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Universidade Federal do Rio de Janeiro Leandro Gama Junqueira Vida, caminho, verdade: poética do destino Rio de Janeiro 2013

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Leandro Gama Junqueira

Vida, caminho, verdade: poética do destino

Rio de Janeiro

2013

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VIDA, CAMINHO, VERDADE: POÉTICA DO DESTINO

Por:

Leandro Gama Junqueira

Departamento de Ciência da Literatura

Poética

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura da Universidade

Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção

do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética)

Orientador: Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro.

UFRJ / FACULDADE DE LETRAS

1º SEMESTRE / 2013

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FOLHA DE APROVAÇÃO

JUNQUEIRA, Leandro Gama. Vida, Caminho, Verdade: Poética do

Destino. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 235 fls

mimeo. Tese de Doutorado em Poética – Ciência da Literatura.

Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura

(Poética).

BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________________________________

Presidente: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro - UFRJ

Orientador

___________________________________________________________________

Professor Doutor Ricardo Pinto de Souza – UFRJ

___________________________________________________________________

Professora Doutora Angela Maria Guida - UFMS

___________________________________________________________________

Professora Doutora Cláudia Andréa Prata Ferreira- UFRJ

___________________________________________________________________

Professor Doutor Igor Teixeira Silva Fagundes - UFRJ

___________________________________________________________________

Professora Doutora Martha Alkmin - UFRJ (Suplente)

___________________________________________________________________

Professora Doutora Idalina Azevedo da Silva - UFRJ (Suplente)

Defendida a Tese:

Conceito: ____________

Em: 28 / 08 / 2013.

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Junqueira, Leandro Gama.

Vida, Caminho e Verdade: Poética do Destino/ Leandro Gama

Junqueira. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2013.

xii, 240 f: 31 cm.

Orientador: Manuel Antônio de Castro

Tese (doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-graduação em

Ciência da Literatura (Poética) 2013.

Referências Bibliográficas: f. 234 – 240.

1. Poética. 2. Destino. 3. Vida. 4. Caminho. 5. Verdade. I. Castro,

Manuel Antônio de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Poética). III.

Título.

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Dedicatória

Com todo afeto, amor, carinho e gratidão,

ao Grande Autor,

responsável maior por esta realização

e provedor fiel de tudo o que eu necessito e sou.

Totalmente a você:

Yahweh-ro’i

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Agradecimentos

À Dulcinéa Nascimento Gama e Venilton de F. Soares Junqueira (in memoria), autores

do autor, e a Luís Fernando, companheiro de estrada;

À Elisangela e aos meus filhos Davi e Débora, amor desde os tempos imemoriais;

À Norma, à Néia, à Ângela, ao Laerton e ao Rhuan, indefiníveis neste mundo;

Aos meus sogros José Manuel e Maria Elizabeth e aos meus cunhados;

Aos amigos remanescentes, parentes e alunos-amigos;

Aos colegas de profissão em especial ao meu amigo Fernando Venâncio;

Aos professores examinadores que tão gentilmente aceitaram fazer parte da banca de

defesa;

Em especial, ao professor Manuel Antônio de Castro, que me iniciou nas veredas do

“entre” e adestrou meus ouvidos à “escuta” e, muito mais que mestre excelente, tornou-se um

companheiro e amigo, cuja importância neste trabalho, em minha formação e em minha vida é

imensurável e indescritível;

Aos que, de um modo ou de outro, fizeram parte desta travessia;

Aos anônimos que me incitaram, sem ao menos sabermos um do outro, a auscultar

melhor a vida;

Enfim, a você que me lê e aos que estão a caminho...

Muito obrigado!

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Resumo

JUNQUEIRA, Leandro Gama. Vida, Caminho, Verdade: Poética do

Destino. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 235 fls

mimeo. Tese de Doutorado em Poética – Ciência da Literatura.

Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

Procuramos desenvolver neste trabalho a tese de que vida, caminho e verdade se

conjugam no que chamamos de poética do destino atrelando poesia e pensamento na

confluência de manifestação do real. Tomamos como ponto de partida dois dos maiores

poetas e pensadores do século XX: Carlos Drummond de Andrade e Martin Heidegger,

dialogando também com outros poetas e pensadores da prosa e da poesia. Nosso objetivo é

promover a interação entre o poetar pensante e o pensar poético e refletir sobre alguns

princípios que norteiam o acontecer do destino na poética a partir do poema “A máquina do

mundo”, de Drummond.

Nosso caminho de reflexão partiu de alguns poemas de Drummond e ensaios de

Heidegger que manifestavam o destino, vida, caminho e verdade como questões e não

conceitos. As reflexões nos conduzem a um entendimento ontopoético de destino e da

liberdade como caminho, distanciando tanto do determinismo como da predestinação. Assim,

vida, caminho e verdade giram em torno de destino num circulo poético de manifestação de

sentido trazendo à tona outras questões como: corpo, tempo, pensar, ausculta e silêncio,

renuncia e oferta, morte, memória, amor, o nada, finitude e permanência, procura e encontro,

arte e vida, sentidos e intuição, linguagem, mito e natureza, mistério e manifestação, travessia

e trajetividade, limite e não-limite, o Belo, sólido e insólito, sentido, compreensão e

significância, experienciação, aprendizagem e sabedoria.

Palavras-chave: poética do destino, A máquina do mundo, Carlos Drummond de

Andrade.

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Abstract

JUNQUEIRA, Leandro Gama. Life, Path, Truth: Poetics of Destiny.

Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2013. Thesis in

Poetics – Ciência da Literatura.

In this work, we tried to develop the thesis that life, path and truth come together in

what we call poetics of destiny, connecting poetry and thought at the confluence of the real

manifestation. We took as our starting-point two of the greatest poets and thinkers of the

twentieth century: Carlos Drummond de Andrade and Martin Heidegger, also dialoguing with

other poets and thinkers of prose and poetry. Our goal is to promote interaction between the

thinking poetize and the poetic thinking and to reflect on some principles that guide the place

of destiny in poetics from Drummond’s poem A máquina do mundo (Mathime of the world).

Our way of thinking came from some Drummond’s poems and Heidegger’s essays that

expressed destiny, life, path and truth as questions and not concepts. The reflections lead us to

an ontopoetics understanding of destiny and freedom as the path, distancing both determinism

and predestination. Thus, life, path and truth revolve around destiny in a poetic circle of sense

expression, bringing up other issues such as body, time, thinking, auscultation and silence,

resignation and offer, death, memory, love, nothing, finitude and permanence, searching and

gathering, art and life, senses and intuition, language, myth and nature, mystery and

manifestation, crossing and path, limit and no-limit, the Beautiful, solid and unusual,

meaning, significance and understanding, experiencing, learning and wisdom.

Keywords: poetc’s destiny, A máquina do mundo, Carlos Drummond de Andrade.

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“Se procurar bem, você acaba encontrando

não a explicação (duvidosa) da vida,

mas a poesia (inexplicável) da vida ”

(DRUMMOND, 1984: 95)

“A linguagem fala, o homem fala à medida que

corresponde a linguagem”

(HEIDEGGER, 2004a, p. 26.)

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Sumário

Introdução .....................................................................................................................12

1. Vida, arte e aprendizagem: destinações humanas ..............................................19

1. 1 - Arte e vida ................................................................................................23

1.1.1 - Vida: arte do destino ......................................................................27

1.1.2 - Destino na Grécia Antiga ...............................................................30

1.1.3 – Causa: a sistematização filosófica do destino ..............................34

1.1.4 – Vida e destino: necessidade e convergência .................................37

1.1.5 - Destino: entre-tempo e entre-caminho da vida ............................41

1.2 - Pensar: a vida da arte .................................................................................44

1.2.1 – O que é isto: o pensar .....................................................................46

1.2.2 – Pensar: maquinar da vida .............................................................47

1.2.3 – Pensar: auscultar o silêncio ...........................................................50

1.2.4 – Pensar: a renúncia originária .......................................................52

1.3 - Memória: vida do pensamento ..................................................................56

1.3.1 - Memória: reunião integradora do que era, é e será ....................58

1.3.2 – Memória, morte e destino ..............................................................61

1.3.3 – Memória e amor .............................................................................63

1.3.4 – Memória e nada ..............................................................................64

1.3.5 – Memória e o sensível ......................................................................65

1.3.6 – Memória: finitude e permanência ................................................66

1.4 - Pro-cura: a arte da vida .............................................................................68

1.4.1 - Pro-curar: ver, pensar e caminhar ................................................69

1.4.2 - Pro-cura, encontro e des-encontro .................................................70

1.4.3 – O caminho da pro-cura ..................................................................73

1.4.4 – Pro-cura: arte e vida ......................................................................74

1.4.5 – Vida: a arte da pro-cura ................................................................76

1. 4. 6 – Vida e morte .................................................................................78

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2. O apelo do caminho: espera do inesperado ...........................................................86

2.1 - Nas vias dos sentidos e da intuição ............................................................88

2.1.1 - Sentidos e intuição na via da modernidade ..................................89

2. 1.2 - Sentidos e intuição como medida ..................................................91

2.1.3 – Corpo: necessidade e convergência de sentidos e intuição .........95

2.2 - Veredas mitopoéticas .................................................................................97

2.2.1 - Conjunções mitopoéticas: linguagem, mito e natureza ............98

2.2.2 - Apelo mitopoético: ausculta do mistério ...................................102

2.3 - O caminho da travessia .............................................................................104

2.3.1 - O caminho no pensamento-poético-oriental ...............................108

2.3.2 - O caminho: do oriente ao ocidente ..............................................111

2.3.3 - De-morar: a travessia do caminho ..............................................115

2.3.4 - Destino: a trajetividade humana no caminho do pensamento..119

2.4 - Destino: gestualização da vida ................................................................122

2.4.1 – Gestualização como construção poética ....................................126

2.4.2 - Destinar: a-travessar a vida ........................................................129

2.4.3 – Destinação: a travessia do sentido .............................................130

2.4.4 – Caminho, travessia e aprendizagem ..........................................134

2.5 - Caminho para a verdade ........................................................................137

2.5.1 - Caminho: o palmilhar do sentido ..............................................140

2.5.2 - Caminhar: a luta pelo sentido ....................................................142

2.5.3 - Caminho: o rasgo da diferença ..................................................144

2.5.4 - Metá-hodós: caminho originário ...............................................146

3. Verdade: o descortinar misterioso da vida ........................................................150

3.1 - Verdade e linguagem ..............................................................................152

3.1.1 - Verdade e angústia .....................................................................153

3.1.2 – A rendição da verdade à não-verdade .....................................157

3.1.3 – (Co-) Respondendo ao apelo do inesperado ............................159

3.1.4 – Pedra: o marco da existência humana .....................................163

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3.2 - Verdade: do originário ao racionalismo ................................................167

3.2.1 – A visão mecanicista da Modernidade.........................................168

3.2.2 – O limiar da verdade na Grécia Antiga: o platonismo ..............172

3.2.3 – A entificação da verdade na Idade Média .................................174

3.2.4 – A sistematização da verdade na Modernidade .........................176

3. 3 - Verdade e liberdade ................................................................................180

3. 3.1 – Liberdade como habitar originariamente ................................181

3. 3.2 – Liberdade como possibilidade e disponibilidade .....................182

3. 3. 3 – Liberdade como destinação ......................................................184

3. 3. 3 – Liberdade e limite ......................................................................186

3. 4 – Verdade: manifestação ontofânica ........................................................188

3. 4. 1 – Verdade e manifestação .............................................................188

3. 4. 2 – Verdade e manipulação .............................................................190

3. 4. 3 – Verdade e o Belo ........................................................................194

3. 4. 4 – Verdade e ontologia ...................................................................195

3. 5 - A compreensão da verdade .....................................................................197

3. 5. 1 - Compreensão: tensão entre sólido e insólito ............................199

3. 5. 2 - Compreensão: discurso e parábola ...........................................201

3. 5. 3 - Compreensão: ausculta do silêncio ...........................................202

3. 5. 4 - Compreensão e significância ......................................................204

3. 6 - Verdade da compreensão ........................................................................206

3. 6. 1 - A incompreensão.........................................................................209

3. 6. 2 - A compreensão ideológica ..........................................................211

3. 6. 3 - A compreensão conceitual ..........................................................215

3. 6. 4 - A compreensão convencional .....................................................217

3. 6. 5 - A compreensão poético-dialogal ................................................219

3. 6. 6 - A verdade: a ausculta do silêncio ...............................................223

4. Caminho, Verdade, Vida ......................................................................................229

5. Referências Bibliográficas ...................................................................................232

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Introdução

Poética do destino é poetização da vida como caminho e verdade. A questão aqui colocada

não é a poética de um determinado autor, mas a do destino; pelo simples fato de toda poética ser

primeira e originariamente poética deste. Esta convoca a fala do poeta instaurando a manifestação

inaugural poético-apropriante no acontecer poeta.

Poeta não é, acontece.

Partindo da ideia de que poética não é a produção de um poeta ou delimitação técnica de

seu trabalho, a entendemos como o operar da verdade como caminho e vida. Caminho e vida se

dizem também procura e sentido como desdobramentos do destino.

A arte é o núcleo seminal e disseminador do acontecimento do destino, por isso pensamos a

poética do destino.

Poética é a manifestação da ação da poiesis, e esta é a essência do agir como todo passar do

não ser ao ser, isto diz o mesmo que destino. Poética e destino dizem o mesmo sem ser a mesma

coisa. Poética é o destinar humano se dando e doando como linguagem de modo que possa abrir

caminho para o acontecimento da verdade na vida. Todo poema é, de certo modo, um desdobrar

do acontecimento do destino como vida, caminho e verdade. Assim sendo, escolhemos como

provocação das questões apresentadas na tese intitulada Vida, caminho e verdade: poética do

destino o poema A máquina do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, originalmente

publicado no livro Claro enigma. Foco de muitos comentários e teses relativas à estética de seu

autor e nuclear da poética drummondiana, a análise do poema é frequente tido como eixo

estruturador da escrita do poeta, sua leitura se faz quase sempre de modo comparativo com dois

outros bem conhecidos textos: A Divina Comédia e Os Lusíadas. A tese comum, além das que

assinalam semelhanças temáticas e formais, é a de que o texto de Drummond se diferencia dos

outros dois sobretudo por representar a tônica da “poesia mentada” de um eu isomorficamente

identificado com o autor.

As interpretações giram, a princípio, em torno do entendimento da recusa do caminheiro de

receber a revelação gratuita da máquina por ser considerada uma doação metafísica “da natureza

mítica das coisas”, pertencente ao plano transcendente e, até mesmo, extraterreno. Tal

pensamento legitima a oposição entre o aprendizado racional e a aprendizagem mitopoética, que

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reafirma a posição racionalista do conhecimento moderno, rejeitando o que não se origina do

“seu próprio ser desenganado” em prol da autonomia do pensamento cogitante. O que ratifica

uma subjetividade especulativa racional e revela o conúbio do sujeito cogitante com o objeto

cogitado, supostamente plasmado nas imagens simbólicas debuxadas no poema, autenticando

certa simbiose entre o universo interior e o exterior do sujeito. Desse modo, a poética é

racionalizada e o trabalho poético é um operar ideológico na esteira lógica-metafísica.

Entretanto, o drama existencial que se manifesta no poema simula um jogo de procura e

recusa de certo conhecimento como um impasse epistemológico do humanismo moderno, no

dilema que se formula na pergunta: “até onde (quanto) a mente humana pode conhecer?”.

O título do poema, aparentemente sem nenhuma novidade, ensejando uma conotação

realista que supõe permear todo o texto, nos surpreende na dupla possibilidade de sentido

abrindo-se como algo extremamente ambíguo fazendo referência ora a uma visão mecanicista do

mundo ora à própria dinâmica de acontecer do mundo. Ambas as visões assinalam o ponto de

partida para caminhos radicalmente opostos, mas que evidentemente contínuo se tangenciam.

Surge, então, a questão do destino: o que é e como se dá o destino humano?

Neste trabalho procuramos intermediar a aproximação entre a arte e o pensamento,

sobretudo do século XX, em torno da poética. Nosso objetivo é promover a interação entre o

poetar pensante e o pensar poético e refletir sobre alguns princípios que norteiam o acontecer

poético-apropriante do destino na arte. As reflexões em torno do pensamento em confronto com a

poesia nos conduzem ao entendimento de que a poesia e pensamento não nascem do homem, mas

são modos como a linguagem se manifesta nele. Isto é, pensamento e poesia são frutos da

ausculta do homem, que só manifesta o que lhe advém nessa ausculta; o que se manifesta é

destino. Por esse motivo nos debruçamos sobre a questão da escuta fazendo uma escuta da

questão. Nosso trabalho é uma tentativa de desvincular a linguagem, a poesia e o pensamento do

esquema lógico-metafísico por meio do qual se afirma a verdade de uma proposição em

decorrência de sua ligação com outras já reconhecidas como verdadeiras, deixando manifestar a

tensão arte e destino. Nosso caminho é o do diá-logo, entendido como o embate de duas (ou

mais) falas do logos, principalmente entre a fala e o silêncio.

Conjugando poesia e pensamento como dois modos de eclosão da linguagem na

proximidade do humano, palmilhamos o des-encobrimento do sentido em cada imagem

engendrada e manifesta nos poemas e ensaios. Falamos de imagem e não de ideias, proposições,

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símbolos ou alegorias porque nosso foco não é fazer uma leitura analítica ou estética, que vê o

corpus como um objeto, antes nos colocamos à ausculta da linguagem e procuramos com ela

dialogar, por esse motivo, não há corpus específico, o que há é ausculta do destino em tensão

com e na arte; desse modo falamos de procura em vez de demonstração. A procura não resulta da

decisão do sujeito, tampouco é por ele criada, antes é um apelo para que o homem se abra em

escuta e abrindo-se desperte para o acontecimento da Verdade e se lance nas veredas do des-

velamento de sua própria existência.

No pensamento poético, a arte realiza e manifesta destino como vida, caminho e verdade

intensificando a experienciação da aprendizagem e da sabedoria dando a oportunidade ao homem

de experimentar o acontecimento do extraordinário no mais ordinário de sua existência. Assim,

originariamente entendida, a arte manifesta o destino e se estabelece como questão, abolindo toda

e qualquer forma de representação. Pensamos então destino como questões e não como conceitos

emergentes nas obras em estudo.

O modo de estruturar nossa escuta procurou acompanhar a manifestação de destino como

linguagem nas obras dos diversos poetas (do verso e da prosa) e pensadores. Como a proposta é

um diálogo, não queríamos que nossa fala fosse um corpo estranho, por esse motivo nosso

pensamento se moveu em círculo procurando fazer uma experienciação hermenêutica e não

viciosa da linguagem. Desse modo, pro-curamos deixar que a complexidade da obra dos autores

se expusesse cada vez mais, acompanhando o embate das falas com o cuidado de não provocar

intencional e mecanicamente o fenômeno, nem de algum modo viciá-lo, permitindo que ele se

des-velasse na própria tensão que os envolve. Sendo assim, grafamos muitas palavras com hífen

entre prefixos e radicais com a preocupação de manter o vigor tensional do entre que intercambia

a pro-dução de sentido possibilitando uma leitura além da linguística ou da lexicologia,

apontando para a gênese originária de cada palavra como fenômeno de manifestação ambígua e

ambivalente do sentido.

A delimitação da tese instaurada no título-tema: Vida, caminho e verdade: poética do

destino estabelece-se na abertura e convocação de várias vozes da poesia e do pensamento da

Antiguidade clássica até a contemporaneidade fundamentada na ideia de que estamos vivendo o

fim de um ciclo e início de outro, conforme afirma Emmanuel Carneiro Leão:

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A história da humanidade se move em ciclos de vinte e cinco séculos. A cada dois

milênios e meio se fecha um ciclo, se atinge e se instala um fim. É o instante propício

para se transformar e ser mais livremente o que somos. Pois tudo se torna fluído e nada

se fixa. Os velhos padrões se esboroaram e os novos parâmetros ainda não se instalaram.

Aparecem, então, mais claras as limitações da razão e se fazem mais sensíveis as perdas

da racionalidade. O mundo todo entra em transição e sente a necessidade de passar.

(LEÃO: 2009, p. 24 - 25.)

Trilhamos as vias do silêncio e da escuta na linguagem e os inter-câmbios entre poesia e

pensamento. Nesses inter-câmbios algumas questões surgiram e se retiraram para depois

ressurgirem na urdidura de vida, caminho e verdade como imagens-questões complexas e muito

recorrentes na arte - enigmas do destino que assinalam o des-encobrimento do homem como ser-

em-travessia.

As questões aqui colocadas se cruzam e entrecruzam a todo o instante, assim como no

poema No meio do caminho, de Drummond, os versos sucessivos não são meras repetições, mas

retomadas e recolocações das questões, aqui também se faz o mesmo. Frases, afirmações e

citações podem se repetir em contextos diversos estabelecendo novas relações de sentido, sem

com isso se pretender ser redundante, mesmo correndo o risco de sê-lo. Muitas questões vão ser

retomadas ao longo do texto, entretanto procuramos não apenas repetir algo já dito, mas ampliar

as questões em contextos e falas diferenciados. Desse modo, as questões desenvolvidas na tese

vão se desdobrando ao longo dos capítulos de modo interrelacional, muitas vezes uma questão

enunciada num capítulo vai ser ampliada e desenvolvida nos seguintes, sendo recolocadas

continuamente em outros.

Escolhemos poemas de Carlos Drummond de Andrade muito conhecidos com propósito de

pensar a possibilidade de se fazer uma nova leitura deles pro-curando no que já foi pensado

(desvelado) o que ainda permanece impensado (velado).

Não é preciso fazer uma vasta leitura dos poemas de Drummond neste trabalho para se

verificar a riqueza poética que destilam. Todos os poemas, fazendo coro com Heidegger, são

manifestações de um único poema, e acrescentamos, do destino. Um poema põe questões que se

encontram nos diversos em que aparecem. Assim sendo, para o diálogo entre poesia e

pensamento, partimos da identificação de três movimentos poéticos nucleares no texto A máquina

do mundo que abrem as questões. Estes movimentos não correspondem exatamente a um

quantitativo de versos e/ou delimitações de estrofes, antes se manifestam caleidoscopicamente

em cada palavra, entretanto, podemos percebê-los em sintaxes e arranjos diversos, por isso

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recorremos ora a um ora a outro desses arranjos, ficando aberta a possibilidade de pensá-los de

outro modo ou disposição.

O primeiro desses movimentos faz eclodir questões referentes à vida dialogando,

sobretudo, com o poema A máquina do mundo e textos da obra de Heidegger. Assim, no primeiro

capítulo da tese, intitulado Vida, arte e aprendizagem, trazemos a questão da vida relacionada a

seus vários inter-cursos. Primeiramente exploramos a relação arte e vida, logo após pensamos a

referência vida-arte-destino, passando pela compreensão grega arcaica de destino, por sua

sistematização filosófica que tenta apreender e conceituar o devir vital. Em seguida refletimos

sobre a tensão expressa nas questões: vida e destino, necessidade e convergência, entre-tempo e

entre-caminho. À frente, colocamos a questão do pensamento e sua relação com a vida e a arte e

o maquinar imanente e inerente à vida que acontece por meio da ausculta do silêncio e da

renúncia originária relacionado principalmente aos poemas A máquina do mundo e Poesia, de

Drummond. O terceiro tópico dedicamos a pensar a memória como vida do pensamento

estabelecendo-se como reunião integradora do que é, foi e será na relação com a morte, destino,

amor, o nada e o sensível, além da tensão finitude e permanência tomando como ponto de partida

o diálogo com os poemas A máquina do mundo, Memória e Ausência. No último tópico da

primeira parte refletimos sobre a questão da pro-cura a partir do diálogo com os poemas A

máquina do mundo, Lembrete e A palavra mágica, seguindo itinerário do caminhar, ver e pensar

na tensão pro-cura e encontro, e arte e vida. Por fim, deixamos vir à presença a tensão vida e

morte a partir dos poemas Os mortos de sobrecasaca, Vida depois da vida e Morto vivendo.

O segundo capítulo corresponde à provocação destinada do caminho como espera do

inesperado num movimento de abertura que toma o homem dando sentido a sua caminhada.

Segue-se trilhando o caminho nas vias dos sentidos e intuição pensando o corpo como

necessidade e convergência, palmilhando seu movimento no poema A máquina do mundo em

tensão com outras falas da poesia e do pensamento, sobretudo mítico; em seguida, lançamo-nos

ao apelo das veredas mitopoéticas na ausculta do mistério entre linguagem, mito e natureza.

Propusemo-nos também a pensar o caminho da travessia seguindo o rastro do poema No meio do

caminho, dialogando com ensaios de Heidegger na obra Caminho para a linguagem e Grande

sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Daí surge o fazer a travessia do pensamento-poético-

oriental nas trilhas do Tao, em poemas de Lao Tsé e Chuang Tzu, perfazendo o caminho do

oriente ao ocidente tendo ainda como guia o poema No meio do caminho, entendendo a

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trajetividade humana como realização poética do destino. É pensada a caminhada como

construção contínua e inconclusa da morada humana no mundo em face da tensão tempo e

memória e, em seguida, o sentido de destino como gestualização da vida e esta como

manifestação poética, ou seja, arte, nas sendas do poema Mãos dadas, O lutador e Grande

sertão: veredas colocando a ação do destino na vida humana como um destinar ou destinação,

sendo este o modo como o homem atravessa a vida fazendo seu meta-hodós, transvertendo o

sentido em aprendizagem e caminho para a verdade. Colocamos, ainda, neste capítulo as questões

evocadas pelas palavras-guia no grego: logos, physis, aletheia, techne, meta-hodós, dzoion e

télos, nas suas relações com o acontecimento de destino na arte.

O terceiro capítulo da tese se destina a pensar a verdade como o descortinar do mistério da

vida em tensão com a linguagem, passando pela angústia como provocação à abertura para a

compreensão do destino em face do abismo do nada. A caminhada é vista como procura na

correspondência ao apelo poético do inesperado. Torna-se necessário pensar por alto as mudanças

de sentido de verdade, do sentido originário da palavra grega aletheia à entificação da metafísica

racionalista que transubstanciou sistematicamente verdade em orthotes, adaequatio e veritas,

provocadas pela sistematização do pensamento promovidos sobretudo pelo platonismo e

aristotelismo, na Antiguidade, Patrística e Escolástica, na Idade Média e demais movimentos

racionalistas da Idade Moderna. Pensamos também a tensão entre verdade e liberdade nos modos

de manifestação desta como habitação, possibilidade e disponibilidade, destinação e limite,

trilhando seu acontecer poético no poema Verdade, de Drummond, que coloca questões da

verdade em tensão com a manipulação, o Belo, a ontologia e a compreensão. Nos últimos tópicos

deste capítulo, pensamos os modos de acontecimento da compreensão, primeiramente como

tensão entre sólito e insólito tecendo a diferença entre compreensão e significância, em seguida,

passamos à incompreensão, compreensão ideológica, conceitual, convencional e poético-dialogal,

guiados pela poesia (de) Operário no mar, chegando à verdade como acontecimento poético-

apropriante do destino e ausculta originária do silêncio nas vias do sentido/caminho da vida.

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1. Vida, arte e aprendizagem: destinações humanas

Todo questionamento é um caminhar a partir do que já se sabe rumo ao que ainda não se

sabe. Ora, o que não sabemos sempre existirá, por isso o caminhar não pode ser entificado como

um caminho do saber. Caminho, como essencialização do caminhar, é vida, não somente ou

exclusivamente enquanto bios, modo de vida, mas e principalmente como um movimento da

própria zoé, força vital, que sempre se recria e concria.

O questionamento acontece quando o homem se abre para o diálogo movendo-se nas

questões da vida enquanto um caminhar rumo ao desvelamento da verdade que desde sempre o

move. O caminhar é a escuta de um apelo, um ob-audire que destina o homem e o põe rumo ao

seu destino, que é caminho que se caminha sem querer acertado, independente da vontade

humana.

Como escuta, destino não é produzido pelo homem e nem o produz ou determina, por isso,

mesmo que dele se queira fugir, aí é que mais ele se realiza como um destinar-se trajetivamente,

isto se chama essencialmente desvelamento.

Destino é a destinação do homem enquanto sendo, na vigência de seu ser como um

desvelar-se em um modo de ser: o que é, vigendo e se manifestando no como é e não é: vida. No

destinar-se se dá uma aprendizagem experiencial a que se pode chamar vivência. Esta assinala a

processualização do próprio viver no qual se manifesta a sensação de estar vivendo, por isso é um

saber experiencial que só se adquire no mover cotidiano da vida. Um bom exemplo é o do

personagem de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa: Riobaldo que narra e re-narra

sua história re-vivendo-a no desejo de re-descobrir algum sentido vagante, encoberto entre-

vivências. Da vivência, diz ele: “Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe.

Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.” (ROSA: 2001, p. 601). O recorrente “não” na

frase é de importância essencial para o sentido: “não é” e “não se sabe”, são expressões que

poderiam ser estruturadas do seguinte modo: “não-ser” e “não-saber”. O “não” aqui não é

simplesmente negação, mas nomeia o-que-ainda-não-se-é. Viver é aprender-a-viver.

Aprendizagem, arte e vida estão intimamente ligadas. Viver é o perigo da aprendizagem, e este é

o percurso da arte.

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Ao longo deste trabalho, a palavra “perigoso” será relacionada com os sentidos de limite,

percurso, perito, experienciação1, correr risco e caminhar, dentre outras, donde emerge a imagem

do caminho. “Viver é muito perigoso” também poderia ser dito: Viver ou a vida tem muitos

percursos, muitos caminhos ou muitas experienciações, muitas aprendizagens. Vivemos rumo a

o-que-ainda-não-vivemos para saber o-que-ainda-não-sabemos. Não-viver e não-saber é o que

move todo viver e saber humanos. Vivendo o homem dialoga com o não-viver e sabendo, com o

não-saber. Essa ação é nomeada aprender-a-viver ou vivência e é o diálogo mais original que se

pode ter. Aprendizagem é, então, diálogo no qual aprender-a-viver é que é o viver, dizendo o

mesmo de outra forma: aprender se dá no aprendendo e viver, no vivendo.

Na ausculta da palavra vivência depreendemos o radical “viv-” e o sufixo “-ência”

formador de substantivos abstratos. Pensando de modo linguístico, diria que vivência é um

substantivo abstrato que designa a ação substantivada de um sujeito, podendo sugerir a expressão

semântica de: aquele (sujeito) que tem vivência. Vivência seria um predicado subordinado a um

sujeito de modo que só pudesse existir por ele produzido, como um atributo desse sujeito.

Entretanto pode-se pensar vivência poeticamente, fora desse âmbito conceitual e ideológico,

como o sendo da vida, mas que não se dá por si só como um ente, senão numa conjunção

disjuntiva com outros sendo da realidade que o acolhe, conservando a diferença de ambos.

É fato que vivência para ter sentido precisa se referir a algo, nomeia, então, a tensão entre o

homem e a vida. Aprender-a-viver se dá como diálogo entre homem e vida sem, contudo, se

pensar em relação sujeito e objeto, mas como o que está entregue e ao que se está entregue. Desse

diálogo o destino eclode como sentido. Aprender-a-viver ou vivência diz o mesmo que destinar-

se, ou seja, deixar o destino eclodir como sentido por meio do diálogo entre homem e vida.

Esse diálogo entre o homem e vida se dá por meio da empatia. A palavra empatia forma-se

pelo sufixo em-, que nos remete ao sentido de aproximar-se de algo ou colocar-se em direção a

ele, e da palavra grega páthos, que, num sentido genérico, significa sofrimento ou apiedar-se do

sofrimento de outrem se colocando em seu lugar.

Esse colocar-se no lugar de outro corresponde à abertura original, não simplesmente como

intersubjetividade, mas como experienciação do real a partir do caminhar do outro.

1 Usaremos diferenciadamente as palavras experiência e experienciação tendo em mente que a primeira nomeia

substantivamente algo que se viveu ou vive e sobre o qual se formou um conceito ou significado, a segunda, uma

vivência em aberto cujo sentido se faz e refaz verbal e concriativamente, se reinaugurando a cada leitura. Seguindo a

mesma orientação, de igual modo, fazemos a disntinção entre aprender e aprendizagem, conhecimento/informação e

sabedoria, dentre outros.

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O páthos congrega o envolvimento de todas as forças vitais e psíquicas do homem

encaminhado ao operar da verdade enquanto um acontecimento experiencial. Nomeia a

experienciação mais radical que o ser humano pode fazer, pois ela se dá em suas próprias

entranhas, como um deixar-se tomar pela ausculta da Moira, do destino.

O homem trilha este caminho, ex-perienciação, quando se deixa envolver e conduzir pela

ausculta da realidade que se dá na linguagem. Páthos é a interpretação mais profunda da

existência humana na qual os conceitos, as ideologias e as convenções se esvaziam para dar lugar

à eclosão do sentido. Este nem sempre é algo claro, por vezes é muito mais enigma, um “Claro

enigma”, mas não um enigma claro. O sentido conserva a força do paradoxal, do incompreensível

logicamente, mas entranhado e estranhado no humano. Estranhamento cunha a sensação de

admiração, insólito, espanto e pasmo diante de algo desconhecido ou inesperado, enfim, novo.

Surge, porém, como um acontecimento apropriador do homem e apelador de sua ausculta

denominado pelos gregos taumadzein, o espanto ou entusiasmo originário do pensamento e da

poesia.

Taumadzein se tensiona com o páthos. Da tensão entre ambos, sentido vem à luz, é

partejado. Embora partho não seja cognato de páthos, há uma correlação de sentido entre ambos.

Páthos é também a dor do partho, de dar à luz ou conceber. Empatia é o acolhimento do páthos

partejante. Páthos vem do verbo grego paschein, que dá o sentido de ser afetado, preso ou

tomado por algo que nos vem ao encontro - taumadzein. Empatia assinala o deixar que algo nos

venha ao encontro de modo que nos tome por completo, num acolhimento essencial do apelo

íntimo do inesperado, do que espanta ou entusiasma (in-theos): o sagrado. O apelo íntimo é uma

voz que nos convoca a sua ausculta. Então o taumadzein não é a causa do páthos, mas origem

como apelo íntimo que, por sua vez, no páthos parteja a ausculta. Taumadzein e páthos

constituem a dobra que dá vigor a empatia. Essa dobra é assinalada vigorosamente no primeiro

movimento do poema A máquina do mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Abramo-nos à

ausculta de alguns de seus versos:

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

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lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

A máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.

(ANDRADE: 2007, p. 301).

O fragmento acima situa um caminheiro numa estrada de Minas, pedregosa. O poema

começa no “meio do caminho” pedregoso. As pedras guardam o mistério das coisas e, no

guardar, fecham-se como velamento da presença do ser-pedra. As pedras são o próprio mistério

que se faz caminho e barreira, ao mesmo tempo. Elas dificultam e desafiam o caminhar do

caminheiro. O caminho é o caminhar do pensamento que se lança ao desafio, as pedras são as

questões que assentam em seu develo de mundo, o velar da terra. Nunca se pode ver uma pedra

de todos os ângulos nem do mesmo modo sem o auxilio de algum equipamento tecnológico e,

mesmo por meio desse, a pedra, para ser vista de tal modo, terá que ser tirada de seu repouso de

pedra, terá de ser retirada do caminho. A pedra é o mistério que desafia o pensar. Não são

problemas, simplesmente, ou impedimentos, mas barreiras. Barreira é o que barra e, no barrar,

guarda, assegura a presença de algo contido. Mas a pedra como barreira também se faz caminho.

Caminhar sobre pedras é estar sobre o sólito obstáculo. O caminhar é uma doação da vida como

possibilidade. Aqui não se trata simplesmente de andar como uma habilidade motora, mas de

uma experienciação existencial frente ao mistério da vida como pensar.

As pedras são imagens poéticas do mistério e, como tal, nos remetem à arte como

manifestação de um aceno, um apelo, que tem sua salvaguarda no silêncio. Nas pedras a vida se

manifesta poeticamente. Ora, manifestar poético e arte dizem o mesmo. Vida, arte e

aprendizagem se dão no poema A máquina do mundo como o páthos e o taumadzein do

caminheiro no corriqueiro caminhar por uma estrada como revelação de uma verdade existencial.

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Aqui se coloca a primeira das três questões apontadas no poema A máquina do mundo: arte e

vida.

1.1 - Arte e vida

Quando se propõe pensar arte e vida é impossível não deixar conduzir o pensamento ao

intenso e comum questionamento quanto à relação entre ambos por parte de diversos críticos, e,

geralmente, se antevê interação, imbricação e complementaridade. A colocação corrente de arte e

vida direciona a questão como aquela sendo uma representação desta, assim os vieses das teorias

e críticas são fartos, começando pela interpretação da mimesis como imitação se lançando aos

mais recentes conceitos de arte abstrata ou insólita. Em diversas colocações sobre essa questão é

comum a pergunta: “A arte imita a vida ou a vida imita a arte?”. Tal atitude revela o fluxo intenso

de manifestação de sentido de vida e de arte, porém não consegue desviar-se da imbricação de

ambas, como se a relação fosse mesmo necessária. Assim entendida, a arte é um duplo da vida

como reprodução desta, elimina-se a diferença e se estabelece a proposição “arte é vida”, no

sentido de igualdade entre ambas.

Entretanto, se pensarmos arte e vida como uma referência, conservamos a diferença entre

elas de modo que se preserve sua tensão. Arte e vida são dobras da realidade que se desdobram

como vida e como arte, como caminhar e como caminho. Arte e vida e vida e arte dizem o

mesmo, não se deve subordinar uma à outra, falam do modo de uma atravessar a outra. A vida

atravessada pela arte é o mesmo que uma vida iniciada nos mistérios da própria vida. O que

parece ambíguo pode ser compreendido quando se pensa vida em seu originário. A palavra vida,

em português, origina-se tanto de bios quanto de zoé, ambas palavras gregas. A diferença entre

elas se dá pelo fato de que bios é, basicamente, o vigorar de cada sendo, o modo como ele se dá

no real, ou seja, como ele se manifesta. Bios é a vida manifesta na cotidianeidade ordinária. Já a

zoé é força vital que vigora em cada bios, como o vigor próprio de manifestação. Por esse

motivo, caminhar, no poema, não é o mesmo que andar. Caminhar é inaugurar o caminho e fazer

dele uma novidade como caminhada originária e reveladora, é deixar com que o mistério do

caminho conceda ritmos ao caminhar, como uma dança que surge do próprio dançar como

doação de seu próprio tempo de manifestação (kairós) e não se repete nunca mais.

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Toda manifestação pode ser, de algum ou de vários modos, dimensionada, mas o vigor do

manifestar não. A zoé é o vazio, o silêncio, o nada que move todo o manifestar e, ao mesmo

tempo, o caminhar.

E arte, o que é? Já fizem e fazem diversas historiografias da arte por várias teorias e

correntes críticas. Em cada uma delas o que é arte aparece do modo próprio e eficaz para se

adequar e legitimar os conceitos propostos. Assim, é redundante e desnecessário acrescentar aqui

mais um conceito de arte. Entretanto não podemos deixar de fora uma aproximação desta

questão.

Como dialogar com a essência da arte sem determiná-la, caindo em conceituações

abstratas? É claro que os conceitos que hoje existem sobre arte são importantes e válidos para seu

estudo, mas não dão conta da totalidade de seu vigor manifestante. Além do mais, como

desvincular o seu manifestar das tendências teóricas altamente atributivas e classificatórias? “O

que é arte” é a pedra no sapato! Ou, antes, no caminho!

Essas questões são colocadas por Martin Heidegger na obra intitulada O originário da obra

de arte, nela, a arte é pensada a partir do acontecer poético-apropriante da verdade. Como o título

insinua, o que se quer pôr como questão não é a arte como matéria ou forma nos vieses estético-

formais, pragmáticos ou essencialistas, mas em seu sentido originário, quer dizer, a partir de onde

e como vigora a arte. Nesse sentido, a arte é a manifestação da realidade como linguagem.

Como um modo de ser, a arte tem suas particularidades que resguardam sua diferença da

vida, como uma outra manifestação do real. O que é arte deve ser compreendido não através de

conceitos ou conceituações abstratas nem mediante as concretudes objetivadas, mas a partir de

onde a arte vigora em seu próprio, isto é, na obra de arte, pois esta eclode circularmente como

manifestação da arte e, nesse eclodir, a revela, no dizer de Heidegger: “O que é a arte deve-se

deixar depreender da obra. Somente podemos experienciar o que a obra é a partir da essência da

arte.” (HEIDEGGER: 2010, § 4). A arte é o acontecer poético-apropriante do real, nela vigora

como essência a poiesis, esta nomeia o agir como manifestação fundante originária da physis e da

aletheia.

A arte é, como o pôr-em-obra da verdade, poiesis. Não somente o criar da obra é

poietizante, mas também, do mesmo modo, o desvelar da obra é poietizante, (...)

A essência da arte é a poiesis. Porém, a essência da poiesis é a fundação da verdade. O

fundar compreendemo-lo aqui em um triplo sentido: fundar como doar, fundar como

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fundamentar, fundar como principiar. Contudo, a fundação é real apenas no desvelo.

Assim a cada modo do fundar corresponde um do desvelar.

(HEIDEGGER: 2010, § 171 - 172)

O desvelar da obra não é uma objetivação de significados que se correlacionam a aspectos

da vida, pelo contrário, é um desocultar do sentido como doação de tudo o que se oculta, por isso

é não cessar vir-a-ser. Na historiografia da arte, o fundar foi visto ora como fundamentar ora

como principiar, isto é, norteou a busca do fundamento e da origem da arte como objetivação e

subjetivação da mesma. Relacionando arte e vida, o fundamento da arte seria a vida e sua origem

seria o homem como agente da produção artística, esses são os caminhos mais comuns para se

pensar a arte.

Quando Heidegger propõe pensar o originário da obra de arte coloca em questão a arte

como uma manifestação originária da physis. Entretanto, não se pode falar de manifestação sem

pensar em aletheia, traduzida para o português como verdade. O problema é que o sentido

corrente de verdade nos advém do latim veritas, então a tradução deixa esquecido o caminho

(hodós) pelo qual o que se manifesta vem à presença. E, mesmo o que nos vêm à presença é

entificado como um manifesto cabal. Daí a ilusão de perscrutar o ente com a certeza de que se o

compreenderá definitivamente explicitando sua verdade. Acontece que verdade e explícito não

são sinônimos e, na verdade, nem mesmo se pode afirmar que haja legitimamente sinônimos, se o

fizermos, já nos movemos no engano gerado pelo esquecimento ou atropelamento das diferenças.

“Arte é o pôr-se em obra da verdade”. O que isto quer dizer?

O que acontece aqui? O que está na obra em obra? O quadro de van Gogh é a abertura

daquilo que o utensílio, o par de sapatos do camponês, é em verdade. Este ente emerge

para o desvelamento do seu ser. Os gregos nomearam “aletheia” o desvelamento do

ente. Nós dizemos verdade e pensamos muito pouco em relação a esta palavra. Na obra

está em obra um acontecer da verdade, se aqui acontece uma abertura inaugurante do

ente naquilo que ele é e no como ele é.

Na obra de arte, a verdade do ente pôs-se em obra. “Pôr” diz aqui: trazer para o estar.

Um ente, um par de sapatos de camponês, vem, para o estar na luz do seu ser, na obra. O

ser do ente vem ao constante do seu brilhar.

Então a essência da arte seria esta: O pôr-se em obra da verdade do ente. Mas até agora a

arte só tinha a ver com o belo e a beleza e não com a verdade. Aquelas artes que pro-

duzem tais obras nomeiam-se Belas-artes em oposição às artes manuais, que fabricam

utensílios. Nas Belas-artes não é a arte que é bela, mas se chamam assim porque elas

pro-duzem o belo. Ao contrário, a verdade pertence à lógica. Porém, a beleza está

reservada à Estética.

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Ou com a proposição: a arte é o pôr-se em obra da verdade dever-se-ia reviver aquela

opinião, felizmente superada, de que a arte é uma imitação e cópia do real vigente? A

reprodução do existente exige, por sinal, a conformidade com o ente, a adequação a este.

Adaequatio [adequação] diz a Idade Média; homoiosis [semelhança] já diz Aristóteles.

Conformidade com o ente vale há muito como a essência da verdade. Mas então

achamos que aquele quadro de van Gogh copia um par existente de sapatos de camponês

e, desse modo, é uma obra porque consegue êxito nisso? Achamos que o quadro retira do

real vigente uma cópia e a transforma em um produto da produção ... artística? De modo

algum.

Pois bem, na obra não se trata de uma reprodução de cada ente singular existente. Muito

pelo contrário, trata-se da reprodução da essência geral das coisas. Mas onde está e como

é então esta essência geral, para que as obras de arte se conformem com ela? Com que

essência de que coisa deve então um templo grego conformar-se? Quem poderia afirmar

o impossível: que a idéia de templo estaria apresentada na obra arquitetônica? E,

contudo, em tal obra, caso seja uma obra, a verdade está posta em obra. Ou pensemos no

hino de Hölderlin “O Reno”. O que aqui foi dado de antemão ao poeta e como lhe foi

dado para que então com isso pudesse reproduzi-lo no poema? Mesmo que, no caso

deste hino e de poemas semelhantes, recusemos manifestamente a idéia de uma relação

de cópia entre algo real já vigente e a obra de arte, todavia, através de uma obra como o

poema abaixo, de C.F. Meyers, “A fonte romana”, confirma-se aparentemente, de uma

maneira melhor, aquela opinião de que a obra copia algo.

A fonte romana

Ergue-se o jato luminoso e caindo

Enche a redonda concha de mármore

Que encobrindo-se transborda

No fundo de uma segunda taça

A segunda doa à terceira,

Ondulante, seu fluxo

E cada uma ao mesmo tempo

Acolhe e repassa, e corre e aquieta-se.

Aqui não está retratada poeticamente uma fonte de fato existente nem está reapresentada

a essência geral de uma fonte romana. Porém, a verdade está posta em obra. Que

verdade acontece na obra? Pode a verdade acontecer e assim ser histórica? Verdade,

assim se diz, é algo atemporal e supra-temporal. (HEIDEGGER: 2010, § 53 - 58)

O caminhar do caminheiro enquanto experienciação da vida é o próprio fundar da verdade

enquanto arte. A verdade posta em obra como fundar é a “abertura inaugurante do ente naquilo

que ele é e no como ele é” de modo que “o ser do ente vem ao constante de seu brilhar”. Deixar o

ente vigorar sendo o que ele é e como ele é, sem interferências metodológicas, funda a poiesis da

vida.

No caminhar do caminheiro a arte atravessa a vida faz irromper o extraordinário como

verdade inaugural, esta jamais se deixa ser apreendida, deduzida ou comprovada a partir do já

existente, por isso ela é fundar sem fundamentar. A verdade inaugurada na obra de arte não tem

fundamento, mas eclode como desvelo que funda a partir da proveniência de sua essência, isto é,

da poiesis, como vida, caminho e verdade.

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Quando a vida atravessa a arte dá-se o apelo mais originário e íntimo ao ser humano: o

questionamento. Questionar é um colocar-se no e a caminho que se torna a pro-cura que envolve

o ser humano e o lança em sua trajetividade, não como um simples caminhar num trajeto, mas um

transformar-se na via que se caminha. É caminho e caminheiro tornarem-se um e o mesmo.

Trajetividade é a entrega total ao caminho como experienciação poético-apropriante da vida e da

verdade. Trajetividade e questionamento dizem o mesmo como requisição da realidade.

O questionamento é todo empenho que se dá como abertura de um caminho como

palmilhar a estrada pedregosa da vida. Auscultar o apelo da compreensão do caminho pro-voca a

abertura e nesta o sentido se dá como desencobrimento e, assim, como caminhar originário.

Caminho diz a própria realidade como essência do que se autorrealiza incessantemente, a isto os

gregos denominaram physis. Arte é o que a physis não realiza por si só, mas no e através do agir

humano, do caminhar da vida. O extraordinário acontecer como doação da poiesis enquanto

fundar da arte no pôr-se em obra da verdade. Nesse sentido, arte nomeia o dar sentido à

caminhada, à vida. O círculo não se resolve, vida e arte convergem numa de-pendência necessária

inaugurando o caminhar, em outras palavras, o destino.

1.1.1 - Vida: arte do destino

No poema em questão, A máquina do mundo, a ideia de transposição da pedra/barreira é

uma ilusão. As pedras não podem ser simplesmente transpostas, a transposição da pedra é um

deixar-para-trás o mistério do que barrando contém o incontido. Conter o incontido quer dizer

que no que se contém há, simultaneamente, um transbordar tanto para a presença quanto para a

não-presença. Esse conter e transbordar é o pensar no sentido de caminhar. Cada passo é um

lance do que já-não-é rumo ao que ainda-não-é, para em seguida transformar-se num já-não-ser e

pôr-se novamente em rumo ao que ainda-não-é. Esse movimento nomeia a dobra do caminho: o

vigor da vida se doando e acontecendo continuamente. A pedra assinala a presença da dobra, ela

é o entre o que já-não-é e o que ainda-não-é. Caminhar é transbordar o contido no entre ser e não-

ser. No caminhar há uma apropriação, não no sentido de apossar-se de algo, mas de tornar

próprio inaugurando-se continuamente. Nesse sentido, cada passo inaugura um caminho como

destino; este também não no sentido de algo previamente dado e predeterminado, mas

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manifestando o apropriar-se do que lhe é próprio. Este é o desdobrar do mistério da vida nos

passos do caminheiro. Por que chamamos aquele “eu” do poema de caminheiro e não de sujeito?

Primeiramente, porque poeticamente não há sujeito. A teoria do eu lírico é uma tentativa de

subjetivar a poesia. Mesmo aquela que fala da “morte do eu lírico” já se move no mesmo

percurso metafísico, ainda que pela via oposta, mas complementar da subjetividade, a

objetivação. Desse modo a poesia é sempre classificável e classificada ora como subjetivação ora

como objetivação de um autor ou tema.

Não seria tudo isso fruto de uma conceituação retórico-sofística, que tenta delinear o

discurso no ímpeto teorético com vistas a favorecer o desenvolvimento de um raciocínio

especulativo? Chamamos esse suposto “eu” de caminheiro não como uma especificação que se

deve atribuir a algo ou alguém à medida do que é ou faz como um atributo entitativo ou

identitário, mas temos em vista o sentido do próprio caminhar. Caminheiro é aquele que se põe

rumo ao caminho, entretanto, esse pôr-se não é uma objetivação da vontade cogitativa, antes um

atender o apelo do próprio caminho e, ao render-se ao apelo, o caminheiro transforma-se na via

que trilha, em seu destino.

Um caminheiro, no meio do caminho, palmilha vagamente uma estrada pedregosa, com os

pés nas pedras, procurando um sustento entre os vãos, ouve um sino rouco soar. Essa ausculta

produz a sensação de que todas as coisas vão se misturando, compondo um quadro dinâmico em

que tudo depende de tudo e converge mutuamente destinando-o àquela caminhada.

Seria a interação homem-meio ao qual o homem se adapta ou insere? Destino seria, de certa

forma, um determinismo ativo ou passivo, voluntário ou forçado, em que a essência precede a

existência ou a existência precede a essência, empírico ou inato? Todo esse dualismo é mesmo

necessário, no sentido originário, em que o grego nomeia a necessidade, ananke? É mesmo real?

A questão do destino certamente é antiquíssima, seu registro aparece com maior

consistência a partir das obras mítico-literárias gregas. O destino é poetizado, de um modo ou de

outro, em todos os mitos gregos arcaicos como experienciação vital do próprio humano. Destino

é, ontologicamente, a arte da vida em seu sentido originário de passagem do não-ser ao ser, ao

passo que a vida é uma manifestação do destino como doação, passando então, circularmente, a

ser a arte do destino.

Entretanto, a conceituação do que seja destino é vastíssima e sua compreensão depende

muito do viés estabelecido como princípio investigativo. Por exemplo, num segmento filosófico,

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pode-se dizer que: “O Destino representa o esforço cultural, interpretativo mais do que criativo,

para inserir numa lógica histórica, num sentido global, aquilo que aparentemente não foi

planejado, pelo menos por cérebro humano”. (LEPARGNEUR: 1989, p. 10.)

Certamente o que se disse acima não está em desacordo com muito do que se pensou, se

pensa e pensará com respeito ao sentido do destino. Mas esse apenas é um viés, talvez o re-sumo

servindo até mesmo de ponto de partida para uma conceituação cujo desdobramento se modifica

e condensa adquirindo matizes ideológicos. Pensar destino como um esforço cultural,

interpretativo, capaz de se inserir numa lógica histórica e num sentido global é pensar em forma

de constelação: os vieses se cruzam parecendo formar figuras e ora se relacionando e

influenciando mutuamente, ora se chocando mortalmente.

Esses princípios são fecundos para diversas teorias esquematicamente convincentes como

hoje são correntes. Sobretudo porque se pensa o que mais inquieta o ser humano: o

acontecimento de algo que não havia sido outrora planejado, o inesperado, que fugiu à

previsibilidade da compreensão humana. A grande odisséia humana é tentar prever o que ainda

não aconteceu e, posteriormente, controlá-lo. Nesse sentido, essencialmente o homem luta contra

o destino. Não há então sentido em dizer controlar o destino ou criá-lo, pois são coisas apenas

possíveis dentro de um pensamento subjetivista, mas incoerente na realidade. Destino não

depende do homem ou de qualquer outra coisa para existir. Entretanto a experienciação humana

com o destino é variada de tal modo que faz até mesmo o conceito mais elaborado variar.

Acaso, causalidade, evolução, fatalidade, fortuna, sorte, azar, ventura, carma,

predestinação, vocação, providência, determinismo, fatum, rumo, direção, sina, dentre outros são

palavras que tentam de algum modo captar ou determinar o sentido de destino. Nenhuma teoria,

porém, torna a coisa ou o ser ao qual se reporta existente apenas por possuir coerência ou ser

logicamente crível. O pensamento metafísico favorece a noção de verdade ligada ao

cadenciamento coerente do discurso proposicional, no qual a lógica da proposição é correlata à

verdade ontológica.

Na esteira de questionamentos está a velha oposição de determinismo e liberdade. O

homem já nasce com um destino programado que fatalmente se cumprirá ou ele é que decide os

rumos que tomará? Essas são as questões nucleares da vida humana. Por esse motivo, destino é o

caminho dos caminhos. Faz-se necessário pensar com afinco e radicalidade a questão do destino

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desde sua origem na Grécia Antiga a sua sistematização filosófica para, então, deixar com que a

questão do destino colocada no poema nos venha à tona.

1.1.2 - Destino na Grécia Antiga

Destino, na Teogonia de Hesíodo, é filho da Noite e estendia seus domínios sobre os

homens e sobre os deuses; era tão poderoso que nem Zeus podia contrariá-lo, sob pena de romper

a ordem do Universo. As Moiras eram ajudantes do Destino: Cloto tecia (gerava), Láquesis

media (sorteava o quinhão) e Átropos cortava o fio da vida (determinava o fim). O destino como

diálogo originário instaura um desdobramento tríplice que é a origem, o quinhão como partilha

ou medida do que é próprio, e o fim ou consumação.

Entre os gregos era comum a consulta aos oráculos, o mais famoso da Antiguidade era o de

Delfos, dedicado ao deus Apolo. Muitos iam até ele numa tentativa de conhecer o seu destino.

Aqui há algo importante a ser pensado. Quando se fala em conhecer o destino pensa-se quase que

instantaneamente em futuro. Para os gregos antigos não era exatamente assim, como se pode ver

na história de Édipo, o destino é correlato ao que se é.

Destino era o que envolvia o homem independente da noção temporal e da sua tripartição

entre passado, presente e futuro. Em Delfos, o deus falava através de sua sacerdotisa, Pítia, que

ficada sentada sobre uma fenda na terra, de onde subiam inebriantes vapores e a colocavam em

transe. Quem ia ao oráculo primeiro fazia suas perguntas aos sacerdotes oficiais, depois

consultavam a Pítia. As respostas geralmente eram quase incompreensíveis ou tão ambíguas que

os sacerdotes tinham que “interpretá-las” para os consulentes.

Os adivinhos não davam uma resposta lógica ou exata do que não pode ser adivinhado,

antes o questionamento era devolvido em forma de enigmas, no final, cabia ao próprio

questionador a interpretação da questão. Por outro lado, era muito comum os chefes de Estado

não entrarem numa guerra ou tomar decisões importantes sem antes consultar o oráculo de

Delfos, assim os sacerdotes de Apolo eram discretos conselheiros, quase diplomatas, pois

possuíam um profundo conhecimento das questões que envolviam o povo e o país.

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A súmula do oráculo de Delfos era: “Conhece-te a ti mesmo”, essa era a chave de

interpretação para o sentido do oráculo e de tudo o que nele ocorria. Sócrates toma esse aforismo

como princípio de seu pensamento fazendo dele sua mais profunda experienciação.

A questão do destino foi pensada durante as eras tanto pelos diversos setores do

conhecimento quanto pelas religiões que procuravam de um modo ou de outro destituir as

imagens míticas do mistério do destino. De certo modo, a noção que se impôs foi a do

determinismo entendida e interpretada de diferentes modos. Sem penetrar ou descrever a

multiplicidade de teorias, queremos nos ater a duas distinções nucleares, que poderíamos colocar

do seguinte modo, determinismo espiritual e determinismo material. Não querendo ser, com isto,

pueril, de modo a cair em certa dicotomia, pois os determinismos são um e o mesmo

determinismo metafísico que tem como fundamento o nexo causal. A diferença entre ambos

resulta do fato de que, num o homem tem sua existência condicionada aos fatores preexistentes,

ou seja, seu destino já está traçado antes mesmo de ele nascer. O outro faz o caminho inverso, o

destino do homem é condicionado pelo momento histórico, pelo meio que ele vive e pelos fatores

atávicos, ou seja, pela hereditariedade biológica de características psicológicas, intelectuais,

comportamentais. De modo amplo, o homem é produto do meio, da raça e do momento histórico.

O fator identitário mais importante entre essas duas especulações é o de o homem sempre ser um

produto cuja existência é condicionada e regida inflexivelmente por uma causa.

A questão nuclear pode ser colocada do seguinte modo: se tudo o que acontece em nossas

vidas já está de algum modo determinado, seja pela Providência ou seja pelas leis físicas e

sociais, qual é o espaço para a liberdade? A questão se faz mais complexa ainda quando se pensa

a antecedência da determinação aos fatos, porque, nesse caso, até mesmo o caminho do

pensamento sobre esta questão já estaria determinado. Haveria, então, algum espaço para a

liberdade?

Os pensadores originários também se debruçaram sobre essas questões tratando o destino

em contiguidade com a liberdade. Chegaram então ao logos, entendendo-o como sustentáculo da

total integração entre o homem e o universo. Entenda-se sustentáculo aqui, não como suporte ou

fundamento, mas como o abrigo ou resguardo que cuida dessa relação.

A muito pouco do que foi acurado pelos pensadores gregos arcaicos se pode ter acesso, e

muitos dos fragmentos oriundos dos doxógrafos sofreram influências do cristianismo e

interpretações tendenciosas com fortes traços pós-platônicos, pós-aristotélicos ou céticos, o que

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dificulta o acesso originário a estes. Faz-nos então forçoso o caminho poético de construção e

concriação do pensamento deixando-nos tomar pela ausculta desse caminho.

A questão do destino também sofreu forte influência do Helenismo. Arcaicamente, as

comunidades gregas eram organizadas sob forma de genos, e cada um seguia sua tradição que

além de afirmar sua identidade assegurava a diferença deles. Ao chefe da família cabia a função

quase sacerdotal de fazer cumprir a vontade divina para o seu genos que muitas vezes lhe era

revelada através dos sonhos e dos oráculos. Essa vontade divina para o genos era compreendida

como justiça inquestionável revelada como Temis, isto é, a ordem, que manifestava as leis da

natureza e as necessidades de uma sociedade condicionadas a sua organização, que deveriam ser

obedecidas pelos homens. Temis (Eubulos) também era considerada a deusa da sabedoria que

concedia seus conselhos aos que a ela apelavam. Com Zeus, Temis dá a luz a Dike, deusa dos

julgamentos e da justiça, vingadora das violações das leis.

Qual é o sentido de Temis e de Dike para a questão do destino?

Temis era a manifestação sagrada da ordem, mas não no sentido de ordenação ou sistema.

Era a necessidade que cada coisa tinha de ser o que se é e o que lhe dá contornos existenciais, a

manifestação da própria ananke. E Dike é o que faz manifestar essa necessidade tanto sob forma

de compreensão como forma de justiça, ou seja, o processo de realização natural da necessidade

cuja des-obediência acarreta danos a esse processo.

Institui-se, então, uma nova formação social, a pólis, dividida em dêmoi, que eram

pequenas comarcas com assembleia, magistrados e administração própria, seu dêmos. Esta

palavra possuía na pólis grega dois significados diferentes, primeiramente designava o corpo de

cidadãos, que atuava através da assembléia. E em segundo lugar, os textos antigos dão a ela o

sentido de povo simples, de pouca importância, visto que, pertencia a uma baixa classe social,

uma espécie de plebe.

Dá-se uma nova interpretação às tradições gregas e há uma notável reinterpretação da ética

e, sobretudo, com relação ao destino do homem, que, se de um lado tinha que se condicionar ao

seu genos, do outro, precisa fazê-lo à pólis e, posteriormente, à cultura universal grega difundida

por todo o império de Alexandre, o Grande, conhecida como Helenismo:

A filosofia da época, revendo conceitos e valores universais morais antes teorizados por

Platão e Aristóteles, e confrontando-os com o período que iniciava-se, entendeu que o

homem ao perder o vínculo com sua cidade de origem em função da dissolução do

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sistema político que o alicerçava e ao estabelecer contato com diversas culturas, passava

a ser um cidadão do cosmos, cosmopolites. (GUIMARÃES: 2009, p. 21)

Aos poucos, o pensamento grego originário com referência às questões que envolviam o

destino humano foi sendo substituído por uma interpretação cosmopolita formando as bases da

cultura ocidental e um grande sistema de pensamento que pretendia abarcar todas as esferas do

conhecimento e experiências humanos; seguindo a orientação de doutrinas derivadas do

pensamento de Platão e Aristóteles, por via de seus descendentes intelectuais, essa concepção

aglutinou os vieses do pensamento grego nos estudos da lógica, da física e da ética. Esses três

campos de estudos tem como raiz primitiva três palavras fundamentais, porque de fato fundam o

pensamento, que são logos, physis e ethos. Estas precisam vigorar a partir de seu originário para

que seu sentido se manifeste.

Numa síntese que procure a essência do que floresceu na sistematização do pensamento

grego e, de certo modo, perdurou como princípio dos pensamentos medieval e moderno

influenciando o pensamento do destino, uma vez que impõe uma interpretação metafísica de

logos, physis e ethos, podemos assinalar os estudos da lógica, da física e da ética do seguinte

modo:

O estudo da lógica compreendia a própria lógica formal, dos modos de bem pensar, a teoria

do conhecimento, a semântica, a gramática e a retórica. O papel do estudo da lógica seria o de

fundamentar a ética mediante um critério seguro de verdade, a fim de validar seus argumentos e

estabelecer os meios para o bem agir.

O estudo da física se lançava à compreensão do funcionamento da natureza, do “mundo

físico”, e do modo de ser dos demais seres vivos, ou seja, homens, animais e seres divinos.

À ética caberiam as análises dos conceitos morais visando à validação dos princípios

estabelecidos como verdade pelos critérios da lógica e, de certo modo, como era corrente, a

legitimação da finalidade ética como o viver de acordo com a natureza.

Entretanto, os propósitos estabelecidos pelos estudos da lógica, da física e da ética

perderam algo do que originariamente diziam logos, physis e ethos; lançou suas bases em

conceitos muito genéricos sem se preocupar em discutir com profundidade as questões da

verdade, o que é o bem agir, ou o agir ético, o mundo, a vida, o mortal, o imortal e o viver de

acordo com a natureza, ou seja, com a necessidade, ananke.

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A questão da interpretação de logos, physis e ethos implica o percurso da sistematização

filosófica delineando o modo como o homem conhece o mundo, como o julga e de que forma

esse juízo determina seu comportamento.

Não é possível pensar logos, physis e ethos separadamente, pois mutuamente se tensionam

e pro-vocam o desvelamento da realidade, do destino. Pensar o destino a partir do seu originário é

pensá-lo na dimensão do logos, da physis e do ethos e assim, como origem, e daí toda a discussão

do génos e seus desdobramentos na genética; como medida, ou seja, o quinhão, a partilha

humana, a parte que cabe a cada um, sua existência; e como consumação, plenitude ou liberdade.

