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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
PERIFERIA E CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR
DE AUTOR NA OBRA DE CÉSAR GONZÁLEZ:
Villas, empoderamento e representação de grupos alterizados
FABIANA OLIVEIRA DE SOUZA
Rio de Janeiro
2018
PERIFERIA E CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR
DE AUTOR NA OBRA DE CÉSAR GONZÁLEZ:
Villas, empoderamento e representação de grupos alterizados
Fabiana Oliveira de Souza
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como quesito para obtenção do
título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Literários Neolatinos - Literaturas
Hispânicas).
Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel
Rio de Janeiro
Agosto de 2018
PERIFERIA E CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR
DE AUTOR NA OBRA DE CÉSAR GONZÁLEZ:
Villas, empoderamento e representação de grupos alterizados
Fabiana Oliveira de Souza
Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel
Dissertação de Mestrado submetida ao programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos –
Literaturas Hispânicas)
Examinada por:
____________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ (orientador)
____________________________________________
Prof. Doutor Jailson de Souza e Silva – UFF
____________________________________________
Prof. Doutor Paulo Roberto Tonani do Patrocínio – UFRJ
____________________________________________
Prof. Doutor Víctor Manuel Ramos Lemus – UFRJ, Suplente
____________________________________________
Prof. Doutor Antonio Ferreira da Silva Júnior – UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Rio de Janeiro
Agosto de 2018
Souza, Fabiana Oliveira de.
Periferia e construção de um lugar de autor na obra de César González: Villas,
empoderamento e representação de grupos alterizados / Fabiana Oliveira de
Souza. - Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2018.
129 f.; 31 cm.
Orientador: Ary Pimentel
Dissertação (Mestrado) – UFRJ – Faculdade de Letras / Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas, 2018.
Referências Bibliográficas: ff. 110-116
1. Territórios periféricos. 2. Villa miseria. 3. Alteridade. 4. Representação. 5.
César González. I. Pimentel, Ary. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas. III.
Título.
RESUMO
SOUZA, Fabiana Oliveira de. Periferia e construção de um lugar de autor na obra de César
González: villas, empoderamento e representação de grupos alterizados. Rio de Janeiro, 2018.
Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) -
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os indivíduos invisibilizados na sociedade ocupam um espaço secundário quando
representados na literatura, pois a cidade letrada, povoada por sujeitos que falam a partir de
um lugar de raça, gênero e classe social, não tem olhos para a diferença. Contudo, abordagens
mais recentes, tanto da produção ficcional quanto da crítica literária, têm focalizado a
experiência dos que estão às margens da cidade e do campo literário, mas que, ainda assim,
conseguiram se expressar pela letra impressa ou pela imagem em movimento. Com
expedientes simbólicos que poderíamos definir como “astúcias do fraco” (Michel de Certeau),
os sujeitos da periferia se contrapõem aos discursos dominantes nos meios de comunicação e
na literatura contemporânea. Tomando a poesia de César González como objeto de estudo,
esta dissertação traz uma investigação sobre a representação de territórios periféricos – mais
concretamente as villas de Buenos Aires e as favelas do Rio de Janeiro – e de grupos sociais
alterizados que habitam os espaços informais dessas cidades. Propõe-se ainda uma visão
contrastiva entre a produção do escritor argentino e a de alguns nomes da emergente
Literatura Marginal Periférica brasileira. Esse rico conjunto de obras expõe as disputas
internas do campo literário diante do processo de assunção da voz de indivíduos
marginalizados que invadem a cidade letrada e reinventam as estratégias de pertencimento e
consagração de modo a viabilizar a construção de um lugar de autor para si e para seus iguais.
Recorrendo à discussão de outras áreas do conhecimento, abordamos o território como um
conceito que carrega em si a ideia de poder, seja pelo sentido material (de dominação) ou
simbólico (de apropriação). Além disso, convocamos a noção de potência da periferia, que
transfere o foco da representação dos territórios e sujeitos dessas regiões da cidade para seus
aspectos positivos, bem como para a capacidade inventiva e de organização de seus
moradores. Dialogamos, ainda, com a concepção de alteridade enquanto forma de distinguir
um eu de um outro que não é visto como um semelhante, refletindo sobre as possibilidades de
fala de sujeitos alterizados que problematizam, assim, a própria condição de subalternos.
Palavras-chave: Territórios periféricos. Villa miseria. Alteridade. Representação. César
González.
RESUMEN
SOUZA, Fabiana Oliveira de. Periferia e construção de um lugar de autor na obra de César
González: villas, empoderamento e representação de grupos alterizados. Rio de Janeiro, 2018.
Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) -
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Los individuos invisibilizados en la sociedad ocupan un espacio secundario cuando se
los representan en la literatura, pues la ciudad letrada, poblada por sujetos que hablan desde
un lugar de raza, género y clase social, no tiene ojos para la diferencia. Sin embargo,
abordajes más recientes, tanto de la producción ficcional como de la crítica literaria, viene
enfocando la experiencia de los que están a los márgenes de la ciudad y del campo literario,
pero que, aun así, lograron expresarse por la letra impresa o la imagen en movimiento. Con
expedientes simbólicos que podríamos definir como “astucias del débil” (Michel de Certeau,
1998), los sujetos de la periferia se contraponen a los discursos dominantes en los medios de
comunicación y en la literatura contemporánea. Tomando la poesía de César González como
objeto de estudio, esta tesis trae una investigación sobre la representación de territorios
periféricos – más concretamente las villas de Buenos Aires y las favelas de Rio de Janeiro – y
de grupos sociales alterizados que habitan los espacios informales de esas ciudades. Se
propone aun una visión contrastiva entre la producción del escritor argentino y la de algunos
nombres de la emergente Literatura Marginal Periférica brasileña. Ese rico conjunto de obras
expone las disputas internas del campo literario ante el proceso de asunción de la voz de
individuos marginalizados que invaden la ciudad letrada y reinventan las estrategias de
pertenencia y consagración de modo que viabilicen la construcción de un lugar de autor a sí
mismo y a sus iguales. Recurriendo a la discusión de otras áreas del conocimiento, abordamos
el territorio como un concepto que lleva adentro la idea de poder, sea por su sentido material
(de dominación) o simbólico (de apropiación). Además, convocamos la noción de potencia de
la periferia, que desplaza el enfoque de la representación de los territorios y sujetos de tales
regiones a sus aspectos positivos, bien como a la capacidad inventiva y de organización de sus
residentes. Dialogamos, aun, con la concepción de alteridad como forma de distinguir un yo
de otro que no se ve como un semejante, reflexionando sobre las posibilidades de habla de
sujetos alterizados que problematizan, de ese modo, la propia condición de subalternos.
Palabras-clave: Territorios periféricos. Villa miseria. Alteridad. Representación. César
González.
ABSTRACT
SOUZA, Fabiana Oliveira de. Periferia e construção de um lugar de autor na obra de César
González: villas, empoderamento e representação de grupos alterizados. Rio de Janeiro, 2018.
Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) -
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Invisibilized individuals in society occupy a secondary space when they are
represented in the literature, because the literate city, populated by subjects who speak from a
place of race, gender and social class, does not have eyes for the difference. However, most
recent approaches, both fictional production and literary criticism, have been focused on
experience of those who are on the margins of the city and the literary field but, despite this,
they could express themselves by the printed letter or by a moving image. With symbolic
strategies that we may define as “tactics of the weak” (Michel de Certeau, 1998), the subjects
of the periphery confront the dominant discourses in the medium and in the contemporary
literature. Approaching the César González’s poetry as object of study, this dissertation
presents a research about representation of peripheral territories – more specifically the villas
in Buenos Aires and the slums in Rio de Janeiro – and of the altered social groups who live in
informal spaces of these cities. It is also proposed a contrastive view between the production
of the Argentine writer and that of some names of an emerging Brazilian Literatura Marginal
Periférica. This rich set of works exposes the internal disputes of the literary field before the
process of assumption of the voice of marginalized individuals who invade the literate city
and reinvent the strategies of belonging and consecration in order to make possible the
construction of a place of author for themselves and their peers. Using the discussion of other
areas of knowledge, we approach the territory as a concept that carries within itself the idea of
power, either by the material sense (of domination) or symbolic (of appropriation). Besides
that, we summon the notion of periphery’s power, which shifts the focus of the representation
of territories and subjects of these regions of the city to their positive aspects, as well as to the
inventive and organizational capacity of its residents. We also dialogued with the conception
of alterity as a way of distinguishing I from other that is not seen as an equal, reflecting on the
possibilities of speech of altered subjects who thus problematize the own condition of
subalterns.
Keywords: Peripheral territories. Villa miseria. Alterity. Representation. César González.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, à minha mãe, Marilene, a quem eu devo desde a própria
vida até cada um dos êxitos alcançados nela. Uma mulher guerreira e sonhadora, em quem me
inspirei para ser a mulher que hoje sou, a principal responsável por eu ter dado os passos que
dei nos meus estudos; alguém que, mesmo com todas as dificuldades, se sacrificou para nunca
abrir mão de oferecer a mim e aos meus irmãos até mesmo o que ela não pode ter.
À minha avó Maria (in memoriam), minha segunda mãe. Mulher simples, forte,
sonhadora e corajosa que veio para o Rio de Janeiro e me deixou de herança seu sangue
cearense, sua garra e seu exemplo. Apesar de não ter estado aqui fisicamente para
acompanhar esta etapa da minha vida, sei que sempre me protegerá e torcerá por mim, de
onde estiver. Sou muito agradecida por todo carinho, cuidado, amor e respeito com que
sempre fui tratada, pois foi o que tornou minha infância e adolescência mais prazerosa.
À minha irmã, Débora, companheira para todas as horas (todas), agradeço por ser a
melhor amiga que eu poderia ter e que eu jamais seria tão exigente para pedir ao universo.
Sempre penso no quanto sou sortuda em ter sido a escolhida para receber esse presente, diante
desse mar de gente que poderia te ter. Agradeço por ser a única a quem eu sempre pude
revelar qualquer segredo, quem sempre enxugou minhas lágrimas (e não foram poucas!),
quem me fez e faz viver um amor incondicional. Somente nós sabemos o quanto significamos
uma para a outra.
Agradeço ao meu marido, Andreson, por ser, acima de tudo, meu amigo. Um ser
humano incrível, um homem dedicado, guerreiro, vencedor; uma pessoa que não sei se
admiro mais pela história de vida ou pela bondade que conseguiu conservar intacta a despeito
de tudo pelo que já passou. Agradeço, ainda, por sempre ter acreditado em mim, muitas vezes
quando nem eu tinha mais fé, por ter me incentivado a seguir com todos os meus projetos e
por ter me ajudado sempre que precisei. Você vai ser sempre aquele certo alguém que cruzou
o meu caminho e me mudou a direção.
Ao meu irmão, Matheus, meu pai, Fábio, e aos familiares e amigos que sempre
estiveram por perto e me deram a mão quando puderam, acompanhando minhas lutas e
torcendo por mim em cada etapa. Agradeço pelo afeto e pelas boas risadas que me
proporcionaram, me ajudando a recuperar o fôlego para seguir para mais uma batalha.
Ao Professor Doutor Ary Pimentel, o mesmo Ary em quem me inspirei para a escolha
do curso de Letras Português-Espanhol depois das aulas ministradas e rodas de leitura
organizadas ainda no curso pré-vestibular do CEASM; o mesmo Ary a quem tive a honra de
entregar, cinco anos depois, a placa de Professor Homenageado de Espanhol; o mesmo de
sempre, professor e parceiro, competente, dedicado e apaixonado pelo ofício. Obrigada por
ainda ter sido aquela mesma pessoa que conheci em 2005 quando fui procurá-lo, dez anos
depois, para ser meu orientador: um ser humano incrível, tão exigente e incentivador de
leituras que me fez precisar de uma nova estante. Agradeço, do mesmo modo, por ter sempre
confiado em mim e por ter me auxiliado, em todas as etapas desta dissertação, bem como com
minha entrevista com o poeta e diretor de cinema César González.
Agradeço aos professores que aceitaram fazer parte desta banca, os Professores
Doutores Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, Jailson de Souza e Silva, Antonio Ferreira da
Silva Júnior e Víctor Manuel Ramos Lemus. É uma honra tê-los como interlocutores, pois são
professores que eu respeito e admiro como profissionais e como seres humanos.
Ao poeta César González pela entrevista que nos concedeu e que foi de suma
importância para esta pesquisa, uma vez que ajudou a rever determinadas análises que vinham
sendo feitas e a corroborar algumas outras.
A todos que, de alguma forma, contribuíram para que este sonho se realizasse. Quando
falo disso, não consigo deixar de pensar, imediatamente, na oportunidade que tive ao estudar
em um pré-vestibular popular, o CEASM. Sem ter passado por esse lugar, certamente não
teria chegado à Graduação em uma universidade pública. Estando muito claro para mim que o
discurso meritocrático é uma falácia, sei perfeitamente que não basta querer para conquistar
algo, que eu não criei essa oportunidade, que eu não conseguiria nada sozinha, sem o apoio
das pessoas e instituições junto as quais construí minha caminhada.
DEDICATÓRIA
À Débora, irmã de sangue e de alma.
Ao Andreson, amigo, amor e maior incentivador deste projeto.
Ao Matheus, irmão e amigo, à sua maneira.
Aos meus pais e familiares, que cresceram à margem, como eu.
À Marielle Franco, potência que tentaram anular e que só se multiplicou:
mais uma voz feminina que emerge do território da favela
para falar à cidade; uma das sementes plantadas pelo CPV.
Porque Marielle não era uma só.
Somos multidão.
en el pasado salí a robar
y el humo de la pólvora
señalaba mi destino
hoy la poesía
es el piso que camino
César González
Fui crime, sou poesia.
Grafite em um muro do bairro de Botafogo.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
1. EMPODERAMENTO E ESTRATÉGIAS DE REPRESENTAÇÃO .................. 20
1.1. Representação de territórios periféricos ................................................................ 20
1.2. Representação de grupos alterizados .................................................................... 33
1.3. Subalternos, periféricos e marginais ...................................................................... 38
1.4. Periferias de Buenos Aires e villas miseria ........................................................... 44
2. A PRODUÇÃO LITERÁRIA VILLERA E FAVELADA: UMA ABORDAGEM
COMPARATISTA .................................................................................................... 53
2.1. Ferréz, Sérgio Vaz, Geovani Martins e Eliana Sousa Silva .................................. 57
2.2. Juan Diego Incardona, Walter Hidalgo, Wk e Leonardo Oyola .............................. 71
3. O OLHAR POÉTICO E CRÍTICO DE CAMILO BLAJAQUIS / CÉSAR
GONZÁLEZ ............................................................................................................... 83
3.1. O contexto de produção de suas obras .................................................................. 85
3.2. A escrita como redenção, resistência e emancipação ........................................... 91
4. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CÉSAR GONZÁLEZ ............................... 99
4.1. O lugar de autor reivindicado .............................................................................. 103
CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 110
APÊNDICE ........................................................................................................................... 117
13
INTRODUÇÃO
“Es más peligroso un pibe que piensa que un pibe que roba”. Com essa frase César
González abre seu primeiro livro, La venganza del cordero atado, publicado em 2010.
Embora possa soar como um clichê ou parecer óbvio demais, não é fácil convencer as pessoas
da ideia presente nesse enunciado, pois, para isso é necessário admitir que o segundo “pibe”
(aquele que carrega um revólver ou uma pistola) está tão armado quanto o primeiro (o que
armou seu pensamento com os livros). A resistência a reconhecer essa equivalência entre os
livros e as armas de fogo implica o não reconhecimento da formação de leitores críticos como
uma das ferramentas que possibilitam a transformação dos indivíduos e da sociedade de um
modo geral. No contraponto dessa posição, o que a frase de César González traz é a defesa
intransigente da potência da leitura. Dependendo de onde nasceram – por “onde” entenda-se
tanto a cidade quanto o bairro e o núcleo familiar –, as pessoas terão mais ou menos incentivo
à prática leitora, o que também determinará se enxergarão na educação, desde cedo, um
caminho para a liberdade.
Descobrir César González e ler suas obras, sentindo um desconforto a cada página, foi
uma forma de reabastecer a consciência de que precisamos lutar por nossos espaços e
desconstruir o que um suposto destino nos reservou. Esta pesquisa é o resultado, antes de
tudo, de uma série de desconstruções, de um rompimento de barreiras que se deveu à ação de
muitas mãos. Obstáculos como a pobreza, bem como a consequente falta de referências
intelectuais na própria família, muitas vezes nos fazem olhar o mundo de maneira limitada,
levando-nos a ignorar a imensidão de oportunidades e a potência que nos cerca. Em função
disso, as imagens do território onde crescemos e a história de nossos familiares e vizinhos têm
uma forte influência sobre o modo como nos veremos e sobre os sujeitos que pretenderemos
ser. Mas esses fatores de influência não determinam o que podemos chegar a ser, porque
existem infinitas brechas que nos permitem moldar o futuro diferente daquele que se prefigura
nos fatores dominantes do cenário.
Há alguma coisa errada na estrutura de uma sociedade na qual milhares de jovens
crescem em um bairro vizinho ao campus de uma universidade pública, separados por um
estreito canal de águas turvas, e nunca frequentaram essa ilha do conhecimento universal, nem
sequer chegarão a saber de sua existência. Não, não fomos nós que descobrimos a pólvora.
Alguém já havia notado essa incoerência há pelo menos vinte anos. Foram sujeitos que,
habitando um dos territórios do conjunto de favelas da Maré, tiveram a capacidade de se
14
indignar com essa realidade e resolveram unir esforços para agir em favor daqueles que, como
eles próprios, até bem pouco tempo atrás, eram excluídos do espaço da academia, visto não
como um direito de todos, mas como um privilégio de poucos. A consequência concreta dessa
indignação foi a criação de um curso pré-vestibular que tinha como público alvo os moradores
da região. Um grupo de jovens ocupou o salão de uma igreja católica e começou a dar aulas
no longínquo ano de 1998. O resto é história. Aí surgia o Centro de Estudos e Ações
Solidárias da Maré (CEASM), que agora reverbera nas páginas desta pesquisa, na qual uma
mestranda vê, na caminhada de tantos outros, uma parte da sua própria caminhada: o longo
percurso que leva da favela à universidade, passando antes pelo CPV (Curso Pré-vestibular)
do CEASM (depois REDES da Maré), etapa fundamental para tantos que ingressaram num
curso superior graças àquela utopia. O CEASM surge, assim, como um movimento
transformador que inicia de forma tímida para logo ampliar sua esfera de ação, gerando
resultados impressionantes, como a criação de espaços de valorização da memória e resgate
da história das favelas que integram a Maré, bem como, e não menos importante, a formação
de pensadores que defenderam TCCs, dissertações de Mestrado e teses de Doutorado sem
jamais esquecer de suas raízes. Ao contrário, investiram no reconhecimento e na valorização
do pertencimento em lugar de negar o território periférico e a vida na favela.
Escrever sobre a favela é uma forma de retornar constantemente a ela e de permanecer
neste lugar, não fisicamente, mas de modo simbólico. O sentimento de pertencimento a um
território é uma etapa fundamental para a formação da identidade e para o surgimento de uma
outra subjetividade. O sujeito periférico, ao construir saberes no espaço reservado a
intelectuais, desloca-se pelo corpo da cidade e desloca com ele novos lugares da cultura,
outras memórias, outras histórias e uma agência inusitada. Esse é um aporte ao mundo
universitário que não pode ser menosprezado. A consequência mais provável de tudo isso é
um tipo de produção textual que se faz a contrapelo, que vai na contramão do cânone e
provoca ruídos, mas estimulará outros pesquisadores que se identificarão com seus ecos.
Embora essas reflexões não tivessem sido abandonadas, estavam bastante
adormecidas, e a obra de González foi responsável por despertá-las e trazer novo ânimo para a
caminhada. Sua poesia interferiu não só neste estudo acadêmico, mas na própria trajetória de
uma debutante pesquisadora, cujas experiências como favelada, nascida e criada na Maré, se
veem refletidas em muitas das páginas de um poeta villero, fator não menos importante para
despertar seu interesse pelo tema sobre o qual se debruçaria. Cabe, portanto, nesse primeiro
momento, registrar os caminhos percorridos por nossa investigação.
15
Com o objetivo de contribuir com as pesquisas sobre as vozes de sujeitos
subalternizados latino-americanos, além de estimular o olhar para esse tipo de corpus na
academia, nos propusemos a analisar o ethos dos moradores de uma villa de Buenos Aires
pelo ponto de vista de César González. Desde o início, sabíamos que nos dedicaríamos a
pensar os modos de representação de territórios marginalizados, mas houve uma alteração no
corpus – o que, contudo, não alterou a essência do projeto. Antes, a ideia era apreciar dois
casos da periferia de Buenos Aires e lê-los juntamente com dois outros sujeitos produtores de
discurso oriundos da favela de Nova Holanda, uma das dezesseis que integram o conjunto de
favelas da Maré. Para isso, selecionamos algumas poesias de César González (parte
representativa da obra), alguns contos de Juan Diego Incardona, o livro Testemunhos da
Maré, de Eliana Sousa Silva, e um conjunto de registros do fotógrafo Bira Carvalho. Devido à
exiguidade do tempo de uma pesquisa de Mestrado, pareceu-nos mais prudente centralizar
nossos estudos em um dos casos e explorá-lo mais em profundidade, referindo-nos a outros na
medida em que a leitura da obra escolhida como corpus convocasse o diálogo.
César González – o caso em que decidimos concentrar nossas reflexões – é um jovem
escritor e diretor argentino que já em seu primeiro livro constrói para si uma identidade
estruturada em torno do pseudônimo Camilo Blajaquis. Esse nome comporta uma dupla
referência: traz a homenagem ao revolucionário cubano Camilo Cienfuegos e ao militante
sindical argentino Domingo Blajaquis, assassinado em 1966 numa pizzaria em Avellaneda e
resgatado do esquecimento pelo escritor e jornalista Rodolfo Walsh.
Nascido na villa1 Carlos Gardel, em Morón, Região Metropolitana de Buenos Aires, e
tendo concluído a educação primária sem interrupções, passou a ter mais afinidade com a
literatura enquanto estava detido em uma instituição para menores infratores por haver
cometido uma série de delitos, razão pela qual é chamado de “ex pibe chorro” (ex-garoto
ladrão) por quase todos os jornalistas que contam, mesmo que de forma resumida, a sua
história. A partir da experiência carcerária, César González repensa sua trajetória e
problematiza a lógica de uma sociedade que produz incessantemente “refugos humanos”
(BAUMAN, 2005). Escreve, nesse momento, seu primeiro livro de poesias, La venganza del
cordero atado, mencionado anteriormente, com textos elaborados em diferentes momentos e
em diversos centros de detenção pelos quais passou (ao longo de cinco anos). Partindo da
análise de sua obra e observando a trajetória deste sujeito e o processo de formação de seu
1 Ou villas miseria, villas de emergencia, como são chamadas as favelas de Buenos Aires, tradução nossa.
16
pensamento crítico e de sua figura de autor no campo literário, dissertaremos sobre as
figurações da villa e dos villeros em sua poesia.
Uma vez que se trata de um corpus ainda pouco explorado na Argentina e totalmente
inexplorado no Brasil, pretendemos com essa pesquisa contribuir para a área dos Estudos
Literários e para o campo das Pesquisas Sociais em Periferias, mais particularmente para os
estudos sobre representações dos territórios periféricos, suscitando novos trabalhos que se
dediquem a apresentar e estudar os discursos produzidos em villas e favelas. O possível
interesse a ser despertado pela originalidade do nosso recorte pressupõe a transformação do
próprio espaço universitário, algo que já se observa, mesmo que lentamente. E esta é uma
realidade inevitável, pois a geração contemporânea de pesquisadores, composta por
estudantes favelados que resolvem investir na potência de escritores de territórios periféricos
– e nas novas representações que propõem – ilumina uma cena cultural periférica que já vem
mudando a própria cara da pesquisa acadêmica, tanto pelo recorte identitário desses novos
pesquisadores e dessas novas pesquisadoras quanto pelos objetos de pesquisa que vêm se
revelando, âmbitos que não estão desvinculados. Com isso, podemos afirmar que as periferias
e o ambiente acadêmico estão cada vez mais interligados, não só pela chegada de figuras,
outrora excluídas do mundo acadêmico, a esses terrenos improváveis, mas também pela
aproximação acarretada pelo fato de tomarem seu lugar de origem como ponto de partida para
as investigações que farão, trazendo com isso um aporte instigante e revitalizador. A nossa
escolha por um escritor villero, diante de uma considerável lista de autores canônicos, revela
o reconhecimento e a valorização das áreas marginalizadas da cidade (a exemplo das villas e
favelas) como outros “lugares de cultura” – expressão de Homi Bhabha (1998) –, base que
nos impulsionou a um continuado investimento ao longo de dois anos e meio, culminando
com um deslocamento até o território de César González em Buenos Aires, a fim de realizar
uma entrevista com o poeta da villa Carlos Gardel.
Da mesma forma, há uma série de pesquisadores que se dedicaram e se dedicam à
temática das periferias, de sua representação na literatura brasileira e de autores e autoras
oriundos desses territórios que também propõem um discurso representativo através do texto
literário. As pesquisas mais recentes foram as que influenciaram este trabalho, sem que se
tenha desconsiderado as que se realizaram anteriormente. Tratou-se apenas de um recorte que
se justifica pelo fato de corresponderem (as mais atuais) a observações mais detalhadas a
respeito de autores que citaremos nesta dissertação, e aos tipos de representação que são
fundamentais para o debate que tencionamos suscitar.
17
Recuperamos as contribuições de Érica Peçanha, Paulo Roberto Tonani do Patrocínio,
Lucía Tennina e Regina Dalcastagnè. Os três primeiros, para fazer uma análise mais focada
em dois dos casos brasileiros que fizeram parte de nossa investigação, Ferréz e Sérgio Vaz e
suas respectivas obras; a última, pelas diferentes perspectivas apresentadas sobre
representações da margem e de sujeitos alterizados na narrativa brasileira contemporânea.
Antes de contemplar nosso tema central, propusemo-nos a (re)leitura de obras sobre
assuntos mais gerais que atravessam os textos literários apreciados. Abordadas ao longo do
texto, questões como alteridade, marginalização e representação são essenciais para o
entendimento das dificuldades enfrentadas por escritores oriundos de zonas periféricas para se
inserirem e serem aceitos pelo campo literário.
Aqueles que, por serem letrados e acumularem um grande capital intelectual, sempre
tiveram autoridade para narrar os fatos ocorridos nas áreas mais pobres e esquecidas da
cidade, não eram os mesmos que os testemunhavam diariamente. Pretendendo criar um
contradiscurso alternativo, que desfaça essa injustiça no campo da representatividade, muitos
sujeitos de periferias vêm reclamando seu direito à fala e à escrita, produzindo textos (orais,
escritos e audiovisuais) que abordam temas pertinentes às experiências vividas nesses
territórios mantidos à margem daquilo que se consolidou como a “cidade letrada” (RAMA,
1998). Construindo para si um lugar de autoria, mostram um olhar sobre e desde a periferia,
em um acúmulo de papéis que subverte o modelo até então dominante: agora são,
concomitantemente, observadores e objetos da observação.
A fim de destacar o valor (especialmente simbólico) dessas produções, recorremos à
definição de Ileana Rodríguez (2000), para quem a simples presença dos subalternos (noção
que discutiremos mais profundamente no Capítulo 1) em espaços que historicamente lhes
foram e são negados muda seu significado cultural e, no momento em que essa figura
alterizada transgride o limite estabelecido para sua circulação e atuação, começa a exercer um
poder que reside na construção de uma autoridade epistemológica e na reconceitualização do
que viria a ser arte e literatura. Lucía Tennina defende essa mesma ideia ao afirmar que “ser
parte de un libro o publicar un libro autoral en el universo de la literatura marginal acarrea una
carga simbólica enorme vinculada a la conquista de un espacio históricamente negado a ese
grupo” (TENNINA, 2015, p. 137).
Apostamos na legitimidade literária das produções dos autores aqui contemplados e
destacamos que é inadiável o debate sobre a ampliação não só do espaço, mas também – e
18
essencialmente – da valorização da voz dos subalternizados, tanto dentro da academia quanto
no universo editorial, desde que não seja apenas por interesses de mercado.
Além dos assuntos mais gerais relativos aos processos de assunção de voz dos sujeitos
subalternizados, discorreremos sobre temas mais específicos como a representação da villa e
da favela, bem como sobre aspectos relativos ao território periférico e ao conurbano
bonaerense, igualmente imprescindíveis para uma pesquisa em que se discutem as formas de
representação desses espaços e das vidas que os constituem, seja pelos discursos
hegemônicos, seja pelas vozes de escritores que se projetam no campo literário a partir da
experiência da periferia.
Pontuamos de antemão que, embora tenhamos abordado questões como territórios
periféricos de Buenos Aires, a exemplo da áreas de conurbação e das villas de CABA (Ciudad
Autónoma de Buenos Aires), em função de sua estreita ligação com o tema e com o corpus
desta pesquisa, nosso interesse maior é a “villa vista” pelo autor, isto é, o modo como o poeta
vê e representa os assentamentos periféricos e, em particular, a villa Carlos Gardel, de onde
vem César González. Dito de outro modo, mais que pensar de modo geral os problemas do
“vivir en la villa”, a problematização da cidade e das villas que ecoa neste trabalho,
procuramos concentrar nossa atenção na forma como uma subjetividade bastante particular
viu e viveu a sua villa. Buscamos uma estratégia similar à de Carlo Ginzburg, em O queijo e
os vermes, obra na qual o historiador italiano realiza um exercício de micro-história,
sugerindo a microanálise de um caso bem específico: o de Menocchio, um moleiro friuliano
que não é uma representação de todos os camponeses daquela região ou do modo como
viviam no século XVI, tampouco traz informações sobre a vida dos outros moleiros desse
período histórico. É um caso único, visto em profundidade, a partir dos dados que a
documentação dos arquivos da Inquisição permite recuperar.
Outros dois textos compõem o marco teórico e se mostraram importantes para
desenvolver as problematizações que derivaram dessa abordagem. Ao nos perguntarmos sobre
a forma mais apropriada para nos referirmos a César González, consideramos as formas já
tradicionais que definem a subalternização dos sujeitos da periferia que são mantidos à
margem da cidade e do campo cultural letrado. Nesse momento, as discussões de Leopoldo
Zea, em Discurso desde a marginalização e a barbárie, e de Gayatri Spivak, em “¿Puede
hablar el subalterno?”, foram primordiais para a compreensão dos sentidos que estão por trás
de cada escolha. Falar de “periférico” pressupõe a existência de um centro que serve como
referência ao debate; enquanto que “marginal”, além de também estar em relação a um
19
referencial central, implica a discussão de um processo de marginalização que sofreram os
povos ou grupos dominados por outros, e não de uma marginalidade natural e irremediável; já
a ideia de “subalterno”, segundo Spivak (2003), pode ser aplicada aos indivíduos incapazes de
falar sem depender de um intermediário. Há outras abordagens para este tópico, mas que
serão desenvolvidas mais adiante.
Quanto à estrutura da dissertação, procuramos reservar os dois primeiros capítulos aos
debates teóricos e literários que giram em torno do objeto principal da pesquisa, dedicando os
dois seguintes à análise mais aprofundada desse corpus.
Optamos por iniciar com um capítulo sobre territórios periféricos, grupos alterizados e
as formas de representação desses lugares e sujeitos para que pudéssemos estabelecer uma
base para as discussões futuras, as quais passarão por esses temas inevitavelmente. O objetivo
foi dar destaque aos estudos que oferecem importantes subsídios para compreendermos o que
se entende por território, periferia e alteridade.
No segundo capítulo, faremos uma análise comparatista das obras de autores
brasileiros e argentinos, destacando (especialmente) as similaridades entre tais produções.
Além do diálogo entre os textos (seus temas e objetivos), buscamos contrastar o sistema
educacional de cada país diante da possibilidade de projeção de novos autores oriundos dos
territórios periféricos do Rio de Janeiro e de Buenos Aires.
Em seguida, passaremos ao estudo da “villa vista” de César González e do contexto
em que se constrói seu olhar poético e crítico, resultando na escrita de seu primeiro livro, a
partir do qual o autor usa a palavra como arma. Trataremos, ainda, da emancipação alcançada
através da literatura, baseando-nos na leitura crítica de sua obra literária em diálogo com sua
caminhada biográfica, visitando, brevemente, sua produção cinematográfica, a fim de
ressaltar a coerência de seu ativismo nos diferentes campos em que atua.
Finalmente, no quarto capítulo, trataremos do resultado a que chega o escritor
argentino pela construção de uma figura de autor através da reivindicação de uma identidade
villera e do enraizamento ao território da periferia, instituindo um novo lugar de autor na
literatura de seu país.
20
1. EMPODERAMENTO E ESTRATÉGIAS DE REPRESENTAÇÃO
Tout parle, cela veut dire aussi que les hiérarchies
de l'ordre représentatif son tabolies.2
Jacques Rancière
"Chi costruì Tebe dalle sette porte?" – chiedeva
già il “lettore operaio” di Brecht. Le fonti non ci
dicono niente di quegli anonimi muratori, ma la
domanda conserva tutto il suo peso.3
Carlo Ginzburg
A discussão sobre o empoderamento de grupos alterizados e as representações de
territórios periféricos está inserida em um contexto mais amplo que não só favorece como
exige o debate social, político e cultural acerca de produções textuais que se apresentam
enquanto discursos alternativos aos que circulam pelos canais hegemônicos. Essa produção
que disputa o relato da cidade caminha na contramão da construção de uma imagem
estigmatizadora dos territórios periféricos da metrópole e daqueles que aí vivem. Ao mesmo
tempo, esse contradiscurso ressignifica o lugar dos subalternizados e cria as condições para a
produção de um novo lugar de autoria e agência. Essa nova posição no cenário representativo
permite a ruptura da imagem depreciativa que se impôs de villeros e favelados a partir da
ideia de “ausência”, revelando, em vez disso, sua “potência” para atuar e transformar a
realidade, trazendo à tona a complexidade de seu modo de viver e de exercer a cidadania,
conforme defende Jailson de Souza e Silva (2012).
1.1. Representação de territórios periféricos
A representação dos territórios chamados periféricos que prevalece no imaginário
criado pelos ditos discursos dominantes caracteriza-se, no geral, por uma descrição pejorativa,
que despreza uma série de fatores relevantes para uma apreensão global do fenômeno de
villas e favelas.
2 “Tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram abolidas. “(Jacques
Rancière) 3 “«Quem construiu Tebas das sete portas?» - perguntava o «leitor operário» de Brecht. As fontes não nos
contam nada daqueles pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo seu peso.” (Carlo Ginzburg)
21
É no intuito de transformar o olhar lançado sobre esses territórios que surgem novas
formas de narrá-los. Podem ser encontradas, principalmente (mas não exclusivamente) na voz
de autores de procedência villera/favelada e que guardam um sentimento de pertencimento a
esses lugares. Assumindo essa identidade periférica, propõem outro discurso, a fim de
contrapor-se às falas que têm predominado, manifestando uma hierarquia entre os diferentes
lugares da cidade e, uma posição claramente política que criminaliza a diferença.
Um debate que deve anteceder ao da estigmatização das periferias é o que trata de
questões territoriais mais gerais, daí a complexidade do tema. Diferentes pesquisadores, a
partir de enfoques de área e segundo seus próprios interesses investigativos, explicam-nos o
que entendem por território, quais as implicações de cada conceituação, por que e como
ocorrem as disputas territoriais, com que outras temáticas esta dialoga, entre outras
abordagens.
O geógrafo Rogério Haesbaert (2008) propõe uma discussão profunda sobre a noção
de multiterritorialidade, utilizando-a como superação da ideia de desterritorialização.
Conforme sustenta o autor, esta última pode ser associada a uma espécie de mito, já que o
processo de transformação dos territórios e deslocamento dos sujeitos deve ser encarado como
reterritorializações, e não somente como desterritorialização, o que supõe um
desaparecimento dos territórios originais. Segundo Haesbaert, os indivíduos e grupos sociais
estão em constates e complexos processos de (re)territorialização, os quais ele intitula de
“multiterritorialização”.
Ademais, o autor comenta que o conceito de território pode assumir conotações
materiais e simbólicas, que vão condicionar o modo como os indivíduos se relacionam com o
espaço. Aqueles que circulam por um determinado lugar podem se conectar a ele através de
uma identificação (neste caso, positiva) que esse território inspira ou pelo sentimento de
apropriação, provocado pela experiência de vida naquele espaço. Seja pelo sentido material de
dominação (associado à propriedade) ou pelo simbólico de apropriação (um sentido ligado ao
que de fato se experenciou ali), território carrega em si a ideia de poder. E estes sentimentos
de território pela apropriação e pela dominação, devido à sua diversidade e complexidade,
constituem aquilo que nos permite considerá-lo múltiplo.
