é

servir de tranqüilizador frente à ansiedade provocada pela demora da mãe em atender a

criança ou na hora de dormir. Se as coisas correm bem, espera-se que o objeto transicional

seja:

“gradualmente descaracterizado, de modo que no decorrer dos anos ele se torne não tanto esquecido, mas relegado ao limbo. Com isto quero dizer que, na saúde, o objeto transicional não 'vai para dentro', nem o sentimento a seu respeito sofre repressão necessariamente. Ele não é esquecido e não há luto por ele. Ele perde o sentido, e isto porque os fenômenos transicionais tornaram-se difusos, espalharam-se sobre todo o território intermediário”. (Winnicott, 2000: 321)

Os objetos transicionais, assim como os fenômenos transicionais, servem para

possibilitar a relação da criança com o mundo e criar uma área intermediária que existirá

para toda a vida e onde a vida mesma acontece. Um exemplo de fenômeno transicional é a

brincadeira comum entre as crianças pequenas que dizem, por exemplo, que uma poltrona

na sala é um monstro e quando dizem isso, correm e gritam. As crianças não estão

alucinando, elas sabem que a poltrona não é um monstro e se um adulto as advertir a

80

brincadeira acaba. Mas naquele momento a poltrona é um objeto externo à criança, mas

criado por ela também. Essa capacidade de criar o que existe, de dar à realidade partilhada

uma pessoalidade é o que Winnicott chama de brincar. A capacidade de brincar é fruto dos

estágios do desenvolvimento emocional que vimos até agora e acontece no que o autor

chama de espaço potencial.

O espaço potencial é a herança que os objetos e os fenômenos transicionais da

infância nos deixam. Ele se torna com o gradual amadurecimento do indivíduo um lugar de

interseção entre a realidade externa e interna, que permite o indivíduo sentir-se o mais

possível autêntico, criativo, realizando algo positivo para si. É o espaço potencial que

favorece sermos criativos, extrair prazer do trabalho, devanear; crer em forças superiores,

escrever dissertações, etc. Nas palavras de Winnicott:

“Essa área intermediária da experiência, não questionada sobre se ela pertence à realidade interna ou externa (compartilhada), constitui a parte maior da experiência do bebê, e pela vida afora se mantém como o lugar das experiências intensas no campo da arte, da religião e da imaginação, e também do trabalho científico criativo”. (Winnicott, 2000: 331)

Todos esses elementos que favorecem a relação do indivíduo com o mundo fazem

parte da realização, esse momento em que o indivíduo é uma pessoa inteira e pode

relacionar-se com a sociedade, identificar-se com ela, não por adaptação, que levaria a

experimentação de um falso self, mas porque a sociedade é parte da criação do indivíduo e

ele se sente potente frente à vida, podendo lidar com frustrações sem medo de ser

aniquilado.

Como dissemos no início deste item, a saúde para Winnicott é resultado do

desenvolvimento emocional satisfatório do indivíduo que tem como conseqüência a

81

capacidade de ser criativo. A criatividade aqui não é entendida como uma habilidade

especial ou uma inteligência superior, mas como a capacidade de criar pequenos

dispositivos de vida que façam o próprio indivíduo se sentir realizando algo ou, em outras

palavras, ter o sentimento de que sua vida vale a pena e merece ser vivida apesar das

dificuldades específicas de cada vivente, e isto inclui o adoecimento. Winnicott define

criatividade da seguinte maneira:

“Tenho a esperança de que o leitor aceite uma referência geral à criatividade [...], evitando que a palavra se perca ao referi-la apenas à criação bem sucedida ou aclamada, e significando-a como um colorido de toda a atitude com relação à realidade externa”. (Winnicott, 1975: 95)

O sentido que o autor dá ou termo criatividade visa descolá-lo da idéia de produção

de objetos ou idéias socialmente reverenciados para afirmar que criatividade é um modo de

relação que o indivíduo estabelece com a realidade externa. Modo de relação este que

representa uma conquista do indivíduo a partir da sua relação com o ambiente no curso do

seu desenvolvimento.

Isto significa que a criatividade depende da capacidade de confiar no ambiente

conquistada no início da vida e expressa na espontaneidade. A partir da confiança no

ambiente é possível relaxar e experimentar a não-integração da saúde, um momento em que

os contornos do corpo se afrouxam. Para ilustrar o que o autor chama de estado não-

integrado da saúde, pensemos em alguém em sua própria casa, lendo um livro que lhe

interessa. Nesse momento, o indivíduo está relaxado e assim está porque não tem que se

preocupar com o ambiente, ele está "desarmado". Enquanto lê, não pensa na pressão que

uma perna faz sobre a outra ao cruzá-las, não pensa na temperatura ou se há outras pessoas

em casa, etc. Entretanto, se de repente na cozinha cai uma panela no chão, o barulho o põe

82

em alerta e o indivíduo se integra. Essa flexibilidade, essa capacidade de suportar um

estado não-integrado sem prejuízo para o indivíduo é próprio da saúde. Nas palavras do

autor:

"A desintegração, durante o repouso, o relaxamento e o sonho pode ser admitida pela pessoa saudável, e a dor a ela associada pode ser aceita, especialmente porque o relaxamento está associado à criatividade, de modo que é a partir do estado não-integrado que o impulso criativo aparece e reaparece. As defesas organizadas contra a desintegração roubam uma precondição para o impulso criativo e impedem, portanto, uma vida criativa". (Winnicott, 1999: 12)

A saúde entendida como criatividade requer a plasticidade enunciada acima por

Winnicott. A expressão da saúde winnicottiana é, portanto, o que o autor chama de brincar.

No original em inglês o termo empregado é playing que não é exatamente a mesma coisa

que brincar, visto que o termo pode ser utilizado no sentido de jogar um jogo, tocar um

instrumento, praticar um esporte, encenar um papel teatral e também brincar. De maneira

ampla e sem compromisso com os formalismos que uma tradução exige, nos parece que o

termo playing na obra de Winnicott tem o sentido de realizar algo, o que não implica

exatamente uma ação, mas uma postura diante da vida. Entretanto, a tradução para o

português dá uma bela idéia do que seja o playing. Afinal o brincar winnicottiano tem um

pouco da postura das crianças, que cultivam um olhar curioso sobre o mundo. As crianças

estão sempre descobrindo novidades mesmo nas coisas antigas e já supostamente

conhecidas. O conceito de brincar tem a ver com sentir prazer em viver a vida como se ela

fosse uma brincadeira, sem esquecer que brincar às vezes machuca e fere. Ou seja, brincar

implica em de vez em quando sentir dor, perder, mas sem que isto implique em deixar de

brincar. As crianças nos ensinam a cair, chorar e em seguida querer brincar mais do que

83

nunca. Brincar para Winnicott significa fazer qualquer coisa de forma criativa e prazerosa,

é a expressão da espontaneidade, é deixar-se atravessar pelo que podemos, deleuzianamente

falando, chamar de devir criança. Sentir-se suficientemente potente frente à vida para criá-

la e recriá-la é a saúde winnicottiana, e o brincar é a sua expressão. Quanto a isso,

Winnicott nos diz:

"Em outros termos, é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia".(Winnicott, 1975: 63)

O que nos parece especialmente intrigante no brincar como expressão da saúde, da

criatividade, é que se sentir realizando algo não está necessariamente relacionado ao fato

de ter ou não doença. Até mesmo a maneira como se lida com o adoecer ou com a morte

pode ser saudável ou não, dependendo da capacidade de brincar do indivíduo. A luta

contra o envelhecimento travado nos consultórios dermatológicos nos dias de hoje e a

ingestão de toda sorte de substância na busca de um corpo com aparência de saudável não

nos parecem exemplos de saúde. Entretanto, as pessoas que procuram cuidados médicos

para rejuvenescer ou não envelhecer não o fazem porque estão doentes, mas porque não

estão saudáveis. Não se trata de pessoas com alguma entidade nosológica diagnosticada,

mas pessoas que sofrem de desnutrição do imaginário, de uma pobreza psíquica própria de

uma existência baseada no falso self. O que talvez Winnicott queira dizer com o seu

conceito de playing é que dependendo da qualidade do desenvolvimento de um indivíduo,

ele pode morrer de câncer e com saúde ou viver uma vida inteira sem nenhuma

perturbação orgânica ou psíquica significativa e, ainda assim, nunca ter sido saudável.

Entender saúde como a capacidade de ser criativo não é desconsiderar os atributos

84

biológicos da saúde; é, ao contrário, retirar a questão da definição de saúde da abstração

biométrica e encarnar os aspectos biológicos num corpo dotado de subjetividade que tem

a sua saúde fortemente influenciada pela qualidade da experiência de vida. Este é um

ponto em que Winnicott e Canguilhem se encontram próximos.

Até aqui apresentamos o que esses dois autores entendem por saúde. No próximo

item nos dedicaremos a explicitar, a partir de Canguilhem e Winnicott, o que entendemos

por saúde e quais elementos são facilitadores da saúde que propomos.

2.3 A saúde como potência

A saúde como ausência de doença tem sido definida de maneira estatística a fim de

estabelecer um padrão de funcionamento orgânico e social (acesso a serviços de saúde,

saneamento, educação, etc) que sirva como norteador das ações e políticas de saúde. A

matematização da saúde procura evitar equívocos nas ações dos profissionais de saúde e

gestores. Uma vez estabelecido um padrão de saúde, tudo que está fora do padrão passa a

ser indesejável e, portanto, objeto de intervenção específica. Como conseqüência dessa

maneira de conceitualizar saúde, temos a supervalorização de ações de prevenção e

tratamento de doenças. Tratamento este que em não raras vezes representa ações

específicas de combate à sintomatologia das doenças e não à etiologia delas. A obesidade,

por exemplo, representa um desafio contemporâneo ao sistema de saúde. Será que este

fenômeno mundial pode ser combatido com cirurgias de redução de estômago e

campanhas de educação nutricional? O que leva alguém a se tornar obeso? Será que tratar

a obesidade é a mesma coisa que combater o excesso de peso? A princípio, dentro de uma

concepção negativa de saúde, a obesidade – a doença – e seu sintoma mais visível – o

85

excesso de peso – se confundem. Entretanto, aspectos psíquicos também estão envolvidos

no fenômeno da obesidade, porém, negligenciados ou relativizados em sua importância

nas ações de combate à doença. Provavelmente, em muitos casos a obesidade é fruto da

diminuição de potência dos indivíduos16. Quanto a isso, nos parece que a concepção de

saúde como ausência de doença é incapaz de sustentar ações que promovam e

restabeleçam a saúde como potência individual e coletiva. E isto se deve ao modelo de

ciência hegemônico no campo da saúde.

O conceito negativo de saúde está apoiado no paradigma clássico-moderno de

ciência que apresentamos no capítulo 1, que se caracteriza pela linguagem matemática,

pelas reduções do real complexo a alguns de seus atributos, pela busca de leis universais

e, sobretudo, pelo seu desejo de controle. Como já dissemos anteriormente, essas

características não são necessariamente ruins. Não há dúvida que esse modelo de ciência

foi e é importante para a humanidade. Avanços no campo da saúde, dos transportes, das

comunicações, da infra-estrutura nas cidades urbanas e rurais são devidos à produção

científica. Entretanto, como bem nos lembra Martins (1999), a letalidade das armas (fuzis

que disparam mil tiros por minuto, bombas atômicas e bioquímicas), a insustentabilidade

ambiental da produção de riquezas no mundo, o aparecimento de doenças resultantes do

estilo de vida estressante, o consumo exagerado de alimentos pobres em bons nutrientes e

ricos em gordura, sal e açúcar são alguns exemplos dos efeitos colaterais dessa

racionalidade científica clássico-moderna.

No que toca diretamente à tarefa de conceitualizar a saúde, parece-nos impossível

16 Sobre o tema obesidade abordado numa perspectiva complexa ver: CARVALHO, M. C. & MARTINS, A. A obesidade como objeto complexo: uma abordagem filosófico-conceitual. Ciênc. saúde coletiva, v..9, n.4, p.1003-1012, 2004.

86

construir um conceito positivo se nos mantivermos no mesmo paradigma dominante de

ciência que forjou o conceito negativo. Dessa maneira, parece-nos fundamental retomar a

proposta de paradigmas complexos feita por Martins (1999), que o autor chama de

paradigma espinosiano e paradigma quântico. O primeiro caracteriza-se por ser um

paradigma não dicotômico, que parte do princípio da não-separabilidade entre mente e

corpo e natureza e cultura, sendo cada elemento desses um atributo do real complexo e

uno. Um só real constituído pela substância universal, chamada por Spinoza de Natureza.

A ontologia espinosiana compreende que cada elemento do real, que vemos como

unidades em si, separadas das outras unidades (pessoas, objetos, plantas, etc), é um modo

diferente da substância, uma modificação particular que apesar de sua singularidade

mantém uma relação de continuidade com todos os outros elementos do real. Neste

sentido, esta folha de papel e as mãos de quem a segura e lê são diferentemente a mesma

coisa, duas modificações singulares da substância.

O paradigma espinosiano tem, pelo menos, duas grandes conseqüências. A

primeira é epistemológica, no sentido de que qualquer saber desenvolvido a partir desse

paradigma terá que necessariamente considerar seu objeto na imanência do real, nas suas

inter-relações inevitáveis e, portanto, compreender que qualquer redução é, de fato, uma

redução e deve ser sempre relativizada e servir para reenviar o pesquisador para a

complexidade do mundo. Dito de outra forma, ter claro que o resultado de uma pesquisa,

de uma experimentação não é a verdade sobre o objeto estudado, mas, antes, o resultado

de um certo recorte do real, possível a partir de uma dada metodologia e da interpretação

desses resultados à luz de uma ou mais teorias. A segunda conseqüência é ética. Se

entendermos afetivamente que somos todos constituídos pela mesma substância e que

87

através dela estabelecemos uma relação de continuidade e interdependência com todos os

outros modos, questões como racismo, degradação ambiental (afinal, o homem médio se

sente separado da natureza), violência, os impasses bioéticos, etc seriam necessariamente

redimensionadas.

O segundo paradigma apresentado pelo autor é o paradigma quântico. Neste, o real

também é concebido como uno, o campo quântico, onde todas as coisas são constituídas

pelos quanta, que são não-separáveis entre si. O paradigma quântico entende,

analogamente ao espinosiano, que tudo está ligado entre si, visto que tudo é composto

pelos quanta. A singularidade de cada ser, visto como separado dos demais, se deve às

infinitas combinações dos quanta que compõem átomos, que por sua vez compõem

moléculas, que compõem tecidos, órgãos, sistemas, organismos e tudo o que há no real.

Esse paradigma, diferentemente do clássico-moderno, não repudia a imprecisão ou os

paradoxos, ao contrário, é por eles constituído e os tem como objetos de estudo. Um

exemplo de paradoxo é o próprio quantum, que é onda ou partícula dependendo do tipo de

interação que se estabelece com o meio em que está; porém, ele não é nem onda nem

partícula. Outra característica do quantum é estar permanentemente em movimento, um

movimento intrínseco chamado spin. Esse paradoxo, insuportável na ciência clássico-

moderna, é o pilar fundamental da física quântica. Sem ele não há possibilidade de

questionamento acerca dos aspectos subatômicos do real. Entretanto, toda a inovação

teórica e metodológica da física quântica não torna obsoletas as conquistas da física

newtoniana. Por exemplo, continua-se utilizando os princípios da física newtoniana para a

construção de ferrovias, ao mesmo tempo em que se aplica conhecimentos da física

quântica para o emprego de semicondutores na propulsão dos trens de alta velocidade que

88

circularão por elas.

De maneira análoga, o paradigma espinosiano-quântico não deve ser entendido

como uma oposição ao clássico-moderno, mas uma diferença, uma ferramenta para se

estudar aspectos do real em que o paradigma clássico-moderno se mostrar ineficaz,

desinteressante ou mesmo manipulador do objeto estudado, isto é, enquadrando seus

objetos a qualquer custo nos seus parâmetros de cientificidade, o que descaracterizaria a

ciência como tentativa de aproximação do real e a tornaria uma ficção.