1.1.3 – Causa: a sistematização filosófica do destino

A sistematização filosófica, procurando dar uma fundamentação lógica ao destino, ao

questionar a origem pensa em predestinação, ao inquirir sobre a partilha ou o quinhão, trata-a

como determinismo e quando discorre do fim ou da consumação, assume-a como consequência

ou finalidade. O certo é que a questão do destino é sempre tomada pela, na e a partir da

causalidade.

As questões principais do pensamento ocidental desde a antiguidade grega é o porquê das

coisas permanecerem e o porquê das coisas mudarem, em outras palavras, o que causa o

aparecimento, a permanência, a mudança e o desaparecimento das coisas, isto é, o seu

movimento natural, assinalado no vocábulo grego physis; esse porquê pode ser entendido como

toda e qualquer alteração da realidade seja a origem, a mudança qualitativa, quantitativa, em

relação a locomoção espacial ou a geração e corrupção dos corpos.

A noção de causalidade proposta pela filosofia parte do entendimento funcional da palavra

grega aitia como causa de algo, e de telos como efeito, de modo que este seja previsível a partir

daquela. A ação da causa produz determinado efeito, assim se estabelece dedutivamente a

conexão lógica entre ambos gerando uma noção de necessidade causal. Perguntar pela causa é

perguntar o porquê de algo; em outras palavras perguntar, o porquê ou a causa do que é. Nesse

sentido, equivale a dizer que o porquê ou a causa é aquilo de que algo é feito e que nele

permanece e, em segunda instância, a causa é a forma ou o modelo tomado por alguma coisa. A

causa também é entendida como o que dá início ao movimento ou ao repouso, isto é, o que

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produz a mudança de algo, ou a causa de algo ter se tornado no que é. E em quarto, a causa é a

finalidade ou a razão de a coisa ser e o motivo para o qual existe.

Assim, todas as coisas teriam uma causa material, formal, eficiente e final. Perguntar pela

essência da coisa é perguntar pelas suas causas e vice-versa. A essência da coisa é chamada de a

sua substância, ou seja, o que ou aquilo que subsiste por si, autônomo e independente em relação

às suas qualificações e estados; de modo mais filosófico, o que se mantém permanente sob os

acidentes múltiplos e mutáveis, servindo-lhes de suporte e sustentáculo.

O mundo, segundo esse pensamento, estaria envolvido por uma sucessão de causas e

efeitos e a causalidade seria a base de todo e qualquer acontecimento. Acontecimento perde seu

sentido originário de assinalar o próprio movimento instaurador e passa a significar causa no

sentido de processo instalador de um fato, ou seja, é essencialmente o aflorar da condição que

possibilita toda e qualquer determinação. O acontecimento é por si só a força absoluta que dá

curso as coisas seja ele previsível ou não. Uma pergunta faz-se necessária: Algo ou alguém pode

causar um acontecimento?

Sem dúvida um acontecimento pode ter um agente e ser premeditado. O lançamento de

uma pedra numa vidraça, por exemplo, mas ele só é possível dento do seu próprio campo de

possibilidades.

Entretanto, poderíamos pensar a ação descrita como se o lançar da pedra já estivesse

prescrito na possibilidade do acontecer, isso faz com que o acontecimento manifeste a sua força

de ser: nada acontecer fora da possibilidade do acontecimento - o que não pode acontecer não

acontece.

A grande questão é: O que não pode acontecer? Se o homem pudesse originariamente ser

causa do acontecimento ele certamente poderia responder a essa pergunta, pois o acontecimento

estaria no âmbito de sua potencialidade e não o contrário.

O homem só pode ser agente num acontecimento se for por este tomado. Então é muito

fácil identificar destino e acontecimento. Poderíamos dizer que destino é o acontecimento que

determina toda e qualquer ação, humana ou não, independente de qualquer força ou vontade

contrárias. Seria uma causa preexistente que preside inexoravelmente tudo o que vem depois,

sendo assim, todo acontecimento seria uma espécie de fatalismo lógico. O homem e todas as

demais coisas se relacionariam com o acontecimento inicialmente, pelo menos, de modo passivo,

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ainda que depois pudesse agir sobre o mesmo, ainda assim dentro do âmbito das possibilidades

dadas. Destino seria determinismo ou predeterminismo. Voltamos ao início do questionamento!

O predeterminismo ou a predestinação acentua que o destino humano já está determinado

antes deste nascer e por isso sobre ele não se tem poder algum.

O determinismo é, de certa forma, o predeterminismo sem as características religiosas;

pauta-se no fatual segundo o qual todo ambiente humano já está formado quando este nasce e lhe

serve como “incubadora” do seu destino, influenciando-o, inclusive, em todos os aspectos de

modo que suas decisões e compreensões do mundo estão vinculadas aos fatores que o cercam.

Raça, meio e momento histórico, ou ainda, atavismo, condição sócio-econômica e influencias

culturais são as causas do destino de cada ser humano? Deste modo, num primeiro momento, o

ser humano sofreria as consequências diretas do atavismo, da sua herança genética, isto é,

hereditariedade biológica de características psicológicas, intelectuais, comportamentais. Em

segundo lugar, o meio econômico e social em suas variações e condições forneceria o modus e as

relações possíveis ao desenvolvimento do indivíduo. E, em terceiro lugar, o momento histórico

como um determinativo cultural atuando como influências culturalizantes.

Em síntese, esse princípio afirma que as transformações históricas ocorrem de acordo com

leis, semelhantes em rigor às leis físicas ou naturais, de modo que o curso da própria história

pode ser predito, entretanto não permite ser alterado pela vontade humana. Daí o entendimento de

a história ser o grande princípio explicativo da conduta, dos valores e de todos os elementos da

cultura humana, tais como arte, filosofia, religião etc; impondo-se como o fundamento ou a

dimensão mais profunda da realidade.

Nesse sentido, destino seria um ordenamento inviolável de situações interconectadas que se

imporia aos seres e coisas de modo que a todo acontecimento sucederia à relação de causa e

efeito. O destino teria uma interface paradoxal, ao mesmo tempo em que é desencadeado por

causas que pudessem além de ser conhecidas e, mesmo por meio desse conhecimento, também se

prever os efeitos consequentes; teria um plano oposto diante do qual se frustram tanto o

conhecimento das causas quanto a previsibilidade dos efeitos: o acaso. Acaso tem certa

proximidade com o termo latino casus, que nomeia a ação de cair, queda, enquanto algo

acidental. Seria a ocorrência do acontecimento de caráter incerto, imprevisível ou eventual de

causas supostamente independentes da vontade e do conhecimento humanos ou do arranjo e

disponibilidade das coisas e situações. Na modernidade é também a condição de um evento que

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sofre oscilações probabilísticas com um acentuado grau de incerteza, indeterminação e

aleatoriedade.

Caso invertêssemos a proposição determinista firmando-a na ação do homem, o que de

certo modo já se prevê, mesmo assim não sairíamos da causalidade.

Mas, haveria um sentido originário para destino que ainda não tenhamos pensado? Evidente

que sim. Fugindo ao princípio conceitual, há interfaces do destino acessíveis ao homem que se

descortinam diante de nós o tempo todo apelando a que as pensemos. Destino surge como o que

está no âmbito das possibilidades, mas que é desconhecido, por isso é como se não existisse. Mas

o que é que vigora no âmbito das possibilidades? A própria realidade.

Realidade não é realização e não se limita ao realizado. Realização como a realidade

acontecendo é um modo de ser do destino e não o destino todo ou em si. O destino é a realidade

se desvelando sob multiformes aspectos. Realidade e real não são duplos, não há dicotomia, mas

o aquela nomeira a força de vir-a-ser (physis), este o seu sendo ou modo como ela se dá, isto é,

vem à presença.

Tomar a realização ou o realizado como destino é entificá-lo e fazer com que se confunda o

real com a noção de factual, considerando apensas este como “verdadeiro”, e desconsiderar o

mistério do velamento. Entretanto, não há condição alguma por mais inóspita que seja que possa

impedir imperiosamente o homem de ser quem ele é assim como não há favor, por maior que

seja, que o force a fazê-lo, a saber, ser o que já é, entretanto, o homem mesmo pode encobrir o

ser.

A proposta é pensarmos não o conceito de destino, mas o “como” ele se apresenta ao

homem e o que oferece ao pensamento. Não que seja uma via única ou um princípio modelar ou

paradigmático, pois, como já se observou, tal imposição não é o propósito deste trabalho, mas

deixa a questão aberta de modo que pro-voque diálogo.

Procurando fugir a uma linha causalista, propomos pensar o destino em três interfaces da

vida: como origem, como medida e como consumação, procurando envolver e desenvolver o que,

de algum modo, os poetas gregos arcaicos pensaram. Pensar “como” é pensar o modo em que o

destino-vida se manifesta sem nenhuma conceituação prévia ou pós.

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1.1.4 – Vida e destino: necessidade e convergência

Em vez de pensar em determinismo e em todas as demais categorias dicotômicas seria mais

originário pensar a interação homem-meio como dependência e convergência.

Dependência é a disposição para a subordinação, submissão, obediência, amparo e

pertença. Entretanto devem-se pensar com cuidado essas palavras. Subordinação é estar sob certa

ordem, reunião; obediência é ob-audire, ouvir ou auscultar intimamente; submissão é estar

disponível; amparo é proteção e pertença, é estar unido a algo e a ele entregar-se. Atentando para

a própria palavra: de-pender é pender para. Pender se correlaciona ao sentido do verbo latino

pendó e pensum. Esses verbos apontam para a ação de pesar algo, pender ou inclinar-se para e

também pensar, que tanto se refere à ação de refletir, quanto ao sentido de formar imagem mental

e também ao de aplicar o penso, curativo, daí cuidar.

Depender nomeia o colocar-se sob o amparo, proteção ou cuidado de uma ausculta de

modo a ela estar reunido a partir de uma entrega que renuncia a toda independência; é pender

para a intimidade do cuidado e o amparo da ausculta. A ausculta é um amparo que cuida dos que

para ela pendem, é proteção e pertença, oferecimento e renúncia como obediência, subordinação

e submissão. Auscultar é lançar-se ao amparo e pertença do silêncio.

Convergência assinala a disposição de elementos que se dirigem para um ponto ou nele se

encontram. Essa disposição é uma tendência ou pendência para a aproximação ou união em torno

de algo como um com-fluir e uma com-corrência. Convergir é com-vergo, isto é, vergar-se ou

virar-se e inclinar-se para algo, da raiz indo-européia wer- , no sentido de tornar, virar, girar;

torcer, e ver, donde, no latim, provém vertère e vergère. No português, o primeiro verbo se

realiza como verter no sentido de voltar(-se), virar(-se), fazer o seu giro, suceder-se (no tempo),

converter, traduzir, mudar ou trocar, também transbordar, jorrar e brotar. Vergar assume o

sentido, no português, do segundo verbo que nos diz, acima de tudo, a ação de inclinar-se para

algo de modo a ele se submeter ou entregar-se. Convergir se diz originariamente na ação de

juntar várias partes em um mesmo ponto, reunir, agregar, afluir para e concorrer, enfim, tender

mutuamente para.

Destino como origem é destinar-se, isto é, dependência e convergência. O destino é a

dependência e convergência dos fenômenos. Fenômeno é tudo o que se mostra, se desoculta.

Dependência e convergência diz o mesmo de referência e correspondência. Reférre pontua o

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correspondente latino de referência, fala-nos essencialmente de levar consigo, alcançar, restituir,

recolocar, repor, dar e oferecer. Corresponder diz basicamente mutualidade e reciprocidade.

Destino não é uma força autônoma, mas a impossibilidade de andar sozinho, ou seja, o

tender ou inclinar-se para o real de tal modo a levar conosco tudo o que nos foi oferecido e que,

ao mesmo tempo, renunciamos, restituindo a totalidade do que recebemos a fim de manter a

reciprocidade íntima. Isso quer dizer ser destinado, a saber, estar entregue à dependência e à

convergência, à referência e à correspondência. Por esse motivo, não podemos dizer que não

dependemos de nada ou de ninguém, que temos nosso próprio caminho. Destinar-se é manter-se

no aberto do destino na quadriunidade2. Um fenômeno não acontece isolado de outros

fenômenos, as situações podem iludir nossas percepções e expectativas. Isso acontece

basicamente porque temos a tendência de isolar aspectos particulares de um acontecimento ou

experienciações e vê-los como constituindo uma totalidade, o que estreita nossa perspectiva e

gera falsas expectativas. A noção de ilusão ou equívoco decorre do fato de que os acontecimentos

não evoluem de acordo com nossas expectativas, antes obedecem à própria lei inerente a sua

complexidade. Complexidade é interconexão tensional não determinada.

Ilusão corresponde ao erro de interpretação, de percepção ou de entendimento, um engano

dos sentidos ou da mente que se debruça sobre determinado acontecimento ou fenômeno.

Equívoco aponta para a ambiguidade inerente a certa visão, ideologia ou conceito. Considerando

a ambiguidade um defeito, equívoco assinala em sua essência a impossibilidade que algo possui

de ser classificado com apenas um significado, por isso é uma falha lógica, pois pode ser

entendido em dois ou mais sentidos diferentes, por isso dúbio e duvidoso.

Ilusão e equívoco ocorre quando se limitam a visão dos acontecimentos e fenômenos

relacionando-os a “âncoras” factuais descritas pela historiografia e pela biografia.

As quatro primeiras estrofes de A máquina do mundo de algum modo colocam esse

movimento do destino. Os verbos mais importantes são palmilhar, misturar, diluir, entreabrir,

pensar e carpir. No palmilhar a estrada, o sino assinala a mistura de todas as coisas a partir do

som que emite e o do produzido pelos sapatos do caminheiro. No caminhar todas as coisas se

reúnem. O meio do caminho é o espaço-entre reunidor. As formas pretas se diluem numa

2 Ao falar de quadriunidade não estamos nos referindo aqui da teoria de Bob Hoffman, a quadrinidade, um conceito que busca a

harmonia e total integração de quatro aspectos do ser: emoção, intelecto, espírito e corpo físico, mas de algo que, sendo quatro, se relacionam mutuamente, como acentua Heidegger: céu e terra, mortais e imortais.

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escuridão ainda maior; essa diluição, porém, não é simplesmente desintegração, mas a epifania

que permite a compreensão intuitiva da realidade em meio ao simples e ao inesperado. Essa

revelação não trata de uma compreensão lógica, ou seja, conceitual, ideológica ou convencional,

mas dialogal, pois ela não é uma conquista do sujeito, antes ele mesmo se esquivava desse

acontecimento e evitava o sofrimento (pathos) de tentar pensá-la novamente. Isto sugere certa

decepção sofrida outrora. O que se descortina não é causado por alguma mentação. Antes, essas

primeiras quatro estrofes assinalam o prenúncio do acontecimento inaugural.

Acontecimento inaugural faz o homem eclodir como ser-livre, isto trata da possibilidade

apropriar-se do que lhe é próprio consumando o ser. Essa apropriação se dá como disponibilidade

para o aberto de mundo onde vigora todo e qualquer sentido manifesto ou velado, a este “lugar”

Heidegger nomeou clareira:

E, contudo: para além do ente, mas não distante dele, porém diante dele, acontece ainda

uma outra coisa. No seio do ente na sua totalidade vige um lugar aberto. É uma clareira.

Pensada a partir do ente, ela é mais ente do que o ente. Por isso mesmo, este meio aberto

não está envolto pelo ente, mas é o próprio meio clareante que circunda todo ente como

o Nada que mal conhecemos. (HEIDEGGER: 2010, § 104)

Clareira é o aberto ontoexistencial onde o ente pode ser, isto é, apropriar-se do seu próprio:

“Somente esta clareira presenteia e garante a nós homens uma passagem para o ente que nós

próprios não somos bem como o acesso para o ente que nós próprios somos.”. (HEIDEGGER:

2010, § 105). A clareira é a abertura de mundo vigorando como o que os gregos antigos

entenderam como physis e como tal permite tanto o presentificar quanto o ausentar, o manifestar

quanto o ocultar. Assim o que o ente já-é e o que ele ainda-não-é se tensiona no seu sendo

lançado no aberto da clareira. Por isso o ser é sempre ser-em-travessia, ser-entre o que ele já-é e

o que ele ainda-não-é, como diria Raul Seixas, uma “metamorfose ambulante”.

A esse ser-em-travessia Heidegger chamou Dasein, que costuma ser traduzido para o

português como ser-aí. Entretanto a compreensão de ser-aí é por ora muito vaga ou muito

filosófica. Presença foi uma outra tradução para Dasein proposta por Márcia Sá Cavalcante

Schuback, em Ser e tempo, esta se aproxima muito mais do sentido verbal de Dasein. Outro

estudioso da obra de Heidegger a propor uma tradução originária em português para esta palavra

foi Manuel Antônio de Castro, no ensaio “Poiesis, sujeito e metafísica”, que a pensou como

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Entre-ser, no sentido de Ser-do-entre. Presença, Entre-ser e Ser-do-entre nomeia o ser-em-

travessia, lançado no aberto da clareira.

A palavra que Heidegger usa no original para clareira é Lichtung, esta não se relaciona

apenas e especificamente com luz, Licht, mas com o leve, leicht, que assinala o que se dá como

livre. É pelo fato de o espaço já estar previamente liberado pela clareira que a luz pode nele

penetrar. A essência da clareira é a possibilidade para o projetar livre e aberto do ente. Nesse

sentido, clareira se aproxima da liminaridade, visto que ela é o cuidado da tensão entre limite e

não-limite. Liminaridade é a condição do que é liminar. Essa palavra tem limináris como seu

correspondente em latim, significando basicamente soleira. A soleira é o horizonte entre o que é e

o que ainda não é. Ela não está dentro nem fora, mas no meio, entre. O liminar ou limiar é o

limite como tensão-entre luz e trevas, entre o manifesto e o abstruso, diante do qual o homem se

encontra extático.

O momento do êxtase é como o fulgor do feixe da luz de um raio na noite escura. Esse

rasgo de luz nas trevas não é a anulação desta pela luz, antes a revelação da tensão que há entre

ambas: a manifestação de uma é dependência e possibilidade da outra.

Liminar nomeia também começo, origem. O liminar é o convite à travessia, a um novo

início. Ele é a essência do originário. Quando a “máquina do mundo” se entreabre (e aqui é

importante notar que ela não se abre simplesmente, mas em seu abrir opera o entre) dá-se um

acontecer poético-apropriante; pois a “máquina do mundo” é, ao mesmo tempo, oferecimento

como renúncia e convite como apelo a uma ausculta. Ensejando um ritual iniciático, ela entreabre

tempo e espaço sagrados em tensão com o secular. Uma outra dimensão eclode. Di-mensão

nomeia basicamente uma extensão mensurável. Do latim di-mensìo ou di-mensiónis oriundo de

mensus que possui o sentido de medir nos sentidos físico e moral. Dimensão trata de percorrer

uma medida e descortinar um limite ou limiar. Limite e limiar unem e separam coisas e seres,

ambos falam de uma tensão mensural, entretanto, não uma mensuração lógica, mas ética, do

próprio destino humano. Na dimensão se tensiona tudo o que é considerado antitético na lógica

humana: vida e morte, céu e terra, divino e humano, ser e não-ser etc. Nesse sentido, dimensão é

o mediar (estar-entre duas coisas, situar-se entre dois extremos) em que se pesa (pensa) toda a

aprendizagem da vida como necessidade e convergência de entre-tempo e entre-caminho.

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1.1.5 - Destino: entre-tempo e entre-caminho da vida

Voltando ao poema A máquina do mundo, nele o fecho da tarde assinala o cair do véu da

noite onde as trevas cobrem toda a terra com seu silêncio e repouso. O mundo circunstancial se

recolhe para que a Terra, muda e velada, ecloda com a noite. O sino que anuncia o fim de um dia

e o início da noite separa e une, ambiguamente, duas dimensões da realidade como um entre que

se mistura ao entre do caminheiro manifesto no som seco de seus sapatos. O sino e os sapatos

marcam a cadência de se estar necessariamente convergindo: o entre do caminho e o entre do

tempo.

O entre do caminho assinala a mover-se na experienciação existencial do extraordinário

numa vivência inaugural que foge do usual, do habitual, do previsto e previsível e se lança ao

fora do comum, do regular, do estabelecido racionalmente e caracteriza-se por ser sempre um

caminho raro, excepcional, notável; daí a estranheza do caminheiro ante o novo, o desconhecido,

diante da excessividade caótica e da intensidade da experienciação da caminhada. No entre do

caminho o mundo se manifesta como caminhada originária e possível de ser experienciada. O

entre do tempo é o kairós, o tempo maduro, oportuno, do acontecer, este faz com que o homem

se lance além do cronos, que é o tempo cronológico.

O tempo cronológico é o que mede a duração relativa das coisas e cria no ser humano a

idéia de presente, passado e futuro, como período contínuo e definido no qual os eventos se

sucedem, dando uma ideia material de época. Para a ciência, a noção cronológica do tempo é

fundamental para se distinguir a dimensão que permite identificar dois eventos que, caso

contrário, seriam idênticos e que ocorreriam no mesmo ponto do espaço e seria impossível

analisá-los. Kairós é o tempo do acontecimento extraordinário, que não pode ser medido

tampouco cindido em presente, passado ou futuro, é o tempo maduro, nesse sentido que se

empregava a expressão carde diem, citada pelo poeta latino, Horácio, que é traduzido de modo

hedonístico como “aproveitar o dia”. Diz o poema:

Carpe diem quam minimum credula postero

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi

finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios

temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.

seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,

quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare

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Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi

spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida

aetas: carpe diem quam minimum credula postero.

Numa tradução livre, temos:

Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.

Não pergunta, saber é proibido, o fim que os deuses

Darão a mim ou a ti, Leuconoe, com os adivinhos da Babilônia

Não brinca. É melhor apenas lidar com o que se cruza no teu caminho.

Se muitos invernos Júpiter te dará ou se este é o último,

Que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar

Tirreno: seja sábio, beba o teu vinho e para o curto prazo

Reescala as tuas esperanças.

Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento está fugindo de nós.

Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.

O que se coloca poeticamente no poema de Horácio relacionado ao de Drummond diz, de

certo modo, o mesmo e pode ser nomeado “caminhar entre-tempo” como um colher o dia, cada

dia, do seu ordinário, o extraordinário. Colher é abrir-se para as questões que o caminhar como

viver coloca diante de nós e, colhendo, inaugurar o que somos na apropriação do que nos é

próprio. Colher o dia, beber a água que da fonte irretornável verte é imergir no kairós de cada

questão, como oportunidade de penetrar o sentido da vida como destino que se nos oferece

insistentemente.

O kairós se presentifica na expressão latina carpe diem como o tempo oportuno, ou seja, o

tempo de se colher o fruto maduro do dia e se mede com o destino. Não cabe aos homens saber

precisamente o que é e como virá, resta “apenas lidar com o que se cruza no seu caminho” e,

nesse lidar, o homem, sendo, se apropria do que lhe é próprio, do seu quinhão. Isto é, transpor as

teorias a respeito do destino, seja como uma personalização da fatalidade a que estão sujeitas,

supostamente, todas as pessoas e coisas do mundo, seja como uma determinação divina, seja sob

a forma de predestinação ou de leis naturais, como as várias espécies de determinismos incluindo

o evolucionismo.

O destino é o futuro previamente prescrito por leis sagradas ou seculares? Mas o que é o

futuro? Não sabemos dizer o que é o futuro porque o tempo não é, dá-se, não como conceito, mas

originaria e inauguramente como acontecimento que se doa e retrai diante das “retinas fatigadas”

e “pupilas gastas na inspeção” e surpreende nosso saber calculador. O entre-tempo se dá como

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retração da medida cronológica. Nesse entre do kairós é que a “máquina do mundo se

entreabriu”. O entreabrir não é um abrir-se por completo, mas o vigor do entre-abrir como entre-

fechar.

O entre é a dinâmica que insere o caminheiro no mistério de seu próprio ser. Dinâmica que

só é possível porque desde sempre o caminheiro, no caminho, já se move. Caminheiro é uma

doação do “meio do caminho”, assim como caminho é uma doação do meio. Meio aqui, não é

entendido como metade ou coisa equidistante de seus bordos, de suas extremidades, nem

instrumento pelo qual se atinge um objetivo, um determinado fim, tampouco grupo social em que

se está inserido ou em que se possa inserir. O meio do caminho é o entre, que não pode ser

medido física ou matematicamente, mas a dinâmica entre ser e não-ser, entre fala e silêncio, entre

vida e morte. Todo caminho só é caminho porque é uma doação do meio. O meio é entre-

caminho que se entre-abre no caminhar do caminheiro que se decide por tal é entre-tempo

(kairós) possibilitador da colheita do fruto maduro da vida.

1.2 - Pensar: a vida da arte

A questão do pensar se faz presente de imediato logo no título do poema A máquina do

mundo. Sua relação com a arte se dá de modo muito contundente visto que “tanto a obra do

pensamento como a obra poética se medem pelo vigor que têm de produzir leituras e leitores”

(CASTRO: 2005a, p. 11). No poema A máquina do mundo a questão do pensamento aparece sob

muitas facetas, mas sempre se instaura como tensão do que vem à presença. O que vem à

presença constitui mundo, por isso pensar está também em tensão com mundo, este é habitado

pelo homem que, em seu habitar, provoca a abertura para o pensar. Mundo é a abertura de sentido

que o homem habita. Pensar é, sobretudo, estar de permeio nessa abertura manifesta pela

presença do homem no mundo. O modo de o homem marcar sua presença no mundo chama-se

vida. A vida humana entendida como presença na abertura espacializada pelo habitar mundo é

consumada pela arte. A arte consuma o habitar humano. Pensar a arte é a ela entregar-se de modo

que a ela venhamos a pertencer, é deixarmo-nos conduzir pelo seu vigor na disposição de sua

própria manifestação e fazer da tensão pensamento e arte uma dobra que se desdobra como vida.

Por isso pensar é a vida da arte, nele vigora o que a arte é como vida.

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O pensar de que falamos não se trata de uma faculdade da consciência, mas o modo como

se articula o destino do ser.

Pensar é estar entregue ao ser e deixar-se por ele conduzir. Por isso que o que é se

manifesta no pensar; isso, no entanto, não quer dizer que o pensar classifique ou conceitue o que

é. O pensar nos coloca no caminho da linguagem e lança rumo ao sentido do ser, assim o pensar

consuma o ser, uma vez que resguarda sua manifestação, como afirma Heidegger:

... no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua

habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é

con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a

conservam na linguagem. (...) O pensamento ... se deixa requisitar pelo Ser a fim de

proferir-lhe a Verdade. O pensamento con-suma esse deixar-se. (HEIDEGGER: 1995, p.

24 - 25).

O ser se consuma como vida. Não há ser sem vida. Queremos situar aqui, previamente, a

questão da referência pensamento-arte-vida. Não dá para se desvencilhar dela, visto que a mesma

permeia todas as outras. Tudo parte da vida e para ela retorna, o pensamento é circular, por isso

as questões por ora manifestas vão atravessar todo esse trabalho e se desdobrar de muitas

maneiras, sendo recolocadas e repensadas constantemente em referência a outras que vão

surgindo a partir da obra de Drummond.

Atentando friamente para o título do poema A máquina do mundo, podemos cair no erro de

considerar máquina, no seu sentido estritamente lógico, como um engenho, equipamento ou

aparelho mecânico, eletrônico ou de outra constituição criado com a finalidade de transformar um

modo de energia em outro para produzir ou fabricar determinado efeito. Entretanto, na poesia

tudo é e não-é gratuito, as palavras tendem sempre a um ludíbrio que obriga o leitor a uma

ausculta acurada de sua fala para parir seu sentido ativo no texto.

A máquina do mundo se entreabre e não deixa de ser máquina, pelo contrário, aí é que ela

revela mais o seu vigor. Em vez de um objeto frio e inanimado, ela convida a todos “a se

aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas” e fala com o ouvinte, fazendo um

apelo originário de uma ausculta do silêncio. Que máquina é essa? Seria um invento pós-moderno

antevisto por Drummond, uma espécie de supercomputador?

Essa máquina não é uma coisa, um ente, antes um movimento da própria realidade que, ao

ser repelida pelo espectador se recompõe e desaparece, na verdade se oculta na funcionalidade

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habitual. A máquina do mundo possibilita uma visão ao espectador do ponto do espaço que

abarca toda a realidade do universo como uma referência à convergência das partes no todo, mas

este não corresponde à soma daquelas. Isto, de certo modo, propõe que o todo está contido nas

partes assim como as partes estão contidas no todo como reunião na qual o universo é refletido

caleidoscopicamente como um ponto para onde convergem todos os outros. A máquina do mundo

é uma imagem-questão da realidade se manifestando de modo multiforme, ou seja, a unidade da

multiplicidade que provoca o pensamento.

1.2.1 – O que é isto: o pensar

Aqui se coloca uma questão fundamental: o que quer dizer pensar? Poeticamente pensar é

permitir a algo vir à presença do modo que é sem nenhuma ou qualquer interferência, diz o

mesmo que cuidar e guardar na memória, não como uma lembrança, mas como o atual que se

atualiza a todo instante, como com-centração do pensamento. A essência do pensamento é o

pensar cuidadoso, ou seja, é o que se move rumo ainda ao não-pensado. Pensar é render-se ao

apelo do pensável e deixar que ele nos tome e envolva, este, ao mesmo tempo em que nos acena e

nos avia, se retrai e desvia sub-repticiamente, sem se deixar apreender conceitual e

entitativamente.

Mas dá-se desvio somente onde já se deu um aviar-se. Se o que mais cabe pensar

cuidadosamente mantém-se num desvio é porque isso se dá precisamente e tão-só no

interior de seu “aviar-se”, isto é, de tal modo, que ele já deu a pensar. Em todo desvio, o

a-se-pensar já se aviou para a essência do homem. Por isso, o homem de nossa história

também sempre já pensou de um modo essencial. Ele pensou mesmo o mais profundo.

Na verdade, de uma maneira estranha, o a-se-pensar permanece sob a guarda deste

pensamento. O pensamento até hoje vigente de modo algum considera o fato e em que

medida o a-se-pensar também se retrai. (HEIDEGGER: 2002a, p. 114)

Aviar-se diz o pôr-se a caminho no sentido de mover-se rumo a algo, mas esse aviar-se se

dá a partir de um apelo do que dá a-se-pensar, isto é, o pensável. O a-se-pensar dá-se como

convite. Aviar-se é atender ao convite do pensamento e empreender a caminhada rumo ao que

nos atrai, mas isto que nos atrai e apela se esquiva retraindo e desviando de toda e qualquer

conceituação.

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O pensar provém de um aceno, com isso não estamos dizendo que o aceno produz o pensar,

mas que o aceno provoca o pensamento. Pro-vocar é convocar a fala a partir de uma escuta.

Pensar é um jogo de se deixar conduzir por aquilo que de algum modo se mostrou rumo ao que se

oculta, esse jogo constitui um caminho instaurado pela pro-cura que vigora no aberto liberado

entre o aceno e o encontro. Procura e encontro se dinamizam tal qual a tensão entre manifestação-

aceno e ocultação-recusa, esse jogo é que movimenta o pensamento:

O que cabe pensar retrai-se para o homem à medida que dele se retira. O que se retira,

porém, sempre já se nos mostrou. O que se retrai no modo de um retirar-se não

desaparece. (...) O que se retrai recusa o encontro. (...) O que se retrai pode concernir ao

homem de maneira mais essencial e reivindicá-lo de modo mais próprio do que algo que

aí está e o atinge e o afeta. (HEIDEGGER: 2002a, p. 116)

O pensamento liberta à medida que resguarda o acontecimento da coisa sem interferência

em seu manifestar e em seu retrair-se, isto é, deixa-a vigorar no que ela mesma é. Por isso pensar

é tanto manter livre a manifestação quanto o retraimento e não tentar relacionar este àquele; nesse

sentido, pensar não é representar, mas um abrir-se para a ausculta da linguagem. O pensar só

acontece na linguagem, por isso a vigência do pensar depende do modo que a linguagem vigora.

Se a vigência da linguagem é deturpada, a do pensamento também o será.

Pensar é habitar a linguagem enquanto casa do ser, habitar não é dominá-la, medi-la,

racioná-la, mas “demorar-se junto as coisas” (HEIDEGGER: 2002, p. 131). O pensamento não

tem uma linguagem, é também essencialmente linguagem. Linguagem é realidade se realizando.

Pensar é dar um salto dentro da realidade e entregar-se a sua dinâmica, por isso todo pensar

é primeiramente um pensar a linguagem. Isto fala de render-se a sua fala, ao seu aceno na

tessitura do real entre tempo e caminho. Pensar é habitar o vazio entre-fios e ao mesmo tempo

percorrer os caminhos traçados pela rede, é estar-entre vazio e figuração, silêncio e fala, linha e

entrelinha, em outras palavras, de permeio na linguagem na maquinação da vida.

1.2.2 – Pensar: maquinar da vida

O que a linguagem nos acena na sintaxe poética Máquina do mundo? A palavra máquina

pode ser lida também como uma forma deverbal de maquinar que, dentre outras acepções, fala do

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ato de tramar algo. Essa leitura é possível porque a palavra máquina, mesmo numa acepção de

instrumento, conserva o sentido de ação de prover algo através de seu engenho. Tramar seria

correlato de maquinar tal qual trama de máquina, é a tessitura do pensamento:

Sabemos que pensar vem de pensum, particípio passado do verbo pendere. Significa,

portanto, pendido, pendurado. Formou-se, já em latim, o substantivo pensum, que diz em

sentido derivado a tarefa, o encargo e, em sentido próprio, a quantidade de fio de lá que

se pendura para a tarefa de tecer e fiar durante a luminosidade de um dia ... A

concentração da articulação da tecelagem remete sempre, de alguma maneira, para além

dos fios, para a tessitura, para a totalidade de integração que a tessitura realiza em

silêncio (LEÃO: 1999: 246).

Tessitura ou trama é a multiplicidade e complexidade do enredamento, ou seja, o conjunto

de fios da urdidura que se cruzam formando um tecido, uma teia ou rede. Trama é a tessitura ou

dobra de pensamento e linguagem. O sentido cabe perfeitamente se pensarmos em trama ou

tessitura do mundo. Mas podemos aqui cair num erro grosseiro pensando tessitura no sentido do

que já foi tecido. Por isso máquina cai muito bem para o movimento de mundo. “Mundo é tudo o

que acontece”, já dizia Wittgenstein no seu Tractatus. Máquina nomeia o movimento do mundo

mundificando que maquina, tece o real. Mundo não é o real feito, mas se fazendo a todo instante.

Essa tensão dinâmica é a máquina do mundo.

A máquina do mundo se abre diante de “retinas fatigadas”, de “pupilas gastas” e da “mente

exausta” como uma nova dimensão de vida, um novo sentido existencial; mas, longe de

maquinalmente, abre-se “majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem

clarão maior que o tolerável” numa majestosa gestualização de mundo. Máquina do mundo diz o

mesmo que gestualização de mundo. Abrir-se circunspectamente é portar-se com cuidado diante

de uma questão, ou seja, cuidar da questão. Cuidar é pensar, longe do plano racional, mas como

cura. Cuidado, do latim cogitátus, diz-nos a ação de meditar, pensar, refletir, mas também liga-se

ao sentido de cuidar, tratar de, tomar cuidado de, aplicar um penso, isto é, curativo. A máquina se

abriu não diante de instrumentos racionais, mas do cuidado, da cura.

Mas, cuidado de quê?

As pupilas gastaram-se na tentativa de enxergar e a mente se exauriu na inspeção mentada

na busca de distinguir, perceber pela visão ou alcançar racionalmente o que está fora, distante

e/ou oculto, a fim de tirar, como consequência lógica, por conclusão, dedução ou inferência o

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significado escondido; como esforço de um sujeito por objetivar a realidade, a máquina do

mundo.

O sujeito moderno, revestido do conhecimento científico, faz do caminho (hodós) uma

estrada. Mas caminho não é o mesmo que estrada, assim como método não é metodologia. O

caminho é o lance do inesperado, a ritualização do mistério que se abre no caminhar do

caminheiro como pensar. O caminho como hodós é sempre caminho inaugural como doação da

realidade. A estrada é a objetivação de um caminho, é a sedimentação de um acontecer mundo

que acontece e se fixa esgotando o acontecer experiencial num acontecido experienciado. A

inspeção mentada não consegue apreender a realidade como realização, pois esta se dá como

experienciação do mistério, “nos abismos”. A “máquina do mundo” é o movimento, a dinâmica

de mundo que mundifica, essa dinâmica não pode ser apreendida, descrita ou determinada

cientificamente. Essa tensão que mundifica não pode ser codificada como se pensou a

cosmologia moderna, porque máquina do mundo não é um simples mecanismo, ela não funciona

como um aparelho mecânico.

A mecânica do mundo não pode ser causada pelo homem, eis a grande agonia do cogitador

moderno: não poder controlar nem prever a dinâmica do mundo. O caminheiro fica perplexo

quando a máquina do mundo se abre sem depender de seus esforços, sem que tal abertura seja

causada por um sujeito e tanto se dá como se retrai tão misteriosamente que não pode ser

objetivada e enquadrada em seu domínio. O caminheiro sabe que não pode controlar esse

manifestar simplesmente porque não pode controlar o pensar.

O cuidar que se presentifica no abrir da máquina do mundo é o cuidado da linguagem, isto

é, abrir-se para a ausculta do manifestar da linguagem como máquina do mundo. Esta não possui

uma linguagem como presume a ciência, mas ela é linguagem como manifestação de sentido; não

significa algo, mas eclode como uma verdade a qual se deve auscultar. A máquina do mundo se

abre como uma clareira na floresta, e se abrindo deixa-se ver. Não é qualquer ver, provocado por

um sujeito, mas o ver que por si mesmo se dá como uma doação do não-ver.

A máquina do mundo não é um substantivo, um ente, mas uma ação que se apresenta no

abrir. O dar-se a perceber da máquina vigora e tão somente o faz no e pelo seu abrir, e este se dá

como convite. A máquina do mundo ao entre-abrir-se faz um convite ao caminheiro e a todos “a

se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas”. O caminheiro se despe das

pupilas e mente gastos pelo uso inspecional epistemológico e se move noutra dimensão, a única

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válida, a dimensão da ausculta da linguagem, isto é, do que a própria máquina do mundo é, sem

conceitos nem preconceitos, com o corpo: intuição e sentidos. Não mais a périplos cansativos e

infecundos, antes, o caminheiro é convidado a se aplicar numa nova passagem. Esse aplicar é um

pensar como cuidar, habitando o “pasto (caminho) inédito” e a “natureza mítica das coisas”, é

enxergar noutra dimensão, na dimensão da ausculta.

Parece estranho, e o é, falar em enxergar na dimensão da ausculta, mas isso nos diz de um

deixar que mundo ecloda diante de nós sem intervenção epistêmica alguma, apenas como mundo,

entregando-se ao pensar. O convite ao pensamento parte da própria máquina do mundo, não

surge como um ato deliberado do caminheiro. É um convite inesperado, imotivado e irrecusável.

O caminheiro faz uma ausculta inédita e inaudita: “assim me disse, embora voz alguma / ou sopro

ou eco ou simples percussão / atestasse que alguém, sobre a montanha, / a outro alguém, noturno

e miserável, / em colóquio se estava dirigindo”. A ausculta-pensamento feita pelo caminheiro foi

a ausculta do silêncio.

1.2.3 – Pensar: auscultar o silêncio

O silêncio não é simplesmente não fazer soar algo, mas a não-fala de toda a fala, assim

como o velado é o não-manifesto de tudo o que se manifesta. Por isso a fala do silêncio é uma

fala inaugural, ela fala o que nunca foi falado antes. É uma fala que pode se auscultar vendo e ver

auscultando. Na ausculta do silêncio há uma consumação da realidade; por meio da ausculta do

silêncio também podemos consumar o que somos. O que somos aqui não necessita de um

predicativo, pois o ser se basta a si mesmo. Na ausculta do silêncio, do inaudito, inédito e

inaugural o ser se plenifica em sua consumação. Consumar quer dizer levar algo ao sumo, à

plenitude. A máquina é o movimento que gestualiza mundo. Pensar é consumar o ser na

gestualização de mundo. Quanto ao que é mundo, vale aqui o comentário do pensador Martin

HEIDEGGER: na obra A origem da obra de arte, no parágrafo 81:

Mundo não é a mera reunião das coisas existentes, contáveis ou incontáveis, conhecidas

ou desconhecidas. Mundo também não é uma moldura apenas imaginada e representada

em relação à soma do existente. O mundo mundifica, sendo mais do que o que se pega e

percebe, em que nos acreditamos confiantes. Mundo nunca é um objeto que está diante

de nós e pode ser visto. Mundo é o sempre inobjetivável, ao qual estamos subordinados

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enquanto as vias de nascimento e morte, bênção e maldição nos mantiverem arrebatados

pelo ser (a). Onde acontecem as decisões mais essenciais de nossa história, que por nós

são aceitas ou rejeitadas, não compreendidas e de novo questionadas, aí o mundo

mundifica. (...) No que um mundo se abre, todas as coisas recebem sua morosidade e

pressa, sua distância e proximidade, sua largueza e estreitamento. No mundificar está

reunida aquela amplidão a partir da qual a benevolência protetora dos deuses se doa ou

se recusa. Também a fatalidade da ausência do deus é uma maneira de como o mundo

mundifica. (HEIDEGGER: 2010, § 81)

O mundo que eclode no poema de Drummond é o mesmo enunciado na obra do pensador.

Mundo é a abertura que manifesta o destino humano, é o desvelar da trajetividade humana sobre

a terra. Quando mundo se manifesta, manifesta-se juntamente o homem como ser histórico que é.

É pela manifestação de mundo que pensar é possível, pois o homem é à medida em que habita o

mundo. Mundo se funda na disputa entre o velamento e o desvelamento, e nesse movimento ele

eclode. A mundo corresponde o fundar como mundificar, mas que em si mesmo não possui um

fundamento, isto é, uma causa. O mundificar é resguardado no apelo da máquina, entendida

como tensão manifestativa do mundo. A realidade se realiza como mundo. O gesto do mundo é a

vida. O que o caminheiro do poema procurava não era esse mundificar do mundo, até mesmo

porque isso ele nem conhecia, mas uma causa, o princípio fundamental, o fundamento. O pensar

do caminheiro era uma busca exaustiva pela razão ou causa de toda e qualquer realização do real.

O pensar com que o caminheiro se depara é um deixar que a vida entre em cena. O que

quer dizer isso? É mergulhar no mistério-vida que se nos oferece como oportunidade no

maquinar/gestualizar mundo. Do latim, opportúnus é o que conduz ou põe em direção ao porto.

Originariamente, portus possui sentido de passagem. O que a vida nos oferece é passagem.

Pensar é o movimento de fazer a passagem do não-ser ao ser e também o contrário, isto nos diz o

sentido do agir, nomeado pelos gregos poiesis. Pensar é poiesis da vida e a vida da poiesis. Todo

pensar é um deixar passar, é a possibilidade que se abre para uma travessia. Pensar diz um

movimento, mas mais que isso, é movimentar-se. Pensamento é passagem assim como pensar é

passar. A vida é um pensamento-passagem e viver, pensar-passar.

Pensamento é a trama na qual e pela qual se é possível fazer toda e qualquer passagem. Mas

como isso é possível, se podemos dizer que fizemos algo sem pensar, como, por exemplo, se faz

na afirmação: “Falei sem pensar”? Entretanto, na expressão “Falei sem pensar” acontece que o

pensamento se retraiu no pensar enquanto a fala se pronunciou no falar. O que pode ocorrer

muitas vezes é que nem sempre a fala é uma fala da escuta, o pensar, pelo contrário, no sentido

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de cura, sempre se dá primeiro como ausculta. Nela o pensamento permite que as coisas venham

para junto de nós segundo seu modo próprio de ser. Pensar salvaguarda o caminhar por entre as

coisas e, per-meando-as, volta-se para o nelas ainda desconhecido. Este nunca é proposto pelo

pensador, mas é algo que se anuncia furtivamente no seu próprio aparecer e retrair. O que se

retrai parece ausente, mas só aparentemente, pois “O que se retrai se faz vigente – a saber, através

do fato de nos atrair, quer percebamos agora, depois ou mesmo nunca.” (HEIDEGGER: 2002, p.

116). O que nos atrai no silêncio do retraimento é o que nos toma e impulsiona a pensar. O

caminho do pensamento nos conduz ao nosso próprio, ao que somos. E esse o apelo operado pela

máquina do mundo, o apelo a pensar o ser. Este é o apelo mais antigo da história do pensamento

e da poesia, ao que se crê ser mais antigo mesmo que os pensadores gregos originários, como

Parmênides, que nomeou essa relação do seguinte modo, no conhecido fragmento III: “Pois o

mesmo é pensar e ser”.

1.2.4 – Pensar: a renúncia originária

Para atender ao convite feito pela máquina do mundo o caminheiro deveria fazer a mais

difícil passagem que alguém possa fazer, a passagem da renúncia, a travessia de todas as

travessias. Fazer a passagem da renúncia instaura o abrir mão de todo saber sabido, pensar

pensado e aprender aprendido, isto é, abrir mão de todo saber, pensar e aprender que foram

entificados, que perderam seu “mover-se rumo a” e viraram substantivos prontos e acabados

como respostas dadas e consolidadas conceitualmente. Renunciar é abrir-se para o que se re-

anuncia no que se anunciou, mas não se havia pensado antes.

O que o caminheiro ausculta no entre-abrir da “máquina do mundo” o deixa perplexo:

O que procuraste em ti ou fora de/teu ser restrito e nunca se mostrou,/ mesmo afetando

dar-se ou se rendendo,/ e a cada instante mais se retraindo,/ olha, repara, escuta: essa

riqueza/ sobrante a toda pérola, essa ciência/ sublime e formidável, mas hermética,/ essa

total explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singular,/ que nem concebes mais, pois

tão esquivo/ se revelou ante a pesquisa ardente/ em que te consumiste... vê, contempla,/

abre teu peito para agasalhá-lo.

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A verdade que o caminheiro procurou dentro dele como um ímpeto de subjetividade, ou

mesmo fora dele, como um desdobrar da objetividade “nunca se mostrou”, antes sempre se

retraiu, de repente, ao renunciar essa “pesquisa ardente” de uma compreensão e explicação

epistemológica, a “máquina do mundo” se abre com todo o seu vigor e mistério e apela ao

caminheiro: “abre teu peito para agasalhá-lo.”. Interessante que ela não diz: “- Abra tua mente”.

Mas “abre teu peito”. O peito que abriga o coração é uma imagem como referência ao

sentimento, este como um ponto de irradiação para corpo inteiro, quer disser, a totalidade, sem

dicotomias entre corpo e alma. O caminheiro deve abrir o peito para agasalhar “o absurdo

original e seus enigmas, /suas verdades mais altas que todos/ os monumentos erguidos à

verdade”. O absurdo original não é o princípio ou causa, mas o próprio mundificar que se

manifesta como um enigma e a verdade do acontecimento é muito maior que os monumentos da

razão erguidos a ela. Quais são os enigmas e verdades altas do absurdo original: a memória dos

deuses e o solene sentimento da morte.

Outro poema de Drummond que coloca a questão da dobra pensamento e arte é o intitulado

Poesia, e nos remete ao movimento singular de sua poética. Auscultemos sua fala:

Gastei uma hora pensando um verso

Que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

Inquieto, vivo.

Ele está cá dentro e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

Inunda minha vida inteira.

(ANDRADE: 2007, p.21)

O poema tem início com as seguintes palavras “Gastei uma hora pensando um verso / que a

pena não quer escrever”. De imediato percebemos que o pensamento é levado ao encontro da

arte, que se manifesta através da palavra “verso”. Não se diz aqui passei uma hora elaborando

um verso, ou criando um verso, tampouco imaginando, diz-se pensando um verso. O que se pode

nos revelar tem início na referência entre pensar e verso. O verso, no sentido que aqui se

encontra, é a eclosão da fala da poesia, e esta é a manifestação do silêncio. No poema o pensar

está em tensão com a arte, assim como a fala está em tensão com o silêncio e traz à cena ainda

outra questão mais originária: a própria tensão. É a tensão que manifesta tanto o silêncio-fala

quanto pensamento-arte. A tensão é o vigor em que vigoram todas as coisas. O poema diz que o

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verso está “cá dentro/inquieto, vivo.” e mesmo “não querendo sair”, “a poesia deste momento”

inunda a (minha) vida inteira. O verso/fala da poesia/pensamento vigora em algum lugar, isto é

certo, mas se o lugar não é o sujeito tem-se a seguinte questão: Por que se diz que ele está cá

dentro? Ou seja, dentro de onde ele está? A questão que ora se põe se desdobra em duas:

pergunta-se pelo lugar onde o verso/fala vige e porque o poema diz “cá dentro”. O lugar onde o

verso/fala vige é o mesmo onde vige o silêncio e também poesia e pensamento: na tensão. Essa

tensão não é qualquer tensão, mas de onde se origina tudo o que se manifesta e que se vela. A

essa ação os gregos denominavam physis. A physis eclode como a-letheia.

Por que o poema diz “cá dentro” e não lá dentro ou em outro lugar, expressando uma idéia

de subjetividade? Trata-se de um dentro do poeta, sua consciência? Note-se que o poema diz “cá

dentro”, mas não “dentro de mim”. Cá dentro é onde também o poema está. Quem fala aqui não é

o homem, mas a linguagem que penetra o homem. Cá dentro é o lugar onde a linguagem vigora e

de onde a fala nos advém. A expressão renega e renuncia a todo princípio de subjetividade

corrente na modernidade e entrega a fala à sua origem, a saber, à linguagem. A linguagem vigora

na tensão que salvaguarda originariamente fala e silêncio.

O poema encerra sua suposta fala truncada dizendo que “a poesia deste momento / inunda

minha vida inteira.”, nesta fala acontece algo muito interessante, a luta entre manifestar e não-

manifestar o verso/fala faz eclodir uma fala que tem origem nessa disputa: fala/silêncio, a isso

que se manifesta o poema chama Poesia e nessa disputa se tem, além de assinalado o lugar, o

assinalamento do tempo: “poesia deste momento”. Poesia do momento faz referência a um tempo

que se manifesta como poiesis, um tempo poético que inunda a “minha vida inteira”. Tanto o

“minha” como o “Gastei”, no poema, se referem a um pretenso “eu”, que se supõe humano, um

ser humano. O verbo gastar indica aqui um fazer humano, esse fazer é nomeado pela palavra

“pensando”, que indica a forma verbal no gerúndio dando um sentido de ação contínua ou

continuada. O pensamento no poema é um ato continuo e faz o homem, mais do que gastar uma

hora, gastar-se nele. No entanto, esse gastar não é um gastar que subtrai, apenas, mas um gastar

que acrescenta ou, antes, transforma, porque é um gastar que, no seu desenlace, inunda. Na

sintaxe poética da linguagem o pensar não é uma ação do homem, mas algo que já de si o tem, o

envolve: não é o homem que pensa o pensar, mas o pensar pensa o homem.

O pensar assim entendido não é uma faculdade racional, mas um convite natural que

envolve e seduz o homem, uma vez envolvido e seduzido pelo canto do pensar o homem nunca

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mais é o mesmo, por isso o pensar-poético inunda. O que sucede aos dois primeiros versos do

poema possui um sentido de oposição ou contraste ao que foi dito anteriormente expresso pela

locução conjuntiva “No entanto”. O sentido que se presta à sequência do poema é a de que

“apesar de” se ter gasto “uma hora pensando um verso/ que a pena não quer escrever.”, não quer

dizer que ele não exista, antes o seu poder de não querer sair anuncia sua notável presença. Todo

esse movimento acontece num tempo específico que é, inicialmente, marcado de forma

cronológica – uma hora, mas que se transforma num tempo especial que assinala um

acontecimento. Esse acontecimento “inunda minha vida inteira.”. Esse inundar é uma

acontecimento poético-apropriante que se dá enquanto poesia pensante, isto é, em seu vigor

pleno. O inundar assim entendido é uma plenificação que inaugura um novo sentido. A expressão

“minha vida inteira” reflete uma experienciação vivencial que se dá imediatamente nesse inundar.

Inundar a vida inteira se realiza numa plenitude vital de experienciação do pensamento poético.

Para ser poético esse pensamento não pode ser qualquer pensamento. Como já se disse, não se

refere ao pensamento no sentido ao qual estamos habituados que é o de avaliar pelo raciocínio,

delinear racionalmente algo, formar ou combinar idéias por meio de um encadeamento ou

proposição lógica. Tal forma de pensar é antes de qualquer coisa uma redução das manifestações

da realidade a conceitos lógicos e essencialmente subjetivos. O pensamento expresso no texto é

um modo pelo qual a linguagem vem à tona, é uma forma por meio da qual a realidade se diz e,

ao mesmo tempo, além disso, é um pensamento poético. Para ser inundado desse pensar-poético,

o homem precisa estar vazio, o que só acontece na renúncia-originária. A renúncia-originária

prepara o caminho para o inundar do pensamento e da vida com a poesia. É abrir mão de uma

delimitação subjetivista, racionalista e controladora do pensamento e render-se ao mover próprio

do pensar-poético. Pensar poeticamente diz o renunciar para re-anunciar o pensamento originário

e inaugural.

A força instituidora que se manifesta no poema é dado de modo imagético. O que se chama

imagético aqui não tem nada a ver com contornos físicos, formação de idéias representacionais

ou delineamentos imaginários, pois todas essas formas se fundam no agir do sujeito e são por ele

modeladas de modo que se atinja a finalidade proposta. A imagem que se dá no poema é uma

doação da linguagem como palavra-máquina. Também distinta do signo verbal, a palavra em sua

dimensão poética é essencialmente manifestação da verdade. O poema Poesia instala a tensão

entre arte e pensamento na poesia drummondiana constituindo uma dobra com o poema A

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máquina do mundo. O dito de ambos se pronuncia manifestando uma imagem-questão que nos

convoca à escuta do pensamento-poético, esta é homônima aos títulos dos poemas e poderia

figurar como: Poesia – a máquina do mundo. O pensamento-poético como linguagem é a

essência da imagem-questão que se manifesta nos poemas como dobra. Essa imagem-questão é

evocada e se manifesta originariamente como um modo de aproximação da essência do sentido

originário de arte-pensamento e pensamento-arte como com-sumação da vida. Pensar é renunciar

originariamente à posição (do grego thésis) racionalista para (re-)inaugurar o sentido da

existência como destino, deixando com que ele nos envolva no desdobrar triunitário de vida,

caminho e verdade. O fenômeno da linguagem na poesia se con-suma como tensão entre poesia e

pensamento no retraimento e unidade (memória) de fala e silêncio como escuta do logos.

1.3 - Memória: vida do pensamento

Toda obra de arte é, de alguma forma, uma referência à memória. Se não for radical

demais, podemos até dizer que toda obra de arte é memória. E é mesmo, não no sentido usual que

aponta para lembrança ou rememoração de um passado, mas como um inaugurar original de

mundo que se refaz a cada instante no horizonte humano. De algum modo a obra de arte sempre

coloca a memória como questão. A memória é um modo de vigorar da linguagem. Esta reúne

tudo o que se apresenta no âmbito do desvelamento, em si mesma, como a-presentação, isto quer

dizer que a linguagem se coloca como o a- da presentação ao aproximar e proporcionar toda e

qualquer presentificação. Tudo o que se presentifica se dá primeira e prioritariamente como

linguagem-memória.

Vida é a reunião de tudo o que se dispõe e presentifica na triunidade de presente, passado e

futuro. Desse modo ela rege toda e qualquer experienciação do real. Só podemos fazer a

experienciação da vida se antes fizermos da vida uma experienciação. Cabe ao homem antes de

tudo fazer do viver uma travessia como abertura para a disponibilidade de tudo que se vela e

revela no âmbito da vivência. Viver é deixar com que vida se manifeste como revelação de

sentido na reunião do que vigora entre o que se é, o que já não se é e o que ainda não se é, isto é,

destino.

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Assim, vida é presentificação e, ao dar-se, acontece como memória. “Memória é a

concentração do pensamento”, diz Heidegger (HEIDEGGER: 2002, p. 111). Concentrar nomeia a

ação de trazer o que está disperso ou separado para um centro, reunindo-o. Memória como com-

centração do pensamento aponta para trazê-lo para o centro e o deixá-lo vigorar inaugurando o

sentido da existência como destino: “é pela memória que se pode estabelecer o nexo do que é,

mas que ainda, ou já, não existe” (JARDIM: 2005, p. 156). Unindo e reunindo, memória é

também um modo de consumar o pensamento levando-o a sua plenificação.

Como na máquina do mundo e na obra de Drummond memória se manifesta?

No caminhar do caminheiro o som de um sino rouco se mistura ao som de seus sapatos. O

sino está ligado diretamente à percepção de um som e da vibração produzidos, ele evoca a

posição de tudo o que está suspenso entre céu e terra e, por extensão, entre mortais e imortais. O

som do sino é extremamente descontínuo e lacunar, como o dos sapatos. A intercadência e

intermitência do som evocam certa transitoriedade e alternância. O som passageiro nos anuncia a

passagem do tempo, mas também do silêncio ao som e deste àquele. A alternância fala e silêncio

nos situa no movimento de esquecimento e não-esquecimento, velamento e desvelamento. O

hiato, isto é, a pausa na pulsação do som é um vigorar do silêncio, do vazio. O trecho em questão

nos diz: “E como eu palmilhasse vagamente / uma estrada de Minas, pedregosa, / e no fecho da

tarde um sino rouco / se misturasse ao som de meus sapatos / que era pausado e seco;”. O som do

sino rouco se mistura ao som dos sapatos que era pausado e seco. Esse som seco, sem adornos,

vigora apenas na essência do próprio caminhar ou palmilhar e vem de um sapato do caminheiro

que calcava vagamente uma estrada pedregosa de Minas, no entanto, o som da caminhada se

mistura ao som de um sino. Duas sonoridades intermitentes se reúnem na caminhada. A extinção

rápida e misteriosa do som do sino (o que foi) dá lugar à cadência constante do caminhar de

alguém (o que é) que ainda não encerrou sua travessia (o que será).

O som e a vibração intermitentes do que está suspenso entre céu e terra e mortais e imortais

são manifestações do mistério como revelação. A revelação não se coloca no nível do revelado,

que seria o exposto de um modo já definido e estabilizado, como um conhecimento que se

adquire e se condensa, antes seu movimento é extremamente indefinido e vago. A vaguidão é

uma doação do vazio, este não nos diz o uso comum como o que no qual não há nada, mas o

vazio que é a possibilidade de todos os possíveis. Esse vazio é o que possibilita a reunião de tudo

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o que é ou existe, este se chama memória que, em seu vibrar congrega em si passado, presente e

futuro.

É preciso, porém, entender de que modo memória vigora no poema. De acordo com o uso

corrente, os dicionários registram o significado de memória como lembrança ou reminiscência,

isto é, a faculdade de conservar e lembrar de estados de consciência, fatos e experiências vividas

no passado e de tudo quanto se ache associado aos mesmos. Memória seria o que possibilita

reviver ou restabelecer experiências passadas com maior ou menor consciência do que a

experiência do momento presente, por extensão, significa também retenção, reconhecimento e

evocação, dentre outros significados. Enfim, memória é entendida como uma capacidade

facultada à mente de reter ideias, situações, coisas vistas, ouvidas e sentidas, ou seja, que passam

pelos sentidos. Mais uma vez, os conceitos são válidos e muito importantes, mas não conservam

o originário do que seja memória na arte e no pensamento. O poema A máquina do mundo

aponta para um sentido poético de memória.

1.3.1 - Memória: reunião integradora do que era, é e será

A origem da palavra memória é bem explicitada por Antônio Jardim, quando este diz:

A palavra memória provém do grego mnéme que diz, mais imediatamente, ação de se

lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito, documentos, arquivos,

preceito, prescrição. Se se decompusesse mnéme em mne-, que diz, em última instância,

unidade, e -me, que pode dizer, se derivado do indo-europeu *med, governar, pensar,

sonhar ou medir, teríamos que memória diria governar, pensar ou medir a unidade. Na

sua forma alongada, já no grego, men diz meditar, refletir, inventar, mas também, velar.

A partir daí pode-se entender memória como a instância de inventar, meditar, refletir e

velar, no sentido de cuidar, a unidade. (JARDIM: 2005, p. 126.)

Memória é unidade ou reunião integradora do que era, é e será, ela conserva a tensão

originária de mistério e manifestação. Ela reúne vida, caminho e verdade como um mútuo referir-

se triunitário que, numa imagem mental, pode se comparar a um triângulo. Poder-se-ia perguntar,

pensando nessa forma geométrica, qual estaria no vértice e quais na base? Responderíamos, sem

medo de estarmos equivocados, nenhum deles teria uma posição marcada, mas seria como se esse

triângulo girasse trazendo ora um ora outro para o centro da questão numa mútua referência.

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Além disso, pode-se perceber também que memória está originariamente ligada aos mitos

arcaicos:

Memória em seu vigor de palavra remonta à Mitologia. Nesta, Memória é a mãe de todas

as artes. É pelo vigor da Memória (mãe) que podemos articular e manifestar

o memorável. Memorável é o que permanece no fluxo das mudanças fugidias e

passageiras. Por isso, memória e tempo unitário são um só, ou seja, o tempo

tridimensional (passado, presente e futuro) é ontologicamente unitário como memória.

Nessa unidade não há uniformidade conceitual, mas há identidade enquanto diferença,

ou seja, permanência e mudança. Isto é a memória.

(http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/ acessado em 24 de março de 2012. Verbete

memória. Por Manuel Antônio de Castro)

O tempo unitário é o que opera o acontecer, esse operar nos diz pôr em obra e este é um

agir da memória. O acontecer é, ao mesmo tempo, permanência e mudança, o que acontece é o

vigor do que mudou e se presentificou como unidade. O tempo operando o acontecer, como

assinalam poetas e pensadores, é a memória vigorando como “condição de possibilidade do

estabelecimento de todo e qualquer complexo temporal-espacial como unidade” (JARDIM: 2005,

p.156). A escuta de memória põe como questão o passado que ainda é presente e o futuro que

ainda não é. O poeta modernista é o mesmo aedo que falava por inspiração das musas na

Antiguidade. Inspiração hoje é tomada como entusiasmo criador focado na subjetividade. Dizer-

se inspirado é exaltar a realidade psíquica, emocional e cognitiva do homem, ou seja, uma

apropriação intelectual da realidade e da linguagem e capacidade de manipulá-la, como a um

objeto, por meio de proposições racionais, de modo que esta, a linguagem, represente aquela.

Porém, na Antiguidade, a inspiração do aedo correspondia à escuta das Musas, filhas da

Mnemósine, a memória. O extraordinário se dava como manifestação do mistério na escuta e

correspondência à fala das Musas, que eram portadoras da sabedoria. Esta, não se tratava de um

saber comum, como hoje se confunde muito, tomando informação/conhecimento no lugar de

sabedoria. Enquanto a informação e o conhecimento se processam mais comumente pelas vias da

razão e têm como essência a assimilação que resulta numa conceitualização ao estabelecer a

relação sujeito-objeto, a sabedoria faz a travessia da questão e se consuma como uma

experienciação do real. Não se ensina a sabedoria, mas se a experiencia como aprendizagem. Por

isso memória e sabedoria estão intimamente ligadas.

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Sabedoria não se compra, não se vende, não se dá, não se negocia, antes nomeia a própria

força integradora e possibilitadora de toda e qualquer experienciação humana com a verdade.

Sabedoria é a abertura que concentra as experienciações da vida na tensão entre saber e não-

saber. Nesse jogo de apelo e retraimento do saber, somos tomados pelo que de algum modo já

sabemos e, ao mesmo tempo, ainda não sabemos. Nesse jogo perigoso o que acena tanto pode se

mostrar como um caminho de vida que nos põe rumo a uma travessia por toda a vida, como pode

se retrair e desaparecer e nunca mais nos acenando novamente. Como caminho, cada pegada é

um passo do que se sabe ao que não se sabe, isso diz a caminhada. Sobre a questão, Emmanuel

Carneiro Leão quando diz o seguinte: “Não posso saber o que é o Nada, mas posso saber que não

sei. Se sei que não sei, não estou vencido. Ainda tenho o saber de meu não-saber. O auge da

sabedoria não é o não-saber do saber, mas o saber do não-saber". (LEÃO: 1977, p. 184). Como

concentração de experienciações, memória é o vigor tensional que não deixa o experienciar

transformar-se num experienciado, pois nela também vigora a tensão entre o permanecer e o

passar. Nesse sentido, memória é o acautelamento da physis, isto é, é a guarda e o cuidado do que

se desencobre e, em seu desencobrir, logo tende ao encobrimento.

