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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM FERNANDO ALVES PEREIRA O ASPECTO POLIFÔNICO D'OS LUSÍADAS NATAL 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

FERNANDO ALVES PEREIRA

O ASPECTO POLIFÔNICO D'OS LUSÍADAS

NATAL

2010

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FERNANDO ALVES PEREIRA

O ASPECTO POLIFÔNICO D'OS LUSÍADAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da

Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN) como requisito parcial para a obtenção do grau de

Doutor em Estudos da Linguagem, área de concentração em

Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo

NATAL

2010

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Pereira, Fernando Alves.

O aspecto polifônico d’Os Lusíadas / Fernando Alves Pereira. – 2010. 165f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do

Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, Natal, 2010. Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo.

1. Camões, Luís de, 1524?-1580 – Lusíadas. 2. Análise do discurso literário. 3. Polifonia. 4. Poesia portuguesa. 5. Prosa (Literatura). I. Araújo, Humberto Hermenegildo de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 82.091

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FERNANDO ALVES PEREIRA

O ASPECTO POLIFÔNICO D'OS LUSÍADAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do grau

de Doutor em Estudos da Linguagem, área de concentração em Literatura Comparada.

Aprovado: em dezembro de 2010.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo (Orientador)

UFRN – Natal

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira

UFRN – Natal

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. Derivaldo dos Santos

UFRN – Natal

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. José Luiz Ferreira

UERN/UFERSA – Natal

__________________________________________________________________________

Prof. Dr. Gilberto Mendonça Teles

PUC – Rio de Janeiro

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, por permitir a graça de chegar ao momento

presente, e aos meus pais, pelo sacrifício e o desprendimento com que lutaram, a princípio,

pela sobrevivência de todos os filhos na aridez do solo sertanejo, depois para propiciar-nos os

estudos básicos, decisivos na construção de nossos futuros.

Em segundo lugar, agradeço às pessoas que participaram diretamente na realização deste

trabalho, de grande significação para mim e, espero, signifique um mínimo que seja para a

pesquisa literária, especialmente incentivando a continuidade da leitura da obra camoniana,

especialmente:

à Aparecida, minha companheira querida de todos os momentos, pela paciência e a

compreensão nas horas de maior dificuldade;

à Fernanda, Antonio e Ana Vitória, meus queridos filhos, pela participação mais que direta na

elaboração deste trabalho e na vida;

ao professor Humberto Hermenegildo de Araújo, meu orientador, pela solicitude com

que sempre me atendeu, desde o Mestrado, como professor e membro da Banca Avaliadora

naquela ocasião, prestando-me sempre as orientações seguras e atenciosas. Agradeço, acima

de tudo, pela paciência e serenidade com que conduziu a minha orientação, além do

profissionalismo publicamente reconhecido. A relação amigável, não obstante a distância em

que tivemos de permanecer por contingências de minha vida familiar, muito me ajudou a

superar aqueles momentos mais difíceis em que pensamos, às vezes, em desistir da tarefa. Por

tudo, o meu muito obrigado;

à professora Zenóbia Collares Moreira Cunha, minha orientadora do Mestrado e

incentivadora ao doutorado;

à professoras Conceição Flores, orientadora da Monografia, Francinete, Ilane e Ana de

Santana, da graduação em Letras, pelos primeiros incentivos nos caminhos da pesquisa

literária;

aos professores Derivaldo dos Santos e Andrey Pereira de Oliveira, membros da

Banca Avaliadora da Qualificação, pela atenção dedicada à leitura de meu trabalho e pelas

observações e sugestões, que muito me ajudaram na definição de alguns rumos para a

finalização do estudo, e pela honra de suas presenças na Banca Examinadora;

a todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da

UFRN, com os quais tive o privilégio de conviver e adquirir relevantes conhecimentos

profissionais e humanos, durante o período do curso; e

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aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,

representados na pessoa de Elizabete, Secretária, pela colaboração permanente, de maneira

profissional e cordial.

Agradeço também, especialmente, aos professores Gilberto Mendonça Teles, da

PUC/RJ e José Luiz Ferreira, da UERN/UFERSA, pela solicitude com que se dispuseram em

aceitar o convite, honrando-nos com suas presenças na Banca e Examinadora.

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Assim como a bonina, que cortada

Antes do tempo foi, cândida e bela,

Sendo das mãos lacivas maltratada

Da minina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido e a cor murchada:

Tal está, morta, a pálida donzela,

Secas do rosto as rosas e perdida

A branca e viva cor, co a doce vida.

As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram,

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram.

Vede que fresca fonte rega as flores,

Que lágrimas são a água e o nome Amores.

(Camões, Os Lusíadas, Canto III, 134-135)

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RESUMO

Estudo sobre o aspecto polifônico d’Os Lusíadas. Poema épico escrito em Língua Portuguesa

por Luís de Camões, cujo tema central é a aventura da viagem de Vasco da Gama no

descobrimento de novas rotas marítimas para as Índias, narrando, secundariamente, as

batalhas históricas travadas no percurso da formação e consolidação do Império Português. O

objeto do estudo são os diversos discursos que compõem a narração do poema, examinando a

possível relação de influência estética entre a poesia épica camoniana e a prosa romanesca

que se desenvolve na modernidade, a partir de D. Quixote, consagrando-se nos romances

polifônicos de Dostoiévski. O estudo enfoca a singularidade de Camões na elaboração de uma

narrativa estruturalmente épica, mas que ao mesmo tempo engloba vários discursos desviantes

(excursos). Discursos esses que revelam a multiplanaridade e a plurivocalização

(características da prosa romanesca) sem, contudo, prejudicar o encadeamento lógico-formal

da epopeia, resultando no acabamento monológico canônico do gênero épico. Este aspecto

caracteriza Os Lusíadas como uma obra monológica, conforme o cânone de então, mas que

deixa transparecer traços de dialogismo e de plurilinguismo essenciais ao fenômeno

polifônico. Outro aspecto relevante da poética camoniana, ressaltado no presente estudo, é o

procedimento relativo à expressividade das personagens. As personagens-narradoras do

poema são, na maioria, criações discursivas ou retóricas, as quais assumem, no discurso,

características humanas ou mitológicas. Artifício que permite ao poeta apresentar uma visão

multifacetária dos fatos narrados. A análise dos discursos apoia-se inteiramente na teoria

polifônica de Mikhail Bakhtin, citando, acessoriamente, pontos de vista de outros teóricos, à

medida que se julgam compatíveis com a teoria adotada.

Palavras-chaves: lusíadas, polifonia, poesia, prosa, epopeia, romance.

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ABSTRACT

A study about the polyphonic aspect of The Lusiads. An epic poem in Portuguese Language

written by Luís de Camões, that narrates the adventure of the journey of Vasco da Gama in

the discoverer of new shipping lanes for the Índias. Secondarily, tells the historics battles

engaged during the process of foundation and consolidation of the Portuguese Empire. The

object of the study are the diverse speeches that compose the poem’s narration, aiming at to

the possible aesthetic relation of the epic poetry of Camões with the novelistic prose

developed in the modernity, starting with D. Quijote and consacrating it at polyphonic novels

written by Dostoiévski. The sdudy focuses the singularity of Camões lies in the elaboration of

a narrative structurally epic, but at the same time contains several deviating speeches. Such

speeches emphasize the multiple planes and multiple voices (characteristics of novelistic

prose) without, however, prejudice the interlinking logical-formal epos, resulting in the

monological finish conventional of the epic gender. This feature characterizes The Lusiads as

monological literary work, but also shows dialogism and plurilinguism, essentials to the

polyphonic phenomenon. Another prominent aspect of the poetry of Camões is the relative

procedure to the expressiveness of the characters. They are, in the majority, rhetorical

creations, which assume, in the speech, human or myhtological characteristics. Stratagem that

permits to the poet to emit a multiple faces of vision of the facts told. The analysis of the

speeches supports-itself entirely in the polyphonic theory of Mikhail Bakhtin, shall be cited,

accessory, viewpoints of others theoretical, as long if it is judged compatible with the theory

adopted.

Keywords: lusiads, polyphony, poetry, prose, epos, epic, novel.

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RESUMEN

Estudio sobre el aspecto polifónico Del Lusíadas. Poema épico escrito en portugués por Luis

de Camoes, cuyo tema central es la aventura del viaje de Vasco da Gama, que buscan el

descubrimiento de nuevas rutas marítimas a la India. En segundo lugar, describe las batallas

históricas en el curso de formación y consolidación del Imperio Portugués. El objeto del

estudio son los discursos que conforman el poema narrativo, con miras a la posible relación la

las influencias estilísticas entre la poesía épica camonina y la novela en prosa que se

desarrolla en la modernidad de D. Quijote a las novelas polifónicas de Dostoievski. La

singularidad de Camões se encuentra en la preparación de una épica narrativa estructural, pero

al mismo tiempo incluye desviados varios discursos (apartes). Tales declaraciones revelan la

multiplanaridade y plurivocalização (características de la novela en prosa), pero sin prejuicio

de la estructura de la epopeya, dando lugar a la terminación convencional del género épico.

En este sentido, El Lusíadas es una obra monológica, sino que muestran huellas de diálogo y

multilingüismo, esenciáis para la polifonía. Otro aspecto importante de la poética Camonina

cubierto por este estudio es el procedimiento para la expresividad de los personajes. Los

personajes-narradores del poema son creaciones sobre todo retóricas o discursivas, que

asumen, en el discurso, las características humanas o mitológicas. Dispositivo que permite al

poeta para presentar una visión multifacética de los hechos. El análisis del discurso se basa

enteramente en la teoría polifónica de Mijaíl Batín, mencionando, por cierto, las opiniones de

otros teóricos que consideren compatibles con la teoría adoptada.

Palabras clave: lusíadas, polifonía, poesía, prosa, epopeya, novela.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................10

PRIMEIRA PARTE – POLIFONIA

1 A TESE DE BAKHTIN: Pressupostos e Conceitos .........................................................28

1.1 PRESSUPOSTOS ..............................................................................................................31

1.1.1 Pressupostos Filosóficos ...............................................................................................32

1.1.2 Pressupostos Artístico-Literários ................................................................................35

1.1.2.1 Crítica de Bakhtin à estética material ..........................................................................38

1.2 CONCEITOS ....................................................................................................................45

1.2.1 Polifonia .........................................................................................................................48

1.2.2 Dialogismo .....................................................................................................................52

1.2.3 Plurilinguismo ...............................................................................................................57

1.3 A POESIA NO ENFOQUE POLIFÔNICO ......................................................................59

1.4 SÍNTESE TEÓRICO-METODOLÓGICA .......................................................................70

SEGUNDA PARTE – O ASPECTO POLIFÔNICO D’OS LUSÍADAS

2 OS LUSÍADAS E A POLIFONIA: distanciamento e aproximação ...............................73

2.1 ANÁLISE DO ASPECTO POLIFÔNICO D’OS LUSÍADAS ......................................... 96

2.1.1 Discurso do Autor .......................................................................................................102

2.1.2 Discurso do Narrador .................................................................................................119

2.1.3 Discurso do Protagonista ...........................................................................................122

2.1.4 Discursos das Personagens .........................................................................................133

2.1.4.1 Baco (Canto I) ............................................................................................................133

2.1.4.2 Velho do Restelo (Canto IV) .....................................................................................139

2.1.4.3 O Gigante Adamastor (Canto V) ...............................................................................144

2.1.4.4 O Marinheiro Leonardo (Canto IX) ...........................................................................151

2.2 SÍNTESE TEÓRICO-INTERPRETATIVA ...................................................................153

CONCLUSÃO.......................................................................................................................156

BIBLIOGRAFIA (referida e consultada) ..........................................................................158

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INTRODUÇÃO

Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram. Cesse tudo que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta [...] No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Dhüa austera, apagada e vil tristeza.

(Camões, Os Lusíadas, Canto I, 3 e Canto X, 145) 1

A presente tese foi idealizada a partir de estudos anteriores. Inicialmente no curso de

graduação em Letras, resultando no Trabalho (monográfico) de Conclusão de Curso (TCC),

intitulado Auscultando os suspiros de Camões nas entranhas da épica lusitana. Naquela

ocasião já nos fascinava a intuição de um plano terciário2 do poema. Uma espécie de

contracanto, no qual o poeta desabafa as suas mágoas, queixando-se, de modo crítico e, às

vezes, irônico do “desconcerto” do mundo e da pátria submetida ao império dos vícios

corruptíveis, “da cobiça e da rudeza, de uma austera apagada e vil tristeza”, conforme

implícito na contradição exemplificada nas estrofes em epígrafe. Esse trabalho foi ampliado

pela pesquisa de mestrado, cuja dissertação, Uma leitura dos excursos n’Os Lusíadas, analisa

esse plano terciário implícito do poema, o qual centraliza os discursos dissonantes da epopeia

proferidos diretamente pelo poeta e por diversas personagens-narradoras.

1 As citações d’Os Lusíadas são extraídas da edição didática organizada por Emanuel Paulo Ramos, publicada pela Editora Porto em 2009, com aspas e itálicos do organizador. Podemos, eventualmente, citar o texto original da primeira edição do poema para esclarecimento analítico. 2 O plano terciário implícito é uma inferência com base nos discursos dissonantes (excursos). Consideram-se normalmente dois planos narrativos n’Os Lusíadas. A viagem de Vasco da Gama às Índias e a História de Portugal desde a sua fundação até a época da viagem. Esses planos podem ser deduzidos do próprio texto: a) Na proposição do poeta (Canto I, 1, v. 1-4 e 2, v. 1-4) - “As armas e os barões assinalados/Que da

Ocidental da praia Lusitana/Por mares nunca de antes navegados/Passaram ainda além da Taprobana [...]/E também as memórias gloriosas/Daqueles Reis que foram dilatando/A Fé, o Império, e as terras viciosas/De África e Ásia andaram devastando [...]”; e

b) No início do discurso do protagonista ao rei de Melinde (III, 5, v. 7- 8) - “Mandas-me, ó Rei, que conte declarando/De minha gente a grão genealogia [...]” (III, 3, v. 5-6). “[...] Primeiro tratarei da larga terra/Depois direi da sanguinosa guerra”.

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Entendemos que nos excursos3 se concentra a grande parte dos discursos constituintes

do desvio do poema dos modelos épicos tradicionais (greco-latinos) nos quais se inspira. A

partir desses indícios, formularemos as hipóteses para o estudo de seu aspecto polifônico.

Estudar Os Lusíadas no século XXI suscita alguma curiosidade quanto à novidade

deste estudo, diante de tudo o que já se investigou na obra camoniana durante os mais de

quatro séculos de sua publicação e de extensa e intensa exegese. Em que pese a consciência

do leitor especializado sobre o caráter inesgotável dos sentidos de uma obra literária, uma

questão que, na prática, insinua-se em geral, é a de um possível exaurimento de temas a serem

explorados no poema. A afirmação decorre da constatação do fato nas relações concretas que

mantivemos com categorias diversas de leitores. Fora e dentro do âmbito acadêmico, nos

níveis de graduação e de pós-graduação, no percurso dos trabalhos que vêm sendo realizados.

Não obstante a obviedade, adotamos neste intróito um procedimento dialógico que

Bakhtin (2002a, p. 197) denomina “antecipação da réplica”4, por nutrirmos a modesta

esperança de que o trabalho possa vir a ser lido tanto por especialistas, quanto por iniciantes

na profissão das letras e, quiçá, por leitores diletantes.

Os ensinamentos colhidos nas leituras realizadas nos permitem afirmar a legitimidade

de possíveis indagações suscitadas, nos termos ora colocados. Questão, suposta, que nos serve

de alerta e exige a formulação segura das hipóteses a serem levantadas nesta nova etapa da

pesquisa. Antecipa-se a réplica para responder, de antemão, à pergunta possível imaginada.

Ao mesmo tempo, justificamos para nós, também, a importância dessa resposta como

incentivo à busca de novos sentidos, a serem extraídos da sabedoria dos grandes espíritos do

passado por intermédio do diálogo imprescindível com a tradição literária.5

3 “Excurso s.m (Do lat. excursus, corrida, excursão). Desvio do tema ou assunto principal; digressão; divagação”. Verbete extraído da GRANDE ENCICLOPÉDIA Larousse Cultural. São Paulo: Círculo do Livro, 1998, v. 12, p.2362. 4 Consiste em expressar num enunciado uma resposta a uma réplica que se imagina provável. O dialogismo se configura na reflexão das palavras (presumidas) do outro pela reação antecipada no enunciado primeiro (concreto). Bakhtin (2003, p. 333) também denomina “compreensão responsiva”. Em razão de a palavra querer sempre ser ouvida, entendida e respondida e mais uma vez responder à resposta. 5 A tradição entendida como fundamento para o surgimento do novo. De acordo com Moisés (2001, p. 21), a novidade, em si mesma, nada significa se não houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem propriamente, há novidade sem que haja essa relação. Devemos, no entanto, saber distinguir o novo do estranho: “o que, conhecendo o conhecido o transforma e varia, e o que aparece de fora, sem conhecimento de coisa nenhuma”.

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Bielinski (apud BAKHTIN, 2003) já dizia que cada época sempre descobre algo novo

nas grandes obras do passado. Para Bakhtin (2003, p. 363-364), o próprio autor e os seus

contemporâneos veem, conscientizam e avaliam em primeiro lugar o que está mais próximo

do seu cotidiano. “O autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos

posteriores o libertam dessa prisão, e os estudos literários têm a incumbência de ajudá-lo

nessa libertação”. Já Ítalo Calvino, ao discutir a importância de se ler os clássicos, afirma que

deveria existir um tempo na vida adulta dedicado à revisitação das leituras mais importantes

da juventude, pois, ainda que os livros permaneçam os mesmos (mas eles também mudam, à

luz de uma perspectiva histórica diferente), nós certamente mudamos, e o encontro é um

acontecimento novo. Nesse caso, assevera o autor, o verbo ler ou reler não tem muita

importância, pois toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.

Por fim, o autor elenca diversas acepções para se definir uma obra clássica, das quais

destacamos duas:

- um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer

(CALVINO, 2007, p. 11); e

- um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos

críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe (CALVINO, 2007, p. 12).

Revisitando-se uma modesta parcela da fortuna crítica da obra de Camões, verificou-

se uma gama de temas estudados que sugere imaginar-se uma escassez de assuntos relevantes

a merecerem, ainda, um trabalho de pesquisa. N’Os Lusíadas, estudaram-se, amplamente,

além de suas dimensões linguísticas, temas como amor, moral, ética, política, filosofia,

religião, mitologia, música, geografia, astronomia, navegação, medicina, justiça, antropologia,

religião etc. Por outro lado, não há dificuldades em se justificar a permanente necessidade de

estudar Os Lusíadas, pois, a poética camoniana está inserida no cânone ocidental como

geradora de forma artístico-literária, representativa do espírito de sua época e embrião de

estéticas ulteriores.

Todas as concepções sobre a importância da releitura dos clássicos, assim como as

definições de “clássico” expressas por Calvino, sintetizam o que podemos afirmar em relação

a’Os Lusíadas. Uma obra de inesgotáveis possibilidades de leituras que permitem uma

perfeita adequação a cada momento histórico-cultural da evolução do pensamento humano.

Fenômeno esse que, em consonância com a estética da recepção, insere o leitor no processo

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histórico como elemento determinante do juízo estético, elegendo as obras que devem

permanecer, segundo o sentido que elas representam para uma época, uma sociedade, um

gênero literário. Esse processo é preconizado por Hans Robert Jauss, professor da

Universidade de Constança, na Alemanha, com o fito de resgatar a importância da história

literária através do estudo da trajetória das obras, de acordo com suas recepções pelo público

leitor ao longo do tempo. Opõe-se, assim, ao idealismo literário que preconizava valores

eternos e imutáveis intrínsecos à própria obra. Para Jauss (1994), a criação literária só

continuará produzindo os seus efeitos à medida que sua recepção se estenda pelas gerações

futuras ou venham a ser por elas retomada. Por intermédio dos leitores que novamente se

apropriem da obra passada ou dos autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la6.

É mister salientar, com as devidas ressalvas, que muito do que se escreveu sobre Os

Lusíadas resulta de especulações, às vezes, tendenciosas (depreciativas ou apaixonadamente

enaltecedoras). Tanto sobre a pessoa de Camões quanto sobre a aventura dos portugueses no

empreendimento das grandes navegações. Deixou-se, contudo, um pouco de lado o

aprofundamento no conjunto dos discursos de seus diversos narradores. Em conferência, por

ocasião das comemorações do IV Centenário da publicação d’O Lusíadas, Silva (1972, p. 3-4)

fez a seguinte observação:

Duas categorias de leitura d’Os Lusíadas, porém, me parecem poder ser discriminadas como paradigmáticas leituras viciosas, empobrecedoras e mutilantes da epopeia camoniana. A primeira dessas categorias identifica-se com a leitura instrumentalista, digamos assim, que procura tão-somente a proposição doutrinária, a fórmula exaltadora do sentimento nacional, a palavra glorificadora de um passado histórico, ignorando ou desprezando, todavia, que Os Lusíadas são um poema, uma criação estética que, mercê do seu valor intrínseco, se universalizou e intemporalizou. [...] A segunda das mencionadas categorias constitui o oposto da anterior, identificando-se com leituras que, por motivos e preconceitos de ordem ideológica, procuram esvaziar o poema do seu ethos nacional e político, que Camões consubstanciou na estrutura poética da sua obra e sem o qual Os Lusíadas não seriam pura e simplesmente Os Lusíadas.

O que transparece no discurso de Vítor Manuel de Aguiar e Silva é que Os Lusíadas

passaram a ser um poderoso instrumento político, que tanto pode servir aos ideais legítimos

de patriotismo quanto àqueles puramente ideológicos.

Camões tornou-se vulto histórico e Os Lusíadas símbolo nacional dos portugueses.

Após viver na pobreza e morrer na miséria, tendo sido enterrado como indigente (em campa 6 “A literatura como acontecimento cumpre-se no horizonte de expectativa dos leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experenciar a obra” (JAUSS, 1994, p. 26).

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rasa), o poeta foi alçado à categoria de grande vulto nacional. Seus restos mortais

(supostamente) transladados para um local de honra, Mosteiro dos Jerônimos, repousam hoje

ao lado da lápide de Vasco da Gama, herói português dos descobrimentos e protagonista da

epopeia. O dia da morte de Camões, 10 de junho, passou a ser comemorado como o dia de

Camões, o dia de Portugal e o dia das Comunidades Portuguesas.7 O estudo do texto d’Os

Lusíadas faz parte, até hoje, do programa oficial de ensino da Língua Portuguesa em Portugal.

Estátuas, bustos e memoriais de Camões estão espalhados por toda parte naquele país,

inclusive no Museu da Marinha, entre os monumentos dos grandes navegadores8. Estes são

exemplos de reconhecimento da importância do poeta e de sua obra para o resgate da

autoestima e a preservação da memória nacional. Há que se questionar, contudo, o fato de que

tal reconhecimento tenha ocorrido tardiamente9. Conota-se, em parte, uma apropriação oficial

pelo poder político, de cunho casuístico, da fama do poeta alcançada pelos méritos de sua

obra. Ainda relativamente às comemorações do IV Centenário de publicação do poema, Sena

(1972, p. 3) destacou em sua conferência:

[...] Os Lusíadas vieram a tornar-se uma obra bastante suspeita, por exactamente as mesmas razões que deram a essa obra fama internacional. A própria crítica portuguesa retrai-se perante ela, ou é-lhe abertamente hostil, uma vez que o livro se tornou de tal modo um símbolo da glória imperial portuguesa, e de tal maneira uma arma nacionalista para excitar o orgulho português de um passado que, e com razão, muitos consideram que ainda pesa demasiado na vida portuguesa. E, a estrangeiros, tão suspeitosos de intenções e tendências colonialistas na cultura portuguesa, poderá parecer que celebrar Os Lusíadas é de certa maneira uma capa para tais negros desígnios. É muito difícil separar Camões e a sua epopeia, do que os homens dela fizeram por séculos, usando-a para os seus pessoais propósitos.

7 Desde a implantação da República, em 5 de outubro de 1910, quando foram revistos os feriados nacionais de cunho religiosos, visando à laicização da sociedade em detrimento à influência da Igreja, foram dadas ao municípios a possibilidade de escolher um dia do ano que representasse suas festas tradicionais e municipais. Lisboa escolheu o dia 10 de junho, em honra a Camões. A reivindicação dessa data já teria sido motivo de manifestações republicanas ainda durante a Monarquia, em 1880, por ocasião das comemorações do tricentenário da morte do poeta. Com a implantação do Estado Novo, em 1933, chefiado por António de Oliveira Salazar, a data passa a ser festejada em âmbito nacional. Assim, o regime ditatorial amplia algumas práticas republicanas, mas não exatamente com a mesma proposta, positivista e laicizista. Mas sim com o propósito de se apropriar de símbolos e heróis da República como ideário nacionalista de cunho propagandístico do regime político estabelecido. De acordo com Costa (2004). 8 Vistos in loco, em visita realizada a Portugal pelo pesquisador entre outubro e novembro de 2007. 9 Quando Camões faleceu, em 10 de junho de 1580, Os Lusíadas já estavam publicados havia oito anos, desde 1572. No entanto, o poeta vivia na miséria. De acordo com Saraiva (1972a, p. 35) ganhava uma tença (espécie de pensão por graça) de 15.000 réis anuais. Irrisória e paga irregularmente pelo Estado, como recompensa pela publicação da obra e pelos serviços prestados na Companhia das Índias. No ano da morte do poeta inicia-se o longo período de 60 anos da dominação espanhola, período de obscuridade pressentido por ele e denunciado no desânimo de sua “Lira”. Sobre a recepção do poema, escreveu Cidade (1985, p. 168): “Morto Camões, porém dir-se-ia que logo o poema se ergue por suas próprias asas, sem o peso que sobre ele fazia a presença concreta e mesquinha do Autor. Triunfou da indiferença nacional e da língua confidencial em que havia sido escrito, tornando-se o livro português que para mais longe tem transposto os normais limites de espaço e tempo”.

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Não obstante a controvertida apropriação oficial do poema, temos de admitir que isso

aconteça justamente pela força que emana das profundezas do texto, inesgotável de sentidos

encobertos em virtude das condições político-religiosas que imperavam no tempo de sua

elaboração. Fato que deve ser celebrado a qualquer pretexto, embora a celebração que

reclamam os estudiosos citados, entre outros, seja a leitura isenta e contínua.

Quanto ao reconhecimento do poeta, “antes tarde do que nunca”. Camões merece essa

honra, não só pelo poema épico, mas também pela valiosa obra lírica que nos legou.

N’Os Lusíadas, um dos fenômenos literários que desperta a nossa atenção imediata é a

profusão de vozes com marcas de oralidade (discursos diretos). Fator que nos motiva a

realizar esse novo estudo a partir de uma ótica dialógica, segundo os parâmetros do método

polifônico formulado por Bakhtin. Não somente pela presença de discursos diretos, pois esse

aspecto por si só não caracteriza dialogismo nem polifonia, mas, principalmente, pelas

contradições que eles apresentam em relação ao discurso narrativo central.

A relevância de tal estudo reside na oportunidade do exame teórico-literário dos

diversos discursos que compõem a narração do poema, visando a uma possível relação de

influência estilística, pelo aspecto polifônico, entre a poesia épica camoniana e a prosa

romanesca que se desenvolveu na modernidade, a partir de D. Quixote10.

Muito se tem discutido a respeito da natureza híbrida do poema, entre os gêneros épico

e lírico, mas de um ponto de vista restrito a uma concepção conservadora da natureza dos

gêneros poéticos. Trata-se da objetividade épica versus a subjetividade lírica, a partir da

divisão triádica dos gêneros literários. Por essa via, não se discute a possibilidade de

relativização da autonomia da voz do poeta em favor da liberdade das vozes das personagens.

Desse ponto de vista, sejam os discursos épicos ou líricos, esses pertencem ao poeta,

independente de quem está falando, se narrador ou personagens. Assim, reduz-se o poema a

uma única visão e a uma única voz absorvente das demais. Esta é uma posição bastante 10 - Ao analisar a evolução do romance europeu, Bakhtin (2002b, p. 201) afirma: “[...] O romance deve ser o microcosmo do plurilinguismo. Assim formulada, essa exigência é, com efeito, imanente à ideia do gênero romanesco, que determinou a evolução criativa da variante mais importante do grande romance da Idade Moderna, a começar por Dom Quixote”. - Paz (2003, p. 70) considera que a transição do ideal épico ao romanesco se observa em Ariosto e Cervantes. “Orlando não é só uma extemporânea tentativa de poema épico: também é uma burla ao ideal cavaleiresco [...]. O sublime grotesco está próximo do humor, mas ainda não é humor. Nem Homero nem Virgílio o conheceram; Ariosto parece pressenti-lo, mas este só nasce com Cervantes. Por obra do humor, Cervantes é o Homero da sociedade moderna”.

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consolidada na fortuna crítica, especialmente naquela baseada na concepção estruturalista. No

entanto, não é uma posição generalizada. Encontramos estudos consistentes que apontam para

uma pluralidade de vozes relativamente autônomas, dentre os quais destacamos os de Jorge de

Sena, de Maria Vitalina Leal de Matos, de Telmo Verdelho e de Salvatore D’Onófrio.

Pensamos que a diversidade de focos narrativos utilizada pelo poeta permite uma

expressão ideológica que não é só a expressão de sua visão, mas a representação de uma visão

coletiva. Do homem, no tempo do poeta, distante do mundo épico e já atormentado, portanto,

pela autoconsciência de sua frágil condição humana, mercê da instabilidade de seu universo

circundante. Assim sendo, ainda que o poeta seja, em última instância, o centralizador da

visão dos fatos narrados e das vozes, o que ele apresenta é uma visão multifacetária do objeto

narrado (fatos passados) no confronto com a realidade do presente da narração. Visão essa

que se concretiza na diversidade dos discursos das personagens. Nesta linha de pensamento,

Sena (1973, p. 12) chama a atenção para o processo criativo da composição d’Os Lusíadas:

Daí que, em Os Lusíadas, a tessitura estilística se processa simultaneamente de duas maneiras, no que a termos de uma mesma família semântica respeita: ou eles se concentram em grupos compactos, ou recorrem esparsamente como notas soltas de um trompa de caça ouvida no fundo do bosque. É como se Camões quisesse sublinhar, e construir a obra mesma no contraste entre o que se revela de súbito, e o que persiste como uma surdina recorrente – tal qual como em dialética, as transformações de sentido se operam pela concentração cumulativa que as transfigura, ou como um baixo profundo em que aquelas transformações se apóiam.

A análise de Sena sobre o artifício composicional d’Os Lusíadas equipara o

procedimento poético ao procedimento musical. Embora não citando a teoria polifônica, Sena

demonstra uma estreita relação entre o seu modo de conceber a pluralidade de vozes no texto

camoniano e o modo de composição do discurso polifônico descrito por Bakhtin11. Sena

refere-se aos diferentes tons de discurso como instrumentos musicais ou vozes (trompa, baixo,

surdina) que se caracterizam pela tonalidade grave. Não participam do desenho da linha

melódica central, mas marcam todo percurso da peça musical. Ora retumbante, abafando os

outros sons, como a trompa, “tuba canora e belicosa”, na frase do poeta. Ora em surdina,

como marcação velada, subjacente ao solo épico. Essas vozes em tonalidades contrastantes

11 “A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos em vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento” (BAKHTIN, 2002a, p.21).

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percebidas por Sena constituem o cerne do plano discursivo terciário implícito pelos excursos.

Ora em blocos, ao término dos cantos encerrados pelo poeta, ora esparsos no percurso da

narração. Nessa perspectiva de investigação, somos desafiados a continuar buscando

caminhos ainda não trilhados, considerando o inacabamento12 do texto. Fenômeno peculiar às

grandes obras artísticas e ao espírito humano que essas representam.

Não obstante o elevado número de estudos concernentes ao texto d’Os Lusíadas,

verifica-se que permanece, ainda, pouco explorado o plano expressivo (enunciação)13 do

poema. Muito se estudou o conteúdo e à forma, extraindo-se do texto os significados

possíveis e imagináveis nos limites do narrado (enunciado)14 e nas relações deste com a

biografia do poeta. Entretanto, a partir de novos conceitos hauridos nos estudos das modernas

teorias literárias, inauguradas pelos formalistas russos e evoluídas, pelos membros do Círculo

de Bakhtin, dentre outros estudiosos do assunto, abre-se um novo horizonte para uma exegese

d’Os Lusíadas numa perspectiva dialógica do discurso literário.

Para examinarmos o aspecto polifônico d’Os Lusíadas temos, necessariamente, de

considerar, em essência, o discurso literário como uma reflexão do discurso concreto da vida.

Esse enfoque constitui um pressuposto filosófico do dialogismo, depreendido do pensamento

de Bakhtin. Considerando essa relação entre o discurso literário e o discurso concreto, Orlandi

(2007, p.16) se posiciona do ponto de vista de uma metalinguística:

O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana. Assim, a primeira coisa a se observar é que a Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeito seja enquanto membro de uma determinada forma de sociedade.

12 O termo “inacabamento” aqui é empregado no sentido amplo da definição de obra aberta, de acordo com Eco (2008, p. 40). Segundo ele, uma obra de arte, forma acabada e fechada em organismo perfeitamente calibrado, é também aberta. Passível de interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade. 13 D’Onofrio (1981, p. 128), ao referir-se explicitamente à polifonia no poema camoniano, assim se expressa: “Concluindo esta breve análise do plano da enunciação, podemos afirmar que a plurifocalização d’Os Lusíadas salienta seu aspecto ‘polifônico’. O poema de Camões apresenta várias ‘vozes’ que às vezes se entrelaçam, outras vezes se contradizem, cada qual expressando uma faceta do espírito do poeta. Estamos perante um “eu dividido”, que ora idealiza a viagem de Vasco da Gama, ora a julga à luz da história; ora denuncia os graves defeitos da gente de sua terra; ora relata a intervenção dos deuses pagãos nos acontecimentos dos portugueses, ora os considera divindades falsas e mentirosas”. 14 “Se o plano da enunciação d’Os Lusíadas, como acabamos de ver, diz respeito ao “discurso” do poema, ao modo pelo qual o narrador está presente na narrativa, o plano do enunciado se relaciona com a ‘história’, modo pelo qual o conjunto dos fatos são narrados” (D’ONOFRIO, 1981, p. 129).

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A concepção de Orlandi sobre a análise do discurso focada nas relações concretas do

mundo vai ao encontro do discurso dialógico como base do pensamento e da própria

existência humana postulados por Bakhtin. Este é objeto do fascínio do teórico russo, tendo

ele descoberto nas obras de Rabelais e de Dostoiévski os modelos exemplares de

representação desses discursos da vida na literatura. São eles os arquétipos de suas teorias

literárias (carnavalização e polifonia).

Para Bakhtin, nenhum outro autor representou tão bem o carnaval no texto literário

quanto Rabelais, o qual conseguiu expressar na literatura o ruído das praças públicas (a

cosmovisão do carnaval). A obra de Rabelais se alimenta das fontes vivas do carnaval e se

transforma em tradição literária, a qual alimentará os gêneros carnavalizados modernos,

impossibilitados de acessarem a essas fontes vivas por não mais existirem. Bakhtin (2002a, p.

124) considera que o carnaval é a festa do tempo que tudo destrói e tudo renova: “Contudo

salientamos mais uma vez: aqui não se trata de uma ideia abstrata, mas de uma cosmovisão

viva, expressa nas formas concreto-sensoriais vivenciáveis e representáveis de ação ritual”.

Para ele, o carnaval é para ser vivido e não assistido. A privatização do carnaval destrói a sua

natureza de fonte viva, tornando-se espetáculo teatral. Assim, o que se tem, segundo Bakhtin,

a partir de Rabelais são fontes literárias da cosmovisão carnavalesca como tradição.15

Quanto ao discurso polifônico, Bakhtin (2002a) observa que a verdade sobre o mundo,

pela ótica de Dostoiévski, é inseparável da verdade do indivíduo. Portanto, os princípios

supremos da cosmovisão são idênticos aos princípios das vivências pessoais concretas,

obtendo-se com isto a fusão artística da vida do indivíduo com a visão de mundo. Da mais

íntima vivência com a ideia. Isto Dostoiévski conseguiu representar através do estilo artístico-

literário que Bakhtin chamou de romance polifônico, consistindo na apresentação simultânea

de diversos diálogos.

A proposição de análise dos discursos que constituem o provável aspecto polifônico

d’Os Lusíadas pressupõe a existência de traços estilísticos significativos na epopeia

camoniana que a impelem na direção da prosa romanesca. A proposta de se aproximar a

narrativa épica da narrativa romanesca, intuindo-se uma presença de traços comuns de

gêneros, pode causar, em princípio, um estranhamento. Tal sentimento é compreensível,

considerando-se a formação e a evolução histórica desses gêneros. Enquanto a epopeia surge 15 “A partir da segunda metade do século XVII, o carnaval deixa quase totalmente de ser fonte imediata de carnavalização, cedendo lugar à influência da literatura já anteriormente carnavalizada; assim, a carnavalização se torna tradição genuinamente literária” (BAKHTIN, Op. Cit. p. 131).

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como gênero poético narrativo dos acontecimentos mais sublimes da humanidade, o romance

surge como narrativa dos acontecimentos triviais, das baixas camadas da sociedade.

Esse antagonismo entre as concepções originárias da épica e da prosa romanesca

constitui o problema crucial a ser solucionado na tarefa de se verificar a existência de

elementos da polifonia no discurso poético d’Os Lusíadas. Para tanto, evocamos os próprios

argumentos metodológicos que embasam a tese do romance polifônico para suplantar a

barreira que se ergue entre a poesia épica e a prosa romanesca, trazendo a relevo o aspecto

polifônico que marca o poema camoniano, em sua evolução histórica, gene integrante da

estética do romance polifônico.

Para Bakhtin (2002a), as condições históricas são consideradas fundamentais na

criação do romance polifônico, tendo em vista que este só seria possível em um estágio em

que a evolução do pensamento humano suscitasse uma narrativa capaz de representar, através

do discurso literário, uma imagem da ideia do homem. Para ele, Dostoiévski teve a visão

epifânica desse momento e deu asas à sua genialidade artística através da representação da

imagem no processo de experimentação ideológica na narrativa. Mas essa narrativa de cunho

ideológico vem se construindo ao longo dos tempos. Através de uma evolução contínua, mas

também de momentos de rupturas16. Desde a Antiguidade Clássica já se identificam

elementos de polifonia nos diálogos socráticos e na sátira menipeia, passando pela paródia na

Idade Média, e acentuando-se no Renascimento, em obras como as de Rabelais, de

Montaigne, de Cervantes, de Shakespeare e de Balzac. O coroamento ocorre na Idade

Moderna, consagrando-se nas obras de Dostoiévski, mas não exclusivamente. O realismo17 foi

um movimento estético-literário marcado pela prosa romanesca intensamente dialógica.

Podemos citar alguns exemplos de autores contemporâneos de Dostoiévski, fora da Rússia,

cujas obras podem ser consideradas polifônicas tais como Machado de Assis e Eça de

Queiroz, para ficarmos no âmbito apenas da Língua Portuguesa. A partir de então esse

16 Afirma Paz (2003, p. 134) que tradição não é continuidade e sim ruptura. O que nos permite chamar a tradição moderna de tradição da ruptura. “O que distingue a modernidade é a crítica: o novo se opõe ao antigo e essa oposição é a continuidade da tradição”. 17 Para Lukács (1962?) o realismo não é um estilo particular de uma época, mas o fundamento de toda a atividade literária, pois toda arte é realista no momento em que nasce da realidade e lhe reflete os problemas.

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processo é crescente18, especialmente entre prosadores mais modernistas, podendo-se destacar

James Joyce e, no caso brasileiro, Guimarães Rosa.

Pelo estudo de Bakhtin (2002b) sobre a genealogia do romance na formulação de seu

método polifônico, depreende-se que esse gênero narrativo em formação19 adquiriu seus

elementos essenciais de outros gêneros, em estado de latência, desde a Antiguidade Clássica,

eclodindo proporcionalmente ao favorecimento das condições históricas evolutivas. Ao citar,

textualmente, Cervantes, Shakespeare e Balzac como autores cujas obras contêm elementos

da polifonia (sem fazer distinção) entre prosa e poesia, ele respalda a presunção de existência

de elementos dessa natureza também na obra de Camões, que é contemporâneo dos autores

citados. Isto se torna mais enfático no momento em que, ao tratar do tema espaço-temporal na

obra de Rabelais, na teoria do romance, Bakhtin (2002b, p. 283) afirma: “Esta

proporcionalidade direta é a base de uma confiança excepcional no espaço e no tempo

terrestre, é o patos das distâncias e das vastidões, que são tão características de Rabelais e de

outros grandes representantes da época do Renascimento (Shakespeare, Camões, Cervantes)”.

Vê-se que Bakhtin não ignorava20 a obra de Camões, ao reconhecê-lo como um grande

escritor da renascença.

No presente estudo, os narradores d’Os Lusíadas são o alvo principal da abordagem

metodológica, pela similitude do procedimento de organização dos discursos pelo poeta com

aquele peculiar ao gênero romanesco. Multiplanaridade e diversidade de perspectivas são

algumas das propriedades inerentes ao estilo prosaico, especialmente ao gênero romanesco,

que podemos observar no poema de Camões. Revelando um estilo inovador, o poeta abre

espaço às diferentes personagens para falarem no poema. Esse artifício, também utilizado nas

épicas clássicas para quebrar a monotonia da narração linear em terceira pessoa21, na épica

18 “Depois de Dostoiévski, a polifonia cresce soberanamente em toda literatura universal” (BAKHTIN, 2003, p. 318). 19 Para Bakhtin (2002b, p. 417) o romance será sempre um gênero em formação. Esta é a sua natureza. O devir. Uma vez que atinja a completude, ele tende a degenerar-se e tornar-se forma acabada (morta) como a epopeia. E como o ser humano, para o qual a completude significa a morte. “O campo de representação do mundo modifica-se segundo os gêneros e as épocas de desenvolvimento da literatura. [...]. O romance está ligado aos elementos do presente inacabado”. 20 Os Lusíadas foram conhecidos na Rússia a partir de 1788 pela tradução de Alexander Dimitrieff, de acordo com Cidade (1985). 21 Nas epopeias de Homero e de Virgílio se encontram vários discursos diretos de personagens. Nelas também os narradores principais são os próprios heróis. Mas nessas, os discursos são consonantes todo o tempo com a matéria narrada (indiscutível) e obedecem a um único plano e a uma perspectiva única. Auerbach (2007, p. 5), em “A cicatriz de Ulisses”, afirma: “[...] Mas um tal processo subjetivo-perspectivista, que cria um primeiro e

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camoniana serve para expressar interpretações, juízos de valor, críticas e reflexões. Elementos

esses incompatíveis com o caráter acabado, de verdades incontestáveis das épicas tradicionais.

O procedimento artístico-literário de Camões na epopeia revela uma pluralidade do

sujeito da enunciação. Procedimento esse que possibilita considerar em sua análise o recurso

estilístico da polifonia identificado por Bakhtin na exegese das obras de Dostoiévski, pela

semelhança do processo de composição dos discursos, na proporção permitida pelas

condicionantes históricas dos respectivos autores. Comentando essa pluralidade de discursos

n’Os Lusíadas, observa Matos (1981, p. 740): “[...] na teia poética de Camões perpassam as

vozes dos homens, a conversa, os ditos, os gritos, a gritaria, o alarido, o bulício de seu

tempo”.

Esta análise de Maria Vitalina Leal de Matos soma-se às percepções de Jorge de Sena,

no que tange à presença ativa de vozes alheias no poema, corroborando a proposta da

pesquisa, cuja novidade primordial é a leitura na contemporaneidade de um texto do século

XVI, por considerá-lo marco de ruptura de paradigmas estético-literários. Esta leitura, apesar

de limitada em comparação com o amplo espectro da obra e da respectiva fortuna crítica, em

virtude da proposta de aplicação de um método científico-literário inédito na exegese de obras

poéticas, constitui um experimento que poderá vir a corroborar as convicções sobre as

possibilidades ilimitadas de uma obra, como memória e como representação da realidade,

transmitir historicamente caracteres de estilos anteriores aos estilos emergentes.

Motiva-nos, por outro lado, o desafio de aproximar Os Lusíadas do romance, levando

em conta os diversos pontos de desvio existentes na narrativa camoniana em face da épica

tradicional. Esta aproximação torna-se ainda mais instigante ao ser procedida através da teoria

literária de Bakhtin, silente em relação à obra de Camões, embora o teórico discurse sobre os

gêneros épico e romanesco e sobre a literatura em geral da Idade Antiga à Idade Moderna,

afirmando a obsolescência da epopeia e a consagração do romance, especialmente o

polifônico.

A tese que ora levantamos está fundamentada nas seguintes premissas: segundo planos, de modo que o presente se abra em direção das profundezas do passado, é totalmente estranho ao estilo homérico; ele só conhece o primeiro plano, só um presente uniformemente iluminado, uniformemente objetivo”. Bakhtin (2002b, p. 136), por sua vez, considera que a epopeia tem uma perspectiva única e exclusiva, enquanto o romance tem muitas perspectivas e o herói age em sua perspectiva particular. “Por isso na narrativa épica não há homens que falam como representantes de linguagens diferentes: o homem que fala, na realidade, é apenas o autor, e não existe senão um único e exclusivo discurso, que é o do autor”.

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a) a teoria polifônica, embora confirmada a partir de sua aplicação metodológica ao

romance, não deve ser interpretada como uma teoria exclusiva da prosa romanesca. A partir

do princípio defendido pelo próprio Bakhtin, em seus diversos estudos, de que toda palavra

integrante de um discurso no processo comunicativo é essencialmente dialógica e plurilíngue,

a polifonia poderá prestar-se como método analítico de qualquer texto literário.

b) as personagens-narradoras d'Os Lusíadas apresentam pontos de vista divergentes.