Acreditamos que o campo da saúde ganharia em termos teóricos e práticos se

incluísse em seus estudos e ações o paradigma espinosiano-quântico ou outro paradigma

complexo. Considerar a razão como inseparável do afeto; a cultura como um aspecto da

natureza humana e não uma redenção da nossa animalidade; o homem como uma unidade

somatopsíquica que se constitui a partir das suas inter-relações pessoais e ambientais,

poderia tornar desnecessárias determinadas ações paliativas realizadas para contornar os

efeitos colaterais da aplicação da racionalidade científica clássico-moderna. Por exemplo,

ações de humanização da medicina, visto que, sendo o psiquismo um atributo do

psiquessoma, toda ação no corpo levaria necessariamente em consideração suas

repercussões subjetivas. Esse paradigma também contribuiria para um maior protagonismo

dos pacientes em seus tratamentos. O médico deixaria de ser um representante da

racionalidade e da ciência, em contraposição à ignorância do paciente – constituída como

fruto da sua poluição corpórea e das crendices populares –, para ser o que, de fato, um

médico deve ser, um terapeuta, alguém que de posse de um saber específico, e operando a

partir de uma razão-afetiva, pode desenvolver junto com o paciente estratégias de

enfrentamento do adoecimento que respeitem a integralidade da saúde humana. Para tanto,

89

as próprias concepções de saúde e doença, tratamento e prevenção teriam que ser

redefinidas a partir desses novos paradigmas a fim de se tornarem conceitos mais

operativos e propiciadores de novas práticas. Nas palavras de Martins (1999):

“Se concebermos uma ciência não mais de domínio do homem sobre a natureza, mas de uma nova aliança entre os dois – uma ciência como meio de compreensão da complexidade do real; a razão como razão-afetiva, conhecimento racional-intuitivo, no mundo, somatopsíquica; os formalismos da linguagem dita ‘natural’ e das matemáticas como não mais tendo a pretensão de enunciar a verdade do real (ainda que a verdade ‘possível de ser enunciada’ em determinada época histórica ou segundo determinada ‘região’ da ciência), mas como suporte de reenvio para a complexidade vivida por nós no real imanente; o ser humano como corpo-mente, modalidade da natureza, em continuidade com os outros seres – então neste novo paradigma ontológico, epistemológico e por conseguinte ético, paradigma da não-separabilidade, da continuidade dos seres descontínuos, paradigma quântico-espinosiano, os conceitos de vida e de morte, de saúde e de doença, se redefinem”. (Martins, 1999:108)

A citação acima, além de resumir o que dissemos anteriormente, nos alerta para o

fato de que os conceitos, que por uma razão ou outra acabamos tomando como naturais e

existentes desde sempre, são na verdade datados e fruto de uma certa história da

racionalidade científica (com Platão, Aristóteles, Descartes, Comte e Kant, por exemplo), e

que, portanto, afiliações diferentes (Spinoza, Nietzsche, Canguilhem e Winnicott) podem

nos levar a epistemologias distintas e conseqüentemente a novas práticas. E é exatamente

isso que Martins faz ao definir saúde como capacidade de transformação de si e da

realidade. A partir de seu paradigma complexo, o autor redefine os conceitos de vida,

morte, saúde e doença da seguinte forma:

“[...] podemos dizer que a morte passa a ser tida como parte da vida (como, aliás, já o fora em outras épocas da história); a vida como transformação (e não mais como perenidade, autoconservação ou cristalização). Por conseguinte, a saúde (física, psíquica e ambiental) como capacidade de transformar-se, de morrer para o antigo para renascer para o novo; e a enfermidade (física, psíquica e ambiental)

90

como a impossibilidade modal e momentânea de transformação (de renovação, de regeneração), o desejo de cristalizar o fluxo do tempo, de parar a pulsão de vida que constitui ao mesmo tempo o nosso psiquê-soma e todo o universo” 17. (Martins, 1999: 109)

Martins se aproxima de Canguilhem e Winnicott ao deslocar o foco na ocorrência

de doença para a definição de saúde. Essa aproximação é ainda maior quando o autor

inclui, sem rancor, sem lamentar e desejar que fosse diferente, o adoecimento e a morte no

curso natural da vida. Definir saúde como capacidade de transformação é outro ponto em

comum entre esses autores. A partir deles nos parece que podemos dar um passo a mais no

debate sobre o que é saúde e definir esse conceito a partir da idéia de capacidade de

transformação, como potência.

Entendemos saúde como a capacidade que um indivíduo, entendido como unidade

somatopsíquica, conquistou ao longo do seu desenvolvimento de ser criativo e normativo,

de sentir-se e mostrar-se autêntico e potente frente à vida, apesar dos constrangimentos

inerentes ao viver, inclusive o adoecimento. Nesta redefinição, o próprio indivíduo torna-se

o ponto de referência de sua saúde. Neste sentido, estar saudável é sentir-se potente,

realizando algo para si que valha a pena, que torne a vida como ela é, incluindo aí o

adoecimento, mais prazerosa e merecedora de ser vivida.

2.4 Elementos facilitadores da saúde redefinida

Um conceito de saúde baseado na experiência de vida e na não-separabilidade entre

corpo e mente e natureza e cultura nos parece estar mais de acordo com o princípio de

integralidade do Sistema Único de Saúde. Para cuidar do indivíduo como uma pessoa

inteira, é preciso um conceito de saúde que não esteja definido a partir da doença e que,

17 Itálicos do autor.

91

portanto, estimule o cuidado à pessoa, tanto saudável quanto doente, e não o simples

combate à doença. A promoção de saúde também ganha nova dimensão com esta maneira

de definir saúde. Promover saúde seria não mais uma extensão das ações de prevenção, mas

a adoção de ações e políticas que favorecessem a saúde redefinida. Para tanto, é necessário

definir elementos que favoreçam a saúde tal como a entendemos.

Definir elementos facilitadores da saúde evita que, ao tomar a experiência de vida

como referência da saúde, reduza-se a investigação da saúde das coletividades a meras

enquetes de opinião: tenho ou não tenho saúde. E ainda, no futuro, esses elementos poderão

se tornar objetos de diferentes indicadores de saúde, como é hoje a mortalidade, por

exemplo. Para tanto, propomos inicialmente cinco elementos que, a partir das teorias que

adotamos para a nossa definição de saúde, entendemos favorecerem a saúde como potência

criativa e normativa. São eles: capacidade de ser espontâneo, capacidade de ser inventivo

ou de ação transformadora da realidade compartilhada, expectativas positivas em relação ao

futuro, sentimentos positivos em relação a si e apoio social. Chamamos a atenção para dois

pontos. O primeiro é o fato de que esses são elementos favorecedores da saúde por nós

definida e não condições de saúde. Logo, não devem ser entendidos como critérios a serem

atendidos total ou parcialmente por um indivíduo para a definição da sua saúde. Entretanto,

entendemos que se um indivíduo tem esses elementos incorporados à sua vida, sua chance

de estar efetivamente potente é maior. O segundo ponto diz respeito ao modo como esses

elementos se organizam. Entendemos que eles estabelecem entre si uma relação de

interdependência e podem ser separados (apenas teoricamente) em níveis. Os elementos

capacidade de ser espontâneo e capacidade de ser inventivo constituem um primeiro nível

de organização dos elementos facilitadores da saúde porque representam a possibilidade de

92

se viver a partir de um verdadeiro self . Por sua vez, o nível primário é favorecedor e, em

algum grau, causa do nível seguinte, o nível secundário. Neste segundo nível, estão os

elementos expectativas positivas em relação ao futuro e sentimentos positivos em relação a

si que representam a maneira como o indivíduo se organiza subjetivamente e se posiciona,

inconscientemente ou não, no mundo por ele criado (no sentido winnicottiano do termo).

Este nível nos leva a um terceiro nível que representa o ambiente e a compreeensão

winnicottiana de que todos precisam de um ambiente suficientemente bom. Neste nível

terciário está o elemento apoio social.

Uma vez mais advertimos que esta organização em níveis é teórica, pois trata-se de

uma tentativa de expressar a maneira como entendemos a articulação desses elementos para

a facilitação da saúde. Entretanto, não é possível dizer com clareza quando um nível

termina e o seguinte começa. Na imanência da vida tudo acontece ao mesmo tempo. Por

exemplo, o bebê antes mesmo de ter um Eu, já está inserido num determinado contexto

social que terá impacto direto no seu desenvolvimento. E ao passo que se desenvolve, que

se torna uma pessoa inteira, o indivíduo pode recriar seu contexto social, reinventar o

mundo. Em outras palavras, assim como as etapas do desenvolvimento humano se

confundem em suas bordas, os limites dos níveis dos elementos facilitadores da saúde

também são imprecisos, pois esta imprecisão é própria da natureza humana. A partir de

agora apresentaremos cada um desses elementos facilitadores separadamente.

2.4.1 Capacidade de ser espontâneo

93

Como vimos, em Winnicott18 a espontaneidade está na base de sua concepção de saúde.

Sentir-se espontâneo permite ao indivíduo estabelecer relações que respeitem a sua

autonomia e a alheia, possibilita, ainda, a afirmação trágica da vida, no sentido

nietzscheano da expressão. Isso significa afirmar o mundo como ele é, nos seus aspectos

positivos e negativos.

A capacidade de ser espontâneo permite ao indivíduo operar o quanto mais for

possível a partir do seu verdadeiro self, sentindo-se capaz de se expressar e de afirmar seus

valores. Se pensarmos em termos coletivos, a espontaneidade é o que autoriza um

determinado grupo a lutar por suas reivindicações, a marcar seu protagonismo social. A

capacidade que um indivíduo ou grupo tem de expressar seus sentimentos, opiniões e

anseios é condição para a transformação da realidade. Ser o que se é e sentir-se potente o

suficiente para afirmar sua singularidade no mundo tem impacto direto na qualidade da

experiência de viver e, portanto, na saúde.

2.4.2 Capacidade de ser inventivo ou de ação transformadora da realidade

compartilhada

Este é um ponto em que a normatividade de Canguilhem e a criatividade de

Winnicott se encontram. A capacidade de ser inventivo se traduz na flexibilidade orgânica e

psíquica ou, em outros termos, na flexibilidade psicossomática frente às demandas do

ambiente. A capacidade de inovação, de criação (consciente, inconsciente, vegetativa) de

soluções que potencializem a vida impacta a saúde nos seus aspectos biológicos, psíquicos

e sociais. Como vimos em Canguilhem, a imutabilidade biológica, a radical adaptação a

18 A relação entre espontaneidade e saúde e as conseqüências negativas da impossibilidade de se vivenciar a espontaneidade podem ser apreciadas no texto: WINNICOTT, W. (2000) Psicoses e Cuidados Maternos. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, p. 305-315.

94

determinadas condições precariza ou mesmo extingue a vida. Por sua vez, a criatividade,

aspecto psíquico análogo à normatividade biológica, determina a qualidade da existência ao

permitir um indivíduo sentir-se criador da realidade ou submetido a ela, sentir-se realizando

algo ou, ao contrário, sendo manipulado pelo outro social. Nesse sentido, a capacidade de

ser inventivo se traduz nas transformações positivas engendradas pelo indivíduo a fim de

melhorar sua experiência de viver.

2.4.3 Expectativas positivas em relação ao futuro

Expectativas positivas em relação ao futuro não são explicitamente discutidas por

Canguilhem, Winnicott ou Martins, entretanto, acreditamos que este seja um elemento

facilitador da saúde proposta pelos três autores. Entendemos por expectativas em relação ao

futuro a avaliação racional e afetiva que um indivíduo faz de seu futuro. Quando positivas,

as expectativas em relação ao futuro podem expressar e reforçar a confiança que um

indivíduo tem em si mesmo e no ambiente, elementos fundamentais da saúde proposta por

Winnicott. As expectativas em relação ao futuro estão relacionadas com a capacidade de

ação transformadora da realidade no sentido em que, se sentindo e estando potente, o

indivíduo, mesmo em uma situação desfavorável no presente, é capaz de vislumbrar um

futuro melhor e intervir na realidade para criar o futuro desejado. E isto não deve ser

confundido propriamente com esperança. A esperança traz em geral no seu bojo a idéia de

passividade, esperar que algo aconteça por acaso, destino ou por interferência divina. Ao

contrário, expectativas positivas em relação ao futuro dizem respeito à constatação de que

se é capaz de realizar algo, de transformar a vida naquilo que for possível.

“Expectativa em relação ao futuro”, no singular mesmo, tem sido utilizado como

indicador da saúde negativamente definida. Sabroza, Leal, Souza Jr. et al (2004),

95

apresentam associações entre gravidez precoce e baixa expectativa em relação ao futuro e,

ainda, argumentam que a baixa expectativa, somada a outros fatores (baixa auto-estima,

falta de apoio familiar, alto nível de estresse e sintomas depressivos), influencia o modo

como a relação mãe-bebê vai se estabelecer. Ou seja, da nossa perspectiva teórica, a

associação encontrada pelos pesquisadores impacta não apenas a saúde da mãe-adolescente

como pode de fato comprometer o desenvolvimento do bebê.

Da mesma maneira como baixa expectativa em relação ao futuro impacta

negativamente a saúde, supomos que expectativas positivas possam impactar positivamente

a saúde, em outras palavras, favorecer o aumento da potência de vida, da criatividade e

normatividade de um indivíduo. Neste sentido, expectativas positivas podem indicar e

favorecer a reunião de energia psíquica suficiente para pôr em marcha os projetos de vida

de um determinado indivíduo.

2.4.4 Sentimentos positivos em relação a si próprio

Sentimentos positivos em relação a si próprio também não são tratados diretamente

pelos três autores de base, entretanto, nos parece que este é um elemento implícito da saúde

proposta pelos autores, sobretudo Winnicott, por dar maior destaque aos aspectos

psicológicos da saúde. Entendemos por sentimentos positivos em relação a si mesmo a

auto-avaliação feita por um indivíduo considerando aspectos emocionais, físicos e morais.

Nutrir sentimentos positivos em relação a si mesmo é um aspecto importante para o

indivíduo sentir-se potente frente à vida, capaz de expressar sua espontaneidade e

transformar a realidade da qual ele faz parte. Gostar de si também é um elemento

propiciador de cuidados de si, entendidos como o cuidado de alimentar-se de maneira a não

agredir seu organismo, o cuidado de estabelecer relações mais éticas, o cuidado de

96

preservar-se, não no sentido econômico de poupar-se a ponto de viver com a quantidade

mínima de estímulos e riscos, mas preservar-se sempre que necessário para poder se

expandir sempre; isto inclui não cair em moral alguma, inclusive a moral do corpo

saudável.

Padoxalmente a capacidade de nutrir sentimentos positivos em relação a si depende

muito da relação entre indivíduo e ambiente numa época tão primitiva do desenvolvimento

que não poderíamos propriamente falar de indivíduo e de ambiente, trata-se do estágio de

dependência absoluta do bebê. Neste momento em que o bebê vivencia a experiência de

onipotência é que se estabelecem os fundamentos da capacidade de ser espontâneo e a

capacidade de confiar no ambiente. Essa experiência primitiva de poder ser quem se é sem

sofrer retaliações por isso é a base para o desenvolvimento do amor próprio. Ao ser ele

mesmo e vivenciar positivamente essa experiência de autenticidade, o bebê pode desejar19

ser quem ele já é, amar-se e desenvolver esse amor ao logo da vida.

Sentimentos positivos em relação a si podem ser expressos pela idéia de se tem algo

positivo para dar ao mundo, algo muito próprio da adolescência20

2.4.5 Apoio Social

Apoio social é o último elemento que apresentaremos, pois de alguma forma ele

recapitula todos os anteriores e explicita a importância dos relacionamentos sociais na

saúde. Winnicott nos apresenta a relação mãe-bebê como a mais fundamental das relações.

Com isso o autor expressa sua certeza de que o homem é um ser relacional, que se constitui 19 Esta não é uma boa palavra para esta etapa do desenvolvimento, mas nos falta uma melhor. 20 Ver WINNICOTT, D. W. (2001) Adolescência – transpondo a zona das calmarias. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, p.1115-128. E WINNICOTT, D. W. (1975) Conceitos contemporâneos de desenvolvimento adolescente e suas implicações para a Educação Superior. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

97

como pessoa a partir dos cuidados que recebe e das relações que estabelece, como vimos

anteriormente. Podemos dizer que para Winnicott é impossível conceber um homem

isolado, auto-suficiente, pois o homem é fruto da sua interação com o ambiente que inclui

outros homens. Neste sentido, entendemos que o apoio social desempenha a função

materna, agora não mais concentrada em uma única pessoa, a mãe, mas diluída em todas as

relações sociais e na própria cultura. Dessa forma, quando mais as relações sociais

desempenharem a função materna suficientemente boa, maior apoio social elas estarão

promovendo e, assim, facilitando a saúde. Isto nos faz winnicottianamente concluir que, da

mesma maneira como não existem indivíduos isolados, igualmente não existe “o coletivo”,

como entidade anterior à existência de homens singulares, mas o coletivo de homens

concretos e singulares que apesar das suas singularidades têm aspectos comuns e que

estabelecem entre si uma relação de interdependência.

Dessa forma, entendemos que a qualidade dos relacionamentos sociais de um

indivíduo tem forte influência em sua saúde. Por qualidade entendemos a capacidade que o

conjunto de relações de um indivíduo, a rede social, tem de gerar apoio a esse indivíduo.

Cohen & Syme (1985 apud Stansfeld, 1999) definem apoio social como os “recursos

providos por outras pessoas”, isto significa “informações passadas ao sujeito para que ele

acredite que é cuidado, amado, estimado e valorizado e pertencente a uma rede social de

comunicação e obrigações mútuas”. (Cobb, 1976 apud Stansfeld, 1999) A partir das

citações apresentadas, entendemos apoio social como o conjunto de ações que um

indivíduo recebe de seus pares a fim de apoiá-lo, confortá-lo e estimulá-lo. Essas ações

podem ser a provisão de recursos financeiros, afetivos ou de ajuda prática como, por

98

exemplo, alguém que se dispõe a tomar conta dos filhos de outra pessoa enquanto esta

última está no trabalho.

Berkman & Glass (2000) discutem a relação entre integração social e a prevenção

de mortes e a ocorrência de doenças. Segundo os autores, redes sociais que promovem

apoio social a seus membros são capazes de reduzir os índices de mortalidade em todas as

causas de morte. Os autores citam um estudo realizado por Berkman & Syme em 1979 que

concluiu que homens e mulheres com poucos laços sociais tinham 1,9 e 3,1 mais chances,

respectivamente, de morrer nos nove anos seguintes (no caso, entre o período de 1965 e

1974) do que pessoas com mais contatos sociais. Outros estudos são apresentados

relacionando apoio social e redução da mortalidade por doenças cardíacas, por exemplo.

Entretanto, toda discussão se mantém apoiada no conceito negativo de saúde ao limitar-se a

apresentar evidências epidemiológicas que provem que laços sociais previnem mortes e

doenças. Esses estudos por si só já representam um grande avanço ao incluir na pauta de

discussão sobre indicadores de saúde as relações interpessoais. Porém, acreditamos que o

apoio social é importante não apenas por reduzir a ocorrência de doenças e morte, mas

também por, possivelmente, aumentar a capacidade individual e coletiva de criar soluções

para se viver melhor, como no exemplo citado da mãe que pode sair para trabalhar porque

tem alguém que a apóia ao tomar conta de seus filhos enquanto ela está fora. Outros

exemplos são as cooperativas de trabalhadores que coletivamente criam soluções para o

desemprego, os mutirões para construção de casas, a formação de bibliotecas públicas não-

estatais, as creches comunitárias, entre outras experiências de apoio coletivo. Dessa forma,

apoio social é um elemento facilitador da saúde por sua positividade, e não por seu,

também relevante, aspecto preventivista.