Mais que a diversos territórios, a multiterritorialidade diz respeito aos espaços
geográficos caracterizados pelas mais variadas representações sobre eles, deixando em
evidência as complexas relações sociais que eles comportam. O conceito de
multiterritorialidade também dá conta da impossibilidade de, ao discorrer sobre território,
22
tratar-se de forma dicotômica e excludente seus sentidos “funcional” – de dominação política,
cultural, econômica – e “cultural-simbólico” – de apropriação subjetiva – (HAESBAERT,
2008, p. 20). Recordando Lefebvre, o autor defende que
dominação e apropriação deveriam caminhar juntas, ou melhor, esta última deveria
prevalecer sobre a primeira, mas a dinâmica de acumulação capitalista fez com que a
primeira sobrepujasse quase completamente a segunda, sufocando as possibilidades
de uma efetiva “reapropriação” dos espaços, dominados pelo aparato estatal-
empresarial e/ou completamente transformados em mercadoria. (HAESBAERT,
2008, p. 20)
Dependendo do tipo de dominação sobre o qual estejamos debatendo, é de suma
importância pensar nessas categorias que o pesquisador associa ao território, pois exercer
poder sobre uma área (com suas complexidades e multiplicidades) é uma forma de controlar
pessoas e modos de relacionar-se, controlando e decidindo quem/o que pode fazer parte dela
ou por ela circular (física ou simbolicamente). Cabe destacar que tal controle pode assumir
diversos tipos e níveis de intensidade.
Refletindo sobre essas relações de poder que acompanham o território, o pesquisador
colombiano Carlos Zambrano (apud HAESBAERT, 2008, p. 28) afirma que “o território se
conquista”, sendo assim produto de “luta social convertida em espaço”. E é em cada um dos
múltiplos territórios “conquistados” que se manifesta a multiterritorialidade.
Essa territorialidade plural em sentido mais estrito, ou, “pós-moderna”, segundo
Haesbaert, resulta de um espaço marcado pela descontinuidade, fragmentação e
simultaneidade “de territórios que não sabemos mais onde começam e onde terminam” (2008,
p. 32), pois são diferentes territórios combinados. Por essa razão, devemos pensar no desafio
que carrega a seguinte indagação do autor: “como organizar movimentos políticos de
resistência através de um espaço tão fragmentado e, em tese, multi-escalar e... desarticulado?”
(HAESBAERT, 2008, p. 31). Isso seria possível porque um mesmo indivíduo ou grupo social
é capaz de pertencer e participar de múltiplos territórios ao mesmo tempo.
Quanto às implicações políticas do conceito de multiterritorialidade, Haesbaert discute
a importância de observá-la enquanto estratégia de poder. Acionar essa multiterritorialidade
depende dos recursos disponíveis para fazê-lo, os quais se encontram acessíveis apenas à elite
globalizada. Isso significa que os grupos sociais não pertencentes à elite estão mais próximos
de uma “multiterritorialidade potencial” (aquela que é possível de ser construída), enquanto
que esse pequeno grupo privilegiado alcança uma “multiterritorialidade efetiva”, que se
realiza de fato.
23
Como argumenta o geógrafo, “falar não simplesmente em desterritorialização mas em
multiterritorialidade e territórios-rede, moldados no e pelo movimento, implica reconhecer a
importância estratégica do espaço e do território na dinâmica transformadora da sociedade”
(2008, p. 36). É pensar o território para além da ideia tradicional de um lugar estável, estático
e homogêneo, com limites e identidades bem marcadas. Para uma forma eficaz de reconhecer
e respeitar as diferenças humanas que formam cada espaço geográfico, é imprescindível que
se lance um olhar para o tema a partir da perspectiva da multiterritorialidade, por ser mais
abrangente e capaz de dar conta da multiplicidade das manifestações que ocorrem em cada
território, material ou simbólico.
Na ocasião do seminário “O que é a favela, afinal?” – que resultou na publicação do
livro homônimo –, a problemática territorial também foi suscitada. Organizado em 2009 pelo
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro (localizado na favela de Nova Holanda, Maré), o
evento reuniu pesquisadores e representantes de diversas instituições interessados no debate
sobre o tema favela. O objetivo do encontro foi refletir sobre o conceito de favela e as
representações hegemônicas que se fazem sobre esse território, apresentando, por meio da
multiplicidade de olhares dos participantes, outras possibilidades de significado e de
representação do fenômeno como proposta alternativa ou, por que não dizer, contraproposta a
um discurso que estigmatiza a favela.
O seminário teve, ainda, um significado simbólico, por cessar a tradição de restringir o
debate a ambientes acadêmicos e levá-lo para dentro do espaço que serviu de inspiração para
o encontro: a própria favela. Além disso, ao (re)pensar a favela na perspectiva da urbanização
brasileira, discutiu-se sobre a diversidade e complexidade desse espaço e sobre a urgência de
legitimar-se a presença das favelas (e seus habitantes) na cidade, como forma de avançar na
criação de políticas públicas que respeitem, reconheçam e garantam seus direitos sociais.
Para os pesquisadores, além de as representações das favelas revelarem um estereótipo
desse território a partir da ideia de ausências “urbanas, sociais, legais e morais” (SILVA,
2009, p. 17), definindo-as a partir daquilo que ali não há ou daquilo que a favela não é,
também indicam uma homogeneização. Para contrastar esse discurso hegemônico, destacam
aspectos das favelas e dos favelados que caracterizam sua diversidade. De igual maneira,
descrevem as diferentes intervenções que já ocorreram (e ocorrem) nas favelas, garantindo
construção de escolas e postos de saúde e o fornecimento de serviços como água, iluminação
e coleta de lixo, frutos de reivindicações dos próprios moradores ou de projetos estatais cujo
objetivo era reordenar o espaço urbano.
24
Um dos pontos mais preocupantes dessa incoerência entre o imaginário que se
instituiu e o objeto representado é que essa “crise de representação” afeta os mais variados
setores da cidade, que acabam se orientando pelas conotações predominantes a respeito do
espaço periférico que é a favela. Daí é que surge a necessidade de construir uma
representação capaz de apreender o fenômeno em sua totalidade, identificando e respeitando
suas particularidades e seu caráter heterogêneo. A finalidade é criar uma conceituação que
propicie a elaboração de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento urbano, segundo
as reais necessidades do território.
As favelas não apenas são diversificadas em seu próprio interior e em comparação a
outras – seja de uma mesma cidade ou de cidades diferentes e mais distantes –, como também
se distanciam muito do que eram em seu momento embrionário, há mais de um século, e há
algumas poucas décadas. Como ressalta Gerônimo Leitão (2009), já nos anos 1940 havia
estudos que afirmavam a existência de particularidades destes assentamentos informais,
alertando sobre as disparidades “inter e intra favelas” da cidade do Rio de Janeiro, conforme
já mencionado. Portanto, é necessário desconstruir a visão que impera tanto no senso comum
quanto dentro de setores da administração pública e entre pesquisadores da cidade, que ainda
insiste em classificá-las como semelhantes (em sentido amplo e estrito).
O caminho para a resposta à indagação “O que é a favela?” é um verdadeiro labirinto,
posto que há várias maneiras de alcançá-la e nenhuma delas será simplista e de suficiente
abrangência, pelas razões já comentadas. Seja qual for o resultado a que se chegue, cabe
destacar que a mudança do significado atribuído ao significante “favela” é, acima de tudo,
produto da luta de seus moradores pela revisão do significado dessa categoria, passando a
constituir-se como meio de afirmação de sua identidade. Tal postura redefine as
representações sociais historicamente verificadas desse espaço de habitações populares, que
eram “construída[s] por intérpretes autorizados – entre os quais cronistas, jornalistas,
engenheiros e médicos –, como antítese de um certo ideal de cidade”, segundo Marcelo
Baumann Burgos (2009), quem nos lembra ainda que foi por volta de 1960 que começaram a
surgir cientistas sociais que lutaram pelo “direito à interpretação legítima da favela”,
identificando-a “como lugar, por excelência, da cultura popular”. Essa nova identificação
possibilita definir a favela pelo que é e pelo que não é, humanizando o conceito, além de ser
um grande passo para a elaboração de uma agenda de políticas públicas que provoquem
mudanças significativas na cidade.
25
Em consonância com essas intervenções acadêmicas, há também os movimentos
literários com o surgimento de escritores villeros e favelados. Ao construírem representações
de si mesmos, partem de um exercício criativo, político e cultural de imaginação (social e
coletiva) do que são as villas e as favelas (e seus respectivos habitantes). A partir do momento
em que esses escritores, fotógrafos e cineastas da periferia imaginam a si mesmos, tanto
villeros como territórios periféricos surgem como potência e não mais como o lugar da falta.
Referimo-nos à imaginação de que trata Benedict Anderson quando, ao dissertar sobre
as origens do nacionalismo, propõe a definição de nação como “uma comunidade política
imaginada”, limitada e soberana. O autor explica: “Ela é imaginada porque mesmo os
membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão
falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da
comunhão entre eles” (ANDERSON, 2008, p. 32). Igualmente, esclarece que se trata de uma
comunidade porque seus membros pressupõem um companheirismo, apesar das
desigualdades que possam marcá-la; é limitada porque possui fronteiras bem definidas – não
se imagina uma nação da qual toda a humanidade faça parte; e é soberana porque todas as
nações se projetam (se imaginam) como livres, sendo o Estado soberano o símbolo desta
liberdade.
Com os efeitos da mundialização, o conceito de nação se projeta para além da ideia de
país. Conforme afirma Arjun Appadurai (2001), a globalização provocou transformações na
modernidade, que experimentou grandes fluxos, principalmente os migratórios e os de
informações (este último, com o auxílio dos meios eletrônicos de comunicação). Tais fluxos,
quando justapostos, resultam no “trabalho da imaginação”, peça fundamental da subjetividade
moderna, na qual também interfere a memória (sobre a qual voltaremos outras vezes mais
adiante). Os indivíduos ou grupos que emigraram para diversas partes do mundo elaboram
seus próprios “mundos imaginados”, fruto de uma imaginação coletiva.
Esse “trabalho de imaginação”, seja por meio da memória, do apego ou do desejo, é
um campo de constantes disputas e negociações simbólicas, pois é o reflexo das
subjetividades desterritorializadas, que compõem um grupo de diferentes origens, etnias,
línguas, crenças, valores e ânsias; diferenças, em alguns casos, abissais.
Voltando as atenções para a convergência entre território, identidade e memória, Ary
Pimentel (2017) reflete sobre memória coletiva ou memória social “como resultado de uma
guerra de relatos ou representações que buscam assumir uma posição dominante ao longo de
um processo de muitas disputas”, lembrando que “é da experiência no cotidiano do território
26
que emerge a própria memória como construção social”, um movimento que envolve “a
identidade do «nós» e dos «outros»” (PIMENTEL, 2017, p. 327-328). Segundo o autor
(baseando-se em estudiosos como Maurice Halbwachs), o foco recai sobre um sentimento
coletivo porque as memórias pessoais implicam igualmente memórias sociais.
É imprescindível a existência de um território para que as lembranças construídas se
manifestem e os sujeitos que as produziram exponham sua existência, estabeleçam seu
passado e garantam seu futuro. Território, independente da maneira de conectar-se a ele, é
uma forma de poder, reforçando aqui o que afirmou Rogério Haesbaert, como já comentamos.
Dessa forma, o território pode ser analisado a partir de diversas concepções, sendo
umas associadas a questões materiais (“relações econômicas e de produção”) e outras,
ideológicas (relações simbólicas). Estas últimas são as concepções reivindicadas pelo diálogo,
proposto no artigo de Pimentel, entre memória e território. Como sublinha o autor, é no
território simbólico que se constroem as identidades, elas próprias responsáveis por atribuir
sentidos outros para esse espaço ocupado. Por isso, pode-se afirmar que um território é
formado, particularmente, “pelas relações que a população que o ocupa trava com o espaço
físico” (PIMENTEL, 2017, p. 329), ficando em destaque suas memórias e valores, entre
outros aspectos.
Diante da nova realidade em que estão inseridos, os territórios villeros e favelados
passam a figurar como um espaço privilegiado para o aparecimento das recentes identidades,
plasmadas literariamente por escritores representativos das intervenções que inscrevem sua
memória na rede de representações dominante, alterando a identidade das próprias periferias e
das cidades como um todo. Outras expressões artísticas, como a música e a fotografia,
figuram como instrumentos para a elaboração e o estabelecimento da memória local, já que
também são responsáveis por compor o registro e a documentação que preservarão e
imortalizarão as memórias de indivíduos e grupos.
Sejam quais forem as ferramentas utilizadas, e criando estratégias para burlar a
privação a muitas delas, cada agente da construção da memória de territórios periféricos acaba
instituindo um discurso que pretende representar indivíduos e uma coletividade – ainda que
não possamos garantir o êxito absoluto desta tarefa, tendo em vista que nem todos se sentirão
contemplados por determinadas falas e que múltiplas identidades estão em jogo em cada
processo. Ao reconstruírem seu passado, os sujeitos alterizados, postos à margem dos espaços
de fala, projetam-se para o futuro, pois, por meio desses discursos,
27
muitos indivíduos que integram essa cultura tão particular encontram uma forma de
representar o espaço onde vivem e de escapar à não-existência que é morrer sem
deixar memória de seus atos, de sua passagem pela vida. Talvez a principal
característica dos Outros seja, desde os bárbaros e escravos da antiguidade até os
grupos das nossas periferias urbanas no século XXI, a impossibilidade de acesso aos
instrumentos de voz e, na falta destes, a ausência de registros da sua experiência
para as gerações seguintes. (PIMENTEL, 2017, p. 331)
Para exemplificar uma dessas produções a que nos referimos, vale a pena mencionar
que Pimentel vê no romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, o fator que poderia ter
impulsionado a valorização da memória de territórios periféricos e o aparecimento de “novos
sujeitos do discurso” – ideia também defendida por Paulo Roberto Tonani do Patrocínio
(2013a). Esses novos autores, por sua vez, trouxeram outras formas de leitura da realidade das
favelas, e agora afirmam a condição de moradores desses territórios por perceberem que se
trata de um diferencial na construção de sua própria identidade e memória, bem como de seu
lugar no campo cultural.
Os discursos produzidos por indivíduos e grupos de regiões periféricas e
estigmatizadas, através das mais variadas formas de expressão e marcados essencialmente
pela violência simbólica, apresentam uma visão que se contrapõe à versão homogeneizadora
dos espaços geográficos e do ethos de seus habitantes, propondo uma cristalização de imagens
que se consolidaram no senso comum e constituem o que Teresa Pires do Rio Caldeira (2000)
chamou de “fala do crime”. São os mencionados discursos de atores da periferia que
viabilizam a apreensão da dinâmica desses territórios por parte daqueles que não os conhecem
por ainda não terem experenciado qualquer vivência nesses espaços geográficos. É também
através dessas expressões que percebemos um sentimento de pertencimento a um território
específico (ou microterritório) ou a vários deles, de modo mais intenso que este outro
sentimento de pertença tradicionalmente associado à nação.
Voltando a revisar o termo, é importante assinalar que, na cena contemporânea, o
conceito de nação assume novas facetas e se distancia da ideia de soberania territorial, o que
Arjun Appadurai considera uma “crise do Estado-nação”, a qual é provocada por fenômenos
como a diáspora e os diferentes deslocamentos e fluxos. Em consequência de tais fenômenos,
surgem grupos “não-nacionais” e “pós-nacionais” que, por sua vez, produzem
“translocalidades”,4 desafiando “a ordem e a ordenação do Estado-nação” (APPADURAI,
1997, p. 34). Dito de outro modo, a ideia de soberania sem territorialidade se refere ao fato de
que não há uma integridade territorial no Estado-nação contemporâneo. Estamos tratando
4 Como exemplos de translocalidades, Appadurai cita as zonas de livre-comércio, os campos de refugiados, os
albergues de imigrantes e os bairros de exilados e trabalhadores imigrantes (1997, p. 36).
28
agora de fragmentos semiautônomos de um território maior, que constitui microlocalidades,
nas quais constrói a memória e se afirmam as identidades.
Já não apenas as guerras ou os problemas derivados do controle de fronteiras
representam ameaças à soberania e à integridade territorial e nacional – que são a base política
e jurídica fundacional do Estado-nação –, mas também os outros modos de se “conquistar”
um espaço, como aquele que se dá por intermédio das mercadorias, remetendo-nos à
complexa questão do consumo e às práticas nele embutidas, assunto tratado por Néstor García
Canclini, em Consumidores e cidadãos, e que abordaremos mais adiante. Ao assumir-se uma
estética translocal – postura que Appadurai intitula “promiscuidade cultural” –, dilui-se a
lealdade ao território nacional e ao imaginado e pretendido isomorfismo do Estado-nação.
Aludindo a Benedict Anderson, Appadurai defende que a nação surge da imaginação,
o que também poderá nos levar para além da nação tradicional. Imaginar a “nação” é pensar
um lugar que se considera a sua própria terra, onde não há um determinado controle territorial
associado às forças ou aos grupos de força responsáveis pelo(s) ato(s) de imaginar. Uma vez
que estamos diante da emergência de identidades multiculturais, a imaginação configura-se
como um desafio. Imaginar um espaço nacional pode levar à criação de uma etnia em um
território já existente ou à expansão de uma etnia majoritária (de um determinado território) a
outros Estados-nações já existentes. Do mesmo modo, existem dificuldades semelhantes na
produção de localidades
porque a memória e as ligações que os sujeitos locais mantêm [...] estão sempre em
conflito com as necessidades do Estado-nação de regular a vida pública. Mais ainda,
é da natureza da vida local desenvolver [...] seus próprios contextos de alteridade
(espacial, social e técnica), os quais podem não se adequar às necessidades de
padronização social e espacial, pré-requisito para o cidadão-sujeito moderno.
(APPADURAI, 1997, p. 34)
Nessa disputa pela caracterização do espaço nacional – que passa igualmente pela
busca do direito à memória nas microlocalidades –, nota-se que o valor que o Estado lhe
atribui difere daquele concebido por parte dos cidadãos. Enquanto o Estado se preocupa com
o macroterritório, no qual se deve manter a integridade e a vigilância, os homens comuns se
conectam mais a uma noção de terra como o lugar de origem e de pertencimento, numa escala
bem mais restrita.
O direito à memória foi discutido por Mario Grynszpan e Dulce Chaves Pandolfi
(2007), no âmbito das memórias de favelas e abordando mais especificamente as favelas do
Rio de Janeiro. Os autores lançam luz sobre o papel protagonista que a memória tem
29
assumido tanto em investigações de diversas áreas do conhecimento quanto em movimentos
dos distintos setores da sociedade, lembrando que o interesse por tal tema não é algo novo.
Focalizando a discussão na cidade do Rio de Janeiro, os pesquisadores descrevem as
intervenções realizadas em algumas favelas e que buscam estabelecer meios de registrar suas
memórias, um movimento iniciado na década de 1990 que é, ao mesmo tempo, resultado e
força motivadora de lutas pelo direito à preservação e divulgação de uma memória criada
pelos próprios moradores. Esse movimento atua como uma ferramenta a mais no trabalho de
desconstrução dos estigmas associados a esses territórios desde sua criação no final do século
XIX.
Definir o que terá um lugar na memória, porém, não é uma tarefa simples, e não
apenas quando se trata de determinar a memória de favelas. Ao longo da história, a escolha do
que deve ser lembrado ou esquecido, isto é, a seleção de sujeitos, relatos e fatos que comporão
uma memória implica muita disputa e negociação, surgindo esta memória como resultado “de
relações de força existentes nas sociedades, instituições e grupos sociais, e que determinam
quem está autorizado, legitimado a lembrar, como lembrará e o que lembrará”
(GRYNSZPAN e PANDOLFI, 2007, p. 67). Com o avanço dos debates que giram em torno
das favelas, colocando-se em destaque a necessidade de valorizar sua história e sua realidade
multifacetada, em detrimento dos estereótipos que as caracterizam no senso comum, torna-se
premente a abertura de espaço para que sejam narradas as memórias de grupos até então
silenciados e menosprezados.
Esses grupos oferecem uma representação de si mesmos, alternativa à da história
oficial, e se antes eram apenas o objeto de representação, agora são atores centrais do
processo de construção de sua própria imagem e memória. Além de romper os estigmas
contra as favelas e os favelados, assim como ocorre com villas e villeros, o que pretendem é
que o reconhecimento e a legitimação de memórias de favelas e villas culminem no acesso
aos seus direitos como cidadãos. Da mesma forma, lutam para que a rememoração do passado
garanta seu futuro, ou seja, sua continuidade e permanência, eliminando as ameaças de
remoção que fizeram parte de sua história.
Apesar de serem os principais agentes mobilizadores do exercício de recuperação das
memórias, os grupos “de dentro” das favelas não operam individualmente, pois contam com o
apoio de indivíduos, grupos e instituições “de fora” – públicas e privadas, nacionais e
estrangeiras – para concretizar seus projetos. Este é o caso, por exemplo, do Museu da Maré,
situado no complexo de favelas da Maré e resultado do projeto “Rede de Memória”,
30
desenvolvido pela ONG Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM). O museu,
que existe desde 2006, recebeu apoio do Ministério da Cultura e tem uma ampla rede de
colaboradores. Em muitos casos, precisa-se de apoio técnico e/ou financeiro para a finalização
desse tipo de projeto, e aí entram as redes de colaboração com organismos externos às favelas,
uma evidência de que não se trata de um trabalho que interessa apenas aos moradores desses
espaços. A própria ideia do que é ser “de dentro” ou “de fora” não parece algo pacífico ou
definitivo, nem se pode ver qualquer exclusividade nos termos da dicotomia.
Em suma, os envolvidos nessas iniciativas de memória local atuam na busca da
redefinição e ressemantização do que vem a ser villas e favelas, através de discursos que dão
destaque a aspectos positivos considerados marcantes para a história dos moradores. Com
isso, espera-se que as caracterizações pejorativas desses territórios deem lugar a um novo
olhar, mais atento à sua potência e ao seu papel na formação da história da cidade como um
todo. A mudança dessa visão deve ocorrer especialmente junto a quem desconhece a realidade
das villas e favelas, mas também para seus próprios habitantes, que não raro associam esses
lugares a ideias negativas. A partir do momento em que moradores de favelas mudam as
percepções de si e do espaço em que habitam, mudam também os objetos de reivindicação.
Mais ainda, surgem reivindicações daquilo que não era enxergado como direito seu, por serem
favelados, e a isso se segue uma profunda transformação da realidade. Alteram, assim, sua
relação com a cidade em sua totalidade, pois provocam uma interação com práticas de
representação que circulam entre os diferentes grupos e territórios dessa cidade.
A ideia de circularidade, da qual também trata Carlo Ginzburg em O queijo e os
vermes, dialoga com a temática desenvolvida por Néstor García Canclini (2015), quando
analisa as transformações no modo de consumir e busca entender suas consequências nas
formas de exercício da cidadania. A partir das considerações de Canclini, pode-se afirmar que
uma circularidade entre cultura popular e cultura erudita se torna possível através do
consumo, pois a lógica que comanda suas práticas ultrapassa a fronteira do capital financeiro.
Muitas respostas para as indagações dos sujeitos, especialmente os jovens, sofrem mais
influência do consumo de bens e produtos dos meios de comunicação que do exercício da
cidadania. A globalização, enquanto “processo de fracionamento articulado do mundo e de
recomposição de suas partes” com “tendências hegemônicas da urbanização e da
industrialização da cultura” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 11), produziu um novo cenário
para as relações culturais, o que foi ligeiramente captado pelas indústrias de comunicação. O
modo de se fazer política também foi influenciado por essa globalização, acompanhando a
31
emergência de comunidades de consumidores em um processo heterogêneo de
“reordenamento das diferenças e desigualdades” (ibidem, p. 11).
No contexto da globalização, como explica Canclini, a América Latina se manteve
numa condição de subordinação, desta vez aos Estados Unidos, e não mais à Europa. Se, por
um lado, “por meio da relação com a Europa, nós, latino-americanos, aprendemos a ser
cidadãos”, por outro, nossos “vínculos preferenciais com os Estados Unidos nos reduziram a
consumidores” (ibidem, p. 13), e esta é a principal diferença nas formas de dependência
experimentadas por essa região. Por isso, refletir sobre o território latino-americano a partir do
papel do consumo é deixar de enxergá-lo simplesmente como sinônimo de gastos supérfluos
para tratá-lo como algo que serve para pensar, como um espaço “no qual se organiza grande
parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades” (ibidem, p. 13-
14).
Apesar do esforço (com base em fundamentalismos nacionalistas e etnicistas) de
resistir ao multiculturalismo e de negar a coexistência de identidades heterogêneas e
complexas na América Latina – com o intuito de afirmar uma falsa homogeneidade –, o que
se observa é um fenômeno que contraria tais expectativas: “a constituição híbrida das
identidades étnicas e nacionais” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 21) se projeta como uma
consequência do incontrolável aumento demográfico nas grandes cidades e da supressão das
“monoidentidades”, sobretudo na segunda metade do século XX.
Em uma época em que se dissolve a oposição entre o próprio (o nosso ou o nacional) e
o alheio (o estrangeiro), tais identidades se constroem a partir do consumo e, como se
costumou definir no senso comum, ser equivale a ter, isto é, o ser depende daquilo que se tem
ou do que se pode vir a ter. A hibridação no processo de produção dos bens é o fator
predominante na diluição da relação dicotômica entre próprio e alheio, pois já não é possível
definir uma única origem para os produtos, que podem ser fabricados em um país, mas com
matéria-prima e/ou mão-de-obra de tantos outros. Conforme escreve Canclini, “a cultura é um
processo de montagem multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de
traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar”, e por
essa razão “os objetos perdem a relação de fidelidade com os territórios originários” (ibidem,
p. 32). O sentimento de pertencimento a um território também passa a constituir-se de modo
heterogêneo, pois as identidades pós-modernas deixam de ser territoriais para serem
transterritoriais, o que não significa que elas se perdem, mas que se tornam mais complexas,
transnacionais.
32
O autor ainda afirma que a faixa etária pode ser mais importante que o lugar de origem
para determinar a escolha do que se vai consumir, pois as lógicas de consumo que ajudam a
definir as identidades podem responder a diferentes motivações, gerando uma quebra de
expectativa e desconstruindo antigos dualismos (pobre x rico, erudito x popular, centro x
margem, púbico x privado, asfalto x favela, cheto5 x villero), que já não exercem tanta
influência nas construções identitárias dos jovens, especialmente. Dito de outro modo, o que
determina o consumo pode ser menos o território e mais o aspecto geracional das identidades.
A “montagem multinacional” dos bens a serem consumidos, característica da
globalização, responde a uma exigência dessa “tendência irreversível”: agilidade na produção
para uma rápida circulação pelo mundo. Como num círculo vicioso, tal agilidade provoca a
efemeridade do ter – e, em consequência, do que se considera o ser precário e provisório dos
consumidores –, já que aquilo que se possui torna-se obsoleto na mesma velocidade, causando
também um descontentamento dos consumidores, que, desejando renovar-se, partirão em
busca de um produto mais recente.
Uma análise menos atenta desse movimento cíclico faz com que caiamos na armadilha
de defini-lo como um mero consumismo, uma prática inconsciente, pura e simplesmente. No
entanto, o antropólogo argentino nos alerta que o consumo também serve para pensar, como
mencionado anteriormente. Ele defende que “quando selecionamos os bens e nos apropriamos
deles, definimos o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos de nos
integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, de combinarmos o pragmático e o aprazível”
(GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 35).6
Assumindo esta ideia, torna-se possível associar consumo ao exercício da cidadania
como estratégia política. Na dificuldade de acesso aos circuitos culturais mais eruditos de
alcance restrito (mesmo na esfera pública, como cinemas, teatros, museus), foram surgindo
paralelamente – já desde o século XIX – culturas populares que se consideravam, como no
caso de Günther Lottes (apud GARCÍA CANCLINI, 2015), uma alternativa à esfera pública
excludente, capaz de revelar uma potência outrora (e ainda nos dias atuais) rechaçada ou sem
espaços para manifestar-se. Atualmente, não somos os mesmos cidadãos, é verdade, visto que
estamos vivenciando a aproximação e retroalimentação entre países centrais e periféricos, mas
as novas formas como consumimos podem ter-nos levado (ou nos levarão futuramente) a
inusitadas formas de cidadania.
5 O termo cheto é utilizado para referir-se às pessoas da classe alta. 6 Na mesma sintonia, Arjun Appadurai (2001) argumenta que a imaginação (de uma nação) permite que o
consumo dos meios de comunicação de massa atue também como forma de resistência, reações e agência.
33
Se tomarmos o consumo como uma série de relações socioculturais que se
estabelecem para que se concretizem a apropriação e os usos dos produtos, podemos admitir
que de igual maneira o definirão os meios de comunicação de massa. Estes elaboram
estratégias de ação a partir da percepção daquilo que sua audiência deseja (ver, ouvir,
consumir), lançando mão de uma linguagem que possa adequar-se ao seu público-alvo, o que
explicaria o alcance e a eficácia dos discursos que sustenta. Em muitas ocasiões, as periferias
e os indivíduos marginalizados e alterizados são vítimas desses discursos, que ajudam a
reproduzir o imaginário que estigmatiza territórios e reifica pessoas.
1.2. Representação de grupos alterizados
A alteridade é o resultado da definição que uma pessoa ou um conjunto faz daqueles
que lhes são diferentes, estranhos, ou seja, que não se reconhece como seus iguais. Tzvetan
Todorov (1983) comentou que a descoberta e conquista da América trouxe consigo a
descoberta de um Outro, mas que só é visto assim por um “eu” que não consegue se
identificar neste que definiu como diferente; não se dando conta das múltiplas figurações
desse eu, que “é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu.
Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente
separá-los e distingui-los de mim” (TODOROV, 1983, p. 3). A grande questão trazida pelo
filósofo búlgaro radicado em Paris remete ao modo como devemos nos portar diante daqueles
que não pertencem à mesma comunidade que nós. Para os pensadores da América Latina, a
questão é outra porque mais importante é indagar como devemos nos portar diante dos que
pertencem à nossa comunidade, mas que vivem à margem, em condições de subalternidade,
alteridade ou marginação. Isso é o que pontuou Amaryll Chanady, ao pensar os lugares
“políticos” dos grupos humanos em contextos de “outridade” na nossa periferia do
capitalismo (1994).
Cabe destacar ainda as considerações de Todorov sobre as dimensões da alteridade. O
autor a situa em três diferentes eixos, segundo os tipos de relação entre “eu” e “outro”: 1) um
juízo de valor, segundo o qual se define se o Outro é bom ou mau, igual ou inferior a mim; 2)
a aproximação ou o distanciamento em relação ao Outro, para definir se me identifico com
seus valores, ou se assimilo esse outro; 3) o conhecimento ou desconhecimento da identidade
do Outro, em maior ou menor grau. A definição destes eixos é importante para que se tenha
34
em conta que a alteridade não tem uma única forma de se manifestar e que, quando um “eu”
define um “Outro”, há um variado leque de possibilidades de olhar entre eles, em especial
porque todos podem ser (e são) Eu ou Outro, segundo o ponto de vista que se considere.
Leopoldo Zea (2005) é outro autor que oferece importantes considerações ao debate,
ao analisar a história de marginalização de populações (da Rússia, da Ibéria e da Britânia) a
partir do que se considerava o centro de poder no planeta: a Europa ocidental. Baseado nesses
estudos, comenta que se impôs um modo de pensar que levava em consideração apenas o
todo, e não cada uma das partes. Nesse processo, muitas árvores foram sacrificadas para
garantir um suposto benefício da floresta, conforme metaforiza o autor. Um desses sacrifícios
foi o silenciamento daqueles que não compactuavam com essa visão das relações humanas e
que, por não concordarem com um discurso predominante, por adotarem outra forma de
expressar-se verbalmente, eram nomeados “bárbaros”. Bárbaro, segundo os gregos e partindo
de tradução latina do termo balbus, é quem não possuía o logos nem, portanto, a palavra e a
verdade. O bárbaro apenas balbucia a verdade, uma vez que não detém a palavra que a
expressa fielmente. Ora, um ser humano que se propõe a verbalizar uma verdade sem possuir
a palavra, isto é, os instrumentos e a legitimidade para fazê-lo, está subvertendo a ordem, mal
dizendo-a. Logo, precisa ser calado, segundo o ponto de vista dos que se sentem confortáveis
com essa ordem.
É partindo dessa premissa, que, é sempre bom lembrar, foi elaborada e difundida por
quem detém o poder e com ele a “verdade-palavra” – ela própria uma expressão de poder –,
que se constrói a marginalização ou a alterização de sujeitos e de grupos inteiros, os quais
devem submeter-se à ordem estabelecida. Como eram vistos como seres à margem do logos,
eram também menos humanos, incapazes de se encaixar na ordem da cidade, estavam fora da
lei e do direito, “destinados a ser dominados por serem bárbaros” (ZEA, 2005, p. 51).
De um lado, barbárie, subordinação, periferia; do outro, civilização, dominação e
centro. No primeiro grupo, os selvagens destinados a ser explorados e expostos à violência
constante. No segundo, aqueles que, associados ao poder, dominam os outros cuja
humanidade é refutável, colocando-os à margem. Essa visão dicotômica resultou na
alterização dos povos que não se adequam ao “nós” desde o qual os dominadores falam. Ao
colocá-los na condição de Outros, os donos da palavra se situam como ponto de referência, e
todo e qualquer discurso que não reproduza a sua dicção será interpretado como simples
balbucio, impossibilidade de voz da barbárie.
35
Historicamente, povos dominados se rebelam e reivindicam sua liberdade, e não
poucas vezes surge um Caliban7 disposto a elaborar um discurso próprio – em dois sentidos,
enquanto propriedade e apropriado –, mesmo a partir da margem e da barbárie. Embora tenha
aprendido a falar quase que como o próprio Próspero, funda uma nova forma de se expressar,
que é uma dicção própria, e não dependente ou subordinada à de Próspero. Ao fazê-lo,
apresenta estratégias de autoafirmação que anulam aquela suposta marginalização e barbárie,
visto que, se fosse bárbaro, não saberia se expressar. Seria como um subalterno, segundo
Gayatri Spivak (2003), que precisa sair desta condição para poder falar, caso contrário,
necessitaria de um intermediário.
Se a civilização possui a palavra e à barbárie cabe o mutismo, Caliban, por ser
classificado como bárbaro, irá balbuciar a partir deste capital acumulado em sua ilha, num
movimento de criação a partir das sobras, do que lhe restou. Esse Caliban se apresenta, antes
que tudo, como um ser humano dotado de peculiaridades, como qualquer outro, o que gera
uma diversidade que deve ser respeitada. Não respeitá-la, como defende Leopoldo Zea,
tentando reificar aqueles que não aceitam molduras, é a autêntica expressão da barbárie, ou
seja, a ação bárbara é a do dominador, colonizador, e não a do colonizado, marginalizado.
César González é mais um Caliban, que usa as ferramentas à sua disposição para
estruturar seu discurso, agora não mais pedindo permissão ou carecendo de um mediador.
Quando se dá conta de que possui uma voz, uma história, uma verdade, coloca-se na condição
de agência transformadora de sua própria trajetória, proibindo que lhe digam o que fazer,
empoderando-se. González percebe que a palavra e os livros são instrumentos de poder, de
poder-ser e de poder-agir, e intervém na disputa pela construção de um lugar no campo
literário. Em seus livros, propõe uma releitura das representações predominantes sobre os
territórios periféricos, especialmente as villas de Buenos Aires, bem como da população que
vive neles, os grupos alterizados pela ideologia que insiste em polarizar margem e centro.
Como ele teoricamente não faz parte deste centro, como se fosse possível morar numa villa ou
favela sem estar na cidade, os espaços deque dispõe para divulgar seu trabalho são restritos,8e
o uso de formas alternativas de divulgação é uma das estratégias de expressão de seu discurso.
