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Universidade Federal do Rio de Janeiro GRUPOS E SERVIÇO SOCIAL – EXPLORAÇÕES TEÓRICO-OPERATIVAS Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras 2006

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

GRUPOS E SERVIÇO SOCIAL – EXPLORAÇÕES

TEÓRICO-OPERATIVAS

Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras

2006

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

GRUPOS E SERVIÇO SOCIAL – EXPLORAÇÕES TEÓRICO-

OPERATIVAS

Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras

Tese apresentada ao Programa de Pós-gradução em Serviço Social, Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Mourão Vasconcelos

Rio de Janeiro

Maio/2006

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GRUPOS E SERVIÇO SOCIAL – EXPLORAÇÕES TEÓRICO-

OPERATIVAS

Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Mourão Vasconcelos

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social,

Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social.

Aprovada por:

Presidente, Prof. Dr. Eduardo Mourão Vasconcelos

Profa. Dra. Ana Maria de Vasconcelos

Profa. Dra. Heliana de Barros Conde Rodrigues

Prof. Dr. José Augusto Bisneto

Profa. Doutora Teresa Cristina Carreteiro

Rio de Janeiro

Maio/2006

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Eiras, Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra

Grupos e Serviço Social – explorações teórico-operativas/ Alexandra Aparecida

Leite

Toffanetto Seabra Eiras. – Rio de Janeiro: UFRJ/ESS, 2006.

xi, 357f.; 31 cm.

Orientador: Eduardo Mourão Vasconcelos

Tese (doutorado) – UFRJ/ Escola de Serviço Social/ Programa de Pós-

graduação em Serviço Social, 2006.

Referências Bibliográficas: f. 340-357.

1. Grupos. 2. Serviço Social. 3. Práticas Grupais. 4. Trabalho Profissional com

Grupos. I. Vasconcelos, Eduardo Mourão de. II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Escola de Serviço Social, Programa de Pós-graduação em Serviço Social.

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RESUMO

GRUPOS E SERVIÇO SOCIAL – EXPLORAÇÕES TEÓRICO-OPERATIVAS

Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Mourão Vasconcelos

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título

de Doutor em Serviço Social.

Este trabalho explora as construções teóricas sobre os grupos nas

elaborações realizadas no contexto do Movimento Institucionalista e Grupalista,

especificamente, na obra Crítica da razão dialética, de Jean Paul Sartre; na Análise

Institucional de René Lourau, Georges Lapassade e Félix Guattari; e no Grupo

Operativo de Enrique Pichon Rivière. Recorremos à contextualização histórica desse

movimento e indicamos alguns aspectos de sua repercussão no Brasil. O estudo

exploratório da obra desses autores, em suas produções sobre os grupos, foi

realizada com a intenção de contribuir para a teorização e qualificação do trabalho

profissional com grupos no Serviço Social. Compreendemos e explicitamos essa

qualificação como uma contribuição teórico-operativa que está em consonância com

os problemas e os desafios postos à intervenção profissional a partir do Projeto

Ético-Político dos Assistentes Sociais. É preciso reconhecer também a interlocução

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entre a produção dos autores trabalhados e o marxismo, principalmente no debate

sobre a burocratização no socialismo real e nos organismos vinculados às classes

trabalhadoras na Europa, como os sindicatos e os partidos operários. Uma das

questões presentes nesse debate é a possibilidade de aprofundamento permanente

da democracia nos processos de coletivização do poder ou no exercício coletivo do

poder, e nas formas de autogestão e participação social. As implicações dessa

democratização incluem o respeito à diversidade ou o convívio com a diversidade.

Observamos que em relação aos grupos e às organizações sociais existentes nas

sociedades capitalistas contemporâneas, a democratização exige a superação do

submetimento do trabalho ao capital. Também envolve a explicitação das relações

de poder em suas diferentes expressões, como entre gênero, etnia, gerações etc.

Reencontramos, através de nossas hipóteses de trabalho, a atualidade da

perspectiva crítico-dialética e histórico-material como o método privilegiado para

apreender os grupos e as organizações sociais em seu movimento e para explicitar

as contradições, as tensões e as ambigüidades existentes. Desse modo, a

contribuição desse trabalho para o Serviço Social extrapola o trabalho profissional

com grupos em sentido estrito e poderá ser apropriada como recurso teórico-

operativo, como âncoras de referência para a intervenção profissional mais ampla no

campo social.

Palavras-chave: Grupos, Serviço Social, Práticas grupais, Trabalho profissional com

grupos, autogestão, democratização do poder.

Rio de Janeiro

Maio/06

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Summary

This study investigates the theoretical frameworks on groups developed by

some of the approaches included in the so called Institutionalist and Grupalist

Movement. More specifically, it explores the book Critic of the Dialectical Reason, by

Jean Paul Sartre, the Institutional Analysis approach by René Lourau, Georges

Lapassade and Félix Guattari, and the Operative Group approach by Enrique Pichon

Rivière. The historical contextualization of this movement and some of its unfolding

process in Brazil have been examined. The exploratory study of these authors’ work

on groups was accomplished aiming at contributing for theory building and for the

development of professional intervention in groups by social workers. This

knowledge is understood here as a theoretical-practical contribution to a better

understanding of the professional challenges posed by the so called Ethical-Political

Project developed by the Brazilian social work. It is also necessary to acknowledge

the relations between the authors indicated above and Marxism, particularly in the

debate on bureaucracy in countries which have experienced the real socialism and in

trade unions and workers’ political parties throughout Europe. One of the main issues

present in this debate is the possibility of permanent development of democracy in

power collectivization, power sharing, and in other forms of self-management and

social participation. The implications of this democratization process include respect

and acquaintanceship to diversity. In relation to groups and social organizations

existing in contemporary capitalist societies, effective democratization requires to

overcome the submission of labour to capital. It also includes to make explicit the

power relations among different perspectives, as among gender, ethnicity,

generation, etc. Through the investigation of our hypothesis, the up to date character

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of the critical-dialectical and historical-materialistic is recognized as a central method

for investigating groups and their organizations in their dynamic processes, and to

bring up the existing contradictions, tensions and ambiguities. Therefore, this work’s

contribution to social work is beyond the specificities of the professional work with

groups, and may be appropriated as a wider theoretical-practical reference for

professional intervention in the social field in general.

Keys-words: Groups, Social Work, Professional Work with Groups.

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Aos meus colegas assistentes sociais,

pela determinação em construir novas

referências para a intervenção

profissional, qualificando-a continuamente,

em direção às possibilidades de

superação das formas de exploração e de

dominação existentes em nosso país.

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AGRADECIMENTOS

Em especial, agradeço ao meu marido e companheiro, Lucas, pelos diálogos, pelos

debates calorosos, sem dúvida uma produção fecunda, dois filhos, uma filha, uma

dissertação de mestrado (dele) e esta tese!

Sou grata pela dedicação, pela orientação e pelo acompanhamento atencioso do

Prof. Dr. Eduardo M. Vasconcelos.

Agradeço às indicações bibliográficas, às discussões/contribuições teóricas e

também à disponibilidade dos professores que participam da banca de defesa desta

tese: Profa. Dra. Ana Maria de Vasconcelos, Profa. Dra. Heliana de Barros Conde

Rodrigues, Prof. Dr. José Augusto Bisneto e Profa. Dra. Teresa Cristina Carreteiro.

Agradeço às minhas colegas, professoras da Faculdade de Serviço Social da

Universidade Federal de Juiz de Fora, e respectivamente, às diretoras e chefe de

departamento, pelo estímulo e pelo apoio durante o período de Doutorado, em

especial, às Profas. Sandra Arbex, Marilene Sansão e Mônica Grossi.

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Sou grata às minhas colegas de Doutorado, Cláudia Mônica, Ana Lívia, Cristina,

Sandra, Nair, Ana Amoroso pela fraternidade e pelo carinho em nossa convivência.

Agradeço à Universidade Federal de Juiz de Fora, na pessoa da Reitora, Profa. Dra.

Margarida Salomão pelo apoio institucional e ao Programa de Qualificação

Institucional, na pessoa da coordenadora, Profa. Dra. Maria Aparecida Tardin

Cassab, pela ajuda financeira.

Agradeço aos nossos amigos e aos nossos familiares pelo apoio afetivo (e efetivo)

sem os quais teria sido díficil e talvez, impossível, a minha dedicação à produção

desta tese.

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Não sei se é sonho, se realidade,

Se uma mistura de sonho e vida,

Aquela terra de suavidade

Que na ilha extrema do sul se olvida.

É a que ansiamos. Ali, ali

A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,

Áleas longínquas sem poder ser,

Sombra ou sossego dêem aos crentes

De que essa terra se pode ter.

Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,

Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,

Só de pensá-la cansou pensar,

Sob os palmares, à luz da lua,

Sente-se o frio de haver luar.

Ah, nessa terra também, também

O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,

Nem com palmares de sonho ou não,

Que cura a alma seu mal profundo,

Que o bem nos entra no coração.

É em nós que é tudo. É ali, ali,

Que a vida é jovem e o amor sorri.

Fernando Pessoa

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GRUPOS E SERVIÇO SOCIAL – EXPLORAÇÕES

TEÓRICO-OPERATIVAS

INTRODUÇÃO

“O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”

(Carlos Drummond de Andrade)

Esta tese foi construída tendo como referência dois temas centrais de

pesquisa. O primeiro trata dos grupos, ou das práticas grupais, de algumas das

elaborações e abordagens teóricas sobre os grupos nas sociedades capitalistas

contemporâneas, as quais privilegiam a compreensão dos mesmos em uma

perspectiva histórico- dialética. O segundo tema aborda a problemática da

intervenção profissional com grupos no Serviço Social, mais conhecida como

“trabalho com grupos”, no intuito de elaborar referências compatíveis com o Projeto

Ético-Político dos assistentes sociais.

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As discussões que atravessam este trabalho estão relacionadas ao processo

de renovação do Serviço Social no Brasil e à apropriação da teoria social marxista

como referência para a intervenção profissional identificada como “intenção de

ruptura” (José Paulo Netto, 1991).

A construção desta tese partilha do esforço para qualificar a intervenção

profissional no campo das respostas identificadas com a vertente intenção de

ruptura. Ou seja, o problema e as questões tratadas nesta tese são investidos de

sentido a partir da emergência e da expressão hegemônica1 daquela vertente,

durante as décadas de 80 e 90.

O problema e as questões aos quais nos referimos, remetem-nos às

estratégias profissionais identificadas como “trabalho com grupos”.

O trabalho com grupos no Serviço Social foi ressignificado a partir da intenção

de ruptura com o Serviço Social tradicional2. Nesse aspecto, tal ruptura significou a

negação do Serviço Social de Grupo (SSG) enquanto “método” elaborado nos EUA

e adotado como técnica específica para o trabalho com grupos no Serviço Social,

constituindo uma especialidade profissional conhecida pela denominação Assistente

Social de Grupo.

A negação do SSG como estratégia para o trabalho com grupos, no contexto

de apropriação da teoria social marxista enquanto referência para a intervenção

profissional no Brasil, durante a década de 80, aproximou os assistentes sociais das

abordagens presentes na Educação Popular inspiradas por Paulo Freire (nas

reflexões deste autor e especificamente no Método elaborado por ele no campo da 1 Adiante indicaremos o percurso dessa vertente no processo de renovação do Serviço Social brasileiro. 2 A expressão Serviço Social Tradicional tem sido utilizada para demarcar os modos de intervenção e as fundamentações teórico-metodológicas orientados por um horizonte político conservador, de preservação da ordem social existente e do status quo dominante. Refere-se, ainda, às posições católicas de rechaço ao capitalismo, na perspectiva anti-moderna que a Instituição Católico-Romana empreendeu face aos horizontes da Modernidade na Europa e na América Latina.

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alfabetização de adultos). Também houve uma aproximação com a Antropologia

Cultural principalmente nos temas relacionados ao respeito pelas expressões

diferentes presentes nas elaborações identificadas como “populares” ou do “povo”,

ou como “saber popular”.

Durante a década de 90 face ao refluxo dos Movimentos Sociais Populares e

dos Movimentos Populares Urbanos, expressivos na década anterior, e diante das

estratégias de implementação do neoliberalismo no Brasil, no contexto de

reestruturação produtiva dirigido pelos novos padrões de acumulação flexível, as

estratégias de Educação Popular perderam espaço e os educadores foram

remetidos à reflexão quanto ao insucesso dos objetivos de longo alcance, tais como

os investimentos em relação à transformação social ou mesmo em relação à

ruptura/superação do modo de produção capitalista no Brasil3. As estratégias gerenciais alinhadas aos influxos da acumulação flexível e do

neoliberalismo trouxeram consigo “novas demandas” as quais incorporam,

atualmente, a dimensão do trabalho de equipe, do trabalho de grupo dentro das

organizações de um modo geral, inclusive extrapolando as organizações

estritamente industriais/empresariais.

O Serviço Social, inserido sócio-institucionalmente nos diversos campos

sócio-ocupacionais, também foi atravessado pelas “novas demandas” e, nesse

sentido, fomos provocados a elaborar nossas respostas a tais demandas.

Assim, o trabalho com grupos, compreendido estritamente como instrumento

de intervenção, tem sido valorizado como habilidade profissional em diferentes

espaços sócio-ocupacionais.

3 Os livros O Pêndulo das Ideologias: a educação popular e o desafio da pós-modernidade (1994) e Educação popular – utopia latino-americana (1994) contém algumas avaliações sobre essa estratégia e os projetos de transformação social.

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Entretanto, a dimensão grupal e coletiva, presente enquanto prática humana e

social também tem sido “desvendada” como importante aliada nas projeções

societárias possíveis em nosso horizonte econômico-histórico-cultural conforme

explicitaremos oportunamente.

Observamos que o trabalho com grupos adquiriu relevância em diferentes

perspectivas, desde as mais reformistas até as mais ousadas em seus horizontes

revolucionários.

As elaborações teóricas engendradas nas diferentes formas de trabalhar com

grupos são divergentes de acordo com os horizontes político-ideológicos que as

perfazem.

A nosso ver, adquirem relevância para o Serviço Social comprometido com as

formulações da vertente intenção de ruptura, as produções/elaborações teóricas

sobre os grupos na perspectiva histórico-dialética e sócio-histórica.

Nessa perspectiva tem-se estabelecido um debate explícito com a teoria

social marxista, o qual tem sido qualificado por produções afins ao marxismo (como

na obra sartreana, como na socioanálise na formulação de George Lapassade e

René Lourau e no Grupo Operativo de Enrique Pichon-Rivière) ou em consonância

com o horizonte revolucionário também presente na prática política influenciada pelo

marxismo (como a perspectiva de superação do capitalismo a partir das revoluções

moleculares descritas por Guattari).

O núcleo desse debate focaliza a produção grupal ou a dimensão grupal

presente na práxis revolucionária e explicita as divergências e as diferenças no

processo de construção e afirmação dos projetos societários revolucionários4. Ao

submetermos a práxis revolucionária à análise na perspectiva da prática humana

4 Esta compreensão, aqui explicitada, foi construída em diálogo com o Prof. Dr. Eduardo Mourão Vasconcelos, nas disciplinas ministradas por ele, e durante o processo de orientação desta tese.

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comum (práxis comum) ou da prática humana grupal (práxis grupal) também

desvelamos a complexidade da unidade pertinente aos processos revolucionários

(como veremos adiante na obra de Sartre), a qual impõe – a nosso ver, sob uma

perspectiva emancipatória – a convivência democrática (exercício plural e coletivo

do poder) como estratégia de manutenção/conservação em relação às novas

práticas e aos novos conteúdos emancipatórios instituintes.

Então, em resumo, a tese por nós sustentada afirma-se nos seguintes

pressupostos acerca do processo recente vivido pela profissão no Brasil:

O Serviço Social, no processo de renovação da profissão no Brasil, sob a

hegemonia da vertente intenção de ruptura, formulou novas referências

teórico-metodológicas, as quais, ao serem apropriadas no processo de

intervenção profissional, suscitam novos problemas, entre eles, a formulação

de estratégias alinhadas ao novo referencial.

O novo referencial teórico-metodológico elege a tradição marxista e suas

principais correntes como referência teórica principal e apresenta como

horizonte ético-político, no Projeto dos assistentes sociais, as perspectivas de

superação de todas as formas de exploração e dominação existentes nas

sociedades capitalistas contemporâneas.

As questões referentes à ruptura (contínua) com as práticas conservadoras

ou tradicionais no exercício da profissão colocam a necessidade de

compreender a intervenção do Serviço Social como prática instituinte,

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construída historicamente e inserida sócio-institucionalmente ou como prática

grupal/coletiva permanente.

A compreensão sobre os grupos ou sobre as práticas grupais nas sociedades

capitalistas contemporâneas explicita o caráter de produção/construção

permanente da realidade social em todas as dimensões possíveis, desde a

produção/reprodução material da vida até às mais sofisticadas explicações

sobre a existência humana nessas sociedades.

A intervenção do Serviço Social, em sentido amplo, é intervenção com

grupos, seja no plano das inserções sócio-institucionais, envolvendo inclusive

as relações com os usuários do Serviço Social; seja no plano das relações

internas, na construção das respostas profissionais debatidas entre os

assistentes sociais.

O trabalho com grupos, estritamente, beneficia-se desta compreensão

ampliada sobre os grupos e as práticas grupais.

O diálogo com as elaborações teóricas, as quais focalizam as relações

sujeitos/grupos em diversas situações e inserções sociais, possibilita a

incorporação de referências psicológicas compatíveis com a abordagem

histórico-dialética e sócio-histórica, contribuindo para a qualificação do

trabalho com grupos, em sua dimensão teórico-operativa.

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Estamos utilizando a expressão “referência teórico-metodológica” para

enfatizar a apropriação metodológica ou a instrumentalidade

construída/apreendida nas práticas grupais/coletivas, em nosso caso, a

apropriação teórico-metodológica realizada no processo de renovação do

Serviço Social no Brasil, ou seja, uma nova compreensão/inteligibilidade

sobre a profissão – historicamente construída no movimento dos assistentes

sociais brasileiros, demarcado politicamente, contextualizado e atravessado

por múltiplas variáveis – que incorporou novos conteúdos teórico-operativos

os quais tem sido permanentemente discutidos e diversamente re-apropriados

(inclusive sincreticamente) nas práticas interventivas, nas diferentes inserções

organizacionais seja nos espaços sócio-ocupacionais existentes, seja na

formação profissional e no movimento dos assistentes sociais (nas

organizações específicas dos assistentes sociais), instâncias em estreita

comunicação entre si.

Nossa tese pode ser assim formulada:

As referências teórico-metodológicas formuladas a partir da emergência da

vertente intenção de ruptura e condensadas no Projeto Ético-Político dos

assistentes sociais apresentam lacunas teórico-operativas em relação à

compreensão sobre os grupos e sobre as práticas grupais nas sociedades

capitalistas contemporâneas. A qualificação do trabalho profissional com

grupos depende da elaboração de conteúdos teórico-operativos que

explicitem essas lacunas e auxiliem na apreensão histórico-dialética dos

grupos e das práticas grupais. A perspectiva histórico-dialética possui

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aberturas que possibilitam a compreensão dos grupos e das práticas grupais

enquanto processos grupais, sem isolá-los em suas singularidades e em suas

expressões particulares.

Esta tese explora as possibilidades de compreensão sobre os grupos e sobre

as práticas grupais no campo de produção/elaboração do Movimento

Institucionalista e Grupalista, principalmente, na sua expressão francesa

(oportunamente explicitaremos os motivos desta opção).

No intuito de apresentar os temas e os problemas trabalhados

exploratoriamente nesta tese, e a fim de manter a complexidade das questões

engendradas nos mesmos, optamos por uma estratégia de exposição focalizada na

produção/elaboração teórica de alguns autores escolhidos por sua relevância no

campo das produções/elaborações teóricas sobre os grupos ou sobre as práticas

grupais em sua dimensão histórico-dialética e sócio-histórica.

Nossa exposição está organizada em três capítulos.

No primeiro capítulo apresentamos o Projeto Ético-Político dos assistentes

sociais e as implicações deste projeto para a intervenção do Serviço Social,

problematizando, especificamente, os conteúdos referentes ao trabalho profissional

com grupos.

No segundo capítulo apresentamos os grupos na perspectiva histórico-

dialética através da obra Crítica da razão dialética escrita por Jean Paul Sartre.

No terceiro capítulo apresentamos o Movimento Institucionalista e Grupalista

através da produção de George Lapassade, René Lourau, Félix Guattari e Enrique

Pichón Rivière.

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No decorrer desta exposição, estaremos explicitando, quando for necessário,

as nossas “hipóteses de trabalho”. Tais hipóteses são formulações que facilitam a

elaboração das questões trabalhadas e se referem à nossa apropriação sobre os

conteúdos teórico-operativos apresentados.

Diz o poeta, "o presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos

muito, vamos de mãos dadas". Ou como conclamaram Karl Marx e Friedrick Engels

ao final do Manifesto Comunista, “Proletários de todos os países, uni-vos”.

Destacamos "os grupos" (enquanto nosso tema de pesquisa) também pelo

desejo e pela necessidade de compreendermos esta dimensão de nossa prática

humana. O desejo e a necessidade que nos aproximam. O desejo e a necessidade

que nos afastam. Ou ainda, o desejo e a necessidade de compreender as

possibilidades históricas de construirmos projetos coletivos no horizonte de nossas

perspectivas emancipatórias e libertárias.

Sinto-me na obrigação de dizer que minha contribuição é modesta. Contudo,

considerando o caráter exploratório desta tese, podemos avaliar que foi possível

avançar na elaboração de algumas referências, contribuindo para a apreensão de

conteúdos teórico-operativos sobre os grupos e sobre as práticas grupais nas

sociedades capitalistas contemporâneas e para a qualificação do trabalho com

grupos no Serviço Social.

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CAPÍTULO 1 – O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DOS

ASSISTENTES SOCIAIS E O TRABALHO PROFISSIONAL

COM GRUPOS

Neste capítulo elaboramos as relações entre o Projeto Ético-Político dos

assistentes sociais (o qual expressa as intenções de ruptura com o Serviço Social

Tradicional e explicita o horizonte ético-político norteador de suas intervenções) e o

trabalho profissional com grupos.

Nossa intenção foi a de ressaltar, tanto as aproximações, quanto as lacunas

existentes nas apropriações do Serviço Social brasileiro sobre os grupos e as

práticas grupais nas sociedades capitalistas contemporâneas.

Podemos adiantar algumas das questões aqui indicadas.

A primeira delas refere-se à prática grupal desencadeada pelos assistentes

sociais no processo de renovação do Serviço Social no Brasil. Tal prática produziu

um Projeto norteador das intervenções profissionais (e uma convergência em torno

dos princípios ético-políticos formulados no Código de Ética Profissional de 1993)

gerando a necessidade/expectativa de recriação contínua (proposições criativas e

apropriações subjetivas) nas intervenções dos assistentes sociais.

A segunda refere-se à negação dos conteúdos teórico-operativos

identificados com a produção positivista e funcionalista também ideologicamente

comprometida com o projeto de dominação burguesa, entre eles, muitas das

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proposições sobre os grupos nas sociedades contemporâneas elaboradas pela

sociologia, pela psicossociologia, pela psicologia social e também pela psicanálise,

entre outras disciplinas.

Ao atuarem coletivamente, os assistentes sociais manifestam, concretamente,

sua compreensão sobre as práticas empreendidas grupalmente e sobre o poder a

elas relacionado.

Explicitamente, o movimento dos assistentes sociais empreendeu ações no

intuito de fortalecer as posições de ruptura com o Serviço Social Tradicional.

Nesse sentido, as noções sobre as práticas grupais e coletivas estão

presentes no horizonte das intervenções profissionais.

A lacuna explicita-se pela ausência de conteúdos teórico-operativos capazes

de favorecer a apreensão dos grupos e das práticas grupais em sua especificidade e

em sua complexidade, ou seja, a pouca problematização existente (no debate

profissional) sobre os processos grupais e suas implicações político-sociais face aos

projetos societários de cunho emancipatório e libertário.

Este capítulo está organizado nas seguintes seções:

1.1 – O processo de renovação do Serviço Social no Brasil

1.2 – O Projeto Ético-Político dos assistentes sociais na perspectiva dos

Princípios Fundamentais expostos no Código de Ética Profissional de

1993

1.3 – Conteúdos teórico-operativos necessários à intervenção profissional

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1.1 – O processo de renovação do Serviço Social no Brasil

O Serviço Social no Brasil atravessou um período de renovação em suas

formulações teóricas e em suas respostas profissionais entre e durante as décadas

de 60 e 80, processo este que alterou significativamente as referências teóricas

herdadas pelas contribuições franco-belgas e norte-americanas durante as décadas

de 30 e 40, momento em que a profissão se constituía em nosso país.

Tal processo tem sido compreendido como uma renovação do Serviço Social

no Brasil e foi apreendido por José Paulo Netto como "uma resposta construída

pelos assistentes sociais na rede de relações que se entretecem na interação

profissionalidade/sociedade" a partir do entrecruzamento entre a "dinâmica

abrangente das demandas sócio-institucionais postas ao Serviço Social e da

dinâmica interna à realidade profissional (que envolve níveis outros que o da estrita

'teorização') (...) enlaçado pelo movimento totalizante da formação social brasileira

sob o regime autocrático burguês" (1991:9-10).

José Paulo Netto (idem) caracteriza o processo de renovação do Serviço

Social no Brasil como uma ruptura que distinguiu o Serviço Social contemporâneo

de seu recente passado histórico, propiciando inclusive que as respostas

profissionais ultrapassassem as próprias demandas e condicionamentos postos pela

autocracia burguesa.

Segundo o autor, até meados dos anos sessenta, o Serviço Social mostrava

uma relativa homogeneidade interna atestada pela ausência de polêmicas

importantes – o que sugeria certa unidade nas propostas profissionais – bem como

carecia de uma elaboração teórica mais significativa. A "total assepsia de

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participação político-partidária" (idem: 128) junto às características mencionadas

asseverava uma direção consensual nas práticas interventivas e cívicas dos

assistentes sociais, o que é claro, não implicava na ausência de tensões e de

conflitos internos, porém, tais manifestações não expressavam diferenças

significativas de posicionamento entre os assistentes sociais. De acordo com Netto,

a ruptura com este cenário tem suas bases na laicização do Serviço Social, que as condições novas postas à formulação e ao exercício profissionais pela autocracia burguesa conduziram ao ponto culminante; são constitutivas desta laicização a diferenciação da categoria profissional em todos os seus níveis e a conseqüente disputa pela hegemonia do processo profissional em todas as suas instâncias (projeto de formação, paradigmas de intervenção, órgãos de representação etc.) [Tal laicização que vinha acontecendo desde à década de 50] foi precipitada decisivamente pelo desenvolvimento das relações capitalistas durante a 'modernização conservadora' e só é apreensível levando-se em conta as suas incidências no mercado nacional de trabalho e nas agências de formação profissional (idem:128:129)

José Paulo Netto sintetiza quatro aspectos que sinalizam os "nós mais

decisivos” do processo de renovação do Serviço Social:

a) a instauração do pluralismo teórico, ideológico e político no marco profissional, deslocando uma sólida tradição de monolitismo ideal;

b) a crescente diferenciação das concepções profissionais (natureza, funções, objeto, objetivos e práticas do Serviço Social), derivada do recurso diversificado a matrizes teórico-metodológicas alternativas, rompendo com o viés de que a profissionalidade implicaria uma homogeneidade (identidade) de visões e de práticas;

c) a sintonia da polêmica teórico-metodológica profissional com as discussões em curso no conjunto das ciências sociais, inserindo o Serviço Social na interlocução acadêmica e cultural contemporânea como protagonista que tenta cortar com a subalternidade (intelectual) posta por funções meramente executivas;

d) a constituição de segmentos de vanguarda, sobretudo, mas não exclusivamente inseridos na vida acadêmica, voltados para a investigação e a pesquisa (idem:135-136).

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O processo de renovação do Serviço Social ocorreu em consonância com a

erosão das bases que sustentaram as respostas elaboradas pelo Serviço Social

Tradicional no Brasil5.

Nesse sentido, a renovação do Serviço Social brasileiro também foi um

processo que comportou direções diferentes, enraizadas tanto no processo histórico

brasileiro quanto no acúmulo teórico-político-cultural vivido pelos assistentes sociais.

José Paulo Netto identificou três direções envolvidas neste processo de

renovação, entre as décadas de 60 e 80: a perspectiva modernizadora, a

perspectiva de reatualização do conservadorismo e a perspectiva intenção de

ruptura6.

A perspectiva de intenção de ruptura, como a terceira direção identificada no

processo de renovação do Serviço Social no Brasil, propõe-se a romper com o

Serviço Social Tradicional. Segundo Netto,

ao contrário das anteriores, esta possui como substrato nuclear uma crítica sistemática ao desempenho 'tradicional' e aos seus suportes teóricos, metodológicos e ideológicos. Com efeito, ela manifesta a pretensão de romper quer com a herança teórico-metodológica do pensamento conservador (a tradição positivista), quer com os seus paradigmas de intervenção social (o

5 José Paulo Netto analisa a erosão do Serviço Social Tradicional no Brasil relacionada às demandas de intervenção sobre a questão social, no contexto de industrialização pesada (no final dos anos 50), que “desbordavam amplamente as práticas profissionais que os assistentes sociais brasileiros estavam cristalizando como próprias da sua atividade (basicamente concretizadas nos ‘processos’ das abordagens individual e grupal). Donde, já então, o empenho profissional para desenvolver outras modalidades interventivas, com a assunção da abordagem ‘comunitária’ enquanto outro ‘processo’ profissional” (Netto, 1991:137). A intervenção no plano comunitário apresentou elaborações diferentes: “uma corrente que extrapola para o Desenvolvimento de Comunidade os procedimentos e as representações ‘tradicionais’, apenas alterando o âmbito da sua intervenção; outra, que pensa o Desenvolvimento de Comunidade numa perspectiva macrossocietária, supondo mudanças socioeconômicas estruturais, mas sempre no bojo do ordenamento capitalista; e, enfim, uma vertente que pensa o Desenvolvimento de Comunidade como instrumento de um processo de transformação social substantitva, conectado à libertação social das classes e camadas subalternas” (idem:140). 6 Para uma compreensão quanto às características e quanto ao desenvolvimento das perspectivas modernizadora e de reatualização do conservadorismo remetemos o leitor ao livro de José Paulo Netto Ditadura e Serviço Social – uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64 (1991).

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reformismo conservador)7. Na sua constituição, é visível o resgate crítico de tendências que, no pré-64, supunham rupturas político-sociais de porte para adequar as respostas profissionais às demandas estruturais do desenvolvimento brasileiro. Especialmente, ela toma forma pela elaboração de quadros docentes e profissionais cuja formação se dera entre as vésperas do golpe e a fascistização assinalada pelo AI-5. Na sua evolução e explicitação, ela recorre progressivamente à tradição marxista (...) e revela as dificuldades da sua afirmação no marco sociopolítico da autocracia burguesa: sua emersão inicial (configurada no célebre 'Método Belo Horizonte'), na primeira metade da década de setenta, permaneceu por longos anos um signo isolado. À medida que avança a crise da ditadura, e o 'marxismo acadêmico' (...) se desenvolve, ela se adensa, sobretudo enquanto padrão de análise textual; quando a autocracia burguesa entra na defensiva e se processa a transição democrática, ela empolga vanguardas profissionais, fortemente mesclada ao novo irracionalismo (...). Na primeira metade dos anos oitenta, é esta perspectiva que dá o tom da polêmica profissional e fixa as características da retórica politizada (com nítidas tendências à partidarização) de vanguardas profissionais de maior incidência na categoria, permeando o que há de mais ressonante na relação entre esta e a sociedade – e de forma tal que fornece a impressão de possuir uma inconteste hegemonia no universo profissional (idem:159-160).

A ação dos profissionais, na perspectiva de ruptura com o Serviço Social

Tradicional, produziu outras referências para a intervenção profissional. De modo

estratégico, estes profissionais propuseram alterações significativas sobre o

currículo de Serviço Social (1982 e 1996) e sobre o Código de Ética Profissional

(1986 e 1993); na produção e na formação acadêmica, elaboraram novas

referências teórico-operativas8, polarizando o debate profissional em torno das

7 Para um aprofundamento na discussão sobre o conservadorismo no Serviço Social pode-se consultar o livro Renovação e conservadorismo no Serviço Social de Marilda Iamamoto (1992). José Paulo Netto também apresenta os fundamentos “científicos” e o estatuto profissional do Serviço Social em seu livro Capitalismo Monopolista e Serviço Social (2001) explicitando a herança positivista presente na profissão. 8 Nas novas referências teórico-operativas, durante a década de 80, enunciou-se a compreensão quanto à unidade entre história, teoria e metodologia (registrada nos debates publicados nos Cadernos ABESS números 1 e 3). Desse modo, a compreensão histórica sobre a emergência do Serviço Social inspirada na teoria social marxista, como no livro de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho (Relações Sociais e Serviço Social no Brasil – esboço de uma interpretação histórico-metodológica, publicado no início dos anos 80), significaria uma nova apreensão sobre a intervenção profissional, gerando a expectativa de produção de novos instrumentos e de novas técnicas. Em relação à perspectiva teórico-metodológica, a “análise sobre a realidade” foi enfatizada como desencadeadora das ações profissionais no processo de intervenção (os assistentes sociais devem ser capazes de analisar a realidade na qual eles estão inseridos, daí a importância de sua formação intelectual). Esta análise também incorporou, em certa medida, como estratégias, a análise de conjuntura e a análise institucional, numa perspectiva sociológica, como possibilidade de distinguir os diversos projetos em disputa (na sociedade e) nos espaços sócio-institucionais.

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apropriações sobre a teoria social marxista. Tais ações constituíram,

progressivamente, o Projeto Ético-Político dos assistentes sociais.

As ações de ruptura com o Serviço Social Tradicional compartilham

horizontes político-ideológicos na perspectiva de transformação das relações sociais

atuais – as quais se sustentam sobre o modo-de-produção capitalista – na

perspectiva de superação das formas de exploração e de dominação existentes: a

exploração das classes trabalhadoras e as formas de submissão social sintetizadas

na manutenção do status quo dominante.

O comprometimento político-ideológico com a formulação de projetos

societários emancipatórios coloca os assistentes sociais em uma posição de

enfrentamento e de proposição (criação) diante das respostas sócio-institucionais

elaboradas às expressões das questões sociais pertinentes ao desenvolvimento

capitalista.

O enfrentamento refere-se ao posicionamento crítico face às estratégias

sócio-institucionais mantenedoras do status quo dominante. E a proposição refere-

se às possibilidades de criação (ou mesmo de renovação) das estratégias sócio-

institucionais no intuito de alinhá-las aos horizontes político-ideológicos

emancipatórios.

Tanto o enfrentamento quanto as proposições criativas serão possíveis na

medida em que exista um contexto favorável aos mesmos9.

9 É relevante atentar para as posturas fatalistas e messiânicas presentes no Serviço Social. Ambas ignoram o caráter contraditório ou a dimensão dialética da realidade social. A primeira ao considerar que nenhuma ação é possível em direção ao horizonte político-ideológico emancipatório; a segunda porque superestima o poder individual sobre as transformações sócio-institucionais. Marilda Iamamoto tem refletido sobre esses posicionamentos na profissão (O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional, 1998).

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Por isso, tornam-se relevantes as análises sobre a realidade social,

considerando-se as abordagens históricas, as quais apreendem a dinâmica dos

conflitos e das lutas, das contradições materiais engendradas pelo modo-de-

produção capitalista, em uma perspectiva crítico-dialética.

A perspectiva crítico-dialética focaliza a realidade social procurando

apreendê-la em seu movimento histórico-material.

No Serviço Social tal perspectiva ganha importância, tornando-se uma

habilidade necessária aos assistentes sociais comprometidos com os horizontes

político-ideológicos expressos pela intenção de ruptura.

Nesse sentido, as ações de ruptura assumem um comprometimento duplo:

são ações que buscam romper com as práticas do Serviço Social Tradicional

alinhando-se aos projetos societários emancipatórios e com os horizontes mais

amplos de transformação social.

Contudo, a apreensão da dinâmica social em seu movimento histórico-

material requer tanto a habilidade para perceber as implicações do desenvolvimento

das forças produtivas ou os impactos das formas de produção/reprodução material

hegemônicas sobre as construções humanas, quanto requer a possibilidade de

reconhecer as mediações sócio-institucionais10 em sua relação com o movimento

histórico-material em sua dimensão de totalidade.

Nesse sentido, a perspectiva de totalidade requer, necessariamente, a

habilidade para analisar as manifestações particulares ou as mediações que são

10 As instituições humanas atravessam ou são atravessadas pelas transformações societárias. Desse modo, podemos dizer, por exemplo, que a Igreja Católica é e não é a mesma instituição, ou seja, ela articula conteúdos diferentes e explicações novas, adquirindo novos significados. O significado da Igreja Católica durante a Idade Média, sua centralidade histórica, é muito diferente do significado da Igreja Católica na atualidade, embora esta instituição permaneça e continue sendo uma referência relevante nas sociedades contemporâneas. Assim, o direito romano, ou a medicina grega, ou a universidade medieval permanecem articulando novos conteúdos e novos significados nas sociedades capitalistas contemporâneas.

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concretamente a expressão da totalidade ou os mecanismos pelos quais as

coerências são estabelecidas tornando-se, então, plausíveis.

Assim, a totalidade social existe, concretamente, na medida em que pode ser

apreendida particularmente, como por exemplo, nas suas expressões sócio-

institucionais11.

O Projeto Ético-Político dos assistentes sociais desenvolve-se, articula-se

concretamente, através das inserções sócio-institucionais ou dos espaços sócio-

ocupacionais ocupados pelo Serviço Social; através das organizações próprias ao

Serviço Social, tais como, os Conselhos Regionais (CRESS) e o Conselho Federal

de Serviço Social (CFESS), a Associação Brasileira de Pesquisa e Ensino de

Serviço Social (ABPESS), as faculdades de Serviço Social, os Sindicatos de

Assistentes Sociais, os Diretórios Acadêmicos e os movimentos dos estudantes de

Serviço Social, as pós-graduações na área de Serviço Social, entre outros; através

das formas de participação política desenvolvida pelos assistentes sociais, tais como

suas inserções nos movimentos sociais (por exemplo, na esfera da assistência

social, na esfera da infância e juventude etc.), pela militância junto aos partidos

políticos etc.

Desse modo, é difícil avaliar o alcance do Projeto Ético-Político dos

assistentes sociais ou mesmo suas formas de efetivação nas diferentes inserções

destes profissionais, sem estudá-las em sua profundidade e em sua abrangência.

É necessário enfatizar que este estudo consistiria em um empreendimento

coletivo, e não seria possível no âmbito restrito de um programa de doutoramento.

11 Karl Marx, em O capital, estuda as sociedades capitalistas (principalmente a sociedade Inglesa) através da economia política, dos dados e das referências produzidos nessa instituição burguesa; através do movimento operário e de suas formas organizativas em fase de elaboração; através das novas organizações empresarias como as fábricas; através do Estado burguês em consolidação, entre outros. Ou seja, embora ele articule sua compreensão na perspectiva de uma totalidade social, efetivamente, o método por ele desenvolvido, exigiu-lhe o conhecimento das expressões particulares em sua vinculação com aquela perspectiva.

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Contudo, inferimos que o Projeto Ético-Político tem sido uma referência

importante para os assistentes sociais. Nossa inferência sustenta-se nos seguintes

argumentos:

1) O Projeto é uma das respostas profissionais às demandas sócio-institucionais

em um contexto de democratização (ou de valorização da democratização

enquanto um horizonte a ser alcançado). Assim, ele contém referências

metodológicas e conteúdos teórico-operativos através dos quais é possível

renovar as respostas profissionais atendendo às demandas de

democratização, principalmente aquelas referentes à participação popular e

ao protagonismo das classes trabalhadoras na construção de projetos

societários emancipatórios12.

2) O Projeto perpassa a formação profissional principalmente pela produção

teórica que inspira e incita nas diferentes instituições acadêmicas; está

presente também, nas questões que atravessam o debate profissional, as

quais dialogam com os problemas enfrentados pelos assistentes sociais no

processo de intervenção sócio-institucional. Nesse sentido, o projeto

constituiu-se em uma referência, às vezes explícita (quando o debate focaliza

os limites da intervenção profissional, amplificados diante do horizonte ético-

político apropriado de forma fatalista ou messiânica13); outras vezes, torna-se

uma referência implícita, quando os assistentes sociais apropriam-se,

12 Ao final da década de 70, o protagonismo das classes trabalhadoras foi expresso nas lutas empreendidas no “ABC paulista”, as quais produziram o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) como formas organizativas que contestavam as estruturas partidárias e sindicais existentes. O PT organizou-se na expectativa de responder à necessidade de participação de suas bases, na expectativa de manter relações democráticas, expressando, inclusive, o comprometimento com a construção do socialismo. A CUT organizou uma outra forma de unidade entre os sindicatos de trabalhadores (com a proposição de organização por ramos de produção) a fim de oferecer outros meios de luta inviabilizados pela burocracia dos sindicatos organizados por categorias profissionais (conforme Ricardo Antunes, O novo sindicalismo, 1991). 13 Conforme nota número 08, nesta seção.

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ideologicamente, no processo de formação profissional, dos horizontes ético-

políticos presentes no projeto de ruptura, ainda que existam inconsistências

teórico-metodológicas em sua fundamentação14.

3) A incorporação do Projeto de Ruptura pela via dos Princípios Ético-Políticos

explicitados no Código de Ética Profissional de 1993 significou a abertura do

projeto de ruptura através da democratização do debate profissional na

perspectiva do pluralismo15. Esta abertura evidenciou-se no processo de

discussão do Código de Ética16, e propiciou a manifestação dos profissionais

nas assembléias realizadas17. Afirmamos, então, que o Projeto de Ruptura

14 Tal apropriação se expressa em uma compreensão ingênua, bem intencionada, das possibilidades de transformação social, sem um conseqüente aprofundamento metodológico-teórico-operativo e adquire maior visibilidade entre os estudantes de Serviço Social e entre os assistentes sociais recém-formados. 15 “O adensamento do debate profissional, sobretudo na década de 80 e início dos anos 90, levou a um amadurecimento na reflexão da teoria crítico-dialética, que fundamenta o projeto profissional a partir do chamado processo de reconceituação. Reúne um esforço de ampliação da concepção de aliança com os usuários do Serviço Social e das idéias de compromisso com os valores da liberdade, democracia, cidadania e direitos sociais. Aos poucos, superam-se as práticas militantistas e messiâncias, impregnadas de um conteúdo, muitas vezes romântico, parcializado, meramente denunciativo/acusatório e caudatário de uma visão vulgar do marxismo. Ao mesmo tempo, avança-se na direção de um debate plural conseqüente, que não se confunde com pronunciamentos ecléticos, ancorado na necessidade de convívio democrático com a diversidade, tendo como suposto o crédito no compromisso com os princípios libertários” (Bonetti e outros, 1996:14. Grifos nossos). 16De acordo com Maria Lúcia Barroco, “o processo de debates éticos que teve início em 1992, culminando com a aprovação do novo Código, um ano depois, foi marcado por um encaminhamento inédito na trajetória da reflexão ética profissional. Historicamente, é em função do Código de Ética que a categoria se mobiliza para tal discussão, o que já aponta para uma concepção restrita acerca da ética profissional; restrita à codificação formal, a ética deixa de ser tratada como tema do cotidiano e apreendida como relação entre as esferas e atividades sociais. Em 1992, o processo foi inverso; iniciando-se como reflexão sobre ética, em geral, levou à questão da ética profissional e ao Código, como uma de suas dimensões” (2001:199). 17Segundo Bonetti (e outros), o CFESS (gestão 1990-93) assumiu o desafio de enfrentar o debate sobre a ética profissional, “agendando-o desde a sua plataforma programática e colocando na ordem do dia das pautas dos encontros profissionais que organizou, em parceria com os Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESS), a Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social (ABESS), o Centro de Documentação e Pesquisa em Políticas Sociais e Serviço Social (CEDEPSS), a Associação Nacional dos Assistentes Sociais (ANAS), existente na época, e a Sub-Secretaria de Serviço Social na UNE/SESSUNE (atual ENESSO/Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social). O debate ético desencadeou-se o mais amplamente possível, contando com a maciça participação da categoria, expressa nas diversas conferências e comunicações apresentadas, bem como por contribuições de profissionais de áreas afins. Esse processo teve início no I Seminário Nacional de Ética (agosto de 1991), tendo continuado no 7º. CBAS (maio de 1992), no II Seminário Nacional de Ética (novembro de 1992), em diversos encontros estaduais, e culminando com a

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através dos Princípios Fundamentais formulados no Código de Ética de 1993

produziu uma síntese plural das concepções e orientações éticas existentes

na profissão sob a direção da intenção de ruptura. Dessa forma, os

assistentes sociais (em geral) tendem a reconhecer, nos Princípios

Fundamentais, algumas de suas aspirações profissionais, mesmo que

existam divergências na adesão aos diferentes projetos societários. Nesse

sentido, a convergência é bem expressa, por exemplo, na dimensão da

defesa dos direitos humanos e dos direitos sociais; na defesa da democracia,

da liberdade e da autonomia individual; na luta pela efetivação da cidadania;

na qualidade dos serviços oferecidos aos usuários, na valorização da

competência profissional. Tais enunciados, por sua amplitude, envolvem

algumas das aspirações e dos horizontes que norteiam as expectativas

quanto aos impactos da intervenção profissional nos espaços sócio-

ocupacionais nos quais se desenvolve.

A partir dessas inferências, consideramos pertinente uma aproximação aos

Princípios Fundamentais enunciados no Código de Ética Profissional de 1993 cujo

conteúdo nós apresentaremos adiante.

aprovação do novo Código de Ética, no XXI Encontro Nacional CFESS/CRESS (fevereiro de 1993). Em março de 1993, entrou em vigor o novo Código (1996:16).

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1.2 – O Projeto Ético-Político dos Assistentes Sociais na

perspectiva dos Princípios Fundamentais expostos no Código de

Ética Profissional de 1993

Os Princípios Fundamentais expostos no Código de Ética Profissional de

1993 possibilitaram uma divulgação mais abrangente do Projeto de Ruptura entre os

assistentes sociais.

Através do Código de Ética de 1993, o Projeto de Ruptura foi apropriado

como Projeto Ético-Político dos assistentes sociais, tornando-se uma das

referências profissionais face aos encaminhamentos práticos e ao posicionamento

político diante do Estado (Barroco, 2001) 18.

De acordo com Maria Lúcia Barroco,

[os] avanços permitem situar o Código de Ética como uma expressão significativa do acúmulo profissional dos anos 1980 e dos avanços teórico-políticos conquistados na seqüência do Código de 1986, assinalando um novo e sólido patamar na trajetória do Serviço Social no Brasil (...) A elaboração deste Código implicou um processo coletivo de debates e reflexões que lhe confere uma inegável legitimidade em face do conjunto dos assistentes sociais. Isto, porém, não significa a ausência de contradições, tensões e, até mesmo, antagonismos; não assenta numa espécie de ‘identidade profissional’ (ou sócio-profissional) homogênea e sim, na hegemonia, no âmbito profissional, da vertente teórico-metodológica que, como sugerimos, veio se fortalecendo no Brasil nas duas últimas décadas, e que denominamos de tendência de ruptura (2001:207).

Nessa direção, os Princípios Fundamentais expostos no Código de Ética

constituem, atualmente, a apresentação básica do Projeto Ético-Político, em uma

18 Considerando as características da institucionalização do Serviço Social no Brasil o Estado ou o poder público (municipal, estadual, federal) tem sido o setor que mais oferece empregos aos assistentes sociais. Por outro lado, o Estado é o responsável pela formulação e execução das políticas públicas nas quais o Serviço Social possui um lugar destacado.

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síntese dos pressupostos que norteiam a intervenção profissional na perspectiva do

Projeto de Ruptura.

A discussão sobre os Princípios Fundamentais, no contexto de elaboração do

Código de Ética Profissional constituiu o fórum mais abrangente, em termos da

explicitação do Projeto Ético-Político no âmbito da categoria de assistentes sociais.

Dessa forma, os Princípios Fundamentais também constituem a versão mais

acessível do Projeto, principalmente, se considerarmos os profissionais formados no

período anterior às reformulações curriculares introduzidas na década de 80.

Ainda é preciso dizer que os Princípios Fundamentais e o Código de Ética de

1993 são o produto da organização profissional posterior à renovação do Serviço

Social no Brasil.

Assim também, o Código de Ética de 1993 incluindo os Princípios

Fundamentais constitui a normatização atual da profissão, expressando-se em uma

das principais referências para a intervenção profissional19.

Assim, a adesão ao Projeto Ético-Político, se apreendida pela via do Código

de Ética Profissional pode ser considerada como uma adesão abrangente.

A construção da cidadania plena, a democratização das instituições, a luta

pela efetivação dos direitos sociais, o fim da exploração do trabalho, o fim da

dominação entre os gêneros, a eliminação de todas as formas de discriminação,

entre outros, são temas distinguíveis nos discursos dos assistentes sociais, de um

modo geral. Esses temas aparecem na elaboração dos Princípios Fundamentais,

como descreveremos adiante.

19 A Lei de Regulamentação da Profissão (Lei 8662 de 1993), as Diretrizes Curriculares de 1996, junto ao Código de Ética de 1993, constituem as principais referências do Projeto Ético-Político dos assistentes sociais.

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Contudo, o conhecimento sobre os fundamentos teórico-metodológicos –

os quais estão presentes na formulação dos Princípios Fundamentais, enquanto

expressão do Projeto Ético-Político enunciado enquanto Projeto de Ruptura – é

restrito, alcançando um número menor de assistentes sociais.

Nesse sentido, os profissionais que continuam o processo de formação

acadêmica através da inserção nos programas de pós-graduação (lato ou strictu

sensu) tendem a aprofundar a sua compreensão sobre a intervenção profissional,

aprofundando seu conhecimento sobre o Projeto Ético-Político, qualificando sua

participação no debate sobre a profissão.

Observamos, também, que o processo de formação acadêmica promove a

inserção dos profissionais nos horizontes ético-políticos do Serviço Social, mas, tal

inserção é realizada sincreticamente20, combinando referências teórico-

metodológicas divergentes. Isso ocorre, a nosso ver, pelas características do

processo de formação profissional inserido sócio-institucionalmente nas

organizações acadêmicas, privadas e públicas.

Para José Paulo Netto o sincretismo parece ser "o fio condutor da afirmação e

do desenvolvimento do Serviço Social como profissão, seu núcleo organizativo e sua

norma de atuação”, expressando-se “em todas as manifestações da prática

profissional” e revelando-se em “todas as intervenções do agente profissional como

tal”. Assim, o “sincretismo foi um princípio constitutivo do Serviço Social” (2001: 92).

Dado que o sincretismo é uma condição histórico-social que também constitui

a profissão, a convivência com ele é inevitável. Contudo, José Paulo Netto distingue

entre o sincretismo como princípio constitutivo do Serviço Social e a sua

manifestação teórico-metodológica expressa no ecletismo. Nesse sentido, o autor

20 A discussão sobre o sincretismo no Serviço Social foi realizada por José Paulo Netto em seu livro Capitalismo Monopolista e Serviço Social (2001).

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indica a necessidade e a possibilidade de ultrapassagem do ecletismo como

horizonte de superação da tradição positivista e do pensamento conservador no

âmbito da profissão. Em suas palavras,

a alternativa de um Serviço Social profissional liberado da tradição positivista e do pensamento conservador não lhe retirará o seu estatuto fundamental: o de uma atividade que responde, no quadro da divisão social (e técnica) do trabalho da sociedade burguesa consolidada e madura, a demandas sociais prático-empíricas. Ou seja: em qualquer hipótese, o Serviço Social não se instaurará como núcleo produtor teórico específico – permanecerá profissão, e seu objeto será um complexo heteróclito de situações que demandam intervenções sobre variáveis empíricas. Esta argumentação não cancela nem a produção teórica dos assistentes sociais (que não será a ‘teoria’ do Serviço Social e que, naturalmente, suporá a sistematização da sua prática, mas sem se confundir ou identificar com ela) nem o estabelecimento formal-abstrato de pautas orientadoras para a intervenção profissional. A primeira, se tiver efetivamente uma natureza e um conteúdo teórico, inserir-se-á no contexto de uma teoria social – e, pois, transcenderá a profissão como tal. O segundo configurará estratégias para a intervenção profissional, mas não plasmará qualquer impostação metodológica – que esta pertence, indescartavelmente, à teoria (exceto, naturalmente, se se pretender que há método de investigação e ‘método de intervenção’). Em síntese: a ultrapassagem do sincretismo teórico – que se expressa no viés do ecletismo – no Serviço Social, conectada à superação do seu lastro no pensamento conservador, é projeto que não erradica o sincretismo da fenomenalidade do seu exercício profissional. Todavia, a superação do ecletismo teórico implica a interdição de qualquer pretensão do Serviço Social de posicionar-se como um sistema original de saber, como portador de uma teoria particular referenciada à sua intervenção prático-profissional (149-150).

Em relação ao Projeto Ético-Político, observamos entre os assistentes sociais,

a existência de várias apropriações, as quais, inclusive, moldam-se às suas

idiossincrasias, apresentando uma infinidade de combinações possíveis. Mesmo

considerando a defesa dos fundamentos teórico-metodológicos que sustentam o

Projeto de Ruptura na direção da teoria social marxista, realizada pelos grupos de

vanguarda na profissão, as diversas apropriações também estão presentes entre

eles.

Então, o Projeto Ético-Político sustenta-se na diversidade das apropriações

realizadas pelos assistentes sociais em sua inserção sócio-institucional, demarcada

historicamente e concretamente situada nos espaços sócio-ocupacionais existentes.

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As possibilidades de convergência em torno da teoria social marxista estão postas

continuamente pela dinâmica da realidade social no âmbito do capitalismo, pelo

acúmulo teórico-metodológico e ético-político entre os assistentes sociais e pelas

formas de organização da categoria, as quais foram transformadas na prática

política da vertente de ruptura.

A superação do ecletismo na produção teórica também participa desta

dinâmica, também remete a uma prática efetiva entre os profissionais e às

convergências possíveis na perspectiva de uma convivência plural e democrática.

Os Princípios Fundamentais expostos no Código de Ética de 1993 têm sido

apropriados pelos profissionais, evidenciando uma pluralidade de significados

apreendidos subjetivamente, mas as implicações teórico-metodológicas ou teórico-

operativas nem sempre são evidentes à nossa observação e à observação dos

mesmos profissionais.

É comum a recorrência dos assistentes sociais aos procedimentos técnico-

operativos produzidos em outras matrizes teóricas, em geral, divergentes em relação

ao horizonte ético-político21 construído no Projeto de Ruptura.

A incorporação destes procedimentos técnico-operativos é realizada como um

recurso para suprir a “ausência” de procedimentos técnico-operativos “próprios” ao

Serviço Social, principalmente nas situações nas quais os assistentes sociais são

convocados a atuar nos “problemas individuais” (acompanhamento individual) e nas

demandas para a intervenção com grupos.

Uma das explicações para esta situação é a pouca dedicação à produção

teórica entre os assistentes sociais, entendida como a necessidade de 21 Atualmente, é comum, entre os assistentes sociais, a recorrência aos procedimentos construídos sob a inspiração da teoria sistêmica (principalmente no trabalho dirigido às famílias), e em nosso caso, o recurso aos exercícios de dinâmica de grupo de inspiração lewiniana.

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aprofundamento na compreensão da teoria social marxista, o que contribuiria para a

qualificação técnico-operativa dos assistentes sociais comprometidos com o Projeto

de Ruptura (Netto, 2001; Nobuco, 1989).

No entanto, considerando tanto o caráter interventivo do Serviço Social

quanto a sustentação do conhecimento a partir das aproximações à realidade,

através das sistematizações teóricas (produção de relatórios, elaboração de

projetos, avaliações contínuas, entre outros procedimentos sócio-institucionais, tais

como as abordagens individuais e grupais), os assistentes sociais, de um modo

geral, tendem a produzir os seus procedimentos técnico-operativos em sua inserção

sócio-institucional.

Contudo, estes procedimentos técnico-operativos construídos na inserção

sócio-institucional dos assistentes sociais nem sempre são identificados como os

procedimentos próprios ao Serviço Social, evidenciando uma dicotomia entre os

“objetivos do Serviço Social” (como referência ao Projeto Profissional) e os

procedimentos institucionais (às vezes identificados como antagônicos aos objetivos

profissionais) 22.

Assim, não raro, a mediação institucional é compreendida como antagônica

ao Projeto Profissional, em sua amplitude, não apenas identificado como Projeto de

Ruptura, mas como os objetivos do Serviço Social construídos/assumidos pela

categoria dos assistentes sociais.

Ou seja, os assistentes sociais, enquanto profissionais, participam do Projeto

Profissional, mesmo que não explicitem diretamente a sua perspectiva de ruptura.

Isso se explica pela sustentação hegemônica da vertente de ruptura nas

organizações profissionais. 22 A este respeito, o leitor poderá consultar o livro organizado por Jean Robert Weisshaupt intitulado As funções sócio-institucionais do Serviço Social (1985).

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As apropriações feitas sobre o Projeto Profissional, em sua pluralidade, são

os meios construídos por nós, assistentes sociais, também na perspectiva de

manutenção e de continuidade da profissão ou na perspectiva de manutenção e de

continuidade dos nossos meios de subsistência, os quais foram construídos em

nossa inserção no Serviço Social.

Por outro lado, o Projeto Ético-Político dos Assistentes Sociais foi construído

na intenção de superar as respostas sincréticas no campo do Serviço Social,

explicitando os fundamentos teórico-metodológicos que o sustentam. A este

respeito, pedimos licença ao leitor para citarmos mais longamente o texto

organizado por Bonetti (et alii) dada a importância de sua contribuição para o

presente debate:

Nos contornos da (...) reflexão teórico-metodológica, vem aparecendo a necessidade de recuperar elementos não suficientemente trabalhados da teoria crítico-dialética, tais como: relação indivíduo/sociedade, heterogeneidade das classes sociais e constituição da subjetividade. Esse debate tem como fulcro a posição de defesa da superação da abordagem burocrático/instrumental da sociedade e do Estado, bem como de busca da ultrapassagem do pensamento binário, tributário da lógica positivista-conservadora de inspiração cartesiana (este pensamento se ancora nas dicotomias razão/emoção, teoria/método/valor, objetividade/subjetividade, produção/reprodução). Tal abordagem mostrava-se insuficiente, seja pela fixidez analítica, seja pela debilidade do corpo de conhecimentos teóricos e de parâmetros éticos de que dispunha a categoria profissional. Entretanto, o conjunto dos profissionais articulado em torno dessa discussão e protagonizado pelo Conselho Federal de Serviço Social, ao mesmo tempo em que assumia o compromisso com a tarefa de tornar os instrumentos que norteiam o exercício profissional sintonizados com a história contemporânea, tinha clareza de que precisavam ser assegurados os avanços obtidos até então (incluindo-se aí o Código de Ética de 1986). Especificamente, a noção do expresso compromisso com as classes trabalhadoras, plasmado no debate hegemônico da categoria (em especial no Código de 1986), deveria ser mantida. Contudo, essa noção deveria ser ampliada e melhor explicitada no sentido do comprometimento com um projeto profissional radicalmente democrático que se desenhava no interior da categoria. Esse projeto profissional comprometido com os Novos Tempos buscava perseguir a idéia do homem vivo, ‘de carne e osso’, ao mesmo tempo em que visava a ressignificação da noção de liberdade, considerando-a como valor ético fundamental. Isto implica a superação de concepções liberais, tomando o homem como ser de liberdade e de criação, que se produz nas e a partir das relações sociais. Então, trata-se de um homem complexo, síntese de múltiplas determinações, logo pluridimensional, multifacético. Um homem que

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precisa ser apreendido criticamente, na complexidade concreta e histórica das mediações que estabelece com outros sujeitos sociais e grupos sociais particulares, permeadas pelas determinações de classe e pelos cortes de gênero, raça/etnia, geração e outras relações estabelecidas em um contexto onde a categoria totalidade é central. Tal perspectiva aponta a necessidade de se transitar nos planos da articulação universal/particular/singular, abandonando-se qualquer perspectiva fundada em visões fragmentárias da realidade ou em generalismos abstratos. Nesse esforço de reflexão do conteúdo ético do Código de 1986, estão subjacentes valores como: plena emancipação/realização do homem, defesa da vida humana, de indivíduos sociais detentores de direitos como condição sine qua non de cidadania (direitos civis, sociais, políticos, econômicos) e de justiça social. Ao se fazer referência aos direitos humanos, está se avançando na direção da sua compreensão a partir de seu conteúdo histórico e, portanto, na direção da ultrapassagem da ética da satisfação das necessidades básicas, com vistas a uma ética da autonomia do ser social, a uma ética verdadeiramente libertária. Esta nova ordem ética presume a superação de todos os processos de dominação-exploração, de autoritarismos de qualquer natureza, e de barbarização da vida social, bem como exige observância de espaços para se realizarem os processos de individualização (1996:15-16).

Os Princípios Fundamentais do Código de Ética de 1993 também foram

elaborados na perspectiva de radicalização da democracia (em termos do debate

profissional) incorporando amplamente as concepções mais heterodoxas no campo

da produção marxista (como as concepções gramscianas23) e incluindo o diálogo

com os novos movimentos sociais (destacando-se o movimento feminista, o

movimento negro, o movimento gay).

Os Princípios expressaram, em sua formulação, tanto as práticas ético-

políticas dos assistentes sociais, quanto os horizontes por elas projetados.

23 De acordo com Evelina Dagnino a esquerda latino-americana atravessou um amplo processo de renovação iniciado no final dos anos 70. Tal renovação teve um marco teórico construído sobre a influência de Gramsci (principalmente através dos conceitos de hegemonia e sociedade civil) alterando as concepções sobre a relação entre cultura e política. “Essa nova postura em face das relações entre cultura e política esteve ligada ao surgimento da construção hegemônica da democracia como projeto da esquerda. Para aquela parte significativa da esquerda que se engajou nesse projeto, colocou-se como desafio central a reelaboração do que Lechner (1988) chamou ‘uma referência coletiva’, capaz de expressar uma vontade coletiva democrática. As pretendidas encarnações autoritárias dessa referência coletiva, previamente existentes – o Estado, a vanguarda, o partido –, foram postas sob suspeita ou rejeitadas completamente. Obviamente, repudiou-se também o mercado como a referência universal proposta pelo neoliberalismo em sua versão despolitizadora do coletivo” (2000:77-78).

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Nesse sentido, eles contêm o acúmulo político em relação às participações

dos assistentes sociais nas lutas pela ampliação da democracia e pela efetivação da

cidadania na sociedade brasileira.

Contudo, para aqueles profissionais cuja prática política e cuja inserção nos

movimentos sociais é restrita, os Princípios sugerem um horizonte a ser alcançado,

nem sempre focalizado como algo possível.

Mesmo para os assistentes sociais inseridos na luta política, através dos

movimentos sociais, através dos partidos políticos, ou em outras formas de

organização e de luta, aparece a necessidade de focalizar a perspectiva política na

sua inserção sócio-ocupacional (no mercado de trabalho), e/ou ainda, a necessidade

de avançar sócio-institucionalmente na efetivação daqueles Princípios.

Os Princípios Fundamentais, ao serem apropriados como Projeto Profissional,

são necessariamente confrontados com as possibilidades e com os limites sócio-

institucionais circunscritos à inserção dos assistentes sociais nos espaços sócio-

ocupacionais existentes.

Se, por um lado, a prática de luta política nos movimentos sociais e mesmo

nos partidos políticos pode ser desenvolvida, eticamente alinhada com a

democratização do processo em que se realizam – concretizando as possibilidades

de participação igualitária, de respeito às diferenças, de pluralismo, em resumo,

construindo formas organizativas compatíveis com os horizontes vislumbrados –

por outro lado, a defesa destes horizontes transposta para outros contextos

organizacionais implica na existência das possibilidades concretas de construção de

alianças em direção a tais horizontes.

Também é relevante destacar que, mesmo nas organizações construídas

democraticamente e em torno dos horizontes emancipatórios, o trabalho sobre os

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mesmos continua permanentemente. Ou seja, as formas de organização, mesmo as

democráticas e libertárias, são necessariamente, atualizadas na perspectiva de sua

continuidade e permanência como uma referência sócio-histórica e sócio-

institucional.

Além disso, é fundamental a compreensão quanto à necessidade das lutas no

espaço de enfrentamento sobre o controle da produção/reprodução material, no

atual contexto, dirigida pelas classes capitalistas e orientada para o acúmulo de

capital24 e para a apropriação privada da riqueza socialmente produzida.

Nesse sentido, os Princípios são confrontados pelas restrições circunscritas

às possibilidades concretas das sociedades capitalistas.

Em resumo, o Projeto Ético-Político expresso nos Princípios Fundamentais

condensa referências importantes para a intervenção profissional. Tais referências

constituem, em nossa opinião, a versão mais acessível do Projeto de Ruptura. As

apropriações feitas a partir dos Princípios Fundamentais e do Código de Ética

Profissional tendem a combinar referências diferentes, mais distantes das

referências teórico-metodológicas que fundamentam o Projeto de Ruptura.

Desse modo, os Princípios Fundamentais nos permitem observar os

problemas postos à intervenção profissional orientada pelo Projeto de Ruptura, bem

como nos possibilitam perceber e exemplificar algumas das lacunas teórico-

operativas explicitadas a partir da vertente de ruptura.

Observamos que a elaboração de respostas teórico-metodológicas e teórico-

operativas compatíveis com os horizontes ético-políticos expressos nos Princípios

24 A produção de mercadorias é orientada pela predominância do valor de troca o que favorece o desperdício dos recursos existentes, inclusive o desperdício do trabalho humano.

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Fundamentais tem sido produzida paulatinamente pelos assistentes sociais, seja no

plano da elaboração teórica, seja no âmbito das intervenções profissionais.

Nesse sentido, o Projeto Ético-Político explicita-se como uma construção

coletiva, tanto em sua apropriação como Projeto Profissional, cujo desenvolvimento

dependerá das referências teórico-metodológicas e teórico-operativas recriadas na

inserção sócio-institucional dos assistentes sociais; quanto em sua manifestação de

adesão aos projetos societários emancipatórios, os quais dependem das

possibilidades concretas e das estratégias forjadas socialmente25.

Apresentamos, a seguir, os Princípios Fundamentais do Código de Ética

Profissional de 1993.

25 Entendidas amplamente, as possibilidades concretas e as estratégias forjadas socialmente envolvem as múltiplas manifestações sociais também em suas dimensões político-culturais e sócio-institucionais tecidas cotidianamente. Ainda, segundo Iamamoto, “as possibilidades estão dadas na realidade, mas não são automaticamente transformadas em alternativas profissionais. Cabe aos profissionais apropriarem-se dessas possibilidades e, como sujeitos, desenvolve-las transformando-as em projetos e frentes de trabalho” (idem:21).

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Princípios Fundamentais expostos no Código de Ética de 1993

Primeiro Princípio Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas a ela inerentes: autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais. Segundo Princípio Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo. Terceiro Princípio Ampliação e consolidação da cidadania, com vistas à garantia dos direitos civis, sociais e políticos das classes trabalhadoras. Quarto Princípio Defesa do aprimoramento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida. Quinto Princípio Posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática. Sexto Princípio Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças. Sétimo Princípio Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas e do compromisso com o constante aprimoramento intelectual. Oitavo Princípio Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma sociedade sem dominação – exploração de classe, etnia e gênero. Nono Princípio Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem os princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores. Décimo Princípio Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional. Décimo Primeiro Princípio Exercício do Serviço Social sem ser discriminado nem discriminar por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade e condição física.

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Os Princípios Fundamentais, em sua formulação, alinham-se às múltiplas

manifestações sócio-culturais, sócio-institucionias e organizacionais da sociedade

brasileira (Bonetti e outras, 1996), durante as décadas de 80 e 90, convergentes em

torno dos valores ético-políticos – como a democracia e o exercício da cidadania na

perspectiva da radicalização democrática, como experiência político-cultural

(Dagnino, 2000) e da defesa de direitos sociais como um dos caminhos possíveis na

concretização da cidadania.

Alguns dos movimentos sociais nas décadas de 80 e 9026 (sintonizados com

os enfrentamentos e com os espaços abertos nas manifestações coletivas contra a

ditadura e pela democratização das instituições brasileiras de um modo geral)

também se expressaram na defesa contra todas as formas de dominação e pela

erradicação de todos os tipos de discriminação entre os seres humanos destacando-

se a denúncia contra a dominação entre os gêneros na predominância do poder

patriarcal e a dominação étnico-cultural, principalmente aquela entre brancos e

negros, mas também, a denúncia dos preconceitos sexuais, dos preconceitos

referentes às diferenças físicas e da dominação geracional, especialmente, a

dominação exercida sobre as crianças e sobre os idosos.

Nessa direção, os Princípios Fundamentais contemplam as demandas

progressistas enunciadas nas sociedades capitalistas contemporâneas e contêm

indicações quanto às estratégias para o enfrentamento dos problemas referentes à

inserção periférica dos países latino-americanos na produção capitalista

desenvolvida em nosso mundo27.

26 Movimento Feminista, Movimento Negro, Movimento dos Homossexuais, Movimento de Meninos e Meninas de Rua, entre outros. 27 O enfrentamento ao neoliberalismo durante a década de 90 foi uma das referências na formulação das estratégias profissionais. Nesse sentido, a compreensão sobre os impactos das orientações

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Contudo, ao serem definidos teoricamente28, a interpretação dos Princípios

reproduziu a dicotomia entre o horizonte ético-político e a prática cotidiana dos

assistentes sociais29, principalmente na perspectiva de que a efetivação concreta do

projeto ético-político depende da superação revolucionária (um ponto de ruptura

futuro) com o modo-de-produção capitalista ou a superação da ordem burguesa,

senão, vejamos.

Em relação ao Primeiro Princípio “reconhecimento da liberdade como valor

ético central e das demandas a ela inerentes: autonomia, emancipação e plena

expansão dos indivíduos sociais”, Sales e Paiva (1996:182) ressalvam, “sabe-se,

contudo, que esse projeto de realização da liberdade é colidente com a dinâmica

social capitalista, que em si é limitadora da liberdade, quase sempre reduzida aos

seus termos formais e jurídicos”.

Embora as autoras reconheçam as armadilhas vinculadas a esta

compreensão (a emergência de posições fatalistas ou messiânicas), elas também

afirmam o caráter utópico desse Princípio, dizendo que “o assistente social

comprometido com a construção e a difusão da liberdade não sucumbe, porém, a

neoliberais na gestão das políticas públicas exigiu a organização de vários espaços de formação e de debate sobre esse tema. 28 Na versão oficial, produzida pelo CFESS e organizada no livro Serviço Social e Ética destaca-se o texto A Nova Ética Profissional: práxis e princípios, elaborado por Beatriz Augusto de Paiva e Mione Apolinário Sales, ambas professoras e componentes da Comissão Técnica Nacional de Reformulação do Código de Ética Profissional (período 1992/93).

29A esse respeito é elucidativa a recorrência de Maria Lúcia Barroco, uma das principais estudiosas sobre a relação entre a Ética e o Serviço Social e uma das referências em termos da compreensão sobre o Projeto Ético-Político expresso no Código de Ética de 1993, às formulações de Ágnes Heller, especificamente a utilização de suas concepções sobre o cotidiano e a história. Em nossa opinião Heller estabelece uma dicotomia entre o cotidiano e a história a qual não se expressa concretamente na realidade social. Nesse sentido, observamos que os movimentos revolucionários de massa são gerados cotidianamente, embora o momento de sua fusão seja o marco de sua emergência e de sua ruptura com a continuidade dos procedimentos, dos valores, das práticas estabelecidas no cotidiano, ou seja, as práticas cotidianas contêm as possibilidades de ruptura e são ações que tecem a história concretamente, diariamente. Assim, os movimentos revolucionários também tendem à organização, e à rotinização, tornando-se expressões cotidianas num processo de longa duração.

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este ‘vão combate’, mas faz da necessidade o campo da criação e do sonho da

liberdade como realidade” (idem: 183).

Nessa direção, as autoras também afirmam a importância da “reinvenção do

cotidiano, da iniciativa, fruto da crítica social e do dimensionamento das estratégias

político-profissionais, a exigir uma delicada sintonia entre o saber técnico e a

competência política” (idem).

Os três conteúdos destacados acima: a afirmação dos Princípios na

expectativa de enfrentamento da sociedade capitalista na direção de sua superação;

os Princípios em sua dimensão utópica a qual se expressa como o horizonte a ser

alcançado; os Princípios como Projeto Profissional a ser reinventado, recriado,

possibilitado no cotidiano profissional; estão presentes na interpretação dos

Princípios em seu conjunto.

A produção do Código de Ética, em especial, também foi destacada como um

instrumento nas lutas empreendidas pelos assistentes sociais, como referência em

relação aos posicionamentos ético-políticos dos profissionais em sua inserção sócio-

institucional. A esse respeito, as autoras expressam em relação ao Segundo

Princípio (A defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e do

autoritarismo): “como contraponto a essa lógica da perversidade e da omissão

[relativas à concretização dos direitos humanos nas sociedades capitalistas], os

assistentes sociais devem se imbuir, pelo que o Código de Ética sinaliza, de um

espírito e de uma postura assentados numa cultura humanística e essencialmente

democrática” (idem: 185).

A dicotomia ou a separação aparece sutilmente na distinção entre o Projeto

Revolucionário enquanto Projeto Societário30 a ser construído nas ações coletivas

30 Na tradição marxista a possibilidade de um Projeto Revolucionário foi posta pelo movimento do proletariado, em termos das lutas empreendidas no século XIX, na Europa, destacando-se a

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de ruptura e de superação do modo-de-produção capitalista (presente na concepção

de enfrentamento do modo-de-produção capitalista) e o Projeto Profissional a ser

desenvolvido no cotidiano dos assistentes sociais, em sua intervenção profissional.

Desse modo, os Princípios Fundamentais aparecem como motivadores da

luta ou do enfrentamento a ser realizado pelos assistentes sociais em sua inserção

sócio-institucional.

No entanto, as particularidades sócio-institucionais aparecem em segundo

plano, subordinadas ao Projeto Societário a ser construído coletivamente.

Compreendemos que um Projeto Societário pode favorecer uma

convergência mais ampla do que aquela possível no âmbito sócio-institucional

restrito às organizações sociais.

Contudo, o Projeto Ético-Político dos Assistentes Sociais é constitutivamente

o projeto de uma categoria profissional, e nesse sentido, a mediação sócio-

institucional através das organizações sociais, adquire grande relevância, pois é o

lugar de inserção privilegiado, o lugar onde as ações profissionais se desenvolvem

enquanto tais.

Ainda assim, mesmo tendo em vista a construção de um Projeto Societário

Revolucionário31, a dimensão sócio-institucional também é relevante no que tange

“Primavera dos Povos” (movimentos de caráter diferenciados efetivados na Europa na primavera de 1848) e a “Comuna de Paris” (experiência de tomada do poder através das ações populares na capital francesa durante cem dias no ano 1871) e das Revoluções Russa e Cubana durante o século XX, bem como pelas análises elaboradas por Karl Marx e Friedrick Engels as quais enfatizaram a possibilidade de um Projeto Revolucionário, o comunismo/socialismo, a ser empreendido através do protagonismo do proletariado. 31No Brasil, observamos que existem convergências em torno de um Projeto Societário que se dirige à luta pela efetivação da democracia e da cidadania em nosso país, embora esta convergência seja realizada através de múltiplos sujeitos sociais, cujas ações e formas organizativas são diferentes e em algumas situações, divergentes entre si. Em termos do Projeto Socialista há divergências, tanto pelas críticas ao socialismo real desenvolvido nos países do leste europeu sob a direção da Rússia (as quais reforçam a centralidade da construção democrática e do exercício coletivo do poder), quanto pela fragmentação da classe trabalhadora que produz horizontes difusos na ação política dos trabalhadores, desde a centralidade nas reinvindicações mais imediatas, até a atualização do horizonte revolucionário e da perspectiva socialista.

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às possibilidades de organização, de sustentação e de apoio às novas referências

emergentes.

Nesse sentido, os Princípios Fundamentais tendem a ser apropriados como

um horizonte a ser realizado na superação da ordem burguesa (no futuro), o que

compromete a sua potencialidade inovadora em relação ao momento presente e em

relação à inserção dos assistentes sociais nos espaços sócio-ocupacionais

existentes.

Esse descompasso entre a prática ético-política cotidiana e a prática social

revolucionária é reforçado pela ênfase nos Princípios como uma dimensão utópica,

como um horizonte a ser alcançado futuramente.

Embora os Princípios Fundamentais tenham sido os frutos da produção

realizada pelo movimento de assistentes sociais, inserido sócio-culturalmente e

sócio-institucionalmente situado em relação aos movimentos sociais progressistas

inspirados nas práticas políticas da esquerda européia e latino-americana, a

interpretação oficial de seus enunciados favoreceu a remissão à projeção futura,

drenando a força que os impulsionou em sua emergência como afirmação de ações

em ruptura com as práticas conservadoras e tradicionalmente desenvolvidas pela

elite brasileira e pelas classes dominantes ancoradas no patrimonialismo e no

autoritarismo, marcos sócio-institucionais presentes na construção cultural de nosso

país.

Nesse sentido, a ação revolucionária precisa ser re-apropriada como ação de

ruptura cotidiana para potencializar as perspectivas de superação na direção dos

horizontes vislumbrados, em um compasso entre o horizonte ético-político e as

ações orientadas por ele. Ou seja, é necessário focalizar as rupturas possíveis e as

construções viabilizadas no presente, especialmente, em nosso caso, aquelas

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passíveis de serem criadas nas inserções sócio-institucionais. Sendo assim, o

horizonte revolucionário continua presente como uma referência concreta e a

projeção quanto um projeto societário revolucionário como um movimento de massa

permanece como algo possível cuja perspectiva nutre-se das construções efetivadas

no presente.

Essa perspectiva abre as possibilidades para a construção de novas

referências teórico-operativas a partir da consideração das mediações sócio-

institucionais como constituintes na construção de um Projeto Revolucionário.

As mediações sócio-institucionais referem-se tanto às organizações

existentes na realidade social quanto ao modo como as ações humanas tendem a

se fixar em termos da construção material, onde as ações humanas têm criado as

mediações sócio-institucionais seja pela perspectiva de continuidade histórica, seja

pela afirmação de poder na manutenção de determinado status social.

As referências teórico-operativas – as quais permitem a compreensão dessas

mediações sócio-institucionais – também são os produtos dessas construções, são

conteúdos que tornam inteligíveis essa dimensão da ação humana.

Em relação aos Princípios Fundamentais, compreendidos como o produto da

ação dos assistentes sociais, as mediações sócio-institucionais, construídas na

organização profissional da categoria, puseram em relevo a perspectiva de

convivência democrática e plural.

Assim, para manter a amplitude de suas formulações, a explicitação dos

Princípios Fundamentais cria a necessidade e abre a reflexão sobre conteúdos

teórico-operativos que contribuam para/com a radicalidade das perspectivas

democráticas e pluralistas ali expressas.

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Tais conteúdos teórico-operativos são também novos enunciados diante da

necessidade de exercer o poder coletivamente, democraticamente, pelo menos na

esfera dos movimentos e das organizações que se pretendem protagonistas em

relação à ruptura e à superação com e de todas as formas de exploração e

dominação existentes.

Contudo, a formulação de novos conteúdos teórico-operativos fundamentada

nas ações de alguns sujeitos coletivos, também tem sido portadora (porta-voz) das

contradições e das ambigüidades existentes.

As contradições aparecem na relação entre essas práticas político-culturais

inovadoras e as bases materiais sustentadas pelo modo-de-produção capitalista. A

organização da produção material está alicerçada na exploração do trabalho, mas

algumas práticas organizacionais conseguem estabelecer experiências

democráticas, efetivadas em espaços restritos, compatíveis com o estabelecimento

de determinadas formas organizativas derivadas de algumas experiências na esfera

dos movimentos sociais focalizadas na radicalização da democracia.

Assim, as decisões sobre a organização do trabalho em algumas

organizações32, por exemplo, tendem a ser efetivadas coletivamente, estabelecendo

fóruns de debate e de decisão coletivos, como o recurso às assembléias ordinárias e

às reuniões de trabalho.

Mesmo nas práticas organizacionais democráticas a formação de níveis

hierárquicos tende a ser reproduzida, seja pelas diferenças entre as experiências

subjetivas, o que aparece, por exemplo, no respeito às opiniões dos participantes

32 Em relação ao Serviço Social, o conjunto CFESS/CRESS tem promovido fóruns de debate e de discussão que favorecem a participação dos assistentes sociais. É claro, que também nesses fóruns, as contradições, os conflitos e as ambigüidades estão presentes, tratando-se de um exercício democrático em construção e de um aprendizado político-cultural contínuo.

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mais antigos33; seja pelas tensões e conflitos entre as opiniões diferentes, entre as

concepções divergentes, entre os modos diversos de apreensão da realidade social.

Desse modo, as contradições materiais são adensadas pelos conflitos entre

as diferentes posições mesmo quando existe convergência ético-política.

Por outro lado, as ambigüidades também se expressam nas interações

intersubjetivas, nas manifestações afetivas que aproximam ou afastam as pessoas

entre si. São manifestações que implicam nas emoções de amor e de ódio cujo

estudo foi iniciado por Sigmund Freud34 no processo de construção da teoria e da

intervenção psicanalítica.

Se, por um lado, o exercício democrático/coletivo do poder supõe a igualdade

como condição inicial para a participação dos sujeitos, como teremos a oportunidade

de examinar mais adiante, por outro lado, este exercício se expressa no convívio

entre as diferenças.

Assim, a possibilidade de construção de projetos coletivos democráticos e

plurais é posta pela convergência de ações entre os diferentes sujeitos, implicando

no aprendizado da convivência com a diferença, com a diversidade. É a

possibilidade de unidade na diversidade, entendendo-se a unidade como a

convergência de ações em torno de um projeto cujo horizonte é apropriado e

recriado também na diversidade, no qual seria difícil projetar um horizonte comum

como algo permanente, mas seria possível afirmar ações contínuas em torno de

horizontes comuns permanentemente re-apropriados.

33 Sobre esse assunto, consultar o artigo de Silva Lane “O processo grupal” (1988). 34 A esse respeito consultar especialmente o texto “Totem e Tabu” (1987).

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Essas questões também presentes na prática político-cultural dos “novos”

movimentos sociais, nos anos 9035, apresentam referências teórico-operativas

plurais, desde aquelas apropriadas pela aproximação à teoria social marxista, até as

referências teórico-operativas inspiradas em outras vertentes teórico-críticas

produzidas no campo das Ciências Humanas e Sociais.

Nesse sentido, as referências teórico-operativas têm sido formuladas para

responder aos problemas postos pela prática político-cultural de diferentes sujeitos

sociais36.

Por outro lado, não é possível isolar tais práticas, as quais se comunicam (e

são atravessadas) com/por outras práticas político-culturais, incluindo o legado

autoritário e patrimonialista inscrito nos modos da organização social brasileira.

35 Para Maria da Glória Gohn, no Brasil, “o ‘novo’ dos movimentos sociais se redefiniu novamente nos anos 90, e isto se fez em duas direções. Primeiro, deslocando o eixo das reivindicações populares, antes centradas em questões de infra-estrutura básica ligadas ao consumo coletivo (transportes, saúde, educação, moradia etc.), para reivindicações relativas à sobrevivência física dos indivíduos, objetivando garantir um suporte mínimo de mercadorias para o consumo individual de alimento – como na campanha da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e Pela Vida (Gohn, 1996), ou terra para produzi-lo, no caso dos sem-terra. Retomou-se a questão dos direitos sociais tradicionais, nunca antes resolvido no país, como o direito à vida e à sobrevivência. O aumento da miséria, em particular nos grandes centros urbanos, é o principal fator explicativo dessa primeira direção. O segundo localiza-se no plano da moral, que ganhou lugar central como eixo articulador dos fatores que explicam a eclosão das lutas sociais. A indignação diante da ausência de ética na política e a agressão a certos valores consensuais da sociedade em relação à gestão da coisa pública foram fatores que levaram à eclosão de movimentos sociais de bases pluriclassista, liderados pelas camadas médias e articulados em torno de problemáticas de gênero, raça, idade etc. Muitos desses movimentos deram lugar a lutas cívicas, verdadeiras cruzadas nacionais com articulações difusas em termos de classes sociais, interesses locais e nacionais, espaços públicos e privados” (2002:309). 36Nesse sentido, o Fórum Mundial Social também é uma referência atual importante. Sua primeira realização, em Porto Alegre/2000?, foi incentivada pela prática política do PT. A enunciação de que “outro mundo é possível”, embora vaga, tem sido um contraponto às concepções que defendem o modo-de-produção capitalista como o “fim da história”. A dinâmica de organização desses fóruns (em sua sexta edição) tem privilegiado a diversidade de expressões e a descentralização, em detrimento do estabelecimento de “coerências” no sentido de compactar uma unidade entre as concepções e orientações presentes. Contudo, essa prática político-cultural é ainda recente para avaliarmos os seus impactos sobre a transformação do modo-de-produção capitalista.

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1.3 – Conteúdos teórico-operativos necessários à intervenção

profissional

Os Princípios Fundamentais enquanto referência privilegiada dos

posicionamentos ético-políticos produzidos na organização dos assistentes sociais

possibilitaram a identificação das seguintes questões:

1 – Democratização do exercício profissional seja nas organizações profissionais,

seja nas inserções sócio-institucionais, como nas organizações nas quais os

assistentes sociais se inserem como trabalhadores assalariados ou na militância

política mais ampla.

2 – Convivência plural (pela convergência democrática), inclusive no respeito às

diferenças amplamente compreendidas: expressões teóricas diferentes, idades

diferentes, diferenças de gênero e de expressão da sexualidade, diferenças físicas,

diferenças étnico-culturais, diferenças de crença e de práticas religiosas, entre

outras.

3 – Articulação político-cultural com os movimentos e as organizações sociais

existentes na perspectiva de construção de um Projeto Societário Revolucionário

democrático e plural.

Estas questões apresentam novos enunciados teórico-operativos. Esses

novos enunciados teórico-operativos referem-se à prática político-cultural

democrática e pluralista e aos desafios relacionados à mesma. Ou seja, os

conteúdos teórico-operativos enunciam novas formas de convivência possíveis

nas contradições abertas pelas sociedades capitalistas, as quais apresentam

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novos problemas e suscitam a reflexão e a elaboração de respostas

compatíveis com os horizontes construídos/projetados.

Esta perspectiva teórico-operativa relaciona-se também com a

invenção/criação de novos procedimentos na realidade social em consonância com

as apropriações teórico-metodológicas abertas pela apropriação da teoria social

marxista e com a perspectiva crítico-dialética e histórico-materialista nela

fundamentada.