99

2.5 Críticas à positivação da saúde

Esses elementos facilitadores da saúde redefinida podem se somar aos critérios de

saúde definida a partir da doença para, além de evitar doenças, aumentar a saúde dos

indivíduos e conseqüentemente das coletividades. Isto significa aumentar a saúde mesmo

dos indivíduos doentes. Nesse sentido, um posto de saúde, uma creche, uma praça ou uma

linha de ônibus tornam-se elementos diferentes, porém todos de grande importância para a

prevenção de doenças, para o restabelecimento e promoção de saúde.

Definir saúde, ainda que parcialmente e sem nenhuma pretensão de sermos

verdadeiros ou de esgotar o tema, é uma tarefa perigosa, pois o risco de se cair em

totalitarismos é grande. A experiência de se sentir saudável é tão ampla e complexa que

extrapola os limites do dizível. Isso não significa, contudo, que nada possa ser dito sobre

saúde ou que devamos continuar, resignados pela impossibilidade de definir saúde em sua

“totalidade”, nos referindo a ela como uma negatividade da doença. Ao redefinir saúde

corremos o risco de forjar um conceito ainda mais restritivo que o negativo, exatamente por

sua amplitude. Como diz Ferreira Gullar, se tudo é arte, nada é arte. Reconhecemos o risco

de ampliar o conceito de saúde a tal ponto que ele se torne inoperante ou, pior ainda,

operante em demasia, justificando toda e qualquer ação de intervenção na vida das pessoas

em nome da saúde delas. Nesse sentido, parece-nos que a crítica feita por Camargo Júnior

(2007) a concepções positivas de saúde serve como alerta e redimensiona a discussão em

torno da necessidade de revisão epistemológica dos conceitos do campo da saúde.

Segundo o autor, a principal crítica à definição negativa de saúde se dá pelo fato

dela ser centrada na categoria doença, que o autor chama de reificação da doença, e tem

como conseqüência a redução das questões referentes ao processo saúde-doença a seus

100

aspectos puramente biológicos. Camargo Júnior (2007) reconhece a pertinência da crítica à

centralidade da categoria doença na definição de saúde. Por outro lado, acrescenta que

tampouco há uma definição positiva de doença, que é comumente entendida como a

ausência de saúde. Dessa forma, o autor reconhece a importância do debate epistemológico

no campo da saúde, mas aponta para seus riscos.

“Em que pese a legitimidade da busca por uma definição “positiva” de saúde enquanto empreendimento filosófico, dado o anteriormente exposto, é questionável a eficácia de uma tal definição em solucionar as dificuldades já mencionadas. Em primeiro lugar, questões fundamentais (em particular, o reducionismo e a reificação) não são de fato resolvidas. Com efeito, essas propostas com freqüência recaem no mesmo deslizamento, ao tomarem os modelos propostos como expressão de verdades mais essenciais sobre as questões do adoecer e do cuidado do que os modelos das doenças. Um modelo mais abrangente, é verdade, mas sempre limitado frente à inesgotável diversidade da experiência humana, e portador de um essencialismo ainda mais aprisionador, ao supor que dá conta da “totalidade” (outra expressão recorrente) do processo saúde/doença”. (Camargo Júnior, 2007: 70)

O risco de querer estabelecer uma nova verdade em relação ao objeto saúde é de

fato grande, porém, não é devido ao desejo de definir saúde em sua positividade, mas fruto

do paradigma de ciência a que mesmo as ciências humanas estão submetidas. O desejo de

ser verdadeiro, de dizer a verdade e demonstrá-la com evidências é o que caracteriza a

produção científica nas mais variadas áreas do saber, inclusive no campo da saúde. A

definição negativa de saúde também se pretende verdadeira e se justifica com o argumento

de que apenas os “agravos à saúde” produzem evidências por serem passíveis de

mensuração. Dessa forma, talvez parte do problema apontado por Camargo Júnior na

citação acima esteja não no eventual desejo totalizador das tentativas de definição positiva,

mas no paradigma de ciência que atravessa essas e outras definições de saúde.

101

Noutro momento, o autor nos alerta para o risco de uma definição demasiado ampla

de saúde servir para aumentar a medicalização da vida e justificar o mau uso do dinheiro

público. Nas palavras do autor:

“essas propostas incorrem no risco de expansão ilimitada das oportunidades de intervenção sobre os indivíduos e coletivos por parte das instituições de saúde. Dispomos de claros precedentes históricos destes riscos: as teses apresentadas à Faculdade Nacional de Medicina, estudadas por Jurandir Freire Costa, no já clássico Ordem médica e norma familiar (COSTA, 1983), eram exemplos de “promoção de saúde” avant la lettre. Eram também propostas de medicalização em larga escala da sociedade: dos currículos e arquitetura escolares às relações familiares, nada lhes escapava”. (Camargo Júnior, 2007: 70)

E ainda:

“é esse o risco que percebo na ênfase excessiva numa suposta “definição positiva” da saúde como orientadora da atuação dos serviços de saúde: se é de fato desejável que todos os indivíduos possam estender ao máximo suas aspirações, sem limitá-las à mera evitação de doenças, por outro lado é igualmente indesejável supor que é lícito estender a esfera de atuação do chamado ‘setor saúde’ à totalidade da vida, da experiência humana, numa medicalização mais radical do que a denunciada pelos pioneiros do campo há quatro décadas. Parece-me possível apontar exatamente este caráter na generalização da idéia de ‘saúde’ que passa a incluir quase que literalmente tudo, e a busca obsessiva de um viver saudável passa a ser tão dominada por essa idéia quanto se queria evitar.” (Camargo Júnior, 2007: 71)

No trecho acima, o autor chama a atenção para outro ponto importante do debate,

possivelmente, o mais delicado do tema: o risco de policiamento (ou medicalização) da

vida das pessoas por parte das autoridades de saúde. Em outras palavras, o risco de

intervenção ou tutela da vida das pessoas por parte de algum representante do setor saúde

em nome da preservação da saúde individual ou coletiva. De fato, há esse risco. Aliás,

sempre houve. Ele parece ser inerente a qualquer ação pública que tenha impacto na vida

das coletividades. Entretanto, nos questionamos se o policiamento seria necessariamente

conseqüência da ampliação do conceito de saúde. O próprio Camargo Júnior diz que há

102

exemplos na História de experiências totalitárias em nome da saúde e cita o relatado em

Ordem Médica e Norma Familiar de Jurandir Freire Costa como um exemplo de tutela da

vida dos habitantes do Brasil colônia. Esse é sim um importante exemplo de como um

saber pode ser utilizado para fins ideológicos. A obra de Costa (1999)21 mostra como os

médicos da época se articularam com a Coroa Portuguesa a fim de ganharem prestígio e

assim eliminarem os barbeiros e demais curandeiros do período colonial. À Coroa

Portuguesa interessava controlar a população por meio da mudança de costumes e isso só

foi possível graças ao uso do discurso médico, sobretudo o da Higiene. A medicalização da

vida no Brasil Colônia em nada teve a ver com uma proposta de positivação da saúde.

Tampouco as teses apresentadas na Faculdade de Medicina, já no Brasil Império e citadas

no livro de Costa, estavam apoiadas numa concepção positiva de saúde que tomasse o

indivíduo como referencia de si mesmo. Estes episódios históricos narrados por Costa

foram motivados, no período colonial, por uma disputa de poder entre a Coroa Portuguesa e

os grandes fazendeiros, patriarcas, que dominavam grandes extensões territoriais de

maneira quase feudal e assim diminuíam o poder central do monarca. E no Brasil Império

pelos interesses políticos da burguesia. A narrativa histórica de Costa nos faz lembrar mais

do movimento pelo Ato Médico do que dos movimentos de positivação da saúde.

Outros autores que descrevem a interferência do Estado na vida das pessoas pela via

da saúde não citam experiências de positivação da saúde como causas dessa interferência.

Rosen (1980 e 1994) não fala da Polícia Médica como uma tentativa de ampliação do

conceito de saúde. Foucault (2002), em sua História da Loucura na Idade Clássica, não

21 Camargo Júnior cita a 2ª edição de Ordem Médica e Norma Familiar, de 1983. Nós estamos utilizando a 4ª edição de 1999.

103

trata do asilamento de todo tipo de desviante como fruto de uma compreensão mais ampla

do que seja saúde. Ao contrário, o fim do uso de manicômios no tratamento de pessoas com

severo sofrimento mental, promovido pelas experiências de Reforma Psiquiátrica em todo o

mundo, é resultado de uma reformulação epistemológica das teorias que sustentam o campo

da Saúde Mental. A modificação do conceito de saúde mental é parte importante do

processo de extinção do manicômio e da des-hierarquização das profissões em Saúde

Mental.

Podemos, ainda, pensar em exemplos contemporâneos. Nos Estados Unidos, uma

pessoa pode ser obrigada a se submeter a um tratamento de saúde (médico ou psicológico)

por ordem de um juiz de Direito. Esse tipo de intervenção do Estado, como nos exemplos

anteriores, não é motivado pela adoção de um conceito de saúde diferente do tradicional

“ausência de doença”.

Em grande parte, a interferência do “setor saúde” na vida das pessoas se deu, e se

dá, em nome de um desejo de controle e poder que em nada tem a ver diretamente com

saúde. Provavelmente as ações de saúde foram utilizadas porque eram legitimadas por um

paradigma de ciência baseado no positivismo e reducionismo e, portanto, supostamente

infalível, pois detentor da verdade. Isso não significa que definições positivas, por amplas

por natureza, se prestem necessariamente à medicalização e controle dos indivíduos. Na

verdade, a questão do controle não depende exatamente da positividade ou negatividade do

conceito saúde, mas do jogo de interesses políticos e econômicos. E nesse jogo não há

escrúpulos ou coerência teórica, qualquer coisa pode ser usada para levar a cabo

determinados interesses, sendo o único critério de escolha dos métodos a conveniência. Por

exemplo, em nome da liberdade e da segurança nacional os Estados Unidos recentemente

104

restringiram direitos civis com um decreto chamado Ato Patriótico; em nome da paz a

Organização das Nações Unidas aceita a idéia de Guerra Preventiva; em nome da

preservação ambiental governos privatizam recursos naturais, etc. Em nome de uma melhor

saúde, instituições financeiras internacionais pressionam países a privatizarem seus

sistemas de saúde. Neste contexto econômico, podemos ainda supor que o conceito

negativo de saúde tem servido a interesses econômicos de indústrias farmacêuticas e de

biotecnologia. Logo, não devemos atribuir às tentativas de positivação de saúde um desejo

de poder e manutenção do status quo que é anterior a elas e aos quais elas surgiram como

alternativa. Por tanto, a crítica deve ser dirigida não aos conceitos positivos de saúde, mas a

toda e qualquer apropriação indevida dos conceitos, inclusive os negativos, do campo da

saúde para o cerceamento da liberdade, a acumulação injusta de riqueza, precarização das

condições de saúde das populações, etc. E cabe a toda sociedade, mas, sobretudo, aos

profissionais e pesquisadores da saúde, identificar e denunciar qualquer abuso nesse

sentido.

Seguramente, sempre haverá o risco de se recair numa moral da saúde, em um

modelo estereotipado de vida saudável e na obrigação de ser feliz. O que poderia aumentar

ainda mais o abuso de drogas, o consumo de fármacos e tudo que em nome da saúde

pudesse, ao contrário, degradar a saúde. Entretanto, isto não seria totalmente novo. A moral

da saúde, na verdade moral da hipocondria, baseada nas definições negativas de saúde é

amplamente divulgada pela mídia. Qualquer hebdomadário tem como matéria de capa um

novo risco à saúde ou uma nova solução científica para os problemas de saúde. A moral da

hipocondria deseja banir o adoecimento da experiência humana, além de apoiar uma certa

prática moral da clínica, não exclusiva dos médicos, que culpabiliza os pacientes pelo

105

adoecimento (Martins, 2003). O que não raras vezes se traduz em dietas extremamente

restritivas, proibição do fumo, prescrição de comportamentos ditos saudáveis (e os

psicólogos fazem isso em larga escala, medicalizam a vida alheia sem fármacos) etc., como

se adoecer ou curar-se fosse uma questão de mera escolha de quem sofre. A culpabilização

e o linchamento moral que sofrem obesos e fumantes, por exemplo, não são resultados de

uma medicalização da vida, via cultura, promovida pela ampliação do conceito de saúde.

Como nos mostra Martins (2003), a luta obsessiva contra o adoecimento tem

justificado a atual medicalização da vida, além de criar um fetiche em relação à tecnologia

em saúde que faz com que desejemos o maior número possível de exames para provar

cientificamente que nada temos ou que temos algo errado; e transformar o artificial em

mais verdadeiro do que o natural, os complexos vitamínicos são percebidos como mais

“vitaminados” do que as frutas, legumes e verduras, ainda que o excesso de vitamina das

pílulas contra o adoecimento e a decrepitude da velhice possam fazer mal à saúde pela sua

superdosagem ou simplesmente serem eliminadas pelo organismo, sem ganhos e sem

prejuízos.

Dessa forma, nos parece que a medicalização da vida não será um por vir, fruto das

transformações conceituais no campo da saúde. A medicalização já existe, ainda que de

maneira não direta (no Brasil), pois se dá mais pela via da cultura do que das ações

governamentais. Portanto, o conceito negativo de saúde também se presta à medicalização,

assim como supostamente uma definição ampla e positiva se prestaria. Uma das

desvantagens da definição atual é que, além de tudo que apresentamos até aqui, ela ainda se

mostra pouco operativa na prevenção e tratamento daquilo que Lessa (1998) chama de

doenças da modernidade: doenças cardíacas, diabetes, obesidade e câncer.

106

Acrescentaríamos a essa lista outros males contemporâneos: stress, depressão, síndrome do

pânico, transtornos alimentares e o abuso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. Como

um conceito de saúde baseado no evitamento e na extinção da doença pode nos ajudar a

pensar soluções para doenças sem etiologia clara ou mesmo doenças relacionadas ao estilo

de vida, ao desenvolvimento econômico e às mudanças climáticas? Talvez algumas dessas

doenças sejam até mesmo agravadas pelo caráter utópico da definição negativa de saúde.

Por não ter um corpo dentro dos padrões de estética e saúde disseminados pela mídia e

endossados pelo campo da saúde, alguém, com sua potência diminuída, pode desenvolver

uma relação de ódio com o próprio corpo que a levaria a compulsão por comida ou álcool,

por exemplo. Ou ao contrário, ao desenvolvimento de uma percepção de si tão alterada que

a levasse se privar de comida ou a ingerir laxantes, anfetaminas, etc. Certamente um

conceito positivo como o que apresentamos neste capítulo tem a vantagem de poder pensar

a saúde sem lançar mão de tipos ideais e, assim, ajudar na promoção e recuperação da

saúde individual e coletiva sem que as pessoas se sintam alheias ao processo de construção

da sua própria saúde ou submetidas a modelos externos.

Outra questão abordada por Camargo Júnior em sua crítica à positivação da saúde é

a possibilidade da retirada de recursos do setor saúde para o uso em outras áreas da

administração pública.

“E mesmo do ponto de vista das políticas públicas, este ‘expansionismo sanitário’ acaba se traduzindo no desvio de recursos da atenção à saúde, onde legisladores e o Executivo (federal e estadual) propuseram que os mesmos fossem aplicados, para os mais variados tipos de programa de cunho assistencialista, já que ‘saúde é tudo’”. (Camargo Júnior, 2007: 71)

Quanto ao desvio de recursos da saúde para outras áreas, isto já é uma realidade.

Desde a criação da Constituição de 1988, jamais governo algum investiu no campo da

107

saúde stricto sensu a porcentagem do produto interno bruto – PIB – prevista em lei. A

questão que permanece é se isso seria potencializado a partir da justificativa de que tudo é

saúde, logo o dinheiro que deveria ser aplicado na reforma ou na compra de materiais para

um hospital poderá servir para a construção de restaurantes populares porque a alimentação

é um elemento da saúde. Esta é de fato uma problemática que além de atual pode se tornar

ainda mais grave dependendo da maneira como as definições positivas forem usadas.

Entretanto, não nos parece que a epistemologia possa servir para evitar a sangria do

dinheiro público. A definição negativa de saúde, reconhecidamente limitada, também não

se mostrou um instrumento eficaz do controle dos gastos públicos e isto, provavelmente, se

deve ao fato de que ela não se destina a isso. A probidade ou a improbidade administrativa

dos governantes deve ser combatida pela criação de novos e melhores dispositivos jurídicos

e administrativos e não pela manutenção do status quo epistemológico do campo da saúde.

As críticas feitas por Camargo Júnior são contribuições fundamentais para o debate

sobre a definição de saúde por introduzir a dimensão da ética. Saímos, portanto, da questão

puramente epistemológica, construção de conceitos, para a reflexão sobre as conseqüências

das modificações teóricas operadas ou sugeridas. O autor nos mostra que mesmo a

intenção, legítima, de avançar conceitualmente, e por extensão avançar nas práticas, pode

nos levar a um retrocesso. Dessa forma, novas questões se apresentam. Será que devemos

correr os riscos apontados por Camargo Júnior sob a pena de desmontar a estrutura de

saúde construída a duras penas por nossos antecessores? Por outro lado, será que a

concretização do sonho de nossos antecessores, expresso no projeto do Sistema Único de

Saúde e nos seus princípios norteadores, não depende, ainda que em parte, de assumirmos

esses riscos? Estas são questões que merecem um trabalho próprio e um outro percurso de

108

reflexão. Logo, não serão tratadas nesta dissertação. Por ora, parece-nos suficiente ter

apresentado uma definição possível de saúde.

