UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços...

93
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ENTRE A CIDADE E O TRECO: UMA LEITURA SOBRE O CONSUMO DAS ESTÁTUAS DO PADRE CÍCERO EM JUAZEIRO DO NORTE/CE MICHAEL MEDEIROS MARQUES NATAL-RN 2017

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços...

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ENTRE A CIDADE E O TRECO: UMA LEITURA SOBRE O CONSUMO DAS

ESTÁTUAS DO PADRE CÍCERO EM JUAZEIRO DO NORTE/CE

MICHAEL MEDEIROS MARQUES

NATAL-RN

2017

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

MICHAEL MEDEIROS MARQUES

ENTRE A CIDADE E O TRECO: UMA LEITURA SOBRE O CONSUMO DAS

ESTÁTUAS DO PADRE CÍCERO EM JUAZEIRO DO NORTE/CE

Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação em CiênciasSociais da Universidade Federal do RioGrande do Norte (UFRN), como requisitoparcial para obtenção do título de Mestreem Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Carvalho deAssunção

NATAL-RN

2017

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

Marques, Michael Medeiros.

Entre o treco e a cidade: Uma leitura sobre o consumo das estátuas doPadre Cícero em Juazeiro do Norte/CE/ Michael Medeiros Marques. –Natal/RN: [s.n.], 2017. 96f.

Orientador: Luiz Carvalho de Assunção

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande doNorte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes – CCHLA.

Inclui Bibliografia

1. Antropologia. 2. Antropologia do Consumo. 3. Antropologia Urbana. I.Sposito, Luiz Carvalho de Assunção. II. Universidade Federal do Rio Grandedo Norte. Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. III. Título.

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

MICHAEL MEDEIROS MARQUES

ENTRE A CIDADE E O TRECO: UMA LEITURA SOBRE O CONSUMO DAS

ESTÁTUAS DO PADRE CÍCERO EM JUAZEIRO DO NORTE/CE

Dissertação defendida em: 25 / Agosto / 2017

BANCA EXAMINADORA:

PROF. DR. LUIZ DE CARVALHO ASSUNÇÃO (ORIENTADOR)

PROF. DR. MARIA LUCIA BASTOS ALVES (MEMBRO INTERNO)

PROF. DR. MARIA DAS GRAÇAS DE OLIVEIRA COSTA RIBEIRO (MEMBRO

EXTERNO)

MICHAEL MEDEIROS MARQUES

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

À Marconiette, Eliza, Marcondes, Michel,

José Marques (in memoriam)

e a todos familiares.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

“E nossa história não estará pelo avesso assim

sem final feliz, teremos coisas bonitas para

contar. E até lá, vamos viver, temos muito ainda

por fazer, não olhe para trás, apenas começamos,

o mundo começa agora, apenas começamos”.

Renato Russo

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

AGRADECIMENTOS

Há certos momentos em nossas vidas que paramos para pensar nas pessoas

importantes que sempre estiveram ao nosso lado, ou, que em nossa caminhada, foram

agregadas de forma muito afetuosa. São tantas para dizer, que o risco de esquecer alguém é

eminente. Mas antes de começar tais agradecimentos, consigo lembrar-me de alguns pequenos

passos que dei no “chão de fábrica”, mercadinho, posto de combustível e agora na escola que

trabalho. De algumas experiências passadas que, com certeza, constroem o meu ser,

comportamento e a forma de vê o mundo. Não foi nada fácil chegar aqui, como diria o poeta:

“você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui. Percorri milhas e milhas antes de

dormir. Eu não cochilei”. Para tanto é necessário agradecer aqueles e aquelas que de forma

direta ou indireta estiveram presentes em muitos momentos de minha breve caminhada.

Primeiramente quero agradecer as forças além-mundo que atuam entre nós, pela

oportunidade da realização de um sonho, que por vezes esteve distante.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ao

Departamento de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em especial, aos secretários Otânio e

Jefferson, sempre prestativos e atenciosos com todos que vão atrás de informações e em busca

de sanar dúvidas sobre o programa e seu funcionamento.

Agradeço a toda minha família, que mesmo distante emanaram positividades,

confiança e torcida para que o trabalho se realizasse. Minha mãeMarconiette, meu irmão

Marcondes, minhas tias Vera, Vera Neide, Marluce, meus avós Antônio e Maria do Carmo.

Minhas primas Vânia e Ravena. Ao meu primo Leonardo e a toda família Medeiros, dedico o

meu trabalho.

Aos meus amigos de infância, que até os dias de hoje me aguentam falando das

minhas dificuldades, angústias, medos, alegrias e felicidades compartilhadas. São eles:

Rodrigo, Júnior, Mardonio, Jefferson, Antonio, Mirocles e Davio. Obrigado por todos os

momentos em que, no meu mais alto nível de desespero, me escutaram, acalmaram e

chamaram para jogar um game e relaxar. Por todas as risadas, discussões sobre futebol e

games. Obrigado pela amizade e companheirismo. Que possamos continuar sempre dessa

forma.

Agradeço de forma afetuosa ao professor Luiz Carvalho de Assunção que me

recebeu em sua sala no ano de 2014 para uma conversa informal sobre minha proposta de

pesquisa, antes mesmo da aceitação do meu projeto e a seleção do mestrado. Obrigado por ter

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

me acolhido, dado confiança e acreditado que eu seria capaz de realizar o trabalho. Por todas

as conversas formais e informais e pela confiança na disciplina de estágio. Levo comigo boas

lembranças e o desejo de retornar.

ÀProf.ª Eliane Tania Martins de Freitas, por todo o ensinamento provocado a partir

da disciplina de Antropologia do Consumo, na qual me foram apresentados autores que se

tornaram meus alicerces no trabalho construído e que mudou totalmente o rumo da

dissertação. Por todas as palavras, críticas, elogios, sempre com sapiência e propriedade. A

todos os livros indicados e pela participação notória na minha qualificação. Muitíssimo

obrigado e espero sinceramente que possamos nos encontrar novamente nas cadeiras da

Universidade. Grato.

Não poderia deixar de agradecer a todos os amigos e amigas de turma que me

ensinaram a viver em Natal/RN, sempre me orientando sobre qual ônibus pegar para chegar

aminha casa. Obrigado, Carol, Marla, Zeneide, Sidney, Modesto, Miro, Karine, Rayane e

Fátima. Em especial, ao meu colega de casa e amigo do Cariri/CE, Clécio. Por vários

momentos compartilhados, pelo racionamento de dinheiro, pelas conversas e

companheirismo.

Ao Luciano, amigo com o qual guardo lembranças com carinho, admiração e

respeito. Pelo acolhimento, ajuda financeira e algumas muitas caronas para a UFRN ou

qualquer lugar da cidade de Natal/RN. Mas, principalmente, pelo companheirismo e prontidão

no que fora necessário.

Indo para o Cariri...

Agradeço à Universidade Regional do Cariri (URCA), à PROAE (Pró Reitoria de

Assuntos Estudantis), pela atenção depositada no curso de Ciências Sociais, recentemente

implantado (ano de 2006), mas que, dentro das possibilidades, ajudou financeiramente com

viagens a encontros e congressos a fim de que eu tivesse a possibilidade de apresentar meus

primeiros artigos.

Ao Prof. Domingos Sávio, no qual deposito admiração, carinho e respeito. Por tudo

que fez por mim na graduação e na organização do projeto de pesquisa. Obrigado por sentar

comigo e pensar junto a melhor forma de se apresentar em um programa de pós-graduação.

Lembro com carinho a força dada e a confiança depositada na minha pessoa. Meu muitíssimo

obrigado!

ÀProf.ª Paula Cordeiro. Por vezes lembro-me do dizer “preciso bater para depois

assoprar” presente em vários momentos da graduação e na construção do projeto de pesquisa.

Pelos comentários direcionados, apontando erros e acertos. Obrigado.

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

À Prof.ª Renata Marinho, por todo ensinamento antropológico no início da

graduação. Lembro muito bem do meu encantamento pela disciplina e de sua forma sucinta,

calma e carregada de sapiência para transmitir as informações que eram necessárias.

Ao prof. Roberto Marques, pela sabedoria em dá complexidade aquilo que poderia

parecer comum, banal e algumas vezes não notado. Lembro-me da capacidade de dizer e vê

aquilo que dificilmente não conseguiríamos sem a sua ajuda.

Com muito afeto, agradeço aos meus amigos e amigas da turma de Ciências Sociais

2006.1 da URCA. Por todos os momentos vividos dentro e fora da URCA. Pelas conversas

banais, por várias e várias idas ao “Bistrol”, pelo companheirismo demonstrado em cada

encontro e por todas as viagens que já fizemos juntos. Por algumas conversas em momentos

de embriaguez e desordem, nas quais sempre fomos felizes e rimos uns dos outros nos dias

seguintes. Obrigado pelo afeto que já perdura por 11 anos. Tenho certeza que teremos sempre

mais coisas para contar.