[...] através da palavra usual Gedanke (pensamento) ou Gedanc (guardar, lembrar) e que

corresponde a Gemut (alma, coração). Gedanc e Gedächtnis, memória, um recolher, um

pensar interiorizado, um pensar em e junto a, um pensar entre, onde fidelidade e

constância caracterizam o deixar ser-presente. É uma presença através do que é passado,

do que é presente e do que é a vir (advir)." (HEIDEGGER: 1969d, p. 10)

O homem vivencia enquanto vive a tensão entre pensamento e memória em seu estar junto

ou de permeio entre as coisas, de modo que elas mesmas presentifiquem o que e como são.

Memória é pensar junto a ou entre. O memorar sempre se dá junto a esse pensar, no sentido de

cuidar, assim, é sempre um co-memorar, recolhendo e reunindo, entre ocultação e desocultação,

tudo o que se presentifica, o qual protege, guarda, cuida. A memória, nesse sentido, vigora apenas

no homem, pois só ele pode habitar originariamente o mundo. Apenas o homem constrói e

constitui ontologicamente sua morada, em seu ser e estar no mundo, na e pela memória, que se dá

também e essencialmente como linguagem.

Em meio a tudo o que se revela ao caminheiro, surge “ o absurdo original e seus enigmas /

suas verdades altas mais e que todos / monumentos erguidos à verdade: / e a memória dos deuses,

e o solene / sentimento de morte, que floresce / no caule da existência mais gloriosa / tudo se

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apresentou nesse relance”. Ao vislumbrar a memória dos deuses, Mnemósine, e o sentimento da

morte, Tanatos, ou antes a própria Moira, como destino de todos os mortais, o caminheiro é

iniciado nos mistérios da vida e da morte.

1.3.2 – Memória, morte e destino

Tanto Tanatos quanto Moira são filhos de Érebo e Nyx, a noite, e, ao mesmo tempo, filhas

de Zeus e Thémis. Torrano assim se refere à dupla origem desses deuses: “Com essa origem

dupla e antinômica, as Moirai são o limite positivo, constitutivo e configurativo de cada ser

divino ou humano” e continua ampliando a questão: “A dupla filiação das Moirai indica, nos

termos próprios do pensamento mítico, que toda afirmação implica a negação” (TORRANO:

1981. p. 97).

A noturnidade da noite é a imagem-questão do velamento das coisas presentes no embate

de Mnemósine, Moira e Tanatos, enquanto reunião tensional de não-esquecimento/desvelamento

e esquecimento/velamento, daí o tom noturno que o poema A máquina do mundo assume quando

se refere ao “sentimento de morte, que floresce / no caule da existência mais gloriosa”. É a

memória que possibilita a ligação entre os domínios do invisível e do visível, do ocultamento e da

presença. Mnemósine gera as forças do canto, as Musas, cuja ação presentificadora traz à

presença a totalidade do que se desvela e do que não se desvela. A-létheia é a ação da memória

enquanto não-esquecimento, desvelamento e ao mesmo tempo enquanto o próprio velamento

(léthe).

Mnemósine e Zeus têm como filhas as Musas. Musas e Moira partilham a ação de memória

dinamizando o movimento de eclosão da verdade do ser:

As Musas trazem à luz e presentificam o que é, recolhendo-o por força de Memória e

redimindo-o das trevas obliviais do Não-Ser, - mas as Musas também presidem ao

Esquecimento e impõem-no, quando assim querem. As Moirai definem e circunscrevem

o ser (i.e. o nascimento-natureza) de cada deus e por isso mesmo impõem a cada deus

que ele não seja o que ele não é e não pode ser. Há, portanto, um paralelismo entre a

função das Musas e das Moirai. (TORRANO: 1981. p. 98)

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Memória, morte e destino, tomados nas imagens-questões de Mnemósine, Tanatos e Moira,

fazem eclodir o caráter divino de mundo e o devolvem à dimensão do sagrado, desse modo “cada

deus, como plenitude e sentido absolutos, irrompe dramaticamente e comunica à vida humana

uma plenitude de sentido – benéfica ou terrível, que traz assombro e a experienciação do sublime

e do horror.”. (TORRANO: 1981. p. 96).

Os deuses, como doação do sagrado, irrompem sob a jurisdição da Moira, como seu próprio

constituinte, seu quinhão partilhado. A Moira anuncia o destino humano como limite e não-limite

na medida em que cada um só pode ser o que é, mas o que ele é se oculta no não-ser. O impasse

humano resulta do fato de que ele só pode ser o que é e não pode ser o que não é, mas como sabê-

los se a essência de seu destino é o ainda não-desvelado?

Da tensão memória e Moira é que eclode mundo. Ao homem pertence o caminhar entre

memória e destino, essa é a grande questão, o mistério em que desde o seu nascimento ele já está

imerso.

É, em última instância, pela memória, que o ser humano se configura como um ser

passível de constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que

se estabelece a possibilidade da vigência da unidade. A memória é um modo

privilegiado de constituição da unidade e por isso, um modo privilegiado de

consolidação de toda a possibilidade de relacionamento entre o que foi o que é e o que

será. Desse modo, é pela memória que o caos pode se converter em cosmos. (JARDIM:

2005, p. 124.)

Mundo na mitologia grega surge do e no canto das Musas. As Musas manifestam as forças

ontofânicas do cantar e no seu canto desvelam o destino humano. Ao desvelar o destino humano,

o cantar das Musas coincide com a a-létheia. A diferença entre a sabedoria cantada pelas Musas e

o saber da ciência é que, no desencobrimento do canto das Musas, mantém-se o coberto do

domínio da Moira. O canto é o embate alethopoético entre velamento e desvelamento do destino

historial do homem. Esse lance do meio do caminho, onde o que o homem é se desvela e vela no

abrir-se do próprio caminhar como doação do ainda-não-trilhado, o não-caminho que constitui o

sendo de cada homem. O sendo é o ser se dando e doando no mundo. O ser não é sujeito, nem

objeto, nem a complementaridade destes. O que ser é se dá no destinar-se e o destinar-se só é

possível quando mundo eclode. A eclosão de mundo é que possibilita o sendo do ser. Quando

mundo eclode o homem acontece como sendo histórico, pois seu destino é trilhado e o sentido de

ser se plenifica como ser-no-mundo. Ser se dá na e como travessia.

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O movimento histórico do homem como ser-no-mundo se desdobra no poema Memória, de

Drummond. Abramo-nos à sua ausculta:

Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão.

(ANDRADE: 2007, p.252)

Quatro movimentos se desdobram no referido poema em tensão com a memória, a saber: o

amor, o nada, o sensível e finitude e permanência.

1.3.3 – Memória e amor

O poema Memória é divido em quatro movimentos que coincidem com o número de

estrofes do mesmo. Os movimentos do poema se parecem com aforismos como desdobramentos

da memória. O primeiro nos diz: “Amar o perdido / deixa confundido / este coração.”. Aqui se

tem a dobra da memória com amor. Memória é “Amar o perdido”. Amar é a ação mais profunda

da qual o ser humano é capaz e que permeia toda a vida e existência humanas; Implica renúncia,

doação, entrega e paixão. Não amar é morrer. Perdido é comumente aquilo do qual se perdeu a

posse, o que se deixou escapar ou esqueceu. Memória é amar o que escapa, o que não se tem

posse, o que se esqueceu. Esquecer aqui não tem o sentido do não-lembrado, mas do que

furtivamente mergulhou no velamento, do que pulsa nas entranhas do não-saber. Este amor ao

perdido deixa confundido o coração. Confundido pode-se ligar facilmente ao vocábulo confusão,

designando o que está confuso. Entretanto, um outro sentido se nos assoma, confundido é

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também o que se fundiu-com, foi ligado estreitamente, além disso possui igualmente o sentido de

maravilhado ou assombrado. Assim, confundido é o que foi tomado por algo com o qual se ligou

intimamente. Coração é a imagem-questão do sentimento, figurando como a parte central ou mais

profunda do ser, seu âmago. Amar o perdido confunde o coração, isto é, une intimamente o amor

ao que se deixa escapar, o perdido, o que se dá (-dido/dado) furtivamente no entre-caminho

(per-).

1.3.4 – Memória e nada

“Nada pode o olvido / contra o sem sentido / apelo do Não” enuncia o segundo movimento

da memória. Olvidar fala de perder a memória de algo ou este não (poder) vir à lembrança de

alguém. Os versos também podem ser organizados do seguinte modo: “O olvido pode nada

contra o sem sentido apelo do Não”. Nesse caso, ao dizer que o “olvido pode nada”, este deve ser

entendido como o nada criativo, não como nada nadificador. Assim, o nada não nos remete ao

niilismo, nem ao pessimismo nem ao sentido de coisa nenhuma, como geralmente se pensa, mas

ao véu do ser: “O nada é a possibilitação da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí

humano.” (HEIDEGGER: 1969a, p. 35). O nada é a possibilidade do ente ser o que ele é. O nada

é o não-ser, o vazio, não como negação do ser, mas como o seu desconhecido, imerso no

mistério: “O nada enquanto o outro do ente é o véu do ser. No ser já todo o destino do ente

chegou originariamente à sua plenitude.” (HEIDEGGER: 1969b, p. 58). O nada é a possibilidade

essencial de todo o possível vir à presença e se plenificar; é o guarda do destino humano como

vir-a-ser e também como não-deixar-de-ser; é o esquecimento ou velamento originário como

condição de possibilidade de toda revelação. Tudo o que é e existe é uma doação desse nada e

para ele tende a retornar. Ele se revela na angústia diante da finitude facultando ao homem a

espera do inesperado, da revelação do destino humano. É o mesmo que Guimarães Rosa anuncia

quando diz que: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (ROSA: 1975.

p.71). O que parece um paradoxo é a essência da própria vida. O que quer dizer “nada acontece”?

Ora, se nada é coisa nenhuma como ele acontece? O nada é a condição de possibilidade de todo e

qualquer acontecimento, e este só é possível por ser uma doação do nada. O que acontece sempre

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acontece no nada, no vazio, ainda que como um mistério invisível aos olhos. Caso contrário, não

poderia acontecer.

Mas o que é esse “ sem sentido apelo do Não”? O “sem sentido apelo do Não” é o não-

esquecimento. Dizer que “Nada pode o olvido / contra o sem sentido / apelo do Não” é o mesmo

que dizer que o esquecimento só é enquanto tal e tem sentido estando em tensão com o não-

esquecimento e vice-versa. O pensamento comum os vê na oposição radical como ameaça mortal

de um contra o outro, entretanto, o nada como esquecimento é a abertura para o “sem sentido

apelo do Não” como não-esquecimento instaurador. Essa tensão é memória.

1.3.5 – Memória e o sensível

O terceiro movimento assinala que “As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da

mão.”. À superfície dos versos, o leitor pode ser de imediato levado a pensar em que se está

criticando a concretude das “coisas tangíveis” e talvez até levar a memória para o âmbito do

abstrato como uma forma de permanência e conservação da sensibilidade da experienciação

registrada. Porém, podem-se pensar os versos de outro modo. Ordinariamente, os versos “As

coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da mão.” são possíveis de serem lidos do

seguinte modo: As coisas tangíveis têm sido tornadas insensíveis à palma da mão. Esse sentido é

coerente tanto com a sintaxe poética dos versos quanto com a compreensão geral do texto. As

coisas não podem tornar a si próprias insensíveis, antes são tornadas. Elas estão numa posição

passiva. Quem as torna insensíveis? O próprio homem.

Há nos versos também um paradoxo gerado pela ambivalência da palavra insensível.

Insensível significa usualmente o que é desprovido de sensibilidade física, não reage a estímulos

físicos ou não pode ser sentido ou percebido, também faz referência ao que é indiferente.

Insensível é o que está fora do âmbito do sensível. Nesse caso, é necessário pensar mais

radicalmente a palavra sensível, que pode figurar tanto como uma referência tanto ao que possui

sensibilidade quanto ao que se percebe como real imediato ou material, também no âmbito do

visível, evidente ou manifesto, podendo ser percebido pelos sentidos, assim, sensível seria

correlato à tangível. Entretanto, podemos compreender também o sentido de sensível como o que

se manifesta e está acessível.

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“As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da mão.”, quer dizer que deixam de

ser manifestas e acessíveis como são quando estão “à palma da mão”. Estar “à palma da mão” é o

que se dispõe sob o domínio do homem que é exercido, sobretudo, pela razão. O que está sob a

palma da mão pode ser manipulado pelo homem e usado como um instrumento para o que ele

desejar. Nesse sentido, memória deixa de vigorar no seu próprio e se expõe como o que possui

funcionalidade e instrumentalidade e que pode ser usado quando o homem quiser e para o que

ele quiser. Deixando de vigorar no seu próprio, memória é apenas uma capacidade humana como

lembrança, vigendo apenas no âmbito do não-esquecimento.

1.3.6 – Memória: finitude e permanência

O último movimento, porém, pontua o seguinte: “Mas as coisas findas, / muito mais que

lindas, / essas ficarão.”. Os versos começam com uma conjunção adversativa, que expressa o

contrário do que foi dito anteriormente, como refutação do efeito da ação humana sobre a

memória: “Mas as coisas findas,”. A expressão “Coisas findas” coloca uma das questões mais

importante para o homem: a finitude humana. A finitude (re-) coloca a questão do limite e traz à

tona o caráter transitório do estado das coisas.

A memória nos coloca diante da tensão entre o não-ser, tanto como o que já foi como o que

ainda não é, e o ser, abrindo a possibilidade de compreensão da finitude humana e, ainda, a

tensão entre vida vivida e vida experienciada. A memória marca a travessia humana entre vida e

morte. De todos os viventes apenas ao homem é possibilitado a compreensão da finitude, por isso

só ele morre, os demais seres perecem, essa compreensão vigora no âmbito da memória. Pensar a

finitude é pensar mais radicalmente a vida humana como experienciação de um destino, quer

dizer do ser e do ser-com. O homem não vive sozinho, isso é sabido e factualmente comprovado,

ele vive-com, se relacionando com tudo e todos que o cercam. A experienciação da finitude dos

que com ele habitam o mundo só é possível se dar na e pela memória.

Ao homem também pode-se abrir um espaço ontológico de reflexão sobre a vida que é e a

que não é, ou seja, o que se manifesta e o que se vela. A vida vivida é a experienciação humana

cotidiana, lançado no aberto de mundo que ele habita, mas nem sempre se dando conta disso. A

cotidianidade da vida, muitas vezes, furta ao homem a compreensão de seu estar-no-mundo e ele

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ignora o que é e como é. Pensar o limite como finitude é deixar ser tomado pelo sentido da vida e

da morte e reconhecer-se como ser-do-entre. A compreensão ontológica do limite da existência

faz com que o homem seja tomado pelo sentido de sua própria vida e, assim, lhe abre a

possibilidade de apropriar-se do que lhe é próprio. A morte, desse modo, não é um fim, mas a

travessia ao não-ser, ao nada, ao vazio, como vir-a-ser do destino. A essa compreensão

chamamos vida experienciada, ela é poeticamente evocada por Drummond no poema Ausência:

Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.

(ANDRADE: 2007, p. 301).

Vivenciar a ausência é fazer a experienciação fundamental da presença. Ausência, do latim

absentìa, não é falta, como nos diz o poeta, mas a plenitude da presença que se manifesta no que

se ausenta. A ausência é um estar em si mesmo e também no outro, como memória recolhedora e

acolhedora do que se retrai e manifesta; é o inverso-afastamento que, quando mais se distancia ou

oculta, mais se presentifica e manifesta. Memória é essa experienciação fundamental da tensão

entre ausência/finitude e presença/permanência como destinação humana do homem em

travessia, ou seja, que já não é o que era, mas ainda não é o que será.

Todo o caminhar humano como destinação vigora na e pela memória. Esta é a possibilidade

de revelação do ser vigorando no estar lançado no aberto do sentido como um movimento da

memória. A imagem-questão do caminheiro não se restringe a um poema, pode figurar nele, mas

é o mesmo ser humano que se move todos os dias nas questões aqui apresentadas e disto

consciente ou não. Lançar-se no aberto do sentido equivale a nascer de novo, originar-se. Destino

é origem como novo nascimento, batismo, iniciação numa nova dimensão do real, a dimensão do

entre, a medida de todas as medidas, ou seja, da memória – a máquina da vida.

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1.4 - Pro-cura: a arte da vida

A palavra procura nomeia as ações de tentar encontrar ou conseguir algo, ir atrás e

esforçar-se para alcançar, significa também, por extensão, investigar, pesquisar ou buscar.

Entretanto, se atentarmos para a composição da palavra, o prefixo “pro-” dá o sentido de ir em

direção a, ser atraído por, ir ao encontro de, colocar-se diante de e ainda o movimento de ir para

a frente de.

Cura, do latim, quer dizer literalmente cuidado na acepção de guarda, vigia, trato,

tratamento, ocupação e preocupação, o que está encarregado de alguma coisa. Segundo Ernout e

Meillet (1960), cura formou-se com a intermediação de um adjetivo curius, donde curiosìtas, no

sentido de empregar seus cuidados e diligência em buscar alguma coisa, ocupar-se

cuidadosamente de uma coisa, procura cuidadosa, empenho de saber, originando também

accurátus, assinalando o que é feito com cuidado e diligência.

Uma abertura maior para pensar a palavra cura se deu a partir das leituras do mito de cura,

dentre as quais, uma se destaca, a de Martin Heidegger na obra Ser e tempo, na qual diversas

questões dialogam com o sentido de cura. O significado semântico da palavra nos serve apenas

como ponto de partida para pensá-la, entretanto, cura nos diz algo ainda mais profundo quando

pensado ontologicamente.

Por isso, no mito, Cura é algo muito mais profundo do que os simples significados

semânticos da palavra cura. Em latim, cura diz cuidado, cuidar. Em torno de Cura

acontece o próprio constituir-se e plenificar-se ontológico do ser humano. Neste sentido,

qualquer determinação de gênero ou cultura identitária, para a ontologia do ser humano,

é reducionista. Identidade não passa de conceito, não é questão, porque a realidade e

toda cultura não cessa de mudar, ser diferente. Trabalhar com um conceito de identidade

é paralisar a realidade e qualquer cultura. Só o vigorar de todo acontecer pode nos lançar

nas questões. A Cura que vigora em cada ser humano, sempre de uma maneira diferente,

porque originária, não se reduz, seja ao feminino, seja ao masculino, seja a uma

identidade cultural. O que está em jogo no operar de Cura é sempre o destino de cada ser

humano. E este é absolutamente original para cada um. Não dá para reduzi-lo a nenhuma

classificação. Na regência de Cura se decide o destino do que cada um deve e consegue

realizar. Mas para isso, o ser humano, enquanto Cura, se defronta com questões

essenciais e originárias. É isso que passaremos agora a ver. (Castro: 2011, p. 227)

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Cura é o cuidado como condição de possibilidade tanto da constituição quanto da

plenificação do ser humano. O sentido de cura não se limita a noção de masculino, feminino ou a

uma identidade cultural, antes, opera o destino humano.

O prefixo grego pro- nomeia a ação de pôr-se rumo a ou movimento em direção a. O pro-,

da pro-cura, é um movimentar-se em direção à cura, isso quer dizer ter cuidado ou cuidar da cura.

Cura é o cuidado do ser, do obrar da obra, em seu tender natural à plenificação e à realização. É

assegurar a liberdade enquanto deixar vigorar livremente o ser e o acontecer da verdade.

1.4.1 - Pro-curar: ver, pensar e caminhar

As quatro primeiras estrofes do poema A máquina do mundo radicam a questão da procura,

mais uma vez, voltemo-nos para elas:

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

A máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

Podemos destacar três ações em torno da pro-cura: caminhar, ver e pensar.

Caminhar, caminho, caminheiro são palavras sempre retomadas neste trabalho. Caminhar é

atravessar enquanto o acontecer humano. É, no sentido aqui tratado, deixar-se tomar pelo

caminho e, ao mesmo tempo, inaugurá-lo como experienciação da caminhada. É atender ao apelo

e convocação do mistério e imergir no extraordinário cotidiano, ou seja, daquilo que eclode todos

os dias, no ordinário, como uma verdade/vereda desconhecida. Caminhar é colocar-se rumo à

procura de todas as procuras: a do destino humano.

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Em todo caminhar a pro-cura se dá como expectativa de ver o ainda-não-visto, a visão

originária da vida do desabrochar da flor, da efemeridade da gota de orvalho, do que surge,

consuma e finda todos os dias, do espetáculo oblíquo da existência que nunca revela inteiramente

sua dinâmica, do inesperado em tudo o que se espera, da cor que dá origem a todas as cores,

enfim, do mistério da vida.

O pensamento é sempre um esforço por apreender o que já se nos foi dado, mas ainda não

conhecemos, não compreendemos, ou seja, o que ainda não-é dentro do horizonte do que já se

deu. Por esse motivo, o pensamento é um apelo do caminho e do ver, para caminhar e para ver o

que ainda não se (en-)caminhou e não se viu. Pensar é caminhar-ver.

No poema A máquina do mundo, o caminheiro faz a acolhida de caminhar, ver e pensar

como pro-cura do sentido da vida, assim, pro-cura é um dos movimentos da cura como o apelo

mais profundo ao ser humano, como se pode notar num poema de Drummond intitulado

Lembrete:

Se procurar bem, você acaba encontrando

não a explicação (duvidosa) da vida,

mas a poesia (inexplicável) da vida.

(ANDRADE: 2007, p. 1256)

As principais palavras no poema acima são procura e encontro, elas regem todo o acontecer

da poesia. Há uma tensão entre elas: o “resultado” de procurar bem é encontrar. A procura é a

pro-cura de um encontro e, ao mesmo tempo, é movida pelo apelo. O que se pode encontrar, já

sabemos, é “a poesia (inexplicável) da vida”. Para encontrá-la é necessário pro-cura, mas não

qualquer procura. Deve-se “procurar bem”. “Bem” nos chama a atenção para o modo de pro-

curar. É uma forma de nos levar a atentar com maior profundidade para o sentido da pro-cura.

1.4.2 - Pro-cura, encontro e des-contro

Curar e cuidar possuem o mesmo radical e a mesma etimologia, ambos assinalam o sentido

de pensar. Pensar é cura/cuidado. Mas cura de quê? Cuidado de quê? Pensar é curar/cuidar da

linguagem. A pro-cura é um modo de ser-pensar, entretanto, não de forma aleatória, antes se

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move no e pelo apelo de um encontro como uma união heterogênea, ou seja, que une

resguardando a diferença do que se une. Encontro é o âmbito onde as coisas se medem a si

mesmas, a fim de conservar o que lhes é próprio. Nele não se anulam as diferenças, pelo

contrário, elas se afirmam na sua confluência mais íntima. A com-fluência, no sentido em que

tratamos, não é uma homogeneização, mas o núcleo central de uma esfera de ação ou de

pensamento em que coisas singulares tendem uma para outra conservando, porém, suas

diferenças, onde coisas distintas fluem conjuntamente. O tender mútuo que se vê no encontro é

um mover em que vigora a tensão da diferença. Esta avizinha as coisas no mútuo tenderem.

O que se avizinha tensionalmente segundo o apelo anunciado no poema de Drummond? O

pensamento e a poesia. O pensamento adquire nesse dizer uma dimensão estranha à razão: “Se

procurar bem, você acaba encontrando/ não a explicação (duvidosa) da vida,/ mas a poesia

(inexplicável) da vida.”. O pensamento que ora se anuncia é um pensamento que se lança não a

uma “explicação (duvidosa) da vida”, mas à “poesia (inexplicável) da vida”. Será que a poesia

possui mais sentido que a explicação?

A poesia é o tour de force em que vigora poeticamente a verdade, por isso ela conserva a

tensão entre fala-escuta/silêncio assegurando uma mútua referência, como se todos os poemas

fossem modos de ser de um único poema. Por esse motivo pro-cura será sempre uma questão

latente nas obras poéticas do verso e da prosa.

Noutro poema, Drummond enuncia novamente a pro-cura, seu título é A palavra mágica e

diz o seguinte:

Certa palavra dorme na sombra

de um livro raro.

Como desencantá-la?

É a senha da vida

a senha do mundo.

Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira

no mundo todo.

Se tarda o encontro, se não a encontro,

não desanimo,

procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura

ficará sendo

minha palavra.

(ANDRADE: 2007, p. 854)

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A primeira vista, poderíamos dizer que o que se procura é essa “certa palavra” que dorme

encantada “na sombra de um livro raro”, mas o que chama atenção e apela à procura não é o

lugar onde está essa palavra, na verdade, ele já foi indicado: “na sombra de um livro raro”. Note-

se que palavra não dorme à sombra, mas na sombra. Vale dizer que ela repousa na sombra, na

escuridão, no silêncio, no vazio. O que interessa saber é “Como desencantá-la?”. É isso que

intriga, que apela, que convoca. Esse como é a “senha da vida”, a “senha do mundo”. O como não

é um modo de agir, mas a vigência mesma do agir: a verdade como manifestação e realização.

Toda procura e encontro giram em torno desse como. Esse como é o que traz a palavra da

sombra, do silêncio e é também como ela se dá à vida, ao mundo. É o que se procura. É o que se

deseja encontrar. A saber, o sentido do agir, o ser das coisas eclodindo como sentido.

Da tensão entre a iminência da procura e da tardança do encontro é que o silêncio se faz

mais presente e a linguagem se deixa mostrar em sua essência e, nela, a vizinhança entre

pensamento e poesia. A pro-cura não se move pelo encontro. O encontro não é a “finalidade” da

procura: “Se tarda o encontro, se não a encontro, / não desanimo, / procuro sempre.”. O encontro

é o anverso da procura e também onde ela se move. Só se procura porque, de algum modo, já

houve um encontro. Procurar já é de algum modo encontrar. Na linguagem que se manifesta vem

à tona poesia e pensamento, ambos tem seu encontro assinalado na palavra: “Procuro sempre, e

minha procura / ficará sendo / minha palavra.”. A palavra acolhida neste poema não se refere a

um signo, mas de algo que recebe em si a vigência da dobra poesia e pensamento.

A dobra tensional resguarda em si a essência da verdade no sentido em que os gregos a

nomearam: a-letheia. A palavra em que vige essa dobra não pode ser classificada como um signo

linguístico que se expõe como representação material de um conceito abstrato, mas faz-se

questão, em seu sentido mais amplo. Quando essa palavra vem à linguagem, ela se torna uma

imagem-questão. A imagem-questão manifesta sentido ao passo em que se revela como

linguagem essencial, que é aquela que resguarda a dobra tensional entre procura e encontro, entre

poesia e pensamento, entre fala e silêncio, entre verdade e não-verdade, entre logos e physis,

entre o ser e o não-ser e tudo o mais que, desse modo, vem à linguagem. A procura é a pro-cura

do sentido, da senha da vida. Tal pro-cura se revela na palavra, esta é também uma pro-cura, um

modo de ser da verdade, como diz Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas: “E o que era

para ser. O que é pra ser – são as palavras” (ROSA: 2001, p.64). Palavra é um modo de

desencobrimento que vigora na pro-cura.

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1.4.3 – O caminho da pro-cura

A procura não é um resultado da decisão do sujeito. Não é o sujeito que cria a procura, mas

é ela que o requer, envolve, constitui e o destina. O ser humano se move e encontra sentido para

sua própria existência a partir da e na pro-cura infinda do próprio sentido do que é. Na pro-cura

há e não-há um desvelamento do ser, ela é a tardança em obra, ou seja, é um encaminhar-se para

algo que de certo modo já vigora em nós mesmos. Poeticamente entendido, encaminhar é mostrar

o caminho inédito e inaudito, assim, encaminhar poeticamente é pôr o caminho de modo

inaugural. Na poética, a procura inaugura um caminho cujo caminhar/procurar marca seu vigor

na palavra. O caminho/procura, na poesia, possui caráter do que se deixa alcançar e ao mesmo

tempo é fugidio. Caminho é figuração e vazio. A palavra é o caminho experiencial anunciado na

poética, ela também se manifesta e se oculta como, ao mesmo tempo, fala e silêncio. Caminho,

enquanto figuração e vazio, e palavra, enquanto fala e silêncio, resguardam em si a tensão

essencial da linguagem. Essa tensão não apenas está disponível, mas é o próprio entre, que une

conservando a diferença do que compõe palavra e caminho. Originariamente entendido, palavra e

caminho, na verdade são entre-palavra e entre-caminho. O entre possui movimento próprio e

permite seu contínuo. Pensar uma palavra ou um caminho poeticamente é pensar nessa abertura

como pro-cura. Enquanto pro-cura, palavra e caminho se dão como questão. A palavra questão

tem sua origem no latim quaerere, que significa: “empenhar-se na busca e procura do que não se

tem, por já se ter e para se vir a ter.” (LEAO: 1977, p. 44). Pro-cura e questão compõem o circulo

do pensamento que procura no pensado o ainda não pensado. A pro-cura encontra força e

vitalidade na tensão entre o que não se tem e o que já se tem. Nesse movimento é que a poesia e

pensamento acontecem como caminho.

Caminhar é lançar-se rumo à cura, é pro-cura. Caminho é o descortinar de um horizonte

que quanto mais palmilhado tanto mais retraído. Caminho é o misterioso destinar-se humano no

drama existencial da vida e enquanto caminhar é pro-cura do sentido. Assim o homem caminha

rumo ao desconhecido que o apela íntima e profundamete, a morte é o umbral de transcenção de

todo campo de visão permitido pelo horizonte, depois dela, é mergulho assombroso no mistério

inefável do infinito: o silencio abissal da vida.

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1.4.4 – Pro-cura: arte e vida

Que relação pode haver entre essa procura, a arte e a vida?

Procura poética, poderíamos assim assinalar um dos sentidos para o que se nomeia arte.

Arte é uma pro-cura poética. Não se quer com isso definir o que seja arte, mas trazer à linguagem

um dos modos como ela se dá: um dos modos como a pro-cura poética se manifesta é arte. A

procura poética se dá na linguagem e, ao mesmo tempo, a linguagem acontece como procura

poética. Um dos modos de manifestação da linguagem como verdade é a arte.

A arte é o lugar privilegiado do acontecimento do real, por isso a poesia nos remete sempre

à poiesis como tensão originária da manifestação da verdade/realidade como velamento e

desvelamento da realidade. A vida é o movimento originário do ser. O ser se move e movendo

dá-se vida. Isto não quer dizer que vida seja produto ou derivado, antes a eclosão ou manifestação

do que está vivo, ou seja, do que se manifesta e permanece. É possível viver e não fazer a

experienciação vital, o que são coisas diferentes, mas interativamente recíprocas. Chamamos

experienciação vital o vigor do sentido do que é vida e do movimento que é viver. Quando o que

é vida e viver se colocam diante do homem, como questões, convocando-o a pensá-los em seus

entornos e remissões dá-se a experienciação vital como pro-cura do sentido de vida e viver, então

surge arte e pensamento. Todo pensamento e arte, até mesmo as consideradas abstratas, surgem

da vida e para ela se voltam. Não há pensamento e arte fora da vida. A experienciação vital só

pode ser feita pelo homem, pois só a ele é facultado compreender o que é vida e viver. Há vários

tipos de procura: procura por felicidade, realização, sucesso, saúde, relacionamentos,

conhecimentos etc. Entretanto, a experienciação vital permite que o homem, vivendo, faça da

vida uma pro-cura, e não uma procura por. Na procura por algo, pressupõe-se que esse algo seja o

que falta ao homem para realizá-lo como homem. O que de fato o realiza não é a procura do que

externamente lhe falta, mas do desconhecido nele mesmo e por isso lhe falta, no sentido de ainda

não se ter apossado do que lhe é próprio. A pro-cura é a arte da vida como experienciação vital, a

mais profunda aprendizagem que se dá no embate entre poesia e pensamento “no meio do

caminho” da existência humana como apropriação do que é próprio.

O embate entre poesia e pensamento se move em círculos, pois seu papel é percorrer um

caminho sem abandoná-lo. Pensar poeticamente é habitar o caminho. Toda experienciação

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humana acontece “no meio do caminho”. O meio do caminho é sempre o lugar privilegiado de

toda sabedoria e todo aprendizagem. O meio do caminho é um convite a um “mergulho” na

própria vida para que se a experiencie. Experienciação e aprendizagem da vida, e não conceitos,

eclodem na poética. É comum as correntes críticas separarem o sentido do suporte da obra, de

modo que a obra seja identificada como uma alegoria e se torne um símbolo que representa o

real.

A visão da poética não faz coro com tais definições da arte, como geralmente se pensa. O

foco de visão em que geralmente expõem a poética impõe uma delimitação racionalista que

atravanca sua fala. A poesia não requer, antes repudia toda e qualquer metodologia exterior a ela.

Toda grande obra de arte já possui o seu método interpretativo implícito e imanente em si mesma.

Ela é autotélica, ou seja, o método interpretativo de uma obra é o caminho que ela faz para

descortinar a verdade do real em sua fala e conduzir a si própria à consumação e plenificação. A

obra é a linguagem do real. É a fala da vida, da realidade. Como fala da realidade, a obra não

pode ser desta separada. A fala da realidade não é uma fala qualquer, mas a realidade se doando

como linguagem e verdade. Assim, a poética põe em evidencia primordialmente o vigor das

palavras como a pro-cura de todas as procuras, a procura do sentido.

Insistimos nessa questão porque a palavra é comumente determinada por conceitos e

estruturada nos esquemas lógicos da proposição estabelecida pela sintaxe filosófico-metafísica,

sendo considerada signo-verbal e esvaziada de sentido e dinâmica, mas plena em conceitos e

significados que paralisam seu movimento. É preciso curar as palavras da lógica racionalista. No

esquema lógico-racional, a tensão palavra/pensamento sofre uma paralisação e esvaziamento da

condição pensante para dar lugar a uma institucionalização racional do pensamento e da palavra,

tornando-se convencional e automatizada. A poética põe a tensão palavra/pensamento em questão

e o vigor da linguagem se manifesta mais aberto ao ser, à arte e ao real que à razão. A razão

estabelece uma classificação conceitual das coisas, então, o real passa a ser algo além de racional,

racionalizável. O conceito se interpõe entre o homem e o real como concepção e enunciação

sobre o real, então o sentido surge como uma representação deste. Na poética, as palavras

assumem uma dimensão pensante e não mais como um referencial de representação entre

significante e significado, de modo que haja um livre encontro entre o homem e o real. O livre

encontro não se refere a um aspecto sensorial, mas a um acontecer no homem que se dá enquanto

verdade, como eclosão de mundo e sentido, ou seja, o livre encontro acontece à medida que a arte

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se afasta da representação e deixa a realidade eclodir como linguagem-vida. A arte passa a ser a

realidade se manifestando como linguagem e não apenas por meio dela. Assim, a arte se torna

“questão” e a tensão poiesis e pensamento se revela superando a relação sujeito e objeto, matéria

e forma.

1.4.5 – Vida: a arte da pro-cura

Voltemos ao poema A palavra mágica, sua fala nos diz: Certa palavra dorme na sombra /

de um livro raro. Dormir, do latim dormìo, possui a acepção de passar o tempo dormindo, no

sentido de que o tempo transcorre enquanto se dorme; possui também a acepção de estar morto,

descansar na sepultura, estar desocupado ou ocioso, nada fazer. O radical dorm- é um antigo

usual panromânico cujo nome correspondente é somnus, sono. Somnus é correspondente do grego

enúpnion: significando sonho e/ou visão, derivado de húpnos, sonho, e hypnos, sono. Hypnos é

uma figura mítica, filho de Érebo e da Noite, irmão gêmeo de Tanatos (a Morte), deus do Sono,

que desposou Cáris Pasitéia. Amigo de Apolo e das Musas, passeia pela terra fornecendo aos

humanos, repouso e sonhos. O poema diz: “Certa palavra dorme na sombra / de um livro raro”.

A palavra, aqui destacada, não é qualquer palavra, tanto que se diz “Certa palavra”. O elemento

“certa” funciona como um determinante do vocábulo palavra, revelando uma especificidade. Essa

palavra “dorme na sombra de um livro raro”. A sombra é o seu lugar de repouso. Por que

repousar na sombra? O que é a sombra para que nos chame a atenção? A sombra é o que se

“opõe” à luz, ou ainda, é a ausência de luz. A sombra é o outro lado da clareira. Sombra é o que

se opõe à clareira. Entendemos opor no sentido de pôr-se diante de, apresentar-se ante a ou a

presença de. Sombra também é a imagem do desconhecido, do insondável, da escusa, do que se

retira como claridade e presentifica como trevas. Sombra é o que se o-põe à clareira, porém se

apresenta diante dela como convite. A oposição é a tensão que preserva a identidade e a diferença

entre clareira e sombra. A tensão entre ambas as realidades é o eixo onde vige toda possibilidade

de sentido, é o espaço de todos os espaços assim como o tempo de todos os tempos, pois é o

espaço-tempo originário que assinala tudo o que se pode chamar de acontecimento. A clareira e a

sombra são co-pertencentes, um é a condição do outro existir, sem, contudo a manifestação de

um implicar na extinção do outro ou numa simples complementaridade. Como manifestar e

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ocultar, luz e sombra se dinamizam no acontecer de todas as coisas e essa oposição/tensão faz

com que um plenifique o outro. É na sombra que o sentido da palavra se esconde, repousa,

dorme.

Hypnos é o irmão gêmeo de Tanatos, a Morte, ele é o entre vida e morte. Quem é envolvido

pelos encantos de Hypnos não está de todo na vida, mas também não está morto. O estado de

Hypnos, o Sono, é o manto iniciático que faz sempre a distinção do que era e do que ainda não é.

No sono, o ser humano é tomado sob a tutela da Noite, por ela envolvido e transmutado. O sono é

o recôndito e o retiro que retirando a vigília, concede. É o sono que nos insere no limiar entre a

vida e a morte e, ao mesmo tempo, nos revigora. O sono eterno é a morte, segundo o que

comumente se pensa. É o sono que nos faz vislumbrar o desconhecido: Tanatos, a Morte é,

também, o que nos faz apegar à vida. “Certa palavra dorme na sombra / de um livro raro”

encantada.

A fala do poema inquire: “Como desencantá-la?”, logo após, apresenta-nos outra verdade, o

como do desencantá-la “É a senha da vida / a senha do mundo”. A palavra só pode ser

desencantada se mergulharmos e formos ao seu encontro. O “como” que desencadeia a ação é o

que se nos apresenta como mistério. Por isso a pergunta tão pertinente: “Como desencantá-la?”. É

preciso, primeiro, encontrar esse “como”, pois ele é a “chave”, é o acesso à “senha da vida / a

senha do mundo”, ao sentido resguardado na palavra. Mas a própria palavra também está

abrigada em um lugar, ela repousa na sombra, isso quer dizer que ela está salvaguardada pela

sombra, mas, apesar disso, mantém-se disponível. Já vimos que a proposta para esse encontro

com o sentido da palavra é a pro-cura, pro-posta pela fala poética. Essa procura, porém, não é

qualquer procura, antes uma procura que se realiza como entrega. Toda procura, por natureza, se

presta a um receber como recompensa de seu esforço. A procura poeticamente enunciada por

Drummond se efetiva como entrega. A procura que se processualiza como entrega é uma escuta.

A escuta é a procura que se destina à entrega de modo que haja um encontro originário com a

essência do que se procura e então o sentido possa aparecer. A arte, assim entendida, põe em

evidência - pro-cura - o acontecer do sentido na linguagem. Este vem ao encontro do homem

como e através da linguagem, por isso o centro e o foco da poética é a linguagem. O sentido da

realidade é o real acontecendo como sentido. O acontecer da realidade como sentido é o

acontecer da verdade da vida. A escuta da vida leva a movermo-nos entre fala e silêncio na pro-

cura pelo sentido.

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Cada palavra essencialmente poética é um dizer do mundo que ela mesma abriga e, na

palavra, esse mundo perpassa o dizer poético e se instala como uma imagem-questão. Essa

imagem-questão é uma doação da poiesis que pro-voca o pensamento, então, a imagem como

questão é o lugar-entre que, ao mesmo tempo, une e tensiona poesia e pensamento. A obra é o

lugar de abertura que deixa a realidade vir em todo seu vigor realizável como experienciação da

vida.

Na obra, a coisa eclode em sua coisalidade. Nesse emergir da coisa em sua coisalidade

acontece o desvelamento de seu ser-coisa. Esse desvelamento foi nomeado pelos pensadores

originários gregos aletheia, cujo sentido se nos apresenta por meio da palavra verdade. Verdade

não é apenas uma palavra, na acepção de signo-linguístico, nela abriga-se um acontecer inaugural

de todas as coisas. As coisas são, no sentido aqui trabalhado, a partir desse acontecimento, por

isso Heidegger diz que “na obra está em obra um acontecer da verdade” (Heidegger: 2010, § 53).

A primeira estrofe do poema A palavra mágica termina com o seguinte dizer: “Vou

procurá-la.” Este verso é um dito sábio, pois enuncia um mover em busca de algo maior, pois em

toda procura poeticamente empreendida se dá aprendizagem. A procura poética é uma abertura

para a ausculta do silêncio. “Vou procurá-la” é correlato de vou vivê-la, ou seja, fazer da vida,

arte, e da arte, experienciação vital da pro-cura.

1.4.6 – Vida e morte

A maior de todas as procuras é aquela que coloca o homem diante da morte. A obra poética

de Drummond é plena da tensão vida e morte, muitos textos a trabalham de um modo ora

explícito ora velado. Um poema muito conhecido é Os mortos de sobrecasaca, ele é um apelo

poético muito forte a se pensar a morte em seu sentido ontopoético. Diz o texto:

Os Mortos de Sobrecasaca

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,

alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,

em que todos se debruçavam

na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes

e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.

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Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava

que rebentava daquelas páginas.

(ADRADE: 2007 p. 73)

A morte figura na imagem de um álbum de fotografias, que recebe o adjetivo de intolerável

e “alto de muitos metros e velho de infinitos minutos”, não se trata de proporções materiais, mas

voltadas para a dimensão perceptiva. O poema chama a atenção também para o fato de todos se

debruçarem sobre o álbum de fotografias “na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca”. Um

fato curioso é esse, o de os mortos estarem de sobrecasaca, que era um casaco que se abotoava até

a cintura e com abas que rodeavam o corpo, deixando pouco à mostra, próprio do vestuário

masculino, nas fotografias dão um tom grave aos mortos e à própria morte.

O poema acentua o fato de um verme principiar “a roer as sobrecasacas indiferentes” e

prossegue roendo “as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos” numa referência

figurativa do tempo cronológico que a tudo “rói” e destrói.

O álbum de fotografias é uma imagem poética da lembrança de algo que passou, da

cristalização do tempo que transcorreu e não volta mais, somatiza tudo o que foi e nunca mais

será. Encampa plenamente o sentido da palavra defunto, o que morreu, do latim, defunctus, isto é,

cumpriu a vida e já não mais é. O que se expõe no álbum de fotografias é a representação

realidade do que aconteceu e se cristalizou preteritamente. É a presença da ausência e a simples

lembrança do que foi. O tempo é o agente principal da “gastação” da realidade, que a consome

cabalmente. A força do tempo cronológico encontra apenas uma barreira que a limita e não

permite roer: “o imortal soluço de vida que rebentava/ que rebentava daquelas páginas”.

O poema fala de duas potências antagônicas: vida e morte. Morte é comumente vista como

o fim, a interrupção definitiva ou cessação completa da vida ou da existência. É necessário aqui

distinguir os sentidos de existência e de vida biológica; esta é propriedade que caracteriza o ciclo

de evolução dos organismos do nascimento até a morte, aquela é, sinteticamente, o modo humano

de habitar o mundo, tanto no sentido cósmico quanto no de esfera de sentidos, interatividade e

realizações.

Morte seria a limitação máxima da vida, a solidão mais profunda, aonde se vai e onde

permanece só e donde não se pode retornar, a ausência de pulsação vital etc. Daí os sentidos

derivados como perder a vida, a existência, a força, o vigor, o viço, finar-se, falecer, expirar,

desaparecer, decair, declinar, deixar de ter existência, degradar-se, chegar ao fim de uma

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trajetória, de um percurso, acabar, finalizar, extinguir-se, desaparecer da memória e cair no

esquecimento. Todos esses se relacionam de algum modo com a morte, mas não a definem

cabalmente, são modos de experienciações humanas da morte. A morte não simplesmente é o

passo após a vida, mas ela é interior à própria vida. A grande questão poética relacionada à morte

é a necessidade e a possibilidade de transpor seus umbrais em vida, quer dizer, fazer a

experienciação da morte vivendo, nesse sentido, viver seria não cessar de morrer e, assim,

encontrar a vida depois da vida como experienciação mais radical da morte. Por mais paradoxal

que pareça, é disso que fala o poema seguinte:

Vida depois da vida

A morte não

existe para os mortos.

Os mortos não

têm medo da morte desabrochada.

Os mortos

conquistam a vida, não

a lendária, mas

a propriamente dita

a que perdemos

ao nascer.

A sem nome

sem limites

sem rumo

(todos os rumos, simultâneos,

lhe servem)

completo estar-vivo no sem-fim

de possíveis

acoplados

A morte sabe disto

e cala

Só a morte é que sabe.

(ADRADE: 2007, p.741)

O título do poema de Drummond é “Vida depois da vida” e curiosamente trata da morte. A

morte é encarada não como o ponto final da vida, mas a vida além vida, ou seja, sua abissalidade

ou infinitude. O poema começa afirmando “A morte não / existe para os mortos”, o que a

primeira vista parece um paradoxo, pois corriqueiramente se pensa morte como uma propriedade

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do morto e não do vivo, expressa exatamente o contrário. A experienciação da morte não é para o

morto, mas para o vivo, pois somente este pode pensá-la e senti-la. A morte é, ao mesmo tempo,

o limite de todo pensar e sentir, o mistério absoluto. Limite não é cessação, mas o convite a

vivência mais radical que o humano pode ter: viver no limite é fazer cotidianamente a

experienciação da morte como enfrentamento máximo da existência. Dessa experienciação faz

parte o medo. Medo e pavor ou temor geralmente são tomados como sinônimos. O radical latino

med- forma tanto os sentidos expressos pelas palavras medo e medicar, no sentido de ocupar-se

da cura, como de medir, ou seja, aferir medida, também meditar dentre outros. É importante

salientar que quando se faz uma leitura de uma palavra é preciso considerar sua etimologia,

entretanto esta nem sempre pode ter sua origem logicamente situada. Sobre o radical med-, por

exemplo, Benveniste diz:

Em período histórico, a raiz * med- designa noções muito diferentes: “governar”,

“pensar”, “cuidar”, “medir”. Não há como extrair sua significação original de uma

redução a um vago denominador comum, nem de uma aglomeração heteróclita das

significações históricas: ela pode se definir como “medida”, não de mensuração, mas de

moderação (lat. modus, modestus), capaz de assegurar ou restabelecer a ordem num

corpo doente (lat. medeor, “cuidar”, medicus), no universo (hom. Zeùs (Idḕthen) medéṑn

“Zeus moderador”), nos assuntos humanos, desde os mais graves, como a guerra, até os

mais cotidianos, como uma refeição. Enfim, o homem que “sabe os mḗdea” (hom.

mḗdea eidṓs) não é um pensador, um filósofo – é um desses “chefes e moderadores”

(hom. hḕgḗtores ḕdè médontes) que em qualquer circunstância sabem tomar as medidas

consagradas que se impõem. * Med-, portanto, pertence ao mesmo registro de ius e dikḕ:

é a regra estabelecida, não de justiça, mas de ordem, que o magistrado moderador tem a

função de formular: osco med-díss (cf. iu-dex). (BENVENISTE: 1995a., p. 125)

Medo é um choque no estado afetivo suscitado pela consciência de perigo iminente,

geralmente manifesta-se como temor, apreensão, preocupação e ansiedade diante do

desconhecido, no desejo de evitá-lo, afastando-o de si ou adiando-o. Medo é meditar no mistério,

por isso a sensação do medo nos inebria. O mistério é o desconhecido íntimo de nós mesmos, é o

que nos envolve invisivelmente. A meditação do mistério arrebata nossos sentidos e gera uma

sensação de angústia, pois é a aproximação mais radical do desconhecido, é quando este se torna

plenamente perceptível. A consciência do desconhecido e a iminência do mergulho neste é o

limiar do toda e qualquer experienciação humana com o realmente novo.

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Morto vivendo

Aquele morreu amando.

Nem sentiu chegar a morte

quando à vida se abraçava

nem a morte o castigou.

Enquanto beijava o amor

a morte o foi transportando

nos braços do amor gozoso

sem desatar-se a cadeia

de vida enganchada em vida.

Aquele morreu? Quem sabe

o que foi feito do amante

alçado em coche de chamas

ou carruagem de cinzas

no ato pleno de amar?

Não corrigiu a postura,

não voltou aos intervalos

de solitude a espera,

não repetiu mais os gestos

fora do ritmo amoroso.

Morreu completo, no êxtase

de estar no mundo e extramundo.

Que sabe a morte do abraço

paralisado na luz

do quarto aberto ao amor

e defeso a tudo mais?

E se continua vivo

e mais do que vivo amando

sem paredes e sem ossos

nos vazios espaciais,

não sei como, não sei quem?

(ADRADE, 2007. p.1183)

A morte é a questão que, de todas as questões, mais merece nossa plena atenção. Seu caráter

inevitável surge como aporia a um modo de vida e, ao mesmo tempo, convite a travessia de todas

as travessias. Os poemas acima, de Drummond, mantém uma simbiose “temática” entre si e entre

vida e morte, estas, principalmente, estão intimamente ligadas, conservando, porém, sua

diferença mais radical. Morte é im-permanência no sentido mais pleno e paradoxal de negação e

mergulho. Morte como im-permanência é a negação da permanência de um modo existencial que

cumpriu seu per-curso, seu destino e, ao cumprir-se, atinge sua efemeridade, instabilidade,

inconsistência, desemboca no silêncio abissal do nada para um novo início imerso no mistério

absurdamente velado ao ser humano. Como im-pernanência é também o mergulho mais profundo

na permanência, no que permanece do que muda: “o imortal soluço de vida”. Essa é a grande

questão da morte: O que permanece em face seu arrebatamento transmutador? O mistério. Este é

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a fonte de todas as procuras e, enquanto pro-cura, o homem se lança em direção (pro-) à cura

como modo mais profundo de libertação. Por isso pensar a morte é fazer a travessia da liberdade,

do desapego ao medo de viver e, em consequência, de morrer.

A contemplação da morte espelha o ser em sua mais profunda singularidade. Pensar a morte é

pensar a vida, é pensar o ser e o não-ser. Diante da morte tudo o que somos se confronta tanto

com o que já não somos quanto com o que ainda não somos e instaura a tensão verbal entre o-

que-somos, o-que-já-não-somos e o-que-ainda-não-somos. Dizer isto é despir toda a máscara

identitária, que tem como fundamento conceituações e rotulações exteriores ao próprio ser, e

mergulhar na memória do ser, isto é, o que é, foi e será. Desse espelhar, em que o reflexo da vida

é a morte e vice-versa, eclode o sentido pleno da existência em seu estado de maior

paradoxalidade: manifestação e mistério, ainda, manifestação do mistério. A morte nos põe diante

da verdade, no abismo de ser e não-ser como realização da realidade mais própria do homem, a

sua originalidade, ou seja, congregação circular tensional de início-meio-fim-início-... como a

conquista da vida que perdemos ao nascer, sem nome, sem limite e sem rumo (ADRADE, 2007,

p.741).

O melhor modo de enfrentar a im-permanência é a naturalidade, que geralmente é encarada

como acostumar-se com, deixar com que algo perca sua gravidade e severidade. Entretanto,

seguindo o sentido da palavra, naturalidade é o modo de ser do que é natural como inserção

radical no todo da realidade em sua tensão entre proximidade e distância. É a isso que o poema

Morto vivendo faz referência quando diz: “Aquele morreu amando./ Nem sentiu chegar a morte/

quando à vida se abraçava/ nem a morte o castigou./ Enquanto beijava o amor/ a morte o foi

transportando/ nos braços do amor gozoso/ sem desatar-se a cadeia/ de vida enganchada em

vida.”. A reflexão da morte é a oportunidade para o entreabrir do sentido da vida. O amor (Eros)

parece amenizar a dor da morte (Tanatos),na verdade, o amor é o que põe o homem em travessia.

Amar é deixar-se seduzir, em última instância, pela intensidade e imensidade da vida.

A preparação natural para a morte é mergulhar na intensidade da vida, ao passo que a maior

compreensão da vida se dá em face do enfrentamento da morte, “pois quem ensinasse os homens

a morrer, os ensinaria a viver” (Montaigne, os pensadores, 99). O sentido da vida constitui-se em

torno da escuta da morte, escutá-la é, de algum modo, pre-parar-se para a morte, ou seja,

encaminhar-se para seu caminho como um pôr-se-em-rumo à sua realidade plena e natural.

Preparar-se para a morte constitui uma aprendizagem em torno dela como escuta do mistério

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radicado na vida como uma consumação desta. Morrer não é consumir, mas consumar a

existência humana, isso corresponde a dizer que o pensamento da morte ou preparação para ela

consuma a vida.

A aprendizagem da morte que consuma a vida deveria ser a pré-ocupação de todo o ser

vivente, como uma ocupação prévia de todo caminho e encaminhamento da vida. Essa pré-

ocupação, que supõe-se privação antecipada da vida é, antes, um meditar a liberdade. O homem

não deveria repelir a ideia da morte, porque, ao repeli-la, a repulsa à morte aprisiona o homem. A

pré-ocupação da morte liberta, pois ensina o homem a descortinar seu mistério em cada momento

de vida, des-cobrindo o sentido que se encobre no ordinário da cotidianidade. Cada minuto de

vida traz seu bem irrepetível. “Bem” aqui é mencionado distante do sentido explorado em toda

mensurabilidade moralista, antes é tudo o que nos vem ao encontro como convite a uma

compreensão da vida que se nos ocultou até o momento e, embora o que aconteça seja sempre o

mesmo, não é, contudo, a mesma coisa. Esse tornar-se novo a cada instante como uma

autorreinvenção é a autopoiese do “imortal soluço de vida” que nasce e morre a todo o tempo

com um adiantar-se humano sempre rumo o que ainda não aconteceu ou que não se descortinou,

em outras palavras, destino. Pré-ocupar-se da vida é morrer “completo, no êxtase de estar no

mundo e extramundo”, esse morrer completo é experienciar a morte em vida, isso só é possível

na arte. Arte é o pensamento vivo que conduz o homem a tudo o que ainda não foi pensado, o

sentido poético original é colocar o homem diante do mistério como possibilidade de diálogo

originário e originante. Esse diálogo é o abri da vida e da morte em toda sua complexidade e

abissalidade. A arte conduz o pensamento humano ao limiar entre vida e morte.

O poema Morto vivendo presume que a morte é a origem (de) da (outra) vida, sua fala nos diz:

“Aquele morreu amando./ Nem sentiu chegar a morte/ quando à vida se abraçava/ nem a morte o

castigou.”. Por isso pergunta: “ Aquele morreu?”. E prossegue, “Quem sabe/ o que foi feito do

amante/ alçado em coche de chamas/ ou carruagem de cinzas/ no ato pleno de amar?/ (...)/ E se

continua vivo/ e mais do que vivo amando/ sem paredes e sem ossos/ nos vazios espaciais,/ não

sei como, não sei quem?”. A quem se reserva o saber da morte a não ser a ela mesma ou, quem

sabe, nem a ela mesma?

Desde o nascimento o homem caminha para a morte. Assim, desde sua origem a vida é o

caminho da morte. A existência humana é o trânsito imensurado e imensurável entre uma e outra

– a existência é o meio do caminho entre vida e morte. A vida sempre é completa, pois a nenhum

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homem é dado a conhecer a medida de tempo que lhe é destinada, a completude da vida não

depende de sua duração cronológica, mas de sua intensidade kairológica. O meio do caminho à

cada momento congrega nascimento e morte. Ao pré-ocupar-se da morte, o homem deve tomar

muito cuidado com o dualismo que cerca a realidade no intuito de reduzi-la a conceitos lógico-

formais como, por exemplo, a atração pela “vida” e a “repulsa” à morte. Morrer é estar

enganchado na vida. Só morre quem de fato viveu, mas quem quase vive, já está, de algum modo,

morto. Nossa intenção não é tratar da morte segundo dogmas religiosos, aos quais quase sempre a

questão da morte leva ou parece levar, mas como experienciação vital a qual todo ser humano

está fadado. Como não podemos sondar a morte, o que nos resta é, em vida, contemplar a própria

mortalidade humana e despertar para o aceno da realidade e a ausculta de sua fala e para auto-

escuta do que nos é próprio, a saber, a finitude.

A morte é o destino de todos os destinos, abrir-se para ela é abrir-se para a vida. Pensar a

morte é pesar a vida auscultando o silêncio do mistério que com-voca o tempo todo a voz do

pensamento. Uma voz surda que renuncia todo o controle e manipulação do real. Entretanto, essa

renuncia nada subtrai, antes com-cede ao homem habitar originariamente mundo. Caminhar, ver e

pensar é acolher o movimento da vida no recolher da morte. A tensão entre o acolher da vida e o

recolher da morte põe em questão a memória como um não-deixar-cair-no-esquecimento; não é

simplesmente lembrar, mas um presentificar contínuo e perene. Memória é o meio do caminho,

o-que-é entre o-que-foi e o-que-será.

O modo mais radical de pensar a vida se nos advém da linguagem. A fala da linguagem apela

ao homem com-vocando-o tanto à sua ausculta quanto à fala. A convocação como apelo

intrínseco à realidade, ainda que imersa no imenso silêncio que envolve tudo o-que-é, assim

como o-que-foi quanto o-que-ainda-não-é insere o homem na pro-cura do sentido de sua

existência. Essa procura é travessia da vida rumo ao encontro da verdade como experienciação

máxima com o mistério, o véu do ser, a morte. Assim: “... se continua vivo/ e mais do que vivo

amando/ sem paredes e sem ossos/ nos vazios espaciais,/ não sei como, não sei quem?”. O não-

saber eclode na poesia como arte, arte da vida e vida da arte.

Arte: experienciação da linguagem na plenitude de sua fala e de seu silêncio, no abismo do

velamento e do desvelamento. Arte: maquinar da vida que se reinventa a todo o instante. Arte:

não-saber que apela e desafia todo o saber a se re-pensar e re-fazer. Arte: trânsito do não ser ao

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ser e vice-versa. Arte: manifestação da realidade como linguagem. Arte: pôr-se em obra da

verdade. Arte-obra. Arte-poiesis. Arte-fala. Arte-silêncio. Arte-espelho. Arte-entre-vida-e-morte.

2. O apelo do caminho: espera do inesperado

O segundo movimento do poema instaura o apelo do caminho. O caminho possui uma força

centrípeta, ou seja, é o caminho como questão da vida que faz convergir para si toda a realidade

circundante inaugurando continuamente, no ser humano, horizontes como aberturas ontológicas.

A máquina do mundo é um convite a travessia de limiar rumo à outra dimensão. A realidade

possui duas dimensões que, na verdade, são facetas dela, como dois modos de vigorar para o

homem: o ordinário e o extraordinário.

O ordinário é a repetição cotidiana da mesma coisa e que, por isso, se torna frequente,

habitual e previsível. É o lugar-comum da vida, onde a história se repede indefinidamente, um

aprisionamento em que o sentido de tudo se torna significado, sem nenhuma novidade, que

subtrai toda a vivacidade da existência. O extraordinário é o que foge do usual ou ao previsto. É o

acontecimento fora do comum, que escapa ao estabelecido por sua excessividade e

imprevisibilidade e por isso gera estranheza ou admiração. O extraordinário exsurge do ordinário

como uma face nova da realidade manifestando sentido e inaugurando verdade desconhecidos, é

a inédita inauguração ou reinvenção da própria vida. Vejamos como isso ocorre na poesia de

Drummond:

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,

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a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, escuta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste... vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar,

na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que todos

monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.

A leitura destes versos nos chama a atenção para um descortinar do destino em outra

dimensão, como um convite a percorrer o caminho inédito, como um apelo à travessia. A

“máquina do mundo” abre-se convidando sentidos e intuições “a se aplicarem sobre o pasto

inédito da natureza mítica das coisas”. O interessante aqui é o fato de que ela faz um apelo,

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primeiramente, a se “aplicar”. A essência dessa palavra é o de entregar-se com afinco ao estudo,

trabalho, ocupação etc, na ideia de dedicar-se atenciosamente, também o de concentrar

especificamente os sentidos em algo, figuradamente, mergulhar em algo e deixar com que ele nos

envolva por todos os lados. Esse convite é direcionado a “quantos sentidos e intuições restavam”.

E aqui outro ponto chama a atenção: o convite não é feito à razão, ou à formulação de um

conceito, ou a uma ideologia nem ainda a uma teoria crítica convencional, mas aos sentidos e

intuições. Isso talvez merecesse uma revisão na abordagem teórica da fortuna crítica do autor,

considerado um dos poetas mais racionais da modernidade.

Esse movimento assinala o apelo de todos os apelos, ou seja, o que a vida faz intensa e

insistentemente ao homem. A vida sempre apela ao homem para que ele se inter-esse por ela.

Inte-esse é estar de permeio junto a vida, é se colocar na abertura de irrupção do extraordinário

que ela proporciona. A vida é um amálgama, uma reunião heterogênea que forma o todo em que

ela consiste. O descortínio pleno de suas multifacetas é impossível, talvez inexistente, pois a vida

é um intenso devir, manifestação excessiva e incessante da própria vida, o que os gregos

chamaram de zoé. A vida manifesta seu apelo ao homem como caminho. O caminho convida. O

caminhar só é possível pelo caminho e este se dá em seu vigor e realização plenos, no caminhar.

Caminho e caminhar se co-pertence dualmente, num mútuo tender de necessidade e

convergência. O homem vivendo caminha, isto é, destina-se ao seu caminho. Nas vias dadas e

instauradas da existência humana o homem faz sua experienciação ordinária. O apelo da vida é

um convite à transgressão do ordinário. O homem que ouve esse apelo se inicia nas vias do

sentido e nas veredas mitopoéticas em que a realidade se manifesta, a cada passo dado, em seu

vigor originário e extraordinário. Essa manifestação do caminho e da travessia coloca o humano

no centro da questão, na travessia ele de-mora e em de-morar-se descortina o seu destino como

uma gestualização da vida. Gestualizar a vida é destinar-se, ou seja, deixar com que o apelo do

sentido nos atravesse e conduza à própria travessia da vida transvertendo-se em vida, caminho e

verdade.

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2.1 - Nas vias dos sentidos e da intuição

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera

Sentidos é o conjunto de funções vitais que permitem experimentar o contato e perceber

sensações dando início ao processo interno de recepção sensorial da realidade como

experienciação da mesma. Também pode ser entendido, em forma variante, como aspecto, ponto

de vista, orientação, rumo, discernimento, consideração, ou ainda, compreensão e destino, como

verdade, nesse caso dever-se-ia usar a palavra sentido sem admitir plural. O sentido é um só e

para ele todas as coisas convergem. Assim, tudo é um. As coisas têm sentido quando são sentido.

A intuição pode fazer um caminho racionalista ou pode acontecer fora do imbrincamento

raciocínio-análise-conceito, ou seja, como uma percepção direta com o que nos vem ao encontro

experiencialmente. Nesse sentido, ter uma intuição é ser tomado por algo. Isto se correlaciona

diretamente com o latim intuitìo, que dá a ideia de imagem refletida no espelho, de onde provem

contemplação passando, por extensão, ao sentido de conhecimento imediato ou pressentimento.

Entretanto, não se deve pensar em pressentimento como algo sobrenatural, antes, como ser

tomado por aquilo ao que já nos entregamos por, de algum modo, nele vigermos e que, por isso,

somos capazes de pressentir.

O intuir que se dá no pressentir é entrega, ou seja, é ser conquistado por aquilo que se quer

conquistar. Essa conquista é um modo de conhecer que se dá de dentro para fora, daí o sentido de

intuitivo ser também o de considerar e contemplar a partir de um ver interiormente. Intuir é abrir-

se para o que se nos apela na própria realidade, como a teia da vida, a partir das experienciações

que envolvem o ser, em outras palavras, é auscultar o real.

O poema fala de ausculta, que é, simplificadamente, o ato de auscultar os ruídos internos de

um organismo, mas se afigura na ação de encostar o ouvido para auscultar. Ora se é preciso

encostar, já não é o ouvido que ouve, mas o corpo. Isso quer dizer que a ausculta é mais que

escuta, é um intuir, de in-, entre, e tueor, guardar, no sentido de abrigar o que se nos advém, ou

seja, abrir-se para pressentir tudo que é ou acontece. Essa ausculta não é condicionada, não se

estrutura logicamente, pois, se isso acontece, deixa de ser intuição e passa a ser uma teoria.