À guisa de conclusão deste capítulo, acreditamos que a definição apresentada pode

contribuir para que a saúde seja um tema transversal nas políticas públicas, sem que isso

descaracterize as funções específicas do Ministério da Saúde. Um exemplo de

transversalidade é a questão da sustentabilidade ambiental que não se restringe ao

Ministério do Meio Ambiente, tampouco descaracteriza as especificidades das ações deste

ministério. Acreditamos que a definição aqui apresentada também pode contribuir para a

discussão da hierarquização das profissões em saúde. Se a saúde não é mais a ausência de

doença e o corpo biológico é um dos elementos do psiquessoma, a hegemonia da profissão

médica torna-se insustentável. Nesse sentido, abrir-se-ia a possibilidade para a construção

da tão sonhada interdisciplinaridade. O paciente também ganharia em protagonismo, visto

que é o indivíduo a referência para sua saúde em nossa redefinição. Assim, a relação

médico-paciente ou cuidador-paciente seria uma aliança para restabelecer a saúde

diminuída. O paciente teria papel ativo nessa aliança e deixaria de ser um elemento passivo

que só recebe e cumpre as decisões tomadas por outros. Por fim, a idéia de promoção de

saúde também se redefiniria, tornando-se a busca, em conjunto com os indivíduos de uma

dada população, de ações que favoreçam o aumento da potência individual e coletiva. Isto

significa que em alguns casos a promoção da saúde em nada se aproximará de ações

sanitárias.

Esperamos ter apresentado com clareza o que entendemos por saúde e como

diferentes percursos teóricos podem favorecer o debate epistemológico em nosso campo.

No capítulo seguinte, apresentaremos conceitos positivos de saúde já utilizados pelo campo

109

da saúde e pelo Estado e discutiremos os pontos de aproximação e divergência entre nossa

proposta e as demais.

110

CAPÍTULO III

QUALIDADE DE VIDA E RESILIÊNCIA: DUAS EXPERIÊNCIAS DE

POSITIVAÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE

A insatisfação com a definição negativa de saúde e com seus indicadores tem dado

origem a uma série de tentativas de positivação do conceito saúde. Insatisfação que pode

ser resumida pela crítica de Bowling à definição de saúde como ausência de doença: “saúde

é usualmente referida na negatividade, como ausência de doença, enfermidade e moléstia.

Todas as medidas do estado de saúde tomam saúde como ponto de partida e medem os

desvios em relação a ela. Elas estão medindo na verdade má saúde” (Bowling, 1998: 6).

Neste capítulo apresentaremos dois conceitos positivos de saúde alinhados à crítica

de Bowling e utilizados na clínica e na formulação de políticas públicas, são eles: qualidade

de vida e resiliência. Nosso objetivo é apresentar conceitos alternativos à tradicional

definição negativa que já impactam de alguma maneira o campo da Saúde Coletiva. E,

assim, discutir em que pontos nossa proposta de conceito de saúde se aproxima e se

distancia deles.

3.1 Qualidade de vida

O conceito de qualidade de vida tem ocupado lugar de destaque em trabalhos

clínicos, epidemiológicos e conceituais. Na biblioteca eletrônica SCIELO22, financiada com

recursos públicos da FAPESP23 e CNPq24, são encontrados 228 artigos com as palavras

22 Scientific Electronic Library Online. Endereço: http://www.scielo.br 23 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 24 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

111

“qualidade de vida” no título. Quando a busca é feita pelas mesmas palavras nos resumos, o

resultado são 786 artigos. Em outra biblioteca eletrônica, a PubMed25, mantida pelo

governo dos Estados Unidos e vinculado à U.S. National Library of Medicine e ao National

Institutes of Health, foi encontrado o número de 95.430 artigos contendo no título as

palavras “quality of life” e publicados entre os anos de 1960 e 2007. A título de

comparação, no mesmo PubMed, a palavra “aids” aparece no título de 141.934 artigos,

enquanto o termo “mortality” está no título de mais de meio milhão de artigos. Ao

limitarmos a busca pelos três termos ao período dos últimos dez anos (1997 a 2007),

encontramos o termo “aids” em 51.820 títulos de artigos, quality of life no título de 69.306

artigos e, finalmente, mortality no título de 266.036 artigos. Isto significa que, nos últimos

dez anos, a produção sobre qualidade de vida superou a produção sobre aids, um tema que

reconhecidamente mobiliza pesquisadores no mundo todo e recebe financiamento público e

privado. Entretanto, estes números também indicam que, apesar do maior interesse pelo

tema qualidade de vida, as questões referentes à mortalidade ainda ocupam lugar de

destaque entre as publicações científicas do campo da saúde.

De maneira alguma estamos enveredando por uma meta-análise da produção

científica sobre qualquer um dos três termos. Entretanto, numa sondagem superficial, nos

parece que o tema qualidade de vida tem ganhado importância, levando, inclusive, a

Organização Mundial de Saúde a constituir um grupo de trabalho, o WHOQOL group, para

definir qualidade de vida e desenvolver seus indicadores. O que veremos mais adiante.

A diferença entre o número de artigos encontrados na SCIELO e na PubMed pode

ser explicada de muitas maneiras. A SCIELO é mais jovem, completa em 2007 dez anos de

25 Endereço: www.pubmed.gov

112

criação, disponibiliza artigos mais recentes e não está no centro político da produção

científica mundial. A biblioteca PubMed é mais antiga, foi criada no início da década de

1990 como um site de acesso gratuito ao conteúdo do indexador MedLine. Por isso, reúne

um número maior de revistas indexadas em comparação com a SCIELO. O fato de ser um

indexador em língua inglesa também explicaria o seu acervo maior, visto que a maior parte

da produção científica mundial é publicada em inglês.

Entretanto, a própria história do termo “qualidade de vida” pode ajudar a explicar a

disparidade entre os resultados encontrados. Segundo Fleck, Leal, Louzada et al (1999), o

termo qualidade de vida foi usado pela primeira vez pelo presidente dos Estados Unidos,

Lyndon Johnson, em 196426, num discurso em que defendia a idéia de que os objetivos

econômicos não deveriam ser medidos pelos balanços dos bancos, mas pela qualidade de

vida que o resultado dos balanços proporciona às pessoas. Dessa forma, qualidade de vida

surge como um termo da política norte-americana e posteriormente torna-se, via ciências

humanas, conceito do campo da saúde em oposição à redução da vida a seus aspectos

biológicos mensuráveis. Nas palavras de Fleck, Leal, Louzada et al:

“Assim, a preocupação com o conceito de ‘qualidade de vida’ refere-se a um movimento dentro das ciências humanas e biológicas no sentido de valorizar parâmetros mais amplos que o controle de sintomas, a diminuição da mortalidade ou o aumento da expectativa de vida”. (Fleck, Leal, Louzada et al, 1999: 20, grifo dos autores)

Porém, o termo “qualidade de vida” não apresenta um consenso acerca de seu

significado. Há definições que tomam qualidade de vida como expressão da saúde

26 Esta informação entra em conflito com o resultado da pesquisa que fizemos na PubMed. Lá, encontramos um artigo publicado em 1960 com o título de On the quantity and quality of life. Porém, não tivemos acesso ao conteúdo do artigo. A referência completa é a seguinte: LONG, P.H. (1960) On the quantity and quality of life. Med Times. May;88:613-9.

113

negativamente definida e há outras que concebem qualidade de vida como um conceito

amplo de saúde.

Bowling (1998) faz uma pequena revisão sobre o conceito de qualidade de vida. A

autora nos apresenta quatro definições para o termo. Reproduziremos três, pois a quarta é a

definição da Organização Mundial de Saúde e para esta dedicaremos um espaço em

separado. A primeira definição apresentada pela autora concebe qualidade de vida como “a

realização do indivíduo de uma situação social satisfatória dentro dos limites da capacidade

física” (Bowling, 1998: 6). A segunda definição diz que qualidade de vida “consiste na

posse de recursos necessários para a satisfação das necessidades, anseios e desejos do

indivíduo, participação em atividades propiciadoras de desenvolvimento pessoal e auto-

atualização e comparação satisfatória entre si mesmo e os outros” (idem). A terceira

definição entende qualidade de vida “como um conceito que representando as respostas

individuais aos efeitos físicos, psíquicos e sociais do adoecimento cotidiano influencia a

extensão da satisfação pessoal em relação às circunstâncias nas quais a vida se realiza”

(idem).

A dificuldade de definir algo que se confunde com a própria experiência de existir

no mundo faz com que os pesquisadores corram o risco de ampliar um conceito como

qualidade de vida a ponto dele não significar nada. Por outro lado, para minimizar esse

risco é comum recorrer ao artifício de dar substância àquilo que não tem. Exemplos disso

são as três definições apresentadas por Bowling. Todas as três usam como parâmetros de

qualidade de vida a capacidade física e a comparação do indivíduo com o outro social. Isto

significa valorar uma vida singular a partir de critérios externos a esta vida, critérios

supostamente objetivos e passíveis de mensuração. Nesse sentido, um indivíduo teria a

114

experiência de maior qualidade de vida quanto mais identificado com o outro social fosse e,

quanto mais fosse por este aceito como um membro legítimo do grupo social. Seria, dessa

forma, por exemplo, um aspecto da qualidade de vida o consumismo num contexto social

consumista? Ou ainda, seria o ajustamento social expressão de um devir saudável? Sempre?

Como já dissemos no capítulo anterior, um indivíduo pode valorar sua vida e o mundo de

maneira bastante equivocada sem se dar conta disso. A influência da mídia, da religião, do

grupo social pode levar alguém a desejar e agir baseado numa moral econômica, religiosa

ou social.

O aspecto físico presente na primeira e na terceira definições também é controverso.

A primeira definição privilegia o aspecto funcional e biomecânico do corpo. Nesse sentido,

a qualidade de vida seria em parte definida pela capacidade que um indivíduo tem de gozar

da funcionalidade do seu corpo dentro dos limites desse mesmo corpo. Na perspectiva

canguilhemiana e winnicottiana, o que caracteriza a saúde é a superação das limitações, a

construção de alternativas ao que está posto e não a simples adaptação às circunstâncias

dadas como a definição citada parece sugerir. O corpo na terceira definição aparece

representado pela capacidade (imunológica?) de resistir ao adoecimento e combatê-lo. Esse

é um entendimento sobre saúde alinhado à definição negativa de saúde. Nesse sentido, a

qualidade de vida consistiria em não adoecer física, psíquica e socialmente, este último

aspecto entendido como desajustamento social. Do nosso ponto de vista, a impossibilidade

de adoecer pode representar uma defesa somatopsíquica contra a própria vida. Uma vida

livre de riscos pode ser uma vida bastante vazia de experiências, uma vida que não se

expande e fica acomodada a uma dada situação considerada segura. Não se trata de um

115

elogio à doença, mas um reconhecimento de que mais importante do que não adoecer, visto

que adoecer é próprio da vida, é a capacidade de se recuperar, de se transformar.

Nosso ponto de divergência em relação à definição apresentada não está na

capacidade imunológica. Esta é fruto da boa nutrição, de uma constituição fisiológica

satisfatória e de um estilo de vida respeitador de si próprio. Questionamos uma

interpretação que se faz comumente desse tipo de definição. É importante não

confundirmos a idéia de um corpo saudável, do ponto de vista biológico, – e isso inclui a

capacidade de ter respostas imunológicas adequadas quando possível e necessário for –

com a idéia de não adoecer a qualquer custo. A confusão entre essas duas idéias é típica do

nosso tempo e tem, em parte, sua causa nas definições de saúde e qualidade de vida

centradas nos aspectos biológicos da vida; afinal, se saúde é a ausência de doença, é preciso

não adoecer nunca para manter-se continuamente saudável. Dessa forma, acreditamos que a

definição de qualidade de vida apresentada precisa ser mais bem enunciada, pois como está

dá margem a interpretações equivocadas.

É preciso reconhecer que as três definições apresentadas são tentativas de ampliar

aquilo que se entende por saúde. Isso por si só já é uma grande contribuição para o campo

da saúde porque mantém aceso o debate acerca do objeto saúde. A principal dificuldade

talvez seja o fato de empreender tal tarefa dentro do mesmo sistema semiótico, do mesmo

paradigma de ciência que forjou o conceito negativo de saúde e o defende, argumentando

que apenas os instrumentos que medem os agravos à saúde cumprem os critérios de

cientificidade. Dessa forma, não é raro encontrar tentativas de ampliação do objeto saúde

que acabam por retomar os mesmos critérios utilizados para definir saúde na negatividade.

Um exemplo disso é o artigo de Buss (2000) intitulado “Promoção da saúde e qualidade de

116

vida”. Nesse artigo, o autor discute a importância das ações de promoção de saúde para a

qualidade de vida da população. Entretanto, durante todo o tempo Buss se refere a

“condições de vida” como sinônimo de qualidade de vida, preferindo inclusive utilizar em

alguns momentos do texto os dois termos ao mesmo tempo. Vamos às palavras do autor:

“O debate sobre qualidade (condições) de vida e saúde tem também razoável tradição tanto no Brasil quanto na América Latina. Pain (1997)27 publicou um excelente artigo de revisão sobre estudos que relacionam condições de vida e saúde desenvolvidos nas últimas décadas, no âmbito das correntes da medicina e epidemiologia social. (Buss, 2000:165)

E ainda:

“Em um amplo estudo sobre as tendências da situação de saúde na Região das Américas recentemente publicado, a OPAS (1998)28 mostra de forma inequívoca, que os diferenciais econômicos entre os países são determinantes para as variações nas tendências dos indicadores básicos de saúde e desenvolvimento humano. A redução na mortalidade infantil, o incremento na esperança de vida, o acesso à água e ao saneamento básico, o gasto em saúde, a fecundidade global e o incremento na alfabetização de adultos foram função direta do Produto Nacional Bruto dos países. Entretanto, demonstrar que a qualidade/condições de vida afeta a saúde e que esta influência fortemente a qualidade de vida não é o único desafio”. (idem)

No trecho acima, vemos como a equivalência entre qualidade de vida e condições de

vida leva à valorização dos indicadores clássicos de saúde. Um conceito, qualidade de vida,

que foi forjado para ampliar a compreensão acerca do objeto saúde, acaba valorizando os

mesmo critérios de mensuração de saúde adotados a partir do conceito para o qual ele

pretendia ser um contraponto.

27 PAIN, J.S. Abordagens teórico-conceituais em estudos de condições de vida e saúde: notas para reflexão e ação. In BARATA, R. B. (org.) Condições de vida e situação de saúde. Saúde e Movimento 4. Rio de Janeiro: ABRASCO, p. 7-30, 1997. 28 OPAS 1998. La Salud en las Américas, vol. 1, OPAS, Washington.

117

Concordamos que condições precárias de vida podem ter como conseqüência pior

qualidade de vida. Entretanto, nossa experiência como psicanalista nos faz suspeitar de que

o contrário não é verdadeiro. Condições de vida (saneamento, emprego, renda, acesso a

serviços de saúde, etc) satisfatórias, em não raros casos, não têm como desdobramento a

experiência pessoal de se viver uma vida com qualidade. Logo, essa relação entre qualidade

de vida e indicadores clássicos de saúde deve ser analisada com muito cuidado e merece

um trabalho à parte. Entretanto, a equivalência entre condições e qualidade de vida feita por

Buss (2000) não é o estado da arte em relação ao tema qualidade de vida.

Na década de 1990, a Organização Mundial de Saúde – OMS – formou, tal como

mencionamos anteriormente, um grupo de trabalho constituído por pesquisadores de

diversos centros de pesquisa espalhados pelo mundo, o chamado WHOQOL group. O

grupo foi formado com o objetivo de definir qualidade de vida e em seguida elaborar um

instrumento capaz de medi-la. Em 1995, a OMS definiu qualidade de vida como “a

percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistema de valores

nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”29

(WHO, 1997: 1). A definição da OMS, diferentemente das anteriormente apresentadas,

valoriza a experiência subjetiva do indivíduo em relação a sua vida sem que isso implique

comparação de si com o outro social, com o ideal social acerca de um indivíduo com

determinadas características. Este é um importante aspecto dessa definição e que a

aproxima de alguma maneira da proposta canguilhemiana de ter o indivíduo como

29 No original: “WHO defines Quality of Life as individuals perception of their position in life in the context of the culture and value systems in which they live and in relation to their goals, expectations, standards and concerns”.

118

parâmetro de sua própria saúde. Quanto a este ponto, Fleck (2000) – único pesquisador

brasileiro a participar do WHOQOL group – nos esclarece o seguinte:

“O que está em questão não é a natureza objetiva do meio ambiente, do estado funcional ou do estado psicológico, ou ainda como o profissional de saúde ou um familiar avalia essas dimensões: é a percepção do respondente/paciente que está sendo avaliada”. (Fleck, 2000: 34)

Apesar de ter o indivíduo como parâmetro de sua própria saúde, entendida como

qualidade de vida, a avaliação da qualidade de vida não se reduz a uma enquete de opinião.

A avaliação é feita a partir de critérios definidos pelo grupo WHOQOL e formalizados no

instrumento de avaliação da qualidade de vida da OMS, o WHOQOL-100.

O WHOQOL-100 é composto por cem perguntas referentes a seis diferentes

aspectos do viver, chamados de domínios. Os domínios do WHOQOL-100 são os

seguintes: físico, psicológico, níveis de independência, relações sociais, meio ambiente e

espiritualidade/ religiosidade/ crenças pessoais. Os domínios são divididos em sub-

aspectos, chamados facetas, como demonstrado no quadro 1 abaixo.

Quadro 1: domínios e facetas do WHOQOL-10030

Domínios Físico Psicológico Nível de independência

Relações sociais

Meio ambiente

Aspectos espirituais/religião/crenças

pessoais Facetas Dor e

desconforto Sentimentos

positivos Mobilidade Relações

pessoais Segurança

física e proteção

Espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais.

Energia e fadiga

Pensar, aprender, memória e

concentração

Atividades da vida cotidiana

Apoio social

Ambiente do lar

30 Este quadro é uma versão do quadro apresentado por Fleck (2000: 35) para mostrar a distribuição das facetas pelos domínios do WHOQOL-100.

