UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE · Ao próprio Terry Francis Eagleton, pela sua...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO
NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA
LINGUAGEM
ANDREW YAN SOLANO MARINHO
DO CIENTISTA AO ATIVISTA:
OS PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO E UMA SOLUÇÃO
REVOLUCIONÁRIA NA OBRA DE TERRY EAGLETON
Natal, RN
2014
ANDREW YAN SOLANO MARINHO
DO CIENTISTA AO ATIVISTA:
OS PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO E UMA SOLUÇÃO
REVOLUCIONÁRIA NA OBRA DE TERRY EAGLETON
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de
Mestre em estudos da linguagem, área de concentração:
Literatura Comparada.
Eixo temático: Literatura e memória cultural
Orientador: Prof. Dr. Gerardo Andrés Godoy Fajardo
Natal, RN
2014
ANDREW YAN SOLANO MARINHO
DO CIENTISTA AO ATIVISTA:
OS PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO E UMA SOLUÇÃO
REVOLUCIONÁRIA NA OBRA DE TERRY EAGLETON
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a conclusão do
curso de Mestrado em Literatura Comparada.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Gerardo Andrés Godoy Fajardo
Orientador – UFRN
_________________________________________________________
Andrey Pereira de Oliveira
Examinador interno – UFRN
_________________________________________________________
Elri Bandeira de Souza
Examinador externo – UFCG
Natal, RN
2014
A Jesus, por ter dado a outra face, por ter
vivenciado em meio aos ladrões, às
messalinas e aos leprosos e por ter sido
judiado pelos que libertou; as minhas
avós Marias e ao meu avô Vicente ( tutti
in memorian) e ao meu avô Expedito,
por terem concebido minha raison
d'être, meus pais; aos meus irmãos
Johnny e Louisianne; à toda família
Solano Marinho e CIA.; Ao Rhenoda e
Candel e Agregados; à todos amigos de
letras em Absoluto; à Lisane, meu
pathos.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Gerardo Andrés Godoy Fajardo, pelos ensinamentos e por
ter sido um entusiasta do meu trabalho.
Ao CNPq, pelo auxílio financeiro para a pesquisa e realização deste trabalho.
À Prof. Dra. Ana Canan, por iniciar-me na pesquisa acadêmica.
À Prof. Dra. Rosanne Araújo, por ter co-escrito o projeto deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Andrey Oliveira, por ter feito-me ouvir falar em teoria da literatura.
A Joaquim Adelino, pela releitura vernácula.
À Prof. Sandra Erickson, por ter me ensinado poesia e um pouco mais.
Ao Prof. Bruce Stewart, pelo companheirismo em ilhas esmeraldinas e pelo intermédio
ao meu objeto de estudo.
À professora Dra. Janaína Weissheimer, em nome de todos servidores e funcionários da
UFRN e das letras; à minha parceira Rejane Medeiros, em nome de todos os colegas de
curso, que passaram por mim e contribuíram para que eu fizesse o mestrado antes do
tempo.
Ao próprio Terry Francis Eagleton, pela sua humildade e humor para com minha
pessoa.
Totality is affirmed in the very movement
whereby it is denied, and represented in the
same language that denies it all possible
representation.
Fredric Jameson
As ideias não sagram, elas não sentem dor,
elas não amam.
V de Vingança
RESUMO
O crítico literário Terry Eagleton obteve notoriedade no meio acadêmico ao ser
reconhecido intelectualmente com seu livro best-seller Teoria da Literatura: uma
introdução. Nesse livro, o autor inglês propõe, ousadamente, o fim da literatura e da
crítica literária. Contudo, anos antes, Eagleton propôs, no livro Criticism and Ideology
(1976), um sistema científico de análise do texto literário aparentemente menos radical,
tanto em teoria quanto no método, que sua proposta teórica posterior. Com base nisso, o
objetivo dessa dissertação é apresentar o método inicial do crítico literário inglês,
explicitar os motivos que o levaram a abandonar seu projeto inicial – de elaborar um
método de análise do texto literário sobre uma ótica científica marxista – e a propor, nos
anos seguintes, em seu livro mais famoso e em outros, uma visão revolucionária, que
iria muito além de análises textuais e faria os textos literários terem uma intervenção
prática na sociedade. Por fim, explicitaremos qual seria sua ideia de crítica
revolucionária.
Palavras-chave: Terry Eagleton; Crítica; Teoria da literatura; Ciência literária;
Ativismo.
ABSTRACT
The literary critic Terry Eagleton obtained notoriety in academic circles when he was
recognized intellectually for his bestselling book Literary Theory: An Introduction. In
this book, the English author boldly proposes the end of literature and literary criticism.
However, Eagleton proposed years before, in his book Criticism and Ideology (1976), a
scientific system of analysis of literary texts, which seemed less radical, both in theory
and in method, than in his later theoretical proposal. Based on this, the objective of this
dissertation is to present the English literary critic´s initial method, explaining the
reasons that led him to abandon his initial project - of develop a method of analysis of
the literary text on a Marxist scientific perspective - and to propose, in the following
years, in his most famous book and others, a revolutionary vision that would go beyond
textual analysis and make literary texts have a practical intervention in society. Finally,
we explain what would be his idea of revolutionary criticism.
Keywords: Terry Eagleton; Criticism; Theory of literature; Literary science; Activism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10
1. CRÍTICA CIENTÍFICA ....................................................................................... 15
1.1 MARXISMO E LITERATURA ........................................................................ 15
1.2 OS FUNDAMENTOS CONCEITUAIS DA CIÊNCIA DA LITERATURA ...... 17
1.3 MÉTODO MATERIALISTA ............................................................................ 23
1.4 HISTÓRIA E LITERATURA ............................................................................ 26
1.5 APLICAÇÃO DO MÉTODO ............................................................................ 29
1.6 AS CATEGORIAS DE PRODUÇÃO EM SENHORA ....................................... 30
1.6.1 Modo de produção geral (MPG) ............................................................... 31
1.6.2 Modo de produção literário (MPL) .......................................................... 32
1.6.3 Ideologia geral (IG) ................................................................................... 34
1.6.4 Ideologia Autoral (Iau).............................................................................. 35
1.6.5 Ideologia estética (IE) ................................................................................ 36
1.6.6 Texto .......................................................................................................... 37
1.7 FORMA IDEOLÓGICA DE SENHORA............................................................ 37
2. PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO .......................................................... 48
2.1 FATORES HISTÓRICOS ................................................................................. 48
2.2 FATORES TEÓRICOS ..................................................................................... 53
2.2.1 Cientificismo .............................................................................................. 53
2.2.2 Ideologia .................................................................................................... 64
2.2.3 Produção .................................................................................................... 81
2.2.4 Literatura .................................................................................................. 89
2.3 FATORES ESTILÍSTICOS ............................................................................... 97
2.3.1 O estilo de Criticism and Ideology ............................................................. 99
2.3.1.1 Hipérbole ............................................................................................... 100
2.3.1.2 Antítese .................................................................................................. 103
2.3.1.3 Sinédoque .............................................................................................. 105
2.3.2 O estilo revolucionário ........................................................................... 108
2.3.2.1 Humor .................................................................................................... 109
2.3.2.2 Popular ................................................................................................... 114
2.3.3 O eagletonismo ........................................................................................ 117
3. PARA UMA CRÍTICA REVOLUCIONÁRIA .................................................. 122
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 139
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 151
10
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa analisará a obra do pensador britânico Terry Eagleton (1943-), um
dos mais influentes críticos culturais e literários da contemporaneidade, que, em quase
meio século de produção, com mais de 40 livros escritos, vem conseguindo atrair
atenção de muitos, desde os mais conservadores acadêmicos de Oxford até os curiosos
das mais diversas áreas do conhecimento – por exemplo, os advogados, como Eagleton
faz questão de frisar no prefácio da segunda edição inglesa do seu mais famoso livro
acadêmico: Teoria da literatura: uma introdução (1983). Esse livro lhe deu notoriedade
na academia, e, ao mesmo tempo, virou um Best-seller, tendo vendido ao longo dos
anos algo em torno de um milhão de cópias, e tendo sido traduzido nos mais diversos
idiomas, como o malaio, o árabe e o sânscrito1. Sobre isso, o próprio autor comenta, na
edição de aniversário dos 25 anos desse livro:
I do not know whether to be delighted or outraged by the fact that
Literary Theory: An Introduction was the subject of a study by a well-known U.S business school, which was intrigued to discover how an
academic text could become a Best-seller23
(EAGLETON, 2008,
Prefácio).
Um Best-seller: algo totalmente incomum para um livro acadêmico, ainda mais
um livro que tratava sobre as teorias das ciências humanas do século XX, dadas como
abstratas e especializadas, como a fenomenologia e a psicanálise.
Nesse sentido, vê-se que esse livro possui uma tese polêmica, ao proclamar o
fim do objeto e do método literário, propondo um rompimento com a visão de crítica
literária existente até então, não só em termos teóricos, mas também em relação a
própria função social e institucional da crítica literária contemporânea. Assim, Eagleton
defende, nesse livro, o fim do conceito de literatura, e da organização institucional
universitária em departamentos de literatura, para propor um estudo sem método
específico e que tivesse como objetivo os usos políticos e discursivos de qualquer
produção cultural, e não mais apenas da literatura.
1 As fontes são dos sites do conselho britânico e do site do suplemento acadêmico Times Higher Education. 2 Todas as traduções de seus textos e de outros autores, doravante, serão de nossa autoria. 3 Eu não sei se fico lisonjeado ou ultrajado pelo fato de que Teoria da Literatura: Uma Introdução ter sido assunto de um estudo por uma reconhecida escola de negócios americana, que estava intrigada para descobrir como um texto
acadêmico poderia se tornar um Best-seller.
11
Essa ideia central, entretanto, não se restringe somente ao seu Best-seller, mas, a
nosso ver, faz parte de todo um pensamento revolucionário sobre a função da crítica
literária, que se inicia em 1981, no livro Walter benjamim: or towards a revolutionary
criticism, é trabalhado também na conclusão de Teoria da Literatura: uma introdução e
finalizado em A função da crítica, em 1984. Nesse sentido, essa visão “revolucionária”
da crítica, termo utilizado por Eagleton no livro sobre Benjamin, significa não apenas
entender de forma subversiva os textos literários, mas também questionar a dissociação
entre a teoria e a prática crítica. Desse modo, protesta-se contra o tipo de crítica
acadêmica que produz conhecimento dissociado dos usos e efeitos sociais de suas
ideias, bem como distanciado de um diálogo com a sociedade. Portanto, defendemos
que os insights presentes em seu Best-seller estão articulados a um projeto maior,
levado a cabo por Eagleton nos anos 80.
Contudo, apesar desse radicalismo, presente nessa tríade de livros dos anos 80,
mostra-se intrigante o fato de poucos anos antes, em 1976, Eagleton ter proposto uma
ideia de crítica literária aparentemente oposta ao seu radicalismo posterior. Nesta
primeira obra, Criticism and Ideology: a Study of Marxist Literary Theory, além de
defender uma ideia de objeto textual como literatura, o crítico inglês propõe uma
solução científica para a função de análise textual na crítica literária, através de um
método estrutural de análise das categorias de produção do texto literário, e se mostra
indiferente ao debate público de suas ideias e o status teoricista dessa sua crítica. Assim
sendo, buscaremos observar aqui quais seriam as razões, as causas e os objetivos que
levaram o autor a mudar drasticamente, não só sua visão teórica, mas a própria noção de
teoria, da qual ele próprio fizera parte.
Com base nisto, os objetivos dessa dissertação são: apresentar o projeto inicial
eagletiano – que visava elaborar um método de análise do texto literário sob uma ótica
científica marxista; explicitar os motivos que levaram o crítico literário inglês a
abandonar esse projeto, para, nos anos seguintes, propor uma visão revolucionária, que
iria muito além de análises textuais e faria os textos literários terem uma intervenção
prática na sociedade; e, por fim, explicitar qual seria a ideia eagletiana de crítica
revolucionária.
Assim sendo, vemos que poucos estudos foram realizados a respeito da
produção teórica de Eagleton. Dentro desses poucos, selecionamos dois estudos,
desenvolvidos sobre a obra do escritor britânico, que consideramos relevantes. Esses
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estudos apontam, em concordância com o que propomos aqui, para uma ruptura entre os
escritos dos anos 70 e 80, como podemos ver em Terry Eagleton (2004), de David
Anderson – em que Anderson discute a necessidade de Eagleton de adaptar seu
marxismo dos anos 70 aos desafios do pós-modernismo dos anos 80 – , e em Terry
Eagleton: Critical introduction (2008), de James Smith – em que o autor descreve a
longa trajetória crítica de Eagleton, e, quando versa sobre o foco de nosso trabalho,
entende que Eagleton muda seu posicionamento dos anos 70 pra os 80, de uma crítica
científica para uma preocupação com a política cultural. Contudo, ambos os trabalhos
voltam-se para uma visão ampla, que abrange os trabalhos de Eagleton do início de sua
carreira até as obras mais recentes, bem como não focam exclusivamente em seus
posicionamentos sobre literatura. Nosso trabalho, assim, diferencia-se justamente por
levar essa discussão à literatura, em especial à questão da crítica literária, e ao se focar
em um período específico da obra de Eagleton, que se daria entre os anos de 1976 e o
final da década de 80.
Para isso, propomos a seguinte organização do nosso trabalho: inicialmente,
faremos uma apresentação da teoria e do método científico proposto por Eagleton,
assim como faremos uma aplicação do método em um romance; em seguida,
levantaremos quatro temas teóricos que consideramos problemáticos em sua visão
científica da literatura (cientificidade, ideologia, produção e literatura), além de
observarmos os fatores históricos e estilísticos que contribuíram para que Eagleton não
continuasse com seu projeto inicial; por fim, tentaremos sistematizar a “solução”
revolucionária que Eagleton defende, nos anos seguintes, em sua tríade de livros –
anteriormente citada – que questiona o conceito de crítica literária que o próprio autor
defendera anos antes.
Diante do exposto, entendemos que esse trabalho se justifica devido ao fato de
propor-se a investigar e evidenciar os pressupostos teóricos de um crítico que vem
exercendo uma enorme influência nos estudos de literatura e que não possui uma
discussão crítica intensa a cerca da sua obra como um todo. Contribui-se, assim, tanto
para uma difusão mais profunda de suas ideias, quanto para a defesa de uma visão mais
íntegra de sua obra. Nesse sentido, trazendo a discussão para o contexto brasileiro,
Eagleton se insere numa linha de pensamento de crítica materialista da cultura, que é
também desenvolvida por nomes como Antonio Candido e Roberto Schwarz – dois dos
maiores expoentes da crítica literária nacional. Portanto, entendemos que as percepções
13
teóricas dos trabalhos de Eagleton podem dialogar e contribuir para as discussões sobre
a crítica literária e cultural produzida no Brasil. Desse modo, ao longo do trabalho
faremos algumas breves conexões entre a crítica no contexto inglês e no brasileiro.
Nossa metodologia, por sua vez, pautar-se-á na forma de uma pesquisa
exploratória, descritiva e explicativa da obra de Terry Eagleton, valer-nos-emos de uma
análise bibliográfica e da comparação com outros autores que convergem e divergem de
seu posicionamento; soergueremos, também, categorias conceituais a partir de uma
percepção indutiva dos dados em sua obra, como as que suscitamos no tópico fatores
estilísticos – por exemplo, o “eagletonismo”. Desse modo, para tal finalidade, propomos
uma divisão, da pesquisa, em três capítulos.
O primeiro capítulo será dedicado a uma breve exposição da construção do
pensamento de Eagleton em sua fase científica. Tentaremos, assim, inicialmente,
mostrar como o crítico inglês se insere na corrente teórica do marxismo estruturalista,
desenvolvida pelos filósofos franceses Louis Althusser e Pierre Macherey; e,
conseguintemente, apresentar a concepção dele sobre ciência do texto literário, fazendo
uma aplicação desse método no texto Senhora de José de Alencar.
O segundo capítulo buscará problematizar os conceitos de Criticism and
Ideology, e apresentar as mudanças que levaram Eagleton a passar de crítico científico a
crítico revolucionário. Para isso, selecionamos três fatores para análise: o histórico, o
teórico e o estilístico.
Do ponto de vista histórico, buscamos argumentar baseados nos trabalhos de
Perry Anderson (1976), Paul Resch (1992) e nos escritos do próprio Eagleton – em que
ele analisa, retrospectivamente, sua carreira em relação ao período histórico. Intentamos
demonstrar que o projeto do crítico britânico, situado entre um período histórico de
revoluções sociais, nos anos 60, e um período desiludido e pragmático, nos anos 80, fez
com que os fundamentos presentes no marxismo e no estruturalismo – ambos
fundamentos téoricos de seu método – ficassem distanciados de uma nova organização
social e histórica.
O fator teórico, por sua vez, possui uma forte relação com os fatores históricos.
Desse modo, tentaremos ver como as teorias pós-estruturalistas e desconstrutivistas
tomaram a doxa dos discursos acadêmicos ao problematizar vários aspectos da teoria
materialista histórica, em especial, o marxismo estruturalista de que Eagleton fazia
parte. Nesse sentido, selecionamos, para problematizar, quatro aspectos que
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consideramos mais recorrentes na fase inicial de Eagleton: a ênfase no cientificismo
pelo marxismo estruturalista – que discutiremos por meio de Lyotard (1988) e de Man
(1971, 1979, 2002), entre outros; bem como os conceitos de produção e ideologia –
discutidos a luz do debate entre as ideias marxistas que Eagleton adota e a ideias pós-
ideológicas como as de Foucault (1975) e Deleuze e Guattari (1980); a recepção
literária em oposição a produção literária – em debate com as ideias de Jauss (1994); e
por fim, a ideia de literatura – apreendida através do contraste entre Criticism and
ideology e Teoria da Literatura: Uma Introdução.
Por último, sobre a questão do estilo, levantaremos a ideia de que Eagleton
possui, inicialmente, um estilo austero, acadêmico e pretensioso, e organizaremos esses
aspectos em três categorias: a hipérbole, a antítese e a sinédoque. Defenderemos, assim,
que, nos anos 80, ele reformula essas concepções, por meio de características como o
humor e a consciência da artificialidade dos discursos. Por fim, categorizaremos de
“eagletonismo” o estilo composto por quatro características recorrentes no discurso de
Eagleton: a polêmica, a transdisciplinariedade, o humor e a clareza.
No terceiro capítulo, analisaremos a visão “revolucionária” da crítica literária,
ou seja, apresentaremos a proposta alternativa do autor ao método científico de análise
literária: por um lado, defendendo uma proposta subversiva no âmbito da teoria, que
não pode conviver isolada de sua prática; por outro, buscando acabar com o modelo de
crítica academicista que não dialoga com sociedade nem busca mudar, efetivamente, as
instituições culturais. Tentaremos explicitar como Eagleton identifica que, ao longo do
século XX, a crítica literária se manteve distante da prática social e do diálogo com a
sociedade, e como essa mesma crítica, inclusive a marxista, absorveu essas
características, segundo Eagleton, elitistas, em seus escritos. Tentaremos mostrar o
paralelo que existe entre as ideias, acerca dos intelectuais, de Eagleton e de Gramsci
(1982), e como o autor inglês propõe o conceito de contra-esfera pública como sendo o
objetivo dessa “revolução” na crítica literária, ou seja, uma proposta que pretende não
só alterar os objetos literários, mas a própria função da crítica literária e, por fim,
proporcionar uma crítica menos acadêmica e mais prática. Desse modo, mostraremos o
processo de transformação de Eagleton, de um crítico cientista em um crítico ativista.
15
1. CRÍTICA CIENTÍFICA
No ano de 1976, o crítico literário Terry Eagleton lança dois livros: Marxismo e
Crítica literária4 e Criticism and Ideology: a Study in Marxist Literary Theory. Ambos
os livros propõem a defesa do marxismo como a ciência que, na visão do autor, seria
mais capaz de entender, de forma mais profunda e com clareza, a arte da literatura.
Trata-se de um exercício de cunho científico, que busca compreender a concepção de
real histórico (referente de significados) e a sua relação com um de seus produtos
particulares, que seria a estética. Em termos mais defasados, Eagleton propõe uma
mediação entre forma e conteúdo. Começaremos com a obra Marxismo e Crítica
literária, buscando observar como Eagleton entende as relações entre a ciência marxista
e a crítica literária e, em seguida, focaremos no livro Criticism and Ideology, que
apresenta o seu método científico marxista de análise do texto literário.
1.1 MARXISMO E LITERATURA
A relação entre marxismo e literatura pode ser compreendida à luz da ideia
clássica de Karl Marx da relação entre infraestrutura e superestrutura. Essa noção
basilar do marxismo dizia que os objetos da superestrutura, como as ideias, as leis e as
ideologias, seriam produtos de um modo de produção, ou seja, que a organização social
e econômica estruturam os objetos culturais. Essa ideia pode ser verificada no livro
Contribuição à Crítica da Economia Política, escrito por Marx em 1859, no qual o
filósofo alemão conclui que:
[...] na produção social da própria existência, os homens entram em
relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade;
essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade
dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o
processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (MARX, 2008, p.47).
4 A presença de textos de Eagleton referenciados em português se deve ao fato de ter sido impossível, para nós, obter
os títulos originais. Reiteramos que todas as traduções de seus textos e de outros autores, doravante, serão de nossa autoria.
16
Como nos dá a entender Marx, o pensamento histórico deve partir dos homens
de carne e osso e de suas práticas sociais para poder compreender suas ideias e as
representações que eles constroem de si mesmos. Nesse sentido, a literatura, que é
composta por ideias, só poderia ser compreendida se estudada dentro do contexto das
relações sociais decorrentes dos modos de produção social. Assim, influenciado pelas
ideias marxistas sobre a interpretação da cultura e suas manifestações artísticas, Terry
Eagleton define qual seria a relação entre a literatura e o marxismo:
A crítica marxista faz parte de um conjunto mais amplo de análise
teórica que tem por objetivo entender as ideologias – as ideias, valores e sentimentos através dos quais os homens vivem e concebem a
sociedade em diversas épocas. E algumas dessas ideias, valores e
sentimentos só se tornam disponíveis a nós na literatura. (EAGLETON, 2011, p.10).
Dentro desse pensamento, observamos que uma das funções para a crítica
literária marxista é procurar por um tipo de conhecimento presente no texto literário,
que é a ideologia. Essa, por sua vez, não seria compreendida a não ser que fosse
estudada em sua origem, ou seja, dentro dos seus modos de produção. Logo, a crítica
literária marxista deveria ser um estudo de todas as forças que interferem na estrutura
social, pois são elas que, de uma ou de outra forma, constituem a produção literária. No
entanto, Eagleton é enfático ao afirmar que seria um erro do crítico insinuar que o texto
move-se entre ideologia, relações sociais e modos de produção de uma forma mecânica
ou direta, como fazem certas críticas sociológicas, ás quais ele chama de “marxismo
vulgar”5. Essa seria uma perspectiva intransigente, que acabaria por entender os
conceitos literários de forma mecânica ou puramente em relação ao contexto histórico
do qual teriam emergido. Para Eagleton, ao contrário dessas críticas, seria nas diversas
relações entre meios de produção, ideologia e literatura que a crítica marxista centraria
sua prática, ou seja, entender os fatores propriamente literários, mas sem descartar os
fatores que originaram sua singularidade. O autor, então, explica que entender o texto
literário significa:
5 Eagleton considera exemplos de marxismo vulgar tanto as críticas “idealistas” do inglês Christopher Caudwell em
Illussion and Reality (1937) – segundo ele, a arte seria encarnação de o mundo de valores ideais – , quanto as proposições elaboradas como as de Lucien Goldmann em Le Dieu Caché (1964) que afirmava que a visão de mundo
de um escritor seria transposta à estrutura de um texto.
17
(...) compreender as relações complexas e indiretas entre essas obras e os mundos ideológicos que elas habitam – relações que surgem não
apenas em “temas” e “questões”, mas no estilo, ritmo, na imagem,
qualidade e [...] forma. Mas também não entenderemos a ideologia a
não ser que compreendamos o papel que ela desempenha na sociedade como um todo – como ela consiste em uma estrutura de percepção
definida e historicamente relativa que sustenta o poder de uma classe
especifica. (EAGLETON, 2011, p.20)
Nessa perspectiva, entendemos que apesar do texto literário possuir uma
organização interna com temas, ritmo e imagens, ele também tem sua constituição para
além do próprio texto. Essa ideia faz com que a crítica não se restrinja a assuntos
estritamente literários, mas que se expanda em outras disciplinas, como a política e a
economia. Essa percepção pode parecer descabida para um estudante acostumado a
discutir enredo, verso e caracterização de obras, mas para Eagleton essa crítica marxista
é: “essencial ao esclarecimento integral da obra.” (EAGLETON, 2011, p.21). De fato,
para o crítico inglês, o enredo e os aspectos formais do texto são resultado, mesmo que
em última instância, de toda uma complexidade histórica constituída por divisões de
classes e por interesses que geram diferentes visões de mundo e consequentemente
várias formas de significa-las por meio da arte literária. É a partir desse entendimento
que se poderia compreender o texto de forma mais integra. Assim, esses aspectos, que
Eagleton defendeu em Marxismo e Crítica Literária, foram sistematizados no método
de crítica literária proposto em Criticism and Ideology.
Nas seguintes linhas, veremos como se deu o processo de construção desse livro.
1.2 OS FUNDAMENTOS CONCEITUAIS DA CIÊNCIA DA LITERATURA
Para propor um método marxista de estudo literário, Eagleton traz no seu
pensamento diversas leituras que abrangem tanto os primeiros pensadores do marxismo
como os que levantaram novas teorias e práticas a partir desses primeiros. Entre os
segundos, destacamos o aproveitamento que Eagleton faz da releitura dos escritos de
Karl Marx feita pelo filósofo francês Louis Althusser. Os trabalhos desse pensador
francês exerceram ampla influência nos meios acadêmicos por oferecer uma proposta
“científica” ao marxismo. Por meio de uma releitura da obra de Marx, Althusser propôs
uma ruptura entre os escritos de Marx anterior ao livro Ideologia Alemã (1846) e seus
trabalhos posteriores a esse livro, que ele definiu como científica. Althusser identificou
18
nessa releitura o status do marxismo, ou materialismo histórico, como sendo uma
ciência que, segundo ele, poderia produzir um conhecimento objetivo da sociedade por
meio do estudo das estruturas determinadas pelo modo de produção social.
Nesse âmbito, ao enfatizar a determinação social pelas estruturas, Althusser
rompe com a ideia hegeliana que, segundo ele, ainda era presente nos primeiros escritos
de Marx, de que a totalidade social seria um reflexo ou expressão de uma “essência” na
qual todos os elementos sociais estariam ligados. Em termos grosseiros, isso quer dizer
que para Hegel todos os produtos sociais são determinados, por exemplo, por uma ideia
de estado ou por uma ideia de base econômica. Para Althusser, entretanto, a totalidade,
ou a história, seria uma causa ausente em uma formação social. Em outras palavras, essa
totalidade só insurgiria a partir da relação entre os vários níveis que compõem uma
estrutura, que não seriam apenas um componente, como o nível econômico, mas
também os níveis políticos, ideológicos, jurídicos e artísticos. Cada um desses níveis ou
instâncias, por sua vez, possuiria uma relativa autonomia, em que cada um deles
determinaria suas próprias leis internas, mas mantendo uma relação geral com os outros
níveis sociais, podendo ainda um dos níveis exercer dominância em relações aos outros.
A especificidade de um elemento histórico de uma estrutura social, segundo Althusser,
seria:
(…) therefore differential, since it is based on the differential relations
between the different levels within the whole: the mode and degree of
independence of each time and history is therefore necessarily determined by the mode and degree of dependence of each level
within the set of articulations of the whole.6 (ALTHUSSER,
BALIBAR, 1970, p.100).
Divergindo, assim, de Hegel e dos escritos “hegelianos” de Marx, que
defendiam a ideia historicista de um tempo homogêneo e continuo, Althusser propõe a
percepção anti-historicista, ou seja, da diferença entre cada tempo e história das várias
instâncias da formação social que, apesar de possuírem certa semi-autonomia, estariam
articulando o sistema como um todo. Assim, segundo Althusser, enquanto para Hegel
uma essência do todo social seria refletido nas partes, para o filosofo francês o todo
seria um reflexo da articulação complexa de vários níveis diversos. Nesse sentido,
6 Portanto differential, visto que é baseado em uma relação diferencial entre diferentes níveis no interior do todo: o
modo e o nível de independência de cada tempo e história é, portanto, necessariamente determinado pelo modo e
nível de dependência de cada nível no interior do grupo de articulações do todo.
19
transpondo para nosso caso, o texto literário poderia ser entendido como uma estrutura,
mas não necessariamente uma estrutura formada por elementos em relação simétrica, e
sim por uma relação de ruptura e descentramento entre cada elemento de um texto: na
sua linguagem, nos seus gêneros e nas suas imagens. Em outras palavras, não poderiam
corresponder a um contexto histórico especifico, mas seriam capazes de apresentar
resultados de diferentes períodos históricos, sem deixar, contudo, de estar centrados
num período particular.
Os conceitos de estrutura e de relativa autonomia serviram de base para tentar
resolver a questão da peculiaridade do estético e para problematizar os modelos
vulgares de literatura e história. Tais concepções são também a base que norteia
Eagleton para formular o funcionamento das categorias de produção literária, baseando-
se no conceito de uma estrutura composta por várias instâncias que se diferenciam e se
determinam entre si. Podemos ver um exemplo disso no seguinte trecho, em que ele fala
sobre a ideologia estética, que seria uma das categorias de produção literária que
envolve diversos subsetores: “This literary sub-sector is itself internally complex,
constituted by a number of ‘levels’: theories of literature, critical practices, literary
traditions, genres, conventions, devices and discourses”7 ( EAGLETON, 2006, p. 60).
Aqui Eagleton toma as concepções althusserianas de estrutura e de relativa autonomia
para formular seu método de análise das categorias de produção literária, método esse
que observaremos mais a frente. Dessa forma, Eagleton tentou demonstrar como o texto
literário é produzido ou “determinado” por uma relação de estruturas. Porém, para
entender como essas estruturas históricas funcionam e se organizam no texto literário,
temos que analisar a instância da estrutura social em que ela trabalha, que seriam, por
sua vez, as formas de significação da história ou as instâncias ideológicas. Assim, a
literatura, por tratar de ideias e representações da sociedade, lidaria com a história por
meio da ideologia.
Vemos que Eagleton se utiliza também do conceito de ideologia proposto por
Althusser, pois esse filósofo desenvolve uma noção do mesmo conceito mais sofisticada
do que a proposta por Marx em Ideologia Alemã – a saber, ideologia vista como falsa
consciência. Para Althusser, a ideologia não seria apenas uma questão de ideias, mas
sim de ideias orientadas em uma prática. Althusser parece menos preocupado com a
7 Esse subsetor literário é ele mesmo internamente complexo, constituído por um número de ‘níveis’: teorias de literatura, práticas críticas, tradições literárias, gêneros, convenções, dispositivos e discursos.
20
questão das distorções e mistificações da ideologia, presente em algumas formulações
de Marx, e mais preocupado em qual a função dessas ideias na vida real. No ensaio
escrito em 1969, Os Aparelhos Ideológicos do Estado, Althusser defende o conceito de
ideologia como crucial para o conhecimento histórico, pois esse ofereceria uma visão do
“vivido”, ou seja, as relações imaginárias das pessoas com suas experiências reais.
Essas relações são imaginárias devido a organização do real social se constituir de
acordo com interesse de uma classe social, nesse sentido, como diria o pensador
francês: “Então, é representado na ideologia não o sistema das relações reais que
governam a existência dos homens, mas a relação imaginária desses indivíduos com as
relações reais sob as quais eles vivem.” (ALTHUSSER, 1980, p.88). Essas relações
imaginárias ou ideológicas têm, assim, a função de constituir ou interpelar os
indivíduos, ou seja, inserir indivíduos de múltiplas maneiras e níveis no acesso à
história, formando e equipando simbolicamente uma sociedade para responder a suas
condições de existência. Esse processo de socialização requer um sistema de ideias,
crenças e valores pelos quais homens e mulheres vivem a experiência do seu mundo
como um todo coerente. A ideologia não seria para Althusser apenas um amontoado de
imagens e ideias em que as pessoas aderem, mas uma representação imaginária coerente
das relações dos homens com suas práticas materiais, que se constituiria por meio das
instituições sociais ou aparatos estatais e pelos “mitos” e “rituais” de determinadas
crenças dos indivíduos. Assim, independente das representações dos indivíduos serem
falsas ou não, elas produzem práticas que são reais. A literatura, nesse sentido, é
constituída pela ideologia, e passa a ser, de uma ou de outra forma, a própria ideologia,
pois apresenta uma experiência das relações vividas pelas pessoas por meio das
representações imaginárias e das relações da sociedade materializada em uma coerência
relativa, utilizando, para isso, por exemplo, personagens, figuras e símbolos literários. É
em função dessa coerência da ideologia que Eagleton afirma:
Como ela possui essa coerência relativa, a ideologia também pode ser
objeto de análise científica; e já que os textos literários “pertencem” à
ideologia, eles também podem ser objetos dessa análise científica. A crítica científica buscaria explicar a obra literária em termos da
estrutura ideológica da qual faz parte e que ela, não obstante,
transforma em sua arte: [...] (EAGLETON, 2011, p.40-41).
21
Vemos que Eagleton toma o conceito de ideologia para explicar o
funcionamento do texto literário. Além disso, ele afirma que podemos fazer uma análise
científica que se basearia na percepção de como a ideologia estrutura o texto litérario.
Há, nesse sentido, uma dupla relação “mimética” do texto literário, pois ele constrói um
discurso por meio de uma construção discursiva da sociedade, que seria a ideologia,
questão que, como veremos posteriormente, servirá de base para Eagleton propor uma
ideia da literatura como uma dupla produção de representações ou significações da
história.
Podemos distinguir nas conclusões sobre os conceitos althusserianos8,
trabalhadas por Eagleton em Criticism and Ideology, que na crítica literária de cunho
marxista, o texto possui uma relação semelhante a da ideologia, no sentido de ser uma
produção de significados de uma realidade social. Nessa perspectiva, o entendimento
dessa arte e sua discussão crítica deve produzir um conhecimento sobre a história.
De forma paralela, antes de esmiuçar como Eagleton sistematiza seu método,
mostra-se necessário destacar as ideias de Pierre Macherey, filósofo francês, discípulo
de Althusser e que fora um dos primeiros a transpor as ideias desse para a literatura. Foi
por meio de Macherey que se pôde compreender, inicialmente, como se da à relação
entre ideologia e literatura, haja vista que Althusser não escrevera nada consistente
sobre literatura a não ser alguns poucos escritos esparsos.
Macherey, em seu trabalho seminal Para uma Teoria da Produção Literária,
escrito em 1966, entende, baseado nas proposições de Althusser, que a ideologia seria
uma produção imaginária da história com intuito de eliminar as contradições sociais,
diferenças de classe e certos discursos que representam uma realidade diferente daquela
dos discursos hegemônicos da história, ou seja, a ideologia para Macherey seria uma
ausência ou silêncio do real histórico. Nesse sentido, o texto literário – que ele chama de
ficção – por dar uma forma a uma ideologia, nomeada por ele de ilusão, acabaria por
revelar os limites dessa ideologia ou suas contradições. Em outras palavras, se o texto
revela as disjuntivas da ideologia, que poderiam ser como um apagamento ou
“silenciamento” das contradições históricas, ele falaria, assim, sobre os silêncios que a
ideologia buscava calar. Segundo Macherey: “A ficção, na medida em que é simulada,
engana-nos: mas este engano não é inicial, visto que se aplica a uma simulação mais
8 Para uma compressão profunda das ideias de Louis Althusser, sobre o marxismo cientifico ver os livros pour Marx
(1962) e Reading Capital (1965). Sobre o conceito de ideologia ver o ensaio Ideologia e os Aparatos ideológicos do
Estado, no livro Lênin e filosofia (1969).
22
radical, que nos mostra e a quem trai, contribuindo assim para que dela nos libertemos.”
(MACHEREY, 1971, p.66). Nessa perspectiva, a ficção ou literatura, por falsear a
ilusão ou ideologia, poderia nos oferecer um conhecimento histórico omitido pela
própria história.
Podemos ver que, em Criticism and ideology, Eagleton critica o fato de a
ideologia, para o filósofo francês, ser uma “ilusão”, pois para ele isso nos forçaria a ver
a forma literária, ou, nos termos de Macherey, “ficção”, como o elucidador de
contradições dessa ilusão. Para Eagleton, entretanto, nem sempre a ideologia se trata de
uma ilusão, e assim a ficção literária pode forçar tanto silêncios como elucidações da
ideologia. Nesse sentido, para o crítico britânico, ao Macherey conceder uma qualidade
diferenciada a forma literária, acaba por colocar o texto literário em uma posição
especial à ideologia. Dessa forma, o autor francês possuiria uma visão dualista de
ideologia no texto literário, ou seja, a ideologia seria a “ilusão” da história e o texto seu
“conhecimento”. Por outro lado, Eagleton defende que não há nenhuma característica
especial que conceda à forma do texto ser “subversiva”. A forma, para Eagleton, não
seria a determinante do conteúdo, como defenderiam certos formalistas russos que
acreditavam que a trama seria apenas uma ferramenta da fábula. Para Eagleton: “the text
establishes a relationship with ideology by means of its forms, but does so on the basis
of the character of the ideology it works” 9.( EAGLETON, 2006, p.84) Ele entende,
assim, que a forma literária seria determinada, em última instância, pelo seu conteúdo
ideológico, pois a própria forma já seria ideológica em sua constituição. Desse modo, o
texto literário não apenas produziria “ilusões” como também produziria
“conhecimento”, pois ele nem meramente reflete nem distancia a ideologia, mas sim
produz outra ideologia, ou outra significação ideológica e estética, que se articula com a
primeira, de diferentes formas. Contudo, apesar desse conceito de ideologia de
Macherey ser problemático, fato que detalharemos posteriormente, a proposição de
Macherey sobre o silêncio e a ausência do real histórico que a ideologia produz no texto
literário é uma técnica da qual Eagleton se apropria em suas análises,quando observar
que há certas estruturas no texto que só podem ser entendidas se feita sua relação com a
história que, implicitamente, constitui-a.
9 O texto estabelece uma relação com a ideologia por meio de suas formas, mas o faz na base do caráter da ideologia
trabalhada.
23
Macherey, no entanto, não formalizou um método de como poderíamos fazer as
relações entre ideologia e uma ciência histórica do texto. Assim, segundo Claude
Bouché, no texto Materialist Theory in France (1981), uma das lacunas deixadas por
Macherey seria que ele teria enunciado essa determinação ideológica do texto, mas não
teria proposto como essa se daria em relação ao funcionamento geral do contexto de
produção social – e é justamente essa lacuna que Eagleton quer preencher em seu
método.
1.3 MÉTODO MATERIALISTA
Para tentar mapear a constituição do texto literário, Eagleton desenvolve em seu
livro Criticism and Ideology: A Study in Marxist Literary Theory, escrito em 1976, um
sistema das leis de produção do texto literário. Para tal intento, como vimos
anteriormente, o autor britânico fundamentou-se na ideia de base e superestrutura do
marxismo reorganizada pela ideia de semi-autonomia do filosofo francês Althusser.
Esse afirmou haver uma relativa autonomia dos elementos de uma formação social e a
partir dessas ideias mostrou-se possível explicar como o texto literário é um produto não
apenas de um modo de produção social, mas de várias conjunturas sociais. Nesse
sentido, tentando ampliar e aplicar essas ideias no campo literário, o crítico inglês
propõe uma sistematização composta por seis categorias que, segundo ele, mapearia a
constituição do texto literário:
(i) Modo de produção geral (MPG)
(ii) Modo de produção literário (MPL)
(iii) Ideologia geral (IG)
(iv) Ideologia autoral (Iau)
(v) Ideologia estética (IE)
(vi) Texto
Uma das tarefas da crítica seria, assim, analisar a complexa relação histórica
dessas estruturas que produzem o texto. Para um melhor entendimento dessas
categorias, explicaremos como Eagleton conceitua cada uma delas.
24
O MPG representaria uma unidade de certas forças e relações sociais de
produção material. Refere-se tanto aos sistemas econômicos vigentes (feudalismo,
capitalismo) quanto as suas relações de classes resultantes (competição, hierarquia).
Designa-se “geral” para se diferenciar do MPL, que é uma unidade de forças e relações
sociais de produção literária em uma formação social particular e funciona no interior
de um MPG.
O MPL caracteriza-se pelas relações de produção, distribuição e consumação
literária. Por exemplo, se é uma relação de produção industrial ou artesanal, se é
financiado pelo patrão ou subsidiada por um mecenas, se são distribuídas as obras por
escribas-copistas ou editoriais, se são consumidas por um público pagante ou se é
compartilhado entre as próprias comunidades de leitores. Dentro desses vários modos
de produção literária pode haver um que se torne dominante, forçando, assim, os outros
para posições de subordinação. Segundo o autor, todavia, esses modos são
estruturalmente conflitantes, mas podem coexistir numa mesma formação social, por
exemplo, uma produção para o mercado capitalista, pode circular paralelamente a uma
distribuição de poesias manuscritas nas ruas. Esses modos também não precisam ser
necessariamente sincrônicos, podendo ser constituídos por elementos e estruturas do
passado, e são capazes de pressagiar modos vindouros. A complexidade de um MPL se
ergue justamente por suas relações com os múltiplos MPLs. Contudo, o autor lembra
que a crítica não está interessada nos aspectos sociológicos dos modos de produção
literário, mas sim em como esses fatores se incorporam à própria escrita estética, pois:
“the literary text bears the impress of its historical mode of production as surely as any
product secretes in its form and materials the fashion of its making.”10
(EAGLETON,
2006, p.48) Um exemplo disso seria um texto oriundo de um MPL de linguagem oral,
que apresentar-se-ia com um estilo mais coletivo, “anônimo” e despojado de
idiossincrasias introspectivas do que um produto de um MPL de uma linguagem escrita
e oriunda de uma editora privada, que tenderia a ser mais idiossincrático em seu estilo e
com uma organização textual mais singular. Não obstante, o autor inglês lembra sempre
que a relação desses dois modos de produção oral e privado é dialética, podendo um se
inscrever no outro, não havendo uma característica num MPL oral que não possa ser
compartilhado por um MPL de editora.
10 O texto literário gera a impressão de seu modo de produção histórico claramente, como qualquer produto
segregado em seus materiais e formas à moda de sua fabricação.
25
Os modos de produção irão também configurar uma formação ideológica
dominante, que consiste em um coerente grupo de “discursos” de valores,
representações e crenças determinadas pelo MPG, que refletem as relações
experienciais de sujeitos individuais com suas condições sociais que garantem àquelas
parciais percepções do “real”, contribuindo, com isso, para a reprodução das relações
sociais dominantes. O autor divide essas formações ideológicas ou ideologias em três:
geral, estética e autoral. A Ideologia Geral (ou IG) possui os traços abrangentes das
formações ideológicas em que as ideologias estéticas(IE) e autorais (Iau) se inserem. A
ideologia estética, por sua vez, representa uma região particular da IG, sendo aquela
dividida em subsetores, dos quais o literário é um – esse é ainda constituído por vários
níveis, como a teoria da literatura, a prática crítica, as tradições literárias entre outros. A
Ideologia Autoral (Iau), que não deve ser tratada de forma isolada da IG, representa a
inserção biográfica na IG, pois se trata de um modo de inserção superdeterminado por
uma série de fatores distintos, tais como a classe social, o sexo, a nacionalidade, a
religião, a região geográfica etc.
Por fim, o texto literário é produto de uma conjuntura específica determinada por
esses elementos. Não é, entretanto, um produto meramente passivo. O texto é tão
constituído por essa conjuntura como ativamente determina seus próprios
determinantes. A produção literária é fruto de certas “estruturas” em articulação, que
quando bem estudadas – suas contradições, homologias e conflitos – podem gerar um
conhecimento científico sobre o texto. No entanto, é preciso notar que apesar de
Eagleton ressaltar o caráter dialético das estruturas e da flexibilidade temporal que elas
possam possuir, ele ainda defende certa hierarquia, certa soberania de cima para baixo
entre as categorias do texto, tendo em vista que defende o argumento tradicional
marxista da determinação do econômico e das forças de produção, como podemos
comprovar com a leitura do seguinte enxerto:
Each of these ideologies will be determined by a specific conjuncture of LMP/GI/AI, on the basis of the final determination of the GMP.