Até mesmo o autor, em suas intromissões na narrativa, mostra-se contraditório, possibilitando

a interpretação de sua fala como um discurso de dupla voz, ou bivocal. Segundo a concepção

de Bakhtin (2002a, p.192):

O discurso direto do autor não é possível em qualquer época, nem toda época possui estilo já que este pressupõe a existência de pontos de vista autorizados e apreciações ideológicas autorizadas e duradouras. Em semelhantes épocas resta ou o caminho da estilização ou apelo para formas extraliterárias de narrativa, dotadas de certa maneira de ver e representar o mundo. Onde não há uma forma adequada à expressão imediata das ideias do autor tem-se de recorrer à refração dessas ideias no discurso de um outro. Às vezes as próprias tarefas artísticas são tais que geralmente só podem ser realizadas por meio do discurso bivocal (como veremos é justamente o que ocorria em Dostoiévski).

c) as vozes das diversas personagens podem ser interpretadas, no âmbito de toda a

obra, como um discurso polifônico, segundo o conceito de polifonia concebido por Bakhtin

que, em síntese, significa multiplicidade de vozes.

Em face do exposto, define-se como principal objetivo do presente estudo examinar

Os Lusíadas, com o fito de identificar em seu corpus artístico-literário aqueles elementos que

não morreram com a degradação do gênero em que foi composto, mas ao contrário, se

transmutam e se transmitem aos gêneros ulteriores, através da concorrência entre dominantes

literárias de determinadas épocas. Elementos esses que se constituem em instrumento no

processo dialético de desagregação do velho para o surgimento do novo. Assim, ousamos

inferir que Os Lusíadas, como um canto de cisne22, anunciam o fim do ciclo épico inspirado

22- CISNE s. m [...] Fig. Canto do Cisne, última composição de um poeta, de um músico, etc., de um gênio prestes a extinguir-se. Verbete extraído da GRANDE ENCICLOPÉDIA Larousse Cultural. São Paulo: Círculo do Livro, 1998, v. 8, p. 1443.

- O cisne, quando sente ser chegada/a hora que põe termo a sua vida/música com voz alta e mui subida/levanta pela praia inabitada./ Deseja ter a vida prolongada/chorando do viver a despedida/com grande saudade da partida/celebra o triste fim da despedida [...]” (Camões, Soneto sem título). Alusão à lenda de que o cisne, ao morrer, solta um suavíssimo canto.

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na tradição greco-romana, por extinção das condições históricas23. Ao mesmo tempo em que

prenuncia uma nova forma de narrar voltada para a reflexão da existência humana. Tais

elementos, índices de modernidade, estão impregnados no plano dos excursos, os quais

emitem juízo de valor e duras críticas à aventura das navegações que Camões se propôs

cantar, como se pode observar no discurso do Velho do Restelo:

Mas um velho, de aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, Cum saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça Cüa aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles esprimentas!” (Canto IV, 94 e 95)

As invectivas dessa personagem, representante da voz popular, constituem uma das

mais importantes digressões da narrativa épica n’Os Lusíadas, servindo como demonstração

da pluralidade de discursos e consequentemente de pontos de vista sobre a matéria narrada e

sobre a vida em seu contexto social atual. Tal digressão, dentre diversas outras, permite se

vislumbrar a adequabilidade da mesma teoria aplicada ao romance na análise de seu aspecto

dialógico, como sugere D'Onofrio (1981, p. 129):

[...] a plurifocalização d'Os Lusíadas salienta o seu aspecto "polifônico". [...] o poema camoniano apresenta vários traços de semelhança com a produção poética de Fernando Pessoa, que, através do processo da criação heterônima, desdobra o próprio eu em várias personalidades humanas e poéticas. Os Lusíadas, portanto, poderiam ser submetidos ao mesmo tipo de análise que M. Bakhtin utilizou para exegese da obra de Dostoiévski.

23 Lukács (1962?, p. 114), ao discorrer sobre o idealismo abstrato no romance moderno, afirma: “Se é verdade que Cervantes – cuja obra é a eterna objetivação dessa estrutura – soube vencer o perigo dessa natureza descrevendo, na alma de D. Quixote, da maneira mais luminosa e sensível, um inextricável e profundo entrecruzamento de sublime e de loucura, esse bom êxito não se deve apenas ao tacto genial do escritor, mas também ao instante histórico-filosófico em que foi escrito o seu livro. Não se deve ao acaso histórico o fato de o D. Quixote ter sido concebido como paródia dos romances de cavalaria [...]. O romance de cavalaria tinha sucumbido à sorte que espera qualquer epopeia logo que a partir de elementos que são apenas formais, pretende manter e prolongar a vida de uma forma para além do momento em que a dialética histórico-filosófica condenou já as condições transcendentais de existência [...]”.

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A pertinência da sugestão de D’Onófrio se torna evidente nas estrofes acima

destacadas, cujo discurso da personagem é marcado estilisticamente pela expressão de

oralidade. Camões não compõe um discurso poético em sentido estrito, abstrato. Ele apresenta

a personagem para discursar diretamente com todos os elementos reais da comunicação

cotidiana. Esses elementos dão o sentido pleno aos enunciados, tais como os gestos

(meneando três vezes a cabeça), o estado emocional (descontente), a entonação (a voz rouca

um pouco alevantada) e as interjeições e exclamações que permeiam a fala do ancião. Tudo

isto caracteriza a representação da imagem concreta de um discurso que, para Bakhtin

(2002a), ultrapassa o plano da língua enquanto sistema de signos e se realiza numa dimensão

de linguagem viva que só pode ser analisada no processo de interação dialógica.

Outro fator a ser considerado é a relação entre voz e escrita. O que se ouve nos versos

de Camões é a voz, como objeto da imaginação. A esse respeito, é importante notar que

Bakhtin (2002a) define polifonia como multiplicidade de vozes, não fazendo distinção entre o

discurso oral e escrito. Esta assertiva aproxima a tese polifônica da performance teorizada por

Paul Zumthor, a qual busca, entre outras coisas, resgatar o conceito de voz como instrumento

preponderante no discurso literário (poético), ainda que na forma escrita, pois a produção do

discurso poético pressupõe a emissão de som vocal que leva o leitor a simular uma

vocalização no ato de leitura, como se expressa Zumthor (2000, p. 21-22 – itálicos e aspas do

autor):

Com efeito, nas formas poéticas transmitidas pela voz (ainda que elas tenham sido previamente compostas por escrito), a autonomia relativa do texto, em relação à obra, diminui muito: podemos supor que, no extremo, o efeito textual desapareceria e que todo o lugar da obra se investiria dos elementos performanciais, não textuais, como a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstâncias, o ambiente cultural e, em profundidade, as relações intersubjetivas, as relações entre a representação e o vivido. De todos os componentes da obra, uma poética da escrita pode, em alguns casos, ser mais ou menos econômica; uma poética da voz não pode jamais. É então intencionalmente que, a partir de alguns anos, eu falo de poesia vocal em termos tais que poderíamos aplicá-los à escrita literária ou inversamente. Estou particularmente convencido de que a ideia de performance deveria ser amplamente estendida; ela deveria englobar o conjunto de fatos que compreende, hoje em dia, a palavra recepção, mas relaciono-a ao momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para uma percepção sensorial – um engajamento do corpo. O termo e a ideia de performance tendem (em todo caso, no uso anglo-saxão) a cobrir toda uma espécie de teatralidades: aí está um sinal. Toda “literatura” não é fundamentalmente teatro?

Zumthor enfatiza o engajamento do corpo no processo de percepção, considerando a

performance como um momento da recepção em que se mobiliza todo o organismo físico e

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psíquico na apreensão da mensagem transmitida pelo discurso artístico. O que, para Bakhtin,

significa o momento de contemplação do objeto estético. Momento esse em que o objeto é

penetrado pelo sentido da criação artística. Em ambas as teorias, assim como na estética da

recepção, tem-se em comum a figura do ouvinte ou leitor, sendo este, de fato, o sujeito que

atribui validade ao texto recebido, pretensamente literário, tornando-se assim, um co-autor, ou

autor contemplador, na terminologia de Bakhtin. Esse fator, haurido na tradição oral, é

resgatado através das teorias críticas contemporâneas, como valor que não pode ser

desprezado no estudo da literatura, em contraposição às ideias estruturalistas de índole

formalista que dissociam do discurso literário o discurso da vida (dito prático).

A concepção de Zumthor (2000, 74) sobre a leitura como encontro e confronto

pessoal, cuja compreensão por ela operada é “fundamentalmente dialógica”, reforça a certeza

da congruência do estudo proposto. Estudo esse que se fundamenta essencialmente na teoria

do método polifônico desenvolvido por Bakhtin a partir das obras de Dostoiévski, cuja tese,

intitulada Problemas da Poética de Dostoiévski, foi publicada pela primeira vez na Rússia em

1929 e reeditada com revisão e atualização do autor em 1963, somente vindo a ser divulgada

no Ocidente ao final dessa década.

A tese bakhtiniana firma-se como teoria literária ocidental, instituindo as bases de uma

nova forma estilística do gênero romanesco criada por Dostoiévski, a qual foi denominada

romance polifônico. A principal característica deste tipo de romance é a predominância do

discurso dialógico em sua composição. Fenômeno que reúne diversas vozes independentes e

autônomas, ultrapassando os limites da linguagem verbal sistematizada, para acolher todos os

demais atos empregados no processo da comunicação humana, tais como gestos, entonações,

pausas, repetições de enunciados, antecipação de réplicas, dentre outros recursos identificados

na obra de Dostoiévski. Esses recursos fazem parte do processo dialógico da comunicação

verbal.

Para a consecução do que ora se propõe, apresenta-se o trabalho em duas partes. A

primeira parte compreende a exposição e a análise teórica do método polifônico, deduzindo-se

os seus pressupostos e conceitos, bem como, examinando-se as possibilidades de leitura de

uma obra poética pelos parâmetros da teoria polifônica. Na segunda parte, será procedida uma

análise d’Os Lusíadas, nos discursos em que se presumem a existência dos elementos

dialógicos, centrados essencialmente nos excursos do autor e das personagens-narradoras. A

análise é precedida de uma breve discussão sobre a relação entre Os Lusíadas, enquanto

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poesia épica, e a teoria polifônica, voltada para a prosa romanesca. A abordagem leva em

conta alguns pontos de distanciamento e outros de possível aproximação, de acordo com os

elementos distintivos tradicionais dos gêneros e os traços estilísticos de semelhança.

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PRIMEIRA PARTE - POLIFONIA

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São vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema. Isto constitui precisamente a “polifonia”, que desvenda o multifacetado da existência e a complexidade dos sofrimentos humanos. (BAKHTIN, 2002a, p. 44)

1 A TESE DE BAKHTIN: Pressupostos e Conceitos

O linguista e filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) se notabilizou no Ocidente,

especialmente, pela formulação das teorias da polifonia e da carnavalização na literatura.

Embora as teorias citadas possuam naturezas afins, pois ambas enfocam, em essência,

a pluralidade do pensamento e da linguagem humana representada na arte literária, a

carnavalização possui particularidades intrínsecas às manifestações culturais, fator que a situa

fora do escopo do nosso trabalho. Razão pela qual, analisaremos especificamente a teoria

polifônica como metodologia sistematizada por Bakhtin a partir do exame das obras literárias

de Dostoiévski. Deve-se ressaltar, entretanto, a importância que Bakhtin (2002a) atribui à

carnavalização como elemento de influência marcante na arte desse escritor. Afirma ele que a

influência direta da literatura do Renascimento sobre Dostoiévski foi considerável, sobretudo

as obras de Shakespeare e de Cervantes. Não apenas uma influência de temas isolados, ideias

ou imagens, mas da própria cosmovisão carnavalesca.

A análise da tese polifônica à qual ora nos propomos tem por fim verificar, pelos

pressupostos e conceitos, a sua aplicabilidade ao exame do texto d’Os Lusíadas, procurando

desvelar o seu aspecto polifônico. Convém salientar que não se trata de uma comparação entre

as obras de Dostoiévski e a de Camões, embora sejam imprescindíveis algumas ilações entre

elas e citações para que se possa demonstrar, por analogia, o possível aspecto polifônico da

obra camoniana, considerando os romances de Dostoiévski arquétipos do estilo polifônico.

A essência da tese defendida por Bakhtin é a de que todos os elementos da estrutura do

romance são originais em Dostoiévski, determinados pela tarefa de construir um mundo

polifônico e destruir as formas já constituídas do romance europeu. Assim, para Bakhtin,

Dostoiévski cria um novo gênero de romance (o romance polifônico), cuja estrutura

pluridiscursiva constitui a representação artístico-literária ideal do mundo moderno. Aquela

que transfere estética e estilisticamente para o texto a imagem da realidade interior dos

indivíduos em infinita interação com a realidade do mundo exterior. Em outras palavras, a

obra de Dostoiévski é a representação da consciência viva do ser humano em processo de

elaboração. Consciência essa formada a partir da relação de reciprocidade entre os indivíduos,

pressionados pelos mais diversos fenômenos biológicos, políticos, sociais, culturais e

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religiosos. Essa consciência, que se produz e se revela na comunicação humana, torna o

discurso condição sine qua non ao autoconhecimento e ao reconhecimento do outro, como

visão espelhada do eu, transmitida pelo diálogo. Portanto, a compreensão da importância do

outro para mim (tu-eu) se faz essencial à compreensão de que o outro implica condição

existencial do eu. “Eu” necessito da tua visão, assim como “tu” necessitas da minha, que,

como espelhos nos mostram as partes de nós que jamais poderemos ver unilateralmente, e

que, portanto, inexiste fora da visão do outro. Ao analisar o excedente da visão estética da

personagem, em Estética da criação verbal, descreve Bakhtin (2003, p. 21):

Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes do corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão -, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos.

De acordo com este raciocínio, “eu” necessito, ainda, que o outro diga para mim o

como sou em sua visão, então terei a oportunidade de dizer ao outro e a mim mesmo o que

penso sobre o que ele pensa (réplica) sobre mim. Este processo interativo é dialógico

(recíproco) e dialético, lugar de existência e de crescimento24 do ser humano, o qual Bakhtin

denomina o grande diálogo (a comunicação humana) no grande tempo (toda a existência).

Para Bakhtin (2002a, p. 59), não há existência humana fora do processo de comunicação

dialógica: “A vida autêntica do indivíduo só é accessível a um enfoque dialógico, diante do

qual ele responde por si mesmo e se revela livremente”. Esta assertiva caracteriza a essência

do pensamento filosófico de Bakhtin, segundo o qual, a linguagem assume uma dimensão

transcendente à língua como objeto científico da linguística ou da gramática, por carregar-se

de outros elementos significantes extralinguísticos, integrantes do discurso prático da vida.

Assim sendo, a representação literária que mais se aproxima do momento da

elaboração do pensamento e de sua expressão é aquela em que predominam os elementos do

grande diálogo da vida, à qual o linguista denominou polifonia. Para ele, o esquema básico do

24 “Esta longa atenção que emprego em me considerar adestrou-me a julgar também razoavelmente os outros... Por ter-me adestrado, desde a minha infância, a mirar minha vida na vida de outrem, adquiri nisso uma compleição estudiosa [...]”. Fragmento de L’humanine condition, Montaigne (Apud AUERBACH, 2007, 267).

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diálogo em Dostoiévski é a contraposição do homem ao homem enquanto contraposição do eu

ao outro, em que ser significa comunicar-se pelo diálogo.25

Neste sentido, o discurso assume importância vital, por ser um fenômeno que funciona

como um link para a canalização dos enunciados em diversas direções e sentidos simultâneos

e interligados. Isto se dá através de enunciados concretos, autônomos e equivalentes,

participantes dos variados gêneros de discurso26. São expressões quase imediatas da atividade

mental, como imagem da imaginação em seu processo de formação, representadas com o

mínimo de desvio formalístico. Bakhtin concentra especial atenção na forma de representação

dessa imagem e encontra em Dostoiévski o estilo ideal. Para ele, o escritor tinha a excepcional

sensibilidade de perceber esses processos em elaboração, fazendo-os representados da forma

mais autêntica possível, às vezes, desconexos, caóticos e sempre inconclusos, como

acontecem nos processos mentais espontâneos. Isto é desenvolvido no texto através de um

recurso estilístico originalíssimo, na interpretação de Bakhtin (2002a). Estilo esse que

possibilita a cada personagem apresentar-se por si só, expondo seus pensamentos através de

diálogos concretos, ou, às vezes, imaginários (solilóquios), os quais refletem tanto a visão que

cada personagem constrói do mundo, quanto aquela que constrói de si mesma, a partir do que

lhe é informado através do discurso impregnado de diversas vozes em conflito. Em síntese, as

personagens de Dostoiévski não são meros intérpretes da visão do autor, a serviço de uma

representação objetificada, elas representam a si próprias e se revelam em processo de

construção no próprio diálogo, no texto. Tal procedimento é definido por Bakhtin (2002a)

como uma representação da autoconsciência das personagens, as quais estão desvinculadas,

relativamente, do campo de visão do autor27. Ou seja, tornam-se independentes e autônomas

no processo de construção evolutiva do enredo, por meio do diálogo com outras consciências

igualmente independentes e autônomas.

25 “Enquanto o homem está vivo, vive pelo fato de não se ter rematado nem dito a sua última palavra [...]. Quando termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo, em essência, não poder nem dever terminar.” (BAKHTIN, 2002a, p. 58 e 257). 26 Para Bakhtin (2003, p. 81), a vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso, de acordo com a situação concreta da comunicação. Tais gêneros existem das mais variadas formas na comunicação oral cotidiana, dependendo das pessoas envolvidas e das peculiaridades do campo da atividade humana em que são empregados. 27 “[...] A liberdade do herói é um momento da ideia do autor. A palavra do herói é criada pelo autor, mas criada de tal modo que pode desenvolver até o fim a sua lógica interna e sua autonomia enquanto palavra do outro, enquanto palavra do próprio herói. Como consequência, desprende-se não da ideia do autor mas apenas do seu campo de visão monológico. Mas é justamente a destruição desse campo de visão que entra na ideia de Dostoiévski” (BAKHTIN, 2002a, p. 65).

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1.1 PRESSUPOSTOS

Bakhtin, ao formular a tese polifônica, tendo como objeto a arte literária, reivindica

para esta os princípios da arte em geral, associados a princípios socioideológicos que regem o

pensamento e se refletem na vida como um todo, por intermédio da comunicação dialógica.

Tezza (2003) assinala que, para Bakhtin, é impossível definir a natureza da arte literária sem

definir previamente os problemas da arte em geral e o seu lugar na unidade da cultura

humana.

Embora não tenha elaborado um tratado filosófico da linguagem, em ensaios esparsos

Bakhtin analisa o tema em profundidade, formulando teses sobre a relação do mundo interior

do indivíduo com o mundo exterior, tendo o discurso como elo principal dessa relação. No

conjunto de sua obra encontram-se diversos postulados que se relacionam na estruturação de

uma base filosófica para o seu pensamento a respeito da linguagem verbal, que resulta no

esboço de uma metalinguística social e ideológica.

Examinando o pensamento filosófico-linguístico sobre as proposições de uma filosofia

marxista da linguagem, Bakhtin (2006, p. 127)28 assim se posicionou:

A verdadeira substância da língua não é construída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.

Na concepção de Bakhtin, a interação verbal é o diálogo em sentido amplo, ou

dialogismo, compreendido como uma categoria filosófica da linguagem, porque presente em

todo e qualquer tipo de comunicação verbal. Para ele, a filosofia marxista da linguagem

deveria estabelecer como base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e

como estrutura socioideológica. Bakhtin (2006) considera que a língua vive e evolui

historicamente na comunicação verbal concreta não no sistema linguístico abstrato das formas

das línguas nem no psiquismo individual dos falantes, mas na interação verbal dialógica.

Para se estabelecerem, portanto, os pressupostos da polifonia, torna-se necessário

considerar o pensamento de Bakhtin no mais amplo contexto de sua obra, vislumbrando-se 28 Consideramos Bakhtin como autor. Em razão da controvérsia sobre a autoria de Volochínov. Evitamos discutir esse ponto, por não afetar o nosso propósito.

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duas perspectivas fundamentais: uma filosófica, relacionada à natureza do pensamento e da

linguagem verbal, e outra artístico-literária, relacionada à estética, como ciência que estuda a

representação artística do pensamento na literatura.

1.1.1 Pressupostos Filosóficos

A proposta primordial de Bakhtin, na perspectiva filosófica da linguagem, é situar-se

na confluência dos dois mundos, interior e exterior, do indivíduo, a fim de compreender e

explicar o fenômeno de formação e transformação do pensamento em expressão verbal. Para

tanto, ele principia examinando, de modo crítico, as teorias idealista e psicologista

individualista, as quais preconizam a natureza essencialmente psíquica do pensamento e a

primazia da psicologia sobre a ideologia na explicação da consciência individual. A estas

teorias Bakhtin (2006) opõe a tese da natureza socioideológica do pensamento, ou atividade

mental, considerada como a tomada de consciência pelo indivíduo. Consciência essa que

adquire forma e existência nos signos criados no meio social organizado e interiorizados pelo

indivíduo por meio do processo de cognição e compreensão.

Assim sendo, Bakhtin (2006) considera o signo como elemento condicionante do

pensamento. O que significa dizer que o indivíduo necessita dominar um repertório de signos

interiores para habilitar-se ao exercício do ato de pensar. Tais signos, gerados nas interações

sociais, internalizam-se no indivíduo através da compreensão, tornando-se base de

experiência psicoideológica para a decodificação de novos signos e exteriorização do

pensamento. Afirma Bakhtin (2006) que os signos são o alimento da consciência individual e

a lógica dessa consciência é a lógica da comunicação ideológica, ou interação semiótica de

um grupo social. Abstraindo-se o conteúdo ideológico e semiótico (a palavra, a imagem, o

gesto significante, etc.), reduz-se a consciência a quase nada. O pensamento na ausência dos

signos semióticos é simples ato fisiológico, desprovido de sentidos.

Por outro lado, afirma, também, Bakhtin (2006) que o pensamento, ao se formar,

aspira à expressão. Termo que ele define como sendo tudo aquilo que, tendo se formado e

determinado de alguma maneira na consciência individual, exterioriza-se objetivamente para

outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores. Neste ponto, instaura-se a

pressuposição da comunicação social como ambiente de interatividade do pensamento entre

os signos interiores e exteriores. A comunicação, por sua vez, pressupõe a existência de

interlocutores e de sistemas semióticos. Na conjugação desses eventos, tem-se, em síntese, o

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ser refletido nos signos ideológicos, cuja predominância recai sobre o signo verbal, a palavra.

Ou seja, o indivíduo, no contexto social, é aquilo que se revela a si próprio por meio de um

discurso interior, e a outrem, pela exteriorização desse discurso, que se materializa nos signos

puramente ideológicos. Para Bakhtin (2006, p. 65), a palavra é a base da vida interior. Afirma

ele: “Originariamente, a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no curso do processo de

socialização dos indivíduos, para ser, em seguida, integrada ao organismo individual e tornar-

se fala interior”.

Admitindo-se, pois, a existência de um discurso interior, essencial à vida, a revelar-se

e a refletir-se no ambiente social, conclui-se pela natureza dialógica do pensamento

(dialogismo) e pela supremacia da palavra como signo ideológico da expressão desse

pensamento, sendo estes os pressupostos filosóficos fundadores da tese polifônica.

Em sentido amplo, entende Bakhtin (2003) que o indivíduo é incapaz de existir fora do

grande diálogo da vida. Pois, é nesse diálogo que ele busca, infinitamente, a realização de seu

ideal, que é a completude do ser. Todavia, dada a natureza multifacetária do espírito humano,

essa busca torna o diálogo interminável, e, por conseguinte, o ser eternamente incompleto,

num mundo em devir. É nessa trajetória dialógica em busca do porvir que o ser humano

evolui, impulsionado a refletir e a exprimir o mundo em que vive e também o seu mundo

interior (sua consciência). Para ele, a natureza dialógica da consciência é a natureza dialógica

da própria vida humana e a única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do

homem é o diálogo inconcluso.29

Os pressupostos filosóficos da polifonia extraídos do pensamento de Bakhtin, acerca

da comunicação humana, encontram respaldo, a priori, no princípio aristotélico do homem

como um animal político e societário por natureza. Para Aristóteles (1988), a razão de o

homem ser um animal sociável em mais alto grau do que os outros animais que vivem

reunidos é que somente ele possui o dom da palavra. Aos outros animais a natureza outorgou

a voz, que os faz entender-se entre si, que pode exprimir a sensação de dor e de prazer. A

palavra, entretanto, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial, e,

consequentemente, o que é justo ou injusto. Aristóteles afirma, ainda, que a comunicação é o

elemento de formação da sociedade primeva, à qual ele chamou a família do Estado. Por esse

princípio da associatividade, o indivíduo busca a realização de seu ideal natural, ou seja, a

finalidade para a qual cada ser foi criado, que é a de completar-se a si mesmo. Este é o ideal a 29 “A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo” (BAKHTIN, 2003, p.348).

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que todo indivíduo aspira, segundo Aristóteles, e o que de melhor pode haver para ele. Desse

princípio filosófico, depreende-se, em síntese, que o ser humano tem na sociedade a sua

condição existencial e que essa sociedade se organiza através da comunicação, cujo elemento

essencial é a palavra.

Outro fundamento filosófico importante a ser considerado no embasamento do

dialogismo como pressuposto filosófico da teoria polifônica é o diálogo socrático conforme

encontramos em “O espelho de Alcibíades” acerca do “saber de si e o dever-saber”. Nesse

diálogo relatado por Platão (Apud. CURY, 2006), Sócrates ensina que os olhos possuem algo

similar a um espelho que são as pupilas. Estas, como um espelho, refletem o rosto de quem as

olha. Assim, os olhos se veem a si mesmos quando olham em outros olhos e podem, dessa

maneira, conhecer-se a si mesmos nos olhos de outro. Da mesma forma, a alma para

conhecer-se a si mesma deve olhar outra alma. Uma alma servirá de espelho para a outra.

Uma alma sendo espelho da outra, ambas atingirão o conhecimento de si. Esse conhecimento

será ao mesmo tempo reconhecimento reflexivo através da alma do outro. O pensamento

socrático encontra-se representado, em síntese, na expressão de Bakhtin (2003, p. 22):

“Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem nas pupilas dos nossos olhos”. Para

Bakhtin, toda expressão individual corresponde à exteriorização de uma visão de mundo

constituída de múltiplas visões contraídas nos diálogos da vida. Assim como, ser, para ele,

significa conviver.30

Nessa perspectiva dialógica da vida, Bakhtin encontra em Dostoiévski a expressão

artística adequada ao seu projeto filosófico, em busca de uma metalinguística baseada na

visão estética da vida do discurso, que é, em suma, a comunicação humana pela expressão

verbal.

1.1.2 Pressupostos Artístico-Literários

A exemplo dos pressupostos filosóficos, é também no quadro geral dos trabalhos

escritos por Bakhtin que se encontram delineados os pressupostos artístico-literários de sua

tese polifônica. Tese esta que tem como premissa a interdependência entre a vida e a arte,

30 - “Ser significa ser para o outro e, através dele para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 341.

- Paz (2003, p. 108), analisando o reducionismo do homem ante a abolição da noção de divindade pelo racionalismo, afirma: “Ser um mesmo é condenar-se à mutilação, pois o homem é apetite de ser outro”.

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assim como a imprescindibilidade dos preceitos metodológicos da estética e da arte em geral

no estudo de qualquer arte em particular. Bakhtin considera impossível dissociar o estudo da

arte literária dos preceitos da arte em geral. Assim como não concebe a separação entre o ato

ético e o estético. Para ele uma coisa é parte constituinte da natureza da outra. A vida está

entranhada na arte, dando-lhe origem ao conteúdo, ou objeto estético. Em contrapartida, a arte

reflete e refrata a vida, como um ecossistema cultural da existência humana social e

politicamente organizada. Nestes termos se expressa Bakhtin (2002b, p. 33):

A particularidade principal do estético, que o diferencia nitidamente do conhecimento e ato, é o seu caráter receptivo, e positivamente acolhedor: a realidade, preexistente ao ato, identificada e avaliada pelo comportamento, entra na obra (no objeto estético) e torna-se então um elemento constitutivo indispensável. Nesse sentido, podemos dizer: de fato, a vida não se encontra só fora da arte, mas também nela, no seu interior em toda plenitude do seu peso axiológico (social, político, cognitivo ou outro que seja). A arte é rica, ela não é seca nem especializada; o artista é um especializado só como o artesão, isto é em relação ao material.

Para Bakhtin (2003), o preceito fundamental da arte é a unidade através da

responsabilidade e da culpa. Afirma ele que a ciência, a arte e a vida, enquanto campos da

cultura humana, devem estar unidas e incorporadas à unidade do indivíduo. Desta forma, o

indivíduo deve responder com a sua vida pelo que vivencia e compreende na arte, para que

essa vivência e compreensão não permaneçam inativas no objeto artístico, o que,

peremptoriamente, desqualificaria a obra enquanto arte. Essa unificação exige como premissa

a unidade do homem e do artista em um indivíduo. Adverte o filósofo que, na maioria das

vezes, a união desses elementos se dá no tempo e no espaço de modo superficial, não

penetrada pelo sentimento. Nesse caso, tal unificação não passa de uma relação mecânica,

resultando em uma arte presunçosa e patética, à qual não cabe responder pela vida, sendo

considerada mera prosa do dia a dia. Para ele, isto é o que acontece com maior frequência. O

artista e o homem estão unificados em um indivíduo de forma ingênua, o mais das vezes

mecânica. Temporariamente o homem sai da agitação do dia a dia para a criação como para

outro mundo de inspirações. Quando o homem está na arte não está na vida e vice-versa,

faltam-lhes a unificação e a interpenetração no interior do indivíduo. Somente a unidade pela

responsabilidade garante o nexo interior desses elementos, levando a uma cumplicidade entre

a vida e a arte. Isto porque a responsabilidade vincula-se à culpa. A vida e a arte devem

responder mutuamente com responsabilidade e com culpa. O artista deve compreender que a

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sua criação tem culpa pela prosa trivial da vida e o homem da vida deve saber que a sua falta

de exigência e a falta de seriedade em suas questões vitais dão causa à esterilidade da arte.

Sobre a interação entre a vida e a arte, conclui Bakhtin (2003) que o indivíduo deve se

tornar inteiramente responsável por todos os atos de sua vida, os quais não devem somente

estar lado a lado da série temporal, mas devem interpenetrar-se na unidade da culpa e da

responsabilidade. A arte e a vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular

no indivíduo, na unidade da responsabilidade.

Essa concepção de Bakhtin sobre a responsabilidade na vida e na arte demonstra o seu

posicionamento acerca do lugar de ocorrência do fenômeno da existência humana.

Negando a natureza puramente psíquica do pensamento, assim como o

transcendentalismo da inspiração artística, o filósofo entende que o lugar de existência do

indivíduo é o mundo concreto das relações axiológicas formadas na tensão dos diálogos

sociais. Bakhtin (2003) compreende que viver é posicionar-se a cada momento diante de

valores. Nada do que é humano está desvinculado de um universo de valores. Não se vive

num vazio abstrato, mas na dimensão concreta do tempo, da cultura e das relações sociais.

Razão porque, para ele, não se pode eximir do existir. Não existe álibi para a não existência.

Tampouco se deve invocar a inspiração como algo transcendental para justificar a

irresponsabilidade pelo ato criativo31. Significa que o indivíduo, no mundo, não pode fugir à

responsabilidade do existir e existir é integrar-se com todo o seu ser (de corpo e alma) aos

sistemas de valores éticos e estéticos, os quais constituem a vida que como numa mônada os

reflete e neles é refletida.

Neste sentido, o homem entra no grande diálogo da vida e aí busca incessantemente,

na relação com o outro ou com os outros, a sua realização enquanto indivíduo. Ao mesmo

tempo, ele é o outro de outro ou de outros. Fora desta relação, o indivíduo perde a sua

condição de humano, restando o animal de reações meramente fisiológicas. Pensando desta

forma é que, a Bakhtin (2003, p. 298) interessa examinar o fenômeno do existir humano no

mundo da cultura, conforme a sua afirmação: “Por que a nossa própria ideia – seja filosófica,

científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos

outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão

verbalizadas do nosso pensamento”. 31 “A inspiração que ignora a vida e é ela mesma ignorada pela vida não é inspiração, mas obsessão”. (BAKHTIN, 2003, p. XXXIV)

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Tal posicionamento suscita a impressão de uma aparente abstração da constituição

biológica do ser humano, cujas funções fisiológicas e psíquicas formam as condições

essenciais à vida, influenciando também no pensar e no agir. Entretanto, o ser biológico, ou

biográfico, para Bakhtin, torna-se sujeito da existência humana justamente ao compartilhar

das relações dialógicas. Relações essas que já envolvem o indivíduo desde os primeiros

momentos da vida.

Outra inferência possível é a de uma concepção eminentemente materialista, cujos

princípios assentam-se na filosofia marxista, que considera os fatores econômicos e sociais

como determinantes na formação do ser pensante. Entretanto, o filósofo oferece provas

suficientes de que seu pensamento foge a qualquer tipo de pragmatismo, ao construir suas

teorias epistemológicas em oposição àquelas já existentes relativas ao tema por ele abordado,

quer sejam científicos ou filosóficos. Assim, no processo de formulação de sua concepção

dialógica da linguagem, Bakhtin examina criticamente as teorias (filosóficas e científicas)

dominantes em seu tempo, especialmente aquelas que almejam a uma construção filosófica

marxista da linguagem. Expõe suas fragilidades ou imprecisões, superando-as em suas

epistemes. Encontra-se detalhadamente descrita em Marxismo e Filosofia da linguagem

(BAKHTIN, 2006) a análise crítica das teorias filosóficas, idealista e objetivista, assim como

em Freudismo (BAKHTIN, 2007) encontra-se expressa a sua oposição ao pensamento

psicanalítico de Freud. Críticas essas que servem de ponto de partida para formulação de seus

pressupostos filosóficos da linguagem.

Com relação à arte literária, especificamente, não obstante reconhecer a contribuição

fundamental dos formalistas russos na instituição de uma disciplina para o estudo sistemático

da arte literária, Bakhtin (2002b, p.17-18, itálico do autor) se opõe frontalmente à estética por

eles defendida. Assim, ao analisar o trabalho da crítica desenvolvido em seu tempo, na

Rússia, sobre a arte e a estética, afirma:

Na sua ambição de elaborar um juízo científico sobre a arte, independentemente da estética filosófica geral, a crítica vê no material a base mais estável para a discussão científica: pois a orientação para o material estabelece uma proximidade tentadora com o positivismo empírico. De fato: o crítico de arte (e o artista) recebe o espaço, a massa, a cor, o som, dos devidos setores da física e da matemática, e a palavra da linguística. E eis que no domínio da teoria da arte surge uma tendência no sentido de compreender a forma artística como forma de um dado material, e não mais como uma combinação nos limites do material, dentro de sua definibilidade e conformidade físico-matemáticas e linguísticas; isto permitiria aos juízos da crítica de arte serem científico-positivos, e, em alguns casos, diretamente demonstráveis pela matemática.

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Cabe salientar que, naquele contexto histórico, os conceitos de arte e de literatura,

consensualmente aceitos no Ocidente, eram os preconizados pelos formalistas, segundo os

quais se definia a arte como o conjunto de procedimentos, tendo como elemento significante o

estranhamento. De outro lado, o literário era uma categoria à qual pertenciam os textos

dotados de literaturidade. Tais conceitos desconsideravam o entrelaçamento da ficção com a

realidade, da arte com a vida prática, sublimando a poética como um discurso puro e

autossuficiente pelo isolamento da forma. Neste sentido, Bakhtin (2002b) submete ao exame

crítico os pressupostos do método formal, especialmente a estética material.

Ao construir a sua teoria do romance, o filósofo propõe um estudo sistemático de

estética geral, precedente ao estudo de qualquer arte específica. Para ele o isolamento do

conteúdo expresso pela forma (objeto estético) como momento singular da criação artística, se

dá na unicidade do ético no estético, em vez do estranhamento, que reduz a visão estética à

forma do material. Reforça a ideia de que a vida deve estar na arte e a arte na vida. Tezza

(2003, p. 222), ao abordar essa questão em seu estudo sobre Bakhtin e o formalismo russo,

afirma: “Seguindo um caminho oposto ao do formalismo russo, Bakhtin está atrás não do

estranhamento, mas da identidade – o mundo da visão estética não é uma forma distinta das

formas da vida, mas parte integrante e inseparável delas”.

1.1.2.1 A crítica de Bakhtin à estética material

Em princípio, a crítica de Bakhtin ao método formalista russo centra-se na tendência

de se construir um postulado científico sobre uma arte específica, nesse caso particular, a arte

literária, sem considerar os problemas inerentes à arte em geral, o que significa, para ele, um

erro essencial.

No desenvolvimento do estudo dos princípios da estética geral aplicados

predominantemente à criação literária, Bakhtin (2002b) analisa os aspectos que considera

negativos aos pressupostos da estética material, por inadequados, segundo ele, ao estudo da

arte. Assim o fazendo, entende o filósofo estar a delinear a orientação de um conhecimento

mais preciso da essência estética e de seus elementos.

Para Bakhtin (2002b), são negativos à sustentação da tese formalista os seguintes

pontos relativos à estética material:

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a) A estética material não é capaz de fundamentar a forma artística, determinando-a

pela natureza puramente material. Considera Bakhtin que a forma compreendida como forma

do material apenas em sua definição científica, matemática ou linguística, transforma-se em

ordenação exterior, isenta de momento axiológico, ou valorativo, que é o que dá sentido ao

objeto artístico. Desta maneira, a tensão emocional e volitiva da forma, que é a sua

capacidade imanente de exprimir uma relação significante de valor entre o objeto estético, o

autor e o contemplador, na dimensão transcendente do material, permanece incompreendida.

Essa relação emocional e volitiva expressa pela dimensão corpórea, pelo ritmo, pela

harmonia, e pela simetria, dentre outros elementos formais, tem um caráter fortemente ativo e

tenso que não permite uma interpretação restritiva ao aspecto material da forma.

Explica Bakhtin que o material se organiza na arte pela forma, transformando-se em

um elemento de estimulação das sensações agradáveis dos estados do organismo psicofísico.

A obra de arte, portanto, compreendida como material organizado, ou como coisa, só pode ter

significado como estimulador físico dos estados fisiológicos e psíquicos, ou então deve

receber uma designação prática e utilitária qualquer. O método formal, com a lógica própria

do primitivismo e com certo niilismo, emprega termos como “sentir” a forma, “fazer” uma

obra de arte, etc. Observa Bakhtin (2002b, p. 20, itálicos do autor) que é preciso compreender

que a forma artisticamente significativa se refere a algo e se orienta sobre um valor além do

material ao qual se prende e com o qual está indissoluvelmente ligada:

Quando um escultor trabalha o mármore, indiscutivelmente ele também o prepara na sua determinação física, mas não é sobre ele que está dirigida a atividade artística valorizante do criador, e não é a ele que se refere a forma realizada pelo artista, ainda que a própria elaboração não se realize um único momento sem o mármore [...] a forma escultural criada é a forma esteticamente significativa do homem e do seu corpo.

Neste sentido, entende o filósofo que é indispensável admitir um momento do

conteúdo que permita interpretar a forma de modo mais profundo do que meramente

hedonista, ou seja, tomando o sentido da vida como algo além do prazer. Para ele, todo

sentimento, privado do objeto que lhe dá sentido, isolado pela forma, torna-se um simples

estado do organismo psicofísico, desprovido de qualquer intenção capaz de romper o círculo

da pura presença espiritual.

b) A estética material não estabelece a diferença essencial entre o objeto estético, a

obra exterior (material extraestético) e a organização composicional do material na atividade

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artística. Para Bakhtin, é imprescindível à análise estética a distinção metódica desses três

momentos da criação de uma obra de arte: conteúdo, forma e material. Assim, preconiza que a

primeira tarefa da análise estética é compreender o conteúdo da atividade criadora na sua

singularidade e estrutura puramente artística, definida como objeto estético arquitetônico.

Secundariamente, o estudo deve abordar a obra em sua dimensão puramente cognitiva e

compreender sua estrutura de modo totalmente independente do objeto estético. Neste caso,

afirma Bakhtin (2002b, p. 22):

O esteta torna-se um geômetra, um físico, um anatomista, um fisiólogo, um linguista, como também o artista, até certo ponto, é obrigado a sê-lo. Assim, a obra de arte literária deve ser compreendida inteiramente, em todos os seus momentos, como um fenômeno da língua, isto é, de modo puramente linguístico, sem qualquer consideração quanto ao objeto estético que ela realiza, somente nos limites da conformidade científica que rege seu material.

Como terceira tarefa, postula Bakhtin que a análise estética deve compreender a obra

exterior, ou seja, o material no qual se realiza o objeto estético, pelo processo composicional.

Processo este que constitui o conjunto dos fatores da impressão artística. Em sua concepção, a

estética material só realiza inteiramente a segunda tarefa da análise estética, a qual

corresponde à fase do estudo ainda não propriamente estético da natureza da obra, enquanto

objeto das ciências naturais ou da linguística. Portanto, a análise formalista não abarca a obra

integralmente por não compreender a singularidade do objeto estético.

Assinala Bakhtin que a não diferenciação desses três momentos acarreta ambiguidade

e imprecisão ao estudo da estética material, o mesmo se aplicando a quase todas as teorias da

arte, que ora enfocam o objeto estético, ora a obra exterior, ora a composição.

c) A estética material confunde, ainda, as formas arquitetônicas e composicionais.

Para Bakhtin, esse é um erro de princípio, inerente à própria essência da concepção da estética

material, tornando-se insuperável já em sua base, pelas falhas supramencionadas:

incapacidade de fundamentar adequadamente a forma artística e de diferenciar objeto estético,

obra exterior e composição.

As formas arquitetônicas estão incluídas no objeto estético. Na expressão de Bakhtin

(2002b, p.25):

São as formas dos valores morais e físicos do homem estético, as formas da natureza enquanto seu ambiente, as formas do acontecimento no seu aspecto de vida particular, social, histórica, etc.; todas elas são aquisições, realizações, não

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servem a nada, mas se autossatisfazem tranquilamente; são as formas da existência estética na sua singularidade.

As formas composicionais, por outro lado, organizam o material com uma finalidade

utilitária e estão sujeitas a um juízo puramente técnico, para determinar a adequabilidade

dessas formas à realização da estrutura arquitetônica, uma vez que a forma arquitetônica

determina a escolha da forma composicional. Exemplifica Bakhtin (2002b, p. 25):

A forma tragédia (forma do acontecimento, em parte, do personagem – o caráter trágico) escolhe a forma composicional adequada – a dramática. Naturalmente, não é por isso que se deve concluir que a forma arquitetônica existe em algum lugar sob um aspecto acabado e que pode ser realizada independente da forma composicional.

De acordo com essa visão, a estética material não permite estabelecer-se uma

diferenciação dos princípios das formas composicionais e das arquitetônicas, há uma

tendência a dissolver inteiramente as formas arquitetônicas nas composicionais. Conforme

Bakhtin (2002b, p. 25): “A expressão máxima dessa propensão é o método formalista russo,

onde as formas de composição e de gênero tentam absorver todo o objeto estético, além do

mais, onde não existe uma diferença rigorosa entre as formas linguísticas e composicionais”.

d) A estética material não consegue também explicar a visão estética fora da arte, tais

como a contemplação estética da natureza, os elementos estéticos do mito e da concepção do

mundo.

Para Bakhtin, uma particularidade característica de todos esses fenômenos da visão

estética é a ausência de material definido e organizado, e, por conseguinte, também da

técnica. Afirma ele que, embora o estético só se realize plenamente na arte e sobre esta se

deve orientar a estética, é também tarefa da estética explicar essas formas híbridas e impuras.

Tarefa esta de suma importância sob o ponto de vista filosófico e existencial.

e) A estética material também não pode fundamentar a história da arte. Uma

elaboração fecunda da história de qualquer arte pressupõe uma estética elaborada da arte

específica, mas é preciso levar-se em consideração o significado fundamental da estética

sistemática, pois apenas esta fundamenta a arte na sua interdependência e interação essenciais

com todos os outros campos da criação na unidade da cultura e na unidade do processo

histórico de sua transformação. Na afirmação de Bakhtin (2002b, p. 26):

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A história não conhece séries isoladas: uma série, enquanto tal, é estática, a alternância dos elementos nela pode ser somente uma articulação sistemática ou simplesmente uma posição mecânica das séries, mas de modo algum um processo histórico; só a determinação de uma interação e de um mútuo condicionamento de dada série com outras cria a abordagem histórica. É preciso deixar de ser apenas si próprio para entrar na história.

Entende, ainda, o filósofo que o estudo de estética que isola na cultura, não só a arte

em geral, mas também as artes específicas, e considera a obra em sua vida artística como uma

coisa, um material organizado, poderá apenas estabelecer o quadro cronológico das

modificações dos processos técnicos da arte estudada, pois uma técnica isolada não pode ter

história.

Para Bakhtin, a atividade estética não cria uma realidade inteiramente nova,

diferentemente do conhecimento e do ato ético, que criam a natureza e a humanidade social.

Mas a arte celebra, orna, evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato ético

(natureza e humanidade social), enriquece-as, completa-as e cria a unidade concreta e

intuitiva desses dois mundos. Colocando-se o homem na natureza, compreendida como seu

ambiente estético, humaniza a natureza ao mesmo tempo em que naturaliza o homem.

Neste ponto, Bakhtin reforça a sua concepção da unidade responsável e também

responsiva32 na relação entre a vida e a arte, ou a interdependência entre o ético e o estético33.

O que não deixa de ser uma interação dialógica entre valores pertencentes a diferentes

domínios da cultura humana. Entre a arte e filosofia, talvez.

A integração desses fatores se dá no conteúdo ou, objeto estético, criando o momento

singular da arte. A compreensão desse momento suscita a análise do conteúdo, do material e

da forma estética como elementos que exercem funções distintas, mas inseparáveis e

indispensáveis no processo da criação artística.

32 As expressões “responsável” e “responsiva” formam um sentido único de responder simultaneamente pelo ato criativo e responder a alguém ou a algo (como responder a expectativas), conforme Sobral (2007, p.20). 33 Vejamos o que está implícito no discurso de Montaigne (Apud AUERBACH, 2007, p. 251) acerca da ética na relação da arte com a vida no procedimento artístico literário: “Descrevo a vida baixa e sem brilho: dá na mesma; é possível achar toda filosofia moral numa vida popular e privada tanto quanto numa vida feita de matéria mais rica: cada homem leva em si a forma inteira da humana condição. Os autores comunicam-se com o povo através de uma qualidade particular e rara; eu sou o primeiro a fazê-lo, através de meu ser universal [...]. Uma pessoa sábia não é sábia em tudo; mas o suficiente é sempre suficiente, também na ignorância. Aqui andamos conformes, e ao mesmo passo, meu livro e eu. Alhures pode-se recomendar ou acusar a obra, independente do autor; aqui, não; quem toca um, toca a outra”.