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2. 1.1 - Sentidos e intuição na via da modernidade

Intuição é pensar no sentido originário, isto é, sem a mediação de uma ou outra teoria ou

categoria racional, de outro modo o pensar seria raciocinar e racionar o conhecimento. Sentidos e

intuições correspondem à ausculta e abertura ou abertura e ausculta. A filosofia moderna entende

o mundo disjuntivamente o que possibilita e estabelece a relação entre sujeito e objeto, para ela a

aquisição do conhecimento só é possível mediante a ação do sujeito sobre o que está diante dele

por meio de determinada mediação. O sujeito é o a priori que age sobre tudo o que se apresenta

diante de si, isto é, ob-jetivamente3. Seguindo a esteira do platonismo que separa o mundo em

inteligível e sensível e a dos padres da Idade Média que estabelecem a cisão entre criador e

criaturas, Descartes propõe a separação do mundo ou do real em res cogitans e res extensa, ou

seja, entre intelecto e matéria, daí resultando os demais dualismos que, segundo esse pensamento,

compõe a realidade.

A filosofia da modernidade é conhecida como crítica, e em suas bases, crítica se define

como a ação de separar para melhor julgar, discernir e avaliar. A crítica se formula e coloca como

a estrutura pressupositiva do conhecimento humano na qual o saber se estabelece como apreensão

e compreensão do objeto pelo sujeito cognoscente. Assim, já está posto o dualismo sujeito e

objeto, entretanto, não para aí. Uma vez que o sujeito e o objeto estão em lados e posições

opostas, cabe estabelecer a relação que se dará entre eles, e esta é ordenada racionalmente

operacionalizando as obras da razão, isto é, o conceito, o juízo e o raciocínio. Desse modo, todo o

real é objetivado e objetivável, e este, para ser cognoscível deve-se acomodar às estruturas

cognoscentes do sujeito. A experiência com o real, para ser verdadeira, deve-se dar mediante a

cognição prévia do sujeito, ou seja, a experiência, para ter significado, deve ser filtrada

pressupostamente pelas regras de inteligibilidade e conceitos a priori estabelecidos.

As condições de possibilidades de experienciação do real, segundo a filosofia moderna, são

os conceitos puros ou a priori, as categorias do entendimento, juízo e raciocínio, e as formas da

sensibilidade, a isto se convencionou chamar de representação. O real só pode ser compreendido

se significar, ou seja, caso possa ser transformado em conceito, se puder aferir um juízo e

3 Ob- fora de e -jectum, sujetio: ob-jectum é o que se apresenta fora do sujeito.

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descrever racionalmente. Sendo assim, essa significação do real depende única e exclusivamente

do sujeito que o representa.

Deste modo, a destinação humana é uma construção e produção do sujeito; seus sucessos e

fracassos podem ser matematicamente explicados, tomando como referência sua própria ação

diante das condições do meio, do atavismo biopsíquico e da historicidade epocal. O real é

teoricamente previsto e suas condições de realização são matematicamente formuladas para

serem experimentalmente produzidas.

O real está diante do homem como destinação, mas este só pode experienciá-lo se antes lhe

conhecer a língua e dominar seu sistema simbólico. Sendo assim, destino é o nome dado à

capacidade de se poder pesar, avaliar e computar o proveito possível de extrair a verdade do real;

em outras palavras, destino é tudo o que o sujeito pode produzir racionalmente, o acaso seria o

oposto, isto é, fruto da irracionalidade. O acaso é o destino que escapa a ação - mensuração,

controle e manipulação - humana. Destino é a mediação do real como possibilidade dada ao

homem de calcular meticulosamente, avaliar criteriosamente e apreciar correta e acertadamente

podendo assim agir sobre sua própria existência.

O a priori caracteriza uma forma de conhecimento que não admite a faticidade de nenhum

tipo de experiência, antes é gerado cognitivamente no interior da própria razão e de acordo com

suas categorias e pressupostos e visa à explicação de um fenômeno a partir da designação de sua

causa. Os princípios do conhecimento a priori são dados a partir de elementos prévios

independentes da experiência, deduzindo o sentido do real presuntivamente por hipótese ou

convenção.

O sentido da realidade, isto é, o destino, é capturado pela mensuração cogitativa de modo

que se torne disponível e submisso ao seu comando. A subjetividade é concebida como a medida

paradigmática de todas as coisas. Tudo o que vigora na presença aparece ordenadamente

estruturado nas categorias da inteligibilidade e nas formas da sensibilidade, desse modo, destino

existe para ser consumado pelo homem. Entretanto, o maior impasse do racionalismo subjetivista

é a questão da finitude humana e é em face desse dilema que a existência humana se desenrola e

adquire sentido, isto é, apropria-se do seu destino.

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2.1.2 - Sentidos e intuição como medida

A medida é o cuidado do pensamento que se direciona rumo às coisas moventes e

devenientes, é meditar, ou seja, deixar com que algo nos advenha e tenha sentido. A medida é a

condição de possibilidade das coisas virem à presença, é o entre que possibilita o homem refletir

sobre o real. Na verdade, esta frase: “refletir sobre o real” é uma estrutura viciada que revela a

posição a priori do sujeito, que sempre está agindo sobre um objeto. Medida é o entremeio (inter,

entre e meio) que possibilita a manifestação da realidade como destino, porque ele é a

possibilidade para a possibilidade que instaura o sentido. Na medida eclode e se dá a conhecer o

vigor do logos, a força reunidora na qual tudo é um, sem, entretanto, ser a mesma coisa, que

possibilita a todas as coisas aparecerem, isto é, vir à presença. A medida como destino lança o

homem na dimensão do entre, ou seja, a medida é o entre e este nos projeta nos interstícios da

liminaridade do que já-não-somos (fomos), do que somos e do que ainda-não-somos (seremos, ou

não). Em última instância, entre o que somos e o que não-somos (por já ter sido ou ainda não),

entre verdade e não-verdade. Isto está, de algum modo, expresso na seguinte passagem do

romance A paixão segundo G.H.:

"Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e

secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como

vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música

existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos

que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos

interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do

mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de

silêncio" (LISPECTOR: 1972, p. 117).

A busca que se expressa no romance é a mesma que ocorre em toda obra poética, a saber, a

busca do sentido. Daí pode-se pensar em sentido da vida e da morte, da existência e das

experienciações, do que fala e do que cala, do ser e do não-ser, do tempo, do espaço, do lembrado

e do esquecido etc. E sempre se esbarra na mesma questão: no intervalo, no interstício, na

liminaridade, que é o mistério dos mistérios. Essa questão é o silêncio abismal gerador de toda

fala, a medida de todas as dimensões, mas que é impossível de ser mensurada, o oco do mundo, a

entrelinha, o inexpressivo, o impenetrável onde nos movemos, mas nunca dominamos, a fonte

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inesgotável na qual circunavegamos, mas nunca capturamos, nomeado “entre”. "O entre é a

abertura constitutiva e originária do ser-humano” (CASTRO: 2010, p.19) e “é o próprio núcleo

de todo agir humano, é o horizonte que faz do ser humano homem humano" (CASTRO: 2010,

p.20.), nele vigora o destino humano.

Destino é, em suma, o sentido da realidade, o seu desvelamento, ele só vigora no meio,

quer dizer, no centro equidistante igualmente do homem e do mundo, de origem e finitude, e que

por isso pode manifestar a relação de ambos, no qual aparece o que é e como é. A medida, o meio

do caminho, revela o destino. Tudo o que revela revela-se como. O destino e o meio do caminho

são um e o mesmo, sem, contudo, serem a mesma coisa. “Caminho, sendo sempre meio do

caminho ou sempre em ou a caminho, é, portanto, o meio, o medium, o elemento: aquilo em que

se está e que se é.” (FOGEL: 2009, p. 37). É nesse entremeio (meio-medida do caminho) que o

sentido eclode para o humano como destino.

Quando se perdem os sentidos e a intuição torna-se em vão e triste a travessia, é disso que o

poema A máquina do mundo fala quando nos assinala que “em vão e para sempre repetimos os

mesmos sem roteiro tristes périplos”. Perí-, em grego, quer dizer em torno de ou caminho e

plóos, navegação. Périplos é circunavegar ou navegar em círculos. O pensamento originariamente

se move em círculo. Heráclito foi um dos primeiros pensadores a chamar a atenção para o

círculo, diz-nos ele: “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo” (Heráclito:

fragmento103, 1999, p. 87). Parmênides também assinala: “Coração intrépido da verdade da

circularidade perfeita” (Parmênides: fragmento 1, 1999).

A circularidade perfeita fala do pensamento que circunavega em torno de um centro. Para o

racionalismo o pensamento deve seguir um roteiro previamente elaborado e objetivamente

executável tendo em vista uma conclusão, caso contrário, seria em vão e por e por isso triste o

pensar sem objetivo; porém, o vigor do pensamento circular é a espera do inesperado, é lançar-se

ao caminho, peri-, sem receito do perigo. Essa espera é estar de permeio à medida da coisa, isso

quer dizer: mediar é meditar. Ambos possuem o radical med-, que assinala originariamente a ação

de dedicar-se a, ocupar-se de ou dispensar cuidados a.

Dedicar, ocupar e cuidar é estar de permeio à coisa e a ela entregue num périplo originário

à espera-ausculta do sentido-destino. O pensamento circular não é estático ou linear, antes é

dinâmico e cíclico, tensiona identidade e diferença num aprofundamento cada vez mais intenso

das questões que, sempre recolocada, exigem uma abertura-ausculta ainda maior. Nesse sentido,

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destino é destinar-se, isto é, abrir-se para a experiencições de espera-ausculta com o real, é

travessia ou périplo. O périplo é travessia originária do real, isso aponta para uma experienciação

imediata do mundo que se abre, se instaura, sem intermediários, contudo vigorando no entre. E,

então, o viajante é atravessado pela travessia, caminho e caminheiro se tornam um na tensão do

meio. O meio do caminho é a medida entre caminho e caminheiro. Essa travessia é destino.

O poema A máquina do mundo nos faz pensar na questão central da Teoria do

Conhecimento, isto é, as formas de aquisição da aprendizagem. Esta seria o resultado da

interação do sujeito com o meio objetivado, que se dá sempre intermediada, ou seja, através de

mediação interposta e este mediador é a linguagem.

A mediação entre sujeito e meio (objeto) é estabelecida pela linguagem entendida como um

sistema simbólico e representante cultural dos grupos humanos. Assim, a “função” da linguagem

seria fornecer, basicamente, conceitos e formas de organização do real mediante esquemas de

representação simbólica ou convencionais. A linguagem funcionaria estruturalmente por meio de

codificações e decodificações como reflexos culturais estabelecendo identidade e diferença e, a

partir delas, os pares de opostos dicotomicamente que regem as relações humanas individuais,

mas, principalmente sociais: verdade e mentira, coerência e incoerência, certo e errado etc. Nessa

linha, a linguagem seria o principal meio de aquisição, fundamentação e transmissão do

conhecimento.

Desse modo, a linguagem é coerentemente organizada e sistemática e simbolicamente

estruturada de modo a se condensar em discurso; este é metodologicamente esquematizado

compondo uma corrente crítica; esta, por sua vez, forma um corolário conceitual transmutando-se

em uma teoria que passa a ser o liame de determinado conhecimento estabelecendo-se como

metodologia de investigação e aprendizagem mediadora entre o homem e a realidade.

A Teoria do Conhecimento, de modo geral e bem superficialmente falando, propõe que o

ser humano só adquire conhecimento se este for mediado por instrumentos de sua cultura, com

significações simbólicas codificadas linguisticamente. A mediação é, então, uma ação que se

interpõe entre “sujeito” e “objeto” da aprendizagem, nessa relação as capacidades de codificação

e decodificação são regentes desse processo de mediação.

Qual seria a relação entre mediação e destino? A relação em seu sentido originário de ação

da própria realidade, segundo o que se viu, seria condicionada e determinada funcionalmente pela

mediação. O sentido do destino dá-se no modo como o homem se relaciona com o real, no ser-

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corpo, apesar de isso ser redundante, visto que sentido é destino, e o real é também o homem.

Entretanto, nos interessa pensar que, desse modo, a relação, como ação partilhada do e no real,

passa a ser uma ação estabelecida, isto é, causalista e conta com uma consequência ou resultado.

A síntese entre causa e consequência na mediação é a verdade. Esta é o produto da ação do

sujeito sobre um objeto a partir da mediação estabelecida. Mudando a mediação mudaria também

o efeito, ou seja, a verdade? Mediação é, então, uma forma de abordagem criteriosamente

estabelecida que define e coordena as relações. A interação, em si, nesse sentido, não é vazia,

mas uma metodologia que se interpõe entre o homem e as coisas; nesse sentido, a interação é

uma ação mediadora da aprendizagem e esta é um modo do destino se dar.

Entretanto, o que está em questão no poema é a aprendizagem do corpo: a incorporação que

proporciona o desvelar do destino do humano no homem. Corpo é mundo: o operar (máquina) do

mundo, e esse operar se dá como destino, isto é, necessidade-e-convergência-intuição-e-ausculta.

2.1.3 – Corpo: necessidade e convergência de sentidos e intuição

O convite feito pela “máquina do mundo" aos “sentidos e intuições” é um apelo ao corpo

como unidade de sentido onde tudo é um. Corpo pode ser definido de diversas formas tantas

quantas forem as teorias e vieses que assim possam fazê-lo, desde o puramente biológico ao mais

radical espiritualismo; entretanto não é isto que nos interessa, mas a essência de ser-corpo.

Corpo é centro, complexidade, unidade, reunião, junção, agregação, confluência, tessitura,

ausculta-abertura, abertura-ausculta, em uma palavra, convergência. O corpo é ambiguidade na

media em que ausculta sensitivamente a intuição e se abre intuitivamente para a ausculta dos

sentidos. É o que por meio do qual algo se torna o que é como consumação. Ser-corpo é a

necessidade essencialmente reivindicada pela e para a consumação.

Reivindicar é vindicar a coisa, isto é, exigir a coisa (rei) por sua própria necessidade de ser

e existir. Necessidade é a exigência do que, no qual e pelo qual, se proporciona a consumação.

Consumação de quê? E como o quê? No poema: de ser como apropriar-se do destino do humano

no homem. Nesse sentido, corpo (sentidos e intuições) é necessidade e convergência.

Necessidade porque o corpo não é livre para escolher interagir, ele já é tomado pela liberdade da

convergência que o insere no seu âmbito historial.

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Como necessidade e convergência, corpo é o acontecimento imediato da vida. Imediato

significa sem mediação, mas aqui há também um ambiguidade originária. A palavra imediato

compõe-se de im- (ou in-) e –mediato. O radical –mediato é o meio, do qual se pode depreender

vários sentidos. O prefixo im- (ou in-) significa privação ou negação, porém, pode também

assumir a acepção de aproximação, movimento para dentro de ou do que se instala no interior.

Imediato pode ser compreendido, então, como o que não possui mediação por já viger na própria

mediação. A mediação sempre é pensada como o que está entre uma coisa e outra, um mediador

ou uma mídia, mas não é comum o entendimento de que na mediação uma coisa e outra medem

sua identidade e diferença.

Corpo é realização originária: a ação do real. O problema é que sempre pensamos corpo

como matéria em oposição a espírito, e isso nos deixa pouco abertos a uma outra forma de pensar

corpo. Corpo é presença, como Heidegger a denominou: Da-sein, Entre-ser, ou, numa tradução

mais próxima do sentido poético: sendo. Mas presença não é só presentificação, é também não-

presentificação. Presença é a tensão entre presentificação e não-presentificação, assim como

corpo é a tensão entre vida e morte, entre origem-permanência e finitude, por isso ele é

realização.

Corpo é onde a realidade realiza a vida em face da morte, a origem-permanência em face da

finitude e vice-versa. O corpo é uma forma do entre se dar. Nesse sentido, corpo é a medida da

identidade e diferença, vida e morte, presença e ausência etc. Quando se diz é a medida, não se

está pensando em mensuração tampouco em intermediação ou qualquer intermediário, por

exemplo, entre sujeito cognoscente e a coisa cognoscível, mas o onde, sem ser lugar, no sentido

espacial, em que os opostos se medem; não no sentido de determinar uma grandeza, mas de

avaliar como acrescentar valor dimensionando uma propriedade (ousia) do ser. Então, corpo

como mediação é a possibilidade de todas as possibilidades, possibilidade para possibilidade. O

corpo não tem, mas é percepção, quer dizer, abertura-possibilidade para ser tocado ou tomado

por; este sim é o âmbito originário da mediação.

O poema nos diz que a máquina do mundo “Abriu-se em calma pura, e convidando/

quantos sentidos e intuições restavam/ a quem de os ter usado os já perdera/ e nem desejaria

recobrá-los,/ se em vão e para sempre repetimos/

os mesmos sem roteiro tristes périplos”. O convite é, na verdade, um apelo da proópria realidade

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à ausculta com o corpo - sentidos e intuições - já gasto, esquecido e, porque não dizer,

desprezado.

O corpo, na modernidade, possui apenas valor estético-formal, nos tão banalizados

conceitos de beleza, entretanto, mantém-se sua oposição com a alma, entre aísthesis e noésis,

sentir e pensar, este entendido como uma função ou faculdade da alma, espírito ou razão, aquele,

como função, capacidade, propriedade ou faculdade do corpo. O apelo dirigido no poema, porém,

direciona-se a aísthesis e a noésis, não separadamente, mas a conjugação de ambos, como duas

dimensões que se tensionam e se medem exigindo ampliação uma da outra não admitindo

qualquer separação, e isto é corpo, que não pode existir fora dessa conjugação.

Corpo: necessidade e convergência que a tudo atrai e por tudo é atraído; nó de relações e

referências que conjuga e ata sentidos do sentido; que se move pelo sentir e pelo intuir, entre ser e

não-ser; que no conjugar e atar com-preende, isto é, prende em si o que pode ser prendido

reunindo, colhendo e recolhendo tudo quanto sentidos e intuição alcançam; que tem necessidade

de ser, ou seja, de se presentificar manifestando sua essência-corpo. Corpo: necessidade-

convergência-destino destinado a conhecer e ser o que se conhece.

2. 2 - Veredas mitopoéticas

O convite da “máquina do mundo”, feito aos sentidos e intuições “a se aplicarem sobre o

pasto inédito da natureza mítica das coisas”, põe em cena duas outras palavras-chave para a

compreensão do poema: natureza e mito. Para entender a relação que se dá entre os dois é preciso

recorrer ao originário de ambas a partir do grego physis e mythos. Physis, como já se disse é a

ação de brotar ou nascer de si e por si mesmo, é o desvelar que, ao mesmo tempo, tende à própria

ocultação, velamento. Diferentemente do que se entende hoje como mito que é tido como um

estágio pré-racional do pensamento, na Grécia arcaica, mythos era a manifestação de sentido do

mundo que advinha no canto do aedo como uma mensagem das Musas. Mythos assinala a ação de

eclosão da realidade pela palavra como uma manifestação divina aos homens e fonte de

conhecimentos relativos ao sentido de ser e do mundo.

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As comunidades primitivas, muito antes do conhecimento filosófico, valiam-se dos mitos

para expressar a verdade do real por vias de ritos (imagens poéticas) que refletiam as ações dos

deuses e apelavam ao homem refletir “sobre” a realidade.

O mito, na cultura arcaica, era narrado pelo poeta-rapsodo, o qual acreditavam ser inspirado

pelos deuses. Um escolhido que tomava conhecimento, por revelação divina, dos acontecimentos

passados e era permitido ver a origem de todos os seres e coisas a fim de transmitir aos ouvintes,

que recebiam a narrativa como verdadeira por confiarem na autoridade e confiabilidade do

narrador pelo caráter divino a ele atribuído, como um mensageiro das Musas. Os mitos falavam

da origem do mundo e de tudo o que existe, narravam a gênese de todas as coisas que se dão

através de lutas, alianças e relações sexuais entre os deuses que governam o mundo e o destino

dos homens, apresentando-se como o próprio vigor da realidade eclodindo ritualisticamente.

O mito era concebido como manifestação, isto é, eclosão da realidade como linguagem,

pois, seguindo o viés arcaico, o aedo fazia surgir mundo através da palavra proferida

ritualisticamente. Mythos era sagrado porque estava em tensão com o mystérion, isto é, os

mistérios que envolviam o surgimento do mundo. A ritualização do mito era um apelo ao homem

a penetrar o mistério das coisas.

O mito é o que abre o mistério, ou seja, perpassa-o e o faz transparecer na sua essência

como um conhecimento tradicional.

Concebido arcaicamente, o mito revelava o sagrado ao passo que se presentificava por

meio dos ritos, tanto como figuração, como prefiguração das coisas. Tal acontecimento era

concebido mimeticamente como manifestação. Originariamente, o mito designava para as

comunidades primitivas uma história preciosa e verdadeira por possuir caráter sagrado, exemplar

e significativo. Mais tarde, muitos eruditos passaram a estudá-lo como mera fábula, ficção,

história irreal e falsa, no sentido mais radical, como uma ilusão, substituindo o conhecimento

mítico, aberto para a reflexão, pelo pensamento racional, estruturado logicamente.

Os mitos geralmente colocavam questões referentes ao que as coisas eram e como eram:

seu surgimento, transformação e desaparecimento, assim como ao tempo e espaço, ao agir dos

homens e dos deuses e suas respectivas interseções, ou seja, sempre relacionado ao destino do

homem e do mundo. O mito era uma presentificação poética da physis, o mistério que rege o

eclodir do que nasce de si para si mesmo e que, como origem, permanece esconsamente no que se

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manifesta como o vigor regente do que brota e permanece. Os mitos colocavam para os homens

questões e não conceitos, daí seu caráter aberto e circularmente reinterpretativo.

2. 2. 1 - Conjunções mitopoéticas: linguagem, mito e natureza

O mythos e physis revelam a conjunção do que se manifesta com o que se vela e efetiva

pelo logos, este, não no sentido consagrado pelo tempo e pela filosofia ocidental identificado com

a ratio ou simplificadamente palavra, mas em seu sentido originário:

“...dos verbos legein (grego), legere (latim) e lesen (alemão), que possuem o significado

de colher, recolher, juntar num conjunto, reunir. Dessa maneira, logos “não significa

nem sentido nem palavra, nem doutrina nem mesmo “sentido de uma doutrina”, mas

significa a unidade de reunião constante e, em si mesma, imperante, que é a que reúne

em sentido originário.”. (HEIDEGGER: 1978, p.153)

A relação entre physis e logos delineia como a ação reunidora (logos) do que brota ou

nasce de si mesmo, permanece e tende ao ocultamente (physis). Ambos são manifestações

originárias e inseparáveis, dizem o mesmo sem dizer a mesma coisa, um é a condição de

possibilidade da vigência do outro.

A relação ou referência logos, mythos e physis, ou linguagem, mito e natureza, se dá

mediante o entrelaçamento na linguagem (logos) do que se manifesta (mythos) ao vigor

originário-manifestante (physis). Não pode haver sentido sem essas considerações.

Todo apelo é feito a algo que se esqueceu, a um esquecimento, para trazê-lo à presença da

memória. Assim, o poema apela para um conhecimento esquecido e substituído pelo

racionalismo científico: o conhecimento tradicional ou hermenêutico. Esse conhecimento é

extraconceitual e se funda na questão. O motivo de ser extraconceitual é o de que o conceito não

conserva a força originária inaugural (physis) que lhe deu origem, antes a abandona

completamente e se cristaliza inviabilizando qualquer transformação, caso contrário, seria uma

questão.

O conhecimento tradicional ou hermenêutico se volta para os acontecimentos primordiais

postos pelos mitos e não considera a linguagem um instrumento, mas um manifestar da própria

realidade. A linguagem então resguarda e preside a condição originária da manifestação,

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assimilando o sentido essencial do agir da poiesis, que é o de fazer passar do não ser ao ser. A

linguagem mítica instaura a verdade da poiesis, ou seja, ela se põe como mitopoética.

Em Mensagem, obra fundamentalmente mitopoética, na composição intitulada Ulisses, o

poeta Fernando Pessoa, toma como motivo o mito, sempre presente, de uma forma ou de outra,

em todos os poemas e assevera: “O mito é o nada que é tudo”. Isso equivale a dizer que é o mito

que abre o mistério e revela a realidade possibilitando o silente falar. Originado do verbo

mytheomai, mito significa abrir, desvelar, desocultar pela palavra. “O mito aparece como o

próprio real se doando como Linguagem na palavra. O real se manifestando como Linguagem é a

poiesis, e o “sentido do ser” (CASTRO, 2000, p.09). O mito é, pois, pura poesia. Ambos fazem

eclodir a realidade. São, na verdade, duas palavras para se dizer um único fenômeno, que é

conservar em si a tensão do logos como o mesmo de identidade e diferença.

Por isso, a poiesis, o passar do não-ser ao ser (independente de como se realize – poema ou

prosa: lírico, épico ou dramático – falando ou não de matéria notadamente relacionada aos mitos)

terá sempre uma origem mítica.

O mito abre o mistério, isto corresponde a dizer que no mito o silêncio fala, realiza a

passagem do não-ser ao ser, do ocultar ao aparecer e vice-versa. Nesse sentido, o mito resgata a

verdade originalmente como alétheia: o desocultar que se fundamenta no ocultar. É o pleno vigor

da physis que se revela enquanto se vela e se vela desvelando-se. O assinalar e o fixar o

acontecimento da verdade se funda no operar da obra de arte. “A própria Poética eclode pela

força do mito. E este atende tanto à dimensão da Linguagem divina como à dimensão da palavra

humana. Di-mensão significa o mediar através do qual se presentifica a dobra do sagrado: o

divino e o humano” (CASTRO: 2000, p.09). O mito não representa a verdade, antes é a própria

eclosão da verdade. Ele poeticamente fecunda a vida instaurando Mundo.

A poesia do poema A máquina do mundo convida “a todos, em coorte,/ a se aplicarem sobre

o pasto inédito/ da natureza mítica das coisas”. Aqui cabe pensar a expressão “pasto inédito”.

Pasto é uma vegetação que serve de alimento, mas inédito? Seria um campo que nunca foi usado

com tal finalidade? No contexto do poema assinala o “pasto inédito da natureza mítica das

coisas”. A natureza mítica possui um pasto, um alimento inédito, que nunca foi visto, original e

sem precedentes. Na linguagem mitopoética esse pasto inédito é entendido como algo inaugural.

Alimento inaugural, originário. Entretanto, ligado aos sentido dos versos anteriores:

“convidando-os a todos, em coorte,/ a se aplicarem”, como vimos acima, a palavra aplicar se

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direciona a ação de entregar-se com afinco, mergulhar e deixar com que esse “pasto inédito” nos

envolva, ou seja, entregar-se a linguagem originária e inaugural, mitopoética.

Esse apelo é auscultado sem que se ouça “voz alguma/ ou sopro ou eco ou simples

percussão” que “atestasse que alguém, sobre a montanha,/ a outro alguém,/ noturno e miserável,/

em colóquio se estava dirigindo”. Não era um apelo de algum sujeito, mas da própria linguagem:

“a linguagem fala, o homem só fala à medida que corresponde à linguagem”. (HEIDEGGER:

2004, p. 26). Essa ausculta não fora feita com os ouvidos, mas com o corpo.

De onde provém a fala da linguagem? Do silêncio.

Somente com o corpo se pode auscultar a fala do silêncio. Fala do silêncio é aquela que

vigora poeticamente no entre. É preciso estar entregue a ela de corpo para poder auscultá-la.

Essa fala é divinatória, pois ela sabe que o seu interlocutor estava procurando algo

paradoxal, ele mesmo não sabia ao certo onde procurar, dentro ou fora de si, o que “nunca se

mostrou,/ mesmo afetando dar-se ou se rendendo,/ e a cada instante mais se retraindo”. O que ao

mesmo tempo se procura dentro e fora, que não se mostra quando se dá e que quanto mais se

rende, mais se retrai? A natureza mítica ou physis e mythos. O acontecimento originário

apropriante do real que manifesta o sentido/verdade da vida. A resposta de todas as respostas não

põe a coisa, antes se reclina sobre si mesma e se encolhe atraindo cada vez mais o pensamento. E

isto, “essa riqueza sobrante a toda pérola,/ essa ciência sublime e formidável,/ (...) essa total

explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singular” que ardentemente se pesquisou e na pesquisa

se consumiu e se mostrava arisco, inconcebível, esquivo e hermético, agora, à força de toda

renúncia, gratuitamente se doa e convida a olhar, reparar e auscultar, a abrir o peito e agasalhá-lo.

Mas que renúncia é essa, se essa palavra nem é citada no poema?

Por possuir vieses mitopoéticos, a poesia não pode ser lida unicamente nas linhas do poema,

tampouco compreendida apenas no que é dito, mas, sobretudo, nas entrelinhas é que se lê e se

compreende o não-dito. A renúncia é toda a “razão” de ser do que aparece e se mantém na

presença. A renúncia à pesquisa, que na verdade é uma investigação metodológica sustentada por

esquemas racionais visando fazer o real responder conforme sua capacidade de representá-lo, e o

passo decisivo para a iniciação nos mistérios do real.

O pensador moderno, munido de seus instrumentos intelectuais de pesquisa, supõe poder

dominar todo o conhecimento e re-apresentá-lo esquemática e conceitualmente, ignora o vigor da

realidade que, arredia, não se deixa dominar. O que o homem consegue reproduzir é o simulacro

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da realidade e o que ele domina é o simulacro do caminho-destino, da verdade e da vida, mas não

o hodós, a aletheia e a dzoé. Entretanto, “a renúncia não tira, dá” (HEIDEGGER: 1977, p. 328).

Quando o homem renuncia a tudo o que se interpõe entre ele e a realidade com mediador e se

lança no entre, ele mergulha nas profundezas da linguagem e se torna um ser da abertura. Faz a

ausculta de todas as auscultas. Uma ausculta de vida e/ou morte, semelhante a que aconteceu com

Ulisses na Odisseia. E assim pode ouvir o apelo de todos os apelos, o apelo do ser, para ser o que

se é.

Para ser o que se é, por paradoxal que pareça, é preciso realizar-se, cujo sentido de ser é, ao

mesmo tempo, plenitude e incompletude. Plenitude por se já estar entregue ao mistério do ser,

incompletude porque esse mistério é insondável e não se pode conhecê-lo totalmente, pois ele

mesmo abriga a tensão entre ser e não ser, velamento e desvelamento, por isso mistério.

2. 2. 2 - Apelo mitopoético: ausculta do mistério

O que apela no poema é exuberante, inesperado e extraordinário sendo apontado nas

grandes obras humanas, na natureza e nos animais, também no “que foi pensado e logo atinge

distância superior ao pensamento”, no “absurdo original e seus enigmas” e nas “verdades altas

mais que todos os monumentos erguidos à verdade”. O que foi visto no poema? A própria

realidade se realizando, isto é, o mistério da physis (natureza) como logos-poietikós (linguagem

poética), o desvelar, brotação do real como linguagem.

A linguagem, essencialmente mitopoética, exprime a verdade do real multifacetadamente e

de modo inaugural, assim, manifesta o vigor do real na clareira que se abre a partir da tensão

logos/physis e physis/mythos. É nessa clareira que o sentido emerge e inaugura mundo e instaura

o destino humano.

Outro sentido para auscultar é ler. O homem apropria-se do que lhe é próprio, do seu

destino, auscultando/lendo o real que se apresenta na linguagem. Ler vem do verbo grego legein,

de onde ser formou o substantivo logos, e que possui os sentidos de pôr, depor, dispor e propor,

reunir, dizer, mundificar.

O processo de leitura não é um ato de decodificação, mas de concriação, em que o leitor e o

que se lê con-cresce, isto é, crescem, criam-se, juntos. Nesse diálogo-leitura vigora o sentido e

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eclode a realidade como poiesis. A leitura é um desvelar originário do mistério e da verdade da

vida na linguagem, essencialmente poética, ritualizada.

A poiesis configura um real sacralizado pelo mito ritualizado originariamente no qual se

manifesta mundo. É uma linguagem viva e atuante que converte a realidade em mobilidade

perpétua, penetrando o núcleo seminal da vida e presentificando essencialmente o real.

A poeticidade de A máquina do mundo rompe com as determinações metafísico-

humanistas da cultura moderna e com as estruturas paradigmáticas da teoria do conhecimento e

pro-voca uma abertura para uma realidade conferindo ao homem a possibilidade encontrar o

sentido de sua existência, seu destino.

O homem que está em entregue à linguagem mitopoética encontra-se aberto ao devir e em

interação com o sentido de sua existência. O mundo torna-se um cosmos vivente, que se revela

pleno de sentido. Em suma, ao homem é possibilitado um diálogo contínuo com o mundo em que

habita. Esse paradoxo primordial em que o mundo é, ao mesmo tempo, aberto e misterioso

possibilita a eclosão da verdade como alétheia. O real acontece como revelação contínua num

círculo virtuoso de manifestações de sentido que inicia o homem nos mistérios da verdade e da

vida e o dispõe para a liberdade como realização maior de sua existência.

Não há explicações racionais para a realidade, o que se tem a fazer é estar à ausculta do

inaudito e inaudível em tudo que se diz e escreve: a linguagem poética, pulsação manifestante e

fundadora no sentido primordial.

A viagem ao originário assinalada em A máquina do mundo não é marcada por uma

peregrinação no espaço físico, mas no espaço original, dá-se como um caminho que se abre no

próprio caminhar. O caminhante também não é um mero transeunte, mas está imerso no entre que

tensiona caminho e caminheiro.

A viagem de retorno às origens - ao que se é - é uma re-interpretação da vida. É uma

aproximação emocional do núcleo inseminador da existência e também um interrogar-se sobre o

sentido do real. É sentir a força inspiradora que anima o devir e é estar constantemente à ausculta

dessa força, sem, contudo, que se a compreenda exaustivamente, muito menos a apreenda

totalmente. É estar no presente e ser o antiquíssimo ancião precursor do futuro.

O homem que está inserido no movimento de retorno às origens é envolvido por um

espaço-tempo míticos, além de tudo que é ou existe, e um tempo kairológico (acontecimento), ou

seja, um espaço e tempo que não é mais o que já foi, também ainda não é o que será, está em

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constante travessia. Há um movimento comunicado por uma força que o atrai para além de si.

Como pode um movimento de retorno às origens deslocar o homem para além de si? Esse além

de si não é algo que se possa compreender como transcendência, no sentido metafísico da

palavra, mas uma força motriz que conduz além para dentro de si mesmo; é o mergulhar dentro

de si mesmo para que possa ir mais além. O retorno às fontes é, na verdade, um grande paradoxo,

assim como enuncia a palavra-guia grega arkhé, no sentido do que se lança à frente e por isso é o

começo ou o princípio ou origem de tudo.

A máquina do mundo possui um princípio gerativo que, ao mesmo tempo em que está à

frente, como vanguarda, promove o retorno ao sentido originário da poiesis: o de abrir-se para o

acontecer do real. Esse mesmo princípio gerativo se estabelece simultaneamente como origem e

originado, isto é, o princípio que preside a gênese do sentido do texto, fazendo convergir e

interagir a parte e o todo do poema. A máquina do mundo é um poema original e originário, um

apelo ao retorno às fontes de poesia e pensamento: a ausculta do real. É um convite a despojar-se

de toda auto-suficiência, do desejo de dominação formal, para se dispor à ausculta do mistério da

linguagem. O esforço não tem como finalidade atingir uma forma perfeita, que sirva de

paradigma, mas atingir o originário da obra, aquilo que a faz ser o que é, sua poética implícita.

O poema escapa aos métodos tradicionais de análise, seu sentido só pode ser pensado

fazendo-se o caminho poético que lhe dá origem. O intérprete precisa retornar à fonte originária e

originante para, de lá, percorrer concriativamente o rumo tomado. O sentido do destino do

homem, evocado no poema, não está no início nem no fim, mas no meio do caminho, é na

trajetória que se constrói sua morada. A natureza mítica das coisas é o intrínseco do real, o seu

próprio, se manifestando como uma doação de sentido do ser e do mundo de modo que possa ser

compreendido sensitiva e intuitivamente pelo homem que aponta para o mistério da consumação

da experienciação humana: a liberdade.

2.3 - O caminho da travessia

Um dos textos mais importantes em língua portuguesa em que a questão do caminho

aparece de modo bem explícito, pelo menos aparentemente, é o poema No meio do caminho, de

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Carlos Drummond de Andrade (ANDRADE: 2007, p. 16). A experienciação poética proposta se

enuncia logo no título e se desdobra pelos versos. Abramo-nos para sua ausculta:

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

No meio do caminho é um poema antológico na obra de Carlos Drummond de Andrade e na

literatura brasileira. Há uma gama variada de interpretações do texto. Muitas vezes ele é vítima

de deboches e equívocos produzidos, sobretudo, pelo artificialismo metodológico da análise

estruturalista, estilística e pelo biografismo da historiografia literária dos quais se valem muitos

críticos ao interpretar a referida obra. Esses vieses, apesar de importantes, tornam-se ineficazes

quando principais ou absolutos fios condutores da leitura. A grande questão da poesia de

Drummond não é estrutural nem estilística, tampouco biográfica, no sentido historiográfico,

tampouco meramente epocal moderna, mas ontológica.

No meio do caminho é um dos poemas mais intrigantes de Carlos Drummond de Andrade:

ora considerado um texto hermético e ora um exercício lúdico de poesia, derivando outros

sentidos e acenos poéticos, enseja um desafio à compreensão da poiesis como manifestação mais

diáfana da linguagem. O meio do caminho é a questão mais contemporânea e cotidiana que o

homem moderno pode e deve pensar e, ao mesmo tempo, a questão mais ancestral, que move o

homem desde os primórdios da vida, a saber, o seu caminho enquanto habitação do ser. É o que,

por exemplo, se questiona quando se pergunta o que o poema de Drummond nos acena ao situar

todo acontecer poético No meio do caminho. A mesma questão é posta em Grande sertão:

veredas, de Guimarães Rosa: o próprio título da obra nos assinala o meio do caminho e convida a

pensá-lo. O que é o Grande sertão é apontado na palavra seguinte antecedida de dois-pontos:

veredas. Vereda é basicamente um caminho, que por derivação significa senda, atalho, várzea ao

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longo de um rio, no regionalismo de Minas Gerais e do Centro-Oeste do Brasil é uma região de

cerrados, ou buritizais que margeiam um rio. Vereda é, sobretudo, uma clareira que se abre como

caminho. O Grande ser-tão é a abertura das veredas do destino do ser: “O sertão está em toda a

parte” (ROSA: 2001, p. 09). Grande sertão: veredas e meio do caminho dizem o mesmo.

Entretanto, nesse sentido, o que é o meio do caminho?

Heidegger faz uma pergunta semelhante no ensaio O caminho para linguagem: “O que é

um caminho?” e, em seguida coloca o que seria mais uma questão que uma resposta: “Caminho é

o que se deixa alcançar”. Mas o alcançar o quê e como? E qual é o sentido de “meio no

caminho”?

A resposta não é simples apesar de a palavra caminho significar, simplificadamente, um

percurso ou trajeto possível entre dois pontos distintos e distantes, nomeados início e fim.

Materialmente falando, é uma via construída com o intuito de ligar dois extremos e, por extensão,

viela, travessa, rua, estrada. Humanamente entendido é o resultado de experiências que culminam

no conhecimento de um fazer eficaz visando determinado fim, isto é, metodologia. Ambos os

significados apontam para uma derivação de sentido da palavra grega hodós. Mas se os sentidos

acima consistem em uma derivação, qual seria a essência do hodós?

O hodós surge de uma necessidade, não uma qualquer, mas aquela expressa pela palavra

grega anánke, como a lei interior do ser imposta pelos deuses aos homens e às coisas de serem

eles mesmos, o que se pode expressar do modo seguinte: o homem só pode ser o que ele já é. Daí

a necessidade de ser: ser o que já se é. Nisso consiste toda a necessidade humana. O ser tem como

necessidade ser. O hodós, caminho, ou melhor, o caminhar é a anánke humana é isso que nos

assinala Grande sertão:veredas: “Sertão: é dentro da gente” (ROSA: 2001, p. 235).

Caminho nomeia o aberto que permite toda e qualquer experienciação. O caminho não está

fora do homem, mas é interior a ele, o homem se move o tempo todo no caminho e este é sem

saída nem entrada - nele somos: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é

tomando conta dele dentro.” (ROSA: 2001, p. 212). Sertão é meio do caminho como destinação

humana do qual não se pode fugir: “o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar

sempre em cima do sertão” (ROSA: 2001, p. 402).

O homem tem por necessidade fazer a caminhada. Ele parte do que já é para o que ainda

não é, isto porque o sendo humano é a travessia constante e incessante do ser ao não-ser para

então ser o que ainda não se é. Caminho é o que por meio do qual e como tal o homem se

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apropria do que ainda não é no que já é enquanto é tomado pela caminhada na doação do próprio

caminho como possibilidade para a possibilidade. E, quando se pensa ter chegado ao que se é,

então dá-se novo salto ao que ainda não é, como um círculo infinito entre ser e não-ser. O não-ser

não é o oposto de ser, antes a sua maior possibilidade. O homem caminha em busca da sua

plenitude, do grego, télos. Caminha para consumar o ser que já recebeu para ser. Aonde o homem

espera chegar? Ao inesperado. O inesperado não é uma forma pronta, acabada, concluída, mas o

sendo em seu vigor pleno. Apropriar-se do caminho é apropriar-se do que nos é próprio na espera

do inesperado: “o sertão é uma espera enorme.” (ROSA: 2001, p. 436).

O télos pode ser natural quando acontece como uma consumação da phýsis ou da ousia,

quer dizer, o caminhar do sendo como a realização de seu hodós, apropriando-se de seu próprio.

Ou, o télos pode figurar como uma convenção estabelecida por um nómos, determinando o valor

e a realização de alguma coisa. O nómos radica a anánke como uma convenção que, geralmente,

não leva em consideração, em primeira instância, a phýsis ou a ousia. Antes toda necessidade

humana é capturada tendo por fim o sentido de realização imposto. Consumar torna-se

consumismo. O consumismo gera no homem necessidades que não são naturais, por isso a sua

conquista não o realiza nem consuma o humano. O nómos como anánke, isto é, o que convém ser

necessário, determina e impõe uma dada realização como regra, numa norma à qual se exige

obediência inflexível sob a ameaça de rigoroso castigo. Mas que castigo rigoroso a desobediência

ao nómos pode causar? A exclusão. O que não se enquadra é excluído. Ser excluído é ficar fora

de uma certa classificação, ser impedido de comungar com certo grupo, ser privado de uma

identidade identitária que o credencia em determinado contexto. Entretanto, “Obedecer não é

cumprir ordens. É ob-audire, ser todo escuta de vigor desta liberdade ...” (LEÃO: 1977, p. 239).

Caminhar é deixar que o destino venha a nosso encontro e por ele ser atravessado e

obedecer como ausculta ao apelo do caminho/destino e isto é apropriarmo-nos do que nos é

próprio fazendo do caminho nossa morada. Seguindo esse viés, entra em cena a questão da ética.

A ética nos fala da nossa morada. A morada humana é uma questão desde os primórdios da

humanidade e da história do pensamento. Primeiramente a ética surge como uma experienciação

natural do humano, posteriormente vem ao pensamento como referência ao destino do homem,

isto é, habitar sua morada. Comentando o fragmento 119 de Heráclito, Heidegger salienta:

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Diz a sentença de Heráclito (Fragmento 119) ethos anthropo daimon. Geralmente se

costuma traduzir: “a individualidade é o demônio do homem". Essa tradução pensa de

maneira moderna, não de maneira grega. Pois ethos significa estada (Aufenthalt), lugar

de morada. Evoca o espaço aberto onde mora o homem. É a abertura da estada que faz

aparecer o que ad-vém, con-venientemente, à Essência do homem e, assim ad-vindo, se

mantém em sua proximidade. A estada do homem retém o ad-vento daquilo, ao qual o

homem, em sua Essência, pertence. Isso é o Heráclito chama de daímon, o Deus. A

sentença diz pois: o homem mora, enquanto homem, na proximidade do Deus.

(...)

Ethos anthropo daimon diz o próprio Heráclito : "a morada (ordinária) constitui para o

homem a dimensão onde se essencializa o Deus (o extra-ordinário) . (HEIDEGGER:

1995, p. 85)

O caminho como hodós implica verdade do ser que realiza o seu ethos, ou seja, é o agir

apropriante. Ethos é estada, lugar de morada, isto é, o espaço aberto onde o homem de-mora e o

faz aparecer e manter-se na proximidade do que lhe é próximo, a saber, o ser. Morar inaugura a

morada, isto quer dizer que em morar espacializa-se a morada como sentido de todo e qualquer

morar, um é a medida do outro. Que lugar é esse que aproxima o homem do ser? Qual é a morada

originária do ser?

2.3.1 - O caminho no pensamento-poético-oriental

Há uma série de poemas orientais arcaicos que nos remetem a essas questões e nos indicam

o lugar. Esses poemas foram coletados em uma espécie de cancioneiro denominado Tao Te

Ching, seu principal escritor foi Lao Tse (570 a.C.), segundo reza a tradição, mas não há prova de

que todos os poemas tenham sido composições dele. Entretanto, se crê ser ele um dos iniciadores

o Taoísmo, mas, conforme a história, aos 80 anos, quanto tentava sair da China, após ser

reconhecido pela guarda da fronteira, foi conclamado a escrever a sabedoria, o que até então se

recusara a fazer. Isso indica que não havia o interesse de criar uma doutrina em torno do Tao, este

é, apenas, a maior provocação ao pensamento oriental. Esses poemas, por terem sido escritos

numa língua milenar, possuem variadas traduções. Em vez de eleger uma em que resida de modo

mais concentrado a cultura da época, o que seria já uma violação à sabedoria, pois esta perderia

sua perenidade, abramo-nos à ausculta das diversas interpretações tendo a língua como uma

realização da linguagem:

Na tradução de Humberto Rohden, sob o título A fonte do ser e os canais do devir, lemos:

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Nas profundezas do Insondável

Jaz o Ser.

Antes que o céu e terra existissem,

Já era o Ser

Imóvel, sem forma,

O Vácuo, o Nada, berço de todos os Possíveis.

Para além de palavra e pensamento

Está Tao, origem sem nome nem forma,

A Grandeza, a Fonte eternamente borbulhante,

O ciclo do Ser e do Existir.

(TSÉ: 2003, p. 75)

Segundo o poema o ser é imóvel, sem forma, o vácuo, o nada, não obstante, “berço de todos

os Possíveis” e jaz “Nas profundezas do Insondável”. O Insondável é isto que “Está para além de

palavra e pensamento”, é “origem sem nome nem forma”, ou seja, não pode ser capturado por um

conceito. Porém o poema chama de Tao esse lugar originário, onde o ser e o existir faz sua

morada e cumpre o seu ciclo. Ser e existir não trata da antiga dicotomia essência e aparência, mas

do sendo que é, ao mesmo tempo, ser e existir. Morada é o ethos do ser. O ciclo que o ser cumpre

é o seu intenso movimento de desvelamento e velamento. Tao é também “A Grandeza, a Fonte

eternamente borbulhante”, o que para os gregos era a physis. Tao é muitas vezes referido nos

poemas como O Caminho Perfeito, mas que sentido essa nomeação possui? Podemos

compreender escutando o próprio Tao, na tradução de Murillo Nunes de Azevedo, no poema

intitulado O Tao: “O caminho que pode ser seguido / não é o Caminho Perfeito” (TSÉ: 1975, p.

1.). Parafraseando o texto, podemos dizer que: O Caminho Perfeito é o caminho que ainda não foi

seguido. Como é caminho se ainda não foi seguido? Porque não foi aberto ainda. É o caminho

que o homem habita sempre de modo original e inaugural, que se abre como doação da floresta

cerrada e somente no caminhar: “ O Caminho é vazio e inesgotável / profundo como o abismo”.

(TSÉ: 1975, p. 8.). O Caminho Perfeito, ou o Tao, é o Vácuo, o Vazio, o Nada como o berço de

todos os Possíveis, esse caminho o ser habita como possibilidade e disponibilidade. O vácuo, o

vazio ou o nada aqui não é o nulo ou o que não é habitado, mas o que é pleno de habitação. É o

que nos diz o poema onze, de Lao TSÉ: colhido do livro Itinerário, de Arcângelo Buzzi, numa

tradução bastante poética:

Trinta raios rodeiam um eixo

Mas é onde os raios não raiam

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Que a roda roda.

Vaza-se a vasa e faz o vaso

Mas é o vazio

Que perfaz a vazilha.

Casam-se paredes e se encaixam portas

Mas é onde não há nada

Que se está em casa.

Falam-se palavras e apalavram falas

Mas é no silêncio

Que mora a linguagem.

O ser presta a utilidade

Mas é o não ser

Que empresta o sentido.

(BUZZI: 1977, p. 14)

O poema tem início com a imagem de raios rodeando um eixo assinalando a ação de rodear,

mas a roda roda “onde os raios não raiam”, ou seja, a ação se dá onde vigora a não-ação.

Trabalha-se a argila e dá-se forma ao vaso, mas é o vazio que envolve por dentro e por fora o

vaso. Edificam-se as paredes, instalam-se as portas, mas é no meio do nada que a casa passa a

ser.

As três primeiras estrofes do poema apontam para as palavras-guia não-ação, vazio e nada

como referências ao que se dirá adiante: “Falam-se palavras e apalavram falas” numa intensa

produção de discursos frívolos ou logicamente estruturados, mas a linguagem mesma mora no

silêncio. A não-ação, o vazio e o nada assinalam onde a linguagem vigora, a saber, no silêncio, o

véu do ser. Nesse sentido, morar e ser é o mesmo. O silêncio vigora quando a linguagem se

oculta como fala e a fala se manifesta quando linguagem se oculta como silêncio. Essa condição

da linguagem, isto é, a de resguardar-se como velamento e desvelamento, silêncio e fala é que

permeia o discurso poético como caminho. Em que o ser, poeticamente entendido, nunca é, mas

sempre vem a ser, isto é, sendo, esse movimento consuma o humano como o que já não é o que

era, mas ainda não é o que será, está sempre em vias ou a caminho de ser o que ele ainda não é no

que desde sempre é. Por isso o poema termina dizendo: “O ser presta a utilidade”, quer dizer que,

se pensado em oposição e dissonância com o não-ser, ele é tomado de modo utilitário, serve ao

discurso metodológico que se dispõe a falar do ser e a conceituá-lo de acordo com sua ideologia.

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Entretanto, o sentido do ser advém do não-ser. Essa tensão é a responsável pela manifestação

originária e não conceitual do ser, e a podemos denominar de diálogo-dialético.

Geralmente se fala em caminho disso ou caminho daquilo conferindo ao caminho certa

instrumentalidade. Apontando sempre para algo, o caminho se torna um meio para determinado

fim. Esse sentido é certo, mas em termos. O caminho é um meio e o meio é o caminho, mas nem

sempre para um fim. Tem o caminho um fim em si mesmo, então? Também não! Mas como? O

caminho é o sem fim, o labirinto do meio. Insondável: vazio e inesgotável. “Todas as coisas são

produzidas pelo Tao e nutridas pelo seu constante fluir”. (TSÉ: 1975, p. 95.). O caminho pro-

duz, ou seja, traz a presença todas as coisa por meio de seu constante fluir/caminhar.

Outro poeta e pensador oriental de há quase dois mil e quinhentos anos é Chuang Tzu, a

coletânea de seus poemas recebeu o título em língua portuguesa, na tradução de Thomas Merton,

de A Via de Chuang Tzu, ele também se debruça extasiado diante do Tao e bebe de sua fonte. Um

de seus poemas diz que “o homem nasce no Tao”. Note-se que ele não diz que o homem nasce do

Tao, mas no. Esse no assinala não a proveniência genesíaca, o homem não nasce do caminho,

mas a proveniência local, no caminho. E termina o texto asseverando: “Tudo de que o homem

necessita / É de perder-se no Tao”. (MERTHON, 2003. p. 102). O caminho é o lugar do homem

como existência. Entretanto, o caminho não se limita a existência. Ouçamos o Tao:

Aqui, o saber mais elevado

É ilimitado. O que concede às coisas

Sua razão de ser, não pode limitar-se pelas coisas.

Assim, quando falamos em “limites”,

Ficamos presos as coisas delimitadas.

O limite do ilimitado chama-se “plenitude”.

O ilimitado do limitado chama-se “vazio”.

O Tao é a fonte de ambos. Mas não é em si,

Nem a plenitude, nem o vazio.

O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste,

Mas não é nem renovação, nem o desgaste.

Produz o ser e o não-ser,

Mas na é nem um, nem outro.

O Tao congrega e destrói,

Mas não é nem a Totalidade, nem o Vácuo.

(MERTHON, 2003. p. 185).

Tao, como caminho é também linguagem e por isso é que fala de modo originário. Ele é a

fonte de todas as coisas, assinalado como “o saber mais elevado”. As questões que ele coloca,

apesar de escrita milenar, são as que mais incomodam o homem moderno: limite e não-limite,

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origem e finitude, ser e não-ser, saber e não-saber, plenitude e vazio etc. São estas as questões

que nessa tese nos movem e constam de todas as grandes obras poéticas e do pensamento, todas

elas aparecem relacionadas ao destino.

2.3.2 - O caminho: do oriente ao ocidente

O que por ora se diz nos poemas arcaicos parece inconsistente, loucura ou verborragia. Isso

ocorre porque o caminho não se deixa agarrar por conceitos. O caminho é paradoxal em si

mesmo. Heráclito, praticamente contemporâneo de Lao TSÉ, nos assinala no fragmento 60:

“Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo”. O caminho é entre o para cima e o para baixo,

o vazio que vigora e permite os movimentos contrários, mas não excludentes. O caminho

congrega o que mais tende a se opor como desafio recíproco: “O sertão é bom. Tudo aqui é

perdido, tudo aqui é achado...” – ele seo Ornelas dizia. – “O sertão é confusão em grande

demasiado sossego...” (ROSA: 2001, p. 343). Perdido-achado, confusão-sossego, os contrários

possibilitam toda e qualquer manifestação como pro-vocação mútua. A luz brilha mais nas

profundezas das trevas, e esta precisa da luz para ofuscar. O Tao nos diz: “O movimento do Tao

nasce dos contrários / a franqueza é o meio de que ele se serve / Todas as coisas nascem dos Ser;

o Ser nasce do não-ser”. (TSÉ: 1975, p. 77.). Uma outra obra poética também milenar, esta da

tradição judaica, conhecida como Livro de Jó, este, segundo a tradição, era um sábio que viveu

cerca de 2000 anos antes de Cristo. Sua sabedoria nos acena para o caminho do seguinte modo:

“Que caminho leva ao lugar onde a luz tem sua casa? / E as trevas, onde elas habitam? / Se você

soubesse, poderia levar cada um para o seu lugar e pô-los no caminho de sua casa.” (Jó. 38:19 –

20). Uma outra tradução diz: “Onde está o caminho da morada da luz? E, quanto às trevas, onde

está o seu lugar, para que tragas aos seus limites, e para que saibas as veredas da sua casa?”.

Ambas as traduções são valiosíssimas, pois indicam um caminho onde a luz e a treva habitam,

esse caminho é o limite de ambas. Se entendermos que trevas e luz se opõem tensionalmente,

onde se situa o caminho? Entre luz e trevas! E porque apontar esse caminho? Para saber ou

discernir as veredas ou os limites de sua casa ou habitação, do seu ethos.

Ethos nos fala de um habitar, mas que habitar é esse? Não é de uma disposição moral,

afetiva, intelectual, temperamental ou comportamental que ethos nos fala, mas de um habitar

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humano. Ethos é o caminho que o homem habita. Um outro nome que se dá ao caminho que o

homem habita, segundo HEIDEGGER: é linguagem: “A linguagem é a casa do Ser. Em sua

habitação mora o homem.” (HEIDEGGER: 1995, p.24). Morar é um habitar como estar presente,

permanecer e também tornar habitual. Na linguagem o ser se destina à morada como habitação. O

homem se presentifica nesse habitar a linguagem e faz dela o seu lugar de permanência e

vigência, isto é, a torna habitual, faz dela o seu caminho e caminhar como essência própria de seu

destino. Morar é enraizar-se, fixar raízes em algum lugar. Fixar raízes é uma metáfora para

estabelecer-se ou firmar-se de maneira definitiva e profunda em algum lugar propício, de modo

que se propicie ou se resguarde o seu destinar-se, como pôr-se rumo à eclosão do ser ou, de outro

modo, construir sua morada. Construir a morada é deixar vir à presença o que se é, o destino

humano. O caminho é o abrigo do destinar-se humano, isto é, o amparo de seu acontecer. A

linguagem é a casa do ser. O ser se destina no sendo trilhando o seu caminho e fazendo dele

morada. O que se põe como questão primordial é a essência do destino humano que se expressa

na imagem poética do Caminho. É no caminho que o homem constrói sua morada.

Voltemos ao “meio do caminho”. A palavra caminho, entre outras enfatizadas nos versos de

Drummond, é muito mais que pleonasmos em forma de hipérbatos e anáforas. A economia de

palavras com que se ordena o poema, apesar da repetição, constitui algo primordial: um aceno

para que as pensemos com afinco e radicalidade. Pensar as palavras com radicalidade é fazê-lo

em sua essência na essência do próprio pensar enquanto palavra. É deixar-se levar à origem mais

profunda, ao intrínseco à natureza mesma da linguagem, onde as palavras nascem ou brotam e

perfazer sua história. O enredo historial da linguagem não é simplesmente uma historiografia,

mas entramar do tecido pleno de caminhos entre os vazios como possibilidades mais profundas

de urdiduras do destino. O enredo historial ou a história do caminho não é historiografia, mas

uma fala que manifesta a tensão entre vazio e figuração. Pensar com radicalidade é pensar com

afinco.

Pensar com afinco é o mesmo que dizer pensar com perseverança. Perseverar é estar

entregue ao caminho, à travessia (per-) com severidade e disciplina. É deixar-se seduzir pelo

caminho num caminhar inaugural pelas veredas da vida. Quando se percorre as veredas da vida

se descobre a vida como experienciação originária.

O vocábulo experienciação possui o mesmo radical da palavra perigoso, do grego per-, que

forma tanto o verbo grego perao, que significa originariamente: atravessar, quanto o substantivo

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peras: limite. Perig- é um antepositivo do antigo verbo latino periri, depoente, de que subsiste

em latim o particípio passado perítus, com a acepção daquele que tem a experiência de ou é hábil

em. Os derivados latinos desse verbo, dentre outros, são: experìor, significando tentar,

experimentar; experientìa, prova, ensaio, tentativa ou experiência, manifestando o sentido de

experiência adquirida, dá também pericùlum e períclum, tentativa que envolve risco, perigo,

donde periculósus, perigoso e periclìtor, na acepção de fazer uma tentativa arriscada, em perigo,

aquele que assim age é chamado de perítus, que sabe por experiência, sábio, instruído, perito e há

também, por oposição, imperítus, inexperiente, ignorante e imperitìa, inexperiência, ignorância.

Todas essas palavras têm relação com o grego peíra, gerando a idéia de prova ou tentativa,

peiráó, tentar, empreender. O radical perao, antecedido pelo prefixo ek- (movimento para fora)

reforça a idéia de atravessar, nomeia a ação de inaugurar um caminho novo através da própria

ação de caminhar.

Toda experienciação gira em torno da travessia perigosa de um caminho. Por que a

travessia é perigosa? Porque toda situação de perigo é uma situação limite, é um desafio, onde ou

se morre ou se faz uma experienciação. É uma provocação na qual o oponente obriga a parte

contrária a dar uma resposta. Todo desafiado é forçado a dar uma resposta ao desafio. Provocar,

composta pelo prefixo pro-, é manifestar, pôr diante de, e o radical -voc-, que tem como

significação mais próxima, voz. Unidos, prefixo e radical, pro-vocar é com-vocar

desafiadoramente para diante de si uma outra voz. É um apelo a uma outra voz. Nesse apelo está

operando o polemos, o conflito, o desafio, o duelo. O desafio é uma com-vocação a uma outra

fala. Com-vocare, é trazer para junto de si uma outra fala no sentido de reunir, chamar/trazer para

junto, pôr diante de si de modo em que haja uma com-preensão, um tomar posse, prendendo

junto a si o que surgiu ou nasceu naquele momento. Com-vocar outra fala desafiando-a é o que os

gregos nomearam originariamente diá-logo. No diálogo embatem-se dinamicamente desafiante e

desafiado. O desafiante não é um ser fixo, mas é definido pelo ato de desafiar. O desafiante e o

desafiado é uma posição mutável, num jogo em que ora desafia ora se é desafiado. Desafiar e ser

desafiado são duas coisas distintas, duas posições que mantém sua singularidade independente de

quem as assuma. Resta-nos, então perguntar o que ou quem nomeia esses dois modos como o

agir se apresenta, ou ainda, simplificando, quem ou o que desafia e quem ou o que é desafiado?

Drummond intitula seu poema No meio do caminho e, além disso, essa expressão é evocada

ao longo do mesmo como um lugar de domínio privilegiado donde emerge o sentido do texto e,

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ao mesmo tempo, para onde o sentido se destina. Qual é a importância dessa expressão? Qual seu

sentido ou, em outras palavras, que acontecimento ela nos acena? O meio do caminho é lugar de

abertura. O meio do caminho é uma imagem poética porque opera o agir da physis no logos. A

palavra caminho nomeia o entre de duas realidades, duas direções, a do início e a do fim. O

caminho nomeia o que já não é e o que ainda não chegou a ser. No verso de Drummond essa

questão está enunciada pela palavra meio. Meio possui várias acepções: como uma delimitação

fracionária, significa que ou o que é duas vezes menor que a unidade; para a ciência é o conjunto

de elementos materiais e circunstanciais que influenciam um organismo vivo, um grupo social,

como aquele estabelecido pela família, profissão, classe econômica, contexto geográfico a que

pertence uma pessoa etc; ou ainda, procedimento, objeto, instrumento que permite a realização de

algo, útil para ou que permite alcançar um fim, dentre outras acepções destas derivadas. Em No

meio do caminho, no entanto, a palavra meio faz vigorar um sentido que, ao mesmo tempo em

que assinala a ruptura, faz convergir bordos de realidades equidistantes, duas extremidades, como

o princípio e fim. O meio inaugura o centro de um espaço, um lugar que dista igualmente de

todos os pontos a seu redor e, no mesmo momento em que separa em duas partes essa realidade,

as congrega como “metades”4 numa dimensão ainda mais ampla, ocupando uma posição entre

duas ou mais coisas. Originariamente, meio cria sentido no grego a partir do prefixo metá-, que se

entende como no meio de e entre e caminho, em grego, se diz hodós. Meio é o entre-caminho

nomeado no poema. No grego, a fusão desses dois elementos daria a palavra metá-hodós, que

origina método em português. No meio do caminho é onde tudo acontece. Dizer isto é dizer que o

meio do caminho resguarda um acontecer.

Resguardar é guardar com cuidado, abrigar, velar, defender, vigiar, mas é também estar

voltado para. O meio do caminho atrai o nosso cuidado voltando-o para algo que assinala um

acontecer. O meio do caminho assinala uma abertura, no dizer de HEIDEGGER: uma clareira, e

nos atrai para o que acolhe, para o que abriga velando. Algo se nos acena No meio do caminho.

Todo o vigor do caminho se realiza no que permanece, “O que permanece, porém, inauguram os

poetas.” (HEIDEGGER: 2004, p. 132). Mas o que permanece? O que se consegue prender. Não

um prender como uma teoria ou um conceito ou um senso comum, mas o prender que preserva a

abertura proporcionada pelo meio do caminho. Esse prender se dá no aberto, diá, do logos,

portanto como um movimentar-se no caminho, como travessia.

4 “Metade” no sentido de realidades que, mesmo distintas, se co-pertencem.

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2.3.3 - De-morar: a travessia do caminho

No meio do caminho o silêncio desafia a fala e a fala convoca o silêncio. O desafio que

convoca é uma questão que obriga a uma resposta, mas não uma resposta definitiva, capaz de dar

contas da totalidade do saber invocado na questão. Mas a resposta convocada por esse desafio é

uma resposta que re-põe a questão, porque toda questão, já de si, tem e não-tem uma resposta.

Assim como toda resposta, no sentido originário, é um apelo a outra questão. O silêncio provoca

a fala, assim como a questão provoca a resposta, e a fala con-voca o silêncio, assim como a

resposta con-voca a questão de modo que silêncio e fala, questão e resposta se co-pertençam

tensionalmente. Essa tensão que vigora no diálogo une separando e separa unindo dimensões da

mesma realidade. Do latim d(e/i) mensìo,ónis, dimensão é a coexistência de duas medidas,

posições, grandezas ou valores de modo interativo, ou seja, de modo interagente. A interação é

ação recíproca, um enfrentamento que obriga a uma expansão. Na interação concebida como um

embate de valores, os oponentes não visam à destruição um do outro, mas obrigam-se a serem

mais. Assim, na linguagem, o embate não visa a uma predominância de um significado sobre

outro, mas a uma eclosão ainda maior de sentidos na tensão operante. A tensão opera por meio da

inter-ação. Inter é a tensão do entre. Valor está ligado a palavra latina pretium, que dá no

português, preço.