7 Caliban é um personagem de A tempestade, drama de William Shakespeare. Representa um homem
colonizado, escravo de Próspero (o colonizador), quem o qualifica como “selvagem”, capaz apenas de
“balbuciar” as palavras impostas pelo seu opressor. Entretanto, Caliban apropria-se de sua palavra para usá-la
como estratégia para sua libertação. 8 Consideram-se esses espaços como restritos ainda que, interessados na disputa por audiência, alguns programas
de rádio e televisão o tenham convidado, no período em que seu caso se tornou público. Não necessariamente foi
o caso de todos os programas, mas muitos deles (disponíveis no Youtube) não sabiam nada a respeito da obra
36
O que se há de considerar “centro” nos dias atuais? Como afirmou Octavio Paz, o que
se conhecia como centro do mundo se dissolveu, por isso estaríamos todos à margem.
Todavia, se não há mais centro, tampouco existe periferia, e todos fazemos parte de um
grande aglomerado disperso e descentrado; ou, ainda, cada sociedade se encarregou de criar
seus centros e as respectivas periferias, porque é inegável que ainda existem indivíduos e
conjuntos de indivíduos que detêm o poder (econômico, político, social e cultural). O que
mudou – na verdade, vem mudando – é que há também grupos que disputam um lugar no
palco, pois não aceitam mais estar apenas na plateia, assistindo e consumindo passivamente
discursos e representações. Falam e querem ser ouvidos. Escrevem e querem ser lidos. Têm o
direito à palavra, que não pertence a ninguém e, por isso mesmo, pertence a todos. São
cidadãos tanto quanto os da dita “cidade formal”, pois integram essa cidade, ainda que
habitem zonas menosprezadas, desvalorizadas e estigmatizadas. Mais uma vez citando Zea,
“não existem povos civilizados e bárbaros, ou selvagens, mas povos formados por homens
concretos, entrelaçados nos seus esforços em satisfazer suas necessidades peculiares” (2005,
p.54). Entrelaçados porque um desejo individual os conecta, inevitavelmente, a um desejo
coletivo, o desejo do urbano.
Se para os gregos, os bárbaros eram seres menos humanos, limitados de raciocínio e
vontade (exceto a vontade de obedecer), hoje a relação não é diferente entre as elites e as
populações mais pobres. Conforme defende César González,9 há uma elite intelectual que
pretende garantir a manutenção de seus privilégios e, consequentemente, da desigualdade
entre as classes e, para tal, utiliza a ciência e o capital cultural para afirmar e justificar uma
suposta diferença de capacidade cognitiva entre ricos e pobres. Trata-se da nova
discriminação mencionada por Zea, a qual deverá ser combatida pelos sujeitos marginalizados
através da constituição e afirmação de sua identidade, a fim de afirmar sua humanidade e sua
potência, negadas por aqueles que os reduziram às margens da cidade e da cultura. O uso da
palavra deverá dar-se de modo criativo, subvertendo a ordem imposta, tornando diálogo um
logos monológico que é razão e palavra de verdade inegociável, incapaz de dialogar, em sua
dimensão primeira. Os novos sujeitos que emergem na cena periférica vão barbarizar a
palavra, em um ato político e consciente, uma vez que afirmarão, ao mesmo tempo, que não
são bárbaros, pois já não são submissos nem precisam reproduzir a linguagem do dominador,
e sua palavra “maldita” tem uma enorme importância. O fato não é que se expressam mal, literária ou cinematográfica de González (nem o contexto de sua produção), tampouco possuem pautas que
justificariam a participação do autor e diretor. 9 Em entrevista que o escritor nos concedeu no dia 19 de abril de 2018, em Ramos Mejía, cidade de La Matanza,
localizada na Zona Metropolitana de Buenos Aires - Argentina.
37
apenas o fazem de um modo diferente. Como expressa González, maldita é a palavra que
invisibiliza e reifica o ser humano: “¡maldita sea la representación! / ¡maldita sea la palabra! /
¡maldito el lenguaje / si enseña a olvidarnos del cuerpo!” (GONZÁLEZ, 2015, p. 33).
Com a globalização, a alteridade ganha uma nova face, mas segue sendo o resultado
da marginalização e da representação contrastiva de alguns grupos por outros, que quando o
fazem também se definem numa posição hierárquica. Amaryll Chanady (1994), ao escrever
sobre a alterização nas sociedades periféricas, recorda que na América Latina se reproduziu o
processo de divisão entre um “nós” e os “outros”, estes últimos vistos como diferentes. Trata-
se de sociedades consideradas periféricas em relação ao Velho Mundo, mas que possuem em
seu interior relações entre grupos dominantes e seus próprios “outros”, o que implica novos
processos de alterização. No final, aqueles são o mesmo “Outro” visto como periferia a partir
da Europa e assumem relacionalmente dentro de suas próprias fronteiras a condição de eu e de
Outro como máscaras que vão sendo usadas e deixadas de lado ao longo das interações.
Sendo assim, é preciso ressaltar que este é um coletivo heterogêneo (o que quase soa como
um pleonasmo) e que, apesar de ser concebido como o Outro frente à Europa, reclama a
revisão da representação pejorativa que recebeu dos intelectuais deste continente, aqueles que
escreveram a história até então e assume a condição de Eu diante dos seus próprios Outros.
São estes últimos que começam a projetar seus discursos para toda a cidade e que constituem
o núcleo de interesse dessa pesquisa.
Problematizando sua condição de colonizados, os latino-americanos se esforçam para
afirmar uma outra identidade. Octavio Paz, também lembrado por Chanady, reivindica o fim
da marginalização dos latino-americanos e a valorização de sua voz, uma forma de torná-los
independentes e reservar-lhes o direito de tomar decisões como qualquer outro povo.
É a partir de sua experiência na marginalização e barbárie (que foram impostas) que os
sujeitos da cena contemporânea problematizam sua condição de alterizados e mostram que
não são essencialmente os Outros, mas sim outra face de um nós heterogêneo e que fala uma
linguagem que o autonomeado civilizado não consegue entender, pois sempre se negou a
enxergá-la como outra possibilidade do logos por excelência. Aqueles que foram
marginalizados estão constituindo sua identidade e buscam compreender seu lugar nesse
mundo que agora reivindicam também como seu. Seguindo este raciocínio, exigem sua
participação na construção de sua memória, garantindo seu futuro através das marcas desse
passado.
38
Esse processo, porém, não é simples, pois há uma enorme resistência por parte
daqueles que se consideram o centro do mundo em aceitar que o resto da humanidade não está
subordinada a eles ou que não é uma versão inferior deles mesmos. Os conflitos nascem da
resposta dos supostos bárbaros aos padrões estabelecidos nos diferentes campos (político,
econômico, cultural etc.) e que foram responsáveis pelo “enquadro acadêmico” (VAZ, 2016),
encarregado de definir o que era arte, cultura, civilização e a própria condição desumana.
Logo, a violência que muitos desses conflitos propaga é provocada pela ação dos artífices da
marginalização e das representações, não dos que as sofreram.
Cada um de nós, os integrantes de todos os grupos sociais, sem exceção, somos
agentes da história universal e podemos reivindicar o direito de protagonizar o processo de
seu registro a partir de um lugar. A tomada de consciência da escrita da história já foi levada a
cabo por uma série de pensadores – oriundos ou não das camadas subalternizadas – que se
dedicaram/se dedicam a estudar e narrar os territórios periféricos e os sujeitos alterizados. Um
dos desafios a partir de então é o de expandir essa tomada de consciência a tal ponto em que
não haja mais necessidade de explicar o óbvio, a própria ideia que introduz este parágrafo; e
que não se tenha que lembrar que todos os sujeitos têm direito a participar da construção das
imagens que comporão suas representações, sua memória e principalmente a sua história. Não
se pode seguir replicando o mesmo sistema em que o Eu fala pelos Outros, já que esses
Outros sabem e podem falar por si mesmos.
1.3. Subalternos, periféricos e marginais
Ao tentar classificar a produção literária de César González de modo satisfatório e
segundo suas temáticas e o seu lugar de produção do discurso, além de questionar sua
condição frente a textos literários canônicos, utilizamos alternadamente, e atribuindo-lhes
sentidos mais ou menos semelhantes, as noções de “subalterno”, “periférico” e “marginal”. A
fim de esclarecer a conexão que se faz aqui entre essas categorias e o autor (além de outros
escritores, cujas obras serão comentadas em capítulos futuros) e demarcar a especificidade de
cada discurso, cabe salientar as considerações feitas por Paulo Roberto Tonani do Patrocínio
(2013b). Sintetizando, o pesquisador define tais categorias da seguinte maneira: o termo
periférico, tomado como o sujeito da periferia, refere-se a uma construção social das práticas
e discursos desse sujeito, que atua em movimentos sociais. É uma categoria que constitui a
formação identitária dos indivíduos desse território. Já a noção de subalterno, que é a que
39
mais se aproxima da que se pretende encontrar nesse trabalho como categoria definidora dos
novos sujeitos das margens da cultura e da cidade, é a utilizada pelo Grupo de Estudos
Subalternos da Índia, cujo principal nome é Ranajit Guha. A subalternidade é vista por ele
como uma condição de subordinação, seja enquanto classe, casta, gênero, etnia, ofício ou
qualquer outra forma que represente aqueles que são silenciados pelo poder hegemônico, os
marginalizados. Trata-se da apropriação de uma noção de Antonio Gramsci, que enxerga a
subalternidade como o resultado da relação do sujeito com sua circunstância histórica, inscrita
nos meios de produção. Pode-se dizer que os sujeitos estão subordinados porque sua
“marginalização e desvalia é tragicamente tão profunda que o impede de articular uma
posição de agenciamento” (PATROCÍNIO, 2013b, p.642). E, finalmente, a noção de
marginal surge, em essência, em contraponto com o canônico e com os domínios da ordem,
quase sempre estabelecendo alguma relação com o fato de estar à margem da “lei”. Existe a
margem porque há também o centro, isto é, uma literatura que, segundo critérios
hierarquizantes, constará no cânone. A literatura marginal é a popular, de minorias nacionais,
sociais ou raciais, e que se apresenta como modos de representação de escritores que buscam
e criam outros espaços de autoria, uma vez que eles não se enquadram na concepção
tradicional de literatura.
Ainda de acordo com o autor, o texto marginal – o qual ele define com um texto
político fundado num relato de experiência – busca “uma nova forma de representação do
povo, não mais uma fala autorizada e concedida, mas sim baseada em uma proposta
minoritária e oriunda da própria margem, provocando um interstício na fala pedagógica e
unificadora do discurso nacional” (2013b, p. 639).
João Camillo Penna (2015), ao falar sobre a variedade de nomes utilizados para
adjetivar a literatura que é produzida por pensadores negros, periféricos, marginais, defende
que
há uma coisa que une todos esses adjetivos (marginal, negro, periférico etc.), uma
experiência comum de exclusão, um dano, uma queixa (no sentido jurídico da
palavra), uma ofensa, uma injúria. Injuriados somos. Talvez seja essa a condição
atual da reivindicação de identidade(s): o status litigante, a queixa constitutiva, a
ofensa que nos faz. (PENNA, 2015, p. 13)
Portanto, se há diferenças sutis entre os termos, é verdade que também há semelhanças
que os aproximam no momento em que os próprios autores se definem como marginais,
negros, periféricos ou subalternos. Construir e definir sua identidade a partir desses conceitos
40
assinala, ainda segundo Penna, um movimento de politização dos rótulos e dos lugares de
autoria. O objetivo é superar o estigma ao qual sempre estiveram submetidos e atribuir novos
significados ao lugar da estigmatização. Algo parecido ao que propõe Roberto Fernández
Retamar no ensaio publicado em 1971, quando sugere que os latino-americanos se assumam
como “Calibán”, na medida em que se possa ressignificar positivamente esse conceito
geográfico-cultural e ao mesmo tempo sociológico.
Mesmo que o caminho seja longo até que se elimine definitivamente a carga negativa
que carregam tais termos, é imperativo que se mantenha firme o “otimismo da vontade”,
como defendia Antonio Gramsci. A pobreza e a desigualdade circulam por esses nomes e os
agrupam numa mesma família, reconhecendo-se e respeitando-se as divergências que existem
entre eles e as experiências particulares associadas a cada um. Para o senso comum, que os
associa instantaneamente a ideias pejorativas e criminaliza essa pobreza, apresenta-se como
enorme desafio o exercício de mudar seu olhar, passando a enxergar o escritor oriundo das
camadas populares da sociedade – e seu discurso – como merecedor de consideração e
reconhecimento. Por conta disso, não é incomum encontrar uma forte insistência na definição
do villero/favelado como problemático, perigoso, vazio de sentido ou incapaz de produzir um
discurso. Investir no sentido oposto é o caminho trilhado pelos autores que se constroem a
partir dos territórios das periferias urbanas.
Se pretendemos que a literatura (brasileira, argentina ou de qualquer outra parte do
mundo) assuma uma nova cara mais próxima daquela que se manifesta na própria sociedade
que lhe dá lugar, é imprescindível dar-se conta da complexidade de temáticas e da
multiplicidade de lugares de fala dos novos autores e novas autoras. Se aquilo que se entende
como literatura não é capaz de abranger as obras cujos autores vêm de áreas como as villas
miseria (Argentina), favelas (Brasil), comunas (Colômbia), campamentos ou callampas
(Chile), llegaypon (Cuba), bidonvilles (Haití), barrios bruja (Panamá), pueblos jóvenes
(Perú), cantegriles (Uruguay), ranchos (Venezuela) ou como quer que se prefira chamar as
periferias e territórios à margem nas metrópoles latino-americanas, mantendo-os “sob a forma
de resto não-absorvível, mas aparentemente ameaçador à unidade do conjunto”, retomando a
fala de João Camillo Penna (2015, p. 15), precisamos urgentemente de uma redefinição do
próprio campo literário.
Os pensadores da periferia enfrentam não só a discriminação por parte do senso
comum, como também a barreira editorial, e este é um fato determinante para a (falta de)
disseminação de seu discurso. Em função desta dificuldade e, concomitantemente, graças à
41
necessidade de publicar seus textos – que ficam comprometidos por essa colossal segregação
editorial –, é que muitos dos escritores periféricos criam seus próprios meios de circulação,
sejam editoras independentes, revistas (eletrônicas e/ou impressas), blogs ou páginas de
Internet que lhes permitem escoar uma vasta produção silenciada. Para citar apenas alguns
exemplos, poderíamos mencionar os casos de Juan Diego Incardona, Washington Cucurto,
César González, Ferréz e Allan Santos da Rosa, todos eles autores que, nascidos em
assentamentos informais ou na Região Metropolitana de suas cidades, sentiram a necessidade
de criar canais de circulação de textos que funcionassem como caixas de ressonância para a
sua produção e a de seus pares.
Um dos aspectos mais interessantes dessas produções é que elas inauguram novas
dicções, apresentando outras formas possíveis de narrar suas experiências e, simultaneamente,
constroem públicos leitores dentro das periferias, contrariando a ordem natural de uma
sociedade em estado de partilha, onde a escrita e a leitura são pensadas para atender às classes
mais privilegiadas, financeira e culturalmente falando. A cidade em que vivem os autores
“marginais” contemporâneos é uma cidade que nega suas margens, como se ambas fizessem
parte de estruturas totalmente distintas e incomunicadas. Trata-se de uma estratégia de
isolamento e de manutenção das diferenças que os definem, num esforço de determinar, de
um lado, quem pertence à cidade e, do outro, quem são os nossos “Outros”. Tal isolamento se
materializa em condomínios fechados, carros blindados, câmeras de circuito de segurança,
contratação de segurança privada e conjuntos residenciais que contêm equipamentos urbanos
próprios, que os tornam bairros semelhantes a cidades. Conforme lembra João Camillo Penna,
essa parcela da cidade não privatiza apenas os serviços, mas também a cultura e a literatura.
Por isso, a literatura “marginal”, “periférica” ou “subalterna” se destaca da literatura no
sentido mais abrangente por ser genuinamente pública, e não de um grupo privilegiado,
trazendo muitas vezes uma autoria associada a certo sentido de coletividade.
A partir da noção de subalterno, é importante ressaltar ainda que há diferentes
dimensões dessa subalternidade na literatura, ou seja, há uma hierarquia dentro de um mesmo
grupo de indivíduos subalternizados (de acordo com a definição que comentamos ao início
desta seção). Um exemplo disso é a figura de Carolina Maria de Jesus, que podemos comparar
a González por ser de origem pobre e periférica, mas que possui uma característica que a
coloca numa posição de “margem da margem” dentro da literatura: o fato de ser mulher
negra. Se buscarmos no cânone produções de mulheres negras, encontraremos poucas
ocorrências. Como descreve Mariana Santos de Assis,
42
estamos vivendo um momento único em nossa história literária, momento em que
grupos até então excluídos do contato com a literatura, da leitura e, principalmente,
da produção literária, estão se apropriando desse espaço majoritariamente branco e
altamente elitizado. Podemos dizer que esse processo tem um marco fundador, um
momento altamente simbólico em que vemos a literatura negra sendo forjada no
fogo e nos moldes da pobreza e abandono. Longe da academia e do cânone, é no
lamaçal da favela, em um barraco de tábuas, cercada pela fome, que vemos surgir o
primeiro grande sucesso dessa literatura.
Carolina Maria de Jesus nunca quis ser uma liderança política ou ativista negra, era
apenas poetisa e usava a escrita para escapar de sua dura realidade, mas acabou se
tornando um símbolo da luta das mulheres negras e pobres por sobrevivência,
respeito e humanidade. Além disso, sua obra pode ser vista hoje como um ponto de
encontro entre a literatura negra – já bastante rica nos anos 60 – e a literatura
marginal/periférica que viria a surgir no final dos anos 90. Ela traduziu o debate
racial que vinha sendo desenvolvido entre intelectuais, artistas e ativistas negros em
todo o país para a linguagem dura de quem vive a realidade que aqueles grupos
tentavam mudar. (ASSIS, 2014, p. 52)
Apesar do reconhecimento, no âmbito da Literatura Marginal, da importância e do
legado de Carolina Maria de Jesus, a autora ainda não possui um lugar de destaque na
literatura do país, o que ainda será objeto de uma disputa muito longa se lembrarmos que
estamos “em meio a uma literatura tão marcadamente de classe média, branca e masculina
como a brasileira”, como afirma Regina Dalcastagnè (2015, p. 41).
Se Carolina Maria de Jesus, que sabia ler e escrever, se encontra em uma condição de
subalternidade por ser mulher e negra, outras dimensões se mostram por meio da
representação de Filomena da Cabula, personagem que protagoniza a obra teatral Da Cabula,
de Allan Santos da Rosa (2006). Mulher, negra, empregada doméstica e analfabeta, Filomena
não esconde o desejo de aprender a ler e escrever e está disposta a enfrentar as humilhações
de Calvino Farias, seu patrão, o preconceito e o medo para realizar seu sonho. Os requintes de
crueldade que Calvino traz à memória para desdenhar da vontade de Filó, aludindo à
escravidão, é uma pequena amostra do quão difícil é chegar a ler, escrever e publicar sendo
pobre, negra e mulher.
Pensando nesse panorama, Allan da Rosa fundou a Edições Toró para atender à
necessidade de dar visibilidade aos textos de escritores da periferia e como forma de escapar
do “apartheid editorial”, como define o escritor, referindo-se ao quase inexistente interesse
das editoras mais tradicionais em editar livros desses escritores.
Outra forma de subalternidade pouco abordada (ou de importância desviada) na
literatura brasileira é a do trabalhador, particularmente a do operário. Encontrar no cânone
obras que deem voz a esses personagens e/ou retratem suas histórias, seu cotidiano, suas
ânsias, seus sonhos e suas andanças e o mundo do trabalho é outra tarefa difícil. A figura do
trabalhador está por toda parte, mas não como na obra de Roniwalter Jatobá, um mineiro que,
43
antes de se tornar jornalista, foi operário metalúrgico e gráfico em São Paulo, cidade rumo à
qual partiu em busca de melhores condições de vida, como os personagens de seus romances
e contos, os quais têm como tema o universo do trabalho. Neles, Jatobá retrata o ambiente de
precariedade e violência vivido pelos trabalhadores, cujas histórias não têm importância; é
como se nunca tivessem existido, já que não têm um espaço no mundo, como descreve Luiz
Ruffato (2004) em resenha crítica de Paragens, livro de Jatobá. Ruffato defende que a
literatura, como toda arte, busca uma transcendência e é isso o que alcançam autores como
Roniwalter Jatobá, Allan Santos da Rosa e Carolina Maria de Jesus ao assumirem uma voz
marginal, renovando a literatura contemporânea.
Em seu conto “A mão esquerda”, Jatobá reproduz a jornada de um trabalhador que
podemos considerar como precariado, devido às condições precárias que caracterizam seu
trabalho.10 No conto, lemos a história de Natanael Martins, jovem imigrante que vai para São
Paulo sonhando com dias melhores e que tem seus dedos esmagados pela máquina prensa da
fábrica onde possui um emprego formal, conforme descreve o próprio protagonista:
“Empregado, fichado, carimbo estampado em azul nas páginas da profissional” (JATOBÁ,
2009, p. 119). A prensa representa também o silenciamento dos trabalhadores, pois o ruído
que produz apaga suas vozes, simbolizando o apagamento de sua própria história, sua
importância enquanto sujeitos.
Segundo comentamos há pouco, a imagem do trabalhador figura em poucas obras
literárias e de modo lateral, sem que saibamos o que ele sente, sem que possamos conhecer
sua fala ou os pensamentos que povoam sua mente. Com Natanael é diferente, pois sabemos a
que horas ele chega à fábrica; que fica ansioso para que os portões abram; que fica quieto
observando e tentando aprender a manusear a máquina funesta; que troca cartas com seus
pais, os quais permaneceram em sua terra natal, e fica imaginando como eles reagirão ao
ouvi-las (já que não sabem ler). Enfim, pode-se dizer que a figuração de um operário com
essa abordagem é um pioneirismo de Jatobá na literatura brasileira.
Embora não possamos enquadrar na categoria de integrante do precariado, nos termos
de Ruy Braga (2012), porque não se trata aqui da mão de obra operária, também é possível
encontrar figurações do mundo mais precário do trabalho manual em produções de César
González. Isso se dá de modo mais explícito em seus filmes Diagnóstico Esperanza e ¿Qué
puede un cuerpo?, mas também pode-se observar o foco em tais existências dedicadas a lidar
com os refugos, com a sujeira e com o impuro em poemas como “A mi abuela Genoveva”:
10 As definições de precariado são mais complexas e as abordaremos no capítulo seguinte, a partir das
considerações de Ruy Braga (2012) para esta categoria.
44
ella no proviene
de las rubias cúpulas
aristocráticas de la cultura
ella no tuvo más herencia que nacer
y no conoce el goce de la comodidad
ella nunca abrazó el confort tres meses seguidos
toda su vida trabajó de limpieza
refregando la mugre
y los vidrios de otros
escondiendo en algún lado
todo el maltrato
ella cada mañana desde hace siglos
toma unos mates
después un colectivo
y luego el ferrocarril
San Martin de las 7.20 AM
que va de El Palomar hasta Pilar
donde queda el lugar
que limpia desde hace 23 años
ella vino de Salta en el 68
y nunca más pudo volver
anduvo de pieza en pieza
de changa en changa por la ciudad
hasta que la subieron sin preguntar
a un camión militar de la guerra
y llegó apretada entre las muchas familias
fundadoras de la villa
y luego los soldaditos verdes de la dictadura
los bañaban con una manguera profesional
para sacarles una supuesta suciedad
ella es bajita, morocha y de piel marrón
viene del norte andino
en su sangre corre ascendencia inca
pero eso no le garantizó nada
sino todo lo contrario.
(GONZÁLEZ, 2014, p. 25-26)
Esta e outras facetas da subalternidade estão ilustradas em suas obras e o acompanham
em sua trajetória, uma vez que carrega em si muitas formas de ser subalterno, discussão que
aprofundaremos em capítulos posteriores.
1.4. Periferias de Buenos Aires e villas miseria
Cristina Cravino (2013b) explica que as habitações informais da região metropolitana
de Buenos Aires assumem duas formas: as villas, localizadas na Ciudad Autónoma de Buenos
Aires (CABA), e os assentamentos ou “tomas de tierra”, em áreas de menor concentração
populacional. Essas formas de viver são o resultado da pobreza que algumas classes sempre
45
enfrentaram e do agravamento desta situação a partir de meados da década de 1980 e início
dos anos 1990, resultando na formação de “novos pobres”.
Segundo María Gabriela Muniz (2008), as villas – ou villas de emergencia, barrios de
emergencia, villas miseria, asentamientos precarios – são um fenômeno que já faz parte da
dinâmica espacial de CABA. Criadas a partir da década de 1930, as villas foram se formando
com imigrantes estrangeiros e de áreas rurais do interior da Argentina que ocupavam de forma
aleatória terrenos públicos desabitados e ali construíram suas casas, em zonas de ruas
irregulares e passagens estreitas. A escolha da cidade de Buenos Aires se justifica pelo fato de
este ser o principal centro econômico do país, onde depositavam a expectativa de maiores
ofertas de trabalho, uma possibilidade de escapar à pauperização e miséria que a crise
produziu e/ou acentuou.
Com o tempo, as villas foram diminuindo de tamanho ou desaparecendo à medida que
corria um processo violento de erradicação dessas ocupações entre 1968 e 1973, período da
Ditadura Militar liderada pelo general Juan Carlos Onganía. Mas a resistência e persistência
dessa população lhe garantiram sua continuidade em muitas áreas e hoje pode-se dizer que se
apresentam como proposta alternativa para o modo de habitar a cidade, sugerindo outra lógica
de habitação, de relações interpessoais e de circulação (populacional e de produtos). Após o
fim da ditadura e com crise econômica nos anos de 1990, o fenômeno ganhou outras
dimensões e aumentaram tanto a quantidade de villas quanto a densidade populacional em
cada uma delas.
Cravino chama a atenção para o fato de que, apesar de serem a saída que muitos
encontram para ingressar na cidade, a realidade do mercado imobiliário nas villas deixa seus
habitantes em permanente condição de vulnerabilidade, sem opções de saída. Conforme
aponta a antropóloga (2013b), o morador de uma villa miseria não se torna proprietário de um
imóvel neste território e suas possibilidades de mobilidade social são escassas. Em geral, os
villeros (majoritariamente bolivianos, peruanos e paraguaios) alugam um quarto com banheiro
compartilhado, amontoando-se em um espaço de menos de 10m2. Além disso, “los
‘propietarios’ de cuartos no permiten que un inquilino permanezca en el lugar por varios años,
por miedo a que se sientan ‘dueños’. Y cuando un locatario no puede pagar, debe dejar la
pieza, sin contemplación” (CRAVINO, 2013b).11 Esse quadro poderia ser revertido com a
11 “Os ‘proprietários’ de quartos não permitem que um inquilino permaneça no local por vários anos, por medo
de que se sintam ‘donos’. E quando um locatário não pode pagar, deve deixar o lugar, sem contemplação”.
Tradução nossa.
46
regulamentação do mercado imobiliário e de terrenos, bem como com o financiamento de
programas habitacionais, ainda segundo Cravino (2013a).
Atualmente, há 1.612 villas na província de Buenos Aires, de acordo com o
mapeamento realizado entre agosto de 2016 e maio de 2017 pelo governo nacional em
parceria com diferentes ONGs e associações de diversos bairros.12 Ao todo, o país tem mais
de quatro mil villas, que concentram cerca de um milhão e trezentas mil pessoas, estando
250.000 delas em Buenos Aires, segundo informe de outubro de 2017 do Observatorio de la
Deuda Social de la Universidad Católica Argentina (ODSA) e a Defensoría del Pueblo.
Por todos os aspectos que acabamos de destacar, nota-se que as villas têm suas
particularidades, principalmente se a comparamos com as favelas do Rio de Janeiro, sobre as
quais falaremos em determinados momentos. Ainda que haja semelhanças quanto à
informalidade desses meios populares de moradia, quanto às suas características físicas e ao
modo depreciativo como estão representadas no imaginário da cidade, também possuem
algumas diferenças, especialmente quanto às normas de funcionamento interno de cada uma.
A forma como a periferia e o mundo popular de Buenos Aires figuram na literatura foi
um tema abordado também por Nicolás Viotti e Carina Balladares (2010). Em seu artigo, eles
descrevem como alguns autores argentinos observaram o mundo popular urbano sob as
perspectivas da política, da cultura e da religiosidade, levando em consideração o ponto de
vista da periferia, a partir de investigações etnográficas, que lhes permitiram mergulhar nesse
universo e compreendê-lo melhor. Esse movimento dos pesquisadores colaborou para a
instauração de um novo objeto de pesquisa, pois a periferia e os indivíduos que nela vivem, os
quais sempre foram o “outro” no imaginário nacional, passam a receber atenção e despontar
como um fator imprescindível para a realização de estudos que façam quaisquer tipos de
afirmações a respeito desse território e desses sujeitos. Essa mudança no âmbito
epistemológico também contribuiu para diluir, aos poucos, a configuração conservadora dos
campos de pesquisa do país, em especial nas ciências sociais, que mantinham suas bases nas
“aspiraciones de una elite liberal” e “en una cultura ‘moderna’ de inmigrantes europeos”
(VIOTTI e BALLADARES, 2010, p. 227).13
Fazendo uma retrospectiva para explicar a chegada a esse novo panorama, Viotti e
Balladares comentam que, com o fim da ditadura na Argentina, iniciou-se o período de
transição democrática e ganhou força a ideia modernizante – surgida nos anos 1970 – de que
12 Ver mais informações em: https://www.infobae.com/politica/2017/05/23/mapa-de-las-villas-en-argentina-
juntas-son-mas-grandes-que-la-ciudad-de-buenos-aires/, http://uca.edu.ar/es e http://www.defensoria.org.ar/. 13 “Aspirações de uma elite liberal” e “em uma cultura ‘moderna’ de imigrantes europeus”. Tradução nossa.
47
o conhecimento dos setores populares era a chave para uma mudança significativa da
sociedade, “la fuente de una verdadera democratización” (ibidem, p. 227).14 Antes disso, a
população letrada perpetuava a estrutura de poder, que estabelecia uma separação entre o que
seria a cidade e o que não se consideraria como parte dela: essa periferia que se imaginava
apenas como espaço do “outro”, que era e deveria permanecer sendo negada e silenciada.
Com as transformações sociais que ocorreram ao longo da década de 1980, foram surgindo
vários estudos que adotavam metodologias diferentes das tradicionais, tomando uma
determinada vida social (antes ignorada) como objeto de análise. O que se observou foi que
de forma paradojal [la periferia] había sido objeto de manipulación por parte de
líderes populistas, población ‘marginal’ y sujeto de transformación radical. Durante
la década de 1980 la problematización de lo popular tomó la forma de la distancia o
cercanía con la democracia y dos conceptos renovaron el panorama: “cultura
política” y “ciudadanía”. Estas se transformaron en categorías habituales para pensar
la sociedad post-dictadura y, particularmente, para redefinir la agenda de
investigación sobre un mundo popular que se pensaba en continuidad con los valores
ciudadanos. (VIOTTI e BALLADARES, 2010, p. 228)
Com a chegada de Carlos Menem à presidência, no início dos anos 1990, a estrutura
social argentina passa por outras transformações que provocaram o aparecimento de novos
pobres, renovando também o debate sobre as questões sociais. Através da redefinição espacial
que delimitava os bairros mais pobres e os assentamentos precários e, ao mesmo tempo, com
a construção de mais condomínios fechados, a política liberal-conservadora do governo de
Menem acentuou a desigualdade e as distâncias simbólicas (sociais e espaciais) entre o urbano
formal e os espaços periféricos de exclusão. Os modos de segregação produzidos tornaram as
relações ainda mais desiguais que as vivenciadas no passado.
É nesse cenário turbulento de mudanças políticas capazes de radicalizar as diferenças
sociais que o conurbano bonaerense15 se define como um tema associado à nova cultura
popular. Os pesquisadores que faziam essa ponte aproveitaram-se e apropriaram-se de uma
brecha do sistema para fundar novas formas de representação, capazes de dar conta do novo
“outro” que acabara de surgir e que não costumava fazer parte do campo de interesse dos
pesquisadores nem dos narradores ou cineastas, daí a razão principal para que se
considerassem como sub-representações (tema que tornaremos a comentar mais adiante). Nas
14 “A fonte de uma verdadeira democratização”. Tradução nossa. 15 O conurbano bonaerense, “epicentro clásico de la población asalariada” (VIOTTI e BALLADARES, 2010, p.
240), se refere ao território que circunda a Capital Federal da Argentina, criando uma espécie de cordão urbano
que envolve geograficamente a Ciudad Autónoma de Buenos Aires (CABA) num conglomerado de municípios
que conforma a Região Metropolitana. Os limites que separam essas duas áreas são a Avenida General Paz e o
Riachuelo.
48
oportunidades em que esse território do conurbano e seus habitantes apareciam na literatura
social e nas artes (como a narrativa de ficção e o cinema, por exemplo), era retratado de forma
depreciativa, estando quase sempre atrelado à ideia de um território em ruínas, marcado por
uma forte violência e pela criminalidade crescente, e contribuindo para comprometer a
imagem de uma Argentina homogênea e europeizada.
Com a renovação epistemológica proposta por uma geração de pesquisadores de
formação recente, aparece um novo corpus e transforma-se o olhar para os sujeitos alterizados
e invisibilizados, que agora passam a ser vistos como cidadãos e, portanto, como sujeitos
dotados de direitos, entre os quais se destaca o direito à cidade. Esse olhar “desde abajo”, isto
é, o deslocamento do olhar do centro para a periferia – sem esquecer as considerações que já
fizemos sobre esta dicotomia –, propiciou o desenvolvimento de ricos estudos etnográficos, os
quais conferiam legitimidade aos resultados das pesquisas na medida em que possibilitava um
diálogo entre investigadores e investigados e revelava a preocupação pelos pontos de vista e
pelas práticas de moradores de bairros populares. Propunha-se, então, uma nova construção de
sentidos a respeito destes espaços periféricos, com o intuito de expor a complexidade do
mundo popular, na contracorrente da vertente dominante, a qual afirma um discurso
profundamente estigmatizador. Esse tipo de estudo ajuda a combater tais estigmas, pois
sugere que voltemos nossas atenções à heterogeneidade, à criatividade e às potências
existentes nas áreas consideradas as mais pobres e violentas da cidade a partir de uma outra
perspectiva, deslocando o foco antes concentrado apenas em suas carências materiais, na
desordem e nas a práticas ilegais, reais ou imaginárias.
As classes mais empobrecidas, por sua vez, passavam a assumir papéis importantes na
dinâmica da cidade, organizando-se e reivindicando seus direitos; passavam, assim, da
posição passiva de objetos à de sujeitos da própria história. Não se trata, entretanto, de um
movimento tão recente, pois “La periferia de Buenos Aires poseía antecedentes de
organización colectiva tanto en las experiencias de toma de tierras y asentamientos o reclamos
de servicios básicos que se desarrollan desde fines de la dictadura militar” (VIOTTI e
BALLADARES, 2010, p. 239), numa espécie de “reacción organizada” (ibidem, p. 240)16
para protestar contra a profunda desintegração social e econômica que sofreram. Esse tipo de
movimento político torna-se mais visível com a elaboração de materiais que são frutos de
pesquisas que valorizam os ativismos e as estratégias discursivas de agentes de periferias.
16 “A periferia de Buenos Aires possuía antecedentes de organização coletiva nas experiências de apropriação de
terras e assentamentos ou nas reivindicações de serviços básicos que aconteceram desde o final da ditadura
militar” e “reação organizada”, respetivamente. Tradução nossa.
49
Um fenômeno que igualmente nos remete ao mundo popular urbano é o da Nova
Narrativa Argentina (NNA). Segundo Hernán Vanoli e Diego Vecino (2010), a NNA é
composta por uma geração de escritores nascidos ao longo da década de 1970 e que começam
a escrever nos anos finais do século. Embora suas obras sejam individuais e apropriem-se de
bases narrativas e literárias bastante heterogêneas, eles compartilham estruturas emotivas,
escolha temática, valores, crenças e modos de expressão. Ou seja, mesmo com suas
peculiaridades, muitas vezes esses autores convergem em um estado de imaginação para um
lugar geográfico (conurbano bonaerense e seus habitantes).
Em seu artigo, os pesquisadores analisam como se dá a representação do conurbano
bonaerense na narrativa de três autores que conquistaram certo prestígio e visibilidade na
literatura do país e se inserem no mercado editorial alcançando uma considerável difusão de
suas obras. Resguardando as individualidades quanto à escrita e ao ponto de partida de cada
autor, essa NNA se caracteriza por produções discursivas que partem de um imaginário
urbano e utilizam predominantemente a cidade de Buenos Aires como pano de fundo e
território simbólico, isto inclui também o conurbano como o locus do discurso desses novos
escritores e como o lugar a partir do qual alguns deles falam.