119

Sono e repouso

Auto-estima Dependência de medicação

ou de tratamento

Atividade sexual

Recursos financeiros

Imagem corporal e aparência

Capacidade de trabalho

Cuidados de saúde e sociais:

disponibilidade e qualidade

Sentimentos negativos

Oportunidade de adquirir

novas informações e

habilidades

Participação em, e

oportunidades de

recreação/lazer

Ambiente físico:

poluição, ruído, transito

e clima

transporte

Cada faceta do instrumento é composta por quatro perguntas. E existe uma vigésima

quinta faceta não específica com perguntas sobre qualidade de vida. Essas perguntas estão

espalhadas ao longo do questionário e são identificadas com a letra “g” (ver o instrumento

completo na seção de anexos).

As respostas às perguntas devem levar em consideração as duas últimas semanas e

são dadas através de escalas de intensidade, capacidade, freqüência e avaliação,

dependendo do conteúdo de cada pergunta. Para cada pergunta há cinco possíveis repostas

e para cada resposta há um escore correspondente. A primeira resposta recebe o escore 1 e

a quinta resposta recebe o escore 5. Como no exemplo a seguir:

F2.1 Você tem energia suficiente para o seu dia-a-dia?

120

nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5

Dessa forma, quanto maior for o escore total de cada domínio, maior é a qualidade

de vida em relação àquele aspecto específico. Porém esta regra de pontuação não é igual

para todas as perguntas. As perguntas F2.2, F2.4, F3.2, F3.4, F7.2, F7.3, F9.3, F9.4, F10.2,

F10.4, F13.1, F15.4, F16.3, F18.2, F18.4, F22.2, F23.2, F23.4 têm os valores invertidos. A

resposta 1 passa a valer 5, a 2 valerá 4 e assim por diante. Como no exemplo a seguir:

F23.4 O quanto as dificuldades de transporte dificultam sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 (1=5) 2 (2=4) 3 (3=3) 4 (4=2) 5 (5=1)

A inversão dos escores é para manter a lógica de que a resposta mais negativa terá

sempre o valor 1 e a resposta mais positiva terá o valor 5. O resultado final do questionário

é obtido através do software SPSS a partir da sintaxe disponível no site31 do Departamento

de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, único

centro brasileiro a integrar o grupo WHOQOL32.

Não poderíamos nos deter em uma análise pormenorizada do instrumento

WHOQOL-100 por dois motivos. O primeiro deles é que este não é o objetivo de nossa

pesquisa e o segundo é que não possuímos as competências necessárias para tal

empreendimento33. Dessa forma, nossa intenção não é afirmar se esse instrumento tem ou

não validade, se está ou não adequado à população brasileira. Nosso interesse pelo

31 Endereço eletrônico: http://www.ufrgs.br/psiq/whoqol4.html 32 Endereço eletrônico: http://www.who.int 33 Recomendamos ao leitor interessado nas questões relativas à validação do instrumento, etapas de teste e re-teste, análise da amostragem do instrumento piloto, adaptação à população brasileira e tradução para Língua Portuguesa os artigos de FLECK, M. P. A.; LEAL, O. F.; LOUZADA, S. et al (1999) e FLECK, M. P. A.; LOUSADA, S.; XAVIER, M.; CHACHAMOVICH, E.; VIEIRA, G.; SANTOS, L; PINZON, V (1999)

121

WHOQOL-100 está na coerência epistemológica que o forjou. O WHOQOL-100 é fruto de

um debate conceitual acerca do objeto qualidade de vida. Ele é conseqüência de uma dada

definição do conceito qualidade de vida. Dito de outra forma, ele é um instrumento que se

propõe medir a qualidade de vida tal qual definida pela OMS e a partir de critérios também

previamente definidos.

É essa coerência que nos parece sinal de boa ciência. A construção de instrumentos

de mensuração em saúde, ou de maneira mais ampla, a construção de indicadores de saúde

deveria estar subordinada a uma definição conceitual prévia do objeto que eles pretendem

medir. Dessa forma, um indicador de saúde seria sempre um indicador de uma dada

concepção de saúde e teria sua qualidade, enquanto instrumento, avaliada não apenas pelo

seu aspecto metodológico, mas também pela qualidade da definição conceitual de seu

objeto.

Acreditamos que o empreendimento do grupo WHOQOL é bem sucedido neste

sentido. O grupo estabeleceu um conceito positivo de qualidade de vida, definiu critérios de

qualidade de vida a partir do conceito formulado previamente e em seguida construiu um

instrumento para avaliar aquilo que eles entendem como qualidade de vida. Esta coerência

entre as etapas é o que garante que iniciativas como essa jamais se tornarão totalitárias

como, com razão, teme Camargo Júnior (2007). Medir qualidade de vida ou saúde a partir

explicitamente de uma dada concepção é exatamente o que permite o contraponto, a

discordância e, portanto, a existência de outras perspectivas sobre o mesmo tema. O que

nos faz correr o risco de totalitarismo é a hegemonia de um ponto de vista, de uma

definição, seja ela negativa ou positiva, ou de uma profissão apenas, seja a de médico ou

outra qualquer.

122

Comparando nossa proposta de conceito de saúde e o instrumento WHOQOL-100,

encontramos alguns pontos em comum. O primeiro e mais fundamental é ter o indivíduo

como parâmetro de si mesmo. O segundo é dar uma dimensão subjetiva a elementos antes

avaliados por critérios externos, como por exemplo: renda. No WHOQOL-100, nenhuma

questão relativa à renda é sobre o valor nominal da renda: quando você ganha por mês? O

que é avaliado é a experiência proporcionada pela renda como exemplificado na pergunta

F18.1: “Você tem dinheiro suficiente para satisfazer suas necessidades?”

Outro tema que ganha dimensão subjetiva no WHOQOL-100 é o transporte. A

pergunta F23.2 (em que medida você tem problemas com transporte?) abre de fato uma

perspectiva transcultural, pois não valoriza um estilo de vida específico. A questão não é

sobre a oferta de transporte, mas sobre a relação do indivíduo com o transporte. Dessa

maneira, alguém que vive numa zona com escassez de transporte pode responder que tem

problema com transporte, pois esse indivíduo precisa se locomover com agilidade ou por

longas distâncias, e outro indivíduo morador da mesma localidade pode afirmar que não

tem problema com transporte, pois este indivíduo não precisa se locomover para longas

distâncias. Da mesma forma, alguém que vive num grande centro urbano, onde há excesso

de oferta de transporte, pode responder que tem problema com o tema baseado na sua

experiência cotidiana de engarrafamentos.

Outro ponto de proximidade entre nossa proposta e o instrumento da OMS é a

inclusão dos aspectos representantes da doença, como a dor e o uso de medicamentos.

Sentir dor ou fazer uso contínuo de medicamentos não implica necessariamente em não ter

qualidade de vida. As questões referentes a esses temas têm o mesmo valor que todas as

outras questões. Logo, alguém que faça uso ininterrupto de medicamentos, como algumas

123

pessoas com aids ou diabetes, pode ser considerado com qualidade de vida. Se isso é

possível, se é possível dizer que alguém com aids tem qualidade de vida, porque não é

possível dizer que essa pessoa tem saúde?

Em última análise, o ponto forte do instrumento está em avaliar não a qualidade de

vida, num sentido genérico, mas a qualidade da vida de um indivíduo a partir do seu

próprio ponto de vista, sem que isso se reduza a um mero “acho ou não acho que tenho

qualidade de vida”. Percorrendo caminhos muito diferentes, indivíduos com realidades e

anseios diferentes podem demonstrar se têm ou não qualidade de vida, se são ou não

saudáveis a partir dos critérios adotados pelo grupo WHOQOL.

Nosso ponto de divergência está apenas no fato do grupo WHOQOL fazer uma

distinção velada entre saúde e qualidade de vida. Se ter saúde não é viver com qualidade, o

que será saúde então?

3.2 Resiliência

O conceito de resiliência tem sua origem na física e significa a propriedade que

determinados materiais possuem de retomar sua forma original após serem submetidos à

pressão. Elásticos, molas, varas de salto em altura, ligas de aço são alguns exemplos de

objetos e materiais com a propriedade de resiliência.

O termo foi apropriado pela Psicologia para explicar a razão pela qual determinados

indivíduos, sobretudo crianças e adolescentes, não sucumbem quando submetidos a

situações de risco ou eventos catastróficos em que a maioria dos indivíduos sofreria algum

tipo de dano. Como nos mostram Pinheiro (2004) e Carvalho et al (2007) não há consenso

em relação à definição de resiliência, mas de maneira geral o termo é entendido como “a

capacidade de o indivíduo, ou a família, enfrentar as adversidades, ser transformado por

124

elas, mas conseguir superá-las” (Pinheiro, 2004: 68). Entretanto, o mesmo termo é

empregado em diferentes sentidos, alguns bastante questionáveis – por exemplo, o uso da

palavra resiliência como sinônimo de invulnerabilidade, conforme exemplificado na

proposta de Pereira (2001):

“Uma das grandes apostas para o próximo milênio será tornar as pessoas mais resilientes e prepará-las para uma certa invulnerabilidade que lhes permita resistir a situações adversas que a vida proporciona, pelo que se torna imperioso identificar os fatores de risco e particularmente os fatores de proteção pessoais e interpessoais”. (Pereira, 2001: 87-88)

Pensar a saúde em termos de invulnerabilidade parece ser um empreendimento

fadado ao fracasso, pois que irreal ou, pior, propiciador de práticas de cuidado de si e de

políticas públicas que em nada favoreçam a saúde. Por exemplo, em nome da

invulnerabilidade, a alienação e a defesa maníaca podem ser estratégias psíquicas para dar

conta de algum mal-estar. Entretanto, essas estratégias em nada lembram a saúde que

esboçamos anteriormente e tampouco oferecem perspectiva de resolução concreta para a

situação geradora de sofrimento. Outra possibilidade de prática perigosa em nome da

invulnerabilidade seria a intensificação do uso indiscriminado de medicamentos,

substâncias ditas naturais e, em casos mais graves, o uso de anabolizantes. O que levaria a

uma corrida, ainda mais desenfreada do que a que já assistimos nos dias de hoje, pelo corpo

perfeito, saúde ideal, existência sem riscos.

Nessa perspectiva, talvez a própria idéia de cuidado de si seria reduzida,

ironicamente, a uma prática de medicalização de si. Por exemplo, em vez de melhorar a

nutrição para não mais sofrer de indigestão, um indivíduo poderia, como já pode, optar pela

propagandeada receita “um Engov antes e um depois”. Esse indivíduo continuará a abusar

da ingestão de gordura, açúcar, alimentos hipercalóricos, comidas de baixa qualidade

125

nutricional sem que seu organismo tenha a capacidade de protestar, via adoecimento, contra

esse estilo de vida destruidor de si mesmo, pois estará entorpecido por medicamentos. Ou

seja, em nome de uma sensação de invulnerabilidade, poder-se-ia inclusive optar por inibir

as defesas naturais do organismo. E o que teria isso a ver com ser ou estar saudável? No

âmbito das políticas públicas, a promoção da invulnerabilidade poderia justificar o

atropelamento de debates no campo da bioética sobre manipulação genética, o retorno de

ideologias como a eugenia, etc.

Porém, a equivalência entre resiliência e invulnerabilidade parece ter sido superada.

Segundo Carvalho et al (2007), essa confusão epistemológica teria origem na transposição

do termo da Física para a Psicologia. Ainda segundo a autora, contemporaneamente a

compreensão acerca da resiliência seria a de um processo dinâmico que envolve fatores de

risco e fatores de proteção e não mais a invulnerabilidade de um corpo e psiquismo

enrijecidos, pois defendidos. Nas palavras dos autores:

“A princípio e, principalmente, em virtude da transposição desse conceito da física para a psicologia, a definição do termo resiliência esteve muito relacionada à idéia de ‘invulnerabilidade’ (resistência absoluta ao estresse) e de ‘adaptação’. No entanto, essas concepções têm sido fortemente criticadas por causa do seu caráter estático e absoluto, optando-se por uma visão mais dialética e processual da resiliência. De acordo com esta perspectiva, mais do que recobrar um estado anterior após uma situação de estresse/trauma, a resiliência, no contexto humano, implica ‘superação’ da dificuldade enfrentada, possibilitando uma re-significação e/ou a construção de novos caminhos diante da adversidade. Trata-se, então, de uma capacidade a ser construída ao longo do processo de desenvolvimento humano”. (Carvalho et al, 2007: 2025)

Junqueira & Deslandes (2003), Pinheiro (2004) e Carvalho et al (2007) parecem

concordar quanto ao caráter processual e relacional da resiliência. Ou seja, a capacidade de

ser resiliente não é uma característica inata, mas alguma coisa que vai sendo construída ao

longo da vida a partir da interação das características pessoais do indivíduo com o seu

126

meio. Isso significa que a resiliência se desenvolve a partir da tensão entre fatores de risco e

fatores de proteção. Não há um a priori em relação ao que é ou não fator de risco ou

proteção. Em linhas gerais, os fatores de risco são todas as condições consideradas

desfavoráveis ao desenvolvimento do indivíduo, enquanto os fatores de proteção são todos

os elementos envolvidos na vida dos indivíduos (traços de subjetividade, apoio social,

relações familiares) que o ajudam a transpor as dificuldades. Dessa maneira, o surgimento

da capacidade de ser resiliente depende necessariamente da existência de uma situação-

limite que precisa ser suplantada. Quanto a isso Carvalho et al (2007: 2025) nos diz o

seguinte: “Sobre os fatores de risco, é importante destacar que a resiliência aparece em

situações que expõem ao risco. Portanto, sem ‘risco’, adversidade ou situação ‘estressora’

não se pode falar em resiliência”.

Como dissemos no início deste item, as pesquisas sobre resiliência têm, em grande

parte, crianças, adolescentes e populações consideradas em situação de risco como objeto

de estudo (Junqueira & Deslandes, 2003). Isto faz com que a pobreza, a desagregação

familiar, o abuso de drogas, a violência de toda sorte sejam apontados na literatura como

fatores de risco e, conseqüentemente, como resilientes os indivíduos que conseguiram

transpor as situações de risco e se adaptaram à vida social. Como exemplificado na

passagem em que Pinheiro (2004) descreve estudos com jovens egressos de instituições

para crianças e adolescentes em conflito com a lei:

“No entanto, apesar desse caráter autoritário e rígido das instituições, que se torna um fator de risco ao desenvolvimento posterior do sujeito, algumas pesquisas (Altoé, 199034; Álvares, Moraes & Rabinovich,

34 Altoé, S. (1990). Infâncias perdidas: o cotidiano nos internatos-prisão. Rio de janeiro: Xenon.

127

199835) com egressos revelaram que vários indivíduos conseguiram ultrapassar as adversidades, tornando-se cidadãos adaptados às normas sociais, ou seja, foram capazes de estabelecer vinculações afetivas importantes, executaram atividade laborativa e educacional, e não se envolveram com atividades delinqüenciais”36 (Pinheiro, 2004: 69).

Questionamos-nos se resiliência é sinônimo de adaptação. A partir das definições

que apresentamos, não nos parece que um termo tenha o mesmo significado que o outro.

Ainda que a flexibilidade somatopsíquica, necessária para a superação de situações-limite,

implique em algum grau de adaptação às exigências do meio num dado momento, isso não

significa necessariamente ter a vida reduzida às exigências ambientais e/ou sociais. Nesse

sentido, podemos pensar que o que Pinheiro está querendo dizer é que a capacidade de ser

resiliente pode ser decisiva para a inserção social de pessoas, de todas as idades, em

situação de desvantagem social, entenda-se, pessoas em situação de pobreza, discriminação

étnica, religiosa, sexual ou de gênero. E chamamos a atenção para o termo “inserção

social”, pois este traz no seu bojo a idéia de construção de lugares sociais baseados na

cidadania, portanto, na participação ativa das pessoas na vida social, diferentemente do

termo adaptação que está impregnado de um sentido de submissão, de sujeitar-se a algo do

qual não se faz parte. Do contrário, colocada a questão apenas nos termos de Pinheiro,

temos a impressão de que há por trás da idéia de resiliência um preconceito social típico de

nosso tempo, a idéia de que a pobreza tem necessariamente como desfecho a delinqüência.

Essa é a idéia de base de programas de assistência social que procuram ocupar o dia de

crianças e adolescentes pobres para que estes fiquem longe das drogas e da criminalidade.

É como se todo pobre fosse propenso à delinqüência. Dessa forma, atribui-se aos que

35 Alvarez, A; M. S; Moraes, M.C.L; Rabinovich, E. P. (1998). Resiliência: um estudo com brasileiros institucionalizados. Revista Brasileira de Desenvolvimento Humano, 8 (1/2), p. 70-75. 36 O grifo é nosso.

128

conseguiram atingir uma vida nos padrões sociais vigentes uma característica especial,

diferenciada dos outros, a resiliência.

Um aspecto que nos chama a atenção em relação ao tema resiliência é que ele fica

circunscrito às situações de risco social ou doença. Apesar de o conceito refletir o interesse

dos pesquisadores por aquilo que faz alguém viver, se expandir no mundo apesar dos

percalços e da enfermidade, a doença e o risco ainda ocupam papel central na definição de

resiliência. Acreditamos que na perspectiva dos estudos de resiliência, a capacidade de ser

flexível é tomada não como um atributo da saúde comum, mas como uma capacidade

extraordinária de defesa orgânica e, sobretudo, psíquica. Como na passagem na qual

Carvalho et al (2007) citam o caso de pessoas que vivem há anos infectadas com o vírus

HIV, mas, surpreendentemente, não desenvolvem sintomas da aids. Nas palavras das

autoras:

“Pesquisas exaustivas vêm demonstrando o impacto negativo do vírus sobre a vida das pessoas, contribuindo, assim, para o avanço dos conhecimentos nessa área. No entanto, igual preocupação não tem sido dada à investigação dos fatores de proteção no desenvolvimento dos pacientes com HIV/AIDS, os quais podem estar contribuindo para a saúde, bem-estar, qualidade de vida e resiliência desses indivíduos. Desde o momento da infecção até o surgimento de algum sintoma, podem transcorrer meses ou anos, sendo esse intervalo difícil de definir. O tempo médio de desenvolvimento de sintomas tem sido de cinco a oito anos, porém existem pessoas infectadas há 15 anos ou mais que nunca tiveram complicações de saúde por causa do HIV/AIDS. O que existe de diferente nessas pessoas?”