Assim, a perspectiva crítico-dialética e histórico-materialista atualiza-se na

possibilidade de construção de formas coletivas de apropriação e gestão da riqueza

socialmente produzida, estritamente na esfera da produção material – enquanto

produção de mercadorias – mas, também, na gestão, na coletivização da

participação social sobre as decisões que influem na sobrevivência humana e nos

modos de organização da vida.

Nesse sentido, a perspectiva de coletivização da participação social no

controle racional sobre a produção/reprodução material, através do legado da

tradição marxista, indica a possibilidade de convivência democrática, embora,

historicamente, como nas transformações revolucionárias na Rússia (1917) e em

Cuba (1959), essa convivência tenha sido subordinada à direção do Partido Único,

situação compreensível no contexto de enfrentamento e de afirmação no poder,

mas, indefensável, após a estabilização das relações sócio-institucionais posteriores

à efetivação e organização das novas relações de poder37.

Já a perspectiva pluralista sustenta-se na ênfase das possibilidades de

convivência democrática, qualificando-as, no sentido de explicitar a necessidade de

37 A direção sob a perspectiva do Partido Único foi justificada pela necessidade de manter a unidade face aos enfrentamentos necessários para a afirmação dos sujeitos revolucionários.

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respeito às expressões diferentes à medida que a diversidade é constitutiva da

realidade social.

Explicita-se, então, a necessidade de desenvolver a prática de convivência

democrática e plural como um meio constitutivo da unidade ou da convergência de

ações para a realização de um Projeto Societário pertinente a todos que dele se

apropriarem.

Assim, as referências teórico-operativas sobre a convivência democrática e

plural tornam-se imprescindíveis para qualificar as práticas democráticas em

desenvolvimento.

Nesse contexto, os grupos e os processos grupais38 são categorias39 que

adquirem relevância, à medida que expressam a possibilidade de compreensão das

ações humanas realizadas coletivamente a partir da perspectiva democrático-

pluralista40, e ainda, pela focalização das possibilidades de participação/construção

social conjugando igualdade, liberdade e diversidade, fundamentadas na

emancipação humana enquanto uma possibilidade a ser concretizada.

Os processos grupais explicitam a trama engendrada pela ação desenvolvida

grupalmente em suas contradições e em suas ambigüidades: relações de poder,

vínculos afetivos, formas de operatividade, formas de organização, processos de

38 Nossa compreensão sobre os grupos e os processos grupais será explicitada paulatinamente, no desenvolvimento dos próximos capítulos. Previamente, adiantamos nossa expectativa em ampliar a compreensão sobre as práticas grupais, sobre os grupos e os processos grupais, no intuito de apreendê-las teoricamente com o máximo de variáveis possíveis no âmbito deste trabalho. Tal apreensão possibilita, em nossa opinião, uma construção teórico-operativa mais próxima às questões concretas que atravessam as práticas grupais nas sociedades capitalistas contemporâneas. 39 Na acepção marxista do termo. 40 Os conceitos teóricos sobre os grupos e os processos grupais produzidos nas diferentes práticas/disciplinas acadêmicas são atravessados pela questão da democracia ou sobre a possibilidade de lideranças democráticas Da perspectiva histórica, mesmo os conceitos sobre dinâmica de grupo foram construídos em um período caracterizado pela emergência do nazismo e do fascismo, e nesse sentido, tais conceitos foram o produto das práticas ético-políticas contrárias ao autoritarismo e à coerção que o caracterizam. A problematização sobre essas concepções será realizada no decorrer dos próximos capítulos.

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institucionalização incluindo as explicações elaboradas, as crenças compartilhadas,

o conhecimento e a instrumentalidade produzidos através da prática grupal.

No Serviço Social os conteúdos referentes aos grupos e aos processos

grupais estiveram vinculados à produção identificada como Serviço Social de Grupo

(SSG).

A denominação Serviço Social de Grupo foi criada em 192741 nos EUA,

inspirada pelo já existente Serviço Social de Caso, para designar o trabalho dos

assistentes sociais com grupos, através de um “método” próprio, ou seja, o Serviço

Social de Grupo era o “método” usado pelos assistentes sociais para trabalhar com

grupos.

Segundo Gertrude Wilson42,

Durante a década que se seguiu à organização da Associação Nacional de Serviço Social de Grupo (NASGW), em 1936, os funcionários de vários tipos de centros 'tornaram-se escritores'. O crescente número de pessoas ensinando Serviço Social de Grupo nas escolas de Serviço Social, nas agências-escolas, departamentos de educação física, seminários teológicos e departamentos de educação deixou sua marca nos jornais e revistas profissionais de classe. Os artigos mostram a contínua confusão ou preocupação com a pergunta 'O que é Serviço Social de grupo?' Alguns continuaram a usar o termo na seguinte trilogia: como um movimento, como uma classificação de agências e como uma metodologia. Aquele que estava voltado para as causas do problema via o

41 "Newstetter, um dos fundadores do trabalho de grupo como uma especialização de Serviço Social, justifica a união das palavras grupo e trabalho a seus associados: numa longa viagem de trem, indo para a Conferência Nacional de Serviço Social, em 1927, Newstetter e Walter Petit estavam trocando informações sobre suas respectivas escolas, Western Reserve University e Escola de Serviço Social de Nova York. Newstetter comentou que tinha em andamento um projeto interessante com apoio financeiro adequado, mas que tinha dois problemas: 1) não sabia denominá-lo e 2) precisava de um diretor de pesquisa para avaliá-lo. De acordo com a descrição gráfica de Newstetter, Pettit disse que o projeto a que Newstetter se referia poderia ser uma forma de Serviço Social de Grupos, e que, em sua escola, eles chamavam de Serviço Social de Casos o Serviço Social com indivíduos; por que não chamar o projeto da Western Reserve University de Serviço Social de Grupo? (...) O termo Serviço Social de Grupo foi incorporado à 'Academia' e, em menos de uma década, foi oficializado como parte da prática profissional do Serviço Social" (Wilson, 1984:35-36).

42Professora Emérita da Escola de Bem-Estar Social na Universidade da Califórnia (Berkeley) e profissional reconhecida por sua intervenção com grupos.

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Serviço Social de Grupo como um movimento guiado pela filosofia democrática; o organizador de comunidade usou o Serviço Social de Grupo como uma maneira conveniente de classificar as agências, objetivando sua interpretação e levantamento de verbas; e os teóricos da prática viam o Serviço Social de Grupo como um método a ser usado em qualquer situação de grupo – como um processo social que poderia ser usado por qualquer patrocinador, de acordo com sua filosofia e objetivo. Em outras palavras, o Serviço Social de Grupo, definido como um método não elimina os objetivos da agência nem o movimento democrático. Simplesmente isola a estrutura social como um veículo particular de atendimento (1984:47).

Na trilogia de significados destacados pela autora, o Serviço Social de Grupo

foi identificado como movimento e assim, podemos associá-lo:

a) aos processos de democratização das relações pedagógicas;

b) aos processos de luta pela igualdade entre homens e mulheres; negros e

brancos;

c) à valorização da Democracia norte-americana no Ocidente e dos Estados Unidos

como país democrático em contraste com a Alemanha e com os países do Eixo,

derrotados na Segunda Guerra Mundial, identificados como autoritários e também

em contraste com o centralismo burocrático-autoritário identificado com o

comunismo, especialmente, com o socialismo soviético;

d) à perspectiva de democratização do acesso às políticas sociais como horizonte

do Estado de Bem-Estar Social em emergência.

Ainda sobre este aspecto, o método SSG norteamericano, identificado como

um movimento, expandia o horizonte dos procedimentos desenvolvidos pelo

Serviço Social em sua inserção nas agências sociais, envolvendo a necessidade de

conhecimento das pesquisas recentes no campo das Ciências Humanas e Sociais e

de estudo e de sistematização teórica contínuos.

Nessa direção, relata Wilson:

O trabalho de Newstetter, a primeira apresentação pública da operação teórica de um grupo [realizada na Conferência de Serviço Social durante o ano de 1935], baseou-se, principalmente, em conceitos sociológicos disponíveis na

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época. Desde então, todas as ciências psicossociais têm tido muito campo de estudo em todos os tipos de grupos e o método de Serviço Social de Grupo corrente é baseado em conceitos extraídos das pesquisas científicas que lidam com o relacionamento humano.

E acrescenta,

Newstetter foi o primeiro a mostrar que 'é necessário distinguir entre trabalho de grupo como um campo, trabalho de grupo como um processo e técnicas de trabalho de grupo'. A confusão causada pelo uso indiscriminado do termo Serviço Social de Grupo é um peso que tem sido carregado através das últimas três décadas e meia [1940, 1950, 1960, 1970]. Quase todas as agências que procuravam servir dois ou mais indivíduos ao mesmo tempo e no mesmo local chamavam-se agências de Serviço Social de Grupo. Muitos dos líderes estabelecidos, no entanto, não estavam interessados em conceitos e métodos como tais (idem: 38).

O SSG esteve vinculado com as escolas de Serviço Social (com a produção

acadêmica do Serviço Social norte-americano e como curso/formação a ser

oferecido(a) aos alunos de Serviço Social) sendo contemporâneo das pesquisas

desenvolvidas no campo das Ciências Humanas e Sociais focalizadas sobre as

relações humanas em grupo, sobre os comportamentos e as atitudes das pessoas

quando se agrupam, sobre as implicações dos agrupamentos humanos para os

indivíduos, sobre o caráter terapêutico dos grupos. Aos temas indicados somavam-

se as técnicas de pesquisa envolvendo os experimentos sociais (dirigidos) com

grupos; os grupos de treinamento e diagnóstico; a observação técnico-científica

sobre grupos sociais específicos, entre outras.

Contudo, mesmo vinculado à produção acadêmica43, o SSG apresenta-se

como um “método” desenvolvido/apreendido empiricamente, em resposta às

demandas sócio-institucionais (ou pela inserção sócio-ocupacional do Serviço

Social) e dirigido por aspirações pragmáticas quanto à obtenção de resultados

43 O SSG norteamericano incorporou, gradativamente, as fundamentações teóricas positivo-funcionalistas produzidas na psicologia social e na sociologia.

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concretos mais imediatos (por exemplo, tanto em relação à reforma social e/ou moral

quanto em relação à mudança de atitudes e comportamentos individuais ou mesmo

no processo educativo-pedagógico como possibilidade de aprendizado sócio-cultural

como a formação de lideranças democráticas).

Nesse sentido, as formulações teóricas do SSG estão mais próximas das

sistematizações referentes às intervenções dos profissionais com grupos do que das

pesquisas acadêmicas interessadas em compreender os fundamentos do

relacionamento humano a partir dos experimentos sociais com grupos44.

A ênfase no empirismo e no pragmatismo, explica, em certa medida, a

"negligência" de alguns profissionais quanto a um aprofundamento teórico mais

rigoroso para trabalhar com grupos.

Segundo Wilson,

as teorias não têm sentido sem as situações sociais que levam as pessoas a abraçarem causas que demonstrem a capacidade de um grupo para encontrar soluções. Por volta dos anos 60, assistentes sociais de grupo45 começaram a aceitar-se como assistentes sociais, sem a preocupação excessiva de provar os fundamentos do Serviço Social vinculados à sua especialização (idem:59).

44 “Outra controvérsia que pegou fogo durante a década de 40 foi entre o método de Serviço Social de Grupo e a dinâmica de grupo. O primeiro contato direto que a autora teve com a dinâmica de grupo foi no início dos anos 40, quando Kurt Lewin e Gordon Hearn foram para a Universidade de Pittsburgh dirigir um experimento demonstrando o método de trabalho com grupos. Lewin solicitou o uso de alguns grupos dirigidos por alunos da Escola de Serviço Social. A autora não concordou, com base na ética profissional e pela interferência no processo da aprendizagem do aluno em dominar a metodologia do Serviço Social de Grupo. Foi Grace Coyle, no entanto, que mais se opôs à filosofia e táticas da dinâmica de grupo, apesar de concordar que Serviço Social de Grupo e Dinâmica de Grupo poderiam complementar-se" (Wilson, 1984:46). Wilson não descreve os motivos da controvérsia, sendo evasiva em sua justificativa com "base na ética profissional". 45 Designação norteamaericana dos profissionais especializados no “método” SSG, com formação própria para trabalhar com grupos. Nos EUA, os assistentes sociais organizaram-se em áreas específicas. Segundo Wilson, "assistentes sociais da área médica, que estavam em contato direto com o pessoal médico já organizado, foram os primeiros a se organizar, em 1918, profissionalmente. Em 1919, a Associação Americana de Professores Visitantes foi fundada. No mesmo ano, as onze escolas de Serviço Social se associaram. Assistentes Sociais de várias áreas e especialidades organizaram-se na Associação Americana de Assistentes Sociais, em 1921. Cinco anos mais tarde, os Assistentes Sociais especializados no atendimento a pessoas mental e emocionalmente doentes organizaram a Associação Americana de Serviço Social Psiquiátrico e, vinte anos mais tarde, em 1946, a Associação Americana de Serviço Social de Grupo reivindicou reconhecimento profissional” (1984:28).

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O Serviço Social de Grupo, assim como o Serviço Social de Casos, foi

incorporado ao Serviço Social brasileiro (nos currículos do curso de Serviço Social) a

partir da década de 4046. Sua incorporação ocorreu em um período de

institucionalização da profissão, quando a necessidade de criar uma competência

profissional fundamentada teórico-cientificamente esteve acentuada, inclusive como

meio de responder às demandas sócio-institucionais (face ao crescimento dos

espaços sócio-ocupacionais do Serviço Social), as quais colocavam o assistente

social em contato com outros procedimentos técnico-profissionais desenvolvidos em

outras áreas acadêmicas e profissionais, tais como a Medicina, o Direito, a

Sociologia, a Psicologia, a Psicanálise (entre outros) e diante da expectativa de

participar da execução e do gerenciamento das novas práticas organizacionais

vinculadas à assistência social47.

A necessidade de criar uma competência profissional foi-se acumulando e

fez-se presente no Movimento de Reconceituação do Serviço Social (décadas de 50

e 60), no Brasil e na América Latina48, nas manifestações quanto à premência da

46 De acordo com Raul de Carvalho “como marco da influência norte-americana no ensino especializado no Brasil, situa-se o Congresso Interamericano de Serviço Social realizado em 1941 em Atlantic City (USA). A partir desse evento se amarram os laços que irão relacionar estreitamente as principais escolas de Serviço Social brasileiras com as grandes instituições e escolas norte-americanas e os programas continentais de bem-estar social. No que se refere às modificações curriculares, se observa o estabelecimento de um processo que reaparece seguidamente: volta de um bolsista que realiza curso nos Estados Unidos, introdução de uma nova matéria no currículo (ou reorganização de alguma com a qual se assemelhava) da escola à qual está ligado, introdução no currículo mínimo recomendado pela ABESS (Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social – 1946), institucionalização pelo currículo mínimo exigido pelos órgãos competentes do governo. Sendo que nesse processo a ABESS aparece como principal agência de difusão das modificações curriculares e de homogeneização do ensino no âmbito nacional” (1985:228-229). 47 Conforme Carvalho (1985). 48 Movimento heterodoxo cuja convergência apresentou-se na perspectiva de compreender as intervenções profissionais relacionadas às questões e aos problemas sociais característicos do contexto latino-americano e das particularidades de cada país, os quais exigiam referências teóricas próprias, compatíveis com a realidade social da América Latina. Nesse movimento os fundamentos tradicionais do Serviço Social, vinculados à tradição católica e às estratégias conservadoras nela inspiradas, foram questionados, ocorrendo um processo de laicização da profissão, aproximando as respostas profissionais da produção científico-acadêmica. Nesse sentido, Netto (1991; 2001)

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ruptura com a subordinação profissional, tanto às profissões constituídas, quanto

aos conhecimentos produzidos nas diferentes áreas acadêmicas, destacando-se a

subalternidade às Ciências Humanas e Sociais.

Em relação ao SSG, o contexto brasileiro e latino-americano oferecia

dificuldades a sua apropriação pelos assistentes sociais. Primeiro, pela inserção

periférica dos países latino-americanos na organização mundial do capitalismo e

suas implicações, como a subordinação aos interesses econômicos das grandes

potências, dificultando a emergência de projetos nacionais com maior autonomia

em relação aos interesses estrangeiros. Segundo, pela construção sócio-

cultural/sócio-institucional marcada pela recorrência ao autoritarismo, à coerção,

como meio de manter a ordem social, e em especial, no Brasil, pela recorrência ao

patrimonialismo ou à utilização privada dos recursos públicos, pelo beneficiamento

de algumas famílias e de alguns indivíduos relacionados com as

pessoas/organizações influentes. Terceiro, pela ausência de um “movimento

democrático”, sustentado sócio-institucionalmente, como aquele ao qual Wilson se

refere. Quarto, em decorrência dos três motivos anteriores, pela escassa produção

acadêmica sobre os grupos e sobre a prática democrática.

Nesse sentido, mesmo considerando a produção norte-americana, em relação

ao SSG, como uma produção alinhada aos interesses burgueses hegemônicos

naquele país e circunscrita aos problemas emergentes com a Segunda Guerra

Mundial – relativos ao lugar que os EUA ocuparam como país anfitrião dos

refugiados, entre eles, artistas, escritores, pesquisadores49, perseguidos pelo nazi-

analisou, em linhas gerais, as características dessa aproximação, as quais favoreceram a incorporação da pesquisa acadêmica na perspectiva positivo-funcionalista. 49 Entre eles, Kurt Lewin, psicólogo e pesquisador que fundou a disciplina “Dinâmica de Grupo” e Gisela Konopka, assistente social que atuou com grupos e uma das referências na sistematização teórica sobre o SSG ambos judeus alemães.

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fascismo e como principal articulador dos países que se opuseram a ofensiva militar

liderada pela Alemanha – esta produção ainda poderia ser considerada “avançada”

em relação às condições histórico-materiais e ao escasso acúmulo político-cultural

democrático no Brasil.

A intervenção com grupos (em sentido estrito) pressupõe um espaço aberto

para a participação. Ainda que essa seja passível de manipulação, há possibilidades

concretas de manifestação e de confronto entre os envolvidos no processo,

principalmente entre os participantes e a equipe de coordenação (ou os

coordenadores, ou os monitores etc.).

No decorrer da década de 1950 e durante a década de 1960, a estratégia

desenvolvimentista adotada pelo governo brasileiro em sua cooperação com os EUA

fundamentou os diferentes programas de desenvolvimento de comunidade, o que

sustentou o “método” Serviço Social de Comunidade.

O Serviço Social de Comunidade também trabalhava com abordagens

grupalistas (mobilização social, organização comunitária, processo educativo para

as mudanças: novos hábitos, novas atitudes, novos comportamentos etc.). No

entanto, ele diferenciava-se do SSG pela especificidade de sua inserção sócio-

ocupacional, pelas demandas referentes ao Planejamento, aos Programas e aos

Projetos desenvolvidos, os quais colocavam o assistente social em contato com as

precárias condições de sobrevivência (habitação, alimentação, infra-estrutura básica

etc.) de uma grande parcela da população e com os diferentes modos de

organização familiar, de manifestação sócio-cultural alicerçados em outras

concepções de mundo.

No SSG, de um modo geral (nos EUA e no Brasil), havia uma carência de

problematizações e de aprofundamento teórico, e as referências do trabalho com

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grupos focalizavam mais a sua funcionalidade (às organizações como recurso de

atendimento à população/clientela; aos indivíduos como recurso de ressocialização

ou de alteração de atitudes e comportamentos, ou mesmo como recurso terapêutico)

do que a prática grupal enquanto possibilidade de criação e de construção coletiva

(movimento de massa).

Durante o movimento de renovação do Serviço Social brasileiro, na década

de 80, houve a recusa explícita ao “método” SSG. Tal recusa situou-se na

formulação do Novo Currículo Mínimo de Serviço Social (aprovado pela ABESS50 e

implantado a partir de 1982), o qual redefiniu a lógica da formação acadêmica,

focando-a sob o eixo história-teoria-metodologia.

Nesse sentido, a formação profissional foi dirigida por uma perspectiva

generalista no intuito de formar os novos assistentes sociais como intelectuais

capazes de compreender a sua inserção profissional na dinâmica das relações de

produção e das relações sociais capitalistas e de intervir

criticamente/propositivamente nos espaços sócio-ocupacionais existentes.

Dessa perspectiva as disciplinas Serviço Social de Caso, Serviço Social de

Grupo e Serviço Social de Comunidade foram extintas (pelo Currículo Mínimo de

1982) e outras disciplinas foram criadas a partir dos novos conteúdos teórico-

metodológicos construídos sob a inspiração marxista.

Os conteúdos sobre as abordagens individuais e sobre o trabalho com grupos

foram alocados nas disciplinas de “estratégias de técnicas da ação profissional”.

Contudo, mesmo sendo uma referência obrigatória, o Novo Currículo Mínimo

encontrou dificuldades em sua implantação nas escolas de Serviço Social

distribuídas pelo país.

50 Denominada atualmente de Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa de Serviço Social (ABEPSS)

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Mesmo nas escolas de Serviço Social onde o Novo Currículo foi implantado

com relativa rapidez, as várias apropriações que dele foram feitas, em muitas

situações, reproduziram a dicotomia entre as disciplinas “gerais” (no ciclo básico,

que englobava do primeiro ao quarto períodos do curso) e as disciplinas

profissionalizantes (referentes ao ciclo profissionalizante do quinto ao oitavo

períodos do curso).

Também pela heterogeneidade do corpo docente, pelas tensões e disputas

internas circunscritas no âmbito organizacional acadêmico, as disciplinas foram

interpretadas de acordo com as referências e os conteúdos apropriados

subjetivamente pelos professores51.

Por outro lado, as estratégias de intervenção com grupos (bem como seus

possíveis fundamentos), consideradas genericamente, estiveram presentes nos

debates profissionais sob a insígnia técnico-operativa ou sob a necessidade de

desenvolver uma competência técnico-operativa compatível com a renovação

teórico-metodológica de inspiração marxista.

Nesse sentido, o trabalho com grupos deixou de ter um destaque que lhe

desse uma especificidade e um status de especialidade profissional e a intervenção

do Serviço Social com grupos expandiu-se nas perspectivas das inserções

profissionais junto aos movimentos sociais, junto aos trabalhadores (as), junto aos

sindicatos; junto ao povo, junto às organizações/movimentos populares; junto ao

Estado, na intenção de expandir o alcance das políticas públicas, principalmente em

relação à Política de Assistência Social, mas em consonância com outros

51 As disciplinas do ciclo básico tendiam a ser identificadas pelos alunos e mesmo pelo corpo docente, como disciplinas teóricas, as quais seriam “melhor apreendidas” pela “prática profissional”, focalizada principalmente, pela entrada dos alunos nos campos de estágio, com início no quinto período do curso. Curiosamente, as disciplinas do ciclo profissionalizante, tendiam a ser ministradas pelos profissionais menos dotados de formação intelectual e menos dedicados à reflexão teórica.

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movimentos sociais/populares na busca de conquistas para usufruir de condições

mais dignas de sobrevivência.

Ainda durante a década de 80, as intervenções do Serviço Social estiveram

em diálogo com as estratégias de educação popular, em consonância com os

movimentos sociais e populares que a adotaram como meio de comunicação junto à

população, em muitos casos, tendo como horizonte as possibilidades de

transformação social, incluindo a superação do capitalismo no Brasil.

Decerto, há comunicação e inspiração entre determinados projetos de

educação popular (entre eles, aqueles inspirados em Paulo Freire) e a teoria social

marxista52. Mas, existem diferenças importantes, as quais podem ser enunciadas

através de perspectivas menos rigorosas em sua apreensão da realidade social e

das possibilidades concretas de transformação societária, ou de perspectivas mais

sintonizadas com as melhorias das condições de sobrevivência, sem implicações

revolucionárias ou ainda pela expressão de perspectivas cujo discurso

revolucionário esvazia-se diante da inconsistência entre a apreensão da realidade e

as expectativas de revolução social.

A educação popular pode assim, transmutar-se em uma estratégia inócua

tratando-se do projeto de revolução e transformação social, se não existe de fato,

um movimento revolucionário que a sustente. 52 Paulo Freire – renomado educador brasileiro, pernambucano. Criou o método de alfabetização que ganhou o seu nome “Método Paulo Freire”. Trabalhou e coordenou, na década de 60, o Programa Nacional de Alfabetização (Brasília) com a meta de alfabetizar 5 milhões de adultos. Engajou-se nos movimentos de Educação Popular (MEB) e no Movimento de Cultura Popular, com os Círculos de Cultura. Com a ditadura militar no Brasil (pós-64) exilou-se na Bolívia e depois no Chile, local onde escreveu “Pedagogia do Oprimido”. Segundo Torres (in Gadotti, 1997:107) “três filosofias marcaram sucessivamente a obra de Paulo Freire: o existencialismo, a fenomenologia e o marxismo (...) Com a [filosofia] de Hegel e a de Marx, Paulo Freire fez a crítica da religião e da teologia, a crítica da filosofia e da alienação política, social e econômica. Sucessivamente – quase em fases diferentes – Paulo analisa as conseqüências sociais, políticas e pedagógicas das diversas formas de relação entre os seres humanos. Paulo Freire nos fala em “oprimido-opressor” (anos 50-60), em opressão “de classe” (anos 60-70) e opressão “de gênero e raça” (anos 80-90). Neste paper trabalharemos com o livro Pedagogia do Oprimido publicado, em 1970, nos EUA, em inglês e espanhol. Em decorrência da Ditadura Militar o livro só “apareceu” no Brasil quatro anos depois. Com a anistia política (1979), Paulo Freire retornou ao Brasil, onde passou a residir em junho de 1980.

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Assim, o movimento de renovação do Serviço Social no Brasil possibilitou o

aprendizado de mobilização social e de luta para colocar em discussão os

problemas sociais, bem como para explicitar a insuficiência das políticas sociais face

às contradições engendradas pela ordem de reprodução metabólica do capital e

ainda, da necessidade de ações coletivas a fim de ampliar as respostas possíveis no

quadro das Políticas Públicas do Estado brasileiro, buscando soluções coletivas

para os problemas engendrados pelo modo de produção capitalista, na inserção

periférica do país na ordem social capitalista.

As estratégias profissionais do Serviço Social, no horizonte da intenção de

ruptura, enriqueceram-se na explicitação de seu conteúdo político-ideológico

(Projeto Ético-Político dos Assistentes Sociais), pela convergência de ações

identificadas com os movimentos sociais e populares mais progressistas e pelas

lutas comuns às classes trabalhadoras.

Este aprendizado efetivou-se na construção de novas referências para a

competência técnico-operativa incluindo, necessariamente, as perspectivas ético-

políticas da intervenção profissional.

Em relação ao SSG, a crítica de Gelba Cerqueira (1981) esmiuçou os

conteúdos positivo-funcionalistas presentes na bibliografia corrente veiculada no Rio

de Janeiro incluindo produções teóricas norte-americana, brasileira e latino-

americana. Assim procedendo, a autora explicitou o comprometimento do SSG com

as estratégias ídeo-políticas de manutenção da ordem social e do status quo

dominante.

Cerqueira privilegiou a explicitação dos conteúdos positivo-funcionalistas em

detrimento dos conteúdos e dos temas centrais que atravessam a intervenção com

grupos: os grupos concretamente trabalhados (em sua inserção sócio-institucional) e

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as questões postas pela intervenção com grupos propriamente dita, referentes aos

processos grupais.

Assim, a autora ignorou as contradições presentes nas práticas grupais53 e no

trabalho profissional com grupos. Assim, mesmo nas formas interventivas

explicitamente comprometidas com os interesses das classes dominantes54

(oligarquias agrárias, elite política, burguesia etc.), a contradição está presente

expressando-se de forma latente, nas tensões (atmosfera tensa), nos conflitos

interpessoais e mais diretamente nos confrontos que questionam as relações de

poder, os procedimentos utilizados, os resultados esperados, os horizontes

vislumbrados etc.

53 Em suas conclusões, a autora afirma: “concluímos finalmente que o Serviço Social de Grupo pretende o estabelecimento de relações funcionais positivas e a correção das funções negativas ou disfunções. Como conseqüência contribui para: desenvolver e estimular as funções que servem á manutenção da continuidade estrutural, bem como prevenir e atenuar conflitos, evitar o aparecimento das disfunções, corrigir comportamentos desviantes, que ameaçam o equilíbrio do sistema. Desta forma, o Serviço Social de Grupo situa-se na sociedade global como uma atividade recorrente, cuja função se define pela contribuição que dá à reprodução do sistema como tal. O enfoque funcionalista desta conclusão é representado na relação: i – n – s (g). Assim, o Serviço Social de Grupo, como atividade recorrente (i), satisfaz ás necessidades ou requisitos funcionais (n) do sistema (s) para que este funcione adequadamente (g). E, como conseqüência, a sua prática é de integração e adaptação do indivíduo ao seu meio social” (Cerqueira, 1981:108-109). Nesse sentido, Cerqueira utiliza a matriz positivo-funcionalista (que havia criticado em sua relação com o SSG) para “provar” a funcionalidade do SSG à ordem dominante, simplificando, teoricamente, relações que precisariam ser consideradas em sua complexidade, incluindo a possibilidade de expressar as contradições e as ambigüidades nelas presentes. 54 Observamos que a identificação das classes sociais enfatiza a vinculação econômica dos diferentes grupos compreendida a partir da sua inserção na produção/reprodução material das sociedades. Na teoria social marxista, o proletariado participa da produção/reprodução material inserido como trabalhador assalariado, enquanto a burguesia participa da produção/reprodução material pelo acúmulo de capital propiciado através da extração da mais-valia, ou do trabalho não pago, do qual advém o lucro concretizado na circulação das mercadorias, onde mais uma vez, os trabalhadores também aparecem como consumidores. A diferença entre a concepção de classes sociais e de grupos, compreendidos a partir das práticas que os constituem, está na perspectiva de que essas se caracterizam por uma constituição heterogênea, transversal (à medida que são atravessadas por diferentes relações de poder), complexa, não redutível à vinculação ao processo produtivo (embora essa dimensão também esteja presente) e cuja produção envolve a emergência de formas organizativas as quais podem recriar ou manter as referências sócio-institucionais existentes; ou inventar/instituir novas referências ou novos modos operativos os quais emergem como novos procedimentos, como instrumentalidade, marcando uma forma de saber/conhecimento sobre a realidade, ou seja, instauram novos conteúdos/novas referências teórico-operativas.

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Assim, a crítica não realizou a superação do SSG55, em termos de

apresentar novas referências compatíveis com o acúmulo teórico-

metodológico e ético-politico possibilitado pelo movimento de renovação do

Serviço Social.

Desse modo, houve uma lacuna entre a apropriação teórico-metodológica

alinhada ético-politicamente com o Projeto de Ruptura que produziu a superação

quanto aos fundamentos que sustentavam a compreensão do Serviço Social

Tradicional (principalmente em relação à compreensão sobre a emergência histórica

da profissão) e a apropriação teórico-operativa necessária à superação das formas

interventivas tradicionais/conservadoras.

Uma explicação para essa situação parece radicar nas possibilidades

metodológicas abertas pelo referencial marxista na análise sobre as sociedades

capitalistas e pelos problemas trabalhados através daquelas referências teóricas, o

que facilitou a elaboração sobre a emergência histórica da profissão (e seu conteúdo

ídeo-político) a partir da compreensão das contradições próprias ao

desenvolvimento do modo-de-produção capitalista na perspectiva crítico-dialética e

histórico-materialista.

Já em relação à intervenção profissional propriamente dita (aos problemas

associados à inserção sócio-ocupacional dos assistentes sociais) são necessários

recursos teórico-operativos que contribuam para a análise quanto às questões

55 Referimo-nos ao SSG devido ao tema que atravessa esta tese. É possível afirmar também que a renovação do Serviço Social no Brasil ainda não produziu a superação das formas interventivas referidas ao Serviço Social Tradicional no sentido de explicitar novos conteúdos teórico-operativos compatíveis com as referências teórico-metodológicas apreendidas através da teoria social marxista no movimento dos assistentes sociais. Assim, é comum, mesmo entre os profissionais comprometidos com o Projeto de Ruptura, o recurso aos procedimentos tradicionais “modificados” pela orientação ético-política diferenciada. Por exemplo, o recurso aos dispositivos elaborados na perspectiva da dinâmica de grupo (matriz lewiniana) subordinado ao Projeto ético-político dos assistentes sociais.

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presentes e que facilitem também a construção de novas referências compatíveis

com a abordagem teórico-metodológica marxista.

Por outro lado, a formação profissional propiciada pelo Currículo Mínimo de

1982 também foi posta em discussão, durante a década de 90, quanto à sua

possibilidade de gerar competência profissional ou de propiciar a construção de

habilidades técnico-operativas/ético-políticas compatíveis com o acúmulo teórico-

metodológico e ético-político do Serviço Social.

As Novas Diretrizes Curriculares para a formação profissional de Serviço

Social, discutidas e aprovadas em 1996, através da Associação Brasileira de Ensino

e Pesquisa de Serviço Social, indicam a necessidade de procedimentos

pedagógicos diferenciados para trabalhar os conteúdos teórico-metodológicos,

técnico-operativos e ético-políticos que a perfazem. Além das disciplinas genéricas e

do estágio curricular, indica-se a necessidade de oficinas de prática profissional, de

laboratórios temáticos, de seminários de orientação e pesquisa, de atividades

acadêmicas extra-curriculares, individuais e coletivas, entre outras estratégias.

Tais orientações implicam na apreensão de conteúdos que envolvem a

própria compreensão da aprendizagem enquanto produção e criação coletivo/grupal,

a qual inclui as estratégias utilizadas na relação docente-discente, profissional-

estagiário, unidades de ensino-movimento estudantil.

Em relação aos espaços sócio-ocupacionais do Serviço Social ainda há que

considerar o impacto das novas estratégias gerenciais inseridas no conjunto das

modificações em torno da reestruturação produtiva direcionada pelo modo-de-

acumulação flexível fundado nas estratégias japonesas conhecidas como toyotismo.

Tais estratégias intensificam os ritmos de produção pela introdução de novas

tecnologias e reduzem drasticamente o número de trabalhadores envolvidos

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diretamente na produção; apelam para a criatividade dos trabalhadores, para sua

capacidade de proposição e invenção permanente favoráveis à coesão

organizacional das empresas e à realização de seus objetivos mercantis.

Nesse contexto, a intervenção do Serviço Social tem sido atravessada pelas

demandas sócio-institucionais em comunicação com as novas estratégias

gerenciais.

A demanda para o trabalho profissional com grupos foi intensificada pelas

novas formas gerenciais, sendo ressiginicada por novas leituras e novas

apropriações em relação aos clássicos da dinâmica de grupo, como Kurt Lewin, que

aparecem nos manuais de consultores na área da Administração de Empresas e

especificamente, na Administração de Recursos Humanos.

Desse modo, os assistentes sociais têm sido exigidos em sua potencialidade

para o trabalho profissional com grupos, sendo que, em muitas situações, a

necessidade de legitimar e ampliar os espaços sócio-ocupacionais existentes

também enfatizou as habilidades de intervenção grupal.

Pensamos que mesmo sendo uma estratégia gerencial alinhada com os

interesses organizacionais-empresariais, o trabalho profissional com grupos também

pode responder às demandas dos trabalhadores na medida em que os inclui em

algumas instâncias decisórias e pode permitir a emergência de temas e conflitos

institucionais, ainda que sejam de pouco impacto, devido à capacidade de

reapropriação no espaço empresarial.

Noutra direção, o comprometimento revolucionário expresso no Projeto Ético-

Político dos Assistentes Sociais, em termos de sua inserção social, como prática

humana na sociedade brasileira, também apresenta respostas a algumas

necessidades sociais, em certa medida, compatíveis com o desenvolvimento

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capitalista periférico de nosso país. Esta "funcionalidade" do Projeto à sociedade

brasileira só pode ser compreendida dialeticamente, em sua inserção enquanto

Movimento e no movimento concreto (práticas humanas objetivadas concretamente)

das práticas empreendidas pelos diferentes grupos no país.

Ou seja, a Intenção de Ruptura, em sua radicalidade, mantém presentes a

dimensão da transformação social como um dos horizontes das práticas grupais

desenvolvidas no país e a possibilidade de convergências para projetos societários

focalizados nos interesses coletivos das classes subalternas.

Assim sendo, os conteúdos referentes aos grupos e às práticas grupais

aparecem difusamente na formação profissional, seja pela compreensão dos

processos revolucionários enquanto práxis coletiva (através do Projeto Ético-

Político) seja pela exigência de habilidades técnico-operativas referentes ao manejo

das situações grupais (realização de reuniões, projetos sócio-educativos, ações

educativo-pedagógicas junto à população, mobilização social e popular, assessoria

aos movimentos sociais e populares ou do que se entende pela expressão “trabalho

profissional com grupos”) nas inserções sócio-institucionais concretizadas nos

espaços sócio-ocupacionais e nas organizações onde os assistentes sociais

desenvolvem suas formas de intervenção.

A convergência em torno da democracia e do pluralismo (como

argumentamos no início dessa seção) também coloca em relevo a qualidade das

práticas grupais, destacando-as enquanto processos grupais.

Os assistentes sociais, na enunciação do Projeto Ético-Político, partilham da

orientação democrático-pluralista.

Contudo, em relação às implicações entre o Projeto Ético-Político e a

formação profissional, apresentam-se insuficiências referentes aos conteúdos e às

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referências teórico-operativas que possibilitem a explicitação das práticas grupais

nessa dimensão dos processos grupais.

Um aspecto que atesta essa insuficiência refere-se à apropriação, no âmbito

da intervenção profissional, de instrumentos e técnicas desenvolvidos a partir de

referências teórico-metodológicas incompatíveis com o Projeto de Ruptura e “pouco

eficazes” (em descompasso) em relação aos horizontes ético-políticos expressos

pelos assistentes sociais.

Em relação às intervenções com grupos (em sentido estrito) ou ao trabalho

profissional com grupos, explicita-se, por exemplo, a recorrência à dinâmica de

grupo, sem que haja uma compreensão mais acurada sobre essas técnicas e de

suas conseqüências ou de seus impactos na vivência e no processo grupal.

Nesse sentido, é usual a justificativa segundo a qual talvez seja possível

utilizar um instrumento e uma técnica (produzida com suas implicações ídeo-

políticas), desde que sejam subordinadas a “nossas finalidades” ético-políticas.

Tal justificativa pressupõe uma apreensão do instrumento e da técnica como

algo autônomo face ao problema que enuncia e ao qual propõe uma forma de

abordagem e de resposta.

Embora as aproximações teóricas à realidade social e aos problemas que

apresenta (ou que nela se inserem) possam colocar em diálogo perspectivas ídeo-

políticas e teórico-metodológicas diferentes, a sua produção, enquanto apropriação

teórico-operativa evidencia uma instrumentalidade intimamente vinculada à

perspectiva ídeo-política que enuncia.

Assim, a dinâmica de grupo, na instrumentalidade que produz, vincula-se à

prática político-ideológica dos pesquisadores acadêmicos, dos seus interesses e de

seus horizontes ético-políticos, circunscritos sócio-institucionalmente, sócio-

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culturalmente, dimensionados por sua inserção sócio-histórica materialmente

situada.

Sua apropriação é possível aos assistentes sociais, se houver um processo

de crítica o que supõe o conhecimento sobre essa técnica – considerando as

particularidades históricas que a engendraram – o que significa uma reinvenção da

mesma.

Nesse sentido, a formação acadêmica também apresenta lacunas específicas

em relação aos conteúdos teórico-operativos referentes aos processos grupais

capazes de facilitar a “reinvenção” das técnicas de intervenção em dinâmica de

grupo.

Os conteúdos teórico-operativos enunciados no movimento dos assistentes

sociais sob a direção da vertente de ruptura destacam a possibilidade das práticas

grupais manterem-se enquanto democráticas e pluralistas, ou seja, destacam a

possibilidade/necessidade de invenção de formas organizativas e sócio-instituintes

fundadas permanentemente na democracia e no pluralismo.

Historicamente, algumas práticas revolucionárias (Comuna de Paris/Maio de

1968) enunciaram-se organizacionalmente de forma descentralizada e plural. Mas, o

estabelecimento de parâmetros sócio-institucionais mais sistemáticos dessas formas

organizativas ainda não foi concretizado.

Essa contradição/ambigüidade entre a enunciação das possibilidades de

organizações democrático-pluralistas e as práticas democrático-pluralistas

efetivamente concretizadas organizacionalmente tem-se apresentado como uma

condição constitutiva dos processos grupais.

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Nesse sentido, as práticas democrático-pluralistas atravessam o desafio de

criar formas organizativas fluidas, não-hierárquicas, inventando procedimentos

favoráveis à coletivização do poder, a fim de contribuir para uma “gestão coletiva”,

em termos da produção/reprodução material, superando a subordinação do trabalho

ao capital (Mészáros, 2002) e propiciando o pronunciamento de todos,

publicamente, sobre as decisões que também dizem respeito a cada um.

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OS GRUPOS E AS PRÁTICAS GRUPAIS

Introdução

O tema constituinte desta tese versa sobre o trabalho profissional com grupos

no Serviço Social brasileiro, tendo como foco, as proposições de ruptura com o

Serviço Social tradicional enunciadas pelos assistentes sociais na referência ao

Projeto Ético-Político construído durante a década de 80 e difundido mais

amplamente a partir da década de 9056.

56 No Movimento de Renovação do Serviço Social no Brasil, caracterizado no período estendido entre as décadas de 60 e 80, foi identificada por José Paulo Netto (1991) a expressão de projetos profissionais diferenciados, que, embora compartilhassem a necessidade de responder às novas demandas sócio-institucionais postas pelo aprofundamento do capitalismo em nosso país (expansão do capital monopolista em escala internacional e manutenção do caráter subordinado do desenvolvimento capitalista brasileiro sob a autocracia burguesa a partir do golpe militar de abril/64), apresentaram modos de intervenção orientados por horizontes ideo-políticos e teórico-metodológicos divergentes. Nesse sentido, o autor destaca a resposta profissional em sua vertente modernizadora – laica, fundamentada nas Ciências Humanas em suas formulações positivo-funcionalistas e compatível com as exigências sócio-institucionais na conjuntura de centralização política e de coerção social – evidenciada na década de 60 e cuja expressão vai se enfraquecendo durante a ditadura militar; destaca a resposta profissional presente no eixo RJ-SP, a partir dos anos 70, que, na “onda” de crítica aos fundamentos positivistas e à sociologia em sua vertente funcionalista (e entre os profissionais na perspectiva modernizadora que informava a sua intervenção) apropria-se, ainda que precariamente, da crítica fenomenológica, fortalecendo determinados preconceitos presentes nas protoformas do Serviço Social, sendo por isso denominada de “reatualização do conservadorismo”. Durante a segunda metade da década de 70 e durante a década de 80 cresce a influência da vertente profissional que intenta uma ruptura com o Serviço Social tradicional orientada por um horizonte político contestatório e fundamentada pela teoria social marxista, tal vertente foi denominada “intenção de ruptura” e se fortalece no contexto de movimentação social e de exigência de redemocratização da sociedade brasileira. A vertente intenção de ruptura enuncia um projeto profissional que foi denominado “Projeto Ético-Político dos Assistentes Sociais”, no qual explicita seus horizontes ético-político-ideológicos comprometidos com as lutas emancipatórias travadas nas sociedades capitalistas e geralmente efetivadas através das classes trabalhadoras.

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Refere-se a questões complexas como o é a própria compreensão sobre os

grupos nas sociedades capitalistas contemporâneas. Desse modo, o trabalho

profissional com grupos no Serviço Social é enriquecido e problematizado tanto pelo

movimento dos assistentes sociais, no sentido de construir abordagens teórico-

operativas coerentes com a perspectiva de ruptura com o Serviço Social tradicional,

quanto pelo diálogo e pelo debate com as diferentes apreensões acerca dos grupos

desenvolvidas em diferentes campos disciplinares, como na psicologia, na

psicanálise freudiana, na sociologia, na antropologia, na microssociologia, na

psicologia social, na psicossociologia, na administração de recursos humanos, na

pedagogia, na socioanálise, na esquizoanálise, nas diversas abordagens da análise

institucional, na teoria social marxista, e até mesmo na biologia (hipótese sobre a

origem da linguagem entre os seres humanos enunciada por Humberto Maturana

como coordenações de coordenações de ação) e na informática (especulação sobre

a produção de uma inteligência coletiva através da rede de computadores - internet),

e provavelmente, em outros campos que não foram mencionados por nossa

ignorância.

A necessidade de abertura ao diálogo com outros campos disciplinares deriva

da trajetória percorrida pelos assistentes sociais no movimento de renovação do

Serviço Social no Brasil.

Nesse processo, os fundamentos teórico-metodológicos e os horizontes ético-

políticos que sustentavam a intervenção profissional tradicional foram transformados

tanto pelas demandas sócio-institucionais concretas quanto pela crítica interna ao

Serviço Social tradicional. Tal renovação exigiu novas formulações teórico-

operativas e a discussão sobre o horizonte ético-político da intervenção profissional.

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Desse modo, abriu-se um “vácuo” ou um momento de “não-saber” ou ainda,

possibilidades de criações originais que respondessem às necessidades da

intervenção profissional, em relação às demandas sócio-institucionais concretas e

em consonância com as diferentes percepções existentes no âmbito do Serviço

Social.

Nesse sentido, tal abertura é clivada pela orientação ético-política ou a ela

está subordinada. Em especial, no tema que estamos trabalhando, também

procedemos a um plano de respostas orientadas por nossa apropriação do Projeto

Ético-Político dos Assistentes Sociais. Assim, nosso diálogo com as produções que

abordam o tema “grupos” em muitos momentos também se transforma em um

debate. De um lado, buscamos alargar a compreensão sobre os grupos nas

sociedades capitalistas contemporâneas e por outro, fixamos horizontes ético-

políticos que julgamos importantes, como um marco através do qual criticamos as

concepções que estamos apreendendo.

Várias peculiaridades aparecem nesse diálogo/debate. A fragmentação do

conhecimento em diversos campos disciplinares acaba por reduzir a compreensão

dos grupos a compartimentos mais ou menos estanques, de acordo com a

perspectiva teórico-operativa e ético-política que a informa. Se as construções

teóricas “sabem-se” produções históricas, implicadas socialmente com diferentes

interesses e com diferentes projetos societários, a crítica interna facilita o nosso

trabalho, em termos de expressar essas dimensões. Mas, se as construções teóricas

são obscuras em relação aos seus pertencimentos institucionais e societários, ou

em suas implicações57, nosso trabalho também precisa ser realizado no sentido de

57 O termo implicação foi cunhado e tem sido utilizado no Movimento Institucionalista e Grupalista na perspectiva de “elucidar” o “lugar” ocupado pelo analista institucional ou pelo socioanalista ou pelo esquizoanalista e ainda, pelos participantes dos grupos, quanto à inserção de classe; quanto ao comprometimento com os interesses em jogo; quanto aos atravessamentos pelas marcas de gênero,

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buscar uma elucidação ainda que aproximativa de tais pertencimentos. É

necessário então, compreender a emergência de cada construção teórica

historicamente referida e ao mesmo tempo, compreender os seus enunciados em

termos de sua especificidade e o que tal especificidade inova ou traz à tona para o

conhecimento dos grupos na sociedade capitalista.

Compreender cada construção teórica em sua especificidade é um trabalho

complexo, posto que envolve o trânsito entre diferentes “linguagens”, diferentes

matrizes teóricas, cada qual comprometida com um léxico próprio, de acesso difícil

para os não especialistas. Contudo, um pouco de paciência e determinação, bem

como a divulgação de bibliografia para os “não-especialistas”, contribuem para que

possamos apreender os elementos centrais e os problemas enunciados nas suas

respectivas áreas.

Nesta tese, trabalhamos na busca de referências teóricas sobre os grupos

nas sociedades capitalistas que pudessem contribuir para a construção de

estratégias de intervenção com grupos compatíveis com o Projeto Ético-Político dos

Assistentes Sociais58.

etnia, geração, opções sexuais, ideologias; quanto aos horizontes ético-políticos (vinculação aos projetos societários); enfim, quanto aos pertencimentos organizacionais e institucionais em relação ao território de conhecimento que contribuiem para delimitar. 58 “Esquematicamente, este projeto ético-político tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor central – a liberdade concebida historicamente, como possibilidade de escolher entre as alternativas concretas; daí um compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais. Conseqüentemente, o projeto profissional vincula-se a um projeto societário que propõe a construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero. A partir destas escolhas que o fundam, tal projeto afirma a defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e dos preconceitos, contemplando positivamente o pluralismo – tanto na sociedade como no exercício profissional. A dimensão política do projeto é claramente enunciada: ele se posiciona em favor da eqüidade e da justiça social, na perspectiva da universalização do acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais; a ampliação e consolidação da cidadania são postas explicitamente como condição para a garantia dos direitos civis, políticos e sociais das classes trabalhadoras. Em decorrência, o projeto se reclama radicalmente democrático – vista a democratização enquanto socialização da participação política e socialização da riqueza socialmente produzida. Do ponto de vista estritamente profissional, o projeto implica o compromisso com a competência, que só pode ter como base o aprimoramento intelectual do assistente social. Daí a ênfase em uma formação acadêmica qualificada, alicerçada em concepções teórico-metodológicas críticas e sólidas, capazes de viabilizar uma análise concreta da realidade social – formação que deve

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Percebemos, então, que a própria complexidade do Projeto Ético-Político

indicava a necessidade de dialogar/debater com outras perspectivas, inclusive

aquelas aparentemente comprometidas com a conservação e com a manutenção do

status quo dominante ou aquelas que não questionam explicitamente a ordem social

dominante, contribuindo no plano teórico-operativo para sua manutenção.

Explicamo-nos melhor. A princípio focamos a atenção sobre as construções

teóricas sobre grupos internamente críticas à sociedade capitalista e à dominação

burguesa exercida diretamente no processo de exploração do trabalho (pela

extração de mais-valia59) e no submetimento político-social das classes

trabalhadoras.

Nesse sentido, na teoria social marxista há um núcleo básico centrado

na compreensão das ações humanas a partir do entendimento da luta de classes e

das determinações econômicas como categoria explicativa, ainda que estas

determinações econômicas possam ser consideradas em última instância (Jacob

Gorender, 2001). Tais enunciados politizam a ação dos trabalhadores e

potencializam a luta na defesa de seus interesses, contrários aos interesses da

burguesia, bem como propõem um horizonte revolucionário que incorpora a

necessidade/possibilidade de superação do capitalismo. Formulada por Karl Marx e

Friedrick Engels em sua raiz, a teoria social marxista, no século XIX, expressa um

abrir o passo à preocupação com a (auto) formação permanente e estimular uma constante postura investigativa. Muito especialmente, o projeto prioriza uma nova relação sistemática com os usuários dos serviços oferecidos pelos assistentes sociais: é seu componente estrutural o compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população, incluída nesta qualidade a publicização dos recursos institucionais, instrumento indispensável para a sua democratização e universalização e, sobretudo, para abrir as decisões institucionais à participação dos usuários. Enfim, o projeto sinaliza claramente que o empenho ético-político dos assistentes sociais só se potenciará se a categoria articular-se com os segmentos de outras categorias profissionais que partilhem propostas similares e, notadamente, com os movimentos que se solidarizam com a luta geral dos trabalhadores (Netto, 1999:104-105). 59 Conforme a explicação de Karl Marx, Capítulo V de O Capital, Processo de trabalho e processo de produzir mais-valia (2002).

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período de intensa mobilização dos trabalhadores, principalmente na Inglaterra e na

França, mediada pela concentração dos meios de produção pela burguesia, em um

processo de expropriação dos trabalhadores que os transformou (nas relações de

produção material) em vendedores da sua força de trabalho, ou a proprietários

apenas da sua força de trabalho como seu meio de vida e de sobrevivência. A luta

dos trabalhadores vai se construindo na medida em que eles se opõem à violência

dos novos meios de produção e à exploração a que foram expostos. Também

manifestam-se pelo direito à participação política ou pela participação na definição

das leis, das normas, dos padrões que regem as novas formações sociais (e as suas

vidas) a partir do modo-de-produção capitalista.

Assim, a perspectiva marxista contribui para a compreensão da ação histórica

dos grupos humanos, concebidos a partir das determinações econômico-materiais

que os constituem. Analisa a desigualdade social (em termos do acesso à riqueza

socialmente produzida) entre os diferentes grupos no processo que a produz, ou

seja, na produção material, na inserção de classes, principalmente na polarização

entre as classes fundamentais: burguesia e proletariado.

O fato dos trabalhadores, enquanto não possuidores dos meios de produção,

e desse modo, submetidos à venda da sua força de trabalho no mercado capitalista,

único meio de troca de que efetivamente dispõem para garantir a sua sobrevivência,

partilharem de condições materiais semelhantes, lhes possibilita uma certa

solidariedade aos seus problemas comuns, favorecendo ações coletivas em torno de

seus interesses colidentes com os interesses da burguesia. Então, se existem

condições que são comuns (as determinações materiais presentes na compreensão

marxista de classe social) e passíveis de apropriações vividas de formas

semelhantes por um grande número de pessoas, há a possibilidade de que tais

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condições precipitem uma relativa convergência no encaminhamento de questões,

há a possibilidade de que os trabalhadores se constituam enquanto classe social

(classe para si) e nesse processo, enunciem um projeto que lhes representem.

Contudo, o movimento sindical (constituído durante os séculos XIX e XX) e a

luta geral dos trabalhadores sofrem inflexões a partir da segunda metade do século

XX, principalmente a partir do “pacto social” em torno do “Welfare State”60, nos

países capitalistas centrais, na Europa e nos EUA, onde o desenvolvimento do

modo-de-produção capitalista assentado no modelo taylorista-fordista, nas políticas

de reconstrução da Europa e do Japão (pós-Segunda Guerra Mundial), no avanço

agressivo de investimentos na América Latina, favoreceu um acesso massivo aos

bens produzidos, através de salários um pouco mais altos, da possibilidade de pleno

emprego e da garantia de acesso às políticas públicas (educação, saúde,

assistência social, seguridade social).

A polarização entre capitalismo e socialismo, a prática da Guerra Fria entre

EUA e URSS, foram condições que favoreceram um certo equilíbrio de forças entre

burguesia e proletariado nos países centrais, embora tenha reforçado a disputa de

hegemonia nos demais países, como por exemplo, na periferia do desenvolvimento

capitalista, nos países latinoamericanos, através de ações coercitivas para reprimir

os movimentos sociais de caráter revolucionário e/ou contrários às estratégias de

expansão/dominação do capital monopolista no globo. O prestígio dos sindicatos e

dos partidos operários cresceu e tais organismos expandiram sua influência em nível

nacional. A participação dos sindicatos e dos partidos políticos nas sociedades

capitalistas nos países centrais, durante a Era de Ouro (Eric Hobsbawn, 1996) fosse

nas negociações salariais, fosse na esfera política, criou uma imagem de

60 Conforme Alan Bihr argumenta em seu livro Da grande noite à alternativa. O movimento operário europeu em crise (1999).

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desenvolvimento capitalista civilizado (em oposição ao desenvolvimento capitalista

selvagem) reforçando as retóricas reformistas mesmo entre a classe trabalhadora. O

horizonte revolucionário “congelou-se” mediante as perspectivas concretas de

acesso aos bens e serviços produzidos na sociedade capitalista, mediante uma

melhor participação dos trabalhadores na riqueza social através do consumo de

bens e serviços, apesar da violenta exploração implementada pela subordinação dos

seres humanos ao processo de trabalho fragmentado e mecanizado, pela

subordinação às estruturas organizacionais burocratizadas, nas quais predominam a

impessoalidade e a racionalidade técnico-instrumental.

Por outro lado, o fim da Era de Ouro solapou as bases econômicas de

manutenção do “Welfare State” e do “pacto social”, exigindo uma nova

reestruturação produtiva orientada pela acumulação flexível, para mercados

flexíveis, diferenciados (em contraposição à produção de mercadorias para as

massas), atendendo às necessidades de clientes exigentes, mas que possam pagar

continuamente pela atualização de seus bens. Recrudesceram as estratégias da

burguesia no sentido de aumentar a exploração da classe trabalhadora, através de

ações que aumentaram a intensidade do trabalho (ritmo de trabalho intensificado) e

a extensão da jornada de trabalho, respectivamente aumentando as taxas de mais-

valia relativa e absoluta (Marx, 2002). Mas, aos trabalhadores nascidos sob o signo

do “pacto social”, a ameaça aos direitos conquistados e também a ameaça do

desemprego, exigiriam novas formas de lutas, principalmente diante dos diferentes

status internos à própria classe trabalhadora. A acumulação flexível re-produziu os

trabalhadores terceirizados (geralmente pessoas demitidas que formaram uma

pequena empresa de prestação de serviços à mesma organização), os

trabalhadores por tempo determinado e os trabalhadores com contratos precários.

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Houve uma fragmentação nas condições materiais da classe trabalhadora, embora,

em tese, a classe trabalhadora seja a classe que vive do trabalho (da venda da sua

força de trabalho, Ricardo Antunes, 1995), cada situação enumerada acima

determina um impacto diferente sobre as condições de vida e de sobrevivência dos

trabalhadores. Tal fragmentação reforça a competição entre os trabalhadores no

sentido de conseguir os melhores postos de trabalho, os melhores salários, que lhes

permitam ter acesso aos bens e serviços produzidos na sociedade capitalista. A

ideologia, enquanto perspectiva que orienta a ação, fragmentou-se em diferentes

direções, desde o horizonte dominante de consumo (status de consumidor) e bem-

estar pessoal veiculado hegemonicamente até à persistência do horizonte

revolucionário, ainda que rechaçado coletivamente, e até internamente, pelos

próprios trabalhadores.

Tais questões, ainda que pontualmente enunciadas, transmitem os problemas

na compreensão sobre a ação dos grupos humanos na sociedade capitalista. Se, à

princípio, a teoria social marxista, nossa principal interlocutora, oferece muitos

elementos que nos permitem compreender as ações históricas dos seres humanos

nas sociedades, como produtos e produtoras das formas de reprodução material e

social engendradas coletivamente, a complexidade da luta de classes nas

sociedades capitalistas contemporâneas coloca-nos sérios desafios – considerando-

se a fragmentação da classe trabalhadora, o que nos força a usar o plural “classes

trabalhadoras” – e ainda considerando-se a crescente complexificação das relações

sociais, pela multiplicidade de organizações e instituições existentes e pela

diversidade de expressões favorecidas pela dinâmica de diferenciação individual,

mesmo que tal individualidade seja em alguns aspectos um reflexo de um modo de

viver que valoriza o individualismo e portanto, tende no outro pólo, à massificação

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individual. Visualizar as diferentes apropriações feitas pelos diversos grupos sociais,

ou vislumbrar nas ações destes grupos seus conteúdos e seus interesses de classe

torna-se também em um desafio. Isto porque os diversos atravessamentos, as

diferentes implicações, de certo modo, descentralizam as lutas, às vezes reduzindo-

as a dimensões mais restritas ou mesmo desconectadas de suas bases materiais ou

cujo horizonte almeja conquistas mais próximas, mais cotidianas, ou de mudanças

de longo prazo, em uma espécie de reinvenção da vida a partir de novas

significações, a partir de novas produções de identidade (Alberto Melluci,2001).

As implicações ético-políticas desta tese, nas apropriações que realizamos,

nos direcionam a valorizar os conteúdos que fortalecem a possibilidade de ruptura

com a exploração, com a dominação em todas as suas refinadas expressões

(gênero, etnia, religiosidade, geracional, normatização sexual etc.), no

comprometimento com a democracia, com o pluralismo (respeito às expressões

diferentes), com a criação da emancipação humana.

Desse modo, as construções teóricas sobre grupos compatíveis com o

horizonte ético-político do marxismo, mas que internamente enunciam uma

compreensão teórica que rompe com a ortodoxia das categorias teóricas marxistas,

foram identificadas em primeiro plano, a partir da produção de Jean Paul Sartre na

obra Crítica da razão dialética (Capítulo 2) e nas elaborações teóricas do Movimento

Institucionalista e Grupalista (Capítulo 3) principalmente em sua produção francesa.

Contudo, as questões que se expressam através dessas construções teóricas abrem

a necessidade de visitar outros campos de produção sobre os grupos, como a

psicologia e a psicanálise. Vimos então, que nesse campo, o aprofundamento sobre

a individualidade construída nas sociedades burguesas também expressa

possibilidades de ruptura, assim como a emergência de novas singularidades, no

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sentido que lhes confere Felix Guattari (1985;1996). O estudo sobre as

manifestações individuais implica necessariamente a apreensão dos vínculos entre

indivíduo e sociedade. Em nossas sociedades capitalistas contemporâneas que

englobam conjuntos heterogêneos de pessoas, existe uma tolerância para a

convivência na diversidade. Mas, os grupos de referência (parentesco, amizade,

vizinhança, lazer, trabalho, igreja, militância etc.) caracterizados por uma

comunicação mais estreita (cotidiana, com a proximidade física de contato entre as

pessoas) e pela realização de ações em comum, exercem uma influência importante

na construção de sujeitos coletivos, propiciando uma elaboração racional-afetivo-

operativa (internalização/apropriação de valores, aprendizado de condutas,

desenvolvimento de atitudes e comportamentos compatíveis com os grupos de

referência, apreensão ideológica ou “construção” de percepções que orientam as

ações empreendidas; ou ainda, inserção em um “modo paradigmático”, em uma

“matriz” de compreensão que orienta as ações, as expectativas, que informa os

sentidos e as significações; tal matriz também se mantém como referência para a

“decodificação” da realidade) pela mediação dos vínculos entre as pessoas, pela

experiência ou pela vivência de pertencimento que envolve a aceitação e o

reconhecimento de si pelo Outro.

Por outro lado, a tentativa de organizar a diversidade dessas produções em

uma perspectiva histórico-cronológica implicaria em adotar um critério temporal, que

se por um lado, organiza as contribuições teóricas em referência ao período que

foram produzidas, por outro, o faz a posteriori, desconsiderando, assim, em sua

análise (posto que enuncia no presente a demarcação da origem de sua trajetória no

passado), a própria mobilidade, as forças em presença no processo instituinte,

questões que permitiriam compreender porque determinada construção teórica

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emergiu e foi reconhecida (institucionalizada) como tal em seu campo de

aplicação61. A emergência de uma construção teórica delimita territórios de

conhecimento, às vezes, dificultando a percepção das zonas de não-saber que

continuam em aberto. A perspectiva de enunciar as teorias grupais

cronologicamente a partir das produções identificadas como pioneiras redundaria em

arbitrariedade, fixando-nos em uma posição de pseudo-domínio sobre o que já foi

produzido sobre grupos.

Arrisca-mo-nos a percorrer uma trajetória um tanto circular, um tanto em

espiral e um tanto caótica (despretensiosa em relação à ordenação dos conteúdos

que serão expostos). Nesse sentido, optamos pela identificação nas produções

teóricas selecionadas (em Sartre e no Movimento Institucionalista e Grupalista) do

conteúdo que apresentam em relação à compreensão dos grupos humanos nas

sociedades capitalistas contemporâneas. Ou seja, se os grupos humanos passam a

ser uma referência de ação e precisam ser compreendidos na medida em que suas

manifestações tornam-se relevantes em nossas sociedades e na medida em que a

própria ação humana coletiva torna-se inteligível enquanto produtora da ordem

social (materialmente engendrada) tais questões, de alguma maneira, atravessam

as produções teóricas interessadas em compreendê-las. Essas produções teóricas

estão situadas historicamente e também são construções inseridas em

determinados movimentos sociais e sustentam-se em organizações e nas ações de

determinados grupos humanos.

61 As reflexões de Heliana de Barros Conde Rodrigues no artigo “Sobre as histórias das práticas grupais: explorações quanto a um intrincado problema” (1999) nos auxiliaram na formulação desta compreensão.

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A nossa opção foi partir das produções teóricas que buscam compreender os

grupos humanos em seu movimento histórico-dialético e que, ao mesmo tempo, não

os reduzem às determinações econômico-materiais.

Também procuramos apreender, na medida do possível, o lugar dos grupos e

das práticas grupais enquanto espaços de mediação entre indivíduo e sociedade

capazes de produzir vínculos sociais, em uma tentativa de compreendê-los nos

processos de auto-produção, auto-criação, autonomia, possibilidades de

enunciação, ruptura e emancipação que apresentam, mas também, nos processos

em que a auto-produção e auto-criação direcionam-se para a manutenção e para a

conservação do próprio grupo, ou seja, os grupos podem re-criarem-se

permanecendo os mesmos62, sendo capazes de se auto-iludirem, se alienarem e se

burocratizarem.

Temos a clareza de que muitos aspectos ficaram submersos e que alguns

não foram suficientemente trabalhados, embora tenhamos nos empenhado

honestamente em nossa tarefa. Existem espaços em aberto e estes permitem novas

significações, novos diálogos, novos debates. Tal compreensão diminui a exigência

de construir um conhecimento final e coloca-nos na posição de aceitar que toda

contribuição é provisória e por isso mesmo, importante, no sentido de fomentar uma

elaboração teórica contínua e compartilhada, tarefa coletiva, que nos implica

enquanto responsáveis em sua realização.

62 “O rio é e não é o mesmo rio” (Heráclito), mas ele continua sendo. Parece-nos que metaforicamente, “o” grupo pode continuar sendo “o” mesmo grupo, optando por isso continuamente.

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CAPÍTULO 2 – O GRUPO NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-

DIALÉTICA DE JEAN-PAUL SARTRE

2.1 – Contextualização histórica e influências teórico-políticas

na produção da obra Crítica da razão dialética

Iniciamos nossa investigação no campo das produções téoricas sobre grupo

pela obra Crítica da razão dialética, escrita por Jean Paul Sartre63, cuja primeira

edição francesa data de 1960.

Os motivos para a escolha são muitos. A Crítica da razão dialética influenciou

diferentes autores que se interessam pelo grupo enquanto campo de investigação e

de intervenção (o que detalharemos durante esta tese). Nessa obra, Sartre

empreende uma aproximação sobre a ação grupal, buscando qualificar a práxis

grupal, diferenciando-a de outros fenômenos coletivos. Tal aproximação foi realizada

sob a influência da obra de Karl Marx, e em diálogo com o marxismo, talvez até 63 Giovanni Reale e Dario Antiseri resumem a trajetória de Sartre: “testemunha atenta e aguda do nosso tempo, Jean Paul Sartre, nascido em Paris em 1905, realizou seus estudos na Escola Normal Superior e ensinou filosofia nos liceus de Le Havre e Paris até o início da última guerra, à exceção de um período que transcorreu em Berlim (1933-1934), onde estudou a fenomenologia e escreveu A Transcendência do Ego. Convocado para o Exército, foi aprisionado pelos alemães e levado para a Alemanha. Voltando logo depois para a França, fundou o grupo de resistência intelectual ‘Socialismo e Liberdade’, juntamente com Merleau-Ponty. No imediato após-guerra, o seu pensamento se impôs ao público mundial durante cerca de duas décadas (graças sobretudo ao se ‘teatro de situações’), influindo amplamente na sociedade e nos costumes. Nas últimas duas décadas, a atividade de Sartre não teve descanso: suas viagens políticas (como a viagem a Cuba, onde encontrou Fidel Castro e Che Guevara, a viagem a Moscou, onde foi recebido por Kruschev) não lhe impediram o frenético trabalho de filósofo, romancista, ensaísta, dramaturgo, conferencista e roteirista cinematográfico. Sartre morreu em 1980” (1991: 604-605). Sobre a atividade política de Sartre há que destacar sua filiação ao Partido Comunista Francês em 1952 e sua ruptura com o mesmo, no ano de 1956, após a intervenção soviética na Hungria.

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mesmo em busca de respostas para as críticas que o próprio Sartre fazia aos

marxistas, as quais apresentaremos suscintamente mais adiante. A Crítica da

razão dialética diferencia-se das abordagens produzidas nos EUA sobre grupo sob a

orientação da sociologia e da psicologia social posto que desenvolve uma

aproximação dialética sobre o grupo considerado concretamente em suas ações

determinadas historicamente. Sartre fundamenta suas considerações sobre o grupo

a partir da análise histórica da Revolução Francesa, neste sentido, o grupo em

questão é um movimento popular, uma práxis popular que está na origem da

institucionalização do capitalismo na França64. Também enriquecem suas análises, o

modo como se nutrem da cotidianeidade e do cuidado em estabelecer relações com

diferentes manifestações coletivas na sociedade capitalista. Sartre inaugura uma

perspectiva diferente para pensar o grupo e a práxis grupal na sociedade capitalista.

Antes de expormos as formulações contidas na Crítica da razão dialética

apresentaremos uma breve contextualização na qual indicaremos as críticas mútuas

entre existencialismo e marxismo e o posicionamento de Sartre face às mesmas; a

proposição do método progressivo-regressivo ou regressivo-progressivo e sua

relação com a Crítica da razão dialética.

Sartre declara que o “marxismo é a filosofia de nosso tempo" (2002:36)

considerando que em sua compreensão “uma filosofia se constitui para dar

expressão ao movimento geral da sociedade; e enquanto vive é ela que serve de

64 Essa perspectiva sartreana contrasta com a análise de Sigmund Freud fundamentada sobre os estudos de Le Bon (referindo-se às multidões ou às massas no final do século XIX "coincidentemente" no calor dos acontecimentos da Comuna de Paris, conforme sugere Rodrigues, 1999). Em Sartre a análise das ações populares que levaram à queda da Bastilha é realizada através da compreensão da práxis comum que se instaura neste movimento, valorizando na fusão grupal a possibilidade de quebrar a serialidade (e o isolamento das ações individuais). Na análise de Freud, as massas e as multidões são apresentadas como contagiosas e neste sentido, perigosas, pois podem reprimir a lucidez individual e influenciar comportamentos diferentes nos indivíduos. Embora a apreciação de Freud esteja correta (a serialidade individual é quebrada pela fusão em um grupo) a ênfase no indivíduo acaba privilegiando as ações individuais e fomentando um certo preconceito quanto às ações coletivas, quanto à práxis comum.

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meio cultural aos contemporâneos” (idem:19). O marxismo é insuperável porque as

circunstâncias que o engendraram não foram superadas.

Apesar da defesa e do elogio ao marxismo, Sartre advoga a necessidade do

existencialismo. É que para ele, o marxismo ficou parado, operou-se no marxismo

uma cisão entre teoria e práxis, presente na experiência soviética que buscou

enquadrar a experiência real pela teoria marxista. Segundo Sartre,

Ora, não seria possível duvidar de que a fecundidade do marxismo vivo vinha, em parte, de sua maneira de abordar a experiência. Convencido de que os fatos nunca são aparições isoladas, de que, se se produzem em conjunto, é sempre na unidade superior de um todo, de que estão ligados entre si por relações internas e de que a presença de um modifica o outro em sua natureza profunda, Marx abordava o estudo da revolução de fevereiro de 1848 ou do golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte, com um espírito sintético; via aí totalidades dilaceradas e produzidas, a uma só vez, por suas contradições internas (...) Em Marx, nunca encontramos entidades: as totalidades (por exemplo, a 'pequena burguesia' em O 18 Brumário) são vivas; definem-se por si mesmas no contexto da pesquisa (idem:32-33).

Para ele, o marxismo “tem fundamentos teóricos, abrange toda a atividade

humana, mas não sabe mais nada: seus conceitos são diktats; seu objetivo já não é

o de adquirir conhecimentos, mas o de constituir-se a priori em Saber absoluto”

(idem:35). Nesse sentido, o existencialismo seria uma resposta à necessidade de

retomar a experiência, de se referir à realidade, de retornar ao humano como

fundamento:

Assim, a autonomia das pesquisas existenciais resulta necessariamente da negatividade dos marxistas (e não do marxismo). Enquanto a doutrina não reconhecer sua anemia, enquanto fundamentar seu saber em uma metafísica dogmática (dialética da Natureza) em vez de apoiá-la na compreensão do homem vivo, enquanto rechaçar sob o nome de irracionalismo as ideologias que – como fez Marx – pretendem separar o Ser do Saber e fundamentar, em antropologia, o conhecimento do homem na existência humana, o existencialismo prosseguirá suas pesquisas. (...) A partir do dia em que a pesquisa marxista tomar a dimensão humana (isto é, o projeto existencial) como fundamento do Saber antropológico, o existencialismo já não terá razão de ser: absorvido, superado e conservado pelo movimento totalizante da filosofia, ele deixará de ser uma pesquisa particular para tornar-se o fundamento de qualquer pesquisa (idem:134).

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Há uma polêmica entre Sartre e o húngaro Georg Lukács que perpassa o

ensaio Questões de Método. Esta polêmica explicita as tensões e as críticas mútuas

entre marxismo e existencialismo, condensando algumas das questões que

atravessam diretamente os temas trabalhados nesta tese.

Lukács escreveu um livro publicado em português sob o título Realismo e

Existencialismo no qual analisa a obra de Sartre, entre outros existencialistas.

Segundo Lukács (1969) o existencialismo seria uma resposta burguesa (expressão

no plano do pensamento), apresentada como terceira via, que ideologicamente

justifica o capitalismo e o domínio de classe burguês. A obra de Lukács foi escrita

antes de Questões de Método e antes da Crítica da razão dialética e não foi revista

na reedição original de 196065.

Sartre responde à Lukács argumentando que a análise deste enquadra o

existencialismo em um plano teórico definido a priori. Realmente Lukács utiliza a

obra de Lênin Materialismo e Empiriocriticismo para fundamentar a sua crítica ao

existencialismo, dando essa impressão de ter “aplicado um raciocínio teórico” ao

tema em estudo. No entanto, suas considerações sobre o existencialismo são muito

instigantes e nos motivam à reflexão.

Vejamos, suscintamente, os argumentos de Lukács:

65“Já é mais importante que Sartre e Merleau-Ponty tenham modificado totalmente, neste lapso de tempo, a sua posição política e, por conseqüência, filosófica. Uma polêmica actual conduziria, sob vários aspectos, a resultados diferentes. Pelo facto de estar muito ocupado com o acabamento da minha obra sobre a estética, não posso encarar uma remodelação completa do 'Existencialismo ou Marxismo?' Espero poder, no entanto, voltar a reflectir sobre a maior parte dos problemas actuais da filosofia de Sartre na minha obra sobre a ética, a que darei início depois de terminar a de estética” (Nota de Georg Lukács à segunda edição de Realismo e Existencialismo, datada em 11 de abril de 1960).

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a) o estádio de imperialismo produz uma mudança no campo téorico-

ideológico engendrando a “terceira via” que vai de Mach e de Nietzsche até ao

existencialismo66;

b) na teoria do conhecimento a “terceira via” consiste em proclamar-se neutro

face ao idealismo que pretende superar e face ao materialismo;

c) o revisionismo filosófico que a “terceira via” empreende combate o

materialismo dialético “orientando a ideologia da classe operária para as concepções

burguesas” (1969:10);

d) o “grande combate” ocorre entre o existencialismo, expressão mais

avançada da “terceira via”, e o materialismo dialéctico.

Diretamente em relação à Sartre, em especial sobre a obra O ser e o nada,

Lukács dirige as seguintes críticas:

a) o existencialismo fundamenta-se no método fenomenológico; analisar a

novidade deste método é um problema para o qual importa o exame sobre a

atitude da filosofia como comportamento humano abstracto diante dos grandes

problemas contemporâneos. Sob este ângulo, a fenomenologia moderna é um, entre

vários métodos filosóficos, que se propõe a ultrapassar tanto o idealismo como o

materialismo, apoiando-se na intuição como fonte do verdadeiro conhecimento;

b) o existencialismo, apesar de negá-lo, continua a expressar uma forma de

idealismo: estabelece a correlação entre a existência e a consciência, sendo que

uma não poderia existir sem a outra; mas a existência não aparece em suas

determinações históricas, materiais. Embora o corpo tenha sido recuperado em 66“Toda a filosofia antidialéctica, portanto desprovida de verdadeira compreensão para a história, se engana sobre a realidade fazendo do presente uma 'lei eterna' ou uma 'existência eterna' (...) No momento da crise do imperialismo, quando tudo vacila e tudo está a ponto de ruir, a 'intelligentzia' burguesa, obrigada a duvidar de verdades que acreditava eternas, encontra-se diante de uma alternativa filosófica (...) Ora a burguesia não pode reconhecer a sua falência, pois que isso a obrigaria a aderir ao socialismo. Eis porque a filosofia burguesa deve fatalmente orientar-se para outra alternativa e declarar a falência da razão” (Lukács, 1969:59).

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Nietzsche, isto significou a passagem entre as “alegrias terrestres” e a “vida

perigosa” vividas corporalmente, sem referência as mediações materiais que o

atravessam. Assim, o materialismo é posto de lado, chamando-se a atenção para o

fato de que, para o materialismo a existência independe da consciência;

c) a fenomenologia não é adequada para tratar das questões decisivas da

realidade social porque coloca entre parêntesis o problema da realidade do objeto

intencional. Ao fundamentar-se na intuição o método fenomenológico resvala na

arbitrariedade, opondo “a consciência do indivíduo isolado ao pretenso caos das

coisas e dos homens, pois que sem o confessar, faz abstração de todo o elemento

social” (idem:80);

d) a questão do sentido da existência está circunscrita ao atual

desenvolvimento do capitalismo, quando a “existência humana tornou-se não

significante” (idem:84). Tal questão torna-se clara a partir do fenômeno do fetichismo

na sociedade capitalista67;

e) o tema que discorre sobre “o nada”, quando o homem encontra-se diante

do vazio da existência, ao invés de expressar-se enquanto essência da realidade

humana (eternizada) está circunscrito historicamente. Em Sartre “o nada não tem

67 “O homem, vivendo num mundo fetichizado, ignora que a riqueza, o valor e o verdadeiro conteúdo da sua existência se encontram em inumeráveis ramificações profundas e conscientes que o ligam à existência dos seus semelhantes e à da sociedade. O indivíduo isolado e egocêntrico que não vive senão para si próprio vive num mundo empobrecido. Quanto mais as experiências lhe pertencem exclusivamente tanto mais elas são exclusivamente interiores e mais se arriscam a perder todo o conteúdo e terminar no nada. O homem vivendo num mundo fetichizado só pode vencer o vazio interior por uma espécie de embriaguez contínua, tal como o morfinómano que não vê saída senão no aumento da dose, enquanto a solução seria reorganizar a sua vida de tal modo que tornasse desnecessário o veneno. Eis porque o homem vivendo num mundo fetichizado não seria capaz de reconhecer que foi a perda de todo o contacto com a vida pública, a reificação do processo de trabalho, o desligamento do indivíduo da vida social – conseqüências da divisão capitalista do trabalho –, que lhe inspiraram a necessidade dessa embriaguez permanente, incapaz de reconhecer a realidade, persiste na sua evolução fatal e a sua atitude corresponde a uma realidade subjectiva, visto a sociedade capitalista ser necessariamente fetichizada, alienada e inumana. É, pois, apenas a atitude revolucionária perante os próprios fundamentos desta sociedade que pode fornecer uma vista clara de conjunto da realidade. A fuga para a interioridade termina num beco sem saída tragicômico” (idem:85-86).

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existência independente da do ser, mas é dele absolutamente inseparável”

(idem:89);

f) o existencialismo nega a possibilidade de estabelecer um conhecimento

sobre a relação real entre a pessoa humana e a vida68;

g) o existencialismo sartreano coloca a liberdade como o dado fundamental

da existência humana ou “a fatalidade da existência humana” (idem:102); o homem

é fatalmente livre: escolhe sempre e em todas as circunstâncias; uma definição tão

vasta da liberdade e a rejeição de todo critério objetivo para definí-la tornam

impossível uma definição exata da liberdade; por outro lado, a liberdade assim

absolutizada acaba se constituindo em um determinismo que desconsidera a

possibilidade de “atos não livres”69.

Em resumo, Lukács considera que os argumentos levantados por Sartre

contra o marxismo tomam-no em sua vulgarização e revelam uma incapacidade do

autor em compreendê-lo70. Sartre “censura o materialismo por eliminar a

68 “O existencialismo obstina-se a demonstrar de princípio a fim que é impossível saber seja o que for sobre o homem (...) 'O existencialimo', diz Jaspers, 'estaria perdido no próprio momento em que pretendesse de novo saber o que é o homem'. Esta ignorância voluntária, radical e fundamental é sublinhada tanto em Heidegger como em Sartre (...) A doutrina que ensina que a vida é, por excelência, privada de toda a perspectiva e que o sentido da existência é inacessível a todo o conhecimento, é bem acolhida por todos os que estimam a sua existência privada de qualquer perspectiva e a sua vida sem qualquer sentido” (idem:93-94). 69 “Toda actividade social se compõe de actos individuais e a influência que as condições materiais exercem, por importante que seja, não se realiza, como o diz Engels, senão em 'última instância'. Isso significa que no momento de tomar uma decisão, o indivíduo encontra sempre diante dele uma certa margem de liberdade, no interior da qual a necessidade histórica determina cedo ou tarde a decisão a tomar. O simples facto da existência dos partidos políticos demonstra a realidade desta margem de liberdade. As tendências essenciais da evolução social são perfeitamente previsíveis, mas – como Engels o disse já – seria uma pedanteria ridícula querer a partir daí deduzir exactamente o que decidirão Pedro e Paulo em tais circunstâncias. A necessidade histórica faz-se sempre valer através de uma multidão de acasos interiores e exteriores. Reconhecer a importância destes, analisar a sua função, constituiria uma tarefa científica muito séria. Será necessário dizer que Sartre não atacou essa tarefa? (idem:109). 70 “A ambição de fazer do existencialismo a filosofia do nosso tempo, o desejo de ganhar a vitória contra o materialismo dialéctico, não são muito compatíveis com o espírito crítico. O exemplo do próprio Sartre fonece a melhor prova do bem fundado das nossas observações (...) Sartre consagra na sua revista dois importantes estudos ao debate contra o marxismo. O seu ponto de partida é

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subjetividade e privar o homem da liberdade” (idem:141). Segundo Lukács, “para

compreender a história, a análise marxista sobe até aos fundamentos materiais da

vida humana. Descobre-lhe as leis históricas objectivas, mas não nega, apesar

disso, o papel da subjectividade na história. Limita-se a determinar o lugar exacto

que a ela compete na totalidade objectiva da evolução da natureza e da

sociedade”71 (idem:145).

As críticas de Lukács ao existencialismo e à Sartre são fundamentadas na

sua perspectiva materialista da história e na crítica marxista ao capitalismo.

Ressaltam a relação entre o existencialismo e a ideologia burguesa indicando o seu

potencial reificador das relações humanas (inumanas) atuais, bem como sua recusa

em estabelecer mediações com a realidade objetiva, favorecendo o isolamento

individual presente nas sociedades burguesas.

determinado naturalmente pela sua posição existencialista e que falseia completamente as suas conclusões. Em lugar de partir, por exemplo, da análise da situação real da França, ou da Europa, de examinar as tendências revolucionárias em presença e perguntar em seguida qual das duas ideologias reflecte melhor a evolução objectiva da história, Sartre toma o seu ponto de partida numa meditação acerca da mentalidade da mocidade actual, para a qual o idealismo passa por estar definitivamente comprometido pela classe dirigente, mas a qual não experimenta menos reservas para com o materialismo” (idem:137). 71 Esta obra de Lukács que estamos examinando foi escrita na década de 40 e nela o autor defende o materialismo dialético. De acordo com Reale e Antiseri, em História e Consciência de Classe Lukács propõe o método dialético (ou o materialismo dialético) como prática do marxismo ortodoxo. Nesse sentido, “no que se refere ao marxismo, a ortodoxia diz respeito exclusivamente ao método. Trata-se da convicção científica de que, no marxismo dialético, descobriu-se o método correto de investigação e que, embora tal método possa ser ‘potencializado, desenvolvido e aprofundado’, ‘todas as tentativas de superá-lo ou de ‘melhorá-lo’ tiveram e não poderiam ter outro efeito senão o de torná-lo superficial, banal e eclético” (Lukács in Reale e Antiseri, 1991:805). Desse modo, o método marxista ou o método dialético focaliza a totalidade, sendo que tal categoria não suprime os fatos isolados ou os fatos individuais. “A categoria de totalidade, pois, não suprime os aspectos ou elementos individuais de um acontecimento, mas, muito mais, tende a subtraí-los ao seu isolamento, não os considerando mais estáticos, autônomos ou independentes um do outro, porém considerando-os como ‘momentos dialético-dinâmicos de um todo que, ele próprio, também é dialético-dinâmico” (idem:806). Assim, o materialismo dialético pressupõe que a realidade é dialeticamente dinâmica, o que aparece na Ontologia do Ser Social (Lukács, 1979) na relação constitutiva entre a matéria inorgânica, os seres orgânicos e o Ser Social.

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Como vimos, Sartre responde à Lukács em seu ensaio Questões de Método.

Nesse texto Sartre apresenta um breve relato de suas posições teóricas,

ideológicas, políticas, do qual extraio os seguintes trechos,

Marx escreve que as idéias da classe dominante são as idéias dominantes. Do ponto de vista formal, ele tem razão: quando eu tinha vinte anos, em 1925, não havia curso de marxismo na universidade e os estudantes comunistas abstinham-se de recorrer ao marxismo ou até mesmo de mencioná-lo em suas dissertações; teriam sido reprovados em todos os exames (...) Foi por essa época que li O capital e A ideologia alemã: compreendia tudo de forma luminosa e, ao mesmo tempo, não compreendia absolutamente nada (...) O que começava a me modificar era a realidade do marxismo, a imponente presença, no meu horizonte, das massas operárias, corpo enorme e sombrio que vivia o marxismo, o praticava e exercicia, à distância, uma irresistível atração sobre os intelectuais pequeno-burgueses (...) no nosso jargão de idealistas em ruptura com o idealismo – o proletariado como encarnação e veículo de uma idéia (...) recusamos o idealismo oficial em nome do 'trágico da vida'. Esse proletariado longínquo, invisível, inacessível mas consciente e atuante, fornecia-nos a prova – de forma obscura, para muitos de nós – de que nem todos os conflitos estavam resolvidos (...) O que nos interessava eram os homens reais com seu trabalho e sofrimentos; exigíamos uma filosofia que levasse em consideração tudo, sem nos apercebermos de que ela já existia e era ela, justamente, que provocava em nós essa exigência (...) Assim, o marxismo como 'filosofia tornada mundo' arrancava-nos à cultura defunta de uma burguesia que vegetava a partir de seu passado; tomávamos, às cegas, a via perigosa de um realismo pluralista que visava o homem e as coisas em sua existência 'concreta'. No entanto, permanecíamos nos limites das 'idéias dominantes': o homem que desejávamos conhecer em sua vida real, ainda não tínhamos a idéia de considerá-lo, antes de tudo, como um trabalhador que produz as condições de sua vida (...) Foi a guerra que fez explodir os enquadramentos envelhecidos de nosso pensamento. A guerra, a Ocupação, a Resistência, os anos seguintes. Desejávamos lutar ao lado da classe operária, compreendíamos, enfim, que o concreto é história e a ação é dialética. Tínhamos renegado o realismo pluralista por tê-lo reencontrado entre os fascistas e descobríamos o mundo (2002:28-30).