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Assim sendo, pode-se definir o objeto estético como núcleo vital da obra de arte. Nele

acontece a centelha que dá a vida à arte, ao que Bakhtin (2003) denomina tensão ético-

cognitiva, ou momento de contemplação, ou, ainda, ato criativo volitivo-emocional. Este

acontecimento na arte literária é o momento verbal, o qual é constituído pela enunciação. No

ato da enunciação, portanto, encontram-se unidos os elementos significativos da obra de arte

literária. Momento em que a palavra, como material, é superada em seus limites puramente

linguísticos e se torna enunciado que dá forma ao conteúdo do objeto artístico. De um modo

simplificado, pode-se dizer que, na arte literária, o conteúdo é a expressão de ideias, a forma é

o gênero de composição no qual se representam essas ideias e o material é a palavra, ou, em

sentido amplo, a língua. Nas palavras de Bakhtin (2003, p. 177): “O autor visa ao conteúdo

(tensão vital, ou seja, ético-cognitiva da personagem), enforma-o e o conclui usando para isso

um determinado material, no nosso caso verbalizado [...]”. Ocorre que esta divisão, em

abstrato, só pode ocorrer com a finalidade meramente analítica. Na contemplação da obra de

arte não é possível, a priori, vislumbrar-se tais elementos isoladamente, principalmente

conteúdo e forma, os quais, embora de naturezas distintas, são inseparáveis, pois é através da

forma que se tem a percepção do conteúdo. Quanto ao material, este, embora perceptível em

sua determinação física, é imanente à natureza da forma. Por esta razão, explica Bakhtin

(2002b) que a forma é condicionada a um determinado conteúdo, por um lado, e à

peculiaridade do material, por outro. Pode-se, por analogia, inferir que o mármore e o bronze

estão para a escultura assim como a palavra ou a língua está para a obra literária. Lembrando

que, para Bakhtin, o autor-criador e o autor-contemplador participam na construção do

sentido do objeto estético. Esta concepção de autor-contemplador coaduna-se com as

concepções de leitor e de receptor preconizadas, respectivamente, pela “performance” de

Zumthor (2000) e pela “estética da recepção” de Jauss (1994), as quais alçam a figura do

leitor à condição de coautor da obra literária.

Esses pontos assinalados por Bakhtin, em relação à estética material, tornam

vulneráveis os pressupostos científicos da teoria formalista, cujo rigor em defesa da

supremacia da forma limita a visão estética ao aspecto composicional da obra de arte,

especificamente da arte literária. Abstraindo, assim, em sua análise estética, o conteúdo, que é

o momento de sublimação da criação artística.

Em essência, a divergência entre a proposição de Bakhtin e a concepção formalista

reside na relação da vida com a arte no objeto estético. Para os formalistas, o objeto estético é

constituído pela própria forma do material e nela se esgota, não havendo ligação com atos da

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vida real (prática), cujo estudo caberia a outro campo da ciência. Ao passo que para Bakhtin o

objeto estético é composto pelo conteúdo unificado na forma, no qual se cruzam os elementos

essenciais à vida da arte. Esses elementos são centro de valores éticos e cognitivos, sem os

quais a arte se torna estéril, ou utilitária.

Emerge dessa discussão o fenômeno mais relevante para Bakhtin no estudo da arte

literária, que é o discurso artístico-literário, especialmente o discurso dialógico. Bakhtin

(2002b) considera a arte como objeto fundamental da estética e a poética como estética da arte

literária, cujo objeto de estudo é a obra literária. Logo, pelos princípios da estética e da arte

em geral, depreende-se que o estudo da estética literária deve visar ao discurso como seu

objeto estético. Discurso este entendido por ele (Bakhtin) como fenômeno social, em todas as

esferas de sua existência, desde a imagem sonora até os estratos semânticos mais abstratos.

Atraído pela originalidade estilística do discurso nas obras de Dostoiévski, o que

permite a percepção, no texto, de diversas vozes participantes, autônomas e plenivalentes,

Bakhtin (2002a, p. 184) concentra a sua exegese, precipuamente, na arte do discurso,

formulando, assim, as bases de sua teoria polifônica, cuja premissa maior é a natureza

dialógica do discurso, como afirma:

Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semânticas devem, como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa.

Baseado nessa premissa de que todo discurso é dialógico, no mínimo, bivocal, poder-

se-ia afirmar que toda obra literária seria dialógica, ou polifônica porque composta por

discurso. Ocorre, entretanto, uma tendência ao discurso artístico-literário tornar-se

composicionalmente monológico, devido à necessidade do acabamento da obra em todos os

seus segmentos (enredo, personagens, tempo e espaço), o qual deve ser promovido pelo autor.

Acabamento este a que aspira todo ser, mas somente possível na dimensão estética, dada a

inconcludibilidade da vida em sua dimensão ética. Neste sentido é que, em regra, as obras

literárias tendem ao desígnio monológico. Pois, ainda que presentes vários falantes, seus

discursos subordinam-se à visão una e suprema do autor. O que foge à regra e, por isto,

tornou-se original para Bakhtin, é a transposição do discurso (prático) da vida para o texto

literário, preservando-se, na íntegra, a sua autêntica dialogicidade, com suas entonações e

apreciações valorativas.

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Esse fenômeno que Bakhtin denominou polifonia, observado em sua plenitude

somente em alguns dos romances tardios de Dostoiévski, mais precisamente em Os Irmãos

Karamazovi, pressupõe, essencialmente: a plurivocalidade do discurso; a autonomia

plenivalente das vozes participantes (personagens) dos diálogos e a posição exotópica34 do

autor-criador, nos limites de uma determinada obra. Destarte, são estes os pressupostos

artístico-literários da polifonia extraídos da concepção bakhtiniana.

1.2 CONCEITOS

A partir de suas concepções filosóficas e estéticas da linguagem, Bakhtin analisa um

conjunto de obras literárias, especialmente os romances de Dostoiévski, formulando critérios,

segundo os quais uma obra poderá ser considerada arquitetonicamente dialógica.

A polifonia surge, assim, como uma categoria teórico-literária capaz de permitir ao

crítico, ao esteta ou ao pesquisador proceder à exegese de um texto, determinando a

especificidade artística com base no conhecimento do objeto estético (o discurso literário).

Observe-se que determinar a especificidade artística não significa classificar a obra

qualitativamente, mas tão-somente defini-la quanto ao procedimento estilístico, como

dialógica ou monológica. Para Bakhtin (2002a) uma obra dialógica pertenceria ao gênero

romance polifônico criado por Dostoiévski. Essa aspiração, entretanto, em ver a polifonia

como um novo gênero de romance não se concretizou, em que pese a tendência crescente ao

surgimento desse tipo de romance a partir do realismo.

A polifonia se consagrou como uma teoria que fundamenta um método de

investigação científica do texto literário (o método polifônico), visando à dialogicidade dos

discursos que o compõem. Embora Bakhtin nunca tenha declarado que estaria a desenvolver

um método de análise literária, o que ele fez, na prática, foi criar um método, ao sistematizar a

análise discursiva de Dostoiévski nas diversas obras, determinando o grau de dialogismo em

cada uma delas de acordo com a predominância dos discursos bivocais em suas diversas

34 Sobre o termo “exotopia” é importante deduzir o seu conceito da explanação de Bakhtin (2003, p. 176): “O artista é aquele que sabe ser ativo fora da vida, não só o que participa de dentro dessa vida (prática, social, política, moral, religiosa) e de dentro dela compreende, mas também a ama de fora – de onde ela não existe para si mesma, onde está voltada para fora e necessita de um ativismo distanciado e fora de sentido. A divindade do artista está em sua comunhão em uma distância superior. Encontrar o enfoque essencial à vida fora dela – eis o objetivo do artista”.

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variantes35. Descobre ele, assim, uma criação artística em estilo original na prosa romanesca,

denominando-a polifonia, pelo elevado grau de dialogismo em comparação com obras de

outros autores contemporâneos, especialmente de Tolstói e de Gogol, as quais ele considerou

monológicas. Adverte, porém, o teórico, que o fato de uma obra ser monológica, o que

acontece com a grande maioria das obras literárias, não significa ser inferior às obras

polifônicas. Bakhtin não estabelece uma comparação qualitativa, mas apenas destaca a

representatividade artística dos múltiplos diálogos intermináveis e da incompletude do ser

humano nos discursos polifônicos. O que torna a obra literária dialógica em sua integralidade,

constituindo, assim, um novo estilo artístico mais representativo da realidade vivida e

transmitida pelos diálogos cotidianos nos mais variados contextos concretos da vida.

Considera Tezza (2003) que Bakhtin, apesar de vislumbrar, em sua tese, a polifonia

como um novo gênero de romance, ele próprio não conseguia encontrar mais do que dois ou

três exemplos de romances polifônicos fora do universo de Dostoiévski, mesmo depois de 40

anos (1974). Alude Tezza ao fato de o teórico haver deixado de usar o termo polifonia,

passando a empregar em seus trabalhos posteriores aos da década de 20, predominantemente,

o conceito de plurilinguismo36.

O procedimento de Bakhtin aludido por Tezza, no entanto, revela, em nosso

entendimento, não uma frustração de seu ideal de representatividade da diversidade da vida

no domínio estético-literário expresso pela polifonia, mas a convicção de que somente

Dostoiévski, em seu tempo, fora portador da arte representativa desse ideal. Em suas palavras,

Bakhtin (2002a, p. 31) deixa transparecer:

Esse dom especial de ouvir e entender todas as vozes de uma vez e simultaneamente, que só pode encontrar paralelo em Dante, foi o que permitiu a Dostoiévski criar o romance polifônico. A complexidade objetiva, o caráter contraditório e a polifonia na sua época, a condição de raznotchinets e peregrino social, a participação biográfica sumamente profunda e interna da multiplanaridade objetiva da vida e por último, o dom de ver o mundo em interação e coexistência foram fatores que criaram o terreno no qual medrou o romance polifônico de Dostoiévski.

35 Bakhtin (2002a, p. 184) afirma: “O objeto principal do nosso exame pode-se dizer, seu herói principal, é o discurso bivocal, que surge inevitavelmente sob as condições dialógicas, ou seja, nas condições da vida autêntica da palavra. 36 “[...] Profundamente imerso no seu projeto da década de 20 de criar uma ‘filosofia moral’, Bakhtin investe Doistoiévski das qualidades que ele buscava numa linguagem capaz de dar conta do ‘ser-evento’, sem transformá-lo no objeto abstrato de uma consciência única. Note-se que ele nunca mais vai usar essa categoria; nas obras dos anos 30 e 40, a ‘polifonia’ desaparece, substituída pelo conceito muito mais amplo e funcional de plurinlinguismo” (TEZZA, 2003, p. 231).

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A compreensão, em princípio, decorrente do excerto citado sobre a peculiaridade do

contexto criativo de Dostoievski, tende a isolar a polifonia como um estilo de arte literária

próprio desse romancista. Estilo que Bakhtin vislumbrava ser compreendido e assimilado

como uma nova forma artística do romance com todos os atributos que fazem do gênero um

fenômeno representativo da diversidade social, plurilíngue e plurivocal.

Algumas observações parecem oportunas no que diz respeito aos posicionamentos

acima referidos. Em primeiro lugar, a posição de Tezza corrobora a interpretação que se

tornou usual dos termos polifonia, dialogismo e plurilinguismo como sinônimos. Em segundo

lugar, a posição de Bakhtin permite inferir que somente Dostoiévski tenha sido capaz de

realizar romances polifônicos. Nenhuma das duas posições, no entanto, garante base para tais

inferências. Pensamos que Bakhtin, na realidade, restringiu o uso do conceito de polifonia e

do próprio termo ao estudo da poética de Dostoiévski, por ser esse um estudo polifônico em

sentido estrito, o qual teve como corpus especifico (objetificado) as obras daquele escritor, de

modo idêntico à reiteração da categoria da carnavalização no estudo sobre a obra de Rabelais.

Os conceitos de dialogismo e de pluriliguismo são usados por Bakhtin justamente nos estudos

teóricos de abstração em grau mais elevado, especialmente em Marxismo e Filosofia da

linguagem que discute a base filosófica do dialogismo e em Questões de Literartura e de

Estética, em que o conceito de plurilinguismo constitui o eixo central da teoria do romance.

Os momentos em que o teórico se refere à polifonia em obras posteriores ao estudo da poética

de Dostoiésvki, embora raros, marcam a especificidade do conceito em relação aos demais

termos aludidos.37 Cabe, ainda, salientar a manutenção do termo e do conceito de polifonia na

revisão do estudo sobre as obras de Dostoiévski realizada 34 anos depois da publicação, em

1963, atestando que não houve um abandono do termo por mera caducidade de sua

significação.

37 - “Depois de Dostoiévski a polifonia cresce em toda a literatura universal” ( BAKHTIN, 2003, p. 318 - grifo nosso). Ensaio da década de 30 “O Problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica” (BAKHTIN, 2003, p. 307-335);

- “É claro que nenhum poeta que tenha existido historicamente como homem envolvido pelo plurilinguismo e pela polifonia vivos não poderia ignorar esta sensação [...] (BAKHTIN, 2002b, p. 93 - grifo nosso). Ensaio de 1930/1935, “O discurso na poesia e o discurso na prosa” (BAKHTIN, 2002b, p. 85-106); e

- “[...] Que a sátira menipéia possa tecer uma enorme tela, que dê uma reflexão socialmente multiforme e polifônica de sua época, isso se atesta no Satiricom de Petrônio” (BKHITN, 2002b, 416 - grifo nosso). Ensaio de 1941, “Epos e romance” (BAKHTIN, 2002b, p. 397- 428).

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O emprego recorrente do termo polifonia, dialogismo e plurilinguismo por Bakhtin

induz ao entendimento quase generalizado de que tais termos possuam o mesmo significado.

De fato, existe uma assemelhação nos sentidos em que são, às vezes, empregados pelo

teórico, especialmente quando ele opõe a expressão “obra polifônica” à expressão “obra

monológica” e não “monofônica” que seria o mais adequado. Todavia é perceptível a

distinção que Bakhtin faz entre um e outro termo, indicando os traços essenciais de natureza

semântica que as tornam significativamente diferentes. Isto suscita a necessidade de se

formular um conceito para cada uma dessas categorias mencionadas, a partir das diversas

acepções recorrentes nos textos publicados do teórico, por entender-se imprescindível à

distinção entre elas na tarefa da análise de uma obra literária específica pelo método

polifônico.

1.2.1 Polifonia

Das categorias teóricas criadas por Bakhtin, a polifonia foi a que mais se propagou no

meio literário, contraindo conceitos diversos que implicam, às vezes, uma abordagem

destoante daquela preconizada pelo teórico. Costuma-se, em regra, identificar a polifonia pela

simples presença no texto de diferentes discursos, ou modos diferentes de falas, confundindo-

se com dialogismo, plurilinguismo e, até mesmo, com intertextualidade.

Remontando-se, no entanto, às circunstâncias originárias da aplicação do termo

“polifonia” no âmbito da literatura, constata-se que o mesmo fora usado antes de Bakhtin

pelos críticos literários russos, Komaróvitch e Grossmam, cujas posições exegéticas sobre as

obras de Dostoiévski constituem o ponto de partida para Bakhtin formular a sua tese sobre os

problemas da poética do romancista russo. O termo fora utilizado originariamente por

analogia com o seu significado etimológico, que radica do Grego, relativo à pluralidade de

voz ou instrumento na música38. Criticando a posição de Komaróvitch, Bakhtin (2002a, p. 20)

afirma: “Interpreta em termos monológicos, até exclusivamente monológicos, a última

unidade fora do enredo do romance de Dostoiévski, embora introduza uma analogia com a

polifonia e a combinação contrapontística de vozes da fuga”.39

38 “POLIFONIA s.f (Do Gr. Polyphonia, pelo fr. Polyphonie) 1. Efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas, independentes mas harmonicamente relacionadas. – 2. Escrita diversas vozes que obedece às regras do contraponto” – GRANDE ENCICLOPÉDIA Larousse Cultural. São Paulo: Círculo do livro, 1988, p. 4760. 39 “A subordinação teleológica dos elementos (enredos) pragmaticamente separados é, deste modo, o princípio da unidade artística do romance dostoivskiano. Também neste sentido ele pode ser assemelhado ao todo artístico

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Já em relação ao ponto de vista de Grossman, o qual considera que a base da

composição de cada romance de Dostoiévski é o princípio de duas ou várias novelas que se

cruzam e se completam pelo contraste, estando relacionadas pelo princípio musical da

polifonia, Bakhtin (2002a, p. 44) faz o seguinte comentário:

Trata-se de observações muito precisas e sutis de Grossman acerca da natureza musical da composição em Dostoievski. Ao transpor da linguagem da teoria musical para a linguagem da poética a tese de Glinka, segundo o qual tudo na vida é contraponto, pode-se dizer que, para Dostoievski, tudo na vida é diálogo, ou seja, contraposição dialógica. De fato, do ponto de vista de uma estética filosófica, as relações de contraposição na música são mera variedade musical das relações dialógicas entendidas em sentido amplo.

Os postulados dos críticos Komaróvitch e, especialmente, Grossman constituem o

princípio estruturante da transferência do fenômeno da polifonia musical para a literatura.

Coube, portanto, a Bakhtin aprimorar-lhe o sentido, esclarecendo sua natureza metafórica,

suas características e elementos constituintes e configurando-o como uma categoria

metodológica de análise do discurso literário, em seus aspectos estritamente artísticos e

estilísticos. Ressalva, contudo, tratar-se não de uma categoria análoga, mas de uma metáfora,

por entender que a polifonia aplicável à música não encontra correspondente na literatura.

Nesta, as vozes são, por princípio, desarmônicas, ao contrário da música, fenômeno no qual as

vozes se harmonizam no contracanto da polifonia. Assim pondera Bakhtin (2002a, p.21):

Cabe observar que também a comparação que fazemos do romance de Dostoievski com a polifonia vale como analogia figurada. A imagem da polifonia e do contraponto indica apenas novos problemas que se apresentam quando a construção do romance ultrapassa os limites da unidade monológica habitual, assim como na música os novos problemas surgiram ao serem ultrapassados os limites de uma voz. Mas as matérias da música e do romance são diferentes demais para que se possa falar de algo superior à analogia figurada, à simples metáfora. Mas é essa metáfora que transformamos no termo romance polifônico, pois não encontramos designação mais adequada. O que não se deve é esquecer a origem metafórica do nosso termo.

O conceito de polifonia, por ser usado, não raras vezes, por Bakhtin, associado aos

termos dialogismo e plurilinguismo, consagrou-se como um fenômeno da linguagem literária

que consiste na presença de diversas vozes em interação no texto. Em geral, são os diversos

na música polifônica: as cinco vozes da fuga, que entram em ordem e se desenvolvem na consonância contrapontística, lembram a ‘conduta das vozes’ no romance de Dostoievski. Essa comparação, caso seja correta, levará a uma definição mais genérica do próprio princípio da unidade. Tanto na música como no romance de Dostoievski realiza-se a mesma lei da unidade que se realiza em nós, no ‘eu’ humano: a lei da atividade racional” (KAMARÓVITCH, apud. BAKHTIN, 2002a, p. 20).

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modos de falas (dialetos, jargões grupais, etc.) introduzidos pelos discursos diretos e indiretos,

com marcas de oralidade e os diálogos retóricos entre personagens. Ocorre que o sentido da

palavra empregada por Bakhtin torna o seu conceito mais complexo. Não se pode limitá-lo ao

significado lexical (pluralidade de vozes ou instrumentos na música) nem ao sentido análogo,

vulgarizado no campo literário, de simples multiplicidade de vozes no texto. Não basta a

presença de múltiplas vozes no texto para que uma obra seja caracterizada como polifônica. É

indispensável que essas vozes se encontrem em relações dialógicas. Essa é uma premissa da

polifonia. Entendendo-se por relações dialógicas a tomada de posição axiológica por cada

sujeito de fala, de acordo com Bakhtin (2002a, p. 181-182):

Do ponto de vista da linguística pura, entre o uso monológico e polifônico do discurso na literatura de ficção não se devem ver quaisquer diferenças realmente essenciais. Por exemplo, no romance polifônico de Dostoiévski há bem menos diferenciação linguística – ou seja, diversos estilos de linguagem, dialetos territoriais e sociais, jargões profissionais, etc. – do que em muitos escritores de obras centradas no monólogo, como Tolstoi Píssiemsky, Lieskóv e outros. Pode inclusive parecer que os heróis dos romances de Dostóievski falam a mesma linguagem, precisamente a linguagem do autor. Muitos inclusive acusaram Dostoiévski dessa uniformidade da linguagem. Ocorre, porém, que a diferenciação da linguagem e as acentuadas “características do discurso” dos heróis têm precisamente maior significação artística para a criação das imagens objetificadas e acabadas das pessoas. Quanto mais coisificada a personagem, tanto mais acentuadamente se manifesta a fisionomia da sua linguagem. No romance polifônico, o valor da variedade da linguagem e das características do discurso é mantido, se bem que esse diminui e, o mais importante, modificam-se as funções artísticas desses fenômenos. O problema não está na existência de certos estilos de linguagem, dialetos sociais, etc., existência essa estabelecida por meio de critérios meramente linguísticos; o problema está em saber sob que ângulo dialógico eles se confrontam ou se opõem na obra. Mas é precisamente esse ângulo dialógico que não pode ser estabelecido por meio de critérios genuinamente linguísticos, porque as relações dialógicas, embora pertençam ao campo do discurso, não pertencem a um campo puramente lingüístico do seu estudo.

Pela concepção de Bakhtin, a ênfase da polifonia recai sobre as relações entre as

visões de mundo refletidas na consciência de cada sujeito da enunciação no grande diálogo.

Razão pela qual, para a formulação de uma teoria para o método polifônico, Bakhtin se apoia

nos pressupostos filosóficos e artístico-literários, anteriormente mencionados, estabelecendo

como premissas o dialogismo e, consequentemente, o plurilinguismo. Por esta razão, é

possível afirmar-se que a polifonia, embora determinada pelo dialogismo e pelo

plurilinguismo, possui significado e sentido diferentes, por ultrapassar os campos específicos

da linguística, da filologia e da gramática para situar-se no domínio da arte do discurso

literário. Fator que permite o seu emprego como método científico de análise literária e como

teoria de procedimento estilístico para a construção do texto ficcional.

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Em face da natureza metafórica com a qual foi transposta para os estudos literários,

pode-se conceituar polifonia, nesse âmbito, como um procedimento estilístico por meio do

qual o autor organiza diversos discursos no nível da enunciação, de modo a representar em

cada um deles uma posição ética autônoma do sujeito que fala, sobre si próprio e sobre o

mundo em que vive na inter-relação com outros sujeitos. Sintetizando, pode-se dizer que a

polifonia é o recurso estilístico que permite ao autor-artista tornar perceptível o dialogismo da

vida que pretende ver representado na obra de arte literária, por meio da manifestação das

múltiplas visões de mundo.

Neste ponto, destaca-se a diferença essencial e sutil entre dialogismo e polifonia, pois,

embora esta não prescinda daquele, com ele não se confunde, em razão de princípio

ontológico. Sendo o dialogismo imanente ao pensamento e à linguagem, estará presente em

qualquer obra em grau variado. Contudo, não se pode afirmar que toda obra venha a ser

polifônica apenas pela presença do dialogismo. Uma obra será considerada polifônica se o seu

grau dialógico permitir a verificação pelos parâmetros da polifonia. De acordo com Bakhtin

(2002a), os parâmetros são os seguintes: dialogicidade considerada nos limites de uma mesma

obra e não no contexto de todas as obras de um autor; vozes autônomas e conflituosas; e

posição exotópica do autor. Para Bakhtin, a obra é polifônica quando revela o seu caráter

dialógico no nível da enunciação. Não sendo polifônica, embora contenha, por princípio,

elementos polifônicos, o seu aspecto dialógico é percebido apenas na estrutura composicional,

no nível do enunciado, faltando-lhe a dialogicidade interna, constituinte da estrutura

arquitetônica. Destarte, o fenômeno da polifonia impele o leitor (autor-contemplador ou

coautor) a penetrar as camadas mais profundas da semântica, onde lutam as vozes em direção

ao significado do objeto referencial que, em suma, implica a representação da atividade

mental pela expressão verbal. Para Bakhtin (2002a, p. 36-37), a essência da polifonia consiste

na combinação de vozes independentes, as quais constituem, a rigor, expressões da própria

consciência de cada falante. Afirma: “O principal da polifonia de Dostoiévski é justamente o

fato de ela realizar-se entre diferentes consciências, ou seja, de sua interação e

interdependência entre estas”.

Numa síntese ainda mais apertada, a polifonia significa a representação da fala

autônoma dos indivíduos em um contexto de enunciação concreta, no processo da

comunicação dialógica. Razão pela qual, para Bakhtin a polifonia revela não só a fala

(estritamente), mas a expressão verbal do pensamento por meio de um discurso que engloba

outros signos semióticos além do linguístico. A mímica por exemplo. O que faz o autor e as

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personagens dialogarem com igualdade e liberdade, tomando posições que refletem suas

visões de mundo, ao mesmo tempo em que evoluem individualmente no processo de

autorreflexão. Para ele, a polifonia é corolário do dialogismo na obra de arte literária e este é o

fator mais importante a ser considerado na análise de uma obra. Fator que está

intrinsecamente relacionado ao fazer artístico, ou atividade criativa. Atividade da qual

participam não só o autor e suas personagens, mas também o leitor, como autor-

contemplador, o qual é parte imprescindível ao processo criativo.40

1.2.2 - Dialogismo

Dialogismo, na acepção da palavra, significa “a arte do diálogo”41, originado nos

primórdios do teatro grego, depois introduzido na literatura, tendo como marco inicial os

diálogos socráticos escritos por Platão.

Em princípio, não há dificuldades em compreender-se que, derivando do diálogo, o

dialogismo seja uma categoria linguística presente em todo ato de comunicação. Ato esse, que

pressupõe, no mínimo, duas pessoas. Na concepção de Bakhtin, no entanto, o termo ganha um

sentido mais amplo. Alcança uma categoria filosófica, ao ser entendido como um fenômeno

discursivo presente não somente na linguagem, mas na formação do pensamento e em todas

as relações humanas. No estudo Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin (2002a, p. 42)

define:

As relações dialógicas – fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo expresso composicionalmente – são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância.

A partir de uma concepção dialógica do universo, Bakhtin desenvolve todos os seus

estudos linguísticos, filosóficos e literários, tendo como foco essencial o discurso, na arte e na

vida.

Ao compreendermos o dialogismo, a priori, como um fenômeno imanente à natureza

do pensamento e da linguagem, podemos concebê-lo como forma original do processo de 40 “Parte absolutamente indispensável – e aqui está a essência mais despojada de Bakhtin – será o ouvinte. Sem ele, não há palavra concreta. Do nascimento à morte, a palavra é, no mínimo, dupla”. (TEZZA, 2003, p.199, itálico do autor). 41 “Dialogismo (Do gr. diálogismós.) S. m. 1. Arte do diálogo. 2. Ret. Figura que reproduz em diálogos as ideias das personagem” - NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira.

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comunicação humana. Esse fenômeno aparece com maior clareza na comunicação verbal,

tendo em vista o uso da palavra como signo ideológico e polissêmico, por natureza. Assim,

em princípio, toda comunicação é dialógica e toda palavra é no mínimo bivocal42, ou seja,

possui duas vozes que se comunicam a respeito de algo. O comunicar-se sobre algo é, antes

de tudo, procurar significar esse algo por meio de signos e códigos pertencentes ao domínio

dos participantes da comunicação. Ocorre que as palavras que se destinam a nomear as coisas,

já as encontram impregnadas de significações sociais e ideológicas acumuladas na trajetória

de evolução histórica de seus conceitos. Evolução que acontece tanto pela transmigração

desses conceitos nas línguas das diversas nações, sociedades e comunidades, quanto pela

mudança nas concepções de mundo dentro de um mesmo contexto linguístico motivado pelo

diálogo cultural permanente entre a tradição e a novidade.43

O processo evolutivo, flutuante e aberto a infinitas relações semânticas entre a palavra

e o objeto referencial, gera a natureza polissêmica e plurilíngue dessa palavra. Em

decorrência, as palavras codificadas serão sempre insuficientes para dizer a verdade sobre o

algo que deseja significar, devendo tornar-se enunciado (unidade do discurso). Como

enunciado, a palavra, ao dirigir-se ao seu objeto, entra em choque dialógico44 com outros

enunciados a ele direcionados. Esse choque entre os diversos enunciados que lutam em

direção ao objeto a ser significado é o dialogismo que está presente em todo discurso. Na

visão Bakhtin (2002b, p. 88):

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. [...] Apenas Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto.

42 “Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade [...]. A palavra é território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN, 2006, p. 117). 43 Hall (2003, p. 50-51) em “Narrando a nação: uma comunidade imaginada” afirma que as culturas nacionais são compostas não somente de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. “Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas”. 44 “Suponhamos que duas réplicas do mais tenso diálogo, a palavra e a contra-palavra, ao invés de acompanharem uma à outra e serem pronunciadas por dois diferentes emissores, tenham-se sobreposto uma à outra, fundindo-se em uma só enunciação e em um só emissor. Essas réplicas seguiram em direções opostas, entraram em choque. Daí a sobreposição de uma à outra e a fusão delas numa só enunciação levaram à mais tensa dissonância” (BAKHTIN, 2002a, p. 210).

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Em síntese, toda palavra no contexto de uma enunciação luta para se afirmar como

criadora de sentido contra palavras ditas antes, outras ditas no presente (concomitante) e

outras futuras que, imaginadas como réplicas, afetam a enunciação, suscitando uma resposta

antecipada. Disto resulta não uma palavra vitoriosa, pura, mas uma palavra aparentemente

nova (ambígua), de verdade discutível, na qual ressoam as vozes conflitantes. Palavra que

propicia a duplicidade de sentidos, essencial aos gêneros cômicos, particularmente ao satírico

e ao parodístico.

Sendo o dialogismo, portanto, intrínseco ao processo natural da comunicação verbal e

cada vez mais acentuado no prosaísmo do mundo moderno, a prosa romanesca tornou-se a

forma literária ideal para a representação desse fenômeno45. Bakhtin (2002b) destaca a

proeminência do discurso prosaico, mormente o discurso polifônico, sobre o discurso poético,

nas condições favorecidas pela prosa romanesca penetrada pelo dialogismo e plurilinguismo

do mundo. No entanto, há uma tendência à redução desse caráter dialógico da linguagem na

passagem do discurso prático ao discurso artístico, do significado ético ao significado

estético, tendo em vista a necessidade de se produzir um contexto acabado, fechado nos

limites de uma visão redutora do autor, ainda que manifestada por diferentes modos, por

diferentes vozes. Em regra, são vozes que expressam, em última instância, os desígnios do

autor. Cabe ressaltar que isto não elimina o aspecto dialógico que é inerente à comunicação e,

portanto, a toda forma de linguagem, mas atenua a diversidade de pontos de vista sobre o

tema ou objeto referencial.

É importante observar que a definição de Bakhtin sobre o que venha a ser monológico

ou dialógico não está condicionada ao número de participantes em um processo linear de

comunicação, como se há de pensar, conforme o senso comum, que em uma obra monológica

exista somente um emissor de discurso, sem interlocutores ao passo que em uma obra

45 Lukács (1962?, p. 64-65) ressalta essa transição da realidade na forma de narração. Ele nos fala da poesia épica como ordenação da totalidade da vida na qualidade de uma existência feliz, segundo uma harmonia pré-estabelecida, afirmando: “Antes de qualquer criação literária, o processo que rodeou a vida inteira de mitologia purificou o ser de qualquer peso trivial e os versos de Homero não fazem mais que abrir os gomos desta primavera já pronta a rebentar. [...] Nos tempos que perderam o dom desta espontaneidade, ou bem que o verso é banido da grande literatura épica, ou bem se transforma inopinadamente e sem o querer em verso lírico. Então só a prosa pode agarrar com a mesma força o sofrimento e resgate, o combate e o coroamento, o progresso e a consagração; a sua ductilidade e o seu rigor libertos do ritmo são os únicos que podem exprimir com a mesma força os laços e a liberdade, a gravidade dada e a espontaneidade conquistada do mundo que irradia com o seu sentido imanente descoberto. Não foi por acaso que a decomposição de uma realidade tornada canto se transformou, na prosa de Cervantes, na espontaneidade plena de sofrimento de uma grande forma épica enquanto que a dança graciosa dos versos de Ariosto se mantém jogo e lirismo”

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dialógica exista um ou mais emissores com a presença de interlocutores e seus respectivos

modos de falar. A definição também não está associada ao conceito de monólogo e de diálogo

no sentido estrito do termo, em que o monólogo é um discurso de uma só pessoa, sem

interlocutor, e o diálogo seria o discurso e suas respectivas réplicas de duas ou mais pessoas.

Para Bakhtin, é possível haver diálogo ainda que na presença de um só falante, pois para ele

poderá o falante dialogar com a sua própria fala. Desde que essa fala esteja influenciada pela

palavra de outro, ausente, mesmo sem que a palavra do outro seja proferida na realidade, mas

apenas presumida pelo falante que, ao emitir o seu enunciado, reflete a imagem do discurso

do outro através da antecipação de uma resposta. De outra forma também, segundo Bakhtin

(2002a), poderá haver diálogo com características de monólogo, ou seja, quando dois ou mais

discursos seguem um mesmo sentido, em direção do referencial, sem se contradizer ou

polemizar. Assim, uma obra literária que reúna diversas personagens, mesmo com diferentes

modos de falas e de linguagens, não será dialógica se os enunciados, predominantemente,

servirem apenas para informar aquilo que o autor idealiza.46

Podemos deduzir, em síntese, que no procedimento monológico as personagens são

apresentadas pelo narrador como figuras passivas de uma história. Seus discursos diretos são

46 Bakhtin (2002a, p. 69-73) demonstra, em um breve paralelo entre os estilos de Tolstói e de Dostoiévski, as características preponderantes de uma obra monológica e de uma obra polifônica. Ele analisa, resumidamente, o conto Três Mortes, de Leon Tolstói, caracterizando o procedimento monológico do autor. O conto retrata três mortes: a morte de uma senhora rica, a de um cocheiro e a de uma árvore. Tolstói apresenta a morte como o resultado da vida, resultado que enfoca toda a vida como ponto de vista ideal para a compreensão e a avaliação em sua totalidade. Daí poder-se dizer que no conto estão representadas, essencialmente, três vidas, plenamente concluídas em seu sentido e em seu valor. Essas três vidas e os três planos da narração por elas determinados são interiormente fechados e se ignoram mutuamente. Entre eles há apenas um nexo pragmático exterior, indispensável à unidade temático-composicional do conto: o cocheiro que conduz a senhora doente, pega as botas de um cocheiro moribundo que encontra (o moribundo não precisa mais delas) e em seguida, depois que este morre, corta uma árvore no bosque para fazer a cruz para a cova dele. Assim, três mortes resultam exteriormente relacionadas. Mas não há relação interna, relação entre consciências. A senhora moribunda nada sabe acerca da vida e da morte do cocheiro e da árvore, que não fazem parte do seu campo de visão e da sua consciência. Do mesmo modo, nem a senhora nem a árvore faziam parte da consciência do cocheiro. A vida e a morte das três personagens, juntamente com seus mundos, encontram-se lado a lado com um mundo objetivo uno e chegam até a se contatar exteriormente nele, mas elas mesmas nada sabem umas sobre as outras nem se refletem umas nas outras. São fechadas e surdas, não escutam nem respondem umas às outras. Entre elas não há nem pode haver quaisquer relações dialógicas. Não estão em acordo nem em desacordo. O autor, no entanto, sabe tudo acerca deles, confronta, contrapõe e avalia as três vidas e todas as três mortes. Tudo se revela apenas no amplo campo de visão do autor. Segundo Bakhtin, se o conto tivesse sido escrito por Dostoiévski, à maneira polifônica, ele faria todos os três planos refletir-se uns nos outros, concatená-los-ia por relações dialógicas. Introduziria a vida e a morte do cocheiro e da árvore no campo de visão e na consciência da senhora, introduzindo, por outro lado, a vida da senhora no campo de visão e na consciência do cocheiro. Assim, obrigaria todas as suas personagens a ver e conhecer todo o essencial que o próprio autor vê e conhece, não reservando para si nenhum excedente essencial. Colocaria “cara a cara” a verdade da senhora e a do cocheiro e as levaria a contatar-se dialogicamente e ocuparia pessoalmente, em relação a elas, uma posição dialógica equipolente. Construiria o todo da obra como um grande diálogo, ao passo que o autor atuaria como organizador e participante desse diálogo, sem reservar-se a última palavra, isto é, refletiria em sua obra a natureza dialógica da própria vida e do próprio pensamento humano.

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como arremedos na boca do narrador, que por sua vez representa a imediata intenção do autor.

Isto faz com que os universos das personagens não se cruzem. Uma não sabe da outra. Esse

excedente de visão é privilégio do autor-criador, o qual conhece toda a história e a história de

cada uma das personagens. Ao passo que no procedimento polifônico, o narrador pouco

interfere, em geral o próprio autor organiza os diálogos, colocando as personagens em contato

umas com as outras e se colocando, eventualmente, no mesmo nível do diálogo com elas.

1.2.3 Plurilinguismo

O plurilinguismo, tal qual o concebe Bakhtin, deve ser entendido, essencialmente, sob

dois aspectos. Primeiramente, apresenta-se de modo explícito, na forma composicional do

texto, através dos diferentes modos de fala, tais como dialetos, jargões, gírias grupais, etc.,

introduzidos, em geral, pelos discursos diretos. Esse aspecto não caracteriza polifonia nem

dialogismo. A polifonia resulta de algo que se processa em níveis semânticos mais profundos,

interpretado como uma tensão provocada pelas relações axiológicas entre os diversos

enunciados que se orientam para um determinado objeto, tensão essa presente em cada ato de

enunciação. Esse plurilinguismo explícito é superficial e meramente caracterológico47, de

natureza lógico-composicional sem significação para a polifonia nem para o dialogismo. Ao

contrário, de acordo com Bakhtin (2002a), poderá reforçar o aspecto monófono ou

monológico. Por outro lado, o plurilinguismo se apresenta de modo implícito, como

fenômeno social e cultural imanente ao surgimento e ao desenvolvimento histórico das

línguas nacionais. Desse modo, o plurilinguismo está entranhado nas linguagens do mundo,

cada vez mais abertas às trocas semânticas e morfológicas, pelo processo globalizante da

economia de mercado, interferindo diretamente nos processos de transformação das

identidades culturais48. Nessa perspectiva, o plurilinguismo é um fenômeno metalinguístico

que integra o processo das relações dialógicas concretas, as quais alcançam o ápice de

representação literária na polifonia.

47 “O problema não está na existência de certos estilos de linguagem, dialetos sociais, etc., existência estabelecida por meio de critérios meramente linguísticos; o problema está em saber sob que ângulo dialógico eles confrontam ou se opõem na obra” (BAKHTIN, 2002a, p. 182). 48 “[...] na história moderna, as culturas nacionais têm dominado a ‘modernidade’ e as identidades nacionais tendem a se sobrepor a outras fontes, mais particularistas de identificação cultural. O que, então, está tão poderosamente deslocando as identidades culturais nacionais, agora, no fim do século XX? A reposta é: um complexo de processos e forças de mudança, que por conveniência, pode ser sintetizado sob o termo ‘globalização’” (HALL, 2003, p. 67).

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Pode-se afirmar, portanto, que o plurilinguismo, no conceito deduzido do pensamento

de Bakhtin, significa a mesclagem da linguagem literária penetrada pelo cruzamento contínuo

das línguas vivas internacionais, cujo apogeu ocorre na modernidade, encontrando na prosa

romanesca o lugar ideal para o florescimento de sua representatividade. Também pela

dialetação ou estratificação das línguas nacionais.

Ao analisar a pré-história do discurso romanesco, Bakhtin (2002b, p. 371) conclui:

“No seu processo de surgimento e desenvolvimento inicial a palavra romanesca refletiu a

antiga luta de tribos, povos, culturas e línguas, ele era uma ressonância completa dessa luta”.

1.3 A POESIA NO ENFOQUE POLIFÔNICO

A polifonia na literatura corresponde ao dialogismo em grau extremo, intensificado

pela presença do plurilinguismo. Por essa natureza multidiscursiva e multiliguística não se

compatibiliza com a poesia, cujo discurso, a priori, não comporta a presença de vozes alheias

autônomas. O discurso poético caracteriza-se pela enunciação direta do poeta em linguagem

única.49 O poeta ao escolher a palavra para compor a sua enunciação a respeito de um tema ou

objeto a desloca do contexto prosaico da vida, depurando-a das entonações valorativas

ideológicas e sociais preexistentes ou delas se apropriando pelo apagamento das marcas das

vozes e linguagens alheias. Essa palavra isolada pelo “impulso poético”50 e pelos mecanismos

formais e semânticos convencionais da composição poética, tais como gráfico, sintático,

rítmico e imagético, aspira ao status de palavra original e vislumbra a primitividade de seu

objeto, como se fosse nomeá-lo pela primeira vez. Esta síntese introdutória reflete a

concepção bakhtiniana da natureza monológica da poesia em oposição à natureza dialógica da

prosa (especialmente do romance). No estudo sobre a teoria do romance Bakhtin (2002b, p.

93) manifesta-se categoricamente:

Nos gêneros poéticos (em sentido restrito) a dialogização natural do discurso não é utilizada literariamente, o discurso satisfaz a si mesmo e não admite enunciações de outrem fora de seus limites. O estilo poético é convencionalmente privado de qualquer interação com o discurso alheio, de qualquer “olhar” para o discurso alheio. Igualmente alheio ao estilo poético é qualquer tipo de olhar para as línguas de outrem [...].

49 “O poeta é definido pelas idéias de uma linguagem única e de uma única expressão, monologicamente fechada” (BAKHTIN, 2002b, p. 103). 50 Tezza (2003, p. 280) define “impulso poético” como uma dimensão latente de todos os momentos verbais que percorre todos os usos da linguagem. “Desde os mais corriqueiros diálogos da vida cotidiana (quando alguém se afasta momentaneamente da relação dialógica com o outro e isola a sua fala ou pela entonação, ou pela imagem inusitada, ou pela reiteração sonora) até as obras mais altissonantes da prosa artística, filosófica ou histórica (José de Alencar – em Iracema -, Nietzsche, Euclides da Cunha)”.

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Por esta afirmação, a poesia, em princípio, é banida do universo dialógico de Bakhtin.

Não há espaço para se falar em poesia polifônica. Procedimento oposto ao do poeta é,

precisamente, o que torna possível ao prosador (romancista) organizar o discurso polifônico, o

qual se constitui pela participação indispensável de vozes alheias e independentes e das

diferentes linguagens socioideológicas com suas acentuações valorativas próprias. Por essa

razão, poderíamos inferir que, em contrapartida, na prosa não haveria espaço para o

monologismo. O que não é verdade. Há uma tendência a monologização da obra pela própria

natureza estética exigir um acabamento que, a contrário senso, converte a realidade

plurilíngue e plurivocal em monológica51.

Colocamo-nos, assim, diante de uma necessária discussão sobre a distinção entre prosa

e poesia no universo dialógico bakhtiniano, visando ao exame das possibilidades concretas de

se encontrarem elementos polifônicos em obras poéticas.

Os estudos literários de Bakhtin se estruturam, de um modo geral, numa base prosaica

focada no romance. Esse é o terreno fértil para a fecundação de suas teorias. No complexo das

obras do teórico encontram-se poucas páginas dedicadas especificamente ao exame da poesia.

Entretanto, ele estabelece objetivamente a distinção entre prosa e poesia, pelo critério de

procedimento estilístico, ou seja, pelo modo e pela intensidade da relação de cada estilo com a

palavra do outro.

No estudo específico da polifonia, Problemas da Poética de Dostoiévski, ao

estabelecer uma classificação dos tipos de discurso na prosa, segundo o grau de relação com o

discurso do outro, Bakhtin (2002a, p. 200 - grifos nossos) destaca o ponto que, em essência,

distingue-se a prosa da poesia:

Achamos que o plano que apresentamos de exame do discurso do ponto de vista da sua relação com o discurso do outro é de excepcional importância para a compreensão da prosa artística. O Discurso poético, no sentido restrito, requer a uniformidade de todos os discursos, sua redução a um denominador comum, podendo este ser um discurso do primeiro tipo ou pertencer a variedades atenuadas de outros tipos. Aqui, evidentemente, também são possíveis obras que não reduzem toda a matéria do seu discurso a um denominador comum, embora esses fenômenos sejam raros e específicos no século XIX. Situamos neste contexto a lírica “prosaização” de Heine, Barbier, Niekrássov e outros (só no século XX ocorre uma

51 Bakhtin (2003, p. 173, itálicos do autor) explica que o homem é o centro organizador do conteúdo-forma da visão artística. Ademais, “que é um dado homem em sua presença axiológica no mundo. O mundo da visão artística é um mundo organizado, ordenado e acabado”.

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acentuada “prosação” da lírica). Uma das peculiaridades essencialíssimas da prosa está na possibilidade de empregar, no plano de uma obra, discursos de diferentes tipos em sua expressividade acentuada sem reduzi-los a um denominador comum. Nisto reside a profunda diferença entre os estilos em poesia e em prosa. Mas na poesia toda uma série de problemas essenciais tampouco pode resolver-se sem incorporação daquele plano de exame do discurso, porque diferentes tipos de discurso requerem em poesia elaboração estilística diversa.

Os tipos de discurso na prosa citados no trecho em destaque são:

- Tipo I (monovocal) - discurso referencial direto e imediato orientado para seu objeto,

como expressão da instância suprema de significação do falante;

- Tipo II (monovocal) - discurso objetificado, que se constitui pelo discurso de uma

pessoa representada, com predominância da definição sociotípica e precisão caracterológico-

individual; e

- Tipo III (bivocal), discurso orientado para o discurso do outro, com uma infinidade

de variantes dialógicas.