Em especial, a minha amiga Eudivânia, que torceu e acompanhou-me em todos esses

momentos, desde a graduação, na qual estivemos na mesma turma, seleção de mestrado,

quando compartilhamos da mesma casa nos meses que morei em Natal, eu no mestrado e ela

no Doutorado. Obrigado por tudo, minha amiga. Por sentar várias vezes comigo e dar-me

instruções importantíssimas para que pudesse construir este trabalho. Nunca vou esquecer-me

da sua grata ajuda.

Ao meu amigo e camarada, Claudio Smalley, leitor dos meus textos e arranjador das

minhas ideias, sempre perguntando e escutando o que tenho a dizer. Sou muitíssimo grato por

tudo que me fez, pelos vários momentos à mesa, via e-mail e WhatsApp, nos quais discutimos

texto e trocamos ideias. Foi uma ajuda primordial para que eu pudesse ter confiança e

determinação em enfrentar todas as dificuldades. Muito obrigado. Jamais esquecerei.

Obrigado a todos os amigos e amigas da URCA, que em alguns momentos de minha

caminhada me ajudaram com palavras, incentivo e desejo de vitória.

Agradeço a minha companheira Eliza Espinoza, que tem se dedicado diariamente ao

nosso relacionamento, que transmite segurança e paz para mim e que, em nenhum momento

dessa caminhada, deixou de acreditar em mim. Obrigado pelo maior presente da minha vida,

meu Michelzinho Espinoza Marques. Querido e amado, esse filho que tanto sonhei. Ela me

deu a oportunidade de compartilhar a alegria de ser Pai. Pela mãe dedicada que é e por tudo

que já vivemos e ainda iremos viver juntos.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido

oportunidade de realizar esse sonho. Por todo carinho depositado e por tudo que fez e faz por

mim. Nunca esquecerei a alegria e satisfação que te dou com minha caminhada acadêmica.

Ao meu irmão Marcondes, pelos ensinamentos da vida, incentivo e torcida.

Aos meus irmãos, Júnior, Nana, Lula, Fatinha. À tia Margarida (in memoriam), que

sempre me acolhia de forma bondosa e carinhosa quando ia à Fortaleza. Saudades e meu

muito obrigado.

Por fim, ao meu querido Pai, José Marques (in memoriam) por tudo que fez por mim.

Pela infância e juventude proveitosa e enriquecedora na minha formação enquanto indivíduo.

Tenho saudades eternas e nunca vou esquecê-lo em meus dias por aqui. A ele, dedico essa

dissertação.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

RESUMO

Esta dissertação pretende considerar a área da antropologia do consumo e alguns olhares

sobre o estudo da cultura material na contemporaneidade, no sentido de perceber como as

coisas fazem as pessoas e produzem as relações sociais em cadeia. Reconhecendo que o

consumo pode ser visto como um meio de identificação de grupos sociais, inseridos em um

projeto de territorialidade e mapeamento, diversificando e ampliando os efeitos do consumo,

sua força simbólica, na tentativa de construir uma compreensão mais profunda de uma

humanidade não separada da materialidade. A pesquisa é situada na cidade de Juazeiro Norte

(Ceará), tendo como objeto o consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros devotos,

que reificam a ideia de que essas trocas simbólicas estruturam duas relações dentro e fora de

Juazeiro. Desse modo, o texto estrutura-se da seguinte forma:há uma apresentação inicial do

campo de estudo com discussão das incursões e problematização das aproximações e

distanciamentos com o mesmo, bem como, demostramos nossas perspectivas teóricas acerca

das possibilidades de análise sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero; damos

continuidade com a tentativa de efetivar uma nova leitura a partir da teoria das

coisas,analisando os sentidos, significados do consumo do treco (Miller, 2010) Padre Cícero e

o sistema de dádivas (Mauss, 2011) como um jogo constante de liberdade e obrigação.

Palavras-chave: Padre Cícero,consumo, dádiva.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

ABSTRACT

This study intends to consider the area of anthropology of consumption and some views on

the study of material culture in the contemporary, in the sense of perceiving how things make

people and produce social relations in chains. Recognizing that consumption can be seen as a

means of identifying social groups, embedded in a project of territoriality and mapping,

diversifying and expanding the effects of consumption, its symbolic force, in an attempt to

build a deeper understanding of an unseparated humanity Of materiality. The research starts

from the city of Juazeiro do Norte (Ceará), with the purpose of consuming the statues of Padre

Cícero by devout pilgrims. It is structured in three moments: initial presentation of the field of

study; Theoretical perspectives on the possibilities of analysis on the consumption of the

statues of Father Cícero; Construction of a new reading from the theory of things, analyzing

the meanings, meanings of the consumption of treco (Miller, 2010) Father Cicero and the

system of gifts (Mauss, 2011) as a constant game of freedom and obligation.

Keywords: Father Cicero; consumption; gift.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................15

2 CAPÍTULO I - EU, NO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO E A PESQUISA DO “BEM

DE CONSUMO PADRE CÍCERO...........................................................................21

2.1 A ANTROPOLOGIA DOS OBJETOS...........................................................................30

2.2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS DO “BEM DE CONSUMO” PADRE CÍCERO.......34

2.3 CAMINHOS DE JUAZEIRO: ENCONTROS E DESENCONTROS.........................43

3 CAPÍTULO II - O “TRECO” COMO “PROVA QUE SOMOS ROMEIROS”...........59

3.1 SÍMBOLO RELIGIOSO: “A PROVA QUE SOMOS ROMEIROS”.........................66

3.2 O QUE SIGNIFICA O CONSUMO DO “TRECO” PADRE CÍCERO......................69

4 CAPÍTULO III - BENS TROCADOS: DÁDIVAS E TROCAS NO JUAZEIRO.........76

4.1 DÁDIVAS SAEM DO JUAZEIRO COMO “TRECOS”..............................................84

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................89

6. REFERÊNCIAS..................................................................................................................91

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

LISTA DE ILUSTRÇÕES

FOTO 0 - Padre Cícero em gesso na Loja Freitas Varejo (Juazeiro do Norte)..............22

FOTO 0 - Padre Cícero em gesso na Loja Zenir Móveis (Juazeiro do Norte)................23

FOTO 03 - Padre Cícero em gesso na Loja Padre Cícero (Largo do Socorro, Juazeiro do

Norte)........................................................................................................................................23

FOTO 04 - Mapa da Região Metropolitana do Cariri – RMC...........................................27

FOTO 05 - Mapa de representação do Bairro Socorro.......................................................49

FOTO 06 - Padre Cícero em alumínio e gesso(02 cm a 10 cm, respectivamente)............50

FOTO 07 -Conselhos do Padre Cícero espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte....51

FOTO 08 - Conselhos do Padre Cícero espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte....52

FOTO 09 - Santuário São Francisco das Chagas (Juazeiro do Norte)..............................53

FOTO 10 - Barracas localizadas ao redor do Santuário São Francisco das Chagas........54

FOTO 11 - Barracas localizadas ao redor do Santuário São Francisco das Chagas(Do

lado esquerdo da imagem vê-se o “passeio das almas”)......................................................54

FOTO 12 - Santuário São Francisco das Chagas / “Passeio das almas”...........................55

FOTO 13 - Estátua do Padre Cícero em Juazeiro do Norte...............................................65

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

15

1INTRODUÇÃO

É difícil começar a dizer algo sobre alguma coisa. Há exigências que foram construídas ao

longo das décadas, dentro do espaço acadêmico, que por vezes nos dão limites epistemológicos e

que tantas outras vezes nos amarram a conceitos para que possamos conseguirconstruir o

“pesquisador”. De fato, é uma tarefa árdua, porém há muitos momentos gratificantes na caminhada

que ficarão em nossas lembranças para o resto de nossas vidas.

A investigação proposta com este trabalho está necessariamente vinculada aos estudos

sobre o consumo enquanto cultura material, dentro do universo da cidade do Juazeiro do

Norte/Ceará, ao personagem Padre Cícero Romão Batista, às suas estátuas vendidas na cidade e à

relação de troca simbólica estabelecida entre os seus consumidores.

Portanto, a pesquisa dar-se com os romeiros devotos do Padre Cícero e a relação

estabelecida, construída e reconstruída entre esses e o consumo das estátuas do sacerdote.

Nesse sentido, podemos admitir que possa existir comunicação entre o objeto e aquele que

o consome na medida em que os objetos são importantes, não porque sejam evidentes e fisicamente

restrinjam ou habilitem, mas justamente pelo contrário. Muitas vezes, é precisamente porque nós

não os vemos. Quanto menos tivermos consciência deles, mais conseguem determinar nossas

expectativas, estabelecendo o cenário e assegurando o comportamento apropriado, sem se submeter

a questionamentos (MILLER, 2007, p. 78).