There is, however, no question of a necessarily symmetrical relation
here between the various formations involved. Each of these formations is internally complex, and a series of internally and
mutually conflictual relations may hold between them.11
(EAGLETON, 2006, p.61, grifo nosso).
11 Cada uma dessas ideologias será determinada por uma conjuntura especifica do MPL/IG/IE, na base da
determinação final do MPG. Não há, entretanto, questionamento aqui de uma relação necessariamente simétrica
26
Com esse posicionamento, vemos que o crítico britânico tenta solucionar o
problema do marxismo vulgar relativo à ideia de mecanicismo entre contexto e texto,
propondo assim uma relação estrutural da produção do texto. Apesar de evitar uma
relação direta que não enxergaria a multiplicidade da constituição do texto literário, o
autor mantém a ideia da hierarquia entre modos, pois afirmar que não reconhecer a
determinação material é cair no idealismo de que o texto não é constituído pelos
materiais ideológicos e linguísticos em circulação na sociedade. É necessário frisar que,
apesar dessa teoria demonstrar essa constituição social do texto, é sempre preciso
entender, ao contrário das visões sociológicas simples, como estes fatores que
determinam o texto se internalizam esteticamente na obra literária.
Vimos assim, que Eagleton defende, a partir dessa relação de estruturas, que os
fatores extrínsecos ao texto se internalizam nele. Agora tentaremos mostrar como,
inversamente, o autor formula um argumento sobre os modos do texto apontar para sua
exterioridade. Isso tentaria responder à questão da especificidade do literário, ou seja, o
porquê da diferença entre textos que pertencem ao mesmo modo de produção literária,
mas que possuem características ideológicas diversas. Nessa perspectiva, Eagleton
tentou mostrar que, mesmo em contextos semelhantes, não se garante que os roteiros
sejam iguais. Isso se daria, segundo o autor, justamente por os textos produzirem suas
próprias ideologias e não serem um mero reflexo dessas. Buscaremos agora esmiuçar
como se desenvolve esse processo.
1.4 HISTÓRIA E LITERATURA
Para se entender como analisar o texto em seu caráter social, mas sem
desconsiderar sua constituição estética, é preciso entender uma questão central de como
o texto se relaciona com a história. Propondo uma alternativa à vulgar de alguns
segmentos marxistas que afirmam ser a literatura um mero espelho da história, e
sugerindo uma relação mais sofisticada, o pensador britânico afirma:
entre as várias formações envolvidas. Cada uma dessas formações é internamente complexa, e uma série de relações internamente e mutuamente conflitais podem estabelecer-se entre elas.
27
The text is a tissue of meanings, perceptions and responses which inhere in the first place in the imaginary transposition of the real
which is ideology. The “textual real” is related to the historical real,
not as an imaginary transposition of it, but as the product of certain
signifying practices whose source and referent is, in the last instance, history itself
12 (EAGLETON, 2006, p.75).
Levando em consideração essa citação, podemos ver que, para o autor, a história
não entraria no texto diretamente, mas por meio de certas práticas significantes, ou seja,
a ideologia. Como vimos, para Eagleton, a história não seria algo homogêneo e linear,
mas uma estruturação de vários elementos que possuem relativa autonomia. Dentro
dessa percepção, seria a ideologia que daria certa coerência a esses elementos e, com
isso, atribuir-lhes-ia uma significância. Por sua vez, um texto literário não lidaria com a
história diretamente, já que essa, segundo Eagleton, não seria acessível sem uma
coerência, ou seja, por meio da ideologia. Então, como a ideologia não seria um reflexo
da história, mas uma produção ou uma ficcionalização dessa, o texto literário não seria
um reflexo da ideologia, mas sim uma produção dessa. O termo “produção” ou
“ficcionalização”, assim, é usado pelo autor inglês para demonstrar que a ideologia e o
texto não são apenas reflexos mecânicos e nem construções independentes da história,
mas o ato de selecionar e utilizar certas significações históricas para produzir ou atingir
certos objetos e objetivos específicos. Portanto, é com essa ideia de produção sob
produção, ou seja, história/ideologia/texto literário, que Eagleton pretende resolver o
mecanicismo da reflexão texto e história.
Diante dessas concepções, podemos resumir essa relação da seguinte forma: os
meios de produção social dariam os materiais para que uma sociedade criasse suas
significações, que seria a ideologia; e a ideologia forneceria os materiais para que os
indivíduos construíssem objetos artísticos. O texto literário, por exemplo, teria seus
meios de produção e suas categorias estéticas – tais como gêneros, estilos e convenções
– , e ele mesmo tomaria esses elementos, que são oriundos da ideologia, transformando-
os em seus produtos – os temas, os roteiros, as personagens, as situações narrativas,
assim como em outros componentes que caracterizam o texto literário. Essas relações,
todavia, funcionariam como uma produção sob a produção, ocorrendo com certo grau
12 O texto é um tecido de significados, percepções e repostas que herdam, em primeiro lugar, aquela produção imaginária do real que é ideologia. O “real textual” é relacionado ao real histórico, não como uma transposição
imaginária dele, mas como o produto de certas práticas significantes cuja fonte e referente é, em última instância, a história ela mesma.
28
de autonomia em que as relações entre história/ideologia/texto são sempre mediadas por
relações conflitantes ou homologas. Assim, nem sempre o texto precisa confirmar ou
negar uma ideologia. A cada nova produção o texto pode deslocar e reagrupar os
materiais com que trabalha – os gêneros, personagens, cronologia e outros elementos do
literário são trabalhados em uma nova perspectiva –, que se pautam em suas leis
relativamente autônomas, mas são inscritos nas formações ideológicas que determinam
sua produção, constituindo assim uma série de relações complexas entre texto e
ideologia.
A função da análise textual literária seria, então, para Eagleton, perceber essas
diversas relações entre texto/ideologia/história. Para isso, ele propõe ver o texto como
um problema que busca uma solução. O autor entende que todo texto nasce de uma
problemática, ideológica e estética, e a tenta resolver com os materiais sociais de uma
conjuntura histórica particular (ideologias e convenções estéticas), mas a partir de sua
própria lógica. Assim sendo, o autor tentar explicitar o que ele quer dizer com “solução
de problemas”:
I do not mean by “solution” simply the determinate answer to an
articulate question, which is palpably not the case with much modernist and post-modernist literature. In a less literal sense of the
terms, every text can be seen as a “problem” to which a “solution” is
to be found.13
(EAGLETON, 2006, p.87).
Todo texto teria um “problema” que buscaria resolver de forma ideológica e
estética. Assim, a ideia de um tema “problema-solução” seria a ferramenta conceitual
que o crítico iria utilizar para pode perceber como o texto é inscrito em uma ideologia e
em uma história. Deve-se entender essa ideologia na própria composição do texto, na
própria letra do texto, em cada um dos seus elementos textuais, seus temas, seus
roteiros, seus personagens, sua organização temporal; saber como em um determinado
momento histórico tentou-se “solucionar” um problema por meio de um texto literário.
Assim, faz-se necessário compreender que não haveria nessa proposição um segredo
único que estaria escondido atrás do texto. O que existiria seriam várias relações entre
as implícitas estruturações ideológicas dos textos, sendo elas propriamente simbólicas
ou estéticas. Por exemplo, poderíamos dizer que os poemas indianistas de Gonçalves
13 Eu não intento dizer por “solução” simplesmente uma determinada resposta para uma questão articulada, que não é palpavelmente o caso de muito da literatura modernista e pós-modernista. Em um sentido menos literal dos termos,
cada texto pode ser visto como um “problema” para o qual uma “solução” deve ser encontrada.
29
Dias podem ser lidos como uma tentativa de solucionar a origem da história nacional,
usando uma estética romântica e épica de tendência estrangeira; ou que o romance
Macunaíma (1928), de Mario de Andrade, tenta resolver um problema ideológico
semelhante ao da poesia indianista, mas por meio de uma complexa relação entre as
ideologias do século XIX e uma estética modernista e localista do século XX.
Nesse sentido, podem haver várias relações entre estética e ideologia – ou
“temas problemáticos” – e a crítica teria a função de perceber com que elementos da
história o escritor tentou resolver uma questão que entendia como problemática. Não
havendo apenas um segredo ou um significado único, senão as várias relações entre os
elementos estéticos do texto, caberia ao crítico distinguir como eles se relacionam com
as ideologias e seus modos de produção. Sendo assim, para o crítico é necessário um
profundo estudo das origens do texto, pois cabe a ele saber diferenciar os componentes
que não são aparentes no texto – ou, como diria Macherey, que estão ausentes ou não-
ditos – , mas que são necessários para a estruturação ideológica do texto.
A relação entre texto literário e história seria, assim, uma relação não
autoevidente. O texto possui um acesso bem particular à história, já que ele é uma dupla
produção da história, ou seja, produção de uma ideologia que é uma produção da
história. A relação do texto com a história, assim, pode ser determinada por meio de um
estudo das relações de homologia e descentramento entre a organização própria do texto
(enredo, personagens, cronologia etc.) e suas ideologias estéticas e gerais, e essas, por
sua vez, com seus modos de produção literária e com seu modo de produção geral.
Assim, fazendo o caminho inverso das categorias de produção literária que Eagleton
propôs, ou seja, partindo do texto para história é que poderíamos demonstrar como a
lógica interna do texto é fissurada o tempo todo por seus fatores históricos.
1.5 APLICAÇÃO DO MÉTODO
Para uma melhor compressão de como funcionaria esse método científico de
análise literária proposta por Eagleton, faremos agora uma breve análise de um texto
literário, exemplificando o modo de construção dessa crítica. Para isso, utilizaremos
uma obra brasileira a fim de perceber a dinâmica desse método aplicado em outros
contextos ideológicos e culturais, já que ele só fora utilizado pelo autor em textos
ingleses do século XIX e XX.
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O crítico inglês entende que os textos por ele analisados como (as obras de Jane
Austen, George Eliot, Charles Dickens, entre outros escritores) pertencem a um setor
particular da história da literatura inglesa, chamado de “Cultura e Sociedade”, que seria
fundamentado por uma complexa conjuntura ideológica de classes burguesas e
aristocráticas formadora de um bloco ideologicamente dominante. Esse grupo,
distinguido por Eagleton, buscou em seus textos literários formular uma critica das
relações burguesas. Todavia, por buscarem na tradição humanista romântica subsídios
para seus julgamentos, segundo o crítico marxista, eles produziram ideias idealistas que,
ao invés de condenar a organização social burguesa, acabavam por consagrar os
preceitos do capitalismo nascente, que era o próprio fomentador dessas relações
burguesas.
Embora distante na geografia, selecionamos, para ilustrar e trazer para nosso
âmbito as teorias que Eagleton desenvolve acerca da literatura inglesa, o romance
Senhora (1875) do escritor José de Alencar. Escolhemos essa obra pois ela reverbera, ao
seu modo, os dilemas ideológicos de uma mesma contemporaneidade, mas em
contextos bem diferenciados, como são a sociedade inglesa, por um lado, e a sociedade
brasileira, por outro. Por exemplo, o dilema ideológico no romance descrito em um
ambiente burguês e aristocrático que possui como conflito a influência do capital nas
relações dos indivíduos.
Nesse âmbito, tentaremos ver se o método de análises dos conflitos ideológicos,
feito originalmente em textos ingleses, pode servir de referência para a configuração
ideológica brasileira, estruturada no romance Senhora. Faremos, assim, uma breve
exposição de como se daria a aplicação do método de Eagleton. No capítulo seguinte
isso servirá de base para problematizarmos esse próprio método.
1.6 AS CATEGORIAS DE PRODUÇÃO EM SENHORA
Iremos utilizar nessa parte as seis categorias propostas por Eagleton, aplicando-
as ao romance Senhora, tentando fazer assim uma breve exposição de como se daria seu
método de análise numa obra brasileira do século XIX.
O romance que iremos trabalhar fora escrito pelo autor José de Alencar. Sua
trama se baseia na relação da jovem Aurélia Camargo e do jovem Fernando Seixas. Eles
possuem temperamentos diferentes, sendo ela uma moça responsável e devotada aos
31
seus princípios, enquanto ele adota uma vida hedonista e possui um caráter duvidoso.
Eles namoram por um curto período, até que Seixas rompe o namoro com Aurélia para
se casar, por dinheiro, com outra moça abastada. A trama se torna mais complexa
quando Aurélia recebe uma herança repentina e decide “comprar” Seixas como seu
esposo. A partir desse momento o temperamento inicial dos personagens é posto à
prova, o que faz desencadear uma série de relações estéticas e ideológicas configuradas
por essa nova relação entre os personagens, não mais assegurada pelo sentimento, mas
pelo dinheiro.
Assim, tendo essas ideias em mente, observaremos como o romance Senhora
pode ser mapeado histórico e socialmente pelas categorias de produção desenvolvidas
por Eagleton.
1.6.1 Modo de produção geral (MPG)
O modo de produção brasileiro do século XIX pode ser considerado como um
período de transição entre uma forma de produção escravista colonial e o início de uma
produção agroexportadora de escala industrial. Nessa perspectiva, Celso Furtado, em
Formação Econômica do Brasil (1989), define o século XIX como uma economia de
transição para o trabalho assalariado, e, em outro trabalho, mas ratificando a ideia de
transição, Caio Prado Junior afirma:
A segunda metade do séc. XIX assinala o momento de maior transformação econômica do Brasil. [...] Mas a primeira metade do
século é de transição, fase de ajustamento à nova situação criada pela
independência e autonomia nacional (PRADO JUNIOR, 1983, p.192).
Essa transição foi impulsionada pela chegada da família real portuguesa ao
Brasil e subsequente independência do país, o que ocasionou uma série de medidas de
libertação econômica, como a abertura dos portos. Essa abertura esteve reprimida pelo
pacto colonial, que, uma vez modificado, desencadeou um pequeno florescimento da
economia interna do Brasil.
Havia uma classe aristocrática, concentrada na capital fluminense, formada
essencialmente por membros da corte portuguesa e por grandes latifundiários, a despeito
de uma grande população escrava ou mestiça que vivia em dependência econômica e
cultural daqueles. A produção, antes concentrada na região norte, na agricultura de
32
algodão e cana-de-açúcar, volta-se para a região sul e passa a se basear na economia
agrária de exportação de produtos primários, em especial o café, e a se utilizar do
sistema escravista como mão-de-obra. Com o crescimento interno nacional e o processo
de libertação dos escravos possibilitou-se, ao longo do século, o início da mão-de-obra
assalariada, da construção de um comércio interno e de uma pequena industrialização.
Podemos dizer então, de acordo com o que foi exposto, que o texto de Senhora
internaliza, de uma forma estética, o tema ideológico das relações de tráfico humano
refletido nos ambientes burgueses; relação essa que seria comum numa sociedade com
uma força de produção escravocrata, acostumada a avaliar até os indivíduos através de
um preço. Essa relação comercial, do modo de produção geral, acaba por estruturar o
romance. O MPG acaba virando leitmotiv para o trabalho estético e ideológico do texto
de Alencar.
1.6.2 Modo de produção literário (MPL)
O século XIX ficou marcado pelo surgimento de um MPL no Brasil, pois antes a
produção, a circulação e a distribuição de livros eram escassas e onerosas. Com o
surgimento dos jornais brasileiros, a exemplo do Jornal do Commercio (1827) e do
Diário do Rio de Janeiro (1821) repaginado em 1856 pelo escritor José de Alencar,
houve um novo desenvolvimento editorial. Cabe destacar que a literatura, nessa época
no Brasil, era divulgada nos próprios jornais, na forma de folhetins, estabelecendo, com
isso, as relações sociais de consumo e de produção literária. De fato, esse tipo de escrita
e de divulgação literária fez sucesso com os leitores abastados, reforçando uma
mudança que proporcionou o surgimento de um sistema literário nacional14
, em que os
autores podiam ser remunerados pelos seus trabalhos, bem como os editores dos jornais,
por meio do consumo dos leitores. Essa criação de um sistema literário nacional só foi
possível, como vimos anteriormente, devido a uma nova organização socioeconômica
ocasionada pela chegada da corte portuguesa no país – ou, nos termos propostos por
Eagleton, com o crescimento do MPG, que possibilitou, por sua vez, o crescimento de
um MPL. Eagleton explica-nos como se dá a consolidação MPL, utilizando como
exemplo as condições de produção literária na Inglaterra da era vitoriana:
14 Trabalhos como Iniciação à Literatura Brasileira (1999), de Antonio Candido, e O lugar do Folhetim Traduzido no Sistema Literário Brasileiro (2006), da professora Maria Cristina Batalha, defendem e descrevem esse surgimento
de um sistema literário nacional.
33
The capitalist mode of production develops its dominant LMP by
increasing the population, concentring it in urban centres where it is within reach of the mechanisms of literary distribution, and permitting
it limited degrees of literacy, affluence, leisure, shelter and privacy. At
the same time is increasingly specializes and extends its modes of literary production and distribution to sell literary commodities on this
market, and produces the material and cultural conditions essential for
professional literary production within it.15
(EAGLETON, 2006, p.49-
50).
De forma similar no Brasil, a criação de um ambiente cultural e simbólico,
ocasionado pelo desenvolvimento do MPG, propiciou o surgimento da imprensa como
forma de veicular informação, gerando, assim, uma mercadoria cultural que poderia ser
vendida no ambiente recém estabelecido. Isso significa que a MPL desse período acaba
por expandir o próprio MPG, pois fomentou um comércio interno que não era tão
desenvolvido nessa sociedade agroexportadora.
Outro fator que constituía o MPL era o fato de o número de
consumidores/leitores ser uma minoria, posto que a maioria da população brasileira na
época era de escravos, que estava à margem das instituições educacionais, assim como
de assalariados iletrados. Dessa forma, o brasileiro comum não possuía acesso a esse
intercâmbio simbólico. Sobre isso, Eagleton reconhece que a dimensão social de
letramento é, em última instância, determinada pelo MPG, mas o letramento: “is clearly
in turn a significant determinant of the LMP, affecting the size and social composition
not only of readers but of producers”16
(EAGLETON, 2006, p.58). Nesse sentido, no
Brasil de Alencar, tanto os escritores como os consumidores faziam parte de uma
minoria formada por aristocratas, e de alguns profissionais liberais. Segundo Alfredo
Bosi17
, esses eram leitores em busca de entretenimento, que normalmente não buscavam
requintes literários em suas leituras. Isso refletia em tramas repetitivas, sem
profundidade e cheias de peripécias que na maioria das vezes, só serviam para manter a
tensão até a sua resolução no final do texto. Os leitores exigiam temas aos quais
pudessem relacionar suas realidades, mas de forma idealizada, para suprir a morosidade
15 O modo de produção capitalista desenvolve seu MPL dominante pelo aumento da população, concentrando-a em centros urbanos, onde ela está ao alcance dos mecanismos de distribuição literária e que permite graus limitados de letramento, afluência, prazer, abrigo e intimidade. Ao mesmo tempo, é cada vez mais especializada, e expande seus modos de produção e distribuição literária para vender commodities literárias nesse mercado e produzir as condições materiais e culturais essenciais para uma produção literária profissional no interior dele. 16 É, claramente, por sua vez, um determinante significante do MPL, afetando o tamanho e a composição social não apenas dos leitores, mas dos produtores. 17 Especificamente no livro História Concisa da Literatura Brasileira (2012).
34
de suas vidas estáveis. Apesar do público leitor e dos escritores serem uma minoria
nacional, eles eram ideologicamente hegemônicos, e, por isso, intercambiavam um
produto literário que muitas vezes coadunava em suas ideologias formas de reproduzir e
expandir a IG. O romance Senhora se mostra, assim, um exemplo desse processo.
Através de suas formas ideológicas, que também são estéticas, aparenta ser, em parte,
um exemplo dessas características de gosto mediano, quando se utiliza usando, por
exemplo, de capítulos curtos e personagens maniqueístas. Podemos ver nesse modelo
romanesco uma assimilação das relações estéticas às relações mercadológicas. como
exemplo dessa assimilação, podemos citar o fato de que os capítulos sempre acabam
com uma tensão no final, causado por essa luta do bem e do mal, ou, no caso de
Senhora, do amor versus o dinheiro, o que acaba gerando expectativa no leitor e sua
possível adesão à leitura e à compra do folhetim. Há uma confluência, nesse sentido,
entre IE e MPL, pois a estética do folhetim-romance possui uma relação estilística e
mercadológica que contribui para o desenvolvimento e manutenção do MPL vigente e,
em última instância, do MPG como um todo.
1.6.3 Ideologia geral (IG)
Como vimos, o MPG do Brasil no século XIX era resultado de uma nova
configuração com a vinda da corte portuguesa e a independência nacional. Nesse
sentido, suas IGs baseavam-se em um conflito entre a reverberação das ideologias das
metrópoles europeias e a busca por uma identidade nacional, que se constituiria em
novas ideologias para a nova nação.
A aristocracia era tomada pela moda, pelos costumes e pela erudição do velho
mundo, bem como era influenciada pelos ideais do Iluminismo e da declaração dos
direitos humanos. Esses últimos influenciaram principalmente as revoltas separatistas
por um Brasil independente, criando ideias nacionalistas, libertárias e, eventualmente,
republicanas e abolicionistas, aliadas a um projeto unificante e coerente que procurava
criar um senso nacional. Alfredo Bosi, esquematizando esse conflito ideológico, afirma
que no Brasil:
As antinomias que marcaram o século XIX foram várias:
corte/província; poder central/poder local; campo/cidade; senhor
rural/classe média urbana; trabalho escravo/trabalho livre. A “conciliação ideológica” fez-se através da primeira geração romântica,
35
bafejada, como se sabe por dom Pedro II. Já as formas de conflito configuravam-se em primeiro lugar no Nordeste, onde precocemente
surgem correntes abolicionistas e republicanas. (BOSI, 2012, p.164).
Esses conflitos internos eram apenas parte da complexidade ideológica nacional,
pois ainda havia um conflito de ideologias entre o país recém-independente e sua antiga
metrópole. Para se diferenciar ideologicamente das metrópoles europeias, buscou-se
construir uma tradição brasileira através da figura do índio e do regional.
Outro fator ideológico constituinte da IG era a defesa de uma língua portuguesa
“brasileira”, como um mecanismo crucial através do qual a linguagem serviu para
legitimar esse projeto ideológico nacionalista. Os próprios escritores, como Gonçalves
Magalhães e José de Alencar, são exemplos dessa política linguística, utilizando em
seus textos palavras da língua tupi e expressões regionais. Na trama de Senhora é
possível ver um exemplo claro dessa ideologia na língua:
Essa é, creio eu, a verdadeira pronúncia da palavra; mas nós, os brasileiros, para distinguir da fórmula cortês, a relação de império e
domínio, usamos da variante que soa mais forte, e com certa vibração
metálica. O súdito diz à soberana, como o servo à sua dona senhóra.
Eu talvez não reflita e confunda. (ALENCAR, 2009, p.194 Sic)
Nesse exemplo, a protagonista Aurélia pergunta a Seixas, seu cônjuge e “servo”,
por que ele usa uma pronúncia diferente da palavra “senhora” quando se refere a ela.
Seixas então explica que seu uso é proposital e sinaliza uma relação entre língua e
poder. Vemos, nesse sentido, como a ideologia geral é internalizada no próprio texto
literário. Na organização do gênero, na linguagem, no léxico ou mesmo nas imagens há
um reflexo dessa luta política travada pela ideologia hegemônica.
1.6.4 Ideologia Autoral (Iau)
Para Eagleton, a Iau está sempre inscrita na IG. Assim, todas as configurações
acima discutidas constituem a base da ideologia do autor, mesmo esse tendo a liberdade
de entrar em conflito ou em homologia com as ideologias de seu tempo nos seus textos.
Em nosso caso, trata-se do escritor produtor José de Alencar, que nasceu no Ceará, mas
teve vivências tanto no sudeste, onde obteve seus estudos em direito, como na Europa.
Isso configurou nele uma vivência diversificada da composição do mundo, e teve uma
36
presença viva em seus escritos, na construção das imagens nacionais ou na consciência
cosmopolita dos romances europeus que lera e que alicerçaram a forma de seus escritos.
De família abastada, filho de um seminarista e senador, adotaria a religião do pai
e sua vocação política. A política e a literatura andavam sempre juntas para Alencar,
chegando ao ponto de seus escritos serem entendidos como um projeto político, através
da estética, em favor de uma modernização da nação recém-constituída. Ele também
teve opiniões controversas a respeito da escravidão, do império, do voto direto e da
emancipação das mulheres. Essas várias questões são elaboradas em seus tantos textos
literários.18
1.6.5 Ideologia estética (IE)
A ideologia estética do século XIX estava em forte conjunção com a sua IG
contemporânea. Nesse contexto, pela necessidade de fomentar uma cultura nacional no
espírito dos indivíduos, a literatura se destacou entre os outros setores da estética. Isso
se deu em parte devido ao texto literário ter sido um veículo de informações que possuía
os meios de produção organizados, devido ao surgimento da imprensa no Brasil, como
distinguimos acima.
As ideias românticas e nacionalistas que constituíam a IG forneceram os
substratos ideológicos ao movimento estético romântico brasileiro. As práticas críticas e
teóricas da época19
também colaboraram para enaltecer os textos que se coadunavam
com a IG. Como exemplo temos a Niterói, revista formada por um grupo de jovens
intelectuais do qual Gonçalves de Magalhães era parte. Nessa perspectiva, a questão do
que era nacional estava tão em voga no âmbito literário que José de Alencar, ao saber
que o Imperador Pedro II iria financiar a publicação da obra A Confederação dos
Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, criticou a ação, por considerar essa obra
descaracterizada dos verdadeiros traços nacionais20
. Vê-se com isso que, por um lado, o
próprio estado custeava certas obras, influenciando dessa forma o caráter da estética
18 Sobre a relação entre política, estética e as demais posições ideológicas controversas de José de Alencar, ver o trabalho de Ricardo Martins Rizzo (2007) Entre deliberação e hierarquia: uma leitura da teoria política de José de Alencar (1829-1877). 19 Como demonstrado por Cláudio José de Almeida Filho, no seu trabalho O papel da Crítica na Formação da Estética Literária Brasileira do Século XIX (1999). 20 Segundo Carlos Faraco, no texto Vida e Obra de José de Alencar, contido na 35ª edição de Senhora, publicado no
ano de 2009 (p.244).
37
literária; e por outro, nota-se como o tema do nacional é de relevância pra os intelectuais
da área, que acabavam também por legitimar e reproduzir certas ideologias estéticas.
Sobre os temas estéticos, assim como na IG nacionalista, ver-se também a
presença de temas como o indianismo e o regionalismo com características heroicas. As
imagens que simbolizavam as belezas naturais, e as próprias línguas indígenas, surgiram
como um elemento ideológico que constituía toda uma estética nacional, como forma do
que poderia requerer uma identidade nacional oprimida pela língua dos portugueses.
Assim, esses temas, carregados de grande expressão singular e emocional, constituíam o
grande componente dos poemas e romances escritos naquele período. Por fim, os
autores românticos enalteciam a natureza, como fazia a tradição literária dos árcades,
entretanto, houve uma ruptura com as formas estilísticas mais rígidas do classicismo, e
as características europeias cosmopolizantes deram espaço aos traços locais e
particulares, fazendo coro à IG de caráter liberal individualizante.
1.6.6 Texto
Terry Eagleton defende que o texto literário seria um produto específico
determinado pelas categorias que discutimos acima. Nesse sentido, o romance Senhora
não seria apenas um produto meramente passivo, no qual poderíamos fazer relações
diretas entre as categorias acima listadas e o seu conteúdo ideológico, como faria uma
crítica marxista vulgar. O que foi visto até agora constituiria a pré-história do texto,
pois, seguindo os preceitos de Eagleton, o texto de Senhora seria constituído por essas
categorias, mas produziria, em cima dessas, uma nova perspectiva estética, e para
entender essa perspectiva deveríamos investigar as suas relações ideológicas, buscando
assim apreender o seu produto textual. Isso significa que não buscaríamos tão somente
quais ideologias atuam no romance, mas como essas ideologias operam no texto,
estruturando ideologicamente a estética de Senhora. Faremos uma breve aplicação desse
método eagletiano no romance, demonstrando como as ideologias estruturam a sua
forma.
1.7 FORMA IDEOLÓGICA DE SENHORA
38
O romance Senhora, de José de Alencar, é marcado por uma diversidade de
modos ficcionais. Nele podemos ver jogos de cena dramáticos – como nas discussões
no quarto de Aurélia e Seixas – um forte simbolismo nas imagens da beleza de Aurélia,
e nas descrições carregadas de sentimento e moralismo a respeito do amor etc. Vemos
também, a crônica cotidiana, típica dos jornais, na representação das futilidades da
capital fluminense. Há ainda o realismo, presente na ironia dos enunciados a respeito do
casamento, e o rigor descritivo, vide o naturalismo, e nas descrições exageradas dos
ambientes da casa de Aurélia. Toda essa multiplicidade de gêneros e formas narrativas é
constituída por um conflito ideológico que dá unidade ao texto, em que as questões do
amor e do dinheiro são representadas na virtude de Aurélia e na fraqueza de Seixas,
respectivamente. Esses personagens centrais figuram um conflito entre ideologias
textuais, que seriam correlatas à ideologia geral “romântica” e à ideologia geral “liberal-
burguesa”, e que, dessa forma, seriam produzidas em uma determinada formação social
do século XIX no Brasil. Torna-se necessário perceber, todavia, como o texto trabalha
com essas duas ideologias, visto que, como preconiza Eagleton, o texto não é uma mera
reprodução da ideologia – do “real” histórico – , mas uma produção dessa ideologia.
Para isso, deveríamos refletir sobre como o texto problematiza-se com a ideologia.
Poderíamos dizer que o texto não é apenas uma solução a uma contradição ideológica,
mas é uma solução ao próprio tema-problema que cria. Logo, é importante ver como
essas IGs são trabalhadas na Ideologia textual.
Como vimos anteriormente, a trama do romance baseia-se na união de Aurélia e
Seixas. Desse modo, temos, de um lado, uma personagem que é vista, por meio da
leitura da ideologia da narrativa, como uma moça linda que possui uma grande devoção
à virtude e, principalmente, ao amor. Podemos dizer que sua maior riqueza, visto que
financeiramente fosse pobre, era seu idealismo: “Aurélia amava mais seu amor do que
seu amante, era mais poeta do que mulher, preferia o ideal ao homem.” (ALENCAR,
2009, p.107). Por outro lado, temos a personagem de Fernando, o bom vivant, o jovem
que frequenta os bailes da corte e recita poemas de Byron, frequentemente se utilizando
do dinheiro das mulheres abastadas de sua família para patrocinar suas algazarras. Ele
não tem muito dinheiro, devido a que seu pai, agora falecido, ficou parcialmente falido
ainda em vida. Assim, ao invés de compensar sua mãe e irmã financeiramente, é ainda
mimado por elas, para aproveitar sua vida. Nesse contexto, para ele o casamento poderia
ser uma oportunidade de sustentar essa sua vida hedonista e pseudoaristocrática: “o
39
casamento desde que não trouxesse posição brilhante e riqueza era para ele nada menos
que um desastre” (ALENCAR, 2009, p.110). Enquanto para Aurélia o valor da vida
estaria no “céu”, no amor e na virtude, para Fernando o valor estaria nos prazeres
mundanos e na materialidade do dinheiro. Assim temos duas figuras maniqueístas, com
tipificações ideológicas bem definidas.
Dentro desse quadro narrativo, o que acaba gerando toda a tensão e conflito na
trama é o fato deles se apaixonarem. A ficção alencariana em si, nesse sentido, é repleta
desse maniqueísmo heroico, em que o protagonista é superior ao seu algoz devido a
suas virtudes metafísicas. A personagem Aurélia, a heroína urbana do amor e contra o
dinheiro, assemelha-se bastante a Lucíola, protagonista do romance homônimo de 1862.
É possível perceber então que há, constantemente, nos textos do autor, essa verve
ideológica que mostra o conflito entre os valores românticos desenvolvidos no Brasil e
sua suposta degradação pelos valores burgueses aristocráticos.
Esse modo de enredo baseado em maniqueísmo caricato, típico dos folhetins da
época, possuiria em Senhora uma profundidade ideológica anêmica, se não fosse o fato
de, subitamente, após a transação de casamento que ocorre entre os dois protagonistas,
uma relação de interesses financeiros que coloca em cheque as próprias posições sociais
e ideológicas dos protagonistas. Isso tanto torna complexo o enredo, quanto nos mostra,
em um sentido mais amplo, um vislumbre de uma estruturação literária de uma
sociedade com resquícios ideológicos escravocratas e aristocráticos, ou seja, um grupo
social acostumado, em suas vivências, com a reificação humana. Nesse contexto, o
dinheiro, ou a sociedade que se baseia nele, acaba por estruturar o próprio romance,
como defende, por exemplo, Antonio Candido, afirmando que se:
[...] atentarmos para a composição de Senhora, veremos que repousa numa espécie de longa e complicada transação, — com cenas de
avanço e recuo, diálogos construídos como pressões e concessões, um
enredo latente de manobras secretas, — no correr da qual a posição dos cônjuges se vai alterando. (CANDIDO, 2006, p.16).
Os próprios protagonistas, como afirma o crítico brasileiro, também têm suas
características alteradas pela lógica da transação. De fato, Aurélia, antes uma jovem
idealista que, de forma inocente se apaixonara por Seixas, quando o mesmo também não
tinha condições de proporcionar um futuro seguro aos dois, acabou não se casando com
o bom vivant, salvando-se de um casamento por conveniência e não por amor. Todavia,
40
ao saber que o mancebo a deixou não pela falta de sentimento, mas pelo dote de outra,
ela tem seu ideal de homem corrompido e isso, para ela que possui uma riqueza no
“céu” ou nas ideias, é imperdoável. Ela resolve, então, casar para torna-se independente
de homens interesseiros, a exemplo do seu tio e tutor Lemos, e une a isso uma vingança
a Fernando Seixas, fazendo-o casar pelo dote. Aurélia, ao tornar Seixas o seu esposo e
mercadoria, faz com que ambos passem a ter comportamentos bastante distintos aos que
os constituíam ideologicamente no início da narrativa. A moça, antes pura e idealista
passa a agir de forma mundana, ao avaliar o preço dos seus pretendentes, e às vezes até
com certo “fulgor satânico”, quando se vinga de Seixas. E Seixas, de oportunista e
moralmente duvidoso, passa a ter responsabilidade e a honrar seus compromissos.
A mudança no casal se deve ao efeito da coerção social. Essa ditaria as “boas”
maneiras, ou os mitos e ritos ideológicos, que um casal burguês deveria seguir e se
adequar. O desejo de ambos, de manter a “farsa” de um casamento burguês feliz, faz
com que os dois finjam atitudes e usem uma linguagem irônica todo o tempo. Aurélia,
por exemplo, mostra-se estranha às senhoras da corte, pois, ao invés de se portar com
submissão ao marido, aparenta ser muito ativa e independente. Para aquelas senhoras da
corte isso se justificaria devido à moça ser uma mulher avançada para o seu tempo,
talvez influenciada pela “mulher europeia emancipada”21
. Seixas mostra-se em
responsável e até mesmo avarento, torna-se estranho para os amigos que achavam que
ele iria ser ainda mais indisciplinado com dote recebido. Ele, todavia, passa a ter como
álibi para seu bom comportamento perante a sociedade a responsabilidade do casamento
e de seu dinheiro adquirido. Seixas silencia, assim, o fato de que queria, por meio do
trabalho, pagar sua dívida com Aurélia.
Alencar busca, nesse sentido, sempre jogar com esses elementos do social e do
individual, mostrando como a ideologia hegemônica, imposta pela aristocracia
burguesa, possui muitas vezes uma lógica perversa. Seixas, por exemplo, se mostra
como um produto de seu meio: “A sociedade da qual me eduquei, fez de mim um
homem a sua feição” (ALENCAR, 2009, p.229). Aurélia, todavia, por ter vivido de
forma diferente na sociedade, parece possuir certa grandeza, como no seguinte exemplo,
em que ela se considera mais velha que seu tio, por causa de sua vivência:
21 Figurando até uma ideologia progressista para época, que seria um proto-feminismo que vinha da Europa.
41
Esquece que desses dezenove anos, dezoito os vivi na extrema pobreza e um no seio da riqueza para onde fui transportada de repente.
[...] Por conseguinte devo ser mais velha do que o senhor que nunca
foi nem tão pobre, como eu fui, nem tão rico, como eu sou
(ALENCAR, 2009, p.33).
Essa ideia, presente na ficção alencariana, de que quem passou pela pobreza
sabe o preço da virtude, parece querer redimir o personagem de seus vícios mundanos
por meio dos valores ideológicos românticos e, de certa forma, até de uma visão
classista. O indivíduo possuiria, assim, certas virtudes transcendentes à qualquer lógica
social? ou seria o lugar social onde se encontra que determinaria suas virtudes ou
vícios? Trata-se de um conflito que permeia a obra. Assim, há nessa lógica sempre uma
desordem entre o que os personagens apresentam para a sociedade e o que eles
realmente sentem. Esse conflito gera toda a ironia e a ambiguidade de uma linguagem
censurada pela ideologia hegemônica dominante, que, simultaneamente, revela sua
verdade, se for posta sob a perspectiva privada do casal protagonista. As conversas entre
os dois no jardim de casa são exemplos profundos dessa linguagem irônica:
- Dê-me o braço, que ali vem D. Firmina.
Aurélia passou a mão pelo braço de Seixas. Passeando ao longo de uns painéis de fúcsias de várias espécies e admirando as flores,
tiveram eles esta conferência, que de certo nunca houve entre marido e
mulher. - A senhora comprou um marido; tem pois o direito de exigir dele o
respeito, a fidelidade, a convivência, todas as atenções e homenagens,
que um homem deve à sua esposa. Até hoje... - Faltou-lhe mencionar uma, talvez por insignificante, o amor, atalhou
Aurélia brincando com um cacho de fúcsias. (ALENCAR, 2009,
p.161-162)
Toda essa conversa, aparentemente trivial, é estruturada por um conflito
ideológico que organiza a linguagem do texto. No primeiro enunciado temos a presença
de D. Firmina. Ela figura a ideologia da sociedade fluminense, que censura o
comportamento dos outros personagens e os interpelam a adotar os papéis sociais da
ideologia hegemônica burguesa. No momento em que a personagem surge, Aurélia dá
uma ordem ao seu esposo/mercadoria para que ele pegue seu braço e assuma seu papel
de marido. O narrador faz a descrição do ambiente exótico pelo qual passeiam e das
amenidades que ambos trocam, demonstrando a relativa tranquilidade do ambiente
social, passividade essa que contrasta com a tensão entre os dois. Após esse passeio, o
casal conversa sobre o tema central do romance, ou seja, Fernando assegura os direitos
42
de sua “senhora”. Nesse enunciado, percebe-se a formalidade dos termos que ele usa,
indicando certo respeito ou servilismo, enquanto ela retruca cobrando os deveres do
marido – dentre eles, o amor. Esse mesmo amor que, enfaticamente, ela trata por
“insignificante”. Assim, o narrador frisa que, simultaneamente ao enunciar tal frase,
Aurélia brinca com um cacho de fúcsias, novamente contrastando a tranquilidade e o
desinteresse do ambiente social ao clima de tensão entre os dois.
Embora em boa parte do enredo seja apresentado um conflito da psique de
ambas as personagens, ou seja, a desilusão amorosa entre os dois, é, em última
instância, a dívida material entre eles que provoca o real conflito. De fato, é por meio do
trabalho de Seixas que acontece a libertação, no “espírito” ou na consciência deles. É
justamente pelo fato do conflito se concentra na consciência dos indivíduos que na
maior parte do enredo os conflitos são simbólicos e se concentram nas ironias e em
vários diálogos ambíguos. Vemos algumas exceções, a exemplo do fato de Aurélia fazer
com que Seixas vá aos eventos e visitas sociais, exercendo materialmente o conflito
ideológico da sua dominação sobre seu marido. Outro bom exemplo se encontra no final
do terceiro capítulo quando a protagonista resolve “aproveitar a vida”, mas isso ainda
se torna uma compensação material ou física a um conflito psicológico ou ideológico,
uma tentativa de superar ou esquecer os problemas, como se observa na voz da própria
Aurélia: “Que não dera apagar essas crenças, ou antes, estas incômodas ilusões da
infância, com que educou-se minha alma e conformar-me a realidade da vida. Oh se eu
conseguisse!...”( ALENCAR,2009 P.179). Nesse trecho, vemos como Aurélia em suas
lamúrias se vê num impasse, pois ela tenta acreditar que a realidade da vida não seria
um ideal de honra e justiça, mas sim um fingimento em que a inocência da infância não
é mais possível – ou em termos teóricos, como se a Ideologia em que ela acreditava
preenchê-la inteiramente – e não correspondesse à realidade material a qual ela vive.
Outro conflito no romance alencariano seria o silêncio expressivo de uma
representação antagônica à riqueza. Há no romance a presença constante da corte e seu
requinte, percebida sempre em contrapartida à ausência latente de, por exemplo, um
cortiço ou uma senzala e suas mazelas. É continuamente a corte e os ambientes
aristocráticos que permeiam o romance. Não parece ser apresentada nenhuma proposta
alternativa a esse ambiente. Ou seja, o autor se concentra na organização social e
ideológica dos ambientes aristocratas. Apenas um pano de fundo da corte fluminense é
levemente mencionado nos recuos temporais e narrativos sobre o passado de
43
dificuldades financeiras de Aurélia, mas esse tem como função não uma crítica direta à
organização social que marginaliza grande parte dos indivíduos a miséria, mas sim o
efeito de mostrar os motivos para a ojeriza de Aurélia ao dinheiro – a exemplo da perda
de Aurélia de seus amores, pai, irmão e a necessidade de casar por conveniência como
fonte de sobrevivência, o que fez surgir nela o valor do amor como algo superior ao
dinheiro.
É por meio de Aurélia que se faz a crítica aos valores burgueses, mas ela não o
faz através de uma crítica materialista, mas sim de uma crítica idealista. Nesse sentido,
o próprio narrador admite a abstenção de uma crítica mais racional, em favor de uma
explicação mais sentimental, como podemos ver no trecho em que ele explana a
passividade de Aurélia em relação à ausência de atenção de Seixas para com ela: “esse
fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos; porque o
coração, ainda mais de uma mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral.”
(ALENCAR, 2009, p.107). Essa abstenção do narrador reforça o silêncio para com a
racionalização dos valores românticos que circunscreve a ideologia do romance,
principalmente na consciência da protagonista. Essa atitude dela apresenta-se como uma
posição em que não há dicotomia, mas sim um antagonismo transcendente, no qual o
amor seria sempre superior, não importando qual seja problema. O inimigo do dinheiro,
nesse sentido, não seria a pobreza, mas o amor; o problema do casamento por dinheiro
não seria a falta de dinheiro de alguns, mas a falta de amor. Não haveria, nesse sentido,
uma ideologia antagônica de classes, mas uma ideologia supraclassista que tentaria
purificar e unificar todos os conflitos entre essas classes. Uma ideologia perfeita em seu
ideal, pois resolveria todos os problemas que em uma sociedade escravista, patriarcal,
aristocrata e com a maior parte da população iletrada, não poderia resolver
materialmente. Isso demonstra a deficiência da ideologia romântica, assumida por
Aurélia, que critica a reificação humana e degradação dos valores sociais pelos
interesses burgueses, mas não mostrando uma solução material para o conflito.
Poderíamos dizer, seguindo o pensamento de Roberto Schwartz, que, em Senhora, a
prosa: “não é conformista, pois não justifica, nem é propriamente crítica, pois não quer
transformar” (SCHWARZ, 2000, p.42-43). Essa suposta dualidade se dá pelas lacunas
que a ideologia romântica apresentada no Brasil não consegue preencher no contexto
em que se desenvolve.
44
Apesar de todas as “negociações” e trocas de papéis sociais e ideológicos, vemos
que a solução que Alencar dá a seu tema-problema é uma conciliação entre a ideologia
romântica e a ideologia liberal burguesa. No romance, é possível perceber que a
reconciliação final entre Aurélia e Fernando se desenvolve a partir da quitação do
“dote”, ou seja, é apenas a partir da liberdade material ou monetária que pode o
sentimento passional se libertar na trama. Nessa perspectiva, se no início temos dois
personagens de virtudes distintas, mas que se amam, e que por meio do dinheiro têm seu
comportamento mudado, ao longo do enredo vemos que é por meio desse contrato
monetário que eles vão construindo um relacionamento de maneira irônica. Essa
ambiguidade da trama é gerada porque o empecilho que separa os dois é o dinheiro e
sua consequente desvirtuação.