Esses tipos de discurso constituem a sistematização do método de análise formulado

por Bakhtin com fundamento na teoria polifônica para o exame das obras de

Dostoiévski. Serão, portanto, apresentados mais detalhadamente ao ensejo da análise do texto

d’Os Lusíadas do ponto de vista polifônico. Por enquanto, confirma-se pelas explicações

contidas no texto citado, a clara distinção entre prosa e poesia na relação dialógica. Infere-se

também certa relativização do caráter monológico da poesia, à medida que o teórico menciona

os fenômenos da “lírica prosaização” no século XIX e da “prosação da lírica” no século XX.

O outro momento no qual Bakhtin aborda a questão da diferença entre prosa e poesia,

com maior profundidade, é no ensaio “O discurso na poesia e o discurso no romance”, escrito

na década de 30, do século passado. Nesse ensaio, argumenta Bakhtin (2002b) que o poeta,

existindo historicamente como homem envolvido concretamente pelo plurilinguismo e pela

polifonia, não pode ignorar esta sensação e esta atitude em relação à sua língua em maior ou

menor grau, mas elas não encontram lugar no estilo poético de sua obra sem destruí-lo. O

próprio ritmo imanente ao discurso poético não possibilita qualquer estratificação

significativa da linguagem. Para ele o ritmo, ao criar a participação direta de cada momento

do sistema acentual do conjunto, por meio das unidades rítmicas mais próximas, destrói em

estado ainda embrionário aqueles mundos e pessoas virtualmente contidos no discurso, não

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lhes permitindo se desenvolver e materializar. Desse fenômeno, além de outros inerentes aos

gêneros poéticos, resulta o procedimento de depuração da linguagem poética de todas as

marcas de falas e de linguagens alheias, reforçando a unidade da linguagem.

Por outro lado, o que caracteriza a prosa, especialmente a romanesca é justamente o

acolhimento em seu objeto estético das diferentes falas e das diferentes linguagens da língua

literária e extraliterária. Afirma Bakhtin (2002b, p 104-105):

O prosador não purifica seus discursos dos germes do plurilinguismo social que estão cerrados neles, não elimina aquelas figuras linguísticas e aquelas maneiras de falar, aqueles personagens-narradores virtuais que transparecem por trás das palavras e formas da linguagem, porém, dispõe todos estes discursos e formas a diferentes distâncias do núcleo semântico decisivo da sua obra, do centro de suas intenções pessoais.

Nas duas oportunidades em que Bakhtin analisa o procedimento poético em oposição

ao da prosa, ressaltam-se duas ideias básicas. A poesia e a prosa são, para ele, estilos

fundamentais de expressão de consciências e atitudes por meio da linguagem literária. Estilos

esses estratificados historicamente em diversos gêneros52. A distinção fundamental entre esses

dois grandes estilos é o modo pelo qual articulam a diversidade das linguagens e das vozes

históricas e sociais.53 Essa distinção observa-se, em tese, pela pureza da linguagem poética em

oposição à promiscuidade da linguagem prosaica no contato imediato com as línguas

mundanas. Essa relação poesia e prosa, em extremo, é quase uma relação do sagrado com o

profano. O estilo poético é, por natureza, refratário aos discursos alheios. Quando admitidos,

submetem-se à voz e à linguagem suprema do poeta. Enquanto o estilo prosaico possibilita o

emprego de diferentes tipos de discurso numa obra sem reduzi-los a um discurso

centralizador, ou seja, sem submeter as diferentes vozes e linguagens à voz unificante e à

linguagem soberana do autor.

52 “Os grandes estilos históricos do discurso literário, ligados aos destinos dos gêneros, foram encobertos pelos pequenos destinos das modificações estilísticas ligadas a artistas e tendências individuais” (BAKHTIN, 2002b, p. 71). 53 “O discurso poético é naturalmente social, porém as formas poéticas refletem processos sociais mais duráveis, ‘tendências seculares’ por assim dizer da vida social. O discurso romanesco reage de maneira muito sensível ao menor deslocamento e flutuação da atmosfera social ou, como foi dito, reage por completo em todos os seus momentos. Introduzidos no romance, o plulinguismo é submetido a uma elaboração literária. Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso, expressando a posição sócio-ideológica diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos de sua época” (BAKHTIN, 2002b, p. 106, itálico do autor).

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Em razão do posicionamento teórico restritivo de Bakhtin quanto às possibilidades

dialógicas da poesia e ao reconhecimento da prosa como um estilo aberto ao dialogismo e ao

plurilinguismo extremos, muito pouco se tem cogitado o exame de obras poéticas pelo

método polifônico.54

Deve-se, contudo, atentar para o fato de que Bakhtin, ao concluir pela natureza

monológica do discurso poético, refere-se peremptoriamente à “poesia em sentido restrito”.

Esta afirmação cria certa confusão, por ele não esclarecer o que considera poesia em sentido

restrito. A primeira hipótese é a de que ele esteja se referindo à poesia lírica. Mas Bakhtin não

demonstra qualquer interesse na divisão triádica dos gêneros. O foco de sua atenção é o modo

pelo qual o dialogismo e o plurilinguismo entram no objeto estético literário e em que medida

dele participam.55 Se considerássemos verdadeira a hipótese de que “poesia em sentido

restrito” seria poesia lírica, a partir da divisão triádica dos gêneros, a poesia épica e dramática

seriam passíveis ao dialogismo. Somente a lírica, portanto, estaria excluída desse processo.

Esse critério de exclusão da poesia lírica, no entanto, seria inadequado à solução do problema,

por dois relevantes motivos. Primeiramente, porque, não raras vezes, encontramos poemas

líricos narrativos. Suscetíveis, portanto, ao dialogismo em algum grau. Depois, porque, tanto a

poesia épica quanto a dramática são estritamente poesia, especialmente a épica com todo o

rigor dos elementos normativos canônicos que a tornam tradicionalmente o mais elevado dos

gêneros poéticos, apesar de sua forma de narrativa.56

Morson e Emerson (2008, p. 336) ao interpretarem a expressão de Bakhtin (poesia em

sentido restrito) como lírica, fazem-no deixando transparecer dúvida: [...] “Quais são essas

diferenças entre a prosa (especialmente o romance) e a poesia (especialmente a poesia

54 Destacamos D’Onófrio (1981) e Tezza (2003) como pesquisadores que, explicitamente, se posicionaram favoravelmente ao procedimento polifônico em relação à exegese de obras poéticas. 55 Tezza (2003, p. 236-237, itálicos do autor) comenta: “Há muitos planos dialógicos na linguagem, participantes ativos do momento verbal. Genericamente, para esboçar um esquema primário, há que pensar tanto numa relação qualitativa – isto é, toda manifestação concreta da linguagem terá pelo menos dois participantes -, quanto quantitativa, isto é, toda relação dialógica apresenta um grau particular de intensidade e uma tipologia diferencial. No plano individual, a palavra nasce já sob a sombra de múltiplas relações; ela se dirige a alguém, a um centro de valor, diante do qual ela se posiciona. Ao mesmo tempo, ela se dirige a um objeto, um objeto que de modo algum é coisa neutra. Ao contrário, esse objeto já é ponto de encontro prévio de diferentes centros de valores, diante dos quais a palavra nascente também se posiciona valorativamente”. 56 Staiger (1997, p. 89 – grifo nosso) afirma que o gênero épico mostra claro parentesco com as artes plásticas, assim como o lírico com a música. “Como na palavra lírica nunca desaparece inteiramente uma certa significação objetiva e precisa, também a fala épica não consegue furtar-se de todo à sucessão no tempo. Pois Épica não é arte plástica e Lírica não é música, mas são ambas Poesia. O poeta pode muito bem tentar realizar o ‘ut pictura poesis’ de tal maneira que procure representar em palavras a sucessão de espaços”.

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lírica?)?”. Tezza (2003, p. 266), por sua vez, não arrisca uma interpretação literal, explicando:

“essa qualificação que ele usará muitas vezes, indica quantitativamente o mais poético, isto é,

a poesia no seu sentido mais intenso”.

A proposição de Tezza, embora deixando, ainda, em aberto o significado da expressão

utilizada por Bakhtin, apenas trocando “sentido restrito” por “sentido mais intenso”, parece a

mais coerente com a ressalva que faz o teórico em relação à concepção da natureza

monológica do discurso poético. Ao afirmar que, em razão do convencionalismo imanente ao

estilo, a linguagem dos gêneros poéticos torna-se autoritária, dogmática e conservadora,

fechando-se à influência dos dialetos sociais não literários, o teórico deixa claro em que

circunstância isto acontece: quando esses gêneros se aproximam de seu limite estilístico, ou

seja, quando se aproximam da poesia pura. Bakhtin (2002b, 95) chama, ainda, a atenção,

registrando o seguinte (em nota de rodapé): “Evidentemente, o que caracterizamos o tempo

todo é o limite ideal dos gêneros poéticos; nas obras reais são admitidos prosaísmos

substanciais, e existe grande número de variantes híbridas de gêneros, particularmente

correntes na época de ‘troca’ das linguagens literárias poéticas”.

Ao compreendermos que Bakhtin contrapõe os estilos em prosa e em poesia

considerando os extremos das possibilidades dialógicas dos gêneros pertencentes a cada um

desses estilos, podemos afirmar que estamos diante de uma escala quantitativa. Quanto mais

pura a linguagem, menor será a probabilidade do dialogismo. Em contrapartida, por óbvio,

essa probabilidade aumenta à medida que diminui a pureza da linguagem. Temos, portanto,

num extremo, o grau mínimo de dialogismo57 que, em tese, afeta particularmente a poesia,

pela vocação histórica (gênese e desenvolvimento) do estilo ao discurso monológico. Com

propensão a predominar na poesia lírica58, pela expressão quase direta dos sentimentos do

poeta através da palavra figurada. Mas não é exclusividade deste gênero. A épica também é

essencialmente monológica, apesar de uma maior abertura aos discursos alheios,

especialmente nas formas estilizadas. No outro extremo, temos o grau máximo do dialogismo,

concentrado indiscutivelmente na prosa, especificamente no romance polifônico. Entre um

57 No mínimo duas vozes. Em virtude do princípio da bivocalidade da palavra. 58 “O poeta lírico não produz coisa alguma. Ele abandona-se – literalmente (Stimmung) – à inspiração. Ele inspira ao mesmo tempo clima e linguagem. Não tem condições de dirigir-se a um nem a outra. Seu poetar é involuntário. Os lábios deixam escapar o ‘que está na ponta da língua’. Mõrike, justamente, foi um poeta que de algum modo burilou suas poesias. Mas seu trabalho difere muito do modo como o autor dramático reflete sobre seu plano, ou o épico insere novos episódios e tenta dar forma mais clara a sua obra. O poeta lírico escuta sempre de novo em seu íntimo os acordes já uma vez entoados, recria-os, como os cria também no leitor [...] (STAIGER, 1997, p. 28).

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extremo e outro desse eixo encontramos o dialogismo e o plurilinguismo difusos em todos os

gêneros de ambos os estilos, em maior ou menor proporcionalidade.

Neste ponto, é cabível trazer ao lume a explanação de Tezza (2003, p. 277 – itálicos

do autor) sobre a relativização do discurso poético em relação ao dialogismo e ao

plurilinguismo:

O apagamento deliberado da dimensão dialógica da palavra, como Bakhtin queria demonstrar; o isolamento da voz poética, em todas as suas formas – gráfico, sintático, rítmico, semântico – é uma categoria essencial do estilo poético. O isolamento não é, em si, uma forma composicional, isto é, a dimensão poética não deriva de um conjunto classificável de formas, mas sim de uma atitude isolante diante do plurilinguismo que, no momento verbal poético, se atualiza por determinadas formas composicionais historicamente mutantes. O poeta, como tal, se afasta de todas as outras vozes, esvaziando-lhes a autonomia, a força, a presença concreta, para afirmar total e plenamente a própria voz. No limite último, a voz poética é necessariamente enfática, gestual, sonora, isolante, mais alta – ele exige o nosso silêncio. Consideremos dois aspectos. Primeiro, o fato de que a intuição dos poetas, ao definirem a poesia, não será mais tão disparatada quanto parecia; a poesia tem, de fato, na sua constituição genérica, o traço do isolamento ritual, religioso, unilateral, não-dialogizado – em suma, o traço irracional ou primitivo. Querer o contrário, isto é, renunciar à autoridade semântica centralizada, dialogizar a palavra, relativizar a própria voz, dirigir-se à abstração da razão, prosificar o ritmo, dar a palavra ao outro e ficar em silêncio – tudo isso seria simplesmente destruir a dimensão poética do texto e transformá-lo em prosa. Em algum grau – mas não totalmente, é claro – o modernismo brasileiro realizou cada um desses traços. O caso de Manuel Bandeira, em vários momentos, é verdadeiramente limítrofe. Transparece como que um poderoso chamado prosaico em seu verso, em que o impulso poético ao isolamento não consegue se completar; a voz do poeta renuncia à sua autoridade e ela mesma se objetifica sob um olhar, às vezes desde o título, como no “Madrigal tão engraçadinho” [...] Não se trata apenas de empregar registros populares e coloca-los diretamente a serviço do poeta, feito objetos, numa unificação mais ou menos impermeável, como em vários instantes de Oswald de Andrade; Manuel Bandeira frequentemente passa a palavra adiante e quase que se retira do texto, à margem, discreto, numa relação plurilíngüe de essência prosaica.

A partir das considerações de Tezza, deduz-se que a natureza “irracional” original da

poesia pressupõe uma forma arquitetônica autossuficiente, centrada na linguagem poética.

Uma espécie de linguagem mística, com os traços primitivos imanentes (ritualístico, religioso,

unilateral, não-dialogizado, etc.). Traços que tendem a isolar o discurso de quaisquer contatos

com outras linguagens. Contudo, a forma composicional exterior não está imune aos

processos de interações sociais e ideológicos das linguagens (plurilinguismo), que constituem

a força descentralizadora das línguas. Tal força em oposição à força centralizadora (discurso

poético), em processo dialético, é responsável pela mutação histórica das formas. As quais

tendem a adaptar-se à evolução do pensamento. Em síntese, a poesia tende a tornar-se prosa

ao ser englobada pela “língua” da racionalidade. Esse processo favorece o surgimento de

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poemas dialógicos. Da mesma forma que a prosa incorpora uma variedade de discursos

poéticos. Entretanto, não se concretiza a possibilidade de poemas polifônicos, porque nesse

processo de transformação a poesia perde a sua natureza original e se transforma, em última

instância, em prosa.59

Tezza refere-se, ainda, no trecho supracitado, ao procedimento estilístico de alguns

poetas modernistas brasileiros que tendem a romper com alguns paradigmas formais da

composição poética tradicional, tais como o verso, a rima e o metro. Ele analisa

superficialmente os poemas “Madrigal tão engraçadinho”, “Poema tirado de uma notícia de

jornal” e “Noturno da Rua da Lapa”, de Manuel Bandeira, e, de maneira mais acurada o

poema “Desaparecimento de Luisa Porto”, de Carlos Drummond de Andrade.

Transcreve-se um dos poemas analisados por Tezza que mais se aproxima de uma

forma prosaica como exemplo de dialogismo na poesia. “Noturno da Lapa”, Bandeira (2008,

p. 48):

A janela estava aberta. Para o quê, não sei, mas o que entrava era o vento dos lupanares, de mistura com o eco que se partia nas curvas cicloidais, e fragmentos do hino da bandeira.

Não posso atinar no que eu fazia: se meditava, se morria de espanto ou se vinha de muito longe.

Nesse momento (oh! por que precisamente nesse momento?...) é que penetrou no quarto o bicho que voava, o articulado implacável, implacável!

Compreendi desde logo não haver possibilidade nenhuma de evasão. Nascer de novo também não adiantava. – A bomba de flit! Pensei comigo, é um inseto!

Quando o jacto fumigatório partiu, nada mudou em mim; os sinos da recordação continuaram em silêncio; nenhuma porta se abriu nem fechou. Mas o monstruoso animal FICOU MAIOR. Senti que ele não morreria nunca mais, nem seria, conquanto não houvesse no aposento nenhum busto de Palas, nem na minh’alma, o que é pior, a recordação persistente de alguma extinta Lenora.

Não é nosso objetivo a análise do poema, mas apenas destacar alguns fatores que, na

essência, isolam o discurso poético, por mais que o poeta tente, conscientemente, subverter o

estatuto formal do estilo. Para tanto, partimos da análise de Tezza (2003, p. 279), segundo a

qual o poeta passa a palavra adiante quase se retirando do texto, permanecendo à margem,

discreto, numa relação plurilíngue de essência prosaica. Para ele, neste poema, nem mesmo o

59 Afirma PAZ (2003, p. 71-72) que o romance é uma épica que se volta contra si e que se renega de uma maneira tríplice: “como linguagem poética, consumida pela prosa; como criação de heróis e de mundos aos quais o humor e a análise torna ambíguos; e como canto, pois aquilo que sua palavra tende a consagrar e a exaltar converte-se em objeto de análise e no fim de contas em condenação sem apelo”.

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aspecto gráfico constitui um traço isolante. “Os elementos que nos indicam estar diante de

uma poesia são”:

Um modo metafórico, tênue, fugidio; a autoridade poética, ausente, ou no mínimo insegura, isola-se aqui e ali pelo léxico (‘lupanares’, ‘curvas cicloidais’), e se buscamos algum estranhamento (no caso apenas temático), uma prosaica bomba de flit se relaciona com ‘sinos’ da redenção’, e Palas e Atenas com um inseto kafkiano. Ressoa ao longo do texto apenas um resíduo poético (sempre lembrando que falamos do ‘poético em sentido estrito’), envolvendo uma narrativa prosaica que o leitor enfrenta com desconfiança (‘desconfiança prosaica’, bem entendido – o leitor sente que a voz que fala não pede a nossa adesão direta; é um objeto de uma outra voz).

As considerações que julgamos pertinentes sobre a análise de Tezza centram-se no

procedimento estilístico do poeta e nos traços distintivos dos estilos poético e romanesco

presentes no texto.

Tezza chama a atenção especialmente para o aspecto gráfico e o posicionamento

relativamente ausente do poeta, passando a palavra a um narrador em primeira pessoa. De

fato, estes são aspectos que revelam uma forte marca da composição prosaica. Devemos

notar, contudo, que esses aspectos não se sustentam inteiramente. No aspecto gráfico, por

exemplo, o poeta deixa um vestígio visual importante da forma poética, além da figura de

linguagem (hiperbólica): “Mas o animal monstruoso FICOU MAIOR”. Por outro lado o

narrador se mantém indefinido. Não sabemos bem quem é o narrador. Na verdade é a voz do

poeta que, no fundo, sustenta a narração ressoando em todos os parágrafos. Não só pelo

léxico, mas também pela sintaxe e pelos recursos próprios da poesia, tais como metáforas,

perífrases, repetição: “o vento dos lupanares, de mistura com o eco que se partia nas curvas

cicloidais”; “Não posso atinar no que eu fazia: se meditava, se morria de espanto ou se vinha

de muito longe”; “O bicho que voava, o articulado implacável, implacável!”; “Nascer de novo

também não adiantava”; “Quando o jacto fumigatório partiu, nada mudou em mim”. Destes

fragmentos retirados do poema, podemos também deduzir o principal traço distintivo entre a

poesia e a prosa, que é o ritmo. Intensamente marcado no poema de Bandeira.

O que podemos concluir neste ponto é que a diferença entre a prosa e a poesia

transcende a questão de o texto estar escrito em versos ou em linhas frasais contínuas. Assim

como transcende a existência dos traços formais acessórios, como a rima e o metro, mas

depende da linguagem imagética e, essencialmente, do ritmo.

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Corroborando o pensamento de Bakhtin60, quanto à propriedade determinante do ritmo

na preservação da integridade do discurso poético, é oportuna a seguinte abordagem de Paz

(2003, p. 11-12):

O ritmo não só é o elemento mais antigo e permanente da linguagem, como ainda não é difícil que seja anterior à própria fala. Em certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo, sem exclusão das formas mais abstratas ou didáticas da prosa. Como distinguir, então prosa e poema? Deste modo: o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo, não há poema; só com o mesmo, não há prosa. O ritmo é condição do poema, enquanto não é inessencial para a prosa. Pela violência da razão, as palavras se desprenderam do ritmo; essa violência racional sustenta a prosa, impedindo-a de cair na corrente da fala onde não regem as leis do discurso e sim as de atração e repulsão. Mas este desenraizamento nunca é total, porque então a linguagem se extinguiria. E com ela, o próprio pensamento. A linguagem, por inclinação natural, tende a ser ritmo. Como se obedecessem a uma misteriosa lei da gravidade, as palavras retornam à poesia. No fundo de toda prosa circula, mais ou menos rarefeita pelas exigências do discurso, a invisível corrente rítmica. E o pensamento na medida em que é linguagem, sofre o mesmo fascínio. Deixar o pensamento em liberdade, divagar, é regressar ao ritmo; as razões se transformam em correspondências, os silogismos em analogias e a marcha intelectual em fluir de imagens. O prosista busca a coerência e a claridade conceptual. Por isso resiste à corrente rítmica que, fatalmente, tende a manifestar-se em imagens e não em conceitos. A prosa é um gênero tardio, filho da desconfiança do pensamento ante as tendências naturais do idioma. A poesia pertence a todas as épocas: é a forma natural de expressão dos homens. Não há povos sem poesia, mas existem os que não têm prosa. Portanto, pode-se dizer que a prosa não é uma forma de expressão inerente à sociedade, enquanto que inconcebível a existência de uma sociedade sem canções, mitos ou outras expressões poéticas. A poesia ignora o progresso ou a evolução e suas origens e seu fim se confundem com os da linguagem.

Alguns pontos da abordagem de Paz devem ser destacados pela intercessão à

concepção de Bakhtin sobre a poesia e a prosa. Tais pontos podem ser definidos como: a

imanência do ritmo à linguagem poética e esta como meio original de expressão inerente à

sociedade; a violência da razão como sustentáculo da linguagem prosaica; a prosa como

gênero tardio, filho da desconfiança do pensamento diante das tendências naturais do idioma;

e a poesia como pertencente a todas as épocas, ignorando o progresso em oposição à prosa

que pertence atualidade pela sua natureza crítica e analítica. Essas concepções encontram

respaldo na dialética do esclarecimento de Adorno (2006, p. 17) o qual afirma: “No sentido

amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de

livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente

esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”.

60 Bakhtin (2002b, p. 104): “O próprio ritmo dos gêneros poéticos não favorece qualquer estratificação substancial da palavra”.

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O exame do poema prosaico de Bandeira, do ponto de vista dialógico, demonstra

concretamente a possibilidade da presença de elementos próprios da prosa romanesca na

poesia. Este fenômeno torna-se mais frequente a partir da poesia modernista. Especialmente

com o advento do verso livre, que flexibiliza a fronteira impermeável do discurso poético,

facilitando a penetração de vozes e linguagens alheias na poesia sem convertê-la inteiramente

em prosa. O ritmo imanente à natureza poética, no entanto, mantém-se como um fator de

isolamento da linguagem, irredutível ao processo polifônico.

Bakhtin não descarta a possibilidade de se encontrar elementos de polifonia em obras

poéticas, mesmo em tempos anteriores a Dostoiévski. O que ele, no entanto, assegura é a

impossibilidade de obras polifônicas anteriores, em razão da ausência de condições históricas

necessárias para o surgimento de tal forma como gênero narrativo.61 Por essa razão, embora

teoricamente não se possam encontrar obras polifônicas anteriores às de Dostoiévski, é

indiscutível a existência de elementos polifônicos que serviram à preparação das condições

históricas para o surgimento de suas obras. Bakhtin (2002a, p. 34), comentando a tese de

Lunatcharsky que considera Shakespeare e Balzac como precursores de Dostoiévski, afirma:

Achamos que Lunatcharsky tem razão no sentido de que é possível observar alguns elementos ou embriões de polifonia nos dramas shakespeareanos. Ao lado de Rabelais, Cervantes, Grimmelshausen e outros, Shakespeare pertence àquela linha de desenvolvimento da literatura europeia na qual amadureceram os embriões da polifonia e que, neste sentido, foi coroada por Dostoiévski.

Ao considerar poetas e prosadores, destacando Shakespeare (poeta), como possíveis

portadores de um estilo polifônico embrionário, Bakhtin confirma a não exclusão da poesia de

seu universo teórico relativo à polifonia. O gênero romance polifônico, como prefere o teórico

denominar, foi preparado, segundo sua concepção, numa linha genealógica que engloba tanto

a poesia quanto a prosa. Cabe ressaltar, no entanto, que a poesia que penetrou no romance em

suas origens fora aquela representativa das classes inferiores das sociedades, as quais já

possuíam em suas estruturas os elementos da linguagem prosaica, mormente, a crítica satírica

e parodística.

61 Conclui Bakhtin (2002a, p. 37): “As novas formas de visão artística são preparadas lentamente, pelos séculos; uma época cria as condições ideais para o amadurecimento definitivo e a realização de uma nova forma”.

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1.4 SÍNTESE TEÓRICO-METODOLÓGICA

Nesta primeira parte do trabalho, procuramos apresentar um panorama do universo

teórico de Bakhtin, deduzindo-se as concepções fundamentais da teoria do método polifônico.

Tanto em seus princípios filosóficos da linguagem, quanto nos princípios artístico-literários.

Com este objetivo, tivemos de recorrer aos seus diversos escritos traduzidos para o português,

embora dedicando maior atenção ao estudo sobre a poética de Dostoiésvki, que é o referencial

teórico primordial do nosso trabalho.

Inicialmente, é importante ressaltar a essencialidade dos fenômenos metalinguísticos

que procuramos conceituar, a partir do complexo da obra do teórico: dialogismo e

plurilinguismo. Esses dois fenômenos constituem os princípios básicos da polifonia.

Entendemos que o dialogismo e o plurilinguismo associam-se na constituição do discurso

polifônico. A não ocorrência desses fenômenos associados inviabiliza a polifonia, ainda que

presente o dialogismo por sua imanência à linguagem e ao próprio pensamento. Em outras

palavras, o discurso polifônico é fruto do dialogismo em mais elevado grau e o dialogismo,

embora seja uma categoria estético-filosófica presente em menor ou maior proporção em todo

discurso, intensifica-se pelo plurilinguismo. Destarte, o dialogismo em mais elevado grau é

plurilinguístico e plurivocal, ou polifônico.

Os termos dialogismo, plurilinguismo e polifonia são, quase sempre, concebidos como

sinônimos. Depreende-se, entretanto, dos conceitos formulados a partir das concepções

filosóficas e estético-literárias de Bakhtin, que tais categorias não se confundem, em sentido

estrito. Embora, em sentido amplo, possam ser empregadas e compreendidas como

sinônimos. De qualquer modo, é importante destacar as nuanças que os distinguem, em

essência, para a correta compreensão da atividade artístico-literária que resulta na produção de

um texto polifônico. Tais distinções, embora sutis, são ressaltadas pelo próprio Bakhtin, às

vezes explicitamente, noutras deixadas a se entrever nas explicações de ordem conceitual.

Por fim, foram verificadas as possibilidades concretas de se aplicar o método

polifônico ao estudo da poesia, a partir da distinção estabelecida por Bakhtin entre os estilos

literários poesia e prosa, corroborada pelo estudo de Tezza, Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin

e os Formalistas Russsos, no qual o autor analisa alguns poemas líricos, de um ponto do

dialogismo. Conclui-se pela pertinência do emprego da metodologia proposta para a leitura

analítica d’Os Lusíadas focada no aspecto polifônico, em especial, pela multiplicidade de

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enunciações e pelo vigor das personagens que confrontam o discurso do herói e contradizem

as posições ideológicas centralizadas no plano épico. Leitura que será procedida na segunda

parte do trabalho.

Não se comprovou, no entanto, a possibilidade de o discurso poético interagir com

outras linguagens e outras vozes ao ponto de se tornar polifônico. Mesmo considerando

poemas mais modernos como os de Manuel Bandeira e de Drummond analisados por Tezza,

em razão da natureza essencialmente monológica da poesia, enquanto linguagem que aspira à

originalidade da palavra e à sublimação do significado do mundo que representa. Prevalece,

portanto, a tese de Bakhtin, segundo a qual a poesia, em sentido estrito, ao interagir com

outros discursos, ou os torna objeto do discurso do poeta ou se torna prosa.

Conclui-se que, embora seja possível a presença de dialogismo em algum grau na

poesia, independente do gênero, ela não alcançará o polifonismo, sem que se torne prosa,

especialmente romance, uma vez que a polifonia, de acordo com Bakhtin, pressupõe relações

dialógicas em todos os elementos da estrutura narrativa.

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SEGUNDA PARTE – O ASPECTO POLIFÔNICO D’OS LUSÍADAS

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Dai-me hüa fúria grande e sonorosa, E não de agreste avena ou frauta ruda, Mas de tuba canora e belicosa, Que o peito acende e a cor ao gesto muda; [...]

(OS Lusíadas, Canto I, 5, v. 1-4 )

2. OS LUSÍADAS E A POLIFONIA: distanciamento e aproximação

Nos versos em epígrafe, os quais fazem parte da invocação às musas no início do

poema, tem-se o prenúncio da grandiloquência de estilo em que Camões deseja expressar a

sua arte. Verifica-se também a conotação do empenho do corpo na expressão verbal como se

fosse ele, de fato, cantar e não escrever. O que sugere o englobamento da literatura pela

performance teorizada por Zumthor em sua tese Performance, percepção e leitura.62

A relação entre o cantar (oralidade) e o escrever (escrita), cuja dicotomia é abstraída

tanto por Zumthor quanto por Bakhtin63, coloca Camões na vanguarda dos poetas que

transpõem a barreira da literatura medieval (predominantemente oral) para a renascentista,

carreando elementos da tradição para a modernidade. Tal transposição se reflete em diversas

dimensões: na linguagem, da língua arcaica para o português culto (moderno); nos ideais de

representação voltados para a reflexão sobre posicionamento do indivíduo no mundo; na

originalidade do estilo artístico e na forma de narrativa. Caracteriza-se pela substituição das

velhas métricas do Cancioneiro popular de Rezende pela medida nova advinda da Itália por

intermédio de Sá de Miranda64. Nas palavras de Verdelho (1984, p. 736):

62 “A leitura literária não para de trapacear a leitura. Ao ato de ler integra-se um desejo de restabelecer a unidade da performance, essa unidade perdida para nós, de restituir a plenitude – por um exercício pessoal, a postura, o ritmo respiratório, pela imaginação. Esse esforço espontâneo, em vista da reconstituição da unidade, é inseparável da procura do prazer. Inscrita na atividade da leitura não menos que na audição poética, essa procura se identifica aqui com o pesar de uma separação que não está na natureza das coisas mas provém de um artifício. A performance é o ato de presença no mundo e em si mesmo” ZUMTHOR, p. 78 - 79). 63 Para Zumthor (2000, p. 81-82), a diferença entre um texto poético escrito e um texto transmitido oralmente reside somente na intensidade da presença. Na transmissão oral, a presença corporal do ouvinte e do intérprete é presença plena, carregada de poderes sensoriais, simultaneamente em vigília. Na leitura subsiste uma presença invisível, que é manifestação de um outro. Tão forte ao ponto de nos fazer comprometer o conjunto de nossas energias corporais na adesão a essa voz que nos é dirigida por meio da escritura. Bakhtin (2002b, p. 59), por sua vez, afirma: “[...] durante a leitura ou a audição de uma obra poética, eu não permaneço no exterior de mim, como o enunciado de outrem, que é preciso apenas ouvir e cujo enunciado prático ou cognitivo é preciso apenas compreender; mas numa certa medida, eu faço dele meu próprio enunciado acerca de outrem, domino o ritmo, a entonação, a tensão articulatória, a gesticulação interior (criadora do movimento) da narração, a atividade figurativa da metáfora, etc.” 64 “[...] cremos ter sido necessária a estada de Miranda na Itália, de 1521 a 1524 ou 26, para que triunfasse plenamente entre nós a tendência italianizante, que é clara alvorada com Bernardim Ribeiro, que leu Boccacio e fez, como Petrarca, dialectica amorosa – bem menos ingênua do que tem sido. Quando Camões começou a

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[...] É neste cruzamento que se situa Camões, no cruzamento do cultivo tradicional da memória e do texto vocalizado, como técnica do transporte e da armazenagem da palavra, silenciada e individualizada pela imprensa. Camões viveu este confronto entre a poesia feita de voz e a poesia feita de palavras.

A referência de Verdelho à memória e à voz como “técnica de transporte e

armazenagem da palavra” nos remete, naturalmente, à presença da oralidade na obra escrita

de Camões, pelo cultivo da tradição. Neste particular, observa-se que o poeta não despreza a

tradição65, pautando a sua poética pelo princípio do estudo (conhecimento teórico) e também

da experiência como fontes de sabedoria: “Nem me falta na vida honesto estudo/Com longa

esperiência misturado/Nem engenho, que aqui vereis presente/Cousas que juntas se acham

raramente (X, 154, v. 4-8)”. No tocante à língua, a obra lírica de Camões está penetrada pelo

espírito da linguagem medieval e pelo plurilinguismo herdado a partir das invasões bárbaras à

Península Ibérica, refletidos na língua galaico-portuguesa e na língua castelhana dominantes

nas trovas populares e nas novelas de cavalaria. Camões canta em sua lírica da mais simples

“Leonor”66 que “descalça vai à fonte” à mais nobre “Natersia” (D. Catarina de Ataíde)67 dos

saraus palacianos. Verseja em redondilhas (medidas velhas), em sonetos, odes, canções e

églogas (medidas novas).

Os Lusíadas, entretanto, embora guardem o espírito da tradição no conteúdo, de ideal

heroico cavaleiresco, na língua assume uma purificação fundamentada nos cânones latinos:

“E na língua, na qual quando imagina/Com pouca corrupção crê que é Latina (I, 33, v.7-8)”.

Afastam-se, com isto, da influência castelhana que dominou mais fortemente a literatura

precedente, representada especialmente pela obra de Gil Vicente. Na expressividade das

oitavas, em versos alexandrinos heroicos e sáficos, n’Os Lusíadas, ouve-se a marcialidade do

trotar dos cavalos nas batalhas históricas de Ourique, Salado e Aljubarrota, as mais notáveis poetar, eram os grandes mestres da poesia portuguesa Bernardim Ribeiro, a quem se refere numa das cartas, e Sá de Miranda” (CIDADE, 1984, p. 121). 65 Conforme Saraiva (1996, p. 36); “[...] Podemos concluir desta breve análise que a linguagem d’Os Lusíadas é um combinação original da língua culta latinizante com a língua tradicional, oral”. 66 “Descalça vai pera fonte/Lianor, pela verdura/Vai fermosa e não segura”. Esse mote faz parte de uma das redondilhas pelas quais Camões recupera em sua lírica o tema e os traços estéticos das cantigas de amigo da época provençal. – Retirado do livro Soneto de Camões, de Torralvo e Minchilho (Org.), (2001, p.164). 67 Natercia é anagrama de Caterina, dama da corte, cantada na lírica de Camões. Cidade (1984, p. 48) afirma: “[...] É como, se sabe o anagrama sob que se tem sentido oculta D. Catarina de Ataíde, a dama com a qual mais a tradição do que a história tem tecido a intriga amorosa que determinou desterros do poeta”. Um dos sonetos em que aparece a referência à dama “Na metade do Céu subido ardia”: [...] quando Liso pastor, num campo verde/Natércia, crua Ninfa/com mil suspiros tristes que derrama:/Por que te vás de quem por ti se perde/para quem pouco te ama/(suspirava)/[E] o Eco lhe responde: Pouco te ama”. Tercetos recolhidos de Sonetos, Camões (1990).

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dentre tantas outras. Também o lirismo no alarido das mães e esposas a se despedirem de seus

marinheiros (heróis) no ritual do embarque na esquadra de Vasco da Gama, na praia do

Restelo. Veem-se e sentem-se as imagens do choro de Maria, de Inês, e de Adamastor e

Vênus e de Baco. Pelas marcas de oralidade, ouve-se também o burburinho dos marinheiros

nas fainas dos conveses sob os gritos do mestre: “Amaina68, (disse o mestre a grandes

brados),/Amaina (disse), amaina a grande vela!” (VI, 71, v. 3-4). O idílio no sussurrar das

ninfas enamoradas na Ilha dos Amores. A galhofa dos marinheiros a zombarem do

companheiro Veloso despencando morro abaixo enxotado pelos inóspitos nativos africanos:

Disse então a Veloso um companheiro (Começando todos a sorrir): “Oula, Veloso amigo, aquele outeiro É melhor descer que de subir.” “Si, é (responde o ousado aventureiro); Mas, quando eu pera cá vi tantos vir Daqueles Cães, depressa um pouco vim, Por me lembrar que estáveis cá sem mim.” (Canto V, 35)

Esta passagem envolvendo o marinheiro Veloso é de grande significação para o estudo

do aspecto polifônico d’Os Lusíadas. A presença do riso no texto épico é uma prova

incontestável da contaminação do gênero. Ou seja, é um indício da mixagem dos gêneros

superiores e inferiores.69 Ressalte-se que toda a análise de Bakhtin sobre a evolução do

romance polifônico aponta para o riso como o elemento fundamental de sua gênese, sob a

influência da cosmovisão carnavalesca e parodística, cuja função é o destronamento do

discurso literário oficial (dominante)70.

Por esta razão, além de outras apresentadas, tais como a presença dos vários

narradores e as intervenções diretas do poeta, podemos ler Os Lusíadas na contemporaneidade

e extrair deles, com o mesmo interesse despertado em Bakhtin pelas obras de Dostoiévski, os

68 Colher ou arriar velas (terminologia marinheira). 69 “Na época do Renascimento – época da carnavalização profunda e quase total de toda a literatura e da visão de mundo – a menipeia se introduz em todos os grandes gêneros da época [...]” (BAKHTIN, 2002a, p.136). 70 - “É justamente o riso que destrói a distância épica e, em geral, qualquer hierarquia de afastamento axiológico. Um objeto não pode ser cômico numa imagem distante; é imprescindível aproximá-lo, para que se torne cômico; todo cômico é próximo [...]. O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo, coloca-o em contato familiar e, com isto prepara-o para uma investigação absolutamente livre. (BAKHTIN, 2002a, p. 413-414).

- “A ironia e o humor são a grande invenção do espírito moderno” (PAZ, 2003, p. 71).

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traços estilísticos que os tornam uma obra singular que fortalece a arte da linguagem literária,

tendo o discurso como o objeto central do estudo procedido.

A singularidade de Camões está na elaboração de uma narrativa composicionalmente

épica, mas que ao mesmo tempo engloba vários discursos líricos desviantes. Tais discursos

ressaltam a multiplicidade de planos do poema (característica da prosa romanesca) sem,

contudo, prejudicar o encadeamento lógico-formal da epopeia, resultando no acabamento

monológico convencional do gênero. Neste aspecto, Os Lusíadas são uma obra monológica,

mas que deixam transparecer traços de dialogismo e de plurilinguismo essenciais ao

fenômeno polifônico. Outro aspecto relevante da poética camoniana é o procedimento relativo

à composição das personagens. As personagens-narradoras secundárias de Camões são, na

maioria, criações discursivas ou retóricas, as quais assumem, no discurso, características

humanas ou mitológicas, tais como o Velho do Restelo, Adamastor, Veloso e Leonardo. Além

da adoção daquelas personagens consagradas pela mitologia greco-romana, tais como Júpiter,

Marte, Baco, Netuno e Vênus.

A caracterização das personagens parece importar para Camões apenas no sentido

alegórico da contenda entre o mito e o humano, entre a inocência e o esclarecimento.

Nenhuma personagem atuante no poema tem uma história individual. Identificam-se por duas

categorias genéricas, homens e divindades. Todas as intrigas são engendradas por meio de

discursos que refletem a posição instável do homem diante do progresso avassalador que

antes de qualquer coisa destrói os mitos e as crenças.71 O peso valorativo recai justamente

sobre a expressão da consciência dessas personagens a respeito do que se passa em seus

universos circundantes. Como suas existências são afetadas pelo progresso científico, político,

social, cultural e religioso e como reagem, posicionando-se axiologicamente por meio de seus 71 Conforme a concepção de Adorno (2006, p. 17 e 21, itálicos do autor) sobre o conceito de esclarecimento: “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. [...] O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a realidade daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele”.

- Paz (2003, p. 66) afirma que o homem moderno serve-se da técnica como seu antepassado das fórmulas mágicas. Acontece que, ao contrário das fórmulas mágicas, a técnica não lhe abre porta alguma, mas fecha-lhes toda possibilidade de contato com a natureza e com os seus semelhantes: a natureza converteu-se em um complexo sistema de relações causais no qual as qualidades desaparecem e se transformam em puras quantidades; e seus semelhantes deixaram de ser pessoas e são utensílios, instrumentos. Esta é uma constatação do crítico que enxergamos também n’Os Lusíadas como antevisão do poeta. Razão de sua dor crônica, que não era só dele, mas de todo poeta maneirista, cujas obras são marcadas pela contradição profunda do gosto de ser triste. Condição anunciada da humanidade alienada no futuro das sociedades de consumo.

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discursos. Surgem, assim, n’Os Lusíadas, em terceiro plano, os juízos de valor, as críticas, as

invectivas, as polêmicas ideológicas veladas e as confissões, cuja forma de apresentação

(multiplanar) e a natureza semântica dos enunciados reduzem o distanciamento épico e

aproximam a narrativa dos acontecimentos contemporâneos à sua enunciação. Colocam-nos,

assim, paradoxalmente, diante de um dos pressupostos do romance. Na concepção de Bakhtin

(2002b, p. 75): “O romance se formou precisamente no processo de destruição da distância

épica, no processo da familiarização cômica da representação artística no nível de uma

realidade atual, inacabada e fluida”.

Não obstante os desvios líricos e os indícios de dialogismo e de plurilinguismo, a

proeminência dos elementos estruturais da narrativa épica, mormente o discurso poético

preponderantemente objetificado, e a essência do conteúdo também predominantemente épico

afasta quaisquer possibilidades de considerar Os Lusíadas uma obra polifônica e este não é o

propósito do trabalho. Os pressupostos artístico-literários da polifonia descartam a hipótese de

uma obra poética, ainda que seja uma narrativa, alcançar o grau de dialogismo que possa

caracterizá-la como polifônica, em razão da tendência do discurso poético ao monologismo e

também do contexto histórico da obra, desfavorável ao processo polifônico.

Bakhtin (2002a, p. 31) considera impossível desprezar-se a historicidade no estudo das

formas literárias. Por conseguinte, para ele, a polifonia somente seria possível a partir do

realismo representado, neste estilo, por Dostoiévski que é o criador da polifonia.

De acordo com a concepção do determinismo das condições históricas, Dostoiévski

encontrou a contradição e a multiplicidade de planos na realidade de sua época e foi capaz de

percebê-los no universo social objetivo. Ambiente no qual, ainda segundo Bakhtin (2002a, p.

27), os planos não são etapas, mas estâncias, e as relações contraditórias entre eles não são um

caminho ascendente ou descendente do indivíduo, mas um estado sincrônico da sociedade. A

multiplicidade de planos e o caráter contraditório da realidade social eram dados como fatos

objetivos da época. Conclui-se, pois, que a capacidade do autor em captar a diversidade de

processos interativos concomitantes, em elaboração naquelas condições históricas peculiares

ao seu tempo, tornou possível o surgimento do romance polifônico como ressonância de

múltiplos diálogos.

Para submeterem-se, portanto, Os Lusíadas ao exame polifônico se deve partir do

pressuposto de que se vislumbram em sua forma arquitetônica elementos que podem ser

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considerados traços polifônicos. E neste sentido, apenas, buscar no texto a identificação

desses elementos e suas possíveis ligações com as estéticas que deram origem ao romance

polifônico. Para tanto, torna-se imprescindível uma abordagem, ainda que superficial, sobre

gênero e forma de composição narrativa: qual a relação entre a epopeia e o romance e quais as

linhas genealógicas a qual pertencem? Onde se cruzam os fatores históricos que condicionam

um e outro? É necessário considerar também a relação entre os autores e seus respectivos

contextos sociais e individuais, assim como a distância no tempo e no espaço geográfico de

seus contextos de recepção imediata. Bakhtin (2002a, p. 159) destaca a importância de

conhecimento dessa natureza no estudo das relações de influência de gêneros sobre uma

determinada obra, afirmando: “Quanto mais pleno e concreto for o nosso conhecimento das

relações de gênero em um artista, tanto mais a fundo poderemos penetrar nas particularidades

de sua forma do gênero e compreender mais corretamente a relação de reciprocidade entre a

tradição e a novidade nessa forma”.

Na perspectiva histórica em que se desenvolveram as formas narrativas que

convergiram no romance, podemos encaixar com justa medida a arte de Camões empregada

n’Os Lusíadas para considerar esta obra como geradora de forma, pela sua originalidade.

Camões foi um homem de fronteira, que viveu e escreveu no limiar das mais

profundas transformações da humanidade e soube auscultar e interpretar os rumores do porvir.

Bakhtin (2002a) nos fala da Renascença como o limiar do pensamento voltado para o homem

como centro do mundo. Nesse contexto, Camões transpôs para a sua obra o caos estabelecido

na transição do medievalismo para a modernidade72. Momento no qual se operou grande

turbulência, pela contradição entre a sujeição do homem ao império da brutalidade, da

servidão, da fome, da peste, da superstição e do fanatismo religioso e o desenvolvimento do

pensamento humano como prenúncio de libertação. Desenvolvimento esse representado, em

suma, pela revolução no conhecimento do cosmo promovida por Copérnico, com a publicação

de De revolutionibius orbes celestium, em 1543, que altera a ordem planetária; pela cisão da

72 Modernidade que começa a se preparar com o movimento humanista-renascentista, a partir do final do século XV, consagrando-se a partir do Iluminismo, no século XVIII. De acordo com Hall (2003, p. 25 – itálicos do autor): “As transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas. Antes se acreditava que essas eram divinamente estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais. O status, a classificação e a posição de uma pessoa na ‘grande cadeia do ser’ – a ordem secular e divina das coisas – predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um individuo soberano. O nascimento do ‘indivíduo soberano’, entre o Humanismo Renascentista do século XV e o Iluminismo do século VIII, representou uma ruptura importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que colocou todo o sistema social da ‘modernidade’ em movimento”.