Assim podemos pensar na teoria das coisas, ou como as coisas fazem as pessoas, pois as

mesmas só vêm a funcionar a partir do momento em que se tornam invisíveis, não mencionadas,

assim, podem nos dá a condição de familiaridade, de algo comum, de serem tidas como dadas. É

nessa perspectiva que é construída a cultura material, implicando grande parte do nosso ser, da

nossa experiência vivida e diária, nos dando consciência das coisas, das nossas ideias e do material

como algo exterior a nós mesmos.

Os objetos se apresentam em nossa vida social de forma a parecerem irrelevantes,

desprestigiados, negados a muitos estudos na academia. Talvez seja por conta da obviedade dos

objetos, da sua versão utilitária, chegando ao ponto de ficarmos cegos com sua presença, não

enxergando que essa materialidade pode vir a construir elementos na sociedade que podem dar

sentido, ter sentido, até mesmo estruturar todo um grupo social e suas relações produzidas em

cadeia.

Essa relação com os objetos tornou possível este trabalho. É o objeto como agente chave

que me dá apossibilidade de investigar práticas culturais, particulares de uma sociedade ou ainda

padrões culturais que são manifestados das mais diversas formas. Pensando na relação dos

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

16

indivíduos com os objetos como, por exemplo, no consumo das estátuas do Padre Cícero,pode-se

aprender a construir relações de significados, apreensão, devoção, dedicação e trocas simbólicas.

Tais indivíduos e suas relações com as coisas nos apresentam ambientes culturais nos quais

nos moldamos. Podemos dizer que há a natureza, mas que a cultura nos dá a segunda natureza,

aquela que geralmente pomos em operação sem pensar. Coisasnão são coisas individuais, mas todo

o sistema de coisas, com sua ordem interna, fazem de nós as pessoas que somos. A lição da cultura

material é que, quanto mais deixamos de notá-la, mais poderosa e determinante ela se mostra. Isso

propicia uma teoria da cultura material que dá aos trecos1 muito mais significado do que se poderia

esperar, já que, acima de tudo, a cultura vem do treco. (MILLER, 2013, p. 83).

O que estou tentando dizer é que a cultura vem do treco e que temos a necessidade de

construir a teoria dos trecos como cultura material. Ou seja, temos a necessidade de investigar do

consumo das estátuas do Padre Cícero enquanto objeto da cultura material, pensando todo o mundo

exterior à materialidade e como tal objeto causa sensações, sonhos, desejos, tradições,

representações de um modo de vida, ideologias e leituras do mundo. Associa-se a isso a prática das

trocas simbólicas acionadas através das dádivas, que são trocadas a partir do consumo do treco.

Sobre a relação com a dádiva, “aos homens e as deuses têm também por finalidade

comprar a paz com uns e outros” (MAUSS, 2011, p. 75). Realizada a partir do consumo das estátuas

do Padre Cícero, essa troca simbólica acontece diante da sutileza da ação, mediante algumas

situações como gratidão, devoção, reverência, tradição, dentre outros elementos que veremos ao

longo do texto.

Contudo, destaco que as trocas simbólicas investigadas nesse estudo, tem como

sustentação teórica o livro Ensaio sobre a dádivade Marcel Mauss (2011). Em sua teoria existe um

tripé que fundamenta a relação de troca que é: dar, receber e retribuir. Ou seja, eu dou alguma coisa

a uma pessoa e essa pessoa que recebe se sente impulsionada a retribuir. Esse ciclo de retribuir abre

um novo ciclo que é o da doação, recepção e retribuição novamente. Na verdade, o que se troca é a

gratidão que vai e volta, e isso não acontece só com os objetos, mas também com as pessoas. Nessa

relação, o indivíduo sente-se endividado eternamente, positivamente, pelo resto da sua vida, em

função de algo que conquistou a partir da relação de troca simbólica que foi construída ao longo dos

anos.

1 Uso a categoria treco desenvolvida por Daniel Miller (2013) tem o intuito pensar o consumo da mercadoria(treco) enquanto cultura material. Treco não tem uma definição clara. Um treco é um e-mail ou uma moda,um beijo, uma folha ou uma embalagem. Cultura material não é mais bem-definida que treco. A culturamaterial prospera como substituta indisciplinada de uma disciplina: é inclusiva, abrangente, original, àsvezes com pesquisas e observações peculiares. O mundo dos objetos criados pelo ser humano.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

17

Podemos perceber a influência do sagrado na construção do comportamento das pessoas e

como as pessoas conduzem suas vidas a partir desse comportamento. Diante dele, estão postas

algumas representações, como é o caso das estátuas do Padre Cícero, apreendidas aqui enquanto

bem de consumo. Diante disso, apresento preliminarmente as bases que sustentam a escrita deste

trabalho e o formato segundo o qual ele foi dividido.

No primeiro capítulo, proponhouma reflexão sobre as estátuas do Padre Cícero, trazendo

algumas perspectivas teóricas que ajudarãoa pensar o consumo cultural projetando significações

sociais através do desvendamento dos códigos das práticas sociais cotidianas daqueles nelas

envolvidos. Tendo a possibilidade de investigar como são acionados os sistemas de códigos na

cidade de Juazeiro do Norte, seja pela linguagem, representação coletiva ou pela crença no Padre

Cícero, trago reflexões a partir da cultura material e suas várias possibilidades de leitura.

Essa possibilidade de investigação acompanha uma série de autores dos quais decorro em

busca da melhor forma de análise do objeto de estudo aqui indicado. A partir das várias leituras

existentes sobre consumo cultural, a dificuldade de eleger um fio teórico mediador de todos os

questionamentos propostos me fez pensar em vários autores, dos quais destaco: Bourdieu (2005),

McCracken (2007), Mary Douglas (2013), Baudrillard (1997), Lopes (1985), Daniel Miller (2013) e

Marcel Mauss (2011). Selecioná-los foi difícil, pois o campo e sua variabilidade de aceitação do

consumo das estátuas do Padre Cícero está imbricado em várias significações, o que me dava,

constantemente, múltiplas escolhas de leituras a serem feitas no decorrer da pesquisa. Pensar os

objetos portadores de significância cultural é dar importância às relações sociais que são produzidas

e reproduzidas a partir das coisas.

Com a tentativa de apresentar a necessidade de estudo sobre a materialidade, ou seja, um

mundo material que é produzido pela cultura dos lugares, em que as pessoas estão arranjadas a

comportamentos singulares que são indicados por uma semiótica dos objetos, a partir dos vários

significados que contém as coisas, o material, ou, bem de consumo.

Nesse caso, o estudo se direcionou com o olhar da antropologia sobre a cultura material,

ou, mesmo, a antropologia do consumo, dando uma ideia de como as coisas podem ser estudadas a

partir dos objetos, dentro de uma perspectiva na qual os objetos produzem relações sociais, e as

mesmas, se estendem dentro de um encadeamento cultural, com reforços através dos códigos, ou,

sistema de códigos singulares existente no local.

Apresento várias discussões entre autores que uso no estudo, e suas leituras sobre bens de

consumo. Nesse capítulo, elenco alguns autores como secundários: Baudrillard (1997), Lopes

(1985), McCracken (2007), Bourdieu (2005), Mary Douglas e Isherwood (2013). Esses me deram a

possibilidade de pensar o mundo material de forma mais ampla e maleável. Com isso, venho a

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

18

perceber a necessidade de destacar, enquanto autores primários Miller (2007) e Mauss (2013), pois

nesse momento da pesquisa a ideia do mundo material enquanto produtor de sociabilidades e a

relação de troca percebida no consumo das estátuas do Padre Cícero já norteiam toda pesquisa.

Para tanto, foi necessário dividir esse capítulo, com a necessidade de contar os meus

caminhos traçados no campo de pesquisa, meus tantos encontros e desencontros dentro de um lugar

que conhecia, ou melhor, que supunha conhecer.Importante dizer que, em muitos momentos da

pesquisa de campo, estar perdido me fez repensar os caminhos, o que realmente eu queria com a

pesquisa, e confesso que em muitos daqueles dias não consegui pensar em nada que não fosse fazer

a seguinte pergunta para mim mesmo: para onde vou com isso?

Este trabalho me fez retomar algumas situações vividas por mim, como nativo da cidade,

onde algumas lembranças me fazem recobrar, reviver e repensar um “Juazeiro”, um “Padre Cícero”,

jamais conhecido na minha trajetória de vida. Pensando nisso, no primeiro capítulo trago de volta

lembranças do Palácio de Enfeites Padre Cícero, os muitos nomes fantasias das lojas que traziam

consigo o nome Padre Cícero, as reverências feitas às estátuas do Padre, as muitas lojas que

vendiam (vendem até hoje) as estátuas do principal personagem da cidade. Repensar isso tudo, foi

voltar ao um passado não tão distante, mas também emergir de forma profunda sobre alguns

significados das estátuas do Padre Cícero e do consumo das mesmas. Posso dizer que houve uma

ressignificação de tudo que tinha aprendido, como nativo, em relação às estátuas do Padre vendidas

na cidade, dos componentes culturais como: tradição, costumes, bênção, renovação, e tantos outros

que veremos ao longo deste trabalho.