Como podemos ver nesses exemplos, em que apesar de não se declararem um
para o outro, os dois reconhecem para si seus sentimentos para com o outro, Aurélia diz:
“– Tu me amas!... exclamou cheia de júbilo. Negues embora, eu o conheço; eu o vejo
em ti, e sinto-o em mim!” (ALENCAR, 2009, p.211). E Seixas, explicado pelo
narrador: “Fernando, esmagado pelo sarcasmo, contra o qual não podia reagir, teve
ímpetos de confessar a essa mulher toda a insânia do amor que sentia” (ALENCAR,
2009, p. 220). Dessa forma, a ironia acaba tornando-se hábito e então realidade, ou seja,
eles fingem para a sociedade que se amam, fingem para ambos que não se amam, mas
sabem que se amam internamente, entretanto, o dinheiro obstrui os sentimentos do casal
protagonista.
A libertação vem por meio do trabalho de Seixas. Ou seja, espraiando essa
reflexão em termos mais gerais, seria por meio do esforço e volição individual que
poderíamos superar as dificuldades sociais, sem precisar “se vender” em um casamento
por conveniência. Ao quitar sua dívida, Seixas se liberta materialmente, por meio do
trabalho; exercendo os preceitos do liberalismo econômico, pode então gozar de seus
desejos sentimentais, que representam os princípios da ideologia romântica. Da mesma
forma, Aurélia, ao ter sua dívida paga, percebe que Seixas não seria um homem
desvirtuado e, ao mostrar seu testamento, também prova que o dinheiro não é superior
ao sentimento dela. Desse modo, apesar dos seus comportamentos abusivos sobre
Seixas, ela parece não ter se deixado levar pelo poder do dinheiro. Essas atitudes fazem
com que o caminho para a reconciliação seja possível, e quando isso acontece eles
percebem que todo esse casamento fora um fingimento: “Somos dois estranhos. Não é
45
verdade? Seixas confirmou com a cabeça” (ALENCAR, 2009, p. 230- 231). Esse
estranhamento aponta para a percepção de que a relação de ambos era movida pelo
contrato econômico, e o que fizeram até então era justificado por esse mesmo contrato.
Há uma relação dialética entre a libertação material e a espiritual dos indivíduos.
Ao quitar sua dívida Seixas não está só liquidando seus débitos econômicos com
Aurélia, mas sua dívida moral, que para ela, que pensa ser uma virtuosa, era o
fundamento de sua vida. Seixas admite que se tivesse consciência talvez não tivesse
perdido sua dignidade, e então reconhece: “Mas a senhora regenerou-me e o
instrumento foi esse dinheiro” (ALENCAR, 2009, p.229). Seguindo esse raciocínio,
podemos afirmar que o dinheiro obtido de forma justa e o amor se unem como uma
conciliação perfeita para o indivíduo, elo conveniente a ideologia liberal econômica.
Nesse sentido, podemos arguir que o texto se estrutura na junção da ideologia liberal
burguesa com a ideologia romântica – quando o dinheiro é obtido por meio da
corrupção moral do indivíduo ele é visto como um mal, mas, se é obtido pelo esforço
justo, é visto como um bem propiciador da elevação dos sentimentos humanos. Nessa
perspectiva, entendemos que o romance de Alencar fora, em sua estruturação,
embevecido por uma tradição simbólica que tentava resolver, com princípios
metafísicos e modelos ideológicos semifeudais, os problemas da sociedade burguesa.
Por não ter outra referência ideológica – como, por exemplo, uma tradição racionalista
ou empirista, que colocasse à prova as bases da ideologia romântica – ou até devido a
isso, por ter de importar formas ideológicas europeias, buscou-se referência nos
modelos idealistas europeus, e no âmbito da estética buscou-se referência nos folhetins
franceses. Esses modelos ideológicos ofereceram, assim, uma crítica das relações
sociais burguesas; uma crítica, todavia idealista, à cultura de reificação humana, não
demonstrando as determinações sociais para esse problema e pondo o liberalismo
econômico como chave para a libertação do indivíduo.
Essa complexidade ratifica a própria ideologia autoral alencariana, que buscava
conciliar seu conservadorismo com a modernidade. Como demonstra Ricardo Rizzo
(2007), Alencar bebia das ideias progressistas do Romantismo, seguindo a máxima do
romancista Vitor Hugo de que essa escola era o liberalismo na literatura, mas, ao
mesmo tempo, o autor cearense também era embevecido por ideias neoclássicas e
católicas, sendo necessário ver que o projeto estético de Alencar é um processo peculiar
em que ele: “singulariza a sua elaboração própria da tradição romântica, e evidencia as
46
etapas de preparação de escrita romanesca” (RIZZO, 2007, p.209). Apesar dessa
variedade ideológica no pensamento alencariano, muitas de suas ideias estão em
conflito entre si. Isso aponta para um problema comum na produção ideológica da
época, que tentava resolver os problemas materiais com uma visão idealista. Essa visão
é defendida, por exemplo, por Roberto Schwarz, que percebe uma ligação forte entre os
discursos literários e os discursos da sociedade em geral – em termos eagletianos, a IG
em reverberação com a IE. Para Schwarz: “os problemas de Alencar eram, com pouca
transposição, os produtos de seu tempo, continuidade fácil de documentar com
discursos e matérias de imprensa, que sofria das mesmas contradições e desproporções”
(SCHWARZ, 2000, p.73).
Poderíamos, por fim, entender a transação de um casamento como o tema
ideológico e estruturante do texto através de uma perspectiva mais ampla, na qual o
texto não é somente a superação do amor perante o econômico, ou entre a ideologia
romântica versus a ideologia liberal burguesa, como uma crítica vulgar poderia afirmar,
mas uma junção idealista entre duas ideologias aparentemente antagônicas.
Assim sendo, poderíamos entender o romance da seguinte forma, é a partir da
libertação econômica da dívida, por meio do trabalho individual de Seixas, que o amor
pode se estabelecer. Apesar de o amor estar presente em toda a narrativa, no desejo
interior dos protagonistas, ele é silenciado para dar vez às relações comerciais que
tornam complexo o enredo, fazendo os recuos e concessões na narrativa, bem como as
manobras secretas da linguagem. Quando a dívida material – e, por consequência, a
espiritual e moral – é quitada, o amor pode falar ou fazer presença no romance,
deixando em silêncio, quase que completamente, o “mal” dinheiro, que é aquele obtido
por meio de tráfico de influências, diferente do “bom” dinheiro, que serve para ajudar o
amor. Assim, o tema da corrupção do indivíduo pelo dinheiro é solucionado não por
uma visão dualista sinalizada no adágio “o amor é maior que o dinheiro”, mas por uma
visão mais complexa, mas não menos idealista, de que o dinheiro “justo”, para aqueles
que podem ter um trabalho, pode ajudar ao amor.
Uma análise científica do texto de Senhora precisa buscar os princípios
ideológicos que estruturam o texto. Isso significa observar as relações diferenciais dos
múltiplos aspectos que constituem o texto, sejam eles estéticos ou sociais; e foi isso que
almejamos em nossa análise. Sendo assim, pudemos observar que um elemento estético
47
– o romance folhetim – produz um aspecto ideológico – o heroísmo romântico – , que é
posto em contradição quando se apresentam elementos de outra ideologia, como é o
caso do liberalismo econômico. Esse procedimento conflituoso acaba causando a ironia
que permeia toda a estrutura do romance, e que configura o processo no qual os
elementos estéticos são deslocados e recolocados pelos elementos ideológicos e vice-
versa. Esse é o procedimento de autodeterminação do texto, em que cada um de seus
temas-problema é provisoriamente resolvido no texto de Senhora. Foi essa
autodeterminação, ou produção de uma solução a uma problemática histórica/
estética/ideológica, que buscamos evidenciar no texto.
Em nossa análise do texto de Senhora, buscamos não somente reproduzir as
ideias de Eagleton, mas, usando seus próprios princípios críticos, produzir outro texto
que não é somente dele nem nosso, mas sim uma terceira possibilidade crítica. Essas
contradições e homologias entre nosso texto e a proposta eagletiana, todavia, foram
construídas deliberadamente para entendermos o projeto do crítico inglês de reavaliação
desse tipo de crítica científica. Assim, fizemos essa análise buscando melhor
compreender as visões posteriores do autor – entendendo que o pensamento descrito
em Criticism and Ideology precisou se adaptar às novas urgências e desafios teóricos
que surgiram pouco tempo depois de seu lançamento – e propondo não outro método,
mas uma alternativa a própria noção de crítica literária.
48
2. PROBLEMAS DA CIÊNCIA DO TEXTO
Como vimos no capítulo anterior, Terry Eagleton produziu um método de análise
para construir uma crítica literária marxista. Esse projeto, todavia, como observa James
Smith (2008), não logrou uma penetração notória nos meios acadêmicos, não
influenciando nenhum trabalho expoente, sendo depois abandonado em parte pelo
próprio Eagleton. Os motivos para esse inexpressivo impacto no âmbito acadêmico
foram alguns problemas na própria composição teórica, bem como fatores históricos
que tornaram as discussões contidas no livro obsoletas. Tentaremos, então, neste
capítulo, demonstrar o porquê desse projeto não ter se estabelecido largamente na
prática crítica de Eagleton, e então entender como ele negocia suas proposições de
teoria literária com os novos desafios, propostos pelas correntes pós-estruturalista e
desconstrutivista, que acabaram por colocar em “xeque” alguns conceitos marxistas da
época.
Nesse sentido, afirmaremos que, diante desses novos desafios que surgiram
depois da publicação de Criticism and Ideology, o crítico britânico tentou resgatar a
crítica literária de seus procedimentos institucionalizados e tecnocráticos, que, segundo
ele, esvaziariam o sentido político do entendimento estético. Para isso, o autor propôs
uma solução “revolucionária” que buscaria entender o literário não apenas como um
objeto artístico para fruição individual, mas como algo de um funcionamento vital para
a construção e manutenção da sociedade.
Para procedermos nossa investigação, observaremos os aspectos históricos,
teóricos e estilísticos que fizeram o autor abandonar parcialmente suas proposições
anteriores e sua tentativa de forjar novas concepções diante dos desafios críticos
contemporâneos. Vale ressaltar que essa divisão é apenas analítica, visto que ambos os
fatores estão imbricados entre si.
2.1 FATORES HISTÓRICOS
Nos trabalhos subsequentes a Criticism and Ideology, como por exemplo nos
prefácios de Walter Benjamin (1981) e de Against the Grain (1986), Eagleton sempre
nos lembra de que quando esse seu livro de teoria marxista fora escrito, em meados da
década de 1970, as políticas radicais de esquerda estavam em alta e em crescente
49
produção, fruto dos eventos sociais como o maio de 68, os movimentos feministas e
anti-guerras e o surgimento do eurocomunismo. Isso, por consequência, criou um
ambiente propício para o desenvolvimento de uma política de esquerda muito confiante
em seus projetos enxergando esses como sendo mais esclarecedores que os outros
projetos teóricos.
Um dos mais notórios trabalhos marxistas na época foi o de Louis Althusser, que
propunha solucionar os problemas da crítica cultural de esquerda através de uma crítica
marxista “científica”. Segundo Eagleton: “the benefit of Althusser`s major theoretical
concepts was that it sought to correct what could often be convincingly exposed as
flawed or false conceptions in other traditions of Marxist thought”22
(EAGLETON,
1988, p.2-3). Percebemos então que trabalhos de Althusser ofereciam, assim, um
refinamento teórico às concepções mecanicistas da produção social conhecidas como
marxismo vulgar, e, além disso, criticavam a tradição idealista marxista inspirada nos
conceitos hegelianos, por exemplo, segundo ele, alguns trabalhos de Georg Lukács e
Lucien Goldmann. Por conseguinte, Althusser, com sua visão anti-humanista e anti-
historicista, prenunciou muitas das discussões que se tornariam chaves para o
surgimento das correntes pós-estruturalistas. Porém, suas ênfases no aspecto estrutural
da organização social, na produção como determinante do ser social e sua concepção de
ideologia acabaram por ser suplantadas pelas ideias desconstrucionistas e pós-
estruturalistas, pois essas enfatizavam não a estrutura, mas o descentramento, a
fragmentação social e as margens do discurso; não priorizavam a produção, mas a
recepção ou a interpretação ativa dos consumidores ou leitores, e defendiam a ideia de
que o conceito de ideologia subjugava os outros discursos como uma falsa
representação, mas não a si mesmo.
O trabalho de Eagleton, assim, tornou-se inovador, por conseguir levar essas
discussões althusserianas e as de Pierre Macherey para o ambiente britânico, e por
defender uma visão marxista não hegeliana, incomum nos trabalhos sobre os romances
na época.23
No entanto, quando seu livro foi lançado em 1976, os trabalhos dos
pensadores pós-estruturalistas, como Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan,
22 O beneficio dos maiores conceitos teóricos de Althusser foi que eles procuraram corrigir o que poderia frequentemente ser convictamente exposto como concepções fracas ou falsas em outras tradições do pensamento marxista. 23 Se levarmos em conta que os trabalhos marxistas sobre literatura, como os da escola de Frankfurt, os de Lukács e Goldmann, eram de base marxista hegeliana. E, no contexto inglês, os trabalhos se baseavam nas teorias de F.R.
Leavis e Raymond Williams, que não eram marxistas.
50
começaram a ser traduzidos para a língua inglesa, e acabaram por se tornar
hegemônicos, tanto nas faculdades britânicas quanto nas americanas, onde o
desconstrucionismo se transformou em um discurso dominante, tornando-se referência
no desenvolvimento das ideias pós-estruturalistas – como exemplo notório temos a
Universidade de Yale. Explicitando essa ideia, Smith afirma:
Criticism and Ideology, situated as it was on the cusp of the shift in
the Anglo-American academy from structuralism to post structuralism,
with its high-structuralist formulations, was thus easily theoretically sidelined from the debates that were about to engulf the literary
academy24
(SMITH, 2008, p.57).
Nessa perspectiva, os trabalhos de cunho althusseriano, como os de Macherey e
Eagleton, não conseguiram obter o mesmo impacto que os trabalhos dos pensadores
pós-estruturalistas, fazendo com que muitas ideias propostas por aqueles fossem tidas
como superadas. Essa questão, no entanto, não se deu por méritos conceituais do pós-
estruturalismo, mas sim por razões políticas que atendiam a uma nova demanda de
pesquisadores e alunos, como observamos neste comentário de Paul Resch:
The discourse that Macherey sets out to deconstruct was labeled "ideological" rather than ‘logocentric’, a materialist emphasis
considerably less acceptable in Anglo-American critical circles than
was the postmodern iconoclasm of Derrida 25
(RESCH, 1992, p.261).
Como consequência disso, ao fim da década de 70, seguindo o raciocínio de
Resch, o aparato conceitual da esquerda marxista havia sido substituído por conceitos
desconstrucionistas e pós-marxistas. Logo, segundo Resch, não mais se usava,
costumeiramente, nas análises, termo como “ideologia”, mas sim “discurso”; não se
enfatizava a produção, mas a recepção; não se estudava mais a história, mas a
textualidade; não se lutava mais na política de classe, mas nas micro-políticas.
Nesse sentido, o grande argumento de Eagleton para responder o porquê dos
projetos marxistas – dos quais o seu próprio Criticism and Ideology fazia parte – não
terem perdurado nos anos oitenta, foi o fato da existência das subsequentes derrotas na
24 Criticism and ideology, situado como estava na cúspide da mudança na academia anglo-americana do estruturalismo para o pós-estruturalismo, com suas grandes formulações estruturalistas, foi assim facilmente e teoricamente posta de lado dos debates que foram engolfados na academia literária. 25 O discurso que Macherey pôs para desconstruir foi rotulado de “ideológico” ao invés de “logocêntrico”, uma ênfase materialista consideravelmente menos aceitável nos círculos críticos anglo-americanos do que foi a
iconoclastia pós-moderna de Derrida.
51
prática social e política de esquerda. Ou seja, toda agitação social, desde o maio de
1968, começou a ser contida pelos poderes conservadores, que acabaram levando o
pensamento teórico que era confiante de si e “científico” para uma política
desacreditada e “textual”, em que qualquer forma de conhecimento era uma questão não
de ciência, mas de perspectiva política na linguagem. Essa derrota se deu, em parte,
porque a teoria marxista andava dissociada da prática de libertação social e longe dos
anseios cotidianos das “massas”, enquanto as teorias desconstrutivistas se aproximavam
do estilo de vida do capitalismo globalizado, ficando assim bem mais sintonizadas com
os interesses de uma sociedade pós-maio de 68, desiludida e cética.
Portanto, a tradição do marxismo ocidental, a exemplo de Louis Althusser ou
dos teóricos da escola de Frankfurt, constantemente construiu suas teorias dissociadas
das lutas de classes, como defende Perry Anderson:
Adorno haveria mesmo de retomar exactamente os preceitos de
Althusser, segundo os quais a teoria é um tipo específico de prática («prática teórica»), e a noção de prática tem ela própria que ser
definida pela teoria. «A teoria é uma forma de prática», escreveu
Adorno, e «a própria prática é um conceito eminentemente teórico». O teoricismo provocador destas teses, que suprimem todo o problema
material da unidade entre a teoria e a prática como relação dinâmica
entre o marxismo e a luta revolucionária de massas, proclamando a
sua identidade lexical à partida, pode ser considerado como um leitmotiv do marxismo ocidental da época que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial (ANDERSON, 1976, p.95-96 sic).
Como podemos ver nessa citação, Anderson considera que, desde a segunda
guerra, as correntes marxistas vêm se tornando descrentes com relação a uma teoria
formada a partir da prática e se distanciando das massas; e isso, ao invés de energizar as
lutas e a percepção radical na teoria, acaba por fortalecer os elementos mais
conservadores, como o elitismo de achar que a teoria sozinha pode resolver os
problemas conceituais e práticos. Nesse sentido, no caso do marxismo estruturalista,
podemos ver que suas ideais estavam mais preocupadas em determinar processos
objetivos da história do que em contribuir com a luta de classes ou intervir nas lutas
contra as hegemonias simbólicas. Dessa forma, visto que muitos desses críticos se
restringiam à vida acadêmica, essa atitude era teoricista e academicista, pois
impossibilitaria a potencialidade da mudança social e inviabilizaria as grandes ações
coletivas de mudança social.
52
Na prática social dos anos 70, ao contrário do que preconizam essas teorias,
todavia, Anderson e Eagleton defendem que a esquerda era bastante otimista e estava
em constante luta contra os valores vigentes. No entanto, a teoria estava em
descompasso com o que os indivíduos sentiam e desejavam, pois esses achavam que
apenas os cientistas poderiam resolver o problema da sociedade, fazendo com que suas
ideias se tornassem obscuras e impraticáveis. Contudo, com a crise do petróleo em 1973
e a hegemonia no plano político e cultural da direita, inspirado pelos modelos
anglófonos do tacherismo e do reganismo, a esquerda passou por um período de
desilusão nas práticas subsequentes às conquistas esquerdistas pós-maio de 68, que
foram dominadas pelo capitalismo conservador enaltecido no começo dos anos 80. Isso
ia ao encontro do pessimismo e do ceticismo das teorias pós-marxistas e pós-
estruturalistas, habilitando essas a tomar a doxa dos discursos na crítica cultural. Sobre
essa ideia, Eagleton comenta:
As the 1970s ran their course, and global crisis of capitalism generated
shift in political power in Britain and elsewhere to the far right, the
intellectual climate on the left within which these questions had been debated was markedly transformed. Two diversal political directions
appeared to be indicated by the deadlocks beyond which althusserian
marxism was unable to move. On the one hand, in more pragmatic, politically dispirited milieu, it was possible to distil from that body of
theory its more “rightist” elements, and press these through to a point
which led beyond marxist altogether, into the burgeoning sub-cultures of post-marxist and post-structuralist thought (…)
26 (Eagleton, 1988,
p.4).
O que Eagleton está mostrando é que, apesar de Althusser querer defender o
marxismo de certos humanismos e interpretações reformistas, tornou-se preciso também
defender o marxismo contra alguns aspectos do althusserianismo e das ideias pós-
marxistas geradas a partir desse. Isso não significa, todavia, retornar ao marxismo
clássico, mas sim renová-lo a partir dos discursos não marxistas que estão em voga na
contemporaneidade. Assim, esse diálogo com as outras hermenêuticas, aliado a uma
crítica menos “teoricista” e mais atenta à organização prática social e cultural, é o que
26 À medida que a década de 1970 seguiu o seu curso, e a crise global do capitalismo gerou uma mudança no poder político na Grã-Bretanha e em outros lugares para a extrema direita, o clima intelectual na esquerda, dentro do qual essas questões foram debatidas, foi marcadamente transformado. Duas direções políticas diversas pareciam ser indicadas pelos impasses para além do qual o marxismo althusseriano era incapaz de se mover. Em uma direção, um ambiente mais pragmático e politicamente desanimado, foi possível destilar desse corpo de teoria seus elementos mais "direitistas" e pressionar esses até um ponto que os levassem por completo para além do marxismo, para o
interior das crescentes subculturas do pensamento pós-marxista e pós-estruturalista.
53
Eagleton tentará desenvolver na sua visão revolucionária dos anos seguintes. Portanto,
para o pensador britânico, a questão não era que os insights marxistas promovidos dos
anos 60 até os anos 80 não deveriam ser resgatados, mas sim que eles precisam ser
constantemente repensados. Se nessa época a crítica literária marxista estava em
ascensão e bastante confiante de suas premissas, a partir dos anos 80 os processos de
interpretação literária dessa tradição precisaram ficar na defensiva e se adaptar aos
novos desafios de sua teoria. Iremos, agora, observar alguns pontos teóricos que
pareciam problemáticos no projeto de Eagleton nos anos 70 e que foram questionados
nos anos vindouros.
2.2 FATORES TEÓRICOS
O projeto de uma ciência do texto proposto por Eagleton não obteve tanta
repercussão devido a vários fatores históricos e políticos, como vimos anteriormente.
Contudo, em nossa perspectiva, essa sua crítica materialista possuía contradições
referentes às próprias organizações conceituais que constituíam seu método. Esses
problemas, de certa forma relacionados com as contradições históricas, propiciaram o
perecimento de seus conceitos, com a passagem de uma década para outra. Nesse
sentido, questões principais na teoria de Eagleton, como cientificismo, ideologia,
produção e literatura precisavam ser rearticuladas aos novos desafios da própria teoria
literária, que então absorvera conceitos das mais diversas áreas da humanidade, como a
psicanálise, a filosofia, a antropologia, o feminismo e os estudos culturais.
Assim sendo, discutiremos esses quatro pontos – cientificismo, ideologia,
produção e literatura – explicitando o porquê de serem problemáticos.
2.2.1 Cientificismo
Como vimos no primeiro capítulo, Althusser e seu parceiro Etienne Balibar
fizeram uma releitura de Marx e afirmaram, em Reading Capital (1968), que há uma
diferença entre o conhecimento científico e as ideologias. Para eles, Marx fundou uma
ciência, assim como a matemática e a física, nomeada de ciência da história ou das
54
ideologias, que ficou conhecida como materialismo histórico. Assim, influenciado por
essas ideias, Eagleton iria construir uma ciência do texto literário.
Para um leitor de crítica literária acostumado a ver o termo “ciência do texto”
como algo derivado do projeto formalista e estruturalista linguístico, seria estranho ver
uma apropriação desse termo por uma crítica que se dedicaria a ver a história e as
ideologias, visto que essa crítica usualmente lidaria com elementos mais políticos, e
assim mais suscetíveis a uma flexibilidade conceitual do que estritamente mensuráveis
num sentido formal. No entanto, o projeto de Althusser, que Macherey e Eagleton foram
os primeiros a formalizar na literatura, desejava racionalizar e objetivar não a forma
linguística do texto isolada, mas entender a estrutura textual como uma composição da
história.
O projeto da ciência do texto do marxismo estruturalista buscou verificar que a
estrutura do texto literário é ela mesma uma produção da história, por meio da união de
duas metodologias: por um lado, o rigor formal de analisar os objetos literários como
uma organização constituída graças a sua relação diferencial com os elementos que
constituem um sistema; e, por outro, a percepção marxista de que todos os elementos
sociais são uma produção e frutos de uma história marcada por lutas de interesse.
Assim, diferentemente do estruturalismo linguístico – a exemplo da Escola de Praga – o
marxismo estruturalista não entendia o texto literário como uma relação diferencial
interior da linguagem, mas entendia que o texto não possuía nem um interior formal,
nem uma história exterior, mas sim uma presença da história na própria organização da
linguagem.
Segundo a perspectiva do projeto marxista estruturalista, Karl Marx foi um
proto-estruturalista ao perceber a materialidade e a determinação do ser social. Assim,
indo de encontro aos projetos não científicos, metafísicos, humanísticos ou
psicologistas, o texto literário seria um produto da determinação social, mas, ao
contrário dos modelos mecanicistas, para Althusser, os elementos do texto possuiriam
uma relativa autonomia dentro do sistema social. É necessário perceber, dessa forma,
que a própria produção da estética é estruturada por uma linguagem relativamente
autônoma – por outro lado, mesmo a linguagem deve ser vista como um produto de uma
ideologia e, por consequência, como um produto dos modos de produção social.
Nesse sentido, seguindo algumas ideias dos filósofos Gaston Bacherlad e August
Comte, Althusser e Macherey entendem que o conhecimento científico da literatura não
55
deve buscar o objeto literário em si, mas “a discursividade característica do verdadeiro
conhecimento” (MACHEREY, 1971, p.12), ou, em outros temos, as estruturas sociais
que o constitui. Assim sendo, o crítico deve buscar entender as leis de produção de seu
objeto, mudando a percepção empírica e superficial do texto literário e o desmenbrando
em conceitos. Nessa perspectiva, para Macherey o conhecimento científico funcionaria
da seguinte forma:
A ciência não nos dá uma interpretação, sentido estrito do termo, dos
seus objectos: transforma-os, atribuindo-lhes uma significação que a
princípio não tinham. Não existe no movimento dos corpos que caem
nenhuma vocação que fundamente a lei dessa queda e ainda menos que lhe obedeça (já que a natureza não é um reino com um rei que
submeta às suas leis); durante muito tempo os corpos caíram e
continuam a cair sem enunciar a lei. Mas era vocação do saber produzir essa lei: quer isto dizer que a lei não está nos corpos que
caem, mas fora deles, a seu lado, aparecendo num terreno totalmente
diferente, o do saber cientifico (MACHEREY, 1971, p.144. sic).
Vemos então Macherey, a partir da analogia da tese de Newton, defender que a
crítica deva ser uma produção de conhecimento sobre o objeto, algo que não é dado pelo
objeto, que só é perceptível a partir de nossa interpretação e criação de conceitos sobre
ele, ou seja, que se proponha fazer o texto literário mostrar suas leis de produção, como
ele se transforma no que é. Desse modo, se o texto literário é um produto social, ele
trabalha com materiais produzidos por essa sociedade; logo, o estudo racional sobre
essa produção social evidenciaria a constituição do texto.
Seguindo esse raciocínio, como vimos no capítulo anterior, Eagleton tentou
construir um modelo sofisticado para determinar esse produto literário, criando vários
conceitos, como, por exemplo, os de Modo de Produção Literário (MPL) ou Ideologia
Estética (IE). Ele tentou, dessa forma, construir o conhecimento de como o texto
literário foi produzido por meio de suas relações diferenciais no sistema de produção
social da ideologia e da estética, acreditando que, ao fazer isso, poder-se-ia chegar a um
conhecimento sobre o texto.
Seguindo esse modelo proposto por Eagleton, em nossa análise do romance
Senhora pudemos perceber os traços dessa tentativa de aplicar uma ciência do texto. O
primeiro fator dessa aplicação foi a percepção de que o romance seria estruturado por
uma confluência de vários elementos ideológicos e de organização produtiva do século
XIX. Assim, por meio de uma percepção dessa determinação social e estética, tentamos
56
construir um conhecimento científico sobre o texto de Senhora, elucidando suas leis de
produção. Vimos também que, apesar da multiplicidade de gêneros, símbolos e
figurações que existem no texto alencariano, esses se relacionam entre si, estruturados
por um conflito ideológico cujo tema hegemônico seria o tráfico das relações humanas.
Portanto, nosso exemplo de análise científica do texto de Senhora tentou demonstrar
como Eagleton apostava numa visão de crítica literária que poderia ser criteriosa,
determinística e racional dos textos literários, a partir de um entendimento de que,
apesar de o texto possuir uma estrutura formal, essa forma é ela mesma ideológica e
aponta para as relações sociais e históricas. Em suma, essas percepções chegaram ao
extremo de Eagleton afirmar que apenas o marxismo poderia entender o texto literário:
The guarantor of a scientific criticism is the science of ideological
formations. It is only the basis of such a science that such a criticism
could possibly be established – only by the assurance of knowledge of
ideology that we claim a Knowledge of literary text27
(EAGLETON, 2006, p.97).
Contudo, na passagem dos anos 70, quando houve o auge do estruturalismo, para
os anos 80, e a ascensão do pós-estruturalismo, questões como cientificidade,
racionalidade, objetividade, verdade e real foram postas em cheque por grande parte dos
pesquisadores nas ciências humanas. Nesse sentido, se o estruturalismo acreditava que
colocando o foco na determinação sistêmica dos elementos poderíamos produzir um
conhecimento objetivo, o pós-estruturalismo acusava-o de cometer o mesmo erro de
seus antecessores metafísicos e pseudocientíficos, e, ao invés de buscar determinar, para
os sucessores do estruturalismo deveríamos relativizar.
Dentro dessa linha, Jacques Derrida fora um dos pioneiros e mais aclamado dos
críticos a questionar os conceitos de estrutura, verdade e racionalidade. Derrida, em
1966, numa conferência intitulada A Estrutura, o Signo e o Jogo no Discurso das
Ciências Humanas, já afirmava que o conceito de estrutura seria uma sucessão de
centros que não possibilitaria o “jogo” dos signos e interpretações sem centro, origem
ou fundamentos. De forma semelhante, Michel Foucault, que fora aluno de Louis
Althusser, criou o conceito de êpistemê, por meio do qual afirmava que não era possível
observar os discursos científicos separados dos outros discursos considerados não
27 O fiador de uma crítica científica é a ciência das formações ideológicas. É apenas nas bases de tal ciência que tal crítica poderia possivelmente ser estabelecida – apenas pela garantia de um conhecimento da ideologia é que
podemos clamar um conhecimento dos textos literários.
57
científicos. Ele defendia que: “The episteme is the 'apparatus' which makes possible the
separation, not of the true from the false, but of what may from what may not be
characterized as scientific”28
(FOUCAULT, 1980, p.197). Por sua vez, seguindo a
mesma linha de pensamento dos outros filósofos franceses pós-estruturalistas, o filósofo
Jean François Lyotard definiu como “moderna” qualquer ciência que se legitima por
referência a grandes discursos, tais como o de verdade universal ou emancipação das
sociedades. Para ele, uma ciência pós-moderna rejeitaria qualquer pretensão
legitimadora baseada em grandes narrativas:
(...) a ciência pós-moderna torna a teoria de sua própria evolução
descontínua, catastrófica, não retificável, paradoxal. Muda o sentido da palavra saber e diz como esta mudança pode se fazer. Produz, não
o conhecido, mas o desconhecido. E sugere um modelo· de
legitimação que não é de modo algum o da melhor performance, mas o da diferença compreendida como paralogia (LYOTARD, 1988,
p.108).
Esse termo “paralogia” seria, para Lyotard, uma percepção de que os sistemas
são abertos, localistas e antimetódicos, o que vai de encontro às pretensões
determinísticas, seja dos estruturalismos ou marxismos, que buscam observar certas
formações sistêmicas e objetivas na sociedade. Nessa perspectiva, os discursos que se
almejassem científicos estariam reduzindo e regulando, por meio de certos “consensos”
fixos, a heterogeneidade dos emaranhados de enunciados circulantes na sociedade,
fossem eles denotativos, prescritivos, performativos, técnicos, avaliativos etc. Para
Lyotard, portanto, não se possuiriam evidências para determinar uma metaprescrição
comum a todos os jogos de linguagem da coletividade, como defendiam algumas
comunidades “científicas”.
Seguindo essa ideia, Mohamed Ezoura (1990) defende uma confluência de
argumentos nos trabalhos de grandes filósofos do conhecimento, como Thomas Khun,
Stephen Toulmin e do próprio Lyotard, sobre a questão da cientificidade na moderna
ciência. Para eles, de acordo com Ezoura, as ciências humanas e as naturais não se
diferem por questões de subjetividade ou objetividade na análise dos fatos; ambas as
ciências passam por um processo de interpretação e hermenêutica, e elegem seus
paradigmas sobre o que pode ser considerado científico. Dessa forma, para Ezoura,
28 A episteme é o ‘aparatos’ que faz possível a separação, não do verdadeiro para o falso, mas do que pode para o que
não pode ser caracterizado como científico.
58
esses trabalhos quebram a distinção de que existiria de um lado uma cientificidade e do
outro uma ideologia. Ainda segundo esse pensador:
(…) the concept of scientificity has moved into the terrain of ideology.
A discourse that is marked “scientific” can no longer pass through the
gates of interpretation unchecked. After being perceived as the
negation of ideology, scientificity now seems to have collided with it. Both concepts and their ramifications must now inhabit human
discourse, be it “scientific” or “non-scientific29
(EZROURA, 1990,
p.32).
Vemos que Ezoura chega à conclusão de que o científico e o não científico
possuem uma relação muito próxima, o que opõem certas pretensões privilegiadas da
obra althusseriana dos anos 70. Essa obra, por sua vez, que influencia Eagleton com,
por exemplo, sua distinção entre ideologias e ciências, de certa forma ainda pairava pela
prática crítica das ciências humanas naquele período, contudo foi questionada
severamente nos anos 80 por algumas correntes antirracionalizantes, principalmente no
campo literário.
Essas discussões a cerca da ideia de ciência foram trazidas para o âmbito
literário com bastante força, pois, para muitos, a verdade ou ciência não estaria mais
fora da linguagem, mas apenas sobre a linguagem, que seria o material constituinte da
literatura. A linguagem literária seria, nesse sentido, a representante ideal de toda
linguagem, pois não apontaria para nenhum objeto factual, mas apenas para uma outra
linguagem e assim sucessivamente, ad infinitum. Não haveria, nessa perspectiva, mais
diferença entre os discursos teóricos e os literários; a própria filosofia, por exemplo, era
estetizada, preocupada mais em como dizer do que com o que propriamente se estava
dizendo. Assim, para alguns críticos não só o objeto literário, mas também a sua
percepção crítica seria apenas um jogo de linguagem, uma “escritura”, em que não se
poderia determinar, objetivar, racionalizar nada além da sua própria falta de
determinação, sua imprecisão e sua visão sempre parcial, local, contextual e sensível.
Dois exemplos dessa não diferenciação entre ciência ou teoria e literatura pode ser vista
em alguns trabalhos do crítico francês Roland Barthes e do crítico belgo-americano Paul
de Man. 29 O conceito de cientificidade tem se movido para dentro do terreno da ideologia. Um discurso que é marcado “científico” não pode mais passar pelos portões da interpretação sem ser verificado. Depois de ser percebido como a negação da ideologia, cientificidade agora parece ter colidido com essa. Ambos os conceitos e suas ramificações
devem agora habitar o discurso humano, seja ele “científico” ou “não científico”.
59
Barthes, quando iniciou seus trabalhos, foi considerado como um crítico
estruturalista que acreditava numa ciência dos signos, como, por exemplo, em seu
trabalho de 1956, Mitologias, no qual ele afirmava que: “A semiologia é uma ciência
das formas, visto que estuda as significações independentes do seu conteúdo”
(BARTHES, 2001, p.133). Em sua fase tardia, todavia, ele defendia um projeto mais
sensível do que racionalizante, pois ele, em 1973, afirmava na sua obra O prazer do
texto, que a ciência do texto seria uma escritura, uma ciência das fruições da linguagem,
em que só haveria um tratado, que seria, por sua vez, a própria escritura. Nesse sentido,
Barthes queria reformular suas antigas pretensões cientificistas e pôr um novo foco na
ciência linguística, como podemos observar no seguinte recorte do citado livro:
Seria bom imaginar uma nova ciência lingüística; ela estudaria não
mais a origem das palavras, ou etimologia, nem sequer sua difusão, ou
lexicologia, mas os progressos de sua solidificação, seu espessamento
ao longo do discurso histórico; esta ciência seria sem dúvida subversiva, manifestando muito mais que a origem histórica da
verdade: sua natureza retórica, linguareira (BARTHES, 1987, p.57).
Para o crítico francês, a verdade seria uma condição histórica, e sua natureza
seria sempre retórica e linguareira, e não estática e representacional. A literatura, para
Barthes, seria o local onde o signo apresentaria sua natureza de ser, ou seja, arbitrário e
artificial, e, seguindo essa ideia, a ciência devia deixar seus antigos preceitos de origem
ou funcionamento do léxico, como é característico do marxismo estruturalista, e buscar
as diversas transitividades dos signos.
Em uma perspectiva teórica similar, Paul de Man considera que o literário não é
característico de romances e poemas, mas de qualquer texto que seja ele filosófico,
histórico, jurídico ou médico. Para de Man: “The criterion of literary specificity does
not depend on the greater or lesser discursiveness of the mode but on the degree of
consistent ‘rhetoricity’ of the language”30
(DE MAN, 1971, p.137). A literatura,
todavia, possuiria a característica de reconhecer sua própria ficcionalidade e
arbitrariedade: “it is the only form of language free from the fallacy of unmediated
expression”31
(DE MAN, 1971 p.17). Portanto, para de Man, toda linguagem
funcionaria por meio de retórica, visto que ela é essencialmente metafórica, metonímica
30 O critério de especificidade literária não depende da maior ou menor discursividade do modo, mas do grau de “retoricidade” consistente da linguagem. 31 É a única forma de linguagem livre da falácia da expressão imediata.
60
e alegórica, contudo, apresentar-se-ia como “natural” ao seu objeto significado, como se
manifestasse um objeto real e não um efeito discursivo.
Nesse âmbito, no livro Allegories of reading (1979), o crítico belgo-americano
demonstra, a partir de uma análise do poema de “Yeats”, que a linguagem funcionaria
através de uma ambiguidade entre seu sentido literal ou gramatical e seu sentido
figurativo ou retórico, e que o primeiro poderia ser sempre subjugado e/ou
desconstruído nos termos do segundo, deixando o significado sempre suspenso. Assim,
para o autor: “Rhetoric radically suspends logic and opens up vertiginous possibilities
of referential aberration”32
(DE MAN, 1979, p.10). O próprio ato crítico seria, nesse
sentido, apenas uma questão de leitura, que o próprio texto oferece em várias
perspectivas. Não haveria uma posição crítica, que determinasse um significado ou
origem no texto, que não fosse atingida por essa suspensão de sentido. De Man, assim,
amplia essa ideia de leitura retórica para o próprio status de teoria ou ciência em The
resistance of theory (1986). Nessa obra ele procurou provar que a teoria seria
justamente uma subversão de uma epistemologia; ela buscaria demonstrar a
impossibilidade da linguagem ser um modelo da linguagem, ou seja: se a linguagem é
constituída por uma tensão entre o sentido literal e o figurativo, ela deve resistir aos
projetos teóricos ou científicos que buscam subjugar o literal ao figurativo ou
“gramatizar” a retórica. Desse modo, para de Man:
The resistance to theory is a resistance to the rhetorical or tropological dimension of language, a dimension which is perhaps more explicitly
in the foreground in literature (broadly conceived) than in other verbal
manifestations or — to be somewhat less vague — which can be revealed in any verbal event when it is read textually
33 (DE MAN,
2002, p.17).
O sentido de teoria para de Man – que pode ser estendido para o de ciência – se
constitui da ideia de que essa tem uma consciência de sua dimensão tropológica e não
factual. Desse modo, o professor de Yale pensa a literatura como sendo um dos mais
emblemáticos exemplos de teoria e ciência, já que ela não buscaria provar a realidade
dos objetos, mas sua própria arbitrariedade e construção como um efeito da linguagem.
32 Retórica radicalmente suspende a lógica e abre possibilidades vertiginosas da aberração referencial. 33 A resistência à teoria é uma resistência para a dimensão retórica e topológica da linguagem, uma dimensão que é talvez mais explicitamente no campo da literatura (concebida de forma ampla) do que em outras manifestações
verbais ou – para ser algo menos vago – que pode ser revelada em qualquer evento verbal quando é lida textualmente.
61
É importante frisar, entretanto, que muito das ideias de Barthes e de Paul de
Man, e de alguns pós-estruturalistas que compartilham dessas ideias, vão ao encontro
das formulações do marxismo estruturalista. Apesar da corrente de análise literária
materialista primar por uma ciência do conhecimento objetivo do texto, ela defende a
multiplicidade desse texto, a característica artificial de produção e suas contradições e
ausências como fator constitutivo de si – algo semelhante à noção de escritura de
Barthes e de retórica de de Man.
No entanto, apesar dessa aparente confluência, o projeto de ciência do texto
literário, baseado em Althusser e desenvolvido por Macherey e Eagleton, carrega
algumas divergências teóricas com os projetos pós-estruturalistas, como a ideia de que a
pluralidade de sentidos e de independência do texto, por exemplo, é apenas aparente e
superficial no próprio texto. Assim, se tomarmos como base os conceitos de semi-
autonomia dos três autores supracitados, veremos que eles sempre defendem uma visão
moderada da autonomia do texto e também – como diria Althusser – , em “última
instância”, a determinação do texto pelo modo de produção social. Nesse sentido, eles
não são tão radicais ao afirmar que não há uma origem ou centro de conhecimento, ou
que esses sejam apenas a própria linguagem. Em suas análises dos textos literários,
como, por exemplo, as de Macherey na obra de Julio Verne e as de Eagleton na obra de
George Eliot, é possível ver uma certa referência às ideologias e modos de produção
social. Assim sendo, diferentemente de Barthes e de Man, os críticos marxistas não
queriam deixar o texto apenas em seu silêncio ou na sua abertura de sentidos infinita, ou
demonstrar somente seu próprio vazio de sentidos. Contra esses extremismos, Macherey
e Eagleton almejavam fazer falar sobre o “silêncio” do texto; preencher ou construir um
conhecimento sobre o texto que ele próprio não sabia que era ou que falava sobre. Em
outras palavras, os autores marxistas querem mostrar que esse silêncio de frases, de
sentidos e de ideologias pode distinguir ou circunscrever o que constitui o próprio texto,
demostrando, assim, como ele é.
Nessa perspectiva, podemos ver um exemplo dessas ideias em nossa análise do
texto de Senhora. Apesar de demonstrarmos a multiplicidade de estilos e sentidos
possíveis no próprio texto, também atentamos para o silêncio sobre a historicidade de
sua construção textual e ideológica, e, para isso, tomamos como referência o conceito de
ideologia e modo de produção das formações sociais do século XIX. Embora tenhamos
evitado os reducionismos históricos, assim como nas análises feitas por Eagleton em
62
Criticism and Ideology, há sempre uma configuração da história como significado final
do texto. O que deixa evidente que o fator material, apesar de ser uma construção social,
possui efeitos reais, apesar de algumas proposições pós-estruturalista parecem
negligenciar.
Outro argumento levantado contra a ideia de conhecimento científico do
marxismo estruturalista é proposto por Howard Felperin (1985). Esse teórico critica o
fato de o conceito de ciência da produção literária ser considerado análogo aos das
ciências naturais – questão que vimos exemplificada na comparação de Macherey entre
a lei da gravidade e as leis de produção do texto. Segundo o raciocínio de Macherey: “a
linguagem da ciência e da teoria é uma linguagem fixada – o que não significa que seja
imutável ou acabada” (MACHEREY, 1971, p.58). Para Felperin, no entanto, não seria
possível construir um conhecimento sobre o objeto literário, ou mesmo sobre a história,
similar ao que se desenvolve acerca dos objetos das ciências naturais, visto que o texto
literário lida com a linguagem, que não seria um produto estável como os objetos das
ciências naturais. Entretanto, vê-se que a ciência do texto acredita que a linguagem pode
ser menos ilusória e mais fixa do que se pensa, como se pode perceber na seguinte
afirmação de Eagleton:
Language, among other things denotes objects; but it does not do so in
some simple relationship, as though word and object stood adjacent, as two poles awaiting the electric current of interconnection. A text,
naturally, may speak of real history, of Napoleon or Chartism, but
even if it maintains empirical history accuracy this is always a fictive
treatment – an operation of historical data according to the laws of textual production
34 (Eagleton, 2006, p.70).