Sartre finaliza esse breve relato com a questão “por que, portanto, o

'existencialismo' conservou sua autonomia? Por que não se dissolveu no

marxismo?“ (idem). Tal questão abre as críticas que Sartre faz ao marxismo. Nesse

processo, Sartre tem o cuidado de diferenciar entre a obra marxiana e o marxismo.

A resposta de Sartre é diferente da de Lukács, para quem o existencialismo é

a terceira via apresentada pela inteligência burguesa como superação do idealismo

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e do materialismo, representando contudo, um novo tipo de idealismo e uma nova

estratégia ideológica de sustentação do capitalismo na fase dos monopólios. Para

Sartre, Lukács equivocou-se ao fundamentar-se em uma vontade a priori de

conceitualização,

Lukács não leva em consideração, de modo algum, o fato principal: estávamos convencidos ao mesmo tempo de que o materialismo histórico fornecia a única interpretação válida da História e de que o existencialismo permanecia a única abordagem concreta da realidade. Não pretendo negar as contradições dessa atitude: constato simplesmente que Lukács nem sequer suspeita de sua existência. Ora, muitos intelectuais e estudantes viveram e ainda vivem na tensão dessa dupla exigência. De onde vem isso? De uma circunstância que Lukács conhecia perfeitamente, mas a respeito da qual, na época, nada podia dizer: depois de nos ter atraído para si, como a lua atrai as marés, depois de ter transformado todas as nossas idéias, depois de ter liqüidado em nós as categorias do pensamento burguês, o marxismo, bruscamente, deixava-nos na mão, não satisfazia a nossa necessidade de compreender; no terreno particular em que estávamos, ele não tinha nada de novo para ensinar-nos porque tinha ficado parado (idem:30-31).

A necessidade do existencialismo para Sartre, é a de compreender a

realidade humana considerando o homem que a vivencia, colocando o homem no

lugar de sujeito do conhecimento, ainda que ele também seja seu objeto.

Estabelecer o vínculo entre a totalidade72 e a singularidade, reencontrar na

singularidade expressões de uma totalização em andamento. Toda referência à uma

totalidade como acabada, como algo materialmente fechado, transforma-se em uma

abtração, perde a realidade, perde a capacidade de explicação e compreensão

dessa realidade, perde concretude. Para Sartre, o marxismo perdeu sua capacidade

72 Segundo Lukács, "a categoria da totalidade, como toda a categoria autêntica, reflecte relações reais. 'As condições de produção de qualquer sociedade formam um todo', escreveu Marx. A categoria da totalidade significa, pois, por um lado, que a realidade objectiva é um todo coerente de que cada elemento está de uma maneira ou outra em relação com cada outro elemento e, por outro lado, que essas relações formam na própria realidade objectiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligadas entre si de maneiras inteiramente diversas, mas sempre determinadas" (idem:282-283). Para Sartre "a" totalidade não existe, uma vez que a realidade está em constante movimento, e devido à multiplicidade que compõe o real, é possível apreender as totalizações em andamento. Contudo, ele entende como veremos adiante, que se existe totalização, ela ocorre através da matéria sendo o meio material a primeira totalização das relações humanas.

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de compreensão da realidade porque tomou a totalidade como algo terminado,

fixando-a teoricamente. Trata-se então de reestabelecer a dialética, de reencontrar o

movimento da realidade, apresentando totalizações parciais. O pólo dialético

valorizado por Sartre é o sujeito, considerado em suas determinações históricas,

mas recuperado em sua responsabilidade diante da própria vida e da criação a qual

é capaz de empreender face às determinações históricas que encontra. Tanto o

sujeito individual quanto o sujeito-grupo ou o grupo-sujeito.

Essa é a dialética que o existencialismo apresenta, essa apreensão da

totalização em processo, enraízada nas relações humanas, na vida dos grupos e

dos indivíduos. Então, as mediações estão presentes na vida humana, no modo

como é organizada na sociedade capitalista, desde à infância e durante toda a vida

adulta. Para Sartre é na infância que os preconceitos são formados73. Nesse

sentido, a família é apreendida como um lugar de mediação “entre a classe universal

e o indivíduo”. A psicanálise também é considerada como auxiliar ao existencialismo

e segundo Sartre, “o marxismo não tem nada a temer desses novos métodos: estes

restituem simplesmente regiões concretas do real e os mal-estares da pessoa

assumem seu verdadeiro sentido quando nos lembramos que traduzem

concretamente a alienação do homem” (idem:60).

73 “Os marxistas de hoje apenas se preocupam com os adultos: ao lê-los, seríamos levados a acreditar que nascemos na idade em que ganhamos nosso primeiro salário; esqueceram sua própria infância e, ao lê-los tudo se passa como se os homens experimentassem sua alienação e reificação, antes de tudo, no seu próprio trabalho quando, afinal, cada um a vive, antes de tudo, como criança, no trabalho de seus pais. Obstinados contra interpretações exclusivamente sexuais, tiram proveito disso para condenar um método de interpretação que pretende simplesmente substituir em cada um a natureza pela História; ainda não compreenderam que a sexualidade é apenas uma forma de viver, em um certo nível e na perspectiva de uma certa aventura individual, a totalidade de nossa condição. Pelo contrário, o existencialismo acredita que pode integrar esse método porque ele descobre o ponto de inserção do homem em sua classe, isto é, a família singular como mediação entre a classe universal e o indivíduo: com efeito, a família é constituída no e pelo movimento geral da História e, por outro lado, é vivida como um absoluto na profundidade e opacidade da infância” (Sartre, 2002:58).

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Em relação às mediações consideradas por Sartre, há um trecho interessante

que resume a posição do autor,

Ainda não conseguimos dizer tudo a respeito das mediações: no plano das relações de produção e no plano das estruturas político-sociais, a pessoa singular encontra-se condicionada por suas relações humanas. Não há dúvida de que, na sua verdade primordial e geral, esse condicionamento remete ao 'conflito das forças produtoras com as relações de produção'. Mas tudo isso não é vivido tão simplesmente. Ou antes, a questão é saber se a redução é possível. A pessoa vive e conhece, mais ou menos claramente, sua condição através de sua pertinência a grupos. A maioria desses grupos é local, definida, imediatamente dada. Com efeito, é claro que o operário de fábrica sofre a pressão de seu 'grupo de produção'; mas se, como é o caso em Paris, mora bastante longe do local de trabalho, está igualmente submetido à pressão de seu 'grupo de habitação'. Ora, esses grupos exercem ações diversas sobre seus membros; por vezes, até mesmo, o 'grotão', o 'conjunto habitacional' ou o 'bairro' freiam em cada um o impulso dado pela fábrica ou oficina. Trata-se de saber se o marxismo dissolverá o grupo de habitação em seus elementos ou se acabará por reconhecer-lhe uma autonomia relativa e um poder de mediação (...) Essa consistência do grupo (que não se deve confundir com não sei qual consciência coletiva) justificaria, por si só, o que os americanos chamam de 'microssociologia'. Melhor ainda, nos EUA, a sociologia desenvolve-se em razão de sua própria eficácia. Àqueles que seriam tentados a ver na sociologia apenas um modo de conhecimento idealista e estático, cuja única função seria a de esconder a História, lembro que, com efeito, é o patronato, nos Estados Unidos, que favorece essa disciplina e, particularmente, as pesquisas que visam os grupos restritos como totalização dos contatos humanos em uma situação definida; de resto, o neopaternalismo americano e o Human Engineering baseiam-se, quase unicamente, nos trabalhos dos sociólogos. Mas isso não deveria servir de pretexto para adotar logo a atitude inversa e rechaçá-la sem apelo porque se trata de 'uma arma de classe nas mãos dos capitalistas'. Se é uma arma eficaz – e tem dado provas disso – é porque é verdadeira de alguma forma, e se está 'nas mãos dos capitalistas', mais uma razão para arrancá-la deles e voltá-la contra eles (idem:61-62).

Observamos que Sartre apresenta as mediações (infância/família – grupos)

considerando as disciplinas que as têm apreendido: psicanálise e sociologia

(principalmente a norteamericana), mas ao mesmo tempo em que valoriza as

produções no âmbito destas disciplinas, também aponta a necessidade de um

movimento de totalização histórica, completando, “não se trata, aliás de acrescentar

um método ao marxismo: é o próprio desenvolvimento da filosofia dialética que deve

levá-la a produzir em um mesmo ato a síntese horizontal e a totalização em

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profundidade. E, enquanto o marxismo se recusar a isso, outros tentarão fazê-lo em

seu lugar” (idem:71).

No ensaio Questões de Método, Sartre enuncia o método com o qual irá

trabalhar. Trata-se do método progressivo-regressivo ou regressivo-progressivo.

Segundo ele,

O método marxista é progressivo porque é o resultado, em Marx, de longas análises; atualmente, a progressão sintética é perigosa: os marxistas preguiçosos servem-se dela para constituir o real a priori, os políticos para provarem que o que se passou devia passar-se desse modo, não podem descobrir nada por esse método de pura exposição. A prova é que sabem de antemão o que devem encontrar. Nosso método é heurístico, ensina-nos algo de novo porque é, a uma só vez, regressivo e progressivo. Sua primeira preocupação é, como a do marxista, encontrar o lugar do homem em seu contexto. Pedimos à história geral para nos restituir as estruturas da sociedade contemporânea, seus conflitos, suas contradições profundas, e o movimento de conjunto que estas determinam. Assim, temos à partida um conhecimento totalizante do momento considerado, mas, em relação ao objeto de nosso estudo, esse conhecimento permanece abstrato. Este começa com a produção material da vida imediata e completa-se com a sociedade civil, o Estado e a ideologia (...) O método existencialista pretende permanecer heurístico. O único meio de que dispõe é o 'vaivém': este determinará, progressivamente, a biografia (por exemplo), aprofundando a época, e a época, aprofundando a biografia. Longe de procurar integrar uma na outra imediatamente, há de mantê-las separadas até que o envolvimento recíproco se faça por si mesmo e coloque um termo provisório na pesquisa (idem:103-104).

Quando Lukács analisa o existencialismo chamando-nos a atenção para

o fetichismo da sociedade capitalista que está na razão da expressão da filosofia da

existência, ele afirma a alienação humana como o fundamento dessa reflexão,

sendo necessário examinar o processo de fetichização nesta sociedade e verificar

as razões que levam a sua perpetuação. Uma vez que os homens e mulheres vivem

a contradição no seu relacionamento pessoal e nas suas relações produtivas no

campo do trabalho e da criação de valor, o fetiche nunca é absoluto, mas, torna-se

instrumento ao qual existe uma adesão afetiva. O interesse dominante da burguesia

foi apropriado como desejo individual de sucesso e realização material em

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detrimento de estratégias coletivas de emancipação para um conjunto maior de

pessoas. Nesse processo, há uma ação que implica os indivíduos nela envolvidos, a

alienação pode ter um lugar de encobrimento provisório na apreensão da totalidade

das relações sociais, mas tal apreensão está sempre disponível pelo exame mais

acurado das contradições que materialmente se expressam nos diferentes campos

nos quais transitamos. O desejo de emancipação é que parece restringir-se às

conquistas individuais e sair desse lugar de isolamento é possível, se formos

capazes de abrir mão dos sonhos e das promessas feitas e realizadas pela

burguesia.

Em nossa opinião, o método progressivo-regressivo de Sartre é uma tentativa

de apreender essa complexidade, olhando para as formas de subjetividade gestadas

e buscando compreendê-las na dialética, no movimento de totalização dialética

sempre inacabado. Tal proposição não invalida o materialismo dialético. O fato de

centrar a análise também no sujeito não descarta o estudo da produção material e

esta se presentifica para além da produção de mercadorias. Como já sabemos,

contudo, Sartre inova ao buscar apreender a realidade concreta sem uma hierarquia

de determinações dadas a priori.

Contudo, nesta polêmica entre marxismo e existencialismo, pensamos que o

mais rico é apreender as contribuições que ambos realizaram para a compreensão

da realidade contemporânea.

Nesse sentido, é necessário atentar para a crítica de Lukács quanto ao

reforço do subjetivismo realizado pelo existencialismo ou pela ausência de

mecanismos ou instrumentos para pensar a ação coletiva.

Parece-nos que Sartre busca responder à esta crítica, situando o

existencialismo na histórica humana concreta e nesse sentido, o estudo do grupo e

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da práxis grupal parece ter sido a saída que ele encontrou, o que poderemos

investigar mais adiante.

Embora Sartre não seja reconhecido como marxista (e ele próprio não se

proclamou marxista), utilizou-se de categorias marxistas como o materialismo

histórico e a dialética, e buscou enraizá-las no campo das relações humanas, no

campo da mediação dos grupos, inclusive considerando a família como instância de

mediação.

Essa chave de leitura, que foge à ortodoxia marxista, não é incompatível com

o marxismo e ilumina circunstâncias quotianas as quais engendram os próprios

movimentos operários cujas esferas não deveriam ser ignoradas, principalmente

quando pensamos em uma possibilidade mais enraízada de transformação social

que possa romper não apenas com a exploração do trabalho e com a expropriação

do trabalhador, mas também emancipar as formas de poder culturalmente

instaladas, seja entre gênero, seja entre gerações, seja na dimensão da

sexualidade, seja entre etnias e culturas diferentes e outras formas de dominação

existentes.

2.2 – O grupo na Crítica da razão dialética

A Crítica da razão dialética é a última obra filosófica de Sartre. Foi projetada

para conter dois tomos, o primeiro intitulado “Teoria dos conjuntos práticos – das

séries e dos grupos enquanto momentos de totalização” (publicado em 1960) e o

segundo, o qual abordaria o problema da totalização ou da “História em andamento

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e da Verdade em devir”, teve sua primeira redação, mas ficou inacabado e ainda

não foi publicado.

Como indicamos anteriormente, nessa obra, Sartre dialoga incessantemente

com o marxismo. Há uma busca para fundamentar a perspectiva existencialista

através da filosofia marxista, conservando as inovações que o existencialismo

promove, no modo como se aproxima da realidade contemporânea, sem a

pretensão de superar o marxismo, que como vimos, foi considerado por Sartre como

a filosofia insuperável do século XX.

O existencialismo presente na Crítica da razão dialética aparece mais

enraízado, enriquecido pela recorrência aos conhecimentos produzidos pela História

a partir de uma perspectiva materialista e dialética. Mas não reproduz o marxismo,

uma vez que mantém a fidelidade ao humano, à ação/práxis humana de indivíduo e

grupos, à liberdade determinada nas condições históricas que a circunscrevem.

Sartre inova as abordagens marxistas e as produções no campo do

conhecimento da História com a perspectiva regressiva, focando o indivíduo e o

grupo como mediações relevantes na produção da própria história. Esta perspectiva

quer demonstrar a irredutibilidade das relações humanas à produção econômica

explicitando, dentro do possível, as conexões entre as ações individuais e grupais e

a produção humana em nossa forma de sociabilidade.

Mesmo o caráter prático-inerte presente em nossas produções objetivadas,

externalizadas em relação aos indivíduos e aos grupos, age através das relações

humanas, em um movimento de interiorização, nova exteriorização e nova

objetivação. A subjetividade aparece de forma relevante nesse processo.

A Crítica da razão dialética, precedida por Questões de Método, em seu

primeiro tomo “Teoria dos conjuntos práticos”, está assim organizada:

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Introdução: A. Dialética dogmática e dialética crítica

B. Crítica da experiência crítica

Livro I:

Da práxis individual ao prático-inerte

A. A práxis individual como totalização

B. As relações humanas como mediação entre os diferentes setores da

materialidade

C. A matéria como totalidade totalizada e uma primeira experiência da

necessidade

1. Escassez e modo de produção

2. A matéria trabalhada como objetivação alienada da práxis

individual e coletiva

[3. O homem dominado pela matéria trabalhada]

[4.] A necessidade como nova estrutura da experiência dialética

[5.] O ser social como materialidade e, particularmente, o ser de

classe

D. Os coletivos

[1. A estrutura serial, tipo fundamental da sociabilidade]

[2. Ajuntamentos diretos e indiretos]

[3. Serialidades e impotência; a recorrência]

[4. A classe como ser coletivo]

[5. Inteligibilidade do campo prático-inerte]

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Livro II

Do grupo à História

A. O grupo. A equivalência da liberdade como necessidade e da necessidade

como liberdade. Limites e alcance de toda dialética realista

[1. O grupo em fusão]

[2. Do grupo em fusão ao grupo organizado]

[3. A organização]

[4. Inteligibilidade da práxis organizada]

[5. Do grupo organizado à instituição]

B. A experiência dialética como totalização: o plano do concreto, o lugar da

História

[1. Circularidade da experiência dialética]

[2. A classe social como grupo de combate, grupo

institucionalizado e serialidade]

[3. Especificidade da História: reciprocidade de antagonismo,

práxis e processo no campo da escassez]

[4. A inteligibilidade da História: em busca de uma totalização

sem totalizador]

Fazemos esta referência à obra afim de oferecer a dimensão do trabalho

empreendido por Sartre, o que poderia se perder no foco que iremos privilegiar

sobre o grupo.

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Estamos trabalhando com aproximações sucessivas, e irei apresentar uma

primeira que apreende o grupo na obra de Sartre, e em uma segunda, apresentarei

a relação entre grupos, classes sociais e coletivos.

A Crítica da razão dialética apresenta uma argumentação convincente e

metodologicamente interessante. Sartre consegue desenvolver sua argumentação

sem reduzi-la à lógica formal-abstrata. Tivemos a impressão de que os argumentos

formam uma unidade sintética, sem que, contudo, seja possível deixar de considerar

cada frase e cada argumento em si mesmo. Isso é interessante, pois é necessário

ler, realmente o livro todo, sem que se possa, posteriormente resumi-lo ou reduzi-lo.

Tudo o que foi escrito, no conjunto do livro, torna-se importante. Ao mesmo tempo, a

questão (ou as questões) abordada(s) está(ão) próxima(s) da experiência cotidiana e

é possível identificar as situações indicadas, embora elas estejam relacionadas em

uma teia, em direção a uma complexidade própria da concepção de totalidade

inacabada. Afirmação, negação, síntese; nova afirmação, negação, síntese. Nesse

movimento dialético, Sartre nos insere nessa teia complexa, onde indivíduo e

coletividade oscilam de modo aproximadamente descritível, sem reduzir o indivíduo

às determinações econômicas e sem reduzir a construção histórica às trajetórias

individuais. Nesse pêndulo, o grupo aparece como mediação necessária, pois é pela

identificação com o grupo que o indivíduo presta juramento. Mas, longe de ser uma

mediação conscientemente orientada, o grupo forja-se na necessidade. Pela ameaça

de violência, a serialidade pode vir a dissolver-se na formação do grupo, na práxis de

um novo grupo74.

A dimensão sobre a qual Sartre concebe a série em oposição ao grupo é

correntemente utilizada por profissionais que trabalham com pequenos grupos, no

74 No decorrer deste capítulo esses termos serão retomados e desenvolvidos.

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papel de coordenadores ou de facilitadores. De fato, parece que essa noção foi

popularizada através do livro de Georges Lapassade, Grupos, Organizações e

Instituições (1983), o qual, embora seja um livro interessante e importante no campo

da psicossociologia, não apresenta, dialeticamente, os elementos retirados de

Sartre75. Extraída a perspectiva dialética, a oposição entre série e grupo torna-se

algo instrumentalizável, que define o grupo como dissolução da série em qualquer

contexto. Mais complicado ainda, o grupo, em Sartre, aparece em sua ação como

sujeito histórico, capaz de transformação da realidade (concreta, material). Então, há

uma relação entre o grupo e a afirmação de poder que realiza em torno de si, e que

acaba por submeter os outros – “não-grupo”. O grupo consolidado obtém sua

coesão não mais da práxis comum anteriormente compartilhada, mas do

compromisso que efetivamente foi forjado nessa práxis, o qual, diante da situação de

perigo, obriga a cada um projetar-se como protetor de si através do outro. Quando a

situação de perigo diminui, a vigilância interna em relação ao compromisso firmado

aumenta, e a fraternidade que percorre o grupo é também a presença do terror (do

medo) de trair ou de ser traido. O grupo aparece, então, em sua realidade concreta,

ou seja, não pode ser reduzido a uma unidade abstrata como uma “consciência

75 Lapassade apresenta no capítulo 5, intitulado Dialética dos grupos, das organizações, das instituições, os momentos do grupo em formação, do juramento, da organização, do terror, da instituição, da burocracia. Em algumas passagens do livro ele conjuga a proposta de apreensão dialética dos grupos com a dinâmica de grupo (Kurt Lewin). Lapassade instrumentaliza a perspectiva dialética de Sartre, buscando extrair elementos que engendrem uma proposta pedagógica para o trabalho com grupos. Isso é complicado, porque a perspectiva sartreana inova ao compreender o grupo na sua complexidade histórica e contemporânea. O fundamento histórico a partir da Revolução Francesa, do Movimento Operário, da constituição das classes sociais, sobre a luta entre as classes sociais e os mecanismos de opressão e exploração articulados ao domínio da burguesia sobre o proletariado, constitui uma complexidade real difícil de ser reduzida, propositadamente exposta em sua amplitude por Sartre para evitar reduções. Sartre não se ocupa dos pequenos grupos, entendidos como grupos artificiais comoespaços de treino de sensibilidades. A dialética que propõe-se a apreender está no movimento histórico, na luta entre as classes, na possibilidade de superação da opressão e da exploração. Isto é importante para nós porque as conseqüências que podemos extrair da obra de Sartre estão relacionadas ao campo da História, no movimento que constrói, desconstrói e reconstrói em novas bases os próprios fundamentos do viver humano.

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coletiva comum” ou como um “conjunto de pessoas orientadas por objetivos

comuns”. Tanto a consciência coletiva comum quanto os objetivos comuns estão

sendo permanentemente recriados, na apropriação que os indivíduos realizam e

projetam sobre o objeto “grupo”.

A estrutura serial76 foi apresentada por Sartre ao identificar, nos

comportamentos individuais, uma atitude de impotência em relação à alteração de

seu próprio destino. O termo destino, inclusive, designa essa impotência: a vida é

vivida como destino, não como história (ou práxis comum). Na estrutura serial, a

liberdade é vivida enquanto liberdade do Outro, ou para o Outro (submetida ao

interesse do Outro, pela impotência de transformá-lo)77. Há impotência em relação

às instituições, que expressam a reificação do grupo bem sucedido na manutenção

dos estatutos (juramento, organização, criação de funções) que garantiram sua

continuidade e sua conservação. A estrutura serial coexiste com os grupos

organizados que se definem em relação à massa e em relação ao coletivo78. Por sua

76 Ao evocar o exemplo simples e sem qualquer envergadura dos usuários de ônibus, nosso objetivo consistia unicamente em mostrar a estrutura serial como o ser dos ajuntamentos mais cotidianos e banais: com efeito, essa estrutura como constituição fundamental da sociabilidade tende a ser neglicenciada pelos sociólogos. É conhecida pelos marxistas que não dizem uma palavra a seu respeito e, em geral, preferem atribuir as dificuldades encontradas em sua práxis de emancipação e de agitação a forças negociadas e não à serialidade como resistência material dos ajuntamentos e das massas à ação dos grupos (e até mesmo, à ação dos fatores prático-inertes) (Sartre, 2002: 375).

77 “Em particular não nos façam dizer que o homem é livre em todas as situações, como pretendiam os estóicos. Queremos dizer, exatamente, o contrário, a saber: os homens são todos escravos na medida em que sua experiência vital desenrola-se no campo prático-inerte e na expressa medida em que esse campo é condicionado, originalmente, pela escassez (...). O campo prático-inerte é o campo de nossa servidão e isso não significa uma servidão ideal, mas a submissão real às forças 'naturais', às forças 'maquinadas' e aos aparelhos 'anti-sociais'; isso quer dizer que todo homem luta contra uma ordem que o esmaga real e materialmente em seu corpo e que ele contribui para amparar e reforçar pela própria luta que, individualmente, trava contra ela” (Sartre, 2002:434). 78 “Ou, se preferirmos, a intensidade da solidão, como relação de exterioridade entre os membros de um ajuntamento provisório e contigente, expressa o grau de massificação do conjunto social na medida em que ele se produz a partir de determinadas condições. Nesse nível, as solidões recíprocas como negação da reciprocidade significam a integração dos indivíduos na mesma sociedade e, nesse sentido, podem ser definidas como uma certa forma (condicionada pela totalização em andamento) de viver em interioridade e como reciprocidade no âmago do social a negação exteriorizada de toda interioridade: ‘Ninguém ajuda ninguém, é cada um por si’ ou, pelo contrário, de forma simpática, como Proust escreveu: ‘Cada pessoa está realmente só’. Finalmente, no nosso exemplo, a solidão torna-se, para cada um e por ele, para ele e para os outros, o produto

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vez, o coletivo expressa aspectos comuns entre os indivíduos, melhor dizendo, o

indivíduo é também um indivíduo coletivo, posto que se insere em uma rede de

relações em que outros também se inserem. Tais relações possuem uma

objetividade, são uma objetivação interiorizada pelos indivíduos e externalizada na

singularidade dos próprios indivíduos79.

O grupo é uma estrutura possível, que pode emergir em função da pressão

externa e também de uma necessidade vivida como comum80. Trata-se do grupo em

fusão: nele a serialidade se dissolve. A ação é expressa em sua integridade: os

homens e as mulheres, literalmente, fazem o seu destino. A práxis, enquanto práxis real e social das grandes cidades (...).Nesse nível, podemos reencontrar, de novo, a mesma sociedade (que, há pouco, agia como massificadora) na medida em que seu ser prático-inerte serve como meio condutor das reciprocidades interindividuais: com efeito, esses homens separados formam um grupo na medida em que todos estão situados no mesmo passeio que os protege dos carros que atravessam a praça, na medida em que estão agrupados em redor do mesmo ponto de ônibus etc.. E, sobretudo, esses indivíduos formam um agrupamento no sentido em que têm um interesse comum, ou seja, na medida em que, separados como indivíduos orgânicos, uma estrutura de seu ser prático-inerte lhes é comum e os une do exterior. São todos ou quase todos empregados, usuários da linha de ônibus e, por conseguinte, esperam o mesmo veículo: o ônibus das 7h49min. Na medida em que dependem dele (avarias, panes, acidentes), esse objeto constitui seu interesse presente. Mas tal interesse presente, uma vez que todos residem no bairro – remete a estruturas mais amplas e profundas de seu interesse geral: melhoria dos transportes coletivos, congelamento das tarifas etc.. O ônibus esperado reúne-os como sendo seu interesse de indivíduos que, nessa manhã, têm algo a fazer na margem direita do Sena, mas como tal, o ônibus das 7h49min já constitui seu interesse de usuários; tudo se temporaliza: o indivíduo de passagem torna-se habitante (ou seja, é reenviado aos cinco, dez anos precedentes) e, ao mesmo tempo, o veículo caracteriza-se por seu retorno cotidiano, eterno (de fato, é realmente o mesmo com o mesmo motorista e o mesmo cobrador). O objeto assume uma estrutura que transborda sua pura existência inerte, é provido como tal de um futuro e de um passado passiivos que o apresentam aos usuários como uma parte (ínfima) de seu destino” (idem:364). 79 “Ora, sentir profundamente é já uma superação em direção à possibilidade de uma transformação objetiva; na prova do vivido, a subjetividade volta-se contra si mesma e arranca-se ao desespero pela objetivação. Assim, o subjetivo retém em si o objetivo que ele nega e supera em direção a uma nova objetividade; e essa nova objetividade, em sua qualidade de objetivação, exterioriza a interioridade do projeto como subjetividade objetivada. O que quer dizer, a uma só vez, que o vivido como tal encontra seu lugar no resultado e que o sentido projetado da ação aparece na realidade do mundo para tomar sua verdade no processo de totalização” (idem:81). 80 “Essa nova estrutura da experiência apresenta-se como uma reviravolta do campo prático-inerte: ou seja, o nervo da unidade prática é a liberdade que aparece como necessidade da necessidade ou, se preferirmos, como uma reviravolta inflexível. Com efeito, na medida em que os indivíduos de um meio são colocados em causa diretamente, na necessidade prático-inerte, pela impossibilidade de viver, sua unidade radical (reapropriando-se dessa mesma impossibilidade como possibilidade de morrer de forma humana, ou, em outras palavras, da afirmação do homem por sua morte) é negação inflexível dessa impossibilidade ('viver trabalhando ou morrer combatendo'); assim, o grupo constitui-se como a impossibilidade radical da impossibilidade de viver que ameaça a multiplicidade serial” (idem:443).

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comum81 é o que define a unidade do grupo em fusão, posto que não há, a priori,

uma unidade ideológica ou mesmo política82, mas sim as ações que os indivíduos

realizam, juntos, face a uma violência externa que significa perigo de morte para

eles. A força do grupo em fusão e a potência que expressa podem ser reconhecidas

em alguns momentos revolucionários, como, por exemplo, na Revolução Francesa,

principalmente, nas ações que levaram “o povo” à tomada da Bastilha.

Próximo à tradição marxista, Sartre expõe suas compreensões sobre grupo a

partir de uma perspectiva revolucionária. O grupo efetivamente considerado é o

grupo em fusão, em que cada um pode emergir como porta-voz, sem hierarquias. O

grupo em fusão emerge da coletividade, momento em que experimenta a dissolução

da serialidade e, em razão da ameaça constante de retornar a ela, “perde-se” em um

processo de institucionalizar-se para a sua manutenção. Contudo, a

institucionalização do grupo funciona como estagnação e contrasta com o momento

da fusão, sem hierarquias, sem imposições.

Para Sartre, “o grupo constitui-se a partir de certas contradições particulares

que definem um setor particular do campo de atividade-passiva sem que se possa a

priori garantir que o mesmo venha a acontecer por toda parte” (2000:442). Nesse

sentido, “a necessidade do grupo não é dada a priori em qualquer ajuntamento”

81 “Praticamente, isso significa que estou integrado à ação comum quando a práxis comum do terceiro se põe como reguladora. Eu corro, juntando-me à corrida de todos, eu grito: 'Parem!', todo o mundo pára; alguém grita: 'Voltem a correr!' ou então: 'À esquerda! À direita! Para a Bastilha!' Todo o mundo volta a correr, segue o terceiro regulador, rodeia-o, ultrapassa-o; e o grupo volta a segui-lo desde que outro terceiro, por uma 'senha' ou uma conduta visível de todos, se constitui, durante um instante, como regulador. Mas a palavra de ordem não é obedecida. Quem haveria de obedecer? E a quem? Isso nada é além da práxis comum que, em um terceiro, se torna reguladora de si mesma em mim e em todos os outros terceiros no movimento de uma totalização que me totaliza com todos” (idem:479). 82 “A frase sem autor e repercutida por cem bocas (entre as quais, a minha) não me aparece como o produto do grupo (no sentido em que este seria um hiperorganismo ou uma totalidade fechada) mas, no ato que a compreende atualizando sua significação, eu a apreendo como pura presença totalizante e reguladora do terceiro (como o mesmo que eu) enquanto ele realiza minha integração em vez de mim e através de minha liberdade” (idem:479-480).

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(idem: 447).

O grupo define-se por seu empreendimento e pelo movimento constante de integração que visa fazer disso uma práxis pura, tentando suprimir nele todas as formas de inércia; o coletivo define-se pelo seu ser, ou seja, na medida em que toda práxis constitui-se por ele como simples exis83; é um objeto material e inorgânico do campo prático-inerte na medida em que uma multiplicidade discreta de indivíduos atuantes produz-se nele sob o signo do Outro como unidade real no Ser, ou seja, como síntese passiva, e na medida em que o objeto constituído apresenta-se como essencial e na medida em que a inércia penetra em cada práxis individual como sua determinação fundamental pela unidade passiva, ou seja, pela interpenetração prévia e dada de todos enquanto Outros (idem:361).

Sartre apresenta as seguintes características em relação ao grupo:

a)Grupo como continente: “e a reciprocidade no âmago do grupo produz o grupo

como continente na medida em que o grupo permite essa reciprocidade, fazendo-se

mediação” (idem: 478);

b)Grupo como totalização em andamento: “o grupo não pode ser senão totalização

em andamento e sua totalidade está fora dele em seu objeto, ou seja, na totalidade

material que o designa e da qual tenta apropriar-se e à qual tenta voltar como

instrumentalidade” (idem: 483);

c)Unidade do grupo: “com efeito, não se trata de procurar saber se o grupo como

multiplicidade de indivíduos possui um estatuto inerte de unidade, se os homens que

o compõem podem ser grudados enquanto organismos por não sei qual aglutinação

gelatinosa ou se uma 'consciência coletiva', totalidade irredutível a suas partes, se

impõe de fora a cada uma e a todas como as categorias kantianas se impõem à

multiplicidade de sensações. Com efeito, vimos que a unidade do grupo (quando

esse se constitui no calor da hora – em seguida, veremos as outras possibilidades)

era a práxis. Por conseqüência, o que nos importa é saber em que medida a

multiplicidade das sínteses individuais pode servir de fundamento, como tal, à

83 Exis equivale a estar passivo.

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comunidade dos objetivos e ações” (idem: 489);

d)Grupo como Nós: “aqui, aparece o primeiro 'nós' que é prático e não substancial,

como livre ubiqüidade do eu enquanto multiplicidade interiorizada. Não é que eu seja

eu no Outro: mas na práxis não existe Outro, mas vários eu mesmo" (idem: 492);

e)Um grupo não é : “(ou, pelo menos, desseca-se e ossifica-se à medida que

contém mais ser, ou seja, inerte materialidade): mas totaliza-se incessantemente e

desaparece por fragmentação (dispersão) ou por ossificação (inércia)” (idem: 503);

“a unificação é prática e reconheço minha ação na ação comum”(idem: 504); “o

grupo não é uma realidade que pudesse existir em si, apesar dessa tensão

'transcendência-imanência' que caracteriza o terceiro em relação a ele; pelo

contrário, é essa 'transcendência-imanência' de seus membros que condiciona a

possibilidade do grupo como ação comum” (idem: 505); “o grupo faz-se para fazer e

desfaz-se fazendo-se” (idem: 670);

Essas características ressaltam no grupo seu caráter ativo enquanto sujeito

de sua práxis. Mas, Sartre também identifica o movimento que o grupo atravessa, do

seu momento de fusão (precedido pelo apocalipse) passando por sua formação84,

pela organização85, pelo juramento86, pelo fenômeno da fraternidade/terror, até

84 O grupo em formação: “em cada um, o grupo torna-se o objetivo comum: convém salvar sua permanência” (512); “são as próprias condições de sobrevivência que o acuam nessa contradição: a práxis comum é a própria liberdade que exerce violência sobre a necessidade; mas quando as circunstâncias reivindicam a persistência do grupo (como órgão de defesa, de vigilância etc) sem que a urgência e a violência adversa venham até o coração de cada um suscitar a práxis comum, quando sua práxis, retornando a si mesmo, sob a forma de organização e diferenciação, exige a unidade de seus membros como fundamento preexistente de todas as suas transformações, convém que essa unidade seja como uma síntese inerte no âmago da própria liberdade” (idem:513). 85 Práxis de organização: “a práxis é a única unidade real do grupo em fusão: é ela que o cria, o sustenta e introduz nele suas primeiras mudanças internas. No momento da práxis de organização e de expectativas, o grupo é a garantia de que cada ação separada é ação comum ou, se preferirmos, é o grupo enquanto realidade que produz a unidade da práxis comum. Ao permanecer em uma vigília solitária, minha coragem e resistência serão proporcionais à permanência em mim do grupo como realidade comum” (514); “assim, o estatuto ontológico do grupo de sobrevivência aparece, antes de tudo, como invenção prática de uma permanência livre e inerte da unidade comum em cada um.

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degradar-se em sua possibilidade de ação no cume de sua institucionalização, em

um retorno à serialização, ao predomínio do prático-inerte e à regulação pelo Outro.

Assim, Sartre apresenta o grupo em sua contradição, da possibilidade de romper

com a serialidade à possibilidade de retornar a ela, reinstaurando-a pela

necessidade de sua própria manutenção enquanto grupo. Uma leitura apressada

nos faria identificar no grupo o motor da ação, da práxis e na instituição do grupo a

permanência na inércia até uma nova dissolução em outras possibilidades de ação e

de configuração em uma práxis comum (grupo em oposição à sua instituição).

Contudo, numa leitura mais detida, observamos que Sartre já problematiza, na sua

compreensão sobre o grupo, a possibilidade de ruptura e de retorno à serialidade na

perspectiva de uma circularidade. Identificamos neste enfoque a perspectiva do

grupo enquanto sujeito e enquanto objeto de sua própria ação; o grupo trabalha e se

trabalha; o grupo transforma a realidade na qual se insere e nesta ele se transforma;

o grupo cria e é criado em um mesmo ato; então, o grupo movimenta-se e conserva-

se ao criar-se como grupo87.

Quando a liberdade faz-se de práxis comum para servir de fundamento à permanência do grupo, produzindo por si mesma e na reciprocidade mediada sua própria inércia, esse novo estatuto chama-se juramento” (514); 86 Juramento: “é reciprocidade mediada” (...) “é invenção prática” (515); “meu juramento ao terceiro recebe em sua origem uma dimensão de comunidade, vem tocar cada um diretamente e através de todos” (517); “o juramento não é uma determinação subjetiva, nem uma simples determinação do discurso, mas uma modificação real do grupo por minha ação reguladora” (517); “o juramento nada é além da coincidência, na origem de sua prática, da segurança dos terceiros ausentes (garantida por ele) e de sua própria segurança (pelos terceiros); a exigência e a insuperável permanência como negação inerte das possibilidades revelam-se sob a ação de condições particulares (certas ações do inimigo, por exemplo, o terror, a tortura, proposições de negociação separada etc.)” (523); “a origem do juramento é o medo” (524); 87 Eugène Enriquez (1997) ao tratar sobre o tema das organizações, em seu livro A organização em análise, considera a existência de sete níveis (instâncias) presentes à análise, denominando-as, instância mítica, instância social-histórica, instância institucional, instância organizacional, instância grupal, instância individual, instância pulsional. Embora tal abordagem facilite a explicitação desses elementos, denotando um status de autonomia das criações humanas sobre os seres humanos, bem como acentuando aspectos imaginários, componentes individuais e pulsionais presentes nas organizações, ela também dificulta a visibilidade da ação grupal em suas contradições, no sentido em que essa é capturada pela necessidade de manter a sua própria existência nas criações que efetiva (na práxis o grupo vai-se formando, na práxis ele se organiza, pela necessidade de manter-se, na

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Embora essa perspectiva nos remeta aos movimentos revolucionários de

massa, é possível identificá-la em movimentos de ruptura em um plano mais

cotidiano, sem que haja uma revolução social mais ampla88.

Outra questão importante é indicada por Sartre quando aborda a presença da

fraternidade e do terror no grupo. Na reciprocidade das relações, na ação vivida em

comum, aparece a construção dos vínculos (internalização do grupo), a necessidade

de confiar na reciprocidade recém-instaurada e o medo da traição interna. Enquanto

o grupo age contra um inimigo externo, o terror dirige-se para fora do grupo, para o

combate contra o inimigo89. Mas quando o perigo externo diminui, o terror volta-se

para o interior do grupo. O juramento é a tentativa de garantir a fraternidade e ao

mesmo tempo é o que regula as ações de terror, quando se supõe que alguém traiu

o juramento realizado. Segundo Sartre, “o grupo como ação sobre si, no plano da

sobrevivência, não pode ser senão coercitivo... na ausência de qualquer pressão

material, o grupo deve produzir-se a si mesmo como pressão sobre seus membros”

(idem: 525) 90. Na fraternidade, Sartre destaca,

práxis ele se institucionaliza, neste movimento o grupo se transforma). Noutro sentido, Félix Guattari (1988) enfatiza a possibilidade de emergência do grupo enquanto sujeito (em oposição ao grupo objeto), alinhando-se à perspectiva sartreana e também aprofundando-se na compreensão quanto ao desejo do grupo manter-se constantemente como sujeito, ou sobre sua "incapacidade" de confrontar-se com a sua própria dissolução ou com sua própria morte. 88 Isto nos remete à consideração sobre a percepção da necessidade (da negação da impossibilidade de viver) que move ações coletivas ou mesmo a práxis comum (grupal) que instaura novos modos de viver e também o lugar do desejo (a construção do desejo em sua expressão coletiva) neste processo. Ou seja, a necessidade é uma construção social (como já indicara Marx e Engels) e atualmente, em muitos movimentos sociais, sua percepção ultrapassa a sobrevivência física e a reprodução material, apresentando características que evocam a convivência humana num patamar de sociabilidade que supere todas as formas de dominação existentes. Necessidade e desejo parecem mesclar-se: torna-se necessário construir formas de sociabilidade compatíveis com nossos desejos e nossos desejos nos motivam a agir no sentido de afirmar estas novas possibilidades. 89 Esta noção aparece na obra freudiana, Psicologia das massas e análise do ego (1987). 90 "Como ainda é possível ver nos partidos autoritários, a fraternidade é a forma mais imediata e constante do terror: com efeito, por definição, os traidores constituem a minoria. É verdadeiramente a translucidez recíproca dos indivíduos comuns (que podem levar à amizade dos indivíduos orgânicos): nenhum 'meio' é mais caloroso do que um partido autoritário e, incessantemente, ameaçado do exterior (autoritário porque ameaçado)” (idem:534).

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somos irmãos enquanto, após o ato criador do juramento, somos nossos próprios filhos, nossa invenção comum (idem: 531); o grupo constituído é produzido em cada um por cada um como seu próprio nascimento de indivíduo comum e, ao mesmo tempo, cada um apreende na fraternidade seu próprio nascimento de indivíduo comum como produzido no âmago do grupo por ele (idem: 532); sou irmão de violência para todos os meus vizinhos: de resto, sabe-se que aquele que viesse a recusar tal fraternidade seria suspeito. Ou, em outras palavras, a cólera e a violência são vividas, ao mesmo tempo, como Terror exercido sobre o traidor e (no caso em que as circunstâncias tivessem produzido esse sentimento) como vínculo prático de amor entre os linchadores. A violência é a própria força dessa reciprocidade lateral de amor. Por essa forma de falar, podemos compreender que a intensidade dos fatos de grupo tem sua origem na intensidade das ameaças externas, ou seja, do perigo; tal intensidade, quando já não se manifesta como pressão real sem que o perigo tenha por isso mesmo desaparecido, é substituída por esse substituto inventado: o Terror (idem: 533); “se observarmos de perto, o fundamento do Terror é precisamente o fato de que o grupo não tem nem pode ter o estatuto ontológico que ele reclama em sua práxis e é, inversamente, o fato de que todos e cada um produzem-se e definem-se a partir dessa inexistente totalidade. Existe uma espécie de vazio interior, de distância intransponível e indeterminada, de mal-estar em cada comunidade grande e pequena; esse mal-estar suscita um reforço das práticas de integração e cresce na proporção em que o grupo é mais integrado (idem: 664) 91.

Sartre introduz uma perspectiva para a compreensão do grupo que implica

em considerar a ação grupal como práxis que institui o próprio grupo, inclusive como

vitorioso instituinte de novas relações e de novas instituições (para permanecer, o

grupo se estabiliza na sua instituição). O grupo, na análise sartreana, coincide com o

grupo vitorioso que emerge na Revolução Francesa: os burgueses. Por exemplo, os

burgueses podem ser reconhecidos como um grupo em termos de sua ação sobre a

sociedade, um grupo sujeito, que define, em face de si, outros não-grupos (dado que

esses estão serializados), e que se confronta com esses não-grupos os quais lutam

para constituir-se enquanto sujeitos. Esta é a situação das classes trabalhadoras, a

qual, na luta contra os interesses da burguesia, busca constituir-se na práxis 91 Indagamos se esta é uma condição permanente, ou seja, o vínculo fraternidade/terror é uma característica necessária em todos os grupos humanos, ou é uma criação histórico-circunstancial? Assim como Sartre afirma que o grupo não pode manter o estatuto ontológico (que reclama para si), a fraternidade/terror seria sempre uma inevitabilidade no movimento dos grupos?

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comum, que ainda não se efetiva como transformação da realidade material

concreta, a qual seria a superação do capitalismo e do capital92. O capitalismo é a

institucionalização do poder burguês face aos demais poderes por ele subjugados,

que não encontram força de expressão capaz de derrubar o poder vigente e instituir

uma outra forma de poder.

Desse modo, sua perspectiva do grupo degradado coincide com o

estabelecimento das instituições burguesas (Estado Burguês, a empresa,

associações civis, partidos políticos), atravessadas pela tecnocracia e pela

burocratização das relações93.

Esses elementos nos permitem estabelecer um paralelo entre o grupo na

concepção sartreana e a classe social na perspectiva marxiana que complexifica a

noção de classe, pois implica na dimensão racional-afetivo-operativa de identificação

com o “Grupo vitorioso” – aquele que, por sua institucionalização, controla as

práticas a ele submetidas em sua relação com os não-grupo. A luta e o conflito

existentes a partir do antagonismo entre capital e trabalho na sociedade burguesa,

embora evidentes, estão submetidos às aspirações dominantes instituídas pela

92 “Se preferirmos, a comunicação é possível entre os homens na medida em que existe homogeneidade formal entre estas três compreensões: a do grupo-objeto pelo não-agrupado sujeito (no sentido de: sujeito da ação individual que agrupa); a do grupo-sujeito pelo não-agrupado enquanto objeto (ou seja, pelo próprio processo que interioriza sua objetividade); e a do grupo-práxis por cada um de seus membros, enquanto mediação da função e da objetivação” (idem:606). 93 Evidenciamos o movimento histórico-material de expropriação do trabalhador (pela centralização dos meios de produção) e da exploração do trabalho nas sociedades burguesas, que atravessa (e que é atravessado) as organizações já existentes à época de ascensão e de hegemonia do poder burguês (ressignificando-as) e que funda as organizações que são criadas na constituição da sociedade burguesa. Neste sentido, outros movimentos histórico-materiais podem atravessar as organizações burguesas atuais e fundar novas criações e novas formas de sociabilidade. Se isto é possível, a perspectiva "negativa" em relação ao instituído pode expressar mais uma resistência às organizações e instituições burguesas atuais do que propriamente ao caráter instituinte/instituidor das ações humanas. Universalizar o instituído como "degradado" pode ser um equívoco, assim também, evitar o caráter conservador/mantenedor presente nos grupos humanos pode constituir-se num grande engano.

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vitória da burguesia94. Assim, se fosse possível ao capitalismo manter um nível de

distribuição que mantivesse o padrão de consumo sempre em ascensão, seria muito

difícil derrubá-lo. A participação na riqueza socialmente produzida, ainda que como

não-grupo, é um forte elemento regulador/integrador, que favorece a manutenção da

ordem pela identificação com as suas aspirações dominantes. A instituição de um

poder é reconhecida pelos poderes a ela submetidos, mesmo que seja injusta. Esse

movimento é afetivo e possui uma racionalidade própria.

Nesse sentido, os argumentos, no campo da teoria social marxista, segundo

os quais o proletariado é potencialmente o sujeito das transformações nas

sociedades burguesas, capaz de constituir-se enquanto protagonista nas lutas pela

superação do capitalismo em direção ao socialismo, precisam ser cuidadosamente

trabalhados. Em tese, as condições materiais da classe operária ou do proletariado

impelem à luta contra os interesses da burguesia, pela superação das condições de

exploração, orientadas para a emancipação do humano tanto em relação à

dependência da natureza, quanto em relação à dominação de um grupo (ou de

alguns grupos) sobre os demais. Mas, na realidade concreta o proletariado

configura-se e representa-se de forma muito difusa, tanto na reivindicação de seus 94 “Enquanto se trata da luta de uma classe dominada contra uma classe dominante, a serialidade, antes mesmo das dissensões internas, é o produto da exploração e o estatuto que a mantém. É ela [a serialidade] que deve ser vencida para obter o menor resultado comum (nem que fosse evitar a deterioração demasiado rápida do poder de compra); mas é ela que mantém o grupo reivindicativo, em sua própria passividade, como fonte de energia possível,– o grupo, com efeito, do ponto de vista prático de sua ação, já não pode apreendê-la senão sob a forma sintética de potencialidade – , é ela que se revela a ele como produzindo-o – na medida em que, como já mostrei, ele permanece submerso aí pelas outras relações seriais de seus membros –, é ela que ele totaliza em exterioridade, ou seja, para ele e em sua ligação com ela, enquanto ele apreende a unidade serial (de dispersão) pelas razões dialéticas que a engendraram material e dialeticamente (condições históricas do processo capitalista), por último, é ela que, na perspectiva dialética das lutas reivindicativas e do trabalho cotidiano, determina seu futuro como sua morte e sua ressurreição permanentes (ele dissolver-se-á nela quando – vencedores ou vencidos – os operários retomarão o trabalho, ele renascerá dela quando, amadurecidos por essa mesma experiência, eles retomarão a ação). Isso quer dizer que o ser-de-classe como serialidade passada, presente e futura é sempre o estatuto ontológico do operário e que a práxis de grupo, como dissolução em superfície na classe (portanto, em superfície nele) da relação de alteridade e como superação conservadora do ser serial, é a realidade presente e prática do indivíduo comum ou sua possibilidade futura como significação induzida e como unificação abstrata que vem à série do fundo do futuro” (idem: 763).

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interesses, quanto em relação à superação dos horizontes burgueses, ou em

relação à superação dos interesses burgueses. Um elemento ideológico importante

nas sociedades capitalistas é o reforço ao desempenho individual e da mobilidade

de status social possível aos indivíduos. Isto significa que um operário pode sonhar

em ser um empresário, ou chegar à presidência da república, ou ganhar

efetivamente muito dinheiro através de alguns empreendimentos possíveis, como a

música, o esporte, o contrabando, o crime etc.

Por outro lado, a necessidade é o motor que pode deflagrar o grupo, expresso

em seu momento de fusão, pela práxis comum emergente. Na análise de Sartre, o

grupo não é constituído apenas racionalmente – enquanto um projeto racional

prévio, por uma decisão e planejamento anteriores. Nesse sentido, a dimensão

afetiva pode ser evocada: o motor da transformação é uma força (externa/objetiva)

que determina/possibilita a escolha individual/coletiva pela emergência do grupo,

que se traduz na adesão ao grupo. Uma vez que as escolhas racional-afetivas

anteriores se estruturaram em uma dispersão serial, em um

isolamento/inércia/apatia, é compreensível que a possibilidade da práxis comum

transformadora esteja mais suscetível ao caráter da necessidade do que ao projeto

racional, cuja análise de Sartre, simultaneamente, contribui para edificar.

2.3 – Grupos, classes sociais e coletivos.

Na Teoria Social de Marx as classes sociais fundamentais no

desenvolvimento capitalista, burguesia e proletariado, são caracterizadas como

antagônicas por seus interesses contrários, os quais as colocam em luta, ou seja, a

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realização da acumulação de capital operada pela burguesia só é possível pela

apropriação da força de trabalho em sua capacidade de criar valor, o que acontece

através de sua exploração pelo mecanismo da mais-valia (trabalho não pago). Daí

que, embora o proletariado tenha participado ativamente através de seu trabalho na

criação da riqueza durante o desenvolvimento do capitalismo, não participou, na

mesma proporção, dos produtos por ele criados, ou seja, não enriqueceu.

Simultaneamente, a burguesia, enquanto classe acumulou um volume de capital até

então historicamente inimaginável (Eric Hobsbawm, 2004).

Ao expor os meandros da luta de classes na sociedade capitalista, Marx

explicitou os conflitos nela engendrados, desmontando todo o idealismo das noções

que unificam os homens colocando-os como iguais, livres e unidos em direção aos

mesmos objetivos.

Sartre, na discussão com o marxismo, quis enfatizar a realidade concreta,

propondo desfazer abstrações cristalizadas, desenraizadas em relação ao

movimento real dos homens na sociedade. Em sua experiência crítica95 ele

observou a necessidade de retomar o indivíduo96 e também o grupo97 como formas

95 “[A experiência crítica] deve ser regressiva. Inversamente ao movimento sintético da dialética como método (isto é, inversamente ao movimento do pensamento marxista que vai da produção e das relações de produção às estruturas dos agrupamentos, e depois às contradições interiores destes, aos meios e, se for o caso, ao indivíduo), a experiência crítica partirá do imediato, isto é, do indivíduo considerado em sua práxis abstrata para reencontrar, através de condicionamentos cada vez mais profundos, a totalidade de seus vínculos práticos com os outros, pelas próprias estruturas das diversas multiplicidades práticas e, através das contradições e lutas destas, o concreto absoluto: o homem histórico. Isso equivale a dizer que o indivíduo – interrogador interrogado – sou eu e ninguém. Resta o vínculo dos coletivos e dos grupos: através da ligação vivida nas diversas comunidades, apreenderemos – a partir desse eu que desaparece – as relações dinâmicas das diferentes estruturas sociais na medida em que elas se transformam através da História. Por exemplo, devemos apreender o grupo quando este se constitui a partir da dissolução do coletivo e, também, o retorno de alguns grupos à sociabilidade através do próprio movimento da práxis comum e de sua decomposição” (Sartre, 2002:170, grifos meus). 96 “O indivíduo não é senão o ponto de partida metodológico e sua curta vida dilui-se no conjunto humano e pluridimensional que temporaliza sua totalização e totaliza sua temporalidade. Na medida em que seus universais singulares são perpetuamente suscitados – tanto na minha vida imediata, como na minha vida reflexiva – e, do profundo passado em que se atualizaram, fornecem as chaves ou as regras de minhas condutas, devemos poder, em nossa experiência regressiva, utilizar todo o saber atual (pelo menos, em princípio), para iluminar esta ou aquela empresa, tal conjunto social, tal

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de mediação as quais permitem compreender as determinações materiais no modo

como são vividas concretamente, recuperando o movimento e a dialeticidade desse

movimento enquanto supõe contradições e superações das contradições em direção

à unidade possivelmente encontrada na História. Nesse sentido, Sartre não exclui a

classe social de sua experiência crítica, mas quer apreendê-la no movimento da

realidade, concretamente. Segundo ele,

É necessário evitar, a qualquer preço, substituir os grupos reais e perfeitamente definidos (a Gironda [por exemplo]) por coletividades insuficientemente determinadas (a burguesia dos importadores e exportadores). Os girondinos existiram, perseguiram objetivos definidos, fizeram a História em uma situação bem determinada e na base das condições exteriores: julgavam escamotear a Revolução em seu benefício; de fato, acabaram por radicalizá-la e democratizá-la. É no interior dessa contradição política que se deve compreendê-los e explicá-los (Sartre, 2002:47, grifos meus).

A relação entre Grupos, Classes Sociais e Coletivos foi estabelecida em uma

compreensão dialética. O movimento dialético reconstruído por Sartre parte da

relação entre a necessidade humana (enquanto primeira negação da negação98) e a

criação dos meios para superar a necessidade ou para garantir a sobrevivência

através da matéria99.

avatar da práxis” (idem:171-172). 97 “Reconhecemos, sem dificuldade, que o grupo nunca tem, nem pode ter, o tipo de existência metafísica que se procura atribuir-lhe; repetimos com o marxismo: não há senão homens e relações reais entre os homens; desse ponto de vista, o grupo em certo sentido não passa de uma multiplicidade de relações e de relações entre essas relações. E essa certeza vem-nos justamente do fato de que consideramos a relação do sociólogo com o seu objeto como uma relação de reciprocidade; o pesquisador nunca pode estar 'fora' de um grupo a não ser na medida em que está 'em' um outro – salvo nos casos-limite em que esse exílio é o oposto de um ato real de exclusão. E essas diversas perspectivas mostram-lhe suficientemente que a comunidade como tal escapa-lhe de todos os lados” (idem:67). 98 A primeira negação é a falta, a necessidade já é reconhecimento da falta e negação da mesma. 99 “A necessidade como negação da negação é o próprio organismo vivendo-se no futuro através das desordens presentes como a sua possibilidade própria e, por conseguinte, como a possibilidade de sua própria impossibilidade; e a práxis, antes de tudo, nada mais é do que a relação do organismo como fim exterior e futuro com o organismo presente como totalidade ameaçada; é a função exteriorizada” (Sartre, 2002:198).

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A necessidade humana é satisfeita em interação com a Natureza e em

relação com a escassez. A presença da escassez coloca a possibilidade da

impossibilidade de viver e segundo Sartre, quebra o tempo cíclico do organismo

biológico, onde passado e futuro são idênticos (no passado houve possibilidade de

viver, no futuro não houve ou não haverá). Segundo Sartre, “na medida em que o

corpo é função [ferramenta ou meio para a própria sobrevivência], a função

necessidade e a necessidade práxis, pode-se dizer que o trabalho humano, isto é, a

práxis original pela qual ele produz e reproduz sua vida, é inteiramente dialética”

(2002:205).

Através do trabalho os seres humanos transformam sua relação com a

matéria e criam novas materialidades. O trabalho equivale à práxis. Ou melhor

dizendo, a práxis em Sartre equivale ao trabalho como concebido por Marx,

enquanto criação e recriação entre os homens e em sua relação com a Natureza.

Para Sartre,

As relações entre os homens são, a cada instante, a conseqüência dialética de sua atividade na medida em que elas se estabelecem como superação de relações humanas recebidas e institucionalizadas. O homem só existe para o homem em determinadas circunstâncias e condições sociais, portanto, toda relação humana é histórica. Mas essas relações históricas são humanas na medida em que se apresentam, em todo tempo, como a conseqüência dialética imediata da práxis, isto é, da pluralidade das atividades no interior do mesmo campo prático (idem: 211).

Então, a práxis humana produz as relações entre os seres humanos e

materializa-se nas objetivações que realiza. Tal materialização significa uma

alienação das criações humanas que são permanentemente reapropriadas na

práxis, no movimento de interiorização/exteriorização. A matéria aparece para

Sartre como o primeiro modo de totalização humana:

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Nossa experiência inverte-se: partindo do trabalhador isolado, descobrimos a práxis individual como inteligibilidade plenária do movimento dialético; mas, deixando esse momento abstrato, descobrimos a primeira relação dos homens entre si como aderência indefinida de cada um a cada um; essas condições formais de toda História aparecem-nos, de repente, como condicionadas pela materialidade inorgânica, simultaneamente, como situação de base que determina o conteúdo das relações humanas e como pluralidade externa no interior da reciprocidade comutativa e da trindade. Ao mesmo tempo, descobrimos que essa comutatividade, embora tenha unido, aos poucos, cada um a todos, é incapaz por si mesma de realizar a totalização como movimento da História, precisamente porque essa substância gelatinosa que constitui as relações humanas representa a interiorização indefinida dos vínculos de exterioridade dispersiva, mas na simples medida em que a multiplicidade discreta dos organismos encontra-se comprometida em uma espécie de ronda com multiplicidade indefinida e giratória dos epicentros. E essa ambigüidade dá conta suficientemente de nossas relações privadas com amigos, pessoas conhecidas, clientes de passagem, 'encontros' e, até mesmo, com nossos colaboradores (no escritório, na fábrica) enquanto são justamente o meio vivo que nos une a todos e essa indiferença mecânica que os separa de nós no fim do trabalho. Mas ela não pode explicar as relações estruturadas que fazem, em todos os planos, os grupos ativos, as classes, as nações, tampouco as instituições ou esses conjuntos complexos a que se dá o nome de sociedades. A reviravolta da experiência opera-se justamente sob a forma de materialismo histórico: se existe totalização como processo histórico, ela vem aos homens pela matéria. Em outros termos, a práxis como livre desenvolvimento do organismo totalizava o entorno material sob forma de campo prático; presentemente, vamos ver o meio material como primeira totalização das relações humanas (idem: 233).

O campo prático-inerte100, constituído pela multiplicidade das práxis

individuais é o campo onde predomina a serialidade. A questão da existência da

práxis individual junto à serialidade à primeira vista aparece como uma incoerência.

No entanto, observamos que a práxis individual no campo prático-inerte é realização

da impotência ou interiorização da impotência, negação da ação enquanto criação

100 “O campo prático-inerte é o campo de nossa servidão e isso não significa uma servidão ideal, mas a submissão real às forças 'naturais', às forças 'maquinadas' e aos aparelhos 'anti-sociais'; isso quer dizer que todo homem luta contra uma ordem que o esmaga real e materialmente em seu corpo e que ele contribui para amparar e reforçar pela própria luta que, individualmente, trava contra ela. Tudo surge nessa linha que separa e, ao mesmo tempo, une as grandes forças físicas no mundo da inércia e da exterioridade (na medida em que a natureza e a orientação das transformações energéticas que as caracterizam dão um certo estatuto de improbabilidade à vida, em geral, e, singularmente, à vida humana) e os organismos práticos (na medida em que sua práxis visa resumi-los em sua estrutura de inércia, ou seja, em seu papel de transformadores de energia)” (idem: 434).

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permanente. Sartre considera o campo prático-inerte como expressão da

antidialética101.

Nesse sentido, percebemos o movimento dialético esboçado por Sartre:

criação da própria vida – exteriorização ou materialização dos meios de criação da

própria vida – cristalização desses meios no campo prático-inerte – reinvenção dos

próprios meios a partir da interiorização e da práxis comum. Assim sendo, é no

plano da práxis comum que a serialidade pode ser rompida, mesmo que por curtos

períodos e sem abarcar todo um conjunto social. Por sua vez, a emergência da

práxis comum é o que caracteriza o grupo em fusão.

Esse esboço resumido tem como finalidade fundamentar o vínculo que Sartre

estabelece entre Grupos, Classes Sociais e Coletivos102. Isso tendo em vista que

para ele, essas apreensões se interpenetram.

Observamos que as Classes Sociais constituem os seres humanos, por

exemplo, pelas condições materiais as quais determinam o ser-de-classe burguês e

101 Embora este campo da antidialética seja apreensível inclusive pela dispersão serial dos indivíduos, Sartre mantém o termo práxis individual, o que para mim, tem o efeito de evidenciar que a ação individual é constante no sentido de apropriar-se das criações humanas coletivas. Se tais ações tendem a manter e a conservar a ordem social elas não perdem o seu caráter ativo, em sua orientação para a continuidade, mesmo que isto nos pareça a permanência na passividade (atividade passiva). 102 “Entendemos que será necessário compreender os vínculos da práxis – como consciente de si – com todas as multiplicidades complexas que se organizam por ela e onde ela se perde como práxis para tornar-se práxis-processo. Mas, de modo algum, entendemos – e teremos a ocasião de repetí-lo ainda mais claramente – ser obrigados a determinar a história concreta desses avatares da práxis. Em particular, veremos adiante que o indivíduo prático entra em conjuntos muito diferentes, por exemplo, no que eu chamo de séries e o que se chama de grupos. Não entra, de modo algum, em nosso projeto determinar se as séries precederam os grupos ou reciprocamente, seja originalmente ou em tal momento particular da História. Muito pelo contrário: veremos que os grupos nascem das séries e, muitas vezes, acabam por serializar-se. Portanto, importar-nos-á unicamente mostrar a passagem das séries para os grupos e dos grupos para as séries como avatares constantes de nossa multiplicidade prática e sentir a inteligibilidade dialética desses processos reversíveis. Da mesma forma, quando estudarmos a classe e o ser-de-classe, ocorrerá que iremos tomar exemplos emprestados à história operária. Mas nossa intenção não será definir a classe particular que se chama o proletariado: o nosso único objetivo será procurar, a partir desses exemplos, a constituição de uma classe, sua função de totalização (e de destotalização) e sua inteligibilidade dialética (vínculos de interioridade e de exterioridade, estruturas interiores, relações com as outras classes etc.)” (idem:181).

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o ser-de-classe operário. Longe de ser um grupo consolidado, a Classe Social

apresenta possibilidades objetivas que condicionam os membros a ela pertencentes.

No proletariado Sartre identifica a presença de grupos de combate103, de

grupos institucionalizados, como os sindicatos, e de serialidade104. Essa abordagem

favorece a apreensão do proletariado em diferentes períodos históricos105,

desmistificando a pretensa unidade de classe e ao mesmo tempo a suposta

impotência em relação à burguesia, nos períodos de refluxo das reivindicações.

Por outro lado, as classes sociais fundamentais, burguesia e proletariado

definem-se na luta que empreendem entre si106. A luta é apreendida por Sartre como

práxis, como possibilidade de superação, sendo também apropriação de uma classe

103 “A classe operária não é pura combatividade, nem pura dispersão passiva, nem puro aparelho institucionalizado. Mas uma relação complexa e em movimento entre diferentes formas práticas das quais cada uma a resume inteiramente e cujo verdadeiro vínculo é a totalização (como movimento induzido por cada uma nas outras e voltando de cada uma para as outras)” (idem:765). 104 “A classe manifesta-se, simultaneamente [no terreno da luta reivindicativa], como um aparelho institucionalizado, como um conjunto (serial ou organizado) de grupos de ação direta, como um coletivo que recebe seu estatuto do campo prático-inerte (através das relações de produção e por elas com outras classes) e seu esquema universal de unificação prática dos grupos que não cessam de formar-se em sua superfície. E esses três estatutos simultâneos produzem-se em ligação prática e dialética, através de um processo que, por sua vez, é condicionado pelo conjunto da conjuntura histórica. De fato, as determinações do discurso apresentam-nos sempre a classe de forma bastante simples, seja como sempre unida e erguida contra os exploradores, seja como provisoriamente desmobilizada (ou seja, recaída inteiramente na serialidade)”(idem:761). 105 “De fato, antes de 1914, e na base da máquina universal, constatamos que a prática sindical é definida pelos próprios operários, enquanto eles exercem seu ofício; portanto, a dissolução das séries parece ser um fato adquirido. Na verdade, a união faz-se no topo: é a da elite operária (os operários qualificados produzidos pela máquina universal); por outro lado, cada um deles, como membro do soberano, agrupa à sua volta os trabalhadores braçais que o ajudam em seu trabalho. Mas, não forma com eles uma verdadeira comunidade prática (na luta sindical) porque eles não constituíram por si mesmos um grupo e porque não o produziram do âmago do grupo, como soberano instituído. De fato, os sindicatos como união da elite constituíram-se a si mesmos como soberania no próprio ato que os produziu; e, em relação aos trabalhadores braçais, essa soberania não é legítima nem ilegítima, mas um fato de um outro mundo (o do grupo) que, nesse outro mundo, produz sua própria legitimação e que, no universo serial, só pode ser aceito na impotência” (idem:756). 106 “A luta é a única prática humana que realiza na urgência (e, às vezes, correndo perigo de vida) a relação de cada um com seu ser-objeto. E, evidentemente, o objeto que sou para o Outro está alterado pelas estruturas fundamentais e pelas condições materiais que deram ao Outro uma constituição de objeto (...) A luta é em si mesma o esforço de uma livre práxis para superar uma outra livre práxis, e inversamente; assim, a relação é formalmente indeterminada entre essas duas superações de superações que, necessariamente, contém em si a possibilidade constante (e atualizada pelos momentos da luta) de serem superadas" (idem: 877; 879).

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pela outra, na qual há internalização e definição de uma diante da outra.

Segundo Sartre “a transformação da classe em grupo atualizado nunca se

realizou em parte alguma, nem sequer em período revolucionário. De fato sabemos

que a serialidade permanece perpetuamente corroída por grupos de ação que se

constituem em níveis diversos e perseguem objetivos variáveis” (idem: 755).

A relação das classes com os coletivos se expressa na serialidade, e nesse

sentido, tanto a burguesia quanto o proletariado podem estar dispersos nessa

serialidade, desse modo, “aprisionados” pelo prático-inerte, e pelo vínculo de

alteridade, cuja característica é colocar fora de si as motivações da ação que lhe são

próprias, em uma espécie de não-implicação.

A práxis comum, enquanto práxis grupal, rompe com a serialidade através da

apropriação da ação pelos sujeitos. Mas, a práxis grupal vivida pelos membros do

grupo é forçada enquanto tal, para manter o grupo, para manter os vínculos com o

grupo, nesse processo, a práxis grupal perde-se a si mesma, institucionalizando-se.

O grupo perde-se na série. Sartre reencontra no grupo a possibilidade de um

processo circular: romper com a serialidade, agir através da práxis em comum,

forçar a sua manutenção, institucionalizar-se, perder-se na série107.

Essa perspectiva dialética sobre os grupos, as classes sociais e os coletivos

permite que observemos o movimento social sob um ângulo diferente, menos rígido,

no sentido de perceber sua dinamicidade, seu fluxo, onde se a necessidade (ou a

impossibilidade de viver) possui um lugar fundamental, a sua inteligibilidade,

enquanto práxis histórica também qualifica as novas ações a serem desenvolvidas

ou os novos projetos a serem construídos.

107 “O grupo, cuja origem e fim residem em um esforço dos indivíduos reunidos para dissolver neles a serialidade, acaba por reproduzir em si, no decorrer da luta, a alteridade e congela-se no inorgânico para lutar contra ela a partir de dentro, o que o aproxima progressivamente do estatuto 'coletivo'”(idem: 671).

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É interessante observar que a nossa compreensão desta dialética enquanto

processo histórico é um elemento novo na História. Nesse sentido, o próprio modo-

de-produção capitalista deliberadamente investe na criação de novas necessidades,

pelo marketing, pela propaganda, através dos meios de comunicação. Esse

aguçamento quanto às novas e efêmeras necessidades é algo que nos coloca em

posição diferente em relação às necessidades reais de sobrevivência no nível do

organismo humano. Mas, também, no plano das relações humanas gestam-se

necessidades inéditas, como a convivência com o diferente, a necessidade de

aceitação do diferente, portanto certa negação de padronizações e normatizações

severas cujas expressões enquadrariam os normais e os desviantes. Essa dimensão

da diferença parece apontar para o desejo de singularidade, ou seja, no plano da

subjetividade, significaria o direito a expressar-se na diferença, na unicidade de cada

pessoa e de cada organismo. Se esse desejo se expressa ao nível da coletividade,

temos um reforço da serialidade, da dispersão. No entanto, para expressar a

singularidade é necessária uma sociedade que a respeite, desinvestindo os

processos de massificação. Então se a expressão da singularidade torna-se uma

luta pelo direito à diferença, temos a possibilidade de ver emergir uma práxis comum

em torno da singularidade. O que parecia uma dispersão serial mais intensa tornar-

se-ia possibilidade de ação em comum.

Essa reflexão faz-nos pensar que a subjetividade é sempre uma polaridade

unida à totalidade ou às totalizações em processo. Uma transformação nas formas

de viver o cotidiano indica possibilidades de transformação na produção humana de

uma forma mais ampla e vice-versa.

Observamos que neste momento histórico as necessidades apontam para o

desejo (subjetivo) de transformar a própria vida. Por um lado, isso reforça a

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serialidade estando em consonância com o rol de novas necessidades incentivado

pelo processo de produção capitalista (estar bonito, estar de bem com a vida, estar

feliz, estar saudável, ter um estilo próprio, ter sucesso etc.). Por outro lado, também

indica um compromisso com a efetivação de algo diferente, o que pode derivar em

uma “busca do sujeito por si mesmo”. No meio de tantas necessidades, deparamo-

nos com a própria impossibilidade de supri-las, seja pela desigualdade de acesso à

satisfação das mesmas, seja pela própria impossibilidade de ser feliz integralmente,

o tempo inteiro. Se o investimento no plano da subjetividade é algo que favorece a

serialidade, também é gérmen de insatisfações mais profundas, pela impossibilidade

de viver satisfazendo a tantas necessidades contínuas, mutáveis e em muitos casos,

supérfluas.

No nível das classes sociais essa dispersão serial é incorporada

diferentemente pela burguesia e pelo proletariado108. À burguesia é permitido

108 “Vimos o ser-de-classe como estatuto prático-inerte da práxis individual ou comum, como a sentença, futura e petrificada no Ser passado que, por sua vez, essa práxis deve realizar e onde, finalmente, ela deve reconhecer-se em uma nova experiência da necessidade. Mas esse ser prático-inerte apareceu-nos como um momento real do indivíduo ou como estatuto passivo de um grupo ou, inversamente, como a pseudo-unidade ativa de um conjunto material inerte. Se pretendemos compreendê-lo melhor resta fazer a experiência de uma estrutura nova, condicionada pelas precedentes e, por seu turno, condicionando-as: com efeito, o ser-de-classe não é somente conforme vimos, uma característica de materialidade insuperável que existe a título de qualidade separada nas entidades discretas e isoladas umas das outras (como, por exemplo, a cor dos cabelos ou a altura). De fato, o ser-de-classe, longe de manifestar-se como a identidade de ser de realidades independentes, aparece na experiência como a unidade material dos indivíduos ou, se preferirmos, como o fundamento coletivo de sua individualidade. Com efeito, os exemplos que indicamos procuram mostrar que os indivíduos realizam seu estatuo de classe uns pelos outros: desde a práxis elementar, desde o trabalho na oficina, o ser-de-classe de cada um, na medida em que a exigência prático-inerte da máquina, é-lhe conferido tanto por todos os camaradas, quanto pela classe que o explora; ainda melhor, lhe é conferido pela classe que o explora e pelas máquinas que o exigem através dos camaradas e de seu caráter universal de explorados. Ao mesmo tempo, esse ser-de-classe para cada indivíduo define-se como relação inerte (insuperável) com os camaradas de classe a partir de certas estruturas. Destino, Interesse geral (e, até mesmo, particular), Exigências, Estruturas de classe, Valores como limites comuns, tudo isso nos remete, necessariamente, não só a um tipo de ser individual que já descrevemos, mas também, através dele, a um tipo de ser coletivo como fundamento de toda realidade individual (...) Não há dúvida de que o proletariado poderia tender para a unidade de uma práxis coletiva se os organismos que ele engendra – por exemplo, na França – chegassem a realizar a unidade sindical. Mas, quando ele é representado por partidos e sindicatos que se guerreiam, convirá renunciar a designá-lo por proletariado? A experiência de todos nós comprova o contrário, uma vez que falamos das divisões da classe operária, o que remete a uma unidade ainda mais profunda a partir da qual, em determinadas condições, ela produzirá sua unidade ativa como integração cada vez mais acentuada (e totalização), ou suas divisões como dilaceramento

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satisfazer às necessidades emergentes e o luxo produzido indica em que nível de

enriquecimento nós estamos vivendo109. Ao proletariado, de acordo com a inserção

do trabalhador no mercado de trabalho, são possíveis diferentes níveis de acesso ao

mercado de consumo. Desse modo, o trabalho propriamente dito, reifica-se ainda

mais como meio de acesso à um padrão de vida110 de construção de um estilo de

vida, cujo parâmetro é oferecido pela burguesia. Há possibilidades para todos os

padrões aquisitivos, o que de certo modo, reforça a dimensão da diferença, embora,

a satisfação das necessidades em todas as suas nuanças, seja o padrão que dita o

quanto se está próximo do luxo e da apropriação da riqueza socialmente produzida.

Ao final desse item uma questão deve ser observada, se a classe social não

se transformou em grupo atualizado em nenhuma parte, nem mesmo nos períodos

revolucionários, a burguesia e o proletariado não coincidem com um grupo ou não

se realizam enquanto uma estrutura grupal (cujos elementos ressaltamos no item

anterior). Contudo, Sartre também afirma que existem grupos de combate entre o

proletariado e em seu texto a burguesia identifica-se em seus interesses, ainda que

de uma totalidade já existente. Melhor ainda: ninguém sonha em declarar, que pelo fato de existirem tais divisões, a classe operária irá ceder o lugar a vários grupos de explorados mais opostos em seus objetivos e táticas do que unidos pela exploração comum. Diz-se que essas divisões ameaçam reduriz a classe operária à impotência. Portanto, as divisões aparecem como acidentes cuja gravidade é considerável, com toda a certeza, para a prática, mas que não podem atingir a substância fundamental que é una (...) De fato, se os indivíduos fundem-se todos juntos em um certo ser comum, isso não pode ser senão no campo prático-inerte e na medida em que justamente não são organismos individuais, ou se preferirmos, na medida em que a materialidade trabalhada faz-se, por sua vez, síntese (ou falsa síntese) do ser-fora-de-si-nela deles (...) Em poucas palavras, a classe como ser coletivo está em cada um na medida em que cada um está nela e, antes de 'organizar-se' e de 'criar seus aparelhos', ela aparece sob o aspecto contraditório de uma espécie de inércia comum como síntese da multiplicidade” (idem: 355-358). 109 Atualmente o luxo aparece de forma tão ostensiva que até os Hotéis Cinco Estrelas foram superados por Hotéis mais sofisticados, e muito mais caros. 110 “Podemos observar também a natureza da reificação: não se trata de uma metamorfose do indivíduo em coisa como, freqüentemente, tem sido considerado, mas é a necessidade que se impõe ao membro de um grupo social, através das estruturas da sociedade, de viver sua pertinência ao grupo e, através dele, à sociedade inteira como um estatuto molecular. O que ele vive e faz como indivíduo continua sendo, no imediato, práxis real ou trabalho humano: mas através dessa necessidade concreta de viver, é obcecado por uma espécie de rigidez mecânica que submete os resultados de seu ato às leis estranhas da adição totalizadora. Sua objetivação é modificada de fora pelo poder inerte da objetivação dos outros” (idem: 286).

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tais interesses sejam apreendidos pela alteridade, na serialidade. Por outro lado, se

a burguesia chegou ao poder na França em ressonância com um movimento

popular, parece-nos que naquele momento, houve um grupo em ação em uma

convergência contra a monarquia e o que ela representava enquanto impossibilidade

de viver.

Os contornos entre grupo e classe social aparecem na distinção entre a ação

comum ou práxis comum apropriada no grupo e a dispersão serial que caracteriza a

classe social enquanto um coletivo, onde a práxis individual se presentifica mediada

pela alteridade, ou seja, a ação é ditada pela pretensa ação do Outro.

Entretanto, tais contornos se diluem quando o grupo também é apreendido

em seu movimento, na possibilidade de ossificação e de retorno à serialidade.

Nesse sentido, o grupo existe formalmente, e a práxis comum petrifica-se em uma

referência aos atos passados, os quais "pesam" sobre o presente. Mesmo assim, a

distinção entre grupo e classe social se mantém, pois a emergência do grupo

significa a possibilidade de uma experiência de dissolução da série e de "tomada da

ação", no sentido em que o grupo se apossa da sua possibilidade de criação,

traduzida na práxis comum. Essa referência grupal redimensiona a relação com a

realidade e mesmo que a ação se congele em um futuro próximo, ocorreu a

experiência da práxis, ocorreu a ruptura com a impotência. Na possibilidade, por

exemplo, do proletariado vir a constituir-se como grupo, isso poderia significar a

recriação dos vínculos sociais através da práxis comum, o que em si traduziria uma

nova relação com o prático-inerte e com a Natureza.

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1.4 – Hipóteses de trabalho111

a) Historicamente, a experiência revolucionária vivida na Modernidade como

nos eventos da Revolução Francesa (1789), nas ações dos trabalhadores durante a

"Primavera dos Povos" na Europa (1848) e durante a "Comuna de Paris" (1871); e

na emergência da Revolução Russa (1917) e da Revolução Cubana (1959) durante

o século XX são expressões que confirmam o caráter disruptivo da práxis humana,

enquanto práxis revolucionária, no sentido de afirmar as vias de ruptura e de criação

histórica possíveis em situações sociais insustentáveis para a maioria da população

quando uma convergência se afirma para a construção de algo diferente, na

intenção de superação das condições de vida anteriores. No entanto, seria

necessário um estudo minucioso para identificar em quais situações uma

convergência revolucionária no plano de um movimento social de massas foi

possível e porque em condições semelhantes de insustentabilidade (materialmente

consideradas) uma tal convergência não se manifesta. Contudo, mesmo que a

experiência revolucionária seja uma perspectiva que se expresse em condições de

convergência peculiares ela é uma possibilidade no horizonte das ações humanas.

Nesse sentido, o trabalho de Sartre analisa estas possibilidades: de um lado,

na produção grupal que rompe com a serialidade, e do outro, no caráter reificador do

próprio grupo em relação a sua emergência (institucionalização do grupo). Tal

tensão indica a crítica do autor aos processos revolucionários, que, se rompem

inicialmente com as instituições anteriores e com a própria serialidade, também se

deparam com a própria institucionalização face às vitórias empreendidas.

Isto nos evoca questões sobre o movimento revolucionário, sobre a

111 As hipóteses foram destacadas em negrito no desenvolvimento dos argumentos que as constituem.

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práxis revolucionária, principalmente, no sentido de pensar na possibilidade

de acompanhar dialeticamente o movimento contínuo das práticas grupais,

através da criação de novas formas organizativas, o que também implica no

exercício coletivo do poder e que as relações de poder sejam compartilhadas

efetivamente pelas pessoas envolvidas (democracia). Em um processo

revolucionário de massas há que equacionar os modos de proceder face às

divergências e à diversidade, principalmente se houver um enfrentamento

violento, já que estamos nos referindo também à possibilidade da luta

revolucionária.

Por outro lado, é importante lembrar que a "Primavera dos Povos" (1848) e a

"Comuna de Paris" (1871), por exemplo, foram movimentos que criaram formas

diferentes de exercício do poder, mas que não foram capazes de uma auto-

sustentação ou de uma ruptura efetiva com a dominação burguesa112. Um fato

importante é que a violência desses movimentos foi apenas a violência necessária

na perspectiva de sua sobrevivência e de sua afirmação, contudo, foram

movimentos reprimidos com uma ação coercitiva muito mais ofensiva e destruidora,

desproporcional à que fora realizada (Hobsbawm, 2004). A derrota destes

movimentos relaciona-se também com a necessidade de construir materialmente as

possibilidades de sua expressão. Ou seja, mantendo-se a organização da produção

sob a hegemonia do capital (divisão entre capital e trabalho e subordinação

hierárquica do trabalhador ao capital), mesmo que a burguesia seja derrotada, é

difícil instaurar novas formas de compartilhamento do poder (Mészáros, 2002). Uma

vez que, na produção material a desigualdade se manifesta, esta contradição

112A este respeito, existe a análise de Marx sobre a Comuna de Paris (A Guerra Civil na França); também sobre a Comuna de Paris há o estudo publicado por A . Guillerm e Y. Bourdet sob o título Autogestão:uma mudança radical.

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perpassa as demais formas de organização e de manutenção da vida.

Fora de um movimento revolucionário de massas que em sua práxis

instaure novos modos de organização material da produção e de

manutenção/reprodução da vida a práxis revolucionária ou a práxis de ruptura

emergem como "zonas" ou "espaços" de produção de novos significados, de

novos sentidos, de novas apropriações que, se podem ser consideradas

singulares (Guattari, 1985; 1996), também vivenciam a contradição de serem

capturadas na expressão que realizam. Ou seja, estamos sugerindo que a

práxis de ruptura fora do contexto de um movimento revolucionário de massa

está em constante processo de captura e ressignificação, seja em suas

práticas e nas novas formas organizativas que são gestadas, seja nas

apropriações desenvolvidas pelos "adversários”.

b) No item 1.2 deste capítulo fizemos uma primeira aproximação ao grupo,

na forma como Sartre o apreende. Nessa primeira aproximação, percebemos que o

grupo não obstante as referências históricas apresentadas, apareceu como uma

abstração, como um fenômeno possível na sociedade, emergindo da coletividade,

mas ainda pouco determinado concretamente.

No item 1.3, na segunda aproximação sobre a relação entre grupos, classes

sociais e coletividades, o grupo foi apreendido em sua concreticidade, ao ser

demarcado pelos destinos e interesses diferentes que constituem tanto o

proletariado quanto a burguesia.

Ao mesmo tempo, a apreensão da práxis grupal é interessante para

considerarmos os períodos em que manifestações, reivindicações, posições são

defendidas por determinados grupos em ressonância com sua classe social.

Essas observações fazem-nos perceber que para compreendermos o grupo é

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necessário elucidar as determinações que o atravessam, sejam estas de caráter

histórico-econômico-material, sejam as condições de apropriação subjetiva

realizadas pelos indivíduos mediante as significações produzidas, mediante a

vinculação afetiva realizada. Então, mesmo as determinações histórico-econômico-

materiais precisam ser consideradas objetiva e subjetivamente, nos modos de

organização da produção e da manutenção/reprodução da vida e nas apropriações

realizadas pelos indivíduos.

Desse modo, a vinculação de classe também não constitui garantia de

consecução dos objetivos de classe: o grupo e a práxis grupal constituem-se

como mediação, com dinâmica própria, capazes de gerar processos de

enrijecimento, terror, degradação etc.

Para os grupos que queiram manter-se coerentes com seus objetivos

emancipatórios, democráticos e pluralistas, no intuito de construir/participar

na superação de todas as formas de exploração e dominação existentes,

também é necessário realizar práticas organizativas capazes de renovação, de

flexibilidade (fluidez), de compreensão sobre os mecanismos persecutórios

(terror), criando um dispositivo de aprendizado contínuo nesta direção113.

Nesse sentido, tanto a noção de práxis grupal quanto a de práxis individual

são importantes para compreendermos os grupos concretamente. Ou seja, mesmo

quando a práxis individual predomina (em nossas inserções grupais) temos a

possibilidade de singularizar nossas relações, expressando novos comportamentos

e novas atitudes capazes de romper com os estereótipos existentes. Isto nos

possibilita fomentar a emergência de novas referências em nosso campo de ação

possível. Isto nos aproxima da concretude dos grupos com os quais nos

113 Esta formulação foi elaborada em colaboração com o Prof. Dr. Eduardo Mourão Vasconcelos.

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relacionamos (família, amigos, vizinhos etc), os quais sugerem um espaço de

criação possível no campo da interação humana. Estamos supondo, então, que

na polaridade serialidade/fusão, ou entre a práxis comum e a práxis individual

há um componente que as aproxima, qual seja, o caráter permanente da ação

humana ou a possibilidade permanente da práxis humana como criação,

siginificação, apropriação de sentidos e de significados; e de direcionamento

da ação, inclusive quando estas ações afirmam-se, renovando-se na

continuidade e na manutenção das formas existentes.

Esta compreensão foi inspirada pela noção de práxis apreendida por Sartre.

Ele enfatiza essa dimensão fazendo-nos atentar para o fato de que criamos e

recriamos as relações humanas o tempo inteiro, seja pela práxis comum, seja pela

práxis individual, seja na serialidade e na impotência, seja na fusão e na

possibilidade de fundar algo novo.

Essa apreensão é diferente porque nos compromete o tempo inteiro com a

realidade que fundamos e contribuímos para reificar ou para transformar. Mas, longe

de se referir a uma ação voluntarista, a práxis é materialmente/historicamente bem

determinada por Sartre: seja pelo caráter prático-inerte ao qual está circunscrita,

seja pela emergência da impossibilidade de viver que também circunscreve a

possibilidade da práxis comum.

Desse modo, a práxis também é uma determinação da qual não podemos

escapar, uma vez que existimos e que nossa existência é prática, é ação, é

atividade114. Lembramos também que a matéria é atualizada pela ação humana que

novamente a objetiva.

114Pensamento é práxis, linguagem é práxis.