Ainda no primeiro capítulo, descrevo as várias mudanças adotadas por mim. Essa

variabilidade no espaço de campo, sempre veio a surgir por conta de aflições, angústias e um tanto

de desespero. O campo não respondia como eu queria, e mesmo que respondesse, penso que

naquele momento nem a pesquisa nem o pesquisador estavam maduros o suficiente para atender as

respostas pelo campo. Por isso tantas partidas, muitos encontros e desencontros, até achar um lugar

que pudesse extrair do campo dados suficientes para pensar o meu objeto.

Não podendo esquecer as pessoas que tive o prazer de conhecer nessa trajetória, dou-lhes

nomes e participação especial neste trabalho, no qual não poderia deixar de dizer da importância das

mesmas na construção desta pesquisa. Muitos (as) deles (as) consegui uma relação além da situação

de pesquisador que me apresentava, penso que a quantidade de tempo que estive com eles (as), nos

fez criar vínculos de amizades, confidência e algumas coincidências trocadas nesses meses

gratificantes.

No segundo capítulo, trago a discussão contemporânea do mundo da cultura material e a

teoria das coisas. Com base no livro Treco, troços e coisas, de Miller (2013), tenho a pretensão de

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

19

dizer que inauguro a possibilidade de investigação antropológica sobre o consumo das estátuas do

Padre Cícero, com o olhar da teoria das coisas proposta pelo autor citado. Nesse capítulo, esta a

proposta da discussão apresentada: quais os significados do consumo da estátua do Padre Cícero

para os romeiros devotos? É nele que começo a usar os dados coletados no campo de pesquisa, as

entrevistas feitas, dando-me a possibilidade de propor uma leitura sobre o consumo das estátuas do

Padre. Seria o consumo desse bem “a prova que somos romeiros”?

Tal capítulo serve como amarração teórica, preciosa para a fundamentação da pesquisa a

ser apresentada na academia, pois é notório que pesquisas que enveredam pela teoria das coisas,

baseando-se na cultura material, ainda, são muito escassas nesse universo. Como disse

anteriormente, inauguro, possibilito a ideia de uma nova investigação com todos os riscos que a

pesquisa e os resultados podem apresentar. Portanto, esse capítulo é primordial para pensar a

pesquisa e o seguimento da mesma.

No terceiro e último capítulo, sigo com mais um dos autores primários elencados na

pesquisa, Marcel Mauss (2013), tendo por base o livro Ensaio sobre a dádiva. Nele apresento a

possibilidade de investigação sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero, a partir da perspectiva

das dádivas trocadas.

Considero o capítulo um resgate da teoria da dádiva, relacionando ao objeto de pesquisa

proposto aqui. Resgatando a tríplice obrigação de dar, receber e retribuir sendo visto na relação

positiva da troca. A troca é observada não apenas pela materialidade das estátuas, mas, por uma

variabilidade de situações que são apresentadas além do material, e que neste trabalho demonstro de

várias formas.

Por fim, nesse último capítulo, indico a relação entre dádivas e trecos, apresentando a

dádiva como elemento estruturado estruturante representado no objeto, ou seja, no bem de

consumo, nas estátuas do Padre Cícero consumido pelos romeiros devotos.

Como diz o Miller (2013), os objetos não gritam para você como os professores, mas eles

lhe ajudam docilmente a aprender como agir de forma apropriada. Essa teoria dá contorno e forma à

ideia de que os objetos fazem as pessoas. Antes de realizarmos coisas, nós mesmos crescemos e

amadurecemos àluz de coisas que nos foram transmitidas pelas gerações anteriores. Os objetos

dirigem inconscientemente nossos passos, assim como o ambiente cultural ao qual nos adaptamos.

Nesse sentido, sugiro que na leitura destetrabalho seja sempre pensada a relação da cultura

enquanto elemento construtor e estruturador de uma sociedade, ou, grupo social. E que todos os

elementos propostos nesse texto são a partir da relação cultura/homem, interessando como as coisas

fazem as pessoas.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

20

2CAPÍTULO I -EU NO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO E A PESQUISA DO “BEM DE

CONSUMO PADRE CÍCERO”2.

Por volta do ano de 1992, ainda criança com dez anos de idade morando em Juazeiro do

Norte, ficava me perguntando: Quem era esse senhor de Chapéu preto? E porque vejo tantas

imagens desse homem? Às vezes que eu ia ao centro da cidade, ficava espantado, assombrado em

ver a mesma imagem por todos os lugares da cidade. Pensava: “Deve ser um cara importante!”. Mas

não tinha ideia de qual importância era aquela. Queria saber mais sobre tal imagem, pois tinha (e

ainda tenho) contato direto com a mesma desde a minha infância. Havia o Palácio dos Enfeites

Padre Cícero (nome fantasia), que era a loja do meu pai (in memoriam) no centro da cidade. Nela se

vendia vários acessórios para carro, desde para-brisas a uma simples lanterna para os faróis dos

automóveis.

Diante de tudo isso, o que mais me marcava era a grande imagem do Padre Cícero, em

tamanho natural, que meu pai fazia questão de deixar na entrada da loja. Não sabia o significado

daquilo - Por que um homem branco de olhos claros, fisionomia de um senhor de idade, com uma

batina preta e seu cajado, tinha tanta importância? Por que algumas pessoasfaziam reverências

quando passavam ali e viam a imagem? Tal evento fazia parte do meu dia a dia, pois todas as tardes

eu estava no comércio dos meus pais olhando e observando tais práticas. Estava ligada a cultura

material e não percebia, ou, talvez não tivessem a profundidade do bem, por estar muito próximo

enão tinha a medida de como as coisas fazem as pessoas.

Nesta época, ficava a observar a imagem do Padre Cícero no layout de boa parte dos

estabelecimentos comerciais da cidade. Tal imagem não se limitava as paredes e placas publicitárias

do comércio, a mesma, estava entranhada dentro das lojas, por vezes em tamanho natural (feita de

gesso e madeira), pintada de acordo com imagens históricas do sacerdote, em quadros moldurados

de grande visibilidade, ou, dava-se um jeito para expor a imagem do Padre, em algum formato,

“dentro” das lojas. Com o passar dos anos essa curiosidade era aguçada e anseios e desejos de

leituras (não só sobre o Padre Cícero) já me levavam a querer ler todos os nomes das lojas do

comércio, numa curiosidade pautada pelo nome que quase sempre encontrava: Padre Cícero.

Minha mãe já me ensinara que no comércio algumas lojas possuem “nomes fantasias”, que

é uma espécie de nomenclatura não oficial para produzir efeitos naqueles que são e outros que

2 Algumas das informações contidas ao longo do texto foram extraídas de conversas informais edas sites do Santuário de São Francisco das Chagas e da Colina do Horto, disponíveisrespectivamente em: http://www.santuariodesaofrancisco.com.br/histrico-da-igreja> (Acesso em 09janeiro de 2017); e em: http://www.hortodopadrecicero.net.br> (Acesso em 03 maio de 2016).

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

21

podem vir a serem seus clientes. E desde já, conseguia observar que muitos “nomes fantasias” das

lojas do centro carrega o nome do sacerdote. Não era, e não é difícil encontrar alguma exposição da

imagem do Padre na cidade.

Ainda criança, não conseguia entender as reverências que eram dispostas em função da

imagem do sacerdote, as mesmas eram praticadas por muitos que estavam no centro da cidade,

alguns (as) faziam questão de parar, fazer o sinal da cruz e proferir algumas palavras em baixo tom

para aquela imagem. Era um ritual aprendido, marcado, conhecido e reconhecido por todos que o

viam, pois não havia nenhuma negação, ou, olhar desconhecido sobre as reverências causadas pela

imagem.

As fotos a seguir, permitem apresentar a presença do sagrado com a materialidade dos

objetos de consumo com fins estritamente de marketing comercial.

FOTO0 -Padre Cícero em gesso na Loja Freitas Varejo (Juazeiro do Norte)

FONTE: Michael Marques, 2017.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

22

FOTO0: Padre Cícero em gesso na Loja Zenir Móveis (Juazeiro do Norte)

FONTE: Michael Marques,2017.

FOTO03: Padre Cícero em gesso na Loja Padre Cícero (Largo do Socorro, Juazeiro do Norte)

FONTE: Michael Marques, 2016.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

23

As imagens do sacerdote são representadas a partir de fotos tiradas do Padre Cícero. Na

maioria delas, o mesmo aparece de chapéu e batina na cor preta, segurando o seu cajado de apoio,

em tantas outras aparece com batina branca, segurando uma bíblia, com cajado na mãe direita,

bíblia na mão esquerda, junto a um terço, pois há uma variabilidade de imagens que são produzidas.

A imagem do Padre Cícero passa necessariamente pelo processo de conhecimento e reconhecimento

que são reforçadas pelas narrativas contadas pela cidade de Juazeiro do Norte.