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Igreja Católica com a Reforma protestante de Lutero em 1518; e pela chegada dos europeus

aos continentes até então a eles inacessíveis. Fator que altera radicalmente o eixo econômico-

mercantilista do mundo centralizado na Itália73.

Esses eventos de ordem mundial geram novas concepções no plano das ideias, fazendo

florescer novas formas nas artes em geral (inclusive literária) e na filosofia, primordialmente

sob a influência do Humanismo-Renascentista. Ocorre que a euforia do Renascimento não

tardou a arrastar o homem para uma crise diante do esfacelamento dos valores humanistas nos

quais ancoravam seus ideais de existência.

Camões vive a efervescência dessas transformações e escreve Os Lusíadas no auge da

Contra-Reforma, cuja reação ideológica da Igreja, castradora e sanguinária, na tentativa de

restabelecer os dogmas do catolicismo, ceifa importantes obras e vidas humanas, de modo

torpe, por motivos fúteis, em nome de Deus e em meio à corrupção de papas e bispos.

Momento de flagrante instabilidade dos valores espirituais, morais e culturais que se reflete

nas obras de arte através de estilos individualizados. Estilos que se firmam como estética de

representação do sentimento coletivo, à medida que o artista transpõe para o objeto de sua

criação a visão da realidade como uma síntese do pensamento elaborado na conjugação do

ideal e da experiência. No entendimento de Sena (1980, p. 47), esse procedimento traduz-se

como "a dialética da fluidez e da firmeza do traço nas artes plásticas, e a dialética do espírito

em perseguição de si próprio, nas letras".

Focando "a dialética do espírito em perseguição de si próprio", na expressão de Jorge

de Sena, como um procedimento típico do Maneirismo literário74, tem-se a base para afirmar

que germinaram n'Os Lusíadas sementes de novas formas literárias que vieram a florescer na

73 Conforme Manchester (2004, p. 313) “Os portugueses finalmente haviam encontrado um novo caminho para a Índia, um caminho livre de baldeações caras e dos pedágios cobrados nas antigas rotas vindas do Egito, da Arábia e da Pérsia via Itália. Durante mais de um século, as consequências econômicas dessa revolução comercial – pois é disso que se tratava – foram mais espetaculares do que as descobertas de Colombo e de seus sucessores no que começava a ser conhecido como Novo Mundo”. 74 Conforme Silva (1971, p. 38) “Com efeito, este filão petrarquista do maneirismo literário europeu representa um elemento anticlássico, de raiz medieval, equivalente aos factores goticizantes que se observam na pintura maneirista; representa um elemento áulico, elegante e artificioso, que está em íntima conexão com as figuras estilizadas, esbeltas e frias da pintura de um Parmigianino, de um Bronzino e da escola de Fontaibleau; constitui uma manifestação de intelectualismo, de sutileza cerebralista e anti-realista, característica que os historiadores da arte atribuem, sem discrepâncias, à pintura maneirista; e, finalmente, este filão petrarquista, pelo seu pendor espiritualizante, pelas suas ligações com o neoplatonismo, pelo teor de alguns dos seus elementos psicológicos – o taeddium vitae, o senso da labilidade das coisas terrenas e humanas, angústia da ausência, o desejo e o terror da morte – facilmente se conjugou com o pessimismo, desengano e o ascetismo de raiz contra-reformista”.

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modernidade, tendo como tônica a reflexão dos paradoxos interiores do ser humano

desiludido e amargurado pela consciência de sua insegurança num mundo sem deuses75.

Camões exercitou essa reflexão, de modo persistente e sistemático, criando, através da

originalidade estilística, as condições elementares para as formas que se projetaram na

modernidade consagrando o romance como um novo gênero narrativo representativo das

relações sociais na nova ordem mundial (política, cultural e religiosa)76. É oportuno evocar-se

o pensamento de Matos (1980, p. 32) acerca do estilo épico inovador do poeta. Afirma ela:

"Camões enuncia através desse modelo a encruzilhada histórica em que se encontra, com as

suas contradições de mentalidade e de valores, com as diferentes formas de encarar e de sentir

o mundo que nela se debatem". Esta afirmação corrobora a hipótese da presença de traços

polifônicos n'Os Lusíadas, especialmente nos excursos. Nesses espaços discursivos se reflete

a contradição de mentalidade e de valores aludida por Matos. Tal contradição retratada na

obra torna difícil concluir se a real intenção do poeta é exaltar os feitos pátrios que, à sua

época, já não se julgam tão gloriosos, ou os exalta para fomentar uma dialética que destrona o

ideal épico, em evidente contraposição ao sistema de valores e às formas de representação do

Renascimento. Como a engendrar uma paródia de seu próprio texto. Neste sentido, observa,

ainda, Matos (1980, p. 39): "Somos levados a perguntar se, afinal de contas, Os Lusíadas são

um poema de satisfação e de vitória, ou de decepção e de descrença".

Numa perspectiva de ruptura com os valores estéticos efêmeros cultuados no

Renascimento, sinalizada por Jorge de Sena e por Maria Vitalina Leal de Matos, é possível

efetuar-se uma análise d’Os Lusíadas levando em conta os pressupostos da polifonia

apresentados na primeira parte deste estudo. A partir desses pressupostos, examinaremos

aqueles discursos que se destacam pela ambiguidade e aparente duplicidade de vozes

75 Conforme Paz (2003, p. 108): “[...] ao extirpar a noção de divindade o racionalismo reduz o homem. Nos liberta de Deus, mas nos encerra em um sistema ainda mais férreo. A imaginação humilhada se vinga e do cadáver de Deus brotam fetiches atrozes: na Rússia e em outros países, a divinização do chefe, o culto à letra das escrituras, a deificação do partido; entre nós a idolatria do próprio eu”. 76 Conforme Lukács (1962? p. 117): “Assim o primeiro grande romance da literatura universal levanta-se no limiar do período em que Deus cristão ameaça desamparar o mundo, em que o homem se torna solitário e só pode encontrar na sua alma, que não descobre Pátria em nenhuma parte, o sentido e a substância em que o mundo, separado da sua paradoxal ancoragem no além actualmente presente, está de ora em diante entregue à imanência do seu próprio não-senso. [...] O tempo em que viveu Cervantes foi aquele que assistiu à última floração de uma grande mística desesperada, ao esforço fanático de uma religião em via de naufragar para se renovar pelas suas próprias forças; o tempo em que viu desenvolver-se um novo conhecimento do mundo, sob formas místicas; a última época das aspirações ocultas, realmente vividas, mas já privadas do seu fim, simultaneamente curiosas e capciosas. Esse tempo é o do demonismo em liberdade, da grande confusão de valores dentro de um sistema axiológico ainda subsistente”.

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relativamente independentes e autônomas, como uma espécie de contracanto a romper o

paradigma épico. Gênero esse que, ao tempo de Camões, já se encontra inadequado (na forma

tradicional) à representação literária do mundo, pela ausência das condições históricas e das

vertentes vitais imanentes ao mundo épico que o nutriram na antiguidade remota.

Em princípio, é preciso compreender que o desmoronamento do mundo grego antigo

e, posteriormente, a queda do Império Romano ensejaram o encerramento do ciclo literário

épico clássico. O processo de esclarecimento do homem através da evolução cultural, iniciado

já ao tempo de Homero como se pode depreender da Odisseia, pela simbologia da viagem e

pelas astúcias de Ulisses ao ludibriar o mito para fugir às determinações do destino, termina

por separar o universo em dois mundos: o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Em

outras palavras, o sagrado se desvincula do humano. Uma das consequências diretas e

determinante desta separação foi a humanização total do herói em detrimento do poder

indiscutível do mito e da fatalidade do destino (fado). Sendo assim, não se pode conceber, a

priori, o surgimento de epopeias puras já a partir da antiguidade clássica tardia77. As obras

épicas criadas no mundo desvinculado dos deuses são, na realidade, imitações estilizadas

daquelas originais que se tornaram arquétipos, a Ilíada e a Odisséia. Estas, elaboradas nas

origens dos tempos do homem na Terra (pré-história) e contadas por Homero como memórias

coletivas de um passado remoto, constituem a presunção indiscutível da verdadeira imitação

da realidade (mimesis) à qual se refere Aristóteles em seu tratado filosófico sobre a poética.

Para Bakhtin (2002b), nós já encontramos a epopeia, não só como algo criado há

muito tempo, mas também como um gênero profundamente envelhecido, cujo estudo deve ser

análogo ao estudado das línguas mortas. Antes de Bakhtin, já afirmara Lukács (1962? p. 29),

ao formular a teoria do romance: “Se Homero, cujos poemas constituem, falando com

exatidão, a única epopéia, se mantém inigualável, é unicamente porque encontrou a resposta

antes de a evolução histórica do espírito permitir formular a pergunta”.

Encontrar a resposta antes de ser capaz de formular a pergunta como afirmou Lukács

significa dizer que não havia questionamento, não se “cogitava”, no sentido etimológico da

palavra. Invertendo a máxima de Descarte, “cogito ergo sum” (penso, logo existo), tem-se:

non cogito ergo non sum (não penso, logo não existo). De fato, não havia consciência de uma

existência isolada, individual e interior, dotada de um espírito capaz para o pensamento 77 Consideramos Virgílio nesse contexto de antiguidade clássica tardia (transição entre a antiguidade e a Era Cristã).

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reflexivo. O homem vivia integrado à totalidade do mundo. Ele não tinha problemas, mas

somente soluções. A resposta, portanto, articulada nas epopeias de Homero são já um tipo de

antecipação de réplica, só que num diálogo civilizatório de imensa temporalidade. Na viagem

de Ulisses já se encontram as respostas às indagações do homem científico e econômico.78

Homero nos fala de um tempo primitivo de muito antes dele, tempo da inocência79, em que o

mito e o acaso justificavam o destino de todas as coisas. Mas ele já engendrava uma

pedagogia que preparava o homem para processo civilizatório ascendente inexorável. No

momento em que o homem é despertado para a necessidade de conhecimento

problematizador, destrói-se a imanência do mundo épico (a totalidade) e o mito converte-se

em esclarecimento, destruindo-se a fonte primordial da epopeia.

Staiger (1997, p. 112), examinando os conceitos fundamentais da poética, afirma:

Não conhecemos precursores de Homero. É para nós o mais antigo poeta da comunidade linguística europeia e é o representante de todos aqueles que de algum modo deixaram vestígios em suas duas epopéias. Se considerarmos a tradição como um elo entre os povos europeus, Homero pode ser considerado o pai da Europa. Se a tradição liga os povos europeus, Homero é também o único poeta em quem a essência do épico ainda aparece até certo ponto pura. O épico puro mais tarde torna-se impossível, pelo simples motivo de que a Ilíada, a Odisséia e todo ciclo de poesias épicas são já então conhecidos e se tornam por seu lado matéria para uma nova atividade criativa. [...] Assim como o homem adulto não pode novamente tornar-se criança, assim também a humanidade não pode em tradição indissolúvel, voltar ao plano do épico e satisfazer-se com o simples registro de fatos, depois que se começou o relacionamento lógico, e a subordinação das partes. E isto se torna uma realidade irrevogável assim que se consegue uma certa etapa conclusiva, e, portanto, numa visão geral, a escrita exige também novos prismas para a observação dos fatos. Assim, Homero representa ao mesmo tempo o fim do mundo épico e do mudo oral.

De acordo com a visão de Staiger, consonante com as de Lukács e de Bakhtin, há uma

completa extinção das possibilidades de criação de novas epopeias depois de Homero. Por

outro lado, considerando o processo dialético de evolução histórica do universo,

essencialmente da vida e do pensamento, pelo qual tudo se degenera e se regenera em ciclos

contínuos e eternos, a extinção das condições épicas do mundo ocorre justamente pelo

78 Conforme Adorno (2006, p. 40): “Assim a fruição artística e o trabalho manual já se separam na despedida do mundo pré-histórico. A epopeia já contém a teoria correta. O patrimônio cultural está em correlação com o trabalho comandado, e ambos se baseiam na inescapável compulsão à dominação social da natureza. As medidas tomadas por Ulisses quando seu navio se aproxima das Sereias pressagiam alegoricamente a dialética do esclarecimento”. 79 Lukács (l962? p. 67): “A epopeia, em particular, não é senão o puro mundo infantil em que a violação das normas indiscutidas arrasta necessariamente uma vingança, a qual exige ser vingada por sua vez, e assim sucessivamente até o infinito [...]”.

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surgimento de novas condições criadas a partir da evolução do conhecimento. Surgem novas

realidades como sínteses dos embates entre o velho e o novo. Desses embates, permanece

sempre algo daquilo que se degenerou80, visto por um novo prisma, ainda que, às vezes,

apenas na memória da coisa que se afirmou como nova em um processo irreversível de

reelaboração, como o DNA no código genético dos seres vivos transmitindo caracteres

hereditários indefinidamente no tempo. Assim, observando-se por um prisma épico, sem

Homero não haveria Virgílio nem Camões. As epopeias modernas81 só se tornaram possíveis

à medida que os poetas foram capazes de encontrar uma solução artística para representar a

nova realidade numa estrutura arcaica conservada pela tradição na forma acabada, como

relíquia de memória da humanidade. O valor humanitário e literário das obras, relativamente

modernas, dos poetas citados a título exemplificativo, prescinde de comentário neste limitado

foro de investigação, pela notoriedade da projeção universal que alcançaram. Entretanto, é

mister compreender que se tratam de poemas épicos. Os quais são estilizações das epopeias

genuínas82. São, nesse aspecto, imitações das narrativas do mundo épico narrando o mundo

atual. Esse procedimento de aproximação entre a narrativa e o objeto narrado destrói a

distância épica (passado absoluto) e cria uma distância fictícia em que tudo acontece em um

presente relativo, ou zona de contato familiar, na concepção de Bakhtin (2002b)83, em que o

80 No estudo do romance polifônico, Bakhtin (2002a, p. 273-274) conclui: “Ao nascer, um novo gênero nunca suprime nem substitui quaisquer gêneros já existentes. Qualquer gênero novo nada mais faz do que completar os velhos, apenas amplia o círculo de gêneros já existentes. Ora, cada gênero tem seu campo predominante de existência em relação ao qual é insubstituível. Por isto o surgimento do romance polifônico não suprime nem limita em absolutamente nada a evolução subsequente e produtiva das formas monológicas de romance. [...] Pois sempre haverão de perdurar e ampliar-se campos da existência humana e da natureza que requerem precisamente formas objetificadas e concludentes, ou seja, formas monológicas de conhecimento artístico”. 81 Conforme Paz (2003, p. 134-135): “A imitação da natureza e dos modelos da antiguidade – a ideia de imitar mais do que o próprio ato – alimentou os artistas do passado; depois, durante cerca de dois séculos, a modernidade – a ideia da criação original e única – nos nutriu. Sem ela não existiriam as obras mais perfeitas e duradouras de nosso tempo [...]. Para os antigos a imitação não só era um procedimento legítimo como um dever; contudo a imitação não impediu o surgimento de obras novas e realmente originais. O artista vive na contradição: quer imitar e inventa, quer inventar e copia”. 82 “Só se pode, como vemos, falar de uma História da Épica, enquanto o conceito se refira a obras poéticas que externamente, segundo sua maneira de recitação, possam ser consideradas epopeias, portanto de narrações de bom tamanho feitas em versos. Epopeias, neste sentido, surgem também depois de Homero e em grande número. O que não passa de uma imitação da poesia homérica. O documento mais cabal de tal destruição é a crítica de Xenófanes que pelos fins do século VI, em hexâmetro, portanto ainda preso à linguagem de Homero, debate-se com desvelo contra os ensinamentos divinos e moral da poesia homérica. [...] Aqui o relacionamento entre deus e homem se torna problema, o que Homero ainda não captara. Não importa como Xenófanes solucione-o, no momento em que aventa o problema, deuses e homens, portanto já não mais se situam nos limites da poesia épica. Ao autor épico basta saber que alguma coisa existe, de onde procede e que ele a está criando em sua obra. [...] Aqui Xenófanes chega a conclusões que faz desabar o Olimpo. Homero não tira conclusões” (STAIGER, 1997, p.112/113). 83 “O romance se formou precisamente no processo de destruição da distância épica, no processo da familiarização cômica do mundo e do homem, no abaixamento do objeto da representação artística ao nível de

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passado é narrado de um ponto de vista apreciativo, segundo os valores do presente (do autor

e do leitor) e o futuro, lógica e racionalmente predito em vez de profetizado, passa a ser o

lugar das vivências, onde estão lançadas as âncoras dos ideais da humanidade. Nesse ponto,

cruzam-se os destinos das formas narrativas no seio do gênero épico, epopeia e romance84. A

epopeia que, na concepção de Lukács (1962?) representava a narrativa da infância do mundo,

aquela que conta ingenuamente as ações do homem em suas relações com as forças da

natureza simbolizadas por divindades, transforma-se em romance representando a idade

adulta do mundo. Um mundo desvinculado das divindades e desvendado, desencantado pelo

esclarecimento. O romance afirma-se como a epopeia do mundo moderno, ou a narrativa da

virilidade amadurecida85.

No estudo consagrado à teoria do romance, Bakhtin (2002b) aponta dois momentos

marcantes na evolução histórica das formas narrativas, mais precisamente na romancização da

epopeia. O primeiro, nas fronteiras da Antiguidade Clássica e do Helenismo.86 O segundo

momento ocorre na transição da Idade Média para a Idade Moderna.87

Nesse segundo momento de cruzamento dos gêneros, Camões se encontra escrevendo,

talvez, a última narrativa épica que se tornou possível no molde das epopeias tradicionais,

uma realidade atual, inacabada e fluida. Desde o início o romance foi construído não na imagem distante do passado absoluto, mas na zona do contato direto com esta atualidade inacabada” (BAKHTIN, 2002b, p. 427). 84 De acordo com Adorno (2006, p. 47): “Na epopeia, que é o oposto histórico-filosófico do romance, acabam por surgir traços que a assemelham ao romance, e o cosmo venerável do mundo homérico pleno de sentido revela-se como obra da razão ordenadora, que destrói o mito graças precisamente à ordem na qual o reflete”. 85 Conforme Lukács ([1962?], p. 100): “O romance é a epopeia de um mundo sem deuses: a psicologia do herói romanesco é demoníaca, a objetividade do romance, a viril e madura constatação de que nunca o sentido poderia penetrar de lado a lado a realidade e que, portanto, sem ele, esta sucumbiria ao nada e à essencialidade. Todas estas formas vêm a dar no mesmo: caracterizam os limites produtivos impostos de dentro às virtualidades estruturantes do romance ao mesmo tempo que remetem sem equívocos para o instante histórico-filosófico em que são possíveis os grandes romances, em que eles se tornam aptos a simbolizar o essencial do que há para dizer. O espírito do romance é a virilidade amadurecida, e a sua estrutura característica o seu modo descontínuo, o corte que implica entre a interioridade e a aventura”. 86 “Na época do Helenismo começa o contato com os heróis do ciclo épico da guerra de Tróia; o épico converte-se em romance. O material épico transpõe-se para o romance para uma área de contato, passando pelo estágio da familiarização e do riso” (BAKHTIN, 2002b, p. 407). 87 “Ao findar dos séculos da Idade Média, e época da Renascença, o discurso parodístico e travestizante rompeu todas as barreiras. Ele irrompeu em todos os gêneros diretos, restritos e fechados; ressoou ruidosamente na epopeia dos Sfrielman e dos Contarton. Penetrou no grande romance de cavalaria. [...] Surge, finalmente, o grande romance da época renascentista, com obras de Rabelais e de Cervantes. É justamente nestas duas obras que o discurso romanesco, preparado por todas as formas já enumeradas e do mesmo modo pela herança antiga, descobre suas possibilidades e desempenha um papel na formação da nova consciência linguística e literária” (BAKHTIN, 2002b, p.393).

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antes da consagração definitiva do romance. Esta se tornou possível pela genialidade do

poeta, em meio a outras tentadas e fracassadas, por autores diversos, e diante de outras que,

embora exitosas, não alcançaram a mesma longevidade, à qual se deve atribuir justamente à

originalidade do estilo. Essa originalidade associa-se artisticamente à tradição, não para

perpetuá-la na forma clássica, por historicamente impossível, mas para nela refutar os

elementos arcaicos e estabelecer uma ponte para a nova forma de narrativa, a prosa

romanesca.

É importante observar-se que o segundo momento de evolução da narrativa referido

por Bakhtin é também um tempo de transformação revolucionária de ordem universal em

diversos domínios da atividade humana conforme referido anteriormente, especialmente nas

ciências, na filosofia e nas artes. Camões capta a diversidade do espírito dessa transformação

e captura em sua obra uma imagem caleidoscópica do mundo em desconcerto. Isto se revela

através da autorreflexão representada em sua própria voz e nas vozes de suas personagens. O

poeta tem consciência do vão esforço em criar uma epopeia em um mundo em que o elo entre

o homem, a natureza e os deuses fora quebrado havia já muito tempo. Isto é denunciado

sistematicamente no poema, especialmente através do diálogo com a tradição: “Aqui, minha

Calíope, te invoco/Neste trabalho extremo, por que em pago/Me tornes do que escrevo, e em

vão pretendo/O gosto de escrever, que vou perdendo” (X, 8, v. 5-8). Estes versos são

metáfora. O desencanto do mito é também o desencanto do canto do poeta, já desprovido de

peculiaridades épicas.

A consciência do poeta sobre a reviravolta do mundo é revelada de modo enfático na

trama mitológica que faz parte do plano da viagem. Paradoxalmente, essa dimensão

mitológica, imprescindível à caracterização da epopeia, contém a confissão pelos deuses de

suas falsas existências. Seus lacrimosos desencantos88. Neste sentido, temos duas passagens

reveladoras. A primeira refere-se ao discurso de Baco no concílio dos deuses marinhos:

27 “Princepe, que de juro senhoreas, Dum Pólo ao outro Pólo, o mar irado,

Tu, que as gentes da Terra toda enfreias, Que não passem o termo limitado; E tu, padre Oceano, que rodeias O Mundo universal e o tens cercado, E com justo decreto assi permites Que dentro vivam só de seus limites;

88 No poema camoniano choram: Adamastor, Vênus, Baco, Maria, Inês e as mães e esposas na despedida dos navegantes.

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28 E vós, Deuses do Mar, que não sofreis

Injúria algüa em vosso reino grande, Que com castigo igual vos não vingueis De quem quer que por ele corra e ande: Que descuido foi este em que viveis? Quem pode ser que tanto vos abrande Os peitos, com razão endurecidos Contra os humanos, fracos e atrevidos?

29 Vistes que, com grandíssima ousadia, Foram já cometer o Céu supremo; Vistes aquela insana fantasia De tentarem o mar com vela e remo; Vistes, e ainda vemos cada dia, Soberbas e insolências tais, que temo Que do Mar e do Céu, em poucos anos, Venham Deuses a ser, e nós, humanos.

30 Vedes agora a fraca gèração Que dum vassalo meu o nome toma. Com soberbo e altivo coração A vós e a mi e o mundo todo doma. Vedes, o vosso mar cortando vão, Mais do que fez a gente alta de Roma; Vedes, o vosso reino devassando, Os vossos estatutos vão quebrando. [...]

34 E por isso do Olimpo já fuji, Buscando algum remédio a meus pesares, Por ver o preço que no Céu perdi, Se por dita acharei nos vossos mares.” Mais quis dizer, e não passou daqui, Porque as lágrimas já, correndo a pares, Lhe saltaram dos olhos, com que logo Se acendem as Deidades da água em fogo. (Canto VI, 28-30 e 34, grifos nossos )

As estrofes acima são parte do discurso direto, pelo qual a personagem tenta

convencer os deuses do Oceano a intercederem contra os lusos. Os versos grifados

evidenciam a pragmática do poeta na construção dos discursos destronantes da forma épica

erigida no vigor fictício do mito, sobrepujado pelo conhecimento humano havia muito tempo.

A segunda passagem se refere ao discurso de Tétis, quando apresenta a Vasco da

Gama a máquina do mundo:

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80 “Vês aqui a grande máquina do Mundo,89 Etérea e elemental, que fabricada Assi foi do Saber, alto e profundo, Que é sem princípio e meta limitada Quem cerca em derredor este rotundo Globo e sua superfície tão limada, É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende, Que a tanto o engenho humano não se estende.

81 Este orbe que, primeiro, vai cercando Os outros mais pequenos que em si tem, Que está com luz tão clara radiando, Que a vista cega e a mente vil também, Empíreo se nomeia, onde logrando Puras almas estão daquele Bem Tamanho, que Ele só se entende e alcança, De quem não há no mundo semelhança.

82 Aqui, só verdadeiros, gloriosos Divos estão, porque eu, Saturno e Jano, Júpiter, Juno, fomos fabulosos Só pera fazer versos deleitosos Servimos; e, se mais o trato humano Nos pode dar, é que o nome nosso Nesta estrelas pôs o engenho vosso.

83 E também, porque a Santa Providência, Que em Júpiter aqui se representa Por espíritos mil, que tem prudência, Governa o Mundo todo que sustenta (Insina-lo a profética ciência, Em muitos dos exemplos que apresenta: Os que são bons, guiando, favorecem, Os maus, enquanto podem, nos empecem).

84 Quer logo aqui a pintura, que varia, Agora deleitando, ora insinando, Dar-lhe nomes que a antiga Poesia A seus Deuses já dera, fabulando; Que os anjos da celeste companhia Deuses o sacro verso está chamando Nem nega que esse nome preminente Também aos maus se dá, mas falsamente. (Canto X, 80-84, notas grifos e nossos)

O discurso proferido pela deusa, a qual intercedera em favor dos navegantes (por fim

vitoriosos) confessa a decadência dos deuses, em tempo já passado: “fomos fabulosos, só para

fazer versos deleitosos servimos”. Esta declaração, no momento em que o poema se

encaminha para o epílogo, demonstra a sua natureza paradoxal como estratégia de ruptura

89 O sistema considerado por Camões é o ptolomaico, embora o poeta provavelmente já conhecesse a teoria heliocêntrica, publicada em 1543. Era um assunto então controvertido perante o conservadorismo tirânico da Igreja.

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com a tirania dos modelos imposta pela cultura renascentista da imitação90. Do trecho do

discurso em destaque salientam-se mais dois pontos relevantes para o desvelamento do falso

mito diante do esclarecimento. Primeiramente a oposição entre os deuses pagãos das epopeias

e Deus e os profetas ou santos das Sagradas Escrituras, “É Deus; mas o que é Deus, ninguém

entende, que a tanto o engenho humano não se estende”. “Quer logo aqui a pintura91, que

varia, agora deleitando, ora insinando, dar-lhe nomes que a antiga poesia92 a seus deuses já

dera, fabulando; que os anjos da celeste companhia Deuses o sacro verso está chamando” 93.

Tem-se aqui uma curiosa contradição, a deusa pagã reconhecendo a onipotência do Deus

verdadeiro (cristão). Depois a menção ao empirismo intrínseco à ciência em substituição à

memória intrínseca ao épico, “Insina-lo a profética ciência, em muito dos exemplos que

apresenta”.

Assim procedendo, Camões contribui para a criação das condições linguísticas e

estilísticas de surgimento do novo gênero de narrativa (o romance moderno) que viria a

refletir o estágio ascendente de evolução da civilização ocidental no encalço do racionalismo.

A vitória do humano sobre o mito propicia a transição da epopeia para o romance.

Mito é simbologia no significado etimológico da palavra, ao passo que ficção é invenção, é

fingimento. Aceitando-se, portanto, a ideia de invenção do mito nas modernas epopeias, e é

este o nosso entendimento, baseado na decadência do “verdadeiro” mito, deve-se pensar

dimensão mitológica d’Os Lusíadas no domínio do fingimento ou da ficção. Procedimento ao

qual, com agudeza de espírito, aludiu o Sensor do Santo Ofício, Frei Bartolomeu, no Parecer

para autorização da publicação do poema94.

90 Não imitação no sentido de mimesis (imitação da realidade), mas imitação da composição narrativa. – Staiger (1997). 91 Trata-se de uma referência à analogia de Horácio (2007, p. 65): “poesia é como pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra, se te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada em plena luza, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou uma vez; essa outra, dez vezes repetida, agradará sempre” 92 As epopeias. 93 Referência às sagradas escrituras. 94 Parecer do censor do Santo Ofício: “Vi por mandado da Santa e Geral Inquisição estes dez Cantos dos Lusíadas de Luís de Camões, dos valorosos feitos em armas que os portugueses fizeram na Ásia e Europa, e não achei neles coisa alguma escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes, somente me pareceu que era necessário advertir os leitores que o Autor, para encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos portugueses na Índia , usa de uma ficção dos deuses dos gentios. E ainda que Santo Agostinho nas suas Retratações se retrate de ter chamado, nos livros que compôs, De Ordine, às Musas deusas, todavia como isto é Poesia e fingimento, e

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Sendo fingimento, a perspectiva mitológica do poema assume uma dimensão lírica

que, por ser narrativa, tende a resvalar para a prosa romanesca. Fenômeno esse que nos coloca

diante de um problema relativo aos gêneros literários, épico e romance.

A partir da teoria do romance de Bakhtin, epopeia e romance, em sentido estrito, são

gêneros antagônicos. Diferenciam-se nos elementos essenciais da composição literária, quais

sejam: o tempo dos fatos narrados, o objeto de representação e o discurso. A épica constrói

seu enredo exclusivamente no passado remoto, inacessível, tanto aos seus pseudoautores, ou

locutores (aedos ou rapsodos), quanto aos ouvintes, e seu objeto de representação era o

mundo imanente com seus deuses e heróis semideuses, cujos destinos eram também os

destinos de toda a coletividade que eles representavam. O discurso épico é centralizador,

autocrático e de verdades incontestáveis. Em oposição, o romance é um enredo em construção

no presente, o qual sofre a influência direta do cotidiano, dele tomando parte todos os

envolvidos, autor, narrador, personagens e leitores, tendo como objeto de representação os

fatos concretos da vida em todas as suas esferas. O discurso romanesco é descentralizador,

democrático, de verdades contestáveis. Por isto, afirma Bakhtin (2002a) que o discurso

romanesco é um diálogo interminável, de múltiplas vozes, ou polifônico. Neste ponto reside o

distanciamento, em abstrato, entre Os Lusíadas, como epopeia, e o romance polifônico.

Considerando, no entanto, a natureza híbrida do poema de Camões, não só pela

presença dos elementos formais dos gêneros épico, lírico e dramático95, segundo a divisão

clássica dos gêneros poéticos, mas também de um ponto de vista da essência96 do conteúdo de

cada um desses gêneros, o antagonismo, em tese, entre a epopeia e o romance é mitigado

pelos traços estilísticos próprios do romance. Podemos citar a diversidade de narradores, a

multiplanaridade e multiperspectividade e a aproximação dos fatos narrados ao contexto

histórico do poeta e de seus receptores primários. Além da matéria trágica, como o episódio o Autor, como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos deuses na obra, conhecendo-a por tal. [...] E por isso me pareceu o livro digno de se imprimir [...]”. 95 Staiger (1997, p. 190-191), entendendo que o gênero repousa na essência da linguagem e não só nos elementos formais da composição, afirma: “Uma obra exclusivamente lírica, épica ou dramática é inconcebível; toda obra poética participa em maior ou menor escala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor participação, designamo-la lírica épica ou dramática. [...] O uso linguístico pode alterar-se. O próprio fenômeno, entretanto, não muda, é um relacionamento objetivo que se assenta fixamente em sua essência. A questão terminológica sobre como será chamado mais tarde e dentre outros povos, não nos interessa. 96 Na mesma linha de Staiger, Bakhtin (2002a, p. 137) afirma: “[...] Para concluir achamos necessário ressaltar que a denominação genérica de “menipéia”, assim como todos os outros termos genéricos antigos – “epopeia”, “tragédia”, “idílio”, etc. – se aplicam à literatura dos tempos modernos como denominação da essência de gênero e não de um determinado cânon de gênero (como ocorria na Antiguidade)”.

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da morte de Inês e os relatos trágico-marítimos, na voz de Adamastor, o drama de Maria a

implorar ao pai por auxílio em favor de seu marido, o rei de Espanha, e das mulheres da praia

do Restelo, a lamentarem a duvidosa sorte de seus maridos, noivos, filhos, etc. Por outro lado,

cabe enfatizar o riso na passagem de Veloso e o idílio na passagem de Leonardo na Ilha dos

Amores.

O procedimento de hibridização legitima o estreitamento da relação entre a narrativa

épica e o romance através dos desvios discursivos como indícios de permanente modernidade.

Esse procedimento é responsável pela projeção do poema de Camões de forma universal e

atemporal, influenciando as gerações de poetas de todas as épocas e provocando novas

especulações críticas e novas leituras de acordo com as peculiaridades da estética vigente em

cada novo horizonte de recepção. Assim comenta Sena (1980, p. 48): "Maneirista como

Miguel Ângelo e o Ticiano do fim das suas vidas, como Montaigne, como John Donne, como

Bruno, e como o serão Shakespeare e Cervantes no fim do ciclo, Camões é uma chave da

literatura portuguesa que para ele reverteu e dele descende até nós".

Sendo Camões o expoente máximo do Maneirismo literário português, segundo Sena

(1980) e Silva (1971), vigente entre a segunda metade do século XVI e os últimos anos da

segunda década do século XVII, é evidente a sua influência sobre os poetas seus

contemporâneos patrícios, confundidos com ele ou considerados como imitadores de seu

estilo, assim como contemporâneos estrangeiros, especialmente Cervantes (2005, p. 407-408),

o qual reconhece o valor do poeta ao mencionar seu nome ao lado de Garcilaso, importante

nome do Humanismo-Renascentista espanhol, cuja lírica tem influência na poesia

camoniana.97 Cervantes inaugura o romance moderno com D. Quixote, publicado em 1605.

Romance pitoresco, que parodia os romances de cavalaria produzidos na Idade Média.

Sobre a relação d'Os Lusíadas com D. Quixote, numa visão crítica, escreveu Ramiro

de Maeztu (apud CIDADE, 1985, p.11):

Algunas veces se há pergutado la razón de que no se expresara esta grand epopeya espanola en algun libro que pudiera parangonar-se com el "Quijote". Estas perguntas negativas no tienen contestación. No ay razón, por ejemplo, para que Garcilaso no escribiera esa obra. Pero la verdad es que fué escrita, sólo que en português. "Os Lusíadas" es la epopeya peninsular, i sabido es que la historia espiritual y artística de los pueblos hispánicos no debe hacerse aisladamente. En los "Lusíadas" se encuentra

97 Textualmente em D. Quixote (segundo livro): “[...] trazemos estudadas duas églogas, uma do famoso poeta Garcilaso e outra do sublime Camões, na sua própria língua portuguesa” (CERVANTES, 2005b, p, 407-408).

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la expresión conjunta del génio hispánico en su momento de esplendor. La divinisacón de la virtu humana. Donde acaban los "Lusíadas" empieza "Don Quijote".

Esta argumentação explicita uma reivindicação dos espanhóis em relação a Camões

como o poeta de toda a Península Ibérica98. Ressalvando-se a possível influência político-

ideológica, dada a unificação das coroas portuguesa e espanhola ao tempo da publicação de

D. Quixote, 33 anos após a publicação do poema de Camões, resta comprovado, pelo menos,

um forte indício de influência de uma obra sobre a outra, "D. Quixote começa onde acabam

Os Lusíadas”.

Neste sentido, além do fato de terem vivido na mesma época, torna-se oportuno

abordar alguns aspectos, que guardam semelhanças entre Camões e Cervantes. Ambos

tiveram uma vida pessoal marcada por desventuras. Cervantes, à semelhança de Camões, foi

soldado, viajante, mutilado de guerra (Cervantes perdeu a mão esquerda, Camões perdeu o

olho direito), amargou também prisões, pobreza e desilusões amorosas. Alguns biógrafos

acham que Camões escreveu Os Lusíadas em uma gruta de Macau, quando em desterro na

China. Por outro lado, acredita-se que Cervantes escreveu D. Quixote no cárcere, segundo

Orico (1984). Enfim, suas obras revelam o desassossego de espírito e a refinada visão da

realidade de um mundo desordenado: Os Lusíadas anunciam, numa espécie de contracanto, a

decadência do império português, enquanto D. Quixote anuncia a decadência do império

espanhol, por conseguinte a derrocada das últimas resistências do sistema feudal ante o

triunfo do capitalismo mercantilista dando início a uma nova Era.99

Bakhtin, não raras vezes menciona Cervantes como o precursor do romance moderno

que veio a ser coroado no realismo de Dostoiévski como a forma ideal de representação 98 Afirma Cidade (1985, p. 169, itálicos do autor): “No século XVII, porém o renome do Poeta e da sua obra transpõe os Pirenéus. Se a Espanha, então no século de ouro da sua literatura, mal conhecera uma medíocre tradução de Manuel Correia Montenegro, que talvez circulasse manuscrita entre os seus amigos, e porventura a tradução de 1609, citada por Nicolau António e Pedro Martinez, quase não há escritor espanhol que não se curve perante o Príncipe dos poetas das Espanhas. Cita-o a cada passo Baltasar Graciam, em seu Tratado de Agudeza y Arte de Ingenio, e Alonso Barbadillo, em Coronas Del Parnaso y Platos de las Musas, prova com Camões e Garcilaso a opulência da poesia hispânica. Nenhum porém excedeu a devoção de Lope de Veja, que o celebra no Laurel de Apolo e na Arcádia”. 99 Vejamos algumas palavras elucidativas do autor no “Prólogo” de D. Quixote: “Desocupado leitor: sem juramento meu embora, poderás acreditar que eu gostaria que este livro, como filho da razão, fosse o mais famoso, o mais primoroso e o mais judicioso e agudo que se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra seu semelhante. E, assim, o que poderá engendrar o estéril e mal cultivado engenho meu, senão a história de um filho seco, murcho, entojadiço e cheio de pensamentos díspares e nunca imaginados por ninguém mais, exatamente como quem foi engendrado num cárcere, onde toda a incomodidade tem assento e onde todo o triste barulho faz sua habitação?” (CERVANTES, 2005a, p. 23, grifo nosso)

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literária. Cabe, neste particular, fazer-se a ligação de Camões a Dostoiévski. Primeiramente,

chama a atenção a semelhança que subjaz às cristas das ondas de toda grande mudança, nos

ciclos dialéticos da vida, independentemente da distância no tempo e no espaço em que

ocorrem. Em geral, as grandes obras, aquelas que transformam, trazem as marcas indeléveis

dos destinos dos seus gênios criadores, que constituem a energia nuclear de seu objeto

estético. Momento arrebatador em que se cruzam artista e expectador em estado de sublime

deleite. Essa energia é o sopro que imortaliza autor e obra. Considera Bakhtin (2002a, p 36):

“As grandes descobertas de gênio humano só são possíveis em condições determinadas de

épocas, mas nunca se extinguem nem se desvalorizam juntamente com as épocas que as

geram”.

Após a menção às semelhanças entre Camões e Cervantes, tornam-se imprescindíveis

algumas ilações entre Camões e Dostoiévski, cujas existências distam no tempo cerca de três

séculos. Camões viveu, no limiar do capitalismo mercantilista, a turbulência das

transformações sociais, culturais e religiosas do mundo, decorrente da revolução científica.

No plano pessoal é marcado por desilusão amorosa, prisões, mutilação física em combates

(como soldado), desterro e naufrágio que o leva ao limite da existência material. É curioso

mencionar que no naufrágio o poeta salva-se apenas com os manuscritos d’Os Lusíadas,

perdendo a companheira para quem escreve um de seus mais famosos sonetos “Alma minha

gentil que te partiste”. Sobre os manuscritos o poeta fala no próprio poema, pela voz de uma

Ninfa:

Este receberá, plácido e brando, No seu regaço o Canto que molhado Vem do naufrágio triste e miserando, Dos procelosos baxos escapado, Das fomes, dos perigos grandes, quando Será o injusto mando executado Naquele cuja Lira sonorosa Será mais afamada que ditosa. (X, 128)

A sua amargura com o tempo em que viveu perpassa toda a lírica e se coloca na

epopeia por diversos modos: explícitos em vários trechos dos excursos e implícito nos

discursos refratários de diversas personagens, tais como do Velho do Restelo, do Gigante

Adamastor, no solilóquio de Baco, nas lamúrias do marinheiro Leonardo, etc.

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De acordo com Bakhtin (2002a) e com a biógrafa e esposa, Dostoievskaia (1999),

Dostoiévski foi também um homem de fronteira, vivendo sempre intensamente o último

momento. Distante de Camões (no tempo histórico e no espaço geopolítico), Dostoiévski

vivenciou o apogeu do Capitalismo na Rússia, vivenciou as distorções sociais do império dos

kzares. Foi perseguido por frequentar o círculo de socialistas utópicos de São Petersburgo.

Preso e condenado à morte, acusado de participar de um complô para assassinar o kzar

Nicolau I. Após todo o ritual de percorrer alamedas com os olhos vendados, no momento do

enforcamento recebe a comutação da pena para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria,

experiência que retratou no romance Recordação da casa dos mortos.100 Ao sair da prisão

viveu em permanente sofrimento, lutando contra a pobreza, as doenças (epilepsia e

tuberculose) e a compulsão pelo jogo. Daí serem suas obras marcadas pela estupenda força

criadora do homem no limite da existência. Assim escreveu Bakhtin (2002a, p. 177, grifo

nosso), ao comentar a fala de uma das personagens de Dostoiévski no romance O Idiota:

É interessante a carnavalização do episódio seguinte: no salão da generala Iepântchina, Míchkin fala dos últimos momentos de consciência de um condenado à morte (história autobiográfica do que o próprio Dostoiévski experimentou). O tema do limiar irrompe aqui no espaço interno (distante do limiar) do salão mundano [...].

A esse momento autobiográfico citado por Bakhtin como uma experiência pessoal do

autor representada na obra, somam-se diversos outros. O que nos leva à confirmação de uma

inevitável cumplicidade do autor biográfico com a sua obra. Outras duas referências

marcantes são os romances O Jogador, que remete à compulsão do escritor pelo jogo e Os

Irmãos Karamazovi, escrito logo após a morte de seu filho caçula de três anos, chamado

Aliocha. Nome pelo que é tratado afetivamente o herói do romance, Alieksiéi Fiódorovitch

Karamazov. Nesse mesmo romance (último) são inseridas no texto palavras da esposa do

autor, de acordo com o depoimento dela na biografia ao relatar o sofrimento com a morte do

filho caçula.101 Essa representação autobiográfica é uma característica também marcante na

obra camoniana.

É importante ressaltar que a remissão ao aspecto autobiográfico de Dostoiévski nos

romances tem o propósito, apenas, de demonstrar alguma semelhança em relação ao 100 Notas sobre o autor em Dostoievski (2001, p. 563). 101 “Muitas dúvidas e pensamento e até palavras ditas por mim foram registradas por Fiodor Mikhailovitch em ‘Os irmãos Karamazov’” (Dostoievskaia, 1999, p. 263).

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procedimento de Camões n’Os Lusíadas, uma vez que estudamos o aspecto polifônico do

poema. Entretanto, não se deve esquecer que o autor biográfico não se confunde com o autor-

criador, instância organizacional da obra, e que os dados autobiográficos ao integrarem a

dimensão estética tornam-se ficção. Quando Bakhtin se refere à exotopia (extradiegese) do

autor como um dos traços essenciais da polifonia, está se referindo à isenção do autor-criador,

em relação ao narrado, permitindo amplo espaço e autonomia às personagens. Lembrando que

a singularidade da obra de Dostoiévski, para Bakhtin (2002a, p. 4-5), reside exatamente na

independência de suas personagens em relação ao autor, conforme observa:

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. [...] Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante.

Pelos pressupostos filosóficos e artístico-literários da polifonia sobre os quais

discorremos anteriormente, é possível se verificar elementos de ordem discursiva na escrita

d’Os Lusíadas que, transmutados para o romance, revelam-se discursos polifônicos. É lógico

que não havia, então, essa consciência, o romance polifônico estava ainda em gestação. Por

isto uma leitura polifônica d’Os Lusíadas somente se faz possível no horizonte de expectativa

de nosso tempo.

Camões deu ao mundo o que o mundo desejava no contexto de sua época,

particularmente a sua nação. Uma epopeia. As condições históricas, contudo, já não

permitiam uma epopeia pura. Destarte, Camões lhe deu uma epopeia como um “cavalo de

troia” que ao abrir-se gradualmente revela mensagens de sentidos diversos daqueles

interpretados no horizonte de espera de sua recepção imediata. Tal como nos versos a seguir:

Nenhum que use de seu poder bastante Pera servir o seu desejo feio, E que, por comprazer ao vulgo errante, Se muda em mais figuras que Proteio. Nem, Camenas102, também cuideis que cante Quem, com hábito103 honesto e grave, veio, Por contentar o Rei, no ofício novo, A despir e roubar o pobre povo! (Canto, VII, 85)

102 Sinônimo de Musas. 103 Duplo sentido: ou costume ou roupa de religioso.

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A estrofe acima faz parte do excurso do poeta no encerramento do Canto VII. Nela

podemos observar uma crítica irônica direcionada à Igreja através do emprego estilístico de

palavras polissêmicas e de metonímia, “habito honesto e grave”, revelando um duplo

sentido.104

Supondo-se, portanto, a ausência dos labirintos, aos quais se referiu frei Bartolomeu

como “fingimentos poéticos”, pergunta-se: será que passariam despercebidas as críticas

tenazes ao Império e à Igreja, nos tempos da inquisição, sem que isso custasse o sacrifício da

vida ou a obra do poeta? Dificilmente. Tal circunstância suscitava um estilo inovador, como

ocorre sempre nas épocas de extrema crise, surgindo a estética maneirista marcante na lírica

camoniana, mas também presente abundantemente n’Os Lusíadas, cuja característica adéqua-

se aos intentos do poeta nos disfarces de críticas mordazes, conforme Silva (1971, 38): “A

metáfora tipicamente maneirista é uma metáfora conceituosa, que envolve um complicado e

sutil jogo cerebral de agudeza, de alusões obscuras e imprevistas, de contrastes paradoxais,

transformando muitas vezes numa técnica virtuosa que dificulta em alto grau a compreensão

de um texto”.