Uma vez que muitas dessas narrativas propõem a representação de um cenário – o
conurbano bonaerense – até então invisibilizado na literatura argentina, considera-se que se
trata de uma forma de fazer frente à sub-representação tradicional e que a NNA passa a
ocupar a posição de subcampo no interior dessa literatura, apresentando estratégias para dar
mais notoriedade ao espaço geográfico e aos temas que se referem ao conurbano. Vanoli e
Vecino afirmam que todo este processo
es heredero de las transformaciones en el campo literario argentino durante la
década del 90 (Benzecry, 2002), pero establece muchas más rupturas que
continuidades con respecto al mismo, configurando un particular universo simbólico
que funciona como codificador de nuevas prácticas literarias y que asigna valores de
legitimidad y prestigio [...]. (VANOLI e VECINO, 2010, p. 264)
A edição de 2005 da antologia de contos La Joven Guardia, organizada pelo jornalista
Maximiliano Tomas e que reuniu textos diversificados quanto à forma e conteúdo,
representou um importante passo para a afirmação da NNA e para seu lançamento no
mercado editorial hispano-americano de maior relevância. As novas perspectivas do ponto de
vista da autoria foram acompanhadas pelo surgimento de um público leitor que se interessava
pelos tipos de produção que então se apresentavam. Vanoli e Vecino assinalam que a NNA
tem como um dos objetivos principais a renovação do sistema literário argentino, contando
50
com o apoio de intermediários de áreas como o jornalismo, a crítica literária e as pequenas
editoras associadas aos próprios escritores e antólogos.
Ainda que a antologia tenha sido elaborada com a pretensão de fazer circular as obras
de novos autores e conferir-lhes reconhecimento, o resultado foi a construção de um novo
cânone, visto que os efeitos do que se intitulou como NNA não foram temporários e
reverberam até os dias atuais.
É relevante destacar aqui o perfil dos escritores que compõem a NNA, principalmente
para introduzirmos o debate sobre as diferenças entre os de Buenos Aires e os do Rio de
Janeiro quanto às disparidades entre os sistemas educativos a que tiveram acesso e seu reflexo
na formação de cada um. Os investigadores explicam que
el fenómeno de la renovación generacional de la narrativa argentina se constituyó
rápidamente como un proceso de clases medias urbanas escolarizadas y con relativa
inserción en los circuitos más o menos consolidados de producción cultural, como la
universidad, el periodismo o las nuevas disciplinas en emergencia vinculadas al
design. (VANOLI e VECINO, 2010, p. 263)
São escritores que apostam na cultura como meio de ascensão social e que reivindicam
a escrita como ofício, ou seja, buscam uma posição de autoria, o mesmo movimento que faz
César González e que abordaremos em capítulo mais oportuno.
Em seus textos, os autores analisados por Vanoli e Vecino procuram descrever como
enxergam o conurbano, distanciando-se da ideia de “plebeização” atribuída pela cultura
literária (VANOLI e VECINO, 2010, p. 265). Revela-se um esforço de representar essa região
de modo mais complexo e heterogêneo, e de desconstruir o modo simplista e estigmatizante
como se dá a representação de territórios e grupos alterizados em muitos dos textos que
circulam pelo país. Em suas obras, salvo raras exceções como Zelarrayán e Fogwill, a
narrativa produzida até então apresenta o conurbano bonaerense, quando a ele dedica seu
olhar, como um lugar repleto de sujeira, sangre e degradação social. Isso é o que se observa
desde a publicação de “El matadero”, de Esteban Echeverría, quando da representação das
margens da cidade se trata. Com os novos autores o conurbano surge também como um
território marcado pela resistência e espaço social que serviu de cenário para a militância; aí
se identifica a existência de uma comunidade mítica, imaginada, recuperada pela memória dos
próprios moradores ou, às vezes, como a realidade de um outro planeta, como o conurbano-
Marte de Las chanchas, de Félix Bruzzone, no qual podemos perceber uma ácida crítica às
representações dominantes e aos circuitos nos quais se elaboram essas representações. São
narrativas aparentemente díspares, mas que fogem do senso comum na forma de apresentar
51
uma possibilidade de imaginar o conurbano, este espaço onde convivem múltiplas histórias,
memórias e experiências. Daí emergem novos modos de enunciação da cidade.
Integrantes dessa geração ou da mais recente, alguns escritores villeros chegam a
publicar suas obras, mas continuam ocupando um lugar subalterno no campo literário na
medida em que ainda dependem de outros sujeitos como mediadores para essas publicações,
pois não atingiram o domínio pleno de um capital que lhes permita participar em igualdade de
condições nas disputas internas do campo. Em alguns casos, um escritor villero ou do
conurbano, como é caso de Washington Cucurto, supera esses aspectos da condição
subalterna ao criar sua própria editora, expandindo os espaços para a circulação de seus textos
– e os de outros autores oriundos das villas e das margens do campo –, inaugurando um
espaço no campo editorial que valoriza esse tipo de obras.
Conforme assinala Hernán Vanoli (2009), a partir dos anos 2000, começam a surgir
pequenas editoras independentes que, com suas diferentes estratégias comerciais e,
especialmente, políticas, atuam como nichos de formação de intelectuais que questionam e
alteram as práticas de escrita tradicionais, interferindo no campo de publicações e de
produção da literatura nacional. Com os novos modelos de intervenção artística e intelectual,
surge um ativismo cultural que fará com que, dentro dessas pequenas e novas editoras, o fator
comercial fique subordinado às manifestações no campo literário.
Vanoli ressalta que embora alguns escritores de periferia encontrem certa expressão no
mercado literário, é necessário que haja uma “hipersegmentação dos mercados” como a saída
viável para o atual contexto de transformações na cultura literária e no regime de circulação
da palavra escrita, onde se nota uma incontornável ampliação do público produtor, oriundo
agora de distintas camadas sociais. A criação de novas editoras é a estratégia de muitos
autores que já atingiram certo prestígio encontram para dar mais visibilidade às suas obras e
às daqueles que enfrentam as mesmas dificuldades pelas quais passaram para a divulgação de
seus trabalhos.
Escritores como Juan Diego Incardona e César González (focando em casos
argentinos) são alguns dos exemplos de autores villeros que idealizaram e produziram as
revistas eletrônicas El Interpretador e ¿Todo piola?, respectivamente, meios para fazer
circular essas novas textualidades das quais estamos tratando. Outro caso, mais famoso, é o da
editora Eloísa Cartonera, cooperativa criada em 2003 e que fabrica livros com capas de
papelão reciclado, contado e pintado à mão, que se transforma suporte para edições
52
distribuídas a preços populares em diferentes circuitos.17 Atualmente com mais de 200 títulos
publicados, de autores argentinos e de outros países da América Latina, a editora surgiu num
contexto de crise do país, que deixou muitos homens e mulheres desempregados. Para superar
essa fase, um grupo de amigos apaixonados pela leitura e interessados em desenvolver um
novo trabalho viram uma possibilidade de mudança através dos papelões que outros
trabalhadores desempregados catavam nas ruas de Buenos Aires. Um tempo depois, na
primavera de 2003, nasceu a cooperativa, que foi um sucesso na imprensa nacional e
internacional e que chamava a atenção, entre outros motivos, por suas capas de cores vivas e
alegres.
Iniciativas como essa, que está diretamente associada a Washington Curcurto, um
escritor de Quilmes, município do Conurbano argentino, e repositor do Carrefour até a
publicação de seu terceiro livro, bem como a de tantos escritores novos, ou borders, como os
define Cucurto, permitem a diversificação do olhar para as periferias de Buenos Aires e seus
habitantes. Os modos de narrá-los e representá-los devem ter como fundamento principal o
respeito à dignidade das múltiplas formas de vida que estão envolvidas; impõe-se que sejam
narrativas que venham a corrigir a “miopia da nossa cultura letrada” (VIOTTI e
BALLADARES, 2010, p. 238).
17 Estas e outras informações estão disponíveis em: http://www.eloisacartonera.com.ar/historia.html. Último
acesso em 02 de junho de 2018.
53
2. A PRODUÇÃO LITERÁRIA VILLERA E FAVELADA
Pensar a produção literária de autores oriundos de territórios villeros e favelados nos
remete a um exercício de reflexão sobre questões educacionais do Brasil e da Argentina, pois
é preciso entender o quanto a trajetória desses sujeitos que escrevem sofreu interferência dos
espaços de formação escolar básica, pensando em sua lógica de funcionamento e como se
formam os estudantes que passam por eles nesses países. Fazer parte de uma família pobre
influenciou em maior ou menor medida suas histórias e, consequentemente, seus estudos,
como ainda o faz com tantos escritores (até o momento) anônimos que provavelmente
estamos prestes a conhecer e outros que nunca conheceremos ou que deixarão de escrever, por
inúmeras adversidades.
A dificuldade em reduzir e erradicar a pobreza está diretamente conectada ao atraso
em relação à educação de um país e esse é um esquema cíclico: se a pobreza é um fator que
priva um indivíduo da educação (ou só lhe possibilitando o acesso a alguns poucos anos de
uma formação bastante precária), na mesma proporção o limitação do acesso aos estudos
formais de qualidade faz com que uma população mais pobre se mantenha nesta circunstância
por gerações. Wilhelm Hofmeister comenta que “quase cem milhões de pessoas na América
Latina vivem em condições de pobreza, o que representa 20% da população da região
sobrevivendo de forma precária, mal tendo condições para comer, muito menos para ir à
escola” (HOFMEISTER, 2006, p. 7).Este dado nos ajuda a entender a problemática da
motivação para que os jovens se tornem escritores ou mesmo cheguem a ingressar (e se
manter) em uma universidade pública, pois se não há meios para frequentar uma escola, isso
provocará o desinteresse pelos estudos e pela leitura (admitindo-se as diferenças entre os
países supracitados). Tornar-se um leitor, posteriormente um leitor crítico e, finalmente, um
autor é um caminho árduo e pouco provável para alguém cuja realidade não é a de valorização
do processo de aprendizagem, não contando tampouco com perspectivas de mudanças desse
quadro.
Na América Latina, existem em porcentagens significativas tanto os casos de crianças
que não chegam a frequentar uma escola quanto de outras que a abandonam, e não apenas por
carecerem de apoio financeiro para sua permanência, mas também por precisarem trabalhar
para complementar a renda familiar e garantir-lhe o sustento. Isso aumenta o abismo entre as
classes sociais, a qual já aponta uma profunda situação de desigualdade, pois enquanto um
grupo, forçado pela necessidade, compromete seus estudos em prol da priorização do
trabalho, outro faz parte de uma pequena elite que sempre recebeu uma educação plena,
54
estudando em instituições que oferecem um ensino de melhor qualidade para seus estudantes,
o que lhes garantirá maiores oportunidades futuramente, fazendo-se perpetuar o hiato social
entre este grupo e o primeiro. As crianças e os jovens pobres “acabam fazendo escolhas de
vida e de trabalho baseadas, prioritariamente, na necessidade imediata, na pressão de parentes
e amigos ou diante das limitadas oportunidades que existem em suas redes” (FIGUEIREDO,
2018, p. 24).
Para que ocorra de modo abrangente uma mudança no atual quadro educacional latino-
americano, é necessário que se invista financeiramente nesta área. Diante da ausência (ou
ineficácia) do Estado, passam a agir organizações que elaboram estratégias para contornar o
problema a curto e médio prazo. Surgem também programas sociais (ou a reforma dos já
existentes) como resultado de reivindicações da opinião pública, como aponta Simon
Schwartzman (2006). Este autor, ao analisar dados de 2004 sobre a educação no Brasil desde
o pré-escolar até o Ensino Superior, afirma que um país extremamente desigual não
conseguirá tornar-se desenvolvido, uma vez que, para que isso seja possível, precisaria ter
bem resolvidos problemas como a pobreza e a escassez – ou mesmo a absoluta ausência – de
serviços básicos de qualidade nas áreas educação e saúde.
As camadas sociais de mais baixa renda são as mais afetadas por esses problemas.
Segundo Schwartzman, “as análises estatísticas feitas a partir dos resultados do SAEB e do
PISA não deixam dúvida de que o principal correlato do mau desempenho das crianças na
escola é o nível socioeconômico de sua família, e, no caso do Brasil, também sua origem
étnica” (SCHWARTZMAN, 2006, p. 15). É dessas camadas mais empobrecidas e, portanto,
menos educadas, que procedem os autores brasileiros sobre os quais dissertaremos neste
capítulo. Autores que, não tendo recebido a educação adequada para sua completa formação –
como tantos outros moradores de periferias –, paradoxalmente se emanciparam através da
escrita, mas carregam consigo um histórico no mundo do trabalho que difere bastante da
atividade intelectual que exercem atualmente. Além de sua situação financeira, a própria
escola o direciona neste sentido porque oferece uma formação voltada para o mercado de
trabalho manual, em especial no Ensino Médio, e muitos estudantes o frequentam (quando o
fazem) em busca de uma titulação que lhes garanta uma vaga de emprego.
Na mesma linha de raciocínio, analisando o caso argentino, Alberto Sileoni (2006)
assinala que distintas gerações de uma mesma família ficam sem recursos e oportunidades,
visto que a exclusão de populações mais pobres a serviços como a educação contribui para a
perpetuação desse processo de pauperização. O autor defende também a ideia de que não se
55
deve desvencilhar educação de pobreza, tendo em vista que, conforme definem alguns
estudos, “cada ano de escolaridade reduz em até 6% a possibilidade de ser pobre” (SILEONI,
2006, p. 55), ainda que outros fatores também tenham uma função determinante nessa relação.
A fim de reparar as disparidades de origem dos alunos e compensar a pobreza
educativa, a Argentina criou uma série de políticas de equidade, implementadas pelo
Ministério de Educação, Ciência e Tecnologia, tais como o Programa Nacional de Inclusão
Educativa “Todos a estudiar”, o Programa Nacional de Bolsas Estudantis, centros de
atividades juvenis, entre outros, segundo comenta e discute Sileoni. As ações desenvolvidas
visavam assegurar a inserção, reinserção e/ou permanência dos discentes na escola, bem como
o uso desse espaço para atividades extracurriculares. Além disso, e partindo de uma lógica
distinta da brasileira, na Argentina há políticas de acesso amplo aos cursos superiores em
universidades públicas, com menos abertura ao setor privado neste nível educacional,
tornando o ingresso mais equânime.
As diferenças nos sistemas educacionais do Brasil e da Argentina nos levam a concluir
que há distinções também nas trajetórias dos autores de cada país, já que, como consequência
da realidade em que viveram, podemos considerar que é mais improvável que indivíduos
brasileiros favelados e negros tornem-se escritores que os argentinos villeros. A
aprendizagem, como acrescenta Sileoni, “é um veículo para que as crianças descubram que
são sujeitos de direito, já que o conhecimento gera autonomia e a ignorância, dependência”,
possibilitando que elas se transformem em sujeitos conscientes e críticos.
Distinguindo-se dos casos brasileiros, os escritores argentinos que investigamos
concluíram os estudos na educação básica e média, ingressando posteriormente em uma
universidade pública (com exceção de Walter Hidalgo). Entretanto, a emancipação através da
leitura e da escrita (e não necessariamente via educação formal) é algo comum a todos,
levando-se em conta que se emancipar é “atrever-se a tomar a palavra, atrever-se a perguntar,
a assumir decisões próprias e a selecionar valores” (SILEONI, 2006, p. 51-52), como já
defendemos anteriormente, ao mencionar o caso do personagem literário de Caliban.
Tomar a palavra e escolher seus próprios valores envolve a opção por expressões que
marcarão sua personalidade. Um mesmo termo, segundo seu contexto e a pessoa que o
pronuncia, pode assumir um aspecto estigmatizante ou constituir uma afirmação de
identidade, nomear um coletivo, politizando o termo. Esta pesquisa, como outras já realizadas
ou em desenvolvimento, pretende ampliar o vocabulário da universidade a respeito das
produções literárias marginais, periféricas, subalternas, negras, faveladas, villeras,
56
problematizando a polissemia destes termos e reivindicando a relação que existe entre esses
vocábulos.
Assumir-se como villero ou favelado ao expressar-se (através da escrita e/ou da
oralidade) é posicionar-se neste lugar de fala e lutar pelo reconhecimento do valor dos
discursos e das vozes que ecoam dali; é (re)afirmar um sentimento de pertencimento coletivo
lançando mão de um predicado imaterial (villero, marginal, favelado, periférico etc.),
autorizado pela experiência, como descreve João Camillo Penna; é lutar pelo fim do
silenciamento dos sujeitos que aprenderam a balbuciar, aprimoraram sua linguagem e hoje
falam desde um lugar de autores; é construir ou ratificar a identidade e a memória daqueles
que transcenderam os limites do possível, impostos àqueles que historicamente foram
excluídos do grupo que decide quem pode se pronunciar, o que deve ser dito, o que vai ser
ouvido e por quais meios; é alicerçar sua tese de que é inadiável a mudança do referencial
discursivo no tocante às villas e favelas, fazendo com que estes espaços (e sua população)
sejam enaltecidos, ao serem vistos também por seus pontos positivos.
Camilo Blajaquis/César González, Juan Diego Incardona e Ferréz – como tantos
outros escritores que se identificam com as margens da cidade – escrevem sobre a periferia
explicitamente a partir de suas experiências em territórios periféricos, reivindicando, em sua
militância, a substituição da vergonha pelo orgulho de sua trajetória e destacando o papel
crucial do sentimento de ser villero/favelado (que respira e interpreta sua realidade) para a
formação dos sujeitos críticos nos quais se transformaram.
Os discursos de escritores como esses são representativos das “polifonias marginais”, como
argumentam os autores do livro que recebeu como título este mesmo conceito e que foi
organizado por Lucía Tennina, Mário Medeiros, Érica Peçanha e Ingrid Hapke, em 2015.
Segundo a epígrafe da obra, Mikhail Bakhtin afirma que a polifonia é uma combinação de
vozes que, apesar de formarem essa unidade, permanecem independentes e representam
vontades individuais. Ferréz, Sérgio Vaz, Geovani Martins, Diego Incardona, Walter Hidalgo,
Wk e Leonardo Oyola (e, por que não, César González) são comparados nesta pesquisa a
partir da semelhança entre essas vontades individuais que possuem, e foram selecionados
porque sua literatura denota, para eles, a defesa de interesses coletivos das camadas mais
pobres. E, “embora tenha como destinatário privilegiado os moradores da periferia, esta
literatura não constitui um movimento localizado e limitado: difunde-se para toda a cidade e
influi de modo profundo na forma de imaginar o microterritório” (PIMENTEL, 2017, p. 334).
57
2.1. Ferréz, Sérgio Vaz, Geovani Martins e Eliana Sousa Silva
Com o aparecimento de autores marginalizados no cenário literário brasileiro, os
sujeitos periféricos aos quais havia sido reservado o lugar do silêncio e que antes serviam
apenas como objeto de investigação e apreciação passaram a pôr em prática estratégias de
autorrepresentação através das quais se projetam como porta-vozes informais e não
autorizados de uma coletividade. Esta nova presença no nosso espaço literário “não pode ser
lida como um dado isolado, mas sim como a conformação de um grupo específico que deseja
se fixar no seio de uma estrutura hegemônica” (PATROCÍNIO, 2013a, p. 12), valendo-se de
várias estratégias na busca de reconhecimento para suas produções simbólicas e na luta por
pertencimento e consagração no campo cultural, como a fundação de editoras e a construção
de discursos e representações imagéticas marcas voltadas para a periferia. É importante
pontuar que vários desses autores reivindicam a categoria de marginal como indispensável
para a construção de sua identidade, baseando-se nos princípios socioeconômico e geográfico.
Por estarem na condição daqueles que escrevem sobre um cotidiano que também
vivenciam – o dos territórios periféricos –, sua escrita possui um teor testemunhal, como
afirma Paulo Roberto Tonani do Patrocínio (2013a). Ao considerar-se que a voz dos autores
marginais sem pretender ser mais autêntica é mais autorizada a representar a favela e os
favelados, coloca-se em debate o papel do intelectual – que, tradicionalmente, foi quem falou
por eles – “frente às vozes periféricas que romperam a posição de objeto e agora figuram
enquanto sujeitos discursivos” (2013a, p. 18). Mais, estes sujeitos oferecem uma
representação contra-hegemônica do que é a periferia, procurando enfraquecer e eliminar as
falas que se encarregaram de estigmatizá-la.
Além daqueles que experimentam o dia a dia desse território, atualmente há muitos
autores “de fora” que também se voltam para o tema. Com isso, a periferia urbana passou a
ocupar um lugar de destaque na produção literária do Brasil e vem aumentando o interesse do
mercado editorial argentino pelas obras de escritores oriundos de periferias ou que abordam
em suas obras temas e problemas relacionados a esses territórios.
João Camillo Penna aponta com maestria alguns aspectos dessa nova realidade. Em
nota ao livro recém citado de Patrocínio, o pesquisador nos recorda que a crítica literária
brasileira tradicional afirma que as obras dos autores da margem deixam a desejar no quesito
estético, considerando-as fracas, literariamente falando. Esse campo tradicional e conservador
da literatura nega-se a aceitar a renovação da realidade literária, em nome da manutenção e
58
“proteção do monopólio de seu patrimônio exclusivo”, atuando de modo a perpetuar a
marginalização de obras escritas por autores não canônicos; livros que essa crítica limitada
não quer aceitar como propriamente representativos da literatura nacional. Nesta seção,
avaliaremos alguns desses livros (e respectivos autores) que se enquadram no que acabamos
de observar.
Ferréz
O primeiro caso é o de Ferréz, pseudônimo de Reginaldo Ferreira da Silva, que segue
uma linha ideológica semelhante à de César González quando assumiu a identidade de Camilo
Blajaquis no período de produção de seu primeiro livro. Ary Pimentel destaca:
Ferréz – com nome criado pelo próprio artista como homenagem a dois grandes
heróis populares brasileiros: Virgulino Ferreira, o Lampião (FERRE) e Zumbi dos
Palmares (Z) – fala como negro, fala também como nordestino e pobre, mas
especialmente fala como morador da periferia, levando a literatura a ocupar um novo
lugar numa região de fronteira urbana [...]. (PIMENTEL, 2017, p. 334)
Ferréz “fala e escreve em ‘favelês’” e sua “expressão linguística tem a função de
marcador de pertencimento, demarcando o nós do território” (ibidem, p. 334). Sendo um dos
principais nomes da “Literatura Marginal Periférica” e uma figura de destaque entre os
escritores contemporâneos, foi o responsável por ressemantizar o termo Literatura Marginal,
antes associado à poesia da Geração Mimeógrafo dos anos 1970. Isso ocorreu de modo quase
natural e depois de conhecer (por reportagens) as trajetórias de João Antônio e Plínio Marcos.
Conforme explicou o próprio Ferréz em uma entrevista citada por Érica Peçanha (2006), ele
passou a utilizar tal categoria para definir o movimento literário do qual fazia parte por
considerar que era o nome mais adequado para caracterizar e dar sentido ao que ele e outros
escritores oriundos de regiões populares representavam: objetos postos à margem de uma
sociedade que se quer homogênea.
Ferréz lançou-se na cena literária com o livro de poesias Fortaleza da desilusão
(1997), mas seu reconhecimento veio com Capão pecado (2000), romance hoje considerado
um clássico da Literatura Marginal Periférica e que já atingiu a marca de mais de cem mil
exemplares vendidos. Ferréz também escreveu Manual prático do ódio (2003) e Deus foi
almoçar (2011), entre vários outros títulos. Idealizou uma série de estratégias para a
divulgação das obras de autores das periferias e da cultura destes territórios, organizando a
59
três números especiais da revista Caros Amigos com o subtítulo Literatura Marginal: a
cultura da periferia. O primeiro foi publicado em 2001, e os demais em 2002 e 2004. Ferréz
criou também o Selo Povo, uma editora que visa a distribuir títulos de autores da periferia a
preços acessíveis aos leitores da periferia, e a marca 1daSul, que comercializa roupas,
acessórios, adesivos e livros voltados para moradores de zonas periféricas e desenvolvidos por
talentos destas mesmas zonas.18
Em suas obras, dialoga com a cultura pop, com o hip-hop e o rap. A interação com
este último se expressa, por exemplo, em Capão Pecado, por meio das citações e
participações de figuras ligadas ao movimento, que aparecem nas aberturas de todos os
capítulos do livro.
Ferréz comenta, nas primeiras páginas dessa obra, que esta se trata “talvez [do] reflexo
de uma periferia que cerca toda a cidade” (FERRÉZ, 2016, p.10), acrescentando que “a
história de Rael e Paula está nestas páginas, mas antes estava na própria vida” (ibidem, p. 11).
Isso nos leva a considerar Capão pecado como um romance de autoficção e de caráter
testemunhal. Tal como na obra literária de Camilo Blajaquis/César González, em que a voz do
eu lírico se confunde com a voz do próprio autor, o protagonista desse romance de Ferréz
passa por experiências deveras semelhantes às suas. Segundo Mc Gaspar (2016), “Ferréz é
+1DASUL, e sua missão é retratar a periferia através da sua poesia realista” (GASPAR, 2016,
p. 133).
Publicado pela primeira vez em 2000, Capão pecado é uma obra na qual o autor
enfatiza a desigualdade entre ricos e pobres, comparando a vida nas “quebradas” à vida nas
áreas mais nobres de São Paulo (diversas vezes, referindo-se aos moradores destas últimas
como “playboys”). O narrador e os personagens do livro descrevem a favela de modo
semelhante ao que se nota nas poesias de González e de tantos outros escritores de periferia:
sem idealizá-la e sem, tampouco, determiná-la a partir da violência ou da falta (embora
reconheça tais atributos). A favela é retratada tal como ela é vista de dentro por esses sujeitos,
segundo o ponto de vista de quem vive no território, de quem vive o território. E tal descrição
do ethos favelado é feita de forma indireta, isto é, está embutida na narrativa de modo que não
se encontram trechos gratuitamente descritivos.
Com uma linguagem que se divide (e, às vezes, se mescla) entre crueza e a abordagem
poética (apesar de ser, visualmente, um texto em prosa), o leitor se depara com um recorte do
que vivenciam diariamente os habitantes de Capão Redondo, favela da cidade de São Paulo.
18 Disponível em: http://www.loja1dasul.com.br/. Último acesso em 26 de maio de 2018.
60
As cenas que compõem o romance variam entre aquelas que são comuns a qualquer ponto da
cidade e as que são próprias ao território, muitas vezes chocantes pelo caráter dos males que
provocam aos seres humanos afetados.
Por abordar essa temática e ter esse cenário como pano de fundo, a narrativa de Ferréz
se assemelha às poesias de González. Cada uma a seu modo e sua forma, as obras
representam o grito desses escritores. É o grito daqueles que quiseram falar e foram
ignorados, por isso precisaram exigir em tom mais alto aquilo que sempre fora direito seu,
mas que lhe fora arrancado: a fala com sua versão sobre a própria história. Tais autores são
apenas uma porcentagem mínima de uma população que foi emudecida, conferindo-lhes uma
possibilidade de figuração e representatividade. O que os calou foi a desigualdade social, a
qual Jean-Jacques Rousseau considera uma “desigualdade moral ou política”, fruto de uma
convenção tácita entre os homens,
e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens.
Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo de outros,
como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo
fazerem-se obedecer por eles. (ROUSSEAU, 2001, p. 39)
Por isso é tão fundamental que esses escritos da periferia e, consequentemente, a
própria periferia ganhem visibilidade. Não significa afirmar que nunca se leu qualquer
menção a villas/favelas em obras literárias reconhecidas em larga escala e de autores
canônicos antes dos pensadores villeros e favelados começarem a escrever.19 Significa que
para estes últimos o território e seus atributos deixam de ser um mero detalhe e se tornam o
elemento central e protagônico. Escreve-se sobre a periferia, para a periferia e a partir da
periferia.
Ambos os autores encontraram na literatura a linguagem para uma militância e
resistência que garantissem a ressignificação do território ao qual se vinculam suas histórias
de vida, descortinando-o para o mundo e desconstruindo as estórias que julgam equivocadas.
Realizam constantemente um trabalho árduo e profícuo de contranarrativa para provar que
outra representação sobre seu território é possível.
Uma pergunta central e que deu título a um encontro na Cazona de Flores (Buenos
Aires), o qual contou com a participação do escritor Ferréz, a convite do Coletivo ¿Todo
Piola?, do qual participa César González, é: do que estamos falando quando falamos em
marginal? Segundo os participantes que debateram nesse encontro, um modo de narrar sobre
19 Dialogamos aqui com a ideia que dá nome ao grupo criado por Wk, os “Pensadores Villeros
Contemporáneos”.
61
o ser marginal sem que se reforcem os estereótipos é falar das questões marginais, no plural,
sem diminuir ou desconsiderar as diferenças, como sintetiza Lucía Tennina (2013).
Segundo González, em uma entrevista a um programa de televisão argentino, o autor
lança mão do imaginário que se cria em torno de sua escrita – devido, particularmente, à sua
trajetória pessoal – para ganhar visibilidade nos meios de comunicação e dar força à sua
produção literária, participando de encontros em diferentes espaços. Isso permite ao escritor
que os espectadores tenham acesso direto à sua voz, e não a uma releitura e possível
apagamento da figura do autor e do discurso crítico que ele tenciona apresentar com sua obra.
Esse é o mesmo movimento que faz Ferréz em sua passagem por Buenos Aires,
aproveitando a projeção de suas obras, em especial pela divulgação da tradução do livro
Manual prático do ódio, para interagir mais ativamente com os meios de comunicação do país
em que se encontrava.
Eventos como os Saraus da Cooperifa (em São Paulo) e os encontros promovidos por
coletivos como o ¿Todo Piola? ajudam a destacar a relevância da produção literária de
sujeitos marginais, bem como valorizam as favelas (onde esses eventos ocorrem) como lugar
de criação, lugar com real potência de onde podem se projetar pensadores e artistas. Além
disso, pelo surgimento e constante atuação de um número cada vez maior de escritores e
artistas oriundos desse território, marcado durante décadas pela indiferença da sociedade e
pela ausência do Estado, nota-se que a circulação de produções como as de González e Ferréz
não são mais exceções, apesar de ainda representarem uma pequena parte das publicações que
recebem maior destaque em seus respectivos países, por não interessarem a uma considerável
parcela do mercado editorial.
O livro Manual prático do ódio, de Ferréz, ao passar a fazer parte da coleção Vereda
Brasil da editora argentina Corregidor, que apresenta obras de escritores já consagrados na
literatura brasileira, nos revela que a literatura atual transcende os limites e os padrões do
campo literário, uma vez que o autor recebe seu devido reconhecimento apesar de sua
trajetória periférica e mesmo sem ter em sua bagagem um histórico acadêmico ou qualquer
título formal que o equipare ao capital cultural do grandes nomes do cânone literário do país.
Retornando à discussão sobre as temáticas que predominam nos textos de autores
oriundos de favelas, Ferréz aborda, ainda em Capão Pecado, a condição do precariado,
espaço de trabalho a que parecem destinados os subalternos, os moradores pobres das
periferias, que não serviriam para nada além de trabalhos braçais, de acordo com um discurso
elitista, que Ferréz parafraseia quando problematiza:
62
O cara que não serviu para ser faxineiro de um grande hotel de São Paulo, que
durante anos vendeu vassouras nas ruas da Sul, que insistiu em passar no teste para
ser garçom, mas não tinha “boa aparência”, que foi recusado em dezenas de
empresas, sempre porque morava “naquele lugar”, aquele que era ajudante de
pedreiro ou que depois foi ajudando geral na rede Bob’s, aquele gordinho ali da rua
de cima, barbudo que falava pra caralho de revolução, de não aceitar coisas que o
sistema faz. Ia ser escritor? Para de tiração. (FERRÉZ, 2016, p. 9-10)
Os personagens de Capão pecado são um exemplo dessa realidade. Rael, o
protagonista, trabalhava em uma padaria, fazendo entregas, arrumando e limpando o local.
Mais tarde, vai trabalhar em uma siderúrgica, chegando a viver nos fundos da empresa para
vigiá-la à noite. Sua mãe também vivia na mesma condição subalterna e precária.
Estudiosos da temática do precariado lhe atribuem diferentes sentidos. O que nos
interessa aqui é a proposição de Ruy Braga em seu livro A política do precariado: do
populismo à hegemonia lulista. Antes de defini-lo, o autor contextualiza o debate:
O recente aumento dos acidentes e das mortes no trabalho, a resiliência do número
absoluto de trabalhadores submetidos à informalidade, a concentração da massa dos
empregos na base da pirâmide salarial ou a elevação da taxa global de rotatividade e
de terceirização da força de trabalho dão ideia da desagregação social que a
ortodoxia rentista afiançada pela “Carta ao Povo Brasileiro” assegurou ao país na
década de 2007. Por seu lado, a teoria da formação da “nova classe” somada à tese
da hegemonia às avessas ajudaram a esboçar uma resposta sociológica ao enigma da
conversão do petismo ao rentismo globalizado: para pilotar o modelo de
desenvolvimento pós-fordista no país sem romper com o ciclo da valorização
financeira só mesmo pacificando as fontes do trabalho barato, daí uma modesta
desconcentração de renda na base da pirâmide salarial a fim de garantir uma severa
concentração de capital financeiro no cume do regime de acumulação. Tudo somado
ao “transformismo” da direção histórica dos movimentos sociais no país. (BRAGA,
2012, p. 225)
Diante disso, pode-se afirmar que o processo de precarização é um aspecto
constitutivo desse estágio da expansão do capital. De acordo com o sociólogo, o precariado é
uma classe nova, que surge no contexto fordista e do Estado de Bem Estar Social. A noção de
precariado nos remete à ideia da própria relação salarial (como também das condições
precárias de vida), uma dimensão inerente, essencial ao capitalismo. Nesse sistema
econômico, o proletariado é fundamentalmente precarizado.
É importante comentar que Braga leva em consideração o conceito de superpopulação
relativa de Marx, que opõe três tipos de segmentos: 1) o flutuante – trabalhador que entra e sai
muito rapidamente das empresas, por serem atraídos e repelidos pelos ciclos de investimento
do capital; 2) o latente – o setor que está no campo e deseja migrar para a cidade (os muito
jovens e os que querem entrar para o mercado de trabalho, estes últimos sendo os que estão na
63
informalidade, em ocupações muito informais, sem direitos ou garantias, e que querem entrar
no mercado formal); 3) e o estagnado– trabalhadores que se encontram em condições
absolutamente degradantes de trabalho, e que adoecem e se acidentam, o que provoca que sua
saída do trabalho. O valor da força de trabalho acaba não sendo paga, visto o baixo salário.
Como afirma Ruy Braga, o fato de o trabalhador estar no mercado formal não exclui a
possibilidade de ser um integrante do precariado, pois formalidade não deve ser confundida
com estabilidade.
Então, o que está fora desse conceito de precariado? De um lado, a fração da classe
trabalhadora qualificada, isto é, setores mais bem pagos (e estáveis) e que exigem mais
formação. E de outro, a população pauperizada, os que não desempenham nenhum tipo de
atividade econômica essencial (o chamado “peso morto” da classe trabalhadora) e vivem da
informalidade. Estão fora do capitalismo, apenas consomem quando têm alguma condição
mínima para fazê-lo. O precariado em Ruy Braga daria conta da classe trabalhadora ativa que
estaria espremida entre, de um lado, o aumento da exploração econômica e, de outro, a
exclusão social, o que nos direciona ao protagonista do filme ¿Qué puede un cuerpo?
(dirigido por César González), um jovem villero que sobrevive recolhendo e vendendo
materiais recicláveis e que ingressa no mercado formal por um tempo, em um cargo ocupado
por trabalhadores de baixa escolaridade.
É este precariado (essa fração da classe trabalhadora não qualificada ou semi-
qualificada) que caracteriza o capitalismo na periferia, e não os setores qualificados. Não se
consideram os que estão fora do mercado de trabalho porque estes não fazem parte da
reprodução das relações de produção do trabalho. O pauperismo, isolado, não caracteriza o
capitalismo, ainda segundo Braga.
A integração dos trabalhadores via consumo tende a mascarar a degradação das
condições do trabalho, pois ao mesmo tempo em que aumentam o assalariamento e a
formalização (como também a desconcentração da riqueza), aumentam também a rotatividade
do trabalho, os acidentes, a flexibilização e a terceirização. Então, são indissociáveis o
aumento da formalização do trabalho e o aumento da degradação das condições de consumo
da força de trabalho.