A interação operada pela tensão é uma inter-pretium-ação, a ação de interpretar, ou uma

interpretação. A ação de interpretar com-voca o homem para diante de si mesmo, do mundo e de

todas as demais coisas com vistas a um embate que promova a manifestação de sentidos. Ora o

que se manifesta não é criado no ato de manifestar, mas é o eclodir daquilo que já estava

guardado, oculto, velado. O manifestar é um des-velamento, é um entre-abrir-se do mistério. Do

grego mutus (mudo), mistério nomeia uma cerimônia religiosa secreta ou a guarda dos segredos

dos ritos religiosos. O meio do caminho assinala o lugar de experienciação radical do homem

consigo mesmo e com as coisas, em que se enfrenta o sentido mais profundo da existência ao

entre-ver o mistério eclodindo na revelação enigmática de que o meio do caminho da vida é o

meio do caminho da morte e vice-versa. No dia-logo, assim entendido, abre-se o espaço da

interpretação na qual se manifesta o mistério da vida. O mistério nunca se manifesta primeira e

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originariamente como conceito, mas sempre como uma imagem poética. Poética vem do grego

poiein, e seu sentido original nomeia a ação de eclodir, brotar. Junto a poiein, duas palavras

possuem sentido originário no grego, logos e physis. Logos nomeia ação de reunir tensionalmente

o que tende a se opor e physis e a ação de brotar de si mesmo, desvelando-se, ao mesmo tempo

em que tende à própria ocultação, velamento. Poiesis é um agir, mas não é toda ação que se pode

denominar poiesis, somente aquela em que ação da physis eclode no logos.

Poiesis não é um eclodir dispersivo, mas um manifestar que ao mesmo tempo salvaguarda o

que manifesta. Por esse motivo, a poiesis também está em tensão permanente com a memória. A

poiesis advém do canto das Musas, que são as filhas de Mnemósine, memória em sentido

originário. As Musas cantam o que foi, o que é e o que sempre será. A memória insere em nosso

contexto a questão do tempo: só há tempo porque há memória e vice-versa. Tempo e memória se

tensionam num embate em que um impele o outro a uma ampliação maior de sua essência.

Memória e tempo se manifestam na e como linguagem, por isso os podemos conhecer.

Tempo e memória são doações do sagrado na e como linguagem. Essa irrupção do sagrado

e seus mistérios eclodem na imagem de Hermes, o deus portador das falas sagradas, isto é, o

guardião da linguagem. Hermes, o mensageiro dos deuses, o deus dos caminhos, é a própria

linguagem que se doa aos homens e os convoca à ausculta do Sagrado.

O homem no meio do caminho é um iniciado nos mistérios de Hermes, o mediador entre

terra e céu, mortais e imortais. É ele quem permite a mediação entre o que se oculta no que se

manifesta. A linguagem poética é sempre ambígua, mas não no sentido em que geralmente se

concebe, como o que possui duplo significado. A ambiguidade da linguagem opera a tensão entre

velamento e desvelamento recuperando o sentido originário da verdade como a-letheia. A

interpretação, para que a linguagem nos fale de fato, deve ser um abrir-se para a ausculta da

linguagem, ou seja, habitar a essência da linguagem, a essência da linguagem é essa ambiguidade

originária, a tensão entre velamento e desvelamento.

A tensão entre velamento e desvelamento é um modo de ser da physis que nos advém por

meio da salvaguarda do logos poético. A ausculta acontece à medida que o homem habita.

Auscultar é habitar. O meio do caminho é um lugar de habitação que convoca o homem para o

mais próximo de si mesmo, para o enigma da vida. O habitante do meio do caminho é um ser-

em-travessia. O ser-em-travessia não é mais um entre outros, mas é o próprio ser entregue ao seu

destino, isto é, rumar para o desconhecido radicado em si mesmo. É a luta do ser com seus

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avessos. O ser-em-travessia é a manifestação do ser em seu pleno vigor, pois já não se é o que

era, mas ainda não se é o que será, como diz Heidegger: “Tanto o não-mais-ser como o ainda-

não-ser pertencem ao vigor de ser.” (HEIDEGGER: 2002 b, p. 161.).

O ser e o não-ser é uma condição do ser e seu vigor. O ser é sempre ser-em-travessia.

Pensar o ser-em-travessia é corresponder ao apelo do vigor e à condição do próprio ser. Ao

enunciar poeticamente o meio do caminho, Drummond está nos convidando a pensar o ser que se

põe em travessia e, além disso, a própria travessia. Pensar o ser é habitar a travessia. Toda

travessia é uma travessia de ou em. Onde se presume acontecer a travessia? No meio do caminho.

E é No meio do caminho que o homem encontra não o, mas encontra-se com o sentido (da vida).

No meio do caminho é que o ser é. O ser eclode em sua essência no meio do caminho. Em que

caminho o ser é lançado para que ele ecloda em sua essência? Não é em qualquer caminho que o

ser eclode no que é, isto é, em sua essência, mas no caminho da linguagem, em outras palavras,

fazendo da linguagem seu caminho. Como caminho, a linguagem é sempre um enigma.

É comum o pensamento de que o homem cria a linguagem e dela se faz senhor para seu uso

como instrumento de comunicação. Mas é exatamente o contrário, o homem não possui

linguagem, antes é a linguagem que tem o homem. Ele só pode estar no meio do caminho-

linguagem por este motivo, e é também por isso que ele pode encontrar-se com sua essência, pois

“o acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem.” (HEIDEGGER: 2002b, p. 126.). É

habitando o caminho-linguagem que o homem se revela em sua essência. Habitar é deixar-se

estar possuído pelo caminho-linguagem, pois “o homem é a medida que habita.” (HEIDEGGER:

2002 b, p. 127.).

Heidegger diz que habitar é também um resguardar. Resguardar tanto corresponde a tudo

que tem por fim livrar alguém ou alguma coisa de perigos ou danos, quanto de preservar o direito

de alguém ou alguma coisa ao seu recolhimento. Habitar a linguagem é garanti-la livre de perigos

e danos e, também, preservar o direito que ela tem ao seu recolhimento, ou seja, o seu direito de

silêncio. Preservar o silêncio é abrigá-lo, isto é, tê-lo a salvo e salvarmo-nos nele. O meio do

caminho-linguagem abriga-nos enquanto o abrigamos em nós. Habitamos a travessia quando ela

nos habita, nesse sentido, o homem torna-se um ser-em-travessia o que corresponde a dizer um

ser-da-linguagem. Habitar a linguagem é um corresponder à linguagem, segundo Heidegger:

“Habitar é bem mais um demorar-se junto às coisas.” (HEIDEGGER: 2002 b, p. 127.). Quer

dizer: fazer a experienciação da coisa. Demorar-se junto à linguagem é fazer a ex-periência da

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linguagem. Fazer a ex-periência da linguagem é atravessá-la e, na travessia da linguagem, fazer a

travessia da vida inaugurando o caminho enquanto verdade e vida, correspondendo à pro-

vocação do silêncio.

Quando o homem corresponde à pro-vocação do silêncio ele é conclamado a uma fala

emergente, portadora de uma sabedoria inaugural, pois é a fala de um enigma, do mistério da

linguagem. A linguagem como mistério é sempre enigmática. Enigma é uma fala oracular cuja

essência se revela sempre ambígua. A fala da linguagem é portadora de uma sabedoria originária

e inaugural, pois ela resguarda o silêncio em sua fala. Fazer a travessia do caminho-linguagem é

fazer a travessia de si mesmo enquanto sentido, verdade e vida.

O sentido do caminho é o caminho do sentido. Ser é sentido. Ser é caminho. O caminho não

está situado num lugar, antes é o caminho que funda o lugar. O lugar é uma doação do espaço e

do tempo. O caminho é o espaço-tempo-entre do qual e no qual o ser emerge como ser. É na

travessia do caminho-linguagem-espaço-tempo-entre que o ser encontra o sentido e a sabedoria

(sabor) da vida. A travessia é sempre uma travessia entre saber e não-saber, entre o que já se sabe

e o que ainda não se sabe. Em toda travessia empreendida poeticamente se dá um saber inaugural,

o saber da experienciação do caminho-linguagem, da verdade-linguagem e da vida-linguagem.

Percorrer a travessia é abrir espaço para que o ser ecloda como hodós, aletheia e zoé. O enigma

opera a tensão entre saber e não-saber. Uma das formas para saber, em grego, é ginosko, que

possui sentidos principais de vir a conhecer e chegar a saber. Conhecer, do grego gnorizo, possui

acepção mais importante ao manifestar a intimidade mais profunda que se pode ter com algo,

muitas vezes, é a palavra utilizada no sentido religioso para nomear a relação sexual entre homem

e mulher. Saber possui em latim a acepção de sapère, com o sentido de ter sabor, ter bom

paladar, ter cheiro ou sentir por meio do gosto.

Saber a travessia é com ela ter uma intimidade profunda e sentir seu sabor de modo muito

intenso. Saber a travessia é conhecê-la no sentido originário de nascer com ela. O homem eclode

como travessia ao se pôr em travessia. A grande questão do homem é eclodir como ser-em-

travessia, isso só acontece quando ele se põe em travessia rumo ao sentido da vida. O sentido da

vida é travessia. A vida é travessia. O homem é travessia. A travessia se dá a partir da linguagem.

“A linguagem pertence, em todo caso, à vizinhança mais próxima do humano”, diz Heidegger

(HEIDEGGER: 2004, p. 7). O que diferencia o homem dos outros animais é a referência que ele

desenvolve na linguagem. Caminhar é relacionar-se com a linguagem e é a partir dela que o

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caminho se mostra. Caminho é ek-sistência enquanto linguagem, isto é, é na linguagem que

homem existe, esse existir é o seu caminhar.

2.3.4 - Destino: a trajetividade humana no caminho do pensamento

Dois versos chamam atenção para o que seria um caminho de pensamento na poesia de

Drummond, são os seguintes: “Uma pedra no meio do caminho/ ou apenas um rastro, não

importa” (ANDRADE: 2007, p. 115). A poesia tem o poder de ser densa em sua economia e de

falar profundamente dizendo pouco. Atentando para o título: Consideração do poema, num

primeiro momento, podemos entender que consideração fala do exame detido ou refletido de

algo, de um olhar ou fitar atencioso e minucioso que se presta a reflexão sobre coisa, fato,

possibilidade, pessoa ou sobre si mesmo. Considerar é um outro modo de se referir ao

pensamento. No considerar, pensar, refletir, cuidar, conceber, julgar, interessar, atentar, imaginar,

conceber e respeitar se coadunam. Pensando simploriamente, diríamos que consideração do

poema traduz o efeito dos verbos alistados sobre ele como um direcionar-se ao poema, entretanto,

pode fazer o caminho inverso, do poema podem partir e até para ele retornar fazendo o caminho

de um círculo.

Toda consideração se posta a uma definição, porém, no poema, entretanto, a questão

proposta pela consideração é a abertura de sentido, a palavra-chave no poema é caminho, que

assinala, mais do que um trajeto, a trajetividade humana, indicado em outra palavra-chave: rastro.

Rastro é uma pegada, um vestígio deixado por uma pessoa no seu caminho e põe em

questão essencialmente a tensão entre caminho e caminheiro. Se pensarmos a palavra caminho,

não apenas em sua raiz etimológica, mas, sobretudo histórico-cultural, teremos, como já

dissemos, o seu vigor assinalado no grego antigo hodós. Usualmente conhecido no uso da palavra

método, metá-hodós, assinala a ideia de caminho para ou entre, não como um caminhar qualquer,

mas um desdobrar-se no caminho penetrando a essência da caminhada. Nesse sentido, caminhar é

palmilhar que lança o homem nas questões referentes ao seu destino, em outras palavra, é

destinar-se.

Pode-se deduzir e afirmar ser o rastro uma marca impressa no caminho pelo caminheiro. E

o é, mas é mais, muito mais. O rastro pertence ao caminho ou ao caminheiro? O rastro é onde

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caminho e caminheiro se diferenciam e identificam ao mesmo tempo. No rastro caminho e

caminheiro se perdem. Não um perder no sentido de ficar sem a posse de algo. Isso também, mas

vai além. Um “perder-se no outro” é deixar-se apossar pelo outro de tal modo que se co-

pertençam tensionalmente. Pertencer-nos fala da propriedade no sentido de nomear o que é

próprio de cada um. A propriedade de cada um foi nomeada pelos gregos como destino. É na

tensão entre caminho e caminheiro que surge o destino. O destino se destina ao homem como

sentido, ele é o que sendo se doa no combate (polemos) de ser e não-ser. O destino é silêncio e

fala. Não como um dualismo, antes um é a condição de possibilidade do outro: silêncio da fala e

fala do silêncio, isto é, mistério e revelação. Mistério e revelação implicam-se mutuamente como

possibilidade intrínseca a sua existência, de modo que não pode haver um sem o outro, como dois

lados de uma moeda que se co-pertencem e sustentam a vigência recíproca. A esse movimento

tensional de mistério e revelação os gregos denominaram aletheia, ou, em português,

desvelamento.

Rastro também é o nome que se deu a um antigo instrumento de ferro usado para sulcar a

terra, do qual outros se originaram. Ainda é uma marca deixada no caminho que assinala uma

passagem, uma travessia. O rastro não é simplesmente um símbolo, mas algo que vigora entre o

caminheiro e o caminho. É o modo como o caminheiro feriu o caminho e o caminho se doou a

este. Ferir, nesse sentido, não é causar um dano, mas um modo de tanger o caminho e por ele ser

tangido. O rastro anuncia o mistério do que foi, no que é, por isso, (está) sendo. Ou seja, o rastro

é sempre anúncio de algo que passou, mas, permanecendo como rastro, faz vigorar o que ainda é.

O sendo do rastro é a tensão entre o que foi, o que é e o que será. O sendo é o não deixar de ser.

O rastro é a imagem do sendo como marcas da vida. Ele faz, nesse seu movimento originário de

permitir vigorar o que foi, é e será, eclodir o mistério da própria vida. A vida não deixa rastro. É

impossível separar rastro da vida, seria o mesmo que seccioná-la entre passado, presente e futuro.

É como dizer vida passada, vida presente e vida futura. Essa distinção seria cortar e recortar a

vida a fim de manipulá-la, explicá-la e defini-la. Entretanto, a vida é uma só: rastro inexplicável

que assinala a presença ferindo tempo e espaço.

A poesia é rastro como confluência de caminho, verdade e vida.

A palavra caminho nomeia uma das mais profundas experienciações humanas. Caminhar e

viver diz o mesmo. O caminho da vida é viver. Entretanto, a questão que daí surge é a vida do

caminho. O caminhar é um desvelar incessante do mistério (verdade) da vida, mas isso depende

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da vida do caminho. Implica, então, saber caminhar. O saber caminhar é um saber existencial,

não se diz teoricamente. Caminhar é abrir-se para a vida, é luz, libertação, sentido, nas palavras

de Heidegger: “abrir um caminho para se apreender o ser originário da própria pre-sença.

(HEIDEGGER: 2002a, p. 185). Caminho é uma construção do pensamento enquanto

questionamento. O lugar primordial de todo e qualquer questionamento é onde reside a questão, e

esta tem o seu lugar na linguagem.

A sabedoria primitiva dos mitos, das religiões e das filosofias evocam a imagem do

caminho como questão preponderante. O Tao Te Ching apresenta o Tao como fio condutor mais

radical de seu pensamento, porém, Tao não é simplesmente caminho, mas o caminho do meio,

que é o meio do caminho. Fazem o mesmo percurso a Via de Chuang Tzu, os mitos gregos e

outros, as narrativas e poesias judaicos, do chamado Antigo Testamento e judaico-cristão, do

Novo Testamento, ainda, as poesias diversas do verso e da prosa das eras mais remotas até a

atualidade, para citar alguns exemplos. Do oriente ao ocidente a poética é uma só. O caminho é

uma imagem constante mesmo quando não tão explícito, pois em toda obra de linguagem o

caminho se apresenta no “como”, o modo de ser de tudo o que vem à presença, inclusive do

próprio “vir”. O que escrevo agora é a experienciação do caminho enquanto escrita e não

somente como tema. O modo como as coisas vem a ser e são é caminho e caminhar.

Rastro é o que permanece do que muda, é o que fica da caminhada e ao mesmo tempo o que

evidencia o caminhar. Rastro também é o destino ainda não manifesto guardado no silêncio do

passo seguinte, existindo como possibilidade vital, é o que era, o que é e o que será na vida do

caminheiro e do caminho: rastro é memória. E não é sempre o mesmo no fluir do tempo e do

espaço. Rastro e caminho se tensionam e concedem sentido um ao outro, é o gastar-se do

caminho e do caminheiro, o anúncio do porvir e do que foi. É a intimidade da existência se

doando como experienciação, e é tudo o que consuma a vida como experienciação mais profunda

e manifesta o que somos. Nesse sentido, a poesia é o rastro mais íntimo ao ser humano.

2.4 - Destino: gestualização da vida

Não podemos falar da linguagem ou sobre ela, somente a partir dela, ou seja, a partir do que

ela mostra, a isto chamamos caminho. É a linguagem que convoca o homem e o faculta a pensá-

la oferecendo-lhe o caminho para isso. A linguagem nos devolve o pensamento que a devotamos:

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pensar a linguagem é pensarmo-nos enquanto seres da linguagem e não simplesmente dotados

dela. A linguagem é a provocação maior que desafia o ser humano.

Caminhar pressupõe nos fazer chegar a algum lugar, mas o lugar originário a que nos leva o

caminhar é onde já estamos, é disso que Drummond nos fala no poema Mãos dadas:

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.

(ANDRADE: 2007, p.80)

O que se põe em questão no poema? Antes de pensar isso, primeiramente devemos

perguntar quem põe a questão ou as questões. O que se manifesta como princípio norteador de

sentido no texto brota de uma fonte subjetiva como reflexão sobre uma realidade objetiva e/ou

também subjetiva? Certo é assim que se pensa, mas será que esse pensar se aproxima da essência

da poesia que se manifesta no poema?

O mundo não muda, se ele mudasse seria razoável que tivesse diversos atributos, o tempo é

que faz com que tenhamos diversas percepções do mundo. A resposta nos vêm nos versos de

Caeiro:

O Universo não é uma ideia minha

A minha ideia do universo é que é uma ideia minha.

A noite não anoitece pelos meus olhos.

A minha ideia de noite é que anoitece por meus olhos.

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

(PESSOA, 2005, p. 113)

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Embora universo aqui não seja a mesma coisa que mundo por nós referido, diz o mesmo,

porque universo é também como mundo e vice-versa. É muito comum a poesia de um poema

dialogar com a que se manifesta noutro, pois todos os poemas têm a mesma fonte, a saber, a

linguagem. Alberto Caeiro entende que as coisas não são uma projeção da ideia, mas são em si e

por si mesmas. Na linha da filosofia, ideia possui várias acepções e conceitos, como um modo de

se dar o pensamento, ideia é uma forma de intuição de universo ou mundo. Entretanto, o universo

não é dado pela intuição, o que por ela é dado é a compreensão. A intuição abre a compreensão,

isso não quer dizer que ela instaura uma relação entre sujeito e objeto, a fim de perscrutar o

intuído. Apesar de toda intuição e compreensão o universo continua existindo, a noite

anoitecendo concretamente e o mundo mundificando num espetáculo que dispensa a necessidade

de platéia. As coisas existem não como objetos e também não se subordinam a subjetividade.

Elas são. Mundo não é uma produção do sujeito, mas é o que acontece.

A questão colocada por Drummond no poema Mãos dadas é o mundo. O poema começa

dizendo: “Não serei o poeta de um mundo caduco./ Também não cantarei o mundo futuro”. Não é

o poeta que produz a poesia, mas o ser poeta é uma doação da própria poiesis. Poeta é sempre

poeta do mundo, o que eclode na poesia chama-se mundo. Talvez essa seja a melhor “definição”

para mundo: o que eclode na poesia e a própria eclosão poética, assim, mundo tem uma

conotação substantiva e verbal ao mesmo tempo. A força poética desses versos é muito grande

dada seu poder de manifestação. Mundo eclode na poesia e como poesia, não um mundo caduco,

mas também não um mundo futuro, pode-se concluir então que é o mundo presente, como

costumeiramente se entende. Entretanto, mundo para ser precisa de um atributo? O poema fala de

mundo caduco e mundo futuro, mas não fala especificamente em mundo presente. Abaixo ele

afirma que “o presente é tão grande”. Será que presente aqui trata de um atributo de mundo? O

tempo é um atributo? Mundo precisa de atributos? Se tempo fosse atributo de mundo não seria

ele um conceito, uma forma de caracterizar ou classificar?

Passado, presente e futuro não são atributos, são modos de realização do tempo, não como

cisão, mas como a forma do tempo chegar à compreensão humana. A linguagem fala como

tempo, espaço, compreensão, vida etc. A linguagem fala e tais coisas se nos revelam na fala da

linguagem, não como conceitos, atributos ou ideologias, mas como questão. A linguagem não é a

adequação das coisas às categorias do conhecimento, isto é, à representação. Ela deixa as coisas

ser o que são em sua fala. O homem dialoga com o mundo a partir da linguagem. Esse diálogo

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pode ser instrumentalizado quando o homem impõe a sua fala sobre o real e se volta para a

linguagem numa tentativa de dizer o que é o real ou classificá-lo, ou pode ser originário quando o

homem se põe à ausculta do real. Heidegger chamou esse diálogo originário de “morar”:

Para pensar a linguagem é preciso penetrar na fala da linguagem a fim de conseguirmos

morar na linguagem, isto é, na sua fala e não na nossa. Somente assim é possível

alcançar o âmbito no qual pode ou não acontecer que, a partir desse âmbito, a linguagem

nos confie o seu modo de ser, a sua essência. Entregamos a fala à linguagem. Não

queremos fundamentar a linguagem com base em outra coisa do que ela mesma nem

esclarecer outras coisas através da linguagem. (HEIDEGGER: 2004, p. 9).

A compreensão se dá quando o homem faz da linguagem a sua morada. Morar na fala da

linguagem é abrir-se para o originário, este é o acontecer de mundo. Morar na fala da linguagem

é habituar-se a ela, ou seja, familiarizar-se com o modo de ser da linguagem adquirindo seu

hábitos, a sua maneira de ser. Sendo na linguagem, por ela e dela adquirindo confiança. Se

tomarmos a palavra confiança na sua formação podemos também pensá-la como fiar-com, ou

seja, unir-se no ato de fiar algo. Confiar é comunicar a realização de algo a outro, é fiar algo com

outro. Por isso o diálogo com a linguagem é sempre um falar-com. Esse “com” assinala a unidade

das coisas vigendo na linguagem: “Estou preso à vida e olho meus companheiros./Estão

taciturnos, mas nutrem grandes esperanças./Entre eles, considero a enorme realidade./O presente

é tão grande, não nos afastemos./Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.

O “eu” não se distancia da vida como um mero observador, ao mesmo tempo em que está

preso ao viver que nos move ele pode olhar seus com-panheiros, isto é, aqueles com quem

compartilha o pão; um só é o sentente e o sentidor. E, em meio ao silêncio, é tomado por uma

consideração maior, a da própria realidade. Como um voltar-se para a eclosão do extraordinário

no ordinário numa espécie de tomar conhecimento. Não uma simples informação, mas a visão de

algo que, mesmo silencioso e desconhecido, reúne a humanidade em torno de si congregando o

sentido da existência humana. Há algo extraordinário acontecendo que sequer pode ser nomeado,

como Riobaldo diz em Grande sertão: veredas: “Muita coisa importante falta nome” (ROSA:

2001, p. 125).

A fala da linguagem se consuma, mas não se consome, acaba, ela recolhe e reúne o que diz

de modo que seu vigor perdure e se faça pleno, por isso a fala da linguagem é sempre um falar

inaugural. A fala da linguagem não se diz duas vezes. Isso não quer dizer que ela não possa ser

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reproduzida, ou quer? A reprodução da linguagem já não seria um atributo da língua? Entretanto,

a reprodução que a linguagem diz poderia anular seu vigor?

Drummond nos responde quando diz: “Não serei o cantor de uma mulher, de uma

história,/não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,/não distribuirei

entorpecentes ou cartas de suicida,/não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.”.

A sequência dos versos inicia-se com “Não serei o cantor de ...”, “não direi direi ...”, “não

distribuirei...”, “não fugirei...” e “nem serei raptado...”, os verbos em primeira pessoa assinalam

as supostas ações de um sujeito, centrando-se num agente. A negação da ação verbal é a negação

da ação subjetiva como pretensão de haver um sujeito que domina o real e que preside o

acontecimento de mundo. O poeta compreende que de si mesmo não pode produzir nada e que só

damos o que recebemos. De quê ou de quem recebemos? Da fala da linguagem, que diz sempre o

mesmo, porém, não a mesma coisa. O dito da linguagem sempre inaugura sentidos novos. Essa

capacidade nos chega a partir do entendimento de construção. Construção não é montagem, esta

vigora a partir da intervenção de um sujeito em um objeto. Construir fala de um fazer-com. De

construção pode-se depreender o prefixo “com-”, significando junto, e “-structo”, que nos

assinala a ação de dispor, recolher e reunir numa associação íntima de modo que seja um: tudo-

um. É isso que de certo modo ocorre em toda a construção predial, juntam-se materiais e forma-

se o prédio, entretanto é óbvia a ação de um sujeito, o construtor dentre outros agentes, vale

porém lembrar que isto se reporta a um fazer técnico-funcional. A questão a seguinte: o fazer

poético é idêntico ao fazer técnico em sua construção? O poema toma as palavras como objetos e

organiza-as numa sintaxe técnica? Ou haveria um outro modo de construção? A construção

técnico-funcional é o fundamento de toda e qualquer construção de modo que a todas determine

ou ele poderia ser, de certo modo, também tocado por um outro princípio?

2.4.1 – Gestualização como construção poética

Se compreendermos construção-poética5 como um acolher e recolher o que se dispõe na

linguagem, compreenderemos também que linguagem assinala o fazer da poiesis cuja fala reúne

5 Poética aqui não tem a intenção de predicar construção, mas de assinalar um modo de ser da construção, usamos

hífen para assinalar o copertencimento construção e poética.

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as coisas de modo que se disponham ao homem originariamente como construção. Mas não se

estaria mais uma vez pensando em círculo? Sim, nesse caso o círculo nos assinala que, na

construção, poiesis e linguagem dizem o mesmo sem serem a mesma coisa. Esse movimento, no

entanto, não se reporta à coesão apenas, pois não há simplesmente uma mistura. Construção é

fazer-com. A fala da linguagem se faz com a escuta. A poiesis realiza a construção como fala da

linguagem. Na construção vigora o fazer-com e este é o agir que acolhe o que na construção se

reúne. O fazer-com é um processo estranho. O que isso quer dizer? Processo nos fala da ação de

adiantar-se, isto é, movimentar-se para adiante, avançar, progredir, ou seja, o andar ou o

andamento de algo, também, por extensão, nascer, como um conduzir algo à presença:

apresentar, acontecer.

Processo é o vigor do acontecer condutor das coisas à presença. Mas, por que estranho?

Estranho é tudo o que foge à conceituação da descrição racional, é o que não se pode explicar as

causas. Estranho é a força do extraordinário, o irromper do novo, do des-conhecido. A palavra

desconhecido se aproxima originariamente de estranho. Des-conhecido é o que se manifesta e no

seu manifestar resguarda a proveniência de sua manifestação. A isso os antigos nomearam

mistério ou enigma. O fazer-com é o entre, este é sempre estranho porque não se pode dominar, a

única via de acesso a ele é a entrega, a rendição à sua dinâmica. Acolher essa estranheza

corresponde a ser acolhido por ela.

O poder nomeador das palavras evoca trazendo à presença as coisas convocadas de modo a

constituir mundo. O evocar provoca o real denunciando a ausência, essa provocação da ausência

diz o sentido de convocar como o vocar-com (falar-com). Falar-com é dialogar. Para haver

diálogo é preciso reciprocidade, esta exige troca e em toda troca se dá e recebe o que se tem e o

que ainda não se tem. Evidencia-se uma tensão oposta, mas dialogal. Diálogo é sempre renúncia-

doação e acolhida e vice-versa. Quem renuncia-doando acolhe a necessidade do outro e quem

acolhe renuncia a sua saciedade. Há um duplo esvaziar-se: um ao doar outro para receber. Essa é

a troca/diálogo poética (o) entre leitor e obra e é nesse movimento que o caminho vem à presença

como mundo.

O nomear é uma doação da linguagem como gestualização de mundo. A presença provoca a

ausência invocando mundo. Provocar, convocar e evocar põem em questão a fala e pro- de pôr-se

diante de, e com- evidencia o sentido de pôr-se junto ou reunido e o e-, na palavra evocar,

assinala a ocorrência da mudança fonética de avocato, isto é, a fala que é chamada ou invocada.

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Ambas as palavras falam de uma mediação dialogal que resguarda a diferença. Essa mediação

dialogal é gestualização visto que pro-voca, com-voca e e-voca a presença do que está ausente e,

nesse gestualizar, a ausência se presentifica como mundo. O como não é uma conjunção que

indica causa, comparação, conformidade, proporção, hipótese etc, mas o modo de a coisa vir à

presença.

A gestualização é o vigor da linguagem e diz o mesmo que poiesis. É ela que funda o

caminho enquanto sentido. Os antigos a entenderam como rito. Este, apesar de seguir dada

ordenação, nunca era considerado a mesma coisa. O rito é sempre o mesmo, mas nunca a mesma

coisa. De modo bem prático pode-se pensar no rito do velório. Segue-se praticamente a mesma

ordenação, mas a coisa nunca é a mesma. Alguém diria: “- Mas o morto é outro!”. O vivo

também. Somos sempre outros. O mundo, o real, as coisas, tudo é sempre outro. O que diferencia

tanto o velório quanto a vigília é o sentido que se presentifica. Por isso o rito nunca é a mesma

coisa, ele anuncia um sentido novo, que desde sempre estava presente, porém ainda não tinha se

revelado daquele modo. O ritual que não anuncia o novo do velho, o extraordinário do ordinário,

a fala do silêncio ou o silêncio da fala não passa de ritualização. Esta é uma mera repetição ou

representação, nada mais tem a manifestar, diz-se que acabou a novidade ou o poder de

manifestar sentido, impera o caráter funcional ideológico, conceitual ou convencional do rito.

A gestualização é a aproximação que a linguagem proporciona entre homem e mundo. Esse

gesto de mundo é facultado pela ausculta que o homem faz do real e acontece como obra de arte

e/ou pensamento, dentre outras. As obras são modos de gestualização da linguagem. Esta é uma

construção que envolve o homem e a linguagem num concerto. O pacto feito exige um ritual de

acolhimento e renúncia: o ritual é caminho pelo qual um toma posse do outro por meio da

renúncia e acolhimento. Concerto também é o nome que se dá à consonância de vozes em

harmonia. Concertar é reunir harmonicamente. A harmonia não é homogeneidade, pelo contrário,

ao ocorrer entre o homem e a linguagem é heteróloga, pois conserva na unidade harmônica a

diferença entre ambos. Essa unidade não constitui um organismo no sentido de identidade como

soma das partes, pois essa união não é estática e formativa, antes provocativa. É uma união que

desafia, estressa, excita e irrita a outra voz, não para dominá-la, mas para convocá-la ao embate

concrescente, isto é, em que um força o crescimento do outro abalando a ordem estabelecida e

obrigando o alargamento, é desse e nesse embate que surge o sentido da obra.

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Não é à-toa que a palavra provocar também possui um caráter violento. Não de uma

violência destrutiva, mas veemente, que perturba a inércia, a estática. Nesse sentido, a violência é

a veemência da vida, a força que nos impele a romper toda e qualquer inércia incitando o

pensamento. Assim se traça a força poética da obra de arte, não se prestando apenas à

contemplação do belo, mas à contemplação do real como questão e questionamento. A própria

palavra contemplar eclode como encantamento, admiração e reflexão. A poiesis da obra de arte

se mede pelo seu potencial de reflexão, não simplesmente de raciocínio, este se move pelas vias

já conhecidas, a reflexão inaugura um caminho. Esse é o poder da obra de arte essencialmete

poética: inaugurar caminhos. Caminho é mundo, e este tem um movimento próprio, ele mesmo

gestualiza as coisas. Mundo se dá quando as coisas são gestualizadas. Parece ambíguo, mas no

simples podemos perceber isso: quando em um ator, ao encenar uma peça, gestualiza o

personagem, mundo vem à tona. O próprio ator, bem como o personagem, todas as coisas e todo

o sentido circundantes são mundo. A primeira vista, poderíamos dizer que o ator representa, ao

“dar” vida ao personagem, um mundo, mas o ator só é o que é pela cessão do mundo, sua eclosão

é uma gestualização própria. Ao ator é dado, como doação do próprio mundo, gestualizá-lo.

Mundo vigora no ser linguagem. Mundo é linguagem. Não podemos representar a linguagem,

apenas gestualizá-la dentro do âmbito por ela mesmo concedido. O mais é silêncio e vazio

impenetrável, porém audível, visto que é do silêncio e vazio da linguagem que a fala vem. À

gestualização de mundo corresponde a saga do dizer como um dito presentificador, comum à

ritualização dos mitos que presentificam o ausente. O vigor dessa gestualização se dá entre

homem e mundo. Esse espaço é fundamental pois mundo e coisa não se justapõem, mas se

interpenetram dimensionando um entre que os une intimamente, sem etretanto significar que se

misturem, esse entre é o elo de unidade e diferença.

2.4.2 - Destinar: a-travessar a vida

O mundo mundifica e instaura o caminho. O entre é o meio do caminho e isso não quer

dizer metade, mas o espaço de abertura, a clareira, a ferida, onde ele sangra e verte sua seiva viva

deixando transparecer a essência. O meio do caminho é o próprio caminho como meio, dentro

dele, na sua entranha, o real se dispõe, como bem afirmou Riobaldo em Grande sertão: veredas:

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“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”.

(ROSA: 2001, p. 80). Dispor, um dos sentidos de legein, de onde vem logos, é uma palavra muito

rica em sentidos e, dentre outros, temos ligado ao dizer da obra: instaurar, proporcionar, facultar,

permitir, doar, apossar e destinar. Nada e ninguém pode forçar a disponibilidade do real. Ela só se

doa quando se apossa de nós. A realidade se dispõe quando se apossa de nós e se instaura, ou

seja, quando se abre e abrindo-se inaugura. A disponibilidade da realidade é uma instauração

inaugural. Penetrar essa instauração é facultada ao homem, o próprio real proporciona e permite

essa intimidade. O homem pode penetrar a dinâmica instauradora e inaugural e penetrando-a dá-

se a sua destinação própria. Destino é a instauração inaugural do real acontecendo como

caminho. O homem descobre o seu destino como caminho a partir da instauração inaugural do

real que se dá sempre e irrevogavelmente a partir da linguagem.

Esse rasgo do caminho é a diferença entre mundo e coisa. Não a diferença como mera

distinção, mas o rasgo de abertura que dimensiona o real e mantém o mundo como mundo e coisa

como coisa de modo que não sejam a mesma coisa, tampouco indiferentes um ao outro. A

diferença é o entre mundo e coisa que os tensionam intimamente tornando possível dois modos

de chamar: chamar as coisas para virem ao mundo e mundo para vir às coisas, sem que estes

simplesmente se misturem: “O mundo concede às coisas sua essência. As coisas são gesto de

mundo. O mundo concede coisas.” (HEIDEGGER: 2004, p. 19).

Quando as coisas vêm ao mundo elas vigoram no seu próprio. Assim quando o poeta diz

“No meio do caminho tinha uma pedra” todas as coisas que aí são nomeadas vigoram no seu

próprio por isso o verso não tem significação, não representa nada, mas é pleno de sentido porque

nele meio é meio, caminho é caminho, ter é ter e pedra é pedra originariamente sem esquema

lógico-racional ou simbólico na relação entre significante e significado, entretanto, se manifesta

como imagem-questão. Quando mundo vem às coisas o próprio do mundo é que vigora com seu

poder instaurador inaugural: mundo mundifica. O vigor de mundo faz as coisas nascerem de novo

como se uma realidade que estivesse oculta se manifestasse irropendo como mundo. Isso fica

muito claro quando se observa a sintaxe gramatical e a sintaxe poética. Aquela obedece a uma

estruturação gramatical lógica de cuja coesão depende sua coência, coisa e mundo se relaciona

como singnificante e significado.

A coesão da sintaxe poética é outra, não se submete à lógica gramatical, mas à própria

poiesis da obra, não obstante fala, mesmo ignorando as regras da comunicação útil e viável, pois

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ela realiza a diferença entre mundo e coisa. O rasgo da diferença coisa e mundo nos permite

entender as imagens-questões existentes por si sós.

O sentido do texto não brota do autor nem do leitor, isto é, de fatores externos, mas da

própria linguagem enquanto entretecedora do sentido. A obra não é um objeto, mas uma urdidura

viva, crescente e interagente. Os chamados autor e leitor são, na verdade, aqueles que atendem ao

chamado da própria linguagem e lhe respondem de modo diverso. O autor é o que realiza a escuta

como obra e sentido, mas não todo ele, pois, como vimos acima, o que não se manifesta, o

velamento, é a fonte de tudo o que se manifesta como imagem-questão, por isso a obra não se

conclui, apenas desdobra-se.

2.4.3 – Destinação: a travessia do sentido

O homem se destina ao fazer a travessia do sentido, aí surgem as questões como imagens

que desfiam a compreensão humana da vida e de seu destino. Imagem-questão não é uma

representação do real por meios ficcionais, não é uma figura de linguagem ou uma abstração

poética. A imagem-questão é uma doação do próprio real como linguagem manifestando o que

ainda não se pode ver, não foi dito ou ainda não foi compreendido no visível, dito e

compreendido. Quando isso acontece ocorre uma manifestação inaugural, ou seja, que dá início a

um novo modo de ver, ouvir, dizer e compreender, sem se limitar a um sentido demarcado. A

imagem-questão não é um ente, não se topa com ela no meio da rua, da mesma forma não se

encontra o ser caminhando por aí. O ser é imanente as coisas. Para ilustrar bem essa questão vale

transcrever uma história contada pelo pensador Emmanuel Carneiro Leão diz ele:

Quando eu voltei ao Brasil, depois do doutorado na Europa, em 1964, no tempo da

Revolução, tinha um amigo, Eutério Araújo, que era diretor do Hospital Pinel, lá em

Botafogo. Como eu tinha sido aluno do Heidegger e tinha chegado da Alemanha, ele me

disse: “Olha, Emmanuel, tem aqui internado um ex-aluno do Heidegger. Eu quero

apresentá-lo a você”.

Então eu me encontrei com esse ex-aluno do Heidegger. Ele se virou para mim e disse:

“Eu vou te contar um segredo”. Perguntei: “Qual é o segredo?” E ele me contou: “Olha,

uma vez, aqui na Praia Vermelha, por volta das 18:00 horas, eu andando na praia... de

repente, sabe quem caiu na minha frente?” “Não sei”, respondi. Então ele me disse: “O

Ser!”. “E você fez o quê?”, indaguei. Respondeu: “Aí, eu dei uma de horizonte”.

(LEÃO: 2005, P. 107)

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132

A imagem-questão nos reporta ao sentido como experienciação do ser e não do ente, ela faz

eclodir não apenas o personagem, mas toda a obra como uma questão, realizando a sintaxe

poética além da estruturação linguística, de modo que em toda obra tudo está em questão. O vigor

da imagem-questão é facultado pelo poder ambíguo que ela manifesta. Literariamente o

personagem é um ser ficcional criado a partir de um conceito de pessoa, a imagem-questão é um

ser manifesto pela linguagem. O que faz da imagem-questão um ser? A sua existência como

questão.

No verso “No meio do caminho tinha uma pedra”, meio, caminho, ter e pedra são imagens

questões que eclodem numa sintaxe poética. Não se trata aqui de tirar personagens da obra e lhes

dar vida, tampouco tirar personagens da vida e colocá-los na obra. Os personagens estão onde

devem estar: no caminho da linguagem e é lá que os encontramos e deixamos que mundo nos

venha ao encontro nas imagens-poéticas. Muitas vezes Riobaldo expressa certo constrangimento

ao narrar, pois ele, como imagem-questão, de algum modo, sabe que a fala da linguagem depende

de manter a abertura do entre vigendo na diferença de mundo e coisa ou de sentido e imagem-

questão:

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e

sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado,

só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de

alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente

pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é

bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que

outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (ROSA: 2001, p. 115)

Esses trechos da narrativa de Grande sertão: veredas abrigam grandes questões com

respeito ao que seja obra de arte. Riobaldo diz, em outras palavras, que a verdade que se

manifesta segue o curso da vida em seu vigor de realização e a linguagem possui estrutura

coesiva muito diferente da do discurso lógico:

O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com

pouco carôço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças.

Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do

que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é. (ROSA: 2001, p. 192)

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A linguagem se manifesta como um “remexer vivo de cada vivimento”, ou seja, da

experienciação vivenciada como um estar à procura do “rumozinho forte das coisas”, isto é, de

seu originário. O que Riobaldo busca é estar de fato entregue a linguagem para não transformar

“vivimento” em mero vivido. Este assinala uma existência dada e vivida em que a diferença entre

passado, presente e futuro é bem distinta, aquele, muito diferente do outro, ainda guarda o

originário da existência, não há o existido, o havido, mas o acontecendo.

O que se diz parece confuso, mas se pensarmos na imagem-questão da fonte que jorra e

sustenta o córrego, podemos perceber que fonte e córrego são um e o mesmo, este mantém em si

a vigência daquela e por ela se conserva enquanto aquela é por meio deste. O “vivimento” é a

conjunção da origem com o originado de modo que não se separe nunca da sua essência, é como

a mãe que vai perpetuando seu génos nos filhos que a vida gera nela.

Sobre assim, aí corria no meio dos nossos um conchavo de animação, fato que ao senhor

retardei: devido que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias

todas de uma vez. (ROSA: 2001, p. 433)

(...)

... é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada

à-tôa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu

veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo. (ROSA: 2001, p.

325)

Riobaldo alerta a seu interlocutor sobre sua forma de narrar destacando cada imagem-

questão e deixando que elas venham à presença manifestando seu vigor próprio, qualquer

tentativa de pôr ordem no narrado seria intervir e manipular a verdade do real, e isso ele não faz,

deixa para quem o ouve, se este achar que deve, que “ponha enredo”!

As imagens-questões são seres da travessia das obras essencialmente poéticas e são elas

que nos iniciam nos mistérios do caminho colocando questões a ser pensadas em seu próprio

modo de ser e existir. Elas são essencialmente e originariamente diálogos e, em seu dialogar,

transpõe o leitor para o curso ou leito das veredas do sentido. Leitor diz poeticamente o que está,

se põe ou é levado ao leito. A imagem-questão nos convoca a travessia da linguagem nas obras

de arte, sem ela isso seria impossível acontecer. Desse modo, leitura é essencialmente travessia

enquanto ausculta da linguagem na esfera dialogal ao passo que o diálogo com a linguagem ou da

linguagem põe em questão também o auto-diálogo e o hétero-diálogo.

A diferença entre mundo e coisa não permite a cristalização da verdade e da vida em um

conceito, ideologia ou convenção. O caminho é o entre. Quando o homem se coloca no caminho

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ele se coloca no entre coisas e mundo. O caminho dá “suporte ao fazer-se mundo do mundo, ao

fazer-se coisa das coisas” (HEIDEGGER: 2004, p. 19), deixando mundo e coisas no aberto que

possibilita um reportar-se ao outro. O caminho é o mediador que faculta a entrega de mundo e

coisa aos seus modos de ser na sua reciprocidade. Caminho como diferença diz essa unidade

tensional. O caminho “apropria as coisas no gesto de um mundo, apropria mundo concedendo

coisas” (HEIDEGGER: 2004, p. 20).

O homem pode fazer do caminho a sua morada e habitar essa dimensão. Caminho entreabre

mundo e coisas medindo-lhes o que lhes é próprio. Esse é o caminho do sentido: a travessia da

linguagem.

Riobaldo é a imagem questão do homem do meio do caminho e faz sua experienciação de

modo extraordinário, colocando-se rumo à compreensão dialogal diz:

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso

as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares

de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa;

mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em

primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (ROSA: 2001, p. 51).

Riobaldo fala de uma repetição constante em sua vida: atravessar as coisas e nessa travessia

ele afirma que não vê, logo adiante diz que estava “entretido na ideia dos lugares de saída e de

chegada”, ou seja, com as margens como um ponto de início e fim determinado, isto é, causa e

consequência, mas ao atravessar o rio vai parar num lugar diferente do que havia calculado.

Arremata por fim: “Viver nem não é muito perigoso?”. O personagem faz uma descrição

maravilhosa da travessia. Ela é algo que acontece sempre na vida dele, e até, na verdade, constitui

seu próprio modo de viver, mas nunca da mesma maneira por isso ele usa a imagem do rio que é

o fluxo constante do que não se reproduz.

Parece incoerente falar de travessia como uma coisa que se repete e não se repete ao mesmo

tempo. Como ação de atravessar ela se repete, mas não se reproduz em seu modo de ser e

acontecer, por isso a travessia é sempre nova, como uma constante releitura. Não faria sentido

reler se a cada vez se realizasse a mesma coisa, mas a essência do reler, no que tange ao seu

impulso, é a mesma. Riobaldo assevera ainda que o cálculo racional da travessia é inútil: “a

gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em

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baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou”. Não é possível determinar o destino da

travessia como um efeito causal.

2.4.4 – Caminho, travessia e aprendizagem

O caminho é que comanda a travessia, que, por sua vez, como doação do caminho, o

espacializa. Assim como é o operar da obra que oferece as possibilidades de leitura. O destino da

travessia, nesse sentido, não é logicamente presumível. Entretanto, não é de toda travessia que

falamos, atravessar pode se dar num âmbito estritamente técnico e/ou funcional e até pessoal.

Pode-se atravessar uma rua; é possível conectar travessia a vencer uma barreira da vida etc,

porém a questão não é somente a travessia, mas o caminho entendido num âmbito mais

ontológico e essencial.

O caminho é a vida, o viver é a travessia. Esse é o motivo de Riobaldo sempre afirmar que

viver é muito perigoso. Per- vem do grego perao e quer dizer atravessar e possui também o

sentido de peras assinalando o limite ou o caminho. Viver é habitar a possibilidade do caminho.

Diante da vida se abrem os caminhos como modos de ser do caminho. A travessia do caminho é o

trans-verter ou verter-trans. Trans- nos fala de um passar além, que poderia se compreender como

transpor o caminho. Entretanto falamos de um caminho que não se pode ir além dele, pois

atravessando-o aonde chegaríamos?

O caminho como vida é a abertura ontológico-existencial que reúne tudo em si, não é um

caminho para ou em um entre o início e o fim, mas o caminho de onde se parte e aonde se chega,

a saber, o caminho do ser. A esse caminho, Guimarães Rosa chamou de sertão, ou ser-tão e,

ainda, poderíamos dizer ser-tao. Quando Drummond diz: “No meio do caminho tinha uma pedra”

ele, ao siturar a pedra no meio do caminho a traz para o eixo do sentido, pedra não é mais apenas

um elemento rochoso ou sedimentar, não significa obstáculo ou coisa qualquer. Ela é o vigor da

linguagem existindo como pedra, aí o mais importante não é a saida (linguagem) ou a chegada

(pedra), mas a travessia, o entre, o meio do caminho que con-centra a vigência do ser pedra.

Um mundo surge como pedra no meio do caminho, então se faz duas perguntas: O que isto:

a pedra? e O que é isto: o que faz a pedra ser pedra? As duas perguntas são modos diversos de se

perguntar pelo ser da pedra. E pedra tem ser? Sim! E qual seria, então? A própria pedra! O ser da

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pedra não se diz pelos atributos. Na narrativa cosmogônica hebraica, quando convocado pelo

deus dos hebreus para ser o libertador do povo cativo no Egito, Moisés lhe pergunta o nome para

que se credencie como enviado, e o deus responde “Eu sou o que sou!”. Na sintaxe dessa oração

o mais importante não é o sujeito nem o predicativo, mas o verbo “ser”, chamado de ligação,

considerado funcionalmente vazio de ação e de noção. Entretanto é esse mesmo verbo, que não

seria nem núcleo do predicado, que confere sentido, coerência e o agir de toda e qualquer ação,

inclusive o sujeito e o predicativo dele surgem e a ele se subordinam.

O verbo “ser” é o verbo que não possui ação verbal, verbo que não é verbo, é mais que

verbo. Ser é, de certa forma, linguagem ou nomeia o que ela é. Ser é o verbo dos verbos, pois não

apenas indica ação como nomeia as coisas. Ser é o sendo e o é ao mesmo tempo: o homem é (ser)

sendo (ser). As coisas só são no movimento do sendo. O ser é o rasgo que confere existência as

coisas. O verbo ser não é entendido em sua plenitude quando não se considera sua quietude. A

quietude do ser é que permite que as coisas lhe venham ao encontro na linguagem e sejam. Dizer

que as coisas vêm ao encontro do ser não é o mesmo que dizer que elas vão ao encontro de uma

coisa diversa, senão que rumam ao próprio delas, a saber, o que elas são. O ser deixa que as

coisas lhe advenham, advir ao ser é vigorar na quietude do ser para brilhar como coisa. Advir ao

ser é uma convocação do próprio ser. Quando se enuncia que “no meio do caminho tinha uma

pedra”, o ser pedra vigora na quietude do ser caminho.

É, pois, o não ser do caminho que deixa pedra vigorar em seu sendo. Pedra é, então, doação

do caminho como quietude ou não-ser. É o recolher-se do caminho que possibilita o surgir do ser

pedra. Mas onde vigora esse recolher? No “meio” do caminho. O meio ou o entre é o que libera

as coisas para o seu próprio deixando viger a diferença entre caminho e coisa. Não se trata de

uma comparação antitética: caminho é o que pedra não é e vice-versa, mas é da diferença que

pedra surge no recolher do caminho e vice-versa. Essa diferença articulada pelo aberto do meio

ou entre, é que gestualiza mundo.

Aquietar é deixar as coisas serem o que são. É em consonância com o quieto que a

linguagem fala. Há tantas falas no mundo e tantos mundos nas falas, de modo que fala é mundo e

este pode ser científico, social, psicológico, histórico, idealista, cultural, dentre outros, porém

quando se confere atributo ao mundo não é o mundo que se quer chamar à presença, mas o

próprio atributo. O que continua encoberto, e não de modo originário, isto é, não se põe ao des-

encobrir, é mundo.

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De certa forma, o atributo é uma anulação do ser, o que se percebe ao falar de mundo

psicológico, por exemplo, não se fala de uma coisa nem de outra, pois se quer com um próprio

classificar outro, isso é uma violência que nos passa despercebida porque é tão “natural” falar de

mundo disso e mundo daquilo. Natural ou convencional? Convencional, ideológico e concetual

ao mesmo tempo. Entretanto há uma fala que não pergunda pelo atributo, mas que convoca

mundo a partir do seu próprio. Desse modo, científico, social, cultural, psicológico, histórico etc,

deixam de ser meros atributos e passam a questões, pergunta-se então pelo o que é isto: a ciência,

ou o científico, a sociedade ou o social, a cultura ou o cultural etc. Essa é a fala poética. Aqui não

estamos também atribuindo algo à fala, o poético? Não. Fala poética é o agir do próprio poético

como fala do caminho, da verdade e da vida em oposição à fala do técnico-funcional que se

manifesta como ideologia, conceito e convenção.

A fala da poiesis não quer pôr ideologia nas coisas, nem transformá-las em conceitos ou

impor uma convenção, mas repousa em sua quietude para, na diferença, deixar as coisas serem o

que são. Um dos sentidos do verbo poiein é fazer passar do não-ser ao ser. Esse não-ser não é a

nulidade do ser, mas o âmbito a partir do qual o ser vigora. O meio do caminho é o caminho

como meio, não para algo, mas como o entre, a abertura que medeia ser e não-ser, e rasgo onde

mundo eclode. A isso equivale dizer que é a partir do silêncio que a fala da poiesis vigora. O

entre libera a fala para falar. Toda fala é essencialmente fala da linguagem. Transformá-la em fala

técnico-formal é impor-lhe modalidades ideológica, conceitual e convencional. Deixá-la vigorar

poeticamente é permitir que ela conserve em cada palavra intrinsecamente os sentidos de

caminho, verdade e vida. Então se poderá compreender que é a linguagem que fala e, a partir

disso, aprender a entregar-se e pertencer à linguagem, nela demorar, deixando que ela se aproprie

de nós em vez de tentarmos fazer o contrário. Deixar-se apropriar pela linguagem é entregar-se a

diferença, isto é, permitir-se con-duzir, já que em di-ferença o verbo latino fero diz levar, e são

dois os modos de ferir-conduzir: como ausculta e como fala, primeiro aquela e, só então, depois

esta, é deixar-se a-travessar pela aprendizagem que reinaugura a existência em seu acontecer

como caminho. Só assim, na tensão fala e escuta é que o homem faz a experienciação de vida e

verdade como caminho.

Falar é ferir o silêncio após por ele ser ferido na escuta. Escutando, o homem co-responde a

linguagem e a partir da ausculta pode falar. Ouvindo e falando o homem faz a travessia de modo

poético, isto é, dialogando. Fala poética é aquela que se dá a partir desse corresponder como

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caminho, verdade e vida. Travessia é uma aprendizagem. E o que se revela como possibilidade de

aprender na travessia? Morar na linguagem, isto é, destinar-se a ela, de modo que vigore como

caminho para a verdade.

2.5 - Caminho para a verdade

Vimos até aqui que a linguagem se dá como tensão fala e escuta do real enquanto tensão. É

um equivoco pensar que a linguagem é apenas fala ou só fala, ela é também escuta e, enquanto

escuta, nela opera o silêncio. Por isso a escuta é sempre ambígua. Na escuta fala a identidade e a

diferença do logos. A identidade e a diferença do logos opera o silêncio. A linguagem dá voz ao

silêncio, daí a fala poética ser uma escuta e a escuta uma fala. A fala do logos é uma fala

ambígua, nela vigora a diferença como escuta da dinâmica que conduz o homem à senda

originária: a tensão do entre onde vigora o ser e o não-ser, o saber e o não-saber, a vida e a morte

etc, não como elementos antagônicos, mas co-pertencentes. Logo a escuta não é um conceito,

pois não se estrutura logicamente nem se enclausura numa definição ou concepção absoluta e

definitiva. A escuta é antes uma questão. “A questão não é problema. Este se resolve. A questão

não, apenas cada interpretação recoloca a questão em outro nível” (CASTRO, 2003, p. 22). A

questão é uma doação do logos. Na questão vigora a tensão do entre como diferença que advém

da escuta do logos. Escuta e fala são duas dimensões do logos, a tensão entre ambas inaugura o

diá-logo. Este é o embate, na linguagem, entre escuta e fala, fala e silêncio e, essencialmente,

poesia e pensamento.

A travessia do caminho é uma travessia rumo à verdade, no sentido originário de aletheia:

verdade e não verdade, que vigora no embate dialógico de fala e silêncio. Em um conhecido

poema, O Lutador, Drummond nos remete a esse embate dialógico. Atentemos para as duas

primeiras estrofes e alguns outros versos:

Lutar com palavras

É a luta mais vã.

Entanto lutamos

Mal rompe a manhã

São muitas, eu pouco.

Algumas, tão fortes

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Como o javali.

Não me julgo louco.

Se o fosse, teria

Poder de encantá-las.

Mas lúcido e frio,

Apareço e tento

Apanhar algumas

Para meu sustento

Num dia de vida.

Deixam-se enlaçar,

Tontas à carícia

E súbito fogem

E não há ameaça

E nem há sevícia

Que as traga de novo

Ao centro da praça.

Insisto, solerte.

Busco persuadi-las.

Ser-lhes-ei escravo

De rara humildade.

Guardarei sigilo

De nosso comércio.

Na voz, nenhum travo

De zanga ou desgosto.

Sem me ouvir deslizam,

Perpassam levíssimas

E viram-me o rosto.

Lutar com palavras

Parece sem fruto.

Não têm carne e sangue...

Entretanto, luto.

(ANDRADE: 2007, p. 99)

Em O lutador, a poética nos remete à questão da tensão fala e silêncio que se dá na

Palavra. As palavras são mais fortes que o homem e o submetem a um jogo de encontros:

“Deixam-se enlaçar”, e fugas: “E súbito fogem”. Elas dominam o jogo de modo que, quando

escapam, nem à força podem ser trazidas novamente à presença. As palavras lançam-se

ludicamente à operação de encantamento do homem. É essa luta que desperta a aurora do

pensamento e faz com que o homem saia em busca do sentido da vida, então, dá-se verdade.

Súbito as palavras surgem e lhe invadem a alma e dominam-lhe a mente para, logo depois,

desaparecerem por completo no vazio do silêncio. A luta com a palavra é infinda e sem trégua. O

poema põe em tensão homem e palavra, nessa luta é que se decide o sentido da vida como

verdade. A luta com palavras é a luta pelo sentido/verdade. A etimologia do vocábulo palavra nos

remete à ação de lançar-se (por) entre.

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O vocábulo palavra vem do latim parábola, do grego parabálló . O prefixo para-, dentre

outras acepções, nomeia o que está entre, e -bálló, do grego -ballein, diz a ação de lançar, lançar-

entre. Parábola também é o nome de uma narrativa que opera por meio de imagens poéticas que

escapam ao sentido lógico. É um narrar que explora o vigor de eclosão de sentidos da palavra a

partir da essência própria da linguagem, ou seja, essência no sentido de nomear aquilo que é

próprio do ser-palavra, o sentido que vigora como palavra.

A palavra é o lugar da eclosão do sentido, entre língua e linguagem, fala e silêncio. Lutar

com palavras é lançar-se por entre a gênese do sentido experiencial em cada palavra. O sentido é

gerado na tensão entre fala e silêncio e essa tensão é perene em cada palavra. Por esse motivo,

palavra, como aqui é entendida, escapa ao sentido conceitual de signo linguístico como relação

representacional de significante e significado. Lutar com palavras é aventurar-se por entre a

eclosão de sentidos. Palavra surge dessa eclosão de sentido. O sentido aparece como palavra.

Palavra é o fenômeno do sentido. Entendemos como fenômeno aquilo que se permite ser

visto, entretanto, o fenômeno guarda uma dupla ação, junto ao aparecer (fala) há também o

retraimento (silêncio), fenômeno, então, nomeia o duplo ato de mostrar e ocultar. A palavra em

seu sentido originário e inaugural é um fenômeno. Na dupla articulação o sentido se dá como

manifestação e retraimento.

O sentido acontece como verdade, entendida, segundo o pensamento grego, como a-letheia,

por esse motivo o sentido (a verdade/a-letheia) é um continuo por-fazer-se a todo o instante. O

sentido não está completo, mas é completável. O sentido não está pronto, fechado em um

conceito, tornado significado, mas re-fazendo-se continuamente. O sentido é sempre uma

questão. A essência do questionar é a busca do sentido. Lutar com palavras é fazer a

experienciação originária do sentido, em outras palavras, é experienciar o sentido enquanto

sentido, é mover-se na Questão, por entre os significados.

2.5.1 – Caminho: o palmilhar do sentido

O sentido está sempre em autogênese. Autogênese é mais que fazer-se a si mesmo, é estar

em busca da gênese de si mesmo. A autogênese é a grande questão que sustenta o sentido, por

isso inexplicável. Por que inexplicável? Nenhuma questão é explicável, caso contrário, ela deixa

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de ser uma questão e torna-se um conceito. Lutamos com palavras, mas não dizemos as palavras,

são elas que nos dizem, por isso tão voláteis, tão incompletas.

Incompletas?

O prefixo in- é muito curioso, na verdade todas as palavras são curiosas. Palavras parecem

brincar com palavras de serem e não-serem. In-, que ao mesmo tempo indica negação, privação,

também assume o sentido de movimento para dentro ou em direção a. Incompleto é o que ainda

não está completo. O não não é apenas negação, mas um indício de possibilidade de uma coisa

que ainda não é, está por fazer-se. As palavras não são, estão, estão por fazer-se. De igual modo a

linguagem não é, está em processo autogenesíaco. A linguagem rompe interditos. A palavra é o

fenômeno da linguagem. A palavra, originariamente entendida, é o des-velamento da linguagem.

Palavra é escorregadia não se deixa apreender, súbito foge ao domínio do homem. É vão buscar

“persuadi-las”, assim, a luta parece “sem fruto’. Palavras não sucumbem à persuasão, não se

sujeitam a uma finalidade meramente discursiva.

Palavra, palavra

(digo exasperado),

Se me desafias,

Aceito o combate.

Quisera possuir-te

Neste descampado,

Sem roteiro de unha

Ou marca de dente

Nessa pele clara.

Preferes o amor

De uma posse impura

E que venha o gozo

Da maior tortura.

A palavra acena ao homem e instaura o desafio. O não-ser de cada palavra encanta, atrai,

captura o pensamento humano e instiga-o ao des-encobrir. O não-ser é também sentido. Fala-se

tanto em sentido, porém nunca se consegue explicá-lo, tampouco capturá-lo. O sentido é

inexplicável em si mesmo e incapturável. O sentido é sempre o que nos desafia e nos põe a

caminho de um encontro. No caminho, o sentido se manifesta e retrai. O homem se lança por

entre o inexplicável e se encanta com o acontecer do extraordinário no ordinário. É disso que

trata a poiesis. Esse encanto se torna em espanto e maravilha o homem. O espanto instaura a

questão. Quando se espanta face ao inesperado, ao assombroso, ao surpreendente, o homem

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empreende uma luta pela compreensão, nesta o homem prende-se à questão. A questão passa a

habitar o homem. O fenômeno da linguagem é surpreendente e espanta o homem, e, como

questão, o possui. O homem vê-se possuído pela questão de modo que se torna um com ela. O

homem possuído pelo extraordinário da linguagem, é disso que trata o pensamento.

Luto corpo a corpo,

Luto todo o tempo,

Sem maior proveito

Que o da caça ao vento.

Não encontro vestes,

Não seguro formas,

É fluido inimigo

Que me dobra os músculos

E ri-se das normas

Da boa peleja.

Cada palavra “tem mil faces secretas sob a face neutra”, por isso se refugiaram na noite. A

luta inaugura a tensão entre caos e cosmos imanente à palavra. Caos é o insólito, sem forma, a

força de toda transformação. O cosmo é a superfície sólida, intacta. A palavra resguarda seu

poder de fala e de silêncio promovendo o retorno ao seu sentido originário e originante. Retornar

às origens é promover o trânsito do cosmos ao caos genesíaco para aniquilar uma ordem pré-

estabelecida do real e fundar uma nova realidade. Retornar às fontes não pode, portanto, ser

compreendido em uma dimensão puramente cronológica, por isso cada palavra funda seu tempo

peculiar de acontecer. A viagem ao originário não é marcada por uma peregrinação no espaço

físico, mas no espaço original, dá-se num caminho que se abre no próprio caminhar. O retorno às

origens é uma re-interpretação de si mesmo na procura do sentido de sua própria existência, é

uma aproximação do núcleo inseminador da existência e também um interrogar-se sobre o

sentido do real. É sentir a força inspiradora que anima o devir e é estar constantemente à escuta

dessa força, sem, contudo, que se a compreenda exaustivamente, muito menos a apreenda

totalmente. É estar no presente e ser o antiquíssimo ancião precursor do futuro.

Cada palavra, poeticamente entendida, é um palmilhar o sentido rumo à revelação da

verdade.

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2.5.2 – Caminhar: a luta pelo sentido

As palavras riem-se “das normas da boa peleja”, isto é, não se submetem a nenhuma

metodologia exegética. A palavra que empreende um movimento de retorno às origens em busca

de um dizer originário é envolvida por um espaço mítico, além de tudo que é ou existe, e um

tempo kairológico (acontecimento), ou seja, um espaço e tempo que não é mais o que já foi,

também ainda não é o que será, está em constante travessia. A palavra deixa de ser entendida

como representação (mediação entre significante e significado) e eclode como manifestação do

real. Na poética, a palavra está em busca de si mesma, ou seja, de seu sentido originário e de sua

condição de fenômeno da linguagem, por isso ela não se deixa apreender por nada. A di-ferença é

um fenômeno duplo de manifestação e retraimento, é um diálogo em que a fala que se deve

auscultar não é a do homem em si, da subjetividade, mas da própria linguagem.