Eagleton entende, assim, que, por um lado, a linguagem não é um espelho da
realidade, visto que sempre passa por uma mediação ou tratamento fictício entre o seu
objeto e nossa percepção histórica particular; e, por outro lado, a linguagem, justamente
por ser regida por certas leis históricas, possibilita uma forma ou estrutura consensual
de significações, podendo ser instrumento de percepção histórica, justificando assim os
objetos sociais como sendo objetos de estudo. Isso também se opõe à ideia de Paul de
34 Linguagem, entre outras coisas, certamente denota objetos. Mas ela não faz então em algumas simples relações, como se palavra e objeto estivessem adjacentes, como dois polos esperando a interconexão elétrica corrente. Um texto, naturalmente, pode falar de historia real, de Napoleão ou do Cartismo, mas mesmo se ele mantiver precisão histórica empírica, essa é sempre um tratamento fictício – uma operação de dados históricos em concordância com as
leis da produção textual.
63
Man de que a retórica seria a própria essência da literatura, bem como a característica da
teoria ou ciência do texto literário. Seguindo as ideias do marxismo estruturalista, em
detrimento do pensamento de de Man, a linguagem da ciência pode até ser retórica, mas
constrói um conhecimento a partir de certas noções históricas e sociais que
fundamentam sua lógica – e tenta, a partir dessas, resolver as ambiguidades e
imprecisões que a constituem.
Diante do exposto, vemos que apesar das investidas do marxismo estruturalista
de Althusser, Balibar, Macherey e Eagleton contra certos tipos de idealismos,
empirismos, formalismos e resquícios metafísicos da crítica literária, típicos das
correntes críticas anteriores a feita por esses – como, por exemplo, a estética clássica,
formalismo russo, estilística, estruturalismo e marxismo vulgar – esses esforços não
foram suficientes para sustentar-se teoricamente diante de correntes pós-racionalizantes
e relativistas culturais. O pós-estruturalismo, desconstrução, estudos culturais e teoria da
recepção, são exemplos dessas correntes, que pareceram provocar bastantes percalços as
pretensões de conhecimento cientifico que almejara essa teoria que Eagleton aderiu nos
anos 70.
Assim, a partir dos anos 80, Eagleton começa a reconstruir suas ideias a respeito
dos conceitos de ciência, racionalidade e ficcionalidade, e admite que, de certo modo,
esses conceitos mais o de cientificidade, afirma o autor posteriormente: “foram aceitos
com muita facilidade” (EAGLETON, 2010, p.165). Na introdução para a segunda
edição de Criticism and ideology, Eagleton analisa essas ideias em retrospectiva:
One way in which this comes through, i suppose, is in certain excessive
intellectual assurance, one which uses words like “scientific” as though their meaning was quite unproblematic. Science is not in my view an
empty term when it comes to historical investigation, and the “culturalist”
caricature of it as some purely objectivist form of inquiry says more
about post-modern ignorance then scientific knowledge. Yet the book fails to see that all structural analysis is dependent on a prior moment of
interpretation, one which is rooted in the life-world, which can never
itself be fully formalized, and which is always open to contestation35
(EAGLETON, 2006, Prefácio).
35 Uma maneira em que isso vem à tona, eu suponho, é em certa segurança intelectual excessiva, uma que usa palavras como “científico” como se seus significados não fossem problemáticos. Ciência não é, em minha visão, um termo vazio: quando se trata da investigação histórica, e a caricatura “culturalista” disso, como alguma forma de inquirir puramente objetivista, diz mais sobre a ignorância pós-moderna do que do conhecimento científico. Porém, o livro falha em ver que toda análise estrutural é dependente de um momento de interpretação a priori, um momento que é enraizado no mundo vivido, que nunca pode ele próprio ser inteiramente formalizado, e que é sempre aberto
para contestação.
64
Essa percepção de que era preciso ir além dos polos de objetividade e
relativismo, e a consciência de que todo processo de formalização é sustentado por uma
interpretação, fez com que Eagleton abandonasse parcialmente seu projeto de ciência do
texto para buscar novas formas de renovar o marxismo e a crítica cultural e literária. O
crítico britânico, posteriormente, reconhece que falar em termos de ciência como algo
definitivo e universal é problemático. Por outro lado, ele acredita que há significações
que uma comunidade de falantes, em um determinado tempo e espaço, incorpora –
modos compartilhados de agir, sentir e perceber que podem determinar o que pode ser,
circunstancialmente, considerado verdadeiro e científico. Um dos fatores que precisaria
ser renovado era o conceito de ideologia, que seria uma forma de perceber que essas
significações são coletivas e compartilhadas.
2.2.2 Ideologia
Como é evidente no próprio título do livro Criticism and Ideology, o conceito de
ideologia é central para o projeto eagletiano, e para o marxismo como um todo, a ponto
do próprio Eagleton dedicar alguns livros a respeito do tema, vide Ideologia da estética
(1990) e Ideologia: uma introdução (1991). Poderíamos, assim, defender que o tema
ideologia é um dos mais estudados pelo autor britânico. Esse conceito é de vital
importância para Eagleton, porque se propõe a entender as ideias, símbolos e
representações da sociedade, temas que são basicamente os elementos com que a
literatura trabalha. Nesse tópico, portanto, buscaremos entender como ele negocia suas
proposições a respeito do tema nas décadas seguintes a Criticism and Ideology, período
denominado por alguns como “pós-ideológico” 36
, e assim perceber a sua serventia para
constituição de uma visão revolucionária.
Em sua fase inicial, como vimos, Eagleton assume a proposta de ideologia de
Althusser, de que a ideologia seria mais que uma forma de epistemologia, como
propunha o marxismo anterior, cujo nome mais notável seria Lukács37
. Assim, para
Althusser, não poderíamos tratar da ideologia em termos de falsidade ou de verdade,
pois para ele a ideologia não representaria algo de forma direta, homóloga, assim como
36 Slavoj Zizek, em O Deserto do Real (2012), afirma que o momento “pós-ideológico” seria o fim da era dos grandes projetos ideológicos, cuja realização termina em catástrofes totalitárias. Entramos em uma nova era da política racional, pragmática etc. Alguns teóricos, adeptos dessa ideia de fim ou pós-ideologia, são comentados por Eagleton no livro Ideologia: uma introdução de 1991. 37 Em específico, seu conceito de ideologia na obra História e Consciência de Classe (1923).
65
para Lukács o realismo representa a realidade total histórica, mas sim o modo como
“experienciamos” esse real histórico. Essa “experiência” das relações reais de existência
deslocaria a visão de ideologia como meramente uma questão de consciência, crenças e
ideias, para também uma questão de atos, práticas e rituais. Poderíamos dizer que as
relações que governam os atos dos indivíduos podem ser imaginárias, mas suas práticas
são materiais e reais.
Para Althusser, a justificativa para essa ilusão ou distorção das percepções se
daria por motivos políticos, que Marx identificou como a necessidade de reproduzir as
relações de produção, que são, por sua vez, orientadas por um grupo dominante. Nesse
sentido, o real histórico, para Althusser, não nos seria acessível de uma forma direta ou
de um ponto de vista privilegiado, como seria a consciência do proletariado para
Lukács, mas seria mediado pela ideologia, dando-os um acesso em perspectiva e não em
totalidade, como defendia o marxista húngaro. Portanto, mais do que uma questão de
percepção da realidade, a ideologia nos constituiria como seres ou sujeitos sociais e
organiza nossa vida social. Como afirma Althusser:
[...] porém o reconhecimento de que somos sujeitos, que funcionamos nos rituais práticos da vida cotidiana mais elementar (um aperto de
mão, o fato de sermos chamados por nosso nome, o fato de saber que
você “tem” um nome próprio, mesmo que eu ignore, que faz com que você seja reconhecido como sujeito único etc.). (ALTHUSSER, 1980,
p.96).
Vemos nessa citação que a ideologia é mais do que um simples amontoado de
ideias falsas ou verdadeiras, ela é uma forma sistemática de assumir uma posição social
dentro dos valores simbólicos correntes na sociedade. Desse modo, mostra-se como
uma percepção de mundo determinada, constituinte de nossa própria identidade como
indivíduos sociais, e organizando nosso modo de pensar e agir. Assim, essa percepção
da ideologia como algo que sistematiza nossas percepções de mundo foi relacionada
com a própria função da literatura, pois ambas literatura e ideologia, para Althusser,
Macherey e Eagleton, possui, ao seu modo, a mesma função e, dessa forma, seus modos
de análises seriam convergentes.
No capítulo anterior, demonstramos, como se dava a relação entre ideologia e
literatura no trabalho de Eagleton, suas tentativas de diferenciar as especificidades de
cada conceito e evitar certas relações vulgares entre ideologia, literatura e história.
66
Vimos como o conceito de ideologia é fundamental para entender o método de análise
de produção literária e como ele fora fundamental para as nossas investigações acerca
do texto de Senhora. Desse modo, nossa leitura elegeu como um dos temas perceber as
relações entre os protagonistas, Aurélia e Fernando, como correspondentes ideológicos
entre as ideologias romântica e liberal burguesa, sendo o conceito de ideologia bastante
útil para perceber as relações entre estética do século XIX e suas reverberações
simbólicas sociais.
Contudo, com os processos históricos que ocorreram na crítica literária e cultural
depois de Criticism and Ideology, muitas objeções foram feitas à noção de ideologia,por
outro lado, a própria concepção de ideologia no marxismo estruturalista era
diversificada, e para melhor compreendermos essa especificidade vamos explicar,
primeiramente, no que se diferencia o conceito de Eagleton.
Segundo Robert Resch (1992), o conceito de Macherey de ideologia é
monolítico e unificado, pois o crítico francês insiste que a ideologia existe precisamente
para solver todos os traços de contradição histórica. Essa visão, todavia, exclui a
possibilidade da contradição da ideologia, a diferenciação entre as ideologias
dominantes e ideologias rivais, bem como falharia em reconhecer que as ideologias não
só apenas reproduzem relações de produção existentes como também relações de
transformações dessas relações. Essa percepção afetaria a literatura, pois, ainda de
acordo com Resch:
From such a monolithic view of ideology, and the corresponding
notion that only a second-level discourse such as literature may be said to be contradictory, it is a relatively short step to reducing
ordinary ideology to a “false” discourse and raising literary discourse
to a negative analogue of “truth”38
(RESCH, 1992, p.284).
Seguindo esse raciocínio, Macherey colocaria a literatura como um discurso
subversivo, visto que, por seu distanciamento e seu “mise-en-scene” com a ideologia, o
texto apresentaria as contradições que essa ideologia tenta apagar. Desse modo, a
literatura poderia funcionar como um reflexo negativo, ou seja, o que ela falseia na
ideologia é verdadeiro na história. Para Resch, essa ideia é equivocada, pois:
38 Tal visão monolítica da ideologia, e a noção correspondente que apenas um discurso de segundo nível, tal como literatura, pode ser dito contraditório, é um passo relativamente curto para reduzir a ideologia ordinária para um
discurso “falso” e erguer o discurso literário para uma negativa análoga da “verdade”.
67
Ideology may agree or disagree with what science says about a certain fact or event, but as we have shown, this is not its point, nor is it the
point of literary discourse. Just as surely as it can subvert an existing
ideology, a text can underwrite it, reproduce it, impoverish it, or
revitalize it, yet these capacities find no place in Macherey's framework
39 (RESCH, 1992, p.284).
Seguindo esse raciocínio, observamos que o texto não necessariamente apresenta
elementos só “verdadeiros” ou só “falsos”, e é justamente essa percepção mais ampla da
ideologia que Resch verifica na obra de Eagleton, como vimos no primeiro capítulo,a
ideia de que as ideologias e os textos literários podem ser algumas vezes a favor e
algumas vezes contra a representação da ideologia e da história. Portanto, vemos que
Eagleton defende o caráter contraditório não apenas da ideologia, mas também do
próprio texto literário, e esse entendimento amplo da ideologia é o que o diferencia de
Macherey, bem como o que causa muitas vezes confusão na percepção do seu trabalho.
Um exemplo dessa confusão está presente em Re-pensando a Teoria, livro de 1992 de
Richard Freadman e Seumas Miller. Apesar de esse livro possuir uma das mais
minuciosas e profundas críticas a Criticism and ideology, defendemos que ele comete
algumas leituras superficiais do projeto de Eagleton e, em especial, da questão da
ideologia.
Para esses autores, a definição de Eagleton de ideologia como sendo, de maneira
ambivalente, “sistema de crenças” e “conjunto de práticas no mundo”, e como “falsa” e
“potencialmente verdadeira”, é inconsistente. Assim, ambos os autores defendem que se
trata de uma “conhecida confusão” (FREADMAN; MILLER, 1994, p.118) e definem –
a nosso ver, apressadamente – toda a formulação desse conceito de Eagleton como
“deficiências típicas da Teoria da produção do texto” (FREADMAN; MILLER, 1994,
p.119). É importante frisar, nesse sentido, que esse caráter aparentemente inconsistente,
que vê o conceito de ideologia funcionando em duas perspectivas opostas, não deve ser
visto de forma direta, mas sim dialética. Portanto, a ênfase de Eagleton é justamente
perceber a multiplicidade do conceito de ideologia e liberá-lo de certas visões
monolíticas – como, por exemplo, a de Macherey que, como vimos, a considerava uma
“ilusão”. Nesse sentido, sobre visão de que a ideologia poderia ser, algumas vezes, tanto
39 A ideologia pode concordar ou não com o que a ciência diz sobre certos fatos e eventos, mas como nós temos visto, isso não é sua função, nem é a função do discurso literário. Tão certo como ele pode subverter um ideologia existente, um texto pode subscrevê-la, reproduzi-la, empobrecê-la, ou revitaliza-la, porém essas capacidades não encontram
lugar na obra de Macherey.
68
um sistema de crenças e em outras um conjunto de práticas do mundo, podemos
observar que o próprio Althusser já diagnostica esse caráter dual:
(...) para abordar a tese central sobre a estrutura e o funcionamento da
ideologia, apresentarei inicialmente duas teses, sendo uma negativa e
outra positiva. A primeira trata do objeto que é “representado” sob a
forma imaginária da ideologia, a segunda trata da materialidade da ideologia (ALTHUSSER, 1980, p.85).
Vemos então que o próprio Althusser já percebia que a ideologia é um sistema
de crenças e uma prática material, ambas se influenciando e não havendo nessa visão
uma hierarquia, mas uma interação entre ambas as noções que estabelecem a ideologia.
Assim sendo, como afirma Althusser: “as ideias de um sujeito humano existem em seus
atos, ou devem existir em seus atos” (ALTHUSSER, 1980, p.91). Nesse sentido, não
parece haver nenhuma confusão nesse caráter dual da ideologia, apenas um tornar-se
mais complexo.
Em outras partes da crítica de Freadman e Miller, eles organizam seu argumento
colocando a visão de Eagleton sobre ideologia apenas em sua concepção do ideológico
no sentido de discurso falsificador, ilusório ou ocultador, e sem diferenciá-lo, por
exemplo, da visão de Macherey. Vejamos o raciocínio deles:
(...) dada a natureza tripartite de Eagleton entre realidade, ideologia e
o texto, na qual o texto é considerado como duplamente afastado da
realidade, como é possível para o texto revelar qualquer coisa sobre a realidade (em oposição a revelar alguma coisa sobre a ideologia, que
aqui é interpretada como uma falsificação da realidade)?
(FREADMAN; MILLER, 1994, p.129 grifo nosso).
Como podemos ver na citação, e em várias partes do texto, os autores claramente
tomam a visão de ideologia de Eagleton apenas pelo seu sentido de falsificação da
realidade, uma concepção a qual Eagleton sempre questionou nos marxistas – desde os
hegelianos, como no caso da ideia epistemológica de ideologia como falsa consciência
em Lukács, até os althusserianos, com a visão de Macherey de ideologia como
apagamento das contradições. Segundo Eagleton, essa visão:
As such, it is a simplistic notion: it fails to grasp ideology as an
inherently complex formation which, by inserting individuals into history in a variety of ways, allows of multiple kinds and degrees of
69
access to that history. It fails, in fact, to grasp the truth that some ideologies, and levels of ideology, are more false than others.
Ideology is not just the bad dream of the infrastructure in
deformatively ‘producing’ the real, it nevertheless carries elements of
reality within itself.40
(EAGLETON, 2006, p.69)
Para o pensador britânico, assim, a ideologia carregaria tanto ilusões como
verdades, assim, o texto literário, como vimos no primeiro capítulo, é um novo objeto,
uma nova produção que se constrói acerca da ideologia.
Outro forte argumento contra a proposta de Eagleton é a visão dos autores de
que a ideologia para o pensador inglês é apenas ideologia política: “Eagleton também
fracassa ao distinguir entre ideologia no sentido de ideologia política e ideologia
concebida em termos mais gerais. Para ele todo o pensamento e toda a expressão fazem
parte da ideologia, e toda ideologia é ideologia política” (FREADMAN; MILLER,
1994, p.118). De fato, Eagleton entende que o pensamento e a expressão se relacionam
com as ideologias, mas essas, por sua vez, não são apenas políticas. Devemos então
problematizar o que os autores entendem por política e por ideologia política.
Assim, a partir das análises que desenvolvemos acerca dos livros de Fredman e
Miller, vimos que para eles as ideologias políticas seriam aquelas típicas da política
clássica, como a ideologia do apartheid ou racista, sexista e comunista. Eagleton,
entretanto, em Criticism and Ideology, não nos dá nem uma definição específica de
política ou de ideologia política. Assim sendo, podemos perceber que, para ele, política
tende a ter, mesmo que em última instância, uma noção marxista de luta de classes,
conflitos de interesse entre opressor e oprimido; ele não generaliza, pelo contrário,
defende veementemente a mudança das ideologias:
It’s to claim that those relations are historically mutable – as mutable
as ‘general’ and ‘aesthetic’ ideologies themselves – and therefore
demand specific historical definition. Indeed such variability can be traced in the carrier of a single author: I have in mind Thomas hardy.
Under the Greenwood Tree produces a ‘pastoral’ ideology and in
doing so displays its limits, […]41
(EAGLETON, 2006 p.94).
40 Como tal, é uma noção simplista: ela falha em amarrar a ideologia com uma formação complexa inerentemente que, por inserir indivíduos na história em diversas formas, permite de múltiplas maneiras e níveis de acesso a essa história. Ela falha, de fato, em amarrar a verdade que algumas ideologias, em níveis de ideologia, são mais falsas que outras. Ideologia não é apenas um sonho ruim da superestrutura produzindo deformativamente o real, ela não obstante carrega elementos de realidade dentro dela própria. 41 É clamar que aquelas relações são historicamente mutáveis – tão mutáveis como ideologias “gerais” e “estéticas” elas mesmas – e, portanto, demandam definição histórica específica. De fato, tal variabilidade pode ser traçada na carreira de um único autor. Eu tenho em mente Thomas Hardy. Under the Greenwood Tree produz uma ideologia
“pastoral” e, ao fazê-lo, apresenta seus limites [...].
70
Podemos ver, assim, que Eagleton utiliza o exemplo do texto de Thomas Hardy
como uma configuração de ideologia pastoral. Nesse sentido, o que uma ideologia
pastoral teria a ver com uma ideologia política? A ideologia pastoral não se configuraria
como uma série de características simbólicas das sociedades pastorais pré-capitalistas,
sistematizada tanto nas suas visões de mundo organicistas como em seu modo de
organização e de produção mais tribal do que industrial? Sendo assim, o que isso teria a
ver, direta ou explicitamente, com ideologia política comunista ou sexista? Todavia,
Miller e Freadman preferem creditar a Eagleton essa percepção típica do marxismo
vulgar ou de uma visão “panfletária” e redutora – visão essa que, afirmamos, ele não
demonstra nesse livro.
Percebemos, dessa forma, que Eagleton sempre busca observar nos textos as
várias formas de ideologia, “políticas” e “não políticas”, como, por exemplo, em suas
investigações sobre como as ideologias positivistas e religiosas afetam o romance de
George Eliot, ou como as ideologias românticas e humanistas construíram os textos de
T.S Eliot. Assim, para Eagleton, as ideologias não são necessariamente falsas ou
verdadeiras, e nem sempre servem pra legitimar um poder dominante, como afirmaria
Althusser. Deste modo, as ideologias políticas, ou as implicações da política na
ideologia, podem constantemente ter um papel agregador nas análises do crítico
britânico, mas não a ponto de ele tornar ontológica toda ideologia como política, no
sentido que Freadman e Miller empregam. Contudo, apesar de Eagleton ver a ideologia
de forma ampla e variada, isso não quer dizer que ele acredite num pluralismo excessivo
do conceito: “Yet there is nothing to be gained in the end by arguing that there are as
many ideologies as there are texts”42
(EAGLETON, 2006, p.99). Para o autor, o
conceito de ideologia requer uma noção mais ou menos sistemática e compartilhada
coletivamente. Apesar de possuirem uma semi-autonomia, as ideologias precisam ser
um agrupamento de elementos simbólicos e práticos compartilhados por um ou vários
grupos determinados.
É justamente essa ideia de ideologia como um elemento simbólico
compartilhado e sistematizado que é criticada por algumas correntes teóricas na década
de 80. Nesse sentido, podemos ver que Eagleton, nos anos 90, demonstrava interesse em
entender por que em um mundo ideológico: “a própria noção de ideologia evaporou-se,
42 Porém, nada há para ser obtido no final por argumentar que há tantas ideologias quanto há textos.
71
sem deixar vestígios, dos escritos pós-modernistas e pós-estruturalistas?”
(EAGLETON, 1997, p.11). Para o autor, em Ideologia: uma introdução, escrito de
1991, isso se deveria há pelo menos três fatores: a rejeição da noção de representação, o
ceticismo para com a epistemologia e a noção de racionalidade não mais cognitiva, mas
ligada ao poder.
Para entendermos a contestação do conceito de ideologia nos anos 80,
tomaremos como referência alguns trabalhos de Michel Foucault e Gilles Deleuze,
juntamente com os de Félix Guattari. Esses autores recusaram o conceito de ideologia
por acha-lo bastante redutor, arbitrário e homogeneizador das diversas formas de
dominação social. Foucault opunha à ideia de ideologia a “perspectiva discursiva” –
perspectiva e não conceito, porque ele se recusa a fixar entendimentos sobre certos
“conhecimentos” – de discurso e de poder-saber, e Deleuze e Guattari defendem a
noção de “rizoma” e “agenciamento” contra o conceito de ideologia.
Buscando compreender a crítica de Deleuze e Guattari à ideologia, faremos uma
breve exposição do seu livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (1980). Nesse livro
propõe-se a noção de “rizoma” como uma metáfora de entendimento para o
pensamento. Com esse termo, de origem botânica, os autores propõem uma analogia
entre a diferença de um conhecimento “raiz” que teria uma origem única e o
conhecimento rizomático que teria uma procedência múltipla. A partir desse ideia,
compreende-se que o rizoma por ter uma origem fasciculada simbolizaria uma
perspectiva de pensamento que é plural, não genealógico, sem origem, sem fim, multi-
conectado, que não possui centro característico e que não funcionaria por dispositivos
polares, mas por interconexão de pontos diversos em diferentes traços. Assim, para os
autores:
Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí
conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas,
políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes
de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.14).
Nesse âmbito, essa ideia de rizoma coloca em questionamento os conceitos de
representação, epistemologia e racionalidade – que, como vimos, Eagleton defendeu
como cruciais para o entendimento do conceito de ideologia – , pois, para os autores
72
franceses, o conceito de representação reduziria um pensamento a uma forma única, a
um centro gerador: “O mimetismo é um conceito muito ruim, dependente de uma lógica
binária, para fenômenos de natureza inteiramente diferente” (DELEUZE; GUATTARI,
2000, p.19). A representação seria, nessa perspectiva, apenas uma analogia arbitrária de
dois pontos distintos. Os conceitos de epistemologia e racionalidade, por sua vez,
estariam ligados a uma percepção de que haveria um conhecimento superior a respeito
de algo, e isso iria de encontro à noção de rizoma, visto que a ciência seria apenas parte
de um conjunto e não um centro hierárquico. A perspectiva rizomática deveria repudiar
esses projetos científicos:
Contra os sistemas centrados (e mesmo policentrados) de
comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, o rizoma é um
sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido
por uma circulação de estados (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.32).
Discordando dessa ideia, o conceito de ideologia, na visão marxista, pressupõem
alguns aspectos: (1) uma origem: o modo de produção; (2) uma função: reproduzir essas
relações de produção simbólicas sociais; (3) uma estruturação dessas relações dentro de
um centro: os aparatos ideológicos de estado. Assim, todos esses elementos são
questionados pela visão rizomática: “um rizoma não pode ser justificado por nenhum
modelo estrutural ou gerativo” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.20). Todavia, há
outro víeis da ideologia que se aproxima muito das concepções de Deleuze e Guattari: a
ideia da ideologia como subjetivadora dos indivíduos, o meio pelo qual os indivíduos
vivenciam suas relações imaginárias e constituem sua identidade. O conceito de
“agenciamento”, proposto por Deleuze, tem características similares à ideia de ideologia
althusseriana, como podemos ver nessa passagem:
O que existe são os agenciamentos maquínicos de desejo assim como
os agenciamentos coletivos de enunciação. Sem significância e sem subjetivação: escrever a n (toda enunciação individuada permanece
prisioneira das significações dominantes, todo desejo significante
remete a sujeitos dominados). Um agenciamento em sua multiplicidade trabalha forçosamente, ao mesmo tempo, sobre fluxos
semióticos, fluxos materiais e fluxos sociais (DELEUZE;
GUATTARI, 2000, p.33).
73
O agenciamento, para Deleuze, poderia ser definido como uma conexão ou
combinação de ideias diferentes, que são subjugadas por forças dominantes. Assim
sendo, tal qual o conceito de ideologia, o agenciamento seria algo coletivo, múltiplo em
um conjunto de relações semióticas, materiais e sociais. Desse modo, é possível ver nos
dois conceitos tanto os atos, práticas cotidianas, como as crenças, os processos
simbólicos como partes de uma articulação quase inconsciente que os indivíduos
vivenciam em suas relações sociais. Ambos os conceitos (de ideologia e agenciamento)
negam o sujeito centralizador, defendendo que o indivíduo só se constitui na
“sujeitação” à ideologia – como o interpreta Althusser – ou em agenciamentos na
coletividade de enunciados – para Deleuze e Guattari. Contudo, Althusser propõe certa
coesão de elementos, que seria próprio da ideologia, e um sistema articulador, que
seriam os meios de produção, enquanto Deleuze e Guattari negam essa coesão entre os
discursos e qualquer entidade social preconcebida. Para os autores do rizoma, mesmo os
indivíduos sendo atravessados por agenciamentos múltiplos e coletivos de enunciação, a
sua relação com esses agenciamentos sempre passará por uma visão subjetiva ou
“molecular”, que, por suas limitações singulares e locais, acabará por romper ou
desregular sua relação com os agenciamentos coletivos estratificados, produzindo,
assim, sempre uma fuga dos “territórios” que, para os filósofos franceses, são códigos
permanentes e apropriadores de sentido. Em resumo, não haveria estabilidade no
compartilhamento e na sistematização simbólica social.
O marxismo, porém, identifica, com certo pessimismo, o fato dos indivíduos
tornarem-se sujeitos por relações materiais, semióticas e libidinais, pois acredita que há
um soerguimento de um discurso dominante nas relações dos indivíduos. Nessa
perspectiva, o marxismo estruturalista assim como Deleuze e Guattari negam a ideia de
um sujeito humanista, fruto de uma história linear ou de relações homogêneas e
homólogas nas experiências sociais, mas Althusser, em sua crítica marxista, acredita
que, por meio de uma crítica científica, é possível identificar, na diversidade de relações
sociais e históricas, certas distorções ideológicas presentes na vivência dos indivíduos.
Deleuze e Guattari, no sentido inverso, negam tanto a distorção ideológica, como a
clarividência científica: “não reconhecemos nem cientificidade nem ideologia, somente
agenciamentos” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.33). Desse modo, os autores
franceses questionam a possibilidade de haver uma certa racionalidade que não seja
fruto de um desejo, de uma subjetividade que pudesse ver os objetos de forma clara,
74
distanciada e neutra de seus valores pulsionais e corporais. Como consequência, eles
desferem uma incisiva crítica ao conceito de ideologia:
[...] as organizações de poder ou os agenciamentos nada têm a ver
com a ideologia como suposta expressão de um conteúdo (a ideologia
é o conceito mais execrável que esconde todas as máquinas sociais
efetivas), quer a natureza das organizações de poder, que não se localizam absolutamente num aparelho de Estado, mas operam em
todo e qualquer lugar as formalizações de conteúdo e expressão cujos
segmentos entrecruzam, quer a natureza do conteúdo, que não é absolutamente econômico “em última instância”, pois há tantos signos
ou expressões diretamente econômicas quanto conteúdos não-
economistas (DELEUZE; GUATTARI,2000, p.84).
Eles então desconsideram veementemente os conceitos que fundamentam a
crítica marxista à ideologia, a exemplo dos aparelhos de estado como centros que
emanam a ideologia dominante, desconsideram também a origem econômica da
distorção ideológica, mesmo em última instância – conceito de Althusser e que Eagleton
também adotou largamente – , e não só isso, mas também pensam negativamente que o
próprio conceito de ideologia seria ideológico, pois ocultaria o caráter plural e
multifacetado das organizações de poder.
Nessa perspectiva, podemos ver uma estreita relação entre o agenciamento e a
questão da literatura. Para Deleuze e Guattari: “A literatura é um agenciamento, ela
nada tem a ver com ideologia, e, de resto, não existe nem nunca existiu ideologia”
(DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.11). A literatura, para os autores, seria um traço
característico desse entendimento rizomático do pensamento. Os autores de Mil Platôs
descrevem, nessa perspectiva, as palavras de James Joyce e os aforismos de Nietzsche
como exemplos desse pensar que rompe com a unidade, seja da língua, da palavra ou da
frase, e estabelece uma circularidade, uma ideia cíclica da frase e do pensamento. Há,
nessa visão, uma similaridade com o conceito de literatura que vimos em Paul de Man.
Para os críticos franceses e o belgo-americano, esse conceito seria algo que não proporia
distinção característica entre romances e poemas – vide esses autores considerarem
como literatura os textos filosóficos de Nietzsche – , e nem algo que fosse característico
dos textos que pudesse ser representar a vida social. Portanto, a partir de uma
perspectiva rizomática, um crítico da ideologia encontraria problemas ao investigar o
texto literário, visto que ao tentar descrever certas formas de sujeição, certas práticas
simbólicas e materiais, e associá-las a uma estrutura determinada de dominação,
75
opressão e distorção, estar-se-ia cometendo equívocos similares ao que pretendia
solucionar, subjugando certos níveis de conflito e unificando, arbitrariamente, certos
elementos distanciados, para justificar sua crítica.
Nessa linha de raciocínio, tomemos como exemplo a nossa análise de Senhora.
Tentaremos, então, ver até que ponto nossa aplicação da análise da ideologia proposta
por Eagleton poderia cometer certos equívocos.
Uma das premissas iniciais de Eagleton é que o texto literário é determinado por
uma variação de elementos sociais e que a tarefa da crítica seria investigar as diversas
relações dessas estruturas. Logo, no caso de nossa análise de Senhora, observamos
como esses vários elementos se internalizam no texto, desde o modo de produção
colonial escravista do século XIX até as ideologias estéticas que permeavam a escrita
literária da época.
No entanto, se mudássemos a perspectiva para uma visão rizomática,
poderíamos ver que esse modelo constituiria uma série de elisões. Primeiramente, se
não poderia haver um centro nem uma estrutura, como poderíamos dizer que o texto de
Senhora é fruto de uma interação de elementos que corresponde a certo modo de
produção ou a uma ideologia? Segundamente, quem definiria o que seria uma ideologia
X no texto, ou em que e por quais razões essa se diferenciaria de ideologias Y, Z etc.?
Assim, apesar da noção de Eagleton ser, como vimos, bem vasta e multifacetada, e
diferenciada das visões monolíticas de Macherey, em muitas vezes ela acaba reunindo
vários elementos sobre uma mesma formação ideológica. Não há, assim, em sua obra,
muito critério para definir as ideologias. Pelo contrário, apresenta-se apenas uma ideia
de que essas devem ser sempre múltiplas e historicamente transitivas. Nesse sentido, em
nossas análises de Senhora, utilizamos como referência algumas ideologias usadas por
Eagleton para descrever os textos ingleses do século XIX. Identificamos, assim, como
tema ideológico do romance, uma contradição entre as ideologias liberal-burguesa e
romântica. Mas até que ponto essa tentativa de dar coesão simbólica socialmente
instituída à narrativa pode ocluir certas diferenças que estão no próprio texto? Ou em
relação ao texto e sua (re)produção ideológica e, em última instância, histórica?
Um dos argumentos que poderia ser levantado sobre essa perspectiva de
enquadramento ideológico arbitrário da crítica marxista é a ideia de Roberto Schwarz a
respeito de que, no romance brasileiro, as ideias ou ideologias estariam “fora do lugar”.
Schwarz defende, assim, que as ideologias das metrópoles eram sistematicamente
76
adaptadas à lógica estrutural das recentes nações que constituíam a periferia do
capitalismo. As ideologias liberais-burguesas, por exemplo, deveriam ser deslocadas
devido a lógica escravocrata ainda presente da organização brasileira. Nesse sentido, o
que surge dessa desproporção entre ideias e conjunturas locais, geográficas e singulares
da sociedade brasileira é a lógica do favor. O autor afirma: “O escravismo desmente as
idéias liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o
primeiro, as absorve e desloca, originando um padrão, particular” (SCHWARZ, 2000,
p.16). Poderíamos nos questionar se essa lógica, tão subjetiva ao projeto brasileiro de
sociedade, acabaria por romper com a noção de ideologia que buscamos passar em
nossa aplicação do método de Eagleton em Senhora?
Como vimos, defendeu-se em nossa análise que é a partir do trabalho material de
Seixas que ele obtém sua liberdade do casamento alienado com Aurélia. Se assim o
fosse, nossas proposições sobre o personagem se enquadrariam no ideário liberal
burguês de liberdade mediante a volição individual a despeito das conjunturas sociais.
Todavia, se entendermos essa libertação por meio do favor, estaremos deslocando a
noção de ideologia que propusemos, e estaríamos apagando assim esse elemento
diverso que também constitui a composição do romance. No romance vemos que, de
fato, a lógica do favor é presente: “Cedeu pois à instância dos amigos de seu pai que
obtiveram encartá-lo em uma secretaria como praticante”(ALENCAR, 2009, p. 44).
Esse é também um dos argumentos que Daniela Spinelli (2008) ratifica ao identificar
que há uma contradição entre a lógica do favor e a ideologia liberal-burguesa, típica dos
romances europeus: “Portanto, o ideário liberal não estaria subordinado às
conveniências da nossa elite? Em outras palavras, a força de vontade de Fernando
somente se faz possível porque Aurélia permite a sua realização” (SPINELLI, 2008,
p.45). Nesse sentido, o que rege a libertação de Seixas não é apenas seu desejo, como
preconizava a ideologia liberal-burguesa, mas uma conveniência de seus próprios
superiores, sendo isso típico da lógica do favor – ou de uma “ideologia do favor”, se
pudéssemos colocá-la nos termos que Eagleton usa para se referir a essas representações
das relações que os indivíduos experienciam.
Seguindo esse raciocínio, poderíamos entender que o modelo proposto por
Eagleton acaba por subjugar uma característica peculiar da cultura brasileira que não
pode ser apreendido integralmente pelo seu modelo de ideologia. Como afirma
Schwarz, há uma lógica singular, interna, local e subjetiva que acaba por não reconhecer
77
essa “coesão” das ideologias pré-determinadas. Em termos mais gerais, poderíamos
dizer que nossa análise de Senhora, de um ponto de vista rizomático, não conseguiu
perceber essa diversidade do romance e acabou por unificar todas essas diferenças
típicas das relações culturais da literatura brasileira sobre um centro articulador, que
seria a representação, na narrativa de Senhora, da ideologia liberal-burguesa do século
XIX da sociedade carioca brasileira. Poderíamos concluir, a partir dessa ideia, que o
método de Eagleton é estático e sua concepção de ideologia é redutora e não rizomática.
Contudo, defenderemos uma noção dinâmica do conceito de ideologia de Eagleton, e
isso se dá por meio de um embate com os pós-estruturalistas que, ao desconsiderarem
esse conceito, podem acabar numa ideia relativista e obscura a respeito da constituição
do texto literário.
Como vimos anteriormente, alguns dos críticos da noção de ideologia foram
Deleuze e Guattari. Contudo, os trabalhos de Eagleton dos anos 80, curiosamente, não
tecem comentários sobre os autores de Mil Platôs. Em contrapartida, é por meio de
Foucault que Eagleton questiona a desqualificação da noção de ideologia. Por outro
lado, o conceito de agenciamento de Deleuze e Guattari possui profundas similaridades
com a ideia do discurso-poder em Foucault, pois, como ratifica-nos François
Zourabichvili: “Enfim, é em torno do conceito de agenciamento que se pode avaliar a
relação de Deleuze com Foucault, os empréstimos desviados que lhe fez, o jogo de
proximidade e de distância que liga os dois pensadores” (ZOURABICHVILI, 2004, p.
11). Assim sendo, tomaremos a crítica de Eagleton a Foucault como referência para
problematizar as objeções feitas pelas correntes pós-estruturalistas ao conceito de
ideologia.
O que está em ambos os conceitos, o de agenciamento em Deleuze e Guattari e o
de discurso-poder em Foucault, é a ideia de uma concepção do poder não ideológico ou
repressivo, mas algo que constitui os múltiplos segmentos da organização social, algo
não hierárquico, mas relacional. É preciso ver, assim, as ações e práticas não apenas
como formas de repressão, mas como formas de normatização e constituição da
sociedade. Assim, Foucault, assemelhando-se a Deleuze e Guattari, pensa o poder43
não
como um centro ou estrutura, nem como algo derivado de uma distorção ideológica de
um estado repressor ou de uma classe econômica. Por isso Foucault pensa o poder de
forma multifacetada, como uma técnica e um saber que é segmentado e assimilado nos
43 Principalmente no livro Vigiar e Punir (1975).
78
amplos elementos da sociedade. Nesse sentido, é esse caráter amplo e relativo do poder
que Eagleton acaba por criticar em Foucault e nos pós-estruturalistas:
Segundo Michel Foucault e seus acólitos, o poder não é algo
confinado aos exércitos e parlamentos: é, na verdade, uma rede de
força penetrante e intangível que se tece em nossos menores gestos e
declarações mais íntimas. Segundo essa teoria, limitar a ideia de poder a suas manifestações políticas mais óbvias seria em si mesmo um
procedimento ideológico, ocultando o caráter difuso e complexo de
suas operações (EAGLETON, 1997, p.20).
Eagleton entende, assim, que por trás desse conceito de poder há benefícios,
como estender o conceito de luta às diversas formas de resistência, como o feminismo,
os grupos étnicos etc., todavia, essa ideia pode estender o conceito a ponto de deixa-lo
politicamente ineficiente. Assim, se não existem valores e crenças que sejam inscritas
no poder, se não é possível delimitar, em determinadas circunstâncias e de forma
transitória, o que seria o “outro” do poder, esse se torna megalomaníaco e perde seu
valor de resistência às opressões. O crítico inglês então assevera:
Fiéis a essa lógica, Foucault e seus seguidores abandonaram por completo o conceito de ideologia, substituindo-o por um “discurso”
mais capaz. Mas isso talvez seja desistir muito rápido de uma
distinção útil. A força do termo ideologia reside em sua capacidade de distinguir entre as lutas de poder que são até certo ponto centrais a
toda uma forma de vida social e aquelas que não o são (EAGLETON,
1997. p.21).
É acerca dessa relatividade e obscuridade nos trabalhos pós-estruturalistas, que
muitas vezes se distanciam das lutas reais, que Eagleton constrói sua crítica aos
trabalhos de Foucault: “É certo que Foucault fala de resistências ao poder, mas o que
exatamente está opondo resistência é um enigma que seu trabalho não consegue
dissipar” (EAGLETON, 1997, p.53). Nessa perspectiva, opondo-se a essa ideia
foucaultiana de o poder não lidar de forma macro e central, Paul Resch afirma que essa
ideia de “micro-política” tem implicações políticas profundamente pessimistas.
Segundo Resch, ao contrário do que Foucault acredita, o poder não pode ser
efetivamente resistido se ele não puder ser identificado em relação a uma totalidade
estrutural e a uma hierarquia de relações de dominância e subordinação, pois se o poder
for sempre disperso e volátil ele não pode ser identificado e combatido. O autor, então,
79
afirma: “When resistance is localized, it will be either co-opted or repressed”44
(RESCH, 1992, p.260). Nesse sentido, tanto Resch quanto Eagleton defendem que o
conceito de ideologia é essencial para uma crítica, seja ela não apenas parte de um
conhecimento, mas também uma forma de política.
Por fim, podemos verificar que em Criticism and ideology, apesar dos esforços
de se evitar uma noção de ideologia monolítica, como no caso dos marxismos
hegelianos ou das versões de Macherey, o conceito proposto por Eagleton acaba se
tornando muito amplo, pois, ao defender a ideologia como algo que possui uma
complexa relação de homologia, contradição e conflito, acaba-se deixando a ideia de
ideologia aberta, assemelhando-se assim às proposições liberais e “apolíticas”. O
próprio Eagleton admite: “fui muito acrítico em relação à definição expansionista da
ideologia em Althusser” (BEUAMONT; EAGLETON, 2010, p.169). Portanto, vemos
que Eagleton tentou, nos anos 70, reter o dogmatismo na ideologia, que poderia levar a
uma visão social autoritária, vide o marxismo stalinista, mas, com a passagem da
década, o pós-estruturalismo levou essa noção ao seu extremo oposto, ou seja, substituiu
o dogmatismo pelo relativismo. Nesse sentido, se por um lado o conceito de Eagleton
de ideologia é expansivo, por outro ele é sistemático, pois em uma perspectiva vê a
ideologia como algo amplo coextensivo à dinâmica simbólica social, e, em outra, ele
sempre liga essa dinâmica a uma estruturação social. Uma ideologia autoral, por
exemplo, estaria circunscrita em uma ideologia estética, e essa, por sua vez, numa
ideologia geral, que remeteria, em última instância, ao modo de produção geral.
Podemos responder, assim, que, apesar de termos sugerido que nossa análise de
Senhora, de um ponto de vista rizomático, poderia ter um conceito de ideologia
arbitrário e totalizador, que excluísse certa peculiaridade do contexto brasileiro,
poderíamos, pela visão materialista, ainda manter a análise, se considerarmos que a
“lógica do favor” poderia ser incorporada às categorias proposta por Eagleton – ou seja,
uma ideologia do favor poderia ser parte da IG ou até parte do MPG, como uma relação
de troca simbólica, materializada não pela relação capital/mercadoria, mas pela relação
paternalismo e favor entre indivíduos. Desse modo, diferentemente de algumas
correntes pós-estruturalista, não é porque não poderíamos mapear todas as ocorrências
simbólicas da sociedade que isso significa que não existam relações sociais e simbólicas
que são, de certas formas, convencionadas e estruturadas, e que o crítico não possa, a
44 Quando a resistência é localizada, ela será também cooptada ou reprimida.
80
partir dessas, identificar quais ideologias configuram a obra. Devemos, todavia,
questionar em Eagleton se as ideologias são tão evidentes e se essas não devem ser
flexíveis a questões culturais.
Contudo, mais do que propor um ponto de vista político de luta de classes ou de
interesses em textos literários, Eagleton estava focado em ver como se estruturavam as
formações simbólicas na sociedade, procedimento que utiliza o conceito de ideologia
como uma representação simbólica da realidade, definição próxima a dos conceitos
“neutros” de modos de vida ou cultura. Dessa forma, ao tentar, por meio de uma ciência
do texto, observar mais como o texto é determinado do que perceber quais as
implicações dessa determinação para os efeitos políticos, o trabalho de Eagleton se
tornou, ele próprio, um exemplo daquilo que posteriormente iria criticar, ou seja, um
trabalho mais acadêmico e menos político.