Sobre as narrativas, nós devemos lembrá-las e estudá-las como conhecimento produzido

através dos tempos, até o dito mundo civilizado contemporâneo. Contudo, vemos a influência do

sagrado na construção do pensamento humano, no processo histórico no qual as sociedades arcaicas

(ditas primitivas) tentam explicar a realidade que está posta por meio dos mitos. A maneira pela

qual são manifestados os mitos, e a forma como essas narrativas são contadas, nos passa uma ideia

do sagrado e de como aquela ou outra civilização é influenciada desde os primórdios.

A diferenciação clara é que os fatos ocorridos conosco seguem uma linha histórica na que

não podemos reconstruir, diferentemente das sociedades “primitivas”, que também seguem uma

linha histórica, mas conseguem, na forma de seus ritos, repetirem o que seus ancestrais o fizeram

através do mito manifestado pelos poderes do rito, constituindo assim uma história sagrada. Hão de

serem colocadas que todas as construções mitológicas têm seus mitos de origem, suas histórias de

iniciação. Diante da força simbólica do mito que temos como foco de estudo, o Padre Cícero surge

como modelo, o indivíduo que está situado numa esfera em que se torna passível de ser

mitologizado (CAMPBELL, 1990).

Assim, tentamos perceber que o inconsciente humano vem à tona na forma de como as

histórias nos são passadas. Explicitamente a linguagem mitológica usada hoje é de uma elaboração

fantástica, atingindo-nos ideologicamente, e na mais profunda percepção sensorial, ou seja, nossa

capacidade seletiva de captar informações do mundo externo, daquilo que não conhecemos, e

também daquilo que queremos ser.

Eu estava em um lugar, onde necessariamente, a imagem do Padre Cícero implicava

determinantemente uma posição no todo. Havia um conjunto de coisas a serem ponderadas a partir

de uma imagem, pois a mesma refletia sobre a composição e a estrutura do lugar. Tal composição

está refletida no jogo de posições relativas, de coisas que estariam sobre um mesmo plano e sobre a

estrutura do lugar, havendo aspectos fundamentais para serem pensados. Para mim, em anos

anteriores, não era fácilperceber a profundidade e a dimensão de uma imagem. Mas estava claro que

os eventos produzidos pelo Padre Cícero, e os produtos que a ele faziam referência, agiam como

componentes essenciais do lugar. O lugar antropológico se define como identitário, relacional e

histórico.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

24

Identitário porque o lugar de nascimento, as regras de residência são como uma inscrição

no solo que compõe a identidade individual. Relacional a partir das referências compartilhadas, que

designam fronteiras e marcam a relação com seus próximos e os outros. Por fim, é histórico na

medida em que os nativos vivem na história (AUGÉ, 1994). Assim, como nativo do lugar, me

proponho a pensar as inscrições que compõem a minha identidade individual e que são marcadas

por compartilhamentos vividos durante minha história.

Coma minha inserção no curso de Ciências Sociais na Universidade Regional do Cariri

(URCA), junto às novas leituras que foram oferecidas no curso, comecei a tencionar a possibilidade

de investigar esse tema em especifico, o que se configurou a seguir em meu projeto de pesquisa de

mestrado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte (UFRN). Desde as minhas primeiras aulas no programa de pós-graduação na

disciplina de antropologia do consumo, ministrada pela professora Eliane Tânia, comecei as leituras

que me deram a oportunidade de perceber a perspectiva da significância da cultura material, com o

intuito de dar complexidade ao objeto pesquisado e de responder as perguntas necessárias no

decorrer da investigação.

Ao falar do bem de consumo Padre Cícero, as estátuas do Padre Cícero, estou a pensar, os

moradores e frequentadores do Juazeiro do Norte, as representações que foram construídas, de fé,

crença, sacrifícios, promessas, graças alcançadas, dentre outras, que são afirmadas cotidianamente

pelas relações sociais produzidas através dos bens que reproduzem sua imagem física, estátuas. Falo

de um mundo material, que é produzido pela cultura de um lugar, em que as pessoas desse lugar

estão associadas a arranjos comportamentais de forma singularizada. Não é algo superficial. Ao

contrário, é algo grandioso, pois parte do nosso comportamento não é sugerida por expectativas

determinadas que estejam relacionadas ao contexto da ação?

Entendendo as instituições como uma coisa relacional, posso afirmar que háuma diferença

entre o pesquisador e quem vive aquilo cotidianamente, enquanto ser político3. Pessoas assumem

papéis sociais e as mesmas não podem ser pensadas apenas de forma não consciente. O consumo

das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros (as) assumem características diversas, multifacetadas,

com significados e atuações diferentes, que serão trabalhadas ao longo do texto. Tal percurso será

minha preocupação enquanto investigador da cultura material, enquadrando o bem de consumo sob

aperspectiva cultural.

É importante dizer que a história da cidade se confunde com a história do Padre, pois há

um reforço na memória coletiva da cidade dos princípios de trabalho e fé deixados pelo sacerdote e

3 Em seu sentido amplo.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

25

que são assumidos como um dos elementos fundamentais da cultura e da vida cotidiana. Nesse

sentido, a importância da memória na construção e formação do espaço da cidade pode ser

percebida através da semiótica dos objetos, a partir da linguagem dos signos das coisas que contém

sua imagem, sejam em espaços públicos ou privados.

É notório que a maior obra do Padre seja a própria cidade, resultado de elementos

associados profundamente à vida religiosa. A memória religiosa funda e mantém o espaço onde o

sagrado está contido nas vidas cotidianas, nas estátuas e nos bens que contém sua imagem. Esse

modelo de estudo teórico sobre a vida social das coisas e o consumo material está imbricado na

sociedade em qualquer período, havendo sistemas de classificações, de práticas, significados e

valores centrais a serem desvendados e que são dominantes e eficazes. O Padre Cícero, por estar

presente na memória e no imaginário coletivo da cidade, é representado das mais diversas formas,

tendo sua imagem veiculada em vários sistemas de representação social.

A proposta da pesquisa se dá a partir dos estudos antropológicos do consumo e da cultura

material, tendo como objeto o bem de consumo Padre Cícero, mais especificamente – os

significados do consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros (as) devotos e as relações em

cadeia produzidas através dessa ação. Então, ao propor esse estudo, não estarei a pensar apenas o

consumo do bem, mas também as relações sociais que são produzidas através do mesmo. Dito isto,

estou a me preocupar para além da ideia de consumo como estratégia econômica, pois minha

preocupação é com os estudos do mundo dos objetos criados pela humanidade.

A cidade de Juazeiro do Norte, situada ao sul do Ceará, faz divisa com as cidades de Crato

e Barbalha, as quais fazem parte da Região Metropolitana do Cariri (RMC)4, composta também

pelas cidades de Caririaçu, Farias Brito, Jardim, Santana doCariri, Missão Velha e Nova Olinda. É

na cidade de Juazeiro do Norte que ocorre o processo de investigação em torno do consumo das

estátuas do personagem mais conhecida por aqui, Padre Cícero Romão Batista. No entanto, antes de

estar imbuído na pesquisa proposta, sinto a necessidade de apresentar o principal personagem desse

lugar, sua importância histórica na formação da cidade e na continuidade da mesma.

FOTO04 – Mapa daRegião Metropolitana do Cariri - RMC

4 Foi criada pela Lei Complementar nº 78, de 29 de junho de 2009.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

26

Em 1872, chega ao povoado o Padre Cícero Romão Batista. Juazeiro do Norteera uma vila

pequena no interior do Brasil, onde um jovem sacerdote dedicava-se a orientar a população local,

orientações estas que iam desde palavras de conforto ao uso de folhas medicinais, constando ainda

da propagação dos valores morais religiosos. Teve seu suporte fundamental no fato da hóstia

consagrada ter se transformado em sangue, passando a ser conhecido na literatura e no senso

comum como “milagre da hóstia”, que segundo Della Cava (1977) teria se transformado em sangue

por muitas vezes diante de curiosos e até da comissão diocesana, a qual veio apurar aqueles

acontecimentos que tinham a figura do Padre Cícero como participante.

Eis que o fenômeno acontece de forma surpreendente, diante dos olhos assustados do

Padre e dos demais presentes: a parte da hóstia entregue a uma das mulheres que estavam em

vigília, mais precisamente a beata Maria de Araújo, vai se transformando em sangue. O fato foi

tratado em sigilo, porém nos dias seguintes o fenômeno volta a ocorrer com a mesma beata. Mal a

hóstia tocava sua boca, logo se transformava em sangue, o que veio a se repetir inúmeras vezes.

Segundo Della Cava (1977), o fato extraordinário aconteceu durante todas as quartas e sextas feiras

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

27

da quaresma, durante dois meses; do domingo da paixão até o dia de festa da Ascensão do Senhor,

por 47 dias, voltou a ocorrer diariamente.