A compreensão de que saúde é algo para além da doença é um ponto de forte

aproximação entre nossa proposta e o conceito de resiliência. Considerar saúde a

capacidade de transformar-se, de superar obstáculos, de avançar apesar de todos os

percalços é o que caracteriza a resiliência como uma experiência epistemológica de

positivação do objeto saúde. Entretanto, por sua natureza, o conceito de resiliência está

129

limitado a casos muito específicos, a histórias de superação que, apesar de não serem raras,

não representam a experiência comum de viver. Ainda que o termo resiliência tenha sido

tomado de uma outra maneira, vemos nele forte aproximação com a idéia winnicottiana de

criatividade. Afinal, e em última instância, ser criativo ou ser resiliênte significa ser capaz

de criar soluções, de inventar maneiras novas de viver a fim de contornar os problemas,

mais ou menos graves, inerentes ao viver.

Caso tomemos resiliência como saúde, teríamos dificuldade em qualificar como

saudável alguém que nunca passou por uma situação-limite37. Do nosso ponto de vista, a

resiliência é um aspecto da saúde positiva. Ser criativo e normativo é o que favorece, em

termos teóricos, um indivíduo ser resiliente em uma situação extrema. Quanto mais saúde

tiver um indivíduo, maior será sua capacidade de resiliência, entendendo que isto não tem

absolutamente nada a ver com invulnerabilidade. Num sentido canguilhemiano, podemos

dizer que, inclusive, a capacidade de adoecer faz parte da resiliência, visto que “a doença é,

ao mesmo tempo, privação e reformulação” (Canguilhem, 2002:149).

Apesar de não ser um conceito de saúde extensível à população em geral, o tema

resiliência tem suscitado interesse tanto no âmbito da formulação de políticas públicas

quanto nas práticas clínicas. Um exemplo disso é o interesse da Organização Pan-

Americana de Saúde – OPAS – de tornar o conceito corrente entre os profissionais de saúde

por meio do seu “Manual de identificação e promoção da resiliência em crianças e

adolescentes” (OPAS 1998). 37 A importância dada pelo campo da saúde à categoria “situação-limite” no uso o termo resiliência, não é encontrado, por exemplo, na Educação e Psicologia. Cyrulnik (2002 e 2003) descreve a resiliência como uma conquista do desenvolvimento do indivíduo, uma capacidade de elaboração psíquica, no sentido psicanalítico do termo, de problemas, sejam eles mais graves ou comuns. O autor se aproxima de Winnicott ao localizar nas relações ambientais precoces os aspectos promotores de resiliência e apontar a criatividade como um elemento do processo de resiliência.

130

O manual está dividido em cinco capítulos e se organiza como uma apostila de

curso, com linguagem didática e conteúdo voltado para a prática dos diversos profissionais

de saúde. Nele, a OPAS define o que é resiliência e apresenta as características de uma

subjetividade resiliente, assim como os elementos promotores de resiliência. Segundo a

entidade, resiliência é um termo adotado “pelas ciências sociais para caracterizar aqueles

sujeitos que, apesar de nascerem e viverem em condições de alto risco, se desenvolvem

psicologicamente saudáveis e socialmente exitosos” (OPAS, 1998: 8). Novamente as idéias

de êxito social e risco aparecem como condição para se falar em resiliência. A definição da

OPAS parece ficar mais restrita àquilo que se convencionou chamar de situações de risco

social ou vulnerabilidade social, o que dificultaria a utilização dessa definição em outras

situações de superação de limites. Porém, se nos mantivermos no campo dos problemas

sociais, a definição da OPAS se mostra mais avançada em comparação com as idéias de

Pinheiro (2004), apresentadas anteriormente. E este avanço consiste em destacar a saúde

psicológica dos indivíduos e relacionar o “êxito social” a esta saúde. Se considerarmos

saúde psíquica a criatividade descrita por Winnicott, nos parece coerente pensar que quanto

mais saudável um indivíduo for, maior será sua chance de se inserir socialmente de maneira

cidadã. Nesse sentido, devemos considerar êxito social a conquista da cidadania e não um

acrítico ajustamento social. Entretanto, há que se ter sempre o cuidado de explicitar o

sentido que se quer dar a termos imprecisos, como êxito social, sob a pena dessas

definições serem utilizadas no reforço de preconceitos de toda sorte. Em se tratando de um

organismo internacional, como a OPAS, esse cuidado precisa ser redobrado, pois se trata da

definição da principal entidade do campo da saúde no continente americano. Organismo

que baseado neste e em outros conceitos orienta a formulação de políticas públicas em

131

saúde de seus Estados membros, sobretudo dos países mais pobres. Isto significa que uma

definição com problemas pode gerar práticas baseadas em preconceitos sociais em escala

continental. Certamente não é essa a intenção dos pesquisadores e nem da entidade.

Entretanto, ao ler os estudos sobre resiliência ficamos com a impressão de que resiliência é,

em parte, a capacidade de superar a pobreza. Nesse sentido, parece que a diferença entre a

riqueza e a pobreza está na saúde dos indivíduos. Nessa perspectiva, a pobreza seria

determinada mais pelas características individuais do que pelas condições

macroeconômicas e políticas de um país. O que nos parece distante da realidade.

Chamamos a atenção do leitor para o fato de que nada disso está dito nos artigos

pesquisados, tampouco no manual da OPAS. Essa é uma interpretação, uma provocação, na

verdade, que fazemos a partir da centralidade do tema pobreza nos escritos sobre

resiliência, como no trecho a seguir do manual da OPAS:

“O enfoque de resiliência é parte de uma vasta corrente conceitual que examina a pobreza, seus efeitos, características e componentes. A importância que adquire a resiliência consiste em que os fatores sobre os quais as ações (parte da intervenção) são possíveis, são conhecidos e, portanto, se delimitam de antemão”. (OPAS, 1998: 16)

O enfrentamento de situações-limite, inclusive a pobreza, tem maior possibilidade

de lograr êxito quando o indivíduo possui determinadas características subjetivas que

favorecem a resiliência. São elas: controle das emoções e dos impulsos, autonomia, senso

de humor, alta auto-estima, empatia, capacidade de compreensão e análise das situações,

certa competência cognitiva, e capacidade de atenção e concentração (OPAS, 1998).

Determinadas características ambientais também favorecem a resiliência, segundo o manual

da OPAS. O ambiente aqui é entendido como o contexto social e familiar em que o

132

indivíduo está inserido, e suas características promotoras de resiliência são: estabilidade

afetiva do meio, redes informais de apoio social e, no caso de crianças e adolescentes,

“relação de apoio incondicional de um adulto significativo” (OPAS, 1998: 20). Estas são

características comuns a indivíduos resilientes de diferentes idades. A grande parte delas é

de natureza subjetiva, mas mesmo estas podem ser estimuladas desde a vida intra-uterina

por ações que compõem o que a OPAS chama de ações promotoras de resiliência.

Nesse manual, a OPAS descreve ações que a família e os profissionais de saúde

podem realizar para promover resiliência em crianças e adolescentes. Para cada faixa etária

há um conjunto de medidas favorecedoras de resiliência. Para o período gestacional, por

exemplo, é recomendado criar um ambiente acolhedor à gravidez, de forma a proporcionar

suporte emocional e prático à gestante, bem como transmitir carinho e tranqüilidade ao

feto. O manual sugere ações específicas como:

“Comunicar-se freqüentemente com seu feto, pensando nele e falando-lhe com voz suave, tarefa em que o pai também deve participar, especialmente a partir do quinto mês de gravidez. [...] Cantar-lhe, sussurrar-lhe canções familiares e expô-lo à música suave adequada ao meio sócio-cultural em que está crescendo. É de se ressaltar que estudos recentes mostram a proximidade e a associação entre o desenvolvimento do centro cerebral de sensibilidade musical e o de capacidade lógico-matemática”. (OPAS, 1998: 29)

A estas, outras recomendações específicas se seguem para a fase de gestação. Em

seguida há orientações para as diferentes faixas etárias da criança e do adolescente até os

dezesseis anos. A título de resumo apresentamos no quadro 2 uma recomendação para cada

faixa etária.

133

Quadro 2: ações de promoção de resiliência recomendadas pela OPAS38 e distribuídas por faixa etária

Período/Faixa etária

Ações

Gestação Acariciar o bebê por meio do ventre materno Recém-nascido Manter o bebê ao lado da mãe. Se não há nenhuma doença materna que impeça,

não é conveniente separar o bebê da mãe De 0 a 3 anos Modelar comportamentos que comuniquem confiança, otimismo e fé em bons

resultados, para crianças de 2 a 3 anos De 4 a 7 anos Incentivar a criança a demonstrar simpatia e afeto, a ser agradável e a fazer

coisas boas para os demais De 8 a 11 anos Os pais devem desenvolver comportamentos que transmitam valores e normas,

incluindo fatores de resiliência De 12 a 16 anos Oferecer preparação para enfrentar as dificuldades do ingresso no mercado de

trabalho

As ações sugeridas pela OPAS estão de acordo com a concepção de saúde que

defendemos. A partir de Winnicott, podemos pensar que a qualidade dos cuidados

dispensados ao bebê tem impacto direto no seu desenvolvimento. Logo, é louvável que a

OPAS valorize e estimule políticas e ações de saúde que tenham como público-alvo os pais

e seus filhos como parte das estratégias de promoção de saúde. Entretanto, lembramos que

essas recomendações devem ser feitas a todos os pais, não importando a classe social.

Consideramos que todos têm a ganhar ao cuidarem melhor de seus filhos, ao transmitir-lhes

carinho e apoio.

O “Manual de identificação e promoção da resiliência em crianças e adolescentes”

da OPAS (1998) é bastante claro ao apresentar o conceito de resiliência, o perfil de

indivíduos resilientes e as ações promotoras de resiliência. Entretanto, a identificação do

atributo resiliência num indivíduo fica submetida a uma avaliação subjetiva e retroativa.

Dito de outra forma, a resiliência será identificada por alguém (profissional de saúde,

38 Este quadro é baseado nos quadros “Que pueden hacer los padres y adultos responsables?”. Para cada faixa etária existe um quadro correspondente no Manual da OPAS (1998). Esses quadros podem ser encontrados entre as páginas 29 e 49.

134

educador, cuidador) a partir da observação pessoal da história de superação de outra pessoa.

Dessa forma, não haveria como identificar a resiliência em um indivíduo antes que ele

fosse submetido a uma situação-limite e bem sucedido.

Apesar do desenvolvimento de uma escala de resiliência por Wagnild & Young

(1993) cinco anos antes da publicação do Manual da OPAS (1998), a primeira não é citada

pelo segundo. Entretanto, a escala proposta por Wagnild & Young (1993) já foi traduzida

para sete idiomas, inclusive a língua portuguesa (Pesce et al, 2005). Esse instrumento tem

como objetivo auxiliar a formulação e avaliação de ações de promoção de resiliência por

meio da mensuração da capacidade de ser resiliente dos indivíduos.

Segundo Wagnild & Young (1993), a escala de resiliência mede o grau de

resiliência dos indivíduos através da avaliação de características pessoais que facilitam a

adaptação a circunstâncias adversas, por exemplo, confiança em si mesmo, capacidade de

enfrentar problemas, capacidade de tomar decisões por si só. O instrumento é composto por

vinte e cinco afirmações e as respostas são dadas através de uma escala de concordância

que vai de 1 a 7. O numeral 1 corresponde à resposta “discordo fortemente”, enquanto o

numeral 7 significa “concordo fortemente”. O numeral marcado como resposta vale como

escore da questão. A soma dos escores de todas as questões pode variar entre 25 e 175.

Quanto maior for o escore total, maior é a capacidade de resiliência do respondente. Na

versão original39, em inglês, há vinte e seis afirmações, uma a mais que na versão brasileira.

Essa vigésima sexta afirmação é opcional, segundo Wagnild & Young (1993), e tem como

enunciado a frase: “eu sou resiliente”40.

39 Ver na seção “anexos” a versão original da escala de resiliência e a versão em português. 40 No original: “I am resilient”.

135

Todas as afirmativas do questionário buscam avaliar o quanto o respondente se

sente capaz de enfrentar e resolver situações adversas, como podemos constatar através das

afirmativas propostas pela escala. A afirmativa 2, por exemplo, diz “eu costumo lidar com

os problemas de uma forma ou de outra”; a 13 afirma “eu posso enfrentar tempos difíceis

porque já experimentei dificuldades antes”; ou ainda, a afirmativa dezessete, “minha crença

em mim mesmo me leva a atravessar tempos difíceis”.

Assim como no caso do WHOQOL-100, não nos cabe julgar se a escala de

resiliência de Wagnild & Young é ou não efetiva naquilo que se propõe fazer. A adaptação

para a população brasileira foi feita por Pesce et al (2005) e os autores avaliam

positivamente o instrumento. Nosso interesse está na relação direta entre o conceito de

resiliência e seu instrumento de mensuração. Assim como no caso do constructo qualidade

de vida, temos aqui um instrumento forjado a partir de um conceito positivo e que procura

medir aquilo que está definido no conceito de origem, neste caso específico a capacidade de

superar situações-limite sem sofrer muitos danos.

Acreditamos que este deve ser o caminho a ser seguido no campo da saúde.

Primeiro a discussão teórico-conceitual e somente em seguida a proposição metodológica.

Se quisermos sair do consenso paralisador em relação à precariedade da definição de saúde

como ausência de doença, teremos que construir uma cultura de valorização da

epistemologia em saúde. Experiências como as apresentadas neste capítulo são

contribuições nesse sentido. Contribuições valiosas, porém ainda tímidas, pois não

procuram reformar o conceito de saúde diretamente. Ambos os conceitos, qualidade de vida

e resiliência, apresentam-se como alternativas indiretas ao conceito negativo de saúde e em

alguns momentos estabelecem relação de complementaridade com este.

136

Com este capítulo, esperamos ter demonstrado que a busca pela positivação do

objeto saúde é possível e está em marcha. Optamos por apresentar apenas essas duas

experiências por elas estarem chanceladas por organismos internacionais. O que demonstra

que mesmo dentro dos centros produtores da racionalidade dominante em saúde há espaço

para a diferença e há insatisfação com a definição negativa de saúde. Entretanto,

experiências de positivação do objeto saúde podem ser encontradas em diferentes práticas e

discursos sobre saúde, como a Homeopatia, a Medicina Tradicional Chinesa e outros

movimentos ditos alternativos. Cada um com suas respectivas potências libertadoras e seus

correspondentes riscos de normatização da vida41.

41 Sobre racionalidades médicas e saúde ver Luz (1988 e 1993) e Martins (1999)

137

CONCLUSÃO

Este trabalho procurou, a partir de uma perspectiva filosófico-conceitual,

demonstrar que é possível definir saúde de maneira positiva, tendo a experiência do

indivíduo como ponto de partida. Não tivemos a pretensão de esgotar o tema, mesmo

porque, se há uma conclusão a que chegamos, é a de que o campo da saúde tem mais a

ganhar com o processo contínuo de debate acerca de seus conceitos fundamentais do que

com a supressão do debate pelo surgimento de uma nova verdade. Este trabalho é apenas

uma contribuição para o processo de discussão.

Nossa pesquisa termina com mais perguntas que respostas. Isso significa que a

conclusão a que se refere o título deste capítulo diz mais respeito a um ciclo – o curso de

mestrado – do que propriamente à pesquisa. Termina-se aqui uma importante etapa na

formação de um pesquisador, mas a pesquisa iniciada neste curso de mestrado parece ser

trabalho para uma vida. Contudo, acreditamos que algumas considerações podem ser feitas

acerca das idéias que apresentamos nos capítulos anteriores.

Ao longo do capítulo 1, apresentamos a definição de indicadores de saúde, como

são formados, exemplos desses instrumentos e sua relação com a definição negativa de

saúde. Durante a pesquisa que fizemos para o capítulo, a orientação e o exame de

qualificação, pudemos ter maior clareza acerca da importância dos indicadores de saúde

para as políticas e ações em saúde. A capacidade de mapear os agravos à saúde, de indicar

problemas sociais e de infraestrutura que impactam a saúde faz dos indicadores atuais

instrumentos imprescindíveis para a boa gestão dos recursos públicos e privados investidos

não apenas no setor de saúde stricto sensu, mas também em outros setores da economia.

138

Entretanto, esses instrumentos são limitados quando queremos investigar a saúde no

sentido positivo que demos ao termo. Isso não significa que indicadores clássicos e

definições positivas de saúde sejam incompatíveis. Mesmo quando as definições positivas

tiverem maior impacto nas políticas públicas, os indicadores clássicos continuarão a ter

grande importância pelas razões que apresentamos anteriormente. Afinal, utilizar uma

definição positiva de saúde não implica em negligenciar o combate às doenças, mas em

redimensionar o papel do combate às doenças dentro do campo da saúde. Isso significa que

combater e prevenir doenças são aspectos importantes das ações em saúde, mas que não são

a mesma coisa que promover saúde ou mesmo garantia de saúde para uma população.

Nesse contexto, os indicadores clássicos de saúde seriam parte de uma série de outros

instrumentos utilizados para orientar as políticas públicas de saúde nos seus aspectos de

prevenção e tratamento de doenças, assim como na promoção de saúde.