O conceito político de ideologia, portanto, é importante para uma crítica literária
sobre um víeis revolucionário, porque resiste à ideia de que, como não há verdade
absoluta, não há nada que possa ser considerado errado, ilusório ou deformado, e resiste
também à ideia de que qualquer sistematicidade é uma questão de arbitrariedade
imposta a vários elementos díspares. Assim, a partir dessa visão de ideologia é preciso
entender que os significados têm um valor em relação a suas condições de produção, e
que suas implicações e seus efeitos são reais em determinados contextos sociais e
históricos. Portanto, isso não é válido só para a crítica cultural, mas também tem valor
no âmbito da teoria literária, pois se percebe que os textos literários são mais que um
jogo de linguagem “neutro”, sempre verdadeiro em sua “falsidade”; propõe-se que os
textos podem ser colocados em perspectiva contextual, reintroduzidos nos diversos
contextos da história e resignificados de acordo com certos interesses sociais (e, no caso
de Eagleton, no interesse da maioria dos indivíduos oprimidos). Além disso, o conceito
de ideologia permite ao crítico uma identificação, no texto literário, de certos pontos de
vista narrativos que representariam uma deformação social causada pelas ideologias.
Nessa perspectiva, abre-se o leque para uma investigação política nos textos literários,
tornando-se possível, assim, ver nesses textos não um funcionamento de certos “modos
de vida”, mas entender esses modos de vida, no texto, como um campo de luta de
interesses.
Por fim, apesar do projeto de crítica de Criticism and Ideology ter sido
abandonado em parte, a noção de ideologia ainda resiste, nos trabalhos subsequentes de
81
Eagleton, de forma politizada, e será necessária para o projeto seguinte de uma visão
revolucionária.
2.2.3 Produção
Todo o projeto científico de Eagleton é baseado numa concepção da produção
literária, mas o que teria essa crítica a falar da recepção literária? Em que circunstâncias
as ideias de Eagleton podem versar sobre a interpretação ou fruição dos textos pelos
leitores? E seria essa análise científica da produção algo que impossibilitaria a dinâmica
das várias (re)leituras do texto literário? São essas questões sobre a recepção do texto
literário que surgiram, na crítica literária e cultural, nos anos seguintes a Criticism and
Ideology; e são essas mesmas questões que nós consideramos como um dos principais
fatores de problematização da constituição do método científico do autor inglês.
O marxismo estruturalista, inicialmente, mostra-se avesso a qualquer
pensamento que queira desconsiderar a diferença entre a atividade crítica e a atividade
de leitura comum. Assim, diferentemente da leitura simples, ingênua ou despretensiosa,
que apenas receberia o texto como dado, bem como reproduziria, explicaria e
descreveria, de uma forma palatável, seu funcionamento, a atividade crítica científica
seria uma prática ativa, que construiria uma nova interpretação sobre o texto, mostrando
como, apesar da aparente multiplicidade de significados, o objeto literário é
determinado por condições ideológicas. Nesse sentido, para alguns, como Macherey, à
crítica não competiria o estudo da recepção dos textos literários, devendo essa se
submeter ao conhecimento científico, que seria uma questão de analisar as categorias
sociais objetivas que constituíram o texto. Explicitando essa ideia, Resch afirma:
In A Theory of Literary Production, Macherey largely ignores the concrete historical existence of literature, in the sense of literature as a
practice that “lives” only by a process of interaction with particular
readers. This tactic was necessary, of course, if Macherey was to demonstrate effectively the fact that the relationship between the text
and reality has nothing to do with what contemporary readers felt
about the text45
(RESCH, 1992, p.290).
45 Em Para uma Teoria da Produção Literária, Macherey largamente ignora a existência histórica concreta da literatura, no sentido da literatura como uma prática que “vive” apenas por um processo de interação com leitores particulares. Essa tática foi necessária, é claro, se Macherey queria demonstrar efetivamente o fato de que a relação
entre texto e realidade nada tem a ver com o que os leitores contemporâneos sentem sobre o texto.
82
Segundo essa perspectiva, não é que Macherey ignore o caráter relativo das
leituras que possam ser feitas do texto, todavia, essas várias possibilidades assumidas
pelos leitores não se relacionariam, para ele, com a complexidade real, necessariamente
finita, que seria a estrutura do livro. Nesse sentido, essa estrutura do livro seria também
o sistema de interação entre leitor, autor e texto, pois, para Macherey, que segue a ideia
de Marx em Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859),
não é apenas o objeto de consumo, mas o próprio modo de consumo que é produzido
pela produção. Desse modo, existiria uma relação mútua entre produção e recepção,
mas com uma relativa coordenação do primeiro sobre o segundo, ou seja: “Não é o livro
que, por qualquer poder misterioso, produziria os seus leitores; mas as condições que
determinam a produção do livro determinam também as formas da sua comunicação:
estas duas modificações operam-se simultaneamente e são solidárias” (MACHEREY,
1971, p.99).
Assim, baseado nessa ideia de Macherey sobre a concepção da recepção
sistematizada por uma estrutura social, Eagleton, em Criticism and Ideology, defende
que as ideologias gerais e estéticas determinariam não só o processo de produção, mas
também o processo de recepção. Desse modo, o texto literário, para Eagleton, assim
como a mercadoria, para Marx, só se constitui no processo final de consumação, pois,
para o pensador inglês: “reading is an ideological decipherment of an ideological
product” 46
(EAGLETON, 2006, p.62). Nesse sentido, as relações entre produção e
recepção seriam complexas, podendo haver homologias, conflitos ou contradições entre
elas. Logo, seria a partir dessas conjunturas que o texto seria consumido, dentro de
complexas relações entre as ideologias gerais e estéticas. Nessa perspectiva, o próprio
leitor se utilizaria dessas percepções sociais e ideológicas para fazer seus juízos de
significados. A consumação literária de um indivíduo estaria, assim, inscrita em uma
ideologia de consumação geral, que, ao mesmo tempo em que circunscreveria os
contextos possíveis para o seu juízo de significações, proporcionaria a esse leitor uma
semi-autonomia para organizar os elementos de significação de um texto. Nas palavras
Eagleton:
Any particular act of reading is conducted within a general set of
assumptions as to the ideological signification of reading itself within
46 Ler é uma decifração ideológica de um produto ideológico.
83
a social formation – assumptions which, as part of IA, belong also to the general “ideology of culture” of IG
47 (EAGLETON, 2006, p.62).
Vemos, então, que Eagleton percebe que os significados do texto literário seriam
múltiplos, mas não seriam independentes das ideologias. Eles seriam semiautônomos
em relação à ideologia, sendo a própria leitura uma relação de consumo das conjunturas
sociais, mas isso não significaria dizer que os significados já estariam dados de
antemão; eles iriam ser trabalhados, organizados e selecionados de acordo com as
necessidades ideológicas e estéticas do leitor. Assim, esse argumento de Eagleton
avança em relação a algumas pretensões científicas de Macherey, pois buscou colocar a
questão da recepção como parte fundamental do entendimento do texto literário. Apesar
de Macherey reconhecer essa necessidade da recepção literária, que não seria nem pré-
concebida e nem infinita, ele muitas vezes deixa de analisar os processos de
consumação nas práticas sociais que constituem o texto, como observa Eagleton:
Macherey´s early work, committed as it is to an “intrinsicist” literary
science which treats the text solely in terms of its production rather
than also in terms of its consumption, completely suppresses the reality of the literary text as an historically mutable practice which
“lives” only in the process of its transaction with particular readers. It
thus damagingly reproduces the “scientism” of althusser´s work,
presupposing some quite unproblematized, transcendental reader/critic
48 (EAGLETON, 1988, p.18).
Essa ideia, de um leitor/crítico transcendental, bem típica dos estruturalistas
literários,49
subjuga as várias interpretações como não científicas e reduz o leitor a um
mero receptor passivo do texto, como nesse exemplo de Macherey: “em vez de nos
colocarmos na posição simplista do leitor que se situou no percurso aparente da obra e
dai não quer sair: é não nos deixarmos arrastar nem enganar pela obra e participar na
47 Qualquer ato particular de leitura é conduzido dentro de um grupo de suposições gerais de acordo com significação de leitura ideológica ela própria dentro de uma formação social – suposições que, como parte da IE, pertencem também a “ideologia da cultura” geral da IG. 48 O trabalho inicial de Macherey, comprometido com uma ciência literária “intrínseca” que trata o texto somente em termos de sua produção ao invés de também tratá-lo em termos de sua consumação, suprime completamente a
realidade do texto literário como uma prática historicamente mutável que “vive” apenas no processo de sua transação com leitores particulares. Isso assim reproduz danosamente o “cientificismo” da obra de Althusser, pressupondo algum leitor/crítico transcendental bastante não problematizado. 49 Um exemplo disso é o trabalho de Tzvetan Todorov As categorias da narrativa literária, em que ele separa a “interpretação” da obra, que seria resultado da personalidade do crítico, de suas posições ideológicas e de sua época, do “sentido” da obra, que seria o ato de perceber o sistema estrutural do texto. Além disso, Todorov, quando versa sobre o leitor, defende certo elitismo de certos estruturalismos ao afirmar que: “É perigoso identificar a obra com sua percepção em um indivíduo; a boa leitura não é a do ‘leitor médio’, mas a melhor leitura possível” (TODOROV,
1971, p.225).
84
construção sistemática da sua ficção” (MACHEREY, 1971, p.25). Apesar de Eagleton
criticar os trabalhos de seus antecessores franceses, vemos que ele próprio muitas vezes
não consegue sair desse modelo da recepção como uma (re)produção e da leitura como
produto de uma matriz ideológica:
Reading is the process whereby a particular historical ideology so puts
to work the materials of the text as to fashion it into a readable product, an ideological object, a text-for-ideology. And as the text is
itself a production of ideology, working now athwart, now in
complicity with it, so reading, as an ideological production of the production of ideology, works now “with”, now “athwart” the lines of
the text, in a double-movement determined by its relation to the
textual production of ideology (“textual ideology”) and to the extra-
textual ideology thus produced50
(EAGLETON, 2006, p.167).
Para Eagleton, a leitura é uma produção ideológica de um produto ideológico.
Essa ideia da leitura como um elemento textual, mas também relacionado ao contexto
ideológico de leitura, consegue ser mais aberta, mas não se liberta da herança marxista51
de trabalhos que davam atenção mais a produção do que a recepção dos textos. Desde o
realismo socialista da Prolekult russa52
até as tentativas de realismo crítico de inspiração
lukacsiana, a crítica textual radical esteve muito preocupada com a questão do
partidarismo do autor, do engajamento do leitor pela obra, isso significava enfatizar o
que o texto poderia significar para a sociedade e não o que a sociedade poderia fazer o
texto significar. Nesse sentido, Criticism and Ideology acaba por revelar, em sua
composição, um teoricismo parcial típico do marxismo ocidental53
, que está mais
preocupado em determinar a composição dos produtos sociais em sua organização na
estrutura da sociedade do que propriamente em intervir politicamente nessa organização
social, até por certo receio de ser “não científico” ou “autoritário”. Assim, esse
teoricismo marxista preferira ver que a produção de um texto literário seria uma
estruturação de um contexto histórico, e as suas leituras também seriam resultantes de
contextos históricos e, dessa forma, não se pautariam nos efeitos desses conceitos para
50 A leitura é o processo pelo qual uma ideologia histórica particular coloca para trabalhar os materiais do texto para
formá-lo em um produto legível, um objeto ideológico, um texto-para-ideologia. E como o texto é em si mesmo uma produção de ideologia, trabalhando agora em oposição, agora em cumplicidade com ele, então a leitura, como uma produção ideológica da produção de ideologia, funciona agora “com”, agora “contra” as linhas do texto, em um duplo movimento determinado por sua relação com a produção textual da ideologia ("ideologia textual”) e a ideologia extratextual assim produzida. 51 Sobre isso, ver o terceiro capítulo “Escritor e o engajamento” do livro de Eagleton Marxismo e crítica literária (1976). 52 Uma instituição soviética que defendia uma “cultura proletária”. 53 Como vimos, tese de Perry Anderson em Considerações sobre o Marxismo Ocidental (1976).
85
uma perspectiva política social. Como consequência, Eagleton negligencia, em grande
parte, exemplos de recepção literária em Criticism and Ideology. O que está por trás
disso é uma concepção ainda estática da interpretação, que ele reconhece anos depois:
“Esse foi um projeto que nunca levei a cabo: o desenvolvimento de uma teoria da
recepção materialista” (BEAUMONT; EAGLETON, 2010, p.168). Como
consequência, em suas obras subsequentes ele ainda defende o caráter social e inscrito
nas práticas sociais das leituras textuais, todavia enxerga as implicações políticas reais e
históricas disso e não apenas a sua constituição ou determinação ideológica, inclusive
observando como as interpretações sociais passadas e contemporâneas podem ser
movidas para fins políticos.
Nos anos que se seguiram a década de 70, deu-se cada vez mais atenção, nos
estudos de literatura, a temas como a leitura, o leitor, a interpretação, o horizonte de
percepções, do que a questões de produção textual ou de suas relações com a realidade
extratextual. Isso pode ser visto nos trabalhos da escola de Constância de Iser e Jauss;
em Roland Barthes, em O prazer do texto (1973); na Obra aberta (1962) ou na Leitura
do texto literário (1979) de Umberto Eco; em Stanley Fish, com Is there a text in this
class? (1980) - textos que ganharam força no âmbito acadêmico. Assim, é justamente
sobre essa nova percepção acadêmica que Eagleton constrói um texto, em 1982,
intitulado The revolt of reader, em que observa que o leitor fora esquecido largamente
pela crítica literária anterior: “The growth of the Readers Liberation Movement (RLM)
over the past few decades has struck a decisive blow for oppressed readers everywhere,
brutally proletarianized as they have been by the authorial class”54
(EAGLETON, 1988,
p. 181). Em um tom irônico, o autor afirma que os leitores há muito tempo não tinham
espaço na literatura, assim como os proletários não tinham espaço nos meios de
produção, e que, nas últimas décadas, eles questionaram essa “hegemonia” autoral (e
textual), embora ele próprio não reconheça que foi um exemplo disso.
Para contrastar com essa noção do marxismo como uma crítica que não prioriza
a recepção literária, podemos tomar como exemplo uma das mais conhecidas críticas da
estética da recepção, que é a crítica de Hans Jauss, a dois pressupostos basilares do
marxismo estruturalista: a ideia da representação e a do processo de criação:
54 O crescimento do movimento de libertação dos leitores (RLM) ao longo das últimas décadas tem dado um golpe
decisivo para os leitores oprimidos em toda parte, brutalmente proletarizados como foram pela classe autoral.
86
A escola marxista não trata o leitor – quando dele se ocupa – diferentemente do modo com que ela trata o autor: busca-lhe a posição
social ou procura reconhecê-lo na estratificação de uma dada
sociedade. A escola formalista precisa dele apenas como o sujeito da
percepção, como alguém que, seguindo as indicações do texto, tem a seu cargo distinguir a forma ou desvendar o procedimento (JAUSS,
1994, p.22).
Essa crítica de Jauss ataca os dois pressupostos que norteiam esse método
científico marxista na literatura, no qual Eagleton se inclui. Desse modo, o teórico da
recepção afirma que há uma grande evasão do leitor nos trabalhos marxistas e
estruturalistas, bem como também há uma dotação especial ao crítico como um leitor
que supera a leitura ordinária ou “empirista”. Contudo, vemos que a proposta de
Eagleton possui avanços em relação a algumas visões às quais Jauss se opõe – a ideia
reflexionista procedente do marxismo hegeliano, e a noção dos meios de produção
literários vistos como isolados das relações históricas, ideia oriunda do formalismo
russo e do estruturalismo linguístico etc. Contrária às críticas de Jauss, todavia, a crítica
marxista científica propunha o anti-historicismo de cunho althusseriano contra os
modelos reflexionistas, que, como vimos no primeiro capítulo, recusava a visão
coerente e linear da história, propondo uma visão histórica constituída por vários
elementos de um sistema que possuiriam relações diferenciais e que se constituíram de
forma semi-autônoma. Sendo assim, o texto literário não é algo homologo à história,
mas algo que possuiria seu próprio espaço e tempo dentro de uma determinada
formação histórica, e o estudo de sua constituição deveria ser feito levando em conta
essa variável de histórias dos vários elementos históricos e estéticos que os constituem.
Essa noção deveria, assim, ser redirecionado para questão da recepção literária, que não
seria apenas uma causa de uma ideologia e de um tempo, mas sim um resultado ou uma
“produção” das várias histórias dos elementos que a determinam – o que causaria o
rompimento com a objeção proposta por Jauss. Contudo, há uma considerável evasão
ou desinteresse, nos trabalhos althusserianos, nessa perspectiva anti-historicista na
recepção dos textos literários, o que gera, portanto, um avanço do ponto de vista teórico,
mas não em exemplos de prática analítica.
Outra alternativa, proposta pela crítica científica literária, à ênfase formalista na
estética da produção seria a concepção da “ausência” do texto literário. Inspirado na
técnica althusseriana da leitura sintomática, propõe-se ir além da crítica formalista que
apenas repete imita o texto em uma nova terminologia. A técnica althusseriana deseja,
87
assim, negar o texto pelo que ele aparenta ser e mostrar as determinações que ele oculta,
silencia ou omite. Pretende-se, assim, construir uma interpretação sobre esses silêncios.
Segundo Macherey:
Aquilo que um livro diz parte dum certo silêncio: a sua aparição implica a presença dum não-dito, matéria à qual dá forma, ou fundo
sobre o qual desenha seu perfil. Assim o livro não se basta si próprio:
acompanha-o necessariamente uma certa ausência sem a qual não
existiria. Conhecer o livro implica ter em conta essa ausência (MACHEREY, 1971, p.82).
Portanto, nessa leitura sintomática, não se busca interpretar um texto literário em
si, mas a própria representação do literário que o texto faz de si mesmo, pois o texto não
seria inocente em sua composição, ele seria sempre uma escolha subjetiva, uma
perspectiva ideológica, e assim deveria ser sua leitura, também interessada nos fatores
ideológicos que o construíram, mas que estão aparentemente implícitos. Isso, por
conseguinte, foi o que tentamos mostrar, por exemplo, em nossa análise de Senhora.
Vimos como o romance é marcado por uma ocultação do fato do casamento ter sido
comprado por parte dos protagonistas e como esse comportamento “oculto” constitui
suas ações. Além disso, mostramos como há uma evasão na composição de Senhora de
imagens, figuras, símbolos de pobreza, percebendo que há sempre a presença da
ostentação e da riqueza em primeiro plano, o que acaba por marginalizar a pobreza ou a
falta de dinheiro, que seria o elemento desencadeador do romance. Essa fuga, ausência
ou ocultação do dinheiro é, portanto, o que desencadeia as “peripécias” na narrativa.
Tentamos mostrar, assim, como ambas as ideologias, romântica e liberal-burguesa,
apesar de serem contraditórias entre si, tentam apagar a presença de elementos realistas
ou materialistas em suas composições.
Contudo, nos usos do marxismo estruturalista, essa ideia de uma leitura
sintomática revelou um certo teoricismo de acreditar que uma interpretação seria mais
válida que outras, pois se pautaria em uma realidade material objetiva da sociedade.
Essa própria realidade material, todavia, passaria por um processo de interpretação que
está relacionado com as conjunturas sociais, políticas e culturais de onde ela emerge.
Nesse sentido, ao entender, por exemplo, o romance Senhora como uma contradição
entre o que as ideologias da sociedade carioca apresentam e o que elas silenciam, o
crítico não está apenas aplicando estruturas objetivas da sociedade, mas está
88
selecionando, agrupando e enfatizando o que ele entende por silêncios, e o porquê disso
ser significativo para entendermos o significado de Senhora. Isso indica, portanto, que,
por mais que os críticos marxistas estruturalistas estejam lidando com fatos públicos, os
valores e as escolhas que fazem deles são contingentes e gratuitos, passando assim por
uma subjetividade, o que revela um certo cientificismo, da teoria a que Eagleton adere,
de acreditar que estão formalizando categorias objetivas na literatura.
Com base no que foi dito, defendemos que o anti-historicismo de Althusser e a
ideia da ausência em Macherey e Eagleton avançam em relação ao significado fixo do
texto, pois essa hermenêutica da suspeita já é uma forma de subverter a leitura do texto,
mantendo a noção de ideologia como produtora dos significados. Assim, essa ideia do
silêncio mostra-se diferente de algumas proposições radicais de Barthes, em o Prazer do
Texto, e de de Man, em Allegories of Reading, que acreditam numa leitura do texto
largamente dissociada das suas conjunturas sociais e apelam apenas para a fruição
estética egotista das malhas textuais. Nesse sentido, essa ideia de uma hermenêutica da
suspeita55
, praticada por Macherey e Eagleton, rejeitaria uma leitura simples, baseada
apenas nos códigos vigentes, para defender uma visão que proporia uma interpretação
não natural, não óbvia ou inconsciente do texto, para estruturá-lo, em seguida, pelo que
ele não diz ou não pode dizer por motivos ideológicos. Seria assim, a nosso ver, uma
proposta crítica de grande valor político. Contudo, a ênfase no cientificismo e a falta de
ousadia para buscar os efeitos dessas ideologias acabam por prejudicar seu ímpeto
revolucionário.
Eagleton, nos anos seguintes, vai defender uma posição política em relação à
interpretação de textos e a sua recepção múltipla, mas fará isso a partir de certas
convenções ideológicas e linguísticas estabelecidas na sociedade, pois, para ele, nunca
somos apenas nós mesmos na interpretação do texto, mas uma conjuntura ideológica:
“[...] we are always much more than readers”56
(EAGLETON, 2008, p.171). Assim,
mais do que querer “ler” como a obra foi produzida, buscar-se-ia, numa proposta
revolucionária, liberar a obra de suas várias interpretações canônicas, fazer essas
leituras dos diversos contextos ideológicos e não apenas o da qual o livro fora escrito,
forçando assim os limites da recepção ao longo do tempo e das ideologias. Um exemplo
55 Termo remete às ideias de Paul Ricoeur em Freud and Philosophy: an essay on interpretation (1965), em que defende que Freud, Nietzsche e Marx questionavam nossa consciência, entendimento e experiência. Esses afirmavam, assim, que o significado das coisas descansa por trás ou entre o discurso. Algo que está velado na superfície, mas que estrutura todo o significado. 56 [...] somos sempre muito mais do que leitores.
89
disso seria se, ao invés de buscarmos ver Aurélia como sendo o resultado de ideologias,
tentássemos ler Senhora à luz da mulher moderna, fazendo dialogar as ideologias do
patriarcado do século XIX com a da mulher emancipada na modernidade. Seguindo
Walter Benjamim, Eagleton afirma que a tarefa da crítica não seria transmitir
informação cultural sobre um fenômeno literário, mas estimular os leitores a refletirem
sobre suas próprias situações políticas. Assim, uma visão revolucionária buscaria
perceber como os textos podem servir como uma utopia para sociedade e também como
um ensinamento do prazer mais do que uma questão de técnicas discursivas. Fomentar-
se-ia, também, a criação de uma tradição de novos leitores, contribuindo materialmente
para a criação de bibliotecas para o letramento e difusão da leitura, e possibilitando o
diálogo dos significados textuais entre os diversos setores sociais – os escritores, os
críticos literários e os leitores das diversas classes na sociedade civil.
2.2.4 Literatura
Como falamos na introdução, um dos principais fatores para o reconhecimento
de Eagleton se deu graças a publicação do livro Teoria da literatura: uma introdução,
publicado originalmente em1983. Nele, existem várias proposições que rompem com
seu pensamento anterior e, dentre elas, está a que diz, categoricamente, que a literatura
não existe, pelo menos não como um objeto estável, possuidor de uma unidade
compartilhada por todos os seus fenômenos. Em sua fase científica precedente, todavia,
Eagleton parece ainda estar defendendo alguma ideia de literatura, ou ao menos de
literariedade intrínseca, ou seja, que mais do que uma questão de construção de valores
externos, a literatura possui, pela sua própria construção, uma característica diferenciada
dos outros discursos.
Questões como ficcionalidade, texto não pragmático, linguagem especial, acesso
ao vivido e literatura como um discurso valorativo, são defendidas por Eagleton, em sua
obra inicial, como características da literatura. Tentaremos, assim, contrastar essas
peculiaridades de entendimento em ambas as fases do autor.
Como afirmamos no primeiro capítulo, Eagleton se apropria das ideias
althusserianas de semi-autonomia e as aplica a ideia de literatura, afirmando que essa se
diferenciaria dos outros textos, como o historiográfico, por exemplo, por não possuir um
referente histórico particular. A literatura, para o autor britânico, em Criticism and
90
ideology, não seria independente da história, mas diferentemente dos outros discursos,
ela buscaria ocultar seus próprios fatores históricos de produção e aparentaria ser
autoprodutora, ou, em outros termos, autotélica. O texto literário trabalharia, nesse
sentido, com as ideologias, ou seja, com representações imaginárias da realidade, e
possuiria a capacidade de universalizar ou abstrair sua representação de qualquer real
particular. Todavia, como, para o autor britânico, a ideologia é típica de uma história em
particular, em última instância, o texto também o seria. Um exemplo disso, descrito pelo
próprio Eagleton, seria a Londres narrada pelo escritor Charles Dickens: “The
imaginary London of Bleak House exists as the product of a representational process
which signifies, not ‘Victorian England’ as such, but certain Victorian England´s ways
of signifying itself”57
(EAGLETON, 2006, p.77). Nesse sentido, a literatura sempre
produziria uma nova percepção sobre um objeto real particular, ou seja, não é que ela
sempre falsifique a história ou lide com objetos inverídicos empiricamente, mas é que o
modo distanciado com que ela trabalha esses objetos faz com que se atente para sua
estrutura de representação e, assim, acabe-se por provocar uma atenção excedente mais
ao significante do que ao significado do texto. Sobre isso, Eagleton conclui: “The
literary text´s lack of a real direct referent constitutes the most salient fact about it: its
fictiveness58
” (EAGLETON, 2006, p.78).
Nesse sentido, o que está por trás dessa conclusão é a suposição da literatura
como possuidora de uma linguagem especial, que provocaria um apagamento de seu
referente histórico particular, levando-a a ser não uma ficção, mas uma ficcionalidade.
Há, assim, uma confluência do argumento de Eagleton com os formalistas russos em
sua propensão a defender uma “poética” característica dos textos literários, pois, para os
formalistas russos, assim como para Eagleton, a poética seria uma perturbação nas
relações normativas, entre significante e significado, a fim de produzir uma
“desfamiliarização” da experiência. Eagleton, entretanto, ressalva que no romance isso é
mais evidente do que na poesia, devido ao fato de que o romance – ao menos os
realistas ou naturalistas – pretende enfatizar um real particular, mas, de um jeito ou de
outro, ambos – tanto o romance quanto a poesia – acabam por enfatizar essa ausência
de real particular, essa ficcionalidade, que seria uma sobreposição do significante sobre
o significado. Essa percepção da ficcionalidade leva Eagleton a fazer afirmações, que
57 A Londres imaginária de Bleak House existe como o produto de um processo representacional que não significa a “Inglaterra Vitoriana” como tal, mas certos modos da Inglaterra Vitoriana de significar a ela mesma. 58 A carência do texto literário de um referente real direto constitui o mais saliente fato sobre ele: sua ficcionalidade.
91
nos anos seguintes é retificada em seus trabalhos posteriores. Vejamos um exemplo
disso:
I mean simply that a statement such as “thou still unravished Bride of
quietness” self evidently belongs to literary discourse, whereas a
statement such as “After a while i went out and left the hospital and
walked back to the hotel in the rain” may or may not do so, depending on its context. Both statements in fact belong to literary discourses
which lack a real particular referent; it is simply that in the first case
this absence inscribes itself in the very letter of the text, which proclaims its lack of a real object in its very internal
disproportionment of elements, flaunts its relative autonomy of the
real in the formal structures of its proposition59
(EAGLETON, 2006, p.78-79).
Ao afirmar que certa frase conteria uma organização estrutural diferenciada, ou
que certa característica seria interna ou referente à própria letra do texto, Eagleton
retém, em algum sentido, uma visão objetiva de uma estruturação diferenciada que seria
típica do discurso literário. Todavia, essa posição, defendida em seus trabalhos dos anos
80, parece insustentável, porque a ficcionalidade carrega uma visão limitada da
linguagem social, visto que, para Eagleton, uma linguagem literária que se propusesse a
ser estranha – desviada de uma linguagem prosaica ou “comum” – pressuporia uma
linguagem estável compartilhada por certa comunidade. Dessa forma, o que seria um
discurso literário em um determinado espaço-tempo poderia não ser em outro. Mas
disso, tanto Eagleton quanto os formalistas, tinham ciência; e a própria ideia anti-
historicista que norteia o trabalho inicial de Eagleton já carrega esse víeis não
homogêneo dos fenômenos sociais, como foi anteriormente comentado. Contudo, o que
se sustenta não é uma ideia do literário, mas da literariedade, para os formalistas, e, para
Eagleton em sua fase científica, da ficcionalidade. Isso significa que eles admitem a
mudança histórica do significado literário, mas não descartam a possibilidade de um
corte sincrônico que possibilitaria encontrar certos “desvios literários” em um sistema
particular. Eagleton posteriormente rompe com seu argumento, afirmando que:
“Anyone who believes that ‘literature’ can be defined by such specials uses of language
59 Eu intento simplesmente que uma afirmação tal como “thou still unravished Bride of quietness”(tu ainda inviolada noiva da tranquilidade) auto-evidentemente pertence ao discurso literário, enquanto que uma afirmação tal qual “Depois de algum tempo eu sai e deixei o hospital e voltei para o hotel na chuva” pode ou não pode pertencer, dependendo no seu contexto. Ambas as afirmações de fato pertencem aos discursos literários que carecem de um referente real particular; é simplesmente que, no primeiro caso, sua ausência se inscreve ela mesma na própria letra do texto, que proclama sua carência do objeto real em seu mesmo desproporcionamento interno de elementos, ostenta
sua autonomia relativa do real nas estruturas formais de suas proposições.
92
has to face the fact that there is no ‘literary’ device – metonymy, synecdoche, litotes,
chiasmus and so on – which is not quite intensively used in daily discourse”60
(Eagleton, 2008, p.5). Eagleton rejeita, assim, sua visão anterior, por considerar que a
linguagem é muito mais contraditória e imprevisível do que pensavam os marxismos
estruturalistas, e também por entender a observação apenas do que funcionaria como
literário, sem considera-lo numa interação entre o que é dito e o que é lido, como sendo
uma visão redutora. Nesse sentido, é sintomático o fato de o teórico inglês usar até a
mesma frase que usara anos anteriores, vide a penúltima citação, para rechaçar seu
argumento de outrora: “If everyone used phrases like ‘unravished Bride of quitness’
in ordinary pub conversation, this kind of language might cease to be poetic”61
(EAGLETON, 2008, p.5, grifo nosso). Dessa forma, vemos que o Eagleton dos anos 80
não entende que a linguagem literária seja uma linguagem diferenciada ou que chame
atenção para si. Nesse sentido, ler algo como literário ou literatura é menos uma
característica intrínseca do que valorativa, em que determinados tipos de discursos, que
são inscritos em instituições sociais, o legitimam como literário. Vemos então que
Eagleton, em Criticism and Ideology, era ciente disso, apesar de não ter levado o
argumento a consequências maiores:
What is finally at stake is not literary texts but Literature – the
ideological significance of that process whereby certain historical text are severed from their social formations, defined as “literary”, bound
and ranked together to constitute a series of “literary traditions” and
interrogated to yield a set of ideologically presupposed responses62
(EAGLETON, 2006, p.57).
Como pode se confirmar pelo enxerto acima, Eagleton já era ciente que a
literatura é um campo de luta discursiva, em que certos textos são elevados à categoria
de literatura, legitimados por certas instituições sociais como, por exemplo, as editoras,
livrarias, academias, e instituições ideológicas, tais como a teoria e a crítica literária e a
mídia especializada. Entretanto, ele apenas estava preocupado em entender como os
60 Quem acredita que a “literatura” possa ser definida por esses usos especiais da linguagem tem de enfrentar o fato
de que há mais metáforas na linguagem usada habitualmente em Manchester do que na poesia de Marvell. Não há nenhum artifício “literário” – metonímia, sinédoque, lítote, quiasmo etc. – que não seja usado intensivamente no discurso diário. 61 Se todos usassem frases como “noiva imaculada da quietude” numa conversação corriqueira de bar, esse tipo de linguagem poderia deixar de ser poética. 62 O que está finalmente em jogo não são os textos literários, mas literatura – a significância ideológica do processo pelo que certos textos históricos são cortados de suas formações sociais, definidas como “literária”, ligadas e classificadas juntas para constituir uma série de “tradições literárias”, e interrogadas para produzir um grupo de
respostas ideologicamente pressupostas.
93
textos se inscrevem e não como eles são inscritos em uma instituição literária. Sendo
assim, recai-se, novamente, no problema da produção, sem considerar que são os
leitores que inscrevem o texto e que legitimam sua significação.
Em Teoria da Literatura: uma introdução, o teórico inglês defendeu que,
mesmo o texto sendo produzido como um tratado filosófico, ele pode ser lido ou
legitimado como ficção, assim como um romance policial pode ser usado como
exemplo para resolver situações práticas da investigação social, saindo assim do status
de ficção para o de manual de instruções. É sobre essas premissas que Eagleton leva às
últimas consequências o argumento valorativo como característica da literatura – a
ponto de recusar qualquer valor objetivo, inerente da literatura, e invocar um relativismo
atroz ao conceito: “Anything can be literature, and anything which is regarded as
unalterably and unquestionably literature – Shakespeare, for example – can cease to be
literature”63
(EAGLETON, 2008, p.9). Nesse sentido, não importa se um texto tem ou
não referente real particular isso não o caracterizará como literário ou literatura, apenas
se caracterizará se determinados valores, em contextos específicos, o elegerem como tal.
Eagleton, recusa, assim qualquer fator interno que poderia conceder uma característica
diferenciada da literatura em relação aos outros discursos.
Um último argumento sobre a literatura, que Eagleton defendia em sua fase
científica, era o de que a literatura podia revelar algum acesso especial à ideologia ou à
história real. Vejamos sua descrição:
Literature one might argue, is the most revealing mode of experiential
Access to ideology that we possess. It is literature, above all, that we observe in a peculiarly complex, coherent, intensive and immediate
fashion the workings of ideology in the textures of lived experience of
class-societies64
(EAGLETON, 2006, p.99).
Para Eagleton, a literatura estaria, assim, em uma posição intermediária, entre a
ciência e a experiência real: funcionaria de forma similar à ideologia, mostrando a
experiência real, e similar à ciência, por tomar seu objeto de forma coerente – a partir de
categorias e protocolos como, por exemplo, suas figurações e convenções simbólicas.
Desse modo, ela mostraria como a ideologia é construída no texto, podendo iluminar a
63 Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente – Shakespeare, por exemplo –, pode deixar de sê-lo. 64 Literatura, alguém poderia arguir, é o mais revelador modo de acesso experiencial à ideologia que possuímos. É na literatura, acima de tudo, que observamos, em uma complexa peculiaridade, coerente, intensiva e imediata tendência,
os trabalhos da ideologia nas texturas da experiência vivida das sociedades de classes.
94
relação dessa ideologia com a história. Há, todavia, dois argumentos, presentes nessa
visão de literatura como reveladora da experiência da ideologia, que parecem difíceis de
serem sustentados pelo autor nos anos seguintes. Primeiro, o de que a literatura poderia
permitir um acesso especial a ideologia, e no caso da visão marxista estruturalista
apenas o crítico teria acesso a essa experiência – “[...]but the work simultaneously
reveals (to criticism, if not to the casually inspecting glance) how that naturalness is the
effect of a particular production”65
(EAGLETON, 2006, p.85). Nesse sentido, esses
críticos queriam afirmar que os leitores comuns aceitariam a naturalidade do texto e não
possuiriam acesso a essa experiência da ideologia. Perguntamo-nos então: esse leitor
comum, ao invés de ter um acesso especial, teria uma leitura ideológica e não uma
leitura sobre a ideologia? Essa é uma resposta que Eagleton não parece negociar com
precisão, resultando, assim, numa condição especial, ou elitista, da função do crítico.
O outro fator – ou argumento – seria, novamente, o fato de o autor elevar a
literatura a uma posição privilegiada, de um texto que poderia nos fornecer um acesso
especial à experiência da ideologia. Desse modo, Poderíamos questionar o motivo para
esse elemento não poder ser estendido aos outros tipos de discursos? Se levarmos em
conta que os fatores que vimos – como a ficcionalidade, a linguagem “estranhada” ou o
fato do texto não possuir uma referência real particular – são subordinados aos valores
sociais e não às características estruturais organizacionais de um fenômeno literário,
poderíamos afirmar, nessa perspectiva, que não há motivo objetivo para assegurar à
literatura um acesso especial à experiência da ideologia. Poderíamos lembrar, a título de
argumento, que o próprio Marx, em Teoria da Mais Valia (1863), investiga as obras de
Adam Smith e, a partir dessas, percebe ou tem acesso a várias nuances da ideologia
burguesa que originaram seus textos. O texto de Smith, a pesar de nos revelar a
ideologia, não fora, pois, genericamente chamado de literatura, mas de texto filosófico
ou econômico. Logo, o que se pode inferir a partir desse exemplo é que se torna
problemático falar em texto como “literário” a partir do argumento, proposto por
Eagleton, da literatura como o texto mais revelador da ideologia; dever-se-ia, assim,
pensar em leituras literárias, no sentido de que seriam as leituras e as valorações e
tipificações, que fazemos de determinado texto, que o constituem. Nesse sentido, o que
impediria um texto dito filosófico, jurídico, econômico ou de teoria etnológica de nos
65 [...] mas a obra simultaneamente revela (para crítica, se não para a observação casualmente inspetora) como essa
naturalidade é o efeito particular.
95
fornecer um acesso especial à experiência ideológica? Eagleton parece estar bastante
confiante que isso é consumado na literatura em detrimento dos outros discursos – mas
essa ideia ele irá abandonar, veemente, em seus trabalhos dos anos 80.
Esse argumento, defendido em Criticism and Ideology, acarreta em outro
problema: a utilização, por Eagleton, apenas de textos canônicos – ao invés de tentar
expandir suas análises às literaturas marginalizadas ou outras semioses literárias, como
o cinema ou a canção popular. Sobre isso, Smith comenta: “Eagleton is evasive when it
comes to distinguishing between ‘Literature’ (in the canonical sense) and literature (in
the sense of all imaginative writing), a fact that presents a serious problem in his
formulations”66
(SMITH, 2008, p.55). Desse modo, será que as narrativas policiais,
vendidas em bancas de jornal ou folhetins contemporâneos, levar-nos-iam a ter o
mesmo acesso à experiência da ideologia que outros tipos de textos não literários? Ou
seriam esses textos “menores” igualmente reveladores, tais quais os de Dante,
Shakespeare ou Joyce, por exemplo, e, dessa forma, mais reveladores do que os outros
textos não literários?
Poderíamos dizer que a utilização que Eagleton faz do cânone inglês em suas
análises tem a função de fazer uma leitura desconstrutiva dos textos canônicos, e, por
isso, estaria justificada a sua utilização. Todavia, como vemos no capítulo final do livro
Criticism and Ideology, propõe-se uma valorização dos textos canônicos, não por serem
apenas fruto de uma imposição discursiva das classes hegemônicas, ou por elementos
estéticos por si só, mas sim por possuírem elementos singulares entre sua composição e
o seu modo de produção. Como afirma o autor:
Literary works “transcend” their contemporary history, not by rising
to the “universal”, but by virtue of the character of their concrete
relations to it – relations themselves determined by nature of the historical conditions into which the work is inserted
67 (EAGLETON,
2006, p.178).
Ou seja, ao determinar a valorização de uma literatura a partir das suas relações
com o seu modo de produção, Eagleton acaba novamente não explicando por que outros
textos criativos, em mesmas conjunturas históricas e ideológicas, não foram elevados à
66 Eagleton é evasivo quando se trata de distinguir entre “Literatura” (no sentido canônico) e literatura (no sentido de toda a escrita criativa), o que representa um problema sério em suas formulações. 67 Obras literárias “transcendem” a sua história contemporânea, e não pelo erguimento ao “universal”, mas em virtude do caráter de suas relações concretas com isso – relações elas mesmas determinadas pela natureza das condições
históricas em que a obra está inserida.
96
categoria de literatura, nem o porquê de uma obra poder ser valorizada de diversas
formas ao longo do tempo.
Com esse argumento, Eagleton segue a ideia de Marx, em Grundrisse (1857-
1861), sobre a arte grega. Para Marx, a arte grega, como a de Homero, por exemplo,
possuiria um “charme eterno”, justamente pelas limitações estruturais de sua sociedade.
Eagleton toma esse argumento e afirma que: “the ideologies proper to certain restricted
stages of material development are capable of producing aesthetic significations whose
power thrives precisely on such limits”68
(EAGLETON, 2006, p.181). Nesse sentido,
ele defende uma espécie de valor literário relacionada com sua produção social. Assim
sendo, essas relações conflituosas que podem existir entre a obra e seu meio de
produção poderiam justificar o fato da arte grega, apesar de seu modo de produção
arcaico e escravista, produzir elementos artísticos de grande valor estético, ou, por
exemplo, o fato das obras de Jane Austen serem valorizadas justamente por terem sido
escritas em um meio ideológico carregado pela dominação e opressão patriarcal e ética.
Esse argumento é bastante sugestivo, mas foi prontamente problematizado, nos anos
seguintes, pelo próprio, que passou a defender a noção da leitura ou releitura dos textos
como fator constituinte dos textos:
Is it possible that if we discovered a little more of what ancient greek
tragedy was “really” about we would stop liking it? Marx asks himself in the introduction of Grundrisse why is that such ancient art
continues to exercise an “eternal charm”; but how do we know that it
will? In what sense was it “art” for the ancient Greeks in the first
place?69
(EAGLETON, 1981, p.124).
Vemos, então, que Eagleton questiona o próprio argumento que defendera em
sua fase científica, pontuando justamente o fato de a arte grega ter sido valorizada como
arte, mas se ela futuramente ainda será. Isso significa que, para Eagleton, a questão do
valor literário é uma característica que não pode ser fixada apenas nos moldes da
produção, como ele mesmo fizera anteriormente, mas serão as várias leituras que
faremos que constituirão tal obra como literária. Nesse sentido, mesmo um Homero ou
um Shakespeare, poderiam ser lidos de uma forma, pelos seus contemporâneos e de
68 As ideologias próprias para certos estágios restritos de desenvolvimento material são capazes de produzir significações estéticas cujo poder floresce justamente em tais limites. 69 É possível que, se descobríssemos um pouco mais sobre o que a tragédia antiga grega “realmente” era, iríamos parar de gostar dela? Marx se pergunta na introdução de Grundrisse por que é que tal arte antiga continua a exercer um “encanto eterno”, mas como sabemos que ela exercerá? Em que sentido isso era “arte” para os antigos gregos, em
primeiro lugar?
97
tantas outras por seus futuros leitores. É justamente por avaliarmos os textos de acordo
com nossos julgamentos, afirma Eagleton em Teoria da Literatura, que podemos
valorizar o que quisermos nele. Desse modo, um drama como Hamlet, por exemplo,
poderia ter sido valorizada há anos atrás por suas descrições sobre o sofrimento
humano, mas pode ser valorizado em outras épocas por sua capacidade de exemplificar
alguns conflitos psicanalíticos.
Essa posição radical de Eagleton, nos anos 80, de apostar na relatividade do
conceito de literatura, é tentativa do autor para atentar para os usos revolucionários e
políticos que poderiam ser feitos com os textos literários. Ao quebrar qualquer modelo
ou valor literário intrínseco, Eagleton parece acreditar abrir o caminho para utilizar e re-
inscrever os textos de diversas formas e para fins progressivos. Esse radicalismo se
torna importante em uma visão revolucionária, porque resiste à ideia da literatura como
um objeto autônomo, isolado das práticas sociais, e denuncia essa categoria como uma
construção recente na história – quando, a partir do século XIX, influenciados por
ideologias individualistas do romantismo, aliados a especializações típicas do
capitalismo liberal econômico, certos discursos foram transformados em “literários”.