O precariado, especificamente no contexto europeu (mas não apenas), constitui uma
nova classe social que emerge como resultado da globalização econômica, a partir
especialmente dos anos 80, e que se apoia sobre novas relações sociais de produção. E é este
conceito que o pesquisador pretende superar com seus estudos.
64
Pensando nos três segmentos em que os trabalhadores precarizados são divididos
(segundo a teoria marxista), podemos classificar os personagens do filme de González e do
livro de Ferréz no terceiro, o estagnado, o que se encontra em condições subumanas de
trabalho.
González toma esse personagem, que não tem nome, como exemplo para ilustrar a
situação de muitos jovens (e adultos) villeros e as consequências de sua condição de
subalternidade. Nesta produção, tal como em sua poesia, o autor pretende ressaltar o que, para
ele, é a real definição do modo de viver daqueles que se encontram às margens da cidade, seja
no aspecto territorial ou no ideológico.
Os sujeitos subalternizados, quando exercem alguma função remunerada, geralmente
assumem cargos que exigem baixa escolaridade e ocupam a base da pirâmide salarial,
recebendo apenas o suficiente para sobreviver. Além disso, não é incomum descobrir
empresas que mantém seus funcionários trabalhando em condições precárias, insalubres,
desumanas. Quando não se trata do aspecto físico (quanto à infraestrutura) do local de
trabalho, entra em jogo o aspecto psicológico, em que o trabalhador é tratado com descaso
pelos que ocupam cargos superiores, como se fizesse parte do respeito à hierarquia aceitar ser
ignorado pelos outros, ser tratado como nada apenas pelo fato de fazerem parte de um grupo
social que não consta no senso comum como digno de respeito.
Alguém que trabalha em uma função que carece de prestígio se encontra também em
uma dimensão da subalternidade, que são muitas, conforme comentamos em outra ocasião.
Esse não é mais o caso de Ferréz, pois apesar de escrever a partir de um horizonte de
subalternidade, não se pode considerá-lo subalterno se levarmos em consideração que ele
experimentou o cruzamento da fronteira que tenta homogeneizar centro e margem, e o
resultado de seu empoderamento foi o lugar de autor que ele assumiu. Tampouco se deve
acreditar que o escritor se encontra em uma posição prestigiada. O mais apropriado seria
afirmar que ao menos uma das dimensões da subalternidade foi superada, pois ele é capaz de
se representar, não precisa mais ser representado, parafraseando Spivak, quem afirma que o
subalterno, propriamente dito, não pode falar por si só, pois necessita da mediação de outros.
Este, definitivamente, não é o caso de Ferréz.
65
Sérgio Vaz
Sérgio Vaz é um poeta da periferia de São Paulo, criador da Cooperativa Cultural da
Periferia (Cooperifa) e um dos fundadores do Sarau da Cooperifa, evento cultural criado em
2001 e que está voltado para a poesia. O encontro acontece em um bar da periferia e conta
com participantes que o transformam “em um espaço de resistência cultural”, utilizando “a
oralidade enquanto suporte de expressão” (PATROCÍNIO, 2013a, p. 15). Autointitulado
“Poeta da Periferia”, Vaz é autor de uma série de livros, lançados pela Global Editora e pela
Aeroplano, além de possuir outros veículos de divulgação de suas poesias, marcadas por uma
escrita política e de resistência, lançando mão de uma linguagem capaz de seduzir por meio
da ternura.
Sérgio Vaz também é autor da autobiografia Cooperifa: antropofagia periférica e de
Literatura, pão e poesia (livro de crônicas e poesias), além de desenvolver projetos de
incentivo à leitura e à escrita em escolas públicas. Em 2007, organizou a Semana de Arte da
Periferia, em referência à Semana de Arte Moderna, de 1922. O objetivo do evento foi propor
“um espaço para a veiculação das produções culturais de artistas da periferia dentro da própria
periferia”, construindo sentidos para tais produções e “compreendendo estes espaços
marginalizados como polos de uma rica produção cultural que recebe pouca visibilidade”
(PATROCÍNIO, 2013a, p. 207-208).
Dialogando com a proposta da Semana de 22, Vaz escreveu ainda o Manifesto da
Antropofagia Periférica. Neste texto,
é possível identificar o desejo de compreensão da cultura popular, ou melhor, a
periférica, por parte destes autores da margem. Predomina neste aspecto uma
percepção essencialista da cultura, observando os artistas de periferia enquanto
produtores de uma arte própria, não contaminada pelas estruturas hegemônicas.
Além disso, a escrita, o próprio fazer literário, assume uma feição política de
intervenção direta na realidade social e cultural. “A Arte que liberta não pode vir da
mão que escraviza” – a sentença, presente duas vezes no Manifesto, reafirma o claro
intento de elaborar uma arte engajada e, principalmente, fora dos espaços
hegemônicos de poder, local por excelência do predomínio das forças políticas que
atiraram estes poetas periféricos à margem. (PATROCÍNIO, 2013a, p. 210)
Por essas razões, e por tantas outras, pode-se considerar Sérgio Vaz como um ator
social que proporciona, através da poesia e do ativismo, a valorização de grupos antes
inferiorizados, a ressignificação dos espaços da “senzala moderna” (como ele define a
periferia) e a criação de uma identidade fundada nas vivências transcorridas nesses mesmos
terrenos. É o próprio “artista-cidadão” que procura em seu Manifesto projetar-se como um
66
sujeito da periferia que lança mão da literatura como uma arma transformadora, atuando na
desconstrução dos estigmas, ele próprio um produto da periferia, que, conforme escreve,
nunca esteve tão violenta: pelas manhãs, é comum ver, nos ônibus, homens e
mulheres segurando armas de até quatrocentas páginas. Jovens traficando contos,
adultos, romances. Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar. [...] A
criançada está muito louca de história infantil. Umas já estão tão viciadas, e, apesar
de tudo e de todos, querem ir para as universidades. Viu, quem mandou esconder ela
da gente, agora a gente quer tudo de uma vez! (VAZ, 2011, p. 47).
Graças a esse desejo que agora desperta, os favelados “estão esvaziando as cadeias e
desempregando os Datenas” (VAZ, 2016, p. 102), muitos deles, através da poesia. Através de
argumentos como estes, Sérgio Vaz nos convence da necessidade de disputar o sentido da
poesia e, portanto, as regras das artes que orientam o pertencimento ou não ao campo, porque,
no final, “todo mundo gosta de poesia. / Só não sabe que gosta” (ibidem, p. 129), ou melhor,
só não sabe que aquilo de que gosta (seja rap, repente, funk, tecnobrega, slam, batalhas de
rima na periferia ou os gritos do graffiti nos muros da cidade) também é poesia, cultura e
resistência.
Geovani Martins
O jovem narrador Geovani Martins, nascido em Bangu, bairro da Zona Oeste da
cidade do Rio de Janeiro, escreve a partir de sua experiência como morador da favela do
Vidigal e do impacto que ele sofreu com a mudança de um bairro ao outro.20 Apesar de sua
participação em eventos literários ter iniciado há pouco tempo – em 2013, esteve entre os
convidados da Festa Literária das Periferias (FLUP)–, sua inclinação à leitura não é tão
recente assim, pois ele afirma que sempre leu muito e se interessava por histórias em
quadrinhos desde os quatro anos de idade. Uma evidência de que esses seus hábitos lhe
renderiam bons frutos foi o episódio em que o escritor se destacou entre outros participantes
de uma oficina literária ministrada pelo poeta Carlito Azevedo, em 2014. Revelando sua
habilidade para a escrita de narrativas carregadas de criatividade, Geovani Martins escreveu
um conto sob um ponto de vista imprevisível, a partir do tema escolhido por Azevedo: a
morte de um cinegrafista, atingido por um rojão em um confronto entre policiais e
20 De acordo com entrevista de Geovani Martins à revista Época, disponível em:
https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2018/03/geovani-martins-como-favela-me-fez-
escritor.html.Últimoacesso em 13 de maio de 2018.
67
manifestantes. Enquanto alguns se centraram na polícia, nos manifestantes ou na vítima fatal,
“Martins imaginou o rojão, que se sentia feliz por, ingênuo, acreditar ser levado para alegrar
uma festa”, ou seja, optou pelo “único elemento da cena que não vinha com filosofia
pronta”.21
Nota-se o mesmo olhar criativo em O sol na cabeça, no qual diferentes narradores nos
brindam com as mais variadas histórias, cada um deles focado em uma das múltiplas situações
que podem ser experimentadas em uma periferia carioca, produto da reelaboração de
vivências que o próprio autor leva na bagagem.
Assim como aconteceu com Ferréz e Sérgio Vaz, Martins, antes de publicar seu
primeiro livro, trabalhou em diferentes funções braçais e bastante alheias ao mundo letrado,
tendo estudado apenas até a oitava série. Conforme afirmamos ao início deste capítulo, esses
dados sobre tais autores brasileiros nos revelam que a necessidade de inserção no mercado de
trabalho, seja o formal ou o informal, interfere diretamente na conclusão dos estudos formais
na educação básica e o subsequente ingresso na superior. Diante disso, via de regra, torna-se
improvável que estudantes pobres de instituições públicas de ensino (principalmente as
municipais e estaduais) se vejam motivados a tornar-se escritores, ou mesmo cheguem a esse
caminho.
Em O sol na cabeça, já no primeiro conto, intitulado “Rolézim”, podemos fazer uma
constatação: é difícil imaginar uma narrativa cuja dicção seja mais carioca que a de Geovani
Martins. Quem nasceu no município do Rio de Janeiro ou vive/viveu ali se sente “em casa” ao
ler a narrativa, tamanha a familiaridade com expressões típicas da oralidade que fazem parte
do cotidiano da cidade, como “sem neurose”, “caxanga”, “dois conto”, “bagulho”, “merma”,
“papo reto”, “boladão” e com o próprio título do conto. Somam-se a isso as diversas formas
de descrever o calor característico da cidade, talvez o principal motivo das queixas dos
cariocas a qualquer época ou estação do ano: “maçarico”, “aquela lua” e “sol da porra”,
insiste o narrador.
A obra é marcada por vários cenários da cidade do Rio de Janeiro, que se apresentam
ao leitor em cada conto. Bairros, praias, favelas e uma cidade vizinha formam o pano de
fundo das estórias dos diferentes protagonistas, distribuídos nos treze contos que compõem o
livro. Alternando entre uma linguagem mais formal e o radical coloquialismo, Martins dá
conta da complexidade de viver em uma metrópole integrada por territórios tão diversos e
21 Relato de Maurício Meireles, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/03/morador-de-
favela-no-rio-geovani-martins-desponta-como-escritor.shtml. Último acesso em 13 de maio de 2018.
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através de cada narrador nos leva a distintos pontos desse grande centro urbano sob diferentes
perspectivas, segundo os objetivos, medos, sonhos e revoltas de seus protagonistas.
Assim como podemos ler em Capão pecado, de Ferréz, há uma definição do ethos,
neste caso, carioca e não apenas da periferia, mas tal definição surge junto com o enredo, pois
ao conhecermos o dia a dia dos personagens conhecemos também um pouco da lógica de
funcionamento da cidade. A partir das histórias que se passam especificamente dentro de uma
favela, apresenta-se uma visão mais ampla desse território, e seus respectivos narradores
aproveitam para apresentar sua crítica social, uns de modo mais explícito que outros. Apesar
de o espaço da narrativa não se resumir às regiões periféricas e marginalizadas da cidade,
estas são predominantes na obra e são sempre contadas pelo olhar de sujeitos periféricos, o
que situa o autor na mesma posição discursiva de Ferréz e de outros escritores de periferia,
uma vez que apresentam uma nova possibilidade de representação da favela e de seus
moradores, vistos (território e sujeitos) por alguém que possui uma experiência de vida na
periferia.
A diversidade na caracterização dos personagens-protagonistas ajuda a ampliar o olhar
para as problemáticas que envolvem os sujeitos vítimas dos estereótipos já consagrados no
senso comum pelo discurso hegemônico. Há contos protagonizados por jovens que expressam
sua revolta com a ação truculenta da polícia, que os humilha e os reduz não-cidadãos (como é
o caso de “Rolézim”, “A história do Periquito e do Macaco” e “Sextou”), e com a forma como
a mídia forja as informações sobre o que ocorre na favela, configurando-se numa espécie de
denúncia por parte desses jovens. Contudo, há outros personagens que nos lembram o peso de
ter sua identidade estereotipada, pois a discriminação extrapola os limites do território
habitado. Um deles é um jovem que, ao circular pelas ruas da Gávea (bairro da Zona Sul, área
mais nobre da cidade), é visto como uma figura perigosa e assustadora, por sua aparência e
cor de pele, no conto “Espiral”. Outro, do conto “O rabisco”, é um pichador, sujeito que,
como alerta o narrador, tem “quase sempre o mesmo valor e o mesmo destino” que um ladrão
“pra quem veste a capa da justiça” (MARTINS, 2018, p. 53). Ele é perseguido por policiais
no terraço de um prédio, onde tentou se esconder depois de um grito apavorado de “pega
ladrão”.
Seguindo a mesma linha de variedade de personagens, o espaço da favela é descrito,
fugindo das armadilhas da estigmatização e ressaltando a alegria, o medo e as incertezas das
crianças ainda em um estágio de ingenuidade; as diferentes crenças religiosas que convivem
(nem sempre harmonicamente) naquele espaço heterogêneo; as aflições e expectativas de uma
69
criança que manuseia a arma de seu pai e de outra que está ansiosa para o primeiro dia de aula
no novo colégio; a oscilação entre frustrações e superação de um senhor cego que tenta se
sustentar com o que ganha narrando sua trajetória em transportes coletivos; a alegria e a
“viagem” de amigos que se unem para curtir a vida em sua plenitude. Tudo isso está presente
nas linhas de O sol na cabeça, para além da violência que – é inegável – comparece na
realidade das favelas.
A heterogeneidade de personagens e perspectivas não compromete a unidade da obra,
que se configura como mais uma forma de contestar os abismos existentes entre cidade e
favela, uma dicotomia que se desfaz se partirmos do pressuposto que uma faz parte da outra
de maneira indissociável. Trata-se de mais uma obra da Literatura Brasileira que se destaca,
por suas peculiaridades, no campo de produção literária periférica e marginal. A própria
favela assume um novo lugar com esses relatos. Como defende Martins, em reportagem à
revista Época,
A favela hoje é centro, gira em torno de si, produz cultura e movimenta a economia.
O favelado cria e consome como qualquer outra pessoa do planeta. E quando digo
consome, não me refiro apenas a Nike, Adidas, Kenner, Honda, Black Label, Red
Bull, Samsung, Sony, Microsoft. Falo também da cultura pop que faz a cabeça dos
jovens do mundo todo, os filmes e as séries de sucesso mundial que bombam nas
telas das smart tvs de meus amigos. Shakespeare, Frida Kahlo e Machado de Assis
também encontram seus públicos por becos e vielas. (MARTINS, 2018b, s. p.)
Eliana Sousa Silva
Embora não escreva textos literários e tenha uma trajetória distinta, outro caso
brasileiro que igualmente vale a pena comentar é o da pesquisadora e recente titular da
Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, Eliana Sousa Silva. Ex-presidente da
associação de moradores de Nova Holanda, parte integrante do conjunto de favelas da Maré,
onde viveu por 25 anos, a pesquisadora foi fundadora da ONG Redes de Desenvolvimento da
Maré e uma das pessoas que estavam na formação do CEASM, em 1997, num grupo que teve
como primeira iniciativa a criação de um curso pré-vestibular comunitário voltado aos
moradores da região, ação que foi motivada pelo fato de que apenas uma minúscula parcela
daquela população havia chegado ao Ensino Superior. Seja no número 7 da Praça dos Caetés,
no Morro do Timbau ou no prédio da Redes, na rua Sargento Silva Nunes, 1012, em Nova
Holanda, a ideia é a mesma: acreditar no potencial transformador da educação. Vinte anos
depois, mais de mil e seiscentos estudantes que passaram pelo curso conseguiram ingressar na
70
universidade (pública, em sua maioria).22 Projetos como o CPV tiveram a capacidade de
mudar significativamente o cenário social na Maré. Os cursos pré-vestibular do CEASM e da
Redes da Maré ajudaram a formar intelectuais que viriam a romper com os estigmas e
estereótipos. As sementes foram plantadas pelo CPV e, desse projeto de educação libertadora,
começaram a sair as Marielles. Muitos frequentamos as mesmas salas de aula do pré-
vestibular comunitário pelas quais passou Marielle Franco e várias gerações de intelectuais da
quebrada. Desse mesmo lugar saíram universitários, futuros mestres e doutores.
A trajetória de Eliana Sousa Silva atravessa esses projetos e instituições que ajudam a
transformar a Maré e contribuem para que centenas de jovens possam se tornar a primeira
geração de uma família a ingressar na universidade. Da militância no associativismo e do
trabalho nas instituições que ajudou a criar, surge um enraizamento cada vez maior no
território que passa a interpelá-la como intelectual e a leva a pensar a realidade de quase cento
e cinquenta mil pessoas, marcada pela violência dos diferentes grupos armados que atuam no
conjunto de favelas (polícia, exército, facções do tráfico de varejo e grupos de milicianos).
Em 2012, Eliana Sousa Silva lançou o livro Testemunhos da Maré. Na obra, fruto de
uma pesquisa impulsionada pelo impacto provocado pela morte de uma criança de três anos
em uma ação policial na favela onde morou, a autora fala sobre violência e políticas de
segurança, e pensa, a partir de sua própria história, a relação entre a polícia e os moradores
desse território. Silva desconstrói a imagem da favela como o lugar da carência por
excelência, porém sem idealizá-la, e desmistifica o modo como ela é representada nos meios
de comunicação de massa.
Como descreve Heloisa Buarque de Hollanda, em nota ao livro mencionado, Eliana
toma “a própria experiência de seu cotidiano de moradora e ativista da comunidade como
categoria de análise”, uma vez que não abre “mão do testemunho pessoal de ter vivido e ter
sido atingida pelo fenômeno da violência”. A obra é, portanto, mais um instrumento na luta
pelo direito da periferia de escrever e contar sua versão da história, bem como de figurar no
âmbito das disputas discursivas como uma espécie de testemunho de uma cria da favela.
A tragédia do menino Renan da Costa Ribeiro, morto por uma bala perdida enquanto
caminhava pela rua com sua avó, foi o que transformou seu modo de enxergar a realidade ao
seu redor com relação à forma de atuação das instituições do Estado nas favelas. Essa história,
como tantas outras, seria apresentada pela mídia segundo a versão da polícia – representante
do arquivo oficial, nestes casos –, uma vez que esta reproduz o discurso da “fala do crime”
22De acordo com informações da página oficial da ONG: http://redesdamare.org.br/eixoseprojetos/educacao/.
Último acesso em 21 de maio de 2018.
71
(CALDEIRA, 2000) fundado na “atitude textual” (SAID, 2007), omitindo toda a dor e
indignação de quem experienciou de algum modo o drama vivido.
Eliana Sousa Silva defende que “o bairro Maré é uma expressão concreta dos limites
das representações tradicionais sobre as favelas e da necessidade de se construir novas
interpretações sobre esses complexos territórios” (SILVA, 2012, p. 61). Isto é o que têm se
esforçado para conquistar tanto a pesquisadora quanto escritores de periferia como os que
destacamos. Embora ainda falte muito caminho a ser percorrido, os primeiros passos já foram
dados.
2.2. Juan Diego Incardona, Walter Hidalgo, Wk e Leonardo Oyola
Do mesmo modo como acontece no Brasil – contexto discutido na seção anterior –, a
Literatura Argentina tem apresentado uma crescente presença e fortalecimento do
pertencimento de escritores oriundos de territórios marginalizados e que se interessam
particularmente pela forma como esses lugares foram narrados, descritos e fixados no
imaginário nacional através do discurso hegemônico. Provenientes de diferentes municípios
da Grande Buenos Aires ou de villas da capital, tais autores produzem poesias, contos e
romances a partir de suas experiências numa ponte que lhes permite, ao mesmo tempo, estar
dentro e fora desses bairros – uma vez que circulam por espaços do campo cultural como
jornais, editoras, e, de modo mais destacado, a universidade –, trazendo à tona novas
perspectivas sobre esses espaços geográficos por meio de peculiares formas de retratá-los,
conectados por uma orientação temática e política diversa, mas apresentando uma certa
sintonia que de alguma forma os conecta, se não de modo concreto no que se refere às suas
trajetórias individuais pelo menos é o que acontece no momento da recepção, quando os
leitores acabam por agrupá-los como os escritores que produzem a nova literatura do
conurbano.
Seja por razões estéticas, geracionais ou puramente mercadológicas, várias editoras
argentinas têm lançado cada vez mais livros desses novos autores, ampliando o alcance de
suas obras. Iremos nos debruçar sobre algumas delas a seguir.
72
Juan Diego Incardona
Juan Diego Incardona é um sujeito que une suas experiências no universo de uma villa
de Buenos Aires à de estudante da Faculdade de Letras da UBA para narrar o território onde
nasceu e foi criado. O escritor, por meio da construção de distintos personagens habitantes
desse “otro mundo más allá de la General Paz”, traz as memórias pessoais, a história do lugar,
seus laços de pertencimento, os pequenos dramas de um mundo com o qual o leitor teve
pouco contato desde “El matadero”, de Esteban Echeverría.
Em seu primeiro livro, intitulado Villa Celina (2007), que o próprio autor denomina
“série autobiográfica”, Incardona reúne sete contos cujas temáticas remetem o leitor às
experiências supracitadas, recuperando sempre as memórias que o levam ao seu local de
origem: “ninguno se escapa a la fascinación que da ese antiguo sentimiento que es el sentido
de pertenencia” (INCARDONA, 2007, p. 5). Seus contos são fruto do interesse do autor pela
literatura, que ele desenvolveu bem antes de iniciar o curso de Letras na Universidad de
Buenos Aires, em 1995, e do aprendizado que o período de estudos (até abandonar a
faculdade) lhe proporcionou, ainda que os textos não tenham sido escritos apenas durante esse
recorte temporal. Com diversos contos em mãos, Incardona sentiu a necessidade de publicá-
los e, ao ver-se sem opções diante do panorama editorial em seu momento, percebeu que
precisava superar certos obstáculos e criou sua própria revista eletrônica, chamada El
Interpretador.
Em tom crítico, chamando a atenção para o sensacionalismo midiático em torno dos
fatos que ocorrem no universo das villas, Incardona problematiza o imaginário urbano em
torno desses territórios e lança a ideia de “alucinação coletiva” no conto “El hombre gato”.
Ao comentar um episódio do Homem Gato, uma lenda do conurbano bonaerense que, diziam,
vivia pelos telhados e pelas copas das árvores à noite, o autor utiliza essa expressão para
descrever e explicar a atitude de várias pessoas que se convencem de que estão vendo algo
que talvez nem mesmo exista, chegando a irritar-se com o tal homem gato, agindo de modo
irracional, já que não buscaram qualquer esclarecimento sobre o relato. Do mesmo modo
podemos descrever o imaginário em torno à villeritud,23 uma vez que os meios de
comunicação se apresentam de todo insuficientes, tendenciosos e estigmatizadores no ato de
construir e difundir representações sobre as villas e os villeros. Por esta razão não é difícil
encontrar um discurso fundado no preconceito de lugar, o qual define aprioristicamente esses
territórios e os próprios moradores.
23 O conceito de villeritud será comentado de forma mais aprofundada no Capítulo 4.
73
Além do olhar pejorativo, as villas sofrem também com o descaso, conforme destaca o
narrador no conto “El ataque a Villa Celina”, do mesmo livro de Incardona. O lugar foi
destruído quase em sua totalidade em 1992 devido a uma série de explosões causadas pelo
aumento da pressão do gás. A catástrofe foi interpretada como sabotagem por diversos
motivos: em menos de dois meses o Gas del Estado seria privatizado; os próprios moradores
tiverem que conter o incêndio, pois os bombeiros só apareceram muito tempo depois do
chamado; o fato não foi notificado na imprensa e o único jornal que o fez foi censurado; o
galpão reservado para atender aos moradores que receberiam novos eletrodomésticos também
pegou fogo, misteriosamente; e, apesar das constantes manifestações dos habitantes de Villa
Celina – que também não tiveram repercussão midiática –, nada foi feito pelas autoridades
responsáveis. Conforme se lê no conto, vale a pena lembrar que no ano do atentado quem
governava o país era Carlos Menem, que, apontado como defensor da manutenção dos
privilégios das classes mais altas do país, não se importaria – como não se importou – com
um fato que só afetava aqueles “refugos humanos”.
O cotidiano da Villa Celina só era assunto de algum jornal ou programa de televisão
quando as estratégias de espetacularização de alguma tragédia podiam ser ativadas. Eram
abordagens que deslocavam a gravidade dos problemas locais para o âmbito da violência ou
do exótico, distorcendo a realidade e descrevendo esse território como se ele não fizesse parte
da cidade. Em Villa Celina, há dois episódios que exemplificam o oportunismo dos meios de
comunicação. Um deles é o caso do “hombre gato”, que figura como um caso interessante do
que Incardona chama de alucinação coletiva, conforme assinalamos acima. Em uma das
aparições do enigmático ser – um pesadelo para muitos, mas um verdadeiro herói para o
narrador –, um programa emitia imagens ao vivo de toda a multidão que estava em torno de
uma árvore onde, afirmavam, o tal homem permanecia escondido já há algumas horas.
Tanto esforço para representar os bairros periféricos como locais inseguros, marcados
apenas pela violência ou pela falta de recursos, caracteriza a imagem que se tem desses
espaços. Ao reproduzir o discurso pejorativo já cristalizado no senso comum, os meios de
comunicação corroboram a ideia dos assentamentos populares como um problema e de que é
necessário agir imediatamente para solucioná-lo e eliminar os responsáveis por tanta
insegurança. Apoiando-se nesse mesmo discurso, as forças policiais agem de forma truculenta
em suas incursões, desrespeitando os direitos dos moradores e propagando a violência,
paradoxalmente apoiados na justificativa de seu combate. É assim que a polícia intervém no
caso do homem gato quando suspeitam que ele invadira um terreno: começam uma
74
perseguição com muitos tiros e usando bombas de gás lacrimogênio, atitude que poderia
causar mortes e ferimentos em qualquer um que estivesse por perto. Assim como ocorre com
González e Ferréz, no caso de Diego Incardona, toda vez que fala da villa onde vive/viveu,
notamos uma vida marcada por experiências ricas e plurais ao lado de outras traumatizantes,
através das quais, muitas vezes esses sujeitos são apresentados prematuramente à violência.
Ao narrar e descrever a forma de viver nesses territórios informais que também
integram a cidade, cada um o faz de modo a contemplar as diferentes atividades que ali
podem ser observadas diariamente. Portanto, não leremos em suas obras apenas episódios
violentos, visto que a isso não se resume a história daquelas pessoas. Em vez disso, nos
deparamos com cenas graciosas de crianças brincando ao ar livre (de bola, pipa ou
figurinhas), como em qualquer outro lugar da periferia; jovens que se encontram nas esquinas
ou na porta de casa para conversar sobre qualquer assunto, mesclando-se os que estão
envolvidos com o mundo do crime com aqueles que se dedicam aos estudos, esportes ou
atividades laborais; a crença no amor como saída possível aos mais distintos problemas, a
despeito da realidade de injustiça que os cerca; crianças e adolescentes que demonstram, cada
um ao seu modo, seu amor pelo futebol; indivíduos brigando por motivos banais; pessoas que
se deixam escravizar pelo consumo para garantirem uma roupa ou objeto da moda; pessoas
trabalhando e fazendo manifestações por condições mais humanas. Enfim, a vida na periferia
se mostra incrivelmente complexa para ser definida de uma forma tão simplista e
monocórdica como a narrativa dominante que generalizada o discurso do medo e da falta.
No conto “Los rabiosos”, o narrador defende que o lugar onde os nossos laços de
pertença são mais fortes é nosso ponto de referência. Representar a villa sendo (ou tendo sido)
alguém daquele lugar, que se identifica com esse espaço e não tem vergonha de reconhecer
essa origem, é diferente de fazê-lo apenas baseado no que se ouve a respeito ou em visitas
pontuais e esporádicas. O escritor villero que representa a villa partirá quase sempre de uma
experiência que é ao mesmo tempo individual e coletiva, isto é, seu referencial passa a ser a
experiência partilhada no cotidiano da villa. Uma vez que autores como Incardona tentam dar
conta da multiplicidade que é a vida na periferia, à contrapelo da estereotipia mas também
sem a intenção de idealizá-la, a violência não será o elemento dominante de suas histórias,
embora ganhe destaque em alguns momentos. Um personagem que perde um amigo de
maneira trágica, os jovens que matam e são mortos antes de descobrirem o que a vida lhes
reserva, brincadeiras de rua que são interrompidas por tiros, pessoas que veem sua vida
destruída pelas drogas e por passagens – muitas vezes sem volta – pelo sistema carcerário.
75
Esses e outros pontos do romance de Ferréz, dos contos de Incardona e das poesias de
González são uma marca da presença da violência, mas, insistimos, não poderia figurar como
única possibilidade de representar aquela realidade.
Os veículos de informação de maior alcance são manipulados e isso não é novidade.
Os interesses particulares dos donos desses meios não podem ser ameaçados, e é por esse
motivo que os problemas enfrentados pelas regiões mais pobres e precarizadas, quando
noticiados, continuam a ser divulgados como resultado daquilo que os próprios moradores
provocaram (por seu modo de viver), e não como consequência de um Estado que se ausenta e
os aniquila todos os dias. Voltando aos episódios que desmascaram o sensacionalismo da
mídia, o outro caso em Villa Celina ocorre em “Los rabiosos”, mencionado acima. Um ataque
de cães raivosos, que interrompe um conflito de diferentes bandos no entorno da villa,
provoca a morte de um número desconhecido de moradores da região, por falta de
atendimento nos hospitais e de vacinas que poderiam salvá-los se fossem aplicadas dentro das
quarenta e oito horas imediatamente posteriores ao ocorrido. Nos noticiários, as manchetes
davam conta de um anúncio que em nada implica a responsabilidade das autoridades,
informando-se apenas que havia um surto de raiva em La Matanza (onde se localiza Villa
Celina). Os villeros sabiam que há muito se avisava a respeito, mas os dados mais detalhados
só poderiam vir à tona através dos grandes meios de comunicação, que não usariam o espaço
que possuem para denunciar a falta de interesse do governo em remediar desastres.
Não se pretende defender com esta pesquisa que o discurso que assumem os escritores
oriundos de villas e favelas é o único autorizado a representar esses territórios. A questão é
que essas vozes que agora conquistam mais espaço trazem um diferencial no olhar sobre o
tema pelo fato de que falam de dentro desses espaços. Apresentam uma forma alternativa de
representar um território e sujeitos historicamente subrepresentados e silenciados. Apesar do
sentimento de indignação e do caráter reivindicatório – seja de mais dignidade aos
villeros/favelados, seja de mais abertura para esses sujeitos na literatura –, os textos de autores
da periferia não assumem um tom revoltado ou pessimista exclusivamente. Há poesias
(González, Sérgio Vaz) cujo tema é o amor; ou contos (Incardona) que narram a paixão por
futebol; ou trechos de um romance (Ferréz) em que um jovem se vê em um dilema que
envolve amizade e paixão. No fim, o conteúdo que trazem coincide em grandes termos, e
convocam um enorme leque de possibilidades para expressá-lo.
76
Walter Hidalgo
Walter Hidalgo é um jovem de 26 anos que se revelou na terceira edição da premiação
“Nuevo Sudaca Border”, organizada por Eloísa Cartonera em 2013, tendo publicado seu livro,
Soy villero, por esta editora posteriormente. Aos 21 anos, na mesma época em que já escrevia
poesias, Hidalgo atuava em uma biblioteca, prestando apoio escolar, e trabalhava como
limpador de piscinas. O poeta também publicou textos na revista eletrônica ¿Todo Piola?,
fundada por César González. Aliás, sua poesia é bastante semelhante à deste último, tanto em
relação ao tom testemunhal quanto na forma como aborda o tema das villas e dos villeros, em
especial os ditos “pibes chorros”, partindo da ideia de que “en realidad son el reflejo de un
capitalismo apuñalador por experiencia” (HIDALGO, 2014, p. 9).
As referências dos poemas de Hidalgo são explícitas, o que se nota desde os títulos –
como “Mensaje al rocho”,24 “Mentores de mis decires”, “Guachines con hijos”,25 “Cansancios
de un albañil” e “Yo, el civil” – e na abordagem direta dos temas marginais. Como argumenta
Ana Camarda (2016), quando se dirige aos “rochos”, Hidalgo, na mesma linha que César
González, chama a atenção para o fato de que o sistema precisa que eles continuem existindo
nessa condição de chorros, pois são mais úteis e menos perigosos assim, sem pensar, sem
refletir sobre o sistema desigual que os colocou nessa situação. O poeta elabora essas e outras
leituras do presente de sua sociedade utilizando uma linguagem muito próxima da oralidade e
incorporando gírias típicas das villas, aproximando-se, assim, de seu público alvo.
Em uma apresentação ao ar livre (em frente à porta da editora Eloísa Cartonera, no
bairro popular da Boca), na qual lê alguns de seus poemas, o jovem escritor afirma que as
villas são um gueto, assim como Buenos Aires e o resto da América Latina; constituem uma
forma de estar encarcerados, uma forma de marginação e exclusão. É um espaço onde há
muita frustração e escuridão, e é nessa escuridão onde as pessoas nascem, em meio a várias
formas de violência: aquelas que sofrem as mulheres pobres da periferia, a violência da
pobreza, a de ser discriminados, a de ser um villero, mas não pelo fato de se recusar a ser um
deles, e sim porque ser villero é nascer destinado a morrer, destinado a receber as sobras que
24 Rocho é uma inversão das sílabas da palavra “chorro” (ladrão), fenômeno linguístico comum nas villas e entre
jovens. 25 Guachín é uma expressão local do conurbano bonaerense. É o diminutivo de guacho, que originalmente queria
dizer órfão. Hoje se usa para referir-se informalmente a homem jovem, podendo ter significado positivo ou
negativo. O uso desse termo amigável conota um perfil socioeconômico e educativo bastante definido. Um
guachín é um homem jovem de classe social baixa; com ocupação informal, às vezes desempregado ou
vinculado a pequenos roubos. De modo geral habita em bairros periféricos e goza de certo reconhecimento
territorial e afetivo entre os pares.
77
são deixadas para essa população. O poeta afirma que é dessa forma estigmatizada como
muitos os veem, uma visão fundada no discurso dos meios de comunicação.26
Nos quinze poemas que compõem Soy villero, Walter Hidalgo busca desconstruir essa
imagem, numa espécie de relato múltiplo sobre os problemas enfrentados diariamente pelos
sujeitos marginalizados que habitam as villas, mas o faz dando ênfase às causas que levaram
ao modo de vida a que essas pessoas estão destinadas, como se pode observar no poema
“Mentores de mis decires”:
Los mentores de mi expresión, líricos del paco
son resultado de esta desdicha,
de las corruptelas
de la violencia banal del mundo [...].
Tu lente ocular no puede captar
más que monstruos aprovechados
que en realidad son el reflejo
de un capitalismo apuñalador por experiencia
(HIDALGO, 2014, p. 8-9)
Em outros momentos, incentiva os pibes chorros a se afastarem do mundo das drogas
e do crime e a não se deixarem alienar. Essa dicção se constata em toda a sua potência nos
poemas “Mensaje al rocho”, “Hay que educar piola” e “Cierren el orto q tablando el poin”:
Los que necesitan un abajo para sentirse superiores / Los que se benefician con la
desunión y la / desconfianza entre nosotros... [...] / Todos ellos necesitan de vos... /
¿Vas a dejar que te usen? (HIDALGO, 2014, p. 3)
No te enjaules en el miedo, / sabé que hay sombras inmensas en el poder / que besan
tus nostalgias / y se benefician con tu consumo dependiente. [...] No hay que matar,
no hay que enjaularse, / hay que educar piola (HIDALGO, 2014, p. 4-5)
[...] la marginación, la exclusión a los / que no quieren mas inundación / chorrea
sangre de esa televisión. / Su brillo dopa los sentidos. No te / distraigas con tal
encandilación cegadora / porque a través de este medio son capaces de facturar hasta
tu alma (HIDALGO, 2014, p. 29).