No capítulo 2, apresentamos, a partir de Canguilhem e Winnicott, o que

entendemos por saúde. Lá, argumentamos que a doença não é o pólo oposto da saúde e que

é possível viver com saúde mesmo acometido por alguma doença. Esse é um ponto que

devemos observar mais detalhadamente. A princípio, essa afirmação contém um paradoxo.

Sendo a saúde a ausência de doença, como se pode ter doença e saúde ao mesmo tempo?

Considerando a definição positiva de saúde que apresentamos – a capacidade de criar

soluções somatopsíquicas para os percalços inerentes ao viver – e entendendo doença,

grosso modo, como categoria nosológica, podemos pensar que quanto maior for a saúde de

um indivíduo, quanto mais potente ele for, maior será sua capacidade de construir

estratégias de enfrentamento da doença e soluções para as limitações impostas por esta. Por

exemplo, no caso de um paciente hospitalizado ou em tratamento, podemos pensar que sua

139

recuperação dependerá, em parte, da sua saúde, expressa na capacidade de participar

ativamente do seu próprio tratamento. Nesse sentido, o que chamamos de adesão ao

tratamento passa a ser compreendido como uma aliança entre a equipe de saúde e o

paciente. Mesmo em casos mais graves, como o de pacientes em estágio terminal, ainda

podemos falar em saúde. A possibilidade de ser ativo até o seu último instante de vida,

escolher onde morrer – permanecer no hospital ou ir para casa, por exemplo, é uma

manifestação da saúde possível naquele momento. É nesse sentido que afirmamos que

saúde é potência e que a capacidade de ser potente pode sempre ser redimensionada

infinitamente para que mesmo nas mais precárias situações de sustentabilidade da vida

possamos falar numa saúde possível. Nesta perspectiva, as estratégias de tratamento (e

cuidados paliativos) devem ser reorganizadas a fim de incluir diferentes profissionais e

práticas de saúde que fortaleçam o indivíduo, ao invés de apenas combater diretamente a

doença.

No capítulo 3, apresentamos dois conceitos que procuram valorizar aspectos

positivos da saúde: qualidade de vida e resiliência. O crescente interesse por qualidade de

vida e resiliência nos mostra como há entre os pesquisadores do campo a preocupação em

encontrar alternativas ao conceito negativo de saúde. O envolvimento de organismos

internacionais como a OMS e a OPAS é bem-vindo e dá maior legitimidade ao debate

acerca da epistemologia da saúde. Porém, é preciso mais do que a produção de conceitos

paralelos. Com o desenvolvimento científico e tecnológico, torna-se imperativo que

conceitos-chave como os de saúde, doença e vida ocupem papel de destaque na pauta de

discussão dos organismos internacionais, dos governos e das universidades. Do contrário,

corremos o risco de bloquear outros importantes debates – como o uso de células-tronco

140

embrionárias em pesquisas, eutanásia, aborto – e, sobretudo, corremos o risco de não

desenvolver novos dispositivos de atenção à saúde em nosso país. Ou seja, o debate

epistemológico em saúde é fundamental, pois não apenas organiza os saberes acerca da

saúde, mas, sobretudo, serve de balizamento ético para todas as ações na área. Quanto mais

explícito e direto for o debate, melhor.

Diferentemente do que se possa pensar, trabalhos conceituais podem ter grande

impacto prático na formulação de políticas públicas, na tomada de decisão de gestores e na

orientação das ações de promoção de saúde, prevenção e tratamento de doenças. Por

exemplo, se considerarmos a definição positiva de saúde que apresentamos, podemos

imaginar que ações de promoção de saúde poderiam ser balizadas pelos elementos

facilitadores de saúde que citamos. Isto significa que promover saúde ganharia uma

dimensão maior do que a prevenção de doenças e ações consideradas, até então, estranhas

ao campo da saúde ganhariam em importância, como: a construção de creches, hortas

comunitárias, etc. De modo algum estamos sugerindo abrir mão dos avanços já

conquistados, como o programa de saúde da família, os agentes comunitários de saúde, as

campanhas de imunização, a construção de postos e centros de saúde, etc. O que propomos

é a reflexão de que outros elementos podem se somar aos dispositivos já existentes para que

a promoção de saúde seja o mais efetiva possível. Dessa forma, a diferença entre prevenção

e promoção de saúde ficaria mais nítida, pois a primeira se caracterizaria pelas ações que

visassem diminuir as chances de um indivíduo contrair determinada doença, enquanto a

segunda seria o conjunto de ações que favorecessem a capacidade de ser espontâneo,

capacidade de transformação da realidade compartilhada, as expectativas em relação ao

futuro, os sentimentos positivos em relação a si e o apoio social.

141

Por esta perspectiva, saúde passa a ser um tema transversal nas ações

governamentais, assim como sustentabilidade ambiental, direitos humanos e

desenvolvimento econômico o são. Isto não implica na dissolução dos limites dos

ministérios e secretarias de governo, cada um continuaria com as suas atribuições

específicas e seus respectivos orçamentos. A diferença estaria em considerar os impactos

positivos à saúde como elemento a ser considerado no planejamento e execução das ações

de cada ministério ou secretaria.

Entendemos que nossas propostas são ainda insipientes, servindo mais como

provocação ao debate que efetivamente propostas a serem postas em prática imediatamente.

É preciso aprofundar os pontos discutidos nesta dissertação e, ainda, considerar outros

elementos que não puderam ser abordados. Um desses elementos é a relação entre os

princípios do SUS, principalmente integralidade, e o conceito negativo de saúde.

Acreditamos que a investigação desse tema pode trazer ainda mais elementos que

justifiquem a necessidade de uma revisão dos conceitos utilizados pelo campo da saúde.

Afinal, como podemos pensar a integralidade da atenção e a conseqüente

interdisciplinaridade dos cuidadores, se o conceito negativo e hegemônico de saúde

supervaloriza os aspectos biológicos em detrimento dos aspectos psíquicos e sociais? E

mesmo dentre os aspectos biológicos há a supervalorização da biomedicina. A princípio,

parece-nos que há uma incompatibilidade entre a lei do SUS e o conceito negativo de

saúde. Estudar o tema pode levantar mais hipóteses sobre a dificuldade de completar a

implementação do SUS, que provavelmente não se restringe somente à falta de

investimento financeiro por parte dos governos. Acreditamos que este tema merece uma

pesquisa à parte.

142

Outras questões permanecem em aberto e precisam ser consideradas no futuro. Por

exemplo, como construir indicadores da saúde positivamente definida? Existem

ferramentas metodológicas para isso ou seria preciso criá-las? Como operacionalizar

conceitos positivos de saúde (e de doença) para potencializar o trabalho clínico? Estas e

outras perguntas só poderão obter respostas – se isso for possível – a partir do permanente

exercício de repensar os conceitos e, conseqüentemente, as práticas. Abrimos este trabalho

apresentando a crítica de Almeida Filho (1990 e 2000a) à supervalorização da produção

metodológica em saúde em detrimento da produção conceitual. O autor parece ter razão.

Pouco nos servirá um grande número de instrumentos cientificamente concebidos, se o solo

epistemológico em que eles se apóiam for pobre. Quanto mais claros forem os conceitos,

mais efetivas serão as ações de proteção e promoção da saúde.

Por ora, o que podemos concluir é que a qualidade dos instrumentos de mensuração

da saúde depende antes da epistemologia que da metodologia, se esta não repensar seus

fundamentos, e que, provavelmente, está na primeira boa parte das soluções para os

impasses que apresentamos nesta dissertação.

143

REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, N. (1990) O problema do objeto de conhecimento na Epidemiologia. In: COSTA, D. C. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: HUCITEC/ABRASCO, p 203-220. __________________ (org) (1998). Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces, tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ABRASCO. __________________. (2000a) O conceito de saúde: ponto-cego da Epidemiologia? Rev. Bras. Epidemiol. v. 3, n. 1-3, 2000a, p. 4-20. __________________. (2000b) Qual o sentido do termo saúde. Editorial. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro. v. 16. n. 2, p. 300-301.

ALMEIDA FILHO, N. & COELHO, M. T. A. D. (2002) Conceito de saúde em discursos contemporâneos de referência científica. História, ciências, saúde. Rio de Janeiro. v. 9, n. 2, p 315-333. ALMEIDA FILHO, N. & JUCÁ, V. (2002) Saúde como ausência de doença: crítica à teoria funcionalista de Christopher Boorse. Ciência & Saúde Coletiva. v. 7, n. 4, p. 879-889. BARRETO, M. L. (1990) A Epidemiologia, sua história e crises: notas para pensar o futuro. In: COSTA, D. C. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: HUCITEC/ABRASCO, p. 19-38. BERKMAN, L. F. & GLASS, T. (2000) Social integration, social networks, social support and health. In BERKMAN, L. F. & KAWACHI (eds). Social Epidemiology. New York: Oxford, p. 137-165. BOWLING, A. (1998) Measuring health: a review of quality of life measurement scales. Buckingham: Open University Press. BRASIL. (2004) Saúde Brasil 2004 – uma análise da situação de saúde. Brasília: Ministério da Saúde. BUSS, P. M. (2000) Promoção da saúde e qualidade de vida. Ciência & Saúde Coletiva, vol.5, no.1, p.163-177. CAMARGO JR, K. C. (2007) As armadilhas da "concepção positiva de saúde". PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 63-76. CANGUILHEM, G. (1975) La connaissance de la vie. Paris: Librairie Philosofique J. Vrin.

144

________________. (1990) La santé: concept vulgaire & question philosophique. Pin-Balma: Sables. ________________.(2002) O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária. CAPONI, S. (1997) Georges Canguilhem y el estatuto epistemológico del concepto de salud. Hist. cienc. saude-Manguinhos, vol.4, no.2, p.287-307. CARVALHO, F; MORAIS, N; KOLLER, S; PICCININI, C. (2007)Fatores de proteção relacionados à promoção de resiliência em pessoas que vivem com HIV/AIDS. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v.23, n. 9, p. 2023-2033. CARVALHO, M. C. & MARTINS, A. (2004) A obesidade como objeto complexo: uma abordagem filosófico-conceitual. Ciênc. saúde coletiva, v..9, n.4, p.1003-1012. COSTA, J. F. (1999) Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 4ª edição. CYRULNIK, B. (2002) Los patitos feos – la resiliencia: uma infância infeliz no determina la vida. Barcelona: Gedisa. _____________. (2003) Resiliência: essa inaudita capacidade de construção humana. Porto Alegre: Instituto Piaget. DRACHLER, M. L; CORTÊS, S. M. V; CASTRO, J. D; LEITE, J. C. C. (2003) Proposta de metodologia para selecionar indicadores de desigualdade em saúde visando definir prioridades de políticas públicas no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. v. 8 n. 2, p. 461-470. FLECK, M. P. A.; LEAL, O. F.; LOUZADA, S. et al. (1999) Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100). Rev. Bras. Psiquiatr. v.21, n.1, p.19-28. FLECK, M. P. A.; LOUSADA, S.; XAVIER, M.; CHACHAMOVICH, E.; VIEIRA, G.; SANTOS, L; PINZON, V. (1999) Aplicação da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100). Rev. Saúde Pública, v.33, n.2, p.198-205. FLECK, M. P. A. (2000) O instrumento de avaliação da qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL 100): características e perspectivas. Ciência e Saúde Coletiva, v. 5, n. 1, p. 33-38. FOUCAULT, M. (1982) Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

145

_____________. (2002) História a loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva. JENICEK, M. & CLÉROUX, R. (1987) Epidemiologia. Barcelona: Salvat. JUNQUEIRA, M & DESLANDES, S. (2003) Resiliência e maus-tratos à criança. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. :227-235. KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. LEITE, I. Estudo sobre carga de doença no Brasil: estado atual e perspectivas. In: MS. Prioridades de pesquisa em saúde – Ministério da Saúde – Decit 2006. disponível em:< http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Pesquisa_Saude/tela16_2.html>. Acessado em: 11 de janeiro de 2008. LESSA, I. (1998) O adulto brasileiro e as doenças da modernidade. São Paulo: HUCITEC.

LUZ, M. (1988) Natural, racional, social. Rio de janeiro: Campus.

________. (1993) Racionalidades médicas e terapêuticas alternativas. Estudos em saúde coletiva, n.62. Rio de Janeiro: IMS/UERJ. MARTINS, A. (1999) Novos paradigmas e saúde. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 83-112. ____________. Biopolítica: o poder médico e a autonomia do paciente em uma nova concepção de saúde. Artigo apresentado no VII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, no dia 02 de agosto de 2003, no Painel intitulado ‘Biopolítica, biotecnologia e Saúde Coletiva’. ____________. (2004) Filosofia e saúde: métodos genealógico e filosófico-conceitual. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 950-958. _____________. (2005) La question de la santé et de la maladie chez Bernard et Canguilhem, dans ses rapports à la médecine moderne. Synapse : Journal de Psychiatrie et Système Nerveux Central, n.211, p.22-26. MELLO JORGE, M. H. P. & GOTLIEB, S. L. D. (2000) As condições de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2000. OPAS (1998) Manual de identificación y promoción de la resiliencia en niños y adolescentes. Disponível em:

146

<http://www.paho.org/Spanish/HPP/HPF/ADOL/Resilman.PDF>. Acessado em 3 de setembro de 2007. _____. (2001) Indicadores de Salud: Elementos Básicos para el Análisis de la Situación de Salud. Boletín Epidemiológico, v. 22, n. 4, p. 1-5. PEREIRA, A. M. S. (2001) Resiliência, personalidade, stress e estratégias de coping. In Tavares, J. (Org.) Resiliência e educação. São Paulo: Cortez, p. 77-94. PESCE, P; ASSIS, S; AVANCI, J; SANTOS, N; MALAQUIAS, J; CARVALHAES, R. (2005) Adaptação transcultural, confiabilidade e validade da escala de resiliência. Cad. Saúde Pública, v. 21, n. 2, p. 436-448. PINHEIRO, D. (2004) A resiliência em discussão. Psicologia em Estudo. Maringá, v. 9, n. 1, p. 67-75. REDE. Interagencial de Informações Para a Saúde. (2002) Indicadores básicos de saúde no Brasil: conceitos e aplicações. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde. REIS, I. N. C. & VIANNA, M. B. (2004) Proposta e análise de indicadores para reorientação do serviço na promoção de saúde: um estudo de caso no Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria. Ciência e Saúde Coletiva. v. 9, n. 3, p. 697-709. ROSEN, G. (1980) Da Polícia Médica à Medicina Social. Rio de Janeiro: Graal. _________. (1994) Uma história da Saúde Pública. São Paulo: HUCITEC, Rio de Janeiro: ABRASCO. ROTHMAN, K. J. (1987) Epidemiologia Moderna. Madri: Diaz de Santos. SABROZA, A. R.; LEAL, M. C.; SOUZA JR., P. R. et al. (2004) Algumas repercussões emocionais negativas da gravidez precoce em adolescentes do Município do Rio de Janeiro (1999-2001). Cad. Saúde Pública, v.20 supl.1, p. S130-S137. SEGRE, M. & FERRAZ, F. C. (1997) O conceito de saúde. Rev. Saúde Pública. v. 31, n. 5, p. 538- 542. SIMÕES, C. C. S. (2002) Perfis de saúde e de mortalidade no Brasil: uma análise de seus condicionantes em grupos populacionais específicos. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde. STANSFELD, S. A. (1999) Social support and social cohesion. In MARMOT, M. & WILKINSON, R. G. (eds) Social Determinants of health. New York: Oxford, p. 155-177.

147

VERMELHO, L. L; COSTA, A. J. L; KALE, P.L. (2004) Indicadores de saúde. in: MEDRONHO, R. A (org). Epidemiologia. Rio de Janeiro: Atheneu, p. 33-55. WAGNILD, G.M. & YOUNG H.M. (1993) Development and psychometric evaluation of resilience scale. J Nurs Meãs. v, p.165-78. WHO. (1997) WHOQOL: measuring Quality of Life. Disponível em: <http://www.who.int/mental_health/media/68.pdf>. Acesso em: 31 de janeiro de 2008. WINNICOTT, D. W. (1975) O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. _________________. (1983) O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. __________________. (1990) Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago. __________________. (1999) Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes. __________________. (2000) Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. __________________. (2001) A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes.

148

ANEXOS

149

WHOQOL-100 Versão em português

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE AVALIAÇÃO DE QUALIDADE DE VIDA

Coordenação do Grupo WHOQOL no Brasil Dr. Marcelo Pio de Almeida Fleck

Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre- RS - Brasil Instruções Este questionário é sobre como você se sente a respeito de sua qualidade de vida, saúde e

outras áreas de sua vida. Por favor, responda todas as questões. Se você não tem certeza

sobre que resposta dar em uma questão, por favor, escolha entre as alternativas a que lhe

parece mais apropriada. Esta, muitas vezes, poderá ser a sua primeira escolha.

Por favor, tenha em mente seus valores, aspirações, prazeres e preocupações. Nós estamos

perguntando o que você acha de sua vida, tomando como referência às duas últimas

semanas.

Por exemplo, pensando nas últimas duas semanas, uma questão poderia ser:

Quanto você se preocupa com sua saúde?

nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente

1 2 3 4 5 Você deve circular o número que melhor corresponde ao quanto você se preocupou com

sua saúde nas últimas duas semanas. Portanto, você deve fazer um círculo no número 4 se

você se preocupou "bastante" com sua saúde, ou fazer um círculo no número 1 se você não

se preocupou "nada" com sua saúde. Por favor, leia cada questão, veja o que você acha, e

faça um círculo no número que lhe parece a melhor resposta.

Muito obrigado por sua ajuda.

150

As questões seguintes são sobre o quanto você tem sentido algumas coisas nas últimas duas

semanas. Por exemplo, sentimentos positivos tais como felicidade ou satisfação. Se você

sentiu estas coisas "extremamente", coloque um círculo no número abaixo de

"extremamente". Se você não sentiu nenhuma destas coisas, coloque um círculo no número

abaixo de "nada". Se você desejar indicar que sua resposta se encontra entre "nada" e

"extremamente", você deve colocar um círculo em um dos números entre estes dois

extremos. As questões se referem às duas últimas semanas.