Além disso, ao negar essa particularização de certos discursos como literários, liberam-
se esses objetos para dialogar com todo um leque de produções discursivas e sociais que
compartilham com eles elementos de sua constituição. Contribui-se, assim, para evitar a
hegemonia de práticas críticas literárias institucionalizadas como um campo do saber
fechado em seu próprio discurso, o que gera ideias e pensamentos dissociados dos usos
sociais e coletivos dos objetos culturais segmentados como “literários”. Assim, para o
Eagleton dos anos 80, negar a literatura é abrir o caminho para uma crítica cultural das
diversas produções culturais, a partir da qual certos objetos convencionados como
“literários” possam ser estudados de maneira mais ampla.
2.3 FATORES ESTILÍSTICOS
Nesse tópico buscaremos analisar o estilo da crítica de Eagleton, em sua fase
científica, e sua visão do que seria um estilo revolucionário. Observaremos também, ao
final do tópico, os motivos que fizeram seus livros posteriores obterem mais
notoriedade, no meio acadêmico e editorial, em oposição as suas primeiras investidas na
teoria literária. Contudo, não queremos demonstrar que o estilo foi o único fator para o
98
reconhecimento de Eagleton; nossa intenção é apenas evidenciar a mudança estilística
ocorrida, que, aliada aos fatores históricos e teóricos, pode ter contribuído com esse
sucesso.
Mais do que uma questão de insights teóricos, vemos que há, nos trabalhos pós
Criticism and Ideology, uma forma de expressão utilizada por Eagleton que acaba por
popularizar ideias que, até então, eram tidas como altamente técnicas e para iniciados.
Ou seja, percebe-se aí uma tentativa de construção de um projeto popularizante e
democrático que Eagleton propôs usar como diferencial em relação a alguns críticos
literários beletristas – como ele próprio evidencia, rememorando os anos 80, no prefácio
da segunda edição de Teoria da literatura: uma introdução (1997): “Algumas teorias
literárias têm-se mostrado, de fato, excessivamente herméticas e obscurantista, e o
presente livro constitui uma tentativa de consertar esse estrago, tornando-os mais
amplamente acessíveis” (Eagleton, 1997, Prefácio). Todavia, muitos o criticam, dizendo
que, ao invés de popularizar, ele estaria vulgarizando ideias, transformando toda uma
discussão estética em uma discussão política e fora do âmbito do estritamente literário.
Também discutiremos essa questão na nossa análise.
Defenderemos também que, a partir dos anos 80, o pensador britânico acaba por
recusar a escrita acadêmica ou, em outros termos, o modo de analisar o objeto literário
sedimentado por um estilo de crítica elitista e conservador, para apostar numa forma de
crítica que rompesse com esse engessamento e pudesse, ao mesmo tempo, não só
criticar, mas criar discursos em cima do objeto. Esse novo estilo de crítica se afastaria
de uma crítica de tom acadêmico, sério, semi-positivista e que buscaria ver as categorias
objetivas do texto literário, para ter uma visão que percebesse que há certas
singularidades no discurso que não podem ser formalizadas sem uma negociação
política, e que toda forma de discurso é um artífice construindo, sendo, muitas vezes, o
reflexo de desejos inconscientes de seus interlocutores. Eagleton, nesse sentido, muda
seu modo de escrever, entre 1976 e 1981, porque vê que aquele tipo de escrita, sobre
influência teórica althusseriana, não era efetivamente política, e que, ao contrário dessa,
o estilo de escrita ao modo brechtiano, que ele adota posteriormente, faz parte de uma
lógica política radical e engajada. Não tentaremos defender, todavia, que Eagleton
mudou acintosamente sua forma de criticar. Defenderemos que ele mantém muito de
seus recursos linguísticos, porém, acrescenta alguns elementos inspirados tanto nos
99
radicais de influência marxistas – como Walter Benjamin, Bertold Brecht e Mikhail
Bakhtin – e da rebeldia e pastiche desconstrucionista em voga dos anos 80.
Dessa forma, faremos uma análise de algumas características que julgamos
recorrentes nos escritos de Eagleton e que acabam por constituir uma marca peculiar de
sua escrita. Para isso, analisaremos alguns elementos presentes em Criticism and
Ideology, observando depois como elas se adéquam às mudanças e adaptações da sua
nova escritura dos anos 80.
2.3.1 O estilo de Criticism and Ideology
A obra inaugural de teoria literária de Eagleton está carregada de um estilo típico
das monografias do marxismo ocidental que discutimos no capítulo anterior, ou seja,
com um tom sério e academicista. Isso pode ser justificado pela tentativa do autor de
perceber os fenômenos literários como um resultado objetivo de um estudo das
estruturas de produção social. Por consequência, o estilo seco, direto e arrogante de sua
escrita é resultante do aspecto “científico” que suas análises buscavam. Nessa estilística
convicta de sua objetividade, entretanto, não havia espaço para uma escritura que
pudesse questionar sua própria relatividade semântica, sua construção linguageira ou
mesmo a identidade entre objeto factual e linguagem utilizada para significá-lo.
O autor inglês, ao aproximar sua linguagem a um esquema lógico-matemático,
tentou criar um sistema de estruturas em uma múltipla relação, em que todos os
elementos determinassem e fossem determinados entre eles; consequentemente, isso
transformou a escrita num emaranhado de siglas. Vejamos um exemplo disso: “a
Double articulation GMP/ GI-Gi/ AI/ LMP is , for example, possible whereby a GI
category, when transformed by AI into a Ideological component of na LMP, may then
enter into conflict with the GMP social relations it exist to reproduce”70
( EAGLETON,
2006, p.61). Nesse fragmento poderíamos, a primeira vista, questionar se ele realmente
trata sobre literatura ou sobre uma proposição matemática, pois, apesar de a linguagem
ser clara e a sintaxe ser disposta naturalmente, há uma excesso de códigos e jargões que
deixa o discurso claro em sua exposição, mas complexo pela sua especificidade
conceitual. Nesse sentido, vemos que a sua escrita é acessível e objetiva, mas não deixa
70 Uma dupla-articulação MPG/IG-IG/IE/MPL é, por exemplo, possível, como uma categoria de IG, quando transformada pela IE em uma componente ideológica de um MPL, pode então entrar em conflito com as relações
sócias do MPG que existe para reproduzir-se.
100
espaço para as características que Eagleton proclamaria, anos depois, como
revolucionárias, a exemplo do humor e da ironia.
A ausência desses fatores é o que Eagleton questiona, anos depois, não apenas
em si, mas em outros marxistas, como, por exemplo, Fredric Jameson. Assim, para o
pensador inglês, Jameson teria uma escrita tranquila e conciliadora, e, nesse sentido,
Eagleton afirma: “(The fact that he is in no sense a polemical and satirical writer –
essential modes, to my mind, for a political revolutionary – may be taken to confirm this
impression.)”71
(EAGLETON, 1988, p.71). Desse modo, apesar de Eagleton não possuir
um estilo revolucionário ou uma escrita com a violência relativista linguística, típica dos
desconstrutivistas, a escrita inicial do pensador britânico mostra-se combativa e
politizada.
O estilo austero e convicto de suas verdades fez com que a crítica científica
desse pensador inglês criasse estratégias linguísticas oposicionistas ao discurso que
queria desmascarar, e isso permaneceu como uma de suas características também nos
anos seguintes. Assim, vamos comentar aqui algumas dessas características estilísticas,
que julgamos recorrentes na crítica inicial de Eagleton, e que se tornarão também
presentes em toda sua obra. Para isso, propomos três categorias, como uma espécie de
analogia entre as figuras de linguagem e o funcionamento da análise de Eagleton: a
hipérbole, a antítese e a sinédoque.
2.3.1.1 Hipérbole
Por possuir certa confiança elevada em seus pressupostos teóricos, ou seja, por
acreditar que o marxismo ou a ciência do materialismo histórico seria a teoria capaz de
entender completamente a realidade social e literária, o estilo de Eagleton deixa
transparecer, em alguns momentos, certo exagero retórico, buscando, assim, suplantar
as teorias concorrentes. Assim, essa característica é um dos motivos, por exemplo, que
levaram Willy Maley (1991) a definir o estilo de Eagleton, ou o que ele chama de
“eagletonismo”, como um modo de crítica que desmerece, de forma bruta e ríspida, o
que considera ser oriundo da alta cultura: “An Eagletonism is a flexible polemical
device which takes the form of a rhetorical flourish designed to debunk an image of
71 O fato de que ele em nenhum sentido é polêmico ou satírico – modos essenciais, a meu ver, para uma política
revolucionária – pode ser tomado para confirmar essa impressão.
101
high culture, through a gesture in the direction of some banal, bizarre, or brute
‘reality’”72
(MALEY, 1991 apud SMITH, 2003, p. 74). Desse modo, esses exageros se
dão precisamente porque muitas vezes Eagleton busca explicitar o que é mais
flagrantemente elitista em seus adversários. Vejamos um exemplo explanatório dessa
austeridade crítica de Eagleton:
[…] the english gentleman who occupied the early professorships at
the “ancient” Universities no more needed a course of specialized
training in how to read their own literature than they needed a course of training in how to give orders to their domestic servants
73
(EAGLETON, 2006, p.12).
Como podemos ver nesse enxerto, retirado de Criticism and Ideology, Eagleton,
ao comparar o comportamento dos acadêmicos com suas supostas condutas de
dominação de classe, denuncia e transforma todo o glamour dos supostos docentes de
literatura em uma imagem bruta de dominação e opressão. Nesse sentido, esse exemplo
descreve bem o que Maley sugeriu ser o “eagletonismo”, em que Eagleton denuncia os
valores elitistas e os coloca sobre uma perspectiva banal e bruta. Podemos observar,
assim, que esse estilo de crítica de Eagleton, segundo James Smith (2008), seria
tributário ao estilo de Hebert McCabe74
, que também era austero em suas palavras e
buscava expor a realidade inferior da sociedade. Assim, questões “exageradas” ou
“extremas”, como genocídio, pedofilia, estupro, sodomia e inanição, eram temas que
McCabe utilizava, e que, posteriormente, Eagleton usou como argumento para combater
qualquer proposição relativista que queira desconsiderar a materialidade e o valor
desses fatos sociais.
Nesse âmbito, poder-se-ia pensar que, ao desmerecer certos tipos de visões
culturais, Eagleton acabaria por demonstrar uma visão superficial e parcial do problema.
Um exemplo dessa visão crítica sobre Eagleton seria a ideia de Júlio Pereira, em sua
tese de doutorado sobre teoria da literatura, que afirma que o estilo de Eagleton, do
ponto de vista de sua retórica, é muito habilidoso, mas, quando se trata do seu estilo de
crítica, ele: “condiciona os temas à sua perspectiva particular, e invalida – quando não
72 Um eagletonismo é um artifício polêmico flexível, que toma a forma de um floreio retórico desenvolvido para desmerecer uma imagem da alta cultura, através de um gesto em direção de uma ‘”realidade” bruta, bizarra ou banal. 73 O cavalheiro inglês que ocupou as primeiras cátedras nas “antigas” universidades não mais precisava de um curso de formação especializada em como ler suas próprias literaturas do que eles precisavam de um curso de treinamento em como dar ordens aos seus empregados domésticos. 74 Filósofo britânico e padre da ordem dominicana, fez parte do Slant, um jornal inglês do qual Eagleton participou
nos anos 60.
102
ridiculariza – os modos de pensar que lhe são adversos” (PEREIRA, 2006, p.114).
Todavia, se levarmos em consideração que Eagleton achava que sua teoria cientifica dos
anos 70 era a única defensora dos oprimidos, o que tornava seu discurso o único válido,
a utilização do extremo ou do exagero teria a função de quebrar o discurso arbitrário e
hegemônico da burguesia, bem como atacar a voga relativista pós-moderna, que ele
considerava homogeneizante e paradoxalmente pluralista. Por conseguinte, o autor
britânico acreditava que a materialidade da desigualdade econômica e cultural na
sociedade não permitia tal celebração do relativismo e do comedimento. Contra isso,
portanto, Eagleton entende que deveríamos expor as contradições e os extremos que a
sociedade do capital tende a ocluir, e que muitas vezes estão velados nos discursos e
teorias literárias.
Podemos ver um exemplo desse exagero contra o relativismo em um comentário
que Eagleton faz sobre os críticos literários que acreditam que tudo no texto é uma
questão de linguagem:
[…] for to say that everything that happens in the text happens in
terms of language is equivalent to saying that everything happens in
the world because of god. Such a statement is so pervasively applicable as to cancel itself out leave everything exactly as it was
75
(EAGLETON, 2006, p.82).
Nesse exemplo, vemos que Eagleton tenta quebrar o relativismo com um
exemplo extremo, que desmereceria a lógica contida na afirmação de que se algo é tudo,
logo algo também é nada, visto que não teríamos como definir algo se não podemos
delimitar o que é seu oposto. Nessa perspectiva, podemos ampliar essa posição
mediadora de Eagleton para as várias ideias que ele trabalha. Por exemplo, para ele o
texto não seria nem só forma, nem só conteúdo; não seria apenas representação, mas
também ficção; não seria apenas produção, mas produto. Nesse sentido, o autor usa o
exagero hiperbólico para manter sua postura dialética, ou seja, a ideia de que entre uma
tese e uma antítese existiria uma síntese, mas essa seria sempre histórica e sujeita a
contradição. Isso implica que, toda vez que o pensador britânico descreve algo
exageradamente, isso tem a função de reduzir o extremo de uma teoria para enquadrá-la
75 [...] pois dizer que tudo que acontece no texto acontece nos termos da linguagem é equivalente a dizer que tudo
acontece no mundo por causa de Deus. Tal afirmação é tão perversamente aplicável como para cancelar a si próprio e deixar tudo exatamente como estava.
103
no meio dos dois extremos – entre uma ideia e seu oposto antagônico. Desse modo, para
o pensador britânico, afirmar categoricamente sobre o que é algo, ou negar totalmente
algo, não seria possível sem que se fosse remetido a uma história particular. É por isso
que, para quebrar o relativismo, que para ele seria um extremismo, Eagleton usa de
exemplos extremos, buscando abrandar o efeito desse relativismo e jogá-lo de volta ao
centro de polos de extremos.
Assim, principalmente em Criticism and Ideology, a argumentação com base em
um sistema de conceitos materialista parece inóspita para um olhar pós-estruturalista,
pois, para esse, o conceito acaba por se esvaziar no imenso jogo de sentidos, sendo
assim, abstrato e impreciso. Para Eagleton, todavia, podemos sim conceituar certas
ideias de acordo com suas práticas e necessidades históricas e sociais, ou seja, para os
materialistas históricos, como Eagleton, a fixação do discurso por meio de conceituação
é essencial para o discernimento da crítica, e deixar-se perder no relativismo do livre
jogo linguístico, como fazem os pós-estruturalistas, é que seria um exemplo de
imprecisão e obscuridade.
2.3.1.2 Antítese
Pela necessidade de uma renovação política na linguagem legitimada por um
determinado grupo hegemônico, o marxismo acaba muitas vezes criando outra
linguagem, que nomeia o seu oposto político como seu oposto antagônico. Assim, essa
corrente forja toda uma “língua” para identificar o discurso opositor. Vejamos um
exemplo desses termos: “A petty-bourgeois liberal humanism, academically
dispossessed and subordinated yet in intellectual terms increasingly hegemonic,
occupied the bastions of reactionary criticism from within as a dissentient bloc”76
(EAGLETON, 2006, p.13, grifo nosso). Os termos grifados são alguns exemplos dessa
terminologia, que hoje já possui uma longa tradição de uso e pelejas conceituais dentro
do campo da crítica marxista. Assim, mais do que uma referência conceitual, esses
termos atuam como um dispositivo de identidade, que serve para demarcar os limites de
alteridade entre o que se defende e o que se opõem nas outras teorias e objetos
criticados, configurando assim uma característica política refletida no estilo. Nesse
76 Um humanismo liberal pequeno-burguês, academicamente despossuído e subordinado, porém, em termos intelectuais, cada vez mais hegemônico, ocuparam os bastiões da crítica reacionária em seu interior como um bloco
dissidente.
104
sentido, os jargões e os estereótipos são uma elemento marcante em boa parte da
tradição marxista, que, para formar um contra-discurso, busca sempre uma renovação da
linguagem vigente, marcando ou fixando conceitos que possuam valor para eles ou que
não sejam do interesse de grupos “dominantes” nomeá-los como tal.
Uma das críticas a esse “ataque” político-estilístico praticado pelos marxistas é
feita por Julio Pereira. Pereira condena o fato de Eagleton criticar o movimento
americano New Criticism em função de esse apresentar um irracionalismo marcante,
que reflete o fato dos seus componentes serem religiosos dogmáticos, direit istas e
latifundiários. Ainda segundo Pereira: “É notável como, em algumas de suas críticas,
Eagleton se amesquinha a ponto de exercer um patrulhamento das opções políticas e até
mesmo religiosas de seus adversários” (PEREIRA, 2006, p.125). Entretanto,o
pesquisador brasileiro não observa que, quando Eagleton faz essa crítica a esses
aspectos políticos e religiosos dos autores, ele não propõe misturar dados pessoais – que
para Pereira não teriam relevância para a análise literária – com as obras deles. O autor
britânico estaria, assim, justamente querendo observar que esses não são apenas traços
pessoais e íntimos desses autores, mas que essas características refletem uma
estruturação simbólica conhecida como ideologia. Assim sendo, Eagleton quer mostrar
que o New Criticism, por estar imerso no estereótipo direitista americano – “Deus,
família e propriedade” – refletiria esses fatores na teoria. Ou seja, Eagleton está
simplesmente tentando demonstrar quais os valores políticos que subjazem o tecnicismo
dessa corrente crítica, e o faz por meio do estudo da estruturação social que seus críticos
possuem.
A escola marxista, assim, deixou uma grande gramática a ser usada pelos seus
adeptos, sendo os estereótipos peças fundamentais dessa gramática, na opinião do
crítico inglês. Para ele, esses estereótipos, sejam positivos ou negativos, são elementos
basilares para a compreensão do jogo de legitimação do poder hegemônico cultural de
uma sociedade. Desse modo, vê-se que eles possuem uma forte ligação com a ideologia
de certos grupos culturais. Assim sendo, tentaremos uma breve explanação dessa
ligação entre estereótipos e ideologias, trazendo um exemplo sobre o colonialismo.
Para se combater o colonialismo é preciso estar ciente das estratégias linguísticas
e ideológicas que os colonizadores irão usar para defender seus interesses. Logo,
seguindo o raciocínio de Eagleton, poderíamos, por exemplo, dizer que, se um inglês
considerar o irlandês como indolente, seria um erro não achar que essa afirmação
105
corresponde à realidade de todo o povo irlandês, além de que isso pode ter uma
conotação ofensiva. Entretanto, ao mesmo tempo em que poderia ser ofensivo, poderia
servir como uma espécie de motivo ideológico, que estruturaria uma visão de mundo,
compartilhada na sociedade irlandesa, tornando-a, assim, propensa a não se conformar
com a supremacia inglesa. Há, nesse sentido, uma forte ligação entre os estereótipos e
jargões e a ideia de ideologia que tratamos anteriormente, pois as ideologias são
representações imaginárias da sociedade, mas que, de certa forma, estruturam e
sedimentam sua organização social e cultural – por isso Eagleton não deseja descartar
previamente esses dispositivos retóricos, pois considera-os como uma ferramenta
legítima para análise textual e cultural.
2.3.1.3 Sinédoque
Como não poderia ser diferente, Eagleton, como bom materialista histórico que
era, percebe a visão de um fenômeno literário como resultante de algo mais
fundamental. Desse modo, apesar de combater a doxa marxista hegeliana da totalidade,
que, na teoria literária, tem Lukács como seu precursor, Eagleton tentou demonstrar que
há uma relação semi-organizada que estrutura os fenômenos sociais.
Nesse sentido, a literatura em geral é tratada pelos marxistas como uma parte ou
peça do todo. Isso se daria porque, politicamente, ela não teria uma participação ativa
nas concepções do materialismo histórico, como Eagleton sugere: “na verdade, faz parte
do materialismo cultural a afirmação de que a cultura não é, afinal de contas, aquilo em
que homens e mulheres baseiam suas vidas” (EAGLETON, 2011, p.6). Poderíamos
dizer, assim, que, apesar de Eagleton defender uma semi-autonomia do objeto literário,
ele não deixa de tratá-lo como em uma relação de sinédoque. Ou seja, para Eagleton a
literatura seria parte da ideologia artística, que seria parte das ideologias gerais
hegemônicas, que, por sua vez, seriam parte da superestrutura, sendo essa ainda,
finalmente, resultado de uma base econômica.
Apesar de o crítico britânico ter feito ressalvas quanto a essa ideia de hierarquia,
como expomos anteriormente, em muitos de seus escritos dos anos 70 Eagleton analisa
seus objetos sob uma lógica matemática da teoria dos conjuntos numéricos, utilizada
mais comumente nas ciências exatas. Assim, teríamos, por exemplo, que certo elemento
literário faz parte de certa estruturação ideológica A que está contida em certa
106
estruturação B, e assim por diante. Nessa perspectiva, esse aspecto de sinédoque é
evidente; é ele que serve de base, por exemplo, para a crítica de Howard Felperin
(1986), que critica o estilo de Criticism and Ideology por esse adotar uma terminologia
pseudo-matemática e elaborar um grupo de leis que governariam a produção literária.
James Smith, todavia, indo à defesa de Eagleton, afirma que tratar todo o esforço de
Eagleton como um “Stylistic trick77
” é negar toda a tarefa de propor um sistema que
pudesse lidar com características abstratas e complexas da natureza da produção
literária. É por isso que, para Smith, deveríamos valorizar a crítica eagletiana. Vejamos
um exemplo desse uso abstrato na análise de James Joyce:
Nor is the “aesthetic ideology” to which Joyce´s works relates a
simple “reflection” of the ideological formation as a whole. Joyce
was born into an ideological sub-ensemble of petty-bourgeois catholic nationalism – a sub-ensemble which formed a contradictory
unity with the dominant ideology78
(EAGLETON, 2006, p.155 grifo
nosso).
Como podemos ver nesse fragmento, Eagleton realmente se utiliza dessas
categorias, e, muitas vezes, temos que observar com destreza para perceber como se dão
as múltiplas e mutuas relações entre essas – no exemplo do enxerto: como, na obra de
Joyce, uma ideologia estética estaria contida numa formação ideológica que, por sua
vez, faria parte de uma ideologia geral, e assim sucessivamente.
Outro fator que também é recorrente na crítica de Eagleton é o fato de ele não
querer tratar de autores ou textos individuais. Sua crítica procura situar um romance de
um escritor em relação a sua obra como um todo, ou um conceito de um filósofo em
relação a suas teorias. Esse fator parte da ideia de que verificar os fenômenos isolados
seria reificá-los como detentores de algo tão singular que não precisaria ser reescrito nos
discursos que o produziram79
. Todavia, Eagleton não desconsidera a crítica sobre
autores individuais – temos dele, por exemplo, os estudos sobre o romance Clarissa de
Samuel Richardson, além de seu livro sobre as ideias de Walter Benjamim, ou até
mesmo sua peça de teatro que toma Bertolt Brecht como tema. No entanto, ele quer
resistir ao estilo de crítica que busca dissecar o texto como um organismo interno,
77 Expressão irônica querendo qualificar as categorias de produção literária de Eagleton como um “truque estilístico”. 78 Nem é a “ideologia estética” para qual a obra de Joyce relaciona uma simples “reflexão” da formação ideológica como um todo. Joyce nasceu em um subgrupo ideológico do nacionalismo católico pequeno burguês – um subgrupo que formou uma unidade contraditória com a ideologia dominante. 79 Em nossa análise de Senhora focamos apenas nesse romance, mas indicamos que muitos de seus conflitos
ideológicos são compartilhados com outras obras alencarianas, como Lucíola e Iracema.
107
fechado para os fatores históricos que o constituem e o atravessam. Podemos ver assim,
que, em Criticism and Ideology, o estilo da crítica eagletiana se baseia não apenas num
romance, mas em enxergar a própria estrutura que está por trás dos autores por ele
analisados. Vejamos um desses exemplos em sua análise em sinédoque de Charles
Dickens:
The spontaneous, empiricist character of dickens´s Romantic
humanism, evident in the “Christmas spirit” and the vulgar vitalism of
Hard times, emerges as a significant aesthetic and ideological weakness. Yet the mature work that very weakness productively
deprives him of a ready-fashioned organicist ideology, à la Daniel
Deronda, by which to mediate and resolve conflict questions. In a transitional work like Dombey and Son, the absence of such an
ideology results in a text twisted and self-divided by the very
contradictions it venerably reproduces80
(EAGLETON, 2006, p.127).
Nesse sentido, ao observar não apenas um romance da fase inicial de Dickens,
mas a estrutura por trás de seus romances – nesse caso, o conflito, no século XIX, entre
as ideologias românticas humanistas e as ideologias típicas daquele século, como o
organicismo pastoral, que, por sua vez, também está presente no romance Daniel
Deronda de George Eliot – , Eagleton consegue perceber como os elementos ficcionais
dos textos iniciais de Dickens constroem uma nova percepção nos seus romances da
maturidade. E isso não ocorre somente em análises literárias. Podemos ver, por
exemplo, a crítica à visão cultural de Raymond Williams, desde Cultura e Sociedade
(1958) até Campo e a cidade (1973), como uma forma de elucidar não só o conceito,
mas a própria obra do autor. Desse modo, essa técnica, de explicar uma ideia pelo seu
contexto geral, serve também como um fator didático, visto que, ao exemplificar de uma
forma “geral”, Eagleton acaba por querer organizar os pontos teóricos que parecem
dispersos dentro da obra do autor, fazendo assim com que o leitor possa associar, mais
facilmente, ideias de um autor que precisaria de um estudo mais demorado e
aprofundado.
Outro fator que pode ser considerado como sinédoque e didático é o fato de
Eagleton fazer sua análise para além do campo literário, ou seja, atravessada por
80 O espontâneo caráter empirista do humanismo romântico de Dickens, evidente no “espírito natalino” e o vitalismo vulgar de Hard Times, emerge como uma estética significante e uma fraqueza ideológica. Porém, na obra madura essa grande fraqueza priva-o produtivamente de uma ideologia organicista pré-fabricada, à la Daniel Deronda, pelo qual mediaria e resolveria questões conflituosas. Em uma obra transicional como Dombey and Son, a ausência de tal
ideologia resulta em um texto distorcido e autodividido pelas próprias contradições que veneravelmente reproduz.
108
diversas teorias de campos diferentes. Como exemplo, podemos ver que, ao tratar de um
texto literário, Eagleton não o considera apenas como sendo um elemento do campo da
língua ou da linguística, mas sim: por ser uma configuração social, ele pertence também
ao campo da sociologia; como uma representação de poder, ele é relacionado à
psicanálise; ao tratar da leitura, esse lidaria com a teoria da comunicação, com a
hermenêutica e com a teoria da recepção; e assim por diante. Por entender um texto não
como um elemento isolado, mas como parte de vários discursos, Eagleton acaba
transitando entre diversas disciplinas, o que faz com que vários leitores das mais
diversas áreas atentem para seus escritos.
Por fim, vemos que, para alguns, as categorias de produção literária, por
trabalharem sobre a forma de sinédoque, são muito abstratas ao ponto de não pode ser
inteligível, para outros elas podem ser úteis como um parâmetro para entender a
particularização de certos discursos ideológicos literários. O fato é que, após os anos 70,
Eagleton se afasta cada vez mais desses métodos abstratos. Todavia, não abandona o
estilo de sempre apontar para os meios de produção dos fenômenos literários, o que
requer, muitas vezes, um análise que parte do singular para se alçar ao coletivo. Como
marxista, portanto, Eagleton entende que qualquer singularização em excesso faz parte
do projeto de reificação capitalista, que quer apresentar seus fenômenos ou mercadorias
como algo natural e não como algo construído por meio de vários fatores estruturais que
são silenciados.
2.3.2 O estilo revolucionário
Depois de 1976, Eagleton passa cinco anos sem lançar nenhum livro de teoria.
Nesse meio tempo, ele escreve uma peça de teatro sobre Bertold Brecht, e isso faz com
que ele mude suas concepções sobre o estilo de escritura. Segundo o pensador britânico,
esse trabalho o fez perceber que há uma profunda ligação entre escrita criativa e escrita
crítica. Além disso, a imersão na vida e obra de Brecht fez com que Eagleton se
aproximasse do estilo desse, que, ao mesmo tempo em que era revolucionário
teoricamente, era também engajado nas lutas sociais e nas vanguardas da república de
Weimar, adicionando a tudo isso o humor, o que era bastante estranho ao marxismo
ocidental europeu. Assim, nesse tópico analisaremos duas características que se
109
tornaram essenciais para o estilo revolucionário de Eagleton: o humor e a popularização
de ideias.
2.3.2.1 Humor
Ao comentar o estilo de alguns críticos literários marxistas do século XX,
Eagleton chega a seguinte constatação:
Of Bloch, Lukács, Brecht, Benjamin and Adorno, only Brecht is comic. I do not mean simply that he is humorous, although that is
important enough: I mean also that Brecht stands ideologically apart
from that “western Marxist” melancholy which in its various ways broods over the four, and infiltrates the very sinew of their prose
styles81
(EAGLETON, 1981, p.159).
Vemos nessa citação que a melancolia e a austeridade faziam parte do estilo
marxista, justamente pelo fato de os próprios marxistas acharem que a sociedade não
teria tempo para esses prazeres “supérfluos”, proporcionados pelo riso e pelo otimismo
em meio a tanta miséria e necessidades. Entretanto, Brecht, e podemos incluir aí
também Bakhtin, são os que, indo na contra mão, tanto dos conservadores quanto dos
radicais “sérios”, creditavam ao humor e ao cômico características libertadoras e
revolucionárias. Desse modo, para Eagleton, a relação do marxismo com o humor pode
ser resumida da seguinte forma:
For Marxism, history moves under the very sign of irony: there is
something darkly comic about the fact that the bourgeoisie are their
own grave-diggers, just as there is an incongruous humor about the fact that the wretched of the earth should come to power
82
(EAGLETON, 1981, p.161).
Nesse sentido, o fato de uma minoria viver um prazer proporcionado por uma
maioria, que vive em necessidade, tal qual um gigante elefante é dominado e
amedrontado por uma minúscula formiga, é, para Eagleton, algo trágico e ao mesmo
81 De Bloch, Lukács, Brecht, Benjamin e Adorno, apenas Brecht é cômico. Eu não digo simplesmente que ele é humorado, embora isso seja bastante importante: quero dizer também que Brecht está ideologicamente apartado dessa melancolia “marxista ocidental” que em suas várias maneiras paira sobre os quatro, e infiltra o próprio tendão de seus estilos de prosa. 82 Para o marxismo, a história se move sob o próprio sinal de ironia: há algo obscuramente cômico sobre o fato de que a burguesia são seus próprios coveiros, assim como há um humor incongruente sobre o fato de que os miseráveis da
terra podem chegar ao poder.
110
tempo cômico. Seguindo esse raciocínio, portanto, os marxistas deveriam possuir um
senso da comicidade de que o mundo é, ao mesmo tempo, sublime e grotesco. Desse
modo, Eagleton consegue absorver o humor, não como algo que produz um efeito de
prazer individual egotista a despeito de qualquer coisa, mas como uma forma de não
perder o outro lado da natureza humana. Ou seja, apesar da narrativa do marxismo ser a
história da luta da classe oprimida contra uma minoria opressora, ela é, ao mesmo
tempo, a utopia de que um dia a vida de excessos, de prazer e poesia pode ser parte da
vida não só de um ditador, mas também de um coveiro; que todos tenham acesso a essa
vida. Por conseguinte, resgatar esse senso de utopia – a poesia do futuro, que Marx
falava, ou a imagem da redenção, que Benjamin, timidamente, professava – é o que
Eagleton quer resgatar da tradição da esquerda, que, segundo ele, devido aos fracassos
na prática de emancipação social, transportou um pessimismo e uma melancolia para
sua escrita.
Eagleton afirma que a diferença entre Brecht e Benjamin, e, de forma mais
ampla, entre as duas visões, humorística e melancólica, dentro da crítica radical, se daria
da seguinte maneira: “what for benjamin is potentially tragic – the unexpected rebuff,
the fragility of existence, the agony of conflict – is for Brecht the very stuff of
comedy”83
(EAGLETON, 1981, p160). Assim, esse entendimento da comédia percebe a
mutabilidade do conceito de tragédia, pois o que pode ser trágico hoje pode ser uma
piada amanhã. Assim sendo, o comunismo russo, por exemplo, poderia ter sido, em sua
implantação, uma comédia, no sentido de ser uma libertação do riso proletário contido
pelos Czares, mas pode ser considerado, anos depois, como uma tragédia para toda
história comunista. Isso não quer dizer, todavia, que, para Eagleton, no humor tudo
possa ser mutável e relativo historicamente:
Yet it is not of course true that all tragic contents are changeable, just as carnival is wrong to believe that anything can be converted into
humor. There is nothing comic about gang rape, or Auschwitz84
(EAGLETON, 1988, p.161).
Vemos nesse trecho, novamente, o uso do exemplo hiperbólico para quebrar a
doxa pós-moderna que acredita que tudo pode ser mutável. Ou seja, como vimos no
83 O que para Benjamin é potencialmente trágico – a rejeição inesperada, a fragilidade da existência, a agonia de conflito – é para Brecht a essência da comédia. 84 Mas não é bem verdade que todos os conteúdos trágicos são mutáveis, assim como o carnaval está errado em
acreditar que tudo pode ser convertido em humor. Não há nada de cômico sobre estupro coletivo, ou Auschwitz.
111
tópico hipérbole, apesar de Eagleton apreender a relatividade histórica em suas ideias,
ele retém os imperativos revolucionários que defendem que sempre há uma excedente
que não está sujeita à mudança, seja na comédia ou na tragédia. Nesse sentido, é nesse
ponto que Eagleton discorda de alguns teóricos que aderem à ideia do carnaval
acriticamente, como podemos ver nessa frase em que ele questiona os efeitos do
carnaval: “Can their intoxicating liberation be politically directed?”85
(EAGLETON,
1981, p.148). Desse modo, Eagleton está questionando: como podemos conciliar o riso
liberatório do carnaval, de um lado, e, do outro, as regras programáticas que devemos
defender para poder evitar os dogmatismos que impedem o carnaval? Para Eagleton, de
certa forma, temos que lidar com a contradição de que é preciso ser totalitário para
deixar de sê-lo, ou seja, os pressupostos de que o carnaval só será efetivamente possível
por meio de um dogmatismo contra uma minoria dominante. Assim, só com a tragédia
de alguns opressores é que as pessoas das diversas classes poderiam ser liberadas de seu
sofrimento e da sua tragédia cotidiana, podendo assim finalmente rir. Sem ter essa ideia
em mente, o carnaval seria para o autor apenas uma falsa utopia de liberdade.
Para chegar à “utopia” proposta pelo carnaval, portanto, Eagleton propõe
observar outra função do humor, que seria seu uso na luta contra os inviabilizadores
dessa utopia. Para Eagleton, a alegria exagerada do carnaval possuiria uma relação com
a sátira política, pois o carnaval geraria, mesmo que momentaneamente, a desconstrução
dos discursos dominantes ou liberais burgueses que querem se manter intactos; logo,
Eagleton gostaria de perenizar essa suposta subversão momentânea do carnaval para
fins políticos. Nesse sentido, James Smith (2003), ao analisar o humor de Eagleton,
descreve duas formas do seu uso com função subversiva: o humor hiperbólico, que,
como explicamos, tem sua raiz ainda em Criticism and Ideology, e o tipo de sátira
paródica com efeito reverso, em que Eagleton parece estar concordando com seu
oponente em suas proposições, mas acaba por ironizar ou satirizá-lo em sua conclusão.
Vejamos um exemplo dessas técnicas:
Não é verdade, na visão de Nietzsche, que há um caminhão correndo para cima de mim a sessenta milhas por hora. Em primeiro lugar,
objetos distintos como caminhões são apenas ficções convenientes,
subprodutos efêmeros da onipresente vontade de poder de que todas as substâncias aparentemente sólidas e distintas são secretamente
compostas.
85 Pode sua liberação intoxicante ser politicamente orientada?
112
Em segundo lugar, as palavras “eu” ou “me”, “mim”, são igualmente espúrias, moldando uma identidade enganosamente contínua a partir
de um amontoado de poderes, apetites e ações descentradas. “Sessenta
milhas por hora” é apenas uma maneira arbitrária de partir o espaço e
o tempo em pedaços manejáveis, sem absolutamente nenhuma solidez ontológica. “Correndo para cima” é uma interpretação lingüística,
inteiramente relativa ao modo como o organismo humano e suas
percepções evoluíram historicamente. Mesmo assim, Nietzsche não seria cruel ou arrogante a ponto de sugerir que eu não saltasse para
fora do caminho (EAGLETON, 1997, p.147).
Nesse trecho, Eagleton se vale de um exemplo hiperbólico ao usar o elemento
bruto e banal de um caminhão vindo em sua direção. O humor reside no fato Eagleton
parecer estar descrevendo fielmente o pensamento do filósofo alemão, quando, na
verdade, nas últimas linhas, ele subverte, com um ar irônico, o pensamento do autor,
fazendo com que repensemos toda a sua descrição anterior como sendo uma sátira ou
caricatura86
– ridicularizando uma ideia filosófica, supostamente sofisticada e elevada,
como uma mera questão de adorno linguístico, que quer relativizar tudo, mas que não se
sustenta no mundo banal.
Outro exemplo que Eagleton também costuma usar é a associação de imagens da
alta cultura com elementos da cultura popular, esperando zombar da suposta
superioridade dessas ideias. Várias vezes Eagleton costuma misturar o pensamento de
um filósofo com o comportamento de um operário: “Though “ordinary” language is a
concept beloved of some Oxford philosophers, the ordinary language of Oxford
philosophers has little in commom with the ordinary language of Glaswegian dokers”87
(EAGLETON, 2008, p.4); ou utilizar um ícone da cultura pop para ilustrar seus
raciocínios: “Posso confundir Madonna com uma deidade menor, mas será que posso
estar enganado quanto aos sentimentos de reverência que isso me inspira?”
(EAGLETON, 1997, p.31). Esse intercâmbio entre o erudito e o popular, muitas vezes
usado por Eagleton, costuma misturar os níveis de cultura e gerar uma transição entre as
várias formas de linguagem e figuras culturais. O autor quer, assim, aproximar as
diferentes formas de simbolismos culturais, que são separados pelo controle
hegemônico de certos grupos, e assim desconstruir a própria diferença entre o que é
86 O que não garante que provoque o riso no leitor, pois, como observa Vladimir Propp (1992), o riso é tanto uma questão de estética quanto de psicologia do leitor. Nesse sentido, para perceber o efeito satírico é preciso que o leitor conheça as características parodiadas do autor alemão e o tipo de estilo humorístico do humor patrício conceitual inglês, diferente do estilo plebeu escrachado do humor latino. Portanto, buscamos aqui apenas focar no efeito estético que é causado pela caricatura e pela ironia. 87 Embora a linguagem “comum” seja um conceito muito ao gosto de certos filósofos de Oxford, a linguagem comum
dos filósofos de Oxford pouca relação tem com a linguagem comum das docas de Glasgow.
113
considerado como alta e baixa cultura, utilizando o sarcasmo e a zombaria como
ferramentas para quebrar a aura de sagrado que essas ideias podem tomar.
A partir do que foi exposto, podemos defender que o humor, para Eagleton, pode
funcionar de duas formas: em sua forma de utopia e em sua forma de subversão.
Defendemos assim que o humor em Eagleton vai além das concepções marxistas, que
apenas o consideram como algo fútil e alienador dos problemas sociais. Para esse
marxista em particular, o humor teria uma relação dialética com a tragédia humana,
sendo, assim, indissociáveis um do outro. Nessa perspectiva, usaremos as ideias de
Vladimir Propp, em Comicidade e Riso (1992), para demonstrar como se dá essa
relação da tragédia e do humor em Eagleton.
Para Propp, o riso de zombaria seria o riso empiricamente mais comum, e ele
ocorreria em dois tipos: o riso bom e o riso mau. Segundo o autor:
No riso bom, os pequenos defeitos daqueles que nós amamos só
embaçam seus lados positivos e atraentes. Se esses defeitos existem, nós os desculpamos de bom grado. No riso mau os defeitos, às vezes
mesmo só aparentes, imaginados ou inventados, são aumentados,
inflados, alimentando assim os sentimentos maldosos, ruins e a maledicência (PROPP, 1992, p.159).
O riso bom seria aquele em que o fator negativo do escárnio ou zombaria é
embaçado, diminuído ou suavizado, causando uma despreocupação, liberdade, alívio
para que se possa aproveitar o prazer da imagem mostrada sem culpa e sem repressão. O
riso mal, por sua vez, seria aquele em que um aspecto não evidente é trazido à tona para
causar zombaria excessiva a alguém ou algo, um riso que tem a função de atacar,
ridicularizar, tornar decadente algo ou alguém. Nessa perspectiva, se tomarmos essa
ideia de que o riso se baseia num “suavização de algo negativo”, podemos sistematizar
o funcionamento do humor em Eagleton sobre dois aspectos:
1. O Humor por meio de um exagero de um aspecto negativo. Nesse sentido, o
humor seria usado como algo subversivo, para desestabilizar os adversários,
algo que, como vimos, Eagleton usa contra os conservadores e contra os liberais
pós-modernos.
2. O humor utópico resultante de uma suavização de algo negativo. Ou seja, uma
sociedade em que se possa rir ou enxergar seus defeitos como algo prazeroso, é
reflexo de uma sociedade em que seus pontos negativos foram tornados leves a
114
ponto de suportarem positivamente esse fator. Esse fator está, assim, ligado
dialeticamente ao primeiro: o riso mal será ferramenta para gerar o riso bom.
Essas duas características compõem o fator humor, que constitui um dos
diferenciais de Eagleton em relação a toda uma herança marxista, carregada de
pessimismo e austeridade. Nesse sentido, podemos afirmar que as técnicas usadas em
sua primeira fase – hipérbole, antítese e sinédoque – permanecem no estilo de escrita
posterior, mas agora com um toque de humor e sarcasmo. Um novo estilo, que
corresponde, assim, a uma nova perspectiva teórica; a perspectiva de que uma teoria
revolucionária requer um estilo mais flexível, menos intransigente com a mudança, com
a subversão e com a utopia coletiva que o humor pode estruturar.
2.3.2.2 Popular
No mesmo ano em que lançou Criticism and Ideology (1976), Eagleton também
lançou seu primeiro livro popularizante: Marxismo e a crítica literária. Esse livro daria
início a uma longa carreira como escritor de livros que difundissem e esclarecessem
ideias tidas como complexas e/ou não tão notórias no meio acadêmico. Assim, com o
sucesso de Teoria da literatura: uma introdução, o crítico inglês nunca se afastou desse
tipo de escrita, de caráter pedagógico e esclarecedor. Todavia, isso não se restringiu
apenas aos livros teóricos ou aos temas abstratos. Eagleton também escreveu para
periódicos, como o London Review of Books, e jornais de grande circulação, como o
The Guardian, tanto fazendo resenhas de texto literários, quanto publicando textos
sobre “o por quê de ele não usar e-mail”. Além disso, Eagleton sempre esteve presente
em palestras, em atos públicos, discutindo ideias com as mais diversas plateias.
Podemos dizer que Eagleton, por entender, principalmente a partir do livro sobre
Benjamin, que o crítico deve fomentar um ambiente cultural para que o discurso possa
florescer amplamente na sociedade, compreende que os intelectuais, pelo menos os mais
radicais, devem ter uma preocupação com a forma com que escrevem e para quem
escrevem. Devem, assim, ter em mente a visão pedagógica e democrática que envolve o
ato de escritura. Para Eagleton, uma das tarefas mais vitais do intelectual socialista seria
“a resoluta popularização de ideias complexas, conduzida a partir de um meio de
comunicação que exclui a possibilidade do clientelismo e da condescendência”
(EAGLETON, 1991, p.105).