Em suma, aquilo do que nos fala Hidalgo, com seu discurso poético-político, é que os
villeros têm capacidade e competência para falar por si mesmos e que podem se emancipar
pela literatura ou através de diversas outras estratégias, como a educação libertadora. Por isso,
é necessário que, antes, tenham clareza de sua condição e de que não são os responsáveis pela
própria desgraça, como tentam (e, muitas vezes, conseguem) convencer os meios de
26 Conforme vídeo disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=3jcf8OaCUl4. Último acesso em
27 de maio 2018.
78
comunicação. Os villeros precisam falar e ser ouvidos principalmente para demonstrar que há
outras formas de narrar as periferias. Walter Hidalgo é uma dessas vozes dissonantes.
Wk
Cruzando referências populares e eruditas através das epígrafes de cada poesia, Wk
(2015), pseudônimo de Gastón Brossio,27 escreve 79 poesias sobre diversos temas, partindo
de suas trajetórias villera e carcerária. Aliás, o livro foi escrito neste contexto de
encarceramento, onde, paradoxalmente, conheceu a literatura, como relata o próprio escritor
ao início de seu livro. Trata-se de uma biografia e dos reflexos episódicos de uma caminhada
que vai da villa ao cárcere e deste à literatura, expondo-se através dos produtos gerados por
ela, o que o aproxima do caso de César González, que também escreve seu primeiro livro no
período em que estava detido e se construiu como escritor a partir dessa experiência. Podemos
dizer que, entre todos os outros casos que estudamos, Wk é o escritor com história mais
semelhante à de González, por ter passado parte de sua vida (15 anos) privado da liberdade
em unidades do sistema carcerário e por ter concluído seus estudos na educação básica ainda
nesse tempo. Terminada esta etapa, Wk ingressou em um curso superior, mesmo antes de
voltar à liberdade, no Centro Universitario de Devoto, uma experiência promovida pela
Univerdidad de Buenos Aires no interior da prisão de Devoto.
Suas poesias nos apresentam uma forma de narrar a vida, seja no cárcere, seja em um
território periférico, ambos compondo faces diferentes de modos semelhantes de tentar
sobreviver, pois, segundo ele, estar numa cela ou no minúsculo barraco de uma villa leva os
indivíduos à mesma sensação (e condição) de marginalidade, miséria e opressão, o que
conduz à desesperança e a uma vida mergulhada na violência em suas mais variadas formas e
manifestações. Para Wk, é isso que faz com que alguns vejam na própria violência a única
expectativa de saída para essas vidas tratadas como dejetos. Quanto a isso, podemos
estabelecer um diálogo entre sua obra e a de Walter Hidalgo e, mais uma vez, com a de César
González, pois estes três compartilham a opinião de que é possível que um villero se torne
poeta, mesmo que a realidade que o cerca o convença de que ser ladrão é tudo o que lhe resta.
Segundo Ana Camarda (2016), Wk opta por tom autobiográfico fundado nos arquivos
discursivos com os quais mais teve contato, uma espécie de “prontuário” – como intitula seu
27 Além de Wk, o autor também assina seus textos como PVC, sigla de Pensadores Villeros Contemporáneos,
como se lê na capa do livro aqui mencionado.
79
texto– relatando um pouco de sua trajetória de vida e de leitura e como elas influenciaram a
escrita das poesias que virão a povoar as páginas dos quatro livros que estava escrevendo na
ocasião. Com um discurso que rompe com o senso comum e com os estigmas que insistem
em afirmar que os villeros estão em uma situação que eles mesmos criaram, Wk escreve: “La
gente no entiende de mi realidad” e “nuestros niños son parte de esta sociedad insaciable...”
(WK, 2015, p. 39).
Em “Prontuario”, Wk informa que nasceu em 1981, na villa Fuerte Apache, e que
“con una infancia muy caótica y traumática, fue sorteando los caminos que el destino tiene
preparados para determinada clase social” (WK, 2015, p. 7). Abandonou os estudos depois
que um companheiro de roubos foi preso dentro da escola onde estudava. Após isso, “a los 17
años le pegaron dos tiros que casi lo matan, el más grave en su cara (por causa de eso casi no
cuenta el cuento). Prometió que iba a dejar de robar, pero a los dos meses lo seguía haciendo,
hasta que finalmente cayó preso a los 20 [...]” (WK, 2015, p. 7). No Centro Universitario de
Devoto, quando ainda estava preso, cursou Direito (sem concluir), Administração e Letras
(esta última por indicação de um amigo). O poeta explicita a partir de que lugar nos fala,
identificando-se como um escritor “não consagrado” que é apenas mais um na multidão e
apresentando-se como “el ladrón que escribe poesías”.
Possivelmente, um dos traços mais marcantes de sua obra seja o próprio fato de seus
textos terem se transformado nessa fatura que é o livro, pois uma série de dificuldades
precisaram ser vencidas para chegar a isso; uma vez superadas, desencadeiam-se mudanças
tanto pessoais quanto coletivas. É nesse sentido que Juan Pablo Parchuc, no posfácio de 79, el
ladrón que escribe poesías, argumenta que
para llegar a ser libro, este tipo de materiales tiene que superar muchas barreras
físicas y simbólicas; trabas, prohibiciones, dificultades, prejuicios, censuras,
restricciones. Las huellas del acto en el producto señalan así tanto al sujeto que
escribe, su tema y su historia de vida, como a las instituciones que lo mantienen
encerrado. El simple hecho de su publicación permite ampliar los límites de la
literatura, desde los márgeneso bordes de las instituciones, en un sentido de justicia
que, en este marco, no podría llamarse simplemente “poética”. (PARCHUC, 2016,
p. 125)
Leonardo Oyola
Leonardo Oyola também é um escritor da grande Buenos Aires, nascido em Isidro
Casanova, no município de La Matanza, local que serviu de cenário para o romance
80
Kryptonita (2015). Nesta obra, Oyola resgate questões intrínsecas da periferia e do conurbano
bonaerense, através de uma narrativa ancorada na cultura popular e massiva, especificamente
nas histórias de super-heróis, o que se nota já no próprio título do livro, na composição dos
personagens e nas cenas de ação.
Em geral, Oyola escreve textos do gênero policial e transita pelo fantástico, como se
pode ler no romance mencionado. O autor também publicou uma série de outros romances,
como Siete & el Tigre harapiento (seu primeiro romance), Santería, Sacrificio, Hacé que la
noche venga, Bolonqui, Gólgota e Chamamé (vencedor do prêmio Dashiell Hammett na
categoria melhor romance policial da 21ª Semana Negra de Gijón, na Espanha). Participa
também com textos curtos da edição argentina da revista Rolling Stone.28
Formado em Ciências da Informação, o escritor e crítico de cinema decidiu investir na
literatura a partir de 2003. Mesmo depois de já ter publicado seus primeiros livros, passou por
um período tão devastador que o levou a considerar que nasceu duas vezes, como declarou em
entrevista à Revista Ñ, do jornal Clarín. Depois de passar por esse momento crítico de sua
vida – em que perdeu o trabalho e ficou sem teto, entre outras perdas, contando com a ajuda
de uma terapeuta, dos amigos e escritores Selva Almada e Pablo Ramos e de um tatuador – e
que foi crucial para que apostasse, mais uma vez, na escrita literária, Oyola tornou-se um
autor reconhecido no país e ganhou espaço em grandes editoras argentinas, principalmente
após o sucesso de Kryptonita, obra também premiada (como Libro del Año 2011, pela Eterna
Cadencia) que recebeu uma versão para o cinema em 2015 e se transformou, um ano depois,
na série televisiva Nafta Súper (nome do protagonista da obra), da qual Oyola é também co-
roteirista.
O referido romance traz a história narrada por um médico plantonista do hospital
Paroissien de Isidro Casanova, para quem restam apenas quatro horas para terminar o trabalho
em um final de semana prolongado, quando chega um paciente “incomum” e aquele momento
deixa de ser mais uma noite de intermináveis plantões tirados por outros médicos no hospital
público, pois a vítima a ser socorrida é o chefe de um grupo criminoso de La Matanza que é
trazido, ferido com gravidade, pelos seus amigos, os quais passarão as últimas horas da
madrugada narrando as incomuns aventuras do moribundo. Pouco a pouco o leitor dá sentido
aos indícios que figuram no paratexto da capa e reconhece o líder do bando criminoso como o
Super Homem e seus companheiros como os demais integrantes da Liga da Justiça, da DC
Comics.
28 Estas e outras informações estão na reportagem disponível em: https://www.clarin.com/viva/escritor-nacio-
veces_0_SySJkjM2b.html. Último acesso em 05 de junho de 2018.
81
Apesar de o autor adotar uma estratégia discursiva bastante diferente daquelas
escolhidas por Incardona, Hidalgo e Wk, nesta “biografia apócrifa” do super-herói os diálogos
entre os companheiros de Nafta Súper, carregados de “jergas villeras”, revelam, ao longo de
toda a obra, o universo da periferia bem como as histórias de vida subalterna que estão por
trás de cada um desses personagens, inevitavelmente passando pela condição de pibes chorros
e das distâncias – culturais, sociais, econômicas – entre privilegiados e marginalizados. Em
um momento de reflexão, um dos personagens defende a mesma a ideia que motivou os
autores aqui trabalhados a começar a escrever:
Ése es el verdadero poder. El poder absoluto: saber pensar. Porque el que sabe
pensar aprovecha y se aprovecha de esa cualidad. La pobreza y la exclusión social
alejan a los chicos de los estudios. Y cualquier bando sabe que es negocio seguro
reclutar pibes menores de edad. Son los más fáciles de captar; más si tienen a la
familia desmembrada... (OYOLA, 2015, p. 128)
Trechos como esse trazem à tona problemas centrais relativos aos territórios
periféricos e à população dessa zona da metrópole. Implicam também uma forma de
humanizar essas vidas, todas elas, independentemente da história de cada sujeito, oferecendo
um ponto de vista alternativo, centrando-se em outras questões que não as já transitadas pelos
meios de comunicação. A biografia de Nafta Súper, por exemplo, é contada por seus
companheiros sem que se idealize a vida de um criminoso, apenas possibilitando-nos admitir
que há muito mais que momentos de violência em sua trajetória. É o mesmo discurso de
César González, quem afirma que pretende mostrar aquilo que ele entende como a realidade
complexa de uma villa. Nafta Súper tem duas famílias, uma parental e outra formada pelos
companheiros de crime. A conformação desses dois grupos pode ser vista como forma de
resistência, e não apenas como lugar sede da violência.
Há vários momentos da narrativa nos quais se pode perceber a afetividade na teia de
relações que constroem a rede do Nafta Súper; relações afetivas e uma inocência que vem dos
tempos de infância mas que ainda não foi perdida. Sua relação com o filho e com os anseios
de quando ainda era um menino se manifestam no caso do desejo nunca realizado de receber a
visita do boneco Carozo – personagem de TV que tomava café na casa do telespectador que
enviasse a carta mais emotiva ao programa para o concurso “El sueño del pibe”. Parte do
relato de Lady Di, uma das componentes de seu grupo, humaniza mais ainda o temível chefe
do bando ao descrever o amor que sentia por seu filho e ao narrar o episódio em que a criança
o chama de pai pela primeira vez, após realizar uma cirurgia para corrigir um problema de
audição que este sofria:
82
– Pa-pá... Papi... Soy Mo-chi. Ésa fue la primera vez que su hijo le dijo papá. Y
antes de hacer lo que teníamos que hacer, tuvimos que esperarlo a Pini [apelido de
Nafta Súper]. Dos veces. Primero bancándolo mientras hablaba con el hijo. Después,
mirando para otro lado cuando hizo algo que nunca lo habíamos visto hacer. Cuando
se fue hasta la esquina y detrás de un árbol se puso a llorar [...]. Pinino va a cumplir
cuarenta en unos días. Toda su vida se la pasó por acá. Nunca se fue. Pero desde que
nació Monchi, él dejó de vivir en Los Eucaliptus. “Casa” pasó a ser para él otra
cosa. Tendrá dos metros y casi cien kilos, doctor; pero cuando se abrazan con el
hijo, el que se pierde en los brazos del chico es él. Porque esos bracitos son su
verdadera “casa”. (OYOLA, 2015, p. 83)
A genialidade de Leonardo Oyola está na ideia de trazer o Super Homem para o
território do conurbano e recriar famosos personagens da cultura de massa numa versão
villera na qual se ressalta a capacidade de enfatizar o lado mais humano de um protagonista
que sequer fala em toda a obra, tendo sua história contada pelos companheiros que aguardam
a sua recuperação. Assim como o Super-Homem do Kansas ou o de Isidro Casanova, Oyola
voou; alcançou um importante espaço na literatura argentina, mas conservou suas raízes vivas
na memória, manteve os pés no chão de terra, o mesmo chão que fazia a mãe de Nafta Súper
repetir ao filho: “Las calles de acá son de tierra, hijo. Por eso no puede venir a tomar la leche
Carozo con nosotros” (OYOLA, 2015, p. 110).
83
3. O OLHAR POÉTICO E CRÍTICO DE CAMILO BLAJAQUIS/CÉSAR GONZÁLEZ
A transformação de César González em Camilo Blajaquis se deu de forma gradativa e
em uma circunstância bastante improvável. A experiência de ter passado por instituições
carcerárias, com condições semelhantes e quase sempre ainda mais cruéis que aquelas que
conheceu na Carlos Gardel – villa de Morón, na Grande Buenos Aires – foi, paradoxalmente,
o combustível para a transição a outra visão de mundo, pois foi naqueles espaços que
González pode ter um novo contato com a literatura. Desta vez, tomou-a como uma
ferramenta de sobrevivência, ao perceber que, apesar de ser vista como algo inofensivo pelo
sistema que o aprisionava, ela tem uma força que cabe ao leitor encontrar, como defendeu na
conversa que tivemos.29
Escrever poesia foi uma forma de permanecer vivo num espaço que é conhecido como
“la tumba”. Por meio de seu discurso poético, o “pibe de la villa” pode refletir sobre o modelo
econômico que gera a villa e os villeros através de um sistema fundado na falta de equidade
entre as classes sociais. A literatura e (pouco tempo depois) o cinema permitiram que ele se
libertasse da vida de delitos que levava30 e pudesse combater os princípios da alienação, pois
é através desses meios que estrutura seu olhar crítico como uma arma desestruturadora
apontada para os temas que havia frequentado antes, embora sua vida fosse o próprio tema.
Desde esse momento de libertação até os dias atuais, González já escreveu três livros e
produziu quatro longas e alguns curtas-metragens documentais.
Além dessa mudança de rota, González ingressou em um território que outrora lhe
parecia bastante alheio, a academia, chegando a cursar Filosofia na Universidad de Buenos
Aires (após voltar à vida em sociedade). O escritor nos revelou que o que lhe restou desse
período e dessa experiência universitária foi a frustração por não haver conseguido concluir o
curso, sendo, mais uma vez, a falta de instrumentos potencializadores da permanência de
jovens de origem popular na universidade (a falta de programas de bolsa auxílio, por
exemplo) um fator decisivo para o impedimento de continuidade na sua trajetória acadêmica.
Cada vez mais consciente de uma realidade que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva,
César González afirma: “Me dolió comprobar mis teorías, ¿no? Que todo que yo digo de que
tu clase te determina, y no son [teorías] mías, son de muchos autores, pero confirmar eso que
29Transcrita no Apêndice. 30 Aos 14 anos, César González iniciou sua trajetória de delitos, que duraria algum tempo, intercalada por
detenções e internações hospitalares (como consequência de confrontos com a polícia), e interrompida em 2010,
quando retorna à liberdade, aos 21 anos.
84
yo escribo no es ninguna fantasía, no es ningún delirio” (GONZÁLEZ, 2018, entrevista
pessoal). Portanto, esse foi um momento ao mesmo tempo decepcionante e enriquecedor.
Nota-se que o autor recupera, em toda sua obra, essas experiências para produzir seu
discurso. Ou seja, não é difícil perceber que sua escrita dialoga – muitas vezes, explicitamente
– com sua biografia, o mesmo acontecendo com sua produção cinematográfica. Apesar disso,
González não considera que sejam textos (e filmes) autobiográficos, conforme explicou na
entrevista que nos concedeu:
Yo hablo desde una igualdad que no se puede explicar desde lo personal, de lo
individual. Lo que yo viví viven miles y millones de personas, y por las mismas
razones, por consecuencia de manejos políticos, de sistemas de gobiernos. Entonces,
a mí no me gusta llamarla de poesía del tipo autobiográfico porque no, yo hablo
desde un lugar político que admite su prisma ideológico, que no finge desde donde
mira el mundo mi poesía, no finge neutralidad, una supuesta subjetividad, un
supuesto idealismo, no interesa ninguna de esas cosas para mí. (GONZÁLEZ, 2018,
entrevista pessoal)
Assumindo que se trata de uma realidade mais abrangente, isto é, que atinge muitas
outras pessoas, é nas letras e nas artes que ele encontra instrumentos para intervir na trajetória
de jovens villeros que parecem estar fadados a ver a violência como um caminho para ser e
estar em uma sociedade que os exclui cultural e economicamente. Em entrevista ao jornal
argentino La Nación, González afirma: “Hoy estoy en otra frecuencia y lucho a través de mis
escritos por que eso crezca y cada vez más pibes puedan cambiar ese ritmo de vida cruel y
violento que no lleva a otro lugar que a la cárcel o al cementerio a una edad muy temprana”.31
Em seu caso, o cárcere foi o destino implacável, o qual se tornou provisório devido à leitura
crítica do mundo e dos livros que lhe chegaram pelas mãos de um mágico reconhecido
internacionalmente e que, além de ensinar truques de mágica, filosofava durante as oficinas
que coordenava em 2006 no Instituto Belgrano.
Mesmo sem pretender tornar os textos dependentes da biografia de seu autor,
tentaremos pensar aqui certos fragmentos da obra como elementos que permitem um resgate
da vida do poeta argentino. Tal tarefa se justifica pelo fato de que a análise de sua trajetória se
mostrou imprescindível para compreender o papel social e político (além do artístico) de suas
obras, visto que os territórios pelos quais transitou e as experiências que acumulou foram
fatores determinantes para que González se tornasse escritor e recuperasse, a cada página
escrita, sua experiência como habitante da villa Carlos Gardel e como ex pibe chorro que
31 Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/1419829-la-historia-del-ex-pibe-chorro-que-se-rescato-a-si-
mismo. Último acesso em 22 de maio de 2018.
85
superou inúmeras barreiras tanto para seguir escrevendo enquanto estava privado de liberdade
quanto para reconquistá-la. Aliás, o autor busca se distanciar do rótulo de pibe chorro
recuperado, construindo para si uma imagem mais complexa, mais coerente com as suas
múltiplas facetas: escritor, ex pibe chorro, ex-estudante de Filosofia da UBA, diretor de
cinema, villero, colunista da revista Sudestada e fundador da revista ¿Todo piola?, voltada
para cultura marginal.
Considerando-se essa identidade heterogênea, analisaremos as estratégias para
emancipação e resistência através de seu olhar poético e crítico, bem como as diferentes
condições em que González escreveu seus três livros, tomando como base essas
circunstâncias.
3.1. O contexto de produção de suas obras
O poeta Camilo Blajaquis nasce em um ambiente no qual não se espera que floresça
coisa alguma. Ao contrário, é onde morrem a dignidade do ser humano, a esperança, as
utopias, as oportunidades, o corpo; um depósito de refugos humanos onde são deixadas as
pessoas que precisam parar de incomodar apenas por existir: o cárcere. Foi ali, entre os 17 e
18 anos, que ele sentiu, pela primeira vez, que poderia tomar a literatura como uma
ferramenta transformadora da vida e que escrevia “con consciencia, con libertad, con una
búsqueda propia”, como relembraria anos depois (entrevista pessoal). Somente quando se deu
conta de que a pobreza, a desigualdade social e os pibes chorros eram úteis ao sistema que os
gerou, e que a perpetuação desses fatores fazia parte de um projeto dos grupos que estão no
poder para garantir a manutenção de seus privilégios, César González passou por um processo
de subjetivação e construção de uma nova identidade, em que se conjugaram suas vivências
(villera e carcerária) e através do qual emerge um poeta.
Em seu primeiro livro de poesias, o autor utiliza o pseudônimo Camilo Blajaquis, em
homenagem a Camilo Cienfuegos, revolucionário cubano, e a Domingo Blajaquis, militante
sindical argentino que ele conhece através do livro de Rodolfo Walsh, ¿Quién mató a
Rosendo? (1969). Além disso, foi uma maneira que ele encontrou de se proteger por trás de
uma identidade inventada e de poder publicar seus textos sem ser descoberto pelas
autoridades.
86
A partir da leitura crítica que fazia dos textos que lhe chegavam às mãos, aos poucos
se construía sua mirada poética e, neste contexto de confinamento, surge sua primeira obra,
um livro com quase noventa poesias, distribuídas em três partes e escritas em diversos
períodos e centros de detenção nos quais esteve. Os livros que despertaram o interesse de
González não eram os que estavam à sua disposição na biblioteca de algumas das instituições.
Ele comentou que se tratava de obras consideradas inofensivas, que serviam apenas para
esfriar a cabeça, como entretenimento, um enfeite para dar um ar mais humano àquele lugar.
Embora não desprezasse totalmente o valor desses livros, por achar que sempre é possível
aproveitar algo deles, os que lhe chamaram a atenção foram os “apresentados” a ele pelo
professor Patricio Montesano, mágico mais conhecido como Merok e a primeira pessoa a
tratar o futuro escritor de modo mais humanizado naquele ambiente. Durante as oficinas de
mágica, Patricio conversava com os jovens sobre diversos assuntos e foi quem incentivou
González a ler livros de autores como Karl Marx e Michel Foucault. Em meio às leituras de
filosofia e literatura, relatou González, Merok começou a aproximá-lo de “libros que tenían
potencia, libros que tenían un fuego para quemar” (entrevista pessoal).
Essas obras o conduziram a uma consciência de classes e do seu lugar na cidade e na
sociedade, o que desencadeou uma série de indagações que ele nunca havia feito sobre, por
exemplo, o lugar dos “sobrantes” no mundo. Passou a entender quais eram as implicações de
ter nascido em uma villa e não em regiões privilegiadas da cidade e no quanto isso tende a
influenciar ou a determinar a vida de alguém. González argumenta que talvez essa pessoa
nunca consiga sair da villa, que sua visão de mundo seja tão limitada a ponto de acreditar que
sua vida se resume àquele território e que suas únicas habilidades sejam físicas, jamais
intelectuais. O resultado dessa violência simbólica é que os próprios “sobrantes” podem
reproduzir a lógica basilar da produção de “refugos humanos”, sendo convencidos de que, por
serem villeros, suas “capacidades cognitivas y la creatividad no existen porque su cerebro es
más chico, porque la ciencia misma lo argumenta y lo justifica” (entrevista pessoal).
Por isso há tantas semelhanças entre a vida que transcorre numa villa e a que consome
seus dias no cárcere, são lugares construídos como destino último dos refugos, “quarto de
despejo” da sociedade, conforme definiu Carolina Maria de Jesus. Ana Camarda argumenta
que “ambos son espacios que presentan límites que no cualquiera se atreve a atravesar y son
esos límites los que los constituyen como terrenos marginales” e que “ambos ámbitos están
poblados mayoritariamente por personas marginales y/o excluidas” (CAMARDA, 2016, p. 8).
87
Nessa mesma linha de pensamento, González (2014) escreveu que a tortura é sofrida de modo
semelhante tanto em uma cela quanto no cotidiano da villa.
Enfrentando a realidade que se impunha a alguém que carregava diferentes estigmas,
González começou a escrever entre 2007 e 2008. O poeta sugeriu a Patricio (a essa altura, já
seu amigo) a criação de uma revista onde pudesse publicar os textos que vinha escrevendo e o
projeto teve êxito com a ajuda de diferentes amigos do mágico. O título escolhido foi ¿Todo
Piola? (já mencionado em capítulos anteriores), uma referência à realidade marginal a partir
da recuperação de uma gíria utilizada entre os jovens villeros de Buenos Aires.
A culminância de todo esse processo foi a publicação de La venganza del cordero
atado, em 2010 (cinco meses depois de o autor retornar à liberdade), uma obra, como afirma o
poeta, “fabricada contra el tiempo, y pensada para contradecir el destino”, um resultado do
“perfeccionamiento de una ansiedad nueva, decisión total a construir una nueva consciencia
interior y exterior”, o despertar de sua sensibilidade (GONZÁLEZ, 2011, p. 119 e 121). O
livro é um convite ao leitor para que reflita sobre a sociedade, um estímulo ao debate latente
em toda sua obra, seja como escritor, seja como cineasta.
Apesar de manter viva a memória das figuras que lhe serviram de inspiração, o
escritor decide abandonar o pseudônimo com que assinara e passa a utilizar seu nome de
batismo, César González, nas duas obras seguintes (mantendo-o também na produção de seus
filmes). O autor explica que tal mudança ocorreu devido à reflexão do significado que carrega
seu nome:
Porque me di cuenta que mi nombre real, César González, era justo con mi linaje,
con mi genealogía. Es un apellido muy común, que habla de una pertenencia a una
clase muy común, donde no abundan los apellidos raros, donde no vas a encontrar
muchos apellidos europeos, si bien González es español, pero viene de la
colonización, de los ya colonizados que nacían acá [...]. (Entrevista pessoal)
Seu segundo livro foi escrito quando estava em liberdade condicional, razão pela qual
o intitulou Crónica de una libertad condicional (2011). Trata-se de uma obra cujos textos
exploram, majoritariamente, uma nova experiência ao retornar à liberdade e à cidade que ele
passou cinco anos vendo a partir da moldura do cárcere, e a tentativa de inserir-se nessa
sociedade, sem deixar de retomar as angústias vividas na prisão. Brinda-nos com poemas
carregados com uma visão problematizadora sobre como foi voltar à villa; viver e enxergar
Buenos Aires de outra maneira; enfrentar a discriminação por ter sido um presidiário; lidar
com a pressão social de que tinha que buscar trabalho para garantir seu sustento. Por essas
razões, segundo González, foi um livro produzido com muito menos tempo, com mais
88
urgência, “es una poesía muy literal, muy directa, con muy poca metáfora, porque así estaba
viviendo afuera”. É uma crônica do regresso às ruas, mas não com uma liberdade total. Dessa
forma, o título escolhido atua simultaneamente no sentido denotativo (jurídico) e conotativo,
pois o autor questiona se a vida que se leva na cidade pode ser considerada uma forma da
liberdade. Uma síntese deste e dos outros temas mencionados é o que se encontra no poema
“Teorema sobre salir”
el empleador no hace falta que lo sepa
si somos pura intuición
él ya adivina que estuviste preso
es como un mago mentalista
y te niegan hasta el trabajo más horrible
que es lo único posible
para anhelar un futuro
que tenga más de dos días
salís de la cárcel
y entrás e a una ciudad relámpago
superpoblada igual que la cárcel
territorio del síntoma específico general
comerciante que tiembla
cuando entro a comprar algo
puertas que se cierran
al paso de mis pasos
ventanas que me vigilan a escondidas
me persiguen superman, batman y la mujer maravilla
la supuesta dignidad me da la espalda
tengo que presentara una honestidad de papel
pero no me queda otra que masajear la espalda
o aprender a vivir
más solo que el chavo dentro del barril
acostumbrándome al hambre
y a la ignorancia.
(GONZÁLEZ, 2014, p. 31)
Portanto, mesmo tendo cumprido parcialmente a sua pena e não estando mais
encarcerado, ele ainda se encontrava numa situação desconfortável, convivendo com o
preconceito, sentindo-se oprimido de algum modo, percebendo que nada mudara com relação
àqueles que nascem em uma villa. Essa realidade foi o pano de fundo de seu segundo
trabalho.
Poucos anos depois, o poeta produz seu terceiro livro, Retórica al suspiro de queja
(2014), no qual recorda sua experiência villera anterior ao despertar de sua consciência e ao
surgimento da nova identidade, e torna a abordar o tema da liberdade conquistada, reforçando
que esta é uma farsa, já que a cidade oferece outros tipos de prisão e escravidão. Além de tais
reflexões, o autor expõe sua análise sobre as relações humanas desgastadas (ou inexistentes)
na grande cidade, a “opressão remunerada” à qual se submetem muitos trabalhadores
89
(GONZÁLEZ, 2015, p. 50) e as queixas sem um motivo urgente. Através de sua poesia,
instiga o leitor a queixar-se quando houver um sentido, buscando formas de solucionar os
problemas apontados.
A ideia presente no título do livro é argumentar a respeito das queixas do ser humano
contemporâneo que, apesar de ter mais comodidade que aqueles que viveram em séculos
anteriores, parece se queixar mais, manifestando um cansaço e uma profunda insatisfação
diante de certas dificuldades ordinárias, deixando em segundo plano causas mais
emergenciais. Isso não significa que as pessoas não devam reclamar, mas a indignação deve
levar a algum lugar, pensa ele. Se os sujeitos se incomodam com um sistema que os oprime e
divide em classes sociais desiguais, é preciso lutar contra isso, dando dignidade ao seu
lamento. É fazer com “que la queja tenga un sentido un poco más inmediato, en el sentido de
no quejarse por cualquier cosa [...]. La queja es un privilegio de clase, de la comodidad.
Aquellos que están en una situación de adversidad no se pueden dar el lujo de quejarse porque
si no su problema se perpetúa”, defendeu González, que apresentou uma proposta de ação no
seguinte poema, homônimo ao livro:
el dolor debe ser una musa inspiradora
y no una musa destructora
un motivo para crear mundos
y no para destruirlos
el dolor puede abrir puertas
donde solo existen celdas
[...]
el dolor parece la muerte
pero es el mejor momento
para renacer y vivir
es un momento para contradecir el destino
y caminar sobre el arco iris
no el argumento más popular
para quejarse por todo.
(GONZÁLEZ, 2015, p. 46)
Tais sugestões dialogam explicitamente com a biografia do autor, com sua redenção,
com sua potência que se revelou no momento mais crítico da vida, provocando uma
reviravolta inesperada num caminho aparentemente pré-determinado. Os infortúnios que o
perseguiram ao longo de sua curta vida atuaram, paradoxalmente, como motivadores para sua
queixa, rebeldia e renascimento, pois González tomou conhecimento de suas capacidades e do
quanto o imaginário em torno do “ser villero” rejeita a ideia de que sujeitos marginalizados
possam ser criativos, exercer funções intelectuais, agir de modo autônomo, emancipar-se.
90
Essa ideia só se difundiu após a prisão e ainda prevalece por conta da consciência política e
social adquirida, o que agora já está muito claro para o escritor.
A superação do lugar previsto socialmente representou uma quebra de expectativas.
Não só para ele, mas para quem ainda acredita na limitação das habilidades de um villero. A
esse respeito, González lembrou que, quando começou a problematizar o que se divulgava
como verdade nos meios de comunicação massivos, deu-se conta de que não se espera que um
indivíduo marginalizado se torne artista. E argumenta
A los villeros no es que se les nieguen el acceso al arte, a la herramienta artística,
siempre y cuando utilicen herramientas artísticas dentro de un repertorio limitado.
Digamos, “puede hacer arte, pero no pintura, ópera, danza, sino cumbia, rap y hasta
ahí no más. Ya poesía, no te metas ahí porque ‘no te da la cabeza’”. [...] Quiero
hacer esto que nadie se espera, que nadie cree que puede pasar. Digamos, la
principal motivación y la principal inspiración fue política. (Entrevista pessoal)
Tal atitude se justifica pela consciência de que a arte é uma ferramenta que pertence à
humanidade. Ainda que um grupo específico, detentor dos meios de representação, tenha se
apropriado dela e venha decidindo quem pode ou não lançar mão desse instrumento, ela
continua sendo propriedade de todos. González afirmou que, considerando-se essa injustiça,
seguiu sendo um delinquente, desta vez, disposto a expropriar do grupo dominante um bem
mais simbólico que material. Algo que o poeta argentino consegue realizar de uma maneira
potente, em diferentes linguagens, conciliando literatura e cinema, pois entre um livro e outro
o escritor dirigiu os filmes Diagnóstico esperanza (2013), ¿Qué puede un cuerpo? (2015),
Exomologesis (2016) e Atenas (2018), cujas temáticas coincidem com o que já perpassava sua
produção escrita.
César González é uma prova de que a capacidade cognitiva de jovens pobres não é
inferior à daqueles oriundos das classes dominantes, mas sim que é a dificuldade de obter os
instrumentos necessários para desenvolvê-la o que se impõe como base de um cerceamento
estrutural. Convocando o ambiente escolar para o debate, Aldo Raponi (2011) se pergunta
como professores podem interferir na realidade desses sujeitos, refletindo sobre seu papel
como educador, bem como sobre o valor social da escola; sobre o olhar que os docentes vão
construindo no processo formador desses indivíduos que estão diante deles, contribuindo para
definir sua forma de atuar. Raponi se indaga “sobre los por qué, para qué, qué y cómo enseñar
y quiénes son esos jóvenes a los que les pedimos que se quiten la gorrita dentro del aula, que
bajen los pies de la mesa y que para la próxima clase vayan a pedir a biblioteca el libro de
Cortázar” (RAPONI, 2011, p. 2). O autor lembra que “Camilo Blajaquis era César González”,
91
e quantos outros não estão por aí neste momento em uma sala de aula sem que sua presença
seja notada? A complexidade que caracteriza esses meninos e meninas mais pobres nem
sempre (ou quase nunca) é reconhecida ou sequer cogitada, são seres invisibilizados nos
diferentes ambientes pelos quais circulam. Por isso, urge que se faça cada vez mais
movimentos em prol de uma educação transformadora dos lugares pré-definidos, de modo a
repensar e desconstruir a imagem depreciativa com que a sociedade representa e enxerga essa
população. Alberto Sileoni destaca que “o Ministério da Educação da Argentina sustenta que
onde há expectativas materiais pobres, devem-se sustentar expectativas pedagógicas altas,
porque cada aluno é um enigma e não há certeza científica de onde se encontra seu limite e de
quanto pode render” (SILEONI, 2006, p. 51). O poeta argentino é um exemplo que corrobora
essa ideia.
3.2. A escrita como redenção, resistência e emancipação
Em seus três livros, mais que superação, González nos fala de uma redenção pela
cultura, e o faz explicitamente em diversos momentos – atribuindo grande responsabilidade à
literatura – já que a leitura e a escrita são o que o salvou da “tumba”. Tal redenção ressurge
inevitavelmente quando nos recorda de seu proceso emancipatório, como no poema “El
instinto suicida”, onde diz: “pero justo ahí / cuando me negaban ser / y me querían matar / ahí
fue donde decidí vivir / quisieron apagarme / pero pude reiniciarme / y aún no se perdonan /
haberme dejado vivo” (GONZÁLEZ, 2015, p. 17). A mesma ideia sobressai em “Sobre
despertar”: “¿y qué fue lo que salvó mi destino / de una muerte policial? / fue un encuentro /
encontrarme con la poesía” (GONZÁLEZ, 2014, p. 90). Resistir, em seu caso, teve um
significado diferente, pois não se tratou apenas de contrariar um discurso ou um pensamento
hegemônico, mas de garantir a própria existência.
Retomando a ideia há pouco comentada, é sempre importante chamar atenção para o
fato de que, como argumenta Sileoni (2006), “uma das funções da educação é seu caráter
emancipatório. A aprendizagem é um veículo para que as crianças descubram que são sujeitos
de direito, já que o conhecimento gera autonomia e a ignorância, dependência” (SILEONI,
2006, p. 51). Esse papel da educação, quando posto em prática, é ainda mais significativo
quando se trata de jovens que se encontram em contextos de pobreza, pois esta é uma
condição que costuma diminuir suas expectativas enquanto estudantes. Portanto, adquirir
92
autonomia, isto é, emancipar-se, passa por um processo de resistência, pela busca por outra
forma de existir.
O empoderamento de César González, como resultado dessa insistente ânsia de vida,
possibilitou sua emancipação e a tomada de consciência de classe, impulsionando-o à
superação da dominação ideológica e política à qual sempre esteve subordinado, e a encontrar
a independência na escrita de sua poesia, como se observa no poema “Contrato social”:
[...] confío en mi potencia
y soy mi propio noticiero
no necesito que alguien me explique
porque el sol ilumina
no dependo para decir
de ninguna sustancia literaria
no necesito para escribir
un lápiz lleno de favores a devolver
(GONZÁLEZ, 2014, p. 60)
Ao distanciar-se da imagem de pibe chorro para aproximar-se do ofício de poeta,
desafiando as leis não escritas impostas por um sistema econômico que provoca e aprofunda
desigualdades, o escritor age com “audácia”, a mesma de que falou Marielle Franco ao
afirmar que por ser audaciosa conseguiu mudar o destino reservado a mulheres negras e
faveladas como ela, uma “audácia de poder ser mais do que queriam”32 para ela, tal como
querem para os pobres e favelados/villeros como um todo. González age conscientemente,
com o intuito de fazer e de ser tudo aquilo que lhe diziam que não era capaz, por ser um
sujeito subalternizado, oriundo de uma zona periférica da cidade.