Acima dissemos que a fala é que aproxima o homem da linguagem, agora dizemos que é a

escuta que o faz. Algo aqui parece contraditório, mas não o é; não, se levarmos em consideração

o que seja fala e escuta. Primeiramente só há propósito na fala se esta for para uma escuta. Nem

sempre a fala é escutada, mas ela dever ser para a escuta. Ser para a escuta faz da fala algo

original e originário e, por isso, genesíaco. A fala, não uma qualquer, mas a da linguagem

engendra o real em si mesma. Ela é portadora do sentido do real. A realidade não é múltipla.

Cada homem ou coisa não possui a sua realidade particular, como geralmente se afirma, a

realidade é uma só e todas as coisas são doação dessa realidade. Assim como o sentido é um só e

toda a multiplicidade de significados é uma doação do sentido. Mas, por que a realidade e o

sentido não são vários, mas um apenas? A questão está no contraponto da fala, no silêncio.

O silêncio é o doador de todas as coisas, assim como o não-ser é o doador de tudo o que é.

O silêncio, o não-ser é a condição de possibilidade de tudo o que é, por isso seu doador

originário. O silêncio é a essência da linguagem. A fala para a escuta é uma doação do silêncio. A

ausculta é um com-cordar, não no sentido de amoldar-se ou ajustar-se, mas de falar-com, ou seja,

co-responder à linguagem. Há aqui duas falas, a saber, a fala da linguagem, do logos, e uma fala

que é fruto da escuta, o concordar, ou falar-com. A fala do logos é o fenômeno, é um phainó que,

ao brilhar, torna manifesto e permite serem vistas as coisas vigentes no des-encobrimento de seu

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aparecer. Dialogando com um poema de Georg Trakl, Heidegger nos acena para o agir da

diferença:

Evocar no sentido originário de deixar vir a intimidade de mundo e coisa é propriamente

chamar. Esse chamado é a essência do falar. No dito do poema vigora o falar. É o falar

da linguagem. A linguagem fala. A linguagem fala deixando vir o chamado, coisa-

mundo e mundo-coisa, no entre da di-ferença. (...) O chamado da linguagem recomenda

e entrega o que nela é chamado para o chamado da diferença.

(...)

A di-ferença é o chamado a partir do qual se convoca todo chamar para pertencer ao seu

chamado. O chamado da diferença já sempre recolheu em si todo chamar. A convocação

que recolhe junto de si, recolhendo para si, é sonância no sentido de consonância.

(HEIDEGGER: 2004, p. 23.)

A diferença nomeia as coisas de modo que se permita aparecerem e manifestarem-se, por

isso é uma fala inaugural e enuncia que tudo é um. A fala que nomeia as coisas convoca a saga do

dizer humano, isto é, provoca a fala humana a falar-com. É nesse sentido que há mimesis.

Mimesis não é uma cópia ou representação do real, mas um diá-logo que manifeta a linguagem

gestualizando o real. O mundo surge pela gestualização da linguagem. Entre a fala do Logos e o

falar-com humano vigora a di-ferença, não como distinção, mas como um pender para. O falar-

com humano pende para a fala do logos. Se levada para o seu significado habitual, é comum a

redução do pensamento e a simplificação conceitual da diferença provocando o entendimento do

falar-com humano como uma representação da fala do logos. Mas é exatamente o contrário, é a

diferença que permite a escuta do logos e, consequentemente, o falar-com. Di-ferença é abertura,

é o polemos onde vigora o dia- do logos.

2.5.3 – Caminho: o rasgo da diferença

É o rasgo da diferença que acena a Drummond e convoca sua fala. Isto faz do homem um

lutador, um lutar não com palavras (estas são acenos), mas com a própria linguagem. É nessa luta

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inter-homem-linguagem que se aproxima do –pretium6, e é dessa que se decide, sem decidir, o

sentido da vida. Atente para o dizer poético da di-ferença, no poema de Drummond:

Iludo-me às vezes,

Pressinto que a entrega

Se consumará.

Já vejo palavras

Em coro submisso,

Esta me ofertando

Seu velho calor,

Outra sua glória

Feita de mistério,

Outra seu desdém,

Outra seu ciúme,

E um sapiente amor

Me ensina a fruir

De cada palavra

A essência captada,

O sutil queixume.

Mas ai! É o instante

De entreabrir os olhos:

Entre beijo e boca,

Tudo se evapora.

A luta é a procura do sentido. É a tentativa de apreender o sentido. Por que se voltar para as

palavras para encontrar o sentido da vida? Porque palavras são fenômenos da linguagem, são um

modo de a linguagem se manifestar. O mistério que cada palavra abriga é um chamado à escuta

da essência do falar, da essência da linguagem. Lutar é uma tentativa de auscultar e uma

aprendizagem. Na tentativa de envolver as palavras se é envolvido por elas. O sentido escoa pelas

encruzilhadas e atrai o homem, ilude-o de modo que ele pressente “que a entrega se consumará”

ao passo que vê as palavras ofertarem, em “coro submisso”, tudo o que são e, quando tudo parece

estar consumado, elas evaporam nos abismos da linguagem. A condição voltívola da palavra atrai

o homem e o seduz a palmilhar a volubilidade e fugacidade da transmutação do sentido entre fala

e silêncio no jogo mostra-esconde da linguagem. Nessa atração inaugura-se um caminhar, ermo e

indefinido porque inaugural. A busca pelo sentido insere o homem numa jornada, mas não como

um trajeto que se percorre num dia, com uma finalidade em vista, mas uma jornada em que se

consuma em sua vacuidade o aprendizagem da vida. Por isso a sensação de volubilidade. A

6 Inter é a tensão do entre, valor está ligado a palavra latina pretium, que dá no português, preço. A

interação operada pela tensão é uma inter-pretium-ação, a ação de interpretar, ou uma interpretação. (Cf. JUNQUEIRA: 2007. pág. 106.)

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jornada do sentido é um tanto quanto vaga e indefinida porque em construção. O que está em

construção não pode ser apreendido conceitualmente, isso quer dizer que não se pode apanhar e

guardar. A mobilidade do que é volúvel e paradoxal insere a pro-cura. Essa é a verdadeira

legenda da vida. Legenda, de radical do verbo latino lego, nos assinala a ação de ajuntar, reunir,

recolher que também reporta ao verbo legere, no sentido de ler, fazer leituras para si ou ler em

voz alta - para que outro ouça. A luta pelo sentido nos faz movermo-nos entre o sentido, no rasgo

da di-ferença e estabelece o diá-logo. Em todo o diálogo se empreende uma leitura/escuta.

Com o advento da Metafísica a palavra se esvaziou de seu manifestar originário. O sentido

de palavra, como vimos, nos advém da linguagem. Identificamos palavra como fenômeno da

linguagem. Fenômeno é o desvelar do que há velado. Não entendemos fenômeno como apenas o

que se manifesta, mas como o manifestar do que permanece oculto. Fenômeno, assim entendido,

vige entre a tensão de velar e desvelar da physis. Logos é reunião harmônica do que mais tende a

se opor na physis. Physis e logos/linguagem mutuamente se implicam. A palavra é a doação desse

polemos pela qual o sentido se manifesta aos homens. A palavra, pois, res-guarda a essência da

tensão.

A tensão entre logos e physis foi pensada pelos gregos como a-letheia. A palavra, nesse

sentido, abriga a essência do que em grego se diz a-letheia, entretanto, a tensão originária

abrigada na palavra vai sofrendo alterações até perder-se por completo no signo linguístico e

surgir, então, como representação entre significante e significado. Esse entre não é mais o espaço

onde vige a tensão e se manifesta o sentido, mas tão somente o elo de ligação da representação. O

ser-palavra é completamente afetado e destituído de seu vigor, mas, não apenas o ser-palavra

sofre com isso, o Ser mesmo é contaminado e destituído de sentido mediante a nova visão

estabelecida.

2.5.4 – Metá-hodós: caminho originário

A poética é um apelo da linguagem à libertação da interpretação técnica da poesia e do

pensamento. A poiesis e o pensamento se manifestam ao homem quando este dialoga de modo

radical e originário com a linguagem e, dialogando, se mantém aberto a sua fala de modo que ela

o transpasse e se estabeleça como sentido. A última estrofe do poema O lutador mantém uma

relação intrínseca com os poemas A palavra mágica e Procura da poesia, dentre outros. A

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questão é sempre a mesma, a procura, a luta pelo sentido. O sentido é algo que sempre nos

escapa, sempre se resguarda na noite, no não-ser e não-saber de todo saber e ser.

O ciclo do dia

Ora se conclui

E o inútil duelo

Jamais se resolve.

O teu rosto belo,

Ó palavra, esplendente

Na curva da noite

Que toda me envolve.

Tamanha paixão

E nenhum pecúlio.

Cerradas as portas,

A luta prossegue

Nas ruas do sono.

A poética abandona os preceitos metodológicos metafísico-humanistas axiomatizadores da

verdade do real. Ela instaura um diálogo entre o intérprete e o interpretado num jogo. Todo o

valor da obra de arte se dá a partir desse diálogo, é dele que surgem os caminhos. O vigor poético

da obra se manifesta no vigor desse embate entre fala e silêncio como escuta do logos, o que não

extingue, antes impõe aos combatentes a ampliação de suas possibilidades existenciais: ser para

além de si, mas em si mesmo. Homem e palavra são co-jogados por essa tensão. Nesse embate o

sentido do ser é sempre modificado, pois o real é manifesto caleidoscopicamente em suas

multifaces, apresentando, a cada movimento, combinações variadas, sucessões rápidas e

cambiantes de impressões, sensações e significações.

A poética é estranha às concepções do aristotelismo7 sobre poiesis e tekhné e se lança rumo

ao originário em todas as coisas. A origem das coisas não são decididas pela adequação do

intelecto à idéia, mas no espaço aberto pela tensão logos/physis, nesse espaço de abertura que se

dá a diferença. A tensão é o espaço onde opera a diferença com diá- do logos. O diálogo não é

apenas entre-fala, mas, antes de qualquer coisa é entre-escuta. O diá/diferença é o espaço da

escuta e, nesse espaço, vigora o logos como sentido. A palavra viva abriga esse espaço. A poética

caminha entre poesia e pensamento. Pensamento não é o mesmo que raciocínio, ainda que este só

surge a partir daquele, o problema é que a razão se afasta da dinâmica do pensar que a dá origem.

Quando Heidegger diz que o homem só fala quando corresponde a linguagem ou ao logos, é

7 Não confundir com Aristóteles pensador.

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desse caminhar mais originário de que ele está tratando, a saber, a tensão entre poesia e

pensamento. O vigor da palavra viva advém dessa tensão. Pensar, assim como a poesia, é co-

responder ao apelo do logos, ou seja, se dá como escuta. Aqui se insere a questão da escuta.

Escuta é permitir que a fala, tal como ela é, se nos advenha. Em outras palavras, é nos atermos à

fala. A escuta de que falamos não é um simples ouvir, mas nos ater-se à fala instauradora de

Mundo, portanto, a fala do silêncio.

Drummond põe em evidência a palavra. Não qualquer palavra, tampouco trata aqui de signo

linguístico. Palavra originariamente entendida não é a representação material (signo/significante)

de um conceito abstrato (significado), ao qual a filosofia metafísica reduziu através de seus

esquemas metodológicos, atribuindo-lhe uma condição abstrata transformou-a em uma

proposição e tornou abstratos o pensamento ao identificá-lo com razão, e a fala do logos, como

mediação lógica, acaba virando o pospositivo –logia. O método, originariamente meta-hodos,

caminho para/entre, transmuta-se em metodologia e o inter-pretium (interpretação/diálogo) passa

à análise. A transformação do pensamento em racionalização é correlata à transmutação da

palavra em signo, do sentido em significado, da linguagem em linguístico, do método em

metodologia, da interpretação (diálogo) em análise. Essas transformações afastam

irremediavelmente o homem do acontecer do real, pois entre o homem e o acontecimento do real

surge a mediação operacionalizada pelas categorias do intelecto e pelas formas do conhecimento.

A palavra não é mais mediadora do real como acontecimento inaugural, mas proposição lógica

que promove a adequação da expressão à idéia, do significante com o significado. A poética,

entretanto, põe em questão a palavra como eclosão de fala e escuta, poesia e pensamento. A

palavra, assim entendida, é um livre-encontro com o real que acontece como escuta, e esta do

logos, isenta de toda mediação lógica.

Drummond nos acena para algo grandioso na estrofe final do poema através do seguinte

dizer-com:

O ciclo do dia

Ora se conclui

E o inútil duelo

Jamais se resolve.

O que se nos acena nesse dito? Primeiro, no fim do poema vem-nos a noção do fim “O ciclo

do dia”. Mas o que é um ciclo? Geralmente o ciclo é entendido como um espaço de tempo

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durante o qual algo ocorre ou se completa com certa regularidade. O caráter de completude do

ciclo reinicia. De modo que o fim torna-se o início de tudo. O ciclo é tomado pela força de um

movimento circular cujo vigor se manifesta na ação de remeter sempre ao início ou reinício

aquilo que de algum modo se consumou, de forma que sempre se reinicie o processo. A aparente

inconstância ou volubilidade acentua, na verdade, a transmutabilidade da coisa em si mesma,

num retorno à sua origem. O pensamento circular é aquele que a colocação de uma questão

requer sempre sua recolocação, voltando sempre ao ponto de partida e não permitindo uma

conclusão, de modo que a coisa sempre seja pensada radicalmente, isto é, a partir de sua

raiz/origem.

A ação das palavras que se manifesta no poema constitui o que os gregos denominavam

originariamente téchne, no sentido de deixar-aparecer algo deste ou daquele modo em seu

desencobrimento e, ao mesmo tempo, permitir que ele se recolha subitamente em seu

encobrimento.

Durante muitos séculos a metafísica ocidental, consubstanciada nos diferentes humanismos,

desenvolveu um conceito em torno do sentido do agir que os gregos denominavam

originariamente téchne traduzindo-a por técnica. No mundo inteiro foi difundido o conceito de

técnica como o conjunto de procedimentos ligados a uma arte ou ciência que constitui uma

metodologia de representação ou reprodução do real.

Emanuel Carneiro Leão: num ensaio intitulado “Aristóteles e as questões da arte”, ilumina

bem o sentido de téchne de acordo com a pensa originariamente Aristóteles, um dos teóricos mais

citados pela metafísica ocidental. Abaixo, foram transcritos alguns fragmentos do ensaio do

referido autor que nos serão muito úteis para a relação téchne e poiesis:

A palavra grega para arte, que conhecemos e usamos, embora em outro sentido, é

téchne. Nós usamos a palavra técnica, que não é a mesma palavra grega, só

aportuguesada.

(...)

Essa palavra grega téchne provém de um substantivo concreto: ho tekto, que significa o

lavrador da madeira, seja o artista que trabalha a madeira de modo original e refinado, o

marceneiro dizemos, seja o carpinteiro que trabalha a madeira de maneira tosca e

grosseira.

(...)

Em seus escritos, Aristóteles conhece quatro usos de téchne, da palavra grega para dizer

a experiência da arte. Em oposição a týche (sorte, fortuna) e a automaton, diz aquilo que

atua e se instala por si mesmo. Téchne, diz Aristóteles, nos remete de maneira geral para

o processo controlado de fazer. Portanto, a téchne implica um acompanhamento

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controlado da atividade de agir, visando a obter uma determinada transformação do real,

de uma matéria.

(...)

O segundo uso, em oposição a physis, que diz a realização originária da realidade e

original do real, techne indica o processo controlado de fazer próprio do homem, que

supõe um material e um princípio.

(...)

No terceiro sentido, Aristóteles usa a palavra téchne em oposição a episteme, o

conhecimento universal e necessário. Téchne remete para um procedimento de saber

fazer adquirido por generalização da experiência, da empeiria, que por se dar dentro de

limites, peras, implica sempre em limitações.

(...)

O quarto e último sentido de arte, em Aristóteles, em oposição a poiesis, que diz a

criação oriunda de um advento repentino e inesperado da realidade, téchne diz a

invenção de realizações novas e surpreendentes do real.

(...)

Assim, para o estagirita, a arte não é técnica nem procedimento. Não se reduz nem à

natureza nem à ciência, não se identifica nem com a invenção nem com a repetição.

(...)

No entanto, é surpreendente que logo depois Aristóteles diz: “Não obstante a

negatividade de todos esses nãos: a arte não é técnica, não é procedimento, não é ciência,

ela inclui a afirmação do respectivo sim”. Então significa: a arte é e não é técnica, é e

não é procedimento, é e não é ciência, é e não é criação ou invenção. A provocação

dessa dualidade ou dessa dialética de tensão entre ser e não ser é a primeira grande

questão que Aristóteles coloca a respeito da arte. Pois a arte, embora não sendo técnica,

precisa da técnica para não ser técnica. É no próprio procedimento que a arte transcende

o procedimento. (LEÃO: 2005, p. 108 -109)

Por que o sentido de téchne em Aristóteles aparece de forma tão diversa?

Por que o pensador não tinha como objetivo criar conceitos sobre a téchne, mas sua escrita

aponta para a intenção de aproximar-se da essência da téchne, fazendo a experienciação do

sentido que ela revela originariamente.

A téchne é uma questão na poesia, assim como o é em Aristóteles, seja no modo que a

linguagem se dá ou em como o sentido se manifesta e a escuta faz-nos apropriarmos do que

somos; seja na ritualização do mistério da travessia em que o ser se des-vela ou, ainda, como a

poiesis se revela no e através do poeta. As questões da poética são as questões da arte como

experienciação plena do hodós, da a-letheia e da dzoion, em português, caminho, verdade e vida.

A exposição que aqui fizemos sobre a metafísica é uma tentativa de palmilharmos o

processo que constituiu o conceito da palavra técnica como hoje a conhecemos e que afetou o

acontecer originário do vocábulo, tanto quanto o da fala e da escuta na poesia. téchne foi

traduzida, falando de modo geral e simplificado, por técnica no sentido de metodologia da fala e

da escuta, relacionando àquela a uma mera forma de confecção e esta, à exegese, que vigem

como produto de uma técnica.

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Drummond, entretanto, no poema acima, nos deixa antever a téchne como um metá-hodós,

ou seja, caminho entre, onde se está de permeio. A poiesis surge na palavra, de permeio, através

da escuta como um lançar-se por entre a linguagem e deixar-se possuir por ela, de modo que o

sentido se manifeste e plenifique com seu poder de fala e de silêncio, preparando o caminho para

o acontecimento da verdade.

3. Verdade: o descortinar misterioso da vida

O terceiro movimento do poema A máquina do mundo manifesta a questão do mistério que

vigora no âmbito da linguagem, como maior apelo ao homem e capaz de colocá-lo diante do

desconhecido, do não-ser, do destino como uma experienciação vital do caminho. Abramo-nos a

sua ausculta:

“Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.

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A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.”

O terceiro movimento inicia-se com a confissão de uma relutância em responder ao apelo

maravilhoso da “máquina do mundo”, uma renúncia de quem a muito procurara ver o inédito da

vida, a vida vivente, irrepetível, a zoé, o sentido pleno. Esse posicionamento, numa retomada

circular, nos lança novamente a todo o acontecido anterior. Aqui há uma ilusão de recusa, pensa-

se ter abdicado de ver o entreabrir da “máquina do mundo”, mas na verdade ela só foi vista

porque antes já havia acontecido a renúncia originária. Então, renunciar não é abdicar, apesar de

serem tomados como termos sinônimos. Aqui cabe uma observação: se há sinônimos, a língua

não estaria cometendo imensa redundância, o que seria extremamente desnecessário? Abdicar é

rejeitar e recusar veementemente. O que o caminheiro faz não é rejeitar a coisa anunciada, mas a

metodologia adotada sistematicamente em sua vida até aquele momento. Ele rejeita a tentativa de

controlar o fenômeno e sua respectiva compreensão.

A máquina do mundo não resistia ao homem, mas aos métodos utilizados para tentar

acessá-la, à “inspeção” e à “mente exausta de mentar”, como um o esforço de trazer à memória

algo que se viu outrora e/ou se perdeu.

Ele assinala o que outrora viu e/ou perdeu como sendo, além de uma imagem, certa

compreensão: “uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do

mistério, nos abismos”. Inspecionar é o mesmo que examinar ou proceder a uma investigação

minuciosa mediante uma metodologia racionalista. O racionalismo científico tenta definir a

estrutura do real a partir de conceitos filosóficos sobre a verdade e a ética. Para isso, elabora

teorias metodológicas que servem de medida e paradigma para toda interpretação e valoração da

realidade. A experiência de aprendizado se torna um saber filosófico que contamina até as obras

poéticas que tratam de questões relacionadas à experienciação humana do real, definindo-as

como filosóficas. A metodologia proposta incorpora a medida paradigmática de todo o real que

será tanto mais verdadeiro quanto houver adequação entre ele e sua representação objetiva.

O racionalismo científico-filosófico não valoriza o manifestar da realidade, mas usa-a

para exemplificar uma teoria pré-estabelecida. Pensa a realidade à luz da filosofia e da ciência,

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não a partir de sua manifestação. O sentido da própria palavra manifestação é desconhecido da

filosofia e da ciência tradicionais, pois elas geralmente não trabalham com o devir, apenas com o

já manifestado e cristalizado pelos conceitos metafísicos. A análise e não a interpretação interessa

ao racionalismo. A análise, entretanto, é a anatomia do real. Analisar é separar, seccionar as

partes para serem classificadas e, ao separar, o inspecionador mata o vigor manifestante do real.

O próximo passo da análise científico-filosófico é a síntese. Sintetizar o acontecimento do real é

sepultar definitivamente seu vigor. A síntese elimina a dialética originária, responsável por

manter o devir significativo, a complexidade e a infinitude de sentidos da realização.

O pensamento científico-filosófico não dá contas da complexidade do real e reduz ao

simples todo fenômeno. O método que ele utiliza é o da conceituação e da definição. Ao

conceituar e definir extingue-se toda a possibilidade do vir-a-ser de um fenômeno. A máquina

não cedeu aos instrumentos de inspeção racional. Ela não aceitava qualquer instrumento exterior

a ela que quisesse dominá-la e fazê-la se abrir sob a intervenção de um sujeito. Que metodologia

seria capaz de penetrar o mistério e os abismos se estes só se tornam acessíveis mediante a

rendição e entrega dos que para eles se inclinam? Qualquer caminho que se faça teria que partir

da própria máquina e para ela se voltar, seria essencialmente lançar o olhar à procura pelo operar

dela mesma e palmilhar a complexidade da essência de seu agir, em outras palavras, travar um

diálogo originário com ela.

3.1 - Verdade e linguagem

O diálogo originário com a verdade se consuma como um manifestar da tensão essencial

fala/escuta oferecendo um saber e uma aprendizagem, estabelecendo marcos fundamentais de

distinção entre pensar e raciocinar. Enquanto aprendizagem, o conhecimento proporcionado pelo

diálogo não é um amontoado de conhecimentos. Nele não importa a quantidade de coisas que se

conhecem, mas a intensidade da experienciação da aprendizagem. Nesse sentido, ele revela que a

tarefa do pensamento não é racionalizar o real, mas pô-lo em questão e como questão.

O diálogo, originariamente entendido, não instrumentaliza a linguagem, sua atitude é

antes de escuta que de fala e, quando fala, fala-com, e não sobre e não de; também não se vale de

técnicas exteriores pala analisar o real, ele nem mesmo o analisa, antes, por meio dele torna-se

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possível uma leitura a partir daquilo que o próprio real doa como questão. No diálogo, a

linguagem nos oferece um método (meta-hodós), um caminho para si mesma. O diálogo abre

esse caminho e, assim, permite-nos percorrê-lo. No diálogo, quem fala é a linguagem, a fala do

homem é um corresponde à linguagem.

Co-responder é responder com, só responde quem antes ouviu ou viu algo; responde-se a

um apelo, a um aceno, a uma pro-vocação, a um desafio, a uma pro-cura. A linguagem desafia o

homem a conhecê-la, a penetrá-la, a ouvi-la. Só ouvindo a linguagem é que o homem pode falar e

assim estabelecer um diálogo. O diálogo é, nesse sentido, o acontecer da linguagem como

fundação e ampliação de sentido. É a linguagem viva, consumando seu telos, livre de toda e

qualquer instrumentalização, constituindo, desse modo, uma hermenêutica da vida.

A realidade da “máquina do mundo” não responde à inspeção racionalista, antes ela se

entreabre, e aqui há uma questão. Entreabrir é abrir-se, não totalmente, mas no entre. O abrir do

entre, que não é qualquer abrir. É um abrir-se que vigora no ambiente do velamento, o entre, o

que equivale a dizer que ela se abre se fechando, paradoxalmente. A máquina se manifesta

majestosa e circunspecta. Ao mesmo tempo em que exibe imponência, sublimidade e grandeza,

revela prudência, reserva e cuidado. A própria máquina possui atitude de certa reverência como

quem está diante de uma questão de suma importância, como quem ensina uma grande lição.

Sensível às limitações do caminheiro não emite “som que fosse impuro nem clarão maior que o

tolerável”. Não obstante a singeleza da manifestação, quando a máquina se abre, o caminheiro se

insere no horizonte da angústia.

3.1.1 - Verdade e angústia

Angústia é, geralmente, tomada como um estado de ansiedade e inquietude gerados por

algum sofrimento ou tormento que leva o indivíduo ao estado de excitação emocional e temor por

se encontrar em face de algum perigo ou ameaça. Entretanto a angústia é a constatação da

carência que se tem diante da manifestação de uma verdade. É, de certo modo, esvaziamento que

possibilita ser cheio do que se apresenta como possibilidade de preencher o que está vazio, isto é,

do sentido. O vazio maior do homem é o vazio do sentido, esse vazio gera angústia. É por não

conhecer o sentido e dar-se conta disso que o homem se angustia, mas esse estado é a condição

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de possibilidade de se encontrar sentido, porque ele insere o homem na procura do que ainda não

tem. A angústia libera o homem para sua autenticidade que fora dissimulada pela banalidade

cotidiana. Em Ser e Tempo, Heidegger coloca a disposição fundamental da angústia como a

abertura privilegiada da presença (HEIDEGGER: 2002 a, p. 247.). Para ele a angustia é a

possibilidade do descortinar do destino humano entendido como presença. Segundo Heidegger:

“pre-sença é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser.” (HEIDEGGER: 2002 a, p. 256).

O sendo se projeta como destinação para apropriar-se do seu próprio, o que equivale a dizer que o

ser se lança como projeto

A angústia abre diante do homem o espaço da compreensão, por ser ela, de algum modo,

um estranhamento, nas palavras do pensador: “não se sentir em casa” (HEIDEGGER: 2002 a, p.

252.). Não sentir-se em casa equivale a não familiarizar-se com algo. Esse algo que surge gera

estranhamento, pois não faz parte do cotidiano, foge ao horizonte da compreensão. Essa

expressão “foge ao horizonte da compreensão” revela a fuga como possibilidade desse horizonte.

Então se pode entender que seu limite era um falso limite, ou seja, o que se via não era o limite

do horizonte, mas o da visão.

O descortinar do limite do horizonte leva o homem a angústia, porque coloca em xeque

todas as suas convicções fixadas como verdade. As banalidades do mundo e as ocupações

meramente funcionais lançam o homem na inautenticidade do ser, o que corresponde a um

mascaramento de sua essência e das demais coisas que a ela se relacionam. Além disso, gera uma

falsa segurança do que se sabe e conhece podendo manipular as coisas ao seu redor e os

acontecimentos da vida. Mas a angústia se dá com a experienciação de ser-no-mundo e a tomada

de consciência da tensão homem-mundo e, mais importante ainda, do desvelamento e do

velamento. Isto o faz compreender que a verdade que se revela não é toda a verdade, mas

tensiona-se com a não-verdade que é o velamento como possibilidade de todo e qualquer

desvelamento dela. Movimento que de modo algum pode ser controlado muito menos dominado.

O que angustia o homem é o nada, este não significa a nulidade da existência, no sentido

negativo de coisa nenhuma; mas a maior experienciação da condição humana, aquilo que no ser

se vela e se manifesta como angústia diante da disponibilidade para a liberdade e condição de

possibilidade de ser, isto é, o não-ser.

A angústia se dá como compreensão da necessidade da procura pelo originário que falta,

ela é a manifestação da ananke humana na linguagem. Quando o homem se depara com sua

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necessidade extrema, ele se angustia e dá o passo para a liberdade para apropriar-se do que lhe é

próprio. Dar o passo para liberdade é movimentar-se nela, não para ela, pois nela já vigora como

ser:

Na pre-sença, a angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre

para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo. A angústia arrasta a pre-sença para o

ser-livre para... (propenso in...), para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de

ser aquilo que já sempre é. A pre-sença como ser-no-mundo entrega-se, ao mesmo

tempo, à responsabilidade desse ser. (HEIDEGGER: 2002 a. p. 252, grifo do autor).

O entreabrir-se da “máquina do mundo” gera angústia porque se põe e expõe como uma

revelação ontoexitencial, isto é, de ser-no-mundo. Ao deparar-se com esse entreabrir, o

caminheiro depara-se com sua própria carência, daí o estranhamento. Mergulhado no seu vazio

de sentido é que a abertura para a consumação do ser torna-se possível, aí consumar é apropriar-

se do que lhe é próprio. Mas, se é apropriar-se, sua condição é não mais, ou ainda não é, estar de

posse de algo.

A questão não é apropriar-se do que não se tem, mas do que se perdeu ou, de um modo

mais propício, do que se esqueceu, por isso o poema fala de “mente exausta de mentar”. Na

verdade, toda a perplexidade que se expressa mediante “pupilas gastas na inspeção contínua e

dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria

imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos” é uma manifestação da angústia sentida

pelo caminheiro. Essa angústia leva o homem a assumir sua incompletude diante do mistério e

obriga a renúncia de um modo de ser inautêntico, o que é a condição de possibilidade da abertura

essencial como entrega.

O maior desafio do homem é entregar-se à espera do inesperado e deixar-se transformar

pelo vigor do não-saber. Tudo o que ainda estar por vir e ser, nós já o somos, apesar de não sabê-

lo. O vigor da possibilidade para a liberdade, do destino, é tamanho que, embora militemos pela

realização do que somos, não conseguiremos ser e conhecer tudo o que nos é dado como

disponibilidade de ser e conhecer, por isso o ser humano é um pro-jeto da liberdade. O porvir

escapa ao nosso domínio. No fim de tudo, estaremos prontos para começar. Realizamos o que

somos em instantes que inundam a vida inteira. A realidade se realiza a todo o instante,

irrepetivelmente, como palavra pronunciada que não se pode dizer novamente. O que se repete

são meras projeções do que já foi e não é mais o que era, ou se diz o mesmo, mas de modo tão

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essencialmente inaugural, que nunca é a mesma coisa. Quando se conhece uma verdade ela não é

mais, já se realizou. Por isso a abertura essencial é aquela que se põe diante do movimento de

realização/mundificação.

O que se repete é o reflexo do que foi como o brilho de uma estrela que explodiu há anos-

luz, mas ainda vemos o seu clarão. O vigor poético da linguagem é o de poder dizer o mesmo,

sem, contudo, dizer a mesma coisa. A poiesis é inaugural; todas as vezes que se dá é nova, jovial,

por isso ela em nada pode ser enquadrada, emoldurada, definida, interpretada; está sempre se

manifestando, talvez só possamos estar aqui fazendo essa leitura porque a “máquina do mundo”

ainda está vigendo, se abrindo ou se fechando.

Não há com o que comparar, a poesia de Os Lusíadas já aconteceu, as versificações

dantesca e petrarquiana também, assim como o poema de Drummond, mas o sentido, o brilho da

estrela explodida, ainda está iluminando nossos olhos perfazendo o caminho das nossas retinas

tão fatigadas. E, enquanto na vigência da angústia houver luz e trevas para iluminar, conduzir a

luz, há vida, há poesia.

A angústia é a possibilidade que se abre diante do homem de se dar conta da necessidade de

reconhecer sua inautenticidade e de se lançar à procura da autenticidade. O homem não está

pronto e acabado, então não existe antropologia que dê contas do que ele é, o mais próximo seria

uma antropogênese, o que equivale a dizer que o homem vai se realizando enquanto ser-no-

mundo. Por esse motivo, ele se dá como um projeto de realização: “o ser que se projeta para o

poder-ser mais próprio. Esse poder-ser é a destinação onde a pre-sença é sempre como ela é.”

(HEIDEGGER: 2002 a, p. 256). O sendo ou entre-ser se projeta como destinação para apropriar-

se do seu próprio: lança-se como projeto. Assim, a angústia se tensiona com a liberdade na tensão

entre carência e projeto: “É na angústia que a liberdade de ser para o poder-ser mais próprio.”

(HEIDEGGER: 2002 a, p. 256). Entretanto, como a angústia não tem um referencial objetivo, e

aí torna-se essencial não confundi-la com temor ou desespero, mas identifica-se com certo tédio

imotivado, o homem é tentado a fugir dela. Então, por ser tão repelida ou evitada, a angústia

tende a ser rara, mas, quando vigora, torna-se a maior oportunidade que o homem tem de dar-se

conta de uma revelação, ser mais próprio e mover-se na liberdade rumo a sua realização ou

consumação.

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3.1.2 – A rendição da verdade à não-verdade

As últimas estrofes do poema assinalam uma relutância do caminheiro, que nos parece

querer evitar a contemplação da máquina. Nota-se certa confusão e perplexidade geradas pela

angústia sentida. O motivo dessa relutância é terem se abrandado a fé, o anseio, a esperança e o

anelo que tinha. Mas isto em relação a quê? À contemplação da máquina? Não. Mas o de “ver

desvanecida a treva espessa”, ou seja, trazer a verdade da revelação da “máquina do mundo” em

sua totalidade à presença, de modo a desvendá-la toda, decodificando e desmistificando-a. Quer

dizer, compreender definitivamente esse mistério imenso que envolve a vida transformando-a

num conhecimento (conceito) racionalmente estruturado. Como o próprio caminheiro diz, o apelo

é maravilhoso e não só provoca grande admiração, deslumbramento e fascínio, como também é

inexplicável racionalmente, pois mora no mistério insondável. Um apelo do mistério indomável

que só se manifesta àquele que a ele se entrega verdadeiramente.

Sutilmente, o caminheiro inverte a ordem racional quando almeja “ver desvanecida a treva

espessa que entre os raios do sol inda se filtra”. Os raios de sol não dissipam as trevas, antes

revelam-na. O racionalismo quer trazer a luz sobre as trevas, isto é, desocultar tudo o que vige no

âmbito do ocultamento. Isso não se define como ocultismo ou esoterismo, mas como um

encobrimento que quer desencobrir-se e revelar-se, entretanto, por inesgotável, infinito e

insondável que seja, nunca se revela totalmente. A intensidade do que vigora no ocultamento é

muito superior ao que se manifesta. Por isso o homem se angustia e fica perplexo, seu destino é

um constante vir-a-ser que exige uma interpretação e reinterpretação contínua da vida no

defrontar-se constantemente com a verdade.

O maior golpe no racionalismo científico-filosófico é a constatação de que não há verdades

absolutas e experienciações comunicáveis ou repetíveis, nem mesmo uma cor pode ser vista do

mesmo modo e tonalidade por todas as pessoas, a variação dessa interação com o real é

infinitamente complexa. Não estamos com isso defendendo o relativismo radical, quando se

afirma que não há verdades absolutas apontamos para a impossibilidade de se objetivar a verdade

e transformá-la em um conceito. Mas evidentemente se pode alegar que, não obstante, os

conceitos existem. Isso é um fato facilmente constatável, entretanto, eles não dão conta da

verdade do real, pois abandonam o que lhe deu origem e cristaliza-se no acontecido, como se

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toda ela fosse definitivamente desvelada e assim perdesse seu vigor de vir-a-ser ou vir-a-

manifestar-se.

Verdade torna-se sinônimo de verificável material ou ideologicamente, sendo este último o

mais importante. A verdade se transforma em discurso e este em teoria. Verdade, então, é o que

pode ser teoricamente verificável. Era essa segurança que o caminheiro procurava. Essa certeza

instrumentalizada diante do real que possibilita controle e manipulação. Sua maior frustração é

deparar-se com essa impossibilidade.

O caminheiro assevera que sente “como se outro ser, não mais aquele habitante” dele “há

tantos anos, passasse a comandar” a sua “vontade”. Na verdade não é outro ser, mas uma

modalidade do sendo, do seu modo de ser e pensar, visto que pensar e ser é o mesmo. O que se

narra é a própria mobilidade do ser no seu estar-no-mundo, no desdobrar de sua existência. Ele

prossegue caracterizando sua vontade como volúvel comparando-a às “flores reticentes em si

mesmas abertas e fechadas” que tem diante de si.

Essa volubilidade não assinala um defeito de caráter, mas a capacidade adquirida do

pensamento de mudar de direção ou mobilidade multidirecional, aberto, capaz de captar e

interagir em todas as esferas, em outras palavras, é o pensar-ser que se move e deixa mover pela

ausculta. As flores que abrem e fecham é a eclosão da própria phýsis contemplada pelo

caminheiro. Ele foi tomado pelo mistério e iniciado nas sendas da linguagem, que não é mero

meio de comunicação, mas onde o ser mora e de-mora.

O dom de dominar a phýsis (natureza como realização de tudo que é ou existe), outrora tão

buscado, hoje é desprezado. O caminheiro despiu-se do desejo e esforço para se impor como

sujeito do real, baixa os olhos, antes olhos altivos, agora sujeitos à ausculta sem pretensão alguma

de capturar a realidade e sua realização. Sem presunção de julgar, discernir e avaliar para

posteriormente descrever o evento, o caminheiro sequer deseja “colher a coisa oferta que se

abrira gratuitamente” ao seu engenho.

Aqui há um outro aceno na poesia, as palavras muitas vezes dissimulam o sentido. A

palavra engenho é geralmente como sinônimo de máquina ou aparelho, possui acepção mais

originária no latim, ingenìum, com o sentido de habilidade inata ou natural de se inclinar para

algo como capacidade de percepção, faculdade de saber, engenho e criatividade, daí o adjetivo

engenhoso, quer dizer, hábil para criar, criativo.

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Agora a “máquina do mundo” se oferece ao caminheiro, mas esse não quer colhê-la. No

sentido literal, colher é recolher, tirar ou apanhar algo separando-o do ramo ou da haste (flores,

frutos, folhas etc), mas isso quando se trata de vegetais. Por extensão, colher indica o ato de ter

em seu poder, conseguir ou obter algo, também ter percepção ou entendimento, apreender,

perceber, deduzir, inferir. No poema, colher seria apreender o sentido, capturando-o em um

conceito. Resistir à colheita é renunciar ao status de sujeito e se colocar como um ser ao lado dos

outros seres e deixar a máquina vir à presença e se retrair voluntariamente, como quem prefere

escutar o canto de um pássaro livre esporadicamente a tê-lo preso em uma gaiola.

O caminheiro termina dizendo que a “máquina do mundo” “se foi miudamente

recompondo”, isto é, recuperando seu formato anterior de recolhimento e velamento na “treva

mais estrita” enquanto ele, “avaliando o que perdera, seguia vagarosos de mãos pensas”. O

caminheiro apropria-se de sua condição caminhante, ser-em-travessia, nesse momento é que ele

se apropria do caminho como experienciação mais radical de sua existência e assume a

caminhada como traço existencial, num diá-logo entre verdade e não-verdade a caminho da

linguagem.

3.1.3 – (Co-) Respondendo ao apelo do inesperado

Assumir a caminhada é lançar-se à pro-cura, é partir rumo à plenitude da liberdade, à

abertura para ser o que se é. A plenitude da liberdade é a possibilidade da cura do ser, isto é, o

cuidar-pensar o destino apropriando-se do que se é. A cura-cuidado-pensamento do ser é um

apelo intenso e contínuo. Tudo nos apela: a dor e o prazer, o ter e a carência, o ser e o não-ser, a

proximidade e a distância, o outrora, o agora e o mais adiante, a presença e a ausência, o dia e a

noite, a luz e a treva, o sagrado e o profano, a sabedoria e a ignorância, a vida e a morte, a coisa e

sua negação etc. Esse apelo constitui o maior desafio, o homem pode ouvi-lo ou não, mas nunca

fugir dele, pois nele se move. A abertura para a liberdade é a possibilidade da consumação do ser.

O ser se consuma enquanto ser-livre. A liberdade conduz o homem ao seu télos, isto é, à sua

plenitude.

O caminho que nos conduz às sendas do ser, entre abismos, é o mais longo e mais

doloroso, ao mesmo tempo mais próximo e mais prazeroso. O homem caminha porque há

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caminho ou há caminho porque o homem caminha? Essa é a tensão originária entre homem e

destino, um é a condição de possibilidade de existência do outro. A caminhada nas sendas da

liberdade como disponibilidade para o sentido consuma o destino humano, por isso o homem é

travessia, ser-em-travessia, aberto e à pro-cura do encontro com o inesperado.

O encontro com o inesperado de que nos fala Heráclito no fragmento 18 é o encontro com a

própria essência de ser; é um abrigar o que se nos advém, o destino. Esse viés aproxima o

acontecimento poético de A máquina do mundo do que há no poema No meio do caminho, pois, a

essência da poética aparece imbricada nas falas dos poemas como voz de uma única poesia: a

poesia do ser (e do sendo) e da obra de arte como experienciação da realidade. Ambos os poemas

tratam do acolhimento do inesperado e neles figuram de modo essencial, ainda que no primeiro

se revele, muito sutilmente, a imagem-questão da pedra. E aqui, pensando o destino como

liberdade e consumação cabe mais uma vez trazer à tona o sentido de pedra, apesar do que já foi

dito acima.

No poema No meio do caminho, o verbo ter dinamiza o sentido do primeiro verso: “No

meio do caminho tinha uma pedra”. Ter ocorre no latim como tenèo e tentum, com as acepções

principais de segurar, agarrar, pegar em, possuir e, por extensão, como permanecer, estar em

presença de e acolher. Por mais estranhas e incomuns que pareçam essas últimas acepções, a

sintaxe poética do verso as aceita bem. Para que se entenda o ter no meio do caminho como um

acolher, um estar em presença e permanecer, precisamos “ver” o verso por inteiro. Assim o

sentido pode nos advir de modo mais originário e essencial. “No meio do caminho tinha uma

pedra”. O “meio do caminho” acolhe, guarda uma pedra. O guardar assinalado no verso através

do verbo ter, não é um guardar que se esquiva de todo, mas um guardar silencioso que nos acena

na elocução. Guardar, de guard-, possui a acepção, no germânico, oriunda da palavra wardôn, de

montar guarda, estar em guarda; procurar com a vista, derivado de warda, significa o ato de

buscar com a vista; montar guarda; estar de sentinela, e este de warôn, que nomeia o ato de

prestar atenção, e, por cognação, em português inclui o sentido de aguardar.

Aguardar retoma o aspecto do sentido do verso observado anteriormente: estar à espera de

ou ficar na expectativa de. Ao dizer que “No meio do caminho tinha uma pedra” se enuncia um

aceno para algo que está à espera de um prestar atenção, ou seja, um pensar acurado, cuidadoso,

marcado pelo interesse, que se emprega ao cuidado de uma coisa ou ocupa-se cuidadosamente

dela. Que coisa é essa que o meio do caminho resguarda para que nos acene de tal maneira e pro-

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voque nosso inter-esse de modo tão insistente? O verso diz: “No meio do caminho tinha uma

pedra”. A pedra aqui é vista, geralmente, como um obstáculo. Obstáculo é algo que impede ou

atrapalha o movimento, a progressão de alguém ou alguma coisa, é uma dificuldade materializada

por objeto ou fator natural, ao longo de um percurso estabelecido. É, literalmente, aquilo que

obsta, que cria um embaraço, que apresenta oposição por estar diante de, ou em frente a/de. A

pedra é um obstáculo que deve ser sempre pensado e repensado.

A pedra no meio do caminho, assim como as pedras na estrada de Minas, desafia o

caminheiro a uma decisão. Decidir não é uma atitude que podemos ou não tomar. Não

escolhemos decidir. Optar por não decidir já é uma decisão. Somos lançados no horizonte da

decisão constantemente. A pedra é a presença desse apelo, desse desafio. Cada pedra, pisada ou

não, faz parte do caminho. Caminhar ou continuar caminhando é uma decisão. O caminho é

sempre pedregoso, isso quer dizer que é sempre vereda do mistério como pedra insondável, mas

plena de sentido.

A pedra é um obstáculo a ser enfrentado em todo o caminho e caminhar. Não é tanto a

extensão do caminho que desafia o caminheiro quanto a pedra o faz. Esta pode ser o fim ou o

começo do caminho, por esse motivo ela está no meio dele, congregando o início e o fim sem, no

entanto, não ser nem este nem aquele. É um elemento misterioso porque inacessível, não

podemos ver o seu interior, a não ser que a quebremos e, quebrando-a, ela deixa de ser o que era.

A pedra não se deixa analisar. Podem-se analisar seus elementos constitutivos, mas não ela

mesma em sua forma original, assim também como, uma vez quebrada, não se pode mais

reconstruí-la. O que podemos saber dela só nos advém por aquilo que ela própria manifesta. A

pedra no meio do caminho é o acontecimento que dá sentido porque convoca o pensar. É um

apelo, um aceno silencioso ao pensamento. É uma questão.

Parecer-nos-ia ridículo perguntar, mais uma vez, o que é uma pedra. Mas essa pergunta nos

incomoda quando lemos o verso e percebemos nele a importância que este elemento possui e a

necessidade de seu sentido ser constantemente questionado e repensado. De modo muito simples,

pedra é uma base sólida composta ou não. A pedra não tem uma base, ela é uma base. A pedra

como base é um fundamento. O “meio do caminho” tem/resguarda/acolhe uma

pedra/fundamento. Esse resguardar/acolher o fundamento nos convoca a pensar acuradamente o

próprio fundamento. A questão do fundamento foi pensada pela filosofia em três momentos

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históricos distintos8, porém, conectados ao mesmo eixo de sentidos, denominado metafísica. A

questão gira em torno do ser, entendido como fundamento. No Mundo Antigo, o ser foi entendido

pelo platonismo como idéa e no aristotelismo como enérgeia. No Mundo Medieval o ser era o

Deus Creator e no Mundo Moderno o ser foi interpretado como subjectum pelo o cartesianismo.

A questão da poética do destino é o acontecimento apropriante do real, isto é, a sua

consumação. A verdade acontece quando mundo e terra, no seu jogo de oposições fazem o ente

aproximar-se do desvelamento e pensar o seu destino. Neste caso, diz-se, então, que na obra a

verdade está em obra. A obra de arte não é algo já efetivamente realizado, mas um pôr-se em

obra da Verdade.

A pedra, quando surge no meio do caminho, surge e não-surge como pedra. A pedra põe

questões essenciais à vida humana. Ela é o fim e o início. Ela é o acontecer que funda Mundo.

Ela instaura sentido.

A poiesis se manifesta na figura emergente da pedra, e quando a imagem da pedra surge

como poiesis convoca também o pensamento. “A essência da poiesis ... é para ser pensada”

(Heidegger: 2010, § 164), isto quer dizer que poiesis e pensamento se medem na imagem que

surge. Dizer que poiesis e pensamento se medem é dizer que mutuamente se convocam e

protagonizam o diálogo entre fala e silêncio na linguagem. A arte (poiesis) e o pensamento são

dois modos como a linguagem eclode e se doa ao homem.

A pedra é um fundar, é ela, como imagem poética, que traz a abertura ao pensar e promove

seu encontro com a poiesis instaurando em seu emergir uma questão. A pedra é uma imagem-

questão. Toda imagem-questão é um fundar sentido. A pedra é uma fonte que se revela no que

instaura, mas, o que é em si a pedra, permanece no âmbito do velamento. Quanto mais a pedra se

vela como pedra, mais ela se desvela como sentido inaugurante e ex-põe o ser ao pensamento.

“A essência da arte é a poiesis. Porém, a essência da poiesis é a fundação da verdade. (...)

Contudo, a fundação é efetiva apenas no desvelo. Assim a cada modo de fundar corresponde um

do desvelar.” (Heidegger: 2010, § 172). O que é a pedra não pode ser dito nunca num sentido

conceitual-referencial, tampouco baseado em dados puramente físicos de modo que se estabeleça

a representação do real. A poiesis se doa nessa imagem promovendo uma abertura essencial em

8 Já nos reportamos, de algum modo, a isto, mas é necessário inserir essas concepções continuamente

para repensá-las de diversos modos e em diferentes contextos do real.

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que a physis revela seu jogo de ser e não-ser, velar e desvelar que desarticula todo esquema

racional e convoca ao pensamento.

A pedra não é um conceito ou algo a ser definido como chave de interpretação, mas algo

que eclode com seu poder de fala e de silêncio que nos convida à escuta. Ela é o “sem sentido”

pleno de sentido que dorme à sombra de um livro/obra esperando o seu des-encanto, e é a “senha

da vida, a senha do mundo”. A pedra não é a “explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia

(inexplicável) da vida”. Ela é a abertura que abre o horizonte no limiar entre poiesis e

pensamento e, no seu jogo, deixa transparecer translucidamente a verdade. Esse transparecer

translúcido da verdade fala da pedra como imagem-questão semelhante à fonte, que deixa

transparecer o ser em seu instalar-se como fonte, entretanto seu fundamento continua velado.

Por esse motivo, a pedra é diáfana e opaca, assim como a verdade que ela manifesta: a

eclosão da pedra como imagem-questão é a manifestação da Verdade, mas não de toda a verdade.

A ambiguidade do modo como a verdade se estabelece na poiesis é que permite e convoca o

pensamento no sentido que aqui o tratamos.

3.1.4 – Pedra: o marco da existência humana

É a pedra no meio do caminho, ou da estrada pedregosa, que espacializa o caminho. Ela

está no meio, no centro do caminho. A pedra abre espaço. O saber estar no meio do caminho é

uma doação da pedra. “No meio do caminho tinha uma pedra” que nos acena a respeito do lugar

onde estamos. Só sabemos onde estamos e que estamos “no meio do caminho” por causa da

pedra. Ela é que chama a atenção para este fato. Encontrar-se com a pedra é, de certo modo,

encontrar-se consigo mesmo.

O caminho tem uma pedra ou a pedra tem um caminho? O que a pedra manifesta na

realidade humana? A pedra espacializa a existência humana e traz o sentido e o saber de estar-no-

mundo, o destino. Ela não é o sentido da vida, mas uma manifestação desse sentido, o que se

desvela como doação da physis. Mas o que se desvela não é tudo, pois a physis tende a re-velar-

se, velando-se novamente. Toda revelação é também um re-velar-se e destinar-se à liberdade e à

consumação.

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A pedra reflete tanto o desvelar como o velar da physis, possibilitando ao homem habitar o

sentido. A physis é um enigma. A pedra é uma doação desse enigma que resguarda em seu

desvelar o velar destinado da physis que brota e permanece.

Qual a relação entre o espacializar operacionalizado pela pedra e o habitar o sentido?

Heidegger nos incita a pensar a questão, sem que isso seja uma resposta, ao tratar da relação entre

espaço e habitar:

Os espaços abrem-se pelo fato de serem admitidos no habitar do homem. Os mortais são,

isso significa: em habitando têm sobre si espaços em razão de sua de-mora junto às

coisas e aos lugares. E somente porque os mortais têm sobre si o seu ser de acordo com

os espaços é que podem atravessar espaços. Atravessando, não abrimos mão desse ter

sobre si. Ao contrário. Sempre atravessamos espaços da mesma maneira que já os temos

sobre nós ao longo de toda a travessia, uma vez que sempre nos de-moramos junto a

lugares próximos e distantes, junto às coisas. Quando começo a atravessar a sala em

direção a saída, já estou lá na saída. Não me seria possível percorrer a sala se eu não

fosse de tal modo que sou aquele que está lá. Nunca estou somente aqui como um corpo

encapsulado, mas estou lá, ou seja, tendo sobre mim o espaço. É somente assim que

posso percorrer um espaço. (HEIDEGGER: 2002 b, p. 136-7.).

O homem habita à medida que de-mora junto às coisas e aos lugares. Os espaços se abrem

quando o homem habita, isto é, quando de-mora junto às coisas e aos lugares. Assim como “no

meio do caminho tinha uma pedra”, a pedra é a questão que funda o meio do caminho como

experienciação. Não é a pedra que incomoda o homem, mas o que ela manifesta. O manifesta-se

como pedra não é o que o deixa perplexo, mas o que a faz eclodir como tal, a essência do agir,

que para o homem continua sendo enigma. Resta ao homem pensar o enigma, a essência do agir.

Nos versos seguintes lemos: “Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de

minhas retinas tão fatigadas”. Algo acontece com aquele que se pôs a caminho. Uma travessia

originária opera sempre o desvelar de uma acontecimento. Quando alguém se põe a caminho

acontece um destinar. Diz-nos Heidegger: “Pôr a caminho significa: destinar. Por isso,

denominamos de destino a força de reunião encaminhadora, que põe o homem a caminho de um

desencobrimento.”. (HEIDEGGER: 2002 b, p. 27, grifo do autor). O desencobrimento é um

acontecimento originário. Acontecer vem do radical tango, que também dá tactum e tangère, que

dá inicialmente o sentido de tanger ou tocar física ou moralmente. Acrescido do prefixo com-

manifesta, dentre outras palavras, contactus, significando toque e contato e contingescere e

contigescere, no sentido de chegar à proximidade ou vizinhança. No português, essa palavra

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surge com o a protético no sentido de chegar a, calhar, tocar a ou em, alcançar, atingir, encontrar,

topar; suceder; resultar. Acontecimento é o que acontece de modo inesperado, o que vem ao

encontro extraordinariamente e se manifesta como realidade originária. Em outras palavras,

acontecimento é eclosão do destino como des-encobrimento.

Destino acontece quando há ausculta verdadeira, esta é uma experienciação da linguagem

de modo que nela seja possível habitar. Acontecimento-destino ocorre quando a verdade-vida

vem ao encontro do homem no caminho. O destino reúne todo o envio sábio dispensado aos

mortais como encontro com o inesperado. O poema nos diz: “Nunca me esquecerei desse

acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas”. Mais uma vez põe-se a memória em

evidência através do não-esquecimento. Quando, no final do poema A máquina do mundo, a

“treva mais estrita” pousa “sobre a estrada de Minas, pedregosa” assinala o encobrimento do

caminho pedregoso e de toda a experienciação que se desvelou diante do caminheiro em tensão

com o não-esquecimento. Isomórfico ao “Nunca me esquecerei desse acontecimento”, o

encobrimento dado na “estrada de Minas, pedregosa” opera também o logos como ação

recolhedora e reunidora do que se manifesta de modo que se exponha sua vigência e resguarde

sua manifestação: o desvelar e velar da a-letheia como o agir da memória.

Alguém perguntaria: “Será que Drummond pensou em tudo isso quando ele escreveu esse

poema?”. E a pergunta seria muito oportuna nesse momento, quando já nos aproximamos do fim

desta parte. E, estenderíamos ainda a pergunta para: “Será que Drummond pensou em tudo isso

quando ele escreveu todos os seus poemas?”. A resposta seria sim e não. Sim porque toda a fala

poética é uma correspondência à linguagem. Não, porque não se originou do poeta a poesia.

Embora “o que permanece, porém, inauguram os poetas.” (HEIDEGGER: 2004, p. 132). Todo

poeta fala a partir da linguagem. O poeta é aquele que está entregue à linguagem e aberto ao

acolhimento de seu dizer fundante.

É a linguagem que, primeiro e em última instância, nos acena a essência de uma coisa.

Isso, porém, não quer absolutamente dizer que, em cada significação tomada ao acaso de

uma palavra, a linguagem já nos tenha entregue a essência transparente das coisas, de

forma imediata e absoluta, como se fosse um objeto pronto para o uso. O co-responder,

em que o homem escuta propriamente o apelo da linguagem, é a saga que fala no

elemento da poesia. Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais aberto e

preparado para acolher o inesperado é o seu dizer; (HEIDEGGER: 2002 b, p. 168)

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167

A linguagem concede a essência das coisas como palavra, não qualquer palavra, tomada

conceitualmente como signo linguístico e portadora de um significado; mas a palavra poética que

se manifesta como doação da linguagem, dela vindo e para ela tornando. Quando o homem co-

responde a linguagem esta se revela nele como palavra fundante e seu dizer torna-se acolhida do

inesperado. O dizer poético é a acolhida do inesperado, isto é, um acontecimento. O homem é

tocado pelo destino que lhe vem ao encontro proporcionando um des-encobrimento. Mas o que se

des-encobre no acontecimento? O próprio ser. O des-encobrimento do ser é um acontecimento

apropriador do destino, pois está em operação a ação recolhedora e reunidora do logos como

experienciação hermenêutica da vida. E, nesse mover, a aprendizagem se dá como poetar

pensante e como pensar poético. É no a-prender que o homem a-preende, isto é, agarra o sentido

de sua existência e se apossa do que é.

O poema nos diz: “Nunca me esquecerei desse acontecimento”, e assinala o lugar tanto do

acontecimento quanto de seu acolhimento: “na vida de minhas retinas tão fatigadas”. Retina é a

membrana que recobre a face interna do olho e que contém as células capazes de captar os sinais

luminosos. O lugar-próprio do acontecimento é a retina que se esconde invisivelmente “na

sombra do olho”. Notemos que não é no olho que eclode o des-encobrimento, mas no oculto do

aparelho visual, que é, ao mesmo tempo, o que faculta a visão.

A visão do des-encobrimento não é um agir transcendente, para fora de si; pelo contrário, é

um destinar-se ao interior de si mesmo, no seu hodós íntimo. É a travessia transdescendente aos

abismos do próprio ser. “Nunca me esquecerei desse acontecimento” assinala uma aprendizagem

em que vigora uma sabedoria originária, na qual se experimenta o sabor do ser. O “Nunca me

esquecerei” está o tempo todo em tensão com o esquecer. O acontecimento assinala o habitar a

essência do ser, a saber, a linguagem. Habitar a linguagem é também estar aberto constantemente

ao inesperado. É manter-se no caminho. É dar continuidade à travessia infinita, na qual se

experiencia constantemente o sabor do ser nas vias do não-ser tanto como não-mais-ser quanto

como ainda-não-ser. A reiteração do acontecimento se expõe na repetição in continum dos versos

e ad perpetuam rei memoriam: “Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra

/ tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.”.

O enigma-destino da vida é a travessia. Toda travessia se destina ao acontecimento como

des-encobrimento do ser. O des-encobrimento do ser se dá com e na travessia como ser-em-

travessia no meio do caminho, ou seja, destinação como consumação da liberdade.

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3.2 - Verdade: do originário ao racionalismo

Desde os primórdios do pensamento, a verdade é uma questão nuclear, é ela que governa as

ações humanas. Os homens se movem pela verdade ou pelo menos pelo que pensam sê-la. O

caminhar humano se lança ao encontro do sentido de sua existência, pois é este que o realiza

como humano.

Na tentativa de se condensar o sentido das coisas de modo que ele pudesse ser adquirido,

guardado e retransmitido, foram criados os conceitos. Estes, com base na metafísica, serviram

como mediadores entre o homem e o real estabelecendo uma representação da verdade

possibilitando todo o conhecer.

Sendo assim, o homem deveria interpretar a realidade aparente a fim de conhecer sua

essência. Esse interpretar se diz como uma adequação do intelecto à ideia e a consequente

objetivação do sentido (re-) transmitindo-o em significado. O significado é o tour de force que

move as realizações humanas. Este tem sua força ampliada pelo complexo unívoco do

conhecimento técnico-científico que matematiza o real mapeando todo o seu ser e acontecer ou

pelo menos tentando fazê-lo.

Esse ser e acontecer do real é o que convencionou-se chamar destino, que é nada mais que o

resultado de uma cadeia de acontecimentos, denominado causa, dentro de um esquema de

possibilidades. Destino, assim entendido, é simplesmente consequência. Desse modo, destinação

é racionalização e determinismo, físico e metafísico.

Entretanto, a relação verdade e destino nem sempre foi assim. Verdade, no pensamento

grego originário, era a manifestação de uma caminho como caminhar humano. A força verbal de

caminho, como o que se dá no caminhar, clareia a diferença essencial entre trajeto e trajetividade.

Como conceito, verdade é uma plataforma estabelecida como possibilidade de ser dentro de uma

gama de caminhos (trajetos) previsíveis. Como questão, verdade é um caminhar inaugural,

completamente novo, que engendra o extraordinário do próprio ordinário. É o que os pensadores

originários viram na tensão de physis e logos como hodós, aletheia e dzoion e os poetas como

reinvenção ou reengendramento da vida por si mesma, ou seja, poiesis.

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Não é nosso objetivo fazer uma historiagrafia da verdade, mas situarno-nos no cerne da

questão proposta a fim de que possamos melhor refletir sobre destino e verdade, sobretudo na

Modernidade.

3.2.1 – A visão mecanicista da Modernidade

O sistema de valores e a visão de mundo que fundamentam e estruturam a cultura vigente

no século XX foram formulados essencialmente nos séculos XVI e XVII. A ciência renascentista

substituiu a visão de mundo mitopoética da Antiguidade, reinterpretou racionalmente a obra de

pensadores como Parmênides, Heráclito, Platão e Aristóteles e outros da Idade Média,

substituindo todo pensamento de outrora por uma visão secular e científica firmando um

corolário metafísico-racionalista conceitual. Desse modo, elaborou uma cosmologia que

comparava estruturalmente o mundo a uma máquina com leis inflexíveis de funcionamento.9

A visão cosmológica da Idade Moderna ficou conhecida pela metáfora “máquina do

mundo”. Tal visão de mundo e sistema de valores, também conhecido como mecanicista, foi

radicado e fortalecido pela procura e estabelecimento de um meio pelo qual se conheceriam as

coisas e se consubstanciaria o conhecimento.

Dois pensadores contribuíram grandemente para o desenvolvimento de uma visão

metodológica que desse conta das investigações, Francis Bacon (1561 - 1626), com a proposta de

descrição matemática da natureza e Renè Descartes (1596 - 1650), com o método analítico de

raciocínio. Reconhecendo a importância crucial da ciência na mudança do paradigma mundial, os

9 É muito importante distinguir as obras de Platão e de Aristóteles de platonismo e aristotelismo. Por platonismo

entendemos a doutrina gerada a partir da leitura metafísica das obras do filósofo grego Platão (428 a.C.-348 ou 347

a.C.) e de seus seguidores sobre forma filosofemas, caracteriza-se principalmente pela concepção de que as ideias

transcendentes e eternas engendram toda a realidade material, e que a contemplação dos seres supra-sensíveis

determina os parâmetros definitivos do comportamento moral e da organização política. As referências que aqui

faremos não se reportam ao Platão que faz a experiência do pensamento, mas ao Platão das leituras metafísicas.

Usaremos platonismo em vez de nos reportarmos diretamente ao pensador, com o objetivo de evitarmos equívocos e

incorreções, visto que este trabalho não se propõe a uma genealogia da metafísica nem do platonismo, tampouco a

fazer uma análise das idéias difundidas nas obras de Platão. Assim, também nos referimos ao aristotelismo tendo em

mente as leituras metafísicas das obras de Aristóteles, do mesmo modo como ocorreu com Platão e ao

cartesianismo/cartesiano pensando nas leituras metafísicas das obras do pensador francês René Descartes (1596-

1650), que firmou em suas obras o marco fundacional da filosofia moderna, e de seus seguidores. O cartesianismo

inaugura a autonomia de uma razão dubitativa, científica e subjetivista em relação ao primado da autoridade

tradicional e da crença religiosa expostas na era anterior, a Idade Média.

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historiadores comumente se referem aos séculos XVI e XVII como a Idade da Revolução

Científica. Dando curso à formação do sistema investigativo em voga, Galileu (1564 - 1642)

combinou a experienciação científica com o uso da “linguagem” matemática para formular e

legitimar as leis da natureza descobertas por ele. Daí ser considerado o pai da ciência moderna.

Segundo o cientista, temos que aprender a decodificar a “linguagem” da natureza, que se

constitui basicamente de caracteres matemáticos, como triângulos, círculos e outras figuras

geométricas.

Uma questão levantada que se torna central para o método racionalista é a linguagem e,

jungida a ela, a sua respectiva e necessária decodificação. A natureza está codificada numa

“linguagem” que lhe é própria, cabe então, ao cientista, decodificar essa “linguagem” in natura,

e recodificá-la cientifica ou filosoficamente, estabelecendo o que seria seu código, sua língua,

que funcionaria como intermediário entre a natureza e o homem. O domínio desse código

proporcionaria o funcionamento interativo entre homem e natureza, de modo que esta fosse

plenamente conhecida e pudesse ser manipulada eficazmente por aquele. O código adviria da

metodologia usada e teria seu vigor dela mesma.