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c) Por último, retornamos à contextualização que fizemos acima. A polêmica

entre Sartre e o marxismo continua aberta. Contudo, após a leitura da Crítica da

razão dialética tivemos a convicção de que Sartre participa do marxismo. Isso

porque ele fundamenta sua experiência crítica no materialismo histórico e na

dialética115. E ele o faz de uma forma singular, incorporando as questões que o

motivam, inclusive as que fizeram dele um filósofo expressivo do existencialismo.

O método progressivo/regressivo ou regressivo/progressivo enfatiza o

interesse de Sartre pelo humano, seja no nível de suas expressões grupais, sociais,

coletivas, como no nível de suas apropriações individuais (no campo da

subjetividade humana). Esta atualidade de Sartre é o que o distingue no universo da

produção marxista. Ou seja, podemos criticar o individualismo presente nas

sociedades burguesas (atomização do individuo vivida massificadamente ou como

um "fenômeno de massas"), mas precisamos considerar o significado das

expressões individuais, ou a emergência de um tipo de individualidade que só foi

possível neste período do desenvolvimento das forças produtivas. E Sartre está

atento a isto.

Já em Marx e Engels (2001) esta compreensão sobre a individualidade está

presente, por exemplo, quando consideram as perspectivas de emancipação

humana, eles o fazem também em nome do homem, individualmente e

coletivamente, em nome dos seres humanos que irão usufruí-la. Porém, Marx e

Engels (idem) também já criticam o individualismo burguês, "o egoísmo burguês",

posto que a perspectiva privada predomina sobre a dimensão pública e sobre as

115 Como argumentamos, Sartre critica a perspectiva do materialismo dialético. A esse respeito, Reale e Antiseri argumentam “Se Sartre adere ao materialismo histórico, rejeita, porém, o materialismo dialético. (...) Em suma, Sartre não aceita as três leis da dialética propostas por Engels como regras que guiariam o desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento. A admissão dessas leis gerais do devir implicaria um ingênuo otimismo que proclamasse um finalismo de tipo hegeliano e, o que é ainda mais inadmissível, reduziria o homem a simples instrumento passivo da grande máquina dialética, incapaz de subtrair ao mais rígido determinismo” (1991: 612).

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necessidades coletivas. Ou seja, a apropriação privada dos meios de produção retira

ao coletivo as condições de coletivamente manter e reproduzir a própria vida e a

apropriação privada da riqueza socialmente produzida continua a reprodução da

desigualdade entre os possuidores e os expropriados dos meios de produção.

Nesse sentido, a expropriação dos meios de produção ou a concentração dos meios

de produção pela burguesia inviabiliza a equalização da riqueza entre os indivíduos,

restringindo o acesso individual aos bens e serviços produzidos a um número

expressivo de pessoas. Desse modo, a "coletivização" dos meios de produção

significaria também a retomada das possibilidades mais igualitárias de acesso à

riqueza socialmente produzida permitindo que os direitos garantidos legalmente

fossem concretizados em termos sociais para usufruto dos indivíduos. Então, seria

necessária a superação do capitalismo para que a emancipação humana pudesse

ser alcançada concretamente e fosse apropriada individualmente em ampla escala.

Contudo, nossa possibilidade histórica atual propicia a emergência de

individualidades autônomas capazes de responder por suas ações e capazes de

uma relativa independência em relação a sua inserção familiar mais restrita (por

exemplo, sobreviver sem a ajuda econômica da família) e até mesmo em relação à

sua inserção econômica (possibilidade de ascensão econômica e da assunção de

um novo status social).

Esses indivíduos apresentam outras necessidades, inclusive para sustentar

sua própria existência enquanto responsáveis por si mesmos diante dos demais

indivíduos e diante da sociedade.

Sugerimos que entre estas necessidades está a experiência de pertencimento

ou de vínculo afetivo como uma espécie de "âncora" em um oceano de incertezas

emocionais, flutuações econômicas e possibilidades de auto-realização. Isto porque

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a experiência da atomização (isolamento/serialidade) enfraquece o indivíduo,

tornando-o frágil diante das organizações e dos mecanismos sociais existentes que

o constrangem a uma adaptação obediente. Desse modo, a experiência de

pertencimento é uma compensação dessa fragilidade, um fortalecimento afetivo

diante de situações de insegurança. Também pensamos que a emergência da

psicologia e principalmente a sua difusão/popularização116 nas sociedades

capitalistas contemporâneas está relacionada com os modos de subjetivação

existentes, os quais remetem os indivíduos para uma compreensão de si mesmos e

principalmente, para um fortalecimento de suas individualidades como um meio de

sobreviver às exigências que lhe são postas.

Quanto à primeira sugestão, observamos que a busca pela experiência de

pertencimento ocorre como uma polarização ao isolamento e ao

desenraizamento do indivíduo em relação aos grupos nos quais se insere

cotidianamente. Ou seja, a experiência de pertencimento pode escapar ao

indivíduo, não obstante sua inserção concreta em vários espaços grupais

(família, vizinhança, organizações etc.). Talvez pelo fato de suas percepções

estarem centradas sobre si mesmo, ou ainda, por não existir um único foco

(um território exclusivo de referência), havendo situações que se desdobram

116 Há um número expressivo de produções nos meios de comunicação social – rádio, televisão, imprensa – que dedicam-se às questões "psicológicas". Debates ou conversas com profissionais da psicologia para abordar temáticas diversas desde a relação entre pais/filhos, passando pelos desafios contemporâneos à manutenção da saúde mental (como lidar com o stress, como tratar a ansiedade, como lidar com o medo etc) até à própria expressão da individualidade como meio de alcançar o sucesso financeiro ou a autorealização em uma bem-sucedida carreira profissional (como lidar com as exigências de competitividade; quais os tipos de comportamento exigidos para se obter um emprego; como se portar numa entrevista etc.) entre outros temas. Compreendemos que a utilização deste recurso remete à produção da informação visando atingir emocionalmente às pessoas, ou seja, a utilização da linguagem subjetiva nos meios de comunicação é dirigida às pessoas consideradas individualmente em suas necessidades tanto materiais como afetivas. É importante atentar para a incorporação de algumas noções da psicologia pela linguagem e sua apropriação popular, o que gera novas demandas, novas necessidades em relação ao acesso aos profissionais que atuam nesta área (aconselhamento psicológico, trabalho em grupos de caráter terapêutico inclusive em várias modalidades de auto-ajuda, procura pela terapia ou pela análise a longo prazo etc.).

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em outras situações, as quais se atravessam mutuamente em uma experiência

"fluida" e aparentemente desterritorializada117.

Quanto à segunda sugestão, parece-nos que a motivação individual para

participar de espaços grupais "criados artificialmente", como teremos

oportunidade de examinar no capítulo 3, além de ser um tipo de resposta

fundamentada nos processos de subjetivação presentes nas sociedades

capitalistas contemporâneas, também é uma demanda relacionada à

difusão/popularização da psicologia e à apropriação das noções da psicologia

em escala que ultrapassa a comunidade profissional e acadêmica.

Por fim, é importante ressaltar que a produção de Sartre tem muitos

elementos que se expressam nos autores que iremos trabalhar a partir do

Movimento Institucionalista e Grupalista. Destacamos os seguintes elementos:

Multiplicidade/diversidade – sob a perspectiva de considerar a

produção humana em sua múltipla dimensão, cujo significado remete

aos diferentes sentidos da História, apreendidos subjetivamente, por

isso, a totalização está sempre em andamento, e relaciona-se sempre

com essa multiplicidade de sentidos, os quais podem convergir em

uma práxis comum, a qual mantém a tensão na diversidade existente;

Transversalidade – no cruzamento entre a verticalidade histórica,

determinação vivida como no campo prático-inerte, e a

horizontalidade das experiências subjetivas, há um campo de

117 Inspirou-nos a noção de Guattari (1996) quanto às "máquinas celibatárias". Qualificamos esta desterritorialização como “aparente” porque supomos a existência de vínculos, os quais propiciam a experimentação do pertencimento quando existe a possibilidade de sua emergência.

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articulação e de criação o qual não pode ser desconsiderado118;

Projeto – expressão da criatividade humana manifestando-se

enquanto mediação entre dois momentos da objetividade:

subjetividade como superação da objetividade e objetivação ou

exteriorização da interioridade119.

Este fato, em nossa opinião, reforça a importância de sua obra e as suas

implicações que também a destacam como uma referência para o Movimento

Institucionalista e Grupalista. Essa ressonância indica a sensibilidade de Sartre às

questões que atravessaram a sua história as quais ele buscou sintetizar para

compreender melhor.

Ainda nessa direção, de acordo com as indicações do Professor Doutor

Eduardo Mourão Vasconcelos, Sartre pode ser considerado o precursor do

Movimento Institucionalista e Grupalista, ou seja, como precursor contemporâneo de

quase todas as principais teorias grupalistas e institucionalistas120, o que teremos

118 "Produto de seu produto, modelado por seu trabalho e pelas condições sociais da produção, o homem existe ao mesmo tempo no meio de seus produtos e fornece a substância dos 'coletivos' que o corroem; em cada nível de vida, estabelece-se um curto-circuito, uma experiência horizontal que contribui para modificá-lo na base de suas condições materiais de partida: a criança não vive somente sua família, mas também – em parte, através dela e, em parte, sozinha – a paisagem coletiva em seu redor; e é ainda a generalidade de sua classe que lhe é revelada nessa experiência singular. Portanto, trata-se de constituir sínteses horizontais em que os objetos considerados desenvolverão livremente suas estruturas e leis. Essa totalização transversal afirma, a uma só vez, sua dependência em relação à síntese vertical e sua autonomia relativa (Sartre, 2002:69, grifos meus). 119 "O projeto nunca tem conteúdo, uma vez que seus objetivos lhe estão unidos e, ao mesmo tempo, lhe são transcendentes. Mas sua coloração, isto é, subjetivamente seu gosto, objetivamente seu estilo, não é diferente da superação de nossos desvios originais: essa superação não é um movimento instantâneo, mas um longo trabalho; cada momento desse trabalho é, a uma só vez, superação e, na medida em que se apresenta para si, a pura e simples subsistência desses desvios em determinado nível de integração: por esta razão, uma vida desenrola-se em espirais; volta a passar sempre pelos mesmos pontos, mas em níveis diferentes de integração e complexidade" (idem:86). 120 Inclusive inserindo-se em relação a um movimento mais amplo: Movimento de comunidade terapêutica na Inglaterra e nos EUA, Psicoterapia Institucional na França (anteriores à Sartre); Goffman (Asyhum), Barton (Institucionalismo), Foucault (História da Loucura) são contemporâneos de Sartre. A matriz sartreana influenciou a concepção de grupo sujeito em Guattari, as noções de institucionalização, instituinte e instituído; a concepção de fusão aparece na teoria do imaginário de

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oportunidade de observar no próximo capítulo, no que tange aos autores que serão

trabalhados.

Castoriadis e da psicossociologia; influenciou a abordagem da desinstitucionalização de Basaglia e também influenciou diretamente as abordagens de Lapassade e Lourau.

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CAPÍTULO 3 – O MOVIMENTO INSTITUCIONALISTA E

GRUPALISTA

3.1 – Contextualização histórica e as diferentes perspectivas

teórico-políticas

A compreensão sobre os grupos, nas diferentes perspectivas enunciadas no e

pelo Movimento Institucionalista e Grupalista (gestadas a partir da década de 50), é

o motivo que nos aproxima de alguns de seus atores, expoentes que expressam a

densidade e a complexidade das questões identificadas e trabalhadas através da

Análise Institucional121, em sua amplitude122, e nas apropriações específicas como

na socioanálise criada por Georges Lapassade e René Lourau, na esquizoanálise

criada por Félix Guattari e no esquema conceitual-referencial operativo (ECRO)

criado por Enrique Pichon-Rivière, os três primeiros na França e o último na

Argentina. 121 De acordo com Hemi Hess (2004: 33-34) "René [Lourau] conserva uma idéia importante para a compreeensão do projeto, do paradigma e do programa da Análise Institucional: ela [AI] nasce no início de um processo, ainda ativo hoje em dia, de crítica ao instituído (no que diz respeito às formas políticas de ação). E esta crítica é uma autocrítica que porta, em germe, a noção de implicação do observador naquilo que observa". 122 "Assim como a teoria da autogestão generalizada, oriunda do movimento dos conselhos operários dos anos 20 na Europa, a análise institucional generalizada é uma práxis, ou seja, experiência histórica de um movimento social. Enquanto tal, ela é, em primeiro lugar, uma livre associação de indivíduos que não se satisfazem mais com o existente, com o que lhes é oferecido como esgotando o real de uma época, e que buscam fazer com que advenham outras possibilidades, outras potencialidades. Antes de ser uma prática de intervenção externa em um estabelecimento, a AI é uma intervenção interna. Quando, durante os anos 70, certos partidários da AI se situaram no mercado de intervenção institucional, foi com um conhecimento de causa... quero dizer, por ceticismo em relação à causa da análise institucional generalizada!" (Guigou, 2003:85-86).

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A referência a três autores franceses remete-nos à produção francesa como

uma das protagonistas em termos da crítica à psicossociologia industrial, à dinâmica

de grupo, e às concepções teórico-políticas veiculadas nestas matrizes teóricas

(conforme examinaremos oportunamente). Observamos que as expressões

revolucionárias de massas estão enraizadas na construção histórica francesa, como

na Revolução Francesa (que originou o modelo político da organização social

burguesa, conforme Hobsbawm, 2005)123, na Primavera dos Povos (1848), na

Comuna de Paris (1871), na mobilização contra a colonização na Argélia (década de

50) e nos acontecimentos de Maio de 68. A experiência francesa em termos de

manifestação coletiva é uma referência que precisa ser considerada, a qual

possibilita apropriações singulares quanto à ação dos grupos nas sociedades

capitalistas contemporâneas.

Contudo, ao adotarmos a expressão Movimento Institucionalista e Grupalista

estamos nos remetendo a um processo mais amplo, que engloba diferentes países e

diferentes produções124, que em comum apresentam o questionamento às práticas

123 "Se a economina do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas sócio-econômicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas idéias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes, e a política européia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1917 foi em grande parte a luta a favor e contra os princípios de 1789, ou os ainda mais incendiários de 1793. A França forneceu o vocabulário e os temas da polítca liberal e radical democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as idéias européias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa" (Hobsbawm, 2005:83-84). 124 José Augusto Bisneto descreve a existência de várias correntes da Análise Institucional, a saber, "psicologia institucional francesa, de Enriquez, Kaës, Tosquelles, Pagés, Levy, Lobrot, Chauzad; psicologia institucional inglesa, de Ellitot Jacques; psicologia institucional argentina, de Pichón Riviére e Bleger; sociopsicoanálise institucional de Mendel; Psiquiatria Democrática, de Basaglia e a 'antipsiquiatria', de Cooper e Laing; socioanálise, de Lourau e Lapassade; instituições totais de Goffman; esquizoanálise e micropolítica, de Deleuze e Guattari; a analítica do poder, de Foucault; a instituição imaginária, de Castoriadis; a análise dos atores e das práticas institucionais, de Guilhon Albuquerque; a linha sociológica, de Castel (aplicada à Psicanálise), Donzelot (sobre a família),

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sociais instituídas, sejam elas psiquiátricas-asilares, pedagógicas-escolares,

psicanalíticas-analíticas, organizacionais-hierárquicas, científico-acadêmicas,

interpessoais-familiares entre outras, convergindo para o questionamento ou para a

explicitação das relações de poder que se instituem quando uma organização se

estabelece em torno de ações grupais/coletivas que determinam um novo território

de conhecimento e/ou de prática social. Mesmo estes aspectos comuns (que se

explicitam na trajetória de muitos atores deste movimento125) são diversamente

apropriados pelos atores deste movimento. Assim, se existem referências

comuns126, a própria ênfase na diferenciação, na singularização das experiências,

na multiplicidade de perspectivas ético-políticas e teórico-operativas, contribui para

o caráter difuso127 destas produções.

De acordo com Eduardo Vasconcelos a expressão “Movimento

Institucionalista e Grupalista”

constitui um conjunto de diferentes teorias e linhas de intervenção prática, com as mais diversas raízes, entre elas o campo da dinâmica e psicoterapia de grupo, da psicologia social e da psiquiatria social (e em todos esses casos há geralmente uma forte inspiração nas formulações psicanalíticas, e em alguns casos, da teoria da gestalt e da fenomenologia existencial), bem como da

Bourdieu e Passeron (sobre o ensino)" (2000: 295-6). 125 São trajetórias que indicam posicionamentos de confronto com as práticas sociais instituidas, seja nas organizações sociais (estabelecimentos sociais), seja mediante um novo posicionamento político na sociedade, como na defesa das expressões singulares, diferentes dos padrões de comportamento tidos como hegemônicos (contra a normatização, por exemplo da sexualidade segundo o padrão heterossexual, ou de gênero, pelo submetimento ao poder patriarcal) etc. Não raro tais trajetórias explicitam uma ruptura dos atores com o instituído e a ousadia em instituir ou criar novas práticas sociais, novas referências organizacionais. 126 Geralmente, as referências comuns são indicadas como "sua [do movimento] aspiração em deflagrar, apoiar e aperfeiçoar os procesos auto-analíticos e autogestivos dos coletivos sociais" (Baremblitt, 1998:11); "a crítica relativa à separação investigação-intervenção, o trabalho com grupos e comunidades como dispositivos-alvo privilegiados, a recusa a uma psicologização dos conflitos sociais e a uma Sociologia abstrata, a análise (no sentido do olhar/escuta que decompõe) como modo básico de funcionamento" (Benevides, 2001:166). 127 Nos vários sentidos desta palavra, como derramado, estendido, disseminado, divulgado, difundido, não circunscrito, como "ramos difusos" ou aqueles que se estendem horizontalmente em volta do tronco (conforme Dicionário Caldas Aulete).

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análise sociológica dos processos de mudança social e dos fenômenos de institucionalização e burocratização (com fortes aproximações ao marxismo e, de certa forma, também ao existencialismo de Sartre, particularmente de seu livro 'Crítica da Razão Dialética' [Sartre, 1960]) (Vasconcelos, 2003:109).

É pertinente caracterizar o Movimento Institucionalista adjetivando-o como

"Grupalista" a fim de evidenciar o comprometimento deste movimento com a

construção grupal fundado sobre uma compreensão crítica face à psicossociologia

e à dinâmica de grupo. Este é o aspecto do movimento que diretamente interessa ao

nosso tema em estudo. Ou seja, nossa aproximação ao Movimento Institucionalista

ocorreu pelas discussões que realiza sobre as práticas grupais e sobre o grupo.

Principalmente, no sentido em que desconstrói as apreensões que universalizam o

grupo e que o desestoricizam em sua concreticidade. Tais apreensões estão

presentes na "dinâmica de grupo" e na "psicossociologia" em sua vertente norte-

americana. Esta observação nos aproxima do Movimento Institucionalista e

Grupalista em sua produção francesa, que, entre outras características, criticou a

dinâmica de grupo e a psicossociologia, como teremos oportunidade de examinar,

através do trabalho de Georges Lapassade , René Lourau e Félix Guattari,

institucionalistas que mantiveram um contato direto com o Brasil128 a partir de 1970.

Na Argentinha, Enrique Pichon Rivière foi uma referência, também vinculado

ao Movimento Institucionalista e Grupalista, responsável diretamente pela criação de

um dispositivo para o trabalho grupal denominado "Grupo Operativo". Tal referência

128 "Já em 1972 o Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – pioneiro na formação de psicólogos voltados para uma abordagem institcuional de questões ligadas ao trabalho, à saúde e à saúde mental – recebia a visita de Georges Lapassade que, ao lado de René Lourau, é considerado o criador da Análise Institucional qualificada de socioanalítica (...) A partir do final dos anos 1980, são os esforços dos departamentos das universidades que promovem, por meio de convites, a vinda dos analistas institucionais ao Brasil e a conseqüente renovação bibliográfica: René Lourau é convidado pelo Mestrado em Psicologia Comunitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1989 e, com regularidade, pelo De partamento e Mestrado em Psicologia Social da UERJ (1993,1994 e 1997). Dessas visitas resultam publicações e intercâmbios extremamente fecundos" (Sônia Altoé, 2004: 8-9;10). Como veremos adiante Félix Guattari também esteve no Brasil durante a década de 80.

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não pode ser desconsiderada neste trabalho justamente pelo fato de Pichon Riviére

ter-se dedicado a uma sistematização mais refinada de sua compreensão sobre o

processo grupal, e também pela difusão de sua escola em território brasileiro129.

Nesse sentido, não podemos oferecer uma explicação factual sobre este

movimento, posto que em seus contornos sociais, teórico-metodológicos e

estratégicos, emergem qualidades que expressam justamente a diferença, a

multiplicidade, a diversidade valorizados como condição para a construção de

práticas sociais mais democráticas, de conteúdo auto-gestionário, ampliando o

exercício do poder entre as pessoas em níveis que desmontem as relações de

dominação existentes, bem como as estruturas (de poder) hieraquizadas que as

legitimam.

Assim, a fidelidade ao Movimento Institucionalista e Grupalista impõe a

necessidade de explicitar as suas expressões diferenciadas, as suas apropriações

singulares, tanto em termos coletivos quanto em termos subjetivos através de alguns

atores exponenciais.

Por outro lado, ao utilizar o termo "movimento" estamos nos referindo à

inserção social de seus atores e a sua articulação coletiva, tanto através da

militância política ou do comprometimento com movimentos sociais específicos,

quanto através de posturas contestadoras assumidas no desempenho de funções

sócio-institucionais no âmbito das organizações sociais existentes.

As perspectivas do movimento também relacionam-se com as manifestações

ou com os acontecimentos descritos como "Maio de 68". Embora reconheçamos

que as "raízes" do Movimento Institucionalista e Grupalista sejam anteriores ao

129 Em 1980 o Instituto Pichon Riviére teve sua fundação na cidade de São Paulo.

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"Maio de 68" há um entrecruzamento entre o Movimento Institucionalista e

Grupalista e estes acontecimentos130.

Esse entrecruzamento, em nossa opinião, potencializou as concepções

teórico-metodológicas e teórico-operativas em relação à autogestão, ao exercício

coletivo do poder, à democratização das relações de poder; e em relação à

possibilidade de convergências de ações preservando a pluralidade das expressões

existentes, sem submetê-las à coesão pela homogeneidade de concepções,

realizando uma convergência pluralista131.

Na França, o período em que o Movimento Institucionalista e Grupalista foi

gestado (no pós-guerra132, florescendo na década de 60) esteve marcado pelas

130 Esta compreensão foi-me sugerida por Heliana de Barros Conde Rodrigues em sua dissertação de mestrado sob o título As subjetvidades em revolta: institucionalismo francês e novas análises (IMS/UERJ, 1993). A autora, psicóloga, professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/RJ, é uma das pesquisadoras brasileiras que se destacam por sua produção no campo do Movimento Institucionalista principalmente pela abordagem histórica que empreende, no sentido de analisar as implicações de seus atores tanto em suas ações instituintes-instituídas, em termos de fundar novos territórios de conhecimento e de prática social, quanto na atenção à singularidade de suas expressões pelos múltiplos atravessamentos que as constituem. 131 Os acontecimentos de Maio de 1968, especialmente na França, foram também identificados à prática anarquista pela presença de grupos ligados às concepções do Anarquismo. Mas, tendo em vista a presença de outras perspectivas teórico-operativas vinculadas a outras concepções diferentes do Anarquismo, é possível inferir que os acontecimentos de Maio foram também inspirados pela perspectiva democrático-pluralista como uma crítica operativa (“em ato”, na ação desenvolvida) das formas organizacionais burocratizadas e enrijecidas, tanto nas práticas da burguesia, quanto nas práticas dos trabalhadores. 132 "As idéias de Mayo, Moreno, Lewin e Rogers começaram a penetrar na França com maior intensidade no imediato pós-guerra. Antes disso, as atenções para a Psicologia Social americana já haviam sido despertadas por Jean Stoetzel. Sua Teoria das Opiniões, publicada em 1943, é considerada a primeira obra francesa de psicologia social 'propriamente dita', entendendo-se a última expressão como legitimação do pardigma positivista de observação e experimentação. A primeira cadeira de Psicologia Social na Sorbonne terá de aguardar o ano de 1956, sendo implantada sob a direção do próprio Stoetzel. Desta época data também a criação do Laboratório de Psicologia Social, sob o impulso de Robert Pagès, igualmente voltado para uma abordagem experimental complementada por rigorosa reflexão epistemológica. Culminando a conquista de domínios acadêmicos assistiremos, em 1964, à criação de um laboratório de Psicologia Social na VI Seção da E.P.H.E., sob a batuta de Serge Moscovici e, em 1966, à da segunda cadeira de Psicologia Social, em Nanterre, confiada à Jean Maisonneueve. Porém o modo de implantação da Psicossociologia na França se caracteriza principalmente pela via das associações. Em meados dos anos 50, sob os impulsos modernizadores do curto período do governo Mendès France, o Comissariado Europeu, como parte do Plano Marshall de reorganização econômica, envia aos EUA algumas missões de intelectuais e jovens patrões a fim de que se familiarizem com as novidades em matéria de gestão em

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denúncias contra os abusos do "stalinismo" na União Soviética, pela recusa à

burocratização133 das organizações sociais, alinhadas politicamente tanto à direita,

quanto à esquerda (especialmente criticada nos sindicatos e nos partidos operários),

pela evocação da noção de instituição enquanto construção humana, as instituições

enquanto práticas que são instituídas pela ação humana instituinte134 colocando

questões ao marxismo e à prática revolucionária desenvolvida em nome do

marxismo. Julgamos ter ilustrado alguns aspectos deste debate no capítulo um,

empresas e formação permanente. Ou seja, com as técnicas de grupo. De volta à França, diferentes equipes de pesquisadores fundam variadas associações de pesquisa, formação e intervenção psicossociológica, dentre as quais podemos destacar a AFAP (Associação Francesa para o Crescimento da Produtividade), a ANDSHA (Associação Nacional para o Desenvolvimento das Ciências Humanas) e, em especial, a ARIP (Association pour Recherche et l' Intervention psychossociologique)" (Rodrigues, 1993:470-471). 133 A burocratização implica na impessoalidade, no desenvolvimento de um tipo de racionalidade técnico-instrumental que independa dos indivíduos envolvidos (ou do julgamento individual flutuante em termos de interesses, gostos e preferências pessoais), ou seja, a burocracia ideal seria a possibilidade das organizações permanecerem e existirem autonomamente através de procedimentos racionalmente implementados capazes de funcionar universalmente (padronização dos procedimentos). O papel dos indivíduos nestas organizações seria o de manter o seu funcionamento perante os padrões determinados. A burocracia, enquanto estratégia organizacional, assemelha-se ao taylorismo implementado no processo produtivo capitalista, o qual entre outras características centraliza o controle sobre a produção nas mãos do gerente, numa tentativa de submeter a força de trabalho às determinações específicas da Gerência (divisão entre planejamento e ação). O taylorismo foi possível pelo parcelamento da atividade produtiva em tarefas repetitivas e quase insignificantes que poderiam ser desenvolvidas sem qualificação específica dos trabalhadores. Tanto a burocracia quanto o taylorismo falharam no desenvolvimento de seus modelos ideais. Isto porque, mesmo com a centralização do planejamento (das informações, do conhecimento técnico mais refinado) pela Gerência, o processo produtivo precisava da criatividade dos trabalhadores para funcionar, sem isto, muitos problemas teriam permanecido sem solução, esperando uma resposta "iluminada" dos gerentes. Mesmo o submetimento hierárquico empreendido não retirou aos trabalhadores a sua capacidade de manter uma certa coesão, um ritmo e uma atmosfera no ambiente de trabalho, a qual precisou ser considerada também pela Gerência. Assim também, nas organizações sociais fortemente burocratizadas, os padrões normatizados continuavam dependendo do comprometimento individual com os mesmos, ainda que fossem uma pesada referência e uma determinação suficientemente eficaz no sentido de restringir a criatividade individual e coletivamente. 134 Existem diferentes apreensões sobre a instituição entre os autores considerados institucionalistas. É comum encontrarmos apropriações que priveligiam o instituinte, no sentido de valorizar a mudança, a transformação. A apropriação que realizamos está muito influenciada pelas concepções sartreanas, as quais nos auxiliaram a compreender a instituição em constante movimento, ou seja, em sua dimensão permanente instituída e instituinte. Mas, isto pode soar como um contrasenso, uma vez que Sartre considerou a instituição como a degradação do grupo, como o retorno à serialização. Contudo, sua compreensão de práxis fez-me perceber que a instituição está em constante construção, seja pela sua constante manutenção, seja por sua possível renovação, seja por sua destruição e transformação. Se uma instituição como a família é ressignificada continuamente, pelas práticas que a produzem e reproduzem, não é possível privilegiar nem o instituído nem o instituinte. Talvez Sartre tenha tomado a instituição pelo estabelecimento ou pela organização concretamente sedimentada, o que também acontece entre os institucionalistas.

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quando abordamos as críticas de Sartre ao marxismo. O Movimento Institucionalista

e Grupalista nasce nesse contexto, se nutre dessas críticas e talvez almeje superá-

las criando caminhos diferentes daqueles trilhados pelos marxistas mais ortodoxos.

Por outro lado, também é importante mencionar, que o acúmulo das

experiências no campo da psicoterapia institucional135 e da pedagogia institucional

foi fundamental na constituição do Movimento Institucionalista e Grupalista.

Em relação à psicoterapia institucional, as referências deste movimento

reportam ao início da década de 40, situando-a nas ações realizadas no contexto da

Segunda Guerra Mundial no âmbito da prática asilar psiquiátrica136.

A denominação “psicoterapia institucional” foi elaborada por Daumezon e

Koechin em 1952, em um artigo publicado nos Anais Portugueses de Psiquiatria,

para designar as ações empreendidas no Hospital Psiquiátrico de St. Alban (Júlio

Vertzman e outros, 1992).

Já a prática de pedagogos e professores inspiradas nas “interrogações

críticas da psicoterapia institucional”137 e desenvolvida nos anos imediatamente

135 A história da psicoterapia institucional também se mistura com o movimento pela desinstitucionalização. Tal movimento refere-se aos questionamentos sobre a instituição psiquátrica (e outras formas asilares) e às ações para organizar formas diferentes de cuidado das pessoas “com algum problema permanente de comportamento desviante ou algumas formas de deficiência ou doença, como no caso das deficiências físicas e mentais, tuberculose, hanseníase e doenças mentais” (Vasconcelos, 2003:116). A esse respeito, Vasconcelos destaca a publicação, durante os anos 60, dos livros: Neurose Institucional (Barton, 1959), Manicômios, Prisões e Conventos (Goffman, 1961), História da Loucura (Foucault, 1961), A Instituição Negada (Basaglia, 1968). 136 “O começo desse movimento confunde-se com a história de um homem. Trata-se de François Tosquelles, um catalão, discípulo de Mira y López, que fugindo do franquismo em 1939 dirigiu-se à França e em janeiro de 1940 foi trabalhar no Hospital Psiquiátrico de Saint-Alban (Lozère, Pirineus franceses), onde permaneceu muitos anos, tendo sido inclusive seu diretor. De imediato, era necessário garantir a sobrevivência dos doentes (entre 600 e 700) durante a Grande Guerra. Tarefa difícil: durante esse período morreram 40.000 doentes mentais na França, de fome. Para isso foi preciso organizar o asilo e os doentes, nem que fosse para que estes saíssem à cata de comida pelos campos” (Vertzman e outros, 1992: 20). “Além disso, Tosquelles vinha de uma experiência na Espanha onde já se refletia sobre a possibilidade de introduzir no espaço institucional a psicanálise, bem como os ‘princípios de uma psiquiatria comunitária que permitissem transformar as relações entre os que prestam assistência e os alienados, no sentido de uma abertura para o mundo da loucura’” (Roudinesco in Vertzman e outros, idem).

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posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial produziu as referências da

pedagogia institucional, circunscritas pela “explosão escolar”, pela convicção quanto

à necessidade de adequar os métodos pedagógicos ao mundo moderno e às

mudanças tecnológicas (Jacques Ardoino e René Lourau, 2003)138.

Contudo, os acontecimentos de “Maio de 1968” potencializaram a

convergência destas produções nas ações desenvolvidas, as quais também

colocaram em “xeque” as formas sócio-institucionais existentes

(organizacionalmente estabelecidas) evidenciando o seu enrijecimento e

reivindicando mudanças imediatas.

Desse modo, julgamos importante apresentar, ainda que

resumidamente, os eventos ocorridos durante o ano de 1968 e, especificamente, os

eventos que marcaram o mês de maio, transformando-o em uma referência

histórica.

Os acontecimentos referentes ao ano de 1968 e posteriormente

relacionados ao “Maio de 1968” manifestaram-se em vários países, em diferentes

continentes139.

137 “Convém lembrar que, ao longo do século XX, aparecem correspondências entre dois ‘campos’ clínicos que se interessam, de modo concorrente, por vezes convergente – um sob o ângulo da curabilidade, outro sob o da educabilidade –, pela evolução da pessoa. Vêem-se emergir, simetricamente, as terapias e as pedagogias ‘de grupo’, ‘centradas sobre o corpo’, ‘institucionais’ etc.” (Ardoino e Lourau, 2003: 8). 138 “No quadro da escola, a preocupação com uma pedagogia cientificamente apoiada no desenvolvimento das ciências humanas se combina com a crescente tomada de consciência das implicações políticas de uma transmissão de saber sempre elitizada e, para tanto, orientada por intermédio de suas opções metodológicas, embora se deseje igualitária e laica. Testemunham-no a experiência alemã do ‘mestre-camarada’, a de uma ‘pedagogia libertária’, o desenvolvimento do movimento das escolas-Freinet ou a elaboração francesa de uma ‘pedagogia progressista’, saída do marxismo” (idem). 139 Alves (1993:22) destaca que "o mais longo ciclo de paz e de prosperidade que a Europa jamais conheceu chegou ao pico em 1968. As cidades já estavam reconstruídas, as fábricas colocavam à venda mercadorias em volumes cada vez maiores e cada vez mais diversificadas, mercadorias que podiam ser compradas pela vasta maioria da população. Do ponto de vista material, a vida nunca fora

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Márcio Moreira Alves (1993:13) descreve o ano de 1968 como o ano das

rupturas, "quando todos os sonhos pareciam possíveis aos jovens e nenhuma

violência era proibida aos poderosos". Para ele, o ano de 1968 iniciou, politicamente,

em 8 de outubro de 1967, com a morte de Ernesto Che Guevara na Bolívia. O apoio

de Fidel Castro ao guerrilheiro argentino forçara uma ruptura com a posição

soviética que considerava inútil as iniciativas guerrilheiras focalizadas na América

Latina, desacreditando o seu potencial ofensivo contra o capitalismo. A Organização

Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), convocada por Fidel Castro, rompeu

com a opinião soviética e a repercussão desta ruptura incentivou as lutas

guerrilheiras em nosso continente, inclusive no Brasil.

O autor descreve alguns eventos ocorridos durante o ano de 1968. Na

América Latina, em especial, no Brasil, ele menciona a ação guerrilheira de grupos

de esquerda que motivaram a vitória da "linha dura", culminando com o Ato

Institucional número 5, de dezembro de 1968140.

No Vietnã, em 30 de janeiro de 1968, os vietcongs iniciaram uma ofensiva no

centro de Saigon (principal centro de operações norte-americano), explicitando o

apoio popular de que dispunham, e incentivando as manifestações contrárias à

guerra, principalmente em solo americano.

melhor". Indica ainda que as rotinas das universidades européias estavam "intactas" desde os anos que antecederam à guerra. O regime das cátedras era extremamente rígido na Alemanha, nas universidades soviéticas e na França, onde as últimas mudanças foram promovidas por Napoleão Bonaparte. Ainda na França, a universidade inchara (como também as demais universidades da Europa Ocidental), passando de 739 mil universitários (1950) para 1,7 milhão (1968). Alves enfatiza o fato dos métodos de recrutamento, nas empresas privadas e no serviço público, valorizarem a formação acadêmica das "grandes escolas", poucas e elitistas, além de estarem separadas do sistema universitário comum. 140 "Em comparação com as ações guerrilheiras de outros países, inclusive as da Itália, Alemanha, Espanha e Inglaterra, as praticadas pelos brasileiros em 68 poderiam ser consideradas modestas: assaltos a bancos, alguns ataques a estabelecimentos militares, o assassinato de um oficial norte-americano. No entanto, elas se transformariam na principal razão da vitória dos oficiais da chamada 'linha dura'" (Alves, 1993:14).

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Em 02 de janeiro de 1968, comemorou-se, discretamente, um século de

Restauração Meiji, no Japão. "Kimpel Shiba, editor do Asai Shimbum, maior jornal

do mundo, avisou sem ser ouvido: 'os primeiros cem anos foram os mais duros'"

(idem:19), sinalizando a recuperação japonesa em relação à derrota sofrida durante

a segunda guerra mundial.

Na Europa do Leste, segundo Alves,

um exótico diplomata brasileiro, Márcio Ramalho, escrevia de Bucareste sobre a possibilidade de mudanças na Hungria e na Romênia, desde que elas fossem iniciadas no interior dos partidos comunistas no poder. A previsão de Ramalho começou a acontecer, para espanto geral, no dia 6 de janeiro de 1968, quando o secretário-geral do Partido Comunista da Tchecoslováquia, Antonin Novotny, stalinista de quatro costados, foi substituído pelo reformador Alexander Dubcek. Começava, em pleno inverno, o jogo de gato e rato entre a linha dura soviética e juventude do mais ocidental país do Leste, jogo que faria florir a Primavera de Praga e terminaria em agosto, sob as lagartas dos tanques do Pacto de Varsóvia (idem:20).

Em 4 de abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado nos EUA, em

Tennesse. "Sua morte foi como um rastilho de pólvora até os bairros pobres das

grandes cidades (...) Antes que a onda passasse, 110 cidades em 29 estados

haviam conhecido os incêndios e as destruições de protesto da maior massa de

marginalizados da afluente sociedade americana" (idem:20).

Todavia, o ano de 1968 ficou conhecido como o ano dos estudantes.

Segundo Alves,

a rebelião na França foi a maior, a mais televisiva, a de maior criatividade, a que mais mexeu com as estruturas de um país. Mas ocorreram rebeliões na Espanha de Franco, na Itália, nas bolorentas universidades de Oxford e Cambridge, na Inglaterra. Até na liberalíssima Suécia, paraíso realizado da social-democracia, onde o Estado proíbe que se seja pobre, o Parlamento foi ocupado pelos jovens. Nos Estados Unidos, onde não existia uma tradição de manifestações políticas dos estudantes – os partidos Democrata e Republicano têm uma estratégia política idêntica, só se diferenciando nas táticas – a polícia interveio em quase todos os estados. A briga na Universidade de Columbia, em Nova York, não ficou devendo, em violência, aos combates no Quartier Latin, de Paris. O cúmulo da violência aconteceu no México, onde o governo estava disposto a tudo para garantir a realização tranqüila das Olimpíadas. Os alunos da Universidade Autônoma, uma das maiores do mundo, foram fazer uma

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manifestação de protesto na praça de Tlatelolco (...) Uma placa de bronze anuncia, com arrogância oficial, que do sangue ali derramado por duas raças, a européia e a indígena, nasceu uma terceira, a raça mexicana. Ao ministro do interior, futuro presidente, um pouco mais de sangue não pareceu ser um preço alto demais para garantir o prestígio mexicano, realçado pela realização dos jogos. Luís Echeverria mandou os tanques barrarem a saída da praça e deu a ordem de fogo. Oficiosamente, o governo reconheceu cinqüenta mortos, embora jamis fornecesse um número oficial. A imprensa e as organizações de direitos humanos calcularam em quatrocentos e quinhentos as vítimas do massacre (idem:21-22).

No Brasil141, as manifestações estudantis142 estiveram relacionadas com a

pressão sobre o Ministério da Educação para aumentar o número de vagas nas

universidades. Houve um aumento de 120% na demanda pelos vestibulares

(número de candidatos às escolas superiores), enquanto as vagas cresceram em

56% no período entre 1964 e 1968(Alves, 1993). Durante o verão de 68, a luta dos

estudantes envolveu o "movimento dos excedentes" que reivindicavam seu lugar na

universidade. Segundo Alves,

'excedente' era o jovem considerado intelectualmente capaz de freqüentar um curso superior, mas que nele não entrava porque as vagas existentes tinham sido preenchidas por colegas com melhor aproveitamento (...) Sobravam e iam

141 Segundo Alves, em nosso país, o ano de 1968 inaugurou os sete anos de vacas gordas relacionados ao "milagre econômico" do regime militar. "Enquanto os estudantes universitários, filhos da classe média, iam para as ruas enfrentar a polícia e alguns entravam nas primeiras ações da guerrilha urbana, seus pais começavam a a ganhar dinheiro como nunca. As ofertas de emprego choviam. O arrocho salarial só existia para os funcionários públicos pouco qualificados e os operários. Começavam os tempos de glória de Sérgio Dourado, com os apartamentos de três quartos em São Conrado, e do padrão global da 'vênus prateada', comandada por Walter Clark. Os executivos tupiniquins eram mais bem pagos que os norte-americanos. Jovens operários, já na segunda geração das indústrias de Osasco, criavam as comissões de fábrica, raiz do novo sindicalismo, e partiam para uma greve de modelo francês, com ocupação dos locais de trabalho eprisão dos patrões. Uns poucos também iriam engrossar as fileiras da guerrilha. Ao longo de quatro anos haviam sofrido a redução do poder de compra dos salários. Esta tinha sido a única política consistentemente mantida no programa antiinflacionário do governo Castelo Branco, encerrado em março de 1967. A parcela dos salários no PIB passou de 55,5% em 1959 para 52% em 1970, apesar da produtividade média na economia ter crescido a uma taxa de 9,1% ao ano. Era natural que os trabalhadores com tradição indutrial reclamassem uma fatia maior do bolo" (Alves, 1993:57). 142 "Os estudantes, é sempre bom lembrar, eram e são oriundos da classe média. O número de estudantes universitários saídos da classe operária é extremamente reduzido e tende a um conformismo político maior. Chegar à universidade é, para os filhos de famílias operárias, uma ascensão social de importância tamanha que não se arriscam a colocá-la em perigo. O número de estudantes universitários nascidos em famílias camponesas é mínimo. Quando muito, há alguns em São Paulo e no Paraná, filhos de lavradores de origem japonesa" (idem:119)

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para o pátio do Ministério da Educação pedir mais vagas e mais verbas. O ministro Tarso Dutra, em vez de procurar resolver esse problema concreto, chamava a polícia. E a polícia não só aparecia, como baixava o pau.

Após a morte do estudante Edson Luís Lima Souto, numa manifestação pela

manutenção do restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, houve uma adesão do

movimento estudantil à luta pela democracia (com muitas manifestações pelo país),

contra a ditadura militar, culminando na marcha dos Cem Mil em 26 de junho de

1968, no Rio de Janeiro.

De acordo com Alves, o "Maio de 68" na França "começou" pela

reivindicação dos estudantes de Nanterre, no dia 22 de março, por melhores

condições de ensino. A manifestação ocupou alguns prédios e o reitor da

universidade de Naterre solicitou a repressão policial. Houve luta, prisão de

estudantes e muitos foram feridos. Sob a liderança de Cohn Bendit143 alguns

grupúsculos de esquerda (entre estes, a Juventude Comunista Revolucionária, o

Comitê de Ligação dos Estudantes Revolucionários, a Federação dos Estudantes

Revolucionários, a União dos Comunistas Marxistas-Leninistas, a Guarda Vermelha,

o grupo Servir o Povo) foram reunidos no que foi denominado Movimento 22 de

Março. O movimento também recebeu a adesão espontânea de estudantes oriundos

de outras universidades.

Na Primavera, durante o mês de maio, os estudantes voltaram às ruas

sofrendo nova repressão. A Sorbonne foi fechada pelo Ministério da Educação e foi

143 Cohn Bendit é alemão e também judeu, e foi influenciado, segundo Alves, por outro alemão, "Rudi, o vermelho" (Rudi Dutschke, estudante na Universidade Livre de Berlim), que inspirando-se em Hebert Marcuse, contestou a aliança governamental alemã, que deixou o país sem oposição, declarando que dali em diante só existiria uma oposição: a dos estudantes. "Achava que as universidades eram fábricas de idiotas especializados. Propunha uma política de autogestão, tanto para as universidades como para os centros de trabalho, a abolição de toda e qualquer hierarquia, e a discussão permanente e contraditória de todos os problemas da sociedade. Propunha, ainda, adotar a provocação como forma de educação política" (Alves, 1993:23).

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ocupada pelos estudantes que a declararam "território livre da repressão"144. "O

Quartier Latin cobriu-se de bandeiras vermelhas, do comunismo, e negras, do

anarquismo. Os grafitos fizeram das paredes as vitrines dos sonhos: 'Corre, o velho

mundo está atrás de ti'; 'Seja realista: peça o impossível'; 'Faça amor, não faça a

guerra'; 'É proíbido proibir'" (Alves, 1993:24). Houve ocupação dos centros culturais.

O Teatro do Odeon foi transformado em centro de assembléias permanentes pelo

despejo de seu locatário, que também aderiu ao movimento.

Em 10 de maio houve batalhas campais entre os estudantes e a polícia militar

nas ruas vizinhas à universidade. O saldo: 367 feridos e 468 estudantes presos, 1

morte por afogamento no Rio Sena de um homem que fugia da polícia.

Houve também uma aproximação entre estudantes e operários. A Central

Geral dos Trabalhadores (liderada pelo Partido Comunista, com 10 milhões de

filiados) realizou, no dia 11 de maio, uma greve geral, que prolongou-se durante o

mês de maio, agregando novas adesões (até 18 de maio eram 50 as fábricas

ocupadas). "O aerporto estava em greve, as rádios, tevês e jornais também. Depois

vieram os táxis, o metrô, os correios, o telefone, até as padarias. Quatro dias mais

tarde, com 8 milhões de trabalhadores em greve, as três centrais sindicais

propuseram negociações imediatas com o governo" (idem: 25).

O General De Gaulle, após conseguir o apoio das tropas francesas

aquarteladas na Alemanha e de centenas de milhares de cidadãos franceses (idem)

propôs um aumento de 35% aos trabalhadores em greve (num país cujo índice

anual de inflação estava entre 5% e 7%). As greves começaram a acabar em

Primeiro de Junho.

144 Muitos intelectuais aderiram às manifestações dos estudantes. Entre eles, Sartre e Simone de Beauvoir que inclusive foram à Sorbonne para entrevistar as lideranças das várias facções do movimento: Serge July (Esquerda Proletária), Jacques Sauvageot (União Nacional dos Estudantes Franceses), Alain Geismar (maoísta) e Cohn Bendit.

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No dia 18 de junho a Sorbonne foi retomada pela polícia. De Gaulle venceu

espetacularmente os partidos de esquerda e em outubro, a Assembléia Nacional

Francesa aprovou, unanimimente, uma "profunda reforma educacional, negociada

com os partidos Comunista e Socialista" (idem:26).

Por outro lado, Rodrigues descreve o "Maio de 1968" na França como

nome-monumento condensador de séries, que uma superficial cronologia situa entre o 22 de março e o final de junho de 68 – momento em que uma Paris 'completamente limpa' é 'devolvida aos turistas'. O maio: algo muito além da França, caro a todos os mundos, sob uma infinidade de causas e bandeiras. O maio: incerteza a ser reduzida, monumento a ser tornado documento por uma tradição à qual ele incomoda, desafia ou repugna (1993:757).

A autora apresenta uma abordagem que privilegia o efeito maio face às

causas do maio, renunciando às perspectivas que buscam uma explicação ou um

vetor analítico explicativo para os acontecimentos de maio de 68. Segundo ela,

o que chamamos efeito maio aponta à possibilidade de se deixar afetar pelos acontecimentos, de fazer-se permeável à sua violenta heterogênese. Quando lidos de trás para a frente, todos os pequenos relatos, toda a furiosa acontecimentalização do período que ora discutimos pode ser apreendida como uma imensa construção-contigenciadora do maio. A delimitação do período não seria tal qual é, porém, sem ele, sem a ruptura que empreende quanto ao que até então constituía verdade/prática/ética. Daí serem risíveis, se não fossem tão mortíferas, as tentativas de para o maio encontrar o livro, o paradigma ou a ideologia (idem: 763).

Nesse sentido, ao abandonar "o" livro, "o" paradigma e "a" ideologia,

Rodrigues também adota a perspectiva de alguns atores do Movimento

Institucionalista e Grupalista. Concorda com o referencial analítico de René Lourau

sobre os acontecimentos de maio de 68, destacando as diversas características

percebidas pelo autor em relação ao estilo e ao modo de ação do 22 de Março:

1) o movimento não possui uma história que se 'realizaria' em 1968; é, ao contrário, criado pela ação, como denúncia das vanguardas auto-proclamadas; 2) é o único dos grupúsculos de 1968 que se auto-dissolve em 1968, depois de haver 'fusionado' inúmeras militâncias tradicionais (UNEF, trotskistas, marxistas

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de oposição, anarquistas, anarco-situs, etc...); 3) funciona praticando auto-análise permanente, em ato, ao invés de se propor como 'origem-e-fim' por intermédio dos conhecidos dispositivos das afiliações, reuniões regulares, contribuições financeiras; 4) não pretende substituir o titular do poder por um partido revolucionário, mas criar focos múltiplos de poder, privando assim o presumido centro de sua unificação dominadora; 5) funciona através de 'ações exemplares', isto é, atos que transformam as relações de poder no interior de casos concretos e pontos precisos, sendo percebidos como mudanças irreversíveis; 6) altera o significado do termo 'revolução', tornando finalidade aquilo que no sentido ortodoxo constituía meio: fusão de grupos, multiplicação dos encontros, instituição de assembléias pelo e dentro do exercício de resistência ao poder, em locais tão inusitados como a rua; 7) pretende que as lutas tenham caráter transversal, atingindo setores não apenas estudantis como pertencentes ao mundo do trabalho, especialmente operário; 8) não possui, em contraste com as organizações revolucionárias tradicionais, programa, planificação ou projeto a médio e longo prazos, restringindo-se à análise e intervenção em um presente de curta duração; 9) acata a coordenação entre espaços de ação, mas não considera que uma organização unificada seja imprescindível antes que a própria situação o exija (Rodrigues, 1993:775-776).

Recorre às abordagens de Deleuze e Guattari (Anti-Édipo, 1972) que também

recusam atribuir ao Maio de 1968 um sentido único, ou mesmo uma interpretação

histórica convencional, adjetivando-o como bem-sucedido ou fracassado.

Quando se diz que as revoluções têm um mau futuro, ainda nada se disse sobre o devir revolucionário das pessoas. Se os nômades nos interessaram tanto foi porque eles são um devir e não fazem parte da história: eles estão excluídos dela, mas se metamorfoseiam para reaparecer em qualquer lugar sob formas inesperadas nas linhas de fuga do campo social (...) Maio de 68 foi um devir fazendo irrupção na história, e é por isso que a história o compreendeu tão mal, e a sociedade histórica tão mal o assimilou (Deleuze e Guattari in Rodrigues, 1993:790).

Ao recorrer à Foucault, Rodrigues destaca sua compreensão acerca do maio

de 1968, como um diagnóstico em ato,

este diagnóstico se exerce através da invenção de novas formas discursivas – slogans, graffittis, poesias, mistura de estilos –, políticas – comitês de ação, ocupações, festas, ações exemplares – e subjetivantes – somos todos 'outros', todos 'grupelhos'. Não se tem por objetivo Bastilha ou Palácio de Inverno, telos estatal ou moral. Mas se está efetivamente disposto à revolta em face de situações bastante concretas: puritanismo hipócrita, regulamentos tecnocráticos, burocracias partidárias e sindicais, verdades intocáveis, nacionalismos xenófobos, cientificismos invalidantes, pedagogias elitistas, individualismos tirânicos, intimidades solitárias, vanguardismos silenciadores, racionalidades enclausurantes etc. A partir desta revolução ontológica – ser

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outro, praticar o múltiplo devir minoritário –, desta singular política da revolta, Foucault passa a ficcionar outras políticas, que tampouco existem ainda. Pois lhe parecem – como a nós – estar se encerrando os tempos da 'liberação' e começando os da 'liberdade' (idem:791-792).

O entrecruzamento (ou as relações) entre o Movimento Institucionalista e

Grupalista e os acontecimentos de Maio de 1968 indicam que os atores do

movimento ousaram enunciar novas abordagens, ousaram construir novas

referências que se diferenciaram das referências tradicionais, fossem elas de

esquerda ou de direita, diante das manifestações coletivas expressas. Ou seja, os

atores do Movimento Institucionalista e Grupalista foram capazes de elaborar novos

significados diante de modos de manifestação diferenciados e que a esquerda ou a

direita tradicionais recusaram e "reprimiram" cada qual a sua maneira145.

Nesse sentido, o Movimento Institucionalista e Grupalista foi uma referência

importante para nomear e significar os próprios acontecimentos de Maio de 1968. Ao

mesmo tempo, os acontecimentos de Maio de 1968 "explodiram" ou "radicalizaram"

as abordagens teóricas que estavam sendo gestadas na crítica à psicossociologia, à

psicoterapia institucional, à psicanálise, à pedagogia institucional, e propiciaram a

construção de novas formas interventivas junto aos grupos, aos estabelecimentos e

aos movimentos sociais, como a Análise Institucional.

145 Uma vez que o Movimento 22 de Março enunciou-se de formas diferentes, se comparadas com a formas de mobilização sindical e político-partidária já organizadas e vigentes à época, ele "fugiu ao controle" dos organismos de esquerda, inclusive por trazer questões que ultrapassavam as reivindicações econômico-salariais, como por exemplo, a radicalidade com que a autogestão é anunciada tornando-se uma referência orientadora das ações empreendidas e também por não convergir para um "foco" específico, uma causa, ou um projeto, ou uma luta, ocupando-se de revolucionar a própria ação, o próprio "estar junto" coletivamente. Nesse sentido, o 22 de Março foi considerado um fracasso pelos organismos de esquerda, como o PCF (Rodrigues, 1993). Para as organizações de direita, o movimento deveria ser reprimido, De Gaulle considerou as manifestações como bagunça, utilizando o seguinte slogan "Reformas, sim, bagunça, não" ("Reformes, oui, la chienlit, non") (Alves, 1993).

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Em resumo, o Movimento Institucionalista e Grupalista expressou, nos anos

60, um descrédito nas instituições burguesas, uma exigência de democratização nas

instituições e de compartilhamento de poder (autogestão)146. Expressou também o

desalento ou a desilução com a experiência do socialismo na URSS, com a

centralização burocrática dos sindicatos e mesmo dos partidos políticos operários.

Denunciou as variadas dimensões do poder e da dominação, mostrando sua

capilaridade tanto no campo sócio-cultural das sociedades burguesas quanto nas

sociedades socialistas.

O fruto desse movimento expressou-se numa série de apropriações teóricas

que buscaram dizer a realidade sob uma nova forma, problematizando a própria

construção do saber enquanto instrumento de dominação147. O novo conhecimento

aparece de forma humanizada, comprometida com uma fala humanizante, próxima

do diálogo com a experiência cotidiana pessoal complexificada pelo contato com

sentimentos, emoções, desejos. Essa dimensão inovadora não prescindiu do diálogo

com a produção teórica (psicanálise, psicologia, psiquiatria, sociologia,

psicossociologia, pedagogia, filosofia, teoria social marxista etc.) e com as práticas

político-culturais herdadas (Revolução Francesa, “Revoluções de 1848 ou a

Primavera dos Povos”, Comuna de Paris, experiências de autogestão pelos

trabalhadores em algumas fábricas na Europa, enunciação da autogestão na

Iuguslávia, os acontecimentos de “Maio de 1968”, entre outros) sendo importante

146 "Tanto Lourau quanto Guattari falam em movimento de autogestão compreendendo-se o termo como democracia direta e prática permanente da crítica e da análise" (Rodrigues, 1993:776). 147 Há no Movimento Institucionalista e Grupalista uma participção expressiva de profissionais que questionam as próprias referências teórico-políticas com as quais trabalham. Professores de ensino superior, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, pedagogos, assistentes sociais, médicos, sociólogos, psicossociólogos entre outros, que enunciam a necessidade de uma nova relação com a produção do conhecimento, desvelando suas implicações na manutenção da subalternidade dos "clientes" ou dos "alunos" aos professores e aos técnicos de nível superior. Assim, o lugar da produção do conhecimento, a academia, é exposto enquanto um espaço de reprodução das relações de dominação existentes.

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observar que a riqueza dessa inovação foi assentada sobre essa herança.

Pensamos que houve um investimento na desmonopolização do saber, remetendo-o

às suas dimensões de construção coletiva (pelos múltiplos atravessamentos que

constituem aquele que escreve e pensa a realidade, pelo desvelamento de sua

inserção institucional, social, econômico, cultural) e de compartilhamento de poder.

3.1.1 – Considerações gerais quanto às perspectivas teórico-políticas do

Movimento Institucionalista e Grupalista

O Movimento Institucionalista e Grupalista radicaliza a perspectiva

revolucionária ao aprofundar-se nas variadas expressões da dominação (ou das

relações de poder) existentes nas sociedades humanas e ao sugerir

metodologicamente a necessidade de analisar os atravessamentos presentes (as

implicações dos atores, suas práticas instituintes) como estratégia para recriar as

práticas sociais e nesse sentido, reinventar as organizações sociais. Mas, se as

práticas revolucionárias são compreendidas como o poder instituinte de criar novas

práticas sociais cientes das relações de poder que instituem e orientadas ético-

politicamente para uma produção coletiva que possa construir-se sem a

subalternidade e sem a dominação, nem sempre estas práticas remetem à

necessidade de recriar as bases materiais sobre as quais produzimos a nossa

sobrevivência. Ou seja, predomina uma certa valorização da esfera política, como

por exemplo, da ação militante sobre a ampliação dos direitos humanos e sociais,

das conquistas mais cotidianas no campo micropolítico e das relações interpessoais

(uma inovação no sentido de tornar público o caráter de subalternidade e de

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dominação que caracterizam o que se convencionou denominar de "esfera privada"

ou "mundo privado") e dos investimentos em transformar as organizações sociais

marcadas pela burocratização, influenciando no sentido de construir processos

autogestionários ou de contribuir para um reordenamento das relações de poder

hierarquizadas. Tais perspectivas, embora agridam a ordem social burguesa, não

são incompatíveis com a mesma.

Desenvolvendo melhor o argumento acima, observamos que de certo modo, e

não obstante o caráter revolucionário das práticas sociais instituídas pelo Movimento

Institucionalista e Grupalista, posto que rompem com práticas ossificadas,

enrijecidas, desumanizadas etc., há uma certa compatibilidade entre as criações

empreendidas e as necessidades de reorganização do processo produtivo sob a

hegemonia burguesa nas sociedades capitalistas contemporâneas.

A crise do capitalismo148 a partir da década de 60, estendida pelos anos

seguintes, vividos como anos recessivos e de baixa expansão produtiva, forçaram

um redirecionamento do processo produtivo numa reestruturação produtiva que

dirigi-se à um modo de acumulação agora caraterizado como flexível149.

148 As crises do capitalismo foram compreendidas por Marx como endógenas ao mesmo, ou seja, a expansão do capital é autolimitada e periodicamente (se não é possível expandir fisicamente para novos territórios) a redução na taxa de lucro (e no acúmulo de capital) cria a necessidade de novos investimentos tecnológicos e de uma reordenação produtiva que favorece aqueles que saem na frente ao mesmo tempo que permite a falência daqueles que não investiram a tempo. 149 Alguns autores marxistas, como István Mészáros (2002), indicam a proximidade da "falência" do modo de produção/acumulação capitalista uma vez que a reprodução do capital está limitada diante da impossibilidade de expansão territorial, o que nos séculos passados, propiciou uma ascensão no enriquecimento da burguesia pela elevação da produtividade em praticamente todos os níveis de produção existentes: na agricultura, na indústria, no setor de serviços, e nos novos ramos, como a eletrônica, a informática e a "indústria" da comunicação (telefonia, internet etc.). Contudo, atualmente, a tendência é a inovação contínua sem a necessária produção em massa, mas ao contrário, concentrando-se na divulgação para mercados específicos, acentuando a necessidade de renovação constante, ou seja, incentivando o desperdício.

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Em termos da organização material da produção o taylorismo, aliado às

inovações feitas por Henry Ford (na indústria automobilística)150 e que se

estenderam a outras organizações sociais, tem sido progressivamente substituído

pelo toyotismo, um modo de organização da produção criado no Japão, nas 150 “A data básica é 1913, quando Henry Ford, à frente de uma empresa que leva seu nome, formada dez anos antes, cria aquilo que se denominou fordismo. É uma nova organização na produção e no trabalho, destinada a fabricar seu veículo, o modelo T, por um preço relativamente baixo, de forma que fosse comprado em massa. Mas para fazê-lo, Ford choca-se com o antigo regime de trabalho. Nele, eram operários extremamente especializados, grandes mecânicos, que fabricavam artesanalmente os veículos quase de A a Z. No conjunto das operações que um trabalhador efetuava, uma tomava um tempo enorme: procurar a peça certa para colocar no lugar certo, e modificá-la, adaptá-la ao seu uso no automóvel. Como um carro tem dezenas de milhares de peças, pode-se compreender que a produção era lenta e, conseqüentemente, o veículo custava caro. Ford muda isso tudo. Aplica os métodos do taylorismo (ou 'organização científica do trabalho') à indústria automobilística para atender a um potencial consumo de massas. Ele é filho de um sitiante e quer fornecer aos agricultores norte-americanos um meio de transporte pessoal, sem complicações excessivas, destinado a romper seu isolamento e, sobretudo, acessível ao seu bolso.” (Gounet, 1999:18). “Porém, Ford enfrenta um grave problema: podendo escolher, os operários preferem o método antigo, que constrange menos e valoriza mais, mantendo pelo menos sua qualificação. Henry Ford não encontra os trabalhadores necessários à sua produção em massa. Propõe então um salário de 5 dólares por uma jornada de oito horas de trabalho. Antes, e entre os concorrentes, o salário é de 2,5 dólares. Dobrando a remuneração, Ford pensa atrair os operários que lhe faltam. O que ele não diz é que, para receber seus 5 dólares, o trabalhador deve dar provas de boa conduta, ou seja: não ser uma mulher, não beber, destinar seu dinheiro à família... A empresa cria um serviço social para controlar a situação nas casas dos benficiários do prêmio Ford e, nos primeiros anos, ele recusará os 5 dólares a 28% do pessoal. Graças à nova organização da produção e ao afluxo de operários, atraídos pela diária de 5 dólares, Ford conquista o mercado norte-americano e, em seguida, mundial. Apesar do aumento dos custos salariais, ele consegue baixar o preço dos veículos, seu objetivo para alcançar o consumo de massas. Aquilo que perde na produção de um veículo, recupera na massa de carros vendidos. Em 1921, pouco mais da metade dos automóveis do mundo (53%) vem das fábricas Ford. O capital da empresa, que era de 2 milhôes de dólares em 1907, passa a 250 milhões em 1919 graças aos lucros incessantes. Frente a essa máquina de guerra econômica, os concorrentes não têm escolha: ou se refugiam em um nicho, uma trincheira onde a produção artesanal ainda seja rentável, como os setores de carros de luxo ou esporte, ou então desaparecem. Efetivamente, a mortalidade de empresas automobilísticas é altíssima. Nos Estados Unidos, o número de fabricantes cai de 108 em 1923 para 12 em 1941. Os sobreviventes introduzem os novos métodos de produção e pagam 5 dólares a seus operários. Em seguida, o sistema emigra para outras regiões do mundo. Ford implanta filiais: no Canadá, em 1903, em Manchester, 1911, em Dagenham, 1928, em Colônia, 1931. A General Motors, que em 1923 suplanta a Ford como primeira empresa automobilística do mundo, compra, em 1925, a Vauxall inglesa e, em 1929, a Opel alemã. Nessas unidades, o fordismo se estende. O número de fabricantes diminui enormemente: na Grã-Bretanha, há 89 em 1922, mas apenas 22 em 1930; na Alemanha, 51 em 1927 e somente 13 em 1936. Em numerosos países, especialmente a Bélgica, a indústria automobilística nacional desaparece entre 1920 e 1945. Depois da Segunda Guerra Mundial, o fenômeno prossegue. No quadro do Plano Marshall pela reconstrução da Europa ocidental com capitais americanos, numerosas missões de estudo européias analisam o sistema norte-americano de produção, ou seja, o fordismo. Este torna-se referência obrigatória da indústria automobilística. Em 1970, apenas algumas empresas permanecem no front da fabricação mais ou menos completa de automóveis: quatro nos Estado Unidos (General Motors, Ford, Chrysler e AMC), dez no Japão (Toyota, Nissan, Mazda, Mitsubishi Motors, Honda, Isuzu, Suzuki, Daihatsu, Fuji, Heavy-Subaru), seis na Europa que realizam o ciclo completo (Volkswagen, Fiat, Peugeot, Citroen, British Leyland) e algumas especializadas em veículos de padrão mais elevado (Mercedes, Volvo, BMW, Alfa Romeo, Saab-Scania). Todas empregam mais ou menos os métodos fordistas, cada vez mais contestados a partir do final dos anos 60” (idem: 20-21).

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empresas automobilísticas do grupo Toyota. Segundo Thomas Gounet “o sistema

fordista está sendo progressivamente substituído por um outro, o toyotismo. Este

permite maior exploração dos trabalhadores, por três meios principais: intensifica o

trabalho; reduz salários e degrada a proteção social nas fábricas, apoiando-se na

terceirização; divide completamente os trabalhadores (1999:8-9).

De acordo com o autor, no toyotismo, estratégia motivada pela necessidade

de recuperação do Japão após a Segunda Guerra Mundial e de competição com as

empresas automobilísticas norte-americanas, a produção é motivada pela demanda

e o crescimento, pelo fluxo. Caracteriza-se, ainda, pelo combate ao desperdício,

inclusive ao desperdício do espaço físico, sendo a estocagem permitida apenas

como a reserva tolerada para o fluxo da cadeia produtiva. Segundo Gounet, "a

flexibilidade do aparato produtivo e sua adaptação às flutuações da produção

acarretam a flexibilização da organização do trabalho" e as "operações essenciais

do operário passam a ser, por um lado, deixar as máquinas funcionarem e, por

outro, preparar os elementos necessários a esse funcionamento de maneira a

reduzir ao máximo o tempo de não-produção" (idem:27)151. Ainda, uma mesma linha

de montagem deve ser capaz de produzir modelos diferentes, o que na produção em

massa fordista não era viável, uma vez que as máquinas eram destinadas a um

modelo por vez. As empresas da Toyota resolveram o problema, antecipando as

operações de mudança (diariamente), o que permitiu diminuir o tempo de 4 horas

para 3 minutos quando da necessidade de iniciar a produção de um modelo

diferente do anterior. 151 "Na Toyota, desde 1955 um trabalhador opera em média cinco máquinas. Enquanto quatro delas funcionam automaticamente, ele carrega, descarrega, prepara a quinta. Se há duas máquinas para operar ao mesmo tempo, ele chama um coleta. Isso tem duas conseqüências imediatas: o trabalho não é mais individualizado e racionalizado conforme o taylorismo; é uma trabalho de equipe; a relação homem-máquina torna-se a de uma equipe de operários frente a um sistema automatizado; em segundo lugar, o trabalhador deve tornar-se polivalente para operar várias máquinas diferentes em seu trabalho cotidinao, mas também para poder ajudar o colega quando preciso" (idem:27).

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A flexibilidade no processo produtivo toyotista também envolve o emprego de

fornecedores autônomos em relação às empresas através da subcontratação

(geralmente as subcontradas oferecem contratos de trabalho precários para os seus

empregados, na subcontratadas da Toyota os custos salariais são mais baixos; em

outros países as obrigações trabalhistas podem ser diferentes, regidas por contratos

flexíveis, ou são negligenciadas, à exemplo do que acontece no Brasil nas empresas

que foram terceirizadas). De acordo com Gounet, "a Toyota impõe aos fornecedores

seu sistema de produção: máxima flexibilidade, obrigação de instalar-se em um raio

de 20 km de suas fábricas, pra reduzir o transporte, emprego do Kanban152 dentro

da fábrica de autopeças e entre esta e a Toyota" (idem:28).

O toyotismo pode ainda ser caracterizado pelos cinco zeros: zero atrasos (um

cliente não deve esperar para adquirir um carro), zero estoques, zero defeitos

(controle de qualidade durante o processo), zero panes, zero papéis (kanban).

Este modo de acumulação flexível também implica na exigência de um perfil

de trabalhador flexível, ou seja, o emprego da força de trabalho é potencializado ao

máximo e numericamente reduzido, usando-se de cautela na contratação de novos

trabalhadores. Segundo Gounet, a política básica é "o mínimo de operários e o

máximo de horas extras" (idem:30). Com o ritmo de trabalho intensificado (produção

sob stress) e com a extensão da carga horária, os operários empregados são

explorados duplamente pela mais-valia relativa e absoluta, sendo que a sua

integração à empresa é constantemente incentivada pela exigência do trabalho em

152 "É uma espécie de placa que indica muitas coisas, porém a mais importante é a peça ou elemento ao qual está ligada. Assim, quando a equipe precisa de um painel para o carro que está montando, pega um painel na reserva. Nessemomento, retira o kanban da peça empregada. Este volta ao departamento que fabrica painéis. Essa unidade sabe então que precisa reconstituir o estoque esgotado. Portanto, o kanban serve antes de mais nada como senha de comando. Mas na organização flexível da produção, puxada pela demanda, é um método rápido, fácil e essencial" (idem).

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equipe o que implica numa atmosfera de trabalho cordial e até certo ponto,

democrática, entre os operários e destes em relação à empresa.

Segundo Antunes,

opondo-se ao contra-poder que emergia das lutas sociais, o capital iniciou um processo de reorganização das suas formas de dominação societal, não só procurando reorganizar em termos capitalistas o processo produtivo, mas procurando gestar um projeto de recuperação da hegemonia nas mais diversas esferas da sociabilidade. Fez isso, por exemplo, no plano ideológico, por meio do culto de um subjetivismo e de um ideário fragmentador que faz apologia ao individualismo exacerbado contra as formas de solidariedade e de atuação coletiva e social (2000:48).

Em resumo, o modelo de acumulação flexível (adaptado às condições

recessivas do atual desenvolvimento capitalista) intensifica a exploração do capital

sobre o trabalhador na medida em que intensifica os ritmos de trabalho ampliando

os índices de mais-valia, tanto relativa, quanto absoluta. A redução do número de

trabalhadores, pelos altos índices de produtividade alcançados, amplia as taxas de

desemprego e funciona como uma pressão constante que dificulta a mobilização e a

organização dos trabalhadores em torno de reivindicações coletivas, assim como a

fragmentação da classe trabalhadora dividida entre trabalhadores bem remunerados

(assalariados) com acesso aos direitos trabalhistas, trabalhadores com contratos

precários, temporários, com baixos salários e em algumas situações sem direitos

trabalhistas, trabalhadores que aguardam uma nova vaga no mercado flexível e

trabalhadores que vivem na informalidade, entre outros, acabam reforçando as

posturas individualistas e a busca de respostas individuais para problemas que

afetam o conjunto dos trabalhadores e a grande maioria da população.

Então, se conforme acredita Antunes, a burguesia investe em formas

de sociabilidade que reforçam o subjetivismo e o individualismo exacerbado, a

inserção dos trabalhadores na economia flexível também contribui em larga escala

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para as posturas individualistas na classe trabalhadora. Contudo, a ênfase no

trabalho em equipe e a necessidade de desburocratizar as organizações para que

estas possam ser flexíveis implica no desenvolvimento de habilidades interpessoais

que entre outras, indicam a necessidade de construções compartilhadas e mais

próximas do estilo democrático153.

Os estudos da psicossociologia industrial (inicialmente relacionados à

Escola de Relações Humanas através das pesquisas de Elton Mayo realizadas na

década de 20), bem como os primeiros experimentos (laboratórios) na perspectiva

das teorias sobre dinâmica de grupo (desenvolvidas a partir da década de 30),

parecem antecipar algumas abordagens que seriam incorporadas pelas

organizações empresariais a partir dos anos 70, tanto nos EUA como na Europa154,

principalmente diante da competição e da concorrência com a indústria japonesa em

expansão.

Apesar do Movimento Institucionalista e Grupalista gestar uma série de

críticas à psicossociologia industrial e à psicossociologia aplicada ao estudo dos

grupos humanos e ao desenvolvimento de instrumentos para o trabalho em grupos

dentro das organizações sociais, há uma convergência deste movimento que indica

a comunicação do mesmo com a crise que se instaura no modo de produção

capitalista.

É necessário observar que o próprio movimento operário e sindical

153 O estilo democrático contrapõem-se ao estilo autocrático. Trata-se de uma relativa abertura à participação coletiva, com possibilidades de construção grupal a partir do incentivo ao exercício da palavra pela instauração de uma atmosfera mais cordial e acolhedora às contribuições de todos os envolvidos. Utilizamos a expressão estilo democrático para diferenciá-la da democracia, que em termos sociais e políticos é uma construção que depende da luta pela eqüidade social ou do acesso real à riqueza socialmente produzida. 154 Atualmente é comum encontrarmos nos livros sobre Administração de Recursos Humanos referências à Kurt Lewin e à dinâmica de grupo como instrumentos para o desenvolvimento de atividades em equipes.

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manifestou-se criticamente em relação ao modelo taylorista e fordista155 de

organização do processo produtivo. A redução do trabalhador à “apêndice” da

máquina foi alvo de questionamentos e de tensão permanente156. A caricatura de

Charles Chaplin em Tempos Modernos ficou conhecida, assim como a crítica ao

homem-operário-máquina também foi popularizada. Simultaneamente, o funcionário

público, também foi caricaturado como “carimbador”, um número entre outros

números envolvidos na burocracia organizacional.

Desse modo, quando a crise desenvolve-se comprometendo os ganhos

auferidos pela burguesia no processo de acumulação de capital levando muitas

empresas à falência, parece que a própria burguesia “rende-se” às críticas sobre o

processo produtivo e retro-alimenta-se, inclusive, das soluções apontadas pelo

próprio movimento social, direcionado a construção de rupturas com as formas de

dominação instituídas.

Assim, a perspectiva de flexibilização das organizações empresariais

japonesas – construídas na singularidade do país diante de sua derrota na Segunda

Guerra Mundial no intuito de enfrentar um desenvolvimento econômico recessivo,

face ao sucesso alcançado na produção industrial, tanto automobilística, quando

eletrônica e microeletrônica – torna-se a referência para os EUA e para a Europa. O

auge do sucesso japonês ocorreu durante as décadas de 80 e 90 com a

comercialização internacional dos produtos japoneses ameaçando as indústrias

nacionais americanas e européias pela qualidade dos mesmos aliada à redução do

preço.

155 O texto de Antonio Gramsci "Americanismo e Fordismo" é uma referência histórica importante na produção marxista quanto à crítica aos métodos taylorista-fordista de organização do trabalho. 156 Por exemplo, C. Dejours em seu livro A loucura do trabalho descreve a produção de "sexta-feira" nas fábricas da FIAT italiana como o ápice do stress entre os trabalhadores, a ponto dos operários, quando diante de um carro com problemas, comentarem "este foi produzido na sexta-feira".

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Observamos que há uma comunicação entre as perspectivas do

Movimento Institucionalista e Grupalista e essa tendência à desburocratização e à

busca do envolvimento dos trabalhadores no processo produtivo que passa a

orientar os processos de “reestruturação produtiva” e de “reorganização empresarial”

no Ocidente.

Esta longa apreciação (face ao objetivo desta seção) foi realizada no

intuito de observarmos a relação entre as exigências de flexibilização no processo

de produção capitalista e as implicações do Movimento Institucionallista e Grupalista

a elas relacionadas157. As apropriações e as capturas da burguesia em relação às

produções deste movimento são elementos que apontam para a totalidade (sempre

inacabada) do processo social. Reduzir o Movimento Institucionalista e Grupalista à

perspectiva econômico-material seria um equívoco, posto que nesse Movimento, se

expressam conteúdos críticos que fazem avançar a luta dos trabalhadores.

Compreender o movimento de crítica e de captura é importante, no sentido de

apreendermos as rupturas realizadas, bem como as apropriações formais que

engessam as possibilidades de ruptura colocando-as a serviço da burguesia pela

redução dos conteúdos críticos ao aparato técnico-instrumental a-histórico e a-

político.

Desse modo, as perspectivas teórico-políticas presentes no Movimento

Institucionalista e Grupalista são diferentes, de acordo com a possível radicalidade

que mantêm no horizonte de ruptura com as formas de dominação instituídas. O

diferencial apresenta-se na possibilidade de apreensão constante deste processo e 157 "Fui eu mesmo quem, por descuido, lançou o termo 'análise institucional', assim como 'analisador,' 'transversalidade', etc., que tornaram-se o filé mignon de muitos professores universitários, psiquiatras e psicossociólogos. Eles recuperaram tudo isso rapidamente, traduzindo-o em termos de intervenção psicossociológica: há grupos de Análise Institucional que se fazem contratar pelas grandes empresas para realizar algo equivalente a uma japoneização da classe operária. Assim, isso acabou remetendo a doutrinas de intervenção, a especialistas, a corpos institucionais especializados" (Guattari, 1996:228). Essa citação também foi encontrada no texto de Cecília Coimbra (1995).

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pela afirmação crítica que o movimento sustenta quando suas construções teórico-

metodológicas são reconhecidas como capazes de motivar processos de mudança.

A tensão entre a radicalidade de suas proposições e sua captura pelos

interesses dominantes é reconhecida pelo Movimento Institucionalista e Grupalista

(como teremos oportunidade de observar adiante). No entanto, a forma como tem

sido abordada apresenta a relação deste movimento com o seu processo instituinte.

Ou seja, refere-se à institucionalização do movimento como um processo que

reduziu suas potencialidades mais radicais, mais revolucionárias. Observamos

contudo, que o impacto da institucionalização é um aspecto que está relacionado

com a captura ou com a apropriação de suas construções teórico-metodológicas e

teórico-operativas pelo projeto burguês dominante, direcionando-as para a

manutenção da ordem social vigente. Trata-se também de um "pacto" subterrâneo

(nem sempre explícito) que permite a utilização das construções teórico-

metodológicas e teórico-operativas separadas de seus componentes ético-políticos

mais radicais. É claro que a existência deste pacto está circunscrita socialmente,

pela necessidade de sobrevivência material que, ao ser mediatizada pelo modo-de-

produção capitalista, submete os não proprietários dos meios de produção aos que

os concentram, forçando-os a uma adaptação à ordem social existente, mesmo que

essa lhes seja desfavorável e ainda que tal adaptação seja continuamente uma

apropriação singular e crítica em relação à ordem vigente. Enquanto as relações de

poder são mantidas no plano da reprodução material direta (submissão do trabalho

ao capital) esta contradição vai manifestar-se na sociedade e nas organizações

sociais existentes.

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3.1.2 – Algumas referências sobre o Movimento Institucionalista e

Grupalista no Brasil

O Movimento Institucionalista e Grupalista no Brasil repercurtiu,

significativamente, entre os profissionais da área "psi", sendo que sua difusão

também esteve vinculada às instituições acadêmicas. Segundo Sônia Altoé, “embora

a gênese do paradigma da análise institucional158 seja sociológica e/ou

microssociológica, no Brasil foi predominantemente entre os psicólogos que se

difundiu e se firmou, tanto acadêmica quanto institucionalmente” (2004: 8).

Tal constatação também foi feita por Cecília Coimbra159 ao afirmar que

diferentemente da França e da Europa em geral – onde os institucionalistas em sua maioria não são profissionais 'psi', mas pedagogos, assistentes sociais, etc. –, no Brasil a análise institucional liga-se quase que exclusivamente ao território 'psi'. São, principalmente, psicólogos e psicanalistas que aderem a esta 'nova' forma de se pensar as práticas sociais, as instituições e os dispositivos que atravessam e se atualizam nos diferentes estabelecimentos e organizações, as implicações de cada um investido do papel de especialista; e, enfim, como suas práticas produzem e fortalecem demandas e subjetividades (1995:339).

Coimbra distingue, no movimento institucionalista, a produção da psicologia

institucional160 e a análise institucional francesa. A psicologia institucional vinculada

à produção de J. Bleger e também presente nas formulações sobre Grupo Operativo

realizadas por Pichon Riviére valorizaria "sobremaneira" o papel do psicólogo,

158 A Análise Institucional foi o nome cunhado por Lapassade e Guattari (quase simultaneamente) para designar a nova compreensão teórico-metodológica gestada no Movimento Institucionalista e Grupalista como observaremos na próxima subseção. 159 Professora-adjunta de Psicologia na Universidade Federal Fluminense, militante do grupo Tortura Nunca Mais, tendo sido sua presidente durante um longo período. 160 "Em realidade, este corpo teórico pode ser caracterizado como uma psicossociologia institucional, marcada ainda pela orientação funcionalista da Psicologia das Organizações, na qual se sobressaem relevantes aspectos: está presente um profundo 'reformismo institucional'; o profissional 'psi' é um técnico das relações interpessoais'; as organizações ou estabelecimentos são percebidos como 'coisas em si', abstratos e a-históricos e a instituição é concebida como 'grupo de grupos'" (Coimbra, 1995:336).

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embora enfatize uma atuação mais nobre e progressista vinculada à inserção

institucional-comunitária orientada para a mudança social (idem). A psicologia

institucional de J. Bleger foi introduzida no Brasil pela primeira geração de

argentinos vinculados à Associação Psicanalítica Argentina (APA) e teve impacto

junto ao movimento "psi" carioca a partir da década de 70.

De acordo com a referida autora (idem), desde os anos 70, no Brasil, dois

psicanalistas realizaram trabalhos e intervenções isolados fundamentados na

análise institucional relacionada à René Lourau e à Georges Lapassade: o carioca

Chaim Samuel Katz e o mineiro Célio Garcia. São da década de 70 as publicações

sobre "Análise Institucional: teoria e prática" na Revista de Cultura Vozes (volume

LXVII, maio/1973) motivadas pela visita de Georges Lapassade ao Brasil no período

de julho a dezembro de 1972, e O segredo da Macumba escrito por Lapassade e por

Marco Aurélio Luz (professor de comunicação) e publicado pela Paz e Terra em

1973. Ainda na década de 70 foram publicados no Brasil os livros Chaves da

Sociologia (Lourau e Lapassade, Civilização Brasileira, 1972), A Análise Institucional

(Lourau, Vozes, 1975), Grupos, Organizações e Instituições (Lapassade, F. Alves,

1977) e a coletânea Metáforas da Desordem (J.A. Guilhon de Albuquerque, Paz e

Terra, 1978).

A repercussão destas produções e publicações sobre o movimento "psi"

carioca e paulista161 não chegou a influenciá-lo significativamente. Segundo

Coimbra, a difusão da análise institucional francesa foi realizada a partir da década

161 Coimbra não aborda a repercussão do movimento instiitucionalista em Minas Gerais, mas Sônia Altoé (2004) destaca o papel do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais na formação de psicólogos voltados para uma abordagem institucional, conforme nos referimos na nota 08 deste capítulo. Gregório Baremblitt, argentino com residência em Belo Horizonte e à frente do Instituto Baremblitt, também tem sido uma referência quanto ao movimento institucionalista no Estado de Minas Gerais. Fora do eixo Rio de Janeiro-Belo Horizonte-São Paulo não temos informações detalhadas sobre a repercussão do movimento institucionalista nos demais estados brasileiros, mas sabe-se de uma forte difusão no Rio Grande do Sul, dada a proximidade com o movimento na Argentina.

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de 80, motivada pela vinda da segunda geração de argentinos (exilados pelo Golpe

Militar de 1976) vinculada à APA argentina. Para a autora,

esta geração de argentinos aliada a grupos 'psi' brasileiros – que, não pode ser vista como uma 'Escola' ou como um grupo monolítico – traz 'conceitos que abrangem desde uma análise marxista das relações de poder à análise foucaldiana dos micropoderes, do inconsciente restritivo freudiano psicanalítico a uma teoria do inconsciente produtivo de Deleuze e Guattari; castração, repressão, 'plus' de repressão, produção de subjetividade, etc.' [Kamkhagi in Saidón, 1987: 7-9]. Temas que vão sendo cotidianamente revisados e ampliados no transcurso de diferentes cursos, intervenções, grupos de estudo, etc. E que buscam produzir, na segunda metade dos anos 80, tanto em solo carioca quanto paulista, uma proposta singular de trabalho em análise institucional. E, quem sabe, uma 'tentativa de contribuir para a constituição de uma corrente brasileira de análise institucional' [idem] (Coimbra, 1995:338).

A análise institucional francesa foi difundida no Brasil pela fundação do

Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições – IBRAPSI – Rio de Janeiro

(1978) – através de seu Departamento de Análise Institucional criado em 1982. A

formação oferecida pelo IBRAPSI foi freqüentada majoritariamente pelos

profissionais da área 'psi'. Do IBRAPSI saem (rompem) dois novos grupos: o

Núcleo-Psicanálise e Análise Institucional e o Centro de Estudos SocioPsicanalíticos

(CESOP), que

durante a primeira metade dos anos 90, funcionam, agregando, principalmente, profissionais 'psi' através de cursos, formação, grupos de estudo e intervenções as mais variadas em estabelecimentos públicos e privados. Ao lado deles há outros 'psi' que, isoladamente ou em pequenos grupos, realizam também grupos de estudo e intervenções socioanalíticas diversas (idem: 339).

Coimbra destaca que, no Rio de Janeiro, os profissionais da área 'psi'

envolvidos com o movimento institucionalista estão vinculados à instituição

pedagógica (supervisores em universidades, técnicos em projetos educacionais,

municipais ou comunitários) e algumas de suas produções estão relacionadas às

suas inserções em comunidades.

Na cidade de São Paulo, a autora destaca a influência da segunda geração

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de argentinos sobre os profissionais 'psi' paulistas através de sua participação no

Núcleo de Estudos de Psicologia e Psicanálise (fundado em 1977). Os

estabelecimentos A Casa e o CEPAI, criados durante a década de 80, também têm

sido responsáveis pela formação socioanalítica, que em São Paulo está

principalmente vinculada à saúde mental. A este respeito, as produções teóricas

dirigem-se para esta área, como nos debates e palestras veiculados na Revista

Saúde e Loucura, números 1 (1989), 2 (1990) e 8 (2005), publicação dirigida por

Antônio Lancetti, analista institucional de origem argentina.

Segundo Sônia Altoé, em nosso país, "o paradigma institucionalista se firma

entre significativa porção da população universitária e/ou ligada ao trabalho social e

aos estabelecimentos públicos, especialmente quando seus campos de intervenção

são a saúde, a saúde mental e a educação" (2004:9). E continua, "alguns

professores dirigem-se ao Departamento de Ciências da Educação da Universidade

de Paris VIII, onde se concentram os analistas institucionais, com vistas a estudos

de pós-graduação" (idem).