Tal definição do autor como subalternizado só se aplica no sentido de alguém que foi
inferiorizado e submetido à exploração, ao apagamento e à opressão, e a discussão nos remete
de volta a Gramsci (e à releitura que o Grupo de Estudos Subalternos da Índia faz do termo),
que o descreve como um indivíduo que se encontra (em alguma proporção) em nível inferior,
subordinado a outrem seja por classe, gênero, função, faixa etária, nível de escolaridade ou
lugar onde habita.33 González se afasta dessa condição de subalternidade em certa medida
quando começa a disputar um lugar nos espaços de representatividade e busca a igualdade de
oportunidades. É um processo semelhante ao que ocorre com grupos subalternizados,
comentado por Marcos del Roio: “a cultura das classes subalternas se rompe e se transforma
32 Segundo informação de Bruno Astuto no texto de apresentação da revista Ela – O Globo, de 18 de março de
2018, p.4. 33 Não se deve perder de vista que o intelectual italiano elabora sua reflexão partindo da especificidade da classe
operária.
93
em cultura e vontade coletiva antagônica à das classes dominantes, rompendo-se assim a
subalternidade.” (DEL ROIO, 2007, p. 7).
Embora a educação formal não tenha sido a principal responsável por conduzir
González à sua emancipação, é fundamental pensar nas funções social, cultural e política a ela
atribuídas, pois foi pela arte que ele se salvou e construiu seu olhar crítico: “¿quién sabe lo
que puede un cuerpo? / mi cuerpo que ayer robaba y tiraba tiros / hoy empuña el arte / [...] el
arte renovó mis fragancias / y despertó mi olfato” (GONZÁLEZ, 2015, p. 86).
Segundo Pierre Bourdieu (2007), o capital econômico, ou o poder aquisitivo, não atua
isoladamente na reprodução da desigualdade entre as classes, na dominação de um grupo
sobre outro. Conceitos como os de “capital social” e “capital cultural” também são de suma
importância para compreender e explicar o que aconteceu com César González. Conforme
relatamos ao início deste capítulo, o poeta conseguiu publicar seu primeiro livro com o auxílio
do “capital social” de Patricio Montesano, isto é, do “capital de relações mundanas (fonte de
«apoios» úteis)” (BOURDIEU, 2007, p. 324), ainda que limitado, já que não se equipara
àqueles aos quais se referiu o sociólogo francês em sua análise. Já o “capital cultural” se
refere ao acesso a variados meios de informação e formação do olhar, como os encontrados na
literatura, teatro, cinema, museus, música e galerias de arte, compondo a cultura de um
indivíduo. Relaciona-se, ainda, com a valorização e a capacidade financeira de investir na
educação, pois o sistema de ensino de uma instituição educacional é um fator determinante do
êxito do capital cultural. Trata-se de um mecanismo cíclico, difícil de romper: quanto maior o
capital econômico, maior a possibilidade de garantir altos capitais cultural e social. Estes, por
sua vez, garantem a estabilidade das hierarquias e a manutenção de um elevado capital
financeiro.
Essas relações nos revelam o peso, em especial, do capital cultural na formação de
pensadores críticos. Inevitavelmente, quanto menos acesso à informação, à leitura, às artes em
geral, maior o risco de alienação, aceitação da realidade e não reivindicação de seus direitos,
principalmente por desconhecê-los; maior o risco de subordinação e menor a possibilidade de
ascensão à uma carreira artística e intelectual. Com um nível precário desse capital cultural,
César González não havia alcançado a consciência de classe e cometia delitos por não refletir
sobre a razão de sua condição social e econômica; queria ter a sensação de pertencimento à
sociedade – a mesma de um jovem que pode exibir um tênis caro – e, segundo relatou,
começou a roubar pelo cansaço de não ter nada: “La primera vez que robé me compré
zapatillas y la segunda llevé a comer afuera a mis hermanos con plata manchada con sangre
94
pero el sistema me la aceptaba igual. Eso es el capitalismo: no importa de dónde salga el
dinero, lo que importa es que gastes”, concluiu, agora já com uma compreensão muito mais
clara do processo de reprodução social.34
Em Por que uns e não outros? Caminhada de jovens pobres para a universidade
(2003), Jailson de Souza e Silva buscou mapear e analisar quais condições, experiências e
trajetórias escolares podem ter proporcionado a chegada de pessoas de grupos sociais
populares a cursos universitários, refletindo igualmente sobre a discrepância entre os
caminhos percorridos por estes e por aqueles que, apesar de terem uma história teoricamente
semelhante à deles, tiveram um destino distinto. Eis que surge, mais uma vez, a questão do
pouco investimento que os pais de baixa renda fazem na educação de seus filhos, o que se
justifica não apenas por sua condição econômica, mas, essencialmente, porque eles
se relacionam com a escola de acordo com as condições objetivas em que vivem,
com os outros campos sociais nos quais se inserem e as disposições que
desenvolveram. Ora, nesse quadro, os pais – ou um dos pais – pode não
compreender o investimento escolar como o mais adequado. Nos casos em que o
diploma escolar é considerado o instrumento, por excelência, da ascensão social, a
estratégia escolar se encaminha para uma permanência de médio ou de longo prazo.
(SILVA, 2003, p. 143-144)
Desse modo, percebemos que há fatores que agem para além do capital econômico e
que as diferenças nos percursos de grupos de origem popular e periférica também passam por
eles, constituindo-se, porém, em abismos menos explícitos que os existentes entre as classes
sociais.
Em um texto mais específico sobre os Cursos Pré-Vestibulares Comunitários
(CPVCs), o geógrafo relatou a experiência do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
(CEASM), dando ênfase à dimensão política das atividades realizadas na ONG (SILVA,
2005). Além da produção de conhecimento e da preparação para o vestibular, o CPV-Maré
assume um compromisso com a formação cidadã, buscando desenvolver (desde o seu
surgimento) um projeto político-pedagógico centrado nos conceitos de Paulo Freire para a
educação e instigando um sentimento de identidade e pertencimento dos estudantes ao seu
lugar de origem, a favela da Maré. Por sua forma de atuar e pela contribuição para que muitos
moradores da favela ingressassem em uma carreira universitária, ao longo de seus vinte anos
de existência, o CPVC do CEASM figura como um elemento capaz de transformar esse
território periférico e o cotidiano de seus moradores, que nasceram em uma família com baixa
34 Em entrevista ao periódico Colectivo al Margen disponível em: https://almargen.org.ar/2016/01/13/nacido-
para-ser-poeta-camilo-blajaquis-i-cesar-gonzales/. Último acesso em 22 de agosto de 2017.
95
escolaridade, reduzido poder aquisitivo e que desempenham funções desprestigiadas no
mundo do trabalho, com pouca ou nenhuma expectativa de ascensão social pela educação ou
pela cultura. É uma iniciativa que, por aumentar as referências sociotemporais e
socioespaciais dos residentes de favelas, amplifica seu olhar sobre o espaço que ocupam na
cidade, fazendo com que o lugar onde nasceram/vivem deixe de ser o “ponto de partida, e
também de chegada, da própria existência” (SILVA, 2005, p. 176). Trata-se de uma luta
contra uma das formas do preconceito estrutural da sociedade, o preconceito de lugar ou de
origem, fator que atua fortemente tanto no Rio de Janeiro como na Grande Buenos Aires.
Depois de viver essa dimensão do preconceito e entendê-la em seus fundamentos, González
escreveu: “ser villero / determinará tu existir / limitará tu vida social / enrejará tu ser /
expulsará tu individuo de lo colectivo” (GONZÁLEZ, 2015, p. 53).
A educação transformadora – que, no caso de González, deu-se via literatura –
propicia outro processo de subjetivação dos indivíduos e a formação de seu pensamento
crítico a respeito de sua condição de habitante de um território periférico e marginal, além de
favorecer o desenvolvimento da criatividade para buscar soluções práticas para os obstáculos
que se impõem. Diante da impossibilidade de ampliar seu alcance aos diversos meios
culturais pela via econômica, o poeta bonaerense lançou mão de aparatos tecnológicos para
garantir a circulação de seu discurso e expandir seu alcance a distintos públicos. Esse foi um
dos fatores que lhe deram base para escrever e usar seus poemas como arma para sua
emancipação e sobrevivência.
A esperança que, da mesma forma, só surgiu graças ao seu entendimento do
funcionamento das relações de poder, foi outro componente que protagonizou esse processo
de redenção. Em “Diagnóstico de esperanza”, aparece um eu lírico esperançoso, a despeito da
violência física e psicológica que sofria:
Seguramente deben quedar todavía
muchos golpes, eso no importa
tengo guardadas más de mil cicatrices.
Vivo con un cáncer de angustia
pero todavía sueño un futuro
que ni sé si será mejor.
En mi corta vida tuve más
engomes que orgasmos
todavía no sé qué espero
pero espero algo que viene, lento pero viene.
(GONZÁLEZ, 2011, p. 79-80)
96
A partir de determinado ponto da rota que vinha traçando para si, o escritor sabia que
tudo aquilo valeria a pena, que não seria em vão sua luta no sentido de expor aquilo em que
acreditava e que só recentemente percebera. Esse era o preço da emancipação e do
empoderamento.
Sua trajetória é de algum modo análoga à de Menocchio, cuja história foi resgatada
dos arquivos por Carlo Ginzburg. Em O queijo e os vermes (1987), o historiador italiano refaz
a trajetória de Domenico Scandella (conhecido como Menocchio), um moleiro que viveu em
Friuli, Itália, no século XVI, e foi perseguido pela Inquisição após uma denúncia anônima
segundo a qual o camponês propagava ideias heréticas pela vizinhança. Através da leitura
minuciosa do julgamento contra o camponês (disponível em um acervo de documentos
inquisitoriais), Ginzburg tenta recuperar informações sobre os (poucos) livros aos quais ele
teve acesso, procurando compreender a influência da cultura oral na construção do
pensamento crítico do moleiro, que tinha uma forma peculiar de ler e fazer recortes do que lia,
produzindo um discurso próprio, aparentemente impossível de ser associado a um único texto.
Menocchio, tal como César González, não se confunde com os outros subalternizados
de seu tempo e lugar, pois se encontra em situação de fronteira e traz uma experiência única.
O primeiro é um sujeito que circula entre ambientes letrados e o mundo rural, onde impera a
oralidade, enquanto González se move entre espaços letrados/acadêmicos e villeros. Ambos
podem ser agrupados em uma categoria de subalternizados que se distinguem dos demais que
povoam o mesmo território em que vivem ou (no caso de Menocchio) e que desempenham
a(s) mesma(s) atividade(s) laboral(is). A aproximação a certos textos é a principal causa para
tal distanciamento entre esses sujeitos e seus paisanos. Tanto o moleiro friuliano quanto o
escritor argentino são capazes de produzir algo novo – no discurso oral, escrito ou imagético –
a partir das “sobras” e dos fragmentos que lhes chegam de outros espaços ou campos da
sociedade. Eles mesmos se caracterizam como essas sobras, esses “refugos”, como aponta
Zygmunt Bauman (2005). Com tais fragmentos, e através do que leem e do seu modo de fazê-
lo, eles preenchem muitas das lacunas existentes, cada um à sua maneira, criando algo
próprio.
Considerando-se as distinções entre as experiências do poeta e dos demais villeros,
apesar de sua obra responder ao intento de representar um território específico (a villa Carlos
Gardel e, de modo mais difuso, as villas de Buenos Aires) e seus habitantes, o autor é um
caso, um exemplo de escritor oriundo de um território periférico, mas sua figura não
representa nem caracteriza um conjunto. Pouquíssimos villeros se posicionam sobre as villas
97
com um olhar coincidente com o seu e muito poucos escrevem; dos que escrevem, raros
abordam o tema das villas com um ponto de vista similar. González é um sujeito de trajetória
particular que lê, e a forma como o faz implica uma habilidade em aproveitar as lacunas do
sistema e fazer do (quase) nada um todo. Segundo Arjun Appadurai, nesse processo criativo
há uma esperança que se baseia na ideia de “brecha”, que – segundo a “ética da possibilidade”
– é o que torna possível reverter um quadro desastroso e aparentemente sem saída
(APPADURAI, 2013, p. 295). González aborda esse tema no poema “¿Cómo abrir
caminos?”, ao refletir sobre sua liberdade condicional e convencer-se de que, embora aquilo
que tivesse fosse tão pouco, ao menos era algo, era possível aproveitar: “y la recompensa es /
un vaso con saliva / pero que calma la sed / no habrá focos de iluminación / hay que
conformarse / con un pequeño fósforo mojado” (GONZÁLEZ, 2014, p. 12).
Com Menocchio, o processo é semelhante, seja no uso que conseguiu fazer das
brechas que lhe surgiram, seja na própria identidade. Ginzburg ressalta que o protagonista de
sua obra não deve ser considerado como um indivíduo representativo de todo um conjunto, ou
seja, o moleiro não é – e o autor não pretende que seja – a representação dos camponeses do
século XVI de Friuli, Itália. Ele é um caso único, que carrega as marcas de uma subjetividade
e uma experiência particulares (as quais Ginzburg reconstitui através dos documentos que
emergem de sua pesquisa), constituindo-se um sujeito complexo, no qual se imbricam
múltiplas experiências (moleiro, viajante, leitor crítico, carpinteiro, marceneiro,
administrador). Por este mesmo motivo, voltamos a comentar, ele não pode/deve ser
percebido a partir da mesma chave de leitura da subalternidade.
Menocchio não foi um camponês comum ou apenas mais um entre tantos. E não
somente pelo que lia, mas também porque não abandonou sua ideologia e sua interpretação
particular sobre cada texto, expondo suas convicções mesmo com a constante ameaça de
perseguição. A valentia de revelar suas próprias crenças e tornar público um discurso próprio
– quase isento de mediações, não fossem os livros que leu – lhe custaram a vida. E Carlo
Ginzburg, nessa inquietante obra histórica, se encarregou de impedir que fosse em vão o
esforço daquele homem em fazer um subalterno ser ouvido.
Por essas razões, há tantas correspondências entre Domenico Scandella e César
González. Entretanto, uma história não teve o mesmo desfecho da outra, pois este último
conseguiu escapar do destino reservado a ele desde que nasceu: “mientras uno lucha contra el
racismo / mejores armas salen al mercado / pero conmigo el sistema falló / las enciclopedias
no tenían en cuenta / que un pobre mal alimentado / pueda saber algo / y descubrir que el
98
delito es hijo de la ley” (GONZÁLEZ, 2015, p. 89). Essa possibilidade, ainda que mínima e
inesperada – já que não está prevista no sistema –, é um exemplo daquela “brecha” que
comentamos há pouco. É uma falha que se deve ao olhar reducionista que se lança às pessoas
e aos grupos de classes mais empobrecidas, subestimando suas potencialidades.
No caso de González, tratou-se de uma superação ainda mais surpreendente porque ele
vinha sofrendo uma brutal violência física, além da simbólica, que gerou um trauma que ainda
persiste. Ao comentar seu filme ¿Qué puede un cuerpo? em uma conversa na Faculdade de
Psicologia da Universidad Nacional de Rosario, o poeta reflete sobre como um corpo, mesmo
maltratado, mutilado, consegue realizar algo improvável; como é possível reagir e resistir.
“Me di cuenta que un cuerpo piensa por sí mismo; el cuerpo tiene vida propia. Mi cuerpo
tiene memoria”,35 ressalta González, lembrando as marcas que seu corpo carrega devido à
violência física e mental sofrida e revelando que quando entra em um presídio hoje – nas
ocasiões em que é convidado para fazer alguma palestra –, se imagina sendo algemado, pois
isso é o que lhe traz sua memória ativa.
Apesar disso, o escritor e cineasta não deixa de participar de tais encontros porque
sabe, por experiência própria, das transformações que aquelas conversas podem estimular.
Isso tem um significado especial para ele, pois é uma forma de prestar auxílio àquelas
pessoas, que ele nunca deixa de reconhecer que foi essencial à sua redenção e emancipação.
Se a escrita foi sua forma de sobreviver e recuperar sua dignidade como ser humano diante de
olhos que insistem em negá-la, foi porque alguém o ajudou a conquistar essa autonomia,
alguém que interpretou a condição daqueles jovens como o produto da desigualdade e da
crueldade de uma vida silenciada, considerada indigna de ser vivida.
Diante disso, González defende que é imprescindível que um villero, ao empoderar-se
e tornar-se escritor, trate de não reproduzir uma representação da villa que a ridicularize. Ao
contrário, deve lutar para que seja descrita tal qual ela se configura em sua experiência, ainda
que sua atitude incomode. O discurso que se expressa pela arte deve criar um atrito, provocar
desconforto, ou esta arte será apenas uma estéril forma de consolo para determinados sujeitos
bem estabelecidos no sistema social.
35Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KGPJFqsSGp0&t=13s&list=LL2PhnkckfIETlGIr8VAQ
pUA&index=17. Último acesso: 03 de julho de 2018.
99
4. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CÉSAR GONZÁLEZ
Jean Paul Sartre, ao definir o que é literatura, afirma que a necessidade de se sentir
essencial em relação ao mundo é um dos principais motivos da criação artística (SARTRE,
2004, p. 34). Essa afirmação nos conduz inevitavelmente a César González e sua escrita
poética, pois é através desta que o autor explicita a experiência villera, pessoal e coletiva,
valorizando-a. Ao mesmo tempo, nos revela uma tomada de posição que o tira da condição de
subalternidade propriamente dita, uma vez que emerge como sujeito da representação e não
mais como objeto da figuração processada nos diferentes âmbitos da cidade letrada.
Em seus poemas, González constrói uma fala que contraria as expectativas – uma vez
que seu destino é um imenso paradoxo –, revelando-nos um pouco das vivências que foram
moldando seu discurso, como podemos notar em “Poemas candados” e em “Renacimiento”,
respectivamente:
Yo vi belleza en cada paliza.
Y en cada requisa planeé mi futuro.
De los tiroteos quedó esta mirada.
De años con celda tengo tantas ganas.
De la calle un doctor, maestro y artista.
De las horas en visita, mis lecciones de dolor.
(GONZÁLEZ, 2011, p. 81)
A veces siento que mi pasado me condena
pero soy poeta a pesar del miedo a la inseguridad
si escribo es porque estoy vivo
[...]
mis días cambiaron cuando descubrí
que la igualdad no es más
que una linda idea
[...]
hoy derroto a la tristeza con arte
[...]
muero y resucito cada día
y es que no hay muerte
sin renacer.
(GONZÁLEZ, 2014, p. 53-54)
Tendo tais experiências como ponto de partida, González resolveu escrever sobre e
para as villas,36 imaginando um olhar de dentro delas. Sua poesia pretende subverter a ordem
simbólica, atuando como contradiscurso frente às representações hegemônicas do imaginário
urbano que insiste em estigmatizar os territórios e sujeitos villeros. Um traço interessante de
36 Como se evidencia no poema “Villas: la vida en un mundo aparte o así se vive apartado del mundo. (dedicada
a la gente de la Carlos Gardel, mi barrio)”, de seu primeiro livro.
100
sua obra, e que nem sempre ocorre com autores cuja trajetória se assemelha à dele, é que não
há mediação de um sujeito letrado com posição já consolidada no campo. Ele não apenas dá
voz a um silenciado, é essa própria voz. Apesar de carregar consigo o que poderíamos
considerar dimensões de sua subalternidade – latino-americano, pobre, ex pibe chorro, villero
–, o escritor não precisa “balbuciar” para que um intermediário fale por ele, pois já adquiriu
autonomia para falar, escrever e ressignificar as representações sobre os grupos alterizados.
No processo de subjetivação desse indivíduo subalternizado, ocorre a construção (e
defesa) de uma identidade coletiva, ou seja, ele assume o lugar de sujeito marginal e
periférico e se define com base em uma personalidade que não é só sua, mas dos villeros de
um modo mais amplo. Se pensarmos nas concepções descritas por Stuart Hall (2006),
González se aproximaria da identidade do sujeito pós-moderno, definida por Hall como
aquela que caracteriza o sujeito fragmentado (composto por várias identidades), que não é
fixa e que se transforma constantemente segundo os distintos sistemas culturais.
Junto à forma de identificar-se, e de maneira indissociável, surge seu modo de
enunciação, formata-se seu discurso. Os livros que leu com a ajuda de Montesano, como os de
Rodolfo Walsh, Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Oliverio Girondo, entre outros, além
de responderem à sua necessidade de compreender as razões sociais e históricas para que um
jovem como ele tenha chegado até ali, serviram-lhe para enriquecer seu vocabulário e tornar
mais complexa sua capacidade de análise. Com isso, González deixava para trás a imagem do
menino alienado, semiletrado e ignorante que havia iniciado precocemente um caminho
delitivo e ingressado igualmente cedo em centros de detenção.
Apesar de abordar outros temas correlatos, a partir do momento em que passa a
escrever, o principal objetivo do autor tem sido construir uma villeritud, ou seja, criar uma
noção do que é “ser villero”, combatendo os estereótipos, mas também fugindo da armadilha
da idealização. Há, nos textos desse novo sujeito, uma valorização do território e do lugar da
experiência, o que justifica a escolha do termo para definir seu intuito.
O conceito de negritude defendia que era necessário desconstruir o sentimento de
vergonha por ser negro para dar lugar ao sentimento de orgulho, e González considera que é
coerente fazer uma correspondência com a villeritud, já que um villero na Argentina também
sofre com estigmas vários e precisa enfrentar diariamente as dificuldades que lhe são
impostas, além dos pré-conceitos a partir dos quais são definidos. Em sua argumentação, o
escritor também lembra que havia muitos negros na Argentina, mas que foram exterminados
entre os séculos XIX e XX. A partir desse resgate histórico, pode-se compreender o
101
surgimento de um sujeito que comporte a mesma carga simbólica e o que ocorreu foi que “a
falta de negros en la conciencia colectiva del país se necesitaba una figura que ocupe ese lugar
de símbolo bárbaro. Los llamados «cabecitas negras», luego rebautizados con el tiempo con el
nombre de villeros, empezaron a cumplir esa función de ser «lo negro de la sociedad»”.37
Por isso, o objetivo de González ao retomar o termo “villeritud” é ressemantizá-lo,
contestar a função delegada aos habitantes de uma villa, a de serem a personificação do
perigo, da violência, permanente risco de perturbação à ordem social, um mal a ser combatido
e, se possível, aniquilado, conforme problematiza o poeta em “¿Quién soy?”:
soy el negro de mierda
que merece ser linchado
el anormal que no se deja ayudar
el salvaje que no quiere ser asistido
el bruto, ignorante y hueco
similar simio violento
entrégueselo a los jueces
que condenan según el domicilio
[...]
soy el que vive gracias a los planes sociales
el que debe agachar la mirada
y hacerte sentir el maestro más alto
[...]
el villero
sí
el villero
soy mis amigos que murieron
sin saber cómo fue vivir
[...]
pertenezco a la clase sin clase
los únicos dueños de las escobas
¿quiénes custodian la metrópolis?
¿quiénes limpian lo que vos no querés limpiar?
(GONZÁLEZ, 2015, p. 7-8)
A villeritud ressurge, então, tanto como um instrumento de combate ao racismo contra
essa população quanto como um meio de dar ênfase ao que compõe o cotidiano das villas,
histórica, social e culturalmente falando. Isso significa que, conforme citado acima, o autor
não pretende descrever esse território e seus habitantes a partir das ideias de “bom” ou “mau”,
mas ressaltar quais são os elementos positivos e negativos que estão imbricados no “ser
villero”, desmistificando o discurso reducionista e precipitado que se ancora, além do que já
comentamos, no “paradigma da ausência”. Segundo Fernando Fernandes, Jailson de Souza e
Silva e Jorge Barbosa (2018), trata-se de um discurso que classifica os espaços da periferia
37De acordo com entrevista ao periódico Cosecha Roja, disponível em: http://cosecharoja.org/cine-migrante-la-
construccion-de-la-villeritud/. Último acesso em 27 de junho de 2018.
102
“como territórios «desprovidos», «desfavorecidos», «desprivilegiados», «pauperizados» ou
«carentes»” (FERNANDES, SILVA e BARBOSA, 2018, s. p.). Os autores destacam a
importância de reconhecer que há desigualdades que caracterizam as formas de vida em
territórios periféricos, mas que é bastante prejudicial a esses espaços a predominância de um
olhar voltado exclusivamente ao que não possuem ou ao que não são, desconsiderando suas
virtudes e potências.
Da mesma forma, a reivindicação da villeritud é um movimento bastante significativo
não só para o presente, como também para o futuro, pois promove a criação de uma memória
villera. Segundo Ary Pimentel,
Compreendendo a memória como objeto de permanente disputa entre os múltiplos
grupos que integram a sociedade, e destacando a importância destas disputas para a
escrita da História e para a projeção de discursos que ganham evidência nos campos
da produção simbólica, as tensões entre a memória social e as identidades
microlocalizadas podem ser discutidas a partir de exemplos tomados de textos e
autores considerados menores por muitos, mas que se autodefinem orgulhosamente
como periféricos ou marginais, os quais recriam e ressignificam a imagem da favela,
visando a resgatar e dignificar a memória local. (PIMENTEL, 2017, p. 333)
Tal como é o caso de César González.
Na “Carta da Maré” (2018), há uma análise que se mostra fundamental para entender a
urgência dessa ressignificação e os riscos da visão reducionista típica do imaginário
dominante, que atua como um componente central na constituição do real. Uma vez que a
caracterização das periferias e favelas se pauta em pressupostos que estão subordinados aos
padrões de grupos sociais hegemônicos, esses territórios nunca serão considerados em
conformidade com o resto da cidade. Tal discurso, ao defini-los como um elemento de
desordem e anormalidade, corrobora e fortalece a ideia de que é preciso eliminá-los; reforça a
criminalização da pobreza e justifica a truculência com que as forças policiais agem nesses
territórios.
Por esse motivo, é imprescindível que escritores como González e tantos outros que
mencionamos neste estudo continuem combatendo esse tipo de visão. Os villeros e favelados
precisam ser vistos, como defendemos em outros momentos, a partir de sua potência. Eles
próprios precisam se ver dessa maneira, para que consigam romper com o que o poeta
argentino chamou de “clichês de direita e de esquerda” sobre o que se espera de um villero.
Como argumenta González, até lançar mão da palavra e produzir a suas próprias
representações, o morador de uma villa será visto como um selvagem, um atraso para a
sociedade, ou como alguém que precisa trabalhar exaustivamente e em ofícios que exijam
103
apenas habilidades manuais ou a força física. Para ele, o villero precisa contradizer ambas
ideias para conquistar seu direito a ir muito além disso, a ser artista, se quiser, e conquistar o
mesmo respeito que qualquer outro.
Néstor García Canclini enfatiza nessa mesma linha de pensamento:
o sarcasmo em relação aos subalternos não é um simples efeito do desprezo dos
setores privilegiados: os meios de comunicação de massa difundem-no com êxito
enquanto o público desses mesmos meios o festeja. A repercussão de muitos
comediantes, de Cantinflas a Héctor Suárez, que ridicularizam estereótipos
populares se sustenta tanto em políticas de comunicação de massa discriminatórias
quanto em tendências autodepreciativas dos ofendidos. Esta cumplicidade dos
subalternos na reprodução da desigualdade faz que se repensem as possibilidades de
democratização das políticas culturais e as idealizações da sociedade civil.
(CANCLINI, 2015, p.104)
Essa cumplicidade de que falou Canclini também dificulta as conquistas de grupos
sociais que, em contrapartida, já atingiram a consciência de classe e lutam por políticas
públicas que garantam uma condição de vida mais digna em territórios villeros/favelados.
Devido a essas divergências, é arriscado fazer generalizações ao analisar-se a obra de César
González, como se esta representasse a voz dos subalternizados ou a opinião de todos os
villeros. Este ou qualquer outro escritor villero, quando conquista certo espaço, traz uma
figura individual única, mas que é indissociável de uma série de questões que passam pelo
coletivo.
4.1. O lugar de autor reivindicado
Heloisa Buarque de Hollanda (1994) considera que os movimentos de grupos de
identidade que ocorreram a partir da segunda metade dos anos 1970 – que a autora intitula
“novos sujeitos políticos” (1994, p.10) – nos revelam a desconstrução de tradicionais
hierarquias,
mas sobretudo de suas identidades correlatas, dando lugar a um processo político,
que poderia se caracterizar agora como uma “guerra de posição”. Isto é, uma
estratégia, na qual a identidade vai se constituir e se redefinir numa permanente
negociação de sua legitimidade política, nos mais diversos terrenos institucionais e
culturais. De uma política de direitos, passa-se a uma política de interpretação de
necessidades e ocupação de espaços diversificados. Das lutas e atividades em
espaços locais ou em instituições alternativas, passa-se ao questionamento mais
amplo dos critérios de valor da produção, circulação, transmissão e recepção da
cultura e do conhecimento. E, especialmente, passa a identificar os modelos nos
quais estes processos, mediados nas e através das relações de poder, determinam a
104
legitimidade das atuais formas do saber. Portanto, a própria noção de “identidade”
deixa de ser um atributo e começa a ser experimentada e entendida como um
processo constituído no interior de políticas sociais e culturais. É ainda através deste
processo que se pode perceber com mais clareza a posicionalidade das categorias
raciais e de gênero, a efetiva multiplicidade de sujeitos históricos e de suas
estratégias de resistência e intervenção. (HOLLANDA, 1994, p. 10)
Podemos tomar essas mesmas considerações para descrever o que ocorre com César
González no processo de construção ou percepção da identidade que assumiria depois de
começar a escrever, ou mesmo a partir do momento em que percebeu quem era, o porquê de
sua trajetória e os espaços que poderia ocupar além daqueles que lhe foram designados. Mais
que um “escritor villero” ou “escritor marginal”, González parte em busca, acima de tudo, de
um lugar de autor. Exatamente assim, sem adjetivos. O escritor argumenta que discorda da
adjetivação da literatura produzida por escritores oriundos de zonas mais pobres da cidade
“porque de los burgueses nadie está diciendo «literatura burguesa», nadie dice «literatura de
blancos», es literatura. Pero, en cambio, el de la villa que escribe es «literatura periférica»,
«literatura marginal» [...]. No, es literatura, punto y aparte. Si no que aclaremos todo, ¿no?”
(entrevista pessoal).
O que o poeta busca para si é o rompimento de uma imagem simplista, como a de um
ex pibe chorro recuperado que agora narra seus infortúnios, ou a de um villero que decidiu
relatar o que se passa nas villas e fala apenas disso. O poema “Sobre el devenir” retrata um
pouco dessa discussão: “mi metamorfosis no ha terminado / no volveré a morirme nunca más
/ no podrán hacerme correr en la ruedita / ¡la cárcel te sirvió! me dicen algunos / Está
recuperado, fue el diagnóstico de muchos / ¡yo soy poeta! / me recuerdo al despertar.”
(GONZÁLEZ, 2014, p. 32). Ele reivindica um lugar de autor38 e reflete sobre os terrenos que
os escritores de origem popular precisam ocupar.
Lucía Tennina (2015) ressalta o valor simbólico que acarreta para esses autores a
publicação de um livro, pois essa fatura os aproxima da “legitimación del lugar de
enunciación de la literatura realizada en esos espacios” (TENNINA, 2015, p. 137). A
conquista desse lugar em um campo que historicamente menosprezou a cultura produzida nos
territórios populares é vital para que se consiga democratizar o universo das produções
literárias e artísticas. O problema é que tal conquista também depende de uma série de
disputas, e não apenas da vontade e dos projetos dos escritores. De acordo com Tennina, “la
valoración y la legitimación de estos autores está determinada por instancias de
reconocimiento ligadas al campo literario, tales como editoriales, eventos literarios y
38Lugar enquanto posição/espaço ideológico, e não necessariamente ou exclusivamente geográfico.
105
recepción crítica” (TENNINA, 2015, p. 264). Assim sendo, além de todas as adversidades que
tiveram que vencer para chegarem a se tornar escritores, ainda há disputas que eles devem
travar para garantir seu espaço no campo editorial e ser reconhecidos pelo seu papel de
autores, e não por um adjetivo que enfatize e os reduza ao seu espaço de origem.
Constituir sua imagem a partir da ideia de autoria propicia o deslocamento de um
villero da posição de objeto de representação à de sujeito da enunciação, gerando uma quebra
de expectativa, pois quando o próprio sujeito alterizado resolve se representar na literatura (ou
no cinema, na música, nas artes cênicas etc.), desestabiliza a ordem canônica, põe em tensão
as regras do campo. A este respeito, Ana Camarda (2016) defende que
mientras un texto retrata a un marginal de la manera en que se espera que sea
retratado genera confort y empatía. Sin embargo, es cuando subvierte las
expectativas que adquiere otra potencialidad democrática, porque está exigiendo
otro lugar para este sujeto en la sociedad. [...] Considero que son los textos que,
excluidos de los carriles habituales de circulación –al igual que sus autores de la
sociedad–, tienen ese verdadero potencial porque no hay en ellos un realismo
pedagógico que, al retratar estas crudas realidades, las disculpe o las presente de
modo tal que la consciencia burguesa no se vea incomodada. (CAMARDA, 2016, p.
8-9)
Trata-se, pois, de uma voz que se impõe e exige um lugar próprio (CAMARDA, 2016, p.
9) e esta não é a única exigência que gera desconforto. Para González,39 a simples proposta de
que os villeros possam frequentar espaços públicos de cultura e lazer, como teatros, museus e
cinemas, desperta mais revolta e intolerância do que se estivessem mendigando comida ou
trabalho.
Quando alcançam a condição de autores, ainda persistem os clichês, bem como as
exigências que não são feitas a outros. Há uma busca alucinada por alguma falha, um erro que
passou despercebido; subestima-se sua produção porque se subestima sua capacidade
intelectual. Entra em cena uma supervalorização da estética que a obra deve perseguir e, ao
menor sinal de descumprimento dessa meta, a legitimidade do valor literário da obra se
desfaz.
Acontece que, uma vez que se trata de indivíduos com percursos de vida díspares, e
que estes vão influenciar o modo como enxergarão os mesmos temas que os autores
consagrados no sistema literário de seu país já abordaram, inevitavelmente manifestarão
dicções diferenciadas. Outras estratégias discursivas e propostas de interpretação dos fatos do
39De acordo com entrevista disponível em: https://latinta.com.ar/2017/02/cesar-gonzalez-si-un-villero-exige-un-
lugar-dentro-del-arte-despierta-sentimientos-muy-oscuros-y-miserables/. Último acesso em 10 de setembro de
2017.
106
mundo serão ativadas. Além disso, cada autor possui seu modo peculiar de se expressar e, se
não se exige de um homem branco com formação superior que escreva igualmente a outro do
mesmo grupo, essa imposição ao que veio da periferia também é descabida.
Em um mundo caótico, desigual, cruel e de barbárie civilizada como este em que
vivemos, as letras e as artes podem atuar como um germe que representa fonte de esperança,
sobrevivência, rebeldia e persistência, uma forma de não sucumbir ao suicídio, de não morrer,
nos sentidos figurado e literal. González não acredita na arte pela arte, sem um propósito, por
isso a toma como uma arma para a militância. Para ele, os artistas possuem uma admirável
coragem para dizer, de variadas formas, aquilo que ninguém disse, porque não se atreveu a
expor. E foi esta ousadia que o inspirou e inspira a contar à sociedade tudo o que esteve
escondido sobre as villas; “des-vendar” e “des-cobrir” sua beleza e diversidade, das quais não
se espera que ninguém fale.
Pensando na realidade multifacetária da arte, Jacques Rancière (2009) instiga-nos a
refletir sobre a necessidade de se revolucionar a estética de modo a abranger os novos artistas,
e não apenas os canônicos. Na arte, nada deve ser desprezado, pois
tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram
abolidas. [...] Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios
narrativos importantes e episódios descritivos acessórios. Não existe episódio,
descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra. Porque não há coisa
alguma que não carregue em si a potência da linguagem. Tudo está em pé de
igualdade, tudo é igualmente importante, igualmente significativo (RANCIÈRE,
2009, p. 36-37).