115
A despeito de todos os livros de caráter “pedagógico” lançados, Eagleton não
deixou de lançar livros de alta teoria. Alguns livros, como A ideologia da estética
(1990) e Sweet violence (2002), são textos que incitam um alto conhecimento, tanto de
conceitos quanto de certas linguagens, para que não haja perda de alguns de seus temas
críticos. Todavia, sua linguagem permanece clara e acessível. Portanto, o que Eagleton
quer propor, ao falar da escrita democrática do intelectual, não é que devemos
simplificar todas as questões, como defendem alguns de seus críticos, mas que se deve
evitar o obscurantismo teórico praticado por alguns intelectuais – obscurantismo esse
que é muitas vezes respaldado por uma lógica política, como acontece, por exemplo, no
estilo de alguns críticos pós-modernos. Segundo a perspectiva do crítico britânico,
haveria, para alguns críticos pós-modernos, um blurring, ou um borramento, das
fronteiras entre a escrita criativa e a escrita crítica. Assim, escrever em uma linguagem
comum seria aceitar a linguagem carregada por definições logocêntricas, e, para se
evitar esse closure metafísico, ou seja, esse enclausuramento de um sentido fixo, seria
preciso demonstrar, na própria crítica, que as palavras não são estáveis e não são
representativas, mas apenas um jogo de significantes sem centro; bem como que o
próprio ato de criticar é um ato de luta contra a instituição crítica. Assim, o estilo de
alguns críticos seria uma busca por uma anti-escrita, uma espécie de crítica que, ao
mesmo tempo em que tentasse explicar, dizer, narrar algo, mostraria a sua própria
fragilidade e arbitrariedade de fazê-lo.
Como vimos, Eagleton reconhece, em parte, os argumentos pós-estruturalistas,
e, por isso, utiliza o humor como uma ferramenta desconstrutiva e autoconsciente de sua
artificialidade. Mas isso não significa que tenhamos que esquecer completamente o
caráter dialogal entre o que se diz e o que se busca com isso, ou seja, não se buscaria
somente desconstruir, mas pensar, também, na reconstrução depois da desconstrução.
Certa dose de closure seria importante para que pudéssemos delimitar nossa identidade
em negação ao que opomos. É por isso que muitas vezes Eagleton se mostra hostil a
essa escrita exibicionista, típica de alguns textos de, por exemplo, Deleuze, Derrida e do
Barthes tardio. Em uma de suas recentes críticas, por exemplo, ele acusou Gayatri
Spivak, no livro dela Crítica da Razão Pós-colonial (1999), de possuir esse
obscurantismo típico dos autores pós-estruturalistas:
116
The second rule of this samizdat handbook reads: “Be as obscurantist as you can decently get away with.” Post-colonial theorists are often
to be found agonising about the gap between their own intellectual
discourse and the natives of whom they speak; but the gap might look
rather less awesome if they did not speak a discourse which most intellectuals, too, find unintelligible. You do not need to hail from a
shanty town to find a Spivakian metaphorical muddle like “many of us
are trying to carve out positive negotiations with the epistemic graphing of imperialism” pretentiously opaque
88 (EAGLETON, 1999,
p.3).
Eagleton é bastante severo com o estilo de Spivak, por considerar que ela toma
um objeto que seria “subalterno”, mas o diz de modo “elevado”, de tal forma que seria
uma escrita ininteligível para a própria comunidade que ela toma como objeto de
estudo. Nessa perspectiva, podemos afirmar que, apesar de Spivak ser pertencente a
uma corrente pós-colonial, esse elitismo linguístico não se restringe só às teorias ou
trabalhos contemporâneos – podemos citar, por exemplo, Adorno, um marxista que
também não se preocupava com um uso de uma linguagem acessível. Ratificando isso,
Martin Jay comenta que, em Adorno:
[...] sua própria forma de escrever visava deliberadamente a impedir a
recepção fácil por parte de leitores desinteressados. [...] Adorno se
recusava a apresentar suas idéias complexas e plenas de nuances de maneira simplificada. Acusando os defensores da comunicabilidade
fácil de minar a substância crítica daquilo que pretendiam comunicar,
ele resistia de modo vigoroso ao imperativo de reduzir pensamentos difíceis ao estilo coloquial da linguagem cotidiana (JAY, 1988 apud
PETRY, 2008, p.1).
Portanto, Adorno, ao contrário de Eagleton, vê, na escrita acessível, um
repositório de linguagem saturada por valores arbitrários. Nesse sentido, o que Eagleton
vê como escrita democrática, Adorno veria como escrita autoritária. O frankfurtiano não
quer aceitar essa auto-identificação entre o significante e o significado, pois para ele é
justamente por meio da negação dessa identidade que poderíamos refutar a aceitação
passiva e fácil da linguagem alienada. Seguindo essa ideia, Adorno afirma ainda, para
os que acham que a linguagem deve ser clara: “É-lhes inteligível só o que não precisam
de compreender; só o verdadeiramente alienado, a palavra cunhada pelo comércio, os
88 A segunda regra deste manual Samizdat lê-se: “seja tão obscurantista quanto você possa descentemente ir”. Teóricos pós-coloniais são frequentemente encontrados agonizando sobre a lacuna entre seu próprio discurso intelectual e os nativos de quem eles falam; mas essa lacuna pode parecer menos impressionante se eles não falarem em um discurso que muitos intelectuais também acham ininteligível. Você não precisa ser originário de uma favela para achar uma confusão metafórica spivakiana como “muitos de nós estão tentando esculpir negociações positivas
com o gráfico epistêmico do capitalismo” pretensiosamente opaco.
117
afecta como familiar que é”(ADORNO, 1993, p. 91). Todavia, é importante fazer uma
objeção a Adorno quando percebemos que nem sempre uma linguagem acessível é uma
linguagem autoritária. Eagleton, diferentemente de Adorno, entende que deve haver um
privilégio do conteúdo sobre a forma, pois, até que se criem condições materiais para
que os indivíduos possam desfrutar do jogo livre dos significantes e ter acesso aos
vários níveis de leituras possíveis e às diversas linguagens especializadas, é preciso que
eles reconheçam a própria realidade alienada e contraditória em que vivem – e isso
requer, segundo Eagleton, uma linguagem que seja pedagógica e acessível, e que,
necessariamente, possua certo nível de auto-identidade, mesmo que passageira. Isso não
quer dizer, todavia, que para Eagleton toda a linguagem deve ser auto-idêntica, nem que
a crítica deveria ser palatável. Para ele, há um excesso, tanto na popularização quanto na
erudição. Nesse sentido, ele afirma:
Mas dizer que não devemos escrever de forma obscura deliberada e
intencionalmente não significa afirmar que devamos sempre fáceis de ler. [...] Mas devemos lembrar que aqueles que reagem desse modo
consumista – “se não descer direto, é indigerível” – nunca dirão a
mesma coisa sobre, por exemplo, um livro-texto de engenharia. E, assim como na engenharia, há um conjunto específico de habilidades e
linguagens que deve ser aprendido para que a teoria da literatura seja
entendida. O que estou dizendo é que o populismo não precisa ser a
única alternativa ao elitismo. Quando o jargão significa uma linguagem interna obscura, ele é politicamente questionável. Mas se o
jargão também pode se referir de maneira adequada a um idioma
inevitavelmente especializado acho que devemos fazer a distinção entre esses dois sentidos diferentes do termo (EAGLETON, 2010
p.222).
Há de se saber, assim, diferenciar entre o obscurantismo deliberado e a
necessidade de lidar com um idioma especializado. Eagleton se mostra, assim, contrário
à ideia de que intelectuais renomados não tomem como responsabilidade as
consequências de sua carência de inteligibilidade; carência essa que pode criar uma
espécie de engessamento teórico, inviabilizando assim a práxis entre a teoria e a prática
literária e cultural.
2.3.3 O eagletonismo
O estilo de Eagleton é marcado pela polêmica. Isso pode se justificar pelo fato
de ele não se adequar nem à erudição objetiva, polida e abstrata das monografias
118
acadêmicas, e nem à retórica ornada, fragmentária e obscura dos ensaios dos críticos
pós-estruturalistas. Nesse sentido, veremos algumas críticas comuns ao estilo do
pensador inglês, que normalmente é condenado por ser redutor, caricatural e
oportunista.
Os que criticam o estilo de Eagleton por ser redutor são os que, como Adorno,
Spivak e Judith Butler89
, compreendem que um conhecimento complexo requer uma
forma de expressão complexa. Entende-se, assim, que Eagleton, ao fazer os seus livros
pedagógicos ou tentar escrever de forma acessível, estaria, para alguns – como os
acadêmicos elitistas – , simplificando coisas que são extremamente complexas, e para
outros – como alguns pós-estruturalistas – , ele estaria, ao usar uma linguagem “clara”,
compactuando com a falsa noção de que as palavras podem ser reflexo de um
conhecimento ou realidade – o que, como mostramos, demonstra certo exagero e
elitismo por parte desses críticos.
Uma segunda crítica afirma que Eagleton faz uma caricatura daquilo que não
concorda. Para esses críticos90
, o pensador inglês, por meio de uma retórica elaborada,
parece estar apresentando a obra de um autor fielmente, mas apenas a usa como motivo
para mostrar aquilo com o que não concorda na perspectiva do autor, ou, às vezes,
seleciona as partes do que não lhe interessa e generaliza, como se essas fossem um
ponto chave em toda a obra. Nesse sentido, poder-se-ia argumentar que muitas vezes o
fator humorístico e/ou o fator pedagógico realmente comprometem a complexidade da
apresentação de algumas teorias. Desse modo, o humor, pelo seu caráter subversivo,
tende a abusar da imagem de um autor ou de uma ideia para gerar certos efeitos de
linguagem, com interesses políticos, e, de forma paralela, a exposição didática, pelo fato
de selecionar ideias que acha relevante explanar, acaba por dar uma visão singular de
um objeto. Assim, Eagleton tenta expor a teoria do autor ou de uma corrente, mas ao
invés de fazê-lo de forma “neutra” ou estéril – ele nem acredita que isso seja possível – ,
sempre o faz associando-a aos seus interesses teóricos, como o marxismo ou a
psicanálise. Para Eagleton: “The idea that there are ‘non-political’ forms of criticism is
simply a myth which furthers certain political uses of literature all the more
89 Judith Butler responde no mesmo website a crítica de Eagleton a Spivak, seguindo a mesma linha de Adorno e acusando Eagleton de aceitar a passividade da linguagem autoevidente, alienada no comércio do já dito. 90 Como, por exemplo, Roger Kimball (1990), Willy Malley (1991), Selma Miller e Richard Freadman (1992) e Julio
Pereira (2006).
119
effectively”91
(EAGLETON, 2008, p.182). Isso significa que Eagleton é ciente de que
suas análises são têm interesses maiores ou políticos, mas, ao contrário do que seus
críticos dizem, defendemos que ele consegue sim muitas vezes observar também os
aspectos positivos de seus oponentes. Podemos citar como exemplo a crítica de
Eagleton a Raymond Williams, em Criticism and Ideology, em que, apesar de
considerar seus avanços para com o leavianismo92
, critica Williams pelo seu populismo
e idealismo. Outro exemplo seria seu elogio crítico a Walter Benjamin, no livro
homônimo, em que apesar de considerá-lo como um precursor da questão da
subjetividade e da fragmentação da sociedade moderna, ao mesmo tempo o critica pelo
seu idealismo cabalístico e estilo melancólico.
Podemos afirmar, que esse discernimento de Eagleton, ao considerar
duplamente, em um autor ou ideia, as características úteis e problemáticas ou as perdas
e ganhos, faz com que muitos críticos radicais o avaliem como reformista. Da mesma
forma, o fato de Eagleton ser cômico ou de tentar sempre defender conceitos de acordo
com a necessidade histórica, faz com que muitos também o considerem como um
oportunista ou como alguém que esquece ou se arrepende do que defendera outrora.
Desse modo, ele é considerado, em alguns momentos, como inseguro, por parte dos
conservadores, e traidor, por parte dos radicais. Um exemplo disso é a crítica de Julio
Pereira à mudança de Eagleton, dos anos 80 para os anos 90, sobre o conceito de
literariedade. Segundo Pereira: “esquecido – ou arrependido – de sua própria proposta,
Eagleton não vê com simpatia as teorias culturais que dissolvem a especificidade da
literatura” (PEREIRA, 2006, p.141). Poderíamos dizer que esses termos “esquecido” ou
“arrependido” estão deslocados, se observarmos que Eagleton na verdade defendia uma
“certa” maleabilidade da especificidade literária, pois, naquele período dos anos 80, as
universidades – e, vale ressaltar, as britânicas em especial – estavam sobrecarregadas
por um cânone intransigente, que excluía as outras manifestações artísticas e elevava
certos textos à categoria especial de literatura. Podemos entender, então, o radicalismo
de Eagleton contra esses autoritarismos universitários. Anos depois, todavia, houve um
radicalismo oposto, em que qualquer especificidade era considerada como um construto
abstrato e não como uma realidade sociolinguística e cultural, fazendo com que nada
91 A ideia de que há formas “apolíticas” de crítica é simplesmente um mito que estimula certos usos políticos da
literatura com eficiência ainda maior. 92
Corrente crítica originada pelo crítico literário inglês F. R. Leavis, que defendia, entre outras coisas, uma análise
cerrada no texto literário.
120
fosse “literário”, o que fez Eagleton repensar se a literariedade não possuía fatores
progressivos. Nesse sentido, vemos que Eagleton está sempre adaptando suas ideias aos
novos desafios históricos, algo que provoca ojeriza por parte de certos conservadores de
direita e de esquerda. Há, assim, nesses conservadores, uma falta do pensamento
dialético e da práxis marxista, que, em uma época de corporativismo acadêmico, faz
certos autores considerarem Eagleton, em alguns trabalhos, como extremista e, em
outros, como moderado. Sendo assim, não há, nesses trabalhos, a ideia de que devemos
considerar os esquemas teóricos em consonância com as necessidades históricas e os
objetivos propostos de acordo com essas.
Como defende James Smith (2008): não há uma escola eagletiana, no sentido de
uma teoria ou um método peculiar – asserção com que concordamos ao observar que
Eagleton, após Criticism and Ideology, recusa-se a criar um método que possa
enclausurar os fenômenos literários, e defende a ideia de que, mesmo que tenhamos
boas sistematizações teóricas, essas só podem ter uma função vital na crítica se
estiverem em consonância com a prática e com o contexto social em que são
empregadas. Contudo, apesar de Eagleton estar sempre adaptando e rearticulando sua
teoria aos novos desafios teóricos, há algumas características estilísticas que estão bem
sedimentadas em sua crítica, como a polêmica, a transdisciplinariedade, o humor e a
clareza.
O estilo polêmico deriva de sua propensão ao exagero e à hipérbole, devido a
sua impaciência com a indiferença às privações humanas; além disso, seu engajamento,
suas leituras não neutras e interessadas também geram certo desconforto e a famosa
polêmica de seu trabalho. O segundo aspecto, a sinédoque, por sua vez, acaba por
sempre alçar a teoria para além da especificação dos discursos e dos campos
acadêmicos, o que faz com que Eagleton sempre exceda os limites da teoria literária
“pura” e busque ir além das fronteiras entre disciplinas – dai sua transdisciplinariedade.
O humor, no âmbito acadêmico e no âmbito marxista, também não deixa de ser
polêmico. O que Eagleton defendeu, apoiado também por Perry Anderson, é que o
marxismo ocidental apropriou-se de uma característica comum dos críticos literários
conservadores, o tom sério, pessimista, que não permite a contradição e a subversão –
questões essas que a comédia pode trazer para os pensamentos engessados. O humor, se
bem usado, não é apenas um escape dos temas sérios e importantes, mas uma forma de
se lidar com esses mesmos, sem perder, no entanto, a utopia, que seria uma sociedade
121
de prazer, e o riso, não de opressão ou de tragédias. Por fim, a clareza, como vimos, é
uma característica da escrita de Eagleton da qual ele não abre mão, posto que ele
considere essa como um aspecto democrático e progressivo. Ele entende que a
linguagem não é clara como um espelho e que é um artífice construído, mas procura
evitar o exagero de desconsiderar os usos materiais da linguagem, feitos pela sociedade,
que servem de padrão para que essa funcione com um mínimo inteligível em uma
determinada comunidade. A escrita acessível também ajuda na conscientização daqueles
que são excluídos, dando, àqueles que não têm condições materiais para desenvolver
altos graus de leituras de mundo e leituras teóricas, o acesso à cultura e ao discurso
acadêmico. Sendo assim, popularizar temas não é apenas uma forma pedagógica, mas
uma maneira de impedir que as distorções discursivas possam inviabilizar a mudança de
parâmetros de opressão e controle por uma minoria da sociedade; o que, nesse sentido,
seria uma das tarefas do crítico radical.
Somado esses quatro elementos, podemos entender o porquê do sucesso de sua
escrita dos anos 80. Claro que não defendemos que tudo é uma questão de estilo. Há
também méritos teóricos, analíticos e até editoriais envolvidos. Mas, como vimos, o
estilo também é um fator que contribuiu para que, por exemplo, Teoria da literatura:
uma introdução vendesse milhões de livros ao redor do mundo. Com uma escrita
polêmica e humorada, Eagleton consegue chamar a atenção dos leitores, que esperam
uma certa condescendência e comedimento da escrita acadêmica, mas acabam
surpreendidos com esses elementos. Com uma escrita clara e transdisciplinar, ele
consegue angariar leitores de outros campos do saber, pelo jeito diferenciado, mais
aberto a outros discursos, como ele usa diversos elementos, a priori, especializados.
Defendemos, assim, que o fator estilístico é essencial para a escrita de Eagleton, e que,
apesar de muitas vezes escrever sobre temas diversos, era de se esperar que um crítico
de formação em letras tivesse uma atenção especial com seu estilo.
122
3. PARA UMA CRÍTICA REVOLUCIONÁRIA
Na passagem dos anos 70 para os anos 80 vimos que houve uma mudança na
perspectiva crítica eagletiana devido a fatores históricos, como o estabelecimento do
capitalismo avançado como modo de produção mundial, que causou uma desilusão
prática e teórica dos projetos socialistas. Além disso, houveram fatores teóricos,
ocasionados pelos novos desafios dos pós-estruturalistas ou, como define Miller e
Freadman (1992), dos construtivistas anti-humanistas93
, e também fatores estilísticos,
como a percepção de Eagleton de que a crítica poderia ser mais ousada, inventiva, e
menos austera e pessimista.
A mudança de Eagleton pode ser percebida em seu livro Walter Benjamim:
towards a Revolutionary Criticism (1981); texto em que ele explica: “the book marks a
development from my Criticism and Ideology (NLB, 1976), which was less overtly
political in timbre and more conventionally in style and form”94
(EAGLETON, 1981,
Prefácio). Assim, vemos que, devido ao surgimento de vários fatores dentro do
socialismo nos anos 80, o foco de análises literárias marxistas, que era mais voltado
para uma análise conceitual ou para uma leitura textual, passou a focar nos problemas
de produção cultural e de usos políticos dos produtos sociais. Portanto, entendemos que
o projeto crítico de Eagleton, nos anos 80, pode ser descrito como uma percepção de
que a esquerda se apartou dos movimentos sociais e dos contextos de luta de massa para
se enclausurar nos seus próprios discursos especializados, construindo e julgando
conceitos longe da realidade e das necessidades empíricas sociais. Além disso, o crítico
inglês tomou consciência de que a crítica marxista ocidental, por seu caráter austero e
pessimista, perdeu a percepção do humor e da esperança como fatores revolucionários e
produtivos. Nesse sentido, são sobre estas duas premissas, a ideia da teoria relacionada
à atuação prática e do humor como revolução, que procuraremos sistematizar o projeto
crítico de Eagleton dos anos 80.
Iniciaremos a análise observando como o próprio Eagleton resume, anos depois,
sua proposta teórica:
93 Termo cunhado por Freadman e Miller (1992), que afirmam que essa linha, compartilhada tanto por certos desconstrutivismos como marxismos, questionaria a ideia de sujeito individual, negaria o poder referencial da linguagem e dos textos literários, e desprezaria os discursos essenciais de valor, tanto morais quanto estéticos. 94 O livro marca um desenvolvimento do meu Criticism and Ideology (NLB, 1976), que era menos abertamente
político no timbre e mais convencional em estilo e forma.
123
Drawing upon the example of Walter Benjamin, it sought to diversify Marxist theory with its opening towards feminism and some aspects of
post-structuralism; to deconstruct – both in its form and content –
objectionably monolithic versions of such theory; to broach questions
of cultural politics, and to recover in both style and theme a pleasure and playfulness which could not be grimly deferred until theory had
done its work, but which, as for Brecht and Bakhtin, were part of the
here and now95
(EAGLETON, 1988, p.6).
A partir de suas ideias, podemos conjecturar que, para Eagleton, o marxismo
ocidental estava cristalizado em concepções monolíticas a respeito da prática crítica, e
era preciso mudar isso: abrir-se para questões como a subjetividade da experiência,
assim como a busca por uma heterogeneidade que não pudesse ser sempre formalizada e
uma percepção de que, mesmo os dogmas da esquerda, devem e podem ser invertidos
dependendo da urgência histórica. Nessa perspectiva, se para muitos pós-estruturalistas,
como vimos anteriormente, o marxismo era uma espécie de positivismo que
enclausurava a diferença em nome de verdades ou fins sociais, para os materialistas
históricos, como Eagleton, qualquer proposta crítica que não resguardasse um pouco de
imperativos voltados para uma ação libertadora, poderia acabar inviabilizando a prática
e contribuindo para a manutenção do poder hegemônico vigente, que seria a ideologia
liberal típica do capitalismo global.
Defendemos, assim, que crítica, para Eagleton, deixou de ser uma busca por
relações textuais ou uma análise da estruturação simbólica dos textos, como fora em
Criticism and Ideology, e passou a ser, nos anos seguintes, uma crítica voltada para a
ação social, que realmente buscasse intervir no debate público e não ficasse retida ao
discurso especializado. Para o autor, deveríamos, portanto, seguir o exemplo de
Benjamin e também de Brecht, que conseguiram defender uma percepção teórica da
diversidade e da pluralidade social sem perder o conteúdo político e sem se afastar da
prática cultural. Nesse sentido, o que Eagleton tentou fazer nos anos 80 foi mostrar
perdas e ganhos da teoria literária oriunda da esquerda marxista, que se afastou da
prática social e foi incorporada pelos pós-marxismos e estruturalismos de caráter liberal.
No que concerne à arte e ao campo da estética, para Eagleton, o marxismo
ocidental sempre se manteve parte em certos elitismos e parte em certos idealismos,
95 Inspirando-se no exemplo de Walter Benjamin, esse trabalho procurou diversificar a teoria marxista com a sua abertura para o feminismo e alguns aspectos do pós-estruturalismo, tentou desconstruir –em sua forma e conteúdo – as versões objetavelmente monolíticas de tal teoria, para abordar questões de política cultural e para recuperar em estilo e tema um prazer e diversão que não poderia ser severamente adiada até que a teoria tenha feito o seu trabalho,
mas que, para Brecht e Bakhtin, faziam parte do aqui e agora.
124
devido sua separação da prática revolucionária de massas, e um exemplo disso, para o
teórico britânico, foram as críticas de Georg Lukács e Theodor Adorno, pois, se, por um
lado, Lukács defendia uma forma de realismo hegeliano que poderia representar a
totalidade, por outro, teóricos como Adorno invertiam a polaridade hegeliana, levando a
negação do realismo a um extremo que silencia qualquer forma progressista que o esse
poderia possuir. Desse modo, para o crítico inglês:
If Lukács seeks to correct ideological error with full blast of the
“real”, Adorno aims more and more to outflank and embarrass it by
the guerrilla tactics of a discourse that deconstructs the rash positivity
of another speech into negativity so dire as to threaten to vanish into its own dialectical elegance
96 (EAGLETON, 1981, p.90).
Nessa perspectiva, a crítica estética adorniana se mostraria, analogamente, como
um texto moderno e pós-moderno, em que se deveriam negar estas asserções
opressivamente “positivas” da crítica realista lukacsiana. Desse modo, ambas as ideias,
em suas polaridades, perderiam, segundo Eagleton, o senso da dialética marxista, ou
seja, o entendimento de que a arte está em constante mudança e que deve se adequar a
necessidade de seu tempo. Nesse sentido, Eagleton afirma:
the profundity of Lukács’s work on the historical novel and the
brilliance of Adorno´s insights into modernism are inestimable gains for Marxist theory; but they cannot be dissociated from their
impoverishing political moments97
(EAGLETON, 1981, p.93).
Isso vale, assim, segundo o pensador britânico, para muitos dos estetas marxistas
do século XX, como Jean P. Satre, Herbert Marcurse, Pierre Macherey, Louis Althusser,
Fredric Jameson e até o seu próprio Criticism and Ideology. Para o autor britânico,
excetuando-se Bakhtin e Gramsci, que, apesar de escreverem em tempos em que a luta
de classes estava em baixa, conseguiram ser revolucionários em seus escritos, todos
esses teóricos produziram seus trabalhos muitas vezes em tempos em que a luta de
classes estavam em baixa ou foram temporariamente suprimidas e levaram essa
desilusão, austeridade e falta de alternativas práticas para suas teorias.
96 Se Lukács visa corrigir erro ideológico com o exagero do “real”, Adorno visa cada vez mais flanquear e envergonhá-lo pelas táticas de guerrilha de um discurso que desconstrói a ousada positividade de um outro discurso em negatividade tão terrível a propósito de ameaçar-se a desaparecer em sua própria elegância dialética. 97 A profundidade da obra de Lukács sobre o romance histórico e o brilho de ideias de Adorno sobre o modernismo são ganhos inestimáveis para a teoria marxista, mas eles não podem ser dissociados de seus momentos políticos
empobrecidos.
125
Um reflexo desse afastamento das massas na crítica contemporânea, para
Eagleton, seria o desconstrutivismo. Nesse âmbito, nos anos 80, segundo o autor inglês,
o mundo estaria em baixa, no que se refere à luta de classes, e, com isso, a
desconstrução incorporaria esse fator social e político em algum nível na sua escrita.
Assim sendo, haveria duas posições na corrente desconstrucionista: uma reformista, que
seria a “direita” da corrente, pois, ao entenderem a razão como uma forma de
arbitrariedade linguística e serem contra o fechamento das ideias em caráter universal,
silenciariam os fatores políticos libertadores e acabariam por deixar isento de crítica o
poder hegemônico social; a outra posição seria a ultra esquerdista – que seriam os
“radicais” da corrente, segundo Eagleton – , que mostraria a “loucura” e “violência” da
desconstrução, que estariam sempre a postos para desestabilizar as semioses e os
sistemas e, com isso, defender a pluralidade ilimitadamente. Desse modo, por Eagleton
entender que essas as correntes teorizavam distanciadas dos movimentos de massa de
libertação social, colocando a filosofia antes da política, a desconstrução acabaria por
inviabilizar uma ação prática no que concerne a crítica cultural. Isso não quer dizer,
todavia, que, se bem orientada, essa não poderia contribuir largamente para a
manutenção de certas políticas marxistas. Nesse sentido, observa Eagleton:
That deconstruction, as a particular set of textual procedures, can
operate as a radical force is surely undeniable. What is at question is the appropriation of such insights and procedures in ways that
objectively legitimate bourgeois hegemony”98
(EAGLETON, 1981,
p.140).
Assim, Eagleton entende que, apesar de todos os avanços da desconstrução, e
podemos incluir aí parte da crítica marxista ocidental, na prática, suas ideias não
constituem uma ação crítica revolucionária. Para contribuir com fim dessa limitação, ele
propõe um retorno às ideias de Benjamim, Brecht e das vanguardas da república de
Weimar, pois, para o autor, muitas das proposições da desconstrução já tinham sido
trabalhadas por esses, mas de forma a não se perder o caráter revolucionário e prático de
suas proposições.
Segundo Eagleton, em seu livro Walter Benjamin, essas ideias da república de
Weimar se coadunavam com várias tradições da esquerda, como o pensamento
98 Que a desconstrução, como um conjunto particular de procedimentos textuais, pode operar como uma força radical é certamente inegável. O que está em questão é a apropriação de tais ideias e procedimentos em maneiras que a
hegemonia burguesa objetivamente legitima.
126
primordial de Karl Marx na décima primeira tese sobre Feuerbach – de que os filósofos
só interpretaram o mundo de maneira diferente, e que devemos, porém, muda-lo – ,
ecoando também nas proposições de Antonio Gramsci de que a principal meta da crítica
marxista não é interpretação de textos, mas emancipação cultural das massas, e na ideia
de Vladimir Lenin, de que uma teoria revolucionária correta apenas assume sua forma
final em íntima conexão com a atividade prática de um verdadeiro movimento
revolucionário e de uma verdadeira massa revolucionária. Logo, é com base nesses
imperativos que Eagleton propõe o que deveria ser feito para que uma crítica literária
pudesse ser revolucionária.
No entanto, isso não quer dizer que Eagleton queria abandonar totalmente os
projetos teóricos em função de uma prática social. Para ele, a relação seria dialética, em
que a prática sempre se torna a consciência da teoria. Nesse sentido, as críticas de
Lukács, de Adorno, e até mesmo as ideias de Criticism and Ideology, têm seu valor e
são necessárias para uma crítica marxista que procure analisar a história de dominação
simbólica ou desconstruir os discursos hegemônicos em suas representações literárias.
Entretanto, para o pensador britânico, isso: “merely adress new answers to the same
object”99
(EAGLETON, 1981, p.97); ou seja, essas teorias e críticas não rompem
decisivamente com o modo típico de crítica burguesa que ficaria “satisfeita” em apenas
restringir-se ao campo dos discursos especializados. Seguindo esse argumento,
Eagleton, então, entende que a crítica literária acadêmica, nos moldes que foram
produzidas ao longo do século XX, faz parte de um processo histórico de divisão do
trabalho, em que a crítica, no âmbito teórico, era viavelmente possível, separada de sua
influência prática social.
Há, nessa perspectiva, uma similaridade entre as ideias de Eagleton e o conceito
de “intelectual” para Antonio Gramsci, um dos primeiros teóricos a perceber e
sistematizar em conceitos essa contradição entre teóricos e o seu meio social. Para
Gramsci, os intelectuais podem ser compreendidos sobre duas perspectivas: os
intelectuais orgânicos e os tradicionais. Os primeiros tentariam fazer uma ponte entre a
filosofia e o popular, a teoria e a prática. O intelectual seria, assim, menos um
intelectual de laboratório e mais um ativista, participante ativo na vida cultural e nas
decisões da sociedade civil. Ele buscaria dar unidade e coerência teórica às experiências
da sociedade. Os últimos – os intelectuais tradicionais – , por sua vez, seriam exemplo
99
Meramente endereça novas perguntas para o mesmo objeto.
127
da presunçosa independência para com a vida cotidiana e a sociedade civil, como, por
exemplo, os filósofos idealistas e os eclesiásticos. Assim sendo, para Gramsci, essa
suposta autonomia dos intelectuais poderia ocasionar sérios problemas políticos:
Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais sentem com “espírito de gripo” sua ininterrupta continuidade histórica e sua
“qualificação”, eles consideram a si mesmos como sendo autônomos e
independentes do grupo social dominante. Esta autocolocação não
deixa de ter consequências de grande importância no campo ideológico e político: toda a filosofia idealista pode ser facilmente
relacionada com esta posição assumida pelo complexo social dos
intelectuais e pode ser definida como a expressão desta utopia social segundo a qual os intelectuais acreditam ser “independentes”,
autônomos, revestidos de características próprias, etc. (GRAMSCI,
1982, p.5).
Nesse sentido, se pudéssemos transportar essas ideias gramiscianas dos
intelectuais para a nossa discussão sobre a crítica literária revolucionária, poderíamos
dizer que o que Eagleton está tentando identificar na crítica literária radical (marxista e
desconstrutivista) é uma tendência de certa parte dessa crítica a se colocar como os
intelectuais tradicionais, e que, apesar de seus esforços teóricos e discursivos, haveria
uma carência na esquerda de críticos literários “orgânicos”, que realmente pudessem ir
além da pseudoautonomia discursiva a fim de dialogar com a sociedade civil.
Para o autor britânico, essa carência de críticos literários “orgânicos” era, nos
anos 80, tão flagrante que, em seu livro de 1984, A função da crítica, ele afirma que:
“Este livro defende a tese de que a crítica atual perdeu toda sua relevância social”
(EAGLETON, 1991, p.1). Entretanto, para o teórico marxista, nem sempre a crítica teve
esse papel inexpressivo na sociedade, e, se hoje ela está assim, isso se deve, de um lado,
pela cisão das relações entre a sociedade e a academia, e, do outro, pela cooptação das
instituições literárias pela indústria literária. Vemos então que nesse livro Eagleton
tentou mostrar que a crítica literária teve relevância social apenas quando ia além de seu
discurso especializado e estava envolvida com uma crítica da cultura em si. Segundo
Eagleton, um exemplo disso, na Inglaterra, seria a crítica literária do século XVIII, que
serviu como fomentadora de uma política cultural contra a monarquia e a aristocracia; e,
do século XIX, uma crítica voltada para a moralidade pública de uma sociedade
industrial burguesa. Portanto, seria apenas a crítica do século XX que, para Eagleton,
teria se reduzido a uma questão meramente de crítica de literatura.
128
Nessa perspectiva, baseado na ideia de Jürgen Habermas de “Esfera Pública”,
explicitada no livro A Mudança Estrutural na Esfera Pública (1962), Eagleton afirmaria
que a crítica literária sempre se estabeleceu por meio dessa esfera pública, que, segundo
ele, abrangeria o domínio das instituições sociais pelos quais os indivíduos se reuniam
e, com base em um discurso racional, deliberavam sobre assuntos, tornando-se assim
uma força política. Contudo, segundo o autor, na Inglaterra do século XIX, com o
avanço do modo de produção capitalista, o discurso do crítico privilegiado,
representante das paixões da sociedade ou repositório de valores culturais, começou a
não mais representar uma sociedade não muito consensual em uma esfera pública, pois
esse consenso teria sido dividido por interesses de classes e objetivos diversos. Essa
esfera pública, assim, começou a ruir, fazendo com que, por um certo período do século
XIX, a crítica buscasse como solução sempre retomar esse modelo consensual e
totalizante. Sobre isso, Eagleton descreve o crítico literário do século XIX:
Ele deve reinventar ativamente uma esfera pública fragmentada pela
luta de classes, pela ruptura interna da ideologia burguesa, pelo
crescimento de um público leitor confuso e amorfo, ávido por informação e incentivo, pela continua subversão da opinião “polida”
por parte do mercado comercial, e pela explosão e fragmentação
aparentemente incontroláveis dos conhecimentos provocados pelo aceleramento da divisão do trabalho intelectual (EAGLETON, 1991,
p.41).
Assim, com o surgimento dessas novas configurações sociais, seria uma missão
homérica para o crítico um conhecedor geral da cultura que não possuía especialização,
conseguir ter legitimidade para dar conta dos anseios de uma sociedade cada vez mais
segmentada e especializada. A partir disso, a crítica literária começou a fomentar formas
especializadas de discursos, que não mais versavam de forma consensual e geral sobre a
cultura e a sociedade. Precisando de algo que superasse o amadorismo e o generalismo
dos críticos anteriores, a crítica começou a institucionalizar-se nas universidades. Desse
modo, para Eagleton, a crítica, ao procurar resolver esses problemas na universidade,
obteve uma base institucional e uma estrutura profissional, mas sob pena de se apartar
do domínio público: “A crítica alcançou a segurança cometendo suicídio político; seu
momento de institucionalização acadêmica é também o momento de seu efetivo
desaparecimento enquanto força socialmente ativa” (EAGLETON, 1991, p.58).
129
Nesse sentido, isso resultou na corrente teórica Crítica Prática inglesa, que
buscava utilizar o cientificismo, aparentemente técnico e universal, para dar
legitimidade a uma crítica literária que não podia mais se sustentar falando em nome de
toda multiplicidade de interesses da sociedade. Sendo assim, aliado a uma lógica
utilitarista capitalista, houve uma crescente segmentação do conhecimento, e a crítica
estava, assim, incorporando-se cada vez mais à indústria cultural ou se enclausurando
nas academias, de modo que, ao longo do século XX a crítica se tornaria, para Eagleton,
infimamente: “como um punhado de indivíduos criticando mutuamente seus próprios
livros” (EAGLETON, 1991, p.99). Nesse sentido, os críticos se nutriam, dentro de suas
áreas e temas de pesquisa, para legitimar certas tendências e escritores. Tal como a
literatura pós-moderna, esse tipo de crítica aparentaria ser uma forma de discurso que
quase inteiramente se autovalidaria e se autoperpetuaria, sem questionar sua própria
função social, tomando como natural o exercício de uma crítica muitas vezes sem
nenhum propósito especifico – como, por exemplo, estudar as imagens de um poema
por si só, ou fazer uma crítica dissociada da dinâmica social, criticar a poesia visual com
o mesmo olhar de uma poesia escrita, por exemplo.
A solução de Eagleton para esse isolamento crítico seria, assim, a criação de
uma contra-esfera pública, uma espécie de ambiente social institucional, educativo e
cultural popular, em que discursos diferentes e ditos marginais possam circular e serem
discutidos igualitariamente. Assim, para ele, isso não seria uma utopia esquerdista,
tendo em vista que esse tipo de contra-esfera pública existiu nos anos 30 na Alemanha
de Weimar. Desse modo, Eagleton afirma que:
Para que tal concepção não seja descartada como uma fantasia da
esquerda acadêmica, uma breve referência a uma situação histórica
talvez se faça necessária. Na república de Weimar, o movimento da classe trabalhadora não era apenas uma formidável força política;
estava também equipado com teatros, corais, clubes e jornais, centros
de lazer e foros sociais próprios. Foram essas as condições que
ajudaram a tornar possível um Brecht ou um Benjamin e a modificar o papel do crítico, que passou de intelectual isolado a funcionário
político (EAGLETON, 1981, p.104).
Nesse âmbito, a ideia de contra-esfera pública demonstra qual deveria ser a
função do crítico literário revolucionário, que, ao exemplo de Benjamim e Brecht, não
era apenas a de intelectual isolado ou tradicional, mas a de pessoa engajada no
130
desenvolvimento de um ambiente cultural social. Para Eagleton, a função do crítico
marxista seria participar ativamente e contribuir diretamente na emancipação cultural
das massas. Ele deveria, assim, tomar parte e ajudar a organizar oficinas de escritores,
teatros populares e estúdios de artistas, envolver-se nos projetos de design e arquitetura,
bem como na transformação dos aparatos educacionais e culturais; enfim, tudo que
poderia contribuir para uma qualidade da vida cotidiana, do discurso público à
“consumação” doméstica, ou seja, tudo o que preconizavam as vanguardas de Weimar e
os bolcheviques. Assim, por mais que haja diferenças de situação histórica, para
Eagleton, existem algumas responsabilidades que vêm sendo tacitamente recusadas pela
teoria cultural – e seria justamente isso que daria origem a essa atual condição da crítica
literária marxista, isolada nas academias ou subserviente à indústria cultural.
Destarte, Eagleton não quer renegar toda ideia de teoria, mas, como vimos, para
ele, pelo menos nos anos 80, a relação entre prática cultural e teoria cultural se portava
de maneira mais tendenciosa para a última. Assim sendo, no que concerne à crítica
literária – que, por tratar de objetos “superestruturais”, teria uma tendência a ser
autônoma das massas – , Eagleton não acredita que ela deva ficar confinada à academia.
Ele então descreve a forma que uma “crítica literária revolucionária” deveria assumir:
It would dismantle the ruling concepts of “literature”, reinserting
“literary” texts into the whole Field of cultural practices. It would strive to relate such “cultural” practices to other forms of social
activity, and to transform the “cultural” practices to other forms of
social activity, and to transform the cultural apparatuses themselves. It
would articulate its “cultural” analyses with a consistent political intervention. It would deconstruct the received judgments and
assumptions; engage with the language and “unconscious” of literary
texts, to reveal their role in the ideological construction of the subject; and mobilize such texts, if necessary by hermeneutic “violence”, in a
struggle to transform those subjects within a wider political context100
(EAGLETON, 1981, p.98).
Essas ideias de Eagleton são bastante sugestivas, no entanto, como todo
conteúdo programático, há um questionamento de como realiza-las na prática. Nesse
100 Ela iria desmantelar os conceitos dominantes da “literatura”, reinserindo os textos “literários” em todo o campo das práticas culturais. Ele iria se esforçar para relacionar tais práticas “culturais” com outras formas de atividade social e transformar as práticas “culturais” em outras formas de atividade social e transformar os aparatos culturais. Ela iria articular suas análises “culturais” com uma intervenção política consistente. Iria desconstruir os julgamentos e premissas recebidas; se envolver com a linguagem e o “inconsciente” de textos literários, para revelar o seu papel na construção ideológica do sujeito e mobilizar tais textos, se necessário, por uma “violência” hermenêutica, em um
esforço para transformar esses temas dentro de um contexto político mais amplo.
131
sentido, o que se torna bastante sugestivo na obra de Eagleton, a partir dos anos 80, é
sua ausência de sistematização ao assumir a ideia da dialética e da práxis (prática como
a consciência da teoria). Eagleton não mais tenta organizar ou formalizar uma análise,
como o fizera em seu método cientifico anos antes. Por outro lado, ele teoricamente
sabe “o que” se deve fazer, mas sempre deixa o “como” para que os críticos em
diferentes contextos e situações históricas possam explorar os efeitos dessas ideias de
forma revolucionária. Eagleton se encontra, assim, no meio de duas fronteiras: por um
lado, tenta escapar da ortodoxia da época na crítica marxista que tende a sistematizar e
definir a crítica literária; e, por outro, tenta resistir ao impulso desconstrucionista de
tudo relativizar. Desse modo, para solucionar essa questão, Eagleton tenta usar os
imperativos marxistas – como, por exemplo, a ideia de que é preciso liberar
culturalmente os homens e mulheres das opressões de uma minoria burguesa – , mas
deixa sempre seu uso ao acaso da dialética da prática, e, dessa maneira, meio obscura ao
nosso ver, ele entende que consegue resolver a questão entre ambos.
Nessa perspectiva, Eagleton afirma, em Teoria da Literatura: uma introdução,
que não importa o método literário, e nem mesmo seu objeto, mas sim seu propósito e
seu interesse para com ele. Apesar de soar relativista, o que o autor intenta é que não é
que os métodos marxistas seriam mais eficazes ou autênticos do que os outros, mas que
por, existirem vários olhares sobre o objeto textual, o que seria relevante não seria o
método utilizado para abordá-lo, mas sim os efeitos que poderíamos fazer dele. Nesse
sentido, a questão é mais política do que metodológica:
Once we have seen this, then the questions of theory and method may
be allowed to appear in a new light. It is not matter of starting from what we want to do, and then seeing which methods and theories will
be best help us to achieve these ends. Deciding on your strategy will
not predetermine which methods and objects of study are most
valuable. As far as the object goes, what you decide to examine depends very much on the practical situation
101 (EAGLETON, 2008,
p.183).
Assim sendo, para Eagleton, mais do que tentar formular um novo método, é
preciso formular um novo propósito para a prática crítica. Portanto, os críticos radicais
101 Uma vez percebido isso, as questões de teoria e método podem ser vistas sob nova luz. Não se trata de partir de certos problemas teóricos ou metodológicos, mas sim de começar com o que queremos fazer, e em seguida ver quais os métodos e teorias que melhor nos ajudarão a realizar nossos fins. Decidir qual será nossa estratégia não significa predeterminar que métodos e objetos de estudo serão mais valiosos. No que respeita ao objeto de estudo, aquilo que
decidirmos examinar depende muito da situação prática.
132
seriam liberais quanto aos métodos, mas não quanto ao propósito. Dessa maneira, vários
métodos do estruturalismo e a teoria da recepção, por exemplo, possuem dispositivos e
ferramentas importantes para abarcar o conhecimento de um objeto cultural ou literário,
mas muitas vezes os sujeitos que se utilizam desses procedimentos acreditam que certos
métodos são naturalmente apolíticos. Nesse sentido, para certas críticas, alguns métodos
seriam apolíticos e preocupados apenas com o rigor metodológico científico de seus
procedimentos; todavia, para Eagleton, toda teoria ou método é político, pois sempre
que fazemos uso dele professamos um juízo sobre o texto que está prontamente
associado as nossas percepções ideológicas e a nossa forma de compreender o mundo.
Seguindo esse raciocínio, afirma o autor: “Radical critics are not different in this
respect: it is Just that they have a set of priorities with which most people at present tend
to disagree”102
(EAGLETON, 2008, p. 184). Assim, para o autor, um crítico político
não observaria arbitrariamente a luta de classes, o patriarcalismo ou o imperialismo em
um texto, enquanto um crítico literário, supostamente não partidário, apenas buscaria
entender o texto de uma forma mais completa. Para os críticos radicais, todavia, não
observar esses temas políticos, que constituem a história – e, por ser o texto um objeto
histórico, seria ele também parte dela – , é que seria uma redução por parte da crítica.