De acordo com a autora,

a partir dos anos 1980, são os esforços dos departamentos das universidades que promovem, por meio de convites, a vinda dos analistas institucionais ao Brasil e a conseqüente renovação bibliográfica: René Lourau é convidado pelo Mestrado em Psicologia Comunitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1989 e, com regularidade, pelo Departamento e Mestrado em Psicologia Social da Uerj (1993, 1994 e 1997). Dessas visitas resultam publicações e intercâmbios extremamente fecundos. O curso ministrado por Lourau em 1993, assistido por mais de cem alunos, dá origem ao livro Análise Institucional e Práticas de Pesquisa, editado pelo Nape/Uerj e rapidamente esgotado. Artigos do socioanlista são publicados em livros e revistas organizados pro professores universitários: 'A educação libertária' (em Psicologia Social: Abordagens Sócio-Históricas e Desafios Contemporâneos, de Mancebo & Jacó-Vilela, Eduerj, 1999) e 'A crítica do simbólico em Fernand Keligny' (Transgressões – periódicos de pesquisa do Programa de Pós-Graduação de Serviço Social/UFRJ, 1999). Algum tempo antes, a Vozes relançara A Análise Institucional (1995), em edição revista, num indício da procura permanente pelo antigo livro, há muito esgotado (idem: 9-10).

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Como Lapassade (na década de 70) e Lourau (nas décadas de 80 e 90), Félix

Guattari também visitou o Brasil durante o ano de 1982 e participou de uma série de

eventos organizados por Suely Rolnik (PUC-SP), como detalharemos adiante. O

percurso dessa visita foi delineado no livro Micropolítica. Cartografias do Desejo

(publicado em 1986), produzido por Rolnik e Guattari. Segundo Regina Duarte

Benevides de Barros162 (2001), o Núcleo de Estudos da Subjetividade, do Curso de

Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC/SP é um dos centros que congregam,

em São Paulo, algumas pesquisas realizadas sob a influênica de Félix Guattari e

Giles Deleuze.

Segundo Gregorio Baremblitt, existem três modalidades de institucionalismo

mais difundidas no Brasil,

em termos, digamos, políticos, eu diria que da primeira enunciada – a sociopsicanálise de Gérard Mendel – à última – a esquizoanálise de Deleuze e Guattari – existe uma graduação no sentido que Mendel articula uma concepção mais ou menos tradicional da Psicanálise com uma igualmente ortodoxa do Materialismo Histórico. Produz assim uma forma de abordagem das organizações e das instituições, que poderíamos dizer que é politicamente moderada, se é que tal termo exprime alguma coisa. Já a Análise Institucional de Lourau e Lapassade, e a Esquizoanálise de Deleuze e Guattari, eu diria, são propostas políticas, mais subversivas, mais enérgicas, mais ativas, com certos matizes diferenciais entre elas (1992:79-80).

Para o autor, a denominação “Movimento Institucionalista” designa “um

conjunto de escolas, um leque de tendências” (idem: 13), sendo que as diferentes

escolas do movimento institucionalista se propõem “propiciar, apoiar, deflagrar nas

comunidades, nos coletivos, nos conjuntos de pessoas, processos de auto-análise e

processos de autogestão” (idem: 14).

A auto-análise e autogestão constituem os objetivos básicos do

162 Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense/RJ.

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institucionalismo, segundo esta perspectiva. Como auto-análise, Baremblitt

compreende a possibilidade das comunidades se constituirem como "protagonistas

de seus problemas, de suas necessidades, de suas demandas" (idem: 17) e que

possam "enunciar, compreender, adquirir ou readquirir um vocabulário próprio que

lhes permita saber acerca de sua vida" (idem). O processo de auto-análise ocorre

simultaneamente ao processo de auto-organização (autogestão), quando a

comunidade se "organiza para construir os dispositivos necessários para produzir,

ela mesma, ou para conseguir, os recursos de que precisa para o melhoramento de

sua vida sobre a terra" (idem: 18). E continua,

esta auto-análise e esta autogestão não significam necessariamente que os coletivos devam prescindir por completo dos experts porque, sem dúvida, eles, com sua disciplina, com seus instrumentos, têm acumulada uma quantidade de saber importante e não inteiramente alienado, não necessariamente distorcido. Mas acontece que os experts devem submeter seu saber, suas glórias, seus métodos, suas técnicas, suas inserções sociais como profissionais a uma profunda crítica que os faça separar, dentro destas teorias, métodos e técnicas, dentro dos organismos aos quais pertencem, o que é produto de sua origem, de sua pertinência ao bloco dominante das forças sociais e o que pode ser útil a serviço de uma auto-análise, de uma autogestão da qual os segmentos dominados e explorados sejam protagonistas (idem).

As análises de Coimbra, de Altoé e de Benevides identificam a expansão e a

afirmação das influências francesas sobre o movimento institucionalista brasileiro a

partir da década de 80. Assim também, as referências de Baremblitt sobre a

autogestão e auto-análise nos remetem à mobilização social vivida nos anos 80163,

163 A década de 80 foi um período expressivo de mobilização social no Brasil. A abertura democrática realizada sob o controle do Governo Militar do General João Batista Figueiredo, embora indicasse a falência das respostas econômico-políticas oferecidas sob o regime autocrático burguês (Netto, 1991) também tornara-se uma necessidade diante da insustentabilidade social da ditadura. Assim, não era possível reprimir as manifestações sociais e elas se expandiram em vários âmbitos da vida social: Movimento pelas Diretas Já, Movimento Sindical (complexo A B C Paulista), Movimentos Sociais Urbanos (Sáude, Habitação, Educação etc.), Movimentos antiinstitucionalistas, como anti-psiquiátrico (em relação às práticas de internação asilares no campo da saúde mental), como o movimento de meninos e meninas de rua em oposição às práticas sociais de internamento das crianças infratoras (Código de Menores) em estabelecimentos como a FEBEM (vinculadas à FUNABEM) etc. A criação do Partido dos Trabalhadores ocorrreu em 1980, assim também a Central Única dos Trabalhadores fundada durante essa década. A Nova Constituição Brasileira foi aprovada

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tanto em relação ao movimento sindical quanto ao movimento social urbano,

seguido da organização expressiva dos trabalhadores rurais, principalmente em

torno do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra durante a década de 90.

Desse modo, o protagonismo dos movimentos sociais em suas várias

expressões, durante a década de 80 e até os primeiros anos da década de 90,

constitui o território favorável para a compreensão e para a difusão da análise

institucional francesa no Brasil. Considerando as características da formação

profissional na área "psi" e a inserção sócio-institucional de alguns destes

profissionais em organizações e movimentos sociais que, naquele período,

reivindicam posturas e perspectivas favoráveis à mudança, torna-se compreensível

a abertura às construções elaboradas pela análise institucional francesa que

também foram expressões de um movimento social mais amplo de questionamento

das organizações e das instituições sociais existentes.

A década de 80 também foi um marco para a renovação do Serviço Social

brasileiro (como vimos no Capítulo 1).

Uma das características dessa renovação foi a apropriação da teoria social

marxista, de suas categorias para explicar a própria existência do Serviço Social, o

que permitiu uma compreensão histórica sobre a institucionalização da profissão no

Brasil e a explicitação das posturas políticas em "jogo" nas intervenções dos

assistentes sociais.

Apesar destas apropriações críticas, a relação entre o Serviço Social e o

Movimento Institucionalista e Grupalista limitou-se às referências isoladas ou como

em outubro de 1988 e a primeira eleição direta para presidente da república, após a ditadura, aconteceu em 1989.

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argumenta José Augusto Bisneto164 (2000:325).

o uso de conceitos da Análise Institucional, no Serviço Social, se deu, na maioria dos casos, sem o desenvolvimento das possibilidades intelectuais de uma interlocução sistemática com os teóricos citados. Por exemplo, o uso de Foucault se restringe à sua concepção de poder, da relação 'saber/poder', e mais especificamente do poder disciplinar. O uso de Albuquerque, na abordagem instrumental, não desenvolve toda complexidade da análise das práticas institucionais. O uso de Lourau e Lapassade é muito limitado teoricamente. Outras linhas da Análise Institucional, foram citadas tão esporadicamente nas publicações de Serviço Social, que reforçam essa conclusão. De fato, a Análise Institucional entrou no Serviço Social na forma de temáticas, e não como teoria. Entrou como debate sobre temas específicos para desenvolvimento de certos aspectos do Serviço Social, como: o poder disciplinar (Foucault); o objeto institucional e os agentes institucionais (Albuquerque); o instituinte e o instituído (Lapassade e Lourau); a instituição total (Goffman).

Uma hipótese para explicar a escassa interlocução entre o Serviço Social e o

Movimento Institucionalista e Grupalista pode ser elaborada sobre a relação entre a

profissão e a teoria social marxista: pela recorrência aos autores mais ortodoxos,

mais marxianos; pelo fato do movimento institucionalista ter criticado a experiência

do socialismo na URSS e a burocratização dos sindicatos nas sociedades

burguesas contemporâneas, construindo outras referências teóricas que

incorporaram questões complexas como poder, sexualidade, subjetividade entre

outras; e, ainda, pela "captura" das produções teóricas do movimento

institucionalista como técnicas de mudanças organizacionais "vinculadas" aos

interesses burgueses.

No primeiro aspecto observamos que a referência à luta revolucionária do

proletariado, em Marx, enfatiza a ruptura com a sociedade burguesa, nesse sentido,

o posicionamento político dos sindicatos e dos partidos operários deve ser de

164 Assistente Social e Engenheiro. A argumentação a seguir foi realizada pela análise das publicações de Serviço Social no período de 1979 à 1991 e pela análise das dissertações de mestrado em Serviço Social defendidas na UFRJ e na PUC/RJ no período de 1974 à 1993.

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enfrentamento constante165 (para a superação do capitalismo). Contudo, as

perspectivas de integração do proletariado à sociedade burguesa foram ampliadas

no decorrer do desenvolvimento do modo de produção capitalista (Alain Bihr, 1999),

favorecendo posicionamentos políticos conciliatórios entre os interesses da

burguesia e do proletariado. A formação da classe média – tanto pela inserção da

classe trabalhadora melhor remunerada (fordismo) e com a garantia da proteção

social do Estado (nos países capitalistas centrais) quanto pela ascensão de muitos

trabalhadores à condição de técnicos de nível superior (profissionais, professores,

cientistas), políticos e funcionários públicos (em alguns cargos melhor remunerados)

pela expansão das funções do Estado no regime de Bem-Estar Social – contribuiu

para a afirmação de posturas menos combativas e para a aceitação do capitalismo

como uma possibilidade de organização social, senão justa, pelo menos,

"democrática", onde as oportunidades de ascensão estão abertas para aqueles que

souberem aproveitá-las.

Por outro lado, a aproximação, ainda que através dos temas discutidos pelo

Movimento Institucionalista e Grupalista, como sugeriu Bisneto, demonstra uma

interlocução com as questões expressas pelo movimento e que são observadas

também no contexto brasileiro, inclusive pela inserção sócio-ocupacional dos

assistentes sociais e pelas funções sócio-institucionais que lhe são atribuídas.

Bisneto também destaca a influência de Jean Robert sobre a difusão da

Análise Institucional no Serviço Social, fundamentada na perspectiva de Guilhon

Albuquerque. Tal influência significou a apreensão da Análise Institucional em sua

dimensão mais sociológica, vinculada à luta pelo poder nas instituições

(estabelecimentos/organizações), aos atores presentes na luta, às alianças

165 Conforme Mészáros, 2002.

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necessárias para avançar em uma perspectiva de democratização (conquista do

poder pelos hierarquicamente "subalternos"), atenção à conjuntura política, entre

outros elementos.

Também é importante dizer que os livros dos assistentes sociais Maria Luiza

de Souza (Serviço Social e Instituição) e Vicente de Paula Faleiros (Saber

Profissional e Poder Institucional), publicados na década de 80 com ampla difusão

entre a categoria profissional, exemplificam a ressonância do Movimento

Institucionalista, em especial, da Análise Institucional no Serviço Social.

Essa repercussão indica a comunicação, no Brasil, entre o Movimento

Institucionalista e Grupalista, e em especial, entre a Análise Institucional e outras

áreas acadêmico-profissionais diferentes do campo “psi” 166.

Nesta tese, a aproximação ao Movimento Institucionalista e Grupalista está

sendo realizada no sentido de nos apropriarmos de algumas de suas construções

teóricas que nos auxiliem na compreensão sobre os grupos nas sociedades

capitalistas contemporâneas, na expectativa de ampliar, aprofundar e complexificar

nossas abordagens e nossas referências sobre os diferentes processos grupais com

os quais nos deparamos em nosso exercício profissional.

166 Esta compreensão foi-nos sugerida pelo Prof. Dr. José Augusto Bisneto em nossa pré-defesa.

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3.2 – Os grupos e a Análise Institucional Francesa

"A Análise Institucional, cuja ambição fundamental permanecerá sendo a de ultrapassar o perímetro das práticas das quais procede, não é propriamente uma teoria científica, mas, sim, bem mais, o enunciado progressivo de um percurso de teorização" (Ardoino e Lourau, 2003:17). "A Análise Institucional não se confunde com o vivido dos grupos – história épica de uma catástrofe serializante –, tampouco com a objetivação cristalizante praticada pela razão analítico-positivista. A ordem institucional, sempre sócio-histórica, que atravessa os grupos e as organizações, pode e deve ser trazida à luz por uma análise realizada em situação. Daí sua necessária dimensão intervencionista que, se não exclui o trabalho psicossociológico, exige que este seja permeável a todas as (des) institucionalizações/desnaturalizações" (Rodrigues, 1993:487).

A origem da relação entre os grupos (enquanto campo de intervenção

profissional e objeto de estudo acadêmico) e a Análise Institucional Francesa está

na vinculação de seus atores às práticas grupais. Tais práticas foram designadas

ora como microssociologia, ora como psicologia social, ou como psicossociologia,

dependendo da vinculação organizacional/institucional. Também foram elaboradas

em diálogo tanto com as técnicas de experimentação (laboratórios) desenvolvidas

para observação dos grupos em situações controladas pelos pesquisadores

(conhecidas como dinâmica de grupo, grupo de treinamento ou grupo de

diagnóstico) quanto com a demanda de formação, fosse de lideranças, de

monitores, de professores, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais interessados

em capacitar-se para a intervenção junto aos grupos em situações diversificadas,

tais como: formação profissional (especificamente para o trabalho com grupos e

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como recurso pedagógico a ser utilizado em sala de aula), mobilização social

(inserção comunitária), solução de conflitos e promoção de coesão nos

estabelecimentos ou nas inserções organizacionais (inclusive empresariais),

sensibilização para a convivência em grupos (grupo como espaço terapêutico) etc.

Durante o Capítulo 2 observamos, nas questões apresentadas por Sartre, a

compreensão dos grupos humanos enquanto práxis e espaços de construção, como

expressão da criação coletiva, cujos movimentos podem ser reificados e

cristalizados, fixando-se as possibilidades de criação no processo de organização e

de manutenção da existência dos grupos para sua própria conservação. Nesse

sentido, Sartre considerou os grupos em sua existência social, no movimento

histórico, como expressão da práxis humana. Sartre não estava diretamente

envolvido com os processos de intervenção (profissionalizados pelas referidas

práticas) junto aos grupos, fossem em estabelecimentos sociais, ou ainda, pela

inserção técnica junto aos movimentos sociais, ou mesmo pela utilização de

recursos (dispositivos) para a facilitação das relações interpessoais e da construção

do conhecimento na prática pedagógica. Em sua formação como filósofo, as

questões que lhe interessam tendem a ser compreendidas de um modo mais

genérico (por exemplo, as possibilidades da razão dialética para a compreensão dos

conjuntos práticos e dos grupos humanos, daí, o título do livro, Crítica da razão

dialética), sendo seu interesse apreender os grupos, suas ações, suas

possibilidades na existência humana (histórico e materialmente circunscrita). E

Sartre, pelo método regressivo-progressivo, evita generalizações conceituais sobre

os grupos, ou sobre "o" grupo, apresentando suas elaborações como processos que

descrevem os fenômenos grupais, sociais e coletivos também observados a partir de

suas condições histórico-materiais. Nesse sentido, ele constrói uma apreensão

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crítica sobre as construções teóricas produzidas pela dinâmica de grupo e pela

psicossociologia, o que transformou a sua obra em uma referência para os

profissionais incomodados com as práticas grupais inspiradas por estas correntes.

Por outro lado, observamos que o conhecimento de Sartre sobre as

produções norte-americanas sobre os grupos pode ter despertado o seu interesse

para compreender os grupos humanos, apreendendo-os como espaços de

mediação socio-histórica. Ou seja, Sartre percebeu na temática trabalhada pela

microssociologia, pela psicologia social, pela psicossociologia e nas elaborações

conhecidas como dinâmica de grupo, uma referência também histórica ao lugar dos

grupos nas sociedades contemporâneas167.

167 Sartre ao distinguir entre grupo-práxis e grupo-processo reconheceu que "essa apreensão da atividade humana como processo encontra-se, aliás, sob formas um pouco diferentes – e, sobretudo, não dialéticas ou aberrantes – em muitos sociólogos americanos: a Gestalt de Lewin apóia-se em uma visão da práxis como processo; existe destino, totalidade (como lei exteriror de interioridade), organização sintética e passiva dos resultados. Os trabalhos de Kardiner, as medidas de Moreno, os estudos dos culturalistas remetem sempre a essa passividade orientada, irreversível e inflada de uma inerte finalidade, que acabamos de descobrir. Com efeito, o grupo-processo é, de um certo ponto de vista, uma realidade constante de nossa experiência. Eles não inventaram seus caracteres: mas decidiram considerá-lo de forma exclusiva e estudá-lo no plano de sua ininteligibilidade plenária" (2001: 637, grifos nossos). Para compreender melhor a distinção entre grupo-práxis e grupo-processo é importante ressaltar que, para o autor, na experiência da práxis comum há uma práxis orgânica que articula a ação individual com o fim comum, dialeticamente. Ainda, segundo Sartre, "ambos (a práxis e o processo) são dialéticos: são definidos por seu movimento e orientação; superam os obstáculos do campo comum e os transformam em revezamentos, etapas e degraus que balizam e facilitam o respectivo desenvolvimento. Ambos se definem a partir de uma certa determinação do campo dos possíveis que permite iluminar a significação de seus diferentes momentos. Ambos são violência, fadiga, usura e perpétua transmutação de energia. Mas a práxis desvela-se imediatamente por seu fim: a determinação futura do campo dos possíveis é estabelecida, desde o início, por uma superação projetiva das circunstâncias materiais, ou seja, por um projeto; em cada momento da ação, é o agente que se produz a si mesmo nessa ou naquela postura, acompanhada por esse ou aquele esforço em função dos dados presentes iluminados pelo objetivo futuro. A essa práxis dei o nome de 'livre' por esta simples razão: em determinada circunstância, a partir de determinada necessidade ou perigo, ela própria inventa sua lei, na absoluta unidade do projeto (como mediação entre a objetividade dada, passada, e a objetivação a ser produzida). O processo não é comparável a uma avalancha ou a uma inundação, nem a uma ação individual: de fato, ele conserva todas as características da ação individual, uma vez que é constituído pela ação orientada de uma multiplicidade de indivíduos; mas, ao mesmo tempo, tais caracteres recebem nele a modificação da passividade porque, pela ressurreição do múltiplo, cada aqui apresenta-se como passividade (e implica a passividade como ubiqüidade em todos os aqui) e a atividade aparece como o alhures evanescente, ou seja, como a dissolução aqui da inércia suportada enquanto essa atividade do Outro deve ser, em outro alhures e para Outros, uma inércia a ser dissolvida pela atividade. No grupo enquanto práxis comum, as inércias ajuramentadas são a mediação sempre encoberta e velada entre as atividades orgânicas. No grupo-processo, a atividade prática, como acontecimento imperceptível e fugidio, serve de mediação organizadora entre as inércias suportadas (enquanto ela as dissolve provisoriamente). Em ambos os casos, não se trata de determinismo, uma vez que o

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Através da difusão das práticas grupais pelo viés da dinâmica de grupo, da

psicossociologia e mesmo através da psicoterapia institucional e da pedagogia

institucional168, os grupos são considerados como espaços de intervenção

profissional e são objetivados enquanto campo de produção acadêmica.

Desse modo, o conhecimento e a experiência grupal passam a ter uma outra

referência (e uma significação) diferente das práticas grupais concretas existentes

(ainda que pretendam apreendê-las) designando um novo campo/território de

saber/conhecimento e nesse sentido, de poder e de controle (submetimento ao

saber/conhecimento produzido). Tal referência e tal significação, em muitas

situações, tornam-se um modelo que transforma o grupo numa experiência a ser

vivida a partir de uma pré-concepção de suas possibilidades, ou um tipo de

investimento em experimentações interpessoais consideradas a priori, e deslocadas

de suas condições concretas de existência, seja por agregar indivíduos que buscam

"trabalhar-se" afetivamente em estruturas grupais constituídas como espaços de

aprendizado interpessoal e também como espaços terapêuticos, sobrepondo-se o

trabalho individual à construção coletiva (o objetivo/horizonte é a apropriação

individual, ou o aprendizado para o individuo no grupo e não do grupo enquanto tal), desenvolvimento é concreto, orientado, uma vez que esse se enriquece em cada superação e se define a partir de um certo termo futuro" (idem: 634-635). 168 Pela prática da psicoterapia e da pedagogia institucional constróem-se apreensões que vão considerar tanto as determinações organizacionais/institucionais quanto a existência de práticas grupais ou o lugar do trabalho grupal que é desenvolvido nos estabelecimentos, pela mediação organizacional/institucional. Nesse sentido, a psicoterapia e a pedagogia institucional avançam na perspectiva de analisar a presença dessas mediações e seu mútuo atravessamento em relação às práticas grupais presentes no estabelecimento. Também avançam porque constituem-se como intervenções em estabelecimentos concretos, cuja inserção sócio-história, cujo movimento de institucionalização, cuja organização e cujos procedimentos instaurados fogem às perspectivas de controle ou de experimentação controlada sobre os grupos. Contudo, segundo Ardoino e Lorau, "em certa medida, as psicoterapias e as pedagogias institucionais põem em questão uma propensão exageradamente psicologizante, que chega a apagar o social, o econômico e o político (a 'psicomanipulação' da sociopsicanálise, G. Mendel). Também encontramos nelas a pertinente contestação do caráter recuperado de uma psicossociologia funcionalista e utilitarista. Mas, uma vez efetuado tal trabalho crítico [cuja perspectiva abre-se através da Análise Institucional], as dimensões psicológicas ou psicossociológicas de toda prática social, que supõem uma inteligibilidade clínica das situações, devem ser reintegradas, embora com peso relativo diferente, no conjunto das facetas que dão conta do objeto. Neste sentido, a AI torna-se complementarista e multirreferencial" (2003:19-20).

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seja por neglicenciar as inserções sociais circunscritas material e historicamente,

quando a intervenção com grupos realiza-se numa situação concreta, com

hierarquias, lutas e disputas concretas.

Nesse sentido, a intervenção junto aos grupos tornou-se uma especialidade,

um campo específico de produção de conhecimento e uma

referência/significação/horizonte, dado a priori aos participantes e aos aprendizes da

nova técnica. Nesse modo de construção e apreensão, os grupos transformaram-se

em modelos idealizados, em objetos controlados de experimentação e laboratórios

de vivências e aprendizados interpessoais. Em contraposição à esse modelo, as

demais inserções/experimentações grupais vividas cotidianamente quase perderam

o significado enquanto espaços grupais, onde uma variedade de possibilidades

relacionais apresentam-se e são aprendidas e apreendidas169.

Entretanto, este "manejo" ou esta "manipulação" técnica sobre as

experiências grupais (o grupo como objeto de intervenção técnica) pode indicar tanto

a necessidade de manter o controle sobre as construções grupais, orientando-as

para um tipo de produção favorável à manutenção das estruturas sociais existentes,

e nesse sentido, sustentando os processos de dominação, quanto a própria

necessidade de reconhecer as relações interpessoais como um determinante na

sustentação das organizações/instituições existentes (valorização das relações 169 Rodrigues observa em um artigo intitulado "Sobre as histórias das práticas grupais" (1999) que "nas aulas iniciais de Dinâmica de Grupo e Relações Humanas, os alunos eventualmente falam como se desconhecessem qualquer experiência grupal, identificando-a à ação especializada – terapèutica, de sensibilização etc. –, e relegando ao não-experiencial os demais espaços sociovitais. Grupos de amigos, políticos, familiares, profissionais, espaços de sala de aula, festas, passeatas etc. são, assim, remetidos a um suposto 'não vivencial' e mesmo 'não-grupal'". Em relação à disciplina Estratégias e Técnicas da Ação Profissional II, observamos em todas as turmas com as quais trabalhamos, que, os alunos iniciam o curso com uma idealização do que seja "o" grupo, enquanto um conjunto de pessoas reunidas em torno de um objetivo comum, e apreendem como problema (a ser solucionado para que o grupo exista), o fato de constatarem, entre eles, a diferença de opiniões e a divergência de objetivos. Nesse sentido, há a consideração da turma ou da sala de aula como um grupo em potencial, desde que sejam trabalhadas as diferenças para que haja uma convergência das ações sobre objetivos comuns. Assim, a experiência grupal aparece identificada com a experiência da unidade, ou da adesão a uma orientação comum que unifique o grupo.

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interpessoais, da informalidade, das emoções e dos sentimentos presentes quando

pessoas estão reunidas em torno de uma atividade, inseridas numa organização,

atravessadas pelas produções humanas instituídas).

Tal "manipulação" técnica também pode ser identificada em relação aos

processos de mudança compreendidos como processos grupais. Ou seja, trabalhar

com pessoas em situação grupal como um meio de produzir mudanças: em

estabelecimentos (organizações sociais), em grupos específicos (vizinhança, bairros

etc.), em hábitos comuns a determinados grupos de pessoas (fumantes, hipertensos

etc.) entre outras possibilidades. As referências à mudança de mentalidade ou à

mudança de comportamento e de atitude remetem à um possível manejo técnico

(controle) sobre situações e processos grupais capazes de favorecer as mudanças

pretendidas, que podem ser enunciadas pelo próprio grupo ou propostas como uma

necessidade exterior ao mesmo.

Por outro lado, há que observar a popularidade que as técnicas de dinâmica

de grupo alcançaram em um período relativamente curto entre sua produção e sua

difusão nas sociedades capitalistas contemporâneas (algumas apropriações

parecem ter-se transformado em senso comum, como a perspectiva do grupo

enquanto conjunto de pessoas reunidas em torno de objetivos comuns). Nesse

sentido, ressaltamos a ressonância entre a técnica e um tipo de necessidade social

em experenciar formas de relações interpessoais diferentes daquelas vividas

cotidianamente (como no fenômeno dos grupos de encontro nos EUA, na procura

das pessoas por espaços de escuta e de relacionamento afetivo). E mesmo, a

necessidade de reconhecer as situações grupais presentes nos estabelecimentos

sociais, nas organizações sociais restituindo-lhes seu caráter de produção humana

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(reconhecimento do "fator humano" 170 presente nas organizações).

Assim também, a difusão da perspectiva democrática enquanto um horizonte

a ser alcançado, a perspectiva do respeito aos direitos humanos e da proteção ao

indivíduo tiveram implicações importantes nas referências que foram construídas

socialmente, mesmo sob a hegemonia do capital, no sentido de motivar ou de

produzir no sujeito contemporâneo, o desejo de ser escutado, de ser respeitado, de

ser reconhecido em sua singularidade, o desejo de amar e de ser amado.

Mencionamos acima a relação entre os grupos e a Análise Institucional

enquanto um processo de crítica (e autocrítica) de muitos atores/autores do

Movimento Institucionalista e Grupalista às formas de psicossociologia

norteamericana (lewiniana) e francesa, e às práticas da pedagogia e da psicoterapia

institucional.

Observamos duas chaves de compreensão que nos auxilia a perceber, na

Análise Institucional, uma nova referência para a apreensão dos grupos. A primeira

delas refere-se a apropriação da noção "instituição" . A segunda refere-se à

perspectiva analítica que é enfatizada como um procedimento crítico

necessariamente presente durante toda a intervenção. Tal procedimento

desencadeia a possibilidade de apreensão dos conflitos existentes e posiciona o

analista no lugar de "deflagrador da crise".

Segundo Jacques Ardoino e René Lourau (2003) os psicoterapeutas e

pedagogos institucionais redescobrem a noção de instituição e a reabilitam em uma

abordagem diferente da sociologia de inspiração durkheimiana. A noção de

instituição que eles vão construindo através dos anos, distingue entre

170 Esse é um termo utilizado nas abordagens teóricas da Administração de Empresas.

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estabelecimento (organização social) e instituição. A Análise Institucional, por sua

vez, radicaliza esta distinção, focando a ação humana instituinte no movimento

dialético entre instituído-instituinte em suas múltiplas expressões presentes nas

organizações sociais. Eles argumentam,

o estabelecimento são os muros, os locais, o mobiliário, tangíveis e visíveis, os agentes com, caso necessário, o uniforme que vestem, atestando o pertencimento ao aparelho. São, ainda, as estruturas da organização, a hierarquia, os horários, o emprego do tempo, os regulamentos – já menos evidentes, mais abstratos, porém, apesar de tudo, perceptíveis porque explicitamente significados, afixados, codificados (escritos, graduações, galões, atitudes mais ou menos sistematizadas, estatutos etc). Nesse tecido de dados constituinte da prática social é necessário não esquecer a trama. É por isso que aqui o que é propriamente institucional deve ser procurado ainda mais profundamente, como aquilo que subentenderia, fundaria, simbolicamente (Castoriadis) a organização – ela mesma somente a tradução energética, funcional e positiva, de tal sentido (...) A instituição deve, portanto, ser lida enquanto sentido, conjunto de significações; seria possível dizer, no sentido aristotélico, 'alma' da organização. Enquanto esse registro não é apreendido, profissionais e pesquisadores andam em círculos no carrossel da análise organizacional. Esta última pode, decerto, dizer-nos como funciona a organização (bem ou mal), com suas disfunções, suas crises, suas doenças, suas panes (...) Pode, no limite, ensinar-nos porque ela funciona assim (com a hipótese de um determinismo explicativo apropriado) (...) A maior parte das abordagens praxiológicas, nas ciências sociais contemporâneas – de T. Parsons a P. Bourdieu e a M. Crozier –, fica nisso (...) Apesar de sua intenção crítica, as sociologias da organização, em decorrência de seu credo positivista, permanecem sociologias da fatalidade, a partir de uma reificação do determinismo e do peso do instituído. A AI, ao contrário, se quer contra-sociologia (em relação a essas concepções clássicas). É por isso que seus laboratórios se situam a céu aberto, no jogo das instituições, vistas desta vez sob o ângulo mais dialético de um fazer social histórico (C. Castoriadis) e de uma intencionalidade instituinte (2003:18-19).

Outra dimensão desta apreensão sobre a noção de instituição está no

fato de considerá-la tanto como "algo que já está aí" (o que muitas vezes confunde-

se com as organizações sociais existentes e com os estabelecimentos sociais)

quanto como "algo em vias de se instituir" (idem 25), nesse sentido,

ela [instituição] se define, então, como o movimento pelo qual as forças sociais se materializam em formas sociais. A dinâmica e a dialética do instituído (universalidade), do instituinte (particularidade), da institucionalização

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(singularidade) fazem dela 'um objeto flutuante no limite do real, envolto sem cessar nas ondas do imaginário'. O fazer social histórico, do qual o dizer (teorização) será a tradução empobrecida, implica sempre a invenção na práxis, por efeito de um imaginário radical (C. Castoriadis), enquanto 'magma' de significações, do que ainda não era, do que não preexistia. Nesse sentido, a instituição não é somente funcional; ela é, ainda mais, simbólica, e deriva, enquanto tal, do poiético (poiesis), assim como do político. É esta a razão pela qual a perspectiva de elucidação da AI está sempre acompanhada de um percurso militante171, de uma vontade de transformação daquilo que é. Bem mais do que a pesquisa-ação, no sentido lewiniano do termo – cuja intenção praxiológica ainda busca a otimização da ação no interior dos microssistemas –, ela visa, por intermédio dos desarranjos que suscita analiticamente, ás mudanças macrossociais, ou, ao menos, às 'revoluções moleculares' (F. Guattari) (idem:25-26).

De acordo com Eduardo Vasconcelos, em nossas conversas no decorrer

do processo de orientação, há outra dimensão da instituição que é fundamental: o

caráter histórico (de longo prazo) com raízes profundas nos modos de produção

anteriores e na divisão sócio-técnica do trabalho. Tal perspectiva relaciona-se com

as formas de saber/poder que foram identificadas por Foucault. Embora Lourau,

Lapassade e Guattari não enfatizem diretamente essas dimensões, elas estão

presentes nas concepções de auto-gestão e na perspectiva de quebra das

hierarquias.

Na Análise Institucional, um dos focos sobre os processos grupais está

na perspectiva de explicitar as relações de poder e as hierarquias que engendram os

171 A Análise Institucional também foi designada como AI generalizada, AI restrita e a AI em ato, ou socioanálise. "A AI generalizada é um conjunto heterogêneo de leituras possíveis da organização social, das forças e das significações que a atravessam. De certo modo, constitui um reservatório de dados gerais e conceptuais para as outras modalidades, mais específicas e mais intervencionistas, da AI. A título indicativo e sem pretender esgotar o campo, vale mencionar os trabalhos de Gramsci, Sartre, Marcuse, Lefebvre, Deleuze e Guattari, Castoriadis, Lukács, Gabel... Algumas contribuições de uma sociologia ainda positivista, ma já crítica e engajada, a els virão se ajustar... A AI restrita tomará por objetos privilegiados as instituições particulares; por exemplo, a igreja, a escola, o exército. A AI em ato, ou socioanálise, põe a AI em funcionamento por intermédio da prática clínica da intervenção, no quadro de organizações-clientes, de grupos ou de coletivos (indústrias, administrações, coletividades locais ou regionais, associações, organizações educativas, trabalhadores sociais, etc.)" (Ardoino e Lourau, 2003:25).

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processos grupais através das diferentes instituições ali presentes (saber/formação

acadêmica; idade/acúmulo de experiência; sexo/formas de viver a sexualidade;

diferenciações culturais/cor da pele, expressões lingüísticas, hábitos de vida; classe

social/distinções sócio-econômicas, grupo familiar, inserção no mercado de trabalho

e acesso ao mercado de consumo, entre outros). Esse diferencial diz muito em

relação ao modo de abordar os grupos e introduz um dispositivo que pode gerar a

análise das relações de poder e da própria forma de produção grupal. Junto a este

dispositivo existe a perspectiva de fomentar espaços de autogestão, de autocriação,

capazes de efetivar um poder compartilhado. Também é possível identificar neste

dispositivo um impulso a tirar o grupo do ”centramento” sobre si mesmo, levando-o a

estabelecer ou mesmo a reconhecer suas múltiplas relações ou os seus múltiplos

pertencimentos. Nesse sentido, na perspectiva da Análise Institucional os "grupos

artificiais" (ou os grupos artificializados pelas abordagens construídas a priori e que

fixam a intervenção sobre questões produzidas mais pela interpretação do analista

do que pelos analisadores172 presentes ou mesmo pela sua ausência) não podem

substituir os grupos reais, sendo necessário cuidar para que os dispositivos

utilizados pela própria Análise Institucional não artificializem os grupos reais,

levando-os a uma pseudo-produção grupal.

Daí que a Análise Institucional, contemporânea, e de certo modo, "devedora"

da psicossociologia, já em sua nascente, como teremos oportunidade de examinar,

inicie-se pela crítica dos dispositivos adotados pela própria psicossociologia. A

"vocação" de desconstrução173 da Análise Institucional já se evidencia nessa

172 Veremos a concepção de analisador mais adiante. 173 Utilizamos o termo para designar o trabalho da Análise Institucional sobre os processos grupais na perspectiva de “desalojar” as estruturas enrijecidas através do dispositivo analítico. O dispositivo analítico atua principalmente como um “negativo”. Por isso, utilizamos o prefixo (des) em contraste

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desmontagem dos dispositivos da psicossociologia e a construção da Análise

decorre desse potencial para deflagrar a crise e para instaurar novas respostas e

novos processos de criação.

Para melhor expor o que identificamos como as proposições da Análise

Institucional, face aos processos grupais, decidimos apresentar as concepções de

Lapassade e Lourau articuladamente e posteriormente, destacaremos as

contribuições de Guattari. Os três autores escolhidos não possuem uma produção

considerada sistemática sobre os processos grupais ou sobre os grupos. Suas

contribuições estão no debate que estabelecem com a dinâmica de grupo, com a

psicossociologia, com a pedagogia institucional, com a psicoterapia institucional,

com a psicanálise, entre outras estratégias de intervenção, no sentido de fortalecer

uma perspectiva diferenciada (inovadora/ detratora/ transgressora) de abordagem

junto aos grupos, aos movimentos sociais, às organizações e às instituições sociais

de um modo geral.

Desse modo, iremos expor a compreensão que esses autores construíram

sobre a Análise Institucional destacando as concepções que apresentam sobre os

grupos e os processos grupais.

com as construções solidificadas, cuja rigidez a análise contribui para explicitar no intuito de propiciar outras construções mais fluidas.

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3.2.1 – Análise Institucional e Socioanálise: as intervenções e as

construções teóricas de Georges Lapassade e René Lourau

René Lourau e Georges Lapassade freqüentemente são apontados como

fundadores da Análise Institucional174 e criaram a expressão “socioanálise” para

designar a intervenção da Análise Institucional (ou o seu método de intervenção) 175.

No entanto, não é possível dizer que eles estiveram sozinhos nesta empreitada,

talvez a Análise Institucional tenha sido uma criação simultânea expressando-se em

vários países sincronicamente. Lapassade e Lourau possuem o mérito de terem

realizado um esforço para identificar o movimento, propondo uma primeira

sistematização e compreensão sobre o mesmo.

Segundo Lourau, “a Análise Institucional não pretende produzir um

supersaber clandestino e misterioso, mais completo, mais ‘verdadeiro’ que os outros

setores fragmentários do saber. O que tem em vista produzir é uma nova relação

com o saber, uma consciência do não-saber que determina nossa ação176”

174 Hemi Hess diferencia as contribuições de Lapassade e Lourau na produção da Análise Institucional: "não se pode dizer que Lourau seja o inventor da análise institucional. De fato, desde 1962, quando de um colóquio em Royamont, um ano antes de seu encontro com Lapassade, este último lançara a maior parte dos conceitos que iriam permitir a emergência da análise institucional (analisador, autogestão, demanda, encomenda). Porém decerto se pode dizer, sem risco de equívoco, que Lourau foi o fundador da análise institucional. Foi ele quem lançou as bases teóricas da postura original que Lapassade proclamara, mas permanecia algo a instituir, a institucionalizar. Se Lapassade formulou a profecia, Lourau estabeleceu os fundamentos do movimento" ( "O movimento da obra de René Lourau" in René Lourau analista institucional em tempo integral, 2004:21) 175 Conforme Remi Hess (2004) no texto "O movimento da obra de René Lourau (1933-2000)" do livro "René Lourau analista institucional em tempo integral", organizado por Sônia Altoé.

176 “SE VOCÊ ZOMBA DA IDÉIA DE 'FAZER A ANÁLISE INSTITUCIONAL NA CAMA', É PORQUE CONFUNDE ANÁLISE COM PANACÉIA DE ESPECIALISTA, ANÁLISE COM DISCURSO INTELECTUAL E ANÁLISE COM DISCURSO SOBRE A AÇÃO. A análise não é o oposto da ação. A ação é a análise. Ou melhor, para não confundir sob um mesmo nome coisas tão diferentes como a análise feita por um especialista dotado de jargões e a análise no sentido que propomos aqui, digamos que a ação é o analisador, inclusive da análise instituída como atividade de especialista. FAZER AMOR TENDO, OU NÃO, PRAZER; NÃO FAZER AMOR; AÍ TEMOS ATOS LUMINOSAMENTE, OU SOMBRIAMENTE, ANALISADORES DE TODAS AS NOSSAS OUTRAS

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(1996:16). E

conquanto a Análise Institucional seja herdeira do projeto analítico (cada vez mais psicanalítico, por sinal) voltado para a descoberta da instituição na prática cotidiana e trabalhe também sob a forma de sociologia de intervenção pontual e sob encomenda (a socioanálise), utilizando-se de conceitos freqüentemente elaborados pela psicoterapia institucional e pela pedagogia institucional, ela também recobre, em parte, um outro domínio: o da psicossociologia, da intervenção em pequenos grupos (Lourau, 2004:127).

Esses elementos nos parecem relevantes em uma primeira aproximação

à Análise Institucional, a saber, segundo Lourau: a referência ao movimento

institucionalista com a radicalidade de propor e realizar um meio diferente de

“saber”; a proposição de Análise Institucional, a partir de uma ética (ou

comprometimento) que envolve a deflagração da crise; a autogestão177; a elucidação

dos analisadores; a análise permanente de suas próprias implicações (do analista).

Segundo Hess,

diz-nos Lourau que o sociólogo, o psicossociólogo, o terapeuta, o educador, parecem ter funções precisas: revelar a ação social, ajudar os grupos a funcionar, tratar os doentes, formar os jovens. Mas podemos considerar estes diferentes ofícios sociais sob um ângulo radicalmente novo: o daquilo que os especialistas têm em comum como profissionais inscritos na divisão do trabalho, o fato de intervirem em tal ou qual instituição, respondendo à demanda, em nome do conjunto das instituições e de sua garantia política, o Estado. Acerca de um terceiro que entra no meio de uma contestação, diz-se que intervém. Para arbitrar? A função do sociólogo ou do pedagogo não é, entretanto, a de um juiz ou a de um professor de código social. Para apoiar, com todo seu saber e todo o seu poder, uma das partes em causa? O psicólogo, o terapeuta etc. não são exatamente policiais. Então...? (...) O que Lourau propõe em A análise institucional é um método de intervenção em situação que consiste em analisar as relações que as múltiplas partes presentes no jogo social mantêm com o sistema manifesto e oculto das instituições. Outra originalidade do método reside no fato de o analista não

ATIVIDADES OU INATIVIDADES. É BANAL DEMAIS AFIRMAR ISSO? TANTO FAZ” (Lourau, 2004: 123). 177 “De fato, se o projeto autogestionário consiste não em tornar o indivíduo independente dos poderes, mas, ao contrário, em fazê-lo mestre dos poderes, ou seja, em socializar cada vez mais o Estado, a economia, a técnica e outras instâncias que até hoje funcionavam como destino exterior e inexorável, a autogestão aparece como a encarnação da ideologia democrática nas formas sociais reais, graças à ação instituinte dos indivíduos e não apenas da ação reguladora do direito. Instaurar a autogestão nada mais é do que desencadear um processo de democratização permanente e generalizada” (idem: 63).

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mais se situar no exterior dos grupos, coletividades ou organizações que lhe demandam a intervenção, mas como alguém implicado na rede de instituições que lhe dá a palavra (2004: 22-3).

Ao abordarmos as posições de Lapassade e Lourau sobre a Análise

Institucional estaremos também apresentando as críticas realizadas sobre a

dinâmica de grupo e sobre a psicossociologia francesa. Como vimos essas

referências estiveram na raiz do Movimento Institucionalista e Grupalista, através do

comprometimento de seus fundadores com as teorias e com as práticas grupais

criadas pela dinâmica de grupo e pela psicossociologia (bem como pela psicoterapia

e pedagogia institucional). Por isso, em sua emergência, o Movimento

Institucionalista e Grupalista posicionou-se criticamente em relação a essas

correntes, elaborando novas orientações, novos procedimentos, uma nova proposta

de intervenção junto aos grupos. Esse Movimento, como vimos, também expressou

a efervescência dos questionamentos quanto ao status quo dominante, quanto às

instituições burguesas, propondo-se a analisar os atravessamentos dessas

instituições através dos modos hierarquizados em torno dos poderes legitimados

socialmente (status econômico, profissão, conhecimento, sexo, idade, cor da pele,

opção sexual, opção religiosa etc.).

Nesse sentido, o Movimento Institucionalista e Grupalista confunde-se com as

proposições da Análise Institucional, embora, entendamos que o Movimento a

ultrapasse, no sentido de evocar uma resposta social engajada politicamente junto a

diferentes atores que gestam (ou desejam gestar) uma outra ordem no campo das

relações sociais. Por outro lado, a Análise Institucional também tende a ser

capturada no campo das "novas tecnologias" para abordar/intervir tanto sobre as

organizações e quanto sobre os movimentos sociais e este processo de

instrumentalização reproduz novas hierarquias, novas zonas de saber e de controle.

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3.2.1.1. A crítica às abordagens da dinâmica de grupo de Kurt Lewin e da

psicossociologia francesa

As técnicas inovadoras da dinâmica de grupo e as proposições da

psicossociologia chegaram à Europa após a Segunda Guerra Mundial. Junto aos

Planos de Reconstrução da Europa (Plano Marshall) vieram as novas orientações

criadas no campo da produção de mercadorias, nas fábricas, nas empresas. A

Escola de Relações Humanas, cuja origem está vinculada às experimentações de

Elton Mayo na Western Eletric Company (1924) inaugurou um tipo de colaboração

entre as ciências humanas e sociais e a gerência dos recursos humanos no âmbito

empresarial. O estudo das motivações envolvidas com o comprometimento grupal

entre os trabalhadores durante o processo produtivo, o estudo do clima ou da

atmosfera que envolve a produção e seus efeitos sobre a produtividade, trouxeram

novos elementos para a reflexão do staff gerencial. O teor dessas proposições

indicava o comprometimento dos pesquisadores com as melhorias das condições de

produção para os próprios trabalhadores e em benefício do aumento da

produtividade para os empregadores. O pacto consensual entre trabalhadores e

empregadores contribuía para encobrir a relação de exploração presente no

processo produtivo, eximindo-se da crítica ao mesmo. A psicossociologia industrial

surge nesse campo de intervenção178 e consolidou-se utilizando-se das técnicas de

178 "Usando procedimentos experimentais, Mayo chega a resultados não muito originais: fatores tais como a melhoria da iluminação, o aumento salarial e mesmo a introdução de uma pausa para o café são avaliados como benéficos. No entanto, algo de surpreendente – ao menos para os pesquisadores, supondo-se que o 'saber informal' operário já incorporasse tal 'descoberta' – está presente nos resultados. Em que pese o retorno das operárias às condições iniciais, o rendimento se mantém superior ao vigente antes das modificações, sugerindo a presença de um fator não identificado. O fator foi hipotetizado como sendo o próprio grupo, ou melhor, as boas relações informais entre as operárias, que persistem mesmo quando retirados os benefícios formais ou oficiais. Este fator – grupo ou relações humanas – é, a partir de então, erigido em objeto privilegiado de uma nova disciplina, denominada PSICOSSOCIOLOGIA INDUSTRIAL. Tal disciplina ou 'escola

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grupo desenvolvidas pela dinâmica de grupo (que lhe é posterior).

A dinâmica de grupo está vinculada aos estudos dirigidos por Kurt Lewin179. O

trabalho de Lewin funda a compreensão dos pequenos grupos e o que ficou

conhecido como “dinâmica de grupo”. A expressão “dinâmica de grupo” refere-se ao

entendimento do grupo enquanto um todo dinâmico, ao entendimento da relação

indivíduo/grupo, ao entendimento da perspectiva de mudança social apresentada

por Lewin. No dicionário técnico de psicologia organizado por Álvaro Cabral e Eva

Nick, encontramos a seguinte definição de Dinâmica do Grupo: “Mudanças de causa

e efeito que se verificam num grupo social. Modo como funciona um grupo social.

Estudo das técnicas e dos métodos para alterar a estrutura e (ou) o comportamento

de um grupo social”. Segundo Penna (1982), dinâmica de grupo envolve o conjunto

das relações humanas' rapidamente se estende à pedagogia, à clínica social, à prática terapêutica" (Rodrigues, 1993:461). 179 Segundo William A. Hillix e Melvin H. Marx, Kurt Lewin era Judeu e nasceu na Prússia (Alemanha) em 1890. Doutorou-se em Berlim em 1914. Lecionou em Berlim até 1932 (lecionou inclusive na Universidade de Berlim), quando foi para os EUA fugindo da perseguição aos judeus. Nos EUA Lewin trabalhou no Departamento de Bem-Estar Infantil da Universidade Estadual de IOWA como professor de Psicologia Infantil, depois, em 1944 foi para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) como diretor do Centro de Pesquisas de Dinâmica de Grupo. Morreu em 1947. Suas publicações foram organizadas em quatro volumes (compostos de artigos): Teoria dinâmica da personalidade (1935), Princípios de Psicologia topológica (1936); Problemas de Dinâmica de Grupo (1948), Teoria de Campo na Ciência Social (1951).As concepções teóricas de Lewin foram influenciadas pela Física e pela Geometria (Matemática). Lewin propôs a construção da Teoria de Campo aplicada à psicologia, “escolheu a topologia, uma relativamente nova geometria, porque lhe proporcionava um modelo matemático em que poderia basear a sua representaçãoconceptual dos processos psicológicos” (idem,1978:433). Lewin trabalhou com a noção de pesquisa-ação na perspectiva de operar mudanças sociais. Nos EUA, Lewin identificou as diferenças entre a formação social do alemão e a formação social do americano, verificando a importância da inserção social para a construção do indivíduo. Por sua origem judaica, também se interessou pelos problemas de inserção das minorias na sociedade, bem como, pelos problemas raciais existentes nos EUA. “Lewin não se restringiu ao estudo das formas assumidas pela liderança. Na verdade, alargou progressivamente seu campo de interesse, e logo se deteve no estudo das resistências normalmente observadas em relação às mudanças sociais” (PENNA, 1982:222). No estudo quanto à mudança nos hábitos alimentares demonstrou que “é mais fácil mudar atitudes coletivas do que individuais” ou seja, “é mais fácil levar um grupo a alterar seus hábitos do que levar um indivíduo à mudá-los” (idem). Neste sentido, identificou que há pouca eficácia na alteração de hábitos a partir de palestras e conferências; por outro lado, há alta eficácia de mudanças a partir de discussões em grupo. A mudança decorre do maior grau de interação e interpenetração dos componentes do grupo social. A mudança dos padrões incorporados pelos grupos obedece à seqüência: “1- trabalho inicial de descristalização dos hábitos enraizados; 2 – promoção de novas formas a serem fixadas através dos procedimentos de discussão em grupo; 3 – consolidação de novas formas de comportamento social” (idem, 1982:222-223).

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de técnicas de pesquisa, sendo uma nova área no campo das ciências sociais. A

dinâmica do grupo foi uma expressão criada para observar o desenvolvimento do

grupo enquanto tal, sua forma de funcionamento, sua forma de ação/interação. Por

sua vez, a dinâmica de grupo popularizou-se enquanto um conjunto de exercícios

para trabalho com pequenos grupos.

A definição de grupo proposta por Lewin180 (1936/1943181), incorpora os

seguintes elementos182:

o grupo é um todo dinâmico

o grupo é mais que a soma de seus membros

o grupo é diferente da soma de seus membros

o grupo social é um determinante fundamental do espaço de vida

o pertencimento a diferentes grupos exerce influências diferentes sobre o indivíduo

as diferentes influências dos grupos se interrelacionam

o grupo propicia a satisfação de necessidades pessoais - articulação indivíduo x

sociedade

o grupo reforça os papéis sociais

a educação se insere na sociedade e possui características do grupo sociológico

ao qual pertence 180 A tradução que utilizei através do livro “Problemas de dinâmica de grupo” (Cultrix) não menciona a data de publicação do livro no Brasil. Por isso, utilizarei as datas mencionadas nos artigos que compõe o livro. Estas datas referem-se à publicação original de cada artigo. 181 “Algumas diferenças sociais e psicológicas entre os Estados Unidos e a Alemanha” (1936) e “Reconstrução Cultural” (1943). 182 “Em Sociologia e Psicologia Social, grupo é definido como uma quantidade de indivíduos considerados como detentores de uma qualidade ou qualidades em comum. É constituído por duas ou mais pessoas, ocupando usualmente uma área limitada, de modo a poder haver comunicação entre elas pela voz ou gesto, as quais interatuam e se influenciam mutuamente e são reconhecidas pelo modo especial de interação. O mero sentimento de pertença ao grupo pode ser motivo de satisfação psicológica. No domínio da Psicologia da Inteligência, J. Piaget definiu grupo como a expressão dos processos de identificação e reversibilidade próprios dos fenômenos fundamentais de assimilação intelectual e, em particular, da assimilação reprodutora, ou reação circular” (Dicionário Técnico de Psicologia, 1989:161).

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a sociedade muda a educação, é mais difícil a educação mudar a sociedade

o processo de reeducação e reinserção do indivíduo à sociedade realiza-se de

forma mais eficiente através dos grupos

Lewin articula a sua formação em psicologia com a análise sociológica,

propondo uma compreensão que valoriza a dimensão social na formação do

indivíduo. À primeira vista, suas considerações reforçam a noção de funcionalidade

entre indivíduo e sociedade, articulando-se com a perspectiva de adaptação do

indivíduo ao meio. Mas, as concepções de Lewin sugerem um pequeno salto em

relação à sociologia funcionalista. Ele considera as necessidades individuais e a

mediação grupal, como espaço de satisfação das mesmas, contrapondo-se ao

individualismo (o indivíduo não existe fora do social) e apresentando uma

compreensão que identifica as fronteiras e os campos de interlocução entre os

indivíduos e entre os diferentes grupos, a nosso ver, numa tentativa de acompanhar

a complexidade das relações entre o indivíduo e as sociedades capitalistas

contemporâneas (norte-americana e européia) mediadas pelos grupos existentes.

Nesse sentido, os processos de mudança social são considerados do ponto

de vista da inserção dos indivíduos na sociedade pela mediação dos diferentes

grupos. A mudança individual é considerada na relação do indivíduo com o grupo.

Por outro lado, o grupo é considerado enquanto um “todo dinâmico”. Tal

compreensão implica na consideração do grupo enquanto uma estrutura183 que

possui uma singularidade em sua forma de funcionamento. Daí pode-se inferir que o

183 Definição de Estrutura do Grupo – “Relações entre os membros de um grupo social (atitudes de domínio ou subordinação, de contato ou distanciamento, de simpatia ou hostilidade etc.) e seus atributos como um grupo (dimensões, metas grupais, coesão, sentimento de nós ), definindo-o em relação a outros grupos. A dinâmica grupal é um dos principais campos de atividade da Psicologia Social” (Dicionário Técnico de Psicologia, 1989: 161).

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grupo atua de uma forma própria, com características que ultrapassam as

dimensões individuais (além da soma dos indivíduos). Por exemplo, um grupo de

cientistas brilhantes com objetivo de construir um projeto comum, pode resultar em

fracasso, não obstante a genialidade de cada cientista. A forma como o grupo se

estrutura envolve elementos dos quais os membros podem apropriar-se, mas

também envolve aspectos que estão além (ou aquém) do seu controle, ou do seu

conhecimento. O grupo constrói uma atmosfera que corresponde a sua estrutura.

Por sua inter-relação com a sociedade, o grupo é influenciado pelo ambiente

cultural no qual se insere. Desse modo, um grupo democrático será facilitado em

uma sociedade democrática. Segundo Lewin, “não se pode esperar que pessoas

que vivem num país sem essas tradições [democráticas] compreendam uma palavra

como democracia de qualquer outra maneira que não sejam as dimensões

conceptuais em que estão habituadas a pensar” (Lewin,1943:54)184.

O trabalho com grupos desenvolvido por Lewin envolvia o caráter de

experimentação através da pesquisa-ação. Os grupos de treinamento (T-group)

foram utilizados como meio de compreender o próprio funcionamento do grupo em

condições “artificiais”185, propícias à formação de pessoas para atuar seja como

líderes, seja como monitores (facilitadores), junto a outros grupos. Nesse, sentido, o

destaque sobre o próprio grupo centrava-se mais na sua própria dinâmica, nas 184 “Um segundo obstáculo importante à mudança de culturas é o fato de que um padrão como a democracia não se limita a problemas políticos, mas está inter-relacionado com todos os aspectos da cultura. Como a mãe trata o filho de um, dois ou três anos de idade; como são dirigidos os negócios; que grupo tem status; como se reage às diferenças de status - todos estes hábitos constituem elementos essenciais do padrão cultural” (idem:55). 185 O termo artificial foi utilizado no sentido de reforçar a dimensão do grupo como formado especificamente para o treinamento de monitores, para o aprendizado de liderança, ou mesmo para o diagnóstico de situações que podem estar presentes quando pessoas reunem-se em grupo. Então, o termo artificial contrapõem-se às situações concretas de experiências grupais. Contudo, é interessante focar o caráter concreto do trabalho para a formação de monitores, mas cuja análise também não era trabalhada nos grupos de formação. Nesse sentido, o grupo de treinamento, diagnóstico ou formação pode ser também compreendido como um grupo concreto, se, a análise sobre o mesmo for realizada sobre situações concretas (como a relação de poder entre monitores e participantes, como o desenvolvimento do processo pedagógico etc.).

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relações estabelecidas, nos vínculos afetivos, na interação entre os participantes.

Essa experimentação alimentava as produções teóricas sobre o grupo e delineava a

compreensão da “dinâmica dos grupos”. O estudo do clima ou da atmosfera grupal,

muito divulgado, em relação à produção sob as lideranças democrática, autocrática

ou laissez-faire, conhecido como experimentos de Lippit e White, ilustra um outro

tipo de procedimento de pesquisa, que criava uma situação fictícia (como um

laboratório) para investigar as produções (ou os efeitos) daí decorrentes.

Através dessas noções sobre a dinâmica de grupo, poderemos compreender

a crítica que foi realizada no interior da psicossociologia francesa, emergente na

década de 50, desaguando na ruptura realizada pelas proposições da Análise

Institucional.

De acordo com Rodrigues,

Seja nas investigações sob o modelo 'dos climas', seja naquelas que atendem a encomendas relativas a 'nossos problemas sociais práticos' , as questões são formuladas e resolvidas sob a égide do paradigma clássico da experimentação: amostragem, controle de variáveis, validade interna dos resultados obtidos. Quanto a tais critérios, o psicossociológo francês R. Pagès formulou duas objeções fundamentais. Primeiramente, os desafios com que nos defrontamos em um grupo experimental e em um grupo real – no sentido de não-artificialmente-constituído-para-a-investigação – não são da mesma natureza. No primeiro caso existe verdadeiro engajamento quer do experimentador quer dos experimentandos (meramente 'experimentados'). Concluído o processo, todos como que retornam ao ponto de partida. No segundo, espera-se algo do grupo, seja este algo uma melhoria do nível de vida, da influência social, ou mesmo uma vitória de certas idéias, a transformação da sociedade, etc.... Esta expectativa não tem, como no caso do grupo experimental, limites de tempo previamente fixados. Tampouco incorpora o mesmo nível de observação e controle presente nos experimentos, pois o engajamento em problemas concretos inclui uma aposta no futuro, uma assunção de riscos que atenua, ao invés de incrementar, o espírito crítico. Em suma, é pouco provável que se possa generalizar diretamente os resultados obtidos em um grupo experimental para um grupo real, sabendo-se que 'os fenômenos de grupo variam segundo o sentido que tomam, para os membros, os alvos do grupo'. Numa segunda objeção, mais uma vez distinguindo grupo experimental e grupo real, R. Pagès adverte que, no primeiro caso, os membros avaliam sua própria situação como sendo a de cobaias. Reagem a tal circunstância por resistências, atitudes de expectante reserva, ou, inclusive, falsificações deliberadas dos resultados. Os psicossociólogos experimentalistas chegaram a desenvolver técnicas de controle quanto a tais 'variáveis estranhas', como o uso de aliados secretos do

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experimentador, espelhos que permitem observar sem ser visto, etc.... R. Pagès denuncia os novos problemas introduzidos por estas tentativas de solução: 'a psicossociologia experimental encontra aqui obstáculos deontológicos complexos que se traduzem, no limite, por um esoterismo essencial. Com efeito, se um estudo do homem tem por condição a ignorância por parte dos sujeitos estudados, percebe-se as restrições às quais sua difusão se vê submetida' (1993:464-465).

Apesar de Lewin ter avançado em sua compreensão sobre as

experimentações com os grupos através da proposição do T-Group (grupo de

diagnóstico) enquanto espaço de elaboração do saber e do conhecimento sobre o

grupo, incluindo os participantes neste processo e superando a rígida separação

entre formadores e formandos186, o mesmo permaneceu como um laboratório

porque a metodologia pressupunha "um grupo não situado, ou melhor, intemporal, a-

organizacional e a-institucional. Este pressuposto fundamenta a expectativa de

transferência de aprendizagem, para quaisquer outros grupos, das tomadas de

consciência, atitudes e modos de relação desencadeadas no processo do T-Group"

(idem:468-469).

Sartre também criticou o princípio da pesquisa [lewiniana] como um idealismo

dissimulado.

Em Lewin (como em todos os gestaltistas), existe um fetichismo da totalização: em vez de ver nisso o movimento real da História, ele a hipostasia e a realiza em totalidades já feitas: É necessário considerar a situação, com todas as suas

186 Lourau relata o contexto de criação do grupo de diagnóstico. "Segundo os discípulos de Kurt Lewin, o dispositivo conhecido pelo nome de 'dinâmica de grupo', 'grupo de base', 'grupo de diagnóstico' etc. nasceu em circunstâncias estranhas. Lewin e sua equipe de formadores estavam reunidos em uma sala, à noite, por ocasião de um estágio de formação de alunos-professores, para discutir o que tinham feito durante o dia com seus grupos de formação – regulação quase banal para um staff de pessoas formadas em psicologia. Em outro prédio, entediados, estavam os alunos-professores. Percebendo que havia uma luz acesa, foram ver o que estava acontecendo e pediram permissão para participar da reunião dos formadores. Estes últimos ficaram escandalizados com tal demanda, que lhes soava como se colegiais exigissem um feedback sobre tudo o que sobre eles é dito, às escondidas, na sala dos professores. Felizmente, Lewin está presente e compreende de imediato o interesse deste procedimento instituinte. Os alunos-professores são aceitos. Participam da conversa sobre o ocorrido, durante o dia, entre os participantes dos grupos e entre os participantes e seus monitores. Nasce assim a dinâmica de grupo: o dispositivo do grupo centrado sobre o grupo, sobre a tarefa do grupo, exigia que fosse suprimida a separação 'normal', 'natrual', 'lógica', entre formadores e formandos" (2004:183).

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implicações sociais e culturais, como um todo concreto dinâmico. Ou ainda: "... as propriedades estruturais de uma totalidade dinâmica são diferentes das de suas partes". Trata-se, por um lado, de uma síntese de exterioridade: a essa determinada totalidade, o sociólogo permanece exterior. Pretende conservar os benefícios da teleologia ficando positivo, isto é, suprimindo ou dissimulando, ao mesmo tempo, os fins da atividade humana. Nesse instante, a sociologia põe-se para si e opõe-se ao marxismo: não afirmando a autonomia provisória de seu método – o que, pelo contrário daria os meios de integrá-lo – mas afirmando a autonomia radical de seu objeto (Sartre, 2002:62).

Já a psicossociologia francesa constituiu-se através de associações no

contato com estas produções norte-americanas. Como mencionamos antes, em

1950 o Comissariado Europeu, sob os influxos do Plano Marshall, enviou algumas

missões de intelectuais e jovens empregadores aos EUA para que se

"familiarizassem com as novidades em matéria de gestão de empresas e formação

permanente. Ou seja, com as técnicas de grupo" (idem:471). No retorno vários

grupos de pesquisa foram criados, entre eles a Associatión pour la Recherche el

l'Intervention psychossociologique (ARIP) com a qual Lourau e Lapassade

mantiveram contato187.

A perspectiva que Lourau e Lapassade irão sustentar neste debate, está

fundamentada na sociologia, numa apropriação crítica da sociologia.

Lapassade, como psicossociólogo (inclusive como co-interventor junto à

ARIP), desenvolve uma postura crítica em relação à psicossociologia, embora neste

processo ele avance em alguns momentos e recue em outros em relação à sua

compreensão da Análise Institucional a qual contribui para construir. A análise que

Lapassade realiza sobre o T-Group desvela as relações de poder através da

instituição monitor/grupo, monitor (saber anterior sobre o grupo) x grupo em

187 "Do privilégio assumido, no seio da psicossociologia praticada pela ARIP, da formação sobre a intervenção; dos novos meios onde a psicossociologia ganha público – pedagogia, psiquiatria, movimentos de trabalhadores sociais, religiosos progressistas; e, em especial, da tendência 'psicossociológica' da UNEF se compõe o trapézio no qual G. Lapassade praticará o 'salto mortal' entre a psicologia dos pequenos grupos e uma incipiente Análise Institucional" (Rodrigues, 1993: 474).

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construção do saber sobre si mesmo, questionando a perspectiva de não-

diretividade188 como um elemento de alienação (mascaramento) deste processo.

"Lapassade observa que na qualidade de técnica, o grupo não é senão um

instrumental entre tantos outros, incapaz, por si só, de colocar em questão as bases

da pedagogia tradicional" (idem: 475). E ainda,

quaisquer que sejam as variáveis assim introduzidas no nível dos objetivos, a situação é tal que um 'grupo' de participantes encontra um monitor que sabe que é monitor, sendo assim percebido pelos outros. A situação no início é definida como uma relação entre 'saber' e 'não saber'. Isto pode e deve ser em seguida contestado, mas esta contestação é a própria vida do grupo. A essência diretiva da pedagogia está e permanece em questão na instauração de um T-Group (Lapassade in Rodrigues, 1993:476).

Nesse sentido, a instituição do saber está presente no T-Group e permanece

sem que esse diretivismo pedagógico seja analisado, sem que a presença do

monitor seja questionada. "Salto mortal de Lapassade: os alegados não-diretivistas

são diretivos porque naturalizam as condições institucionais em que se desenvolve

sua prática, pressupondo a existência de uma 'transparência das relações inter-

humanas' onde, na verdade, existe assimetria constitutiva (instituição do saber,

instituição pedagógica, instituição da formação)" (idem:477).189

188 A orientação não-diretiva foi divulgada principalmente através de Carl Rogers, pelo obra Grupos de Encontro. Consiste em manter uma relação de facilitar ao grupo a compreensão sobre si mesmo, sem dirigir o processo, permitindo que o grupo encontre um caminho próprio. No entanto, o facilitador está presente ao grupo e constitui uma referência para o mesmo. 189 Um exemplo de como Lapassade processou a análise nos T-Group foi relatado por Rodrigues (idem:478) "enquanto meus colegas psicossociólogos se inscreviam na direção personalista e afetivista dos grupos T (,,,) eu insistia, pelo contrário, na dimensão intervencionista da situação. Além disso, o 'cliente' [UNEF], colocado em situação de seminário, não demandava menos que se conseguisse dissimular a instituição nos grupos. Porém sua demanda inicial, para cuja elaboração contribuí em grande medida previamente ao seminário, concernia à modificação dos métodos de formação no sindicato. E esta experiência mostrava bem que a demanda que concerne aos métodos e objetivos da formação (no sindicato, na empresa, etc...) é na realidade uma demanda de intervenção". Aqui o termo intervenção possui a conotação de interferir na situação no sentido mesmo que atribuimos ao interventor, como alguém do qual demandamos uma postura ativa e que contribua para mudar os rumos da situação. Ainda segundo Rodrigues (idem), "o modo de ação de Lapassade no trabalho com a UNEF tinha por meta a percepção, pelos participantes, de que a compreensão exclusiva de questões internas ao grupo – afetos, lideranças, simpatias, cliques, redes,

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Rodrigues (idem) utiliza uma metáfora para referir-se à Lapassade em sua

vinculação com a psicossociologia e simultaneamente em seu esforço de crítica que

o leva a proposição da Análise Institucional. Ela o compara a um "acróbata" que em

seus saltos ora aproxima-se de uma compreensão mais progressista da Análise

Institucional, ora recua em relação a essa compreensão.

Lapassade (1983) trabalha em seu livro Grupos, Organizações e Instituições

uma série de questões relacionadas à intervenção psicossociológica190. Uma delas

refere-se ao alcance das intervenções psicossociológicas em termos de

transformação da realidade, dialogando, ao que me parece, com a noção de

revolução. Segundo Lapassade,

As intervenções psicossociológicas encontram sempre as mesmas objeções ideológicas. Procura-se ver nelas apenas a última descoberta das classes dirigentes em seu esforço para dominar os trabalhadores, e para instituir a colaboração de classes na empresa capitalista. Não é certo que a realidade seja tão simples. É verdade que a intervenção nos grupos propõe-se algumas vezes, explicitamente, reduzir as tensões, fazer aceitar as mudanças (de cargos, de pessoal, de ‘política’). É igualmente verdadeiro, no entanto, que uma intervenção faz crescer a tomada de consciência dos problemas, e que ela revela todos os sistemas informais e conflitantes produzidos por antagonismos de interesses(1983:93).

etc.... – ocultava as condições de instauração do gruo como tal. A análise das mesmas exigiria responder a perguntas tais como: Quem decidiu sobre a formação? Onde, quando e como? Por quê?, etc.... – questões estas, sim, passíveis de exibir a presença da instituição no grupo". 190 Segundo Rodrigues (idem:483) "Em 1966 será publicado Grupos, organizações e instituições. Engana-se aquele que, impressionado pelo título, supõe que todas as questões de distinção conceitual estarão ali resolvidas. A estrutura do livro permite vislumbrar os problemas: após historicizar as teorias relativas aos grupos sociais, Lapassade aborda o que chama três 'níveis' ou 'instâncias' (grupal, organizacional e institucional) em capítulos separados, finalizando o trabalho pela tentativa de articulá-los em uma dialética que praticamente deve tudo ao Sartre da 'Crítica'. Ao tratar grupo, organização e instituição como 'níveis' ou 'instâncias', Lapassade dá a impressão de puramente acrescentar o último deles – freqüentemente esquecido – aos dois primeiros, tão bem (re)conhecidos pela psicossociologia ('grupos') e sociologia das orgnaizações ('grupos de grupos'). Ao definir as instituições, novamente o salto tem percalços. Elas são entendidas seja como 'grupos sociais oficiais, as empresas, as escolas, os sindicatos' – o que lembra instituição = estabelecimento – , seja como 'sistemas de regras que determinam a vida desses grupos' – o que se restringe ao 'instituído' de Cardan (Castoriadis). Recorrendo aos psicoterapeutas institucionais, Lapassade acrescenta que 'a instituição também existe ao nível do inconsciente do grupo' e, lançanco mão de L. Strauss, sugere que 'naquilo que cada indivíduo vive, está presente a estrutura universal da instituição parentesco".

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E ainda:

Na medida em que trabalha para superar a sua própria alienação profissional e política (...) na medida em que quer ser homem de luta na história, ator e ouvinte da palavra social, o psicossociólogo (o socioanalista), no próprio momento em que a sociedade o chama, parece sempre inassimilável, sempre marcado no que faz pelo sinal da mais profunda ‘despolitização’, além da política isolada e difundida em ‘modelos funcionais’ ou estruturais extraídos de sua origem sócio-política (idem: 96).

Por sua vez, “para os psicossociólogos, intervenção significa ação numa

organização social, a pedido dessa organização, para facilitar certas mudanças”

(idem: 86).

Há uma diferença entre a forma como Lapassade incorpora a dinâmica de

grupo na intervenção psicossociológica e a crítica de Sartre à Lewin (à qual nos

referimos anteriormente), seu fundador; difere também da posição de Lourau, que

não recorre à dinâmica de grupo como método de intervenção (embora Lourau

reconheça a importância da psicossociologia para a abordagem dos grupos mesmo

considerando as formulações críticas da Análise Institucional). Segundo Lapassade,

o fundamento teórico da prática psicossociológica é a dinâmica de grupo, sendo que

o seu propósito fundamental é a autogestão social. E continua:

Desde que seja desembaraçada de seus modelos mecanicistas, a dinâmica de grupo leva, na realidade, a uma dialética dos grupos. O emprego do termo ‘dialética’ justifica-se, desde que por ele se entenda uma lógica do inacabamento, da ação ‘sempre recomeçada’. O grupo, a organização será uma totalização em processo, que jamais é totalização realizada. A dialética dos grupos exclui a idéia da maturidade dos grupos. A própria burocracia é campo de um esforço perpétuo de unificação, que jamais atinge a unidade. A dialética será, portanto, para nós, o movimento sempre inacabado dos grupos. Essa dialética dos grupos tem a sua origem na Fenomenologia do espírito de Hegel (no capítulo que comenta o Contrato Social e a Revolução Francesa), e também na Crítica da razão dialética de Sartre (idem: 227).

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Embora Lapassade tenha criticado as formas de utilização da dinâmica de

grupo, inserindo a perspectiva analítica neste processo, ele continuou utilizando

alguns dos recursos por ela criados. É interessante que, mais adiante, Lapassade

também irá se aproximar da Bionergia (William Reich) e do Movimento do Potencial

Humano (Califórnia, EUA), utilizando-se também de técnicas corporais nas suas

intervenções com grupos191.

A nosso ver, é impossível conjugar a dinâmica de grupo com a dialética

dos grupos, pois ambas partem de matrizes diferentes e de abordagens

fundamentalmente divergentes sobre a sociedade. O texto de Lapassade nos

oferece a possibilidade de apresentar esta questão. O próprio autor traz elementos

que não são tratados com a mesma radicalidade pela dinâmica de grupo,

seja no grupo de análise ou na intervenção, o ‘material’ é linguagem, o propósito é a libertação de uma palavra plena, além das ideologias, além do desconhecimento, além da utilização da palavra, nos grupos, para efeitos de dominação (...) No grupo de análise, os mal-entendidos são permanentes, como é igualmente permanente o fracasso da comunicação, à imagem de nosso mundo. Ao mesmo tempo, todos se esforçam para comunicar, para dizer quem são, e para aprender a falar com voz própria (idem: 97).

E ainda:

a dialética dos grupos, das organizações e das instituições ensina-nos a evitar o uso dos conceitos de acabamento e de maturidade da análise dos processos e das organizações sociais. Ou antes, poder-se-ia dizer que a idéia de acabamento só aparece, na história, em ligação com a dominação: uma classe que sobe ao poder proclama a maturidade da história, a sua própria

191 Rodrigues (1993) enfatiza a posição política de Lapassade, que discorda de Sartre quando este refere-se à psicossociologia, mencionando que ela deve ser arrancada das mãos dos capitalistas e colocada a favor dos trabalhadores (como vimos no Capítulo 1). Mas Lapassade no livro Grupos, Organizações e Instituições tenta uma utilização (que se quer crítica) da dinâmica de grupo, desconsiderando as críticas metodológicas de Sartre à Gestalt lewiniana. Se, em Questões de Método, Sartre parece ingênuo ao considerar a importância das questões tratadas pela psicossociologia norteamericana para os trabalhadores, ele é rigoroso ao analisar os limites da abordagem sociológica positiva de Kurt Lewin, principalmente, considerando que Sartre estava trabalhando no sentido de compreender o grupo sob uma perspectiva crítico-dialética.

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maturidade, caso, por exemplo, da filosofia do iluminismo no século XVIII (idem: 256).

Ao utilizar o dispositivo da dinâmica de grupo (conforme a denominação

oferecida por Lourau, 2004) – o grupo diagnóstico, ou o grupo de treinamento –

procedendo à análise deste dispositivo, opera-se uma desconstrução do mesmo, ou

seja, ele deixa de existir enquanto tal. Melhor dizendo, ele torna-se objeto da

desconstrução, que em seu processo, elabora um outro tipo de abordagem e de

produção do conhecimento como uma nova produção grupal. Nesse sentido, o que

permanece do dispositivo dinâmica de grupo é a valorização do grupo enquanto

espaço de produção do conhecimento, mas, o modo e os meios como tal produção

será deflagrada são transformados e vão requerer uma abordagem inicial diferente,

que em sua proposição já considere, de partida, a necessidade da análise sobre os

procedimentos adotados e a perspectiva de autogestão a ser motivada neste

processo. É preciso enfatizar que a autogestão implica no compartilhamento de

poder ou no exercício coletivo do poder sobre todos os níveis envolvidos, e não

apenas na relação pedagógica de formação, envolve então a organização da própria

formação e a complexificação quanto às relações de poder, de controle e

subalternidade envolvidas na própria relação pedagógica.

Desse modo, é possível compreender que o próprio Lapassade tenha

observado a necessidade de criar uma nova referência para as abordagens grupais,

extrapolando as concepções inerentes à dinâmica de grupo. Conforme Rodrigues,

nos livros e artigos que virá a publicar nos anos 70, Lapassade escolherá um movimento como sua efetiva acrobacia, assim sintetizando o nascimento da Análise Institucional: 'Cheguei à análise institucional entre 1960 e 1962 refletindo simultaneamente sobre a forma-seminário (que é o instituído da formação) e sobre a instituição (no sentido ativo do termo) da relação de formação (enquanto separa os formadores, postos em situação de 'adultos' e os 'formados', assimilados a 'crianças' que 'devem formar-se', mesmo quando

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estes seminaristas sejam de idade adulta). A análise institucional nascerá destas perguntas formuladas a propósito dos grupos T: a) que ocorre com a 'forma' (o instituído) da formação? b) que significa o fato de instituir a formação? Logo: que é a instituição (instituinte/instituído) da formação?" (1993:481).

Ainda que o autor, em seu percurso entre a psicossociologia, a análise

institucional e a socioanálise avance e recue em termos de suas proposições,

inclusive em termos de suas opções políticas mais radicais192, ele consolidou-se

como uma referência crítica (inclusive como um psicossociológo crítico)193

principalmente a partir de suas intervenções, o que o transformou numa pessoa

importante para o Movimento Institucionalista e Grupalista, para a Análise

Institucional e para a Socioanálise.

3.2.1.2. As principais concepções e categorias da socioanálise

A colaboração entre Lapassade e Lourau194 possibilitou a emergência da

192 No processo de "institucionalização da Análise Instittucional" Lapassade também foi identificado como um dos agentes que a "instrumentalizou", submetendo-a à lógica de formação e organização dominantes. 193 Rodrigues, 1993. 194 René Lourau descreve seu encontro com Georges Lapassade, "quem éramos, então, Georges Lapassade e eu? Dois 'solteiros bearneses', tipo social e regional que Pierre Bourdieu descreveu em importante artigo. Estávamos, entretanto, um pouco fora, ou em interferência, com o campo de Bourdieu, pois fazemos parte da massa de bearneses, gascões, occitanos, que fugiram do país natal e preferiram (?) o exílio no norte (em Paris, no caso). Nenhum estudo sociológico deste antigo fenômeno de massa teve a repercussão de Os três mosqueteiros, história de três (ou, como vimos, quatro) 'cadetes da Gasconha'. Nossas origens sociais influíram igualmente sobre nossas carreiras. O filho de pequeno camponês (Georges Lapassade) e o filho de operário-motorista (René Lourau) tinham um único horizonte de ascensão social: a Escola Normal de professores. Em outras épocas, a alternativa stendhaliana, o Vermelho e o Negro, teria podido fazer de nós militares de carreira ou padres (eu tenho um lado jansenista e Georges adora comandar!). Em 1967, Georges tinha 43 anos e eu, 34. Nossas vidas afetivas nada tinham de brilhante. A dimensão 'máquina celibatária' do militante não explica tudo. Atingindo quarenta anos, Georges havia tentado, em vão sair da 'quarentena' do celibato e, à espera da improvável liberação do pós-68, vivia mal sua homossexualidade. Por minha vez, depois de várias tentativas – tardias, de resto – de encontrar uma mulher, eu era vítima consentida de bloqueios psíquicos e físicos. O avesso de minha vida não era algo bonito de ver e eu não podia falar a esse respeito com ninguém – só muito mais tarde, após o fracasso do casamento, iniciei uma psicanálise" (Lourau, 2004:240-241). Lourau também descreve o ato fundador de Lapassade em relação à Análise Institucional "A AI, por sua vez, foi 'inventada' por

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Análise Institucional, na França, como um campo de intervenção e de construção de

um saber. Como vimos, Lapassade oscila entre a crítica interna à psicossociologia,

como um psicossociólogo crítico, e entre as formulações que enuncia sobre a

necessidade da análise quanto a presença das instituições nos T-Group e a

manutenção hierárquica que representa e que pode ser superada em direção a um

fazer, de fato, auto-gestionário (ou auto-gerido). Sua compreensão sobre a

instituição está próxima da sociologia ao focalizar as relações de poder instituídas e

ao enunciar a possibilidade de instituir formas não hierárquicas como referências na

produção social. Lourau, também próximo à sociologia trabalha na fundamentação

da Análise Institucional, sendo fiel à desconstrução do saber, ou construindo um

saber, uma forma de conhecimento que se quer transitória. Lourau e Lapassade

são responsáveis pela criação da socioanálise, um método de intervenção dentro da

Análise Institucional.

Face ao contexto histórico no qual a Análise Institucional foi engendrada,

muitas práticas diferenciadas e muitos elementos teóricos divergentes entre si a

atravessaram, de acordo com os diálogos estabelecidos no interior do próprio

Movimento Institucionalista e Grupalista (vimos acima como a dinâmica de grupo e a

psicossocilogia desenvolvida na França estiveram na raiz da Análise Institucional). A

influência sociológica a que nos referimos é um desses elementos. Porém trata-se

de um tipo de sociologia anti-positivista e que produziu a crítica da burocracia e das

instituições burguesas presentes inclusive nos países socialistas.

No livro Chaves da Sociologia (publicado em 1971), produzido por Lourau e Lapassade durante um estágio de militantes, estudantes da MNEF (Mutuelle Nationale des Étudiants de France), quando os participantes demandaram que o conjunto do dispositivo do estágio fosse autogerido, em vez de continuar como propriedade privada do staff. No romance familiar da AI, recorda-se que o monitor que compreendeu mehor esta demanda, Georges Lapassade, ao fim do estágio foi simbolicamente jogado em um canal (pouco profundo). Felizmente, os estudantes instituintes realmente não jogaram fora o bebê junto com a água do banho... (idem: 183).

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Lapassade, os autores distinguem195 a intervenção socioanalítica em relação à

intervenção psicossociológica ou organizacional. A intervenção socionalítica se

diferencia pela análise da encomenda e da demanda; pela autogestão do coletivo-

cliente; pela livre expressão (tudo-dizer); pela elucidação da transversalidade; pela

elaboração da contratransferência institucional e dos analisadores196. Na explicação

dos autores, "os conceitos de encomenda, demanda197 e intervenção são antes de

mais nada de origem sociológica. Os de livre expressão, transferência e

contratransferência institucional provêm da psicanálise, da psicossociologia e da

psicoterapia institucional, que encontrou, em Pavlov, o conceito de analisador”

(Lourau e Lapassade in Rodrigues, 1993:827).

No texto traduzido sob o título "Uma apresentação da Análise Institucional"

(1977)198 Lourau apresenta sua compreensão sobre a autogestão, a encomenda e a

demanda, o analisador, a transversalidade, a implicação do analista, desenvolvendo

críticas internas à Análise Institucional. Ele inicia assim o texto 195 Segundo Rodrigues (1993), a partir de 1969/70 multiplicam-se na França e no exterior, as solicitações de intervenção socioanalítica (principalmente por parte dos estabelcimentos que viveram análises generalizadas sem a presença de um especialista durante o maio de 68). Neste período, a análise institucional também foi "demandada" como um novo produto no mercado das ciências sociais. Em resposta, Lapassade e Lourau buscam diferenciar a socioanálise de outras formas de intervenção e a análise da encomenda e da demanda é enunciada como um cuidado para evitar a própria instrumentalização da socianálise. De acordo com a autora, [todas as solicitações de trabalho] foram encomendadas ora a R. Lourau, ora a G. Lapassade, e levadas a cabo por algum deles em separado ou ambos em conjunto. Com freqüência se incluíram outros interventores, pertencentes a algum dos GAIs [Grupo de Análise Institucional] criados, a partir de 68, em diversas cidades (Reims, Paris, Bruxelas, Dijon, Grenoble, etc...) Não temos o intuito de detalhar o andamento dos trabalhos, mas o de realçar as direções então privilegiadas, quais sejam: o estabelecimento de um modelo de intervenção socioanalítica; uma preocupação especial com os problemas da encomenda e da demanda ; a fixação de bases doutrinárias, destacando-se os conceitos de transversalidade e analisador, bem como a teorização dos efeitos e modos de ação (Rodrigues, 1993:827). 196 Conforme Rodrigues (1993). 197 "A análise da demanda compreende a encomenda oficial do 'staff-cliente' (responsáveis da organização), a demanda implícita defasada em relação à encomenda ou escondida por trás dela, e a demanda do 'grupo cliente' composto pelos membros e usuários da organização" (Lapassade e Lourau in Rodrigues, 1993:829-830). 198 Originalmente texto interno inédito da Universidade de Paris XII, traduzido por Paulo Schneider e incluído no livro "René Lourau: analista institucional em tempo integral" organizado por Sônia Altoé (2004).

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Sociólogos de um novo tipo – às vezes se auto-intitulam ou são denominados 'contra-sociólogos' – se reúnem, há alguns anos, em torno da análise institucional e da socioanálise. Constituem uma tendência no interior de uma corrente mais vasta da análise institucional e se voltam, sobretudo, para os problemas de educação e de terapia. Embora conserve um contato com tais práticas (minimamente, pelo ofício de professor ou de educador especializado, muito freqüentes), a tendência de que falo aqui se apega intransigentemente a uma outra disciplina, constituída e oficializada há muito tempo: a sociologia (Lourau, 2004:128).

A psicossociologia, a pedagogia e a psicoterapia institucional mantiveram, na

produção francesa, um estreito diálogo com a psicanálise, marcado pelos

questionamentos realizados por Jacques Lacan. Assim, a Análise Institucional

também foi engendrada nesse convívio com a herança psicanalítica, a qual foi

questionada e subvertida por alguns autores, e intensificada por outros. Por outro

lado, a psicossociologia, a pedagogia e psicoterapia institucional também sofreram

influências da Análise Institucional, ressignificando muitos de seus pressupostos199.

Tais atravessamentos dificultam a apreciação da socioanálise em sua

singularidade. O que a diferencia da psicossociologia e da intervenção analítica no

199 Após as críticas de que foi o alvo, a psicossociologia também foi “ressignificada” na produção de alguns psicossociólogos e pode ser considerada como "uma vertente da Psicologia Social. Seu campo é bem delimitado: é o dos grupos, das organizações e das comunidades, considerados como conjuntos concretos que mediam a vida pessoal dos indivíduos e são por esses criados, geridos e transformados. Portanto, as condutas concretas dos indivíduos, grupos, organizações e comunidades, no quadro da vida cotidiana, são o objeto de pesquisa, reflexão e análise dessa disciplina" (Maria Novais da Mata Machado et. alli, no prefácio ao livro Psicossociologia análise social e intervenção, 2001:9). Ardoino e Lourau indicam no livro As pedagogias institucionais (2003), as contribuições da Análise Institucional às ciências da educação e ainda, segundo os autores, "desde o início da psicoterapia institucional, no pequeno núcleo do hospital psiquiátrico de Saint-Alban, o tema (no sentido de Holton) que alimentava o paradigma desalienista era político e revolucionário. O entusiasmo militante animava a Société du Gévaudan. Daumezon, um visitante periódico desse 'colégio invisível', invoca, a propósito, o caráter meridional dos pioneios. Tosquelles estima, por seu lado, que, se as idéias que ele importara da Catalunha republicana foram bem aceitas, é porque havia uma espécie de convivência occitana (ele anexa, generosamente, a Catalunha à Occittânia!). Essas implicações étnicas não nos devem fazer esquecer as implicações ideológicas e políticas: se Balvet, diretor de Saint-Alban até 1943 (Bonnafé o sucedeu) era cristão e se confessa, em 1943, 'pétainista', uma boa parte da trupe, como vimos, tinha forte coloração marxista e libertária. Essa coloração era a mesma dos pioneiros da Pedagogia Institucional e da AI. Lapassade sempre foi percebido, antes de tudo, como um agitador de pequenos grupos. Félix Guattari deixa a lembrança e a saudade pungente de outro grande agitador 'molecular'. O horizonte político – não partidário, e mesmo antipartidário – de uma mudança global necessária é paradigmático dentro da(s) pedagogia(s) institucional (is)" (Ardoino e Loura, 2003:27).