F1.2 Você se preocupa com sua dor ou desconforto (físicos)? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F1.3 Quão difícil é para você lidar com alguma dor ou desconforto? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F1.4 Em que medida você acha que sua dor (física) impede você de fazer o que você precisa? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F2.2 Quão facilmente você fica cansado(a)? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F2.4 O quanto você se sente incomodado(a) pelo cansaço? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F3.2 Você tem alguma dificuldade para dormir (com o sono)? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F3.4 O quanto algum problema com o sono lhe preocupa? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F4.1 O quanto você aproveita a vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5

151

F4.3 Quão otimista você se sente em relação ao futuro? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F4.4 O quanto você experimenta sentimentos positivos em sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F5.3 O quanto você consegue se concentrar? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F6.1 O quanto você se valoriza? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F6.2 Quanta confiança você tem em si mesmo? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F7.2 Você se sente inibido(a) por sua aparência? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F7.3 Há alguma coisa em sua aparência que faz você não se sentir bem? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F8.2 Quão preocupado(a) você se sente? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F8.3 Quanto algum sentimento de tristeza ou depressão interfere no seu dia-a-dia? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5

152

F8.4 O quanto algum sentimento de depressão lhe incomoda? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F10.2 Em que medida você tem dificuldade em exercer suas atividades do dia-a-dia? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F10.4 Quanto você se sente incomodado por alguma dificuldade em exercer as atividades do dia-a-dia? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F11.2 Quanto você precisa de medicação para levar a sua vida do dia-a-dia? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F11.3 Quanto você precisa de algum tratamento médico para levar sua vida diária? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F11.4 Em que medida a sua qualidade de vida depende do uso de medicamentos ou de ajuda médica? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F13.1 Quão sozinho você se sente em sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F15.2 Quão satisfeitas estão as suas necessidades sexuais? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F15.4 Você se sente incomodado(a) por alguma dificuldade na sua vida sexual? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5

153

F16.1 Quão seguro(a) você se sente em sua vida diária? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F16.2 Você acha que vive em um ambiente seguro? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F16.3 O quanto você se preocupa com sua segurança? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F17.1 Quão confortável é o lugar onde você mora? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F17.4 O quanto você gosta de onde você mora? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F18.2 Você tem dificuldades financeiras? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F18.4 O quanto você se preocupa com dinheiro? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F19.1 Quão facilmente você tem acesso a bons cuidados médicos? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F21.3 O quanto você aproveita o seu tempo livre? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F22.1 Quão saudável é o seu ambiente físico (clima, barulho, poluição, atrativos) ? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5

154

F22.2 Quão preocupado(a) você está com o barulho na área que você vive? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F23.2 Em que medida você tem problemas com transporte? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F23.4 O quanto as dificuldades de transporte dificultam sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 As questões seguintes perguntam sobre quão completamente você tem sentido ou é capaz

de fazer certas coisas nestas últimas duas semanas. Por exemplo, atividades diárias tais

como lavar-se, vestir-se e comer. Se você foi capaz de fazer estas atividades

completamente, coloque um círculo no número abaixo de "completamente". Se você não foi

capaz de fazer nenhuma destas coisas, coloque um círculo no número abaixo de "nada". Se

você desejar indicar que sua resposta se encontra entre "nada" e "completamente", você

deve colocar um círculo em um dos números entre estes dois extremos. As questões se

referem às duas últimas semanas.

F2.1 Você tem energia suficiente para o seu dia-a-dia? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F7.1 Você é capaz de aceitar a sua aparência física? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F10.1 Em que medida você é capaz de desempenhar suas atividades diárias? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F11.1 Quão dependente você é de medicação? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F14.1 Você consegue dos outros o apoio que necessita? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5

155

F14.2 Em que medida você pode contar com amigos quando precisa deles? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F17.2 Em que medida as características de seu lar correspondem às suas necessidades? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F18.1 Você tem dinheiro suficiente para satisfazer suas necessidades? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F20.1 Quão disponível para você estão as informações que precisa no seu dia-a-dia? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F20.2 Em que medida você tem oportunidades de adquirir informações que considera necessárias? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F21.1 Em que medida você tem oportunidades de atividades de lazer? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F21.2 Quanto você é capaz de relaxar e curtir você mesmo? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F23.1 Em que medida você tem meios de transporte adequados? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5

156

As questões seguintes perguntam sobre o quão satisfeito(a), feliz ou bem você se sentiu a

respeito de vários aspectos de sua vida nas últimas duas semanas. Por exemplo, na sua vida

familiar ou a respeito da energia (disposição) que você tem. Indique quão satisfeito(a) ou

não satisfeito(a) você está em relação a cada aspecto de sua vida e coloque um círculo no

número que melhor represente como você se sente sobre isto. As questões se referem às

duas últimas semanas.

G2 Quão satisfeito(a) você está com a qualidade de sua vida? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 G3 Em geral, quão satisfeito(a) você está com a sua vida? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 G4 Quão satisfeito(a) você está com a sua saúde? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F2.3 Quão satisfeito(a) você está com a energia (disposição) que você tem? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F3.3 Quão satisfeito(a) você está com o seu sono? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F5.2 Quão satisfeito(a) você está com a sua capacidade de aprender novas informações? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F5.4 Quão satisfeito(a) você está com sua capacidade de tomar decisões? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5

157

F6.3 Quão satisfeito(a) você está consigo mesmo? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F6.4 Quão satisfeito(a) você está com suas capacidades? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F7.4 Quão satisfeito(a) você está com a aparência de seu corpo? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F10.3 Quão satisfeito(a) você está com sua capacidade de desempenhar as atividades do seu dia-a-dia? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F13.3 Quão satisfeito(a) você está com suas relações pessoais (amigos, parentes, conhecidos, colegas)? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F15.3 Quão satisfeito(a) você está com sua vida sexual? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F14.3 Quão satisfeito(a) você está com o apoio que você recebe de sua família? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F14.4 Quão satisfeito(a) você está com o apoio que você recebe de seus amigos? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5

158

F13.4 Quão satisfeito(a) você está com sua capacidade de dar apoio aos outros? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F16.4 Quão satisfeito(a) você está com com a sua segurança física (assaltos, incêndios, etc.)? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F17.3 Quão satisfeito(a) você está com as condições do local onde mora? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F18.3 Quão satisfeito(a) você está com sua situação financeira? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F19.3 Quão satisfeito(a) você está com o seu acesso aos serviços de saúde? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F19.4 Quão satisfeito(a) você está com os serviços de assistência social? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F20.3 Quão satisfeito(a) você está com as suas oportunidades de adquirir novas habilidades? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F20.4 Quão satisfeito(a) você está com as suas oportunidades de obter novas informações? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5

159

F21.4 Quão satisfeito(a) você está com a maneira de usar o seu tempo livre? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F22.3 Quão satisfeito(a) você está com o seu ambiente físico ( poluição, clima, barulho, atrativos)? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F22.4 Quão satisfeito(a) você está com o clima do lugar em que vive? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F23.3 Quão satisfeito(a) você está com o seu meio de transporte? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F13.2 Você se sente feliz com sua relação com as pessoas de sua família? Muito infeliz infeliz nem feliz nem infeliz feliz muito feliz 1 2 3 4 5 G1 Como você avaliaria sua qualidade de vida? muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 F15.1 Como você avaliaria sua vida sexual? Muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 F3.1 Como você avaliaria o seu sono? Muito ruim ruim nem ruim nem bom bom muito bom 1 2 3 4 5

160

F5.1 Como você avaliaria sua memória? Muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 F19.2 Como você avaliaria a qualidade dos serviços de assistência social disponíveis para você? Muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 As questões seguintes referem-se a "com que freqüência" você sentiu ou experimentou

certas coisas, por exemplo, o apoio de sua família ou amigos ou você teve experiências

negativas, tais como um sentimento de insegurança. Se, nas duas últimas semanas, você

não teve estas experiências de nenhuma forma, circule o número abaixo da resposta

"nunca". Se você sentiu estas coisas, determine com que freqüência você os experimentou e

faça um círculo no número apropriado. Então, por exemplo, se você sentiu dor o tempo

todo nas últimas duas semanas, circule o número abaixo de "sempre". As questões referem-

se às duas últimas semanas.

F1.1 Com que freqüência você sente dor (física)? Nunca raramente às vezes repetidamente sempre 1 2 3 4 5 F4.2 Em geral, você se sente contente? Nunca raramente às vezes repetidamente sempre 1 2 3 4 5 F8.1 Com que freqüência você tem sentimentos negativos, tais como mau humor, desespero, ansiedade, depressão? Nunca raramente às vezes repetidamente sempre 1 2 3 4 5

161

As questões seguintes se referem a qualquer "trabalho" que você faça. Trabalho aqui

significa qualquer atividade principal que você faça. Pode incluir trabalho voluntário,

estudo em tempo integral, cuidar da casa, cuidar das crianças, trabalho pago ou não.

Portanto, trabalho, na forma que está sendo usada aqui, quer dizer as atividades que você

acha que tomam a maior parte do seu tempo e energia. As questões referem-se às últimas

duas semanas.

F12.1 Você é capaz de trabalhar? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F12.2 Você se sente capaz de fazer as suas tarefas? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F12.4 Quão satisfeito(a) você está com a sua capacidade para o trabalho? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F12.3 Como você avaliaria a sua capacidade para o trabalho? muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 As questões seguintes perguntam sobre "quão bem você é capaz de se locomover"

referindo-se às duas últimas semanas. Isto em relação à sua habilidade física de mover o

seu corpo, permitindo que você faça as coisas que gostaria de fazer, bem como as coisas

que necessite fazer.

F9.1 Quão bem você é capaz de se locomover? muito ruim ruim nem ruim nem bom bom muito bom 1 2 3 4 5 F9.3 O quanto alguma dificuldade de locomoção lhe incomoda? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5

162

F9.4 Em que medida alguma dificuldade em mover-se afeta a sua vida no dia-a-dia? Nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F9.2 Quão satisfeito(a) você está com sua capacidade de se locomover? Muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 As questões seguintes referem-se às suas crenças pessoais, e o quanto elas afetam a sua

qualidade de vida. As questões dizem respeito à religião, à espiritualidade e outras crenças

que você possa ter. Uma vez mais, elas referem-se às duas últimas semanas.

F24.1 Suas crenças pessoais dão sentido à sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F24.2 Em que medida você acha que sua vida tem sentido? Nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F24.3 Em que medida suas crenças pessoais lhe dão força para enfrentar dificuldades? Nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F24.4 Em que medida suas crenças pessoais lhe ajudam a entender as dificuldades da vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5

163

THE RESILIENSE SCALE™

Please read the following statements. To the right of each you will find seven numbers, ranging from "1" (Strongly Disagree) on the left to "7" (Strongly Agree) on the right. Circle the number which best indicates your feelings about that statement. For example, if you strongly disagree with a statement, circle "1". If you are neutral, circle "4", and if you strongly agree, circle "7", etc.

Strongly Strongly

Disagree Agree 1. When I make plans, I follow

through with them. 1 2 3 4 5 6 7

2. I usually manage one way or another.

1 2 3 4 5 6 7

3. I am able to depend on myself more than anyone else.

1 2 3 4 5 6 7

4. Keeping interested in things is important to me.

1 2 3 4 5 6 7

5. I can be on my own if I have to. 1 2 3 4 5 6 7 6. I feel proud that I have

accomplished things in life. 1 2 3 4 5 6 7

7. I usually take things in stride. 1 2 3 4 5 6 7 8. I am friends with myself. 1 2 3 4 5 6 7 9. I feel that I can handle many things

at a time. 1 2 3 4 5 6 7

10. I am determined. 1 2 3 4 5 6 7 11. I seldom wonder what the point of

it all is. 1 2 3 4 5 6 7

12. I take things one day at a time. 1 2 3 4 5 6 7 13. I can get through difficult times

because I've experienced difficulty before.

1 2 3 4 5 6 7

14. I have self-discipline. 1 2 3 4 5 6 7 15. I keep interested in things. 1 2 3 4 5 6 7 16. I can usually find something to

laugh about. 1 2 3 4 5 6 7

17. My belief in myself gets me through hard times.

1 2 3 4 5 6 7

18. In an emergency, I'm someone people can generally rely on.

1 2 3 4 5 6 7

19. I can usually look at a situation in a number of ways.

1 2 3 4 5 6 7

20. Sometimes I make myself do things whether I want to or not.

1 2 3 4 5 6 7

164

Strongly Strongly Disagree Agree

21. My life has meaning. 1 2 3 4 5 6 7 22. I do not dwell on things that I can't

do anything about. 1 2 3 4 5 6 7

23. When I'm in a difficult situation, I can usually find my way out of it.

1 2 3 4 5 6 7

24. I have enough energy to do what I have to do.

1 2 3 4 5 6 7

25. It's okay if there are people who don't like me.

1 2 3 4 5 6 7

26. I am resilient. 1 2 3 4 5 6 7

165

PORTUGUESE TRANSLATION OF THE RESILIENCE SCALE

Renata P. PesceI, II; Simone G. AssisII; Joviana Q. AvanciII; Nilton C. SantosII; Juaci V. MalaquiasII; Raquel CarvalhaesII

ICentro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

IIEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMO

Busca-se apresentar os resultados da adaptação transcultural para o português da escala de resilência de Wagnild & Young e da avaliação psicométrica desta. A escala foi adaptada para uma amostra de escolares dos ensinos fundamental e médio da rede pública de ensino do Município de São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil. São apresentados dados do estudo-piloto, com 203 alunos entrevistados em dois momentos consecutivos (teste-reteste), bem como do total de alunos investigados na pesquisa (977). Quanto à adaptação transcultural, foram encontrados bons resultados na equivalência semântica dos itens, tanto para o significado geral,quanto para o referencial. O alfa de Chronbach encontrado foi de 0,85 no pré-teste e 0,80 na amostra total. Na confiabilidade intra-observador, verificou-se que o kappa situou-se entre regular e moderado e o coeficiente de correlação intraclasse foi de 0,746 (p = 0,000). Análise fatorial indicou três fatores não totalmente homogêneos e diferenciados dos achados pelo autor da escala. Quanto à validade de constructo, nota-se correlação direta e significativa com auto-estima, supervisão familiar, satisfação de vida e apoio social. Verificou-se correlação inversa com a escala que avalia violência psicológica.

ABSTRACT

This study describes the cross-cultural adaptation to Portuguese and the psychometric evaluation of the resilience scale developed by Wagnild & Young. The scale was adapted for a sample of students from public schools in São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brazil. Data from the pilot study (203 students interviewed at two points in time) and from the entire study (977) are presented. The cross-cultural adaptation showed good results in the semantic equivalence for: general meaning (above 90.0%) and referential meaning (above 85.0%). Chronbach alpha was 0.85 in the pilot study and 0.80 in the total sample. Kappa between the two points in time was regular and moderate, and the intraclass correlation coefficient was 0.746 (p = 0.000). Factorial analysis indicated three non-homogeneous factors. Construct validity demonstrated direct and significant correlation with self-esteem, family supervision, life satisfaction, and social support. There was an inverse correlation with the scale that evaluates psychological violence.

166

Escala de Resiliência Itens Discordo Concordo

Fortemente Fortemente 1. Quando eu faço planos, eu os levo

até o fim. 1 2 3 4 5 6 7

2. Eu costumo lidar com os problemas de uma forma ou de outra.

1 2 3 4 5 6 7

3. Eu sou capaz de depender de mim mais do que de qualquer outra pessoa.

1 2 3 4 5 6 7

4. Manter Interesse nas coisas é importante para mim.

1 2 3 4 5 6 7

5. Eu posso estar por minha conta se eu precisar.

1 2 3 4 5 6 7

6. Eu sinto orgulho de ter realizado coisas em minha vida.

1 2 3 4 5 6 7

7. Eu costumo aceitar as coisas sem muita preocupação.

1 2 3 4 5 6 7

8. Eu sou amigo de mim mesmo 1 2 3 4 5 6 7 9. Eu sinto que posso lidar com

várias coisas ao mesmo tempo. 1 2 3 4 5 6 7

10. Eu sou determinado. 1 2 3 4 5 6 7 11. Eu raramente penso sobre o

objetivo das coisas. 1 2 3 4 5 6 7

12. Eu faço as coisas um dia de cada vez.

1 2 3 4 5 6 7

13. Eu posso enfrentar tempos difíceis porque já experimentei dificuldades antes.

1 2 3 4 5 6 7

14. Eu sou disciplinado. 1 2 3 4 5 6 7 15. Eu mantenho interesse nas coisas. 1 2 3 4 5 6 7 16. Eu normalmente posso achar

motivo para rir. 1 2 3 4 5 6 7

17. Minha crença em mim mesmo me leva a atravessar tempos difíceis

1 2 3 4 5 6 7

18. Em uma emergência, eu sou uma pessoa em quem as pessoas podem contar

1 2 3 4 5 6 7

19. Eu posso geralmente olhar uma situação de diversas maneiras.

1 2 3 4 5 6 7

20. As vezes eu me obrigo a fazer coisas querendo ou não.

1 2 3 4 5 6 7

167

Itens Discordo Concordo Fortemente Fortemente

21. Minha vida tem sentido. 1 2 3 4 5 6 7 22. Eu não insisto em coisas as quais

eu não posso fazer nada sobre elas.

1 2 3 4 5 6 7

23. Quando eu estou numa situação difícil, eu normalmente acho uma saída.

1 2 3 4 5 6 7

24. Eu tenho energia suficiente para fazer o que eu tenho que fazer.

1 2 3 4 5 6 7

25. Tudo bem se há pessoas que não gostam de mim.

1 2 3 4 5 6 7

© Wagnild and Young (1987). Portuguese translation: Pesce, Assis, and Santos (2004).