O “milagre” a que me refiro – uma beata, mulher do povo, recebe a hóstiaque se transforma em sangue – era atribuído a padre Cícero, mas, naverdade, estava ligado a outros contextos, nacional e internacional [...]Juazeiro evidencia processos de ordem regional, nacional e internacionalque definiram e foram definidos por esse movimento popular religioso(DELLA CAVA, 1977, p. 3-4).

A notícia sobre o “milagre” espalha-se por diferentes localidades do nordeste, tal fato

alcançava a memória coletiva dos sertanejos, onde em uma comunhão a beata teria recebido o

sangue do Nosso Senhor Jesus Cristo (DELLA CAVA, 2014).

Segundo Araújo (2011), o culto ao Padre Cícero surge intrinsecamente relacionado às

limitações materiais e imateriais presentes no espaço no qual o mesmo atuava: o sertão nordestino.

O mito Padre Cícero guarda relação com a ação econômica por ele empreendida na cidade do

Joaseiro5, onde a materialidade do espaço econômico guarda veiculação direta com a imaterialidade

da fé. O Padre Cícero representa o que está inscrito na utopia cristã: construir um mundo e uma

esperança de vida nova.

Para Barros (1988), o critério de santidade das camadas dominadas é a práxis, ao contrário

da igreja, cuja ação institucional requer a verificação pautada em procedimentos teológicos.

Segundo a autora, o catolicismo popular construiria a sua base pautada no materialismo. No caso do

Juazeiro, o espaço da cidade foi reconfigurado a partir do catolicismo popular, fazendo surgir novas

interpretações da ideia de religião, construindo e reorganizando moralmente e economicamente,

remodelando a concepção de mundo e construindo uma nova sociedade civil (BARROS, 1988, p.

150).

Tais interpretações das ideias religiosas seguem o passado histórico como parte da

estrutura, tanto da origem como da constituição das forças sociais presentes no movimento social do

Juazeiro. Como toda a história do Ceará constitui-se ao longo de um processo social cujas variáveis

presentes estão postas na formação social brasileira, emergindo de um mesmo movimento histórico

que conhecemos como colonização. Entendemos a colonização como um sistema de integração

dessa sociedade à dinâmica mercantilista, nascedouro do modo capitalista, tendo de forma

específica a formação social do Cariri cearense, que aparece como duplamente dependente:

diretamente do sistema social mercantilista e capitalista (BARROS, 2014, p. 40-41).

5 Grafia usada obedece ao português usado no século XIX.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

28

O movimento religioso do Juazeiro do Norte é entendido como um movimento social, isto

é:

Como uma força social viva, expressão do possível histórico de camadas dapopulação brasileira em suas relações sociais de produção da vida material eideológica cotidiana, na construção de seu mundo material e espiritual, deseu universo simbólico (BARROS, 2014, p. 41).

Esse movimento religioso é, portanto, uma expressão do catolicismo popular, ou seja, uma

religião produzida no interior das classes sociais exploradas do sertão nordestino, distinta daquela

produzida pela hierarquia da Igreja Católica.

O Padre Cícero surgiu com o objetivo de promover a superação dos problemas que os

sertanejos enfrentavam, sobretudo, a fome e a seca que assolavam o sertão nordestino. Com a ideia

de trabalho e oração moldava-se as práticas devocionais e econômicas. Os conselhos do Padre eram

pautadosem princípios teológicos e filosóficos dentro de uma compreensão de desenvolvimento

baseada na teologia da prosperidade (ARAÚJO, 2011).

É nessa configuração do catolicismo popular que surgem os espaços sagrados e a eleição

de santidade do Padre Cícero no imaginário do devoto, ao almejar uma vida melhor, repercutindo

nas relações econômicas, rezando, trabalhando e agradecendo as graças alcançadas.É diante desse

contexto que é dado ao Padre Cícero o título de padrinho, ou “padim”, de acordo com o desejo do

sertanejo devoto.

O Padre Cícero foi padrinho de milhares de sertanejos, ‘meu padrinho’ paramilhões de nordestinos. Antes de tudo ele foi o sertanejo que viveu oscódigos de sua cultura, encarnou o protótipo, o modelo do padrinho protetor,reivindicando até a interferência divina para sê-lo. (…) Vivendointegralmente o papel cultural, recebeu dos afilhados o título honorífico, foio ‘meu padrinho’ (BARROS, 1988, p. 173).

Nesse sentido, todos os anos milhões de pessoas vão a uma cidade do interior do país, no

sertão nordestino, em busca de revitalização para sua crença, fé, desejosos de boa sorte e

prosperidade para suas vidas e bênçãos do padrinho. Essas pessoas percorrem milhares de

quilômetros para chegarem à cidade do Juazeiro do Norte, atraídas pela imagem6 que representa fé,

crença e devoção no Padre Cícero Romão Batista, sacerdote aclamado como santo por seus devotos

6 O monumento em homenagem ao Padre Cícero Romão Batista foi inaugurado no dia 1º de novembro de1969, no alto da Serra do Catolé ou, como é mais conhecida, Colina do Horto. A estátua conta com 27metros de altura, e se constitui na terceira maior do mundo em concreto. Fonte:www.hortodopadrecicero.net.br

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

29

do Nordeste e de todo o Brasil7. Podemos nos perguntar:O que alimenta o consumo da imagem do

Padre Cícero em Juazeiro? Através de quê esse bem de consumo é produzido,reproduzido e

fortalecido ao longo dos anos? Pensando essas relações, nos indagamos de uma forma geral a

pensar na importância de falar de Padre Cícero hoje em Juazeiro.

2.1 A ANTROPOLOGIA DOS OBJETOS.

Há um número imenso de objetos que aprendemos a lidar em nosso cotidiano. São

mobílias, roupas, instrumentos musicais, armas, alimentos, bebidas, meios de transportes, meios de

comunicação, objetos de arte. A quantidade de objetos materiais que circulam de forma significativa

em nossas vidas é grande, e os efeitos que os mesmos provocam em nós, são poucas vezes

estudados ou conhecidos.

Estamos expostos diariamente a essa intensa diversidade de objetos e aos seus múltiplos

significados e relevância na sociabilidade dos indivíduos e na relação simbólica que construímos

com os mesmos. Pensar os objetos para além da relevância material nos faz crer que sua existência

está pautada na eficácia dos sistemas de classificação que são percebidos: quando, por exemplo,

como diria Sahlins (1996), nos limitamos a perceber os objetos pela uma “razão prática”, ou seja,

pela utilidade prática que o material proporciona para todos os indivíduos, sendo assim, somos

movidos pela utilidade dos objetos e não pela significância que os tais apresentam.

Para Gonçalves (2007), na medida em que os objetos materiais circulam permanentemente

na vida social, importa acompanhar descritiva e analiticamente seus deslocamentos e suas

transformações (ou reclassificações) através dos diversos contextos sociais e simbólicos: sejam as

trocas mercantis, sejam as trocas cerimoniais, sejam aqueles espaços institucionais e discursivos tais

como as coleções, os museus e os chamados patrimônios culturais.

Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses

contextos é em grande parte entender a própria dinâmica da vida social e cultural, seus conflitos,

ambiguidades e paradoxos, assim como seus efeitos na subjetividade individual e coletiva. Os

estudos antropológicos produzidos sobre objetos materiais, repercutindo esse quadro, têm oscilado

seu foco de descrição e análise entre esses contextos sociais, cerimoniais, institucionais e

discursivos.

7Em 14/12/2015, o Vaticano perdoa punições ao Padre Cícero. Disponível em:http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/12/igreja-catolica-se-reconcilia-com-padre-cicero-santo-popular-no-ceara.html

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

30

Portanto, não se configura como algo exagerado a necessidade de vermos a vida social e

cultural implicando diretamente no mundo dos objetos materiais, pois esses sempre estiveram

presentes na história de todos os grupos sociais, na antropologia social e na literatura das

etnografias produzidas ao longo da história da disciplina.

Para Levi Strauss (1973),os processos históricos de difusão de objetos materiais e traços

culturais entre diversas sociedades preocupavam muitos autores, os quais viam os objetos como

meios de reconstituir esses processos. Ao longo dos trajetos de difusão os objetos sofriam

modificações, tornavam-se mais complexos. A cultura humana, para eles, era raramente um assunto

de invenção, mas de transmissão. Alguns operavam com modelos nos quais se traçavam círculos

concêntricos, onde o ponto central era onde supostamente se situava o objeto em sua forma

primeira, sua forma original.

Na medida em que se difundiam, eles se transformavam. Esse raciocínio valia tanto para

objetos materiais como para instituições, práticas sociais, ideias e valores, sendo que alguns levaram

essa visão a extremos, afirmando que era possível identificar um único centro de onde teria partido

todas as invenções culturais significativas da humanidade. Apesar das diferenças que os separavam,

os paradigmas evolucionistas e difusionistas, no entanto, convergiam quanto a um ponto

fundamental: a cultura era concebida como um agregado de objetos e traços culturais. Isto significa

dizer que esses eram interpretados como elementos que responderiam a questões e dificuldades

universais. Estava aberta a porta para uma percepção e entendimento claramente etnocêntricos

desses objetos e das culturas das quais faziam parte.