Seguindo o esquema: natureza-linguagem-metodologia-código-instrumento-domínio-

funcionamento, teríamos a proposição lógica que poderia ser formulada na seguinte tese, para

usar uma estrutura coerente com a proposta da época: a natureza possui uma “linguagem” que

pode ser decodificada por uma metodologia que determinaria seu código ou língua e que

funcionaria como um instrumento possibilitador do domínio de seu funcionamento.

No século XVII, Francis Bacon desenvolveu o método empírico da ciência e formulou uma

teoria consistente e clara do procedimento indutivo, que deu novos contornos à ciência,

priorizando o conhecimento como um instrumento funcional para dominar e controlar a natureza.

O método científico passou a ser considerado o único meio válido de compreensão do universo.

Descartes, por meio da intuição racionalista e da dedução, funda o método analítico que se

radica na dúvida e, em sua práxis, consiste em decompor pensamentos e problemas em suas

partes componentes e, em seguida, dispô-los em uma ordem lógica. O método cartesiano

fragmentou o conhecimento e difundiu a crença de que todos os aspectos dos fenômenos

complexos poderiam ser compreendidos se fossem reduzidos às suas partes constituintes.

O cogito cartesiano, como ficaram conhecidas suas teorias, privilegiou a mente em relação

à matéria e levou à conclusão de que as duas eram separadas e fundamentalmente diferentes e

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essencialmente opostas. A teoria cartesiana trouxe, num outro prisma, a discussão entre matéria e

forma. Com cartesianismo, o real foi dividido em dois domínios separados e independentes: o da

mente ou res cogitans (coisa pensante) e o da matéria ou res extensa (coisa extensa), essa visão

passou a constituir o ponto de partida essencial para a interpretação da realidade.

O universo para o cartesianismo era uma máquina, a natureza funcionava de acordo com

leis mecânicas que podiam ser explicadas em função da organização e do movimento de suas

partes.

O pensamento cartesiano se tornou o paradigma dominante da ciência mecanicista

desenvolvida nos séculos XVII, XVIII e XIX que influenciou uma boa gama do pensamento

ocidental que se desenvolveu no século XX, estabelecendo a drástica mudança da concepção da

natureza, outrora vista como um corpo vivente, para a de uma máquina perfeita, governada por

leis matemáticas exatas e inflexíveis, isntaurando definitivamente a relação causa-consequência.

A mudança da cosmologia tradicional, em que a Terra era entendida como um corpo vivo e

mãe nutriente infundindo um comportamento ético ao homem, resultou numa ânsia por domínio e

controle. Apesar de ter sido a ciência cartesiana a fundadora da estrutura conceitual, foi Isaac

Newton (1642 - 1727). que completou a revolução científica e desenvolveu a completa

formulação matemática da concepção mecanicista da natureza. Com a criação do cálculo

diferencial, Newton formulou leis exatas do movimento para todos os corpos.

A ciência seiscentista, anterior a Newton, era orientada por duas tendências opostas: o

método indutivo e empírico, contribuição de Bacon, e o método racional e dedutivo, de

Descartes. Newton combinou ambos os métodos: experimentação sistemática e análise

matemática. O modelo newtoniano era atomístico e presumia que a matéria era homogênea, nele,

todos os fenômenos físicos estão reduzidos ao movimento de partículas materiais, organizados

cosmeticamente por uma atração mútua, isto é, pela força da gravidade.

O universo funciona governado por leis imutáveis, por um rigoroso determinismo,

estabelecido por meio de causas e efeitos extremamente definidos que possibilitava uma

funcionalidade estritamente previsível podendo-se calcular pelas causas os efeitos e vice-versa e

respectiva descrição objetiva. Essa é a base de muitas teorias sobre o real.

Por estar na dimensão lógico-causal, de acordo com a concepção mecanicista o universo é

uma máquina acionada pelo homem, este funciona como uma causa eficiente: cada ação humana

provoca uma reação no universo. O homem também é uma máquina acionada pela razão. O

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mecanicismo pressupõe que todos os aspectos da realidade podem ser entendidos se reduzidos a

seus menores constituintes.

Esse pensamento coroa o credo reducionista cuja premissa é a decomposição do todo em

suas menores partes constituídas e, para ter uma dimensão total da realidade, basta juntar suas

partes como se formassem um enorme quebra-cabeças. E isto foi transmitido também para as

obras de arte com a adoção da análise.

Quando o real é fragmentado e se tenta explicar os fenômenos em função dos elementos em

particular, se perde a capacidade de entender as atividades interagentes no todo. Essa visão de

mundo possibilitou grande avanço na biomédica ao passo que também favoreceu o

desenvolvimento das pesquisas genéticas que cogita a possibilidade de se manipular a vida

humana a partir dos elementos moleculares. Entretanto, os processos pelos quais os genes se

comunicam e cooperam no organismo, como eles interagem e se agrupam, isto é, a sua sintaxe,

continuam sendo, de algum modo, enigmáticos.

A grande lacuna no sistema mecanicista evidencia-se por não se voltar para a sintaxe

poética complexa da rede do real. O mecanicismo instala a constituição da relação sujeito e

objeto de modo que este possa ser totalmente desmontado por aquele e passivo de dominação

quando descobertos seus fundamentos, além disso, usa uma linguagem conceitual para falar de

algo que ainda se vela como mistério.

Ao contrário do que se pensa, não é por acaso que, no poema de Drummond, “a máquina do

mundo” se revela. O caminhar do caminheiro do poema é determinante para que tal revelação

aconteça. Relembramos que caminho, em grego, se diz “hodós”, que, com o prefixo “metá”,

compõe em português a palavra método. O que mais se discute na Modernidade como princípio

de articulação das atividades humanas, principalmente as ligadas ao pensamento, é o método.

Não é à-toa que uma das principais obras de Descartes é intitulada Discurso do método, que

coloca, ao lado de inúmeros pensadores, o método como questão principal e norteadora da

Modernidade.

Com Kant (1724–1804), sobretudo, o método é estabelecido e estabelece a relação sujeito-

objeto, que, por sua vez, evoca a proximidade e a distancia como questões. O caminho de

pensamento do caminheiro do poema é a questão central do texto.

A ciência moderna elaborou inúmeras teorias científicas com a finalidade de analisar as

facetas do real e descrevê-las de modo preciso. Sendo assim, cada teoria é válida para certa gama

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de fenômenos, quando surgem outros que escapam ao aguilhão das teorias vigentes, então é

preciso encontrar outras para substituir as antigas. Fica impensado, porém, na ciência, a questão

do alcance de um método exterior ao fenômeno quanto à possibilidade de descrevê-lo ou

determiná-lo exatamente, se é que a pretensão dessa tarefa é de fato uma meta atingível, ou se o

método deveria surgir como uma própria doação do real.

Seria, então, o método não uma descrição de acordo com uma pré-concepção do sujeito a

respeito de um objeto, mas a ausculta do fenômeno em sua própria dinâmica de dar-se, entendo-

se, também, que há algo que se oculta enquanto outro se manifesta. Haveria, na ausculta, um

encaminhar-se também para o velamento e para sua dinâmica com o desvelamento do fenômeno.

O foco principal seria essa dinâmica da máquina, não como um aparelho composto por um

conjunto de peças com um funcionamento preciso tendendo para determinado resultado, mas

como o maquinar, isto é, próprio movimento de mundo como mundificar.

3.3 - Verdade e liberdade

A liberdade é um dos grandes temas do pensamento e pode ser expresso nas seguintes

questões:

Qual é o alcance da ação humana e o que está em seu poder?

Qual é a extensão do poder de nossa vontade, desejo e consciência?

Qual é o poder da liberdade e o limite de sua ação em nossa vida?

Qual é o poder da nossa influência sobre as pessoas, coisas, pensamentos e situações e qual

o poder da influência delas na nossa vida?

Até que ponto somos livres?

Em quê liberdade e consumação se implicam?

Essas questões não deveriam ser originariamente transformadas em conceitos, pois,

originariamente, não possuem uma resposta. Elas podem ser sempre, e em contextos diferentes,

recolocadas, repensadas. Por exemplo, um outro modo de colocá-las seria: O que é isto: a

liberdade? O que é isto: a ação humana? O que é isto: a vontade, o desejo, a consciência, o limite,

a influência etc? O que é isto: a consumação?

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3.3.1 – Liberdade como possibilidade e disponibilidade

O homem está lançado no mundo num âmbito relacional do qual não se pode esquivar, este

abre espaço para a experienciação humana, desde as mais corriqueiras às mais radicais, que

descem à raiz de sua existência. É no mundo que o homem se libera para a, ou seja, para o como

ele vai se constituir como ser-no-mundo. Nesse habitar a liberdade é uma acontecimento

apropriador, isto é, a abertura de possibilidade para realizar sua existência como um modo de

apropriar-se do que lhe é próprio. Assim, liberdade se constitui como possibilidade e

disponibilidade.

Quando dizemos possibilidade para ou da liberdade intensificamos a liberdade, se é que

seja possível, pois a abertura da liberdade é tamanha que, mesmo ignorando, ou sem querer, nela

já nos movemos como possibilidade. A renúncia de à realidade de uma possibilidade nos lança

em outra e assim sucessivamente. Isso é liberdade.

Liberdade geralmente é conceituada como um estado de independência, quando se adquire

direitos, ou pode-se exercer sua vontade e expressar-se de acordo com sua consciência e natureza;

quando não se está sujeito à força constrangedora física ou moral, ou não se é cativo, propriedade

de outrem, ou nos sentimos soltos e ainda tendo pouco apego às conveniências sociais e morais.

Num âmbito mais filosófico, é a potencialidade de escolha autônoma, independente de quaisquer

condições e limites, por meio da qual o ser humano realiza a plena autodeterminação,

constituindo a si mesmo e ao mundo circundante; ou quando se pode transformar o real, com o

objetivo de satisfazer suas necessidades materiais e determinar a organização geral da sociedade;

ainda dispor de livre-arbítrio frente aos múltiplos condicionamentos naturais, psicológicos ou

sociais que impõem predisposições ao agir humano.

Esses conceitos são facetas da liberdade, mas não dão conta da complexidade da sua

essência. Liberdade mora na simplicidade, e é esta que revela sua maior complexidade e nos

acena para maior proximidade do sentido de liberdade apontando para o que se pode chamar de

estado de disponibilidade.

Disponibilidade para quê? Para habitar, para de-morar juntos as coisas, para o aberto de

mundo, para viver, morrer, receber, renunciar, ser e não-ser etc. A disponibilidade é mais que

vontade ou consciência, estas podem ou não ser ignoradas, aquela, nunca. A disponibilidade é a

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própria condição humana, é ela, como possibilidade de liberdade, que conduz o homem e dispõe

para o deixar-ser.

Liberdade é deixar o homem disponível para ser o que ele é. “Somente a liberdade pode

deixar um mundo dominar e mundificar o estar-aí”. (HEIDEGGER: [s.d.]. p. 87). Ao ser, que foi

lançado na disponibilidade, Heidegger chama de entre-ser10

e a disponibilidade em que ele é

lançado, entre11

. A noção de transcendência proposta pelo pensador alemão não é a mesma do

platonismo, de ir além do mundo, pelo contrário, ele fala da ultrapassagem para o abismo do

mundo, o seu mais puro vazio, donde encontra-se com sua ipseidade. Abismo aqui não significa

precipício, mas a profundeza insondável e inexplorada, aquilo que é incomensurável, misterioso,

assombroso e assinala a grande distância e a profunda separação, o último grau, o fundo sem

fundo, o extremo a que se pode chegar: o velamento originário do ser, o seu destino. Ao deixar-

ser no aberto da disponibilidade, nós mesmos nos realizamos como sendo, constituindo a relação

de ser-com e ser-em. Quando damos espaço para mundo ser mundo e nos abrimos para sua

ausculta, instaura-se a verdade do ser e manifesta sua ipseidade. Toda ação autêntica do entre-ser

necessária a sua experienciação de mundo só é possível no horizonte da liberdade. Liberdade é

salto, gratuidade, espontaneidade, o estar disposto a liberar(-se) para ser o que se é, mas ainda

não se manifestou, isto é: destino. Essa imediatividade do ser vai do salto no abismo ao acontecer

da vida, nela eclode a verdade como manifestação, desencobrimento, que se revela, mas não

totalmente, pois o abismo onde mora a verdade é sem fundo. É isso que nos assinala Heidegger

no fragmento seguinte:

O desencobrimento do que é e está sendo segue sempre um caminho de

desencobrimento. O destino do desencobrimento sempre rege o homem em todo o seu

ser, mas nunca é a fatalidade de uma coação. Pois o homem só se torna livre num envio,

fazendo-se ouvinte e não escravo do destino.

A essência da liberdade não pertence originariamente à vontade e nem tampouco se

reduz à causalidade do querer humano.

A liberdade rege o aberto, no sentido do aclarado, isto é, des-encoberto. A liberdade tem

seu parentesco mais próximo e mais íntimo com o dar-se do desencobrimento, ou seja,

da verdade. Todo desencobrimento pertence a um abrigar e esconder. Ora, o que liberta é

o mistério, um encoberto que sempre se encobre, mesmo quando se desencobre. Todo

desencobrimento provém do que é livre, dirige-se ao que é livre e conduz ao que é livre.

A liberdade do livre não está na licença do arbitrário nem na submissão a simples leis. A

liberdade é o que aclarando encobre e cobre, em cuja clareira tremula o véu que vela o

10

Entre-ser e entre, em vez de ser-aí e estará-aí, são traduções mais próximas do pensamento de Heidegger, conferir

tradução do ensaio A origem da obra de arte, feita por Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. 11

Vide nota anterior.

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vigor de toda verdade e faz aparecer o véu como o véu que vela. A liberdade é o reino do

destino que põe o desencobrimento em seu próprio caminho (HEIDEGGER: 2002 b, p.

27-28.).

Liberdade é salto, gratuidade, espontaneidade, o estar disposto a liberar(-se) para ser o que

se é, mas ainda não se manifestou, isto é: destino. Essa imediatividade do ser vai do salto no

abismo ao acontecer da vida, nela eclode a verdade como manifestação, desencobrimento, que se

revela, mas não totalmente, pois o abismo onde mora a verdade é sem fundo. Quando o homem é

tomado por essa verdade dá-se destino.

3.3.2 – Liberdade como destinação

O destino rege o homem mediante a liberdade. Destino é ser livre para ser. Destino não é o

cerceador do homem enquanto manipulador de sua existência é antes um envio, um apelo à

ausculta do homem para que se manifeste o sentido de sua vida. E esse sentido não é um

preparado de antemão ou condicionamento vivencial, mas o que desde sempre se é: possibilidade.

Não há como pensar em liberdade sem pensar também em necessidade e convergência da

possibilidade para a liberdade. A possibilidade não é uma escolha humana, mas sua maior

condição. A necessidade de possibilidade para a liberdade se expressa como a realidade do que

age no homem e rege sua existência com ou sem seu consentimento e o lança no âmbito dela

destinando-o a apropriar-se do que lhe é próprio.

O homem tem necessidade da possibilidade e disponibilidade, isto é, ele só pode ser nelas.

Elas sempre apelam a ele, sempre lhe “envia mensagens”. A realidade fala com o homem o

tempo todo e lhe apela à ausculta, isso corresponde a dizer que no real tudo converge para o

homem. Toda a realidade se volta para o homem, con-verge, verga-se, inclina-se para ele, não

porque ele seja superior aos demais seres e coisas, mas porque ele é o único capaz de

experienciar a linguagem. Há quem pense e defenda ser o mundo uma tessitura de acasos felizes

ou não, em que tudo acontece de modo extremamente imprevisível, outros que os acontecimentos

são regidos por causas e leis condicionadoras dos pensamentos, sentimentos e ações humanas,

fazendo da liberdade uma utopia. Entretanto, o homem está lançado no aberto da liberdade não

obstante tanto cerceamento, tanta privação, e esta de todos os tipos, e imposições ideológicas,

porque a liberdade não é coisa alguma senão apelo, quem é para ser é o homem.

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A possibilidade para a liberdade não é uma decisão humana, ele só é homem por se mover

nela, entretanto, ele pode renunciar à liberdade, mesmo assim continuará no âmbito da liberdade,

pois ele precisa ser livre até mesmo para renuncir a ela, essa é a sua ambiguidade originária.

O homem, na verdade, decide ser ou não cativo, essa é a questão. Factualmente isso parece

ser controverso e exatamente o contrário, como se o homem lutasse contra as agruras do

cativeiro, mas se a liberdade fosse fruto de um esforço humano, como uma conquista, poder-se-ia

tê-la ou não, contudo, nela sempre nos movemos como possibilidade, estamos lançados à

possibilidade de liberdade, ela sempre haverá de um modo ou de outro, isso é destino. O homem

não pode escolher ter ou não destino, ele já é destinação.

Destinação não é uma meta a atingir, objetivo ou finalidade, como registram os dicionários,

mas a condição humana de estar lançado ao destino. Ser destinado à liberdade, vivenciar

necessidade e convergência de possibilidade e estar lançado ao destino, é viver em face do

sentido.

Sentido dá-se como desencobrimento, entretanto, este está enraizado no encobrimento.

Sentido se tensiona com o mistério e daí vem seu vigor manifestativo.

Toda manifestação é manifestação de um mistério e, ao mesmo tempo, de um sentido, ora

se a manifestação de um sentido provém do mistério, este é o não-sentido como possibilidade de

todo e qualquer sentido. Quando pensamos o sentido estamos entregues ao comando do mistério,

em seu domínio. Ao fazê-lo, somos guiados pelo apelo do mistério e por ele tomados e chegamos

aonde já estávamos, mas ainda não tínhamos percebido ou experienciado essa realidade: “No

pensamento do sentido, encaminhamo-nos para um lugar onde se abre, então, o espaço que

atravessa e percorre tudo que fazemos ou deixamos de fazer". (HEIDEGGER: 2002 b, p. 58).

Movemos-nos no mistério e somente por isso podemos ser tomados pelo sentido, o que

equivale a dizer que só porque nos movemos no não-saber é que podemos saber. O sentido e o

saber nos advêm da escuta da realidade que nos apela a pensá-los. Acolher esse apelo é recolher e

consumar a ausculta, que não é somente de uma fala, mas também e principalmente do silêncio

como limite e, ao mesmo tempo possibilidade, de todas as falas, por isso a ausculta não precisa

ser necessariamente lógica, mas nela se abrigam as diferenças como unidade da dobra. No caso

do destino, essa unidade se dá entre homem e mundo.

Liberdade acontece quando somos tomados pelo sentido de ser. Sentido é linguagem

operando como cura curando-nos do aprisionamento dos determinismos conceituais ou conceitos

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deterministas que regem a vida. A linguagem operando é arte. A arte nos cura quando nos

entregamos aos seus cuidados. A arte, verdadeiramente poética, rompe toda manipulação retórica

e condicionamento intelectual operando a abertura do real em possibilidades, eclodindo como um

aceno ao pensar, um apelo íntimo à ausculta de nós mesmos, do que somos. Nesse sentido, arte é

abismo sem fim que salva, cujo salto nele é uma iniciação infinita nas veredas do não-ser, do

desconhecido, tão longe e ao mesmo tempo tão perto.

A arte é um modo como a realidade fala intimamente com o homem. Atender o apelo da

arte é fazer ausculta da realidade e permitir que seu vigor realize liberdade, isto é, destino.

Destinar-se é, originariamente, aucultar a fala da realidade como arte e de-cidir-se por fazer a

caminhada originária rumo ao que se é. Destino, liberdade, linguagem são modos como a verdade

se manifesta – tudo: um. O homem destinado à liberdade é o mesmo que dizer destinado à

verdade. Isto, porém, não garante que todos serão tomados pela verdade, ainda que, de algum

modo, nela estejam.

3.3.3 – Liberdade e limite

Liberdade não é poder fazer tudo o que se quer ou deseja, ela não é livre de normas ou

regras, antes possui sua própria dimensão, seu próprio limite. Os limites da liberdade vigoram na

tensão homem-mundo, ambos se medem por essa tensão. "O limite não é onde uma coisa termina

mas, como os gregos reconheceram, de onde alguma coisa dá início à sua essência. Isso explica

por que a palavra grega para dizer conceito é ορισμός, limite." (HEIDEGGER: 2002a, p. 134.).

Liberdade é a ação do homem nesse limite com mundo. Isso parece contraditório, tendo em

vista tudo o que aqui já foi dito, entretanto não se perguntou ainda qual é o limite do humano e do

mundo, isto é, o limite do ser-homem e ser-mundo; sua dimensão é imensurável. Homem e

mundo se medem mutuamente explorando seus limites, nessa tensão, ambos ultrapassam seus

próprios limites já manifestos e se lançam ao aberto, ao abismo ontofânico.

Nesse jogo o sentido se dá como verdade (alétheia), que é uma plenificação da liberdade. O

limite é o que sustenta o ser e o possibilita ocupar uma posição quando apossado pela linguagem

ampliando sua disponibilidade de abertura em face do próprio limite, este não tira a liberdade,

antes instiga à ultrapassagem e à consumação do ser:

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O limite não é nada que de fora sobrevém ao sendo. Muito menos ainda uma deficiência

no sentido de uma restrição privativa. O manter-se que se contém nos limites, o ter-se

seguro a si mesmo, aquilo no que se sustenta o consistente, é o ser do sendo. Faz com

que o sendo seja tal em distinção ao não-sendo. Vir à consistência significa portanto:

conquistar limites para si, de-limitar-se (HEIDEGGER: 1969, p. 88.).

Ao exigir um fim, o limite conduz aquilo a que se impõe à consumação, à sua plenitude, a

essa ação, os gregos denominaram telos. Consumar vem o do latim com-sumo, levar ao sumo, a

essência, significa agarrar, apoderar-se e apropriar-se de algo no sentido originário.

Consumar é apropriar-se do que nos é próprio, plenificar-se, completar-se, ou seja, é aquilo

de que não falta parte, chegou ao limite. A liberdade é a disponibilidade como necessidade e

convergência que possibilita o homem chegar ao seu télos, a consumar o que ele é.

O mundo não é o nosso limite, pelo contrário, o limite do ser é o não-ser, este não é uma

negação do ser, mas a condição de possibilidade de todo o vir a ser. Isso pode ser entendido,

preliminarmente, de modo muito simples: no meio do caminho o homem (ser) já não é o que era

(não-ser), mas ainda não é o que será (não-ser). Não-ser é o-que-já-não-se-é e também o-que-

ainda-não-se-é, o abismo. O homem não está contra o mundo, a tensão é expansão. Ao ser

humano cabe a tarefa de conhecer seu limite e abertura, nesse sentido, conhecer é entregar-se ao

que se quer conhecer. Por isso, como diz Cecília Meireles, “A vida só é possível reinventada”. O

homem e o mundo não estão prontos e acabados, como assevera o próprio Drummond no poema

Mundo grande:

(...)

Trouxeram a notícia

De que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,

Entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.

(...)

(ANDRADE: 2007, p. 87).

O mundo e o homem crescem todos os dias. Seria uma aberração biocosmológica se essa

afirmação fosse entendida como aumentar de tamanho. Crescer aqui é intensificar sua

experienciação vital, isto é, ampliar sua entrega ao mistério:

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O mistério sem nome da realidade não tem onde estar. Não se acha em parte alguma,

nem no sujeito nem no objeto, nem dentro nem fora. Ao contrário, é nele que estão todas

as coisas, é dele que tudo tem o espaço de seus lugares e o tempo de sua hora e vez, é

dele que tudo recebe o sentido de sua essência. Não se trata de coisa entre coisas nem de

pessoa entre pessoas. Não é nem espírito nem matéria (LEÃO: 1992, p. 175).

O mistério vigora no âmbito da linguagem. O homem não tem linguagem, mora, ainda que

não saiba habitar, no abrigo da linguagem. Ela é o mistério que toma o homem e o extasia diante

do desconhecido, do não-ser, do destino. Esse espanto é o maior provocador do pensamento que

pensa radicalmente, ou seja, as raízes do que é e acontece, esse tipo de pensar nomeia o fazer a

experienciação como caminho (hodós).

Liberdade é liberar-se para a possibilidade e disponibilidade como destinação, fazendo a

experienciação do limite na difícil e perigosa caminhada de chegar a ser o que recebemos para

ser, isto é, apropriarmo-nos do que nos é próprio.

3.4 – Verdade: manifestação ontofânica

Poeticamente entendida, a referência verdade e destino é uma manifestação ontofânica da

verdade. Isto porque verdade não é, dá-se, ou seja, manifesta-se. Ao irromper em seu caráter

manifestativo, verdade aponta para o acontecer imediado e imediato do sentido, ou seja, assim

como não há sentido específico que presida toda e qualquer manifestação, caso contrário não

seria sentido, mas significado, também não há verdade prévia. Quando se entende sentido e

verdade como algo previamente estabelecido, presumido, está-se pensando em significado e

verossimilhança como condição de possibilidade de representar (significado) o verdadeiro

(verossímil). Como manifestação, porém, verdade é a clareira de sentido que se abre

possibilitando o habitar humano; neste o homem acontece como tal.

Pensamos verdade como manifestação ontofânica, de certo modo redundante, visto que

phaino já nos dá uma ideia de manifestar, aparecer e surgir e on diz o sendo, particípio presente

do verbo grego einái, no sentido de o que está patente e latente, que em português se diz ser.

Quando verdade surge, manifesta-se seu movimento instaurador, é um acontecer inaugural

poético-apropriante que possibilita ao homem apropriar-se do que lhe é próprio, isto é, do seu

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destino. O homem se move sempre na “estrada pedregosa” da verdade, no seu destino, essa

experienciação de travessia constitui o seu ser-no-mundo.

3.4.1 – Verdade e manifestação

Um curiosíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade recebeu a denominação de

Verdade. O texto é quase uma narrativa que supostamente se diria lançar-se a temas filosóficos,

entretanto, mais uma vez é a poética que nos conduz a pensar. Diz o poema:

Verdade

A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela.

E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

(ANDRADE: 2007, 1240)

O poema não define, não conceitua nem caracteriza a verdade, mas a situa como uma

espécie de “casa” cuja porta “estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez”.

Aqui se coloca a questão principal da verdade: sua porta estava aberta, mas não permitia uma

manifestação total. A referência a meia pessoa assinala que a verdade é tanto o que se manifesta

quanto o que se retrai. Desse modo “não era possível atingir toda a verdade,/ porque a meia

pessoa que entrava/ só trazia o perfil de meia verdade”. Continua dizendo: “E sua segunda

metade/ voltava igualmente com meio perfil./ E os meios perfis não coincidiam.”.

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O que ora se expõe é um incômodo causado nas pessoas pela verdade, e essa é uma

sensação comum. A verdade incomoda justamente pelo seu caráter dissimulado, encoberto, que

incita o seu des-(en)cobrimento. O prefixo des-, que aparece na palava dissimulado, tanto nega

quanto acentura o que o radical diz, é o mesmo que está na dobra de des-velar: dis-simular é tanto

encobrir como manifestar, ao mesmo tempo. Entretanto, esse desencobrimento era impossível e

não se rendia mesmo diante da tentativa de se “juntar metades”. Isso aponta para a questão de que

a verdade não é um costurado de metades o que falta no que se manifesta não vai ser encontrado

em outra parte. Cada manifestação possui seu ocultamento originário, sua não-verdade.

Os perfis não coincidem, não se completam ou complementam perfeitamente, pois cada um

é uma faceta da verdade que se manifesta de uma mesma fonte. A verdade é uma, mas se diz de

muitas maneiras. A contradição lógica aparente não é um defeito de “formação” da verdade, mas

expõe sua tensão original entre o que se manifesta e o que se vela, o que geralmente não se

compreende por grande parte das pessoas e áreas do conhecimento, estas, como disciplinas,

(episteme) se prenderam sempre à verdade lógia.. O que se procura é uma postulado sistemático,

fundamentado em observações empíricas e/ou premissas racionais, condensado em leis e

categorias gerais que permitam a ordenação, definição e/ou a classificação minuciosa do real. A

validade da verdade se conforma ao seu atributo.

Na segunda estrofe, sutilmente o verbo “atingir” se impõe como núcleo de força do sentido

que se constrói, no sentido volitivo e incoativo de chegar até um ponto, objeto, pessoa, alcançar

uma meta ou tocar um fundamento. Busca-se atingir a precisão e a exatidão de um enunciado que

descreva com fidelidade as coisas e se possa dizer correspondente ao real. Essa ação corresponde

ao sentido de veritas, em latim, e que tem como extensão do radical ver- as palavras averiguar e

verificar, no sentido de empenhar-se em cuidadoso exame, apurar, investigar, inquirir e indagar.

Isto difere da essência do questionar, pois a averiguação está em busca de uma resposta

operacionalizada pelo intelecto. Essa res-posta possui vários modos de colocar-se. Primeiramente

se impõe como um “veredicto”, que é o pronunciamento de um julgamento verdadeiro, um juízo

veraz, daí verossímil e verossimilhante, significando correspondendo ou adequando-se

inexoravelmente ao real, asseverarando a conformidade absoluta com um certo padrão, norma ou

dogma e ainda a correção de um olhar que se adéqua à coisa.

Toda essa discussão nos leva a perguntar por que a abordagem da verdade num poema,

sobretudo no século XX? Justamente porque a filosofia que, de certo modo se julga a protetora do

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pensamento, na contemporaneidade se apresenta como analítica se dedica prioritariamente aos

estudos da linguagem e da lógica e situou a verdade como um fato ou acontecimento linguístico e

lógico, ou seja, um fato da língua. A filosofia analítica tem como principais destaques os estudos

de Ludwig Wittgenstein e do Círculo de Viena e sua pretensão, colocando de modo bem simples,

era a de produzir enunciados em conformidade e correspondência com a coisa, como herança da

filosofia kantiana. Por isso é que o poema chama a atenção para o fato de os meios perfis não

coincidirem. A ideia que subjaz na tentativa de encontrar a complementaridade entre os perfis

expõe dois princípios filosóficos relacionados à verdade, os juízos analíticos e sintéticos.

3.4.2 – Verdade e manipulação

O juízo analítico ocorre quando o predicado de um enunciado corresponde a explicitação

do conteúdo do sujeito do enunciado, um exemplo muito simples seria dizer: - O quadrilátero é

uma figura de quatro lados. Isso corresponderia a uma análise ou explicitação do sujeito sintático

quadrilátero; este contém em si a essência do predicado.

O juízo será sintético se houver uma relação em que o predicado forneça novas informações

sobre o sujeito, o que se expõe quando se estabelece a relação causal entre sujeito e predicado,

por exemplo, o petróleo é a causa de conflitos nacionais e internacionais. Conflitos não estão

analiticamente contidos no sujeito petróleo, como estaria o predicado se disséssemos o petróleo é

um óleo natural. O juízo sintético trabalha com o nexo causal entre sujeito e predicado.

Segundo esses princípios, linguisticamente entendida, a verdade seria explicitação da

caracterização (análise) ou causalidade (síntese) por um predicado de dado sujeito. No poema

essa adequação não ocorre, então a averiguação se lança a uma outra esfera, busca-se não mais a

manifestação da verdade, mas a sua estruturação, o encadeamento rigoroso das ideias, dos

conceitos ou significações, em outras palavras, sua coerência lógica interna ao intelecto ou

consciência. Por isso é que diz: “Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta./Chegaram ao lugar

luminoso/onde a verdade esplendia seus fogos.”.

Primeiramente eles arrebentam a porta, depois a derrubam. Porta é a guarda do limiar, ela

barra a passagem para o interior de um ambiente, o que abre e fecha, a possibilidade e a

impossibilidade de se fazer uma passagem, adentrar em lugar ou sair dele. Ela é a possibilidade

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de toda a tensão que se manifesta entre dois ambientes, dentro e fora, o manifesto e o oculto. A

porta é o que faz eclodir o limite e faz vigorar o entre como o que se coloca inter-dimensões.

Arrebentar e derrubar a porta equivale a fazer o mesmo com o limite, com o entre e

consecutivamente com as dimensões da realidade. Arrebentar e derrubar a porta é julgar-se capaz

de apoderar-se e dominar todo o vigor de manifestação da verdade e controlar seu modo de

eclosão. É a tentativa de liberar e manifestar totalmente tudo o que se oculta e seu ambiente de

velamento, eliminando a não-verdade de toda a verdade.

O controle e manipulação da verdade é o centro de toda a ação de arrebentar e derrubar. A

questão do modo como a verdade se manifesta é tão importante quanto pensar a essência da

verdade. A filosofia analítica preconiza que a linguagem deve produzir enunciados em

conformidade, adequação ou correspondência com a própria realidade. Aí já se prevê nitidamente

a separação entre enunciado e realidade e a tentativa de juntá-los por meio da estruturação lógica

e dos critérios de verossimilhança. A verdade deve ser verossímil. Ela não tem apenas que ser

verdadeira, mas parecer tal e qual. A ligação entre proposição e realidade deve adensar nexo e

harmonia entre fatos, ideias e etc e seu respectivo significado:

Verdade: que quer isto dizer? É verdadeiro aquilo que tem validade, vale aquilo que

concorda com os fatos... A verdade é, portanto, conformidade com as coisas.

Certamente, não são apenas as verdades particulares que se devem conformar com as

coisas particulares, mas a própria essência da verdade. Quando a verdade é

conformidade, dirige-se para..., isto, sem duvida, deve em primeiro lugar, valer para a

determinação da verdade: ela deve conformar-se com a essência das coisas (coisalidade)

(HEIDEGGER: 1992, p. 42.).

A verdade anunciada discursivamente será tanto mais autêntica quanto estiver em

conformidade com o que de alguma maneira se entende ser a coisa, ou seja, com o seu

significado, para tanto, o que vale é a regra dos juízos analíticos e sintéticos. Desse modo é

recolocado o conceito tradicional de verdade: Veritas est adaequatio rei et intellectus. A verdade

é a adequação da coisa com o conhecimento ou do conhecimento com a coisa. Heidegger diz

sobre isto: “O verdadeiro, seja uma coisa verdadeira ou uma proposição verdadeira, é aquilo que

está de acordo, que concorda”. (HEIDEGGER: 1973b, p. 331). Essa é a questão buscada, a

concordância, que pode ser colocada de duas maneiras: “a concordância entre uma coisa e o que

dela previamente se presume” (Idem: p. 331), como preconiza o juízo sintético, e “a

conformidade entre ao que é significado pela enunciação e a coisa” (Idem: p. 331), em

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consonância com o juízo analítico. Ou se busca a predicação causal ou a predicação atributiva da

coisa.

De modo bem simplificado, a conformidade entre verdade e coisa se dá por meio da

proposição predicativa atributiva ou causal, em outras palavras, por adequação não entre uma

coisa e outra, mas entre a coisa e sua enunciação. Os critérios de juízo estabelecidos passam pela

compreensão de verdade que, inevitavelmente, formam um paradigma. Isto é, a medida exata ou

padrão pelo qual a proposição será considerada autêntica, de acordo com a compreensão e os

critérios de verdade que a valide12

.

Qual não é a surpresa, ao se chegar ao “lugar luminoso/ onde a verdade esplendia seus

fogos” o que se vê lá, em sua origem, a verdade “era dividida em metades/ diferentes uma da

outra.”. Aqui se têm outras duas questões fundamentais. Primeiro, chega-se onde “mora” a

verdade, este não é indicado, apenas se entende ser a morada da verdade. Onde ela mora? Em

todo o lugar e em lugar nenhum. A verdade não fixa residência, mas medra em todos os lugares,

em todas as situações, falas e discursos. E em todas as manifestações da verdade ela é dividida

em metades. O que se procurava no arrebentar e derrubar a porta e chegar ao lugar luminoso? O

fundamento da verdade. A premissa filosófica expressa no célebre dito de Leibniz que “nada é

sem razão (fundamento)” (HEIDEGGER: 1973c, p. 297).

Seguindo o pensamento de Leibniz, a verdade seria descobrir o fundamento de modo que se

tornasse evidente a conexão proposicional entre sujeito e predicado. Os conceitos de verdade que

derivam dessa assertiva seriam: primeiro, a consequência ou resultado de uma metodologia e

segundo, a certeza como retitude e exatidão da proposição.

Quando se identifica o fundamento como verdade da enunciação, pensa-se em

complementariedade, o que elimina a tensão da verdade como o desvelamento daquilo que a

partir de si mesmo se mostra velado (metades diferentes) e busca-se a conexão entre a proposição

e a coisa, no poema, entre as metades:

O principium rationis subsiste porque sem sua subsistência haveria entes que deveriam

ser sem fundamento (sem razão). Isto quer dizer para Leibniz: haveria algo verdadeiro

que se oporia a uma redução a identidades, haveria verdades que deveriam infringir a

“natureza” da verdade. Já que isto é impossível e a verdade subsiste, por isso também o

principium rationis tem subsistência, porque se origina da essência da verdade. A

12

Abaixo discutiremos alguns dos critérios de formulação paradigmática da verdade: a incompreensão e

as compreensões ideológica, conceitual e convencional.

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essência da verdade, porem, reside na connexio (symploké) de sujeito e predicado.

Leibniz concebe, por conseguinte, a verdade da enunciação (proposição). Determina o

nexus como “inesse” do P no S, o “inesse”, porem, como “idem esse”. Identidade como

essência da verdade proposicional não designa aqui certamente mesmidade vazia de algo

consigo mesmo, mas unidade, no sentido da harmonia (união) do que faz parte de uma

comum-unidade. Verdade significa, por conseguinte, acordo que somente é tal enquanto

con-cordância com aquilo que na identidade se manifesta como unido. As “verdades” –

enunciações verdadeiras – recebem sua natureza por referencia a algo em razão do qual

podem ser acordos. Em cada verdade a união que separa é o que é, sempre em razão de

..., isto é, como algo que se “fundamenta”. Na verdade reside, por conseguinte, uma

referência essencial a algo semelhante como “fundamento”. Isto leva o problema da

verdade necessariamente para a “proximidade” do problema do fundamento. Por isso,

quanto mais originariamente nos apoderarmos da essência da verdade tanto mais urgente

se tornará o problema do fundamento.” (HEIDEGGER:1973c, p. 298)

O fundamento da verdade é aquilo que a valida enquanto tal, diz respeito tanto a sua forma,

ou seja, estruturação lógica (coesão e coerência, principalmente entre sujeito e predicado) quanto

ao seu conteúdo (significado). A forma e o conteúdo da verdade deve ser algo racional de modo

que se verifique sua autenticidade.

3.4.3 – Verdade e o Belo

Como a expectativa de racionalizar a verdade e desentranhá-la objetivamente de modo que

se pudesse juntar uniformemente suas metades foi frustrada, passou-se a uma outra postura:

“Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.”. O que não foi possível estabelecer no plano

racional, desceu à dimensão estética (aisthésis). A discussão agora lança-se ao âmbito do Belo. O

verso “Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.” coloca em questão a identificação da

manifestação da verdade com o Belo. O juízo (discussão) agora se lança à percepção e à sensação

que a aparição da verdade causa e sua respectiva apreensão pelos sentidos. A “metade” que fosse

considerada mais bela seria identificada com a verdade e a perfeição. Mas outra questão tem

primazia sobre estas e se pode dizer que é a mola propulsora de infindas discussões: o que é o

Belo?

Não queremos aqui conceituar o Belo ou historiografar a trajetória dos conceitos surgidos

ao longo das eras, apenas pensar aquilo que se manifesta nas entrelinhas em tensão com as linhas

do poema, visto que este não é um trabalho de conceituações filosóficas, mas de diálogo poético.

Sem dúvida o verso coloca a questão do Belo quando anuncia a discussão com respeito à “metade

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mais bela” como critério de “escolha” da verdade primaz. Ligada ao sentido de todo o poema, a

noção de Belo mais próxima da questão em voga é a que foi colocada na Antiguidade Clássica e

cujos princípios, de certo modo, vigoram até hoje, que são proporção, simetria e ordem, ligados à

teoria aristotélica de mimesis, ou imitação da natureza. Entretanto, essas colocações não fogem à

subjetividade instaurada pela razão, pois a noção do Belo, ao longo de tanta discussão, por fim,

radicou-se como uma decisão do sujeito que contempla. Isso é tão tangencial no poema que o

verso seguinte expressa o veredicto da discussão: “Nenhuma das duas era totalmente bela”. O que

é ser “totalmente bela”? O totalmente aqui é uma grande problematização e nos lança novamente

no início da discussão dos juízos racionais atributivo e causal. Qual seria o fundamento dessa

decisão? Quais os critérios utilizados para chegar a conclusão de que nenhuma metade era

“totalmente bela”? O que se define por “totalmente”? São questões que o poema não responde, e

não deveria mesmo, porque são questões.

Totalmente tanto pode se referir aos princípios de beleza estabelecidos para julgar como

àquilo que não tem falta de nada, que abrange uma totalidade, é inteiro, completo, como uma

espécie de reunião que formaria um todo dando a noção de totalidade. Para metade ser totalmente

bela ou bela totalmente teria que deixar de ser metade e ligar-se adequadamente à outra

preenchendo os critérios estabelecidos, formando o todo. Mas isso era impossível! A

complementaridade é uma idealidade, não a realidade da verdade. É impossível eliminar a

diferença, pois ela constitui a identidade das metades, é o seu traço constitutivo, o seu próprio. A

uniformização seria uma junção que anularia instantaneamente as diferenças e consecutivamente

a identidade das metades. A soma das metades não as conservaria como elas mesmas no todo; o

que nos revela que o todo não é simplesmente a soma das metades. Não há uma verdade absoluta,

total ou totalitária. A totalização seria o principal atributo e possibilidade inexorável de calcular,

medir e avaliar a verdade caso esta fosse uma totalidade. Mas não é, tanto que o verso seguinte

revela mais uma frustração metodológica: “E carecia optar”. A metodologia utilizada mais uma

vez fracassara, os juízos racional e estéticos agora davam lugar à opção: “E carecia optar”. A

opção está intimamente ligada à opinião. Cada um faz sua opção fundamentado na sua opinião. A

questão do fundamento é insistente e, mais uma vez tenta encontrar o seu lugar para decidir a

“sorte” da verdade.

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3.4.4 – Verdade e ontologia

A opinião é, sobretudo, uma maneira de pensar, ver e julgar pessoal, a partir do ponto de

vista particular do sujeito. O fundamento lógico da razão e o sensorial da estética dão lugar ao

julgamento inteiramente peculiar do indivíduo. Do grego doxa, a opinião é a expressão das

convicções de um individuo por meio de suas operações mentais relacionando pensamentos e

sentimentos na consolidação de seu ponto de vista. Gostos, conceitos, compreensões e

incompreensões, desejos, interesses pessoais etc constituem o princípio estruturador da opinião.

Ao ser externada, esta geralmente se transforma em instrumento de persuasão, tendo como

finalidade impor-se sobre as demais. Quando tal acontece, e a opinião é aceita pela maioria,

forma-se a crença ou o senso comum. Caso a opinião esteja munida de algum conhecimento

científico, ela pode até mesmo se transformar numa linha especulativa, estudo dirigido, corrente

crítica ou teoria.

A grande questão do poema não é uma abordagem científica ou filosófica da verdade, até

porque alocar a questão da verdade nesses âmbitos seria de algum modo subordiná-la a eles. A

questão da verdade no poema é também uma questão ontopoética, pois manifesta poeticamente o

que é de propriedade do homem, onde ele habita. Para pensar a verdade poética é preciso trilhar

os caminhos da verdade fora da lógica, expoente da evidência, através da intuição, dedução ou

indução, sólidas metodologias lógico-racionais pelas quais se exprime o juízo, mediante a

conformidade entre a ideia e/ou proposição e coisas e/ou fatos.

Razão, estética e opinião foram metodologias usadas para tentar decidir a verdade da arte

durante todos os séculos, suas vozes acabavam por silenciar a voz da poiesis e impor a noção de

verdade como significado. Desse modo a palavra verdade ficou viciada ao longo das eras, por

isso é mais proveitoso pensar a verdade na poética em seu sentido mais originário, como aletheia,

ou seja, o desvelar que ama velar-se ou a manifestação que tende ao ocultamento. Assim se

conserva a diferença das metades e respectivamente suas identidades. A verdade é um

desvelamento do ser, daí é chamada por Heidegger de ôntica, isso quer dizer que ela não se

esgota no que desvela, não é um ente.

Desvelamento do ser é, porém, sempre verdade do ser do ente, seja este

efetivamente real ou não. E vice-versa, no desvelamento do ente já sempre reside

um desvelamento de seu ser. Verdade ôntica e verdade ontológica sempre se refe-

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rem, de maneira diferente, ao ente em seu ser e ao ser do ente. Elas fazem

essencialmente parte uma da outra em razão de sua relação com a diferença de ser e

ente (diferença ontológica). A essência ôntico-ontológica da verdade em geral,

desta maneira necessariamente bifurcada, somente é possível junto com a irrupção

desta diferença. (HEIDEGGER: 1973b, p. 300)

A diferença é o rasgo tensional que re-vela duas dimensões da realidade: uma que se

manifesta e outra que se oculta, em outras palavras, o velamento e o desvelamento. A diferença

ontológica aponta para o fato de que o ser não é um ente, portanto não pode ser pensado do

mesmo modo como pensamos um ente. É por isso que o poema termina dizendo: “Cada um optou

conforme/ seu capricho, sua ilusão, sua miopia.”. Quando se pensa a verdade como um ente

procura-se nela a um fundamento estereotipado.

A verdade é uma manifestação do ser e, ao mesmo tempo, onde ele habita. Esse onde não é

simplesmente um espaço físico, sem deixar, entretanto, de também o sê-lo, mas o espaço que se

abre no habitar existencialmente mundo, que o homem faz durante sua vigência humana entre os

demais seres e coisas. A verdade pensada de modo ontopoético é o apelo de uma abertura para o

acontecer enquanto doação da realidade. A vida, assim entendida, é um movimento da physis que

se dá como logos: recolhimento e acolhimento do sentido catactobrotante13

.

A relação entre verdade e ontologia nos aponta para o modo do homem habitar a verdade,

pois ela não é propriamente humana, mas a possibilidade do agir humano em que ele habita e faz

seu ethos. Assim não há metodologia que dê conta dela, o único caminho (método) para a ela é

abrir-se para o seu manifestar e deixar com que ela nos envolva e fale conosco. É na ausculta que

o homem recebe a verdade e, então pode falar, a saber: correspondendo à fala auscultada. Caso

contrário, a fala será apenas o efeito de capricho, miopia e ilusão.

3. 5 - A compreensão da verdade

Os poetas dizem sempre o mesmo, mesmo que não digam as mesmas coisas. É assim que

num poema em prosa Drummond registra a poesia de um caminheiro cercado pela poiesis da

compreensão. Diz assim o texto:

13

Aqui pensamos neologicamente a palavra catactobrotante unindo dois elementos aparentemente antagônicos, um,

catacto–, que tem sentido de movimento para baixo, enraizado e brotante, que sugere movimento de rompimento da

semente e consequente eclosão ou surgimento, para expressar a ambiguidade essencial do que os gregos chamaram

physis, no sentido de desvelar autovelante.

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Operário no mar

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no

discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas,

nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais

escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e

segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás.

Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e

os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e

trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve,

na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e

apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário?

Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que

não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me

despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me

obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar

lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse

privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e

não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se

acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre?

Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou,

e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A

palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto

será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas,

eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu

sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as

formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o

rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o

compreenderei?

(ANDRADE: 2007, p. 71-2)

A compreensão é uma das questões mais profundas, tange a tragetória humana e se expõe

poeticamente nesse e noutros textos como um estar lançado rumo à manifestação da verdade.

Tanto o narrado como a forma narrada adquirem um sentido norteador da leitura. O texto inicia

posicionando o operário de um lado e o observador de outro, poder-se-ia presumir uma divisão

hierárquica ou autoritária firmada nas denominações, na qual uma é anônima, a do observador e a

outra é designada operário, sugerindo a posição privilegiada do primeiro, mas não se trata disso.

Independende da intencionalidade do narrado, o que ele nos assinala como questão?

O operário é um caminheiro que segue “firme” pela rua. Vale também salientar que a

palavra operário tem sua oriem no latim como opus, que no português dá obra e èris indicando o

sentido de exercer um ofício, daí trabalhar. Operário é o que se ocupa da obra, fazendo disso um

ofício, não apenas como uma ocupação funcional, mas como uma espécie de vocação

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(vocatìo,ónis), aquilo que pelo qual é convocado e a cujo apelo se rende e responde. O narrador

ironicamente chama a atenção para o fato de que ele “Não tem blusa.” e prossegue justificando o

fato notado dizendo que “No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na

blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes.”. O

operário é sempre reconhecido e identificado pelos seus atributos, mas “Esse é um homem

comum”.

Comum é o que pertence à boa parte das pessoas, dando uma noção de conjunto, o que

concilia elementos, pessoas ou coisas mediante acordo, compromisso ou características. Aponta

para o que é, de certo modo, corriqueiro ou habitual, estando na ordem usual das coisas. O

operário se identifica com todos os demais homens e não apenas a um grupo específico.

Entretanto ele tem “uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos.”. O

corpo do operário é a morada do mistério, ele é uma figura emblemática envolta no enigma da

realidade que atrai a atenção e convoca à compreensão. O narrador prossegue questionando “Para

onde vai ele, pisando assim tão firme?”.

Os passos firmes do operário provoca o questionamento, principalmente porque o narrador

afirma que ele não tem tempo de perceber as mensagens que são trocadas, não ouve o discurso do

líder oposicionista, que ele sabe que não é irmão do observador e que nunca se entenderão, não

obstante caminha resoluto, rumo ao mar. Esse caminhar marca uma oposição fundamental entre o

operário caminheiro e o observador.

3.5.1 - Compreensão: tensão entre sólito e insólito

Operário e observador se tensionam entre mar e terra. Um está sobre as águas insólitas, o

outro sobre a terra firme, sólida, ambos no mesmo nível. O que essa oposição entre insólito e

sólito nos acena?

O sólito acena para a realidade ordinária da vida, para o costumeiro, habitual, usual, para os

lugares comuns, para o curso definido da existência em que os conceitos já formaram a opinião e

a cultura, firmando e fundamentando uma identidade. Tal identidade consolida o senso da

comunidade definindo seus critérios de valor e juízo, modelando seus sentimentos, influenciando

definitivamente seu entendimento e percepção da vida e orienta o sentido de sua existência no

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mundo. Torna-se importante salientar que: “A palavra “mundo” perde aqui seu sentido

metafísico.” (HEIDEGGER: 2004, p. 18).

Das várias concepções de mundo, o que aqui se refere “Não denomina mais a representação

secularizada do universo da natureza e da história, nem a representação teológica da criação

(mundus) e nem a mera totalidade do existente (kósmos).” (HEIDEGGER: 2004, p. 18), mas o

espaço aberto da compreensão, seja ela qual for, manifestando sentidos ou significados. A terra

firme ou o sólito compacta ou consolida uma visão de mundo estruturada em forma de conceito,

por meio do qual se vai intervir no mundo e reagir a todo estímulo gerando a noção do que é

habitual, frequente e comum, em outras palavras, ordinário, isto é, de ordem.

O ordinário tende para o geral como adequação ao costume, reproduzindo os preceitos e

normas estabelecidos, daí o atributo de normal ou normativo, estabelecendo a moral como fio

condutor ajuizante do que é correto e verdadeiro. O observador se posiciona sobre esse

fundamento representacional da cultura sistematizada, este é a verdade como conceito.

O insólito se distancia de tudo aquilo que está em terra firme e surge como algo estranho,

indefinido, que foge ao comum e à normalidade. Ele é curso indefinido que renega toda

identificação identitária, é um abandonar-se ao ser, ao que se é, livre de atributos. O insólito é a

instabilidade de todos os critérios de valor e juízo, é o sentimento novo, informe, a dinâmica da

vida.

O insólito acontece quando o sólito se retrai. Mas o que isso quer dizer? A retração do

sólito é a renúncia de algo que se retira como ordinário para dar lugar à manifestação do

extraordinário. Como retração, o insólito não abandona o sólito; apesar de continuamente

solitário, informe e inabitual, por ser o desconhecido mais próximo ao que somos, ele está

presente em tudo como elemento perturbador e provocador de toda e qualquer mudança. A

possibilidade e a disponibilidade como necessidade e dependência do novo, inerente a tudo que

se diz pronto, está na instabilidade própria das coisas. Então tudo é, de algum modo, instável pelo

fato do novo não ser uma escolha ou decisão nossa, mas a própria condição da existência

humana. Existimos porque nos tornamos novos a cada instante, essa é a tensão originária do ser

humano entre o que muda e o que permanece.

A estabilidade nunca é absoluta. Nada está isento de mudança. Essa mudança é uma doação

do insólito. Nesse movimento o homem habita, a saber, na espera do inesperado. O insólito é o

real como destino, ou antes, como um destinar-se. Por isso não há pronto, acabado, o que se é

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previamente fixado em face dos acontecimentos, mas o que há é o sendo. O sendo se move e

vigora na tensão entre sólito e insólito.

O sendo é a questão de todas as questões. A poética não manifesta o insólito como uma

nova teoria ou instrumento discursivo. O insólito não é uma ideologia entre outras. Insólito não é

um saber que se tem, mas que se é.

O que está em jogo é onde o mar começa e a terra termina e vice-versa, isto é, o limite entre

sólito e insólito. O que vigora nesse entre é o espaço do que poderíamos chamar ensino-

aprendizagem. Mas o que é ensino e aprendizagem? Como se ensina e como se aprende? As

respostas a essas perguntas variam de acordo com o viés ideológico adotado. Durante séculos

essa relação, ensino-aprendizagem, se desenvolveu nos moldes metafísicos de ensino que

pressupunha um sujeito e um objeto, na contemporaneidade a discussão se lançou sobre as bases

da epistemologia empirista, entretando o fundamento é o mesmo. Todos os pensadores e

filósofos, de um modo ou de outro, tangenciam essa questão.

Resumidamente a questão se define como a conceituação necessária da relação que se

estabelece entre quem ensina, o que se ensina, como se ensina, quem aprende e como se aprende.

Daí todas as teorias sobre metodologias de ensino e aprendizagem e da Educação. Mas será que é

disso que trata o texto quando nos fala da “esperança de compreensão”. O que se espera

compreender? A própria compreensão como questão! O poema Operário no mar, fugindo à

forma tradicional, se apresenta como uma parábola poética da compreensão.

3.5.2 - Compreensão: discurso e parábola

Parábola não é um discurso próprio ou a priori para se estabelecer um ensino

sistematizado, no máximo ela serve como um recurso alegórico quando se tem o objetivo de

promover uma analogia ou exemplificar uma situação ou argumento. Retoricamente não passa de

um instrumento discursivo. Pode-se conceituar como uma narrativa inverossímil que serve de

analogia a um fato verossímil.

No discurso, porém, o caminhar do operário é uma parábola da aprendizagem. Do grego

para-balléin, nos remete à ação de lançar por entre. A parábola do operário nos lança entre o

limite do sólito e do insólito. Como aprendizagem ela é a abertura dialogal entre o que se vela

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insólitamente e se desvela solidamente no sendo humano e vice-versa. A abertura dialogal é a

tensão que rege o que se confronta, a saber, o ser e o não-ser, ou, em outras palavras, o-que-se-é

com o que ainda-não-se-é no sendo.

Por que considerar o texto uma parábola? Drummond cria uma parábola a partir da

experienciação cotidiana. Na verdade, nesse caso a palavra criar não é a mais apropriada, pois a

parábola não é uma alegoria da vida como se diz, ela é intrínseca à própria vida. Tecnicamente

falando, ela é vazia de informação, mas plena de sabedoria. A parábola como discurso parte do

que já se tem rumo ao que ainda não se tem, isso nomeia a pro-cura, ou seja, colocar-se em busca

da cura. Na parábola, o aprender e o ensinar são dis-cursos que se tensionam com o caminho.

O discurso não é simplesmente o produto da manipulação hábil da linguagem como uma

formulação conceitual num encadeamento lógico e ordenado fazendo a coerência entre tema e

linguagem. Discurso pode ser entendido como um exposto metódico, resultante de uma operação

mental, nesse sentido, é um produto cultural de uso da linguagem verbal oral ou escrita, portador

de conteúdo semiótico interior a práticas sociais contextualizadas. Desse modo, o discurso exerce

um papel hegemônico determinando a produção, reprodução e transformação das representações

simbólicas e das relações identitárias que delineiam culturalmente uma sociedade; assim, ao

discurso imbrica-se à afirmação da subjetividade. Entretanto, no sentido originário, dis-curso é

formado por dis-, dois, e currere, curso, também nomeando o fluir que funda suas margens sem,

entretanto, se limitar a elas, o dis-curso é uma travessia que margeia o curso, mas não o limita. O

dis- como margens do curso, é fundado enquanto doação do fluir e manifestar do cursar na tensão

entre o limite das margens e o ilimitado do curso. Assim como o fluir funda as margens, o

transcorrer do curso funda os discursos. As margens como discursos são recuos para o curso ser.

O discurso é obra do curso e não o contrário, é a apropriação do que se aprende e o modo

de articular a compreensibilidade, não se lança subjetivamente ao que discorre como se este fosse

um objeto. Discurso e o que discorre são o mesmo. No discurso a ausculta vigora como

compreensão. Ele nos surpreende na ocorrência de seu aparecer no estranho retraimento do curso

numa ausência doadora. A ausência doadora do curso põe em cena os discursos. Curso diz o

mesmo que caminho, verdadade e vida. É na parábola da compreensão da vida que nos

encontramos com os dis-cursos. Eles são vias de acesso como um modo do curso se apropriar de

nós. Somos propriedades do curso e nele nos apropriamos do que nos é próprio, a saber, somos

cursos no curso da vida. Do modo originário como pensaram os gregos: bios da zoé.

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O curso da vida é o que chamamos de realidade, nele estamos imersos. O real não é

simplesmente o que acontece como manifestação, mas o que acontece como ocultação. A tensão

entre o que se manifesta e o que se oculta é a dinâmica própria da realidade. No dis-curso o curso

se pro-põe como questão. A questão é um empenho na busca do que não temos, mas nos envolve

de tal modo que o pertencemos. No e pelo empenho se ensina muitas coisas por parábolas, mas é

impossível falar em ensinar sem o aprender, por isso é que a parábola é uma fala do entre como

um dizer sábio. Desse modo se coloca a questão do diálogo, nessa esteira ocorrem dois

movimentos que surgem do diálogo: o autodiálogo e o heterodiálogo. Os nomes já falam por si

sós, entretanto, é preciso ampliar tendo em vista o que ocorre entre a poética e o leitor. Ao

homem, só é possivel falar-com do modo originário e inalgural se antes fizer sua auto escuta; o

diá é o logos como fala e ausculta ao mesmo tempo. Essa interioridade do diálogo é mais que

uma incursão na subjetividade, mas a ausculta do que se é, do ser. Somente após uma intensa

auto-ausculta e penetrar a essência do sagrado sua fala pode se alinhar ao extraordiário.

3.5.3 - Compreensão: ausculta do silêncio

O verbo inicial da frase que diz que o operário “Não ouve...” tem como correspondente a

palavra grega akouvete, que, apesar de geralmente ser traduzida por ouvi, se refere com mais

propriedade a auscultar, no sentido de dar ouvidos ou estar atento a um ensino escutando-o

“internamente”, isto é, no seu interior. Fala de fazer o caminho da interioridade a partir do que se

ouve como uma profunda escuta. E, em seguida não fala de ensinar, mas de saber e entender:

“Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca.”. O processo de

saber e entender é comparado a um engravidar no qual algo está preparado internamente para

receber um estímulo genesíaco, em outras palavras, é um estar aberto internamente para a

ausculta. Essa ausculta é um diálogo no qual a realidade engendra a si própria. Compreender é

engravidar da verdade originária.

Existe um grave perigo em não compreender a parábola, como aquilo que se lança diante de

nós todos os dias. Quando se compreende se engravida da semente, da sabedoria. O que está em

jogo é a compreensão da realidade, por isso, toda parábola é uma parabola da compreensão.

Manuel Antonio de Castro, no dicionário de poética, assinala que:

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A compreensão do que é compreensão passa pela intuição e pela inteligência, porque ela para acontecer

exige um mergulho no que se prende, capta, a partir do que se dá para poder ser prendido (com-preendido) e

captado, conceituado. O com-preender só acontece porque estamos nos movendo no intus-ir (intuir) e no

intus-legere, no in-teligir. Esse intus é o dentro que se doa no entre. Pois o intus se forma do "in", de onde se

forma o entre. Compreender é, pois, o prender que acontece na dinâmica do entre, ou seja, daquilo que

denominamos intuição (noésis, em grego). Mas esta está ligada à inteligência, porque ela diz o que no e a

partir do entre se dá como sentido poético no lógos. Podemos fazer esta ligação a partir do fragmento III de

Parmênides: "O mesmo é pensar e ser" (PARMÊNIDES. Os pensadores originários. Trad. Sérgio

Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 45.). É nesse horizonte que se funda a inter-subjetividade,

exercício e horizonte da compreensão. A compreensão é o exercício dialético intuitivo, inter-subjetivo e

inteligente. Mas na inter-subjetividade enquanto diálogo, quem fala nunca é o sujeito, mas o lógos. O lógos

fala, não o homem. Ao homem convém escutar e corresponder. (http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/

acessado em 16 de junho de 2010. verbete compreensão. Referência: (1) PARMÊNIDES. Os pensadores

originários. Trad. Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 45.).

Pensar a poética como parábola da vida serve perfeitamente à intenção de provocar a

compreensão a partir da intuição e por meio dela atingir a inteligência, isto é, a ação de manter

aberto o espaço entre dois, que é o que nos diz literalmetne o inter- , no interior de dois, entre, e,

do latim legère, que assinala, dentre outros, o sentido de recolher, ajuntar, reunir, dobrar,

percorrer e tocar de leve. Inteligente é o que se coloca no espaço aberto para ajuntar, reunir ou

recolher o sentido percorrendo as vias do que vige na dobradura do entre, tocando-o, ainda que

levemente. Mas o que é que vige na dobradura do entre? O logos que “atravessa as grandes

massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas,

atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão”.

A compreensao é um abrir-se. Compreender se expressa tautologicamente em abrir-se para

a abertura do aberto ou do que se abre. E o que está em jogo na compreensão? O sentido, isto é, a

verdade. É o que nos assinala o pensador Martin Heidegger: na sua obra Ser e tempo: "Tudo que

se abre para a compreensão é sustentado pelo sentido. O sentido é aquilo que pode ser articulado

na abertura da compreensão, sendo esta abertura hermenêutica" (HEIDEGGER: 2002a, p. 208.).

A questão de todo e qualquer compreender não é prender o real em conceitos, mas

questionar o ser tendo-o como horizonte próprio de todo e qualquer questionar como eclosão da

verdade. A compreensão não é uma explicação, nem esclarecimento tampouco entendimento

como uma categoria do intelecto subjetivo dotado de capacidade de objetivação para conhecer. A

compreensão se dá como vigência do pensar e como abertura de mundo: “... a compreensão

sempre diz respeito a toda a abertura da pre-sença como ser-no-mundo.” (HEIDEGGER: 2002a,

p. 202).

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Mundo não é o simplesmente dado, mas a vigência do real como manifestação e presença

de sentido. Heidegger nomeia significância um modo de ser do mundo: “Significância é a

perspectiva em função da qual o mundo se abre como tal.” (HEIDEGGER: 2002a, p. 198).

3.5.4 - Compreensão e significância

Significância não é o mesmo que significado, não trata de uma relação arbitrária de

significação entre o homem e as coisas, mas o modo como o mundo se presentifica e vem ao

encontro do homem. Ser-no-mundo é o ser lançado no aberto do mundo, imerso em sua ek-

sistência. De certo modo, todo ser é ser-no-mundo à medida em que habita o mundo e não pode

abandoná-lo, apesar de poder ignorá-lo. Ser-no-mundo é “abrir um caminho para se apreender o

ser originário da própria pre-sença.” (HEIDEGGER: 1993, p. 185). É disso essencialmente que

trata a poética, desse estar lançado, ek-sistindo, como pre-sença do ser no mundo em busca da

compreensão do serntido/verdade, “a pre-sença é a sua abertura” (HEIDEGGER: 1993, p. 187);

ser-no-mundo é ser-tão ou ser-tao, ser do caminho, no meio do caminho e como caminho,

condição da qual o homem não pode se esquivar ainda que não compreenda:

E glose: manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão

grande, é dificultoso. Vai viagens imensas. O senhor faça o que queira ou o que não

queira – o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do

sertão. O senhor não creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. Mas,

ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso (ROSA: 2001, p. 260).

Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e

de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no

seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde

estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está

cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos

(ANDRADE: 2007. p. 71-2).