Cabe salientar que o que nos interessa discutir aqui, como descreve Homi Bhabha, são
“as estratégias complexas de identificação cultural e de interpelação discursiva que [...] os
tornam sujeitos imanentes e objetos de uma série de narrativas sociais e literárias” (1998, p.
199). São estratégias que estão mais preocupadas em resolver o problema urgente da
depreciação e humilhação de seres humanos baseadas apenas no lugar onde nasceram. É por
isso que existe essa luta incessante pela abertura de um espaço que lhes garanta o lugar de
fala, que lhes permita ser os donos da própria história.
“¿Quién nos representa?” é uma das poesias mais expressivas do incômodo de
González com as representações das villas, em que apresenta sua visão sobre a violência
nestes espaços, afirmando que os jovens villeros não são os que geram a violência, mas os que
devolvem à sociedade a violência com que foram tratados:
¡maldita sea la representación!
107
¡maldita sea la palabra!
¡maldito el lenguaje
si enseña a olvidarnos del cuerpo!
multitudes de muertos descansan en los cementerios
pibes muertos por la policía
policías muertos por los pibes
pibes muertos por los pibes
aunque los pibes detonan pistolas
ellos no las inventaron
(GONZÁLEZ, 2015, p. 33)
Esforçamo-nos, enfim, para raciocinar sobre o processo de ressignificação das villas
na literatura argentina, sem esquecer das significações dominantes, visto que a proposta
discursiva de González – e de outros escritores que seguem a mesma linha de pensamento –
instaura, atribui a esse território um significado pouco explorado e que não costuma ter lugar
ou visibilidade nos discursos dominantes.
Assim como o poeta e diretor argentino, esperamos que cada vez mais “gente de
abajo” se torne escritor, diretor de cinema, professor, pintor, músico, pesquisador ou o que
quiserem, usando todos os instrumentos à sua disposição para desconstruir os discursos
hegemônicos responsáveis pela perpetuação dos estigmas, das desigualdades, da opressão de
uma classe sobre as outras.
108
CONCLUSÃO
As classes mais altas da sociedade, donas do discurso dominante, uma vez que detêm
o monopólio dos meios de produção e comunicação, foram responsáveis pelo silenciamento
da parcela da população (a maioria) vistas como “a outridade”. Tratou, ainda, de representar
as periferias da cidade e seus habitantes como não pertencentes a esta cidade, causadores das
piores mazelas associadas a seus territórios, dos quais deveriam ser removidos como meros
refugos dos projetos de modernização da sociedade. O mais alarmante desta incoerente sub-
representação de uma fração significativa da população é que ela é sistemática, isto é, trata-se
de um processo de invisibilização das classes menos favorecidas.
A fim de denunciar esse silenciamento e superar o obstáculo da desvalorização do
saber oriundo de favelas e villas, propusemos aqui uma leitura crítica da produção literária
dos novos agentes do discurso. Sublinhamos, nessa leitura, o modo como eles lançam mão da
própria experiência em seus escritos, e refletimos sobre o modo como a literatura (e o cinema,
no caso de González) pode interferir na formação dos sujeitos ou mesmo no posicionamento
que eles assumem a respeito do espaço que habitam/habitaram, seja o cárcere, a favela, a villa
ou assentamentos populares do conurbano bonaerense.
Assim, a voz de escritores da periferia ganhou destaque nesta pesquisa, pensando-se a
apropriação de instrumentos necessários à expressão de seu ponto de vista. Tratou-se, pois, de
uma abordagem crítica das negociações de grupos alterizados no âmbito da cidade letrada
para conquistar o direito de intervir nos modos de fazer dos campos artísticos.
As representações e autorrepresentações da margem, sejam as difundidas pelos meios
de comunicação de massa ou as resultantes da produção literária, musical e audiovisual, foram
marcantes na passagem do século XX para o XXI, dando destaque e notoriedade a territórios
e sujeitos da periferia. Dependendo do enfoque e da importância atribuída ao lócus da
enunciação, as representações podem gerar uma associação automática entre os sujeitos que
ali habitam e certas imagens ou valores. Geralmente, o modo como as favelas/villas e seus
moradores figuram no discurso que prevalece os limita à condição de objetos vistos ou
falados, jamais a de sujeito que vê ou fala. Isso mostra que há um perigo na descrição de um
ethos de indivíduos subalternizados baseada apenas no olhar de fora, sem considerar o que
estes têm a dizer sobre si mesmos e sobre a vida na cidade. Já as definições protagonizadas
pelos autores periféricos trazem à cena ideias e imagens contrastantes, colocando em
circulação outro ponto de vista e outra possibilidade de narrar a vida em regiões
invisibilizadas, enaltecendo seus traços positivos, sem romantizar essas experiências.
109
Tendo essa problemática em vista, nos propusemos a refletir sobre o processo de
formação do pensamento crítico de César González e suas estratégias discursivas para
solidificar seus projetos, comparando-o a outros autores que igualmente falam a partir de uma
zona de contato: a ponte onde os territórios populares e a experiência marginal se encontram
com os saberes e textos da cidade “formal”. Apesar de estabelecermos esse recorte para a
pesquisa, concordamos que é fundamental, como defende Eliana Sousa Silva (2012), que haja
uma pluralidade de representações da favela/villa, já que não são apenas esses autores os que
podem falar e escrever sobre suas práticas e vivências. Por isso, é necessário que se abra cada
vez mais espaço na academia para este tipo de discussão, possibilitando que se apresentem
discursos alternativos e contrastantes aos divulgados pelos meios de comunicação de grande
alcance ou pelos canais de circulação formais, e que se reparem as distorções causadas por
uma tendência elitista do trabalho acadêmico, como descreve Ranajit Guha (1997b).
Os principais objetivos desta investigação foram: 1) acrescentar um novo corpus às
pesquisas sobre escritores oriundos de territórios periféricos e as representações da
favela/villa que se pautam em uma “atitude textual” (SAID, 2007); 2) motivar e fomentar a
investigação de obras literárias de villeros e favelados, a fim de atribuir-lhes mais
notoriedade; 3) contribuir com os estudos sobre indivíduos subalternizados, periféricos e
marginalizados; e 4) refletir sobre o processo de constituição da memória e das identidades de
villeros e favelados em textos produzidos por eles no século XXI.
Mais que dar voz aos sujeitos alterizados, pretendemos salientar que é preciso ouvi-los
e respeitar seu espaço e lugar de fala, pois eles sempre possuíram essa voz, apenas foram
silenciados; já não precisam que lhe deem permissão para falar, porque já conquistaram a
consciência desse direito que lhes foi negado. O que devemos fazer é lutar para que esse
conhecimento atinja um número cada vez maior de indivíduos que, preocupados em obedecer
a “ordem natural das coisas” e convencidos de que sua condição social é uma circunstância
impossível de mudar, ainda permanecem em silêncio, conformados com a posição subalterna
em que foram colocados – em muitos casos, estando alheios a tudo isso. A tomada de
consciência de sua real importância social é o que provocará a “ressonorização” dessas vozes
que possuem uma potência incomensurável e ainda ignorada. Provavelmente, este é o
principal intuito de escritores e pesquisadores que se dedicam a explorar esta temática. É um
objetivo ambicioso, um desafio e tanto, mas não podemos afirmar que não fomos tomados por
ele nesta pesquisa.
110
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118
ENTREVISTA COM CÉSAR GONZÁLEZ
(realizada no dia 19/04/2018, em Buenos Aires/Argentina)
¿Podrías hablar de tu trayectoria y de cómo nace el poeta Camilo Blajaquis?
CÉSAR GONZÁLEZ: Bueno, mi historia ya es de público conocimiento, pero la repito una
vez más. Mi trayectoria como escritor empieza adentro de la cárcel, es ahí donde siento que
escribo algo, por primera vez, con consciencia, con libertad, con una búsqueda propia. Y es
algo diferente a lo que había experimentado ya en la escuela. Todos empezamos escribiendo
algo en la escuela, pero la primera vez que yo tomo la literatura como una herramienta de vida
es en la cárcel. Yo tendría 17, 18 años cuando comencé a intentar escribir poesías.
El día 21/03/18, se inauguró la biblioteca César González, en un centro de detención de
menores (Instituto de Recuperación del Adolescente de Rosario). El nombre fue elección
de los pibes. ¿Había biblioteca en los institutos por los cuales pasaste? ¿A los pibes
también les interesaba la lectura?
CG: El sistema carcelario argentino es muy diverso, digamos... podés encontrar algunas
cárceles donde hay talleres de todo tipo, de diferentes artes (teatro, literatura, música y otros
géneros también), pero también hay muchos penales donde no hay nada, donde no existe
ningún espacio para hacer otra cosa que no sea algo manual, estrictamente físico; no existe en
algunos penales. Sí lo que repiten en la mayoría de las cárceles argentinas, e igual de
Latinoamérica, son condiciones de completa inhumanidad, hacinamiento, te ves obligado y
empujado a una vida de constante violencia, porque escasean la comida, escasean la
vestimenta, escasean el espacio de por sí porque hay sobrepoblación, ¿no? En la mayoría de
los establecimientos donde estuve había bibliotecas, había escuela, pero tanto en la biblioteca
como en la escuela tomaban la literatura como algo inofensivo, como un adorno; la biblioteca
era como un adorno, como para dar una imagen un poco más humana a la cárcel, pero si uno
se ponía a ver el catálogo de los libros que había en la biblioteca, en su mayoría eran libros
que, para un pibe que nació en la clase más baja y terminó en la cárcel, no le servían mucho
para poder hacer algo en la vida, para entender algo de la vida, entender, sobre todo, la
sociedad y sus mecanismos, el sistema económico que tuvo mucha responsabilidad para que
termine ahí adentro. Pero al fin eran libros que servían para despejarte la cabeza y pensar un
poco en otras cosas. Digamos, todo libro, por más que sea completamente innecesario para el
pibe y su contexto de vida, no deja de ser libro. Y todo libro tiene alguna potencia, algo que
119
uno puede sacarle. Pero mi formación vino por otro lado, no sacaba los libros de la biblioteca
del penal, sino de, sobre todo, un profesor, que fue Patricio, que fue quien me empezó a
acercar libros de Marx, de Foucault, de filosofía, de literatura (de otra literatura). Me empezó
a acercar libros que tenían potencia, libros que tenían un fuego para quemar.
¿Tuviste acceso a los libros antes de conocer a Merok (Patricio Montesano) en el
Instituto Belgrano, en 2006?
CG: Sí. Lo que pasa es que ahí se confunden las cosas, yo terminé la primaria estando afuera
y nadie termina la primaria sin haber leído varios libros, pues son nueve años. Y lo que pasa
es que la sociedad cuesta imaginarse que una persona de una villa/de una favela lea. Es una
imagen que no existe, no es parte de nuestro imaginario colectivo; no es parte de los mandatos
culturales; no es parte de un programa universitario. Esa imagen de la persona de una villa
leyendo no existe. Yo leía desde antes, pero lo que pasa es que, como decía recién, leía libros
que eran inofensivos, no me afectaban, eran mundos ideales, mundos desconocidos para mí
eso de lo que hablaban en esos libros; mundos que no tenían ninguno de los problemas que yo
sí tenía en la vida real. Entonces, me podían despejar un rato, pero quedaba ahí. En cambio,
los otros libros – los nuevos libros, digamos – también me despejaban, también servían para
despejarme de ese mundo inmediato tan opresor, tan asfixiante, tan violento, pero a la vez
también me servían para incorporar la consciencia de clase, sobre todo. La conciencia de clase
llamo entender el lugar que uno ocupa en el mundo, entender por qué nací acá y no allá, y qué
implica nacer acá y no nacer allá; cuánto implica en la vida de alguien, cuánto define y
determina la vida de alguien, que no es algo menor. Implica que, quizás, nunca salgas de la
villa, que tu mundo sea muy pequeño, que nunca creas que hay vida más allá de la villa, que
vos no sos capaz de escribir, que tu capacidad es solamente física, con las manos, con la
espalda, y que por nacer acá y no allá tus capacidades cognitivas y la creatividad no existen
porque tu cerebro es más chico, porque la ciencia misma lo argumenta y lo justifica, la ciencia
trae un racismo científico, decía [Frantz] Fanon. Y hoy aún persiste, hay personas en la
universidad que intentan justificar que los negros, los villeros, que los que viven en las favelas
son inferiores intelectualmente. Inventan unos motivos, intentan explicarlo diciendo que es
por la mala alimentación, que no sé qué... Y eso es en toda Latino América, solo cambian los
nombres, los términos.
120
¿Hubo una inspiración específica para los títulos de tus libros? Ya se sabe qué pasó con
el primer libro, con la revista ¿Todo piola?, pero ¿con los otros pasó igual?
CG: Crónica de una libertad condicional justamente habla de una nueva experiencia afuera,
es un libro (es el segundo) escrito con mucho menos tiempo que el primero, paradójicamente.
Al estar afuera yo tenía menos tiempo para escribir que estando adentro, porque allí quedaba
tantas horas en la celda, solo... entonces era un contacto metafísico con el libro. En cambio,
afuera todo el mundo [decía] que tenía que buscar un trabajo, que tenía que ver dónde vivir,
que tenía que ver el dinero que ganar para comer... Entonces es un libro escrito con mucho
más urgencia, escrito inmediatamente. Es una poesía muy literal, muy directa, con muy poca
metáfora, porque así estaba viviendo afuera. Entonces, como lo dice el título, es la crónica de
volver a la calle. Y lo de la libertad condicional, por un lado, es una alegoría y, por el otro, es
tal cual, pues yo salí con libertad condicional, que es una categoría jurídica, que no es la
libertad absoluta, vos salís y tenés que, después de algún tiempo, volver algunas veces a los
tribunales a rendir cuenta de qué estás haciendo, es condicional.
En Retórica al suspiro de queja también estoy hablando ya de mi vida urbana, y la queja es
una cosa que tenemos naturalizada los seres humanos de la urbe, los seres humanos
modernos, cómodos, que abren la canilla y sale agua, que ya nacieron con apretar un botón y
que se prenda la luz, o sea, no tienen que hacer casi ningún esfuerzo. Hasta el siglo XIX, la
humanidad tenía que sí o sí emplear/ejercer ciertas virtudes físicas porque, si no, no accedía a
ciertos servicios, no accedía a ciertos beneficios de la naturaleza. Hoy los seres humanos
tienen más comodidad, pero se quejan más, todo es para quejarse. No sé, es un cansancio que
todos lo manifiestan, hay un agobio, una incomodidad de este mundo. Nadie se siente cómodo
por este sistema, pero igual vamos, igual lo mantenemos, lo aprobamos, lo difundimos, igual
será lo que oprima nuestros hijos. Yo noto en las calles que nadie está tan contento de la vida
que tiene. Entonces la queja es como una reacción física que tiene el ser humano para
manifestar este cansancio. Entonces es una retórica, no es una crítica ni un tratado sobre la
queja, es una retórica. Puedo decir que la queja también está en mí un poco, y cómo luchar
contra la queja, cómo darle dignidad a la queja; que la queja tenga un sentido un poco más
inmediato, en el sentido de no quejarse por cualquier cosa, cuando hay seres humanos,
millones en este planeta, que la están pasando muy mal y no se pueden dar el lujo de quejarse.
La queja es un privilegio de clase, de la comodidad. Aquellos que están en una situación de
adversidad no se pueden dar el lujo de quejarse porque si no su problema se perpetúa.
121
Sueles afirmar, en entrevistas y eventos en los que participas, que el arte salva y que fue
la responsable porque no estés muerto. ¿Cuándo te has dado cuenta de que el libro es un
arma?
CG: Cuando empecé a pensar en todo lo que había escuchado a lo largo de mi vida, en la
escuela, en la televisión, en las películas, de qué era lo que se esperaba de una persona de una
villa y creo que yo empecé desde la negatividad, al ver que nadie se esperaba que un pibe de
la villa sea artista, y no cualquier artista. A los villeros no es que se les nieguen el acceso al
arte, a la herramienta artística, siempre y cuando utilicen herramientas artísticas dentro de un
repertorio limitado. Digamos, “puede hacer arte, pero no pintura, ópera, danza, sino cumbia,
rap y hasta ahí. Ya poesía, no te metas ahí porque ‘no te da la cabeza’”, como se dice acá, no
sé si se entiende. Entonces, “quedate con algo más simple como el rap, que es más fácil”. Yo,
si nadie lo espera, lo voy a hacer, quiero hacer esto que nadie se espera, que nadie cree que
puede pasar. Digamos, la principal motivación y la principal inspiración fue política. Política
en el sentido de pensar la polis, qué pasa en esa polis, en ese pensamiento de la polis frente a
sus esclavos modernos, que son las clases más bajas. [Pensar] que es una herramienta humana
el arte, no es de una clase. Se la apropió una clase, que la tiene bajo custodia, pero el arte es
de la humanidad, es una propiedad de la humanidad, del ser humano. Entonces yo quiero
ejercer esta herramienta que es de la humanidad, no es de una clase. Y voy a tomar esa
herramienta por asalto, nadie me la ha vino a dar, me la voy a robar. Puedo decir, seguí siendo
un delincuente, pero no un delincuente de algo material, sino que salí, como Prometeo, a robar
ese fuego que teníamos prohibido los villeros, el fuego del arte. Y no todo el arte, porque en el
arte el ser humano deposita una confianza. ¿Y por qué van al teatro? ¿Por qué van al cine?
Porque depositamos (los seres humanos) en el arte, en los artistas, la aposta de que iluminan
el camino, no en sentido de gente iluminada, sino que son humanos, igual como nosotros,
pero que tienen un coraje distinto de decir lo que nadie quiere decir y así va a decirlo, y
decirlo de distintas formas, de formas rectas, de formas sublimes, de formas misteriosas,
enigmáticas. Y eso fue lo que decidí hacer, tomar las herramientas del arte para salir a la
sociedad y contar todo el mundo de las villas, todo lo que estaba tapado, escondido, y lo que
nadie quiere decir de mi gente; mostrar la belleza que hay en una villa, la complejidad que
hay, la heterogeneidad de la villa. Reivindicar que hay diversidad en la villa, que no es que
son todos iguales, porque hay esa imagen, que son todos así, tienen los mismos gustos... y no.
Sí que hay una norma, como la hay en toda humanidad, hay características generales, pero
hay una diversidad que está escondida, que no se quiere hablar. Tengo conocidos en las villas,
122
en las favelas, personas que escuchan el heavy metal, personas no que solamente escuchan el
reggaetón. ¿Y por qué no se imagina que haya personas que tengan instrumentos de música
clásica? ¿Les cuesta, no les sienta? Solo las de clase media pueden estudiar, ¿no? Bueno,
desde ahí es que tomo esa la herramienta literaria (de los libros), sumarla mi experiencia de
vida a una consciencia, una consciencia viva.
Además de tu experiencia, ¿hubo sucesos del país o del mundo que influenciaron el
contenido de lo que escribías?
CG: No, lo que pasa es la experiencia de estar preso era el infierno mismo, es una experiencia
de un ser humano que vive una cantidad muy pequeña de toda la humanidad, creo que, como
riqueza de situaciones, la cárcel tiene mucho más para escribir que cualquier otro [lugar].
Estás viviendo el mismo infierno, si a Dante la imagen del infierno le inspiró a escribir ese
libro tan enigmático, tan raro, imaginate vivirlo de verdad. Es cuando te das cuenta del poder
de la herramienta literaria. Sí que pasaban [cosas] en el mundo, en mi país, por lo menos. En
Latinoamérica, cuando caí [preso], en 2005, es la juventud, la infancia de una política más
progresista, los Kirchners, los Lulas, los Chaves, en ese momento he caído yo, que es
interesante como paradoja, que yo caigo en ese momento del progreso del continente, pero
caigo igual, que es una deuda pendiente que han tenido los gobiernos más progresistas, no han
podido solucionar esa criminalidad, que somete a la juventud de las favelas, no lo han podido
erradicar, les ha costado mucho a los gobiernos. Han hecho un montón, pero tuvieron muchas
fallas también. Había un sentimiento antiimperialista, anti-Estados Unidos, pero yo estaba
dentro de una cárcel, que era una isla, confinada y apartada de la realidad.
Poco tiempo después de recuperar la libertad, ingresaste en la carrera de Filosofía en la
UBA. ¿Qué te quedó de tu experiencia en este curso?
CG: A mí me quedó la frustración de que por no tener plata no pude haber seguido la carrera,
me quedó el dolor de no haber conseguido ni siquiera una beca. Muchos años después me
cuesta mucho encontrar apoyos institucionales, y todo ese apoyo de la gente a quien salgo a
dar charlas son apoyos anónimos e individuales. Me dolió comprobar mis teorías, ¿no? Que
todo que yo digo de que tu clase te determina, y no son [teorías] mías, son de muchos autores,
pero confirmar eso que yo escribo no es ninguna fantasía, no es ningún delirio. Porque si un
pibe que ya salió en los medios, es conocido y no pudo conseguir una beca para hacer su
carrera, ¿qué les queda a los que no son conocidos? ¿Qué les queda a los que no son César
123
González, que no pudieron trascender la barrera del conocimiento público? Quizás en algún
momento, si puedo estar más tranquilo económicamente, retome y finalice la carrera, aunque
yo he hecho mi carrera de forma autodidacta. Yo estoy todo el tiempo tratando de reemplazar
la estructura universitaria con una propia estructura, pero no es lo mismo. Creo que
justamente la filosofía es la que menos requiere el título para ejercerse. La verdad es que no
determina, no garantiza nada el título. Hay universitarios de derecha, que votan gobiernos de
derecha, que tiene títulos, postgrados, hablan varios idiomas, se leyeron miles de libros y, sin
embargo, eso no los transforma en personas solidarias, en personas sensibles. Es decir, que el
poder de los libros se lo da el lector, no lo tiene un libro de por sí, porque esas personas han
leído los mismos autores que yo y, sin embargo, no piensan lo mismo; han podido leer a Marx
desde otro punto de vista.
¿Por qué hiciste la elección por el lenguaje poético, o sea, por la poesía y no otros
géneros literarios?
CG: Porque para escribir novela, crónica, uno necesita una tranquilidad, un espacio, por lo
menos mínimo, de concentración, y no tenía eso garantizado en la cárcel, donde a veces no
tenía ni un pedazo de colchón para dormir. Era también lo que tenía más a mano, era el
formato más coherente con mi condición, con mi contexto, y la sigue siendo hasta el día de
hoy. No tengo un espacio adecuado para tener la concentración necesaria para escribir otros
géneros, no es por una cuestión de gusto. Yo he leído más novelas y más cuentos que poesía.
Sin embargo, es lo que escribo porque es lo más correlativo a mi situación socioeconómica.
¿Te parece que haces una poesía autobiográfica (o pretendes que sea)?
CG: Yo dudo, no creo que sea autobiográfica, porque yo hablo desde una igualdad que no se
puede explicar desde lo personal, de lo individual. Lo que yo viví viven miles y millones de
personas, y por las mismas razones, por consecuencia de manejos políticos, de sistemas de
gobiernos. Entonces, a mí no me gusta llamarla de poesía del tipo autobiográfico porque no,
yo hablo desde un lugar político que admite su prisma ideológico, que no finge desde donde
mira el mundo mi poesía, no finge neutralidad, una supuesta subjetividad, un supuesto
idealismo, no interesa ninguna de esas cosas para mí.
124
¿Por qué decidió dejar de usar el seudónimo Camilo Blajaquis en las obras siguientes?
CG: Porque me di cuenta que mi nombre real, César González, era justo con mi linaje, con mi
genealogía. Es un apellido muy común, que habla de una pertenencia a una clase muy común,
donde no abundan los apellidos raros, donde no vas a encontrar muchos apellidos europeos, si
bien González es español, pero viene de la colonización, de los ya colonizados que nacían
acá, de los pueblos originarios que agarraban de a miles y decían: “Ustedes ahora son
González, ustedes ahora son Fernández, ustedes ahora son Gutiérrez”. Y quizás uno era
quechua, otro era aimara, guaraní, “no importa, ahora son González y chao”. Blajaquis es un
apellido griego, de un inmigrante griego, de un militante que mataron acá y que yo leo en un
libro. Fue una forma también de no despertar sospechas en la cárcel: usar un seudónimo,
protegerme. Entonces lo más realista era mi nombre, César González, un nombre común,
porque pertenezco a un segmento social muy común.
Ahora estás muy involucrado en lo del cine, ¿y qué le motiva a seguir escribiendo al
mismo tiempo?
CG: De escribir no he dejado nunca, no veo ningún conflicto porque mi vida se divide de una
forma muy harmoniosa entre literatura y cine. Y dentro de la literatura hay los libros de
filosofía, hay los ensayos sobre cine, hay los ensayos de todos tipos que leo. Convivo
tranquilamente intercambiando ratos de cine con ratos de literatura.
¿Cuál te parece que debe ser el rol del escritor o de la literatura cuando está hecha por
un villero?
CG: Creo que hay que tratar, sobre todas las cosas, de no repetir ni reproducir los estereotipos
instalados que hay sobre cómo son las personas de las villas, tanto a nivel conservador como a
nivel progresista. Hay clichés de derecha y clichés de izquierda. El de derecha es ese que mira
al villero como responsables de todos los males, como a un salvaje, como a un simio
extraviado de la evolución.
A veces, el propio villero asume esa idea, ¿verdad?
CG: ¡Asume! Yo, hasta que tuve mi despertar, lo creía, estaba convencido que era así, de que
yo era inferior, estaba convencidísimo. Y después está el cliché de izquierda, del villero que
se tiene que romper el lomo trabajando, del villero sólo obrero, albañil, obediente, respetuoso.
Yo quiero villeros que rompan ambos órdenes, que puedan tener el derecho a la ironía, al
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sarcasmo, a la comedia, al surrealismo, a la insomniación. Yo quisiera ver villeros que no
nieguen nunca su condición de clase, que no se avergüencen, que no pidan permiso, que no
digan “por favor”; que se agradezca, pero en el mismo nivel de gratitud... y que se los miren
con el mismo respeto que se mira a un escritor burgués. [Un villero] Que no se avergüence y
que tampoco se termine transformando en un traidor de su propia clase. Sueño el villero que
siempre apunte a las condiciones materiales, que después haga obras de fantasía, de terror, de
lo que fuere, pero que no niegue que, si la villa existe, si la favela existe, no es por culpa
individual ni de los villeros, sino por razones que son macroeconómicas, macro culturales,
macro simbólicas, porque un villero no sólo tiene una ubicación en la pirámide económica, la
de ser la mano de obra más barata, sino también dentro de lo simbólico tiene que ocupar un
espacio: simbolizan el mal, simbolizan la barbarie. Digamos, ocupan diferentes espacios muy
importantes para el funcionamiento de la sociedad en la que vivimos.
¿Cuál crees que es el espacio que ocupan tus obras en el sistema literario argentino?
CG: Ni idea... eso lo tienen que responder los otros, no yo mismo. Yo estoy muy contento con
todo lo que pasa, pero el lugar que tienen mis obras en la literatura argentina me tiene sin
cuidado, no me preocupan esas cosas, indirectamente trato de no pensar. Más allá de lo propio
y de lo personal, espero sí (y aspiro), como cualquiera, a que, en el futuro, haya un poco más
de democratización de las herramientas, de todo lugar, de la literatura al cine; que haya cada
vez más diversidad; que haya diversidad sexual, pero también de clase; que haya cada vez
más gente de abajo que sean directores, escritores, autores.
¿Consideras que tu literatura sea periférica? ¿Cómo la intitula?
CG: No estoy de acuerdo con los adjetivos porque de los burgueses nadie está diciendo
“literatura burguesa”, nadie dice “literatura de blancos”, es literatura. Pero, en cambio, el de la
villa que escribe es “literatura periférica”, “literatura marginal”, literatura siempre con un
adjetivo al lado. No, es literatura, punto y aparte. Si no que aclaremos todo, ¿no? A cada
escritor y escritora que le aclaren al lado: “escritor blanco”, “escritor clase media”, “escritor
burgués”. Pero las aclaraciones son siempre para el mismo segmento social.
Al escribir, ¿tomas como base algún texto filosófico o literario?
CG: Sin duda, ¡obvio! Uno siempre se inspira, siempre se mejora, se enriquece, se da cuenta
de los errores, de que en tal línea podía haber sido mejor, gracias a los libros que inscriben
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nuestros y nuestras semejantes. Sin duda, no hay que perder nunca de vista eso. Y siempre lo
que escribió otro está mejor que lo que escribió uno, siempre lo dice mejor otro que uno
mismo.
¿Participas en talleres de lectura con los pibes de tu barrio? ¿Cuáles son las actividades
en las que está involucrado?
CG: Sí, yo siempre trato de apoyar a los adolescentes y los jóvenes de la villa porque son los
más perseguidos por el sistema, son los que directamente pierden la vida, son las ofrendas al
Baal moderno. Cómo no me va a preocupar si son ellos mismos quien era yo en el pasado,
¿no? Y si a mí, en el camino, no se aparecía alguien, yo no estaría acá. Yo solo no hubiese
conseguido nada. Entonces trato de replicar lo que pasó conmigo. No es fácil, pero por suerte
me responden. Son encuentros, yo no soy profesor, no me recibí de nada. Entonces son
encuentros donde yo transmito lo que siento y se celebra un debate, se celebra un intercambio.
Me interesa encontrarme con esos jóvenes con los que nadie quiere encontrarse, con los que
las personas se cruzan de vereda, con los que las personas festejan cuando se les asesinan. Son
a esos los que más tengo ganas de poder encontrarlos.
¿Acompañas la producción literaria de escritores villeros argentinos de su generación?
CG: ¡Siempre! Como dije anteriormente, celebro, festejo, difundo... y es un hermano. Hay
que equilibrar la balanza de la justicia poética. Hay que tratar de equilibrarla, aunque sean
gramos.
Además de Ferréz, quien conociste en un evento en 2012, invitado por el colectivo ¿Todo
piola?, ¿conoces a otros escritores de Brasil?
CG: Estás bien informada (risos). Sí, sé de algunos movimientos poéticos de São Paulo, he
tenido algún contacto. [Sé] de otros jóvenes que armaron una biblioteca en una favela de Rio
de Janeiro, que es muy conocido su caso, no me acuerdo el nombre. Me ha servido saberlo, lo
que pasa es que Brasil es un continente en sí mismo, pero sé que el arte ya tenía muchas
manifestaciones muy potentes en sus favelas. Y me han servido, en primer lugar, de
inspiración, de saber que uno no está solo, que hay en todo lugar del mundo personas
resistiendo, que no es total el dominio del capitalismo, nunca va a ser total.
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¿Podrías comentar sobre la idea de “la construcción de la villeritud”, nombre de la
sección del evento Cine Migrante (09/2017) del cual hiciste parte?
CG: La villeritud, en realidad, es una forma de retomar un concepto que crearon otros, que es
el de negritud, creado por [Aimé] Cesaire y por [Léopold] Senghor. Cesaire que André Breton
ha dicho que era el poeta más importante de habla francesa sin ser francés, mejor que todos
los franceses juntos. Ellos inventan el concepto de negritud para darle todo ese marco
occidental, racional, como queramos llamarlo, positivista mezclado con todo lo propio de la
cultura afro, [para] reivindicar la belleza de lo afro, pero filosofando y dándole un marco
pesado y académico. Bueno, yo lo traigo acá porque creo que, en Argentina, el villero es lo
que es el negro en las sociedades como Estados Unidos. Yo lo traigo desde ahí y le cambio
algo, más que nada, semántico. En realidad [el concepto] es de otros, simplemente lo traduzco
a la contemporaneidad de la sociedad argentina. Para todos los demás, la villeritud es
sinónimo de mal, de feo; para mí es sinónimo ni de bueno ni de malo, sino de ser un elemento
más [en la sociedad].
En una de las entrevistas sobre tu película “Exomologesis”, comenta que se trata de una
relectura, una adaptación del término utilizado por [Michel] Foucault. ¿Se refiere a una
lectura reciente o ya aparecía problematizado en tu poesía?
CG: Sí, yo empecé leyendo a Foucault en la cárcel y la primera aplicación de su filosofía fue
darme cuenta de la presencia y el objetivo que tienen la Psicología, los psicólogos y la
Psiquiatría en la cárcel, la ciencia de la mente humana, que busca explicar el delito que
comete un pobre a partir de una supuesta patología mental. Y no hay ninguna patología, dice
Foucault y después dice también [Loïc] Wacquant, uno de los discípulos de [Pierre] Bourdier.
Siempre vi que la jerarquía característica de la iglesia se repetía en otros ámbitos de la
sociedad, que las entidades celestiales las creemos hallar en muchas cosas que creemos ateas
o agnósticas. Entonces, desde ahí yo traté de crear en Exomologesis un cine foucaultiano, no
sólo desde el contenido, sino también desde la forma: la forma de filmar la película, dónde se
pone la cámara, cómo actúan, se comportan y se relacionan los personajes; las relaciones de
poder invisibles, que no se explican solamente desde la política, la empresa o el dinero, sino
que subyacen en todas las clases sociales y que son ya inherentes a la condición humana,
[que] sea la identidad agregada a lo que venga después de nacionalidad, de clase.
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¿Qué papel juega en su formación y en su discurso la recepción de lo masivo, es decir, de
la tele, las historietas, la música popular, el hip-hop y el periodismo que se vuelca a la
realidad de las villas y del conurbano?
CG: ¿Qué pienso sobre lo masivo? A ver si he entendido la pregunta... Si yo veo el televisor
diez minutos, me lleno de rabia, ahí sí tengo ganas de escribir algo inmediatamente. La rabia
del discurso televisivo sobre la gente de la villa me produce una rabia y una rebelión absoluta.
Creo que hay que usar las herramientas que sean necesarias para destruir los discursos
hegemónicos. Si a alguno le sirve el rap, bienvenido sea, si a otro le sirve la historieta,
bienvenida sea. Todo medio para llegar a un fin contrahegemónico lo celebro.
¿Qué tipo de diálogos crees que establecen los críticos y la universidad con un autor que
sale de una villa?
CG: No se puede generalizar, pero creo que el sentido del gusto nos explica muy bien cómo
se construye lo legítimo, como también lo ha dicho Foucault y otros. Cómo todo lo que es la
academia tiene esa bendición santa, sagrada de decir qué es y qué no es. Pero también la
universidad es un espacio donde surge la ruptura, el pensamiento crítico, las masas de
estudiantes que pueden generar cambios en la sociedad. La universidad es esa dualidad, es ese
juego de espejo donde están los que legitiman, el poder de lo que avala y lo que rechaza, pero
también es donde surgen los que rompen. Pero creo que yo no tenía que decirlo, cómo ven
ellos los villeros hay que preguntarles a ellos.
¿Cómo recibe el mundo editorial a un autor de las periferias?
CG: No sé, es que son preguntas muy abiertas, pero creo que basta entrar a cualquier librería y
ver cuántos autores hay de la villa, y yo creo que ninguno. Yo tuve suerte, fue un
encadenamiento de azares, no fue nada lineal; un amigo con otro amigo, uno que es autor y
escribió al editorial. No es que las editoriales anden interesadas, es que a veces en la sociedad
existen muchos mecanismos que alienten, fomenten la existencia de una literatura proveniente
de las villas. Creo que es algo inexistente directamente, que no existe casi, es muy escaso.
¿Cómo reciben las editoriales la literatura villera si todavía ni existe esa literatura? Somos
muy pocos para decir que es un movimiento parecido a algo, por lo menos, que sea grupal
siquiera, es muy marginal, es muy esporádico. Entonces, para que exista el segundo paso,
primero tiene que estar firme el primero. Para llegar a “¿qué hace la editorial con ‘tal cosa’?”,
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hay que llegar primero a la segunda parte [de la pregunta]. La sociedad no espera que un
villero escriba, no espera, no quiere, no le gusta y hace todo lo posible para que no pase.
Y cuando pasa eso, ¿qué piensas que se espera, que se escriba siempre sobre la villa?
CG: Se espera que caigan ciertos clichés morales. Se espera que agradezca, que pida perdón,
que agradezca la posibilidad que tuvo de poder estudiar. Se les pide un montón de cosas que a
los otros no. Hay un nivel de exigencia de buscar el mínimo detalle, el mínimo error; de
siempre encontrar un “pero”; de subestimación también, hay una sospecha antropológica –
como la llamo yo -, nunca se lo va a ver como se lo ve a un escritor blanco burgués, ¡nunca!
Así se lo avale, así pase, así trascienda, nunca se lo va a ver como un igual. Se lo captura y se
lo quiere transformar en un fenómeno, en algo único, en algo medio pop, exótico, pero nunca
algo parejo, simple, siempre se lo va a cargar de algo.
* * *