2.1 ANÁLISE DO ASPECTO POLIFÔNICO D’OS LUSÍADAS

A partir do procedimento adotado por Bakhtin na análise dos discursos de

Dostoiévski, em cada obra de per si, procuramos identificar nos discursos de Camões, n’Os

Lusíadas, traços dialógicos que configurem o seu provável aspecto polifônico.

Bakhtin (2002a) analisa os discursos de Dostoiévski pelo cotejamento de diversos

enunciados destacados das obras do autor com os vários tipos de discurso por ele classificados

previamente e considerados predominantes na prosa. O ponto de partida, portanto, da exegese

dos textos de Dostoiévski realizada por Bakhtin é a criteriosa elaboração de um quadro

tipológico de discursos recorrentes, em regra, na prosa romanesca. Esse quadro apresenta

tipos e variantes de discurso que permitem mensurar, relativamente, o grau de dialogismo de

uma obra literária, desde aquela considerada preponderantemente monológica, ou

monofônica, à integralmente dialógica, ou polifônica.

104 A referência à vestimenta dos padres (hábito), como crítica (por metonímia) à Igreja: “hábito honesto e grave” em contradição com a atividade de contentar o rei no ofício de “despir e roubar o pobre povo”, revela-se um segundo sentido irônico satírico.

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Bakhtin atribui importância particular ao discurso na análise literária, considerando

estar em jogo no estudo desta arte a linguagem verbal como expressão da vontade criativa.

Entende ele que essa linguagem se realiza e se vivifica além dos limites de um sistema

linguístico, razão pela qual, aborda o tema em diferentes perspectivas através de ensaios

esparsos, cuja inter-relação é imprescindível à compreensão da tipologia de discurso que

constitui o seu método analítico do procedimento estilístico polifônico.

Destarte, além dos pressupostos filosóficos e artístico-literários que fundamentam a

polifonia, dando-lhe um caráter de teoria literária, deve-se levar em conta a implicação de três

fatores essenciais na formulação desse esquema tipológico. Tais fatores são: a tradição dos

gêneros literários na formação do romance; a relação entre os gêneros primários e secundários

do discurso; e os estilos de transmissão do discurso do outro.

Na convicção de que o gênero literário, por sua natureza, reflete as tendências mais

estáveis da evolução da literatura, Bakhtin reconstitui a trajetória de formação do romance, ao

tratar do problema da poética de Dostoiévski. Nesse trabalho identificou, no campo do sério-

cômico, as origens e as influências de gêneros na linha de evolução do romance dialógico

europeu da qual derivou o romance polifônico. E em síntese, Bakhtin (2002a, p. 108)

concluiu:

Em termos simplificados e esquemáticos, pode-se dizer que o gênero romanesco assenta-se em três raízes básicas: a épica, a retórica e a carnavalesca. Dependendo do predomínio de uma dessas raízes, formam-se três linhas na evolução do romance europeu: a épica, a retórica e a carnavalesca (entre elas existem, evidentemente, inúmeras formas transitórias). É no campo do sério-cômico que devemos procurar os pontos de partida do desenvolvimento das variedades da linha carnavalesca do romance, inclusive daquela variedade que conduz à obra de Dostoiévski.

De acordo, ainda, com Bakhtin (2002a), o campo do sério-cômico é constituído por

diversos gêneros literários cognatos, denominados na antiguidade clássica “caracteres

especiais”, em oposição aos gêneros sérios como a epopeia, a tragédia, a história e retórica

clássica. Fazem parte desses gêneros cognatos os diálogos socráticos, os simpósios, a primeira

memorialística (Íon de Quio e Crítias), os panfletos, a poesia bucólica e a sátira menipeia,

entre outros. O que distingue os gêneros sérios dos gêneros do campo do sério-cômico é a

relação destes últimos com o folclore carnavalesco, destacando-se, na formação da linha

dialógica do romance, os diálogos socráticos e a sátira menipeia. À sátira estão

intrinsecamente ligadas a estilização e a paródia.

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Na elaboração do quadro tipológico integram-se os gêneros do discurso (diferentes de

gêneros literários), os quais são formados, segundo Bakhtin (2003), pelos enunciados que se

tornam relativamente estáveis através do emprego da língua nos diferentes campos da

atividade humana. Esses enunciados refletem as condições e as finalidades de cada campo

específico de atividade. Gêneros esses classificados em primários e secundários.

Os gêneros primários constituem o infinito conjunto dos discursos simples,

espontâneos e imediatos, tais como os diálogos orais cotidianos que ocorrem na rua, no

trabalho, em família, em grupos sociais, políticos e religiosos, dentre outros. Já os gêneros

secundários são aqueles de elaboração mais complexa, geralmente escrita, principalmente os

literários, científicos e publicísticos. Para Bakhtin (2003, p. 265), qualquer que seja o campo

de estudo, faz-se necessário uma noção precisa da natureza dos diversos tipos de enunciados

(primários e secundários), isto é, dos diversos gêneros de discurso, considerando que “a

língua integra a vida através de enunciados concretos (que a realizam) e é igualmente através

de enunciados concretos que a vida entra na língua”.

A diferença entre os gêneros primários e secundários ultrapassa o limite de

funcionalidade dos discursos. Trata-se de uma diferença determinada pelas condições das

relações culturais. Assim, os gêneros secundários surgem nas condições de um convívio

cultural mais complexo, relativamente desenvolvido e formalmente organizado, expressos na

forma de obras literárias, textos jurídicos, tratados científicos, filosóficos, etc. Qualquer que

seja a espécie do gênero secundário, contudo, no processo de sua formação, incorpora e

reelabora diversos gêneros primários formados nas condições da comunicação discursiva

imediata. Esses gêneros primários (simples), ao integrarem os secundários (complexos),

transformam-se e adquirem um caráter especial. Perdem o vínculo imediato com a realidade

concreta e com os enunciados reais alheios. Bakhtin (2003, p. 263-264) exemplifica essa

relação de integração dos gêneros discursivos da seguinte forma:

A réplica do diálogo cotidiano ou da carta no romance, ao manterem a sua forma e significado cotidiano apenas no plano do conteúdo romanesco, integram a realidade concreta apenas através do conjunto do romance, ou seja, acontecimento artístico-literário e não da vida cotidiana. No seu conjunto o romance é um enunciado, como réplica do diálogo cotidiano ou uma carta privada (ele tem a mesma natureza dessas duas), mas à diferença deles é um enunciado secundário (complexo).

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Na expressão de Bakhtin (2003, p. 268), os gêneros discursivos são “correias de

transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem”. Para ele, nenhum

fenômeno novo, quer seja fonético, léxico ou gramatical, pode integrar o sistema da língua

sem passar por longo e complexo caminho de experimentação e elaboração de gêneros e

estilos. Esta afirmação permite inferir que a evolução da linguagem literária, em cada época,

depende, em parte, das condições determinadas pelos gêneros dominantes do discurso, tanto

os primários, quanto os secundários. Ao se integrarem na linguagem literária, esses gêneros

renovam-se reciprocamente.

São ilimitadas as possibilidades de relações entre os gêneros do discurso, em razão da

natureza inconcludente do diálogo humano. Assim sendo, além das relações verticalizadas

entre primários e secundários, os gêneros interagem horizontalmente, entre os campos de

atividade, renovando-se por meio de diversos fenômenos, especialmente o da estilização.

Afirma Bakhtin (2003, p. 268): “Onde há estilo há gênero. A passagem do estilo de um

gênero para outro não só modifica o tom do estilo nas condições do gênero que não lhe é

próprio, como destrói ou renova tal gênero”.

A estilização, assim como a paródia e a polêmica interna velada, que são as variantes

predominantes no discurso bivocal, constrói-se na duplicidade de sentido dos enunciados.

Esses fenômenos, além de outras variações do discurso de dupla voz, essenciais ao processo

comunicativo dialógico e consequentemente à polifonia, manifestam-se através dos estilos

consagrados de transmissão de discurso do outro, quais sejam, discurso direto, indireto e

indireto livre.

Por esta razão, ao analisar-se o texto literário visando ao enfoque dialógico, deve-se

atentar para os pontos da narrativa centrados naqueles discursos que transmitem outros

discursos, explícita ou implicitamente. A forma explícita e mais facilmente observável é o

discurso direto. O discurso indireto e o indireto livre apresentam certo grau de sutileza que

pode dificultar a percepção da palavra estranha ao enunciado do narrador, sendo, às vezes,

quase imperceptível no discurso indireto livre. Observa Bakhtin (2006) que a enunciação do

narrador, ao integrar à sua composição outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas

e composicionais para assimilá-la parcialmente ou para associá-la à sua própria enunciação,

ainda que conserve, pelo menos sob uma forma rudimentar, a autonomia primitiva do discurso

do outro.

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A partir desse conjunto de observações sobre as relações discursivas, bem como do

exame da tradição dos gêneros literários na formação do romance polifônico, Bakhtin (2002a)

elabora o esquema tipológico dos discursos que racionaliza a sua teoria, dando-lhe, nesse

particular, um caráter metodológico para a análise do procedimento artístico-literário na

criação da obra polifônica. Assim ele sistematiza didaticamente os discursos, classificando-os

de acordo com as condições que possui cada variante de expressar vozes concomitantes. Essa

sistematização, numa abstração ampla, separa os discursos em monovocais e bivocais.

Os discursos monovocais estão subdivididos em:

Tipo I – discurso direto imediatamente orientado para o seu referente como expressão

da última instância semântica do falante. Também denominado por Bakhtin (2002a, p. 186)

como discurso referencial direto e imediato. Aquele que nomeia, comunica, enuncia e,

representa. Este tipo de discurso visa à interpretação referencial e direta do objeto, sendo

essencialmente monofônico, por não permitir, em regra, a participação de outra voz que

apresente um ponto de vista diferente sobre o mesmo objeto. Em geral constitui o discurso do

autor, enquanto instância semântica soberana de uma narrativa; e

Tipo II – discurso objetificado (discurso da pessoa representada). Este tipo de discurso

é também essencialmente monofônico, como se depreende da própria definição. Trata-se de

um discurso-objeto, cuja função é servir aos ideais e aos planos arquitetônicos da obra

traçados pelo autor. Caracteriza o discurso direto do herói, o qual, embora tenha uma

aparência de autonomia, é dominado pelo discurso do autor, distinguindo-se deste pela

distância, em perspectiva, na qual é mantido enquanto objeto de sua orientação. Afirma

Bakhtin (2002a, p. 187) que sempre que há no contexto do autor um discurso direto,

verificam-se nos limites de um contexto dois centros e duas unidades do discurso. A unidade

da enunciação do autor e a unidade da enunciação do herói. Sendo que esta segunda unidade

não tem autonomia, subordina-se à primeira e dela faz parte como um de seus momentos.

Esses tipos de discurso predominam nas formas narrativas monológicas. O que não

significa afirmar que não se encontrem ao lado desses discursos outros do tipo bivocal, porém

não de forma dominante como acontece nas obras polifônicas.

O tipo III é o discurso bivocal, classificado por Bakhtin (2002a, p.199) como discurso

orientado para o discurso do outro. Esse tipo, numa abstração mais restrita, engloba algumas

variantes com diferentes níveis de possibilidades dialógicas, principalmente a estilização; a

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paródia; e a polêmica interna velada. Mas não esgota as possibilidades de ocorrências do

discurso bivocal e as possíveis formas de orientação para o discurso do outro, sendo uma

classificação apenas exemplificativa.

A estilização consiste no uso de um discurso do outro, mantendo-se as evidências da

autoria, com inserção de alguma inovação da parte do estilizador. Na concepção de Bakhtin

(2002a, p. 190), o que importa ao estilizador é o conjunto dos procedimentos do discurso do

outro como a expressão de um determinado ponto de vista. Nesse caso, a atitude do autor não

penetra o âmago da fala da personagem, ele a observa de fora, o que não proporciona um

diálogo significativo. O discurso monovocal ao ser estilizado se convenciona, tornando-se

discurso bivocal de orientação unívoca. Aquele em que a ideia do autor não entra em choque

com a ideia do outro, mas apenas acompanha o seu sentido, tornando-o convencional.

Quando o discurso do outro é usado como próprio, ou seja, sem que se conservem as

marcas autorais, em vez de estilização tem-se a imitação, portanto, um discurso monovocal.

A paródia também utiliza o discurso do outro com as marcas de autoria preservadas,

como na estilização. No entanto, uma grande diferença se estabelece entre essas variantes,

pelo contraste dos pontos de vista que torna a paródia um discurso bivocal de orientação

vária, propícia ao processo dialógico. Afirma Bakhtin (2002a, p. 194): “A segunda voz, uma

vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga

a servir a fins diametralmente opostos. O discurso se converte em palco de luta entre duas

vozes”.

Por derradeiro, a polêmica interna velada, dentre as variantes do discurso bivocal, é a

que apresenta a maior possibilidade para expressão de diversas vozes simultâneas, a qual

Bakhtin (2002a, p. 200) denominou “tipo ativo”, ou discurso refletido do outro. Consiste em

um discurso que se constrói em reação a enunciados de outros. Enunciados esses que nem

sempre são explícitos, mas apenas percebidos no discurso polemizado, como réplicas a

discurso imaginado, ou proferidos por um interlocutor ausente ou presente oculto. Afirma o

teórico: “O discurso do outro influencia de fora para dentro; são possíveis formas sumamente

variadas de inter-relação com a palavra do outro e vários graus de sua influência deformante”.

Dentro desse tipo ativo do discurso bivocal encontram-se os discursos: autobiográfico,

confessional, polemicamente refletidos, réplica do diálogo, diálogo velado e outros discursos

que visam ao discurso do outro.

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De acordo com o que se afirmou em tópico anterior, não é de se esperar n’Os Lusíadas

uma ocorrência significativa de discurso do tipo III (bivocal), pelas próprias limitações

históricas das formas literárias de sua época e também pela limitação do gênero narrativo

épico, o qual, de acordo com Bakhtin (2002a, p. 109), tem suas raízes nos gêneros sérios,

formadores da linha do romance monológico. As dimensões lírica, alegórica e parodística do

poema camoniano possibilitam, entretanto, a existência de discursos bivocais, sejam de

orientação única ou até mesmo com tendências ao tipo de orientação vária. A presença de

discursos dessa natureza constitui importante influência na transição definitiva de uma

narrativa mimética, inspirada na antiguidade clássica, para uma narrativa original,

representativa da experiência do homem em suas múltiplas relações com o mundo no presente

de sua existência. Forma essa que se estabelece com a grande paródia de Cervantes.

O seguinte pensamento de Bakhtin (2002a, p. 34) reforça esta assertiva: “Ao lado de

Rabelais, Cervantes, Grimmelshausen e outros, Shakespeare pertence àquela linha da

literatura europeia na qual amadureceram os embriões da polifonia [...]”.

De início, salta aos olhos do analista a diversidade de emissores de discurso no estilo

direto que compõe a estrutura narrativa d’Os Lusíadas, fator que induz um juízo superficial de

presença de polifonia. Não obstante, é oportuno reiterar que a multiplicidade de vozes por si

só não caracteriza polifonia.

Assim sendo, analisamos os discursos mais relevantes ao escopo do trabalho proposto,

através de um recorte esquemático, visando à apreciação das possibilidades oferecidas

concretamente pelo texto em cada enunciação examinada. Isto suscita a necessidade de

abstraírem-se ao máximo as inferências à biografia do autor, embora legítimas. Portanto, toda

referência aos termos autor ou poeta significará autor-criador, o qual não deve ser confundido

com autor-pessoa, ou biográfico. Bakhtin (2003, p.192) apresenta, dentre outros, o seguinte

entendimento sobre a concepção de autor:

No interior da obra, o autor é para o leitor o conjunto dos princípios criativos que devem ser realizados, a unidade dos elementos transgredientes da visão, que podem ser ativamente vinculados à personagem e ao seu mundo. Sua individuação como homem já é um ato criador secundário do leitor, do crítico, do historiador, independentemente do autor como princípio ativo da visão – um ato que o torna pessoalmente passivo.

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Obviamente, um inteiro isolamento da pessoa do autor é impossível por tornar

incompleta a tarefa da análise, especialmente no caso de Camões, o qual insere

sistematicamente na obra dados autobiográficos em linguagem denotativa. De qualquer modo,

tentamos evitar as possíveis armadilhas que levem à confusão dessas instâncias, assim como

procuramos não confundir autor e narrador, adotando-se para este último a denominação usual

em narrativa épica, narrador onisciente. Além dessas duas instâncias enunciativas,

consideramos o discurso narrativo do protagonista e as enunciações das personagens cujos

discursos tendem a apresentar uma duplicidade de voz ou traços de gênero da linha formadora

do romance polifônico.

2.1.1 Discurso do Autor

O autor fala em primeira pessoa no início do poema (exórdio), espaço em que expõe a

matéria a ser narrada, invoca a proteção das musas e enuncia a dedicatória ao rei. Dedicatória

essa que é reiterada no epílogo do poema. Invoca as musas por mais três vezes no curso da

narração e fala no encerramento dos cantos I, V, VI, VII, VIII, IX e X. Ademais, irrompe

algumas vezes na narração do narrador onisciente e do protagonista emitindo juízos de valor

sobre a matéria narrada.

Essa participação do autor na narrativa diferencia-se completamente da participação

do poeta nos poemas homéricos, nos quais a narração é atribuída integralmente a uma

entidade narradora, representada pela divindade poética (musa). Assim inicia-se a Ilíada:

“Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles [...]”. O poeta invoca a musa para cantar e se ausenta.

Na recitação, como eram transmitidos originariamente esses poemas, acontecia como se o

poeta, ou aedo, incorporasse uma entidade sobrenatural que contava a história pela sua boca,

com uma ciência superior, dotada de uma visão englobante e acabada de todos os fatos e

personagens, pelo distanciamento épico.

Na origem, portanto, podemos dizer que a voz poética coincidia com a voz de uma

pessoa natural, o recitante, que era o próprio Homero. Mas, uma vez arrebatada pela

divindade poética para contar a história que demandava conhecimento de ordem universal e

superior (física e metafísica), ao do alcance das pessoas do presente da enunciação, a voz do

poeta mantinha-se neutralizada.

Ao passarem esses poemas à forma escrita, sem que se perdessem a verossimilhança e

o elã artístico-literário, fixou-se em uma forma estética de linguagem essa voz do poeta que

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relembra Homero como autor e, ao mesmo tempo, recupera a voz da entidade que detém o

conhecimento da verdade absoluta, que narra a história, agora em silêncio, a um ouvinte

(leitor) solitário. A essa entidade, convencionou-se denominar narrador, que é na verdade uma

função estética representativa da voz que outrora contava a história. Portanto, nas formas

escritas o poeta passa a ser o autor implícito, conforme a concepção de Todorov (1973) a

respeito dessa função estética, e autor-criador para Bakhtin (2003). Em geral, esse autor

implícito limita-se à introdução e aos esclarecimentos necessários do processo criativo da

obra, conferindo ao narrador a função de contar a história, distiguindo-se, assim, o autor do

narrador e da pessoa que compõe a obra. É oportuno ressaltar que para ambos os teóricos

citados não se deve considerar o autor explícito na obra. Por mais que seu discurso pareça

autobiográfico, o autor será sempre implícito, uma instância criadora. Afirma Todorov (1973,

p. 71): “Desde que o sujeito da enunciação se torne sujeito do enunciado, não é mais o mesmo

sujeito que enuncia [...]. O autor é inominável, se quisermos dar-lhe um nome ele nos deixa o

nome, mas não se encontra por detrás dele”.

Nesta linha de raciocínio, entende Bakhtin (2003, p. 191) que o autor deve ser

considerado, antes de tudo, a partir do acontecimento da obra como participante dela, como

orientador do leitor. Para Bakhtin, compreender o autor no universo histórico de sua época, no

seu lugar no grupo social, sua posição de classe é possível, mas saímos do âmbito da análise

do acontecimento da obra e entramos no campo da história.

A Odisseia, igualmente à Ilíada, inicia-se com o poeta invocando a musa: “Canta-me,

ó musa [...]/Conta-nos, também/começando onde quiseres[...]”. Uma vez invocada, a musa

passa a recitar ou narrar pelo poeta.

No tocante à narração d’Os Lusíadas, nota-se uma identificação maior com a epopeia

de Virgílio, Eneida. Nesta, o poeta já se apresenta como autor implícito e narrador, “[...] de

Marte ora as horríveis/Armas canto [...]”, embora a narração, propriamente dita, passe a ser

conduzida por uma instância narradora onisciente, em terceira pessoa, seguindo daí em diante

o estilo de Homero.

Transcrevem-se os primeiros versos de Eneida para que se possa ter uma percepção da

diferença desta introdução para as introduções dos poemas homéricos e, ao mesmo tempo, da

semelhança entre esta e a introdução d’Os Lusíadas. A importância desta comparação está na

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forma pela qual os autores se posicionam na obra através do discurso, nas diferentes épocas

de enunciação dos poemas:

Eu, que entoava na delgada avena Rudes canções, e egresso das florestas Fiz que as vizinhas lavras contentassem A avidez do colono, empresa grata Aos aldeãos; de Marte ora as horríveis Armas canto, e o varão que, lá de Troia [...] Musa, as causas me aponta [...] (grifos nossos)

Neste trecho da obra de Virgílio já podemos perceber, além da presença autoral em

primeira pessoa, algum traço autobiográfico denotativo na fala do autor. Como, por exemplo:

“Eu que entoava na delgada avena”, “Rudes canções”, “egresso das florestas”, “A avidez do

colono” e “empresa grata aos aldeãos” são referências à sua poesia lírica, célebre pelo amor à

natureza e pela exaltação ao modo simples dos lavradores, expressos especialmente nas

Bucólicas e nas Geórgicas.

Semelhante procedimento não se observa nas obras de Homero. Fator esse que levou

Aristóteles (1993, p. 193) a afirmar:

Homero, que por muitos outros motivos é digno de louvor, também o é porque, entre os demais, só ele não ignora qual seja propriamente o mister do poeta. Porque o poeta deveria falar o menos possível por conta própria, pois, assim procedendo, não é imitador. Os outros poetas, ao contrário, intervêm em pessoa na declamação, e pouco e poucas vezes imitam (p. 129).

Essa impessoalidade da voz narrativa defendida por Aristóteles, em consonância com

o princípio da mimesis, tornou-se uma das regras do gênero épico, cujos fatos deviam ser

narrados com a máxima objetividade pelo distanciamento do poeta e do auditório dos

acontecimentos narrados, e pela intangibilidade da matéria épica que se devia ter em conta.

Na obra de Camões, a inserção do autor na narrativa se acentua exageradamente,

chegando a observar-se inclusive a sua influência no discurso do narrador onisciente,

atribuindo-lhe um relativo grau de parcialidade. Atributo esse não condizente com o estatuto

desse tipo de narrador, o qual deveria ser totalmente imparcial, segundo o cânone do gênero.

Essa inovação estilística de Camões, dentre outras, constitui uma das marcas denunciantes do

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arcaísmo do gênero narrativo épico. O novo modo de ver e pensar o universo e o próprio ser,

haurido na evolução do conhecimento da época, exige novas formas de narrativas em que a

realidade circunstante não seja apenas imitada pela literatura, mas dela faça parte em processo

simbiótico.

Seguindo, portanto, mais aproximadamente ao estilo de Virgílio, Camões inicia o seu

poema com o autor colocando-se também implicitamente na condição de narrador em

primeira pessoa: “Cantando espalharei por toda parte (I, 3, v. 7 )”. Condição que reafirma ao longo

do poema e termina por se declarar, não só o cantor, mas também o escritor: “Aqui minha Calíope, te

invoco/Neste trabalho extremo, por que em pago/Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo/O

gosto de escrever, que estou perdendo (X, 8, v. -7-8)”; “No mais, Musa, no mais, que a Lira

tenho/Destemperada e a voz enrouquecida/E não do canto, mas de ver que venho/Cantar a gente surda

e endurecida (X, 145, v. 1-4)”.

Nas primeiras estrofes d’Os Lusíadas, transcritas abaixo, o autor propõe a matéria a

ser narrada, que são as aventuras militares desenvolvidas através do mar, bem como as

memórias dos feitos históricos lusitanos precedentes às navegações, e invoca as musas:

1 As armas e os barões assinalados

Que, da Ocidental praia Lusitana Por mares nunca dantes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram;

2 E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando: Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3 Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta.

4 E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mi um novo engenho ardente, Se sempre em verso humilde celebrado

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Foi de mi vosso rio alegremente, Dai-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloco e corrente, Por que de vossas águas Febo ordene Que não tenham enveja às de Hipocrene.

5 Dai-me hüa fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda, Mas de tuba canora e belicosa, Que o peito acende e a cor ao gesto muda; Dai-me igual canto aos feitos da famosa Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; Que se espalhe e se cante no Universo, Se tão sublime preço cabe em verso. (canto I, 1-5 – grifos nossos)

Os pronomes e os tempos verbais conotam a enunciação do poema pelo próprio autor:

“Cantando espalharei”; “Que eu canto”; “Dai-me agora um som alto e sublimado”; “Dai-me

hüa fúria grande e sonorosa”. Entretanto, a narração será conduzida por um narrador

onisciente, cabendo ao autor as intervenções em outras invocações às musas e em algumas

digressões do sentido épico do poema.

Nota-se que ao invocar as musas, o autor, a exemplo de Virgílio, estabelece relações

com a sua própria poesia lírica: “E vós Tágides minhas”; “Se sempre em verso humilde

celebrado /Foi de mi vosso rio alegremente [...]”.

Pode-se notar também já nesta invocação alguma intertextualidade com Eneida.

Virgílio escreveu: “[...] delgada avena/Rudes canções” (livro I, v.1-2) e Camões escreve: “E

não de agreste avena ou frauta ruda” (canto I, 5, v.2), ambas as expressões possuem o mesmo

significado e o mesmo sentido, quais sejam: ambos os poetas usam a palavra avena com o

significado de flauta pastoril (feita do talo da aveia), simbolizando, como metáfora, a poesia

lírica considerada inferior à epopeia. Este procedimento de intertextualidade se repete ao

longo do poema, tanto com outros trechos da obra de Virgílio quanto com outras diversas

obras, inclusive líricas, como no caso da repetição na íntegra de um dos versos do soneto 53

de Petrarca: “Tra la spica e la man qual muro he messo” (IX, 78, v.10).

Essa diferença de procedimentos estilísticos percebida inicialmente já indica uma

evolução de gênero, de Homero (séc. VIII a.C.) para Virgílio (séc. I a.C.) e deste para Camões

(séc. XVI), embora não se possa ainda falar em polifonia, mas em um incipiente dialogismo

pela via da estilização e, especialmente n’Os Lusíadas, também pela via da ironia e do riso.

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Uma primeira novidade procedida na estrutura d’Os Lusíadas é a dedicatória inserida

no discurso introdutório e continuada no epílogo, a qual se estende da estrofe 6 (E vós, ó bem

nascida segurança /Da Lusitana antiga liberdade) à estrofe 18 do canto I, e da estrofe 146 à

estrofe 156 (Fico que em todo o mundo de vós cante/De sorte que Alexandro em vós se

veja/Sem à dita de Aquiles ter enveja) do canto X. Esse procedimento não é observado nas

obras clássicas antigas, incorporando-se como praxe a partir das obras humanistas e

renascentistas, devido à habitualidade do mecenato da qual dependiam o escritor e o artista

em geral.

Tal procedimento, no entanto, por si só não constitui elemento relevante para o estudo

dialógico, por se tratar de um discurso retórico, essencialmente monovocal, de natureza

puramente referencial. O autor dirige a palavra ao rei, às vezes em tom suplicante, às vezes

em tom imperativo, mas não há um desvio do sentido de suas palavras que permitam auscultar

qualquer outra voz que não a sua. Trata-se de um discurso inflexível voltado unicamente para

o seu objeto referencial, que é o próprio discurso (a dedicatória). Por isto neste ponto, como

na maior parte dos enunciados que compõe o discurso do autor, predomina o discurso de uma

só voz, do tipo I, definido por Bakhtin como referencial direto.

Esta é uma característica, segundo Bakhtin (2002a), do discurso do autor em geral,

mesmo nas obras que apresentam maior grau de dialogismo. O que pode ocorrer é uma

tendência à redução do discurso autoral e a uma crescente participação direta das personagens

à medida que aumenta o dialogismo da obra. Na obra polifônica, especialmente, o autor

abdica dessa autonomia absoluta, passando a dialogar no mesmo plano das personagens como

se pode notar no trecho abaixo destacado de Os Irmãos Karamazovi, de Dostoiévski (2006,

grifos nossos):

Alieksiéi Fiódorovitch era o terceiro filho de Fiódor Pávlovitch Karamazov, proprietário de terras em nosso distrito, muito lembrado pelo seu trágico e obscuro fim, ocorrido há trinta anos exatamente e sobre o qual escreverei em ocasião oportuna. Por enquanto, direi apenas que esse proprietário [...] (Livro Primeiro, I. Fiódor Pávlovitch Karamazov, p. 13). Ele completara vinte anos (o seu irmão Ivã tinha vinte e três e o mais velho, Dmítri, vinte e sete). Em primeiro lugar, declaro que esse jovem Aliócha não era absolutamente um fanático e, a meu ver, nem poderia ser considerado um místico. Darei antecipadamente toda a minha opinião [...] (Livro primeiro, IV. Aliócha, o terceiro filho, p. 24). É possível que algum dos leitores imagine o meu rapaz como uma criatura extática, um pálido e esgotado sonhador. Ele era, pelo contrário, nessa época, um jovem robusto, corado e até muito bonito [...]. É minha impressão, porém, que Aliócha era essencialmente realista [...] (Livro primeiro, V. Os anciãos, p. 32).

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Este destaque são trechos do discurso inicial do narrador, cujas expressões grifadas

demonstram a instabilidade da posição autoral. O discurso se refere ao herói do romance,

Alieksiéi Fiódorivitch, afetivamente apelidado “Aliócha”. A narração, no caso, é conduzida

formalmente em terceira pessoa, portanto, o narrador é autor implícito, onisciente e

onipresente, e em consequencia extradiegético. No entanto, alguns aspectos da narração

chamam a atenção para a total relativização desses caracteres. No plano sintático, nota-se uma

constante alternância entre a terceira e a primeira pessoa, bem como dos tempos verbais como

se o narrador fosse participante da história. No plano expressivo, conota-se um elevado grau

de afetividade, chegando mesmo à intimidade entre narrador e herói como se estivessem, de

fato, em um mesmo plano: “o meu rapaz”. Por fim, percebe-se a renúncia do autor ao seu

excedente absoluto de visão, através da indefinição do ponto de vista narrador: “a meu ver”;

“é minha impressão”.

Esta característica da narração de Os Irmãos Karamazovi faz com que o leitor somente

passe a ter o conhecimento da interioridade das personagens à medida que elas próprias forem

se revelando no diálogo umas com as outras. Assim, quase toda a narrativa é composta por

discursos diretos, indiretos e indiretos livres, sendo bastante reduzida a participação do autor-

narrador.

O discurso do autor n’Os Lusíadas, no conjunto das enunciações, é dominante e

autoritário, mas já se manifesta flexível em alguns pontos, especialmente nas digressões.

Momentos em que se torna possível perceber uma sutil tensão na passagem entre os discursos

do narrador e do autor, assim como entre os do narrador e do protagonista, causada pela

dubiedade das acentuações.

Esses pontos situam-se com maior clareza nas reflexões com as quais o autor encerra

sistematicamente sete dos dez cantos que compõem o poema e também nas invocações

reiterativas. Além dessas intervenções regulares, há momentos de irrupções da voz autoral no

discurso do narrador. De qualquer modo, o que se observa são discursos monovocais de

limites bem definidos, entre autor e narrador, narrador e protagonista e demais personagens

falantes, o que, de antemão, permite-nos descartar a possibilidade de considerar as diversas

vozes que falam no poema como vozes dialógicas, embora reconhecendo a riqueza do efeito

causado pela diversidade de sujeitos da enunciação. Não há, no entanto, uma recorrência

significativa de diálogo de vozes simultâneas em um mesmo enunciado. As vozes são

percebidas em sequência, o que Bakhtin chama de diálogo composicional.

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107

Neste sentido, já no Canto I percebe-se a intervenção do autor, no meio da estrofe 105,

encerrando o canto com uma reflexão acerca das vicissitudes da vida decorrentes da

fragilidade do ser humano diante da grandeza do mundo:

105 O recado que trazem é de amigos,

Mas debaxo o veneno vem coberto, Que os pensamentos eram de inimigos, Segundo foi o engano descoberto. Oh! Grandes e gravíssimos perigos, Oh! Caminho de vida nunca certo, Que aonde a gente põe sua esperança Tenha a vida tão pouca segurança!

106 No mar, tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade avorrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno?

(grifo nosso)

Esta reflexão conota a presença da voz autoral pela mudança da entonação,

caracterizada pelas locuções interjetivas (I, 105, v. 4-5) que interrompem o discurso objetivo

do narrador fazendo aflorar certa subjetividade na voz autoral: “Oh! Grandes e gravíssimos

perigos/Oh! Caminho da vida nunca certo”. Os sinais de expressividade reiterados, como as

interjeições, exclamações e interrogações lançam uma densa carga afetiva no discurso, cujo

campo semântico conota uma tomada de consciência sobre a posição do homem no universo:

“bicho da terra tão pequeno” (I, 106, v.8).

As demais digressões, com exceção daquela com a qual o poeta encerra o Canto VII,

seguem esta mesma linha de procedimento, apenas variando a temática no campo da ética e

da moral, sendo notável a distinção entre as entonações do autor e do narrador.

O Canto V termina com uma crítica à falta de reconhecimento da importância da arte e

das letras:

97 [...] Sem vergonha o não digo, que a rezão De algum não ser por versos excelente É não se ver prezado o verso e rima, Porque quem não sabe arte, não na estima.

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108

O poeta faz uma reflexão sobre a falta de sensibilidade, “quem não sabe a arte não a

estima”. Reflexão essa que se aplica adequadamente à modernidade (cuja racionalidade

despreza a arte) e, ainda com mais vigor, à nossa contemporaneidade, no contexto da indústria

cultural e da sociedade de consumo de que nos fala Theodor W. Adorno105 e Octavio Paz106.

No Canto VI, o poeta faz uma digressão de cunho moralizante sobre a maneira de se

alcançar a verdadeira glória:

95 Por meio destes hórridos perigos,

Destes trabalhos graves e temores, Alcançam os que são de fama amigos As honras imortais e graus maiores: [...]

O Canto VIII é encerrado pelo poeta com melancólica reflexão sobre o poder

corruptível do dinheiro e do ouro, principais motivos da expansão mercantilista:

96 [...] Veja agora o juízo curioso Quanto no rico, assi como no pobre, Pode o vil interesse e sede immiga Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

No Canto IX, o poeta faz uma reflexão moralizante sobre a honra, a fama e a glória,

que se traduz numa síntese do que foi refletido nas digressões anteriores, especialmente nos

Cantos VI, VII e VIII, sobre o verdadeiro valor da honra e da glória, o caráter excepcional do

herói ideal e o poder corruptível do ouro:

105 Adorno (2006, p. 27); “Com a nítida separação da ciência e da poesia, a divisão de trabalho já efetuada com sua ajuda se estende à linguagem. É enquanto signo que a palavra chega à ciência. Enquanto som, enquanto imagem, enquanto palavra propriamente dita, ela se vê dividida entre as diferentes artes, sem jamais deixar-se reconstituir através de sua adição, através da sinestesia ou da arte total. Enquanto signo, a linguagem deve resignar-se ao cálculo; para conhecer a natureza, deve renunciar à pretensão de ser semelhante a ela. Enquanto imagem, deve resignar-se à cópia; para ser totalmente natureza, deve renunciar a pretensão de conhecê-la. Com o progresso do esclarecimento, só as obras de arte autênticas conseguiram escapar à mera imitação daquilo que, de um modo qualquer já é”. 106 Paz (2003, p. 136): “A estética da modernidade, como observou um dos primeiros a formulá-la, Baudelaire, não é idêntica à noção do progresso: é muito difícil – e mesmo grotesco – afirmar que as artes progridem. Mas modernidade e progresso se parecem por ser manifestações da visão do tempo retilíneo. Hoje esse tempo se acaba. Assistimos a um fenômeno duplo: crítica do progresso nos países progressistas ou desenvolvidos e, no campo da arte e da literatura, degeneração da “vanguarda”. O que distingue a arte da modernidade da arte de outras épocas é a crítica – e a “vanguarda” deixou de ser crítica. Sua negação se neutraliza ao ingressar no círculo de produção e consumo da sociedade industrial, seja como objeto, seja como notícia. Pelo primeiro, a verdadeira significação do quadro ou da escultura é o preço; pelo segundo, o que conta não é o que diz o poema ou a novela e sim o que se diz sobre eles, um dizer que se dissolve finalmente no anonimato da publicidade”.

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92 Mas a Fama, trombeta de obras tais,

Lhe deu no mundo nomes tão estranhos De Deuses, Semideuses, Imortais, Indígetes, Heróicos e de Magnos. Por isso, ó vós que as famas estimais, Se quiserdes no mundo ser tamanhos, Despertai já do sono do ócio ignavo, Que o ânimo, de livre, faz escravo.

93 E ponde na cobiça um freio duro, E na ambição também, que indignamente Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente; Porque essas honras vãs, esse ouro puro, Verdadeiro valor não dão à gente: Milhor é merecê-los sem os ter, Que possuí-los sem os merecer. (Canto IX, 92-93, grifos nossos)

A reflexão sobre a cobiça, a ambição e a corrupção adapta-se também com perfeição

aos tempos atuais: “[...] essas honras vãs, esse ouro puro... é melhor merecê-los sem os ter, do

que possuí-los sem os merecer”.

No Canto X, o autor participa em diversos momentos. Sua voz se destaca pelo tom

lamuriento em um discurso carregado de traços confessionais e autobiográficos:

8 [...] Aqui, minha Calíope, te invoco Neste trabalho extremo, por que em pago Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo, O gosto de escrever, que vou perdendo.

9 [...] A Fortuna me faz o engenho frio,

Do qual já não me jacto nem me abono; Os desgostos me vão levando ao rio Do negro esquecimento e eterno sono. Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha Das Musas, co que quero à nação minha! [...]

145 No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Dhüa austera apagada e vil tristeza.

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Nos trechos exemplificados, o discurso autoral descreve uma curva descendente do

ânimo do poeta. Os enunciados estão centrados na função emotiva através de um discurso

interior que se assemelha ao que Bakhtin (2002a) denomina autobiografia e confissão

polemicamente refletida, característico da terceira variante do tipo III (discurso orientado para

o discurso do outro). Embora não se possam auscultar outras vozes além da voz do autor, tem-

se a sensação do diálogo pela presença de um interlocutor, mesmo que abstrato, servindo de

âncora ao discurso suplicante, “Aqui, minha Calíope te invoco [...] (estrofe 8)”, confessional e

polêmico, “A Fortuna me faz o engenho frio (estrofe 9)”/”O favor com que mais se acende o

engenho/Não no dá a pátria, não, que está metida/No gosto da cobiça e na rudeza (estrofe

145)”.

De todas as participações do autor, a mais significativa para a análise ora empreendida

é a digressão situada no canto VII, razão pela qual foi deixada para ser analisada por último.

Essa digressão merece atenção especial porque nela se percebe uma nítida inserção de

ambiguidade e ironia, elementos que são construídos na duplicidade de voz, fenômeno

discursivo essencial ao dialogismo que se transmite na composição dos romances pertencentes

à linha genealógica do polifonismo:

78 Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego,

Eu, que cometo insano e temerário, Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego, Por caminho tão árduo, longo e vário! Vosso favor invoco, que navego Por alto mar, com vento tão contrário Que, se não me ajudais, hei grande medo Que o meu fraco batel se alague cedo.

79 Olhai que há tanto tempo que, cantando O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, A Fortuna me traz peregrinando, Novos trabalhos vendo e novos danos: Agora o mar, agora esprimentando Os perigos Mavórcios inumanos, Qual Cânace, que à morte se condena, Nüa mão sempre a espada e noutra a pena;

Aqui a transição da narração do narrador para o autor é percebida principalmente em

relação à expressividade. A reticência que interrompe o discurso do narrador remete

subitamente o leitor a um contexto comunicativo de característica da expressão oral. Este

contexto é reforçado a cada frase decomposta por vírgulas, palavra a palavra, tornando o

discurso entrecortado pelo tom de emotividade, como se cada palavra carregasse por si só um

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enunciado que não se mostra explicitamente, mas que se completa no plano afetivo: “[...]

Mas”, “ó cego”, “eu” [...] (VII, 78, v.1).

Nota-se que a reticência suspende o discurso do narrador, enquanto a frase seguinte

inicia-se com a conjunção adversativa, conotando o deslocamento do sujeito da enunciação e

uma oposição ao seu discurso pela mudança de entonação. Aqui também se tem um discurso

monovocal, mas aparece uma duplicidade de sentidos nos enunciados que se seguem, gerada

na reação ao discurso interpelado. Assim, o discurso autoral deixa de ser referencial puro,

apresentando sinais de bivocalidade que varia entre o diálogo interno velado, a confissão e

autobiografia, e a polêmica. Todos esses estilos de enunciados são característicos da terceira

variante do tipo III (discurso orientado para o discurso do outro).

A interjeição “ó cego” seguida do pronome “eu” revela um procedimento estilístico

que consiste em dirigir a palavra a si como se fosse a outro, característica do diálogo interior,

ou solilóquio. Por um lado, se complementarmos o sentido do enunciado ligando-o, no plano

afetivo, ao contexto biográfico, o que é inevitável pela notoriedade da vida do poeta, temos

uma referência à sua condição física (a falta de um olho). Por outro lado, ligando esse mesmo

enunciado aos enunciados subsequentes: “que cometo insano e temerário/por alto-mar [...]”,

tem-se uma metáfora, significando a cegueira que o faz continuar a exaltar as figuras ilustres

de sua pátria e em vez de recompensas, “das capelas de louros que me honrassem”, é lançado

ao estado de miséria, desventura e desilusão, no desterro em que se encontra. Temos, assim, o

contexto histórico, pessoal e social a refletir-se na criação artística.

Esse aparte do autor no discurso do narrador faz subtender-se uma tensão entre uma

voz que quer manter-se condutora do fio narrativo e outra que a interpela, refutando o próprio

conteúdo dessa narrativa e reavaliando o motivo principal do canto. Tal motivo é o

merecimento daqueles ilustres que deveriam ser enobrecidos pela poesia, segundo o plano

épico, cuja demonstração estava prestes a ser iniciada com a descrição das bandeiras-insígnias

expostas na nau capitânia.

O verso no qual se dá a interrupção (canto VII, 78, v.1): “Um ramo na mão tinha...

[...]” é recuperado no canto seguinte pela repetição da frase (canto VIII, 1, v.3): “[...] um ramo

na mão tinha”, com a devolução da fala ao narrador depois de uma longa digressão de dez

estrofes, com a qual o autor encerra o canto VII. Isto revela um procedimento estilístico

consciente que, em princípio, também se observa nas epopeias de Homero. Ocorre que no

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caso de Homero, as longas digressões detinham-se a esclarecer detalhes de um objeto citado

ou de um acontecimento como no caso da cicatriz reconhecida pela escrava, cuja origem

Homero descreve minuciosamente. A diferença primordial é que Homero não se afastava do

plano da objetividade narrativa, ao passo que Camões situa sua digressão em outro plano. Sai

da fábula e passa à reflexão subjetiva, existencial. O autor provoca uma fratura no plano do

narrado, depois recupera esse plano deixando a fissura subjacente ao plano épico, criando

planos de enunciação sobrepostos à narrativa principal com sentidos diametralmente opostos.

Esta digressão chama a atenção, por exemplo, pela presença de alguns fatores

incomuns à narrativa épica, a começar pela carga emotiva do discurso, transmitida em uma

linguagem essencialmente conotativa e irônica.

Inicialmente melancólico, o autor invoca o favor das musas, não mais em tom

imperativo como nas duas invocações anteriores “Dai-me hüa fúria grande e sonorosa” (I, 5,

v. 1)/“Agora tu, Calíope, me ensina” (III, 1, v. 1), mas humilde e queixoso, “Vosso favor

invoco [...]” (VII, 78, v. 5). O discurso tende para a confissão e ao mesmo tempo ressalta um

caráter irônico, tendo como pretexto uma invocação às musas que se dá fora de uma

ordenação lógica da narrativa, se considerarmos que a descrição das bandeiras que se iniciaria

na voz do irmão do protagonista é uma repetição da história já contada pelo próprio

protagonista. Não se justificaria, pois, tal invocação, não fosse a necessidade de o poeta

restabelecer o equilíbrio de seu espírito para dar cabo de tão complexa tarefa. A tarefa de criar

uma epopeia em um contexto histórico defasado, cujos valores e ideais clássicos tradicionais

estão, na realidade, postos em dúvida.

As estrofes abaixo demonstram a encruzilhada em que se encontra o poeta, cujo

discurso revela certo grau de fragilidade, tornando-se ambíguo e permeável ao acento de

outras vozes. Através da construção textual ambígua, podemos ouvir ecos de vozes sociais

lançadas na e pela voz do autor expressa em tom reflexivo e ideológico, carregada de queixa,

contestação e ironia:

81 E ainda, Ninfas minhas, não bastava Que tamanhas misérias me cercassem, Senão que aqueles que eu cantando andava Tal prémio de meus versos me tornassem: A troco dos descansos que esperava, Das capelas de louro que me honrassem, Trabalhos nunca usados me inventaram, Com que em tão duro estado me deitaram!

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82 Vede, Ninfas, que engenhos de senhores O vosso Tejo cria valerosos, Que assi sabem prezar, com tais favores, A quem os faz, cantando, gloriosos! Que exemplos a futuros escritores, Pera espertar engenhos curiosos, Pera porem as cousas em memória, Que merecerem ter eterna glória!

(VII, 81-82, grifos nossos)

O conteúdo irônico deste enunciado do autor concentra-se nessas duas estrofes, cujas

frases dirigidas a um narratário abstrato, as “Ninfas”, são organizadas de modo que o sentido

irônico, direcionado a terceiros interlocutores difusos, seja captado pelos leitores reais

presumidos. Dentre esses leitores podem estar aqueles que são alvos da ironia. Este efeito é

transmitido a princípio no nível semântico, pela contradição entre o argumento levantado na

estrofe 81, em termos negativos: “[...] não bastava/Que tamanhas misérias me cercassem/ [...]