É vão manter firme uma opinião, ou seja, uma compreensão ideológica ou conceitual, pois

o mundo é transviável. Riobaldo não fala de um mundo geográfico simplesmente, mas do mundo

como abertura de sentidos, como uma teia em que estes se entrelaçam como caminhos que se

entrecruzam entre vazios e figurações: transviável. Do entremeio não se pode fugir, para onde

quer que se dirija o homem sempre vai topar no caminho, “há-de estar sempre em cima do

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sertão” ou “caminhando no mar”. O mar e o sertão são correlatos. O sertão-mar não pode ser

cavalgado/navegado, o homem não pode dominá-lo, apenas entregar-se ao seu próprio, pois este

é o próprio do homem como lugar propício de abertura. A compreensão não é o domínio de algo,

muito menos do sentido, ela subsiste existencialmente como caminhar, sendo um modo de ser da

existência, é isto, o que proporciona a abertura originária do ser-no-mundo, que é estar lançado à

realidade cotidiana, a sua historicidade e às relações com os demais sendo.

Entretanto, esse estar lançado não garante a ek-sistência se não houver compreensão e, por

conseguinte, sentido. O circular da compreensão aqui não é um defeito, mas o deixar-em-aberto e

manter que possibilita que a questão seja sempre recolocada e refaça o caminho do pensamento

pelo qual veio à presença. O círculo da compreensão instaura a questão da interpretação como um

“elaborar as possibilidades projetadas na compreensão” (HEIDEGGER: 1993, p. 204); desse

modo, interpretar é morar ou habitar a questão, é por ela ser tomado e nela demorar. Ser é

interpretar-se, ou seja, montar guarda à espera da manifestação do sentido. Esse modo de ser diz a

compreensão.

A compreensão do sentido é sempre a compreensão do ser como ser-no-mundo, daí a

ligação intrínseca entre compreensão, ser e mundo: “Na compreensão de mundo, o ser-em

também é sempre compreendido. Compreensão da existência como tal é sempre compreensão de

mundo.” (HEIDEGGER: 1993, p. 202). Por isso compreensão é um modo de ser enquanto poder

ser. Todo o pensar é compreensão na medida em que se abre para o aberto do que se manifestou.

O que se manifesta? A verdade. Seria incoerente se o pensamento como abrir-se conceba a si

próprio se fechando conceitualmente.

O que há de tão importante nessa parábola que se torna crucial para a compreensão? O

sentido da vida como reunião de tudo o que se manifesta e o que se oculta. Reunir no grego se diz

logos. Na verdade logos é intraduzível, apenas se pode captar o ele que diz. O logos não

representa o ente, mas é o “deixar e fazer ver o ente a partir dele mesmo e por si mesmo”

(HEIDEGGER: 2002a, p. 208.). A poesia é sempre uma parábola do logos ou da compreensão do

logos; o “do” aqui não presume uma diferenciação e superposição da compreensão ao logos, pelo

contrário, apenas revela o logos como compreensão e vice-versa. O logos é o caminho de toda e

qualquer compreensão, é dimensão em que todo ser humano está inserido e da qual não pode

escapar, ainda que não compreenda. A compreensão é fugaz e sub-reptícia, quer dizer, sua

dimensão é insondável. Não se pode identificar uma compreensão, pois ela é sempre a eclosão de

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uma verdade que não se vê duas vezes e também não se permite compartilhar em sua essência. O

que se pode reter ou compartilhar é apenas o que se consegue reunir do que se manifestou como

fala, mas escapa sempre o vigor dessa manifestação que vige no que se retrai e não se pode

apreender, a saber, o silêncio. Por isso toda compreensão é também não-compreensão, como a luz

projetada num corpo que enquanto manifesta o que ilumina na retração da sombra, acolhe o

velamento no que não é possível clarear. É por isso que no texto a “esperança de compreensão”

se transforma na questão que vem à tona no trecho: “quem sabe se um dia compreenderei?” Aqui

vigora explicitamente a questão da compreensão e do que nela vige como não-compreensão.

3.6 - Verdade da compreensão

Em nosso cotidiano é comum a afirmação, a negação ou a dúvida da verdade de algo, nos

movemos pela noção do verdadeiro em oposição ao falso, assim fazemos da verdade, mesmo sem

querer ou perceber, uma questão nuclear em nosso estar-no-mundo. Em todas as épocas há

sempre vozes que se anunciam como portadoras da verdade ou como dela guardiãs. Na

contemporaneidade, a que se arroga ter esse domínio é a ciência. Cada um de seus ramos formula

suas “verdades”, assim como, correntemente, outros grupos e indivíduos também se fundam nas

suas convições, e estas são também suas “verdades” ou seus fundamentos. Cada um destes se

afirma como sujeito e considera tudo com o que lida um objeto, ainda que não o faça de modo

pejorativo ou depreciativo. É comum tratar-se entre uma equipe de professores e alunos

pesquisadores do “objeto do conhecimento” e traçar metodologias para conhecê-lo e apropriar-se

de sua essência e modo de ser.

Por outra lado, nós mesmos, quando nascemos já herdamos um corolário de crenças e

valores que muitas vezes reproduzimos como verdades. Compartilhamos de uma compreensão da

verdade e da realidade por vezes sem questionarmos, cujas origens são desconhecidas.

Quando se pergunta se algo é verdadeiro, já se partiu de uma compreensão de verdade

adquirida ou adotada. A diferença entre ambas é que a primeira geralmente é-nos imposta de

forma clara ou obscura, a segunda torna-se nossa eleita, por ter-nos conquistado de algum modo.

O fato é que possuimos e exercemos um juízo sobre a realidade considerando os fatos, pessoas,

discursos, pensamentos etc verdadeiros ou não, de modo que nosso discurso é altamente

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condicionado por esse juízo e tende a reforçá-lo argumentativamente. A verdade como tal se

conhece hoje e foi estabelecida desde o Helenismo, a qual se presume delinear o acontecer

histórico da humanidade e é, como já se disse, sinônimo de conformidade e adequação.

Entretanto, nem sempre foi assim, os primeiros pensadores gregos a pensavam como a-letheia,

ou seja, manifestação do que tende originária e essencialmente a ocultar-se. Seu olhar se dirigia

sobretudo para o modo como os entes surgiam do encobrimento (o nada), duravam na presença e

depois retornavam para encobrimento (o nada). Todo esse mover existencial se mostrava no

recolhimento do aparecer ou manifestar, ou seja, no logos, sobre isso diz Heidegger: “Dizer é

legein. (...) O lógos leva o fenômeno, isto é, aquilo que se põe à disposição, a aparecer por si

mesmo, a brilhar à luz de seu mostrar-se. Dizer é deixar o real disponível num conjunto que,

recolhido, acolhe.” (HEIDEGGER: 2002a, p.188.). Logos é o recolhimento do que a-letheia

manifesta e o respectivo deixar viger como um dispôr ou pôr à disposição; mas não recolhe tudo,

apenas o que se presentifica, por isso o logos também é ambíguo, pois vigora na tensão entre os

limites do manifesto e do não-manifesto.

A a-letheia é manifestação de quê? Do que os pensadores gregos originários chamaram de

physis para nomear a condição de possibilidade da manifestação de tudo o que é ou vem a ser.

Heidegger afirma: “Physis significa o vigor reinante, que brota, e o perdurar, regido e

impregnado por ele. Nesse vigor, que no desabrochar se conserva, se acham incluídos tanto o

‘vir-a-ser’ como o ‘ser’, entendido este último no sentido restrito de permanência

estática.”(HEIDEGGER: 1969c, p.45). Para eles, a physis era a arché, isto é, o princípio

dominante que presidia a manifestação, permanência e ocultação das coisas. A-letheia, logos e

physis eram indissociáveis no pensamento grego originário, mutuamente se implicavam na

manifestação do real.

Com o domínio da metodologia sofística no processo de apreensão e transmissão do

conhecimento, a compreensão dependia única e exclusivamente do que se manifestava, para eles

era impossível compreender o que não se manifesta, ou seja, o não-ser. Não foi difícil, então,

fragmentar o logos em ser, pensar e dizer e reuni-lo logicamente na ideia de que o ser verdadeiro

é o que se pode pensar e dizer sobre ele. Desse modo, também não houve dificuldade alguma em

fazer com que a oratória se impusesse como uma poderosa ferramenta de domínio, operando

através da persuasão.

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Falando de modo simplificado, podemos citar, na esteira, o platonismo, que pensou a

verdade como união, ou mimese, entre o sensível e o inteligível (ideia), do qual aquele era uma

manifestação efêmera deste que se estabelecia como eterno e perfeito. E o aristotelismo que

defendeu a classificação da essência como juízos e conceitos constituídos pelo intelecto humano,

capaz de captar as imagens e transformá-las em ideias, estabelecendo a verdade. Tais concepções

forneceram condições para formular as bases do que posteriormente se estabeleceria a

compreensão como a representação no sentido de concordância entre a ideia e a coisa e, na

Modernidade, se estabelecesse o caráter de mensurabilidade desse processo. A-letheia passa a ser

entendida como verdade, significando verossimilhança. Compreensão passa a ser entendida como

uma categoria ou produto do intelecto, formando um sistema ou ideário cuja origem se dá por

meio de determinada metodologia que permite a apreensão de significados de modo lógico e

coerente. No entanto,

Enquanto o mistério se subtrai retraindo-se no esquecimento e para o esquecimento, ele

leva o homem histórico a permanecer na vida corrente e a se distrair com suas criações.

Assim abandonada, a humanidade completa o seu ‘mundo’ a partir de suas necessidades

e de suas intenções mais recentes e o enche de seus intuitos e cálculos. Deles o homem

retira, então, suas medidas, esquecido do ente na totalidade. Nestes intuitos e cálculos o

homem se fixa, munindo-se constantemente com novas medidas, sem meditar o

fundamento próprio desta tomada de medidas e a essência do que dá estas medidas

(HEIDEGGER: 1973b, p.207).

A essência da verdade fica encoberta pela compreensão usual de verdade. A compreensão é

mais importante que a verdade, pois é ela que certifica tudo o que é verdadeiro ou não. Voltando

ao texto Operário no mar, os desígnios e segredos (mistério) do caminhar que se colocam como

questão-mor é a tensão entre compreensão e não-compreensão. Para pensarmos essa questão é

preciso se debruçar sobre os próprios modos dela se manifestar, isto é, como: incompreensão,

compreesão ideológica, conceitual, convencional e dialogal.

3.6.1 - A incompreensão

O operário não se encotra em nenhuma classificação, sua imagem não pode ser assimilada

nem o identifica. Entre o operário e o observador a tensão entre conpreensão e não-compreensão

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instala o modo de ser da incompreensão, que é como uma semente que se perde antes de ser

lançada. Não se trata da não-compreensão, esta seria a possibilidade de toda e qualquer

compreensão, tal como a condição para o saber é o não-saber. O prefixo in– aqui não fala de

movimento para dentro, antes nos assinala, segundo seu uso etimológico, uma negação previa,

diferente do prefixo des-, que corresponde a uma negação em curso de uma processualização de

sentido já iniciada como, por exemplo, a diferença entre as palavras impedir e despedir, a

primeira trata de não deixar com que algo aconteça, a segunda destituir algo que já está

acontecendo. Caso tivessemos em português a palavra *descompreender, tratar-se-ia de perder-se

uma compreensão, deixar de compreender algo que já havia sido compreendido, o que a

linguística denomina entropia discursiva, a perda de conteúdo semântico no trânsito da

mensagem entre o emissor e o receptor. Mas a incompreensão é uma negação previa da

compreensão e se constitui essencialmete como um resistir em que não se dá a ausculta ou dela se

defende, faz frente e renega.

A não-compreensão é a provocação da compreensão, que, se pode entender como um

empenho na busca pelo que ainda não se tem, movida pelo que já se tem, para vir a ter o que se

ausenta. A verdade como compreensão esbarra na aporia da incompreensão. Aporia vem do

grego áporos e quer dizer literalmente o não ter passagem possível, na rubrica filosófica trata da

impossibilidade de obtenção de uma resposta ou conclusão objetiva para determinada indagação.

No ceticismo pirrônico a aporia foi cultivada como demonstração da ausência de verdade. Em

Aristóteles, a aporia é um problema lógico, concebido como contradição ou paradoxo,

ocasionado pela existência de raciocínios igualmente coerentes e plausíveis que, entretanto,

alcançam conclusões opostas. Por derivação de sentido, aporia trata de toda e qualquer situação

insolúvel ou, no dito popular, sem saída. Na Música, por exemplo, é uma frase musical ou

passagem que não poder ser executada pelo músico.

Aporia pode ser não-compreensão quando coloca o homem diante do que lhe impressiona,

a isto os gregos chamaram de thaumátzein, que quer dizer alumbramento ou espanto com a

eclosão do extraordinário que se oculta no ordinário. Aporia também pode ser incompreensão

quando se coloca como um impedimento à aprendizagem, ignorando-a por completo. O problema

é que nem sempre a ação de ignorar é percebida por quem ignora.

A questão da compreensão é a questão da aprendizagem: “É a questão que sempre, sabendo

ou sem saber, se questiona em toda questão” (LEÃO: 1977, p. 45). A compreensão se lança ao

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cerne do questionar em que e como nós mesmos estamos em questão, em todo o tempo na

possibilidade de nos questionarmos e nos compreendermos. E “Neste como procuramos o

caminho, em que caminham todos nos esforços de formar e informar. Um caminho assim é o

caminho de aprender e ensinar.”. (LEÃO: 1977, p. 45, grifo nosso). A compreensão passa pelo

aprender e ensinar. Compreender é apreender, é tomar posse e apropriar-se. Mas de quê?

Primeiramente, compreender pode ser o apreender como a assimilação de uma percepção

sensorial do mundo, que se estrutura teórica, cultural e institucionalmente formando um sistema

de idéias ou conjunto de convicções que legitima dado modo de saber e poder, refletindo,

racionalizando e defendendo seus próprios interesses e compromissos institucionais. Também

chamado de ideologia.

Em segundo lugar, compreender pode ser o tomar posse como capacidade linguística de

representar algo, abstrato ou concreto, identificando-o, descrevendo-o e classificando-o de modo

generalizável e, de certo modo, estável; a fim de que se o processe categoricamente

possibilitando, assim, uma orientação intelectual e linguística que permita o acúmulo sistemático

dos conhecimentos e juízos de valor nos diversos ramos do saber. Trata-se da conceituação.

E em terceiro lugar, compreender pode ser o apropriar-se como ter, segundo um discurso

convencional, isto é, a práxis social adotada que se consolida como identidade social e se

estabelece por meios de padrões e usos adotados. Apropria-se dos usos e costumes padrões da

sociedade, formando, desse modo “seu próprio mundo” ou sua identidade, influenciando e sendo

influenciado mutuamente pelos âmbitos cultural, político e econômico.

E em quarto lugar, compreender é apreender de modo dialogal; tomar posse e apropriar-se

do que nos é próprio. E o que nos é próprio? O que nós próprios somos! Mas esse pensamento, do

ponto de vista científico, soa hermético e até mesmo vazio, por possuir certa ambiguidade e falta

de objetividade referencial, ou seja, de um elemento do mundo extralinguístico, ao qual se possa

remeter simbolicamente o signo linguístico, e se expor num determinado contexto filosófico,

historiográfico ou sociocultural. Em outras palavras, aferir um atributo ao ser: ser o quê?

A incompreensão não transita por nenhum desses vieses. Ela inviabiliza todos, não

permitindo qualquer interação. Nesse sentido a incompreensão equivale à alienação. A não

considerar de modo algum o caminho da compreensão.

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3.6.2 - A compreensão ideológica

O operário caminha em meio às necessidades e interesses inerentes às relações econômicas

de produção, ao sistema de ideias que legitima o poder econômico da classe dominante

sustentadas por grupos sociais ou institucionais, que racionalizam e defendem seus próprios

interesses e compromissos. No entanto, “não lhe sobra tempo de perceber”. Perceber é um

compreender. O não sobrar tempo não é literal, mas atua como um “não perder tempo” ou “não

dar atenção”. Seu foco é o caminhar: “Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que

mais adiante faz calor.”. O operário caminha como quem sabe que todo caminho é apenas um dos

caminhos a que conduz todo encamihar. Encaminhar é conduzir a um caminho, mas caminho não

é um apenas, no sentido numérico. Caminho é sempre a possibilidade de congregação de pontos

distintos, em outras palavras, caminho é sempre um entrecaminho. Encaminhar é conduzir ao

entrecaminho como de-cisão. O entrecaminho é de-cisão como um congregar possibilidades. A

possibilidade se diz no que se lança-entre, este é a possibilidade de decisão pela dobra ou pelo

duplo.

A dobra é a reunião da identidade e diferença. A isto o pensador grego Heráclito se referida

quando disse no fragmento 50: “Escutando não a mim mas ao Logos, é sábio concordar que tudo

é um” (HERÁCLITO: 1999, p. 71). Parmênides também se refere à dobra, ao afirmar no

fragmento 3: “pois o mesmo é pensar e ser” (PARMENIDES, 1999, p. 45).

Tanto em Heráclito como em Parmênides a realidade é pensada ambiguamente como a

dobra dos contrários a partir das expressões Tò autó, o mesmo e Hèn Pánta, tudo um. O

significado das expressões não pode ser reduzido ao sentido metafísico de identidade que se

processa numa relação do ente com ele mesmo ou por meio de representação. Pelo contrário, a

relação estabelecida, proposta pelo pensador é a tensão entre identidade e diferença, como, por

exemplo, entre noein (pensar) e einai (ser). Na própria escritura percebe-se o a correlação das

diferenças. A conjunção “e” (kaí) pode estabelecer tanto sentido aditivo como adversativo. No

texto, “Kaí” ou “e” estabelece os dois sentidos ao mesmo tempo. A palavra “o mesmo” (Tò autó),

semelhante ao “tudo um” (Hèn Pánta), é o lugar onde se dá o encontro originário de coisas

diferentes e estabelece o “Palíntonos harmoníe” (conexão de tensões opostas). A dobra é o vigor

do diá-logo. Logos é onde vigora toda a ação de lançar. O lançar, nesse sentido, só pode se dar no

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logos. A dobra é o diálogo entre identidade e diferença em que o ser e o não-ser não dizem coisas

opostas, mas realidades desdobradas do próprio real.

No texto Operário no mar, os discursos que se cruzam não vigoram como dobra, mas como

duplo. A dobra foi sufocada pelo sistema de pensamento imposto pelo duplo: uma verdade

pretensamente única. A dobra é ambígua, porque reúne as diferenças sem anulá-las, como

acontece numa identidade identitária, também não as separa dualisticamente. O duplo é a

expressão do dualismo. Enquanto a dobra encaminha à decisão. O duplo o faz à cisão, em que o

real é cindido em princípios básicos antagônicos e dessemelhantes. O duplo cinde o caminho em

margens distintas e opostas. A compreensão como potencialidade de reciprocidade é também a

possibilidade inversiva, é tão ambígua em si mesmo que pode-se dar tanto como dobra quanto

como duplo.

Qual é a relação de sentido que há entre “os fio, os fios, os fios”, “o líder oposicionista

vociferando” e o operário no texto?

As expressões em questão são imagens-questão tanto da comunicação quanto dos discursos

que ela veicula, nomeiam uma compreensão dualista, dissimulada e parcial do logos que se

coloca a serviço de uma ideologia, seja ela política, cultural, educacional, sociológica, filosófica

etc. Essa compreensão dá origem a um discuso retórico à maneira dos sofistas; ou seja, pautado

em argumentos ou raciocínios de acordo com as regras da lógica e bases verossímeis, concebidos

com o objetivo de induzir a uma compreensão da verdade produzida com a finalidade de

representar um fundamento ideológico. Trata-se de uma compreensão ideológica.

Nem sempre a compreensão ideológica é intelectualizada, muitas vezes é formada pelo

senso comum mesmo. Um conjunto de opiniões, ideias e concepções vão se formando,

condensando e prevalecendo em determinado contexto social sem reflexões ou questionamentos,

impõem-se como naturais e necessárias e constitui uma verdade que rege a existência e se

perpetua numa espécie de hereditariedade social dominante e dominadora. É a isso, também, que

se refere Riobaldo quando fala do diabo em Grande sertão: veredas. Em muitas passagens da

obra, o diabo é uma concepção ou compreensão que vai dominando as pessoas e as conduz a

determinadas atitudes.

Não se trata de um juízo moral, mas de uma questão ética. Esse tipo de compreensão

impede que o mundo tenha sentido pela sua pre-sença, mas condiciona e impõe um significado

para ele, e este tal se torna uma imposição para os outros. A discussão em torno da existência ou

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não do diabo é um conflito de compreensões. Riobaldo dialoga para tentar apreender a

compreensão, por isso transita entre os diversos discursos a respeito do diabo, por isso este é e

não é sempre. Riobaldo faz e refaz discurso e compreensão. O mesmo é uma coisa para um e

outra para outros.

A trama da compreensão foi entendida na modernidade como uma espécie de enunciação

discursiva, implícita ou explícita, composta de vozes, pontos de vista, visões de mundo ou

tendências que dialogam entre si, revelando que nenhum discurso é puro, processo ao qual

Bakhtin denominou polifonia. A heterogeneidade de vozes faz com que se teça uma rede infinita

de referências entre falas e sentidos a qual se denominou dialogismo e, ao uso consciente e

coerente desse processo, de modo que haja influência de um texto sobre outro, denominou-se

intertextualidade.

Polifonia, dialogismo e intertextualidade são processos facilmente verificados em diversos

tipos de textos. O grande problema é que entre os textos nos quais se verificam esses processos

há certa justaposição e uns vão sendo classificados como mais essenciais ou relevantes em

relação aos outros, ainda que na ordem da anterioridade cronológica. O mais antigo é tomado

como modelo ou ponto de partida para os demais que vão atualizando semanticamente

significados outrora expressos. Mas a questão mesma sobre o qual se lançam as noções de

polifonia, dialogismo e intertextualidade, que, na verdade, é o mais originário em todo o

processo, ela que é a ancestral, não obstante a destituição da sua real importância e esta, a

questão, acaba sendo esquecida.

Na esfera crítica do pensamento forma-se um encadeamento dedutivo, de uma asserção

precedente, produzindo acréscimos por vias da explicitação e interconexão de aspectos que

anteriormente se mantinham obscuros ou latentes e, aos poucos, se firma convicções como uma

verdade doutrinária e sistemática deduzida desse encadeamento. A essa suposta verdade

doutrinária e sistemática denominou-se ideologia. Todo o empenho, então, se dá na tentativa de

determinar a ideologia expressa no texto como um modo de interpretá-lo.

A compreensão ideológica é sempre uma adesão a um conjunto sistemático de

representações em forma de ideias, valores, normas e regras que prescrevem o que e como se

deve pensar, julgar, sentir, ser e fazer de modo que se identifiquem coesamente com sistema

institucional ao qual representa. É uma concepção previa, indiscutível e supostamente evidente na

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qual todo o sentido de algo já está consolidado, a fala é apenas uma acomodação à teoria

estabelecida como verdade.

A ideologia é sempre parcial, na medida em que é unilateral e se coloca em uma margem

contrastando-se à outra, posto que defende e afirma seu corolário instituído em oposição a outros,

com o intuito de manipulá-los e controlá-los a fim de perpetuar uma estrutura.

Conforme já disse, em Grande sertão: veredas esta questão aparece na discussão da

existência do diabo e de como ele irrompe no cotidiano do mundo. O diabo, em muitas culturas e

mitos, se apresenta sob a imagem da serpente, também chamado de satanás. Longe de fazer uma

leitura moralista dessa imagem, queremos pensar no que ela nos diz poeticamente. A serpente

muitas vezes surge como a imagem do conhecimento e da capacidade de persuasão, em outras,

seu poder letal ameaça pavorosamente suas supostas vítimas.

Não querendo fazer um apanhado da recorrência dessa imagem em mitos e textos poéticos,

nos ateremos apenas ao sentido mais adequado ao que tratamos por ora, apenas nos referindo às

três capacidades de presentificação da imagem do diabo como duplo: conhecimento, persuasão e

letalidade. Não se quer dizer aqui que o diabo significa essas potencialidades ou é sinônimo

delas, mas que seu caráter ambivalente as compreende ora de um modo ora de outro. É

importante salientar que, em algumas religiões, o diabo é entificado, originariamente, porém, a

palavra diabo nomeia um movimento, isto é, possui o mesmo sentido da ação verbal da palavra

grega diaballein, que nos acena para a noção de lançar (ballein) no entre (dia-).

O conhecimento ideológico é diferente da sabedoria. Ideologicamente concebido,

conhecimento é conhecimento-para e designa uma finalidade específica e funcional, o que disto

difere, segundo sue corolário, é ignorância. O conhecimento tende à abstração e só se dinamiza

com o concreto por meio da funcionalidade.

Persuasão é conduzir ao convencimento por meio de uma argumentação coerentemente

lógica. Para a ideologia é mais importante parecer verdadeiro, isto é, ser verossímil que

corresponder à verdade. A própria discussão e reflexão sobre a verdade não é relevante se não

tangenciar a verossimilhança. Verdade é sinônimo de verossímil, isto é, o que não pode ser

contrariado, visto que é, nesse sentido, metodologicamente elaborado para tal. Ela aparecerá

sempre como utilidade e eficácia discursiva, de uso prático e verificável produzindo resultados

úteis.

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Letalidade é poder ou domínio sobre a vida, isso nos fala do poder que uma ideologia tem

de decidir o decurso da vivência histórica, econômica e social, dentre outras, como tem ocorrido

ao longo da história da humanidade.

O poder de uma compreensão ideológica é embasado pelo conhecimento, persuasão e

letalidade.

3.6.3 - A compreensão conceitual

Em seguida, o observador faz uma suposição: “Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão,

que não nos entenderemos nunca. E me despreza...”. Supostamente esse é o sentimento ou

pensamento do operário. É tão evidente... Mas onde reside ou o que justifica essa evidência? O

observador diz em seguida: “Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos.”. O saber e

o desprezo inicialmente faziam parte das concepções do operário, quando, na verdade, revelam o

modo de ver ou enxergar o mundo do observador que impõe a sua visão a todos os fatos, seres e

coisas que se lhe cruzam à frente.

O próprio início do texto já supõe isto quando o operário é estranhado por não preencher as

características de um operário: “Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No

conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas

mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes.”. Por isso é que o observador se

mantém em terra firme, na firmeza de suas convicções, que no contexto figura correlativamente à

massa enrijecida, consolidada. As terra firme é o fundamento em que o observador se põe para

julgar o real que se realiza. Ela também possui ambiguidade, na comprensão conceitual nos

figuram como o sentido que aparece cristalizado em racionalizações lógicas, visando definir algo

a partir de uma caracterização genérica e abstrata, que não precisa estar vinculado a uma

ideologia específica, mas de modo que dê conta de toda e qualquer manifestação firmada em um

significado. Talvez seja por esse motivo que ele enxerga a todo o tempo o operário que “vai

firme!”, “pisando assim tão firme”, quando, no final, reconhece que ele é que estava ecastelado

em terra firme: “eu em terra firme”.

Aparentemente o logos se encaixa facilmente em um conceito e encontra o seu lugar entre

os outros, entretanto, como sua natureza não é conceitual e não se enquadra em nenhum

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significado especificamente, seu sentido se perde entre os demais conceitos e logo se esvazia. O

logos é tomado como um significado a serviço do monopólio conceitual vigente, como ocorre

com sua tradução em palavra ou estudo, numa acepção científica, artística, sistemática etc,

funcionando sempre como uma predicação pospositiva com valor sufixal: -logia, -logo, -lógico,

-logista e -logístico. Significa o conhecimento relativo ao que o radical da palavra diz. O logos é

reduzido ao lógico da lógica.

A comprensão conceitual pressupõe que sem um estabelecimento de uma significação

linguística, tal qual uma lente, não se pode fazer uma leitura do mundo. A procura dessa

compreensão é sempre a conjugação entre significante e significado. Daí ser ela propriamente

formal e autoritária, segundo a qual, o código funciona de acordo com algumas regras semânticas

preestabelecidas que o define estruturalmente. Nesse sentido, a linguagem é um sistema

simbólico de signos arbitrários que instrumentalizam a representação das coisas. A compreensão

conceitual é um dos principais instrumentos na formação do “mundo cultural” estebelecendo a

conexão simbólica entre o homem e as coisas, de modo que estas se tornem objetos definidos

linguisticamente por aquele. O mundo e as demais coisas só ganham significados quando

conceituados, isto é, quando podem ser simbolicamente representados. A pronúncia de uma

palavra evoca seu significado representativo e não a coisa mesma. Desse modo, ser é apenas um

verbo de ligação no qual a proposição “eu sou” deve ser completada ou preenchida com um

predicativo, caso contrário se torna incoerente e insipiente.

A compreensão conceitual estabelece um sistema de signos alegóricos. Alegoria aponta

para uma instrumentalidade linguística que concebe a compreensão simbolicamente, de modo

que se repouse sob a superfície do significante a essência do significado. Ela é um modo de

expressão em que pensamentos, ideias e qualidades são representadas mantendo o conceito de um

lado e a imagem de outro e estabelece entre ambos uma correlação semântica. Alegoria e símbolo

nos falam de um algo que contém a semelhança da coisa, isto é, da realidade. Esse conter a

semelhança de outro recebeu dos escolásticos medievais o nome e a formulação teórico-

conceitual de representação. Nesse sentido se fala de língua e é o seu domínio que permite toda e

qualquer intervenção cultural. A língua funciona de acordo com regras arbitrariamente

preestabelecidas, assim, o discurso linguístico representa poder. A comunicação só se estabelece

de acordo com a submissão a estas regras linguísticas oficializadas num ritual vazio do mistério

do real, posto que a língua é o desvendar da realidade inerente ao mito. O ritual linguístico não é

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uma reatualização originária do sentido, mas uma repetição infinita de signos e significados por

meio da qual a comunicação acontece, daí a legitimação da asserção de que o homem aprende por

repetição. Sendo assim, se pode falar de qualificação dialógica ou discursiva como a capacidade

do individuo formular e decodificar enunciados específicos, visto que ele domina o código

linguístico próprio de um grupo, nesse sentido, o que está em jogo é o poder conceitual

subjacente ao discurso. A verdade é essencialmente discurso como um conjunto de proposições

articuladas sistematicamente na lógica conceitual. O discurso conceitual produz uma

compreensão competente no sentido do que é institucionalmente permitida e autorizada,

possibilitando e viabilizando a comunicação sob circunstâncias predeterminadas

linguisticamente.

3.6.4 - A compreensão convencional

Um quarto modo de ser da compreensão se afigura no texto como produto de usos ou

costumes sociais estabelecidos, como um acordo semântico de tácita aceitação pelos indivíduos.

O que se pode perceber quando o observador diz: “Agora está caminhando no mar. Eu pensava

que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios.”. É evidente aqui a ironia que estabelece o

conflito entre fé e ciência. O observador é tomado por um acontecimento que supera as

dualidades e as convenções: a imersão do operário no mar.

A compreensão convencional é a que se manifesta de acordo com os interesses sócio-

culturais e econômicos da cultura vigente na sociedade, também chamada de cultura de massa.

Esta se expõe como uma “verdade” acordada, uma espécie de constructus produzidos pelas

convenções de forma lógica e coerente, instituído como um “consenso teórico” do qual se pode

tirar consequências práticas e aplicáveis, também por sua eficácia e utilidade. A compreensão

convencional se firma no que na modedernidade condensou como discurso midiático, ele orienta

o comportamento da massa e é o fundamento de sua cultura: o artificial que tenta representar o

natural. Na contemporaneidade isso é tão descarado que os alimentos industrializados vinham

ressalvando “aroma e sabor artificial de ...”, atualmente reestruturaram a ressalva para “aroma e

sabor idêntico ao natural”. Ora qual é diferença entre natural e algo que lhe é idêntico? O sabor é

o saber, o gosto de algo, o que permte distingui-lo dos demais. É o que, na tensão com a

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identidade, permite diferenciar uma coisa das outras. Uma das principais características da

compreensão convencional é o fato de ela se apresentar sob um aspecto acabado e de funcionar,

aparentemente, sem intermitências, nem vazios. A compreensão originária é, por natureza, de

certo modo, intermitente e descontínua, com lacunas e intervalos que se abrem na dinâmica de

uma completude sempre porvindoura, própria do questionar.

A compreensão convencional flui de modo constante e ininterrupto, encadeando seus

pressupostos e enunciados de modo acabado e geralmente ocultando ou mascarando as intenções

e o processo pelos quais surgiu. Essa compreensão desenvolve uma estratégia de universalidade

referencial dos enunciados e uma credibilidade da narração dos fatos e validade absoluta, abstrata

e conceitual de seus pressupostos. A força repositória de seu discurso deriva da assertiva de que é

imperativo falar sempre, mesmo que seja para não dizer nada, apenas para manter o contato com

o público. Ela toma como característica fundamental e distintiva das outras compreensões o fato

de o âmbito da sua legitimidade não ser delimitado pelas fronteiras de um domínio restrito da

experiência. A compreensão convencional apropria-se da experiência e do discurso de diversas

áreas de conhecimento, o que a coloca como numa referência transversal ao conjunto de todos os

domínios da experiência moderna.

A compreensão ideológica ou conceitual pode ser considerada, por vezes, hermética,

oculta, fechada, entendida por poucos. A compreensão convencional, por sua vez, se estabelece

por meio de discursos abertos, públicos, entendidos por muitos, senão todos, dado o interesse

generalizado que suscitam. Devido a sua natureza generalizante ou aberta, a compreensão

convencional, mesmo ao utilizar referentes científicos, expõe-se em termos, expressões e

linguagem de domínio público e atribui a determinados valores e referenciais ideológicos e

conceituais significados mais populares. Com isso, promove uma verdadeira reelaboração

dessacralizante da cultura, interligando e homogeneizando diferentes interesses institucionais,

criando significados genéricos e ambivalentes. Afirma-se como um meio de sintetizar as

diferenças humanas.

Mas nem sempre ela desempenha uma função harmonizadora ou de compatibilização entre

as divergências, por vezes exacerba essas diferenças. Seu propósito é a desconstrução da tensão

entre identidade e diferença para reafirmar uma identidade identitária e excludente. Seu modus

vivendi obriga a adesão ao contrato cultural de padronização do comportamento sob pena de

exclusão.

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Uma outra característica e especificidade da compreensão convencional é o fato de mesma

intervir ativamente no ritmo e funcionamento das estruturas sociais através do estabelecimento de

um senso comum. Funda-se na interação entre o homem e o ambiente em que vive, visando a

realização pessoal na práxis social mediante a aquisição do conteúdo simbólico e adaptação

sistêmica às tradições, ocupações, técnicas, interesses e hábitos difundidos e diluídos no plexo

cultural vigente. Trata-se da adoção de um modus vivendi assimilado sem reflexão, cujos

princípios são adotados como legitimamente intrínsecos e inexoráveis. A força de adesão resulta

de um critério estatístico de valores e pressupostos que encontram pouca ou nenhuma resistência

na sociedade dada sua condição aparentemente inofensiva.

A compreensão convencional é unilateral, ou seja, funciona através de uma enunciação

discursiva subjacente direcionada a um público relativamente indiferenciado e ausente,

inviabilizando a possibilidade de interação dialógica. Antes, tem sua funcionalidade assegurada

mediante o repasse de informações ancoradas na produção de princípios embasados na concepção

moral vigente que regula práticas e hábitos de vida como verdade facilmente verificável no seu

palco iluminado e inquestionável.

3.6.5 - A compreensão poético-dialogal

No final do poema o observador abandona a linguagem lógica e a coerência figurativa e

deixa-se tomar pelo acontecimento poético. Ele vê o operário caminhando no mar. Ironicamente

diz que “pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e navios”. Logo em seguida há uma

constatação um tanto quanto “ilógica” para o contexto racionalista: “Mas não há nenhuma

santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que

o mar se acovardou e deixou-o passar.”. E coloca outra questão: “Onde estão nossos exércitos

que não impediram o milagre?”. Que exércitos são esses? E a que milagre ele está se referindo?

No contexto, o que poderia impedir o operário de caminhar sobre o mar é a própria lógica

racional, pois segundo as leis da física, sem um aparato tecnológico, seria impossível mover-se

no insólito. Os exércitos correspondem às teorias e discursos que engendram tanto a

incompreensão quanto as compreensões ideológica, conceitual e convencional e se opõem à

compreensão poético-dialogal. O discurso do observador deixa de corresponder a coerência

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lógica e se reinaugura poetico-dialogicamente vendo o que os olhos da razão não pode ver, pois

escapa ao seu horizonte de compreensão, diz o observador: “Mas agora vejo que o operário está

cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos.”. O

operário sai da superfície do mar e começa a imergir numa integração com a maleabilidade do

mar.

O mar é a imagem-questão da dinâmica da vida, no mito, tudo sai dele e para ele retorna. O

mar é a força que gera, mas também é o seio acolhedor. Tudo o que volta a ele é, de certo modo,

transformado em semente de novos começos. É, por isso, doador, fértil e maleável, de modo que

se abre para acolher tudo o que lhe vem ao encontro. As águas em movimento assinalam o estado

transitório entre as possibilidades ainda informes e as realidades condesadas ou em condensação.

O mar é correlato da compreensão. Acolher e compreender dizem o mesmo. A

compreensão acontece quando se acolhe e engravida de sentido. A principal característica da

água é a capacidade de decompor os materiais orgânicos. É a imagem de uma pré-compreensão

que diluiu ideologias, conceitos e convenções, não para criar outros tais, mas os leva ao grau zero

para encontrar, em meio a todo o pensado, o não pensado, e auscultar, em meio a todo o falado, o

ainda não dito.

Nos mitos, o mar é equiparado à mãe que gera filhos. O mar seria então o útero, este não

gera por si mesmo nem para si, mas abriga o vigor de produzir a vida. Produzir aqui não tem o

mesmo sentido de fazer ou fabricar, mas, nomeia o levar (ducere) adiante ou em frente (pro-),

isto é, favorecendo e conduzindo o surgimento ou eclosão das coisas, sua manifestação, num

lançar à presença e à existência. É conduzir ao desencobrimento projetando o ser para sua

destinação e, de certo modo, inseminar, que diz a ação de introduzir o sêmem. Sêmem nos aponta

para o antepositivo verbal grego génos, que possui sentido de origem, tronco ou família, compõe

o verbo, também grego, gígnomai, do qual deriva o sentido de nascer, gerar, produzir. Nos

pensadores gregos antigos bem como nos mitos, o génos era pensado na imagem poética da

Moira, que fazia referência ao quinhão, a parte que cabe a cada um, a sua medida ou necessidade

(ananke), destino.

Cada ser possui sua Moira, o que a modernidade científicametne denominou código

genético. É óbvio que Moira não é sinônimo de código genético ou atavismo, os mitos e a ciência

possuem abordagens diferentes, mas não é impossível uma aproximação ao nível da

compreensão. O fato é que cada ser traz dentro de si o seu quinhão como possibilidade de seu

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sendo, ou seja, seu modo de ser. Na obra de arte geralmente a questão do génos aparece

formulada na teoria dos gêneros, entretanto, géne é o que em todo o ser, e mesmo o ser-obra, está

em obra.

O “pensar e ser” como o mesmo, anunciado por Parmênides, pode ser também entendido

como “o mesmo é ser e compreender”, no qual ser é lançar-se no horizonte da compreensão para

entregar-se plenamente a sua Moira e realizar seu sendo no limite entre vida e morte.

O operário no meio do mar/caminho entra numa espécie de simbiose com a physis como

descreve o observador:

Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são

a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos

irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no

meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio

atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas

da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança

de compreensão. (ANDRADE: 2007, p. 71-2)

O operário se funde à tarde e ao mar: tudo um, mas não se trata de uma fusão homogênica,

ele acha o seu lugar entre a “natureza”. Essa fusão provoca o desaparecimento gradativo de uma

imagem isolada de perfil humano e, simultaneamente, o aparecimento de outra integrada a tudo.

É um ultrapassar os limites da vida nos umbrais da morte e reviver simultaneamente.

O morrer, na verdade, é cristalizar a existência e permanecer solitariamente, morte é

solidão absurda, não como virtude reflexiva. Viver é fazer a experienciação da morte como

caminho para a vida. O conflito desse entendimento se dá pela compreensão ideológica,

conceitual e convencional de que a morte e a vida são antagonicamente opostos.

O caminho entre vida e morte é o caminho do diálogo. Diálogo é comumente entendido

como uma conversa em que se produzem falas entre dois ou mais indivíduos de modo que haja

uma interação entre si, compondo o processo básico da comunicação. Ora as definições de

diálogo pode nos levar a sofismas, pois dialogar não é apenas falar, mas abrir-se para a escuta.

Caminhar entre vida e morte é abrir-se para a fala de ambas de modo que se compreenda

sua verdade. Mas aqui pode haver ainda um engano do que seja diálogo. Auscultar a fala de vida

e morte como de fosse um monólogo dialógico não chega a ser diálogo, pode não haver comum

ação. Comunicação não é simplesmente transmissão e recepção de mensagens e informações,

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junção de algo, tampouco intercâmbio. Comunicação é a comum ação que opera por meio da

tensão; a melhor palavra para dizer a comunicação é embate.

O vigor da compreensão se manifesta por meio do embate, que não extingue os

combatentes, antes impõe a ampliação de suas possibilidades existenciais: ser para além de si, em

si mesmo. Co-jogados por essa tensão de identidade e diferença, cada um jamais cessa de ser

sempre outro, porém idêntico, visto que se preserva o espaço-limite do diálogo, a saber, o dia-. O

diá- do diálogo realiza, de certo modo, o mesmo que o prefixo inter- ou entre- o faz no

português, ou seja, mantém o aberto das relações o que, ao mesmo tempo, funda e preserva o

diálogo. Diá-logo é o dimensionamento da palavra grega logos.

O diálogo é a medida e alcance do logos como escuta. O dimensionamento do diálogo não

pode ser mensurável, como propõe a linguística, pois não pode ser medido apenas pela

quantidade de informações que supostamente transmite. O diálogo instaura e preside muito mais

que o conhecimento gerado pela transmissão de dados, ele possibilita a aprendizagem, que é a

apreensão do que é próprio ao ser, do seu destino ou caminho. Apropriar-se do seu próprio

caminho é mergulhar na sua Moira ou destino e tornar-se no que, de algum modo, já se é; a isso

os gregos denominaram a-létheia, que em português se traduz como verdade.

O diálogo originário não pressupõe o embate erístico como forma de se estabelecer a

verdade como imperativo da habilidade lógica do discurso, em vez de os dialogantes se

digladiarem para encher o seu cardo, embatem-se para esvaziar, despregando toda e qualquer

verdade fabricada para que surja a verdade da cura. Esta surge do esvaziamento.

No grego, esvaziamento se diz kenósis, e assinala a ação de esvaziar-se por completo de

tudo aquilo que determina, qualifica ou classifica o ser. Uma expressão que conserva sentido

semelhante é “humilhar-se a si mesmo” e “sujeitar-se voluntariamente”, é a ação de sair de si

mesmo, renunciar, desconstruir suas próprias verdades instituídas e sujeitar-se voluntariamente a

algo maior.

No ensaio Caminho do campo, Heidegger assevera: “A renúncia não tira. A renúncia dá.”

(HEIDEGGER: 1977, p. 328). A renúncia é a abertura e esvaziamento para receber algo ainda

maior. Que algo maior é esse ao qual o ser se sujeita? O acontecer da verdade que é a

consumação do destino e a realização da Moira. O diálogo mais radical que o homem pode ter é o

que põe em questão o destino.

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O diálogo com o destino nos lança no mistério ao qual somos desde sempre destinados: a

nossa travessia.

A parábola do operário é a travessia do pensamento como sabedoria. Sabedoria é um saber

que só se sabe sendo o que se sabe, isto é, verdade.

3.6.6 - A verdade: a ausculta do silêncio

No texto literário as partes estão combinadas, equilibradas, articuladas, arranjadas entre si,

em harmonia e organicidade, as imagens e a trama configuram o eixo temático, isso tudo já se

viu e já se pensou como matéria e forma e também já entendeu como poética da obra. Mas é isso

mesmo a poética? A arte poética é o produto da capacidade artística do homem ou ela poderia ser

algo diverso?

O pensamento da poética como conjunção entre matéria e forma parece-nos algo ditatorial,

que busca ou quer pôr ordem em algo que ainda não chegou à lógica racional, no caso a matéria

ainda informe, de modo que possa ser bem representada e apreendida pelos sentidos ou pelo

intelecto.

Heidegger, no ensaio A origem da obra de arte, assinala essa questão no primeiro parágrafo

do seguinte modo:

Originário

significa aqui aquilo a partir de onde e através do quê algo é o que ele é e

como ele é. A isto o que algo é, como ele é, chamamos sua essência. O originário de

algo é a proveniência de sua essência. A pergunta pelo originário da obra de arte

pergunta pela proveniência de sua essência. A obra surge através e a partir da atividade

do artista, segundo a opinião corrente. Porém, de onde e através do que o artista é o que

é? Através da obra, pois dizer-se que uma obra faz o mestre significa que somente a obra

deixa o artista aparecer como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a

origem do artista. Nenhum é sem o outro. Do mesmo modo também nenhum dos dois

sustenta sozinho o outro. Artista e obra são em-si e em sua mútua referência através de

um terceiro, que é o primeiro, ou seja, através daquilo a partir de onde artista e obra de

arte têm seu nome, através da arte. (HEIDEGGER: 2010, § 1)

O pensador propõe que originário da obra e do artista é a própria arte. Um pensamento que

saiba trafegar apenas nos trilhos dos conceitos perguntaria: mas o que é arte?

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Uma resposta possível, que não violasse a essência da arte deveria recolocá-la como

questão, isto é, de modo a não impedir a possibilidade de pensá-la e repensá-la continuamente.

Então, a arte vigora na obra de arte e no fazer do artista, no que é e no como é de ambos, abrindo

inauguralmente o ser do ente, ou seja, operando a verdade como um deixar disponível o

manifestar do que é. A abertura inaugural como revelar a verdade do ente acontece no operar da

obra e do artista como uma correspondência ao apelo do que se retrai ou se oculta aos entes. Por

isso é que Heidegger diz que a “arte é o pôr-se-em-obra da verdade” e:

A verdade é não-verdade na medida em que lhe pertence o âmbito da proveniência do

ainda-não- (do não-) revelado, no sentido do velamento. Ao mesmo tempo, no des-

velamento como verdade vige o outro “não” de um duplo vedar. A verdade vige como

tal na oposição de clareira e duplo velamento. A verdade é a disputa originário-inaugural

na qual sempre de um certo modo se conquista o aberto, no qual, tudo, que como ente se

mostra e subtrai, se situa, e a partir do qual tudo se retrai. (HEIDEGGER: 2010, § 130).

Mas o que é que se retrai na fala poética? O silêncio. Silêncio e fala são dois modos de ser

da linguagem. A arte é a ausculta do silêncio. É disso que trata o poema Uma canção, de

Drummond:

Uma canção cantada por si mesma

o pensamento longe de pensado

o tempo a florescer livre de tempo

e tudo mais que oculto é contemplável.

(ANDRADE: 2007, p. 361)

“Uma canção cantada por si mesma” é inconcebível do ponto de vista lógico, é preciso

alguém para coordenar o processo de criação. No entanto, sua fala é inconfundível. “Uma canção

cantada por si mesma” é a mais profunda manifestação da verdade, livre de toda e qualquer

manipulação, por isso ela resguarda tudo o que manifesta como o “pensamento longe de

pensado”, ou seja, livre dos esquemas racionais que determinam a coesão e a coerência da

“estrutura mental”; “o tempo a florescer livre de tempo”, que é conceito e critério de

mensurabilidade; “e tudo mais que oculto é contemplável”, como um paradoxo pleno de sentido.

O poema é uma imagem poética denominada pelos gregos antigos physis e a-letheia, que

conservam mutuamente o sentido de nascividade incessante que, ao mesmo tempo tende ao

encobrimento, o desvelar que ama ocultar-se. A esse manifestar de “uma canção cantada por si

mesma” nomeamos orquestração do silêncio.

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A ausculta do silêncio soa como um paradoxo, pois silêncio nos advém como algo

insondável, como um interromper ou retirar-se da fala e resguarda aquilo que há de mais

essencial e extraordinário a que chamamos, mesmo sem muito compreender, busca ou procura. A

dinâmica e a essência da procura se fazem presentes na vivacidade da fala do poema Uma canção

como correspondência ao silêncio. Heidegger diz: A linguagem fala, o homem fala à medida que

corresponde à linguagem. (HEIDEGGER: 2004, p. 26.). A fala é o que aproxima o homem da

linguagem.

Toda fala? Não! Mas que fala? A fala da linguagem! A linguagem fala, depois vem a fala

do homem. Mas como e de onde vem a fala do homem? Da co-respondência à linguagem. O falar

humano é uma correspondência à linguagem e, enquanto correspondência à linguagem em seu

sentido mais originário e mais próximo da essência da linguagem, a fala do homem é uma fala

poética. Como fala poética, a linguagem constituiu uma obra. A obra poética não é uma produção

humana favorecida por uma técnica. Quanto mais poética uma obra for, maior é sua entrega à fala

da linguagem e não à fala do homem. Na verdade, a poeticidade de uma obra se intensifica

justamente por essa entrega à fala da linguagem.

O silêncio está presente! Muitos conceituam o silêncio como não-dito ou entrelinha, e ele

de fato é, mas é muito mais que isso. Dizer o silêncio apenas como não-dito ou entrelinha é dizê-

lo apenas e tão somente a partir do dito e da linha, entretanto, o vigor do não e do entre é muito

maior. Silêncio é o nada, o caos donde tudo se origina e tem sentido, por isso ele está em tensão

dialógica com a fala na manifestação da realidade. A fala vigora de acordo com seu poder de

silêncio. O modelo epistemológico que pretende interpretar o real por vias da representação não

suporta a discussão sobre o silêncio, pois a representação é aclamada, ao longo dos tempos, como

o padrão de organização do conhecimento, o silêncio desestabiliza o paradigma da representação.

O silêncio vige na ocultação. O silêncio está presente em tudo o que se oculta por isso é possível

“Uma canção cantada por si mesma”. Na verdade, o silêncio é a condição de tudo o que se oculta.

A fala é o silêncio se manifestando. Em tudo o que se vê, ouve ou pensa prevalece sempre a

manifestação.

A ação humana tem-se voltado desde sempre para o que se faz manifesto, e eleito este como

o real, o verdadeiro, porque só o que se manifesta pode ser representado e conceituado; em

contra-partida, ela esqueceu o silêncio, ou ainda, nem o pensou digna e coerentemente. Tanto o

manifesto, a fala, quanto o ocultado, o silêncio, se dinamizam na linguagem. Linguagem não se

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confunde com língua. A língua se limita ao léxico, vive em estado de dicionário. A linguagem

não, ela extrapola todo o limite, desafia o ser humano, funda mundo, manifesta o real, mas

também leva o mundo ao caos e oculta o real. Não é um mero meio de comunicação, um

instrumento; entretanto, não há comunicação sem linguagem. Não é toda expressão linguística

que manifesta a linguagem, mas também não há aquela sem esta. A linguagem não se deixa

conceituar, mas nos convida a experienciá-la, vai muito além de todo e qualquer conceito. A fala

da linguagem é sempre mais que qualquer fala, pois ela está sempre em tensão ambígua com o

silêncio. Ela nos revela o segredo de toda e qualquer compreensão: a fala só se completa quando

em tensão com o silêncio. A consideração do silêncio é a chave do sentido. Nenhum sentido se

consuma apenas na fala, senão quando esta se tensiona com o silêncio, tornando-se fala poética.

Somente a fala poética é capaz de entreabrir o código da língua de modo que a linguagem

transpareça “com seu poder de palavra e seu poder de silêncio”.

Toda leitura que se pretende ampla e que atinja o cerne da linguagem deve dialogar com o

silêncio, sem esse diálogo surgem as leituras exclusivas, esta elimina toda a tensão dialógica com

o silêncio. O diálogo com o silêncio eleva a interpretação para além da forma e da estrutura. A

leitura ou interpretação que não dialoga com o silêncio falha em seu sentido de ser. “O silêncio é

a sensatez da incerteza e da perplexidade. (...) Porque o silêncio não é a paralisação da fala, o

silêncio é o máximo de concentração da fala. O silêncio não é o não-dizer, é o mais dizer.”

(Portella: 1999, p. 17).

Quando a fala chega ao seu limite como fala é hora de operar o silêncio e o silêncio operar.

Mas como saber que a fala chegou ao seu limite? A fala está sempre no limite, sempre no abismo,

por isso o silêncio está sempre operando, mesmo quando ela vigora, isso na fala poética, o

silêncio opera não deixando a fala cair nesse abismo. Quando o silêncio não opera na fala ela se

torna despótica. Toda fala que perde sua tensão com o silêncio, seja num texto literário ou não,

torna-se arrogante e pretensamente única. Quando a fala entra em tensão com o silêncio ela, na

verdade, se aventura por aquilo que é mais, nela mesma e se abre de modo que a essência da

linguagem se manifeste por meio dela, então a verdade encontra um lugar propício para eclodir.

Verdade aqui não se diz de uma “suposição hegemônica”, mas o Sentido do real, da vida. A

Verdade medra e é a-colhida pelo caminho. O silêncio é a vida da linguagem e toda fala que se

queira viva deve preservar o seu poder de silêncio ou, ainda, o poder do silêncio.

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O silêncio preserva o abrir-se da linguagem, pois ele resguarda o sentido na fala de modo

que a escuta não seja um esquema metodológico prévio. A palavra texto nos remete para esse

eclodir da tensão fala e silêncio na linguagem. Do latim téxo, texto nos remete à ação de tecer,

fazer tecido, também entrançar e entrelaçar, que nomeia a ação de construir entrelaçando. Texto é

a linguagem eclodindo como tensão entre fala e silêncio, fios e vazio, gerando ou cantando a si

próprio. É das relações entre os fios e vazios que surgem os nós, as interseções do pensamento.

As palavras relações e interseções são fundamentais para nossa discussão. Ambas nomeiam

o encontro de duas linhas ou de dois planos que se cortam, falam de um cruzamento, de uma

vinculação que preserva a interdependência, mas também o intervalo entre fio e vazio, fala e

silêncio. A intermitência tensional que a linguagem preserva é que possibilita a eclosão do

sentido em vez de um significado. A diferença entre sentido e significado resulta justamente do

fato de que este é uma premissa conceitual, aquele uma pressuposição questionadora. Um parte

de um raciocínio lógico que pretende se estabelecer como uma verdade unívoca, o outro, de uma

atração exercida pela própria coisa, ou seja: o sentido é algo que brota da interação da

busca/procura com a própria coisa.

O texto é basicamente uma rede de relações descontínuas. Dizemos que a rede se faz de

relações descontínuas porque seu todo não é linear, mas um entrecortado de fios e vazio, na qual

o que prevalece não são os fios, mas justamente o vazio. Sempre se pensam as questões a partir

dos fios (fala) e desconsidera-se o vazio (silêncio), mas a rede é uma doação do vazio, é ele, pois,

que promove a tensão de si mesmo com os fios e, ainda, possibilita a tensão fio com fio. O vazio

é o entre-fios. Assim como não devemos fazer uma leitura da realidade/rede/texto/teia apenas a

partir dos fios/fala, também não devemos considerar apenas o vazio/silêncio. O que importa

mesmo é a tensão, pois é ela a união contrastiva que pro-voca o sentido. Ver a realidade através

da imagem da rede/texto/teia é considerar as interseções. Se atentarmos para a etimologia da

palavra interseção, do latim intersectìo, veremos que esta nomeia o espaço entre dois dentículos

nos capitéis das colunas jônicas e coríntias. Inter-, do latim inter, diz-nos o espaço vigente

nomeado como o interior de dois ou ainda entre (dois), inter- é o espaço entre. Já –sec- é o

antepositivo, do verbo latino seco e sectum, que dá o sentido de cortar, recortar, separar cortando,

cortar em pedaços, dividir em dois.

Interseção é, ao mesmo tempo, encontro e separação. Na interseção vigora o espaço entre

que une separando e separa unindo, não tem definição, a encruzilhada: “A bem, como é que vou

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dar, letral, os lados do lugar, definir para o senhor? Só se a uso de papel, com grande debuxo. O

senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os quatro braços, e a ponta de cada braço: cada um é

uma...” (ROSA: 2001, p. 563). De que o texto fala? Do entre, isto é, o espaço onde vige a tensão,

mais originariamente, entre fio e vazio. Interseção é o caminho, a travessia na qual o homem se

essencializa e se descobre como ser ambíguo, porque é o caminho do entre, e é nessa caminhada

que o homem se descobre como ser das questões e não das respostas.

Na travessia é que o homem se sabe e não-sabe homem, pois ele já não é o que era, mas

ainda não é o que será. Na travessia o homem é co-jogado entre o ser e o não-ser, por isso é que

nele vigora a questão como questão de toda vida e da morte. Para pensar a vida mais

radicalmente o homem precisa se entregar à morte e vice-versa, essa é a condição humana: a

ambiguidade radical de sua existência, ser ser-do-entre. Ao homem não foi dado outro lugar em

que possa habitar que seja mais próximo do humano além do entre. É habitando o entre que o

homem se aproxima do sentido. A aproximação também é um espaço ambíguo, é estar

avizinhado, não junto. O que se avizinha esta junto e não está. Avizinhar-se é estar de permeio.

A fala da arte através do verso possui uma descontinuidade originária. Essa descontinuidade

não figura como um defeito, mas como um entrecortar de fala e silêncio, ambos se permeiam e

interpõem-se num jogo tão sutil que se torna quase imperceptível. No poema dá-se o encontro

entre o mensurável e o imensurável. O encontro que ocorre não é uma homogeneização, mas um

pender dinâmico: o mensurável (fala) pende para o imensurável (silêncio) e vice-versa. O verso,

o poema não são uma expressão (lírica) da subjetividade, não é o produto de sensações e

emoções, também não é uma forma de “expor” um pensamento. O poema, imbuído

essencialmente do vigor poético, é uma doação da linguagem e não uma criação humana, porta-

voz de seu interior.

O poema é uma manifestação da poiesis. É essa manifestação extraordinária que requer o

verso. O verso é mais que uma simples forma, mas um modo como a linguagem se doa. O verso,

enquanto manifestação da poiesis, é um apelo do extraordinário que se consuma em fala poética

quando a escuta acontece. A escuta da qual falamos não é qualquer escuta, não assume a função

auricular, mas é um voltar-se para a coisa acontecendo como linguagem. Nesse “voltar-se” é que,

consumando o apelo, a escuta nos consuma no que somos.

Consumar não é levar algo ao seu termo, ou a chegar a um término, mas permitir que algo

atinja sua plenitude; esta também não é entendida como completude ou totalização de modo que

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se esgote sua condição deveniente; antes, plenitude é um plenificar contínuo, ou seja, um ato

contínuo pelo qual o sentido passa a vigorar permanentemente. O vigor do sentido em

plenificação contínua é um pôr-se em travessia palmilhando o sentido da vida, é a essencialização

da procura da vida como vida da procura. Na travessia é que se não chega a lugar algum, mas

encontra-se e apropria-se daquilo que nos é próprio, a saber, o que somos.

O que somos é destino enquanto verdade que se nos advém no meio do caminho da vida

com escuta do silêncio. Nesse sentido, destino é poiesis na consumação do pensar vida, caminho,

verdade.

4. Caminho, Verdade, Vida

A Máquina do mundo maquinou, maquina agora e continuará maquinando para sempre na

tessitura sem fim da tensão poesia-pensamento. Abramo-nos para sua ausculta. Seu mover fala e

sua fala manifesta o movimento em que vigoram as questões da existência humana, resistentes a

toda cristalização conceitual. Dançando, o destino se manifesta como caminho, verdade e vida.

Destino é a questão de todas as questões e, como tal, nunca se conclui. Vida, caminho e

verdade jamais se acabam, a nós é que nos é dado trilhar apenas uma parte destes. Todos os dias

alguém está sempre atendendo a seus apelos, fazendo uma e outra escutas de mundo, que se abre

em falas autênticas. É certo que há também a errância, isto é, o enviesamento por uma via já

traçada, que se percorre sem novidades e inautenticamente, entificando a vida, o caminho e a

verdade. O destino, entretanto, não se deixa capturar por nenhuma teoria, dele emanam vida,

caminho e verdade como autorrealizações imensas, intensas e indefiníveis. Cada vivente recebe o

seu legado de vida, isso não fala simplesmente do tempo como delimitação cronológica, mas

como realização ou, no dizer grego, kairós, oportunidade ou tempo oportuno. Assim, destino é

possibilidade de e para oportunidade é o que permite cada um ser o que se é, na fala poética,

destino é travessia.

Vivendo, o homem atravessa o destino. Isso não quer dizer simplesmente passar de um

lugar a outro ou ir além de uma modalidade de vida ou de uma delimitação temporal. Travessia é

trans-vertere, é verter para além dentro de si mesmo e, ao mesmo tempo, trazer esse além para a

experienciação diária com-sagrando, a vida apropriando-nos do que nos é próprio, como

caminho-sentido e verdade-manifestação do que somos na permanente reinvenção da vida-

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travessia. Reinventar não é apenas criar algo de novo ou imaginar uma coisa que se dá como real,

mas mergulhar no ordinário da vida e encontrar-se com o extraordinário, é olhar a cada momento

para onde sempre se olhou e, de repente, ver o que nunca tinha visto antes e se apossar de um

novo sentido de ser e existir como uma libertação de tudo que, de algum modo, se cristalizou

dentro de nós e nos tornarmos líquidos, gasosos e outra vez corpo – permanente libertação de nós

mesmos.

Nesse sentido, destino é reinventar como passar do não-ser ao ser e vice-versa. Um dos

verbos gregos usados para designar esse acontecimento é poiein, que tanto se traduz como

poética ou arte. Esse passar do não-ser ao ser não é simplesmente uma técnica, embora também a

contenha, mas o que dá sentido ao ser e vai além de todo fazer técnico, porque é o que possibilita

a eclosão de sentido para a vida humana no seu habitar mundo e percurso entre os outros mortais,

isso nenhuma técnica é capaz de fazer.

Destino não é, dá-se, isto é, não é conceituável, mas nomeia o mover contínuo e irrepetível

de manifestação de sentido. Destino é poiesis, é o grande mundo crescendo todos os dias, entre o

fogo e o amor como uma canção cantada por si mesma. Oculto e contemplável, destino é a

máquina que se abre e, no seu maquinar mundo, convida sentidos e intuições para o diálogo

silencioso do amor que presentifica toda ausência assimilada da poesia (inexplicável) da vida.

Destino é o encanto sob o qual dorme, na sombra, uma realidade que transcende a própria

imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos. É a senha da vida, a senha do mundo

que tarda sempre no encontro e, tardando, apela mais intimamente à pro-cura na qual toda cura se

dá como linguagem: pro-cura-palavra-caminho-verdade-vida.

Caminho é destinar-se enviesando pelo caminho destinado, é a mais pura luta do lançar-se

adiante, no lugar imediato onde a vida reflete sua verdade: que o coração também pode crescer.

Enviesar é caminhar entre as pedras do caminho, no mar de toda certeza que se dilui no insólito

encorpado das ondas. É ir firme, pisando firme todo conceito e seguir adiante na luta mais vã que

existe até o raiar da manhã para, então, seguir até a noite e deixar a vida fazer-se por si mesma

unindo e reunindo o que era, é e será.

Verdade é entrega à necessidade e convergência do pensamento entre-tempo e entre-

caminho, é caminhar-entre. É renunciar e abandonar-se à própria sorte, é permitir a vida

gestualizar-se atravessando o possível rumo ao im-possível. É deixar-se enbalar pela morte na

revelação mais profunda da vida como angústia e despedida contínua, que nos ensina a viver

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intensamente cada momento. É porta entreaberta que oculta-revela meio-treva e meio-luz, não

como complementos, mas tensão paradoxal de seu vir-a-ser. É ausculta profunda do mais puro

silêncio que se revela encobrindo e se encobre revelando, é pro-curar a vida inteira gastando a

pupila na contemplação do nada, o nada inesgotável da criação.

Vida é experienciação mais radical frente à finitude. É gastar-se e, no gastar, acrescentar. É

o caminho de compreensão da verdade mais límpida e líquida. É a rendição mais visceral ao

apelo do inesperado como liberdade para a disponibilidade e possibilidade do impossível. É

destinação entre limite e não-limite, é deixar a poesia desse momento inundar a vida inteira, é

amar o perdido, é aceitar o desafio e desafiar-se o tempo todo. Viver é fazer da vida um caminho

de experienciação da verdade a cada passo, a cada minuto, é entregar-se ao movimento do

caminhar para além do horizonte das verdades cristalizadas até cumprir nosso tempo de cura,

nosso destino... ∞

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