Desse modo, as críticas que analisariam um objeto textual apenas em função de
uma questão acadêmica, sem se preocuparem com as causas de sua própria conduta ou
com seus efeitos, seriam, mesmo que aparentemente indiferentes à política, cúmplices
de uma política não radical, na visão de Eagleton, por omissão. Nessa perspectiva,
vejamos o seguinte comentário de Eagleton sobre a sua posição acerca da neutralidade
da teoria, e que, para nós, também se aplicaria à crítica:
Literary theories are not to be upbraided for being political, but for being on the whole covertly or unconsciously so – for the blindness
with which they offer as a supposedly “technical”, “self-evident”,
“scientific” or “universal” truth doctrines which with a little reflection can be seen to relate to and reinforce the particular times
103
(EAGLETON, 2008, p.197).
102 Os críticos radicais não diferem quanto a isso: apenas têm uma série de prioridades sociais das quais a maioria das pessoas atualmente tende a discordar. 103 As teorias literárias não devem ser censuradas por serem políticas, mas sim por serem, em seu conjunto, disfarçadas ou inconscientemente políticas; devem ser criticadas pela cegueira com que oferecem como verdades supostamente “técnicas”, “autoevidentes”, “científicas” ou “universais” doutrinas que um pouco de reflexão nos
mostrará estarem relacionadas com, e reforçarem, os interesses específicos de grupos específicos de pessoas, em momentos específicos.
133
Logo, essas características da falsa neutralidade podem ser aplicadas às
características do marxismo estrutural dos anos 70 – do qual o próprio Eagleton fazia
parte – , pois essa crítica buscava desmitificar, por meio de técnicas cientificas, como o
estudo das categorias de produção literária, as naturalidades do que era um texto
literário, expondo sua natureza como uma produção de forças sociais. Porém, ao versar
sobre as questões institucionais da crítica e seus efeitos nas práticas sociais, afirma o
autor: “uma crítica marxista academizada manteve-se quase sempre silenciosa a
respeito” (EAGLETON, 1991, p.89). Portanto, essa crítica academicista, presente no
marxismo estruturalista, acabava por ser elitista, idealista, despolitizada e, para
Eagleton, como resultado, essa se mostrava socialmente irrelevante e contribuiria para
manter os valores vigentes do capitalismo. Por conseguinte, somente com a criação de
uma contra-esfera pública poderia ser a crítica marxista, e a crítica em si, ativa, versátil,
múltipla, coletivista, igualitária e socialmente participativa.
Contudo, poderíamos erguer duas questões sobre essa proposta de Eagleton.
Primeiro: como seria possível essa contra-esfera pública na contemporaneidade? E,
segundo: seria a academia, de forma verticalizada, que deveria tomar a iniciativa de
levar adiante a mudança na sociedade?
Sobre o primeiro questionamento, poderíamos elencar alguns problemas na ideia
de uma contra-esfera pública. Visto que Eagleton toma como referência a contra-esfera
pública dos anos 30 na Alemanha, poderíamos indagar como essa ideia, que
supostamente funcionara no início do século, pode funcionar numa era pós-modernista
do capitalismo tardio, globalizado e tecnológico? Se a própria noção de esfera pública
burguesa não foi possível, porque o consenso não era mais possível, uma esfera pública
reversa ou popular não teria os mesmos problemas em angariar e unir várias instituições
e agentes sociais, ainda mais em uma época de corporativismo, especialização,
micropolíticas e pretensões locais, fluidas e instantâneas?
Sobre o segundo: por que a ênfase de Eagleton nas universidades como líderes
dessa mudança? Poderíamos argumentar, como preconiza Althusser em seu ensaio de
1968 “A ideologia e os aparelhos ideológicos do estado”, que o aparelho ideológico
escolar, nas sociedades capitalistas, é o centro dominante que dá unidade ideológica à
população. Logo, os acadêmicos formam os professores, que irão educar os indivíduos,
e, assim, atingir amplamente a população. Nesse sentido, se as universidades iniciassem
um projeto revolucionário, poderiam gerar um efeito de cima para baixo. Todavia,
134
poderia se questionar que, com a informação relativamente democratizada pelos meios
de comunicação na contemporaneidade, mostra-se difícil conceber uma noção tão
vertical de mudança social. Assim, a crítica literária poderia não obter sua renovação
apenas por meio da academia, mas poderia, ela própria, organizar e forçar a sociedade
civil e as instituições estatais para que gerem um diálogo da produção acadêmica em
acordo com as necessidades sociais. Há, assim, uma ausência de problematização na
obra de Eagleton – por exemplo, entre o crítico universitário e o crítico do jornal;
sujeitos que poderiam também ajudar nesse processo de mediação entre erudição
acadêmica e função social.
Poderia se cogitar também até que ponto esses problemas levantados por
Eagleton, como sempre baseados, em grande parte, em modelos britânicos, poderiam se
adequar a outros contextos culturais. Desse modo, se pegarmos o exemplo do Brasil,
será que as necessidades históricas seriam semelhantes? O Brasil teve críticos influentes
que nem sempre fizeram parte da academia, como Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux,
que faziam crítica nos jornais de grande circulação pública, unindo conhecimento
literário aos anseios populares. A própria literatura surgiu no jornal, o que mostra a
notoriedade pública da literatura no Brasil, apesar dos poucos leitores até a metade do
século XX. Sobre essa ideia, o jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto, em
um ensaio chamado “Guerra e Paz: a crítica literária na imprensa brasileira” (2000),
defende uma visão da crítica brasileira da primeira metade do século XX que
percebemos como bastante similar ao dilema entre os intelectuais públicos e os
acadêmicos proposto por Eagleton no contexto inglês. Para o jornalista:
Até então, a crítica literária brasileira se dava preferencialmente nos
“rodapés” – espaços semanais reservados ao comentário de livros e
acontecimentos da vida literária. Normalmente caracterizados pelo tom informal, pelas digressões de ordem pessoal, cotidiana, e pela
percepção impressionista da obra poética ou ficcional, os rodapés
eram geralmente assinados por intelectuais de formação pluralista e
que atuavam em diferentes contextos; eram jornalistas, escritores, críticos de artes plásticas ou advogados cuja educação tivera como
base a leitura dos grandes romances da literatura ocidental e que por
isso estavam aptos a discutir o momento literário com uma erudição que, todavia, não os tornava especialistas no sentido que a divisão dos
departamentos universitários viria a dar ao termo (PINTO, 2000,
p.56).
135
Vemos, nesse fragmento, que o Brasil passou por uma época em que a crítica
não estava confinada nas academias, em que escritores da estirpe de Álvaro Lins, Sérgio
Milliet, Afrânio Coutinho, Sérgio Buarque de Holanda e Otto Maria Carpeaux
produziram suas críticas em jornais brasileiros. Na segunda metade do século,
entretanto, houve uma extensa migração da crítica literária para a academia, aliada a
uma ojeriza pela crítica nos jornais, caso que ficou expressivo na discussão ente Álvaro
Lins, apelidado de “imperador da crítica”, e o catedrático Afrânio Coutinho. Coutinho,
que voltara dos Estados Unidos querendo implantar no Brasil a corrente teórica New
Criticism, criticou Lins, no livro No Hospital das Letras (1963), por sua crítica
impressionista, sinalizando, assim, o marco de uma separação gradual entre a crítica
pública, considerada pelos acadêmicos como impressionista, subjetiva e redutora, e a
crítica acadêmica, defendida pelos mesmos como científica, objetiva e sistemática, que
não seria corrompida pelos anseios públicos e poderia produzir o conhecimento
independente. Nesse sentido, vê-se Coutinho em livros, congressos e discussões,
fomentando a crítica universitária e estabelecendo, a partir da segunda metade do século
XX, a consolidação da academia na crítica literária brasileira: “É uma nova mentalidade
que surge e se consolida, impulsionada pela instituição universitária, e a ela está preso
todo o futuro das letras pátrias” (COUTINHO, 1968, p.125). Contudo, apesar de o
caminho contemporâneo da crítica brasileira ter se norteado pela academia,
reverberando a situação da crítica na Inglaterra descrita por Eagleton, há um crítico em
especial que parece ter, a seu modo, principiado uma espécie de crítica literária, a um só
tempo, acadêmica e pública. Aqui nos referimos ao professor Antonio Candido.
Como observa Manuel Pinto, Candido, que começara sua crítica literária nos
jornais, a partir dos anos 50, seguindo a tendência em voga, optou pela
institucionalização acadêmica, inclusive sendo responsável pela criação da disciplina de
Teoria Literária na USP. Segundo Manuel Pinto:
Entretanto, não se pode esquecer o papel do “jornalismo cultural” em
sua biografia intelectual: autor de rodapés intitulados “Notas de crítica
literária” na Folha da Manhã e no Diário de São Paulo, Antonio Candido seria ainda responsável, em 1956, pelo projeto do
“Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo, que seria o mais
importante caderno de cultura da imprensa brasileira (PINTO, 2000, p.57).
136
Desse modo, além da crítica de jornal, podemos ver que Candido sempre
mostrou uma postura distanciada do isolamento acadêmico, como, por exemplo, no
âmbito teórico, fazendo uma espécie de estudos culturais, ao estudar temas marginais –
como os caipiras em os Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o Caipira Paulista e a
transformação dos seus meios de vida (1964) – , ou criando o conceito da dialética da
malandragem para questionar a relação entre formação cultural e expressão literária,
discutindo até mesmo as singularidades das literaturas regionais do Brasil. Além disso,
o crítico brasileiro não se restringia às disciplinas especializadas; Candido transitava
pela sociologia, história e estilística. Ele buscou também popularizar ideias, produzindo
livros introdutórios e ensaios de cunho social, como o Direito a literatura (1988), e, no
âmbito mais geral, foi responsável pela criação de partidos políticos, como o Partido
Socialista Brasileiro (PSB) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse sentido, vemos
que, para Candido, haveria um dever como cidadão e como crítico de mediar o
conhecimento acadêmico com as necessidades da sociedade – questão que ele
reconhece que não ocorre muito, pois: “(...) há um perigo enorme nessa história de
‘missão’ do intelectual. Em geral, acaba em exibicionismo publicitário e muito imoral
autodemonstração” (CANDIDO, 2002, p.245).
Defendemos, assim, que Antonio Candido, no Brasil, constituiu um exemplo
como os acadêmicos podem dialogar com os anseios sociais, assim como, na Inglaterra,
Eagleton observou Raymond Williams como um crítico que, similarmente, questionava
a segmentação acadêmica e priorizava o discurso público, apesar de Williams ter sido
um crítico isolado, sem uma base coletiva que lhe desse apoio institucional para atuar:
Os limites da obra de Raymond Williams finalmente mostrou-se
incapaz de ultrapassar não são os que configuram disciplinas
intelectuais, política e literatura, ou texto crítico e “criativo”; são, na verdade, os limites entre a instituição acadêmica e a sociedade
política, que a ausência de uma contra-esfera pública põe em
evidência (EAGLETON, 1991, p.107).
Esses limites também podem ter sido os que a crítica de Antonio Candido, assim
como a crítica em geral no Brasil,não conseguiu superar: a ausência de uma contra-
esfera pública. Para que isso ocorra, seria necessária toda uma mudança no aparato
cultural e educacional e nas instituições públicas, em diálogo com a sociedade civil;
137
algo que, até então, parece complicado de se realizar nas universidades britânicas e
brasileiras.
Por fim, entendemos que a ideia de contra-esfera pública de Eagleton precisa
enfrentar certos desafios, responder a certas questão: como negociar a relação entre
universitários e a sociedade civil, levando-se em conta que esses atuam em campos
distintos – os universitários respaldados pelo seu rigor metodológico e os agentes
culturais (artistas, jornalistas, leitores, políticos, intelectuais orgânicos) baseados em seu
suposto “senso comum”, mas respaldados por sua prática? Como evitar o risco de
manipulação e controle dos agentes sociais “não-científicos” pelos especialistas
universitários? Como fazer para que os não acadêmicos não sejam ignorados, já que,
para alguns críticos “cientistas”, não se deveria aceitar as premissas não-verificáveis dos
não acadêmicos? E, ainda, como os agentes culturais, sem o distanciamento acadêmico,
poderiam contribuir sem se contaminarem por pressões econômicas ou serem cooptados
por interesses políticos espúrios, cobrando assim da academia sua relevância social e
uma atenção para o que eles estão produzindo?
Vê-se, assim, que o problema que Eagleton tenta enfrentar está centrado na
função institucional da crítica literária. Mas isso não é apenas um problema da
disciplina literária, e sim da própria universidade como tal. Desse modo, a luta contra a
crítica literária acadêmica é, na verdade, a luta contra todo um aparato educacional que
propiciou à universidade essa autonomia de apenas produzir determinado conhecimento
sobre determinadas regras. Nesse sentido, talvez a luta de uma crítica revolucionária, no
desejo de Eagleton, possa partir de dentro da academia. Mas isso requer uma
participação da própria sociedade civil, para que se possa rediscutir o papel da crítica –
se ela teria um papel isolado, com técnicas especializadas para analisar objetos culturais
especializados, apenas pelo suposto dever do conhecimento desinteressado, ou se sua
função seria contribuir com a difusão e popularização do conhecimento, tentando
intervir pragmaticamente, por meio desse discurso com rigor científico, mas em diálogo
com a prática social e com objetivo final de promover mudanças nessa própria estrutura
social.
É na base dessas percepções, por nós analisadas, que podemos compreender uma
ruptura considerável entre o projeto crítico de uma ciência do texto literário – antes
voltado para uma rigorosa análise da produção literária e da estruturação ideológica do
texto e – e o projeto revolucionário, a partir dos anos 80, que rompe com esse
138
cientificismo e austeridade do projeto anterior e propõe uma crítica mais pragmática e
anti-método, ou seja, um Eagleton cada vez menos cientista e mais ativista.
Nesse sentido, a justificativa para uma proposta revolucionária, além dos fatores
que explicitamos, também pode ser em parte pela sua própria experiência pessoal. Mais
do que apenas um defensor crítico, o próprio Eagleton dos anos 80 buscava ser uma
espécie de agitador cultural – por exemplo,104
organizando a encenação de sua peça
Brecht and Company em 1979, participando de movimentos socialistas, como os
International socialists e a workers’ socialist league, editando livros desse movimento,
vendendo jornais socialistas na rua, fazendo mediações com os trabalhadores entre as
concepções teóricas marxistas e a prática de luta dos militantes socialistas, virando foco
político para os estudantes de Oxford e até mesmo fazendo piquetes na rua em favor da
greve dos mineradores britânicos de 1984.
A despeito das muitas oposições que sofria, por ser acadêmico da tradicional e
conservadora Universidade de Oxford, e por não se comportar como a tradição dessa
universidade determinava, Eagleton não deixou seu ativismo de lado. Muitas das
reflexões surgidas desse ativismo acabaram culminando em suas ideias – o que, para
ele, significava que a função da crítica não deveria mais ser a de uma crítica científica
isolada nas academias, mas sim uma crítica ativista e revolucionária, que trabalhasse
suas ideias em diálogo com a sociedade.
104 Esses exemplos estão presentes no capítulo 6 do livro-entrevista a Tarefa do Crítico (2010), em que Eagleton
relembra suas ações políticas dos anos 80.
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“A questão de saber se ao pensamento
humano pertence a verdade objectiva não é
uma questão da teoria, mas uma
questão prática. É na práxis que o ser humano
tem de comprovar a verdade, isto é, a
realidade e o poder, o carácter terreno do seu
pensamento. A disputa sobre a realidade ou
não realidade de um pensamento que se isola
da práxis é uma questão
puramente escolástica.”
(Karl Marx)
Após termos observado a passagem das ideias de Terry Eagleton de uma crítica
científica do texto literário para uma crítica revolucionária, revisamos as observações
que obtivemos ao longo do trabalho.
No primeiro capítulo, pudemos ver que a ideias althusserianas de Estrutura e
Relativa Autonomia, adaptadas por Eagleton para o campo literário, serviram como
explanadores do modo como o texto literário é produzido, e a releitura do conceito de
Marx sobre ideologia, por Althusser, serviu também para o pensador inglês explicitar a
produção simbólica configurada na arte literária. Desse modo, essas ideias foram
fundamentais para reconfigurar as críticas literárias marxistas vulgares, que acreditavam
em relações diretas, em paralelismos e em homologias estáveis, e, às vezes, até mesmo
em relações pré-determinadas do texto com seu contexto social. Essas ideias do
marxismo estruturalista também souberam respeitar a singularização do objeto cultural
segmentado em “literário” e, assim, diferenciar-se de abusos críticos puramente
sociológicos, históricos ou filosóficos, que apenas usariam esses objetos como aportes
para suas ideias. Assim, partindo dessas concepções, Eagleton inventivamente constrói
as categorias de produção literária, que, por meio de um rigor teórico e sistemático,
defenderiam a ideia de que o texto é formado por uma relação estrutural, tendo, em
última instância, a história como seu significado.
Portanto, entendemos que esse rigor teórico, do marxismo estruturalista,
mostrara-se uma grande ferramenta contra os empirismos intuitivos, que certas
correntes críticas adotavam para justificar suas práticas – a exemplo de algumas críticas
140
de Raymond Williams ou Antonio Candido, que se mostraram embaraçadas quando
tiveram de formalizar qual a substância conceitual dos termos que utilizavam, como, por
exemplo, “sociedade” ou “cultura”. Desse modo, a teoria mais sistemática e abstrata do
marxismo estruturalista veio dar fundamento a este tipo de crítica, meio “frouxa” e sem
sistematização. No entanto, Candido e Williams, pelo seu desprendimento das amarras
do cientificismo ou dos métodos conceptuais, conseguiram perceber no texto certos
fatores criativos que não são passiveis a uma determinação tão precisa, e só são
inteligíveis por meio de escolhas políticas relativamente contingentes. Nesse sentido, os
citados críticos têm muito a ensinar a certos tipos de ascetismo e elitismo presentes no
marxismo estruturalista, que acredita poder tudo objetivar.
Assim sendo, não é à toa que, por um lado, nossa aplicação do método científico
conseguiu dar bases sociais à análise de Senhora, mostrando relações bem estruturadas
entre as ideologias vigentes (liberais e românticas) e as representações estéticas
(folhetim, ironias), e, por outro, vimos que o romance mostra-se, em alguns pontos,
irredutível a estruturas, ou seja, há algo sempre de fora, o que nos faz tomar consciência
de que as teorias não podem ser tomadas sem uma adaptação as subjetividades culturais
– como no caso do paternalismo ou lógica do favor de Seixas, que supostamente
romperia com a percepção determinística e sistemática da visão materialista histórica
que as ideologias sempre remetem aos seus modos de produção. Contudo, cogitamos
também que, se a “lógica do favor” fosse incorporada às categorias de produção
literárias proposta por Eagleton, ou seja, se ela se tornasse uma ideologia do favor, que
poderia ser parte da IG ou parte até do MPG, como uma relação de troca simbólica,
materializada não pela relação capital/mercadoria, mas pela relação paternalismo/favor
entre indivíduos, então poderíamos refuncionalizar o método para um contexto
brasileiro, com as particularidades de uma sociedade em que o modo de produção
capitalista era diferente da realidade europeia.
Vimos também que a ideia do silêncio, ou não dito, usado por Macherey e
Eagleton, contribuiu muito para acabar com o ar, de neutralidade, inocência e violência
inconsciente, que circunscreve certas teorias e críticas literárias. Todavia, devido a esta
crítica marxista estruturalista não ter estendido suas ideias aos fatores institucionais, que
inviabilizam a própria prática crítica radical ou uma crítica mais prática, ela acabou por
não perceber o próprio silêncio, que produzia em função do seu academicismo e de sua
falta de relação com o meio social.
141
O capítulo 2 teve justamente a função de observar, sobre três perspectivas, a
falta de autoanálise que historicamente, teoricamente e estilisticamente a crítica
científica do texto literário não soube perceber em si – e à qual também não soube se
ajustar. Não obstante, reconhecemos que os esforços da cientificidade do marxismo
estruturalista serviram para organizar ou pressionar aos limites certos fenômenos
críticos obscuros, mistificantes ou aleatórios, que buscavam soluções fáceis para a
compressão do texto literário. Vemos também que essa corrente crítica fora uma das
teorias a questionar o conceito de representatividade no texto literário, uma ideia quase
dogmática para a tradição crítica literária social ou marxista. Assim, a ideia de Eagleton
da literatura como uma dupla produção e não um reflexo passivo da história, e a
tentativa de analisar não o objeto histórico representado, mas a produção da
representação em relação à estrutura social histórica, mostraram-se como uma tentativa
derradeira de lançar uma relação da mimeses como a poiese, antes que, nas garras dos
anti-racionalistas pós-modernos, a ideia de representação fosse levada do antigo
extremo, da obra como espelho social ou psicográfico do autor, para outro extremo: a
obra como fragmentos discursivos e esquizofrênicos, sem relação com o contexto
social.
Desse modo, em nossa análise sobre os fatores históricos que resultaram na
marginalização acadêmica da crítica científica de Eagleton, tentamos defender a tese de
Perry Anderson e do próprio Eagleton de que o pós-estruturalismo e a desconstrução
pareciam mais conectados aos novos estudantes de literatura – aqueles que eram
oriundos de uma sociedade politicamente desiludida, devido às derrotas no âmbito
tradicional de classe e dos sindicatos, e bastante cética com qualquer pretensão
universalizante ou totalizadora que não pudesse terminar em fascismo ou stalinismo.
Nesse sentido, com o surgimento, nos anos 80, de outras forças radicais, como o
feminismo e o anti-colonialismo, começou-se a questionar os próprios lugares dessas
frente ao velho discurso da esquerda ortodoxa, que só pensava em modos de produção e
que considerava corporativismo falar em questões de desejo e sexualidade. O marxismo
estruturalista, então, por não acreditar em ideias simples ou em doxas, pagou um alto
preço por defender um semi-positivismo esnobe, que analisava friamente e
objetivamente modos de produção e ideologia, sem levar em conta se havia a
possibilidade de se construir categorias objetivas para compreender uma literatura e
142
uma sociedade pós-auchwitz, globalizada e tecnológica, e quais as necessidades e
finalidades de todo esse rigor científico.
Nessa perspectiva, levantamos as ideias de Foucault, Deleuze, Barthes, de Man
entre outros; pensadores que propuseram vários argumentos contra diversos pontos que
constituíam a crítica científica de Eagleton. Assim sendo, sobre o conceito de ciência,
vimos o quanto essa postura é problemática, do ponto de vista de uma perspectiva da
pluralidade pós-moderna, e de que as coisas não são tão objetivas e sistematizadas
quanto o crítico inglês pensava. Essas ideias implicam também na crítica ao conceito de
ideologia. Apesar de Eagleton ter possuído uma visão abrangente de ideologia como
uma significação em homologia ou contradição com a história, vimos que o rizoma
deleuziano, questionando os fundamentos da ideologia – que pressupõem uma origem,
função e centro – , e Foucault, com seu discurso-poder “megalomaníaco”, que se
entranhava em todas as micro-significações que possam ser sistematizadas e
compartilhadas, acabaram por inviabilizar qualquer posição fixa que possibilite à crítica
julgar o que é reacionário ou progressivo no texto literário, ou até mesmo o que é
literário, o que resulta na descaracterização da utilidade do conceito de ideologia. Sobre
a ideia de produção literária, vimos que os trabalhos da escola de Constância fez
repensar o marxismo estruturalista, indagando sobre os efeitos, os leitores e as leituras
que poderiam servir para libertar os vários significados do texto, que, aparentemente,
eram negligenciados pela teoria eagletiana. Como consequência, sem perceber o que os
leitores podem fazer do texto, a crítica de Eagleton acabou resistindo em mudar sua
ideia de que haveriam características ontológicas e intransitivas do literário, e, assim,
omitiu-se de problematizar o cânone literário, que muitas vezes serviu para a
manutenção velada de certos pressupostos elitistas – de que a literatura não teria
características compartilhadas com os outros objetos culturais e que, assim, ela poderia
ser o centro da crítica cultural.
Sobre o estilo, vimos que a confiança, a austeridade e o pessimismo gravitavam
numa escrita eagletiana, que se considerava científica e acadêmica, o que se refletiu nas
três categorias que propomos: a hipérbole, a antítese e a sinédoque. Contudo, a ideia do
humor e da popularização fez Eagleton rever sua teoria e seu estilo. O humor diminuiu a
soberba de objetividade na escrita de Eagleton, a partir de uma reflexão do caráter
artificial e transitório dos discursos, e também adicionou um aspecto de esperança, ao
lembrar que o marxismo também é, afinal, uma luta pelo prazer da sociedade. Por sua
143
vez, o aspecto da popularização da linguagem utilizada pelo pensador inglês veio tirar a
pompa acadêmica de que os jargões só são inteligíveis para uma elite, e propor que uma
crítica deve ter o caráter pedagógico e, consequentemente, democrático.
Em suma, a partir do que observamos no capítulo 2, podemos cogitar a ideia de
que, nos anos 80, a crítica literária absorveu em suas práticas certas ideias; por exemplo:
a pluralidade de métodos, a relação mais igualitária entre autor-obra-leitor, uma ideia de
que a linguagem e a história não são significações tão estáveis, pré-determinadas e
sistemáticas, mas sim significações resultantes de um jogo de relações diferenciais em
uma determinada história e cultura, e que os objetos denominados como literários
compartilham vários elementos com diversos objetos culturais. Sendo assim,
poderíamos concluir que todo o método científico de Eagleton seria obsoleto e
impraticável? Se levássemos em conta esses fatores citados, diríamos que sim. Contudo,
poderíamos sugerir uma “atualização” desse método e defender sua legitimidade.
Portanto, se considerarmos que as categorias de produção literária não são a única
ciência, mas uma ferramenta de saber entre outras; se entendermos que as categorias de
produção literária não são uma estrutura objetiva, mas um conceito que guia e ajuda em
uma sistematização transitória e passiva de contestação; se pressupormos que essa
crítica pode se utilizar não só da literatura, mas também de outros objetos culturais; e se,
por fim, reconhecermos que esse método é apenas parte da crítica, porque apenas
organiza e analisa, mas não se preocupa com os significados, os efeitos políticos que os
leitores podem fazer do texto, poderemos dizer, a partir dessas percepções, que ainda é
possível utilizar esse método de análise das categorias de produção dos objetos
culturais, que Eagleton iniciou nos anos 70.
Contudo, ao invés de tentar refuncionalizar este método, para que ele tivesse
viabilidade prática frente aos novos desafios conceituais propostos pelas críticas
literárias pós-estruturalistas, Eagleton propôs discutir a própria noção de crítica literária.
Nesse sentido, percebemos que talvez o próprio reconhecimento, nos anos 80, de que
sua crítica não se fundamentava mais, fez o autor inglês compreender que a crítica em si
não se sustentava nos moldes como vinha sendo praticada. Logo, para o pensador
inglês, nem a sua crítica científica marxista, nem as pós-estruturalistas e
desconstrutivistas, ou até mesmo as críticas tradicionais humanistas ou formalistas,
escapam de um mesmo mal: a irrelevância social de seus feitos. Por conseguinte,
144
Eagleton se questionou se a crítica literária foi sempre assim, e se deveria continuar com
essa função, que ele considerava academicista, elitista e idealista.
Assim sendo, no terceiro capítulo mostramos como Eagleton, diante de todas as
problemáticas da crítica científica, oferece uma “solução”, não apenas para sua crítica,
mas para a crítica literária em si, preconizando uma revolução de sua própria função –
tese que, como vimos, já está presente na conclusão de Teoria da Literatura: uma
introdução, mas que só se sistematiza em sua tríade de obras, sobre teoria e crítica
literária, produzida nos anos 80. Desse modo, pudemos concluir que essa sistematização
se constitui em pelo menos quatro fatores:
1. A ideia de que, no campo literário, tanto os objetos quanto os seus métodos são
múltiplos, e, assim, a crítica deve se pautar por uma dialética que busque adequar
método e objetos à necessidade de seu contexto. Nesse sentido, diferentemente de
Criticism and ideology, a crítica não pode apenas se restringir ao cânone literário,
mas deve incluir outros meios artísticos e as diferentes manifestações literárias, e
não deve se restringir apenas a buscar um método “científico” de estruturação
literária, devendo buscar também intervir nos debates públicos sobre a produção
cultural.
2. A ideia de que o humor é um fator subversivo e utópico. Ou seja, diferentemente
do que preconiza a escrita científica anterior de Eagleton, seguindo agora esse viés
do humor, a crítica marxista deveria evitar certos elitismos e intransigências com
seus próprios fundamentos, e, além disso, não deveria esquecer a ideia de que é o
prazer e o carnaval coletivo o verdadeiro objetivo da crítica.
3. A ideia de que os críticos, pelo menos os radicais, devem ter uma preocupação
pedagógica e popular, e de que a teoria surgiu justamente como uma forma de
possibilitar o acesso a discursos até então disponíveis apenas para acadêmicos
“eleitos”. Portanto, deve-se também entender que compartilhar o conhecimento e a
informação é um dever do crítico para com a democracia.
4. A ideia de que, na crítica literária, a teoria não pode ser dissociada da prática de
intervenção social. Essa noção propõe um debate entre a sociedade civil leitora e as
instituições literárias, que, por sua vez, têm como objetivo o desenvolvimento de
uma contra-esfera pública, em que os discursos artísticos literários e culturais
possam florescer intensamente na sociedade.
145
Nesse sentido, todos esses quatro fatores desembocariam no objetivo de mudar a
função da crítica como ela se apresentava nos anos 80. Segundo Eagleton, essa crítica
era resultado de uma mudança advinda do século XX, em que a crítica literária, que,
historicamente, tinha uma função social relevante e atuante nas discussões públicas,
passou a se isolar e ter uma função socialmente irrelevante, ao se confinar nas
academias. Assim sendo, mostramos como, para Eagleton, a crítica literária, ao se
institucionalizar na universidade, acabou se isolando da esfera pública, ganhando assim
base institucional e segurança ideológica, mas perdendo, em contra partida, o diálogo
com os leitores e escritores – isso criou teorias sob seus próprios discursos, o que
acabou, na visão do autor britânico, resultando em uma produção crítica totalmente
irrelevante para a sociedade. Desse modo, além da sua total falta de substância social,
Eagleton considera ainda que, marginalmente, esse modelo burguês de crítica
academicista contribui para a reprodução das relações dominantes, que seriam, por um
lado, a indiferença com a dominação cultural e literária por certos grupos ideológicos, e,
por outro, o desinteresse em permitir o acesso dos indivíduos aos modos de produção do
saber.
Nesse âmbito, para Eagleton, a função da crítica atualmente seria apenas
produzir conhecimento e excluir as suas outras duas funções, que seriam: a reprodução e
a consumação do conhecimento; ou seja, os críticos literários valorizam suas produções
teóricas, mas são indiferentes a sua distribuição e a sua consumação na sociedade, e
desinteressados com as várias leituras e usos que os leitores e agentes sociais poderiam
fazer de suas produções teóricas.
Seguindo esse raciocínio, mesmo os críticos vinculados à corrente da recepção
literária, por exemplo, se praticarem esse modelo de crítica burguesa academizada, não
estarão preocupados se seus textos são debatidos nas escolas, se os romancistas estão
em contato com essas ideias e incluindo a opinião dos leitores nos seus escritos, ou se os
críticos literários não fazem nenhuma atividade para difundir suas ideias. No mesmo
âmbito, outro exemplo seria uma crítica feminista, que não estaria preocupada se as
escritoras não têm acesso às publicações ou se as leitoras de poesia já ouviram falar em
patriarcado. Logo, uma postura bastante elitista para um crítico se conformar e mostrar-
se indiferente.
Assim, para salvar as funções reprodutivas e receptivas da crítica, Eagleton lança
mão de uma ideia de contra-esfera pública, que teria a função de criar todo o ambiente
146
cultural em que a academia, a sociedade e as instituições públicas poderiam atuar
conjuntamente para o florescimento de um intercâmbio cultural, como acontecera, por
exemplo, nas vanguardas dos anos 30, em que Benjamin e Brecht não atuaram somente
como produtores de ideias, mas também como reprodutores, participando da política
cultural da república de Weimar, e consumidores, no sentido de reflexionar sua teoria
através da própria produção dos artistas construtivistas e surrealistas da época. Contudo,
problematizamos a ideia de Eagleton, indagando-nos sobre como essa função
“revolucionária” da crítica poderia funcionar, na contemporaneidade, por meio de uma
contra-esfera pública que ocorreria embasada no cooperativismo e na equidade de
posicionamentos. Nesse sentido, indagamo-nos se essa ideia poderia funcionar numa era
pós-modernista do capitalismo tardio, globalizado e tecnológico, ou seja, em uma época
de corporativismo, especialização, micro-políticas e pretensões locais, fluidas e
instantâneas. Nessa perspectiva, vemos que, indo na contramão de uma contra-esfera
pública, os críticos na contemporaneidade – em grande parte, universitários – , por não
saberem como falar ou julgar sem universalizar, e serem, por isso, taxados de
dogmáticos ou superficiais, sentem-se ameaçados de perder seu status científico. Isso
faz com que eles se especializem cada vez mais em suas áreas, e, aliados a uma
valorização acadêmica pela produção de pesquisa e não pela relevância social de suas
pesquisas, eles acabam por se distanciar ou não acompanhar a enorme quantidade de
informações e ideias permitidas pelo intercâmbio de escritores e leitores – que, cada vez
mais, diversificam-se, misturando novas mídias à literatura e novos temas a sua
composição. Como resultado, vê-se que os críticos se sentem cada vez mais
embaraçados ao dialogar, sem perder sua credibilidade, com a sociedade; e, por isso,
acabam por se restringir, indiferentes à sociedade, ao máximo de conhecimento
possível.
O segundo questionamento que fizemos foi: qual o porquê da ênfase de Eagleton
nas universidades como lideres dessa mudança? Quais as razões de Eagleton não
delegar também aos próprios leitores, aos escritores, aos jornalistas, aos editores
independentes, o fomento de uma refuncionalização da crítica sobre os textos? Desse
modo, vimos que o dilema da proposta de Eagleton se resumia, nos anos 80, da seguinte
forma: embora as universidades possuam segurança estrutural e ideológica para
produzir crítica literária ou cultural, elas só priorizam a produção do conhecimento, e se
mostram indiferentes ou superiores a qualquer manifestação crítica não catedrática; por
147
outro lado, as críticas não universitárias (vindas de jornalistas, autores, leitores,
produtores culturais etc.), apesar de possuírem um tipo de conhecimento mais empírico,
prático e mais preocupado com questões de distribuição e consumo do que de produção
de conhecimento, não possuem a segurança institucional das universidades, e podem ser
cooptadas pelo mercado ou por interesses ideológicos. Vemos, assim, que Eagleton não
pareceu resolver esse dilema nos anos 80.
Assim, poderíamos nos perguntar se os escritos recentes de Eagleton teriam
respostas para essas questões. Porém, ao que nos parece, o autor, em suas recentes
publicações – inclusive no seu livro mais recente sobre literatura: How to Read
Literature (2013) – , parece estar mais preocupado com temas teóricos do que
institucionais. Ou seja, apesar de reconhecer que os estudos culturais parecem ter
preponderância no meio acadêmico, o que pode ser lido como um avanço, para aquilo
que, em termos de teoria, ele defendia nos anos 80, em termos institucionais não há
comentários se houve avanços na função da crítica.
Em nosso entendimento, contudo, a proposta de Eagleton, nos anos 80, era mais
ousada do que engendrar um método ou teoria alternativa para a crítica literária. Para
ele, a questão não era propor um novo significado para a mesma crítica, nem também
um outro método, mas sim mudar o próprio significante da crítica – tal como o objetivo
final de Marx não era mudar de uma ditadura burguesa para a ditadura do proletariado,
mas a mudança da própria ditadura em si. Desse modo, seguindo o pensamento de
Eagleton nos anos 80, poderíamos ver, em nossa contemporaneidade, que ainda
existem: por um lado, os críticos expectadores, que produzem suas teorias, mas
possuem um desinteresse liberal ao observar a sociedade se engalfinhar nas discussões
sobre estética e arte, enquanto eles, por sua vez, gozam retumbantemente ao saber que a
comunidade literária não sabe o que faz; e, por outro lado, os críticos ativistas, que,
engajados numa perspectiva revolucionária, entendem que o conhecimento depende de
um diálogo com a sociedade civil – assim, as teorias deveriam ser distribuídas para essa,
e a partir da consumação da sociedade poderia o crítico repensar sua teoria. Desse
modo, poderíamos citar, como exemplo desse “critivismo” (crítica e ativismo), os
críticos culturais Boaventura Souza Santos, Slavov Zizek, Edward Said e o próprio
Eagleton. Todos esses mostraram ou mostram exemplos de uma crítica literária ou
cultural que não poderia ser dissociada de um diálogo com a sociedade, das novas
produções culturais e dos interesses públicos; portanto, são exemplos de críticos que
148
sempre se perguntam qual o objetivo de seus estudos, a quem pretendem atingir ou
influenciar, e que funções a sociedade atribui a seu ato crítico, diferindo-se assim, por
conseguinte, da logocracia acadêmica, que se preocupa em produzir conhecimento, mas
é indiferente com sua reprodução e consumação pela sociedade.
Seguindo esse raciocínio, vários questionamentos podem ser suscitados a cerca
do papel da crítica, pois, levando-se em conta a doxa contemporânea, que afirma haver
um ocaso da leitura de literatura, poderíamos questionar qual o papel da literatura – e,
consequentemente, da sua crítica – na cultura; ou pelo menos questionar o papel de um
tipo de literatura típica do século XX e de uma crítica desse mesmo século. Ao mesmo
tempo em que se anuncia o fim dessa literatura e dessa crítica, entretanto, pode se ver
uma ebulição de festivais literários, um crescimento de pequenas editoras, blogs
literários e o surgimento de um nicho editorial em cadernos de cultura e revistas
literárias, e até mesmo a proliferação de congressos e seminários acadêmicos. Por
conseguinte, será que a crítica literária, frente a uma carga enorme de informação e
produção cultural do século XXI, está receosa em lidar com as novas produções
literárias, seja por desinteresse ou por falta de confiança de que suas teorias, baseadas
em modelos obsoletos, possam servir as novas produções literárias? Assim sendo, o que
teriam eles a falar sobre estas novas produções, como as literaturas marginais,
indígenas, dos guetos ou as poesias cibernéticas e o hipertexto?
Oferecendo uma possível resposta a esses questionamentos, acreditamos que é
preciso começar a pensar como os críticos universitários poderiam dialogar com essas
novas organizações da produção literária contemporânea. Desse modo, se pensarmos
que as universidades públicas brasileiras funcionam sobre o tripé de pesquisa, ensino e
extensão, poder-se-ia observar que o elemento da extensão serve, justamente, para
valorizar esse diálogo com a sociedade, acerca da experiência com as pesquisas e o
ensino desenvolvida na academia. Todavia, ao que parece, a extensão se apresenta como
o campo que menos é valorizado e praticado, inclusive por causa da sua pontuação
reduzida para a progressão da carreira dos catedráticos; ou seja, é talvez um fator
ideológico que subsidia a dissociação entre pesquisa, ensino e extensão. Contudo,
apesar de acreditarmos ser lícito aos professores ou pesquisadores de literatura o foco na
pesquisa e no ensino – não queremos desmerecer esses dois pilares – , questionamos os
professores-pesquisadores de literatura acerca da razão de eles não repensarem suas
funções no âmbito dos três pilares – pesquisa, ensino e extensão: por que não “pontuar”
149
também pela extensão? Por que não atuar para além das funções normais – produzindo
livros e artigos, ministrando aulas, orientando trabalhos acadêmicos, exercendo cargos
burocráticos, participando de reuniões de colegiados, de plenárias, de bancas de seleção,
de organização de congressos, de edição e revisão de periódicos – , fazendo algo além
de publicar em eventos e atualizar o currículo Lattes? Assim sendo, qual a razão dos
professores-pesquisadores também não poderem participar ativamente, ou pelo menos
contribuir para certas ações públicas e sociais? Defendemos, assim, que, para que isso
aconteça, requer-se um mínimo de interesse na difusão do conhecimento acadêmico aos
diversos públicos de diferentes níveis de letramento e erudição; o que, por sua vez,
demandaria uma adaptação da linguagem acadêmica à linguagem popular, exigindo
também uma absolvição dos meios de comunicação de massa e dos diversos gêneros de
comunicação social, observando atentamente as mudanças dos nichos onde a sociedade
se alimenta culturalmente e intercambia seus conhecimentos. Por conseguinte, essa é
uma questão que só poderá acontecer se houver um diálogo entre os agentes sociais
(escritores, leitores, editores, jornalistas culturais e instituições públicas de cultura) e os
acadêmicos. Logo, pensamos que certas funções acadêmicas podem coexistir com
outras; por exemplo: a difusão das pesquisas e do ensino poderia ser feita em artigos ou
congressos científicos, mas também poderiam ser adaptados para a internet, blogs, sites
especializados, documentários, revistas, jornais impressos, cadernos de cultura,
entrevistas em programas de rádio e TV; além da organização de congressos e
seminários, os catedráticos poderiam também participar na organização de sarais e
eventos para a comunidade sobre arte; de forma alternada à atuação em cargos
burocráticos nas universidades, os pesquisadores poderiam também atuar em
consultoria de projetos de leis no âmbito da cultura e em audiências publicas que
versam sobre arte e cultura; etc. Portanto, há várias alternativas a esse modelo de crítica
literária e cultural institucionalizado nas universidades brasileiras.
Seguindo esse raciocínio, nos questionaríamos se os críticos literários brasileiros
deveriam continuar seguindo esse modelo europeu de críticas liberais e desinteressadas
– que só se preocupam com o conhecimento pelo conhecimento do texto; que muitas
vezes não atentam para o fato de que há uma desigualdade enorme entre a produção e
distribuição e o consumo de cultura na América latina (realidade similar também em
África e Ásia), ou seja, que há uma diferença considerável entre o nível de letramento
entre as nações do hemisfério sul e do norte. Nesse sentido, os críticos deveriam pensar
150
que vários escritores, leitores e alunos de literatura só existem em potencial, pois não
tiveram ainda condições materiais de ter acesso a mostrar suas vivências e experiências
com e a partir da literatura; e isso requer um modo de pensar diferente daquele
produzido nas “metrópoles” globais, que, supostamente, possuem uma “melhor”
distribuição e consumação da crítica, para se dedicarem legitimamente ao saber
“desinteressado”.
Portanto, aqueles críticos que produzem mais um trabalho sobre a imagística das
cores nos poemas menores de Shakespeare, devem se lembrar de que são sustentados
física e mentalmente por milhares de pessoas que, devido a uma história de opressão e
exclusão, que dividiu o trabalho material do imaterial e foi perpetuada pela propriedade
privada, tiveram que vender, ao julgo da mais valia, seu tempo e sua força de trabalho,
para sobreviver e ter uma remota oportunidade – e tempo – para cogitar a utilização dos
meios de produção da consciência que eles mesmos sustentam. Isso sem falar em todos
outros tipos de dominação simbólica.
Nesse sentido, como observa ironicamente Eagleton, em um dos seus recentes
trabalhos, How to Read a Poem (2007), os críticos literários vivem hoje em um estado
permanente de espanto, com medo de que algum oficial do governo descubra que eles,
embaraçosamente, são pagos para ler poemas e romances, e, ainda mais, pagos para ler
livros sobre pessoas que nunca existiram e eventos que nunca aconteceram. Podemos
concluir, assim, que há uma possibilidade de que a rispidez ou insensibilidade da lógica
do utilitarismo do capitalismo tardio faça com que os catedráticos saiam de seus altares
e torres de marfim e busquem justificar sua função de análise de textos para além de um
discurso autotélico, e, para isso, terão de buscar na sociedade uma razão para
continuarem a existir. Será precisamente nesse momento que, talvez, a indiferença
desses com o debate público seja forçada a perecer.
Por fim, mostra-se frustrante que Eagleton, em suas recentes obras, não trate
sobre os fatores institucionais e revolucionários da crítica literária. Entretanto, é natural
que o Eagleton do século XXI esteja receoso a conjecturar sobre e julgar uma instituição
com que, em parte, ele já não possui mais tanto convívio. No entanto, é nosso dever,
baseado em suas ideias, discutir qual a função que a crítica deve seguir nos próximos
anos; e esse seu processo de transformação, de uma cientista para uma ativista, esse
critivismo, mostrou-se ser uma referência para traçarmos novos caminhos para a crítica
literária e cultural.
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