Trabalhos nunca usados me inventaram/Com que em tão duro estado me deitaram!” e a

dedução da estrofe 82, ironizando a anterior, em termos positivos no sentido literal: “[...] que

engenhos de senhores/O vosso Tejo cria valerosos”. Ao primeiro impacto o leitor é envolvido

pelo estranhamento da contradição no campo semântico, em seguida é apanhado pelo jogo

dos sinais de expressividade, frases interrogativas indiretas e exclamações, que dão o tom do

discurso falado, cotidiano. Estes recursos estilísticos induzem o leitor a formar um juízo,

diante da ambiguidade do enunciado. Juízo esse favorável à segunda intenção do autor,

consumando, assim, o ato irônico retórico. Aquele em que o autor do discurso logra

convencer o destinatário sobre uma verdade dita em forma de mentira.

Duarte (2006) define esse tipo de ironia como a figura de retórica em que se diz o

contrário do que se diz. O que implica o reconhecimento da potencialidade da mentira

implícita na linguagem.

Dispondo-se os versos da estrofe 82 na ordem direta e contínua, percebem-se melhor os

sentidos transmitidos em dois núcleos enunciativos bem definidos e encadeados.

Assim, tem-se nos quatro primeiros versos do primeiro núcleo:

1. Sentido literal, ou denotativo - Vede, Ninfas, que senhores, de valor, o vosso Tejo

cria, que sabem prezar e favorecer a quem cantando os faz gloriosos!

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2. Segundo sentido, ou sentido conotativo - Vejam, que senhores sem valor, nossa pátria

cria, que não sabem prezar a poesia que os torna gloriosos, recompensando com trabalhos

indignos, “Trabalhos nunca usados”, e com miséria “Com que em tão duro estado me

deitaram!”, aquele que a escreve!

Nos últimos quatro versos, segundo núcleo, tem-se o arremate da crítica:

1. Sentido literal, ou sentido denotativo: Que bom exemplo são esses senhores para

futuros escritores, para espertar engenhos curiosos, para porem em memória as coisas, que

merecerem ter eterna glória!

2. Segundo sentido, ou conotativo: Que mau exemplo são esses senhores para futuros

escritores, para espertar engenhos curiosos, para porem em memória as coisas, que merecerem

ter eterna glória!

A manifestação dialógica nesses enunciados é extremamente sutil, pois não reflete

propriamente outra voz, apenas se ouve a voz do autor dirigindo-se concomitantemente a três

interlocutores: ao narratário (as ninfas), aos destinatários da crítica implícita na ironia e aos

leitores presumidos. Nesse tipo de discurso a percepção comum ao leitor é a de que alguém

está falando sozinho, queixando-se, blasfemando e confessando. Trata-se, então, de um

discurso que varia entre a polêmica velada, a autobiografia e a confissão polemicamente

refletida. Todos pertencentes à terceira variante (discurso refletido do outro) do tipo III (do

discurso bivocal). Neste caso, não há palavras propriamente refletidas no discurso, mas há

atitudes de outros que influenciam o discurso de fora para dentro, das quais tomamos

conhecimento através da reação veiculada pelo duplo sentido do enunciado.

Essa ironia implícita no discurso do autor é um traço de gênero significativo como

embrião de polifonia, uma vez que esse recurso retórico e estilístico está diretamente ligado à

tradição literária radicada nos gêneros do sério-cômico, especialmente nos diálogos

socráticos. Apresenta, assim, características de sátira menipeia, fenômeno que exerce

importante influência na evolução da linha de formação do romance dialógico.

É de suma importância destacar a influência da ironia nas transformações dos gêneros

literários. De um modo geral, o elemento irônico penetrou o discurso literário, assumindo

diferentes modalidades, conforme aludidas por Duarte (2006, p. 17): “ironia trágica, cômica,

de modo, de situação, filosófica, prática, dramática, verbal, retórica, auto-ironia, socrática e

romântica”. Ao lado do riso, impregnadas nos discursos satíricos e parodísticos, essas

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modalidades dão uma nova conformação à narrativa, fazendo pulsar na literatura a

diversidade das vivências humanas em seus processos quase imediatos de acontecimentos,

viabilizando especialmente a representação dos vícios e das virtudes humanas presentes nas

mais diversas condições existenciais.

Duarte afirma (2006, p. 17-18), ao examinar a influência da ironia na literatura:

Uma das distinções entre literatura clássica e romântica/moderna tem como base o uso da ironia: a posição do autor literário (e do artista em geral), no classicismo, é a de quem está imbuído de “autoridade” e tem algo a dizer – uma verdade a transmitir, uma lição a comunicar, adotando de modo geral a postura do demiurgo, esse autor não se coloca explicitamente em sua obra. A partir do romantismo e seus pressupostos de liberdade, marca-se a revolta do indivíduo contra uma sociedade que o ignora na sua subjetividade e individualidade, condenando-o a reprimir seus desejos e emoções, em nome de valores morais absolutos, fundamentados na verdade e no bem estabelecidos pela sociedade – governo e família. O eu começa então a falar em seu próprio nome na obra literária [...]. Desnudam-se assim ironicamente o fingimento e os sacrifícios na construção textual e, a partir dessa incorporação da ironia aos seus processos, a literatura deixa de pretender ser mimese, reprodução da realidade, e passa a revelar-se produção, linguagem, modo peculiar de se formular um universo, considerando-se a própria linguagem um mundo.

A partir desse ponto de vista de Duarte sobre a relação direta do fenômeno da ironia

com a mudança do processo criativo na literatura pelo deslocamento da posição do autor,

pode-se inferir que a presença recorrente do poeta na narrativa d’Os Lusíadas reduz a

distância hierárquica entre os planos em que se posicionam o criador (autor) e as criaturas

(personagens). Processo este que o aproxima de outras instâncias narrativas, causando uma

sensível redução de seu excedente de visão. Como consequência, observa-se uma relativa

autonomia de algumas das personagens, fator essencial à polifonia, além de permitir também

uma participação mais ativa do leitor à medida que este é levado ao exercício do raciocínio

para a compreensão dos sentidos implícitos.

O excedente de visão consiste na capacidade imanente a cada ser de visualizar partes

do outro que são inacessíveis ao seu próprio olhar. Decorre desta assertiva que na vida esse

excedente de visão é recíproco pelo seu caráter de imanência. Cada indivíduo vê as partes

inacessíveis ao outro e busca incessantemente enxergar-se por completo através do olhar do

outro. Assim afirma Bakhtin (2003, p. 21), ao tratar sobre o excedente da visão estética na

forma espacial da personagem:

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Quando contemplo no todo um homem situado fora de mim e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver [...].

A conclusão lógica da afirmação de Bakhtin é a de que, do mesmo modo que verei e

saberei algo do outro, esse outro verá e saberá algo de mim que eu, de minha posição fora e

diante dele, não posso ver nem saber.

Essa reciprocidade do excedente de visão não ocorre na ficção com a mesma

naturalidade e proporcionalidade que ocorre nas relações concretas da vida. O autor-criador,

por princípio ético e estético, detém o excedente de visão superior a todos os seres por ele

criados. Ele vê todas as personagens e conhece os seus pensamentos e destinos. Ele as finaliza

e determina suas identidades e características pessoais, sociais e ideológicas. Mas essas, pelo

princípio monológico, não são dotadas da mesma capacidade de visão do autor. Elas apenas

detêm a amplitude de visão que lhe for determinada, segundo as conveniências e

possibilidades artísticas de seu criador.

2.1.2 Discurso do Narrador

O discurso do narrador inicia-se no canto I, estrofe 19, verso 1: “Já no largo oceano

navegavam” e encerra-se na estrofe 144: “Assim foram cortando o mar sereno [...]/Entraram

pela foz do Tejo Ameno” (v.1 e 5). Este discurso difere do discurso do autor pelo grau de

objetividade. Como foco narrativo central dá o tom épico ao poema, narrando a viagem dos

lusitanos com a visão completa de todos os acontecimentos e de todas as personagens.

Apresenta o protagonista, que narra grande parte de história, e outras personagens que falam

em discurso direto.

O que chama a atenção para esse narrador, no poema camoniano, é a sua

parcialidade em alguns momentos da narrativa. Fator este que o afasta daquela regra

ontológica que não admite o envolvimento do narrador onisciente nos fatos narrados, por uma

questão da tradição do gênero e da verossimilhança.

A distância do narrador é o fator primordial na caracterização da narrativa épica.

Quando o narrador se aproxima demasiadamente dos fatos narrados, tende a perder a visão

completa e acabada da qual é detentor, pelo cânone do gênero, ao que Bakhtin (2003)

denomina de excedente de visão. Esse procedimento compromete a isenção de juízo sobre o

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narrado, criando precedentes para avaliações subjetivas, o que debilita o caráter épico. Esta

debilitação torna o discurso permeável às infiltrações de acentuações de outras vozes. Nota-se

isto no discurso do narrador n’Os Lusíadas, de forma bastante reduzida, mas significativa

para o estudo de seu aspecto polifônico, como, por exemplo, no início do Canto VII:

1 Já se viam chegados junto à terra,

Que desejada já de tantos fora, Que entre as correntes Índicas se encerra E o Ganges, que no Céu terreno mora. Ora sus, gente forte, que na guerra Quereis levar a palma vencedora: Já sois chegados, já tendes diante A terra de riquezas abundante!

2 A vós, ó gèração de Luso, digo, Que tão pequena parte sois no mundo, Não digo inda no mundo, mas no amigo Curral de Quem governa o Céu rotundo; Vós, a quem não somente algum perigo Estorva conquistar o povo imundo, Mas nem cobiça ou pouca obediência Da Madre que nos Céus está em essência;

(VII, 1 e 2 - grifos nossos)

Nestas estrofes demonstra-se a aproximação do narrador ao contexto do narrado pela

mudança dos tempos verbais e dos pronomes de terceira pessoa para segunda, sem que haja

sinais linguísticos de mudança do emissor. Não há no texto, portanto, indicação de mudança

de ponto de vista, mas conota-se uma acentuação de voz diferente que se inicia com uma

interjeição: “ora sus”, de exortação própria do discurso falado. Este procedimento causa

impressão de ouvir-se o discurso do autor juntamente ao do narrador. Fenômeno esse que

pode ser considerado um discurso de voz dupla, aquele orientado para a fala do outro, em

conformidade com proposição de Bakhtin (2002a), segundo a qual, na ausência de uma forma

adequada à expressão imediata das ideias do autor, tem-se de recorrer à refração dessas ideias

no discurso de outro. Neste caso, podemos estar diante de uma das variantes do discurso

bivocal de orientação única, comumente a estilização ou a narração do narrador com acentos

do autor.

Nas estrofes abaixo é possível notar-se de modo mais acentuado a aproximação e o

envolvimento do narrador ao plano do narrado:

82 Já não fugia a bela Ninfa, tanto

Por se dar cara ao triste que a seguia, Como por ir ouvindo o doce canto,

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As namoradas mágoas que dizia. Volvendo o rosto, já sereno e santo, Toda banhada em riso e alegria, Cair se deixa aos pés do vencedor, Que todo se desfaz em puro amor.

83 Oh! Que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava! Que afagos tão suaves, Que ira honesta, Que em risinhos alegres se tornava! O que mais passam na manhã e na sesta, Que Vénus com prazeres inflamava, Milhor é esprimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode esprimentá-lo.

(Canto IX, 82-83)

Essas estrofes representam o elevado grau de lirismo inserido no poema. Fazem parte

da descrição do jogo de sedução entre uma ninfa e um dos navegantes de Vasco da Gama,

Leonardo, cujo discurso será examinado oportunamente.

Neste episódio, Ilha dos Amores, em que o lirismo predomina, é evidente a expressão

de afetividade dos discursos diretos das personagens. Ocorre que o narrador se envolve de

forma inusitada, assumindo um discurso expressivo, característico de quem participa da

história falando, em vez daquele que simplesmente relata os acontecimentos.

As marcas do discurso falado emergem, mudando a entonação ao passar de uma

estrofe para a outra, sem que seja indicada a mudança de emissor, podendo-se concluir que há

uma infiltração, neste ponto, de outra voz imprimindo um caráter subjetivo e afetivo a esse

discurso. A começar pela interjeição, “oh!”, seguida de diversos termos apreciativos, tais

como, “que famintos beijos”, “que mimoso choro”, “que afagos tão suaves,” e encerrando-se

com um axioma sobre o prazer sensual: “milhor esprimentá-lo que julgá-lo/Mas julgue-o

quem não pode esprimentá-lo”.

Neste caso, tem-se também a sensação de ouvir a voz do autor no discurso do

narrador, pela subjetividade, pelo juízo de valor, pela afetividade, uma vez que não houve

formalmente a mudança de emissor. É como se, de um momento para outro, entrasse uma voz

a falar sem que a primeira fosse calada. Entre as frases exclamativas, por exemplo,

encontram-se frases narrativas que são claramente do narrador, como: “O que mais passam na

manhã e na sesta/Que Vénus com prazeres inflamava” (IX, 83, 5-6). Isto gera uma confusão,

mas não uma fusão das vozes. Por outro lado, as vozes também não entram em conflito. São

vozes consensuais, quanto ao sentido do enunciado em relação ao referente. Por esta

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característica, pode-se afirmar que se trata de uma estilização em que o autor usa o discurso

do narrador, como discurso do outro, nele inserindo acentos subjetivos que lhes dão um

caráter dúbio. É, portanto, uma das variantes do discurso bivocal de orientação única.

O que ocorre nesses pontos de convergência dos discursos do narrador e do autor

difere daquilo que ocorre em outros lugares do poema, como analisado no discurso do autor,

em que se operam verdadeiros apartes, com limites bem definidos onde inicia e termina o

discurso de um e de outro sujeito da enunciação. Cabe ressaltar, contudo, que não é comum ao

narrador nem ao autor participarem da narrativa épica, por serem instâncias formalmente

extradiegéticas.

2.1.3 Discurso do Protagonista

Semelhante aos heróis dos poemas de Homero e de Virgílio, o protagonista d’Os

Lusiadas narra a sua viagem começando in medias res. Procedimento que permite a narração

dos fatos históricos marcantes na consolidação da nação portuguesa até o presente da

enunciação. O que acontece dali em diante é contado pelo narrador.

A grande diferença entre os heróis greco-romanos e o lusitano é a ascendência divina

daqueles, que lhes permitia comunicar-se com os humanos e com as divindades. Esta

diferença é importante pela determinação do campo de visão dos heróis. Sendo Vasco da

Gama apenas humano, só pode narrar o que se passa no plano terrestre. O que se passa no

Olimpo e nas profundezas do reino oceânico só pode ser narrado pelo narrador onisciente e

pelas divindades atuantes na narrativa, através de seus discursos diretos.

Por esse motivo, cabe esclarecer que o contato do protagonista, assim como dos

demais navegantes com as deusas na Ilha dos Amores, tem um significado alegórico de

premiação desses navegantes. Mas é preciso notar que nesse contato não há propriamente

diálogo entre os navegantes e as deusas. Há somente monólogos e, de modo sutil, algum

diálogo interior, o que faz o episódio assemelhar-se a um sonho ou a uma miragem, tornado

mais evidente a separação do mito da realidade.

O discurso narrativo do protagonista, portanto, assim como a sua própria persona é

quase absolutamente objetificada pelo autor. Neste sentido não difere muito dos modelos

clássicos. Mas o que desperta a atenção é a pouca projeção do herói lusitano. O seu discurso,

no conjunto, é seco e protocolar, confundindo-se com o do narrador pela longa extensão e

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monotonia, e suas ações não se elevam à altura do que propõe o poeta na dedicatória: “[...]

Dou-vos também aquele ilustre Gama/Que para si de Enéias toma a fama” (I, 12, v. 7-8).

No contexto da narrativa, o que sobressai é a bravura dos vultos históricos descrita

pelo protagonista e, no plano divino, o conflito dos deuses, que determina o destino dos

navegantes lusitanos. É pela ajuda invisível dos deuses, intercedidos por Vênus, que vencem

os perigos que se apresentam durante a viagem. Essa presença marcante do mito é o que

sustenta o caráter épico do poema, entretanto ela vai se desvanecendo à medida que a

narrativa se encaminha para o fim e que o poeta já não consegue disfarçar a decepção e a

melancólica inspiração lírica própria dos maneiristas.

Não bastando a ofuscação implícita do protagonista, encontra-se no discurso do autor,

explicitamente, uma menção um tanto desonrosa para um herói épico:

Às Musas agradeça o nosso Gama O muito amor da pátria, que as obriga A dar aos seus, na lira, nome e fama De toda a ilustre bélica fadiga; Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, Calíope não tem por tão amiga, Nem as Filhas do Tejo, que deixassem As telas de ouro fino e que o cantassem. (Canto V, 99 - grifos nossos)

Esta alusão textual ao desmerecimento do herói (protagonista) pela poesia é um

contrassenso, pois o destronamento do herói significa o destronamento do próprio discurso

narrativo épico. Se não há herói-símbolo que mereça ser cantado, não há motivo para o canto,

ainda que se trate de uma figura representativa do legítimo herói (o coletivo). O termo

destronamento está sendo empregado no sentido da simbologia carnavalesca, em cujo ritual se

degradavam os elementos conservadores de poder, instituindo-se uma inversão na ordem

vigente.107 Esta infiltração de aspectos simbólicos do carnaval torna ambígua a proposição do

autor de cantar façanhas verdadeiras. Façanhas que são superiores às outras já cantadas em

outras narrativas:

107 No rito do destronamento, segundo Bakhtin (2002a), estava contido o ato de entronização, assim como neste já se vislumbrava a ideia do destronamento. Esses elementos são inseparáveis, tornando o rito biunívoco. Ou seja, através do cerimonial do destronamento transparece uma nova coroação. No ritual do destronamento, o destronado é despojado de suas vestes reais, da coroa e de outros símbolos de poder. É ridicularizado e surrado. Porém os elementos simbólicos desse ritual adquirem um segundo plano positivo, não representando uma negação ou destruição absoluta.

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Ouvi: que não vereis com vãs façanhas Louvar os vossos, como nas estranhas Musas, de engrandecer-se desejosas: As verdadeiras vossas são tamanhas, Que excedem as sonhadas, fabulosas, Que excedem Rodamante e o vão Rugeiro, E Orlando, ainda que fora verdadeiro. (Canto I, 11)

Essa é mais uma fissura (ruptura) que fragiliza a natureza épica do poema e o desvia

para uma forma narrativa híbrida que incorpora uma perspectiva de lirismo prosaico. Pois no

prosaísmo encontra-se o espaço para o destronamento do herói e para expressão mais ampla e

livre da subjetividade e do espaço para participação ativa do leitor.

Assim, entende-se que a perspectiva lírica d’Os Lusíadas que se compõe dos diversos

excursos, ou digressões da narrativa épica, é o lugar de possível presença de traços dialógicos.

Embora, pela tipologia dos discursos concebida por Bakhtin (2002a), haja pouca

probabilidade de encontrar-se enunciados dialógicos nos discursos referenciais e

objetificados, próprios do autor, do narrador e do herói, por serem, por princípio,

predominantemente monovocais.

A despeito dessa concepção de Bakhtin e do grau efetivo de objetificação, nesse

discurso ora analisado, vislumbram-se alguns traços dialógicos significativos para a gênese

polifônica pela infiltração de outras vozes.

Em algumas passagens percebe-se uma relativa tensão, que provoca a sensação de

ouvir-se a voz autoral junto à voz do protagonista, do mesmo modo como se identificou essa

segunda voz em alguns momentos do discurso do narrador. Noutras, o protagonista transmite

discursos de outrem através dos estilos direto, indireto e indireto.

Assim, observa-se nas estrofes abaixo a mudança de tom no discurso do protagonista,

no momento em que este prepara a introdução para a narrativa da tragédia de Inês, no Canto

III:

118 Passada esta tão próspera vitória, Tornado Afonso à Lusitana Terra, A se lograr da paz com tanta glória Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste e dino de memória, Que do sepulcro os homens desenterra Aconteceu da mísera e mesquinha Que despois de ser morta foi Rainha.

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119 Tu, só tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. [...]

120 Estavas, linda Inês, posta em sossego, [...] (Canto III, 118-120)

Com esta apostrofe ao amor, “Tu, só tu, puro amor, com força crua”, e a mudança do

tempo verbal para a segunda pessoa, “Estavas, linda Inês [...]”, verifica-se a mudança de tom

do discurso pelos acentos da voz lírica que vai permear o relato da tragédia, assumindo um

tom elegíaco após a consumação da morte:

134 Assi como a bonina, que cortada

Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lacivas maltratada Da minina que a trouxe na capela, O cheiro traz perdido e a cor murchada: Tal está, morta, a pálida donzela, Secas do rosto as rosas e perdida A branca e viva cor, co a doce vida.

135 As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando memoraram, E, por memória eterna, em fonte pura As lágrimas choradas transformaram. O nome lhe puseram, que inda dura, Dos amores de Inês, que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água e o nome Amores. (Canto III, 134-135, grifo nosso)

A voz do autor está caracterizada pela própria linguagem poética que não é própria do

protagonista. No entanto, não há indícios de mudança de enunciador. Assim, a voz autoral

entra no discurso do protagonista mudando o tom e a natureza do conteúdo. Surge a

emotividade, aflora o lirismo no campo semântico e na linguagem poética de natureza

elegíaca.

Deve-se ressaltar que neste trecho do discurso, comumente conhecido como episódio

de Inês, o discurso do protagonista confunde-se ao mesmo tempo com o discurso poético do

autor e do narrador. Alguns detalhes são narrados como se fora onisciente o protagonista.

Como por exemplo:

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Queria perdoar-lhe o Rei benino, Movido das palavras que o magoam; Mas o pertinaz povo e seu destino (Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. [...] (Canto III, 130, v. 1-4)

Nesse caso, verifica-se a presença do discurso bivocal, sendo que de orientação única,

uma vez que essas vozes tendem a se fundirem no mesmo sentido do referente, ou seja,

acabam se conciliando e, uma vez conciliadas, o discurso tende a se tornar monovocal. Este

canto, dentre os poucos que não é encerrado pelo autor, termina com a alusão ao amor, na voz

do protagonista, nesse mesmo tom de puro lirismo. A linguagem poética empregada foge ao

padrão convencional da narração do protagonista, revelando o acento da voz autoral, do poeta.

142 Mas quem pode livrar-se, porventura,

Dos laços que Amor arma brandamente Entre as rosas e a neve humana pura, O ouro e o alabastro transparente? Que, de hüa peregrina fermosura, De um vulto de Medusa propriamente, Que o coração converte que tem preso, Em pedra não, mas em desejo aceso? (Canto III, 142)

A estrofe apresentada acima demonstra a expressividade lírica com a qual é encerrado

o canto, através de um discurso repleto de interrogações sem que haja um interlocutor

aparente, o que caracteriza um discurso reflexivo, que se aproxima do diálogo interior, ou

solilóquio, que é um tipo de discurso pertencente aos gêneros cognatos derivados do campo

do sério-cômico. Consiste no diálogo do indivíduo com a sua própria imaginação, como se

falasse consigo próprio como se fosse outro, ou um eu duplicado. Bakhtin (2002a) denomina

diálogo com a própria fala.

Outro ponto que deve ser ressaltado no discurso do protagonista é o momento da

partida das naus da praia do Restelo:

88 A gente da cidade, aquele dia, (Uns por amigos, outros por parentes, Outros por ver somente) concorria, Saudosos na vista e descontentes, [...]

89 Em tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam As mulheres cum choro piadoso,

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Os homens com suspiros que arrancavam. Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Amor mais desconfia, acrescentavam A desesperação e frio medo De já nos não tornar a ver tão cedo.

90 Qual vai dizendo: “Ó filho, a quem eu tinha Só pera refrigério e doce emparo Desta cansada já velhice minha, Que em choro acabará, penoso e amaro, Porque me deixas mísera e mesquinha? Porque de mi te vás, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento Onde sejas de pexes mantimento?”

91 Qual em cabelo: “Ó doce e amado esposo, Sem quem não quis Amor que viver possa, Porque is aventurar ao mar iroso Essa vida que é minha e não é vossa? Como, por um caminho, duvidoso, Vos esquece a afeição tão doce nossa? Nosso amor, nosso vão contentamento, Quereis que com as velas leve o vento?”

92 Nestas e outras palavras que diziam, De amor e de piadosa humanidade, Os velhos e os mininos os seguiam, Em quem menos esforço põe a idade. Os montes de mais perto respondiam, Quase movidos de alta piedade; A branca areia as lágrimas banhavam, Que em multidão co elas se igualavam. (Canto IV, 88-92 – grifos nossos)

Neste ponto, o protagonista descreve o ambiente da despedida com tal expressividade,

que arrebata o leitor ao clima das grandes manifestações de despedida: “As mulheres cum

choro piadoso/Os homens cum suspiros que arrancavam”; “Os velhos e os mininos os

seguiam”.

É possível imaginar-se o episódio narrado em seu processo de acontecimento. Como

se o leitor a ele assistisse no presente do ato de leitura, pelas descrições detalhadas e pelas

falas diretas das mães, “[...] Ó filho, a quem eu tinha/Só pera refrigério e doce emparo” e

esposas, “[...] Ó doce e amado esposo/Sem quem não quis Amor que viver possa”, pela

presença de homens velhos e meninos, em multidão, cujos lamentos ecoam nos montes. Tudo

isto é produzido no jogo retórico e estilístico que gera um efeito de movimentação e de

burburinho no plano da enunciação. No conteúdo se estabelece uma dicotomia no ideal da

aventura que se inicia. De um lado o espírito cavaleiresco, disposto, cegamente, à aventura

pelo poder e pela fama. Do outro a intuição do povo, lamentando as perdas iminentes,

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medindo-se as consequências pelo espírito da razão e julgando as ambições desenfreadas de

poder e de riqueza.

Essa diversidade de falas e de imagens descritas traz para a narrativa o grande espaço

da praia, cujo movimento culminará com o discurso do velho venerando, a ser analisado em

momento posterior. É importante observar que esse alarido a ressoar no poema contribui para

compor o coro de vozes que se contrapõe ao discurso objetificado do narrador e do

protagonista. Com um detalhe, esse coro se compõe no interior do próprio discurso do

protagonista como uma espécie de contracanto, ou de paródia, pelo seu componente duplo

destronante.

Esse enunciado assume uma característica de discurso parodístico, portanto, bivocal de

orientação vária. Aqui as vozes não se conciliam, mas se contradizem em direção ao objeto

referencial, na síntese da voz da experiência do Velho do Restelo: “Ó glória de mandar, ó vã

cobiça/Desta vaidade, a quem chamamos fama!” (IV, 95, v. 1-2).

Não se pode deixar de trazer também ao exame do aspecto polifônico uma curta

passagem descrita pelo protagonista vivida pela personagem Veloso, um de seus marinheiros,

cujo discurso pode ser entendido como um marco essencial na guinada que Camões realiza

em sua epopeia no sentido do lirismo romanesco. Diz o protagonista:

31 É Veloso no braço confiado

E, de arrogante, crê que vai seguro; Mas, sendo um grande espaço já passado, Em que algum bom sinal saber procuro, Estando, a vista alçada, co cuidado No aventureiro, eis pelo monte duro Aparece e, segundo ao mar caminha, Mas apressado do que fora, vinha [...]

35 Disse então a Veloso um conpanheiro (Começando-se todos a sorrir): “Oula, Veloso amigo, aquele outeiro É melhor de descer que de subir.” -sim, é, responde o ousado aventureiro; Mas, quando eu pêra cá vi tantos vir Daqueles cães, depressa um pouco vim, Por me lembrar que estáveis cá sem mim. (Canto V, 31 e 35)

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Esta passagem se refere ao marinheiro que, confiante e atrevido, “arrogante”,

desembarca para se comunicar com os nativos. Sendo alvo de ataques e perseguição, regressa

pressuroso pelas ameaças, tornando-se motivo de riso para os companheiros.

Têm-se aqui o elemento irônico e o cômico, centrados no enunciado ambíguo do

companheiro: “Oula, Veloso amigo, aquele outeiro é melhor de descer que de subir”. O

elemento irônico está no duplo sentido, que se revela pelo contexto expressivo: discurso

direto, zombaria, “começando-se todos a sorrir”, emprego de palavras com significado real

(literal), “melhor de descer que de subir”, mas que induz o receptor (leitor), pelo contexto, a

captar o sentido que o enunciador deseja comunicar, ou seja, o segundo sentido. O sentido do

referido enunciado, não dito, é: com medo, foi muito mais fácil descer o outeiro do que subir.

Isto pode ser interpretado como uma insinuação de covardia daquele a quem se dirige a ironia,

no caso, Veloso. Trata-se, portanto, de um enunciado típico da sátira menipeia, que visa à

crítica com a exposição ao ridículo.

O riso, neste caso, é provocado pelo contexto da cena criada por meio da retórica. A

imagem da cena descrita se revela também na ambiguidade do enunciado do companheiro de

Veloso. Começando pela interjeição “Oula, Veloso amigo [...]”, que gera clima amistoso

propício ao humor, ele em seguida lança a ironia, que revela a cena do marinheiro,

“confiante” e “arrogante”, correndo com medo dos nativos. Tendo sido preparado o contexto

no jogo retórico entre o discurso do narrador-protagonista: “Estando, a vista alçada, co

cuidado/No aventureiro, eis pelo monte duro/Aparece e, segundo ao mar caminha/Mais

apressado do que fora, vinha” (V, 31, v. 7-10) e o discurso direto da personagem, o leitor é

envolvido pela aura do humor, despertando-lhe o sentimento do riso.

De acordo com Bergson (1983, p. 69) uma fonte inesgotável de efeitos engraçados é a

interferência de dois sistemas de ideias numa mesma frase. Esses efeitos ocorrem em geral

pela oposição entre o real e o ideal. Ora se diz o que deveria ser fingindo-se acreditar ser

exatamente o que é, nisto consistindo a ironia. Ora se diz explicitamente o que é, fingindo-se

acreditar que assim as coisas deveriam ser. Neste caso tem-se o efeito humorístico.

Na réplica de Veloso identifica-se, do mesmo modo, o elemento irônico e cômico.

Veloso responde com a mesma moeda, ou seja, com a mesma ironia e o mesmo senso de

humor, insinuando que voltara apressado por saber que os companheiros dependiam dele para

se defender: “Mas, quando em pera cá vi tantos vir/Daqueles Cães, depressa um pouco

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vim/Por me lembrar que estáveis cá sem mim” (V, 35, v. 8-10). Entretanto, no enunciado de

Veloso deve ser considerado um componente a mais de suma importância para a presente

análise que é a palavra refletida do outro. Veloso constrói a sua réplica sobre o enunciado do

companheiro, cuja confirmação, “Si, é [...]”, na realidade, tem o sentido de contestação. Trata-

se, portanto, de uma transmissão do discurso do outro com variação no acento, considerada

um discurso bivocal de orientação vária do tipo parodístico.

Outra passagem de relevante significação para a análise polifônica é a descrição da

faina marinheira durante uma tempestade. Nestas estrofes encontram-se enunciados

sutilmente dialógicos, de evidente originalidade de procedimento estilístico. O autor, lançando

mão do discurso direto da personagem, elabora uma fiel representação da movimentação dos

marinheiros em faina nos conveses, lutando contra a fúria dos ventos e das ondas.

Alguns aspectos estilísticos deste discurso chamam a atenção. Primeiramente é a

transposição da calmaria para a tempestade, que se percebe não só no conteúdo, mas na forma

e na expressividade.

A viagem transcorria tranquila. Veloso contava história, “Os doze pares de França”,

aos companheiros de serviço noturno no convés para passar o tempo. Mas, mal acaba a

história, iniciam-se os sinais da tormenta:

69 [...]

Contando assi Veloso, já a companha Lhe pede que não faça tal desvio Do caso de Magriço e vencimento, Nem deixe o de Alemanha no esquecimento.

70 Mas, nestes passos, assi prontos estando,

Eis o mestre, que olhando os ares anda, O apito toca: acordam, despertando, Os marinheiros dhüa e doutra banda. E, porque o vento vinha refrescando, Os traquetes das gáveas tomar manda. “Alerta (disse) estai, que o vento cresce Daquela nuvem que aparece!” (Canto VI, 69-70, grifo nosso)

Observa-se que a estrofe 69, pelos versos demonstrados, obedece a uma cadência e

acentuação constantes. Os versos são quase todos inteiros e não varia o emissor, que, no caso,

é o protagonista. Já, ao iniciar a estrofe seguinte, essa harmonia da narração em terceira

pessoa é desestabilizada pela conjunção adversativa com função de vocativo, “Mas”,

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alertando para a turbulência que se aproxima. Os versos passam a ser subdivididos, bipartidos

e tripartidos, varia o emissor e as palavras são de ação. Estes elementos imprimem o ritmo e

tom da expressividade que marca o discurso falado, no caso, os gritos do mestre e a

movimentação dos marinheiros: “O apito toca: acordam, despertando [...]”. “Alerta, disse,

estai [...]”.

A alternância de emissor por meio do discurso direto, ora do narrador, ora do mestre, é

um recurso estilístico que propícia o dialogismo dos enunciados. Nota-se que a frase: “Alerta,

disse, estai [...]”, é marcada de início pelo discurso direto (aspas do organizador)108, mas o

verbo que se segue na terceira pessoa, “disse”, demonstra que o protagonista continua com a

palavra, portanto, está-se diante de um discurso direto com aparência de discurso indireto.

Neste primeiro momento, portanto, não se pode falar em bivocalidade interna ao enunciado,

pois embora o verbo em terceira pessoa conote a emissão do discurso pelo protagonista, as

outras palavras pertencem, claramente, ao mestre, personagem referida. Esse procedimento

vai se tornando mais complexo nas estrofes seguintes, à medida que o perigo aumenta no

plano do narrado, tornando os enunciados cada vez mais dialogizados em suas estruturas

internas pela variação da tensão entre as vozes do narrador e da personagem.

Nas duas estrofes seguintes, é notável a progressão do diálogo juntamente com a

evolução do acontecimento que chega ao seu clímax na estrofe 72. Nota-se que continua a

predominar o discurso direto, mas com uma particularidade importante: vão-se reduzindo as

marcas definidoras dos emissores até as vozes se cruzarem nas enunciações, deixando de ser

percebidas individualmente, mas apenas sentidas no seu conjunto:

71 Não eram os traquetes bem tomados,

Quando dá a grande e súbita procela. “Amaina (disse o mestre a grandes brados), Amaina (disse), amaina a grande vela!” Não esperam os ventos indinados Que amainassem, mas, juntos dando nela, Em pedaços a faze cum ruído Que o Mundo pareceu ser destruído! (grifo nosso)

108 Na escrita original da primeira edição do poema não aparecem essas marcas textuais, somente o emprego dos verbos diferencia a voz do narrador (protagonista) da voz da personagem (CAMÕES, 1572). O organizador da edição tomada como base para a presente análise atualizou o texto para efeito didático sem, contudo, comprometer o sentido e o ritmo do poema.

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Nesta estrofe, supracitada, percebe-se que o protagonista marca a expressão direta do

mestre “Amaina (disse o mestre a grandes brados)/Amaina (disse), amaina a grande

vela!”[...]”, cujos tempos verbais, presente (amaina) e passado (disse), identificam os sujeitos

das enunciações e caracterizam ainda o discurso direto tendendo para o indireto.

Passando-se à estrofe 72, analisando ainda o aspecto dialógico do discurso, nota-se

uma crescente dificuldade em se distinguir a voz da personagem da voz do narrador-

protagonista:

72 O céu fere com gritos nisto a gente,

Cum súbito temor e desacordo; Que, no romper da vela, a nau pendente Toma grão suma de água pelo bordo. “Alija (disse o mestre rijamente), Alija tudo ao mar, não falte acordo! Vão outros dar à bomba, não cessando; À bomba, que nos imos alagando!” (grifo nosso)

Nos primeiros quatro versos não há qualquer sombra de dúvida de que se trata da voz

do narrador-protagonista, no discurso narrativo padrão, em terceira pessoa.

O dialogismo situa-se nos últimos quatro versos. Nesses versos, as marcas de fala

direta que aparecem (aspas e exclamações) são introduzidos pelo organizador. Neste caso,

também, a indicação das vozes se dá pelos tempos verbais: “Alija, disse o mestre rijamente”.

No quarto verso o verbo “disse” identifica a voz do protagonista introduzindo a fala da

personagem, portanto, continua-se no campo do discurso direto, pois o discurso indireto seria:

que alijasse, disse o mestre rijamente.

Nos três versos seguintes observa-se um contexto marcado pela dubiedade de vozes,

conforme o texto original (CAMÕES, 1572):

Alija tudo ao mar, não falte acordo, Vão outros dar à bomba, não cessando, À bomba, que nos imos alagando.

Os três versos se alternam pela expressividade, não definindo explicitamente quem os

enuncia, se o narrador-protagonista ou a personagem diretamente, apenas dá a entender que as

frases acentuadas pelo imperativo sejam da personagem, enquanto a frase intercalada, “Vão

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outros dar à bomba”, tanto pode ser de um quanto do outro. Há uma coincidência de três

modos no verbo “vão”: indicativo (presente), subjuntivo (presente) e imperativo (afirmativo),

dando margem a duas hipóteses. Na primeira, a enunciação pertencendo ao narrador-

protagonista, o verbo será do indicativo, o que é possível, embora fosse mais adequado usá-lo

no passado (foram), uma vez que ele narra em terceira pessoa. Na segunda hipótese, a

enunciação pertencendo ao mestre, o verbo é imperativo, o que também é possível, mas

provavelmente seria acentuado pela exclamação marcando a oralidade. Neste ponto situa-se o

caráter dúbio do discurso, pois se deve ressaltar que, sendo verdadeira a segunda hipótese, ter-

se-ia um discurso direto. Não havendo indícios para que se possa fazer esta afirmação, o que

se ouve é uma fusão das vozes do narrador e da personagem. Neste caso, estamos diante de

um discurso bivocal de orientação única (tipo III, primeira variante), o qual pela fusão das

vozes assume uma característica de estilização, reduzindo o grau de dialogicidade.

Na estrofe seguinte volta a registrar-se a marca do discurso narrativo do protagonista,

que, neste caso, é o verbo em terceira pessoa:

73 E correm logo os soldados animosos

A dar à bomba; [...].

2.1.4 Discursos das Personagens

São muitas as personagens atuantes que discursam diretamente no poema. Além disto,

são citados diversos discursos de personagens referidas, no estilo direto. No presente estudo,

analisamos alguns discursos de personagens atuantes, nos quais se vislumbra a existência de

traços polifônicos.

Assim sendo, destacam-se algumas vozes que se colocam numa perspectiva dialógica

dentro do próprio enredo da narrativa com posicionamentos axiológicos, que discutem,

refletem, e são capazes de assumir status semelhante ao do autor, como no caso do Velho do

Restelo, sem, contudo, descaracterizar a narrativa épica nuclear do poema.

2.1.4.1 Baco (Canto I)

Baco é a personagem mais polêmica do poema (o antagonista) e também aquela que

goza de relativa autonomia e liberdade, atuando nos três espaços, celeste (Olimpo), terrestre e

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oceânico. Participa do concílio dos deuses no Olimpo convocado por Júpiter e, não satisfeito

com as deliberações desses deuses, tenta sabotar a viagem, descendo à Terra, disfarçado em

humano. É impedido por Vênus, que intercede em favor dos lusitanos. Inconformado, desce

ao reino de Netuno, convencendo-o a reunir os deuses do oceano para impedirem a vitória dos

portugueses sobre a Índia, vitória essa profetizada por Júpiter.

Analisa-se a seguir um trecho de um dos discursos diretos de Baco que constitui um

exemplo de enunciação dialógica, demonstrável pela presença ativa da palavra do outro no

enunciado desta personagem:

73 [...]

E, enquanto isto só na alma imaginava, Consigo estas palavras praticava:

74 “Está do Fado já determinado Que tamanhas vitórias, tão famosas, Hajam os Portugueses alcançado Das Indianas gentes belicosas; E eu só, filho do Padre sublimado, Com tantas qualidades generosas, Hei-de sofrer que o Fado favoreça Outrem, por quem meu nome se escureça?”

Têm-se nos versos citados uma introdução ao discurso direto de Baco a contestar a

decisão de Júpiter e a maquinar uma trama para impedir os portugueses de alcançarem o

Oriente.

No trecho apresentado, a personagem formula o seu discurso interior como uma

réplica ao discurso de Júpiter, mas suas palavras não são dirigidas a um interlocutor. Ele

dialoga com a sua consciência, refletindo as palavras do outro. Sua enunciação reflete as

palavras proféticas de Júpiter:

24 “Eternos moradores do luzente,

Estelífero Pólo e claro assento: Se do grande valor da forte gente De Luso não perdeis o pensamento, Deveis de ter sabido claramente Como é dos Fados grandes certo intento Que por ela se esqueça, os humanos De Assírio, Persas, gregos e Romanos. [...]

28 Prometido lhe está do Fado eterno, Cuja alta lei não pode ser quebrada,

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Que tenham longos tempos o governo Do mar que vê do Sol a roxa entrada.” [...] (grifos nossos)

Foram grifadas as expressões que se percebem subjacentes ao discurso de Baco. Numa

possível decomposição do monólogo dialogizado de Baco pelo desenlace das vozes, obter-se-

ia, por paráfrases, o seguinte diálogo monologizado:

- A afirmação de Júpiter (Estrofe 28, v. 1-4): Prometido lhe (a gente de luso) está do

Fado (destino) eterno, cuja lei não pode ser quebrada (está determinado), que governem por

longos tempos o Oriente (o mar que vê do Sol a roxa entrada).

- A réplica interior de Baco (Estrofe 74, v.1-4): Já está determinado pelo fado

(destino) que os portugueses (a gente de luso) alcancem tamanhas vitórias, tão famosas

(vençam, governem) “Das Indianas gentes belicosas” (gente do mar que vê do Sol a roxa

entrada).

Neste fragmento analisado, percebe-se claramente a recuperação do sentido do

discurso de Júpiter efetuada por Baco, repetindo, em tom polêmico, quase as mesmas

palavras, para em seguinte lançar o questionamento.

-A afirmação de Júpiter (Estrofe 24, v. 6-8): Como é dos fados certo intento, que por

ela (gente de luso) se esqueçam (se escureça o nome) os assírios, persas, gregos e romanos.

- A réplica de Baco (Estrofe 74, v. 5-8): e eu, filho do “Padre sublimado” (filho do

próprio Júpiter), com tantas qualidades generosas (sentimentos nobres), hei de sofrer

(suportar) que o fado favoreça outrem para que o meu nome se escureça?

Neste outro fragmento, vê-se que o argumento de Júpiter é retomado já em tom de

questionamento, no plano sintático, inclusive, pela interrogação. Nesta enunciação, as

palavras do outro estão claramente refletidas já em grau de ativação de uma polêmica

explícita. Polêmica esta que vai influenciar todas as ações de Baco, imprimindo uma dinâmica

fundamental ao enredo do poema através da intriga e da polêmica velada.

Assim conclui Baco o seu monólogo na estrofe abaixo transcrita, expondo para si

mesmo o plano que intenciona implementar contra os portugueses, momento em que o

narrador reassume a narração:

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76 “Não será assi, porque, antes que chegado

Seja este Capitão, astutamente Lhe será tanto engano fabricado Que nunca veja as partes do Oriente. Eu decerei à Terra e o indignado Peito revolverei da Maura gente; Porque sempre por via irá direita Quem do oportuno tempo se aproveita.”

77 Isto dizendo, irado e quase insano, Sobre a terra africana descendeu, [...]

No que interessa à análise polifônica, este recorte parece suficiente por ser o mais

significativo para demonstrar, no plano da enunciação, o dialogismo implícito no discurso da

personagem em foco.

Este traço dialógico polemizado caracteriza o discurso de Baco como o que Bakhtin

(2002a) definiu em seu esquema tipológico como discurso refletido do outro, do tipo ativo, ou

seja, aquele discurso que reage à influência de um discurso externo. O sentido de ambos os

discursos entram em choque dialógico no interior de um mesmo enunciado.

Observa-se nesse enunciado de Baco que, efetivamente, estão contidos dois

enunciados em sentidos adversos sobre uma mesma matéria.

Este é um aspecto que se coaduna com os parâmetros da polifonia, o qual permite

colocar Camões o lado de Shakespeare, Balzac, Rabelais, Cervantes e outros, em cujas obras

Bakhtin (2002a) considera haver elementos de polifonia que vão ser coroados no romance

polifônico de Dostoiévski em diante.

Comparemos um trecho da obra Gente pobre de Dostoiévski analisado por Bakhtin

(2002a, p. 208-209 – grifo nosso), em que se observa um monólogo ao qual se assemelha o

discurso de Baco:

[...] O mundo das personagens ainda é restrito, estas ainda não são ideológicas. A própria humildade social torna essa mirada e polêmica interna direta e patente, sem aquelas complexíssimas evasivas internas que se transformam em verdadeiras construções ideológicas, que aparecem na obra mais tardia de Dostoiévski. Nesse período, porém, já se manifestam com plena clareza o profundo dialogismo e o caráter polêmico da consciência de si mesmo e das afirmações sobre si mesmo. “[...] Ele falava de brincadeira (eu sei que era de brincadeira), entretanto a moral da história é a de que não se deve ser peso pra ninguém; e eu não sou peso pra ninguém! Eu como do meu próprio pão; é verdade que é um pão simples, às vezes até seco é, mas eu tenho, eu consigo com esforços e o como legal e irrepreensivelmente. Mas fazer o que? Ora, eu mesmo sei que faço

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pouco copiando; assim mesmo eu me orgulho disto: eu trabalho, suo a camisa. Por acaso há algo de mal no fato de eu copiar? Por acaso é pecado copiar? Ora veja, ele é copista!... A propósito, há alguma desonestidade nisto?... Agora é que eu tenho consciência de que sou necessário, de que sou indispensável, de que não se deve desnortear uma pessoa com tolices [...]”. grifo nosso)

Nesse monólogo, afirma Bakhtin que a autoconsciência do homem revela-se no fundo

da consciência socialmente alheia do outro sobre ele. A afirmação de si mesmo soa como

uma constante polêmica velada ou diálogo velado que o herói trava sobre si mesmo com um

outro, um estranho.