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modelo psicanalítico?

Segundo Ardoino e Lourau

Apenas em 1966-1967, particularmente quando da intervenção na Paróquia Estudantil da Universidade de Tours (Lapassade e Lourau), tendo sido assimiladas as contribuições de Van Bockstaele200 após as da dinâmica de grupo, é que a intervenção se afirma oficialmente como socioanalítica. Porém, os procedimentos do GPI [Grupo de Pedagogia Institucional], após os do CAIP [Centro de Análise e de Intervenção Psicossociológica], já se inscreviam (notadamente por intermédio de diversos estágios, em Royaumont e outros lugares) ao mesmo tempo como pedagógica e socianalítica; mais precisamente, estava sob a bandeira da autogestão201: paradigma pedagógico-político (2003:26).

Acima nos referimos aos procedimentos que caracterizam a socioanálise. A

compreensão de Lourau sobre tais procedimentos auxilia-nos a esclarecer a

singularidade do método socioanalítico, embora saibamos que outros analistas

institucionais praticam a Análise Institucional através de outros meios. Vejamos

através de Lourau (2004202) os seguintes elementos da socioanálise:

a) Autogestão

No plano mais manifestadamente político, o conceito de autogestão da

200 "A idéia de análise coletiva das práticas – inclusive e desde o início da prática do pesquisador-praticante – é mais antiga que sua especificação, primeiro por Van Bockstaele e, em seguida, pela AI. Será retomada por Bourdieu no momento em que este sugerir, para a praxiologia das ciências sociais, o que Edgar Morin chamou de reflexividade. Necessidade de uma imaginação socioanalítica, que viria a se somar à imaginação sociológica de Mills, à imaginação dialética de Jay, à imaginação científica de Holton" (Ardoino e Lourau, 2003:27). 201 "A maior parte das correntes autogestionárias recentes ou atuais põe no coração de seus projetos ou de suas experiências a autogestão da formação ou mesmo a autogestão como única formação possível. Na América Latina, atualmente [década de 90?], bem mais do que na França, a imaginação socioanalítica tem livre curso, associando AI e autogestão comunitária. No México, os socioanalistas podem se reconhecer nos meios ligados ao Partido da Revolução Democrática (PRD), animado por Cuauhtemoc Cardenas, candidato à Presidência da República, mais do que no por demais célebre Partido Revolucionário Institucional (PRI). No Brasil, é em torno do PT (Partido dos Trabalhadores) e de seu candidato á Presidência da República, Lula, que se agrupam os praticantes e pesquisadores da AI. Na Argentina, a corrente institucionalista é muito importante; no Uruguai, a alternativa política não está mais clara que na França ou em outros países europeus, mas a conotação de crítica social, quase sempre apartidária, permanece evidente" (idem:28). 202 Como nos referimos anteriormente, o texto citado é de 1977 e foi traduzido e organizado no livro "René Lourau: analista institucional em tempo integral" publicado em 2004.

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intervenção (incluindo a autogestão do pagamento) – originado, em parte, da autogestão pedagógica praticada pelos defensores da pedagogia institucional – deve muito à descoberta (ou redescoberta) desta noção política através da experiência iugoslava e, posteriormente, da experiência argelina. Não é por acaso que a análise institucional se refere, ou é referida, às correntes históricas do anarquismo e da ultra-esquerda e, por vezes, também a certas tendências trotskistas. Os critérios de validação das intervenções socioanalíticas não são fabricados ad hoc pelos socioanalistas: existem nos movimentos sociais, nas crises e em outras situações de ruptura, das quais a história está repleta de exemplos após a Comuna parisiense de 1871, para nos atermos à época moderna (Lourau, 2004: 131).

b) Encomenda e demanda

Os conceitos de análise da encomenda e da demanda de análise manifestada, ou não, pelo conjunto do grupo-cliente (e não somente, à diferença da encomenda, pelo staff dos responsáveis ou de outras pessoas portadoras de tal solicitação) são igualmente, e primordialmente, políticos. Surgiram por referência a uma análise mais global de todo o contexto da intervenção: todo o antes, o exterior e o depois da intervenção estão no campo de análise, incomparavelmente mais vasto que o campo de intervenção, limitado a um estabelecimento, a uma associação etc (idem:131).

c) Analisador

O conceito de analisador foi elaborado pela psicoterapia institucional, que o tomara por empréstimo da medicina, da biologia, da física e, singularmente, de Pavlov. Pouco a pouco, o conceito ganhou importância e significação tais que, atualmente, está ameaçado de mitificação, tendendo a tornar-se um pequeno 'truque' profissional. É necessário lembrar, portanto, que os analisadores – acontecimentos ou fenômenos reveladores e ao mesmo tempo catalisadores; produtos de uma situação que agem sobre ela – não deveriam ser abusivamente confundidos com as intuições individuais de uma ou outra pessoa implicada na situação, mesmo que tal pessoa seja um socioanalista (idem: 132).

d) Transversalidade

O conceito de transversalidade sofreu em parte a mesma desventura, a mesma inflação. Oriundo das pesquisas psicoterápicas e psicanalíticas de Guattari, este conceito foi ampliado por nossa tendência. Designa o que aparece parcialmente na pré-intervenção ou pré-enquête que antecede a intervenção e, sobretudo, no próprio decurso da intervenção, a saber: o entrecruzamento de pertencimentos e referências (sociais, econômicas, ideológicas, políticas) do coletivo constituído pelo grupo-cliente e pelo(s) socionalista(s), podendo uma parte mais, ou menos grande do grupo-cliente estar ausente do campo de intervenção, mas nunca do campo de análise. Se há entrecruzamento e transversalidade, não é apenas porque os pertencimentos e referências são múltiplos, mas igualmente porque a colaboração ou a coabitação que definem a

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existência do grupo-cliente (um estabelecimento escolar, por exemplo) criam um consenso de fato, uma horizontalidade, um grupismo de 'grande família', que vem atravessar a verticalidade dos pertencimentos e referências interiores e exteriores, do mesmo modo que a horizontalidade, por seu turno, é atravessada pela verticalidade (idem).

e) Implicação

O conceito de implicação também deve muito às pesquisas da tendência psicanalítica. Ele requer a análise do saber conscientemente dissimulado e do não-saber inconciente próprio de nossas relações com a instituição. O fato de que este problema tenha sido inicialmente abordado pelos psicanalistas e psiquiatras, que lidavam com doentes mentais definidos pelo relaxamento ou pela ruptura dos vínculos com as instituições, é bastante característico. Sob a forma da transferência e da contratransferência institucionais, inicialmente a implicação obrigou o terapeuta a se situar em relação a todas as determinações da instituição, entendida como o hospital psiquiátrico. Em seguida, a implicação veio a designar também todas as determinações transversais ao estabelecimento onde tem lugar a análise institucional – determinações em grande parte exteriores, estabelecidas para além do campo de intervenção, mas nunca exteriores à instituição, no novo sentido do termo (idem:133).

Ao enunciar os conceitos e procedimentos que caracterizam a intervenção

socioanalítica, diferenciando-a de outras formas de intervenção, Lourau o faz

focando as dimensões institucionais, teóricas, políticas, econômicas em relação aos

mesmos, situando-os historicamente, sob a perspectiva de sua

construção/elaboração enquanto prática social.

Assim, os procedimentos, ainda que ofereçam uma referência para os

socioanalistas e para os analistas institucionais, necessitam para serem

compreendidos e postos em operação na prática interventiva, do referencial teórico,

político, institucional em que foram construídos, ou seja, não podem ser

considerados em si mesmos, ou como uma "receita" capaz de orientar uma

intervenção bem-sucedida. Nessa perspectiva é necessário um aprendizado a ser

desenvolvido pelo socioanalista que o habilite a intervir a partir destas referências. E

tal aprendizado está orientado para uma apropriação singular, subjetiva, que

instaura formas diferentes de intervenção e de produção teórico-operativa. Há,

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então, coerência entre a perspectiva socioanalítica, que valoriza os processos de

criação e de ruptura com situações enrijecidas, e o aprendizado do socianalista em

seu processo de singularização. Nesse sentido, a diversidade e a diferença são

componentes essenciais para a intervenção socioanalítica, e a comunicação entre

as apreensões singulares constitui também um aprendizado na interlocução entre os

próprios socioanalistas.

Entretanto, observamos que o conceito de analisador oferece um

“contraponto” a essa perspectiva de singularização da intervenção socioanalítica.

Pensamos que o analisador ou os analisadores focalizam a atenção do socioanalista

para o contexto no qual este atua. Entendemos que o contexto, nesse caso, inclui

todos os atravessamentos possíveis de serem apreendidos nas situações

emergentes: a circunscrição histórico-econômico-material em termos globais, a

circunscrição organizacional, as relações sócio-institucionais, as relações de forças,

as tensões e as ambigüidades na formação dos diferentes vínculos.

Ao enfatizar os equívocos na apropriação do conceito de analisador, em

nossa opinião, Lourau destaca a dimensão contingente presente nesse conceito,

indicando que o analisador ou os analisadores emergem nas situações trabalhadas,

sendo o produto dessas situações e não podem ser reduzidos a um recurso analítico

aplicado às situações.

Por outro lado, a socioanálise foi considerada por Ardoino e Lourau (num

texto original datado de 1994, cuja tradução que utilizamos foi publicada em 2003)

como uma retórica da Análise Institucional203.

203 "O psicopedagogo Jacques Wittver disse certa vez que a socioanálise era a retórica da AI. O contexto dessa avaliação não deve ser ignorado: uma defesa de tese sobre 'A pedagogia socioanalítica' (Yves Etienne, 1983). O projeto do candidato a doutor era claro: por meio de sua própria experiência de formação, e a fim de evitar o risco de tecnicização e funcionalização da PI (variedade da 'pedagogia nova' que instrumentaliza a instituição), introduzia a idéia de serem, pedagogia e intervenção socioanalítica, uma só coisa; de não ser o trabalho do professor, do

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Nesse sentido, a socioanálise não pretende ser um método da Análise

Institucional ou um modo de intervenção psicossociológico. "Seu campo de análise

não é mais o grupo, as inter-relações, o inconsciente grupal etc., mas a instituição

do encontro de grupo" (Ardoino e Lourau, 2003:26).

Desse modo, as referências construídas por Lourau e Lapassade (1971) e

posteriormente por Lourau (1977), contribuíram para um entendimento da

socianálise enquanto intervenção, ou Análise Institucional em ato, diferenciando-a

das demais formas de intervenção, fossem psicossociológicas, pedagógicas ou

psicoterapêuticas (ainda que o diálogo/debate com essas produções tenha

continuado estreitamente também no campo da socioanálise).

Autogestão, institucionalização, implicação, analisador, análise coletiva da encomenda e das demandas sociais e intervenção são, ou poderiam ser, conceitos tanto da ciência política como da AI. Pesquisa-ação, pesquisa-participação ou observação participante, a socioanálise nada tem a temer por ser engajada, desde que se permita analisar e assumir as implicações de seu engajamento. Kurt Lewin não se envergonhou de elaborar um método revolucionário de formação, considerando que, após o Holocausto, seria preciso encontrar, para seus correligionários judeus, uma educação centrada sobre o grupo e sua dinâmica. Igualmente atento ao campo social foi seu quase contemporâneo argentino Pichon-Rivière, com sua teoria dos grupos operativos. Este grande psicanalista era, além do mais, extremamente sensível ao imaginário e à subversão surrealistas (idem:28).

Contudo, ao mesmo tempo, Lourau e Ardoino afirmam o caráter retórico da

socioanálise, buscando evitar uma instrumentalização da Análise Institucional204,

formador, distinto do efetuado pelo interventor no curso de uma sessão externa e sob encomenda" (Ardonio e Lourau, 2003:26). 204 "Surgida entre 1962 e 1968 em meio às agitações mobilizadoras dos meios estudantis e intelectuais de esquerda – época em que seus atores participam de experiências inovadoras nas escolas, liceus e agremiações políticas –, a socioanálise se defronta, na primeira metade dos anos 70, com uma situação paradoxal: tentando dignificar-se a olhares epistemológicos por um intenso trabalho de singularização do quadro conceitual – associado a interevenções a pedido –, vê-se ameaçada, através do mesmo processo, de uma indesejável institucionalização/panoptização. Sabe-se que trabalha com conceitos que não se confundem com os de outros tipos de intervenção: instituição como união/tensão entre instituinte e instituído, transversalidade, implicação etc... –, mas se a pode encomendar como a qualquer outra atividade mercantil. Está-se informado de que com ela a instituição não se confunde com o estabelecimento – distinção facilitada pelo término de análises

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reconhecendo a socioanálise também como "imaginação socioanalítica" cuja

inspiração provém dos movimentos das "vanguardas artísticas e culturais". Nesse

sentido, os autores indicam que

o surrealismo está muito presente na cultura dos iniciadores da psicoterapia institucional e da PI. Interroga desde sempre o projeto socioanalítico: como questionamento radical da linguagem e da escritura das ciências sociais; como imaginário da transformação da sociedade. Para além de seus avatares estetizantes, a utopia concreta que o surrealismo reclama com insistência é a de uma revolução da vida cotidiana. Que organizações de políticos profissionais tenham, sem vergonha, retomado a palavra de ordem de Rimbaud – 'mudar a vida' – não nos deve escandalizar. Homenagem prestada pelo vício à virtude... Após os surrealistas, foram os letristas e os situacionistas que vieram confundir idéias loucamente pedagógicas sobre os grupos e a analisar a instituição cultural. O movimento das vanguardas artísticas, artístico-políticas e políticas é, para os institucionalistas, o laboratório social que torna visível a instituição invisível; o processo dialético de institucionalização/autodissolução formula, em sua verdadeira grandeza, as implicações do processo institucional em geral. Estamos todos implicados na institucionalização das forças sociais que são o objeto de nossas análises, de nossas intervenções, de nossa penetração socioanalítica (idem: 28-29).

E os autores resumem,

Tudo isso, que se exprimiria melhor na escritura poética do que pelos cânones da escritura científica; tudo isso que, no estado atual da instituição, não se pode exprimir – o elemento místico – é exatamente o projeto mítico da socioanálise geral, 'longitudinal', inscrita na duração (e não mais técnica breve de intervenção, focalizada sobre o hic et nunc). Nesse sentido, a avaliação que escapou a um dos membros de uma banca de doutorado cujo objeto era AI conserva toda a sua significação, com apenas uma ressalva: a socioanálise é mesmo, antes de tudo, retórica da AI, e também sua poiética (poiesis). Mas, por outro lado, ela desempenha o papel secundário, sem ser por isso acessório, de laboratório a céu aberto (idem:29).

Lourau (no referido texto, original de 1977) também destaca a dimensão de

autodissolução da análise, no sentido de "dissolver o saber instituído (efeito de

'revelador') e modificar as relações de forças constitutivas das formas de

representação instituída (efeito de 'catalisador'), tal é o trabalho dos analisadores"

internas do liceu, das associações... –, mas, por isso mesmo cristaliza-se uma relação externa de clientela" (Rodrigues, 1993:845).

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(2004:136). Nesse sentido, os analisadores são as situações emergentes no

contexto da análise que propiciam a "revelação" das relações de força em presença,

pontencializando a sua superação em direção a uma coletivização das ações, ao

compartilhamento do poder. Segundo Lourau,

Tornar a palavra comum a todos é um processo, uma luta, cujo suporte e desafio residem não na reivindicação formal de direitos, mas no ato de partilhar uma prática, a busca de uma troca isonômica ('simbólica'? – cf. Baudrillard) e de uma comunidade de trabalho e de vida: aquilo que Reich, em textos dos anos 1937-42, chamava 'A democracia do trabalho' – o trabalho como componente da libido, a libido como componente do trabalho –, e que foi esboçado nas experiências mais extremas dos movimentos revolucionários, tanto no milenarismo alemão do século XV quanto na autogestão agrícola em Aragon de 1936-37. Nessas condições, a coletivização e a permanência da análise não mais aparecem como uma descontinuidade obsessiva e inviável, a negar abstratamente os imperativos contínuos da vida e da sobrevivência (cuidar das crianças, sair para o trabalho em hora predeterminada etc.), mas como uma práxis, uma nova maneira de viver e de trabalhar. Vêem-se superadas, então, as utopias rétro do 'não-trabalho', antivalor autonomizado que acaba por reproduzir, até a paródia, as conseqüências éticas do trabalho explorado e todo o caráter sagrado da lei do valor (idem:137).

Mesmo destacando o caráter autodissolvente da análise institucional,

inclusive pelo processo de coletivização que visa instaurar e no qual o poder do

socianalista enquanto um perito está relativizado, Lourau reconhece a necessidade

(social) do socioanalista, ou o poder nele investido, no sentido de "vergar as

relações sociais". O problema identificado pelo autor está na manutenção deste

lugar de poder do socionalista e a "vocação" autodissolvente da análise. O

socionalista trabalha pela autodissolução da instituição que lhe investe poder na

sociedade. Assim, a "autodissolução da instituição da análise que, em paralelo e à

maneira da autodissolução das vanguardas culturais (artísticas, políticas, artístico-

políticas etc.), experimenta e 'profetiza' a autodissolução generalizada das formas do

velho mundo pelas forças do novo" (idem: 139).

Os elementos destacados acima nos auxiliam na compreensão da

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socioanálise. O comprometimento do socionalista, na concepção de Lourau, é com

as possibilidades de coletivização do poder, ou de des-hierarquização do poder e de

suas articulações com o saber especializado e constituído, permitindo que este

possa ser exercido coletivamente. É interessante observar que o investimento de

poder, por exemplo, numa profissão ou numa pessoa em especial, autoriza a

centralização das decisões nestas instâncias, produzindo uma espécie de

desresponsabilização dos demais não investidos do mesmo poder. "Eles decidem

por nós". A ruptura com este tipo de hierarquização devolve a responsabilidade de

decisão e de escolha a todas as pessoas nela envolvidas. Este problema engloba

tanto os socioanalistas, quanto todos os profissionais comprometidos com valores

democráticos e com um aprendizado cultural capaz de engendrar processos de

autogestão. A autogestão consiste em inventar essa possibilidade de poder coletivo

capaz de favorecer a emergência dos sujeitos em sua singularidade, e

simultaneamente, contribuir para convergências de ações, de opiniões e de

objetivos, sem transformá-los em um compacto homogeneizador, sob a liderança de

talentosos representantes oficialmente dotados do poder de fala e de decisão em

nome dos demais.

A contribuição da socioanálise para a compreensão dos grupos está nesta

radicalidade através da qual insiste em desconstruir ('revelar') as estruturas de poder

instituídas. Ao mesmo tempo, a socioanálise expressa o desejo (ou a necessidade?)

de subverter as relações de poder instituídas, instituindo novas formas de exercício

do poder, como a autogestão, criando novos espaços diferenciados de produção

social.

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No texto "Grupos e Instituição" 205 Lourau analisa a carência da Análise

Institucional face à elaboração de uma teoria dos grupos. Segundo o autor,

A AG [Assembléia Geral] era cada vez menos evidente no dispositivo socioanalítico. As intervenções aconteciam sem seu suporte que, na qualidade de extensão e de ruptura do grupo de diagnóstico lewiniano, nos parecia até então perfeitamente natural. Na ausência do dispositivo grupal (AG), as intervenções são esgotantes e dramáticas: o socionalista procura aí um lugar. Alguns chegam a pensar, em momentos de angústia, que não têm mais nenhum papel a desempenhar, como se a socioanálise consistisse em agir sobre um grupo... (Lourau, 2004:178).

Alguns socioanalistas, após a ruptura com o modelo lewiniano, se

apropriaram de outros recursos para o trabalho grupal. Lapassade, por exemplo,

trabalhou com a bionergia, como mencionamos anteriormente. Segundo Lourau,

"Lapassade e os que o seguiram nessa experiência estão atualmente menos

convencidos do sucesso" (idem: 179). Para o autor, o neogrupismo corporal "é ainda

mais fusional que os grupos de base afetivistas de certos lewinianos. O fusional

tende a rejeitar o conflitual e, junto com ele, qualquer projeto de AI: 'Estamos numa

boa! A instituição que se dane!' " (idem).

De acordo com Lourau, o sucesso das abordagens corporais no mercado

terapêutico e educativo parecia desbancar a perspectiva da Análise Institucional tão

expressiva na década de 60. No entanto, fundamentado sobre a compreensão das

suas próprias implicações nas situações em que trabalhou como professor e

também como socionalista, Lourau observa a defasagem dos modelos de análise de

grupo (inclusive aqueles utilizados pela Análise Institucional) para elucidar tais

processos. Nesse sentido, Lourau propõe duas direções como uma via para uma

nova teoria dos grupos na Análise Institucional.

205 "Groupes et institution" . In: Perspectives de l'analyse institutionelle. Paris: Méridiens Klincksieck, 1988. Tradução de Paulo Shneider para o livro Rene Lourau analista institucional em tempo integral organizado por Sônia Altoé.

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A primeira direção concerne aos grupos de interferência. Eles têm por característica estar no entrecruzamento e no devir de numerosos outros grupos, passados, presentes e a surgir. Recusam fronteiras e são rebeldes aos modelos de análise cujo dispositivo é o grupal fechado sobre si mesmo. Funcionam em uma permanente dialética interior/exterior, e esta dialética, dificilmente observável, dificilmente perceptível pelos participantes, é muito mais interessante que os problemas de regulação, de coesão, de leadership etc. Com efeito, as interferências não são interseções geométricas (morfologicamente traçáveis) de linhas-fronteiras. São as ações, os acontecimentos, as forças que criam, modificam e desfazem as formas, à procura de uma transversalidade, de um equilíbrio que não é o equilíbrio homeostático da teoria dos sistemas, mas o de uma capacidade de autonomia (sempre posta em questão). Os grupos de interferência combatem a concepção grupista que faz do grupo uma entidade, um ajuntamento bem observável e recortado, antecipadamente, pelas necessidades da teoria. Para a AI, eles são um material privilegiado, pois, tanto quanto o efeito dos analisadores, permitem medir o grau de identificação à instituição. Interferindo entre eles, interferem diferencialmente com ela (idem: 181).

A segunda direção de pesquisa indicada por Lourau diz respeito à

autodissolução ou ao poder de criação do grupo.

No processo de autodissolução, as contradições acumuladas, as origens freqüentemente misteriosas perdidas nas lendas e em outras versões contraditórias do romance familiar, as velhas tensões libidinais, os problemas de dinheiro enterrados há muito tempo sob a erva daninha da boa consciência, os não ditos sobre as relações com o exterior, com a vida cotidiana, com outros grupos de pertencimento ou de referência complementares ou rivais, com a instituição, com o Estado etc., tudo isso de repente se extravasa na situação. Trata-se de algo como uma anamnese que acompanharia, precederia e sucederia uma grandiosa passagem ao ato. Quanto mais o grupo acumulou de não-saber, de inconsciente coletivo, de burocracia 'natural' em sua fase de institucionalização e na estase mais ou menos longa do instituído, mais, na autodissolução, descarrega saber sobre si mesmo e sobre seu antigo processo de institucionalização (idem: 184).

E Lourau finaliza,

A partir das duas orientações de pesquisa que acabo de esboçar, refulge a necessidade de observar o devir dos grupos na sua relação mutante com a identificação institucional, em suas múltiplas interferências, em sua ligação íntima com a negatividade que os mina desde a criação. Esta negatividade, quando se realiza na autodissolução, não é sinônimo de morte ou de aniquilamento. Na verdade, é um novo começo, conforme mostram quase todos os casos que pude estudar. Na maior parte das vezes, o momento da reinstitucionalização, sob diversas formas, não tarda a suceder o momento da autodissolução. Às vezes até mesmo o precede, o que não deixa de produzir

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uma outra interferência entre o antigo e o novo, ou seja, entre a velha equipe líder e uma jovem equipe líder. As interferências, que haviam enlouquecido, se estabilizam. Tal subgrupo se junta a um grupo exterior que estava em forte interferência com ele. Outro subgrupo se institui como novo grupo, ou como antigo grupo em 'nova fórmula'. Os indivíduos se dispersam em vários grupos de interferência ou repudiam qualquer novo pertencimento, existindo a possibilidade (freqüente) de negociar, de rentabilizar (simbólica ou realmente) seu antigo pertencimento: o antigo grupo de pertencimetno se torna grupo de referência etc. Estas observações oferecem uma idéia do que poderia ser a relação grupo/instituição do ponto de vista da AI. Ao dar a si própria uma teoria mais dinâmica, mais dialética, menos dependente de tal ou qual modelo da psicologia social, a AI pode tentar escapar, por algum tempo, tanto às armadilhas do grupismo quanto às de uma ausênica de suporte teórico grupal, indispensável a qualquer empreendimento coletivo (idem: 184-185).

Em outro artigo206, o autor expõe sua compreensão sobre a participação,

analisada sob os conceitos de implicação e sobreimplicação207. Para Lourau, a

"deserção e a defecção são tão significativas – conforme assinala Hirshmann –

quanto o ato de tomar a palavra participativamente, nele incluída a contestação

participativa ou a participação contestatória" (2004:190), e ainda,

Se a participação e o compromisso com certos setores da vida social (não necessariamente com todos) podem simbolizar adesão, integração ou identificação, a deserção e defecção podem, por sua vez, simbolizar uma desafetação – força altamente instituinte, como temos podido observar, há um ano, nos países do Leste europeu. Em um antigo estudo (1969), tratei de mostrar como a ideologia participacionista, bastante ativa imediatamente após os movimentos de 1968, orientava-se no sentido de retomada das rédeas

206 Implicação e sobreimplicação (publicado originalmente em 1990) traduzido para o português no livro René Lourau analista institucional em tempo integral ( 2004). 207 A sobreimplicação é proposta por Lourau como um recurso para distinguir os abusos referentes à utilização da implicação como meio [sofisticado] de exploração do trabalho. "Assinalando que 'a síndrome da implicação afeta a tal ponto os investigadores das ciências sociais e seus mestres, que a mais completa confusão se tem difundido a propósito deste conceito', Guigou põe em evidência o seguinte paradoxo: enquanto o implicacionismo e o modismo da implicação fazem furor, a investigação se burocratiza, fechando-se cada vez mais em segredos. Logo, se o sistema fala de implicações, é para impedir que sejam desveladas. 'Implique-se, reimplique-se, porém não analise suas implicações', faz dizer Guigou ao sistema. De fato, a forma pornominal, reflexiva, do verbo implicar designa não somente aquela virtude teologal a que antes nos referimos, mas principalmente o sobretrabalho exigido pela produção de uma mais-valia, de uma rentabilidade sumplementar. Por sobretrabalho compreendemos algo diverso daquilo que seria simplesmente o dever do cidadão perante o Estado, o qual consiste, para os cristãos, no exercício correto de um ofício, a fim de provar que não estão fora deste mundo. Reportamo-nos, então, ao que Jules Celma (1971) chama 'exploração da subjetividade', que sucede a exploração da objetividade do homem no trabalho alienado – forma de sobre-exploração e sobre-repressão, no sentido marcusiano. Autorizamo-nos a propor o termo sobreimplicação para designar esta deriva do conceito de implicação, relacionada à subjetividade-mercadoria" (Lourau, 2004:189-190, grifos meus.).

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depois da grave crise de desafetação que atingira grande parte do sistema institucional. Durante as duas décadas transcorridas desde então, a obsessão com o 'retorno aos valores seguros' dá provas da profundidade da desafetação e da necessidade de uma constante propaganda em favor da sobreimplicação (...) A sobreimplicação e o ativismo, uma vez analisados, apresentam aspectos extremamente passivos: submissão a ordens explícitas ou a consignas implícitas da nova ordem econômica e social, ávida por preencher as grandes brechas produzidas tanto pela desafetação quanto pela institucionalização, maior ou menor, do desemprego. A implicação, por sua vez, deve ser analisada individual e coletivamente, o que supõe atividade intensa e, muitas vezes, penosa. Apesar de nada haver nela de essencialmetne passivo, uma dificuldade quanto a sua análise, conforme assinala Guigou, é que a implicação se encontra camuflada pela sobreimplicação, mantida à sombra da última (idem: 190-191).

Finalizando este tópico, vimos que Lourau e Lapassade estabeleceram uma

parceria fundamental para a criação da Análise Institucional e do método

socioanalítico. Os dois autores se diferenciam em seus percursos como

socioanalistas.

Lourau continuou próximo ao caráter contestador e ao potencial criativo

(criador, destruidor, desestabilizador) da Análise Institucional, elaborando

teoricamente sua trajetória como socioanalista na qual prevalece o referencial sócio-

histórico.

Lapassade, talvez por sua forte implicação com a psicossociologia, com o

trabalho grupal, combinou heterodoxamente referências teóricas díspares que

também remetem a conteúdos políticos diferenciados208.

Uma das contribuições de Lapassade referente às intervenções grupais está

na sugestão/apreensão dos grupos, das organizações e das instituições enquanto

níveis ou instâncias que se influenciam simultaneamente209.

208 Segundo Rodrigues, "Lapassade tenta combater os excessos verborrágicos ('parolistes') das intervenções socioanalíticas mediante uma aproximação com as teorias e técnicas corporais ligadas à bionergética reichiana" (1993:833). 209 Segundo Ardoino e Lourau, "no ato fundador de Lapassade [em relação à Análise Institucional], como em todo ato fundador, o elemento 'místico' de 'profecia inicial' não dava conta – senão em um plano ideológico, pouco instrumental – dos meios capazes de levar em consideração a dimensão escondida dos grupos: a instituição. Esta última ainda era designada como exterioridade do grupo,

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Nesse sentido, no livro Grupos, organizações e instituições ele enuncia uma

perspectiva dialética entre estas três "instâncias", ao não distingui-las em conceitos,

o que o aproxima da concreticidade dessas relações na realidade social. Ou seja, na

prática social, as organizações não são grupos de grupos; as instituições não são

conjuntos de regras e normas aceitas e repetidas socialmente, os grupos não são

unidades funcionando como estruturas fixadas em metas e objetivos "certos" e

definidos. Bem diferente dessas noções, os grupos, as organizações e as

instituições estão em permanente movimento e manifestam a prática social humana

em modos diversos de produção e realização. Por isso, Lapassade, ao aproximar-

se destas relações concretas, não pode fixá-las em conceitos formais distintivos

(mesmo considerando a ambigüidade de sua noção sobre a instituição) e ao não

fazê-lo, ele contribuiu para uma apreensão diferenciada dessas "instâncias" 210.

Pensamos que esta opção (de descrever as instâncias grupal, organizacional

e institucional numa perspectiva sócio-histórica remetendo aos problemas concretos:

relação de poder, burocracia, hierarquia) foi inspirada por Sartre, pela obra Crítica da

não como sua 'transversalidade' ou 'traversalidade'. O paradoxo residia, em que, embora desejando abater o paradigma grupal, a AI não chegasse verdadeiramente a se desligar desse húmus de origem. Conforme ainda se constata nos trabalhos de AI na América Latina, a problemática grupo/instituição (obliterando a mediação da organização, no entanto sublinhada por Lapassade) produz não uma multirreferencialidade dinâmica, mas um conflito de paradigmas no qual o paradigma grupal – a clínica psicanalítica – se esforça por conservar posição hegemônica" (2003:31). 210 Nossa análise diverge da análise realizada por Rodrigues, segundo a qual, "ao tratar grupo, organização e instituição como 'níveis' ou 'instâncias', Lapassade dá a impressão de puramente acrescentar o último deles – freqüentemente esquecido – aos dois primeiros, tão bem (re) conhecidos pela psicossociologia ('grupos') e sociologia das organizações ('grupos de grupos'). Ao definir as instituições, novamente o salto tem percalços. Elas são entendidas seja como 'grupos sociais oficiais, as empresas, as escolas, os sindicatos' – o que lembra instituição = estabelecimento –, seja como 'sistemas de regras que determinam a vida desses grupos' – o que se restringe ao 'instituído' de Cardan (Castoriadis). Recorrendo aos psicoterapeutas institucionais, Lapassade acrescenta que 'a instituição também existe ao nível do inconsciente do grupo' e, lançando mão de L. Strauss, sugere que 'naquilo que cada indivíduo vive, está presente a estrutura universal da instituição parentesco'. Com tantas considerações adicionais, a questão dos 'níveis' acaba bastante relativizada" (1993:483-484, grifos nossos). Essa última constatação de Rodrigues destacada nos grifos nos fez refletir sobre a contribuição de Lapassade. Justamente por relativizar os "níveis" grupal, organizacional, institucional é que identificamos nele, a postura de assumir a possibilidade de abertura nesses conceitos, à época, restritos aos campos que os produziram teoricamente (psicossociologia, sociologia das organizações, sociologia durkheiminiana-funcional-positivista).

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razão dialética. Contudo, como mencionamos no decorrer do Capítulo 2, ao

apresentar a dialética dos grupos, das organizações e das instituições, Lapassade,

talvez para ser didático, acabou por reduzir a complexidade da argumentação

sartreana aos momentos que vão do apocalipse, passando pela fusão grupal

(dissolução da série), pela prática de organização, pelo juramento, até à

institucionalização (ou retorno à serialização).

Em Sartre, esta descrição busca apreender o movimento dos grupos, através

das possibilidades que se abrem pela práxis comum que se defronta com a sua

possibilidade de finitude, com sua própria negatividade. Ou seja, a práxis comum

também é um movimento e sendo um movimento dialético (que inclui a contradição),

ela também inclui o trabalho negativo, e a sua própria possibilidade de cristalização

(enquanto negação da negação). No entanto, como apresentamos no Capítulo 2, a

prática social é criação histórica e Sartre, situado historicamente, construiu suas

elaborações teóricas em diálogo com os grupos, as organizações e as instituições

existentes, ou sobre as observações feitas num momento determinado da prática

social humana, sob a hegemonia do capital. Isto indica que a práxis comum nas

sociedades contemporâneas produz um padrão de cristalização (enrijecimento), no

sentido de manter, de conservar a si mesma e ao grupo que a instituiu. Ao mesmo

tempo, esta constatação abre a possibilidade de projetar um tipo de prática social,

enquanto práxis comum, capaz de saber-se contraditória, capaz de lidar com sua

finitude e de por isso, talvez atravessá-la, mantendo-se enquanto movimento,

enquanto práxis comum.

Nesse sentido, é interessante que Lourau aborde o tema da dissolução e que

Guattari (como veremos adiante) coloque a perspectiva da morte (do próprio grupo)

diante dos grupos que se enunciam como sujeitos.

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Todavia, continuando nossa reflexão sobre as contribuições de Lapassade e

Lourau, observamos que, por manter-se como socioanalista numa perspectiva de

radicalidade em relação à Análise Institucional, a contribuição de Lourau quanto às

intervenções grupais, não obstante o seu caráter indicativo, influencia meios de

escuta, posicionamentos e intervenções diferentes e singulares na relação tanto com

a psicossociologia, quanto com a psicanálise.

Por exemplo, ao compreendermos as interferências durante a intervenção

grupal somos remetidos aos aspectos mais concretos da articulação entre as

pessoas no grupo e somos convocados à atenção para as diferentes implicações

envolvidas e para os seus vínculos institucionais. Ou seja, a intervenção em um

estabelecimento social, em uma dada organização social nos remete à "totalidade

social" e "às suas múltiplas relações" materializadas nos interesses e nas

necessidades das pessoas que nela se inserem e com ela se relacionam.

Por outro lado, ao apontar o caráter de autodissolução (até mesmo em

relação à socioanálise e à Análise Institucional), Lourau enfrenta os mitos fusionais

que perpassam diversas relações grupais. Ou seja, ele propõe a compreensão da

autodissolução como um momento instituinte de criação, a partir da dissolução do

anteriormente instituído, onde a força desse instituído expressou-se pela perspectiva

de homogeneização e de unidade, abstratamente consideradas, em detrimento das

diferenças concretas existentes e não expressas (negação ou repressão dos

conflitos, da contradição e do trabalho do negativo).

As referências oferecidas por Lourau nos auxiliam a compreender o grupo em

seu movimento, em sua concretude, ainda que tal compreensão seja apenas uma

intenção para centrar-se sobre tais questões, do que propriamente um analisador

efetivamente expresso no movimento do próprio grupo.

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3.2.2 – A produção de Félix Guattari, sua singularidade em relação à

Análise Institucional e suas reflexões sobre os grupos

Félix Guattari211 participa do Movimento Institucionalista e Grupalista desde

sua inserção nos movimentos sociais franceses – como nas manifestações

contrárias à Guerra (e à colonização) da Argélia, como no movimento

antipsiquiátrico, por sua ação na Clínica La Borde (estabelecimento de resistência à

colonização do psicótico), como na sua relação com o movimento estudantil na

década de 60 – e, quando de seu pertencimento ao Grupo de Trabalho de

Psicologia e Sociologia Institucionais – GTPSI) introduziu, por volta de 1964/1965, a

expressão Análise Institucional,

tentando, segundo suas próprias palavras, uma dupla demarcação quanto ao passado recente da Psicoterapia Institucional: 'a primeira demarcação apontava à corrente Daumezon, Bonaffé, Le Guillant, etc... (corrente que havia lançado a expressão 'psicoterapia institucional' na Liberação). Um certo número entre nós desejava a introdução de uma dimensão analítica neste tipo de prática e não se satisfazia com as referências que Tosquelles fazia freqüentemente a Moreno e Lewin e acessoriamente a Marx e a Freud' (...) Na época do GTPSI, Guattari (...) considera que, se deve haver uma análise, esta não se confunde quer com a realizada pelo psiquiatra – dispositivo analítico clássico – , quer com a desenvolvida em um grupo de indivíduos – dinâmica de grupo, T-Group, psicossociologia stricto senso. A análise envolve, a seu ver, todo o conjunto de um complexo de processos sociais e assim deve ser desenvolvida (Rodrigues, 1993:496-497) (...). 'A segunda demarcação tentava estabelecer que este gênero de processo analítico não podia ser uma 'especialidade' do campo da higiene mental, pois involucraria também a pedagogia, as ciências sociais, etc...

211 Rodrigues delineia a trajetória de Guattari, da qual recortei alguns períodos. " No começo dos anos 50 ele está em La Borde, estabelecimento de resistência à colonização do psicótico – embora sob a égide reformista da Psicoterapia Institucional – e à colonização argelina [francesa]. Como Saint Alban em outros tempos, a clínica é laboratório, refúgio e front de luta. Muito cedo, este 'passeur', este 'barqueiro' – como o chama deliciosamente Oury – freqüenta o hospital Saint Anne para ouvir as palavras do então artífice de um desafio à ortodoxia psicanalítica, Jacques Lacan (...) Guattari acompanha aqueles que Castel chama de 'segunda geração', aglutinada em torno de Tosquelles, sob a influência crescente da Psicanálise Lacaniana e da crítica ao passado recente da 'primeira geração' (...) A partir de 1960, a segunda geração se reúne no GTPsi (Grupo de Trabalho de Psicologia e Sociologia Institucionais), que se manterá muito ativo até 1965, tendo Saint Alban e La Borde como principais núcleos de trabalho. Por volta de 1964/1965, em um encontro do GTPsi realizado pouco antes da publicação do primeiro número da Revue de Psychothérapie Institutionelle, Guattari introduz a expressão 'análise institucional' [também proposta por Lapassade em 62-63]" (1993:495;496;497).

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Para denunciar a perspectiva de uma análise isolada, (...) lançamos uma consigna humorística, parafraseando a fórmula de Trotski, contra a Psicanálise: 'sobre um só divã, em uma só clínica ou um só Hospiral Psiquiátrico...' (Guattari in Rodrigues, 1993: 499). .

Sobre Félix Guattari há um relato de Suely Rolnik explicitando as relações

entre a proposição da Análise Institucional realizada por Guattari, o contexto no qual

ela emerge e as questões que enfrenta ao incluir-se no mercado de técnicas das

ciências humanas e sociais. Apesar de extenso, é interessante reproduzí-lo em sua

integridade, posto que oferece uma compreensão sintética sobre a trajetória de

Guattari, da Análise Institucional propriamente dita, à formulação da esquizoanálise.

O termo 'Análise Institucional' foi criado por Guattari, para nomear uma tendência na ação teórica e prática que se tornou movimento na década de 60, na França. Numa sociedade modernizada e bem sucedida do ponto de vista ténico e econômico e muito defasada nas formas de sociabilidade e nas estruturas psicossociais, um intenso movimento de abalos microssociais percorria todo o seu corpo. Questionava-se todas as formas de existência, inclusive a do pesquisador. Fazia-se necessária a construção de uma ponte conceitual entre os universos heterogêneos das ciências humanas, para captar o movimento de produção da realidade e despistar falsos problemas. Neste contexto fundou-se o FGERI, em 1966, agrupando psiquiatras vindos do movimento de psicoterapia institucional e profissionais de movimentos semelhantes em outras áreas – professores, arquitetos, urbanistas, militantes do movimento estudantil, psicanalistas, sociólogos, antropólogos, psicossociólogos, etc. –, tendo participado destas discussões, entre outros, Dolto, Mannoni, Lacan, Laing, Cooper e vários líderes políticos. O grupo viveu um acirrado processo de reflexão crítica, não só acerca da atividade de cada um como pesquisador, mas de todas as suas outras atividades sociais, inclusive amorosa. A reflexão sobre seus projetos, seus problemas de vida cotidiana e de desejo, tornava-se condição indispensável para captar seu objeto de pesquisa. Trabalho analítico do qual cada um tirava proveito não só conceitual, mas também pessoal.Vai-se constituindo assim um método de análise institucional válido para a pesquisa téorica, nas ciências humanas, para a intervenção psicossocial e para a experimentação social em geral. Método de análise em situação. Seu objeto se define como sendo a problemática social real, isto é, o lugar do sujeito inconsciente do grupo-suporte dos investimentos de desejo de seus membros – que não se confunde com as leis objetivas que definem as relações que os indivíduos estabelecem entre si e com a instituição. Toda intervenção criadora tem como condição o acesso à 'transversalidade', lugar do sujeito inconsciente do grupo, lugar do poder real. A análise, instaurando o espaço de uma formulação permanente da demanda inconsciente e a possibilidade de sua leitura através da interpretação da transversalidade, cria condições para que o grupo assuma o sentido de sua práxis. Recupera-se a dimensão analítica da instituição e no mesmo gesto

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recupera-se a dimensão histórica da psicanálise – toda análise é institucional. O termo 'psicanálise aplicada' deixa de ter sentido. Trata-se sempre de uma intervenção micropolítica abrindo a possibilidade de uma prática ao mesmo tempo de análise e de mudança. Análise reveladora da singularidade do processo de um 'agenciamento coletivo de enunciação' – não só composto de indivíduos, mas dependente de um certo funcionamento social, econômico, institucional, micro e macropolítico – que contribui para a mutação pessoal e social e, portanto, para o desbloqueamento das lutas políticas. Maio de 68 foi a radicalização e a generalização do movimento que havia gerado entre outras linhas a da Análise Institucional. Muitos dos membros do FGERI foram ativos no 22 de Março [grupo de estudantes de sociologia de Nanterre que se opunham à Reforma Fouchet cuja intenção era tranformar a universidade em provedora de quadros técnicos] e em outros lugares da contestação em 68, nos vários setores da vida social. Revelaram-se os limites e as contradições da 'grande ilusão' da revolução institucional generalizada, levando a um novo deslocamento: a consciência da impossibilidade de conciliação de universos teóricos heterogêneos e da necessidade de se construir novos campos teóricos e políticos. Neste momento resta-nos da Análise Institucional: seja a sua reificação enquanto gadget último tipo, tanto no mercado das técnicas de psicologia social quanto no das disciplinas do saber acadêmico, ou seja, sua transformação em fetiche, instrumento de resistência à mudança, seja seu desenvolvimento através da reapropriação efetiva desta idéias, técnicas e inovações por 'agenciamentos coletivos de enunciação' e pelos movimentos sociais, levando à formulação de novas propostas. Entre estas a intensa produção teórica de Guattari e Deleuze na década de 70, da qual o leitor tem nesta coletânea [Revolução Molecular] uma amostra (in Revolução Molecular, 1985:68-69).

A colaboração e a produção de Deleuze e Guattari foi denominada

"esquizoanálise". Baremblitt (1998) diferencia a produção de Deleuze e Guattari em

relação à socioanálise, de Lourau e Lapassade, e à sociopsicanálise, de Mendel,

ressaltando o caráter de prestação de serviços que assumem essas duas correntes.

Segundo o autor,

a demanda, o requerimento de uma análise de intervenção institucional ou do tipo sócio-analítico, é feita por alguns setores ou pela totalidade de um coletivo organizado a outro coletivo organizado, que oferece seus serviços de uma maneira mais ou menos tradicional, como prestação de serviço profissional. Isto é, os sociopsicanalistas, os analistas institucionais, apesar da rigorosa autocrítica que exercitam, apesar de uma vocação militante que têm no seu trabalho, não deixam de ser experts, não deixam de ser técnicos, científicos; não deixam de estar agrupados neste tipo de organização característica dos experts profissionais (1998:92-93).

Segundo Baremblitt, para Deleuze e Guattari "não existe, necessariamente,

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essa prestação de serviços convencionais" (idem). Desse modo, "a esquizoanálise

pode ser feita por qualquer pessoa em qualquer lugar" (idem). Nesse sentido, a

esquizoanálise não pode ser considerada como ciência ou como uma disciplina. É

uma "nova forma de pensar, um modo de ser, ou uma maneira de viver" (idem: 94) e

propõe algo como um "processo de análise permanente, generalizado e ubíquo,

presente por toda parte, em qualquer momento, e protagonizado por qualquer

pessoa que tenha, naturalmente, interiorizados os princípios teóricos desta

concepção – que não sei como chamar" (idem). Também "não tem técnica nem

metodologia própria" (idem) "Senão que para ela são os princípios teóricos de

compreensão que dão um entendimento que permite localizar a alienação e

propiciar, per se, a invenção de uma metodologia e de técnicas, táticas e estratégias

que são absolutamente singulares para cada caso, para cada situação e que não

podem ser sistematizadas nem transladadas para outra oportunidade" (idem).

O autor também destaca a relação da esquizoanálise com o Materialismo

Histórico e a Psicanálise

a relação de Deleuze e Guattari com a Psicanálise e com o Materialismo Histórico é muito mais complexa que a de Lourau e infinitamente mais distante que a de Mendel. A posição de Deleuze e Guattari é muito mais crítica com respeito a todos os grandes monumentos ocidentais do conhecimento que a dos outros autores das outras orientações. Eu diria que de Mendel a Deleuze e Guattari existe, politicamente, todo um abandono paulatino do Liberalismo e da Social-Democracia e até o Marxismo, para se aproximar muito mais do Anarquismo (idem: 93).

Desse modo, a contribuição de Guattari ao Movimento Institucionalista e à

Análise Institucional foi construída no seu percurso de crítica à Psicoterapia

Institucional e à institucionalização da Análise Institucional (enquanto técnica ou

instrumento de intervenção), mas também de "fidelidade/radicalidade" à contestação

e ao devir como produção social permanente, ele próprio, permitindo-se transitar em

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diferentes territórios (diferentes movimentos sociais212, diferentes países, diferentes

campos teóricos) e criar continuamente sua compreensão sobre a realidade social.

Assim, continuamos este texto buscando elencar e descrever as proposições

de Félix Guattari a respeito do(s) grupo(s). Iniciaremos pelo interesse de Guattari no

Brasil, durante os anos 80, materializado em sua vinda ao Brasil no ano de 1982.

Esta trajetória foi relatada por Suely Rolnik, publicada como Micropolítica –

cartografias do desejo (primeira edição em 1986)213.

A década de 80 expressou uma espécie de "reflorescimento" das ações

coletivas em nosso país214. O enfrentamento da ditadura no plano político-partidário

212 Para Heliana de Barros Conde Rodrigues, "a análise envolve [para Guattari] todo o conjunto de um complexo de processos sociais e assim deve ser desenvolvida (1993:497) (...) A Análise Institucional que Guattari apresenta aos estudantes [junto à Mutualidade Nacional dos Estudantes da França – MNEF, em 1964] não implica que médicos, psiquiatras, psicanalistas ou psicossociólogos venham militar no movimento estudantil, trazendo na algibeira seus dispositivos técnicos para 'curar os estudantes doentes' ou 'socializar os a-sociais'. Tampouco que os militantes estudantis forneçam lições aos terapeutas, a fim de estes compreendam que 'a alienação mental é reflexo da alienação social' e optem, em decorrência, por enfoques não-diretivos ou libertários. O que esta Análise Institucional sugere é que as organizações estudantis possam aproveitar ao máximo sua própria capacidade de formação, considerada por Félix como amplamente superior à então existente nos meios psiquiátricos e psicanalíticos (...) a análise jamais deveria, segundo Guattari, estar ausente ou ser apenas introduzida de fora" (idem:498). 213 A trajetória de Guattari ao Brasil foi apresentada por Suely Rolnik em cinco grandes temas: Cultura: um conceito reacionário?; Subjetividade e História; Políticas; Desejo e História; Emoção – energia – corpo – sexo: o mito da "viagem de liberação" e Amor, territórios de desejo e uma nova suavidade. 214 Segundo Maria da Glória Gohn, "o ano de 1980 marcará algumas mudanças nas análises sobre os movimentos urbanos. As causas estão na conjuntura sociopolítica explosiva dos anos de 78/79, no surgimento de inúmeros movimentos e formas organizativas populares, e na publicação de textos importantes que serviram de subsídios às análises da realidade urbana, como o de Lúcio Kowarick – Espoliação Urbana. O referecial histórico predominante continuava a ser o marxista, com enfoque na análise das contradições sociais, embora já se iniciasse um processo de crítica a este esquema. Foram traduzidos dois textos básicos desta linha de abordagem – um do próprio Castells – Cidade, democracia e socialismo (1980) – e outro de J. Lojkine – O Estado capitalista e a questão urbana (1981). Eles ajudaram a divulgar as abordagens conhecidas por meio de apostilas ou dos raros livros importados (...) Os anos 80 trarão um panorama novo na prática e na teoria sobre os movimentos sociais populares urbanos. Na prática, surgem novas lutas como pelo acesso à terra e por sua posse, pela moradia, expressas nas invasões, ocupações de casas e prédios abandonados; articulação do movimento dos transportes; surgimento de organizações macro entre as associações de moradores; movimentos de favelados ou novos movimentos de luta pela moradia; movimentos de desempregados; movimentos pela saúde. Alguns movimentos perderam importância como a Luta por Creches e o Movimento Contra os Loteamentos Clandestinos, em São Paulo. O primeiro devido à desarticulação da luta das mulheres após a Anistia, ao gradual desaparecimento do Movimento da

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foi possível devido ao próprio esgotamento do modelo de desenvolvimento

econômico, político e social adotado pelos sucessivos Governos Militares, aliado ao

desgaste produzido por anos contínuos de repressão. As ações coletivas ocorreram

em diferentes contextos: movimentos populares urbanos (por saúde, pela moradia,

por condições de habitação, por saneamento básico, por transporte coletivo entre

outros) nas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro; movimentos

sindicais como as lutas dos trabalhadores no ABC paulista; novas configurações

político-partidárias, principalmente a emergência do Partido dos Trabalhadores;

movimentos contra a ditadura e a favor da democratização política (restituição dos

direitos civis e dos direitos políticos; defesa dos direitos humanos); emergência de

novos movimentos sociais215 (movimento feminista, homossexual, ecológico, negro,

indígena etc).

A viagem de Guattari ao Brasil ocorreu nesse contexto. No livro de Suely

Rolnik certo otimismo perpassa as discussões entre os diferentes movimentos

sociais em seu encontro com Guattari. A variedade de pessoas vinculadas a estes

movimentos ilustra bem a efervescência da década216. Nestes encontros, Guattari

Carestia – por brigas e disputas políticas internas – , e a rede de creches que a prefeitura municipal passou a construir na capital paulista, com a contratação de inúmeras militantes do movimento para trabalhar nas próprias creches. O segundo, a partir da Lei Lehmann – que proibia e punia os responsáveis por loteamentos clandestinos na capital, levando a um desencorajamento de atividades na área da produção de novos loteamentos populares irregulares, e à diminuição dos demandatários lesados" (2002:276; 278-279). 215 "Nos anos 80, as análises sobre os novos movimentos sociais serão influenciadas por Foucault (1981), Guattari (1985), ou Castoriadis e Cohn-Bendict (1981), Melluci (1989) etc. O novo no movimento europeu advinha basicamente de camadas sociais que não se encontravam em condições de miserabilidade, se organizavam em torno das problemáticas das mulheres, dos estudantes, pela paz, pela qualidade de vida etc., e se contrapunham ao movimento social clássico, dos operários. Tais movimentos se inseriam numa esfera de novos conflitos sociais, conforme denominação de Melucci (1989), criando um novo paradigma da ação social, nos dizeres de Offe (1988)" (idem:284). 216 Roteiro dos eventos organizados por Suely Rolnik por ocasião da visita de Guattari ao Brasil em 1982: 1)São Paulo – 3º Congresso de Cultura Negra das Américas/PUC: "A Análise micropolítica dos movimentos sociais"; Reunião com pré-escolas "alternativas"; Reunião com a Rede de Alternativas à Psiquiatria no Instituto Sedes Sapientiae; Debate promovido por um diretório do PT: "Autonomia e Partido"; Reunião com feministas e homossexuais na sede da "Ação Lésbico-Feminista"; Mesa

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(através do texto de Suely Rolnik) explicita tanto o seu comprometimento com as

Revoluções Moleculares217 quanto a sua lucidez na articulação entre o molar e o

molecular218, sem desconsiderar a luta de classes (ou o antagonismo existente na

sociedade capitalista entre burguesia e proletariado). Nas palavras de Guattari

"vemos que a circunscrição dos antagonismos sociais aos campos econômicos e

políticos – a circunscrição do alvo de luta à reapropriação dos meios de produção ou

dos meios de expressão política – encontra-se superada. É preciso adentrar o

campo da economia subjetiva e não mais restringir-se ao da economia política"

(1996:45). Para ele, o Capitalismo Mundial Integrado (CMI) afirma-se por uma dupla

opressa: pela repressão direta no plano econômico e social (controle da produção

redonda com alguns candidatos do PT às eleições para as Câmaras Municipal e Estadual de SP: "Revolução e desejo"; 2) Rio de Janeiro – Debate no Hospital Pinel; Reunião no Instituto Freudiano de Psicanálise: "Psicanálise e Familialismo"; Debate promovido por um diretório do PT: "Autonomia e Partido"; 3) Bahia – Debate promovido pelo PT: "Desejo e política"; Mesa redonda no ICBA: "Cultura de massa e singularidade"; Encontro com um grupo de analista do CEP; 4) Pernambuco – Debate no Centro Social de Soledad: "Inconsciente e História"; Reunião com grupos de minorias no Centro Luis Freire; Reunião com grupos que desenvolvem trabalhos em comunidades da periferia; Reunião com a Rede de Alternativas à Psiquiatria no Hospitall Tamarineira; 5) Florianópolis – Debate no coreto da Praça de São José com estudantes, minorias e passantes. 217 "A tentativa de controle social, através da produção da subjetividade em escala planetária [referindo-se à sua noção de Capitalismo Mundial Integrado-CMI], se choca com fatores de resistência consideráveis, processos de diferenciação permanente que eu chamaria de 'revolução molecular' (Guattari, 1996:45) (...) O questionamento do sistema capitalístico não é mais apenas do domínio das lutas políticas e sociais em gande escala, mas também de tudo aquilo que agrupei sob o nome de 'revolução molecular'. É evidente que a revolução molecular não se restringe às minorias, mas a todos os movimentos de indivíduos, grupos etc. que questionam o sistema em sua dimensão da produção da subjetividade (idem:139) (...) Seria preciso tentarmos pensar um pouquinho o que quer dizer revolução. Esse termo já está tão estragado, tão desgastado, já se arrastou por tantos lugares, que seria preciso voltar a um mínimo de definição, ainda que elementar. Não tenho definição, que eu me lembre de cor; não preparei conferência a respeito, senão eu teria uma no papel. Uma revolução, é algo da natureza de um processo, de uma mudança que faz com que não se volte mais para o mesmo ponto. O que aliás até contradiz o sentido do termo 'revolução' empregado para designar o movimento de um astro em torno de outro. A revolução seria mais uma repetição que muda algo, uma repetição que produz o irreversível. Um processo que produz História, que nos tira da repetição das mesmas atitudes e das mesmas significações. Então, por definição, uma revolução não pode ser programada, pois aquilo que se programa é sempre o déjà-là. As revoluções, assim como a História, sempre trazem surpresas. Por natureza, elas são sempre imprevisíveis. Isso em nada impede que se trabalhe pela revolução, desde que se entenda esse 'trabalhar pela revolução' , como sendo trabalhar pelo imprevisível (idem:185) . 218 "Essa oposição entre o molar e o molecular pode ser uma armadilha. Eu e Gilles Deleuze sempre tentamos cruzar essa oposição com uma outra, a que existe entre micro e macro. As duas são diferentes. O molecular, como processo, pode nascer no macro. O molar pode se instaurar no micro" (idem:128).

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de bens e das relações sociais) e pela instalação na produção da subjetividade, ou

seja, "uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade219 industrializada e

nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva

de trabalho e da força de controle social coletivo" (idem: 39).

A ação dos grupos enquanto sujeitos também é ressaltada pelo autor como

um evento que inova, mas o qual é passível de incorporação/captura nas referências

semióticas dominantes.

O encontro de Guattari com diferentes atores dos movimentos sociais

brasileiros também é um momento de análise para os seus próprios sujeitos e

comporta uma dimensão estratégica cuja perspectiva pode ser detalhada nos

seguintes elementos220:

1) Um lugar prioritário de análise (ou a instauração contínua da análise ou

um situar-se no impermanente) que aparece nos questionamentos e

nas reflexões propostas por Guattari nos diferentes espaços de

encontro propiciados (palestras, reuniões, debates, mesas redondas).

Trata-se de acompanhar o curso dos acontecimentos estando presente

219 "A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização" (idem:33) ."O termo 'singularização' é usado por Guattari para designar os processos disruptores no campo da produção do desejo: trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da afimação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc. Guattari chama a atenção para a importância política de tais processos, entre os quais se situariam os movimentos sociais, as minorias – enfim, os desvios de toda espécie. Outros termos designam os mesmos processos: autonomização, minorização, revolução molecular, etc." (Suely Rolnik, nota de rodapé,1996: 45). 220 A descrição que segue foi elaborada a partir das percepções que construí durante a leitura do livro Micropolítica: cartografias do desejo, principalmente, pelos diálogos relatados por Rolnik, entre Guattari e os diferentes atores dos diferentes movimentos sociais com os quais se encontrou no Brasil.

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aos mesmos, produzindo continuamente um tipo de conhecimento

sobre o mesmo, sem fixá-lo num patamar de chegada ou num lugar de

chegada considerado a priori. Ao mesmo tempo, coloca-se a

necessidade de questionar os postulados iniciais, o "a priori" no início.

Ou seja, a análise é uma proposição para manter acesa a chama do

devir ou uma estratégia emergente que facilita aos sujeitos

apropriarem-se das ações realizadas.A dimensão analítica

desenvolvida por Guattari refere-se ao ato de permitir questões durante

o processo (seja este de luta, ou de reivindicação, ou de novas

formações grupais etc.), ou seja, permanecer vivo ao processo,

permanecer ativo, permanecer sujeito em suas ações.

2) Uma referência (ou fidelidade) à própria singularidade como o lugar de

onde se fala, repleto de afetos, pensamentos, inconsistências.

A dimensão analítica acima evocada está estreitamente relacionada

com a construção de subjetividades capazes de conviver afetivamente

com a incerteza e com o devir. Se a dimensão analítica está presente

ela indica uma produção subjetiva aberta ao questionamento e à

possibilidade de diferenciação (uma espécie de saída da massificação

intoxicante). Nesse sentido, a fidelidade à própria singularidade (seja

dos movimentos sociais na forma como se apresentam às pessoas e

às organizações com as quais se relacionam; seja internamente no

modo como constróem suas ações na interação recíproca de seus

participantes) pode se expressar na manifestação espontânea seja na

fala, nas ações comuns, nos projetos desenvolvidos, nutrindo-se de

afetos, pensamentos, sensações, atravessando o medo de viver a

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desorganização, o desmantelamento, o não-saber que também estão

presentes nestes processos.

3) Uma busca inquieta pelo novo: onde se constróem novos modos de

subjetivação (abrir-se ao novo). A singularidade construída é também

a possibilidade de criação, de inovação nas formas de viver

construindo referências diferentes, ousando agir de forma diferente.

Essa dimensão criadora também pode se expressar enquanto

contestadora em relação à produção da subjetividade capitalística

(padronização subjetiva) principalmente se consideramos tal dimensão

como criação coletiva a qual desfaz o mito contemporâneo da

personalização individual (indivíduo considerado em si mesmo como

autoproduzido ou autogerado) cujo conteúdo "encobre" a massificação

coletiva nele encarnada.

4) Uma referência ao desejo como construção, na concretude da vida,

atravessado pelos variados fluxos (agenciamentos) em oposição à

noção de desejo individual221. Nesse sentido, a possibilidade de

221 Segundo Baremblitt, Deleuze e Guattari consideram a definição freudiana de desejo, mas a alteram completamente. "Para Freud, o desejo é uma força inconsciente que anima o psiquismo, mas é uma força pertencente a esse domínio, a esse campo completamente diferente das forças naturais e das forças sociais, entendendo por sociais as forças políticas e econômicas. Inclusive, se aceitamos que na civilização moderna a esfera das máquinas mecânicas, elétricas, eletrônicas etc. já formam como que uma terceira natureza, podemos dizer que existe a 'natureza ecológica', a 'natureza humana' – a 'natureza social', a 'natureza psíquica' – e a 'natureza maquínica' – a esfera maquínica; só que essa esfera do mundo maquínico também tem suas forças animantes. Para Deleuze e Guattari não se trata de domínios nem de esferas separadas, isoladas entre si mais que entre suas formas molares; no nível molecular a produção e o desejo são uma e a mesma coisa. É a mesma natureza com uma diferença de regime. A proposta deles é introduzir o desejo naprodução e a produção no desejo. Equivale a dizer que a substância ou a matéria última de todo o real – do real social, do real psíquico, do real natural e do real maquínico – é a produção, é o produzir. Não a produtividade, que é a produção já deformada pelo capitalismo, mas a produção como processo de geração constante do novo. Então, eles dizem que se se considera o conceito marxista de produção, tal conceito não consegue englobar todas as formas de produção possíveis. Ao passo que, se se toma o conceito freudiano de desejo – ele, especificamente psíquico, como dizíamos, é restitutivo, tenta restaurar um estado anterior –, esses autores dizem que se se junta o conceito de produção com o conceito de desejo, que são imanentes entre si, vai-se gerar uma nova categoria de produção, que abrange todas as formas materiais de geração possíveis, e com essa característica de gerar sempre o diferente e em todas as atividades possíveis, incluída a psíquica. Ou seja, para eles o

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criação coletiva de formas diferentes de viver é engendrada pelo

desejo. Aqui o desejo é considerado como fluxo. O que é diferente da

apropriação individualizante do desejo que o constrange ao biológico

(instinto) ou ao onírico ou ao consumismo. O desejo expressa-se

concretamente, implica-ação.

5) Uma lucidez que permite correr riscos. Construir desejantemente

novas formas de viver significa manter-se vivo expressando-se na

própria singularidade (dando-se ao trabalho ou ao desfrute de produzir-

se ou criar-se na coletividade), desse modo, os riscos podem ser

assumidos.

6) Uma perspectiva histórica das ações desenvolvidas no sentido de

alterar o curso dos acontecimentos ou de inserir novos elementos os

quais subvertem o estabelecido. A perspectiva histórica evita a

naturalização dos processos e as explicações fatalistas que reduzem

as possibilidades ao conhecido e ao já experimentado como realidade.

Produzir a História também significa assumir a responsabilidade pelos

acontecimentos e vislumbrar novas aberturas, novos possíveis neles

engendrados.

Tal estratégia porta referências teóricas subversivas222 face ao modo como

tem sido instituídos a produção do conhecimento acadêmico e o desenvolvimento

técnico-científico. Elas remetem à expressão do conhecimento como autonomia,

desejo não é restitutivo, o desejo é produtivo. A produção não é apenas produção mecânica social ou natural, mas é também produção desejante, segundo as características do processo primário" (1998:95-96). 222 Pensamos que são referências que não se submetem às correntes hegemônicas no campo da produção do conhecimento por isso as reconhecemos como subversivas.

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pela liberação da palavra a fim de dizer o que precisa ser dito223, incluindo as

questões subjetivas e a própria corporeidade que está presente na construção do

conhecimento humano. Ou seja, na construção do conhecimento os seres humanos

estão presentes e tal construção pode liberar a ação humana ou mantê-la fixada em

determinados padrões, reproduzindo-se a submissão aos canônes instituídos. Por

outro lado, a produção do conhecimento pode ser uma experiência de liberação, de

autonomia face às demais produções existentes.

Nesse sentido, a produção de Guattari "desarruma" as articulações do

discurso lógico-formal, apresentando uma intensidade afetiva que provoca, instiga,

convoca à ação, expressando compreensões que envolvem o nosso cotidiano

(inserção como trabalhadores com status de classe média), as angústias e sujeições

produzidas no âmbito da construção das subjetividades capitalísticas. Segundo

Guattari,

a própria classe operária está profundamente infiltrada. Não apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas... Mas infiltrada também por sua participação material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrático (...) Desde sua mais tenra idade, e mesmo que seja apenas em função daquilo que elas aprendem a ler no rosto de seus pais, as vítimas do capitalismo e do 'socialismo' burocrático são corroídas por uma angústia e uma culpabilidade inconscientes que constituem uma das engrenagens essenciais para o bom funcionamento do sistema de autosujeição dos indivíduos à produção. O tira e o juiz internos são talvez mais eficazes do que aqueles dos ministérios do Interior e da Justiça. A obtenção deste resultado repousa sobre o desenvolvimento de um antagonismo reforçado entre um ideal imaginário, que inculcamos nos indivíduos por sugestão coletiva, e uma realidade totalmente outra que os espera na esquina (1985:13)224.

223 O que se deseja dizer. Pensamos que o desejo expressa, por um lado, uma necessidade/urgência que é vivida e apropriada pelo sujeito em sua ação, ao mesmo tempo que a determina. A negação ou a alienação do desejo paralisa a ação e fragiliza o sujeito, sujeitando-o a ações das quais não se apropria e nas quais não se (re)conhece e não se produz para si mesmo como sujeito. 224 Citação extraída do artigo "Somos todos grupelhos" traduzido por Suely Rolnik no livro Revoluções Moleculares (1985).

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O autor expressa a sua indignação, a sua revolta, sem meias palavras,

assumindo-as, integrando-as no processo reflexivo, nas elaborações teóricas que

realiza. Embora ele não se submeta à forma de produção acadêmica, ele dialoga

com as produções existentes, como a teoria social marxista e a psicanálise. Este

diálogo explicita o atravessamento entre concepções diferentes e divergentes entre

si, mas que expressam as complexas articulações presentes na realidade social225.

Se a classe operária, como analisa Guattari, está completamente infiltrada, como

creditar-lhe o lugar de protagonista na luta contra o capital? Tal lugar cede espaço,

nas referências construídas por Guattari, a novos modos de produzir a vida,

principalmente no sentido de reinventá-la cotidianamente, como liberação do desejo,

"vomitando" as referências que foram "impostas" pelo padrão de desenvolvimento

econômico-político-social-cultural vigente. Os novos modos de produzir a vida ou os

novos modos de singularização estão presente nas sociedades capitalistas

contemporâneas. Eles são vividos por grupos (ou grupelhos226) que se constroem

como sujeitos diante dos processos instaurados. É interessante que estes grupelhos

efetivamente existentes227, não se restringem à classe operária tradicional, mas

225 A relação entre subjetividade capitalística (produção subjetiva engendrada pelo Capitalismo Mundial Integrado) e a possibilidade de singularizações (em relação à referência dominante) é uma articulação complexa, que pelas elaborações téoricas oferecidas por Guattari nos remetem a sua compreensão quanto à transversalidade ou quanto aos múltiplos atravessamentos que interferem na "composição" da realidade social. Ou seja, a possibilidade de singularização altera a realidade social, é possibilidade molecular que engendra outras possibilidades em outros níveis de luta e de singularização. 226 "A noção de grupelho pode ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de 'grupo sujeito', contraposto a 'grupo sujeitado', à idéia de 'agenciamento coletivo de enunciação' e, na década de 70, ao conceito de 'molecular', contraposto a 'molar' “(Suely Rolnik in Guattari, 1985:18). 227 "O termo grupelho traz em si um sentido pejorativo, pois desde a perspectiva do PC [Partido Comunista] perspectiva adotada na época pelos próprios esquerdistas uns contra os outros, ser minoritário era ser facção insignificante, marginal, acometida pela 'doença infantil do comunismo', justificativa suficiente para sua exclusão como medida sanitária, visão aliás compartilhada pela direita: em julho de 68, de Gaulle, já no controle da situação, através de seu ministro do Interior, proibiu a existência desses grupelhos, baseando-se numa lei da Frente Popular contra as milícias fascistas armadas e paramilitares" (idem).

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incorporam outros segmentos econômicos, envolvendo estudantes de classe média,

intelectuais de classe média, profissionais de nível superior (ou técnicos de nível

superior), entre outros. Também incluem questões e necessidades diferentes.

Assumem uma perspectiva emancipatória (autonomia) que inclui a convivência e o

respeito à sexualidade, à corporeidade, à diferença entre os gêneros masculino e

feminino, à diferença geracional e étnico-racial, em uma perspectiva de superar

todas as formas de sujeição existentes entre os seres humanos. A singularidade

dessa proposta radica no ato de buscar tais possibilidades no presente, na

atualização do devir, ou seja, a revolução se expressa no próprio modo de fazê-la,

na instauração de novos procedimentos (conhecimento-instrumentalidade-

operatividade) que alteram os sujeitos e o modo como estes empreendem suas

ações.

Desse modo, Guattari enfatiza a perspectiva dos grupos como sujeitos da

história. Ele questiona,

porque os grupelhos, ao invés de se comerem entre si, não se multiplicam ao infinito? Cada um com seu grupelho! Em cada fábrica, cada rua, cada escola. Enfim, o reino das comissões de base! Mas uma multiplicidade de grupelhos que substituiriam as instituições da burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo, etc. Grupelhos que não temessem, além de seus objetivos de luta revolucionária, se organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam (Guattari, 1985:17)

E afirma,

É preciso antes de mais nada acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico, uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contigência, sua finitude e para seus objetivos de luta. O movimento revolucionário deve portanto construir para si uma nova forma de subjetividade que não mais repouse sobre o indivíduo e a família conjugal (idem).

[Mas,] por enquanto, é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser

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a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não, quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados (idem, 18).

A perspectiva do grupo se constituir enquanto grupo sujeito foi

apresentada no diálogo de Guattari com a Psicoterapia Institucional, no sentido de

enfatizar a possibilidade de construir "coeficientes de transversalidade" em oposição

às totalidades e hierarquias (que encobrem o medo da dissolução e da morte)

organizacionais/institucionais, favorecendo os processos de criação institucional.

Contudo, a noção de grupo sujeito extrapolou a dimensão do estabelecimento, da

organização social, indo ao encontro dos processos de revolução molecular que

incluem as transformações sociais num sentido mais amplo e mais efetivo, como nos

referimos acima através do artigo "Somos todos grupelhos".

Assim, a distinção entre grupo sujeitado e grupo sujeito foi descrita por

Deleuze (2004:12-13)228 nos seguintes termos

os grupos sujeitados não o são menos no nível de suas massas; a hieraquia, a organização vertical ou piramidal que os caracteriza tem por meta conjurar toda possível inscrição de não-sentido, de morte ou de estilhaçamento, impedir o desenvolvimento de detruições criativas, assegurar mecanismos de autoconservação fundados na exclusão de outros grupos; seu centralismo opera por estruturação, totalização, unificação, substituindo as condições de uma verdadeira 'enunciação' coletiva pela organização de enunciados estereotipados apartados a um só tempo do real e da subjetividade (é nessas circunstâncias que se produzem fenômenos imaginários de edipianização, superegoização e castração do grupo). Os grupos sujeitos se definem, ao contrário, por coeficientes de transversalidade que conjuram as totalidades e hieraquias; são agentes de enunciação, suportes de desejo, elementos de criação institucional; por meio de sua prática, não param de se confrontar no limite de seu próprio não-sentido, de sua própria morte ou fragmentação. Além disso, trata-se menos de dois tipos de grupos do que de duas vertentes da instituição, dado que um grupo-sujeito sempre corre o risco de se deixar

228 Prefácio ao livro Psicanálise e Transversalidade (2004), publicado pela primeira vez em 1974.

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sujeitar, numa crispação paranóica em que deseja a todo custo se manter e se eternizar como sujeito; inversamente, 'um partido outrora revolucionário e hoje mais ou menos sujeitado à ordem dominante ainda pode ocupar aos olhos da massa o lugar deixado vago do sujeito da História, tornar-se, como que apesar de si mesmo, o porta-voz de um discurso que não é o seu, pronto a traí-lo tão logo a evolução da relação de forças implicar uma volta ao normal; ele nem por isso deixa de conservar de seu caráter, como que involuntariamente, uma potencialidade de ruptura subjetiva que uma transformação do contexto poderá revelar' (Guattari). Exemplo extremo: o modo como os piores arcaísmos podem vir a ser revolucionários, os bascos, os católicos irlandeses etc.

A diferenciação entre grupo sujeito e grupo sujeitado (ou grupo objeto) remete

à concepção série/grupo elaborada por Sartre. Suely Rolnik indica esta relação:

"grupo sujeito e grupo sujeitado, termos importantes na teoria de Guattari sobre a

instituição, foram incorporados ao vocabulário da Análise Institucional como 'grupo

sujeito' e 'grupo objeto'. Pode-se indicar uma filiação destes conceitos em 'grupo em

fusão' e 'prático-inerte', presentes no Sartre da Crítica da razão dialética" (Nota da

tradutora, 1985:104-105).

Sartre focaliza a movimentação circular que os grupos tendem a realizar da

dissolução da série à nova serialização. Observamos que embora Sartre

constate/descreva esta possibilidade, ele não a apresenta como algo inevitável, ou

como uma "catástrofe" 229 na qual todos os grupos desembocariam. O autor enfatiza

o esforço do grupo para manter-se e ao fazê-lo o grupo fixa-se sobre si mesmo,

fixando suas ações pela práxis de organização e pelo juramento que podem

conduzi-lo ao processo de institucionalização (serialização). Sartre também explicita

a dificuldade do grupo para fundar um estatuto de unidade, de estabelecer para si

uma inteligibilidade deste tipo, posto que a unidade do grupo não existe (o grupo

enquanto unidade não existe), mas suas ações existem como uma práxis que se

229 Referimo-nos à citação com a qual abrimos o item 2.2. Rodrigues (autora da citação) faz alusão à Sartre quando critica, como catastrófica, a perspectiva de retorno à serialização. Pareceu-nos, que a apreensão da autora sobre Sartre toma como inevitável o retorno à serialização, mas, Sartre não enuncia o retorno do grupo à série como algo inevitável.

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objetiva e é apropriável, dialeticamente, pelo grupo e por seus sujeitos. Desse modo,

as ações empreendidas possibilitam ao grupo referir-se à si mesmo enquanto tal (o

grupo trabalha e se trabalha) e possibilitam aos sujeitos uma apropriação singular

das ações que são realizadas no/através do grupo. Nesse sentido, o processo de

organização e institucionalização de um grupo tende a produzir um sentido de

unidade que expressa uma abstração, posto que a unidade não está nos

procedimentos e normas instituídos em nome do grupo, mas nas práticas efetivas

que o mesmo realiza. No caso, as práticas organizacionais institucionalizadas

tendem a fixar a práxis comum (a qual esteve presente durante a fusão do grupo e

durante a sua práxis de organização) e ao fazê-lo, enrijecem as possibilidades

criativas, na perspectiva de manter o grupo e de manter as conquistas realizadas

pelo mesmo. A fixação num padrão organizacional/institucional "detém" a ação

criadora do grupo. No entanto, visualizamos a possibilidade de estabelecer um

padrão organizacional/institucional no qual o movimento instituinte, ou a ação dos

sujeitos, seja considerada em seu devir permanente, ou que a organização social e

os estabelecimentos sociais possam ser vividos como práticas sociais contínuas. Em

outras palavras, existe a possibilidade (enquanto criação histórica) de construirmos

organizações sociais e instituições sociais que saibam-se e ajam como sujeitos

sociais e que nesse sentido, conheçam a sua própria possibilidade de finitude, de

morte e de dissolução230.

230 Como argumentaremos adiante, a institucionalização dos grupos tem sido realizada no intuito de manter uma correlação de forças ou para fazer frente a outros poderes ou para se afirmar como uma referência (poder) diante de outros grupos. Desse modo, a relação/sujeição econômica presente nestes processos precisa ser considerada, posto que as condições de sobrevivência e as condições de ascender ao status social dominante aparecem concretamente: os processos de organização e institucionalização criam novas relações de poder e expressam novas forças sociais em jogo. Então, a possibilidade de uma organização/instituição perceber-se em sua própria morte e finitude inclui, necessariamente, um tipo de relação social/econômica que não coloque em risco a sobrevivência material dos sujeitos, ou seja, independente da "morte" ou da "dissolução" de uma organização/instituição é necessário assegurar os meios de sobrevivência dos sujeitos que as constituiram.

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Guattari, ao referir-se ao grupo sujeito, focaliza a possibilidade deste lidar com

o nonsense e com a própria morte. Ou seja, indaga-se sobre a possibilidade do

grupo abrir-se ao movimento (ao devir) inclusive atravessando a sua possível

finitude. Ele nos diz,

[no grupo sujeito] se está ameaçado de ser afogado num oceano de problemas, tensões, lutas internas, riscos de cisão, na razão mesma da abertura do grupo aos outros grupos. O diálogo, a intervenção nos outros grupos é uma finalidade aceita pelo grupo sujeito, o que o obriga a uma certa lucidez com relação à sua finitude, e lhe delineia o horizonte de sua própria morte, isto é, de seu estilhaçamento. A vocação do grupo sujeito de tomar a palavra tende a comprometer a posição e a segurança dos membros do grupo; desenvolve-se assim uma espécie de vertigem, de loucura específica do grupo sujeito; uma crispação paranóica se substitui a esta vocação de ser sujeito: o grupo quererá ser sujeito custe o que custar, inclusive no lugar do outro, e cairá assim na pior das alienações, a que está na origem de todos mecanismos compulsivos e mortíferos que conhecemos nas panelinhas religiosas, literárias ou revolucionárias (...) Enquanto o grupo permanece objeto dos outros gruos, recebe o nonsense, a morte, de fora; dá sempre para se refugiar nas estruturas de desconhecimento. Mas desde que o grupo torna-se sujeito de seu destino, desde que ele assume sua própria finitude, sua própria morte, os dados de acolhida do superego são modificados, o limiar do complexo de castração específico a uma ordem social dada pode ser localmente modificado. Está-se no grupo não para se esconder do desejo e da morte, empenhado num processo coletivo de obsessionalização, mas por causa de um problema particular, não para a eternidade, mas a título transitório: é o que chamei de estrutura de transversalidade ("A transferência", in Revolução Molecular, 1985:108).

A transversalidade, a qual Guattari refere-se, é também uma indicação no

intuito de considerar a própria inserção histórica, institucional, organizacional da

psicanálise, contrastando com os recursos utilizados pelos psicanalistas que incluem

a compreensão do processo transferencial na relação com os seus clientes numa

perspectiva a-temporal (mítica ou arcaica) e a-política231.

231 "Hoje em dia, um psicanalista ficará satisfeito se seu analisado supera suas fixações arcaicas, se ele por exemplo se casar, tiver filhos, se reconciliar com as contigências biológicas e se integrar na sociedade tal como ela é. Quaisquer que sejam as linhas da formação analítica, a referência a um modelo predeterminado de normalidade permanece implícito. É certo que o analista, em princípio, não espera que esta normalização seja o produto de uma mera identificação do analisado com o analista, mas nem por isso deixa de trabalhar, e como que apesar de si (nem que fosse só do ponto de vista da continuidade da cura, isto é, muitas vezes da capacdiade do analisado de continuar a pagá-lo) num processo de identificação do analisado a um perfil humano compatível com a lei social

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O recurso à transversalidade supõe uma perspectiva histórica e segundo

Guattari, a questão sobre a castração (solução do complexo de édipo na abordagem

psicanalítica) que inclui a indagação sobre "onde está a lei?", poderá ser posta

apenas pelos grupos que aceitem "o caráter precário e provisório de sua existência,

aceitando lucidamente o confronto com as contingências situacionais e históricas, o

face-a-face com o nada, se negando a refundar misticamente e justificar a ordem

existente" (idem:110).

Guattari propõe a perspectiva da transversalidade a fim de contrapô-la à

análise dos processos grupais perpassada pelas noções de transferência e

contratransferência (oriundas da psicanálise) utilizadas inclusive no nível

organizacional, como na psicoterapia institucional. Ou seja, questiona o lugar do

analista (psicanalista, psicólogo etc.) e o privilégio da interpretação analítica,

demonstrando que na análise, qualquer participante pode expressar uma

interpretação ou fazer emergir um elemento importante no processo.

A interpretação, pode ser o débil mental de serviço quem vai dar, se ele estiver em condições de reivindicar, num dado momento, por exemplo, que se organize um jogo de amarelinha, justo quando tal significante se tornará operatório ao nível do conjunto da estrutura. Deve-se ir no encalço da interpretação. Convém, pois, livrar a escuta de todo e qualquer preconceito psicológico, sociológico, pedagógico ou mesmo terapêutico. Na medida em que o psiquiatra ou o enfermeiro detém uma parcela de poder, ele deve ser considerado responsável pelos obstáculos às possibilidades de expressão da subjetividade inconsciente da instituição. A transferência congelada, mecânica, insolúvel, por exemplo: dos enfermeiros e doentes sobre o médico; a transferência obrigatória, predeterminada, 'territorializada' num papel, um estereótipo dado, é pior do que uma resistência à análise, é uma forma de interiorização da repressão burguesa pelo reaparecimento repetitivo, arcaico e

vigente e à assunção de sua marcação pelas engrenagens da produção e das instituições. Este modelo, o analista não o encontra pronta na sociedade atual. Justamente seus trabalho é de forjar um novo lugar onde seu paciente não consegue; aliás, de modo mais geral, a sociedade burguesa e capitalista moderna não têm mais à sua disposição modelo satisfatório algum! É para responder a essa carência que a psicanálise toma seus mitos emprestados às sociedades anteriores e é assim que o psicanalista nos propõe um modelo pulsional, um tipo de subjetividade e de relações familares, ao mesmo tempo novo e mesclado, sincretismo de elementos arcaicos e elementos totalmente modernos" ("A transferência", in Revolução Molecular, 1985:108).

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artifical de fenômenos de casta com seu cortejo de phantasias de grupo, fascinantes e reacionárias" ("A Transversalidade" in Revolução Molecular, 1985:95).

Nesse sentido, Guattari

(Como apoio provisório visando preservar, ao menos por algum tempo, o objeto de nossa prática) [propõe] introduzir em lugar da noção demasiadamente ambígua de transferência institucional um conceito novo: o de transversalidade no grupo. Transversalidade em oposição a:

- uma verticalidade que encontramos, por exemplo, nas descrições feitas pelo organograma de uma estrutura piramidal (chefes, subchefes, etc.); - uma horizontalidade como a que pode se realizar no pátio do hospital, no pavilhão dos agitados, ou, melhor ainda, no dos caducos, isto é, uma certa situação de fato em que as coisas e as pessoas ajeitam-se como podem na situação em que se encontram ("A Transversalidade", in Revolução Molecular, 1985:95-96)

A transversalidade enuncia uma possibilidade de trabalho coletivo onde o

saber sobre o grupo é construído e apropriado coletivamente. A revelação de um

grau menor ou maior de transversalidade232 permite que a análise ou que o processo

analítico se instaure, na perspectiva de que a transversalidade supõe os

atravessamentos presentes no grupo, na organização, no estabelecimento,

situando-os em suas relações sociais "concretas", as quais incluem as relações de

poder, seja em termos da sujeição econômica (inserção de classe e status social),

seja em torno da sujeição ao conhecimento técnico-científico que inibe as demais

vias de conhecimento e de expressão dos sujeitos. Nesse sentido, torna-se possível

ao indivíduo inserido no grupo, na organização, tornar-se um ouvido-ouvinte "com

232 "A transversalidade (...) está afetada de graus, limiares, coeficientes, definindo a margem de abertura de cada grupo específico a outros grupos ou séries sociais. Através do conceito de transversalidade, a distinção entre grupo-sujeito e grupo-sujeitado se vê matizada, libertando-se dos maniqueísmos de todo tipo:maniqueísmo político – que contrapõe 'centralismo' e 'espontaneísmo'; maniqueísmo psiquiátrico – que confronta normatividade terapêutica e identificação ao louco; maniqueísmo psicossociológico – unicamente capaz de perceber verticalidade burocrática ou horizontalidade atomizante; maniqueísmo psicanalítico – para o qual a palavra plena é sempre individual, sendo o grupo apenas mediador 'simbólico' ou socializador'. A uma nova crítica destes maniqueísmos se dirige o artigo A transversalidade, publicado na Revue de Psychothérapie Institutionelle" (Rodrigues, 1993:516).

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acesso ao além do grupo, que ele interpreta ao invés de manifestar" (idem:99). Tal é

a proposta de Guattari para uma intervenção analítica de grupo. Para ele,

o fato de aceitar ser 'posto em causa', ser desnudado pela fala do outro, um certo estilo de contestação recíproca, de humor, de eliminação das prerrogativas da hierarquia, etc., levará a fundar uma nova lei do grupo, cujos efeitos 'iniciáticos' permitirão a emergência, ou semi-emergência de um certo número de signos, presenciando os aspectos transcendentais da loucura que até então permaneciam recalcados. As phantasias de morte, ou de estilhaçamento do corpo, tão importantes nas psicoses, poderão ser retomadas num contexto de calor de grupo, quando se poderia ter ficado na crença de que seu destino, em essência, é o de permanecer prisioneiras de uma neo-sociedade, cuja missão, aliás, é exorcizá-las (idem: 100).