Assim era fornecido o modelo de investigação a ser seguido no século XIX. Para tanto, o

objetivo era narrar a história da humanidade, traçando uma linha entre o passado e a evolução das

sociedades até a contemporaneidade, as ditas modernas sociedades ocidentais. É a partir daqui que

se começa a pensar a cultura material, tendo uma ideia de cultura, devendo haver delimitações

necessárias para se apreender traços culturais, com eles, objetos materiais daquela cultura a ser

investigada.

Aqui não tenhoo interesse em formular ou traçar uma linha histórica da antropologia no

que diz respeito a antropólogos que construíram com brilhantes etnografias ao longo da disciplina,

mas sim delinear em poucas palavras como a antropologia adentrou-se no mundo da cultura

material.

Segundo Gonçalves (2007), a formação desses antropólogos não passava necessariamente

pelos museus e pela atenção à “cultura material”. As teorias antropológicas com as quais operavam

vieram a deslocar o seu foco de discussão dos objetos materiais para as relações sociais e para os

significados dessas relações. Os objetos passam a ser interpretados com base num esquema teórico

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

31

onde eles existiam não em função de estarem respondendo a necessidades práticas universais, nem

como indicadores de processos evolutivos e de difusão, mas como meios de demarcação de

identidades e posições na vida social.

É nessa perspectiva que está posto este trabalho, na relação de construção de identidades,

demarcação de práticas da vida social. Visto que os objetos materiais devem ser pensados como um

sistema de classificação, meios simbólicos através dos quais os indivíduos agem ou emitem suas

informações e posições sociais.

Ainda com Gonçalves (2007), os objetos materiais são aqui pensados não mais enquanto

parte de uma totalidade social e cultural que se confunde com os limites de uma determinada

sociedade ou cultura empiricamente considerada, mas sim enquanto parte de sistemas simbólicos ou

categorias culturais cujo alcance ultrapassa esses limites empíricos e cuja função, mais do que a de

“representar”, é a de organizar e constituir a vida social. Em outros termos, os objetos materiais

podem ser investigados como “fatos sociais totais” (MAUSS, 2003), tendo a exigência de se

problematizar, observar algumas categorias passíveis de classificação na sociedade do investigador.

No livro Antropologia dos objetos, Gonçalves (2007) conta que é a partir dos anos oitenta,

como parte do processo de historicização da disciplina, que os objetos materiais, especificamente

enquanto partes integrantes de coleções, museus, arquivos e “patrimônios culturais”, virão a ser

tematizados como foco estratégico para a pesquisa e reflexão sobre as relações sociais e simbólicas

entre os diversos personagens da história da antropologia social ou cultural: viajantes, missionários,

etnógrafos, antropólogos, nativos, colecionadores, museus, universidades, poderes coloniais,

lideranças étnicas, dentre outros.

É nesse momento da antropologia que se começa a perceber a vida dos objetos e

apreendê-los como elementos cruciais nos processos sociais simbólicos, permitindo a

transformação, ressignificação, leitura da significância dos objetos, ainda que esses carreguem

ideias, valores e identidades que são assumidas por grupos sociais.

Os processos sociais e culturais que levam à escolha desses objetos escapam em grande

parte às nossas ações conscientes e propositais de natureza política e ideológica (GONÇALVES,

2007). Nesses processos de reclassificação que podemos surpreender a construção e os efeitos

daquelas categorias fundamentais de objetos situados para além da condição de mercadorias ou

dádivas: objetos que, retirados da circulação mercantil e da troca recíproca de presentes, ascendem à

condição de “bens inalienáveis”, e que circulam, paradoxalmente, para serem guardados e mantidos

sob o controle de determinados grupos e instituições, assegurando a continuidade dessas últimas no

tempo e no espaço.

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

32

Importante perceber que as nossas relações com os bens materiais(para antropologia, bens

simbólicos,por serem carregados de significados particulares a um contexto especifico) são

notoriamente intercedidas socialmente. Dito de outra forma, eles participam de nossas relações

sociais e da construção da nossa subjetividade.

Para Bitar (2013), os objetos materiais não atendem apenas à função utilitária nem são

apenas suportes identitários, mas mediadores e constituidores da vida social.As histórias de vida

relacionadascom os objetos expressam um marco para as pessoas, que constroem suas narrativasa

partir deles. Assim podemos dizer que os objetos podem construir redes sociais extensas,

envolvendo as pessoas de forma simbólica e que os objetos que as constituem não podem ser

separados de determinada noção de pessoa (MAUSS, 2003).

Por meio da concepção de “biografia dos objetos” (KOPYTOFF, 1986), podemos

problematizar o dualismo pelo qual as relações entre objetos e sujeitos são usualmente pensadas. Ao

explorar essa ideia, inferimos que as mesmas perguntas feitas às pessoas devem ser feitas às coisas,

levando em consideração que todas as biografias são parciais. Não obstante, as perguntas

formuladas não são dadas, elas seguem paradigmas específicos de cada contexto e época, tornando

relevantes certas questões em detrimento de outras (BITAR, 2013).

Voltamos a dialogar com Gonçalves (2007) a fim de entendermos a categoria “patrimônio”

que facilitará o entendimento sobre os objetos. Segundo o autor, “patrimônio”8pode ser considerado

uma categoria de pensamento que cuja compreensão pode assumir diferentes contornos semânticos

de acordo com contextos socioculturais específicos. Assim, o processo de formação de

“patrimônio”, segundo o autor, pode ser traduzido pela categoria “colecionamento”, o que implica

na demarcação de um domínio subjetivo em oposição a um “outro”, por meio da atividade de reunir

objetos móveis e imóveis. Com Bitar (2013) essa categoria pode ser confundida com a de

“propriedade”. No entanto, a ideia de acumulação de objetos materiais em torno do indivíduo ou de

um grupo, concebendo a identidade como riqueza, não é universal.

Para Mauss (2003), “na troca, há muito mais que as coisas trocadas”. Para nós humanos, as

coisas estão misturadas, no que se refere ao material, à sua simbologia e às tensões que são

provocadas pela cultura material, que se apresentam em fronteiras movediças e instáveis,

constituídasde múltiplas formas. Analisar esse emaranhado de elementos nos dá uma tarefa árdua a

ser cumprida.

É nessa configuração que venho a trazer o estudo sobre o treco (MILLER, 2013) Padre

Cícero diante da perspectiva do consumo, ou seja, abordo o fenômeno do consumo desse treco a

8 Neste trabalho optamos por não se debruça sobre a categoria patrimônio material ou imaterial. Para sabermais, consultar: http://naui.ufsc.br/files/2010/09/antropologia_dos_objetos_V41.pdf

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

33

partir das relações culturais que são estabelecidas mediante valores e ideias que constituídas pelos

romeiros devotos nas trocas simbólicas efetivadas na relação indivíduo e objeto.

2.2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS SOBRE O “BEM DE CONSUMO PADRE CÍCERO”.

Os bens simbólicos estão relacionados ao consumo cultural e projetam uma relação de

identidade entre os seus usuários, distinguindo-os dos demais. Segundo Baudrillard (1997), o

consumo é uma instituição promotora da função econômica e da função de signo na produção, na

apropriação e no uso dos bens simbólicos, construindo-se num sistema integração social a partir das

trocas simbólicas.

Os objetos são portadores de significações sociais a eles inerentes, bem como abrigam uma

hierarquia cultural, social e econômica, vindo a construir um código(BAUDRILLARD, 1997). O

citado código não é acionado de maneira homogênea, linear, fenomenológica; ele obedece a

narrativas móveis de pensamentos e sentimentos, sonhos e conflitos inconscientes dos grupos e

indivíduos. A sintaxe e a retórica dos objetos remetem a objetivos sociais e opera uma lógica social.

A função dos objetos consiste em torná-los signos distintivos, ou seja, objetos que distinguem

aqueles que os distinguem, a partir de práticas de inclusão ou exclusão de determinados espaços

sociais.

No Juazeiro, há um conjunto de códigos, signos, linguagens e representação do sentimento

coletivo que estão imbricados nos rituais de devoção ao Padre Cícero. O uso do bem simbólico está

associado às práticas cotidianas dos citadinos e devotos que visitam a cidade. Tais bens simbólicos

identificam e distinguem o espaço social.

Segundo Lopes (1985), fazer compras em Juazeiro se constitui parte da devoção ao “santo

de casa” e os romeiros querem levar um pedacinho da cidade santa para suas residências como

símbolo de proteção. Lopes diz ainda que, após a morte, a imagem do Padre Cícero representa a sua

presença na cidade, impulsionando a economia local através da produção de estátuas de gesso e

madeira, confeccionadas em diferentes tamanhos pelas mãos habilidosas dos “santeiros do Padre

Cícero”.