Entende-se que esse discurso constitui um solilóquio, o qual não difere

fundamentalmente do discurso de Baco, a não ser na forma composicional (verso e prosa,

respectivamente). Porém, neste detalhe, a técnica do verso contínuo adotada por Camões

permite a disposição do texto em forma de prosa sem quaisquer alterações nas estruturas

sintáticas e semânticas:

E, enquanto isto só na alma imaginava, consigo estas palavras praticava:- Está do Fado já determinado que tamanhas vitórias, tão famosas, hajam os portugueses alcançado das indianas gentes belicosas; e eu só, filho do Padre sublimado, com tantas qualidades generosas, hei-de sofrer que o Fado favoreça outrem, por quem meu nome se escureça? [...] Não será assi, porque, antes que chegado seja este Capitão, astutamente lhe será tanto engano fabricado que nunca veja as partes do Oriente. Eu decerei à Terra e o indignado peito revolverei da maura gente; porque sempre por via irá direita quem do oportuno tempo se aproveita (I, 73, v.7-8, 74 e 76).

Observe-se que a disposição do texto poético como se fora prosaico e as marcas

linguísticas convencionais do discurso direto isolam a fala da personagem, afastando a voz do

narrador e destacando, assim, a relativa autonomia do discurso da personagem, sendo esse um

componente significativo para a polifonia e em nada diferindo de um texto em prosa.

Um fator de especial relevância para a caracterização do aspecto polifônico do poema

é a variação dos discursos: indireto, indireto livre e direto, com predominância do discurso

direto para as personagens secundárias, cujas enunciações compõem os excursos. Esse recurso

estilístico confere certo grau de independência e autonomia às vozes das personagens,

relativizando a autoridade das vozes do narrador e do próprio poeta, o que se constitui num

dos elementos fundamentais da polifonia. Não obstante, sabe-se que todos os discursos

obedecem ao desígnio do autor que, por fim, é quem dá o acabamento à obra em todos os seus

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aspectos. Neste sentido, podemos ouvir ressoar a voz do poeta até mesmo nos discursos

diretos das personagens.

No exemplo analisado, ouve-se a entonação da voz do poeta no desgosto de Baco, ao

queixar-se pela injusta fatalidade do destino, pela falta do reconhecimento de suas qualidades,

sem, contudo, fundir-se à voz da personagem. Assim como, nas vozes das personagens do

romance polifônico, por mais autônomas que possam parecer, ressoam a voz ideológica do

autor, pois como admite Bakhtin (2002a, p. 11), essa autonomia e liberdade das personagens

são relativas e não deixam de submeter-se ao plano do autor:

A impressionante independência interior das personagens dostoievskianas, corretamente observada por Askóldov, foi alcançada através de meios artísticos determinados. Trata-se, antes de mais nada, da liberdade e independência que assumem na própria estrutura do romance em relação ao autor, ou melhor, em relação às definições comuns exteriorizadas e conclusivas do autor. Isso, obviamente, não significa que a personagem saia do plano do autor. Não, essas independência e liberdade integram justamente o plano do autor. Esse plano como que determina de antemão a personagem para a liberdade (relativa, evidentemente) e a introduz como tal no plano rigoroso e calculado do todo.

Bakhtin adverte o leitor quanto a uma possível interpretação da ausência total do ponto

de vista autoral na obra polifônica. Isto não é possível, uma vez que a personagem é criação

do autor, portanto, predestinada a representar, no todo ou em parte, suas intenções e visões de

mundo. A obra será mais ou menos dialógica de acordo como a capacidade do autor em

visualizar por diversos ângulos o universo social e assim representando-o. Assinala Bakhtin

(2002a, p. 28):

[...] Deste modo, as contradições objetivas da época determinaram a obra de Dostoiévski não no plano da erradicação individual dessas contradições na história espiritual do escritor, mas no plano da visão objetiva dessas contradições como forças coexistentes simultâneas (é verdade que de um ângulo de visão aprofundado pela vivência pessoal).

A expressão dessas contradições objetivas da época é bastante visível também na obra

de Camões. Isto é engendrado pelo poeta através de diferentes enunciações, que, em suma,

refletem os diversos ângulos de sua visão de mundo, fundamentada no estudo e na experiência

de vida.

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O exemplo analisado, portanto, caracteriza-se como uma enunciação dialógica, nos

termos em que Bakhtin concebe o diálogo como premissa do discurso polifônico, aspecto que

será recorrente em variados graus nos discursos diretos de outras personagens.

2.1.4.2 Velho do Restelo (Canto IV)

O discurso desta personagem é, talvez, o que mais tem suscitado estudos, em razão de

seu posicionamento crítico contundente ante a ambição expansionista exploratória que

impedia de se medirem as consequências negativas na busca de fama e de riqueza. Discurso

esse que contradiz o escopo do poema que é a exaltação desse mesmo empreendimento que

ele condena.

No conjunto da narrativa, a fala do Velho do Restelo pode ser considerada um

contracanto que se alinha a outros emanados das personagens eleitas pelo poeta para revelar

juízo de valor diverso sobre os feitos exaltados no plano épico, tais como Baco e Adamastor.

Não que pareça estar nos planos do poeta a negação dos importantes feitos pátrios, mas sim

colocar em jogo, ao nível da narração, a realidade histórica do presente da enunciação do

poema, já bastante defasada de sua efabulação, e que não seria verossímil se dita pela voz do

próprio autor da epopeia.

Há diversas interpretações desse discurso, relacionando-o sempre ao contexto histórico

e ideológico do poeta. Alguns estudiosos entendem ser uma síntese das vozes sociais de

oposição à política dos descobrimentos. Para outros, o velho é o próprio Camões. Saraiva

(1972a) chega a afirmar que Camões inventou esta personagem para emitir certas sentenças,

para firmar a ideologia característica de sua formação humanista. Para ele, o velho é o

próprio Camões erguendo-se acima do encadeamento histórico e medindo, à luz dos valores

humanistas europeus, os acontecimentos pelos quais o povo está influenciado e de que ele

mesmo se faz cantor. Já Cidade (1985) observa que a repreensão do velho vai mais longe, a

todos os intentos de ultrapassar quaisquer vedados términos, acentuando a contradição entre o

autor do discurso que condena a largada da expedição de Vasco da Gama e o autor das oitavas

que exaltam a dilatação da Fé e do Império. Para ele, o poeta se mostra o homem que, no fim

do século, depois de todas as experiências pessoais e dos registros da história trágico-

marítima, não pode ter, em face da empresa, das suas consequências históricas, do seu

significado humano, o orgulho otimista do momento em que ela foi iniciada.

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Quer seja esse discurso interpretado como síntese da voz do povo que se opõe às

aventuras expansionistas ou como a voz ideológica do poeta, não se pode comprovar a relação

direta com a pessoa do poeta. Qualquer interpretação neste sentido não passa de conjectura,

que, embora embasada em pressupostos legítimos (traços autobiográficos), não pode ser

objetivamente demonstrada nos enunciados.

Apreciando-se o plano do conteúdo do discurso do Velho do Restelo, pode-se concluir

tratar-se de um discurso retórico e demasiadamente objetificado pelas intenções do autor,

portanto puramente monológico.

Entretanto, examinando-o no plano da expressividade, à luz da teoria polifônica,

encontram-se características marcantes do gênero da diatribe. Gênero que, à semelhança do

solilóquio, presente no discurso de Baco, além de outros gêneros cognatos, se desenvolveu no

seio da sátira menipeia. Este fator indica a natureza bivocal desse discurso.

A diatribe é um tipo de discurso literário considerado no estudo dos gêneros realizado

por Bakhtin (2002a, p. 120) como um “gênero retórico interno dialogado”, construído

geralmente em forma de diálogo com um interlocutor ausente. Procedimento favorável ao

processo dialógico entre discurso e pensamento.

As características do discurso do Velho do Restelo que fundamentam a sua associação

ao gênero da diatribe são as críticas e invectivas de cunho moralizantes, nas quais se

concentra a tônica da enunciação, além dos diálogos entabulados com os interlocutores

ausentes e indeterminados.

Têm-se, portanto, nas estrofes a seguir, selecionadas as passagens que evidenciam

essas características de gênero estranho à epopeia:

95 “Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça Cüa aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles esprimentas!”

(grifos nossos)

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Nessa primeira estrofe do discurso da personagem, está caracterizada a invectiva

contra os vícios humanos de que estão acometidos os empreendedores da viagem. Isto fica

claro pelas locuções interjetivas: “Ó gloria de mandar”, “ó vã cobiça”, “ó fraudulento gosto

que se atiça [...]”. É importante também notar que nesta estrofe não há referência a um

interlocutor, apenas se presume serem os portugueses da classe dominante, com poderes e

influência econômica para empreender tamanha aventura.

Na estrofe 97, abaixo transcrita, percebe-se um tenso diálogo unilateral, extremamente

marcado por frases interrogativas sem que haja qualquer menção a quem seja o interlocutor.

Ou seja, o diálogo é semelhante ao solilóquio, em que o enunciador parece estar falando

sozinho:

97 “A que novos desastres determinas De levar estes Reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhe destinas, Debaixo dalgum nome preminente? Que promessas de reinos e de minas De ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? Que histórias? Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?”

A diferença entre o solilóquio e esta enunciação é que, naquele caso, o sujeito dialoga

com seus próprios pensamentos (monólogo dialogizado) e neste os argumentos são

geralmente dirigidos a interlocutores presumidos, mas ausentes e não determinados. Quando

determinados, o são de forma genérica, como se pode perceber nas estrofes que são transcritas

a seguir:

98 “Mas, ó tu, gèração daquele insano Cujo pecado e desobediência Não somente do Reino soberano Te pôs neste desterro e triste ausência, Mas inda doutro estado mais que humano, Da quieta e da simpres inocência, Idade de ouro, tanto te privou, Que na de ferro e de armas te deitou:” (grifo nosso)

Nesta estrofe, percebe-se que a invectiva do velho venerando dirige-se a toda a

humanidade, “Mas, ó tu geração daquele insano”, marcada pelo pecado e pela desobediência

do primeiro homem (Adão).

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Na estrofe seguinte, o discurso é dirigido também a um interlocutor ausente e

determinado de forma genérica, referindo-se ao primeiro homem a se aventurar ao mar sobre

embarcação a vela, insinuando ser esse o culpado, como Adão, pela arriscada aventura dos

homens pelo mar:

102 “Oh! maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pôs em seco lenho! Dino da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa Lei que sigo e tenho! Nunca juízo algum, alto e profundo, Nem cítara sonora ou vivo engenho, Te dê por isso fama nem memória, Mas contigo se acabe o nome e glória!” (grifo nosso)

Pelos trechos citados, demonstra-se a compatibilidade do procedimento empregado no

discurso do Velho do Restelo com aquele que caracteriza a diatribe. Ou seja, o diálogo de um

indivíduo com as suas próprias ideias, expresso através do discurso invectivo.

Partindo-se deste princípio, pode-se afirmar que também nesse ponto do poema está

presente um elemento importante na composição de seu aspecto polifônico. Ressalte-se que,

sendo a diatribe um gênero intrínseco à sátira menipeia, também tem suas raízes no campo do

sério-cômico, portanto, na linha de evolução do romance dialógico.

Com relação à tipologia dos discursos, Bakhtin não menciona a diatribe

especificamente, mas inclui o diálogo velado, o qual também pressupõe um interlocutor

ausente, como variação dialógica do discurso refletido do outro (terceira variante do tipo III).

Razão pela qual entende-se que o discurso ora analisado pode ser considerado como

pertencente à categoria do diálogo velado, por ser um componente da diatribe e estar presente

de modo determinante neste discurso.

É necessário esclarecer que, embora ausente o interlocutor, é possível o diálogo velado

através do procedimento de antecipação da réplica. Isto é, o sujeito da enunciação fala

sozinho como se suas palavras fossem réplicas antecipadas a argumentos de outrem não

pronunciados, mas apenas imaginados. Têm-se, nesse caso, uma relação dialógica entre o

discurso e o próprio pensamento. Diálogo expresso por um só sujeito, mas refletindo um

discurso presumido de outro que, embora ausente ou mesmo inexistente, é o destinatário do

discurso.

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Bakhtin (2002a, p. 197-198) tece a seguinte consideração sobre o dialogo velado:

[...] Imaginemos um diálogo entre duas pessoas no qual foram suprimidas as réplicas do segundo interlocutor, mas de tal forma que o sentido geral não tenha sofrido qualquer perturbação. O segundo interlocutor é invisível, suas palavras estão ausentes, mas deixam profundos vestígios que determinam todas as palavras presentes do primeiro interlocutor. Percebemos que esse diálogo, embora só um fale, é um diálogo sumamente tenso, pois cada uma das palavras presentes responde e reage com todas as suas fibras ao interlocutor invisível, sugerindo fora de si, além dos seus limites, a palavra não pronunciada do outro. [...] em Dostoiévski esse diálogo velado ocupa posição muito importante e sua elaboração foi sumamente profunda e sutil.

O processo do diálogo velado conforme o concebe Bakhtin baseia-se na antecipação

da resposta a um suposto argumento de um interlocutor que poderá estar presente ou não. Isto

decorre de um processo lógico de raciocínio, frequentemente utilizado na comunicação

cotidiana, ou mesmo de um devaneio.

A estrofe 97, supracitada, sintetiza esse fenômeno do diálogo velado através de uma

construção textual plenamente expressiva pelas marcas do discurso oral quotidiano, cuja

tensão muitas vezes precipita o fluxo do pensamento, contendo os argumentos em

concomitância com as réplicas correspondentes e antecipadas mentalmente pelo enunciador,

como por exemplo, (v. 5-8):

Que promessas de reinos e de minas De ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? Que histórias? Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

A repetição das interrogativas: “Que promessas?”, “Que famas?”, “Que histórias?”,

“Que triunfos?”, “Que palmas?”, “Que vitórias?” e o ritmo em aceleração crescente a cada

verso (inteiro, bipartido, tripartido), entre outros aspectos, denuncia a tensão do discurso em

um contexto de oralidade. Desta maneira, mostra-se a repetição dos próprios enunciados de

outro como se fossem pronunciados, na forma afirmativa, por um interlocutor inaudível e

repetidos de modo reacentuado pelo enunciador primário, em forma de questionamento

irônico e polêmico.

A transmissão da afirmação do outro em forma de pergunta, afirma Bakhtin (2002a, p.

195), já leva a um atrito entre duas interpretações, uma vez que não apenas perguntamos

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como problematizamos a afirmação do outro. “O nosso discurso da vida prática está cheio de

palavras do outro”.

Diante dessas considerações, é possível afirmar que este discurso, também, contém

traços dialógicos que se somam aos de outros discursos na formação do aspecto polifônico do

poema.

2.1.4.3 O Gigante Adamastor (Canto V)

Adamastor é uma personagem de grande repercussão no poema camoniano.

Trata-se da personificação do cabo das tormentas como da superação do principal obstáculo

às navegações entres partes do mundo ocidental e oriental. O seu discurso está dividido em

dois segmentos de naturezas bastante distintas, tanto no plano do conteúdo quanto no plano da

expressividade.

No primeiro segmento (V, 41- 48), o discurso é performativo: autoritário e ameaçador,

condizente com a natureza épica da narrativa na qual está inserido. A personagem reage à

presença dos navegantes. É um discurso pragmático, que atende aos planos do autor na

composição da trama da viagem, trazendo à tona registros da história trágico-marítima

referentes a mortes e flagelos decorrentes de naufrágios a caminho do Oriente. Esses registros

serviram de fonte para a construção de um ponto de vista crítico dentro do enredo.

Acontecimentos que são revelados no poema através de vozes históricas refletidas na voz da

personagem, em perspectiva de futuro (tom de profecia), pelo procedimento estilístico de

inversão dos tempos do enunciado e da enunciação.

Ressalte-se que a inversão dos tempos, neste episódio, é fundamental para fazer

ressoar no discurso de Adamastor as vozes que testemunharam uma face trágica e indigna da

história marítima portuguesa que aqui se cruza com a fábula da ficção épica.

Considera-se como tempo da enunciação, para efeito desta análise, o tempo do poema.

Tempo em que os acontecimentos futuros anunciados na ficção constituem, na realidade,

passado histórico.

A história trágico-marítima portuguesa é constituída de relatos colhidos de pessoas

que sobreviveram aos naufrágios, por volta de 1552 a 1620, reunidos e publicados no século

XVIII pelo bibliófilo Bernardo Gomes de Brito, transformando-se em obra literária e ao

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mesmo tempo em documento histórico e humano. Segundo Brito (1984a), tais relatos são

unânimes em atribuir como causa principal desses naufrágios a ambição e a cobiça dos

mercadores (incluída a gente fidalga) que não hesitavam em carregar excessivamente os

navios, na ânsia do lucro e do rápido enriquecimento, pondo em risco as suas próprias vidas e

dos demais passageiros e tripulantes.

Destaca-se uma passagem correspondente a uma ofensiva dos holandeses ao apreenderem

uma nau portuguesa, segundo relato da época coletado por Brito (1984a, p.17):

Dizei, gente portuguesa, que nação haverá no mundo tão bárbara e cobiçosa que cometa passar o cabo de Boa Esperança na forma que todos passais, metidos no profundo Mar com carga, pondo as vidas a tão provável risco de as perder, só por cobiça; e por isso não é maravilha que percais tantas naus e tantas vidas.

Identifica-se no excerto citado o mesmo tom de reprimenda que permeia toda a

primeira parte do discurso de Adamastor, como se pode verificar nas estrofes transcritas

abaixo:

41 E disse: “Ó gente ousada, mais que quantas

No mundo cometeram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, E por trabalhos vãos nunca repousas, Pois os vedados términos quebrantas E navegar meus longos mares ousas, Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, Nunca arados de estranho ou próprio lenho: [...]

44 Aqui espero tomar, se não me engano,

De quem me descobriu suma vingança. E não acabará só nisto o dano De vossa pertinace confiança: Antes, em vossas naus vereis, cada ano, Se é verdade o que meu juízo alcança, Naufrágios, perdições de toda sorte, Que o menor mal de todos seja a morte!”

Ouve-se neste discurso as vozes dos relatos trágicos das viagens como um coro

subjacente à voz da personagem: “Gente ousada mais que quantas? No mundo [...]”,

“Naufrágios, perdições de toda sorte/que o menor mal de todos seja a morte”. Este

procedimento tanto serve para dar conformidade à trama da narrativa, pelo tom épico, quanto

para fazer ecoar o testemunho histórico mais recente. Fator este que mitiga a grandeza épica

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da narrativa, ao trazer o contexto narrado para o presente do poeta e dos leitores. Um exemplo

de inversão dos tempos encontra-se na estrofe seguinte:

47 “Verão morrer com fome os filhos caros,

Em tanto amor gèrados e nacidos; Verão os cafres, ásperos e avaros, Tirar à linda dama seus vestidos; Os cristalinos membros e perclaros À calma, ao frio, ao ar, verão despidos, Despois de ter pisada, longamente, Cos delicados pés a areia ardente.”

Aqui, Adamastor profetiza a tragédia de grande repercussão histórica, envolvendo a

família do fidalgo Manuel de Souza, já registrada nos relatos trágico-marítimos. Observa-se,

portanto, nesta oitava, um exemplo de intertextualidade, cujo fragmento abaixo demonstra a

afinidade dos dois textos:

Destas praias, onde se perderam em 31 graus aos sete de julho de cinqüenta e dous, começaram a caminhar com esta ordem que se segue, a saber: Manuel de Sousa, com sua mulher e filhos, com oitenta portugueses e cem escravos [...]. Um dos grandes trabalhos que sentia era verem dous meninos pequenos, seus filhos, diante de si chorando, pedindo de comer, sem lhes poderem valer. E vendo-se D. Leonor despida, lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com seus cabelos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até a cintura sem mais se erguer dali [...] (BRITO, 1984a, p. 33 e 41).

O tom de reprovação da viagem que caracteriza o discurso de Adamastor nessa

primeira parte assemelha-se ao discurso do Velho do Restelo. A diferença crucial é que

Adamastor interage com os navegantes e o seu discurso é, em parte, narrativo. Enquanto o

velho é uma figura estática, cujo discurso se integra ao plano exclusivamente retórico.

A posição de Adamastor face a face com os interlocutores dá ao seu discurso um

sentido dialógico com característica de polêmica declarada, ou aberta, conforme a

terminologia usada por Bakhtin (2002a). Entretanto, os seus enunciados não refletem marcas

ou acentos que se possam identificar como palavras ou influência significativa de outro

discurso, no plano da enunciação. O que aparece é uma narração monológica, de cunho

predominantemente profético, encaixada na narração do protagonista.

O discurso profético é, por sua natureza, autoritário. Um discurso que não permite

infiltração de outras vozes, caracterizado, portanto, como monovocal.

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Neste caso, é como se os interlocutores (navegantes) presentes estivessem

hipnotizados, cabendo-lhes apenas ouvir as invectivas e predições.

Ao narrar os fatos futuros para esses interlocutores imediatos, a personagem está

narrando a história também para o leitor em uma perspectiva diversa, mas inteiramente

subordinada à perspectiva dominante do discurso autoral.

As vozes históricas que subjazem ao discurso da personagem não lhe atribuem

natureza dialógica, pois como se constata no texto, essas vozes são percebidas no plano do

conteúdo pelo procedimento da intertextualidade, que demanda conhecimento mais amplo da

história das navegações para estabelecer a relação entre os conteúdos discursivos. Por isto,

apesar da presença de outras vozes discursivas, o dialogismo não se constitui porque essas

vozes fundem-se com a voz da personagem, tornando o seu discurso tipicamente monológico

e objetificado segundo os planos do autor.

Na segunda parte do discurso de Adamastor (canto V, 49-59), opera-se uma

transformação no conteúdo e na forma de transmissão, desencadeada por uma pergunta do

interlocutor:

49 [...]

Lhe disse eu: “Quem és tu? Que esse estupendo Corpo, certo, me tem maravilhado!” A boca e os olhos negros retorcendo E dando um espantoso e grande brado, Me respondeu, com voz pesada e amara, Como quem da pergunta lhe pesara:

(grifos nossos)

Diante da indagação do interlocutor (protagonista), “quem és tu?”, a personagem

assume uma postura autorreflexiva. Identifica-se e vai se despojando aos poucos de sua

monstruosidade aparente, revelando a sua humana fragilidade interior:

50 “Eu sou aquele oculto e grande Cabo

A quem chamais vós outros Tormentório, [...]

51 Fui dos filhos aspérrimos da Terra, Qual Encélado, Egeu e o Centimano; Chamei-me Adamastor [...].

52 Amores da alta esposa de Peleu

Me fizeram tomar tamanha empresa.

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Todas as Deusas desprezei do Céu, Só por amar das águas a Princesa. Um dia a vi, co as filhas de Nereu, Sair nua na praia: e logo presa A vontade sinti de tal maneira Que inda não sinto cousa que mais queira.”

(grifos nossos)

O procedimento adotado por Camões nesta reviravolta do discurso de Adamastor está

sutilmente revestido de grande significação filosófica, além de estética e estilística.

No plano filosófico, tem-se o momento de epifania como resultado da aplicação do

princípio maiêutico do diálogo socrático, que é um método dialógico de busca da verdade.

Duas são as principais técnicas desse método apontadas por Bakhtin (2002a, p.110): a

síncrise, que consiste no confronto de diferentes pontos de vista sobre um mesmo objeto e a

anácrise, que consiste na provocação da palavra pela própria palavra.

A provocação da palavra pela palavra é o âmago do diálogo neste episódio. O

protagonista que, aturdido e assustado ouvia as invectivas e ameaças do gigante, de súbito

passa a ter o domínio da situação pela colocação exata da pergunta que lhe ocorre,

provocando a reflexão da personagem pelo princípio dialético da retórica socrática: “alçado

disse eu: quem és tu?”.

Caindo em si, numa repentina tomada de consciência (epifania), “como se da pergunta

lhe pesara”, o monstro passa a definhar enquanto confessa a sua fraqueza, “Um dia a vi, com

as filhas de Nereu/sair nua da praia: e logo presa/A vontade senti de tal maneira/Que inda não

sinto coisa que mais queira”.

A personagem constrói o seu discurso em resposta à indagação do outro, mas à medida

que discursa em resposta a esse outro, discursa também para si, reconstituindo a sua própria

imagem refletida na visão do outro: “[...] Que este estupendo corpo, certo me tem

maravilhado!”. Esta enunciação apreciativa (estupendo corpo) incluída na pergunta do

interlocutor motiva a confissão justificadora para o outro e para si:

53 Como fosse impossibil alcançá-la,

Pola grandeza feia de meu gesto, Determinei por armas de tomá-la E a Dóris este caso manifesto. De medo a Deusa então por mi lhe fala; Mas ela, cum fermoso riso honesto,

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Respondeu: “Qual será o amor bastante De Ninfa, que sustente o dum Gigante?” (grifo nossos)

A estrofe acima concentra traços importantes de dialogismo. Primeiramente, destaca-

se a revelação do processo de autoconhecimento109 da personagem que termina por confessar

sua fraqueza: “pela grandeza feia de meu gesto”. Depois, chama a atenção a evocação de

outras personagens, as deusas Dóris (mãe) e Tétis (filha), esta última através de discurso

direto cuja enunciação reflete as palavras (não ditas) da outra deusa (Dóris) e do próprio

Adamastor.

Diz Tétis: “Qual será o amor bastante de Ninfa, que sustente o dum Gigante?”. Este

enunciado constitui uma réplica que, especialmente por estar na interrogativa, traz implícita

uma declaração de amor, nas palavras presumidas de Dóris intercedendo por Adamastor.

Palavras essas que não foram pronunciadas, mas que são subentendidas.

Diz Adamastor: “Como fosse impossível de alcançá-la, pela grandeza feia de meu

gesto, determinei por armas de tomá-la e a Dóris este caso manifesto. De medo a Deusa por

mim lhe fala”. Neste enunciado não está explícito o que Dóris falou para Tétis em nome de

Adamastor. Mas é possível depreender-se pelo enunciado de Tétis que se trata da declaração

de amor do gigante.

Pode-se concluir, portanto, que no enunciado de Tétis se refletem as palavras de

Adamastor e as palavras de Dóris. Um detalhe deve ser considerado, as vozes de Adamastor e

de Dóris são harmônicas, fundem-se no sentido do objeto, enquanto a réplica de Tétis é uma

reação ao argumento de Dóris, que pelo tom da expressividade centrado na antítese, amor de

ninfa versus amor de gigante, e na interrogativa, conota uma ironia e ao mesmo um leve toque

de humor. Este fator implica a duplicidade de vozes no enunciado. Neste caso a ironia não é

uma expressão humilhante, mas tendente à descontração como afirma Duarte (2006, p. 287)

ao examinar a ironia na obra de Guimarães Rosa: “Trata-se de uma ironia que se identifica

mais com o humor, com o mesmo princípio de não dizer o que diz, mas que privilegia em sua

construção, a brincadeira, o jogo, o significante”. 109 Conforme Adorno (2006, 44), o esclarecimento é mais que esclarecimento, é natureza que se torna perceptível em sua alienação. “No autoconhecimento do espírito como natureza em desunião consigo mesma, a natureza chama a si própria como antigamente, mas não mais imediatamente com seu nome presumido, o que significa omnipotência, isto é, como “mana”, mas como algo cego, mutilado. A dominação da natureza, sem o que o espírito não existe, consiste em sucumbir à natureza. Graças à resignação com que se confessa como dominação e se retrata na natureza, o espírito perde a pretensão senhorial que justamente os escraviza à natureza”.

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Por fim, destacam-se os fragmentos abaixo, que demonstram o clímax do discurso

lírico de Adamastor:

56 “Oh! Que não sei de nojo como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava, Abraçado me achei cum duro monte [...]

57 Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano, Já que minha presença não te agrada, Que te custava ter-me neste engano, Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?” [...]

60 Assim contava; e cum medonho choro, Súbito de ante os olhos se apartou. Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro Bramido muito longe o mar soou. (grifos nossos)

Nestas estrofes finais do episódio, o monstro confessa a sua amargura, “Oh! Que não

sei de nojo como conte!”, causada pelo desengano do amor cuja ilusão lhe bastaria, ao modo

platônico, “Que te custava ter-me neste engano”. Assim, desintegra-se em prantos: “[...] e cum

medonho choro/Súbito dos olhos se apartou/Desfez-se a nuvem negra [...]”.

O desaparecimento do gigante e o desfazimento da nuvem negra simbolizam o

destronamento de um mito que obstava a ação do homem sobre os mares, que instituía os

“vedados términos”. Nesse momento nascem novas possibilidades, abre-se um novo

horizonte.

Este episódio, estando situado no canto V, portanto no meio do poema, talvez seja o

seu principal núcleo polissêmico. Diversas significações podem ser depreendidas do conjunto

das metáforas e, especialmente, de seu aspecto alegórico.

Por significação metafórica, entende-se aqui a transposição do obstáculo real às

navegações entre o Ocidente e o Oriente constituído pelo cabo das tormentas, pela

metamorfose de Adamastor.

No que diz respeito ao aspecto alegórico, pode-se relacionar este episódio ao ritual do

destronamento no folclore carnavalesco.

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No rito destronante manifestava-se a ênfase carnavalesca nas mudanças e renovações

como imagem da morte criadora. Motivo pelo qual a imagem do destronamento ser mais

frequentemente transposta para a literatura. Bakhtin (2002a, p.125) afirma que todos os

símbolos carnavalescos incorporam a perspectiva de negação, de acordo com a qual “o

nascimento é prenhe de morte, a morte, de um novo nascimento”.

Este aspecto é de suma importância para o presente estudo, porque neste ponto do

poema efetua-se uma transmutação dos elementos essenciais da narrativa, em diversos planos,

mas concentrados em um mesmo ato como no ritual do destronamento.

Na metamorfose de Adamastor transmuta-se a posição hierárquica entre fortes e

fracos. O gigante curva-se ante a inteligência do interlocutor e o poder de sedução da deusa.

Da autodestruição de Adamastor (o mito) nasce o novo horizonte para a ampliação do

conhecimento do universo.

No plano discursivo depreende-se a mudança da natureza da narrativa, de épica para

lírica, no conteúdo e na expressão, simbolizando o destronamento do épico pela penetração da

ambivalência carnavalesca.

2.1.4.4 O Marinheiro Leonardo (Canto IX)

Leonardo é um dos nautas, cujo discurso direto se destaca pelo lirismo e pela expressividade

dialógica. É apresentado pelo narrador, no episódio “ilha dos amores”:

75 Lionardo, soldado bem disposto,

Manhoso, cavaleiro e namorado, A quem Amor não dera um só um só desgosto Mas sempre fora dele mal tratado, E tinha já por firme prosuposto Ser com amores mal-afortunado, Porém não que perdesse a esperança De inda poder seu Fado ter mudança.

Ao desembarcarem na ilha, os nautas correm ao encontro das ninfas. Leonardo, que

“[...] tinha já por firme pressuposto/Ser com amores mal afortunado”, enfrenta dificuldades no

jogo da sedução:

76 Quis aqui sua ventura que corria Após Efire, exemplo de beleza, Que mais caro que as outras dar queria

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O que deu, pera dar-se a natureza. (Grifo nosso)

Fingindo-se mais difícil que as outras, a ninfa escolhida provoca em Leonardo a

reflexão verbalizada, através de um discurso com características autobiográficas e

confessionais.

Destaca-se integralmente o discurso da personagem, dispondo-o em forma de prosa,

para melhor demonstrar a relativa independência da estrutura narrativa épica e realçar a sua

natureza lírica e dialógica:

[...] Já cansado, correndo, lhe dizia: “Ó fermosura indigna de aspereza, pois desta vida te concedo a palma, espera um corpo de quem levas a alma! Todas de correr cansam, Ninfa pura, rendendo-se à vontade do inimigo; Tu só de mi só foges na espessura? Quem te disse que eu era o que te sigo? Se to tem dito já aquela ventura que em toda a parte sempre anda comigo, oh! Não na creias, porque eu, quando a cria, mil vezes cada hora me mentia. Não canses, que me cansas; e, se queres fugir-me, por que não possa tocar-te, minha ventura é tal, que, inda que esperes, ela fará que não possa alcançar-te. Espera; quero ver, se tu quiseres, que sutil modo busca de escapar-te; notarás, no fim deste sucesso, tra la spica e la man qual muro he messo.110 Oh! Não me fujas! Assi nunca o breve tempo fuja de tua fermosura; que, só com refrear o passo leve, vencerás da Fortuna a força dura.Que Emperador, que exército, se atreve a quebrantar a fúria da ventura que, em quanto desejei, me vai seguindo, O que tu só farás não me fugindo? Pões-te da parte da desdita minha? Fraqueza é dar ajuda ao mais potente. Levas-me um coração que livre tinha? Solta-mo e corrorás mais levemente. Não te carrega essa alma tão mesquinha que nesses fios de ouro reluzente atada levas? Ou, depois presa, lhe mudaste a ventura e menos pesa? Nesta esperança só te vou seguindo: que ou tu não sofrerás o peso dela, ou na virtude de teu gesto lindo lhe mudarás a triste e dura estrela. E se lhe mudar, não vas fugindo, que Amor te ferirá, gentil donzela, e tu me esperarás, se Amor te fere; e se me esperas, não há mais que espere”(IX, 76-81, itálicos do organizador – anotação e grifos nossos ).

Os versos foram mantidos em suas estruturas sintáticas. Alterou-se apenas a

disposição e as iniciais de maiúsculas para minúsculas, quando não iniciados depois de ponto

final. Este procedimento não interfere no sentido dos enunciados, em razão do estilo de versos

contínuos adotado por Camões. Entretanto, ficou também demonstrada a essência do ritmo

imanente ao estilo poético. O texto apresentado, em que pese o seu caráter narrativo e a

perfeita concatenação ao ser disposto no formato de prosa, não perde a força centralizadora do

discurso poético concentrada no ritmo. Este ritmo é que dá cadência ao épico. O épico é,

portanto, essencialmente poesia. 110Tradução livre: Entre a espiga e mão ergue-se sempre um muro (este verso é uma intertextualidade do soneto 53 de Petrarca).

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Da leitura do discurso destacado sobressaem alguns aspectos estranhos à natureza

épica do poema. Em primeiro lugar, chama a atenção a intensidade lírica que domina o

conteúdo e a expressão como, por exemplo: “espera um corpo de quem levas a alma”. Esta

frase é uma síntese da relação entre os dois planos. No conteúdo o apelo à amante para que o

espere e na expressão uma declaração de mais profundo amor, que é a entrega da própria

alma. Em segundo lugar, tem-se a abundância dos índices característicos do diálogo oral, que

conota a inflexão constante da voz de Leonardo, tais como as interjeições, as interrogações, as

exclamações, as frases curtas, etc.

Essas inflexões do diálogo oral que permeiam todo o discurso refletem objetivamente

o movimento da ninfa no fingimento da fuga do amante: “todas de correr cansam [...]”, “tu só

de mi foges [...]?”, “Quem te disse que eu era o que te sigo?”, “Não canses, que me cansas

[...]”, “Espera; quero ver se tu quiseres, que sutil modo buscas de escapar-te”, “Nesta

esperança só te vou seguindo”, “[...] não vás fugindo, que Amor te ferirá, gentil donzela e tu

me esperará se Amor te fere; e se me esperas, não há mais que espere”.

De um ponto de vista do dialogismo, ressalta-se a influência marcante da ninfa, no

caso, a interlocutora. A sua imagem-presença é sentida a cada frase do enunciador,

principalmente pelo emprego de vocativos. Assim, embora a interlocutora não fale, a sua

atitude, manifestada através do gestual, influencia os enunciados da personagem, provocando

respostas verbalizadas. Essas respostas veiculam concomitantemente o discurso mímico da

interlocutora e as reflexões da personagem sobre a sua desventura em relação ao amor.

Aqui também estamos diante de um discurso bivocal de orientação vária, com

característica autobiográfica e confessional.

2.2 SÍNTESE ANALÍTICO-INTERPRETATIVA

Dedicamo-nos, nesta parte do estudo, à análise do aspecto polifônico d’Os Lusiadas,

foco central de nossa tese. Inicialmente, procuramos situar o poema no contexto histórico-

literário de sua criação e publicação, bem como relacioná-lo com o gênero narrativo que lhe

serviu de modelo, o gênero épico. Por outro lado, procuramos também estabelecer a relação

do poema camoniano com os gêneros que deram origem ao romance dialógico que começa

com Cervantes, evoluindo para o romance polifônico representado pelas obras de Dostoiévski.

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No processo de identificação dos elementos motivadores do distanciamento e

aproximação do poema ao discurso literário polifônico, deduzimos que Os Lusíadas

representam um marco no encerramento de um círculo de narrativas imitativas das epopeias

clássicas. Em virtude das transformações históricas do mundo que, ao tempo de Camões, já

não propiciavam as condições exigidas para um canto épico. Especialmente um passado

glorioso inacessível, por conseguinte indiscutível, e a crença inabalável no mito.

Não podemos deixar de considerar, contudo, o poema como uma epopeia renascentista

que surge na transição da Idade Média para a Idade Moderna. Transição essa que abrange não

somente o Renascimento, mas também o Maneirismo e o Barroco. Esse contexto de transição

enseja o cruzamento de diversos gêneros na formação de uma nova modalidade de narrativa.

Os gêneros poéticos tendem a transitar na direção da prosa romanesca. As características

renascentistas do poema camoniano centram-se nos elementos formais da composição

poética, calcada ainda na imitação dos modelos, mas bastante contrastada pelo Maneirismo,

na preciosidade linguística, na preservação de valores tradicionais da oralidade medieval e

também na temática. Esta, caracterizada principalmente pela consciência da insegurança e

transitoriedade das coisas terrenas e humanas, pela angústia da ausência, pelo desejo e terror

da morte e pelo gosto exagerado de ser triste.111

111 Conforme Silva (1971, p. 39-40): “[...] Alguns autores conceberam o Maneirismo não como um estilo perfeitamente autônomo e desenvolvido, mas como um estilo de transição, por conseguinte, onde se entrelaçam as manifestações derradeiras do estilo renascentista tardio e os alvores do estilo barroco. Assim pensa, por exemplo, na esteira de Carl J. Friedrich, um estudioso como Helmut Hatzfeld e assim propende também a crer Marcel Raymond, que identifica “premier baroque” e “maniérisme”. Outros historiadores e críticos, porém consideram o maneirismo e o barroco como dois estilos autênticos, com a sua autonomia e a sua individualidade bem definidas, opondo-se abertamente, em pontos fundamentais, embora apresentando também afinidades de vária ordem. É esta a doutrina defendida, entre outros, por Georg Weise, Wyliw Sypher, Arnold Hauser e Rocco Montano. As nossas leituras e as nossas reflexões levam-nos a apoiar convictamente a última solução. Com efeito, e como ficou já esclarecido, o maneirismo diferencia-se inequivocamente do Renascimento, quer sob o ponto de vista temático-ideológico, quer sob o ponto de vista formal; por outro lado, de tal ordem são as suas divergências em relação ao barroco, que é inconfundível com este estilo”.

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CONCLUSÃO

Ao iniciar a pesquisa, tínhamos a convicção, a priori, da característica monológica do

poema na totalidade da obra, em virtude da normatividade estética tradicional do gênero em

que fora composto e do contexto histórico-literário de sua criação. Questionávamos, no

entanto, algumas características particulares do procedimento estilístico do poeta, tais como a

crítica, a ironia e o humor revelados na duplicidade de sentidos. Essas características,

ressaltadas nas pesquisas anteriores (na graduação e no mestrado), propiciaram o vislumbre de

um provável aspecto polifônico configurado nos discursos dissonantes do poeta e dos

narradores.

O primeiro desafio enfrentado foi compreender um mínimo essencial da teoria

polifônica de Bakhtin, a qual nos pareceu, em princípio, a mais adequada ao exame do objeto

da pesquisa.

A complexidade do pensamento de Bakhtin e o modo disperso pelo qual está

apresentado, em diversos ensaios, às vezes, não datados, assim como a publicação de matérias

correlatas em coletâneas diversas, aumenta consideravelmente a dificuldade na apreensão dos

conceitos das categorias estéticas criadas por ele. Categorias estas tratadas em diferentes

ensaios, escritos em épocas também diferentes, tais como polifonia, dialogismo,

plurilinguismo e monologismo. Esse fator nos levou à necessidade de recorrer com frequência

aos estudos dos autores brasileiros que têm se dedicado à exegese da obra do teórico russo.

Especialmente Paulo Bezerra, tradutor de algumas obras direto do russo, Cristovão Tezza,

Beth Brait, Alberto Faraco, entre outros, para melhor esclarecimento de tais conceitos.

Do que pudemos apreender e expor sobre o pensamento de Bakhtin na formulação da

teoria polifônica, devem ser destacados alguns fatores imprescindíveis à compreensão da tese

ora desenvolvida sobre o aspecto polifônico d’Os Lusíadas.

A partir de uma discussão mais abrangente e mais aprofundada do filósofo e teórico

sobre o tema do dialogismo e do plurilinguismo, difundida no âmbito de sua obra, deduzimos

alguns pressupostos filosóficos e artístico-literários, que consideramos fundamentais à

exposição da metodologia adotada no exame do texto. Também procuramos deduzir do

complexo das ideias de Bakhtin alguns conceitos das categorias centrais de sua teoria:

polifonia, dialogismo e plurilinguismo, identificando a distinção fundamental de suas

naturezas estético-literárias.

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Em síntese, podemos deduzir do pensamento de Bakhtin que o dialogismo é uma

categoria estética, cuja observação depende de método filosófico. Por outro lado, o

plurilinguismo, apesar de não se situar inteiramente no domínio da ciência linguística, é

abrangido pela filologia em seu aspecto diacrônico morfológico. Tal abrangência se dá em

virtude do cruzamento das linguagens que gera, não somente sentidos diversos das mesmas

palavras (polissêmicos), mas também novas palavras com novos significados que vão se

acrescentando aos registros lexicais. Já a polifonia, em que pese a tentativa de Bakhtin em

atribuir-lhe um status de categoria filosófica, como uma nova maneira de o homem

posicionar-se no mundo, na prática consagra-se como um fenômeno artístico-literário. A

depreender-se da origem do termo, conforme já ressaltado, o qual fora tomado de empréstimo

ao domínio da música e utilizado como metáfora para explicar a presença de várias vozes em

interação no texto, por analogia com as diversas vozes ou instrumentos na peça musical.

Assume, portanto, uma natureza de certa forma mais funcional.

O tema da polifonia na literatura foi abordado em profundidade por Bakhtin, a partir

do estudo específico das obras de Dostoiévski, não obstante haver sido cogitado

primeiramente pelos críticos russos Leonid Grossman e A. V. Lunatcharky.

O fato de a teoria polifônica consolidar-se com a postulação de Bakhtin, pelo emprego

metodológico, foi decisivo na escolha desse método por nós adotado para o exame d’Os

Lusíadas, no que diz respeito aos discursos que se revelam contraditórios à matéria épica e

desviantes do cânone do gênero.

Outro ponto que se revelou complexo, por isto, também desafiante, foi o desvelamento

do ângulo da visão bakhtiniana sobre o processo polifônico na poesia. Nesse ponto, achamos

fundamental estabelecer a distinção entre poesia e prosa, conforme procuramos expor na

primeira parte do trabalho, discernindo as possibilidades estéticas de cada um desses estilos

na sua relação com a palavra do outro. Mostrou-se também imprescindível, em decorrência, a

apresentação de alguns traços preponderantes na distinção entre o epos e o romance. Tema

que abordamos na segunda parte por inerente ao procedimento exegético d’Os Lusíadas,

numa perspectiva dialógica. Fator que o coloca numa relação mais direta com a prosa

romanesca.

Na relação do poema com o romance, identificamos importantes traços como

multiplanaridade, multiperspectividade, multivocalização e, acima de tudo, a anulação da

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distância épica e da influência do mito. Pela familiarização dos fatos narrados, pela crítica,

pelo riso (ainda que sutil), pela ironia flagrante e pelos pontos de vista reflexivos. Tanto

cosmológico, quanto antropológico, sociológico, político e existencialista. Esses traços de

semelhança viabilizaram a análise do texto pelo método proposto.

Na segunda parte, procuramos também estabelecer ilações entre os contextos

históricos dos autores e suas respectivas obras, buscando enfatizar os momentos que

entendemos como propícios ao fenômeno de ruptura com os padrões estéticos vigentes. A

transição da Antiguidade clássica para a Idade Média, pontuando a obra épica de Virgílio

como inspiradora dos poetas renascentista, dentre eles Camões. Momento de grande

transformação da história, marcada principalmente pelo nascimento do cristianismo e a queda

do império romano. Depois a transição da Idade Média para a Idade Moderna, contexto em

que pontuamos as obras de Camões e Cervantes, e finalmente o apogeu da modernidade com

o realismo de Dostoiévski, enquanto paradigma de uma literatura reflexiva da alma dos

homens.

Tendo em vista o que intuímos ao idealizar a pesquisa, identificamos nos excursos os

traços mais importantes de bivocalidade, tanto naqueles excursos em que o poeta fala

diretamente, quanto naqueles em que se revelam as vozes das personagens atuantes,

destacando-se Baco, o Velho do Restelo, Adamastor, Veloso e Leonardo. Por outro lado,

alguns elementos estéticos não vislumbrados, a priori, foram se descortinando com o

desenvolvimento do estudo do texto. Esses elementos podem ser caracterizados pela

aproximação da voz do poeta à voz do narrador; pela sutil relativização da autonomia do

poeta em favor da independência das falas das personagens. Além da relação do poema com

alguns gêneros pertencentes à cosmovisão folclórico-carnavalesca, como os diálogos

socráticos, a sátira e a paródia. Traços que o aproximam do romance paródico que surge logo

a seguir com Cervantes, marcando uma nova forma de narrar a realidade.

O conjunto dos elementos estéticos contrastante com o modelo épico torna Os

Lusíadas uma obra híbrida, fundamentada na essência dos gêneros épico, lírico e dramático,

com forte pendor para o lírico. Fenômeno esse que desvia a obra da esfera dominante da

imitação dos modelos, caracterizando a originalidade do estilo do poeta e impulsionando-a

para a modernidade. Nesse desvio, entendemos haver demonstrado, pela análise de diversos

discursos, os elementos dialógicos que formam o seu aspecto polifônico. Destarte, avaliamos

ter atualizado, mais uma vez, a leitura do mais famoso poema de Língua Portuguesa.

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