Guattari relaciona como vimos acima, a ação do grupo sujeito com a

transversalidade. Ou seja, o grupo sujeito tende a construir-se com um coeficiente

maior de transversalidade, o que lhe permite conhecer os problemas, as cisões, as

diferenças, as contradições, os medos, bem como abrir-se para as possibilidades de

ações criativas e inovadoras. Desse modo, a perspectiva da transversalidade

contribui para que o grupo possa apreender-se em suas relações sociais concretas.

Noutro aspecto, a transversalidade também contribui para a apreensão das

apropriações subjetivas realizadas, seja em um grupo (especificamente) ou nas

relações grupais que atravessam um estabelecimento ou uma organização social. A

ação do grupo enquanto sujeito em sua relação com a transversalidade indicam sua

inserção histórica na sociedade burguesa/capitalista com a possibilidade de

contestar um tipo de subjetividade dominante (a subjetividade capitalística) e de criar

novos modos de organização da vida (dimensão instituinte da ação dos grupos

enquanto sujeitos históricos) numa singularização que significa uma apropriação

inovadora da própria condição sócio-histórica existente.

Assim, as referências elaboradas por Guattari reforçam a dimensão histórica

da ação humana, e o fazem considerando as possibilidades de singularizações, de

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criações que "subvertam" a ordem social dominante também em sua dimensão mais

"encarnada" (corporificada): a subjetividade humana.

A estratégia que emerge desta compreensão remete a um processo de

construção que é grupal/coletivo/histórico, seja este expressão de segmentos

minoritários, ou expressão de uma vontade das massas (ou de movimentos sociais

mais amplos).

Por outro lado, o conceito de Capitalismo Mundial Integrado (CMI)233 em

Guattari, em um primeiro momento, quase oblitera qualquer possibilidade de

construção histórica, ao considerar que

o exercício do poder por meio das semióticas do capital tem como particularidade proceder concorrentemente, a partir de um controle de cúpula dos segmentos sociais, e pela sujeição de todos os instantes de cada indivíduo (...) A sobrecodificação, pelo capital, das atividades, dos pensamentos, dos sentimentos humanos, acarreta a equivalência e a ressonância de todos os modos particularizados de subjetivação. A subjetividade é nacionalizada. O conjunto de valores de desejo é reorganizado numa economia fundada na dependência sistemática dos valores de uso em relação aos valores de troca, a ponto de fazer com que esta categoria de valores de uso perca seu sentido234 (...) Na base dos mecanismos de modelização da força de trabalho, em todos os níveis da interpenetração entre ideologias e afetos, reencontramos esta rede maquínica tentacular dos equipamentos capitalísticos. O ponto no qual não poderíamos nos deter é que não se trata, em absoluto, de uma rede aparelhos ideológicos, mas de uma 'bela' megamáquina, composta de uma multidão de elementos esparsos, que concerne não somente aos trabalhadores, mas que bota para produzir, permanentemente, mulheres, crianças, velhos, marginais, etc. ("O capital como integral das formações de poder" in Revolução Molecular, 1985:202-203).

Nesse sentido,

233 No artigo "O capital como integral das formações sociais de poder" Guattari enuncia que "há uma coexistência, estratificação e hierarquização de capitalismos de diferentes níveis que põem em jogo: - de um lado, os capitalismos segmentários tradicionais, territorializados nos Estados-nações e que secretam sua unificação a partir de um modo de semiotização monetária e financeira; - e, de outro, um capitalismo mundial integrado, que não mais se apóia unicamente no modo de semiotização do capital financeiro e monetário mas, mais fundamentalmente, sobre todo um conjunto de procedimentos de servomecanismo-técnico-científico, macro e microssociais, e de meios de comunicação de massa, etc." (in Revolução Molecular, 1985:196). 234 "Passear 'livremente' numa rua, ou no campo, respirar ar puro, cantar meio alto, tornaram-se atividades quantificáveis de um ponto de vista capitalístico. Os espaços verde, as reservas naturais, a livre circulação, têm um custo social e industrial" (idem:202).

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o capitalismo se apodera dos seres humanos por dentro. Sua alienação pelas imagens e idéias é apenas um dos aspectos de um sistema geral de servomecanismo de seus meios fundamentais de semiotização, tanto individuais quanto coletivos. Os indivíduos são 'equipados' de modos de percepção ou de normalização de desejo, da mesma forma que as fábricas, as escolas, os territórios (...) O capitalismo pretende se apoderar das cargas de desejo que a espécie humana traz em si. É por intermédio do servomecanismo maquínico que ele se intala no coração dos indivíduos. Não se pode contestar, por exemplo, que a integração social e política das elites operárias e dos quadros de direçaõ não seja exclusivamente baseada num interesse material, mas também em seu apego por vezes muito profundo à sua profissão, sua tecnologia, suas máquinas... De modo mais geral, é claro que o meio ambiente maquínico secretado pelo capitalismo está longe de deixar indiferentes as grandes massas da população e isto não se deve somente às seduções da publicidade, à interiorização, pelos indivíduos, dos objetos, dos valores da sociedade de consumo. Parece que algo da máquina participa 'pra valer' da essência do desejo humano. Toda questão está em saber qual máquina e para quê (...) A própria burguesia mudou de natureza. Ela não está mais vigorosamente comprometida, ao menos na sua parte mais modernista, com a defesa da posse pessoal dos meios de produção – seja a título individual, seja a título coletivo. Seu problema hoje é o de controlar coletiva e globalmente a rede de base dos equipamentos capitalísticos. É disso que ela tira todos seus poderes, não só monetários, mas também sociais, libidinais, culturais, etc. É esse o terreno que ela pretende não se deixar expropriar (idem: 205; 206; 207).

Contudo, Guattari interroga-se sobre os limites do CMI e indica a

necessidade/possibilidade de revoluções moleculares, em suas palavras,

que limites encontrarão, então, as classes capitalísticas em seu empreendimento de conversão generalizada de todas as atividades humanas a um equivalente unicamente negociável, a partir de suas redes semióticas? Até que ponto uma luta de classes revolucionária é ainda concebível em tal sistema de contaminação generalizada? Sem dúvida esses limites não devem ser buscados na mesma porta em que os movimentos revolucionários tradicionais vêm batendo há tanto tempo! A revolução não está em jogo unicamente ao nível do discurso político manifesto, mas também num plano muito mais molecular, na direção das mutações de desejo e das mutações técnico-científicas, artísticas, etc. Em sua aceleração desenfreada e vertiginosa, o capitalismo se engajou no caminho de um controle planetário, visando cada indivíduo. Sem dúvida ele chega hoje – com a integração atual da China – ao ápice de sua potência, mas talvez, também, ao ponto extremo de sua fragilidade! Ele desenvolveu um tal sistema de dependência generalizada que o menor grilo em seu funcionamento acabará tendo, talvez, conseqüências incontroláveis (idem: 207).

A revolução molecular é enunciada por Guattari como uma

necessidade/possibilidade para enfrentar o domínio do capital também na produção

das subjetividades, na produção de cada indivíduo. Num primeiro momento, tal

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compreensão parece radicar numa referência "paranóica" (o capitalismo está em

tudo e em todos), mas, o autor, em sua argumentação, está fundamentando a

necessidade/possibilidade da revolução molecular face ao poder dominante, o qual

extrapola a dimensão econômica (ou como ele nos diz, o campo da economia

política) adensando o seu poder na "economia subjetiva".

A questão que se coloca é se de fato o CMI é "tudo isso", este amplo espectro

de dominação que está nas produções materiais, sociais, culturais e nos modos de

subjetivação existentes, quase como uma referência asfixiante, que se não nos

mata, nos obriga a respirar sempre o mesmo ar "contaminado". Porque, se o CMI é

capaz de tal proeza, as nossas possibilidades de ruptura precisariam ser

construídas em um mesmo ritmo de produção/singularização para diminuir as

capturas nas referências semióticas dominantes.

Por outro lado, observamos que, embora haja uma dominação efetiva que

expressa-se na hegemonia do capitalismo no mundo (ainda mais considerando o fim

da URSS e do socialismo de Estado) ela não é total. Senão, vejamos:

1) As referências semióticas (às quais Guattari nos remete) são um campo de

produção/materialização objetivo/subjetivo e, desse modo, as apropriações

subjetivas são únicas (ainda que engendradas no contexto do CMI), não podem

ser reduzidas à uma padronização geral, ainda que guardem aspectos em

comum;

2) Mesmo considerando o "consenso" social existente em torno do capitalismo

(expresso na aceitação das instituições burguesas estabelecidas), o que nos faz

pensar na adesão social ao mesmo (e ainda à sua "colagem à nossa pele", como

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nos diz Guattari), é necessário considerar também as constantes tensões, os

conflitos, as contradições e as lutas existentes que, permanentemente,

expressam a negação e a diferenciação na apreensão da ordem social sob a

hegemonia do capital;

3) A própria possibilidade de uma revolução molecular demonstra as apreensões

diferentes quanto à hegemonia do CMI e mesmo Guattari indaga-se sobre as vias

de enfrentamento ao mesmo.

Entretanto, a ênfase de Guattari às referências semióticas e aos

servomecanismos existentes nos faz perceber que a principal estratégia de ação é

sustentar o caráter histórico das ações humanas, enfrentando com firmeza as

perspectivas que apontam o capitalismo como o "fim da história" ou como a última

(ou única) alternativa de desenvolvimento econômico, social, político, cultural

possível.

Desse modo, os enfrentamentos podem ocorrer em muitas direções, desde a

afirmação das possibilidades de criação humana, desde as possibilidades de

singularização nos modos de viver e de organizar a vida, atravessados pelos

posicionamentos político-partidários, até à luta de classes propriamente dita, no

plano da disputa pelo controle ou pela autogestão da produção/reprodução material

na sociedade capitalista.

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3.3 – Hipóteses de trabalho

As elaborações de Lapassade, Lourau e Guattari dialogam com o a obra

Crítica da razão dialética, com as formulações da psicologia e da psicanálise – mais

especificamente com as formas de intervenção engendradas pela participação de

psicanalistas, psicólogos, psiquiatras, pedagogos como a psicossociologia (que

também inclui professores, sociólogos e assistentes sociais), a psicoterapia e a

pedagogia institucional – e com as abordagens sociológicas críticas ao positivismo e

ao funcionalismo. Partilham referências com a teoria social marxista (como a luta de

classes e a exploração do trabalho na sociedade capitalista; como a perspectiva

histórico-revolucionária), embora expressem seu desencanto (e suas críticas) em

relação ao socialismo desenvolvido na URSS (socialismo burocrático ou socialismo

de estado ou socialismo real), às práticas sindicais e às práticas contemporâneas de

mobilização e reivindicação da própria classe trabalhadora.

Em suas produções sobre os grupos predomina a perpectiva sócio-

histórica sobre as apreensões especificamente "psicológicas". No entanto, há

uma tendência a considerar a dimensão subjetiva focalizada nos grupos, nas

organizações sociais e nos processos instituintes presentes nas sociedades

capitalistas contemporâneas.

Nestas produções, há um "diálogo" (às vezes explícito) com a perspectiva

dialética (método dialético) em Hegel e em Marx, e com a perspectiva do

inconsciente formulada pela psicanálise freudiana. Em alguns momentos, as

reflexões realizadas sobre os grupos e sobre as organizações sociais aproximam a

perspectiva dialética e a perspectiva do inconsciente. É sobre essa observação que

iremos argumentar.

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Iniciamos com algumas indicações sobre a perspectiva dialética235 presente

na apreensão sócio-histórica sobre os grupos:

1 – Os grupos são considerados em seu movimento – seja pela herança do

termo "dinâmica de grupo" que equivale à perspectiva de considerar o grupo em seu

movimento dinâmico236; seja pela perspectiva de "interferência" em Lourau, que

considera os grupos em suas relações mais concretas nas organizações sociais e

em sua inserção social (transversal) mais ampla; seja pela noção de grupo sujeito

em Guattari que focaliza o caráter impermanente dos grupos – em sua produção

sobre si mesmo (trabalho ou práxis ou prática grupal) em sua possibilidade de

criação histórica;

2 – A relação entre a produção grupal, a organização social e a

potencialidade instituinte dos grupos humanos é sugerida como movimento (dialética

dos grupos, das organizações e das instituições em Lapassade; a produção do

grupo como devir/fluxo desejante em Guattari), sendo que estas produções,

enquanto práticas humanas/sociais estão imbricadas; ou seja, a produção grupal

também pode ser uma práxis de organização que institui novos modos de viver; e os

235 Estamos compreendendo, fundamentalmente, como perspectiva dialética, um modo de apreensão da realidade capaz de expressar o seu movimento contínuo, bem como de identificar as contradições, as lutas, os conflitos, as diferenciações existentes considerados em uma dimensão de totalidade social inacabada. 236 Embora as contradições não sejam apreendidas e os conflitos sejam simplificados como conflitos de relacionamento, a perspectiva de considerar a "dinâmica do grupo" já apresenta um problema importante a ser focalizado: o dos processos grupais, a fluidez das ações grupais, os dilemas na relação indivíduo/grupo que contrastam com a noção de grupo enquanto o somatório das ações individuais. Mesmo em Kurt Lewin, o grupo já é considerado como algo que é diferente de uma "soma" de indivíduos, anunciando a singularidade dos processos grupais. No entanto, a perspectiva dialética é muito mais complexa do que a perspectiva elaborada pela dinâmica de grupo, seja por sua vinculação político-ideológica, seja por seu comprometimento ético-político, ela diferencia-se ao denunciar as relações de exploração e de submetimento presentes nas sociedades capitalistas contemporâneas, justamente porque pretende expressar o movimento real/concreto desta sociedade.

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estabelecimentos sociais e as instituições sociais existentes manifestam-

se/expressam-se através dos grupos humanos que os constituem;

3 – A perspectiva em Lourau, do caráter universal, particular e singular das

instituições sociais remete, explicitamente, à dialética hegeliana237.

O método materialista-histórico-dialético implica na consideração da realidade

como uma totalidade social coerente (Lukács, 1969; 1979) onde as contradições

(entre capital e trabalho) existentes são o motor para as transformações sociais.

Sartre (2002) afirma o caráter inacabado da totalidade, sem negar a

possibilidade de totalizações parciais, ou seja, a totalidade é uma perspectiva que se

apresenta tanto materialmente (nas objetivações materiais humanas, no campo

prático-inerte), quanto na possibilidade de expressão pela razão crítico-dialética;

contudo, também é uma dimensão fugidia, porque está sempre em movimento e

porque ela tende a nos escapar na multiplicidade de suas expressões.

Marx, na Introdução à Crítica da Economia Política, também enfatizou que o

real ou a realidade extrapolam nossas possibilidades de apreensão na medida em

que não podemos reproduzi-los "totalmente" no plano do pensamento, ou na 237 Segundo Lourau, "a universalidade das instituições é ressaltada pela filosofia do direito herdade de Hegel, para quem as instituições 'são o que há de virtualmente universal nos interesses particulares'. Porém a lógica hegeliana distingue, na análise de qualquer conceito, três momentos que, articulando-se, definem a dialética: momentos da universalidade, da singularidade e da particularidade. A dialética obriga a que não nos contentemos com a oposição dualista entre interesses particulares e interesse geral. A universalidade da instituição, pela mediação de cada caso particular, encarna-se nas formas singulares e diferenciadas, das quais vimos pelo menos dois graus no que tange às instituições políticas (separação dos poderes em uma dezena de instâncias ou órgãos constituídos e divisão destes últimos em vários tipos de organizações). Muitas formas singulares da instituição escapam, de resto, ao jurídico ou ao organizacional: são as formas ideológicas, profundamente inscritas nas mentalidade, na prática social, e que a ideologia dominante se empenha em fazer passar por universais, logo racionais, normais, obrigatórias, intocáveis. Por exemplo, a seleção social efetuada pela escola ou a estrutura mercantil das trocas. Já os particulares, que quase nunca estão em contato direto, não mediado, com o universal da instituição (mesmo no caso da instituição fundamental, transjurídica e em parte transistórica da exogamia, os indivíduos vivem formas singulares de proibição do incesto, em tal comunidade e em tal época), como membros das instâncias instituídas, como usuários e mantenedores das instituições e, enfim, como agentes de transformação institucional, conferem sentido muito mais amplo ao conceito de instituição" ("O instituinte contra o instituído" in René Lourau: analista institucional em tempo integral, 2004:49).

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elaboração teórica. Nesse sentido, observamos que Marx marcou os limites para a

compreensão teórica e então, a totalidade social pode ser considerada como uma

categoria aproximativa face às produções sociais que se articulam coerentemente.

No entanto, quanto mais a análise teórica compreende/inclui as determinações

econômico-materiais, as determinações concretas, mais ela se enriquece e

possibilita uma melhor aproximação ao real, sendo que a análise teórica constitui

uma forma de expressão da realidade238.

Das críticas de Marx e Engels (2001) à ideologia alemã, apreendemos

um “alargamento” na noção de razão que prioriza a dimensão material e histórica,

bem como a necessidade de expressar, através da razão, o movimento do real ou

da realidade, através de um método dialético que inclui a contradição e o conflito no

processo do pensamento.

Para os autores, a filosofia é movimento, é possibilidade de transformar

a realidade, é práxis, ação/reflexão inserida no mundo.

Ao considerar a consciência como produto social, no intuito de combater o

idealismo alemão e outras formas de elaboração teórico-filosófica idealistas, Marx e

Engels enfatizam a dimensão material e econômica como uma determinação

fundamental.

Ao focar a perspectiva dialética no materialismo histórico, em Marx e Engels,

observamos que esta privilegia a contradição como o motor da história. O

238 Aqui trabalhamos com duas considerações: a de que a teoria realiza aproximações sucessivas à realidade, portanto não constitui o "reflexo" direto do real e a de que a teoria (qualquer que seja) é uma forma de expressão da realidade. Ou seja, a noção de análise teórica como "trabalho" que inclui a análise sobre a experiência real e a teoria como expressão de uma forma de existência real. Nesse sentido, toda a experiência humana é considerada como real, no entanto, o trabalho de análise é necessário para compreender as determinações concretas que a engendram e que tornam as teorias diferentes no campo de fortalecimento das lutas emancipatórias, ora como conhecimentos que incluem estratégias inovadoras, ora como conhecimentos que inibem os movimentos instituintes (criadores, transformadores).

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protagonismo político da classe operária também é destacado no intuito de fortalecer

(oferecer meios para) o proletariado na luta contra a burguesia. A noção de projeto

revolucionário está vinculada a esta dimensão de transformação social e de

construção (consciente) de novas formas de produção/reprodução material que

favoreçam a emancipação humana que se inicia pela superação da submissão do

trabalho ao capital ou pelo fim da alienação do trabalho pelo capital.

A perspectiva dialética em Sartre enfoca o movimento em sua fluidez e a

multiplicidade/diversidade presentes na apreensão da realidade, mas também

enfatiza os processos de enrijecimento, de serialização, de fixação da práxis pelas

noções de destino, pelo prático-inerte. O enraizamento histórico-material está

presente na medida em que Sartre indica as referências históricas que sustentam as

suas descrições sobre os grupos e as suas afirmações sobre as possibilidades [de

intelegibilidade] da razão crítico-dialética.

Entre Marx e Engels, e Sartre há aproximações: os primeiros afirmam o

caráter propositivo-racional da ação humana consciente demonstrando a

possibilidade de transformação e ruptura com o capitalismo a partir de uma vontade

coletiva (luta emancipatória) encarnada pelo proletariado enquanto sujeito histórico,

mas determinada pelas condições materiais existentes. Compreendemos que a

condições materiais na concepção de Marx e Engels, incluem a alienação social –

fundada sobre a alienação do trabalho pelo capital – a qual trabalhadores e

capitalistas estão submetidos e as expressões ideológicas que acompanham esta

alienação, o que complexifica a emergência de uma vontade coletiva emancipatória.

Sartre constata a relação entre a práxis comum e a apropriação da mesma pelos

sujeitos, a impossibilidade de construir um "estatuto de unidade" exterior às ações

empreendidas pelos grupos, priorizando a práxis grupal como referência em sua

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análise, ressaltando o caráter instituinte da mesma e o lugar da necessidade

(vivência do apocalipse anterior à fusão grupal) no movimento de fusão grupal.

Indicamos a proximidade entre a concepção de determinações objetivo/materiais ou

determinações histórico-econômicas ou determinações econômico-materiais (em

Marx e Engels) e a noção de necessidade em Sartre: ambas remetem a um aspecto

de "incontrolabilidade", como um limite para a vontade coletiva racional-propositiva

ou como um limite ao projeto revolucionário considerado a priori.

Em Marx e Engels, o limite do método dialético está posto pela realidade

social concreta. Nesse sentido, a vontade coletiva emancipatória também pode ser

considerada como um produto social que emerge em situações revolucionárias. O

que caracteriza uma situação revolucionária pode até ser enunciado (por referência

às situações concretas historicamente expressas, como a Revolução Francesa, a

Revolução Russa, a Comuna de Paris, a Revolução Cubana etc.), mas não é

possível produzi-la voluntariosamente. Este é o limite. É possível vislumbrar,

compreender que as contradições entre capital e trabalho possam deflagrar

processos revolucionários, mas, as condições para que estes ocorram são

extremamente singulares e dependem de muitos elementos, não sendo possível

antecipá-los com precisão, pois constituem apenas uma potencialidade a ser

explorada pelos sujeitos coletivos, pelas práticas empreendidas coletivamente.

Em Sartre os limites da razão crítico-dialética também aparecem na

constatação do movimento de fusão à nova serialização como uma possibilidade de

circularidade que reproduz as relações de poder, de hierarquia, a submissão (dos

sujeitos e dos grupos) à "unidade", à "totalidade", às quais restringem a perspectiva

emancipatória humana, aprisionando-a em formas institucionalizadas que degradam

as possibilidades (múltiplas) de ação/criação humana. A dialética recai na

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circularidade, ainda que a possibilidade histórica de criação de formas de

institucionalização diferenciadas continue aberta (conforme argumentamos

anteriormente).

Os limites da razão crítico-dialética, em Sartre, e do método dialético em Marx

e Engels, atestam a relação entre a expressão do real pela construção teórica e as

possibilidades/impossibilidades que escapam a tais apreensões. Em certa medida, a

constatação desses limites repõe a relação entre a produção/elaboração teórica e os

limites concretos das lutas emancipatórias ou das lutas revolucionárias atualizadas

na perspectiva de superação do capitalismo em nossas ações presentes.

Nesse sentido, segundo Lourau,

sociedade instituinte, sociedade instituída: mais que forças sociais morfologicamente isoláveis e observáveis (classes ou estratos), trata-se, mais profundamente, de instâncias, de forças em complementariedade e em luta – confusamente – , fora dos critérios demasiado cômodos de pertencimento objetivo a um dos dois 'campos' que constituiriam a sociedade [burguesia e proletariado]. A luta social, o drama social não devem evocar uma batalha de Fontenhoy usada para decorar o prato de sobremesa. Evocam, sobretudo, uma sombria guerrilha, cheia de emboscadas, fugas e camuflagens imprevistas, uma guerrilha onírica da qual estão excluídos o princípio de identidade e outras garantias aristotélicas, tornando definitivametne irrisórias as antigas estratégias em termos de programas, de disputas eleitorais ou de 'unidade de ação'. Seria bom demais se o instituinte se confundisse com a capacidade de análise e de contestação potencial atribuída a cada indivíduo ou a uma categoria social de contornos precisos, carismaticamente encarregada de fazer a história. Após várias décadas, os revisionismos proclamam a plenos pulmões que o grande deus Pã – o proletariado – está morto, que o proletariado, com todos os conteúdos que comporta este conceito cego, não é mais o significante da história, o instituinte de uma nova sociedade. As ditas ciências sociais e/ou humanas – encabeçadas pela sociologia – foram engolidas pela brecha que o movimento operário, com seus teóricos e seus estrategistas, deixou aberta. A idéia de revolução envelheceu, o instituinte se esfuma em favor do instituído que naturalmente se torna o 'objeto' (fantasmático, transicional) das ciências sociais. Até que o instituinte novamente faça ouvir seus gritos desordenados... Na dialética do instituinte e do instituído, as ciências sociais e a teoria política começam, enfim, a encontrar um objeto de conhecimento (Lourau, 2004:64-65).

Ao considerar a dialética entre instituinte e instituído, Lourau enfatiza a

"ausência" atual de um protagonista ou de um sujeito histórico expressivo. Tal

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constatação também está enraizada nos problemas que as classes trabalhadoras

têm enfrentado em termos de sua fragmentação face aos processos de

reestruturação produtiva dirigidos para a acumulação flexível num período de

recessão econômica e de limites à expansão geográfica/territorial do capital pelo

planeta (Mészáros, 2002). Nessa perspectiva, as classes trabalhadoras já não se

apresentam como as portadoras do poder instituinte, posto que também tendem a

defender a sua própria conservação e sobrevivência recuando nas suas lutas

emancipatórias239.

Nesse sentido, as próprias lutas tidas como emancipatórias passam a

incorporar novos conteúdos, os quais também denunciam as relações de poder

expressas no cotidiano. Talvez, esta dimensão possa ser compreendida tanto pelas

experiências revolucionárias que foram pouco efetivas no sentido de avançar em

termos da emancipação humana real, quanto pelas expectativas que estão sendo

criadas que incluem uma satisfação subjetiva real, uma participação dos sujeitos na

diferença e no respeito mútuo capaz de ser evocada por algumas experiências de

autogestão nas quais as relações de poder foram vivenciadas como produção 239 Compreendemos a emancipação humana como uma possibilidade aberta pelo desenvolvimento das forças produtivas no sentido de reduzir a dependência dos seres humanos face às restrições da natureza (acidentes, catástrofes, escassez), ou seja, a capacidade construída pela civilização ocidental de produzir a própria sobrevivência mesmo em condições adversas. Tal capacidade, em tese, abre a possibilidade de liberar os seres humanos em relação ao trabalho árduo favorecendo as atividades sociais, o convívio social, a participação na gestão dos recursos produzidos, na política, na produção artística e científica (O ócio criativo, de Domenico Demasi). Contudo, sob a hegemonia do capital, tal emancipação fica restrita ao usufruto da burguesia, ao mesmo tempo, em que a diminuição do tempo de trabalho necessário à produção de mercadorias (aprimoramento tecnológico) reduz o número de pessoas no processo produtivo, alijando um número expressivo de pessoas da possibilidade de participação social através do trabalho, mantidas por recursos públicos geralmente burocratizados e de difícil acesso. Nesse sentido, a liberação do tempo de trabalho sob a hegemonia do capital acaba resultando num pequeno número de pessoas que usufruem da riqueza socialmente produzida, podendo usufruir do tempo livre ou do ócio; num significativo número de trabalhadores sobrecarregados em sua dedicação ao processo produtivo (extensão das jornadas de trabalho pelo recurso às horas extras) e outro significativo número de pessoas sem trabalho (sem inserção social pelo trabalho), ora desenvolvendo atividades informais, ora comprometendo-se fisicamente em atividades em condições de precariedade, ora dependendo dos recursos públicos/sociais para a manutenção de sua sobrevivência e ora cedendo às ações ilegais/criminosas como meio de manter tanto a sobrevivência material quanto um certo status social (acesso ao mercado de consumo, pertinência a grupos sociais).

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coletiva, sem a submissão à unidade ou à direção centralizada nas concepções de

alguns poucos em torno do que seria esta emancipação (como nos eventos de Maio

de 68).

Esta satisfação subjetiva, enquanto uma dimensão da emancipação humana,

dialoga com a expressão da subjetividade nas sociedades capitalistas. Ou seja,

dialoga com a possibilidade de uma experiência subjetiva relativamente

independente e autônoma face aos seus vínculos de origem/pertencimento (família,

vizinhança, empresas, organizações sociais) com abertura, até certo ponto, para

transitar entre concepções de mundo diferentes, entre status sociais diferentes. Uma

espécie de "desenraizamento" que permite o investimento subjetivo em diferentes

direções. Contudo, é preciso ressaltar que este desenraizamento também significa

uma flutuação constante e muita instabilidade, que tendem a gerar nos sujeitos tanto

a insatisfação em relação ao "patamar alcançado" (status social desfrutado) quanto

o investimento contínuo para manter este lugar na sociedade, bem como para

continuar ascendendo economicamente. Por outro lado, esta reflexão não

corresponde à situação de grande parte da população, estando mais próxima das

classes médias, as quais, mesmo podendo ascender financeiramente (em relação

aos seus vínculos de origem), galgando novos status sociais, não possuem em seu

horizonte a possibilidade de sair da condição de classe trabalhadora, ou da condição

permanente de "vender a sua força de trabalho" para sobreviver.

Na dialética entre instituinte e instituído Lourau descobre a multiplicidade, os

múltiplos atravessamentos os quais constituem tanto o proletariado quanto a

burguesia. Mas, pensamos também que Lourau expressa as concepções de um

"estrato social", a classe média, que, incorpora criticamente as suas necessidades

de sobrevivência e o seu lugar de "regulação" (controle) ideológica face aos demais

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trabalhadores, bem como, vivencia na própria subjetividade as tensões da sociedade

capitalista, como a pressão por adquirir status sociais cada vez mais elevados em

condições de instabilidade permanente.

Através da concepção de Lourau, observamos que o método dialético passa a

incluir uma diversidade de elementos que complexificam a fórmula afirmação-

negação-síntese (evoluindo em espiral ou evoluindo pela superação das

contradições em cada período histórico) "esfumaçando" a nitidez dos contornos.

Poderíamos ilustrar esta complexidade pensando que as afirmações não são

apenas afirmações, mas contém uma infinidade de aspectos e de motivações, as

negações não são apenas negações e também contém uma multiplicidade de

aspectos, e a síntese pode acontecer ou não (podemos como observou Sartre,

encontrar um movimento circular, ao invés de um movimento sintético em espiral

[evolutivo]). Ou seja, pensamos que o movimento (a dialética) expressa ao mesmo

tempo todas (as diversas) as "possibilidades em jogo" e mesmo havendo a

emergência de algumas vertentes as demais continuam potencialmente em diálogo

e muitas vezes, concretamente em presença.

Então, mesmo que a luta possa ser polarizada entre duas classes

fundamentais elas interagem e se beneficiam das diferenças existentes e do apoio

destas do ponto de vista político nos campos de seu enfrentamento. Em relação às

sociedades capitalistas contemporâneas a polarização da luta está obscurecida e

muitos são os espaços de enfrentamento, de emergência de novos poderes

instituintes e de reificação (manutenção) de antigos poderes instituídos.

Assim, é possível compreender a necessidade da análise240 para reconhecer

240 "Eis a definição 'clássica' de análise. Ao falar de análise nas ciências humanas (psicanálise, análise institucional, socioanálise) também se tem por alvo a decomposição de um todo em seus elementos. A isto se acrescenta a idéia de interpretação: interpretar um sonho ou uma fala de grupo é passar do desconhecido ao conhecido; é uma operação de deciframento. Freud compara o

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tanto os novos poderes instituintes quanto as formas de reprodução e de

manutenção do status quo existente. Por outro lado, pensamos ser possível

compreender, que em tal circunstância, a dialética também aparece como uma

possibilidade de conhecer continuamente a realidade, em seu movimento, e ao

mesmo tempo, reconhecer as zonas de desconhecimento que são produzidas por

um conhecimento novo capaz de fixar um novo território. Nesta perspectiva,

pensamos que dialética também expressa o movimento entre

conhecimento/desconhecimento ou territorialização/desterritorialização.

Segundo Lourau,

As instituições formam a trama social que une e atravessa os indivíduos, os quais, por meio de sua práxis, mantêm ditas instituições e criam outras novas (instituintes). As instituições não são somente os objetos ou as regras visíveis na superfície das relações sociais. Têm uma face escondida. Esta face, que a análise institucional se propõe a descobrir, revela-se no não dito. O ocultamento é produto de uma repressão. Poderíamos falar, aqui, de uma repressão social que produz o insconsciente social. Aquilo que se censura é a palavra social, a expressão da alienação e a vontade de mudança. Do mesmo modo que há um retorno do reprimido durante os sonhos ou nos atos falhos, há um 'retorno do reprimido social' nas crises sociais. Descobrir o não dito, o censurado, foi a obra de Marx e Freud, os dois grandes desmascaradores. Marx, pondo em evidência a luta de classes como significado do movimento da história e a instituição da mais-valia capitalista (mascarada pela instituição do salário); Freud, descobrindo o insconsciente, oculto sob uma ordem institucional criadora de racionalizações. Tanto um como outro nos convidam a uma investigação acerca do oculto mediante um questionamento das instituições ocultantes, sejam elas da ordem da racionalização, sejam da ideologia. Esta investigação é uma hermenêutica que implica o desvelamento da repressão do sentido por meio da análise dos fatores de desconhecimento. Este ocultamento se completa através de mediações institucionais que permeiam toda a sociedade. Assim, as leis, as regras, os preconceitos que limitam a sexualidade a sua 'função' de procriação ocultaram a verdade sobre o desejo sexual. A luta instituinte contra essas regras instituídas manifestou-se

descobrimento do inconsciente ao deciframento de hieróglifos. Aqui, a análise transforma-se em hermenêutica. Procede-se trazendo à luz o que está escondido e só se revela pela operação que consiste em estabelecer relações entre elementos aparentemente disjuntos. Trata-se de reconstruir uma totalidade que se havia rompido. Marx utiliza muitas vezes o mesmo termo – a análise – em O Capital. Especifica ser ela necessária somente quando as relações sociais não são imediatamente visíveis e, sobretudo, na relação de exploração. Com efeito, a exploração é visível no sistema feudal. O discurso analítico não é necessário, no caso. Porém a exploração se acha dissimulada no sistema capitalista e, pra que venha à luz, para que se revele, uma análise torna-se então necessária" ("Objeto e método da análise institucional" in Lourau, 2004: 67-68).

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em comportamentos ou obras artísticas condenados: destruiu-se Urbano Grandier, como se fez posteriormente com as obras de Diderot ou Sade. Estas manifestações de não conformidade com o instituído são, elas mesmas, reveladoras da natureza do instituído. São o ANALISADOR. Do mesmo modo, a Comuna de Paris foi o revelador do Estado de classe e de sua verdade; assim, Marx descobre através da Comuna o que é realmente o Estado. Marx e Freud elaboraram suas teorias graças ao que revelavam os dispositivos analisadores: a prática revolucionária, o cerimonial da cura psicanalítica ("Objeto e método da análise institucional" in René Lourau: analista institucional em tempo integral, 2004:68-69).

No método da análise institucional Lourau aproxima Marx e Freud, talvez

buscando justificá-la ou fundamentá-la teoricamente. Contudo, parece-nos que

Lourau apresenta uma aproximação entre o método dialético de Marx e o

inconsciente de Freud, justamente porque aborda as questões do ocultamento e do

não-dito numa perspectiva sócio-histórica. Ou seja, ele não "aplica" a perspectiva

freudiana do inconsciente à sociedade, mas, também não nega a repressão social e

os processos de ocultamento (não-dito, repressão à palavra) por ele observados.

Nesse sentido, observamos que, quando trata-se de compreender as relações

sociais em seus desdobramentos, seja em sua inserção nos estabelecimentos

sociais, nas organizações sociais, ou seja em suas manifestações através de

práticas grupais/coletivas, ambas atravessadas pelas apropriações subjetivas

(processos de subjetivação) existentes, estão em presença uma multiplicidade de

aspectos e de perspetivas de apreensão cuja possibilidade de compreensão implica

necessariamente numa abertura ao desconhecido e na aventura de produzir novas

formas de ação e de conhecimento.

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3.4 – O Grupo Operativo de Pichon-Rivière

Ao considerarmos as hipóteses elencadas anteriormente torna-se mais fácil

apresentar e compreender a estratégia "Grupo Operativo" elaborada por Pichon-

Riviére.

Embora o autor organize seus conhecimentos sobre o processo grupal nesta

estratégia, ele a formula através de um Esquema Conceitual Referencial Operativo

(ECRO)241 enquanto uma concepção criada por ele para intervir junto aos grupos

com os quais trabalhou.

É interessante que, a necessidade de propor uma estratégia de intervenção

considerando o trabalho e o processo grupal, foi identificada por Pichon-Rivière tanto

em sua prática médico-psiquiátrica quanto em sua prática pedagógica na formação

acadêmico-profissional de novos psiquiatras.

Nesse sentido, observamos que Pichon-Rivière reconheceu a necessidade de

trabalhar o processo de formação acadêmica dos futuros psiquiatras a partir de suas

referências subjetivas. Tais referências, construídas em seus vínculos de origem,

deveriam ser revisitadas (ou apropriadas), propiciando que o conhecimento por eles

produzido/assimilado, a partir das suas concepções de mundo e de vida, fosse

colocado em questão face às novas experiências como estudantes de psiquiatria e

face aos novos pressupostos apresentados em sua formação acadêmica (novos

referenciais epistemológicos).

241 Pichon-Rivière utiliza esta denominação, sintetizada na sigla ECRO, para designar as particularidades de suas apropriações teóricas em uma perspectiva que conjuga referências plurais. O ECRO de Pichon-Rivière inclui as suas inserções sociais e as suas vivências que atravessam os modos como ele articula os diferentes paradigmas epistemológicos: medicina, psiquiatria, psicanálise, teoria de campo e a dinâmica de grupo de Kurt Lewin, a gestalt, o materialismo histórico-dialético, a antipsiquiatria, entre outros.

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Todavia, as formulações de Pichon-Rivière242, extremamente originais, foram

possíveis em um contexto de produção mais amplo, o qual envolveu a participação

de outros profissionais comprometidos com a criação de novos procedimentos no

campo do movimento anti-psiquiátrico e na construção das políticas de saúde mental

na Argentina, bem como nas questões que atravessaram a criação/existência da

Associação Psicanalítica Argentina (APA) 243, especialmente, durante as décadas de

50 e 60.

Entretanto, há que reconhecer o protagonismo e o pioneirismo244 de Pichon-

Riviére que o transformaram em uma referência importante no contexto argentino,

favorecendo a difusão de suas elaborações para o Brasil.

Vejamos algumas referências de sua biografia.

Enrique Pichon-Rivière, filho de franceses, nasceu em Genebra em 1907. Aos

quatro anos (1911) sua família foi morar na Argentina (litoral, região do Chaco). Na

adolescência viveu em Corrientes (Argentina) quando começou a ler sobre Freud. 242 José Maria Alberdi, em sua dissertação de mestrado intitulada Reformas y Contrarreformas, Políticas de Salud Mental en Argentina (1996), destaca o protagonismo de Pichon-Riviére (sua trajetória institucional), assim como também apresenta as trajetórias de José Bleger e Marie Langer vinculadas à Associação Psicanalítica Argentina. 243 “A APA como institución se crea en 1943, con el aporte de psicoanalistas exiliados de Europa por la persecución nazi, entre ellos Marie Langer, adherida a la Asociación Psicoanalítica Internacional, la APA tuvo como principal influencia la escuela kleiniana que vigoraba en la época. Según el analista institucional Villamor (1986:22) los primeros médicos piscoanalistas fueron liberales sin adscripción política, innovadores en sus primeras intervenciones en el sistema de salud mental, de un agnosticismo sin excesivas pretensiones filosóficas y de un antiperonismo acérrimo. La política educativa del peronismo hegemonizada por el nacionalismo tomista facilito la coexistencia casi sin conflictos entre liberales de izquierda y de drecha. Asi lo prueban las figuras de Marie Langer y José Bleger, marxistas ambos, en tanto María en su pasado europeo había militado en el partido comunista contra la barbarie nazi con clásicos de la derehca como Rasvcovky y otros. Con la distensión generada con los primeros gobiernos desarrolistas, las reglas de juego comienzam a cambiar, el cientificismo era parte del discurso legitimante de la tecnocracia en el poder, con la génesis de las primeras escuelas universitárias la APA aparecía como el ideal didacta para la educación de los nuevos Psicologos. Siendo Bleger, Liberman y otros quienes correspondieron con la modelización de la carrera de psicología en los cánones de la formarción psicoanalítica, no necesitando grandes esfuerzos en virtud del déficit institucional e intelectual de otras corrientes psi. Paralelamente se iban originando las primeras trasciciones y transacciones a lo ‘social’ mal vistas por la ortodoxia aséptica clínica de la APA” (Alberdi, 1996: 153-254). 244 Nos confrontos entre os psicanalistas membros da APA, Pichon-Rivière aparece como “el primero de nosotros que cuestionó las limitaciones autoimpuestas por el psicoanálisis, buscando nuevas aperturas y sufriendo el destino de los pioneros” (Langer e outros, 1971:13).

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Ele “formou-se” poeta e crítico de arte. Graduou-se em medicina, curso que concluiu

em Rosário, 1936. Neste ano, mudou para Buenos Aires indo trabalhar no Hospital

de Las Mercedes onde sistematizou suas idéias sobre trabalho com grupos (neste

período exerceu a psiquiatria). Casou-se três vezes: a primeira esposa suicidou por

motivo de grave enfermidade; a segunda esposa morreu tragicamente num acidente

de automóvel; a terceira esposa, Ana Quiroga, contribuiu com a produção escrita de

Pichon-Rivière. Fundou em 1953 o IADES (Instituto Argentino de Estudos Sociais)

que se transformou em 1967 na Primeira Escuela Privada de Psicologia Social.

Participou da fundação, em 1940, da Associação Psicanalítica Argentina (APA),

afastou-se desta Associação na época de seu rompimento com a psicanálise.

Algumas publicações em português: O Processo Grupal, Teoria do Vínculo,

Psicologia da Vida Cotidiana (com Ana Quiroga).

Pichon-Rivière enuncia seu “itinerário de pensamento” através de sua própria

vida,

na medida em que o esquema de referência de um autor não só se estrutura como uma organização conceitual, mas se sustenta em alicerce motivacional de experiências vividas (...) Com as raízes da emigração de meus pais de Genebra para o Chaco, fui, desde os 4 anos, testemunha e protagonista da inserção de um grupo minoritário europeu em um estilo de vida primitivo (...) Meu interesse pela observação da realidade teve, inicialmente, características pré-científicas e, mais exatamente, místicas e mágicas, adquirindo uma metodologia científica através da tarefa psiquiátrica (...) A internalização destas estruturas primitivas dirigiu meu interesse para a desocultação do implícito, na certeza de que, por trás de todo pensamento que segue as leis da lógica formal, subjaz um conteúdo que, através de diferentes processos de simbolização, inclui sempre uma relação com a morte, em uma situação triangular (...) Meu contato com o pensamento psicanalítico foi anterior ao ingresso na Faculdade de Medicina, e surgiu como o achado de uma chave que permitiria decodificar aquilo que era incompreensível na linguagem e nos níveis de pensamento habituais (...) Ali [na Universidade] reforçou-se minha decisão de trabalhar no campo da loucura, que mesmo sendo uma forma de morte, pode ser reversível (...) O contato com os pacientes [no ambiente psiquiátrico], a tentativa de estabelecer com eles um vínculo terapêutico, confirmou o que, de alguma maneira, havia sido intuído: que por trás de toda a conduta 'desviada' subjaz uma situação de conflito, sendo a enfermidade a expressão de uma tentativa de adaptação ao meio (...) Durante o tratamento de pacientes psicóticos realizado segunda a técnica analítica e pela indagação quanto a

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seus processos transferenciais, tornou-se evidente para mim a existência de objetos internos, multíplices 'imago', que se articulam em um mundo construído segundo um processo progressivo de internalização (...) A indagação analítica desse mundo interno levou-me a ampliar o conceito de 'relação de objeto', formulando a noção de vínculo, que defino como uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto e sua mútua inter-relação com processo de comunicação e aprendizagem. Essas relações intersubjetivas são dirigidas e estabelecem-se sobre a base de necessidades, fundamento motivacional do vínculo. Esta concepção do mundo interno e a substituição da noção de instinto pela de estrutura vincular (entendendo o vínculo como uma proto-aprendizagem, como o veículo das primeiras experiências sociais, constitutivas do sujeito como tal, como uma negação do narcisismo primário) conduzem necessariamente à definição da psicologia, em um sentido estrito, como psicologia social (...) Só em 1962, no trabalho sobre 'Emprego de Tofranil no tratamento do grupo familiar', em 1965, com 'Grupo operativo e teoria da enfermidade única', e em 1967, com 'Introdução a uma nova problemática para a psiquiatria', obtive uma formulação mais totalizadora de meu esquema conceitual (...) A trajetória de minha tarefa – que pode ser descrita como a investigação da estrutura e sentido da conduta, na qual surgiu a descoberta de sua índole social – , configura-se como uma práxis que se expressa em um esquema conceitual, referencial e operativo (Pichon Rivière, 1998: 02-07).

Sobre a trajetória de Pichon-Rivière é importante destacar sua intervenção no

Hospital Psiquiátrico de Las Mercedes245, quando, a partir da greve dos enfermeiros,

Pichon- Rivière preparou alguns pacientes para cuidar dos demais. Esta experiência

alterou significativamente o quadro de saúde mental dos pacientes. A melhora foi

expressiva e teve impacto nas reflexões realizadas por Pichon Rivière.

Pichon-Rivière participa do Movimento Institucionalista e Grupalista246. A

singularidade de sua contribuição ao movimento está na proposição do “Grupo

Operativo”. A formação psicanalítica do autor foi influenciada por Melaine Klein247.

245 Pichon-Riviére trabalhou durante 15 anos neste hospital. Lá desenvolveu trabalhos com os enfermeiros encarregados de cuidar dos pacientes. Esses trabalhos foram realizados em grupo. Posteriormente, durante uma greve dos enfermeiros, Pichon-Rivière inovou mais uma vez ao preparar alguns pacientes para cuidar dos demais. No entanto, Pichon enfrentou as resistências de seus colegas de profissão e acabou por deixar o Hospital. 246 A esse respeito, destaca Rodrigues, “os grupos operativos de Pichon-Rivière começam por meio de uma ação no Hospício de las Mercedes, o mais antigo manicômio de Buenos Aires, sendo então coordenados, inclusive, pelo pessoal não-técnico e pelos pacientes; seu ensino e implementação, na Argentina, estão vinculados, principalmente a partir dos anos 60, aos setores de esquerda críticos dos modelos asilares-manicomiais (1999: 124, grifos nossos). 247 "Melaine Klein, cujas concepções exerceram notável influência sobre os psicanalistas ingleses, estudou crianças abaixo dos três anos. Investigando sua atividade fantástica, bem como o modo como ela se expressa nas brincadeiras e na mímica, Klein estabeleceu que a crise edípica entra em

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De sua crítica à psicanálise emerge a perspectiva de uma psicologia social

politicamente engajada. Também observamos o seu envolvimento com o movimento

antipsiquiátrico, pela contestação/inovação dos métodos de cura utilizados pela

psiquiatria. Nesse sentido, o “Grupo Operativo” (através do Esquema Conceitual

Referencial Operativo de Pichon-Rivière) também expressa a criação de novas

referências para abordar a saúde mental.

De acordo com Osvaldo I. Saidon,

a escola de psicologia social de Pichon-Riviére surge a partir da investigação da estrutura e sentido da conduta levando ao descobrimento de sua índole social (...) Essa abordagem pluridimensional reconhece diversas origens que variam nos diferentes momentos de sua trajetória. O esquema referencial básico é constituído pela psicanálise, pela teoria de campo de Kurt Lewin e pela teoria da interação e comunicação. Mais tarde, nos últimos anos, os pontos de partida que se mostravam como básicos na postulação de uma psicologia social passaram a ser a psicanálise e o materialismo dialético. Utilizando algumas categorias do materialismo dialético (Lefevre – Goldman), Pichon critica a idéia de instinto em Freud e a substitui pela de necessidade, achando que esta permite exprimir melhor a determinação da estrutura social (1982: 181).

A partir destas referências preliminares prossigamos na compreensão das

concepções de Pichon-Rivière sobre os “Grupos Operativos”.

3.4.1 – O conceito de grupo operativo

Segundo Pichon-Rivière, a técnica de grupo operativo foi criada em

1946, “quando estando encarregado do Serviço de Adolescentes del Hospital ação muito antes do que pensava Freud. E ainda: o primeiro objeto no mundo da criança é o seio materno. A necessidade de mamar é acompanhada pelo medo de não poder ser satisfeita. Nesse primerio período, a criança é aterrorizada pelo temor de ser danificada (Klein chama esse sentimento de 'posição persecutória'). Depois, por volta do terceiro mês, a criança teme poder destruir a pessoa que ama e da qual necessita (esse sentimento Klein o chama de 'posição depressiva'). Em seguida, constatando que sua agressividade não é tão destrutiva e poderosa assim, a criança consegue superar a posição depressiva, tornando-se confiante e demonstrando mais segurança. Essa superação, porém, não ocorre uma vez por todas: as posições persecutória e depressiva podem voltar a explodir também na vida adulta" (Reale e Antiseri, 1991: 935).

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Neuropsiquiátrico de Hombres da cidade de Buenos Aires (também conhecido como

Hospital Psiquiátrico de Las Mercedes), fez-se necessário formar, com um grupo de

pacientes, uma equipe de enfermeiros para o Serviço” (1998a:177).

O grupo operativo foi definido como “um conjunto restrito248 de pessoas

ligadas entre si por constantes de tempo e espaço, articuladas por sua mútua

representação interna, que se propõe de forma explícita ou implícita uma tarefa a

qual constitui sua finalidade, interatuando através de complexos mecanismos de

atribuição e assunção de papéis” (Pichon-Rivière, 1998a: 210).

Tal conceito nos remete à apreensão dos grupos como campo de

intervenção profissional (na presença de coordenadores e observadores, como

detalharemos adiante) e como estratégia de intervenção orientada para processos

de transformação (pessoal/social) através de referências teórico-técnicas

específicas. Ou seja, os grupos desenvolvidos por Pichon-Rivière estiveram

vinculados à sua inserção organizacional em estabelecimentos específicos, como o

hospital psiquiátrico, como a escola de psicologia social, como a escola de

psiquiatria. Contudo, o autor também experimentou inserções comunitárias

utilizando-se da estratégia grupal e das concepções que elaborara em seu Esquema

Conceitual Referencial Operativo (ECRO). A “Experiência de Rosário” 249 também é

248 Ao abordar o esquema "cone invertido" que perfaz a análise do grupo operativo através dos vetores pertenencia (ou pertença), pertinência, comunicação, aprendizagem, tele e cooperação (como desenvolveremos adiante) Saidon faz-se uma pergunta: se o conjunto do grupo avaliado restringe-se ao número de membros que o compõem ou se inclui "toda a grupalidade (família, classe social, fantasmas grupais) da qual é expressão" e indica: a insistência de Pichon nos últimos anos "nos problemas sobre ideologia e sua expressão na vida cotidiana nos faz pensar a favor da segunda hipótese" (1982: 195). A questão levantada por Saidon é relevante e nós observamos que no ECRO de Pichon a dimensão sócio-histórica expressa-se nos grupos operativos e os grupos operativos intervém sobre a sua condição sócio-histórica. 249 "O ponto de partida de nossas investigações sobre os grupos operativos, tal como os concebemos hoje, provém do que denominamos Experiência Rosário (realizada em 1958). Tal experiência esteve a cargo do Instituto Argentino de Estudios Sociales (IADES) e foi planificada e dirigida por seu diretor, o doutor Enrique Pichon-Rivière. Controu-se com a colaboração da Faculdade de Ciências Econômicas, do Instituto de Estatística, da Faculdade de Filosofia e seu Departamento de Psicologia, da Faculdade de Medicina, etc" (Pichon-Rivière e outros in Riviére, 1998a:120).

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uma referência em termos da construção da estratégia “Grupo Operativo”.

No artigo “Técnica dos grupos operativos” redigido em colaboração

com José Bleger, David Liberman e Edgardo Rolla, publicado originalmente na Acta

Neuropsiquiátrica Argentina, 6, em 1960, os autores resumem suas concepções:

a teoria dos grupos operativos fundamenta-se seguindo as idéias de Pichon-Rivière. O esquema ou marco conceitual (referencial e operativo) inclui, além da concepção geral dos grupos restritos, idéias sobre a teoria do campo, a tarefa, o esclarecimento, a aprendizagem, a investigação operativa, a ambigüidade, a decisão, a vocação, as técnicas interdisciplinares e acumulativas, a comunicação e os desenvolvimentos dialéticos em espiral. Outros conceitos referem-se à estratégia, tática e técnica, assim como à horizontalidade e à verticalidade, descobertas de universais, somatória de idéias (brain storming), etc. Em certa medida, estas idéias inspiram-se nas técnicas dos comandos; mas seu verdadeiro nascimento e desenvolvimento inicia-se depois do que denominamos Experiência Rosário, uma investigação de caráter interdisciplinar e acumulativo, que foi realizada por membros do Instituto Argentino de Estudios Sociales (IADES) sobre uma comunidade heterogênea dessa cidade. Os resultados tiveram uma influência decisiva tanto sobre a teoria como sobre a prática dos grupos operativos aplicados à didática (ensino da psiquiatria, compreensão da arte, etc.) à empresa, à terapêutica (grupos familares), à publicidade, etc. A técnica destes grupos está centrada na tarefa, na qual teoria e prática se resolvem em uma práxis permanente e concreta no 'aqui e agora' de cada campo assinalado. As finalidades e propósitos dos grupos operativos podem ser resumidos dizendo-se que sua atividade está centrada na mobilização de estruturas estereotipadas por causa do montante de ansiedade despertada por toda mudança (ansiedade depressiva pelo abandono do vínculo anterior e ansiedade paranóide criada pelo vínculo novo e pela conseqüente insegurança). No grupo operativo, o esclarecimento, a comunicação, a aprendizagem e a resolução de tarefas coincidem com a cura, criando-se assim um novo esquema referencial (in Riviére, 1998a:133-134).

Na Experiência de Rosário a planificação realizada sob a direção de

Pichon-Rivière envolveu: o preparo de uma equipe através de uma estratégia e de

uma prática operativa; a divulgação da experiência na cidade de Rosário,

principalmente entre os estudantes, utilizando-se de cartazes; e a “operação

propriamente dita” que aconteceu como um experimento da atividade grupal,

iniciada pela proposição de temas para que os grupos (em torno de 9 pessoas

reunidas aleatoriamente e num total de 15) trabalhassem. As observações sobre

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esta operação envolveram: a modificação na forma de participação das pessoas

presentes em relação ao início dos trabalhos, ou seja, num primeiro momento elas

comportaram-se como “auditório”, após as sessões grupais, coordenadas e

registradas por observadores, em um segundo momento de reunião global, as

pessoas participaram mais ativamente, adotando um comportamento diferenciado; a

experiência motivou a formação de grupos engajados nas questões da cidade: grupo

de estudantes portenhos que estudavam em Rosário; grupo de estudantes disposto

a trabalhar com enquetes sociais; outros grupos dispostos a “operar diante dos

problemas concretos referentes à comunidade rosariana (entre eles há estudantes

de medicina, arquitetura, estatística e engenharia), no terreno das relações

humanas, das relações industriais e do ensino” (idem: 123).

Esta experiência planificada indica a perspectiva de intervenção

presente no Grupo Operativo como estratégia de inserção social capaz de deflagrar

processos de transformação pessoal/social. Também apresenta uma articulação

entre as perspectivas de saúde mental, aprendizagem, comunicação como

dimensões relacionadas entre si.

Desse modo,

os grupos podem ser verticais, horizontais, homogêneos ou heterogêneos, primários ou secundários, porém em todos se observa uma diferenciação progressiva (heterogeneidade adquirida) à medida que aumenta a homogeneidade na tarefa. Tal tarefa depende do campo operativo do grupo. Quando se trata de um grupo terapêutico, a tarefa é resolver o denominador comum da ansiedade do grupo, que adquire em cada membro características particulares. É a cura da enfermidade do grupo. Se for um grupo de aprendizagem de psiquiatria, por exemplo, a tarefa consiste na resolução das ansiedades ligadas à aprendizagem dessa disciplina e na facilitação para assimilar uma informação operativa em cada caso. Em geral, diríamos o mesmo de grupos industriais, de grupos cuja tarefa é a compreensão da arte, de equipes esportivas (como uma equipe de futebol), etc. O propósito geral é o esclarecimento, em termos das ansiedades básicas, da aprendizagem, da comunicação, do esquema referencial, da semântica, das decisões, etc. Dessa maneira, a aprendizagem, a comunicação, o esclarecimento e a resolução da tarefa coincidem com a cura. Criou-se um novo esquema referencial (idem: 132, grifos nossos).

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Nesse sentido, o conceito de grupo operativo, que analisaremos

detalhadamente a seguir, identifica nos grupos sua dimensão estratégica como um

“manejo” importante para lidar com os processos de transformação pessoal/social ou

como um recurso (técnica) capaz de auxiliar ou deflagrar esses processos.

Temos assim, por um lado, uma acurada percepção das práticas

grupais como práticas instituintes e por outro, uma proposta de intervenção

estratégica que valoriza as práticas grupais, se efetivadas num contexto de atenção

e “problematização” às questões emergentes no grupo das quais os sujeitos

participantes são porta-vozes.

Então, as concepções que atravessam o conceito de grupo operativo –

tais como tarefa, vínculo, dialética mundo interno/mundo externo, mútua

representação interna, mecanismos de atribuição e assunção de papéis,

comunicação, aprendizagem – apresentam uma dupla perspectiva: auxiliam na

compreensão do processo grupal restrito (como a intervenção restrita com um grupo

a partir da técnica Grupo Operativo) e simultaneamente tendem a realizar a

mediação entre os processos grupais restritos e as transformações pessoais/sociais

mais amplas (posto que o grupo operativo250 aparece como uma estratégia, como

250 A valorização da operatividade do grupo aparece também como valorização do saber/conhecimento produzido nos processos grupais (além é claro do processo de aprendizagem construído no grupo, uma espécie de apropriação subjetiva do saber/conhecimento produzido grupalmente). Nesse sentido, o saber/conhecimento aparece vinculado à produção acadêmico-científica, à uma produção epistemológica mais rigorosa, diferente do senso comum. O próprio ECRO, mesmo evidenciando a articulação entre o conhecimento acadêmico-científico e a formação subjetiva, amplia-se na medida em que incorpora outros referenciais epistemológicosque serão trabalhados internamente pelos sujeitos. Nesse sentido, é exemplar o seguinte relato: "Pichon-Rivière fixou para si mesmo como objetivos constantes o enriquecimento de sua pessoa, a autocrítica de sua ideologia e a retificação e evolução de seu pensamento. Nós, os que fomos seus discípulos, ficávamos freqüentemente surpresos com sua inteligência clara e, ao mesmo tempo, desorientados com as novas aquisições de seu pensamento. Às vezes, sentíamo-nos gratamente reconciliados com ele quando aquilo que nos ensinava coincidia com nossas expectativas. Outras vezes, sentíamo-nos incomodados porque incluía esquemas referenciais totalmente novos para nós, esquemas que ainda não sabíamos empregar; o que nos colocava diante da sensação angustiante de nos sentir ideologicamente desinstrumentados e colocados diante da vivência das limitações de nossa formação científica" (Fernando Taragano, introdução ao livro Teoria do Vínculo, in Riviére,1998b: IX).

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um poder transformador/instituinte na sociedade).

Na inserção específica de Pichon-Rivière esta dupla perspectiva está

presente. Ele efetivamente contribuiu para a instituição de novas formas de

compreensão e de exercício da psiquiatria através de seu ECRO e do grupo

operativo. Sua aproximação à psicologia social parece relacionar-se com esta

dimensão.

Contudo, o grupo operativo pode ser reduzido a uma técnica de

intervenção descaracterizada de seu conteúdo sócio-histórico emergente. Assim

também, a referência à utilização do grupo operativo na indústria, pelas empresas,

indica uma apropriação do mesmo como instrumento de facilitação do consenso e

da comunicação em torno dos interesses predominantemente burgueses, o que

evidencia a ausência de um debate mais conseqüente sobre as perspectivas

concretas de transformação social consideradas sob a dimensão da luta de classes

nas sociedades capitalistas contemporâneas.

Vejamos agora as noções que perfazem o conceito de grupo operativo.

a) Tarefa – é o momento em que o grupo produz em que o grupo é operativo. Inclui

a realização da finalidade ou dos objetivos que o grupo se propôs. Contudo, a

particularidade da concepção de Pichon Rivière é que para o grupo produzir, para o

grupo constituir-se na operatividade, ele precisa explicitar os conteúdos que lhe

perpassam, elaborando as ansiedades que aparecem no processo grupal. A

realização da tarefa implica na emergência de uma posição depressiva básica “na

qual o objeto de conhecimento torna-se penetrável pela ruptura de uma pauta

dissociativa e estereotipada, que vinha funcionando como fator de estancamento da

aprendizagem da realidade e de deterioração da rede de comunicação” (Pichon-

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Rivière,1998a: 33). Tal posição depressiva requer elaboração – tornar consciente o

inconsciente [tornar explícito o implícito]. “O sujeito apareceria com uma “percepção

global” dos elementos em jogo, com a possibilidade de manipulá-los e com um

contato com a realidade no qual, por um lado, lhe é acessível o ajuste perceptivo, ou

seja, o situar-se como sujeito, e por outro lado, lhe é possível elaborar estratégias e

táticas mediante as quais pode intervir nas situações (projeto de vida), provocando

transformações. Essas transformações, por sua vez, modificarão a situação, que se

tornará, então, em uma situação nova para o sujeito, e assim o processo começa

outra vez (modelo da espiral)” (idem: 33). A Tarefa implica na modificação em dupla

direção (a partir do sujeito e para o sujeito) envolvendo a constituição de um vínculo

(idem: 34).

Segundo Ideli Domingues e Maria L. C. Gayotto (1998) a tarefa é como um

caminho em direção à finalidade estabelecida, uma produção conjunta no/do grupo.

A tarefa é um fazer conjunto que concretiza os objetivos e requer investimento

pessoal. A tarefa envolve criação, aprendizagem, operação e mudança.

Contudo, o grupo nem sempre realiza a tarefa. Ele pode estagnar e

permanecer na pré-tarefa. Os momentos da pré-tarefa, tarefa e elaboração do

projeto “apresentam-se em uma sucessão evolutiva, e sua aparição e interjogo

constante podem situar-se diante de cada situação ou tarefa que envolva

modificações no sujeito” (Pichon-Rivière,1998a: 31). A Pré-tarefa constitui o

momento em que predominam as técnicas defensivas e a resistência à mudança

(incremento das ansiedades de perda e ataque). Postergação da elaboração dos

medos básicos cuja intensificação opera como obstáculo epistemológico.

Desenvolve-se a postura “como se”. Segundo Saidon, “a pré-tarefa está

caracterizada por uma situação de impostura que paralisa o prosseguimento do

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grupo. Se faz 'como se' se trabalhasse, 'como se' se efetuasse um trabalho

especificado” (1982:189). Observa-se um jogo de dissociação entre pensar, atuar e

sentir. “O sujeito é uma caricatura de si próprio, “seu negativo”. Falta-lhe a revelação

de si mesmo, sua denominação como homem” (Pichon-Rivière, 1998a: 32). É um

“homem alienado”. A pré-tarefa equivale a passar o tempo e a postergar. O

mecanismo de postergação “oculta a impossibilidade de suportar frustrações de

início e término de tarefas, causando, paradoxalmente, uma constante frustração”

(idem). Observam-se maneiras ou formas de não entrar na tarefa.

Saidon relacionou a concepção de tarefa no Grupo Operativo com a

dimensão do desejo e da produção destacadas por Deleuze e Guattari. Para ele o

conceito de tarefa deve ser entendido “como uma forma de superar a divisão técnica

e social do trabalho. Em nossa sociedade o prazer e o trabalho aparecem como

formas dissociadas, e na maioria das vezes, contraditórias. Entrar em tarefa, seria

então, o grupo assumir esse desafio que implica em conquistar o desejo na

produção e a produção no desejo (idem)”.

Em outra passagem do mesmo artigo, o autor também remete a tarefa à

dialética entre ato e organização. Ele destaca (inspirado em Sartre251 e em Freud252)

a prática grupal como um ato momentâneo, efêmero, violento que tende à

organização (o grupo se trabalha – se organiza – para produzir/agir, entendendo-se

a ação também como uma produção grupal). Segundo Saidon, o grupo operativo em

sua preocupação pela tarefa, é um instrumento que explora esta contradição

(ato/organização), ou seja,

251 Crítica da razão dialética. 252 "Psicologia das massas e análise do ego".

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o grupo está na tarefa quando consegue sair da situação de dilema que podemos colocar nos seguintes termos: quando o grupo se trabalha, atenta contra a produção, e quando produz, atenta contra o trabalho grupal. Esta problemática se liga com a definição do que significa tarefa e projeto para um grupo operativo. Digamos finalmente que é prematuro afirmar que o trabalho no grupo é capaz de dar resposta aos problemas aqui levantados. Consideramos, de todo modo, que o espaço grupal abre uma nova dimensão em relação à situação bi-pessoal, onde existe uma maior possibilidade de questionamento e portanto de uma produção nova (1982:180).

A emergência do projeto indica que o grupo está realizando a tarefa, ou seja,

o grupo produziu estratégias e táticas que lhe permitem intervir para a transformação

da realidade, para a criação e para a inovação desta realidade. A transformação da

realidade modifica o sujeito e inicia um novo processo.

Por outro lado, o conceito de tarefa focaliza a produção grupal, enfatizando a

prática grupal, a ação e a possibilidade da práxis revolucionária, transformadora,

tanto no âmbito das rupturas com os procedimentos hierarquizados nas

organizações sociais, quanto no âmbito das lutas sociais mais amplas.

Desse modo, o conceito de tarefa é inovador na perspectiva em que

integraliza a interioridade psíquica e a ação social dos sujeitos, compreendendo-as

dialeticamente, ou seja, sem fracionar o psíquico e o social ou o social e o psíquico.

A perspectiva da tarefa como produção e prática grupais, deve sua inspiração

ao marxismo.

Contudo, essa dimensão de integralidade entre o social e o psíquico

(presentes no conceito de tarefa) é uma inovação e qualifica a perspectiva dialética

também como uma possibilidade de apreender a relação sujeito/grupo;

sujeito/organizações; sujeito/sociedade, o que aproxima as apreensões de Pichon-

Rivière de algumas das indicações sartreanas (como desenvolvemos no Capítulo 2).

Observamos também, que a pré-tarefa (ou o grupo na sua “inércia”?) indica a

negatividade ou o avesso da produção grupal, pois evidencia o estancamento da

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prática grupal ou uma prática grupal de estancamento. Essa dimensão torna-se

inteligível, dialeticamente, na perspectiva da negatividade. Embora, na formulação

pichoniana haja uma “denúncia” dessa postura (pejorativamente, a pré-tarefa é o

grupo no movimento “como se” trabalhasse), reconhecemos no movimento da pré-

tarefa uma espécie de recusa à participação que, em situações concretas, pode

significar a recusa de compactuar com as relações de poder estabelecidas (inclusive

aquelas expressas entre os membros e a equipe de coordenação).

b) Dialética mundo interno/mundo externo: as mútuas representações internas

mencionadas por Pichon-Rivière referem-se à compreensão quanto à constituição

do sujeito a partir do vínculo253. Tal concepção foi influenciada pela psicanálise.

Segundo o autor,

durante o tratamento de pacientes psicóticos realizado segundo a técnica analítica e pela indagação quanto a seus processos transferenciais, tornou-se evidente para mim a existência de objetos internos, multíplices ‘imago’, que se articulam em um mundo construído segundo um processo progressivo de internalização. Esse mundo interno configura-se como um cenário no qual é possível reconhecer o fato dinâmico da internalização de objetos e relações. Nesse cenário interior, tenta-se reconstruir a realidade exterior, porém os objetos e os vínculos aparecem com modalidades diferentes pela passagem fantasiada a partir do ‘fora’ para o âmbito intra-subjetivo, o ‘dentro’. É um processo comparável ao da representação teatral, no qual não se trata de uma repetição sempre idêntica do texto, mas em que cada ator recria, com uma modalidade particular, a obra e o personagem. O tempo e o espaço incluem-se como dimensões na fantasia inconsciente, crônica interna da realidade.

A indagação analítica desse mundo interno levou-me a ampliar o conceito de 253 “Pichon-Rivière coloca desde o início a necessidade de complementar a investigação psicanalítica com a investigação social, que orienta em uma tríplice direção: psicossocial, sociodinâmica e institucional. Aborda o homem concebendo-o em uma só dimensão, a humana: mas ao mesmo tempo concebe a pessoa como uma totalidade integrada por três dimensões: a mente, o corpo e o mundo exterior (áreas 1-2-3), que integra dialeticamente. Com a teoria do vínculo consegue dar o salto qualitativo de uma teoria psicanalítica predominantemente intrapsíquica para uma psiquiatria social, que considera o indivíduo como uma resultante dinâmico-mecanicista não da ação dos instintos e objetos interiorizados, mas sim do interjogo estabelecido entre o sujeito e os objetos internos e externos, em uma predominante relação de interação dialética, a qual se expressa através de certas condutas. Isso lhe permite desenvolver uma psiquiatria centrada no estudo das relações interpessoais, que denomina psiquiatria do vínculo, psiquiatria dinâmica que ele constrói com os postulados da psicanálise” (Fernando Taragano, introdução ao livro Teoria do Vínculo in Rivière, 1998b: XI).

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‘relação de objeto’, formulando a noção de vínculo, que defino como uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto e sua mútua inter-relação com processos de comunicação e aprendizagem.

Estas relações intersubjetivas são dirigidas e estabelecem-se sobre a base de necessidades, fundamento motivacional do vínculo. Tais necessidades têm um matiz e intensidade particulares, nos quais já intervém a fantasia inconsciente. Todo vínculo, assim entendido, implica a existência de um emissor, um receptor, uma codificação e decodificação da mensagem. Através desse processo comunicacional, torna-se manifesto o sentido da inclusão do objeto no vínculo, o compromisso do objeto em uma relação não linear, e sim dialética, com o sujeito. Por isso insistimos que em toda estrutura vincular (e com o termo estrutura já indicamos a interdependência dos elementos) o sujeito e o objeto interatuam, realimentando-se mutuamente. Nesse interatuar dá-se a internalização dessa estrutura relacional, que adquire uma dimensão intra-subjetiva. A passagem ou internalização terá características determinadas pelo sentimento de gratificação ou frustração que acompanha a configuração inicial do vínculo, que será então um vínculo ‘bom’ ou um vínculo ‘mau’.

As relações intra-subjetivas, ou estruturas vinculares internalizadas, articuladas em um mundo interno, condicionarão as características de aprendizagem da realidade. Na medida em que a confrontação entre o âmbito do intersubjetivo e o âmbito do intra-subjetivo seja dialética ou dilemática, esta aprendizagem será facilitada ou obstaculizada. Ou seja, dependerá de que o processo de interação funcione como um circuito aberto, com uma trajetória em espiral, ou como um circuito fechado, viciado pela estereotipia.

O mundo interno define-se como um sistema, no qual interatuam relações e objetos, em uma mútua realimentação. Em síntese, a inter-relação intra-sistêmica é permanente, enquanto se mantém a interação com o meio (1998:4-6).

A dialética mundo interno/mundo externo implica na compreensão do grupo

enquanto espaço de construção coletiva a partir da inserção dos sujeitos. Ou seja, o

foco também se dirige para a relação sujeito/grupo. À medida que os sujeitos são

alterados pela produção grupal eles próprios relacionam-se de novas formas com o

grupo, transformando-o. O sujeito internaliza o grupo, na medida em que externaliza

para os demais integrantes sua forma de compreender ou de entrar em relação com

o grupo. Nesse sentido, o grupo (em sentido amplo) é uma referência imprescindível

na construção do sujeito. O sujeito, sua ação e participação efetivas são também

imprescindíveis para que o grupo seja operativo, para que o grupo produza. A mútua

representação interna engloba essa possibilidade de relação entre os integrantes e

destes com o grupo. O grupo concretiza-se na relação que os integrantes constroem

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com os objetivos, com as finalidades, enfim, com a tarefa proposta para o grupo. A

tarefa será realizada na medida em que os integrantes se apropriarem dela no

processo que inclui a comunicação estabelecida pelo grupo e a aprendizagem

construída/apropriada subjetivamente/grupalmente. Quando isto acontece há

alteração/transformação nos sujeitos e nas relações sociais, há produção grupal.

Desse modo, a produção grupal implica na transformação pessoal e social (mais

ampla) através da inserção do grupo e dos sujeitos (por ele alterados/transformados)

na sociedade.

Em nossa opinião, essa possibilidade de transformação pessoal e social

indica a presença da perspectiva da transversalidade. Ou seja, o próprio grupo

operativo trabalha-se em várias direções, havendo comunicação entre o trabalho

“restrito” (cura, aprendizagem da psiquiatria etc.) considerado também em suas

implicações mais amplas, por sua inserção social potencialmente instituinte (criativo-

propositiva; disruptiva), uma vez que esta perspectiva é considerada de forma

estratégica na formulação do grupo operativo.

Assim, a análise de Pichon-Rivière também incorpora as noções de papéis

(atribuição e assunção de papéis) considerados enquanto um inter-jogo no espaço

estrito do grupo e relacionados com os papéis atribuídos/assumidos socialmente, de

forma mais ampla, pela inserção dos sujeitos na sociedade. Nesse sentido, a

história pessoal (biografia) também denominada verticalidade, atravessa e é

atravessada pela horizontalidade grupal (pela produção do grupo) e circunscreve a

assunção de papéis no próprio grupo, que por sua vez estão em comunicação com

as questões que o grupo está por elaborar, ou com os problemas que o mesmo

enfrenta.

Então, segundo Pichon,

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O grupo operativo é um grupo centrado na tarefa que tem por finalidade aprender a pensar em termos da resolução das dificuldades criadas e manifestadas no campo grupal, e não no campo de cada um de seus integrantes [grifos nossos], o que seria uma psicanálise individual em grupo. Entretanto, também não está centrado exclusivamente no grupo, como nas concepções gestálticas, mas sim em cada aqui-agora-comigo na tarefa que se opera em duas dimensões, constituindo, de certa forma, uma síntese de duas correntes (1998:143).

A assunção e a atribuição de papéis no grupo operativo podem caracterizar-

se pela emergência de porta-vozes que explicitam conteúdos latentes como a

resistência à mudança presente no grupo, quando esse se encontra na pré-tarefa. O

porta-voz pode ser um depositário dos conteúdos do grupo (o grupo deposita em

uma ou mais pessoas as suas expectativas e também os seus medos e as suas

resistências) transitando da “liderança para a mudança” para o lugar de “bode

expiatório” (responsável pelos insucessos do grupo), por exemplo. A esse respeito,

Saidon (idem) assinala que os quatro papéis mais destacados na operação grupal

são: porta-voz, bode expiatório, líder e sabotador.

De acordo com Pichon,

Consideramos o doente [referindo-se ao grupo operativo no campo da psiquiatria] que enuncia um acontecimento como o porta-voz de si mesmo e das fantasias inconscientes do grupo [por exemplo, do grupo familiar no qual se insere]. Nesse aspecto reside a diferença entre a técnica operativa e as demais técnicas grupais, já que as interpretações são feitas em dois tempos e em duas direções distintas. Começa-se por interpretar o porta-voz que, por sua história pessoal, é muito sensível ao problema subjacente e que, atuando como radar, detecta as fantasias inconscientes do grupo e as explicita. No ato seguinte, assinala-se que o explicitado é também um problema grupal, produto da interação dos membros do grupo entre si e com o coordenador, e que ele – porta-voz por um processo de identificação subliminar – percebe e enuncia. Às vezes, o que o porta-voz expressa, representa, paradoxalmente, a resistência à mudança. O grupo organiza-se para estereotipar-se, como defesa diante da ansiedade que produz essa mudança porque significa enfrentar ansiedades psicóticas que são vividas como mais graves do que aquelas que se manifestam em sua sintomatologia (1998:143-144).

Ainda nessa direção, Pichon refere-se à experiência no Hospital de Las

Mercedes, indicando a possibilidade de criatividade grupal associada à ruptura de

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pautas estereotipadas e a cura associada à aprendizagem de novos papéis, de

novas possibilidades de inserção social. Ele assim se expressa,

uma de minhas experiências com essa modalidade de trabalho realizou-se quando nos vimos diante da necessidade de aplicar técnicas grupais e acumulativas numa situação de emergência, criada pela súbita separação (por razões de origem política) dos doentes confiados aos nossos cuidados. Essa circunstância levou-nos a formar um curso de enfermagem com os pacientes que estavam em melhores condições, desenvolvido em forma grupal e com o enquadramento da escola de líderes. A informação recebida através dos pacientes, e a necessidade de discriminar as partes em nós depositadas, constituíram, junto com a conceitualização e interpretações formuladas, a outra fonte que nos alimentou e capacitou para construir, a posteriori, todo nosso esquema conceitual, referencial e operativo (ECRO). Essa tarefa foi duplamente vantajosa, já que os enfermeiros, formados assim em pouco tempo, demonstraram ser muito mais eficazes do que os profissionais que foram afastados. Na medida em que a operatividade de cada um deles aumentava, regrediam os sintomas de perturbação desses pacientes, configurando um critério de normalidade (adaptação ativa à realidade) e uma nova Gestalt. Ao se sentirem úteis, readquiriam uma identidade social, às vezes superior à que tinham antes de adoecer, e obtinham dessa maneira um intenso processo de maturidade, sendo um fator muito importante neste processo a identificação que os demais pacientes estabeleciam com os líderes. Em função destas modificações dos pacientes líderes (adquiridas progressivamente pelo insight através dos outros, pela identificação projetiva-introjetiva), mudaram suas atitudes, crenças, opiniões e preconceitos, transformando-se o paciente em um cooperador eficientíssimo. Ao diminuir consideravelmente os medos básicos, a compreensão foi se tornando cada vez mais progressiva e operativa (...) O aspecto criativo do grupo não deve ser negligenciado como fator de avaliação, já que o consideramos como o índice mais significativo da operatividade do grupo [grifos nossos]. Esta acontece na medida em que se enfrentam novas tarefas com técnicas novas, tornando-se o grupo plástico (não estereotipado), coerente e operativo. Quando o grupo opera com um pensamento criador, adquire funcionalidade. Então, aparece como um fato objetivo que a tarefa em comum é de um rendimento superior. A produtividade adquire características de uma progressão geométrica e não aritmética (1998:145-146).

Pichon trabalha a dialética mundo interno/mundo externo através da teoria do

vínculo. A teoria do vínculo é uma proposição que pretende superar a perspectiva

intrapsíquica presente na psicanálise, incorporando a inserção social dos sujeitos na

perspectiva de uma psiquiatria e de uma psicologia sociais. Nessa direção, o autor

inclui na teoria do vínculo a noção de motivação através da necessidade. Os

vínculos são “mediados” (motivados) pela necessidade e implicam em satisfação e

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frustração. Assim, a necessidade deve ser apreendida como auto-conservação e

como construção humana/social, o que circunscreve os atos e cuidados de auto-

conservação – reservados, por exemplo, ao nascimento de uma criança – numa

perspectiva ampliada, remetendo-nos aos seus significados e às suas possibilidades

de realização histórico-materiais existentes. De acordo com Saidon,

em um de seus últimos escritos de 1972, Pichon dizia: 'O ponto de ruptura entre a psicanálise e a psicologia social passa pela teoria instintivista, pela concepção do homem e pela história implícitas na primeira'. A segunda estabelece que o sujeito se configura num processo contraditório no qual operam condições internas (necessidade254) e causas externas. Essas causas externas são os objetivos pertencentes à estrutura social, na qual e para a qual o sujeito é produto. As causas externas operam através das condições internas, isto é, a necessidade é orientada, transformada, manipulada e modificada segundo os objetivos dominantes nessa estrutura social que necessita configurar sujeitos com sistemas de personalidade aptos a possibilitar a continuidade do sistema de relações sociais. As condições externas operam sobre este sujeito através de gratificação e frustração. Assim, considera que a Psicanálise exclui e oculta 'a partir do reconhecimento do instinto como fundamento da vida psíquica, a função do contexto histórico social como determinante da vida psíquica na medida que é a condição específica dentro da qual pode se manifestar o fenômeno (1982:182-183).

Pensamos que a compreensão do vínculo como o lugar (ou o espaço) de

254 Segundo Saidon, "a necessidade, termo vago e empírico, pode ser definida como desejo, aspiração, ou intenção dirigida para um objeto que determina a ação. Não existem necessidades naturais, já que a objetivação social fixa o âmbito e delimita a extensão das necessidades dos homens que vivem numa determinada sociedade. Segundo Marx podemos classificar as necessidades em existenciais e propriamente humanas. As primeiras são aquelas que têm como base o instinto de auto-conservação, tais como: a necessidade de alimentação, a necessidades de contato social, a necessidades sexual, a necessidades de atividade. Assim, nas sociedades primitivas o limite destas necessidades é a natureza. Com o capitalismo se constitui a primeira sociedade que mediante sua estrutura social condena classes sociais inteiras da população a lutar cotidianamente pura e simplesmente pela satisfação das necessidades existenciais, desde a época da acumulação primitiva até hoje, sem falar do Terceiro Mundo. Por outro lado, as necessidades propriamente humanas não estão determinadas por um impulso natural. São por exemplo a atividade cultural, o lazer, a amizade, o amor, a atividade moral, o descanso superior ao necessário para a reprodução da força de trabalho, etc.. Existem também as necessidades humanas alienadas como as necessidades de dinheiro, de posse e de poder. Ao mesmo tempo que o desenvolvimento do capitalismo impõe à classe operária a luta somente pelas necessidades existenciais, faz com que as necessidades alienadas tomem a dianteira sobre as propriamente humanas. Se a eficácia prática de uma teoria depende de sua capacidade para seguir a pista das necessidades concretas humanas em um determinado momento histórico, as diferentes teorias e a práxis que as expressam estarão vinculadas à realização de um tipo ou outro de necessidades. Em um sistema social como o atual, onde as necessidades tendem a se ampliar através da infinita produção de bens, é importante analisar como se inscrevem as mercadorias teóricas. A psicologia social não é alheia a todo esse processo e o tipo de prática que efetive estára ligada ao tipo de necessidade que vem a satisfazer" (1982:182).

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criação/internalização do mundo (internalizado/externalizado) comporta as relações

humanas mais próximas (ou mais imediatas/urgentes, das quais não se pode

prescindir) vividas nas inserções sociais necessárias à sobrevivência dos sujeitos.

Tais inserções significam uma relativa adaptação à totalidade ou às relações sociais

consideradas em sua totalidade (sempre em movimento). Ou seja, compartilham de

relativa coerência em consonância com as relações sociais consideradas

amplamente.

Nesse sentido, a dialética mundo interno/mundo externo expressa o

movimento na relação entre os sujeitos e as relações sociais (totalidade) focando,

em nossa opinião, o processo de apropriação e de ação desenvolvidos

subjetivamente. Observamos que a apropriação e a ação subjetivas adquirem

características singulares mesmo quando parecem reproduzir os padrões sociais

produzidos e aceitos (internalizados) como referências de comportamento e de

atitudes. Pensamos que cada apropriação é uma combinação única, e nesse

sentido, singular, expressando “uma síntese” ímpar que não poderá ser repetida por

outra pessoa. Em decorrência disso, a heterogeneidade adquire relevância, na

perspectiva de evidenciar a importância do trabalho subjetivo inserido socialmente.

Ou em outras palavras, a heterogeneidade também é um dispositivo importante em

direção à superação da massificação individualista e sua valorização implica na

visibilidade da inserção social dos sujeitos e na construção de subjetividades com

relativa condição de expressão e autonomia (criação/proposição).

A valorização da heterogeneidade também significa a possibilidade de

apreender as relações sociais em suas múltiplas expressões, o que reforça o caráter

diverso (em termos da produção de sentidos e da mobilização de ações) das

produções humanas. Assim, a possibilidade de desenvolver ações em comum é

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complexificada em termos de atravessar e de considerar as diferenças existentes

como potenciais que mobilizam a criatividade nas respostas construídas

coletivamente.

Então, ao valorizar a relação sujeito/grupo no grupo operativo, pensamos que

Pichon-Rivière também indicou a relevância dos sujeitos nos processos de

transformação social, com a devida circunscrição dos mesmos em sua relação com

a totalidade.

É importante destacar que o grupo operativo (através do ECRO de Pichon-

Rivière) comporta essa tensão ou esse movimento dialético entre os espaços mais

imediatos (conforme ressaltamos acima) das relações humanas enquanto espaços

transversais, os quais incluem a multiplicidade das expressões sociais e as diversas

possibilidades de apropriações subjetivas capazes de recriá-los continuamente.

Pensamos em termos de possibilidades de criação/recriação ao observarmos

que a conservação e a manutenção dos padrões sociais também são possibilidades

de ação que, embora contribuam para a manutenção da ordem existente, indicam

por outro lado, o seu próprio movimento, ainda que este seja o movimento de

conservação. Assim, os movimentos de ruptura, os movimentos de criação/recriação

são possibilidades em aberto, as quais convivem com os movimentos de

conservação e manutenção. Nesse sentido, a estereotipia (ou a fixação de um

estereótipo) compreendida no campo da saúde mental também significa a tentativa

de manter uma determinada "ordem subjetiva", conservando a "estabilidade" do

organismo. Outra forma de compreensão coloca em tensão os movimentos de

ruptura/criação e conservação, como Pichon indica, ao utilizar os conceitos de tarefa

e pré-tarefa. Talvez, seja necessário apreender que tanto a conservação quanto a

transformação/ruptura são movimentos que criam/recriam a totalidade

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continuamente. Sob essa dimensão, a estabilidade não existe realmente, o que

existe é um movimento que mantém (conserva) uma determinada ordem, mantendo

inclusive, as suas possibilidades de ruptura (desordem) e transformação (superação

em direção a uma nova ordenação/organização).

c) Vetores para análise e compreensão do Grupo Operativo255:os vetores

indicados abaixo possibilitam a observação sobre o “momento” em que o grupo se

encontra, facilitando a compreensão sobre a relação entre os integrantes e a

realização da tarefa proposta pelo/para o grupo. Os vetores são referências para a

análise/avaliação do processo grupal e contribuem para a reflexão do coordenador e

do observador no sentido de facilitar ao grupo que realize a tarefa256.

Afiliação: momento da decisão de ingressar num grupo; motivação inicial vinculada

à história de vida dos sujeitos257.

Pertença: momento de identificação e pertencimento; integração em direção à

tarefa; desenvolvimento do compromisso com o grupo. Sentimento de estar

integrado - incluir-se e incluir os demais. Emerge a identidade do grupo -

construção/reconstrução das identidades individuais. Pertença: condição ou

referência básica para elaboração de estratégias de mudança. Passagem do eu ao

nós. CONTRADIÇÃO (a ser superada): SUJEITO-GRUPO.

255 Gayotto e Domingues (1998). 256 “A constatação sistemática e reiterada de certos fenômenos grupais, que se apresentam em cada sessão, nos tem permitido construir uma escala de avaliação básica através da classificação de modelos de conduta grupal. Essa escala é nosso ponto de referência para a construção de interpretações”(Pichon-Rivière, 1998a: 170). 257 “O primeiro vetor de tal categorização inclui os fenômenos de afiliação ou identificação com os processos grupais com os quais, no entanto, o sujeito guarda uma determinada distância, sem incluir-se totalmente no grupo. Esse primeiro momento de afiliação, próprio da história de todo grupo, converte-se mais tarde em pertença, uma maior integração ao grupo, o que permite aos membros elaborar uma estratégia, uma tática, uma técnica e uma logística. A pertença é que torna possível a planificação” (idem: 170-171).

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Cooperação: contribuição dos participantes para a realização da tarefa.

Complementaridade de papéis. Articulação das necessidades individuais/grupais -

“tensão” - competição/cooperação (o tipo de comunicação no grupo ajuda a analisar

este vetor). Verticalidade - história de cada um X Horizontalidade (tarefa grupal).

CONTRADIÇÃO - VERTICALIDADE X HORIZONTALIDADE258.

Pertinência: momento em que o grupo concentra-se na tarefa. A temática centra-se

no esclarecimento da tarefa. Enfrentamento de conflitos. Não há desvios em relação

à tarefa. Esboço do Projeto/diminuição das ansiedades. (Pode aparecer a situação

do ‘como se’ caso o grupo não tenha desenvolvido a Pertença). CONTRADIÇÃO:

PROJETO X RESISTÊNCIA À MUDANÇA259.

Comunicação: a qualidade da comunicação é importante (Verbal e Não Verbal).

Observar a ocorrência de mal entendidos ou de ruídos. Pode ocorrer do líder (ou

coordenador) para o grupo, de todos para um participante, entre todos, ou em pares,

ou difusamente (ninguém se comunica). A comunicação, na perspectiva do grupo

operativo, é sempre bicorporal e tripessoal (conteúdo intrasubjetivo) 260.

Aprendizagem: transformação/adaptação ativa à realidade. Momento integrador da

tarefa. Salto qualitativo/síntese. Superação das contradições. Criatividade,

258 “A cooperação consiste na contribuição, ainda que silenciosa, para a tarefa grupal. Estabelece-se sobre a base de papéis diferenciados. Através da cooperação é que se torna manifesto o caráter interdisciplinar do grupo operativo e o interjogo daquilo que mais adiante definiremos como verticalidade e horizontalidade” (idem: 171). 259 “Chamamos de pertinência a outra categoria, que consiste no centrar-se do grupo na tarefa prescrita e no seu esclarecimento. Avalia-se a qualidade dessa pertinência de acordo com o montante da pré-tarefa, da criatividade e da produtividade do grupo e suas aberturas para um projeto” (idem). 260 “A comunicação que se dá entre os membros, quinta categoria de nossa escala, pode ser verbal ou pré-verbal, através de gestos. Dentro desse vetor levamos em conta não só o conteúdo da mensagem, mas também o como e o quem dessa mensagem; chamamos a isso de metacomunicação. Quando os dois elementos entram em contradição, configura-se um mal-entendido dentro do grupo” (idem).

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elaboração261.

Telé: clima grupal ou forma positiva - negativa do grupo trabalhar conflitos e

ansiedades. (O nome vem do Psicodrama de Moreno e significa distância). É

também o implícito - aspectos mais latentes da história dos sujeitos. Disposição

positiva ou negativa do grupo para com a tarefa262.

d) Estrutura do Grupo Operativo: a estratégia articulada por Pichon-Rivière para o

trabalho com grupos implica na necessidade de um coordenador e de um

observador para facilitar a realização da tarefa. Pichon também reconhece que um

grupo pode ser operativo independente de ter um coordenador ou um observador,

ambos designados especialmente para facilitar esta operatividade. Contudo, na

estratégia de trabalho com grupos designada pelo “grupo operativo” destacam-se e

diferenciam-se os papéis do Coordenador, do Observador e dos Integrantes.

Papel do Coordenador263:

facilitar a superação de obstáculos que impedem a ação conjunta. Intervenção no

aqui-agora (percepções, sentimentos, fantasias). O coordenador não está 261 “O sexto vetor remete-nos a um fenômeno básico – o da aprendizagem. É obtido pela somatória de informação dos integrantes do grupo, cumprindo-se em dado momento a lei da dialética de transformação de quantidade em qualidade. Produz-se uma mudança qualitativa no grupo, que se traduz em termos de resolução de ansiedades, adaptação ativa à realidade, criatividade, projetos, etc” (idem). 262 “Como categoria universal da situação de grupo incluímos o fator telê, definido pelo professor Moreno como disposição positiva ou negativa para trabalhar com um membro do grupo. Isso configura o clima, que pode ser traduzido como transferência positiva ou negativa do grupo com o coordenador e dos membros entre si (idem). 263 “O coordenador cumpre, no grupo, um papel prescrito: o de ajudar os membros a pensar, abordando o obstáculo epistemológico configurado pelas ansiedades básicas. Opera no campo das dificuldades da tarefa e da rede comunicações. Seu instrumento é a assinalação das situações manifestas e a interpretação da causalidade subjacente. Integra-se em uma equipe com um observador, geralmente não participante, cuja função consiste em recolher todo o material, expresso verbal e pré-verbalmente no grupo, com o objetivo de realimentar o coordenador, num reajuste das técnicas de condução” (idem: 170).

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implicado emocionalmente na situação dos integrantes (eles são autores do

Processo Grupal). O papel do coordenador é relativo - deve permitir o

aparecimento de líderes de mudança. Receptividade aos processos do grupo. O

coordenador pode compreender melhor por estar menos envolvido no fazer

grupal. Atenção à comunicação grupal - verbal e não verbal. Escutar o grupo -

intervenções breves/ discretas. Elaboração através de interpretações e

construções de hipóteses devolvidas ao grupo.

Papel dos Integrantes:

participar na realização/elaboração da tarefa. São os integrantes que constroem o

processo grupal, realizando a produção grupal (tarefa). Assumem e exercem

papéis diferenciados no decorrer do processo grupal. Os papéis emergentes no

grupo operativo são analisados de acordo com a inserção dos sujeitos no

processo grupal. Deste modo, em alguns momentos um integrante pode se

constituir em porta-voz das questões que afligem o grupo, podendo contribuir para

a superação destas questões. Pode também acontecer do grupo depositar seus

medos e ansiedades em um único integrante e este acabar por assumir o papel

de bode expiatório no grupo. Assim, a atribuição e a assunção de papéis

acontece na relação sujeito/grupo. A verticalidade da história de vida de cada

integrante articula-se com o processo grupal, fazendo emergir os diferentes

papéis. Se há produção grupal, os papéis são alterados, ultrapassando a fixação

em estereótipos.

Papel do Observador/relator:

Registrar os dados - “o fazer” do grupo;

Auxiliar o coordenador na interpretação e estabelecimento de hipóteses.

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O observador/relator está liberado da função de falar o que o ajuda a distanciar-se

do processo grupal, para observá-lo.

A proposição de um coordenador e de um observador (a estrutura do

grupo operativo) como facilitadores da produção grupal aponta uma questão: o

grupo (seus integrantes) precisam ser “tutelados” para realizarem a tarefa? Porque

os grupos não são operativos? Em outros termos, porque os grupos precisam ser

facilitados para serem operativos? A fundamentação apresentada por Pichon-Rivière

leva-nos a pensar que os grupos precisam ser facilitados tendo em vista que os seus

integrantes, quando o constituem, ainda não são sujeitos de seu processo pessoal e

não são conscientes de sua inserção coletiva (o que de certa forma é pertinente ao

contexto no qual Pichon criou o grupo operativo, ou seja, trabalhando com pessoas

alijadas de sua inserção social mais ampla, circunscritas ao estabelecimento

psiquiátrico) o que torna necessário o trabalho de análise, no caso de interpretação,

cuja responsabilidade recai sobre a equipe de coordenação, ainda que esta o faça

em sua relação com o grupo e compartilhando tal responsabilidade com o mesmo.

Desse modo, a facilitação de um grupo operativo implica na construção

de uma dimensão terapêutica no próprio grupo, que facilite o processo de

aprendizagem que também significa a construção da saúde para os integrantes. Ou

seja, na medida em que os integrantes podem ultrapassar os estereótipos

construídos em sua história de vida aproximam-se de uma construção saudável de

si mesmos, possibilitando-se-lhes a aprendizagem que também significa

desenrijecimento.

Por outro lado, é importante assinalar que a técnica de grupo operativo

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foi utilizada como instrumento pedagógico por Pichon-Rivière no ensino264 da

psiquiatria.

“Razões teóricas confirmadas pela experiência prática demonstram que a situação do grupo é o melhor recurso para ensinar a psiquiatria. O alcance do método pode oscilar desde os grupos de ensino, nos quais se desenvolve uma ampla comunicação intelectual e afetiva entre o docente e os alunos, até os grupos de psicoterapia que se desenvolvem com um estrito sentido terapêutico. Entre esses dois extremos, localizam-se os grupos de aprendizagem (Pichon-Rivière, Berman, Fey, Ganzarin, etc.), em que o fator aprendizagem se conjuga com a psicoterapia. Difere dos anteriores pela existência de um tema de estudo; porém, com este ponto de partida, alcançam-se os fatores emocionais que intervém na dinâmica grupal” (Pichon-Rivière, 1998:105).

Nesse sentido, a relação coordenação/grupo também se mantém como uma

dimensão da prática pedagógica e que nos remete à relação professor/aluno. Ainda

que o processo ensino/aprendizagem apareça como uma produção grupal, não se

analisa a instituição do ensino e os poderes a ela relacionados, no caso, o poder do

professor em relação aos alunos, ou o poder da coordenação em relação ao grupo.

No entanto, observamos que Pichon busca uma construção diferente, ao

descentralizar no grupo operativo a dimensão da interpretação, desfocando-a

prioritariamente da equipe de coordenação em si e remetendo-a à relação

coordenação/grupo. Talvez a manutenção da necessidade de uma equipe de

264 “A integração de psicoterapia e ensino assinala que não é lícito transformar o ensino em terapia, nem o aluno em doente; e que também não é sensato se furtar, no processo pedagógico, à aplicação dos princípios em que este ensino se sustenta. É evidente que não seria sensato provocar dificuldades para ter a oportunidade de resolvê-las; mas tampouco se pode renunciar ao direito de tratá-las, quando, apesar de tudo, se apresentarem. O propósito é resolver, no próprio campo da aprendizagem, a freqüente e perturbadora divisão entre teoria e prática. Com efeito, as resistências afetivas na aprendizagem da psiquiatria provêm de motivações internas, próprias do aluno, e externas, do professor e de seu método. O professor deve estar sempre atento às suas próprias limitações, sem perder de vista que toda dificuldade no ensino lhe é, em parte, imputável, seja qual for a participação dos alunos. A forma de expor, a prudência no desenvolvimento do curso, o acerto na escolha dos temas, etc., devem ser avaliados a cada momento, à luz da tensão que surge nos alunos. O professor deve levar em consideração – e isto é o mais importante – o problema das relações interpessoais com os estudantes. A relação entre mestre e discípulo sempre mobiliza grandes quantidades de afeto, e isto é particularmente verdadeiro para a psiquiatria, pela natureza angustiante de seus temas. Esse fato, no qual temos insistido há muitos anos e que, ultimamente, foi destacado por Silverman, entre outros, deve interessar principalmente ao professor, que permanecerá alerta diante de seus próprios afetos conscientes e inconscientes” (Pichon-Rivière, 1998a:105).

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coordenação esteja relacionada à perspectiva de atuar como uma vanguarda na

instituição de novos modos de organização da vida, principalmente considerando a

realidade latino-americana no que tange ao seu legado de subalternidade e à sua

inserção periférica na divisão internacional do trabalho.

Pichon Rivière inova ao analisar o grupo na realização de sua tarefa, ou seja,

ao analisar o grupo no seu fazer coletivo como criação grupal. Por sua vez, a tarefa

envolve os sujeitos que a realizam e o modo como é realizada por eles. A tarefa

aparece tanto como algo objetivo (produto do grupo) quanto como algo subjetivo

(recriação dos sujeitos no processo grupal). A análise proposta por Pichon Rivière

acontece na medida em que são reveladas as condições da produção grupal. Se o

grupo estanca em sua produção, se o grupo não produz a si mesmo, ele se encontra

num momento anterior à realização da tarefa. Isto significa também que a produção

grupal não está identificada apenas com os resultados objetivos alcançados pelo

grupo, mas está, sobretudo, na qualidade através da qual o grupo produz a si

mesmo. Se há aprendizagem, se há comunicação entre as pessoas, se há vínculo

entre os participantes, o processo grupal está produzindo-se nestas relações de

forma satisfatória e criativa. Se estes elementos estão ausentes, é necessário

analisar os não-ditos, os componentes implícitos que estancam a possibilidade de

produção grupal. O processo de análise consiste em tornar explícito, os

componentes implícitos, ou tornar possível a expressão, através dos participantes,

dos conteúdos que emperram a produção grupal.

De acordo com Saidon (1982:199) a interpretação no grupo operativo está

influenciada pelo modelo psicanalítico "que, sinteticamente, consistiria em procurar

fazer explícito o implícito". Nesse sentido, ele considera o vínculo entre o existente, a

interpretação e o emergente. O emergente confirma ou afasta a hipótese

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interpretativa. Desse modo, a interpretação é, necessariamente, uma hipótese. No

grupo operativo a interpretação é considerada em sua relação com a tarefa e

contribui para a operatividade grupal. Por sua vez, a operatividade significa a

superação da situação estereotipada e a conquista de modos de comunicação e

aprendizagem que atenuam os medos básicos e permitem enfrentar a mudança

implicada na tarefa (toda tarefa implica mudança). Sendo assim,

essa interpretação é realizada não somente explicitando as fantasias inconscientes com uma perspectiva psicanalítica, como também as fantasias grupais constituídas pelos mitos sociais e as ideologias predominantes que atuam determinando as características grupais (...) O propósito geral da interpretação é o esclarecimento em termos das ansiedades básicas, aprendizagem, comunicação, esquema referencial, semântica, decisão etc. Desta maneira coincidem a aprendizagem, a comunicação, esclarecimento e a resolução de tarefas com a cura. Tenta-se criar então um novo esquema referencial (idem: 199-200).

A interpretação é proposta pela coordenação em conjunto com o observador.

Mas, embora o modelo seja psicanálitico (tornar explícito o implícito), o coordenador

do grupo operativo atua de forma diferente. Ele sinaliza as dificuldades "que

impedem ao grupo enfrentar a tarefa" (idem). Está no grupo para ajudá-lo a formular

as questões que "permitirão o enfrentamento dos medos básicos" (idem). "Ele

cumpre no grupo um papel prescrito: o de ajudar os membros a pensar, abordando o

obstáculo epistemológico configurado pelas ansiedades básicas. Seu instrumento é

a sinalização das situações manifestas e a interpretação da causalidade subjacente"

(idem).

Por outro lado, é importante averiguar o "implícito" e/ou o "não-dito" sob o

prisma da repressão/coerção265 que inibem a emergência de conteúdos que

poderiam confrontar tanto a equipe de coordenação (o poder do

265 Lapassade e Lourau destacam a repressão social à palavra, enfatizando a necessidade de liberar a palavra como indicamos anteriormente.

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coordenador/observador) quanto a própria produção/inserção do grupo nos

estabelecimentos sociais, e ainda, a possibilidade efetiva de subverter a organização

existente, instituindo novos procedimentos (na perspectiva de uma nova

instrumentalidade, de uma nova operatividade a partir da criação/produção/ação

grupal).

Assim, o implícito/não-dito poderia ser considerado como um procedimento de

recuo diante do "instituído"; como o componente de um processo que "desconsidera"

as implicações da hierarquia e do submetimento à mesma através da aceitação de

uma condição de subalternidade ao conhecimento já produzido (valorização do

conhecimento produzido cujos expoentes são os profissionais, os professores, os

técnicos de nível superior); ou ainda, pela dificuldade concreta (histórico-material) de

romper com a submissão do trabalho ao capital (ou a submissão dos interesses

coletivos – projetos construídos coletivamente para atender às necessidades de um

maior número de pessoas – aos interesses privados designados pela

apropriação/acumulação privada do capital).

Contudo, as dimensões explicitadas acima não invalidam a existência do

implícito/não-dito em relação aos medos e às ansiedades básicas diante da

realização da tarefa e do que ela significa em termos de superação/transformação e

mudança pessoal/social. Mas, observamos que tais medos e tais ansiedades

também possuem uma ancoragem no submetimento às relações de poder

estabelecidas e que os múltiplos atravessamentos que as constituem precisam ser

considerados no processo grupal como elementos que perfazem e circunscrevem os

conteúdos implícitos ou os conteúdos “não ditos” 266.

Observamos que a proposição de Pichon Rivière em relação ao Esquema 266 Aquilo que é mantido como "inconsciente" também expressa uma determinada condição sócio-histórica. Como vimos em Guattari, o inconsciente é considerado uma produção social.

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Conceitual Referencial Operativo (ECRO) está em coerência com as questões

formuladas pelo Movimento Institucionalista e Grupalista. Nesse sentido, o grupo

operativo expressa o ECRO elaborado por Pichon Rivière em sua intervenção como

médico e como contestador da instituição psiquiátrica. A questão que fazemos ao

grupo operativo relaciona-se com o fato de ser transformado num instrumento

"aplicável" ao trabalho com grupos sem as referências que fazem parte do ECRO de

Pichon Riviére. Tais referências incluem a perspectiva crítica do autor em relação às

instituições sociais, em especial sobre a instituição psiquiátrica, seu

comprometimento social e político e sua habilidade para trabalhar em grupo. Se for

utilizado como um ECRO em aberto, o grupo operativo possibilita a compreensão de

diferentes grupos em várias situações, em várias expressões instituídas e

instituintes. É possível compreender o processo grupal numa estrutura familiar e ali

perceber as relações entre saúde mental/doença mental, como sugeriu Pichon

Riviére. É possível facilitar o trabalho ou a realização da tarefa em grupos inseridos

em diferentes organizações. É possível facilitar o processo de aprendizagem nas

organizações educacionais, entre outros.

É preciso considerar que o processo grupal em qualquer grupo não necessita

diretamente de um coordenador e de observadores para produzir, para realizar sua

tarefa. A meu ver, qualquer grupo pode vir a ser operativo. Nesse sentido, a

existência de uma equipe de coordenação, como foi definida por Pichon Rivière,

parece-nos remeter ao contexto (década de 60) no qual ele propôs esta técnica para

o trabalho grupal, em diálogo com a dinâmica de grupo e a partir de sua experiência

como professor267. Nesse sentido, não identificamos no livro O processo grupal uma

267 No artigo "Contribuições à didática da psicologia social" (escrito em parceria com Ana Quiroga, em 1972, in Rivière, 1998a: 234-235) os autores explicitam a técnica operativa nos seguintes termos: "adotamos como instrumento primordial de trabalho, de tarefa e investigação, a técnica operativa do grupo, partindo da hipótese de que o grupo é uma estrutura básica de interação, o que a converte de

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crítica a esse procedimento ou uma análise sobre as implicações de Pichon Rivière

ao criar o grupo operativo.

No entanto, os conceitos propostos por Pichon Rivière indicam a sua

perspectiva crítica em relação à intervenção grupal. Ele, ao enfatizar a relação

sujeito/grupo, contrapõe às concepções do grupo centradas na unidade de objetivos

e de interesses entendidos como comuns, a percepção do grupo como um espaço

de conflito e contradições que podem ser superados em direção a um projeto

construído no processo grupal. Mesmo considerando a superação em direção ao

projeto e à ação grupal construída coletivamente e mesmo considerando a

aprendizagem dela decorrente, a emergência do projeto é diferente de chegar a um

termo ou a um final feliz permanente. O movimento dialético continua e as

elaborações contribuem sim, para facilitar a participação das pessoas envolvidas,

mas isso inclui novos momentos de tensão, conflitos, novas elaborações, numa

espiral infinita.

A dialética mundo interno/mundo externo destaca a perspectiva do sujeito

inserido no grupo sem o qual não poderia existir. Por isso o processo de

aprendizagem acontece na interação entre os sujeitos, na possibilidade de aprender

a aprender, ou aprender a superar os estereótipos e as fixações emocionais que os

acompanham. Nesse sentido, Pichon Rivière contribuiu para aprofundar a

compreensão psicanalítica que mesmo em Sigmund Freud afirmou a importância

dos grupos e da coletividade para a compreensão da individualidade humana.

Outra consideração importante é o fato de Pichon Rivière trabalhar com a

fato em unidade básica de trabalho e investigação (...) Os conjuntos sociais organizam-se em unidades para alcançar maior segurança e produtividade. Em muitos casos, a unidade grupal tem a característica de uma situação espontânea. Mas os elementos desse campo grupal podem ser, por sua vez organizados. Queremos dizer, com isto, que a interação pode ser regulada para potencializá-la, para fazê-la eficaz em vista de seu objetivo. A isso denominamos planificação. Assim nasce a técnica operativa, que visa instrumentar a ação grupal".

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heterogeneidade conjugada com a sua perspectiva interdisciplinar. É interessante

reproduzir o texto de Pichon Rivière e Ana Quiroga,

o outro sentido do interdisciplinar [além de das contribuições a partir das diferentes disciplinas integradas no ECRO] estaria relacionado com o sentido da busca da maior heterogeneidade possível – em termos de idade, atividade, formação, sexo – na composição dos grupos, que deverão reelaborar a informação. A heterogeneidade permite que cada membro do grupo aborde a informação recebida em comum, trazendo um enfoque e um conhecimento vinculados a suas experiências, estudos e tarefas. Num primeiro momento do itinerário do grupo, dá-se uma fragmentação do objeto de conhecimento, em função das diferentes modalidades de impacto e de receptividade frente a ele. Essa heterogeneidade de enfoques e contribuições deve conjugar-se, alterando-se funcionalmente, complementando-se, até chegar a uma integração ou construção enriquecida do objeto de estudo. A heterogeneidade dirige-se, basicamente, para a ruptura dos estereótipos na modalidade de aproximação ao objeto de conhecimento, estereótipo que, por carência de confrontação, podem potencializar-se nos grupos homogenêos. Sobre essa fundamentação formulamos a regra: 'quanto maior a heterogeneidade adquirida através da diferenciação de papéis a partir dos quais cada membro traz ao grupo sua bagagem de experiências e conhecimentos, e quanto maior a homogeneidade na tarefa, obtida pelo somatório da informação (pertinência), maior a produtividade adquirida pelo grupo (aprendizagem)'. Em síntese, a possibilidade de uma didática interdisciplinar apóia-se na preexistência, em cada um de nós, de um esquema referencial. Estes esquemas e modelos internos confrontam-se e modificam-se na situação grupal, configurando-se, através da tarefa, um novo esquema referencial que emerge da produção do grupo (1998:232-233).

A técnica de grupo operativo é um recurso que pode ser utilizado em muitas

situações a fim de potencializar o processo grupal. Contudo, já que estamos nos

apropriando das questões que perpassam a Análise Institucional, chamamos a

atenção para a necessidade de analisar as implicações da equipe de coordenação,

as demandas envolvidas e submeter a técnica ao grupo real ao qual ela se dirige,

buscando expandir os espaços reais de criação coletiva, de autogestão, de

subversão das hierarquias em prol do exercício compartilhado do poder.

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299

3.4.2 – Hipótese de trabalho

O ECRO desenvolvido por Pichon Rivière focaliza a relação sujeito/grupo em

sua dimensão dialética na perspectiva de mostrar a interação contínua, a recriação

mútua entre a ação dos grupos e as apropriações realizadas pelos sujeitos; entre a

ação dos sujeitos e sua inserção nos diferentes grupos. O foco na ação dos grupos,

nesse caso, remete-nos à compreensão dos mesmos como espaços de mediação

entre os sujeitos e as formas de sociabilidade existentes. Por outro lado, a

sociabilidade humana inclui a necessidade da proximidade física, do cuidado e do

reconhecimento mútuo entre os seres humanos. Os grupos humanos constituem-se

em espaços onde essa proximidade física é possível, sendo também “espaços de

visibilidade” e zonas de comunicação corporificadas, encarnadas, apropriadas pelos

sujeitos.

Em outras palavras, as ações dos grupos humanos incluem muitas e

diferentes motivações. Da necessidade de sobrevivência e de reprodução da

espécie apreendemos tanto os interesses materiais mais imediatos (a exemplo da

alimentação) como também os cuidados afetivos mais refinados (como o carinho ou

a carícia enquanto acolhimento e aceitação mútua entre os seres humanos)268.

A ação dos grupos ou o ato de agrupar inclui as possibilidades de realizações

humanas compreendidas simultaneamente como criações objetivadas e apropriadas

pelos sujeitos (movimentos que extrapolam/transcendem os sujeitos (no grupo) e os

grupos nos quais se inserem) e como produções encarnadas nos/pelos sujeitos (em

suas criações grupais, os sujeitos se produzem concretamente, produzindo,

268Os seres humanos alimentam-se como mamíferos e necessitam do leite e do contato para constituírem-se enquanto tais. O carinho e a carícia são extensões possíveis nesse contato entre os seres humanos.

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qualitativamente, as relações que estabelecem entre si).

As conotações da palavra sujeito contribuem para a sua compreensão tanto

como aquele que encarna suas ações, aquele que age (soberano, autonomamente),

quanto como aquele que está sujeito às ações dos Outros ou como aquele que está

sujeitado ao grupo.

A dialética sujeito/grupo (como a expressou Pichon Riviére) explicita a

inserção social dos seres humanos (a sociabilidade enquanto atributo da espécie

humana ou a peculiaridade do ser humano enquanto “ser social”, conforme George

Lukács) e sua dependência onto-histórica269 do Grupo. Mas o faz considerando a

possibilidade de emergência de subjetividades autônomas na sua convivência com

os grupos e em suas relações com a coletividade.

Tal autonomia ocorre na relação, ou seja, não existe uma autonomia que

pudesse ser definida em si mesma e que acontecesse independentemente, não

existe autonomia absoluta. Existe a possibilidade de autonomia relativa, construída

em relação e inserida nas formas de sociabilidade existentes.

O destaque para o sujeito e para a possibilidade de autonomia do sujeito em

relação aos grupos merece atenção.

O ECRO de Pichon Rivière enuncia a possibilidade dessa relação pela

análise (dialética) quanto à atribuição/assunção de papéis pelos sujeitos em sua

inserção grupal.

A princípio, a denominação utilizada pelo autor (atribuição/assunção de 269 Utilizamos essa palavra para expressar nossa compreensão dos grupos enquanto condição de sobrevivência construída pela espécie humana. Nesse sentido, o que parece ser uma condição ontológica (expressão do Ser na condição Humana) também apresenta-se como algo histórico, criado/produzido em determinadas condições, as quais, poderiam ter sido diferentes e engendrado respostas diferentes. Assim, os grupos, nesta dimensão onto-histórica, também estão sujeitos à finitude, dependentes das produções humanas presentes e futuras. Em outras palavras, a própria condição do humano como ser social também pode ser modificada pelas ações humanas. O ontológico, nesse sentido, remete-nos para as ações humanas (objetivações humanas) em constante movimento e neste movimento, o Ser do Humano também é transformado. Por isso, o ontológico pode ser melhor compreendido pelo caráter histórico das construções humanas.

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301

papéis) parece aproximá-lo das perspectivas positivo-funcionalistas, as quais

privilegiam a “instância” social como parâmetro para a inclusão dos indivíduos. Ou

seja, a socialização dos indivíduos ocorre pelo aprendizado das normas sociais, pela

introjeção dos valores aceitos coletivamente.

Contudo, a apropriação realizada por Pichon Riviére subverte a perspectiva

positivo-funcionalista. Tal subversão é alcançada pela orientação dialética de seu

esquema (referencial) conceitual-operativo. Nesse esquema, os sujeitos e o (s)

grupo (s) tendem a ser apreendidos em seu movimento. Ou seja, busca-se a

apreensão da relação sujeito/grupo, sem submeter (a priori) o sujeito ao grupo

(unidade/coesão) e nem o grupo (projeto construído/ações empreendidas

coletivamente) ao sujeito (interesses particulares). Os grupos e os sujeitos

estabelecem relações e nessas relações podem ser apreendidos, neste movimento

que os constituem (aos sujeitos e aos grupos).

Nessa perspectiva, a atribuição e a assunção de papéis constitui um

movimento contínuo na interseção entre a verticalidade dos sujeitos (história

apropriada subjetivamente) e a horizontalidade dos grupos (ações empreendidas,

objetivações realizadas, criações instituídas, desinstitucionalizações produzidas

etc.).

Embora a perspectiva dialética esclareça (apreenda) esta relação constituinte

entre os sujeitos e os grupos nos quais se inserem, permanecem muitas lacunas

sobre as manifestações desta relação.

Por exemplo, as motivações, ou as circunstâncias nas quais alguns grupos

tornam-se porta-vozes da transformação; ou os processos sociais nos quais os

grupos (e os projetos coletivos) tornam-se uma referência quase obrigatória,

promovendo uma adesão em massa dos sujeitos.

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É verdade que Sartre indicou a necessidade (ou a impossibilidade de viver)

como condição (prévia) à emergência do grupo em fusão, denominada momento do

apocalipse. Mas também somos forçados a constatar (e Sartre o admite) que,

mesmo em circunstâncias extremamente desfavoráveis à possibilidade de viver, o

grupo em fusão não acontece, ou seja, a ação transformadora não é empreendida

ou não é apropriada pelos sujeitos em sua adesão aos grupos.

A perspectiva dialética enquanto apreensão do movimento em sua dimensão

contraditória como afirmação – negação – síntese (nova afirmação) ou em termos da

ação propriamente, como construção – desconstrução – reconstrução (nova

construção) deixa escapar os movimentos através dos quais a espiral qualitativa

(alcance de patamares cada vez mais complexos) parece orientar-se

diferenciadamente, em contraste com sua dimensão evolutiva. Ou seja, a

perspectiva dialética tende a apresentar uma orientação positiva, pois engendra a

expectativa de progresso histórico-material construída em processos civilizatórios

cada vez mais complexos, mais elaborados, mais desenvolvidos em relação às

possibilidades de relação dos seres humanos com a Natureza, em relação ao

manejo das próprias condições de sobrevivência (desenvolvimento das forças

produtivas). Nesse sentido, a racionalidade que a engendra também supõe o

progresso no nível das teorizações (explicações) humanas270.

A hipótese que enunciamos pode ser assim apresentada: a perspectiva

dialética – enquanto possibilidade de apreender o movimento (contraditório ou 270 Em Hegel, a Idéia evolui em seu movimento dialético através das contradições. Marx e Engels (2001) enunciam a possibilidade do socialismo como superação das contradições e dos antagonismos materiais (expressos na luta entre o proletariado e a burguesia) existentes no capitalismo. Contudo, no século XX e XXI, a produção de autores marxistas, como Hobsbawn e Mészáros, enuncia a polaridade socialismo ou barbárie indicando tanto as possibilidades de superação das contradições presentes no sistema capitalista (socialismo), quanto as possibilidades de incontrabilidade (e desordem) em direção à barbárie.

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não; antagônico ou não; fragmentado ou não; totalizável ou não) nas ações, ou

nas práticas, ou na práxis empreendidas pelos seres humanos – pode ampliar-

se englobando as possibilidades de movimentos involutivos e regressivos?

A perspectiva dialética enquanto produção humana, necessariamente

submete-se às ações empreendidas pelos seres humanos. Se tais ações

transmutam-se, metamorfoseiam-se ou geram potenciais de transformações

profundas em direção à superação das condições materiais existentes, a perspectiva

dialética precisa acompanhá-las, explicitando-as inclusive onde as totalizações são

obscuras (ou inexistentes), onde os processos e os movimentos humanos

apresentam-se desordenadamente, incoerentemente e incongruentemente.

Porém, se assim a compreendemos, também somos forçados a admitir que

tal perspectiva dialética, embora destituída da ambição totalizadora (buscar a

totalização nos movimentos humanos forçando coerências onde essas efetivamente

não se manifestam), está mais abrangente e potencialmente, mais capaz de

empreender explicações totalizantes.

Nesse sentido, a necessidade/possibilidade de compreender a relação

sujeitos/grupos ou a inserção social dos sujeitos, em uma dimensão dialética, indica

a abrangência dessa perspectiva capaz de transitar entre os movimentos mais

amplos e entre os movimentos mais restritos e, ainda, indicar as possíveis

comunicações entre os mesmos.

Então, a perspectiva dialética também é atualizada em termos das

necessidades das produções humanas tornarem-se inteligíveis a partir dos seus

movimentos empreendidos.

As relações entre sujeitos/grupos, as relações entre sujeitos/organizações, as

relações entre sujeitos/institucionalizações tem sido efetivadas e carecem de

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elucidação e explicitação.

A perspectiva dialética tem sido “reinventada” ou re-apropriada nesse

processo271.

Ao ampliarmos a perspectiva dialética, indicando as possibilidades de

movimentos incoerentes (não totalizantes, não totalizáveis) estamos focalizando

algumas formas de lutas atuais, que embora fragmentadas (em relação a um

possível projeto coletivo de transformação social ou de superação do capitalismo)

também incluem conteúdos revolucionários singulares, os quais contestam a ordem

social capitalista. Nesse sentido, buscamos uma aproximação mais efetiva aos

movimentos concretos das classes trabalhadoras, dos setores médios, e da

população de um modo geral na expectativa de encontrar a invenção de outros

meios de sobrevivência e de outros meios de enfrentamento diante das contradições

e dos antagonismos presentes nas sociedades capitalistas.

Concordamos com Lukács: a totalidade existe (manifestação de relações

coerentes – mesmo que contraditórias e antagônicas – entre as objetivações

humanas; manifestação de ordenamentos socialmente empreendidos, tais

ordenamentos incluem a luta e o conflito entre interesses diferentes). E

concordamos com Sartre: “A” totalidade não existe quando considerada a priori, ou

seja, quando a análise ou a apreensão teórica força relações coerentes ou objetivos

coletivos onde esses não se manifestam concretamente272.

Nessa direção, a possibilidade da barbárie (ver nota 148) é a “prova” de que

os projetos humanos estão continuamente em construção e, podem ser destruídos

ou re-apropriados diferentemente a qualquer momento e em qualquer ordenamento

271 Ironicamente, até um comercial da Coca-Cola, recentemente, veiculou uma mensagem associada à perspectiva dialética, referindo-se à possibilidade do copo (de Coca-Cola) estar meio-cheio (ao invés de meio-vazio). 272 Conforme o Capítulo 2 desta tese.

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social. No futuro, o projeto socialista, se for bem sucedido, também participará deste

processo histórico-material de construção contínua e de flutuações, de negações

internas à própria ordem socialista.

Ou seja, a racionalidade que engendra os projetos, as ações, as escolhas

humanas determinadas historicamente, inclui “zonas de obscuridade”, surpresas,

possibilidades abertas de criação, de destruição e de reinvenção.

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3.5 – Indicações das críticas entre a Análise Institucional e o

Marxismo

Durante este texto, tangenciamos algumas questões sobre o debate com

o marxismo nas produções do Movimento Institucionalista e Grupalista.

Indicamos as implicações entre as práticas político-partidárias referentes aos

Partidos Comunistas na Europa e a resistência às ofensivas nazi-fascistas, ao

autoritarismo, ao totalitarismo representado pelos países do Eixo (Alemanha, Itália e

Japão) durante a Segunda Grande Guerra.

Nesse período, ocorreu a aproximação de muitos intelectuais aos militantes

do Partido Comunista pela vinculação aos grupos de resistência.

Pensamos que as ações de resistência, de certa forma, romperam com a

serialidade anterior, criando também um comprometimento com as formas

democrático-pluralistas pelo movimento de recusa ao autoritarismo e às estratégias

totalitárias empreendidas pelos países do Eixo.

O comprometimento com a produção de estratégias democrático-pluralistas

parece ter sido o solo fértil para a difusão, durante o pós-guerra, das referências

teórico-operativas grupalistas que valorizavam a participação e o envolvimento dos

sujeitos nas organizações sociais e a ação da “sociedade civil” na institucionalização

de novas formas organizativas.

Ainda nessa direção, o trânsito entre intelectuais, cientistas, artistas, da

Europa para os EUA produziu condições de comunicação cultural inusitadas,

engendrando uma aproximação mais efetiva com as produções norte-americanas.

A emergência das referências democrático-pluralistas também aconteceu,

entre as classes trabalhadoras da Europa, na recusa às estratégias militares

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empreendidas pela URSS para manter a coesão na república soviética nos anos

posteriores à Guerra.

Assim, houve a denúncia dos modos de organização sindical e partidária

(referentes às classes trabalhadoras) fundados autoritariamente e das práticas

desenvolvidas, as quais dificultavam a participação efetiva e a explicitação da

diferença.

Nesse contexto, as críticas mútuas entre o Marxismo e a Análise Institucional

podem ser compreendidas como um debate entre o horizonte emancipatório,

qualificado como democrático-pluralista, em um movimento de recusa ao

autoritarismo e ao totalitarismo, e suas potencialidades são atualizadas pela ação de

diferentes grupos.

Nesse debate, as perspectivas quanto à dissolução das formas de poder

e quanto à erradicação das relações de exploração entre os seres humanos foram

problematizadas.

Esse debate emerge dentro das questões e das elaborações teóricas da

esquerda e indica a necessidade de construir estratégias democrático-pluralistas no

âmbito das organizações das classes trabalhadoras, construindo um tipo de coesão

qualitativamente diferente, fundado na perspectiva de preservação e de respeito à

diversidade.

As críticas que apresentamos a seguir referem-se a um debate interno à

esquerda, um debate que está em aberto e cujo conteúdo indica, a nosso ver, novas

apropriações sobre as possibilidades de um Projeto Societário Revolucionário.

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3.5.1 – Questões críticas colocadas pela Análise Institucional (AI)

para o marxismo273

- A base histórica e social da análise de Marx e Engels é constituída de países de

capitalismo liberal, com sociedade civil e instituições sociais com baixo protagonismo

social e político estável, e ausência de políticas sociais complexas. As sociedades

contemporâneas são muito mais complexas e heterogêneas, exigindo teorias e

estratégias políticas também mais complexas e diversificadas. Daí, a importância da

produção gramsciana para a análise das sociedades ocidentais com essas

características e sua maior aproximação com as questões colocadas pelas teorias

de AI.

- As análises marxistas mais convencionais, e principalmente as versões

vulgarizadas, tendem a enfatizar a determinação das relações sociais na sociedade

mais ampla pelas relações sociais de produção, colocando a política e a ideologia

como uma superestrutura subordinada e completamente secundária em relação à

esfera da produção. A AI vai enfatizar que as ideologias e os fenômenos

grupais/institucionais estão presentes já nas próprias relações de produção, ou seja,

só pode haver exploração da mais valia com uma organização grupal e institucional

dos trabalhadores na fábrica e em seus ambientes residenciais, sociais e culturais, e

com ideologias que estimulem os trabalhadores a não só vender a força de trabalho,

como também a se enquadrarem na organização, nas políticas de recursos

humanos, na assistência social e na ideologia da empresa. Assim, a AI tem

contribuições fundamentais para complementar a análise marxista do processo de 273 Este item e o próximo foram elaborados a partir de apontamentos durante a disciplina “Seminário

de Tese II” constituindo as reflexões do Prof. Dr. Eduardo Mourão Vasconcelos sobre o assunto, das quais me apropriei no decorrer dessa tese.

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trabalho, constituindo ambas ferramentas essenciais para se pensar as estratégias

de lutas associadas à gestão coletiva e democrática dos trabalhadores, tema que

vem sendo desenvolvido por pensadores brasileiros como Gastão Wagner de Souza

Campos e Emerson Elias Merhy, oriundos da UNICAMP. Da mesma forma, do ponto

de vista da prática profissional, a colocação de um projeto ético-político

comprometido com os interesses populares por parte dos assistentes sociais requer

a contribuição teórica da AI, como já sistematizado por Jean Robert Weisshaupt (As

funções sócio-institucionais do serviço social).

- A análise das relações de poder no marxismo enfatiza a dimensão das relações de

produção e da luta de classes, bem como de suas implicações na esfera da

reprodução social, das instituições e das ideologias, como determinadas e resultado

em última instância das relações de produção. Embora essa análise seja central e

fundamental, pergunta-se se é suficiente, pois existem outras clivagens importantes,

que emergem nos movimentos sociais particularmente a partir de meados do século

XX, e que têm importância fundamental para as lutas emancipatórias em geral:

questões de gênero, raça/etnia, ecologia, subjetividade, sexualidade, religião,

geração, etc. Essas questões constituem tema fundamental da AI, como na noção

de transversalidade dos grupos e instituições.

- Essas outras dimensões e clivagens atravessam diretamente a luta de classes. Por

exemplo, no proletariado e em sua militância social e política, há homens e mulheres

e há a tendência à reprodução do machismo hegemônico na sociedade. Há também

pessoas de diferentes origens raciais e étnicas, bem como a reprodução das formas

de discriminação e segregação vigentes na sociedade mais geral. Essas clivagens

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são inclusive objeto de luta social mais ampla, bem como de lutas no próprio seio

das organizações de trabalhadores. A AI, por sua vez, vem exatamente chamar a

atenção para esses atravessamentos nas diversas formas de militância e coletivos

sociais.

- Nas lutas populares essas dimensões aparecem de forma conjunta e há um

trânsito de experiências e de lutas entre essas várias dimensões e clivagens. A

acumulação de experiências grupais, institucionais e políticas em organizações

voltadas para uma ou mais destas dimensões são aproveitadas nas demais

dimensões, e essa práxis grupal e intitucional constitui o eixo central da militância

pregada pelas correntes mais conseqüentes da AI.

- A justeza das reivindicações no campo da relação capital-trabalho e da luta de

classes não assegura de antemão o bom encaminhamento do processo

revolucionário e sua institucionalização, pois há riscos permanentes de

enrijecimento, burocratização, autoritarismo etc. Essa questão está colocada no

próprio processo de emergência histórica da AI, como um de seus temas centrais,

ou seja, o do entendimento das razões da degeneração do socialismo real e do

enrijecimento dos partidos de esquerda e do movimento sindical no ocidente.

- Boa parte das instituições têm raízes históricas mais profundas que a sua

funcionalidade para um modo de produção específico como o feudal ou capitalista,

já que têm origem nas primeiras formas de divisão social e técnica do trabalho, que

têm início já nas comunidades humanas mais primitivas. A questão da superação

dos efeitos hierárquicos e das relações de poder resultantes da divisão social e

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técnica do trabalho não foi aprofundada em Marx/Engels e Lênin com o rigor

necessário, no debate sobre a sociedade socialista e comunista.

- O processo de socialização dos processos de reprodução social (educação,

cuidado social, saúde, políticas demográficas, habitação, cultura, lazer, etc)

envolvido na produção de políticas sociais tanto no welfare state quanto no

socialismo/comunismo implicou na ruptura das velhas fronteiras entre a esfera

privada e pública, gerando uma interferência sem precedentes e certamente

progressiva do Estado no corpo, na subjetividade, nas pautas de vida e

comportamento, na sexualidade, etc, das pessoas, com enormes riscos de

normatização e controle social. As novas tecnologias informacionais,

mercadológicas, médicas e genéticas contemporâneas acentuam o poder de

controle das agências estatais sobre todos os detalhes da vida social. Assim, por

mais que possamos identificar questões polêmicas no pensamento de Foucault, o

problema identificado por ele (particularmente em História da Sexualidade I) de que

uma sociedade baseada nos direitos de cidadania implica em uma sociedade da

normatização, diz respeito não só à luta social dentro do capitalismo, mas também

no socialismo/comunismo. Por exemplo, a afirmação dos direitos da criança a não

ser vítima de violência, negligência e abuso sexual implica em um processo de

vigilância social sobre seu corpo, sobre os padrões privados de educação na família

e sobre as formas mais íntimas de subjetividade, relacionamento e carinho entre a

criança, os pais e os adultos em geral, o que em determinadas condições pode

implicar inclusive a perda do pátrio poder. Assim, a questão do poder das

instituições públicas, de suas implicações sobre os diversos tipos e grupos de

cidadãos, bem como o desenvolvimento de formas de contra-poder, temas centrais

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colocados pela AI, têm um caráter estratégico na construção de qualquer projeto de

sociedade futura mais igualitária, democrática e justa.

- A qualidade de produtos e serviços em geral, e particularmente de serviços sociais,

bem como de sua adequação às necessidades específicas dos vários grupos de

consumidores e de cidadãos, depende, a partir das sociedades pós-fordistas

contemporâneas, e como fator progressivo, da flexibilização e democratização das

relações sociais de produção, que necessariamente não implicam em se reduzir às

formas perversas de como o neoliberalismo tem-se apropriado dessa noção. A

produção em massa de serviços sociais padronizados, como na modalidade fordista,

foi necessária e preponderante no processo de universalização dos direitos e dos

serviços sociais no período keynesiano, mas é insuficiente nas sociedades atuais.

Em sociedades periféricas de capitalismo tardio, desigual e combinado, que ainda

não conquistaram a universalização, esse processo de extensão da cobertura dos

serviços sociais exige a combinação de padrões fordistas e pós-fordistas de

produção desses serviços, o que implica em incluir no processo, desde já,

estratégias de flexibilização e democratização das relações de trabalho na esfera

pública, sob nova lógica, como indicado acima, bem como em relações de maior

poder contratual e institucional da clientela dos serviços. Em ambos os casos, as

contribuições da AI são fundamentais para os fins indicados. Na direção contrária, a

simples universalização de cunho fordista, como por exemplo ocorreu

hegemonicamente no SUS brasileiro, vem gerando o padrão conhecido de

‘universalização excludente’, ou seja, a produção de serviços de baixa qualidade

para a população mais pobre, e a migração das classes médias e da elite para os

serviços e planos privados de saúde, onde esses setores sociais procuram garantir

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maior qualidade, diferenciação e adequação dos serviços às necessidades

específicas dos diversos grupos da clientela.

- O marxismo tende a negligenciar as mudanças institucionais, culturais e subjetivas

de longo prazo (conforme Leandro Konder, O futuro da filosofia da práxis: o

pensamento de Karl Marx no século XXI, 1992), que requerem um trabalho

permanente nas instituições e na sociedade civil, inclusive já na própria sociedade

capitalista, e a colocação de utopias abertas para o novo e a criação, que não

podem ser previstas com antecedência .Esse tema constitui uma questão central

para a AI.

- A ênfase marxista nos processos de consciência social e racionalização/regulação

do mercado e da vida social cria obstáculos para a análise de dimensões subjetivas

que têm maior dificuldade de expressão consciente e racional, e que geralmente são

ocultadas nos processos de dominação e mudança social. As origens da AI na

psicanálise permite uma aproximação mais clara das questões do inconsciente nos

processos grupais e institucionais.

- O marxismo tem dificuldades de enfrentamento da questão da morte (conforme

Edgar Morin, O homem e a morte, 1997), não só na sua dimensão literal de cada ser

humano, como também de sua dimensão social e institucional, na aceitação da

transitoriedade dialética das instituições e grupos sociais. A AI, dada a presença

teórica do existencialismo na sua formação teórica e histórica, não negligenciou

esse aspecto, tão discutido em sua análise dos processos de grupo-sujeito e de

auto-dissolução.

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3.5.2 – Questões críticas colocadas pelo marxismo e outras teorias

para as correntes da AI

- As correntes de AI tendem a nivelar as diversas clivagens colocadas pelos

movimentos sociais contemporâneos como se tivessem a mesma importância

estratégica e tática na superação do capitalismo e nas lutas sociais emancipatórias

em geral.

- As correntes de AI têm forte inspiração no anarquismo, particularmente em Guattari

e em algumas formulações de Lapassade. Lourau, dada a sua formação com Henri

Lefebvre, dialogou mais profundamente com o marxismo. Entretanto, as principais

tendências da AI tendem a reproduzir os mesmos problemas e questões políticas e

ideológicas colocadas pelo marxismo ao anarquismo, particularmente a sua

centralidade da dominação na questão do poder e sua ênfase absoluta na esfera

comunitária e da micropolítica, e daí sua dificuldade em abordar os desafios e as

dimensões econômicas, sociais e políticas na esfera macrossocial e mundial.

- A emergência da AI no contexto europeu a partir dos anos 60 estabeleceu vínculos

profundos com as correntes teóricas do pós-modernismo, e com sua crítica dos

grandes humanismos e dos projetos de mudança social mais globais, bem como

com sua ênfase na dimensão microssocial. Em conseqüência, já que não enfrentam

a necessidade e os desafios de projetos sociais, econômicos e políticos alternativos,

as correntes teóricas pós-modernas implicitamente aceitam acriticamente o projeto

social-democrata vigente na Europa da época. Essa questão é ainda mais

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problemática quando se pensa na possibilidade de uma apropriação unívoca e

exclusiva da AI nos contextos de países periféricos. Assim, o uso da AI,

particularmente nesses países, não pode ser pensado sem uma articulação

interdisciplinar e crítica, pelos dois lados, com o marxismo, particularmente em suas

versões mais sensíveis às dimensões da cultura, da subjetividade e do poder, como

em Gramsci, Escola de Frankfurt, Jameson, etc.

- A AI é marcada “na sua raiz” pela abordagem ontológica existencialista de Sartre,

que enfatiza a oposição entre o prático-inerte e a práxis viva/subjetividade, que tem

um viés idealista e a-histórico (limitação que não inviabiliza o esforço dele em pensar

as questões grupais e institucionais na história concreta). Entretanto, isto gera uma

dificuldade difusa de captar as conquistas políticas e sociais de longo prazo e de

âmbito macrossocial das lutas democráticas e emancipatórias, já que as instituições

resultantes tendem a ser associadas com a lógica do instituído e do prático-inerte e

estarem localizadas em instâncias longe da prática direta dos cidadãos. Nesse

sentido, a AI parece favorecer as transformações “a quente” e que enfatizam a

democracia direta, mas as instituições democráticas representativas e do judiciário,

tanto em nível nacional como internacional, não podem ser negligenciadas ou

simplesmente identificadas com o instituído e com as facetas mais conservadoras da

vida social.

- Da mesma forma, em várias correntes da AI há uma tendência à superdimensionar

a dimensão progressista dos processos intituintes, como se o desejo e a produção

desejante fossem em si mesmos revolucionários e pudessem ser considerados fora

da história e das múltiplas relações de dominação e poder que são reproduzidas nos

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processos humanos e sociais. Nesse sentido, muitos movimentos sociais e políticos

que se constituíram como instituintes em seus processos de emergência história, se

tratavam de forças conservadoras e até mesmo totalitárias. Os processos instituintes

implicam sim em renovação histórica e social, mas suas implicações, significados e

resultados devem ser sempre avaliados de forma rigorosa.

- Em algumas formas de intervenção da AI, há uma tendência a superdimensionar

ou avaliar de forma muito otimista o desvelamento do oculto nas relações sociais e

de poder, em processos coletivos de auto-gestão, subestimando as implicações

éticas da passagem de informações e denúncias do sistema informal de

comunicação das intituições, grupos e das pessoas para o sistema mais usual e

formal. Muitas vezes, essas formas subestimam a capacidade dos atores mais

poderosos das instituições de se apropriarem das revelações feitas nesses coletivos

mais transitórios para realizarem atos de “acting-out” (fora dos dispositivos

institucionais mais horizontais e democráticos de auto-gestão) de caráter repressivo

em relação a indivíduos e grupos mais fragilizados. Outras vezes, o simples

levantamento de certas dimensões transversais nas instituições, grupos sociais e

indivíduos pode ter um caráter segregador e discriminatório para algumas das

pessoas ou grupos. As implicações éticas deste tipo de processo vem sendo

analisadas com maior rigor e cuidado no campo da pesquisa, o que afeta

particularmente as metodologias de pesquisa-ação inspiradas na AI. As normas e

protocolos de ética em pesquisa (como as normas oriundas do Conselho Nacional

de Saúde/1996) têm enfatizado o cuidado necessário para o planejamento das

implicações éticas dos fluxos de informações nas instituições, particularmente em

relação a seus atores mais fragilizados e em situação de dependência.

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A Palavra Mágica

Certa palavra dorme na sombra

de um livro raro.

Como desencantá-la?

É a senha da vida

a senha do mundo.

Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira

no mundo todo.

Se tarda o encontro, se não a encontro,

não desanimo,

procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura

ficará sendo

minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao iniciarmos esta exposição indicamos o caráter exploratório de nossa

pesquisa. Até mesmo na formulação de nossa hipótese e nos argumentos que

apresentamos para fundamentá-la, nos valemos desta possibilidade exploratória.

Essa estratégia de um estudo exploratório, no âmbito desta pesquisa, justifica-se:

a) pela abrangência do tema aqui trabalhado (os grupos constituem tema de

pesquisa em diferentes disciplinas);

b) pelo caráter não sistemático de algumas das pesquisas e dos estudos

contemporâneos sobre os grupos na perspectiva sócio-histórica que privilegiamos;

c) pela escassa produção no Serviço Social a respeito dos grupos e das práticas

grupais;

d) pela pluralidade, pela diversidade, pela multiplicidade das teorias e das práticas

grupais;

e) pela diversidade das formas grupais e organizativas existentes nas sociedades

capitalistas contemporâneas, inclusive na sociedade brasileira.

Assim, esta complexidade e diversidade do campo requerem e implicam na

necessidade de um maior cuidado, no momento de apresentar generalizações e

conexões na perspectiva de possíveis totalizações provisórias.

Ao nos atermos nestas considerações finais acreditamos que podemos

concluir, de forma mais genérica, que as nossas apropriações sistematizadas neste

trabalho sugerem a necessidade e uma possibilidade real de uma aproximação do

Serviço Social aos estudos sobre as práticas grupais na perspectiva sócio-histórica,

auxiliando-os, enquanto assistentes sociais, nas nossas intervenções sócio-

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institucionais, compreendidas amplamente, e também nas inserções específicas nas

ações de coordenação e de acompanhamento aos grupos no âmbito profissional.

De fato, pretendemos continuar nossas pesquisas e talvez, mais adiante, seja

possível a elaboração de referências mais precisas acerca desta aproximação, a

partir das diferentes formas de inserção profissional junto aos grupos e do

saber/conhecimento produzido nesta esfera.

Porém, cabe-nos explicitar agora algumas conclusões provisórias, com base

no que nos foi possível avançar neste estudo, a partir de nossas referências

profissionais, em especial, a partir de nosso Projeto Ético-Político, e em nossa

compreensão sobre os grupos e sobre as práticas grupais nas sociedades

capitalistas contemporâneas.

Inicialmente, partimos de uma problemática multifária, cujos aspectos

denotam a interseção entre a prática grupal dos assistentes sociais, apropriada

como prática profissional de ruptura na inserção sócio-institucional do Serviço Social

e nas intervenções profissionais nos espaços sócio-ocupacionais existentes, e as

demandas para o trabalho profissional com grupos.

Em sentido afirmativo, a prática dos assistentes sociais, comprometidos com

a perspectiva de ruptura, enuncia-se como prática grupal de renovação das formas

de organização e de intervenção profissional. Explicitam-se os conteúdos quanto às

possibilidades de ações coletivas, de ações de ruptura, de ações de transformação

em relação às formas organizativas existentes (no âmbito sócio-institucional do

Serviço Social, por exemplo) e de superação das relações sociais existentes

assentadas sobre o modo de produção capitalista na perspectiva dos horizontes

ético-políticos compartilhados com projetos societários emancipatórios.

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Em sentido negativo, em um primeiro momento, a intervenção dos assistentes

sociais no horizonte do Projeto Ético-Político coloca sob suspeita os conteúdos que

enfatizam exclusivamente “a dinâmica interna dos processos grupais” e, nesse

sentido, as formas de coordenação e de trabalho profissionais com grupos

inspiradas em diferentes disciplinas acadêmicas: sociologia, psicossociologia,

psicologia social, pedagogia, dinâmica de grupo etc. Essa negação foi explicitada a

partir da crítica ao Serviço Social de Grupo e aos fundamentos positivistas e

funcionalistas que o inspiravam.

Outro aspecto desta crítica está na percepção de que estas modalidades de abordagem

dos processos grupais tendem a escamotear os seus vínculos funcionais e os conteúdos

ideológicos vinculados às estratégias de manutenção do capitalismo. Em parte, isso se explica

pela vinculação político-ideológica das teorias sobre grupos, na esfera das pesquisas

sociológicas, psicossociais e psicossociológicas principalmente na produção norteamericana,

aos objetivos organizacionais/empresariais, financiados pela iniciativa privada ou pelo Estado.

Nessa direção, o envolvimento das classes trabalhadoras naquelas produções, considerando os

seus interesses na democratização do processo produtivo, na alteração da correlação de forças

entre capital e trabalho e na descentralização das decisões; ou a afirmação de projetos

democráticos mais radicais (como a autogestão) e a explicitação político-ideológica das ações

empreendidas estiveram em segundo plano. Por isso, é compreensível que mesmo afirmando-

se em seus horizontes democráticos, estas teorias do campo da dinâmica de grupo, da

psicossociologia e da psicologia social tendem à reprodução das relações de poder, através do

ocultamento das contradições concretas que envolvem as inserções econômico-materiais e a

produção de conhecimento enquanto território de domínio apropriado pelos

profissionais/especialistas, professores/pesquisadores em sua relação com os grupos

trabalhados.

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Contudo, observamos que um outro conjunto de abordagens sobre os grupos

– na perspectiva inaugurada por Sartre e desenvolvida pelo Movimento

Institucionalista e Grupalista, como argumentamos através da produção no campo

da Análise Institucional – recorrem à explicitação dos processos grupais no próprio

movimento revolucionário e enfrentam o debate com o marxismo, evidenciando o

seu comprometimento político-ideológico com as perspectivas emancipatórias e com

as lutas empreendidas pelas classes trabalhadoras.

Observamos também que esse debate em sua raiz possui um caráter de

disputa entre os grupos vinculados às classes trabalhadoras e de crítica sobre os

rumos das organizações que nasceram das lutas do proletariado, como as

organizações sindicais e os partidos operários. A crítica se estende à burocratização

do socialismo na URSS, e principalmente, à centralização anti-democrática

empreendida pela gestão político-administrativa e pela coerção militar no âmbito das

repúblicas de socialismo real.

Nesse sentido, podemos dizer que a defesa de anseios e princípios quanto à

democratização, à coletivização do poder, à desburocratização das organizações, ao

respeito à diversidade, constitui uma nova qualificação do projeto

revolucionário ou uma nova perspectiva sobre os projetos emancipatórios.

Inclusive, pela apreensão e pela incorporação de conteúdos mais próximos aos

problemas enfrentados no cotidiano, nas formas organizativas de gerir a vida social

concreta, dirigidas pelos horizontes ético-políticos de cunho emancipatório.

Assim, a democracia e as formas organizativas democráticas (nessa

perspectiva) estão distantes do equilíbrio e da harmonia (enquanto equilíbrio entre

poderes, ou divisão harmônica entre os poderes) e constituem aberturas (ou

comprometimento de ações em torno da abertura) para a explicitação dos conflitos e

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das contradições dirigidas para um possível exercício coletivo e mais socializado do

poder.

Trata-se então de uma compreensão democrática complexificada e

diferenciada da perspectiva democrática burguesa (democracia representativa),

apontando para a democracia direta e cotidiana das massas populares, não só

enquanto “domínio da maioria” sobre as “minorias”, mas como laboratório e invenção

positiva e permanente de formas cada vez mais democráticas e participativas de

gestão social.

Por outro lado, a qualificação da democracia na dimensão dos processos

grupais já aparece nos conhecimentos produzidos no campo da “dinâmica de

grupo”. Os estudos das atmosferas democrática, autocrática e laissez-faire ocupam-

se das dinâmicas dos pequenos grupos, indicando a atenção sobre os processos

grupais em uma perspectiva político-cultural mais ampla que nos estudos

funcionalistas e positivistas do campo. Nessa direção, podemos dizer que a

presença de conteúdos democráticos no campo cultural (atravessando os diferentes

“campos” ou as diferentes “fronteiras” de convivência) abre potencialidades reais

para perspectivas políticas de caráter democrático-popular.

A nosso ver, a valorização da democracia na perspectiva da dinâmica de

grupo também aparece como uma estratégia anti-totalitária, onde a preocupação

com o desenvolvimento de experiências democráticas, ou com a possibilidade do

aprendizado democrático, decorre desse investimento estratégico.

Observamos que esta perspectiva democrática, mesmo dentro da forma

sócio-histórica da democracia burguesa, aponta para o desenvolvimento de uma

diversidade de grupos com interesses diferentes e com práticas específicas

contraditórias entre si. Parece-nos que esta convergência de grupos diferentes em

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torno da perspectiva democrática, foi exemplificada historicamente pelos

movimentos sociais que lutaram durante o século XX contra as ditaduras, como no

enfrentamento ao nazi-facismo.

Assim, a presença da perspectiva democrática incita experiências e formas

organizativas diferentes, mesmo no âmbito do capitalismo. A autogestão, por

exemplo, é uma proposição radicalmente democrática, no que tange à coletivização

da gestão empresarial ou organizacional, à democratização do processo produtivo,

como referência às decisões a serem exercidas coletivamente. Aliás, sob esse

aspecto, a autogestão é um horizonte anterior à experiência democrática no âmbito

político-partidário inaugurado pelas sociedades burguesas, e já estava presente nas

experiências organizadas em torno do movimento cooperativo, que se inicia no

século XVIII com as formas de cooperativas agrícolas na Inglaterra, ainda de

resistência às formas remanescentes de exploração feudal e antes de chegar ao

ambiente propriamente industrial-urbano.

Desse modo, as projeções societárias de cunho emancipatório vão se

enriquecendo e se complexificando no debate com estas diferentes perspectivas

democráticas, comprometendo-se, em algumas situações, com as formas

organizativas que a facilitem. Por isso, no campo de debate em torno da teoria social

marxista, do marxismo e da práxis revolucionária, a perspectiva de aprofundamento

permanente da democracia é assumida por algumas correntes, como um elemento

não só tático, mas estratégico, na construção de uma nova sociedade mais

igualitária e solidária; e como uma qualificação necessária das práticas

emancipatórias e dos movimentos sociais populares desde já.

Da perspectiva das produções teóricas aqui trabalhadas, no que tange à

focalização dos processos grupais, observamos na dinâmica das relações entre os

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sujeitos a permanência de tensionamentos entre as expressões materiais e

subjetivas singulares ou parciais nos grupos e os objetivos coletivos mais globais do

grupo. Mesmo considerando a convergência em torno de ações comuns, bem como

a presença de conteúdos ideológicos compartilhados como um horizonte mútuo

entre os sujeitos, a tensão se mantém.

Pensamos que a perspectiva democrática aliada ao pluralismo e ao respeito

às diferenças implica em uma construção tensionada pelas diferentes expressões de

interesses materiais e de poder institucionalizadas, e apropriadas na singularidade

das expressões subjetivas.

Nesse sentido, a atenção aos processos grupais contribui para a apreensão

das contradições e das tensões expressas enquanto relações de poder. Sobretudo,

essa focalização não visa à “solução do conflito” ou à harmonização das “partes”,

mas, em nossa opinião, facilita a apreensão das tensões existentes no sentido de

explicitá-las. Assim, percebemos que a “análise em ato” significa essa possibilidade

de explicitação das tensões existentes, implicando na emergência de novas formas

de apropriação das ações desenvolvidas tanto nos grupos quanto nas organizações.

Mesmo nas tensões, algumas convergências e formas de hegemonia são possíveis.

Se os sujeitos estiverem atentos quanto às possibilidades de coletivização do poder,

a criação de dispositivos democráticos, como a discussão e o debate contínuos

(plenárias), torna-se viável, possibilitando a emergência de ações qualitativamente

diferentes.

Pensamos que essa compreensão nos ajuda a diminuir possíveis

expectativas idealizadas de uma sociedade livre de contradições274 e de tensões, e

274 A contradição entre capital e trabalho é uma relação fundamental construída no modo de produção capitalista. A superação do capitalismo, em tese, põe fim a essa contradição. Contudo, observamos que a expressão de relações contraditórias tende a continuar na dimensão das relações de poder existentes, nas formas sócio-institucionais que legitimam a dominação em suas diferentes formas. A

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simultaneamente contribui para que possamos construir formas organizativas que as

considerem sem abdicarmos das possibilidades de ações em comum e do exercício

coletivo do poder.

No âmbito do Projeto Ético-Político dos Assistentes Sociais identificamos a

necessidade de qualificar nossas intervenções com grupos a partir de referências teórico-

operativas compatíveis com o horizonte de superação das formas de exploração e de

dominação existentes nas sociedades capitalistas.

A abertura ao debate no Serviço Social, pela ênfase no pluralismo, na

democracia, construídos pela hegemonia da vertente “intenção de ruptura”,

propiciou-nos a discussão com perspectivas teóricas diferentes, que ao abordar o

tema dos grupos, das organizações e das instituições apontam os problemas na

prática política, na militância e no horizonte revolucionário oriundos das classes

trabalhadoras e do marxismo.

Essas produções teóricas foram realizadas na disputa dentro da esquerda (na

Europa, especialmente, na França), principalmente face ao enrijecimento das

práticas sindicais e político-partidárias representantes das classes trabalhadoras.

Nesse sentido, sem dúvida alguma, são produções afinadas ou comprometidas com

a luta mais geral empreendida pelos trabalhadores.

Se nós consideramos a emergência dessas perspectivas teóricas em seus diferentes

contextos somos forçados a reconhecer seus conteúdos inovadores na qualificação das

práticas grupais. Tais conteúdos referem-se à possibilidade de coletivização no exercício do

poder, à possibilidade de investir em formas organizativas coletivamente democráticas.

explicitação dessas relações constitui possibilidade e mesmo exigência fundamental para a construção de uma sociedade efetivamente democrática.

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Da perspectiva da intervenção profissional com grupos, gostaríamos de

reafirmar que somos enriquecidos por essas construções teóricas.

Em primeiro lugar pelo debate em torno das práticas grupais e dos processos

grupais na perspectiva da democratização e do exercício coletivo do poder. Essa

dimensão sedimentada por uma compreensão sócio-histórica afirma o caráter de

construção e de movimento dinâmico presentes nas práticas grupais. Assim, os

grupos e as suas práticas constituem-se no movimento, na dialética, na abertura a

possibilidades, incluindo os potenciais de criação e de invenção a serem evocados

pela ação humana.

Nessa direção, o método crítico-dialético permanece, como um investimento

na compreensão das práticas humanas em seu movimento, nas objetivações

histórico-materiais e nas aberturas às apropriações subjetivas pela participação na

produção/reprodução da vida em sociedade.

A perspectiva dialética apareceu-nos, através de nossas hipóteses de

trabalho, como a possibilidade de acompanhar o movimento do real desde suas

características e expressões singulares, as quais se manifestam em sua inserção na

totalidade social e em sua participação nas totalizações em andamento.

Assim, as contradições e as ambigüidades aparecem amplamente

enraizadas, não apenas na enunciação clássica entre afirmação/negação/síntese

(superação/nova afirmação) que apreende o movimento contraditório na realidade,

mas também na multiplicidade de eventos que constituem o que identificamos como

afirmação, negação, síntese. Dissemos durante o terceiro capítulo, que o movimento

dialético também inclui “negações nas afirmações”, “afirmações nas negações” e a

possibilidade de “circularidade nas sínteses” (ao invés de progressão em espiral).

Nesse sentido, o movimento na realidade está acompanhado pelas contradições e

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pelas ambigüidades. O devir é sempre expressão de muitas possibilidades,

justamente pela riqueza de expressões nele contidas.

Desse modo, as práticas grupais e os processos grupais podem ser

observados/apreendidos dialeticamente.

A apreensão dialética sobre as práticas grupais e sobre os processos grupais

exige a superação das perspectivas que explicam ou apreendem os grupos apenas

por seus estatutos e por seus objetivos manifestos, por exemplo, enquanto objetivos

comuns. Exige a focalização sobre as ações desenvolvidas e sobre as formas

organizativas que vão sendo sedimentadas, dos procedimentos que vão sendo

criados e de seus impactos sobre os sujeitos. Isto implica na apreensão da

diversidade existente, em termos de diferentes interesses materiais concretos

potencialmente identificados com os interesses populares, como também em termos

dos diversos significados apropriados subjetivamente, em sua fluidez, o que também

envolve a atenção às tensões existentes.

Nesse sentido, os pronunciamentos dos sujeitos nos grupos, nas organizações etc., são

compreendidos melhor através da observação sobre as práticas empreendidas e sobre os

procedimentos nelas engendrados.

Na observação desse movimento colocam-se questões, tais como: o que as práticas

grupais conservam em sua ação? Quais as possibilidades de práticas inovadoras com impactos

sobre a criação de novos procedimentos e novas apropriações subjetivas? Ou o que as práticas

criam em sua ação? Em que direção tais criações se estabelecem: explicitam as relações de

poder existentes, explicitam as tensões e as diferentes formas de implicação dos membros

com o grupo? Manipulam as tensões submetendo-as à unidade, à compreensão oficializada

quanto aos objetivos do grupo, da organização etc.?

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A explicitação das tensões pode ser um dispositivo importante para

apreender a diversidade e evitar a redução das diferenças pelo seu submetimento à

unidade, a coe(r)s(ç)ão grupal. A realidade se expressa na diversidade, e a unidade

sem a diversidade concretamente não existe. A manutenção da unidade pela

formação de identidades fixadas em um mesmo padrão normativo é um dispositivo

coercitivo de dominação utilizado hierarquicamente pelos sujeitos, pelos grupos,

pelas organizações beneficiadas pela correlação de forças até então estabelecida.

O trabalho sobre a explicitação das tensões é uma tarefa do grupo, da

organização. Entendemos que o fato de parar de impedir ou de atuar para forçar a

coesão, pela inibição das diferenças, das tensões e dos conflitos, já é uma

contribuição importante nas intervenções específicas com grupos ou no trabalho

profissional com grupos no Serviço Social.

Assim também, é importante abdicar subjetivamente da necessidade de

“forçar ações em comum” como “organizar mobilizações”, “organizar movimentos”,

“organizar grupos” etc.

A nosso ver, uma organização que nos diz respeito, diretamente, é a nossa

organização enquanto categoria profissional. Nela nós temos a responsabilidade de

opinar, criticar, inventar procedimentos, contribuindo para a qualificação contínua de

nossa intervenção profissional. Isso nos implica na criação de dispositivos

democrático-pluralistas, afinados com as nossas perspectivas ético-políticas. Assim

também, estamos implicados nos desafios da formação acadêmica, na

democratização do processo de aprendizagem em suas diferentes inserções

organizacionais.

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Outra contribuição teórico-operativa relevante para a intervenção profissional,

aqui elencada em segundo lugar, é a qualificação da relação ou da dialética

sujeito/grupo. Isto porque, na perspectiva de construir formas organizativas

democrático-pluralistas que possam realizar-se enquanto “unidade na diversidade”,

o grupo ou a organização precisam reconhecer a importância das apropriações

subjetivas na convergência das ações desenvolvidas em comum.

A nossa experiência histórica, brasileira, ora destaca a importância individual

em detrimento das ações coletivas ou da sua inserção nos grupos dos quais emerge

ou dos quais se torna em porta-voz ou em referência; ora destaca a importância das

organizações e dos grupos, elevando os seus objetivos ou as suas realizações como

algo acima dos interesses ou das querelas individuais. A possibilidade de

compreender o movimento – nas construções objetivadas nas organizações, nos

estatutos grupais, nos objetivos expressos, nas práticas desenvolvidas – como uma

relação dialética entre os sujeitos e os grupos, entre os sujeitos e as organizações

tem sido pouco difundida entre nós.

Nesse sentido, é exemplar a importância que o lugar do Presidente, do Chefe,

do Dirigente, do Professor, do Médico, dos Especialistas, etc. adquirem em termos

da responsabilidade e da delegação de poder que lhe são atribuídas.

Simultaneamente, esta delegação de poder, não raro, também se apresenta

encarnada na pessoa em quem se confia em detrimento da confiança nas

organizações ou nas instituições que lhe sustentam.

Na perspectiva aberta por Sartre, pelo método regressivo-progressivo ou

progressivo-regressivo, evidencia-se a relação intrínseca entre subjetividade

(singularidade) e totalidade, demarcando-se a necessidade de romper com a

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subordinação (teórico-operativa) das expressões singulares às perspectivas

totalizadoras.

Na apropriação do trabalho profissional com grupos no Serviço Social

identificamos procedimentos que submetem as necessidades subjetivas aos

interesses coletivos e também procedimentos que valorizam as necessidades

individuais ou as carências individuais descontextualizadas dos processos histórico-

sociais.

Nessa direção, o SSG exemplificou a utilização das estratégias grupais tendo

como horizonte a satisfação individual ou a solução dos problemas individuais no

grupo (pelo apoio do grupo).

Contudo, a esse respeito, Gisela Konopka e Natálio Kisnerman defendiam a

importância de compreender o grupo enquanto grupo e não como recurso para a

solução dos problemas individuais275.

No Capítulo 1 observamos a vinculação do SSG aos objetivos das Agências

Sociais, as quais se propunham organizar-se pela forma de atendimento grupal.

Desconhecemos as particularidades desse atendimento à época de

institucionalização do SSG norte-americano enquanto “método” do Serviço Social.

Mas, inferimos que o tipo de serviço prestado por estas agências colocava a

necessidade de atendimento grupal propiciando a inclusão e o atendimento às

necessidades individuais pelo tipo de oferta existente (serviço prestado pela

agência).

No Brasil, o trabalho com comunidades propiciou a especialidade da

intervenção como Serviço Social de Comunidade, como Organização de

Comunidade e Desenvolvimento de Comunidade (OC e DC). Nessa estratégia

275 Conforme o nosso artigo “Problematizações acerca do trabalho com grupos no Serviço Social” (2001).

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profissional predominava a submissão das comunidades aos projetos, programas e

planejamentos governamentais, com pouco espaço para a expressão das

singularidades e da particularidade de cada comunidade. A abordagem da

comunidade pela homogeneidade do conceito, também favorecia o seu

submetimento aos programas existentes dentro do planejamento governamental.

É interessante observar que na literatura profissional, na trilha das

sistematizações produzidas/iniciadas através do SSG, o trabalho com grupos foi

qualificado a partir de sua inserção sócio-ocupacional e de suas características pelo

tipo de demanda a qual respondia: ação social e comunitária (mobilização social;

organização e desenvolvimento comunitário em torno de infra-estrutura básica etc.);

ação terapêutica (ajuda mútua e re-inserção social pelo aprendizado de novas

condutas, novas atitudes ou novos comportamentos); ação recreativa (organização

de espaços recreativos, festas, lazer etc.); ação pedagógica ou informativa (projetos

sócio-educativos; educação popular) etc.

Nessas sistematizações a articulação sujeito/grupo não é explicitada em sua

dimensão dialética.

A necessidade de compreender a relação sujeito/grupo em sua dimensão

dialética é explicitada no plano teórico-operativo (como questão a ser enfrentada)

com a emergência da vertente intenção de ruptura.

Tal explicitação torna-se mais evidente pela ênfase nos processos

democrático-pluralistas quando se apresenta a perspectiva de coletivização do

poder, a perspectiva de superação das formas de exploração e de dominação

existentes.

Em nossa opinião, nessa perspectiva, há que se considerar a relação dialética

entre o Projeto de Ruptura, apropriado na intervenção profissional, e os interesses,

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as necessidades dos sujeitos, dos usuários, dos demais técnicos bem como as

possibilidades de sua expressão no campo das tensões e das relações de poder

existentes. Nesse sentido, podemos nos questionar em que medida o Projeto de

Ruptura possui conteúdos que se apresentam também como referências teórico-

operativas relevantes para os usuários e para as organizações nas quais os

assistentes sociais se inserem.

A nosso ver, o conteúdo que se destaca na enunciação do Projeto de Ruptura

é a sua potencialidade, em termos de incitar ou de engendrar práticas grupais ou

organizacionais democrático-pluralistas. E também nessa direção, a compreensão

da dialética sujeitos/grupos ou assistentes sociais/organizações pode oferecer

contribuições teórico-operativas importantes.

A construção de Pichon-Rivière nos auxilia através do conceito de tarefa, que

é um dos analisadores quanto ao comprometimento mútuo entre os sujeitos e os

grupos nos quais se inserem. À medida que o grupo produz, os sujeitos estão sendo

produzidos nesta relação, e nesta ação recriam o grupo, seus horizontes e suas

práticas comuns. A estagnação das ações, as quais perpetuam a fixação em

determinados procedimentos anacrônicos indica a submissão dos sujeitos (ou a

permissividade dos sujeitos) e sua dificuldade de implicação explícita nas decisões

que lhes dizem respeito, indicando problemas na própria organização ou nas formas

sócio-institucionais em que se inserem.

A intervenção profissional nesses processos beneficia-se da perspectiva dialética ao

deixar de reproduzir a perspectiva de unidade e coesão grupal como horizonte predominante,

pela submissão dos sujeitos ao projeto grupal/coletivo, buscando compreender os modos

através dos quais as implicações dos sujeitos são expressas. Nesse sentido, a não-implicação

ou o não-envolvimento ou a não-participação indicam um tipo de implicação às avessas, um

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comprometimento subliminar com a estagnação da própria organização ou das formas sócio-

institucionais em presença.

Também é preciso descobrir os benefícios da estagnação, ou desvelar os

interesses em seu enrijecimento e sua relação com as hierarquias criadas e com os

sujeitos e os grupos envolvidos.

Em terceiro lugar, ao finalizarmos o Capítulo 3, foi-nos possível

apreender o próprio movimento profissional em suas implicações

enquanto processo grupal. Como indicamos no Capítulo 1, a prática

dos assistentes sociais, no Movimento de Renovação do Serviço

Social no Brasil, a partir da perspectiva de ruptura, tornou-se

inteligível como prática grupal/coletiva pela afirmação de novas

referências teórico-metodológicas e ético-políticas para a intervenção

profissional.

A noção de Projeto enuncia essa apropriação realizada pela intenção de

ruptura no sentido de afirmar-se como uma nova referência instituindo novas formas

de organização do movimento dos assistentes sociais estabelecendo-se teórico-

metodologicamente, em oposição e como alternativa às práticas

tradicionais/conservadoras a partir do desvelamento quanto ao seu

comprometimento político-ideológico com as estratégias de preservação da ordem

social e do status quo dominantes.

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Ao realizar esse desvelamento, as proposições da vertente de ruptura se

apresentam como portadoras e porta-vozes de todos os que sofrem a opressão e a

dominação social na própria carne: os dominados e explorados, os subalternos, os

excluídos, os miseráveis, os discriminados, etc.

Desse modo, essa perspectiva apresenta os assistentes sociais ao lado das

estratégias populares de enfrentamento a todas as formas de poder constituídas. O

que posiciona os assistentes sociais ao lado da boa luta, do bom combate, ao lado

do Bem.

Esta dimensão, que atravessa o Projeto dos assistentes sociais, ao lado de

sua configuração ético-política, aponta para a convergência ideológica que

contempla diferentes conteúdos presentes no imaginário da profissão e nas

expectativas afetivas dos usuários em relação à proteção/amparo, às suas

reivindicações mais imediatas de atenção, cuidado e de acesso aos recursos

materiais de que necessita para continuar existindo física e espiritualmente.

Esta dimensão ideológica da intervenção profissional envolveu a construção

de novas subjetividades a partir das referências à militância católica, mas também,

forjou-se, concretamente, face aos problemas enfrentados pelo Serviço Social, os

quais expõem os profissionais às várias estratégias de sobrevivência de inúmeras

pessoas miseráveis e empobrecidas; trabalhadores empregados, desempregados;

ou com poucas possibilidades de transformar sua potencialidade criativa em meios

de subsistência.

Pensamos que esta ideologia potencializa atitudes ousadas dos assistentes

sociais diante das relações de poder constituídas, encorajando posicionamentos

firmes de enfrentamento às situações de abuso de poder, desrespeito aos direitos

juridicamente reconhecidos etc. Combinado com os fragmentos apropriados da

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teoria social marxista – tais como a oposição entre capital e trabalho, a exploração

da força de trabalho pelo capital, a expropriação dos meios de sobrevivência dos

trabalhadores, entre outros – a ideologia reproduz sua eficácia simbólica, agora

racionalmente fundamentada. Entretanto, pode promover potencialmente, também,

imaginários messiânicos, atitudes isoladas, voluntaristas e “suicidas” quanto às suas

possibilidades de gestar movimentos revolucionários ou movimentos de ruptura.

Por outro lado, esta dimensão ideológica que nos atravessa (enquanto

assistentes sociais), se não for apreendida e analisada com cuidado, pode

comprometer nossa capacidade crítica, no sentido de percebermos as contradições

que perpassam a nossa inserção sócio-institucional nas sociedades capitalistas.

Se nos posicionarmos de forma idealizada e monoliticamente ao “lado do

Bem”, os que não estão ao nosso lado, posicionam-se ao “lado do Mal”. Este

maniqueísmo pode resultar em implicações ético-políticas severas, e comprometer,

endogenamente, as construções democrático-pluralistas vislumbradas em nosso

Projeto Ético-político.

A explicitação destes mecanismos ideológicos grupais e institucionais pode

contribuir para a compreensão crítica e para transcender este imaginário, superando

atitudes mecânicas que possam reproduzir a dualidade e a polarização.

Outras nuances ideológicas podem ser evocadas, como por exemplo, quanto

às possibilidades de convivência democrático-pluralista, de coletivização do poder,

de exercício radical da democracia como uma prática comum aos seres humanos

nas sociedades futuras, constituídas pelo fim das desigualdades econômicas e pelo

acesso eqüitativo aos bens e serviços produzidos.

Tais expressões ideológicas constituem uma reserva das ações produzidas

em comum, um dispositivo construído em comum e apropriado subjetivamente. O

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compartilhamento em torno de uma ideologia indica a pertinência ao grupo.

Entretanto, se exacerbada, pode criar imaginários compactos que podem reprimir a

emergência de quaisquer outras expressões ideológicas, matando a possibilidade de

transformação dinâmica do próprio grupo em torno de novas ações em comum.

Contudo, este é um tema para novas pesquisas. Neste momento, importou-

nos atentar para a necessidade da perspectiva crítico-dialética e histórico-material

sobre grupos (com os conteúdos que encontramos durante a elaboração deste

texto) como recursos fecundos para engendrar respostas teórico-operativas

democrático-pluralistas para a práxis social em geral e para a prática profissional do

serviço social, em particular.

Concluído este momento da pesquisa somos levados a realizar uma

avaliação crítica do processo.

Durante a elaboração deste texto, muitas questões permaneceram em aberto.

É claro que a complexidade do tema em foco e a abordagem exploratória proposta

para lidar com ele contribuíram para isto.

Por outro lado, esta “inconclusão do tema” nos motiva à continuidade da

pesquisa, tanto para aprofundar o que nesta tese tratamos exploratoriamente,

quanto para ampliar o diálogo e o debate com um número maior de interlocutores.

Também neste trabalho buscamos identificar algumas referências de

leituras capazes de fundamentar o trabalho profissional com grupos no

Serviço Social, tornando estas referências mais acessíveis aos

estudantes e aos assistentes sociais recém-formados, os quais tendem

a possuir pouca vivência em termos da inserção sócio-ocupacional da

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profissão e dos problemas comuns à intervenção profissional e ao

trabalho com grupos.

No itinerário adotado aqui, identificamos os seguintes problemas e limitações:

a) Foi impossível avaliar em toda a amplitude necessária a circunscrição dos textos

trabalhados dentro do conjunto da obra dos diferentes autores e do contexto

histórico em que foram produzidos, bem como do debate acerca das inúmeras

implicações históricas, teóricas e políticas destes textos. Nesse sentido, procedemos

seletivamente aos aspectos significativos para nós, na perspectiva de nossa

inserção sócio-institucional como assistente social brasileira;

b) Existe uma tensão permanente entre os grupos compreendidos em sua práxis

histórica – continuamente aberta às inúmeras possibilidades (passíveis de previsão)

e ao inusitado (o que escapa às previsões em um determinado momento histórico) –

e a sua inteligibilidade teórico-operativa. Mesmo através da perspectiva dialética,

ainda pudemos identificar riscos de redução na análise das referências teóricas

apreendidas, por uma fixação no momento da análise/apreensão/apresentação

esquemática, o que muitas vezes dificulta o acesso às várias apropriações em

andamento ou à fidelidade ao movimento. Mesmo fundamentada no método

dialético, a perspectiva teórico-operativa – na dimensão em que se constitui

enquanto referência para as intervenções profissionais, entre elas, para o trabalho

profissional com grupos – corre o risco de fixar-se como conhecimento acumulado a

priori e como “conjunto de técnicas e instrumentos”, que, se considerados em si

mesmos, reforçam a artificialidade na abordagem dos grupos, em detrimento de

suas implicações concretas e de suas práticas efetivas. Esta tensão está presente

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em nosso texto e percebemos nossa expectativa de “fixar” determinados

procedimentos, determinadas referências teórico-operativas na intenção de

contribuir com algumas referências para intervenção profissional;

c) Os obstáculos epistemológicos foram muitos, referentes à apropriação de

conteúdos teóricos-operativos, já que constituem campos de conhecimento

complexos com léxico próprio. Por isso, decidimos nos ater às formulações do

Movimento Institucionalista e Grupalista em sua produção sócio-histórica, facilitando

o diálogo entre este e o movimento dos assistentes sociais brasileiros. No entanto,

reconhecemos a importância de ampliar nosso diálogo, no campo das produções

teórico-operativas sobre os grupos, incluindo as perspectivas onde a dimensão

histórica aparece de forma difusa (como na psicanálise freudiana, em seus textos

“sociais” ou na “obra social de Freud”: “Totem e Tabu”, “Moisés e o Monoteísmo”, “O

Mal-Estar da Civilização”, “O Futuro de uma Ilusão”), no sentido de compreender as

ambigüidades presentes nas práticas grupais, bem como, a formação do imaginário

compartilhado psiquicamente, subjetivamente, pelas pessoas envolvidas na prática

comum.

Em relação aos desdobramentos desta pesquisa observamos a possibilidade

de continuarmos problematizando, particularmente, as práticas grupais,

organizacionais, sócio-institucionais empreendidas no ensino de Serviço Social,

focalizando-as a partir dos processos grupais nelas desenvolvidos, relacionando-as

com as formas de intervenção apropriadas pelos assistentes sociais.

Dentro disso, esperamos continuar contribuindo para a qualificação do

trabalho profissional com grupos, sem reduzi-lo à sua dimensão técnico-

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instrumental, mas, fomentando formas de intervenção habilidosas em sua dimensão

técnico-operativa.

O Constante Diálogo

Há tantos diálogos Diálogo com o ser amado o semelhante o diferente o indiferente o oposto o adversário o surdo-mudo o possesso o irracional o vegetal o mineral o inominado Diálogo consigo mesmo com a noite os astros os mortos as idéias o sonho o passado o mais que futuro Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio Mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos. Carlos Drummond de Andrade

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