Partindo de premissas dos estudos da cultura material, que trabalha através na abordagem

sobre os objetos materiais, há uma tentativa de compreender de forma mais profunda os signos e

significados do consumo. Tais estudos têm ajudado a demonstrar como o mundo é provido de

objetos materiais que contribuem para a sua constituição cultural e refletem como categorias

culturais são materializadas (MCCRACKEN, 2007). Perceber a materialidade não distante da

humanidade, sobretudo, teorizar e analisar essas relações de consumo enquanto elementos de

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

34

identificação e demonstração diversificada de consumo sobre uma mesma coisa se faz necessário

para a busca de uma análise profunda e complexa.

É importante frisar a dificuldade em buscar uma identidade social a partir do consumo,

devido à relação entre objetos e mercadorias e as abordagens que enfatizam seus usos como

marcadores e constituintes de um processo cultural que se constrói articulando muitos atores,

construindo e consolidando sentidos, apresentando importante tradição de estudos na antropologia

recente, especialmente aqueles que analisam o protagonismo dos consumidores a partir da aquisição

de bens materiais.

Dentro da teoria do poder simbólico, o habitus9 é o elemento que articula “os sistemas

simbólicos como estruturas estruturadas (passíveis de uma análise estrutural)” e as “estruturas

estruturantes”, ou seja, a “concordância das subjetividades estruturantes” (BOURDIEU, 2005, p. 8).

A partir do conceito do Bourdieu, pode-se afirmar que estruturas estão presentes na construção

histórica dos espaços sociais em Juazeiro do Norte, como: mito, arte, língua, religião, ciência. Para

Bourdieu (2009), os sistemas simbólicos são instrumentos de conhecimento e de comunicação e só

podem exercer um poder estruturante porque são estruturados.

Nessa perspectiva, os símbolos são instrumentos de conhecimento e comunicação e eles

tornam possível a reprodução da ordem social.Os símbolos são os instrumentos por excelência da

integração social, pois eles tornam possível o consenso sobre o sentido do mundo social que

contribui para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a condição da integração moral.

Podemos pensar o consumo a partir da perspectiva da identificação social, mas não

podendo ser visto como uma ação coerente, haja vista que a sociedade pós-moderna localiza-se

dentro de uma dificuldade de identificar uma sistemática bem elaborada do consumo, do ato de

consumir. Existem diferentes demandas, demandas contraditórias nos setores da vida. O consumo

não é coerente, pois o mesmo lida com subjetividade, a qual aponta para o indivíduo espontâneo,

relacional e ativo.

Podemos pensar a prática de consumo não destituída de um vazio cultural. Elas estão

inseridas em um espaço, um contexto e são instruídas por lógicas sociais que dão sentido às práticas

em determinados contextos. Não são ações voluntaristas; as mesmas tendem a identificar e

9 De acordo com o autor, as estruturas sociais por si só não determinam a vida em sociedade comopretendiam os estruturalistas. A dimensão individual, o agente social – e daí decorre a importância doconceito de “habitus” reintroduzido por Bourdieu – não é uma simples consequência das determinações daestrutura social. Internalizamos regras e normas sociais, mas existem aspectos de nossas condutas que nãosão previsíveis. É como um jogo que sabemos as regras e o seu sentido, mas que também podemosimprovisar. A noção de “habitus” exprime, sobretudo, “[...] a recusa a toda uma série de alternativas nasquais a ciência social se encerrou a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e domecanismo” (BOURDIEU, 1989, p.60).

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

35

estruturar a vida social, o cotidiano, mesmo em um mundo repleto de permanentes transformações.

Elas (práticas de consumo) estão alocadas em um conjunto de oportunidades, que dificilmente serão

mudadas. Essas escolhas, por não serem voluntárias, irão oscilar dentro de uma variabilidade

oferecida pelo campo social.

O consumo pode estar ligado aos costumes e tradições, já tais forças estariam voltadas para

uma noção de necessidade estável, mais do que indeterminada no consumo moderno. Podemos

encontrar essas noções, de costume, tradição e modernidade, no consumo do bem Padre Cícero10. O

costume está inserido em toda a historicidade e composição da cidade, a tradição voltada aos

preceitos do Padre Cícero em vida e suas referências ao trabalho e a fé, a modernidade encontrada

em várias matérias-primas usadas na fabricação de suas imagens e o método de produção artesanal

das mesmas. Desse modo, poderíamos pensar, a partir das ideias de costume, tradição e

modernidade, se há uma necessidade de consumo do bem Padre Cícero nesse campo. Seria possível

até, ao final deste trabalho, observar possíveis renovações desse bem e de que forma supor de que

forma se daria essa relação com seus consumidores.

Algumas premissas podem ser importantes na tentativa de elucidar o consumo do bem em

questão, o Padre Cícero. Diante dessa preocupação, há uma necessidade de esclarecer a

problemática apresentada, consumo das estátuas do Padre Cícero, pelos romeiros (as), trazendo

alguns autores que pensam o consumo enquanto significância cultural.

Com Douglas e Isherwood (2013), encontramos uma forma mais complexa para pensar os

bens de consumo, pois os autores apresentam esses com uma significância que vai além do seu

caráter utilitário e seu valor comercial. Essa significância reside, em grande medida, na capacidade

que os bens de consumo têm de carregar e comunicar significado cultural.

[...] a teoria do consumo tem de ser uma teoria da cultura e uma teoria davida social. Separar a cultura da organização é flutuar em direção ao mar dorelativismo. Se a organização funciona suficientemente bem, pode dotar osobjetos de valor; dizer de um objeto que ele está apto para o consumo é omesmo que dizer que o objeto está apto a circular como marcador deconjuntos particulares de papéis sociais (DOUGLAS E ISHERWOOD,2013, p. 41).

Ainda sobre a perspectiva abordada por Mary Douglas e Isherwood (2013, p. 43),

deveríamos saber de que modo os bens funcionam como comunicadores, ou melhor, uma

perspectiva segunda a qual os bens não são agentes ativos, mas apenas sinais. Deveríamos saber de

10 É importante dizer que quando me refiro ao “consumo do bem Padre Cícero”, estou a pensar no consumodas estátuas do Padre Cícero que são vendidas em lojas e feiras de artigos religiosos na cidade do Juazeiro doNorte CE. E as imagens que estão expostas no comércio em toda a cidade.

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

36

que forma são usados. Acontece que tudo depende de qual maneira as pessoas são organizadas,

percebendo a comunidade como um todo enquanto caixa de sinais.

Eventualmente, teremos um modelo que começa com os consumidores cujas tendências

culturais comandam sua demanda por bens. A demanda do consumidor comanda a produção, a

produção provocada pela demanda comanda a tecnologia e a tecnologia tem efeitos nas vidas

humanas. Cada ambiente social permite apenas certos tipos de controle, e isso permite que a

tendência cultural dominante se desenvolva. O consumo, no entanto não se caracteriza como algo

coerente, não há uma possibilidade de simetria através do consumo. Na sociedade pós-moderna há

uma dificuldade estrutural em identificar uma sistemática elaborada do consumo, do ato de

consumir.

Desse modo é necessário analisar o consumo a partir da significação cultural, percebendo

as expressões de categorias e princípios culturais, cultivar ideias e sustentar estilos de vida,

construir noções de si e criar (e sobreviver a) mudanças sociais. O consumo possui um caráter

completamente cultural (MCCRACKEN, 2003).É essa tendência cultural, ou princípios culturais,

que constrói o mundo dos bens.

De acordo com McCracken (2007), o mundo culturalmente constituído reside nos bens de

consumo. Trata-se do mundo da experiência rotineira, em que o mundo dos fenômenos se apresenta

aos sentidos individuais plenamente formados e constituídos pelas crenças e premissas de sua

cultura. É importante explicar que cada cultura estabelece sua própria visão particular do mundo,

fazendo com que entendimentos e regras sejam apropriados em um contexto cultural e

absurdamente impróprios em outro.

Uma cultura estabelece um conjunto apropriado de termos dentro do qual nada parece

estranho ou ininteligível para o membro da cultura e fora do qual não há ordem, sistema, premissa

segura e compreensão imediata. Cultura constitui o mundo e é de um mundo assim constituído que

decorre o significado destinado aos bens de consumo, poisse pode pensar o bem de consumo como

ação legítima que representa o mundo cultural, ou seja:

As categorias culturais, os princípios culturais se materializam em bens deconsumo e que esses bens, assim carregados, nos ajudam a compor o mundoculturalmente constituído. As categorias culturais e os princípios culturaisorganizam o mundo dos fenômenos e os esforços de uma comunidade paramanipular esse mundo. Os bens materializam tanto categorias quantoprincípios e, portanto, entram no mundo culturalmente constituído tantocomo objeto quando como objetificação desse mundo. Em suma, os benssão tanto as criações como os criadores do mundo culturalmente constituído(MCCRACKEN, 2007. p. 103)

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

37

O bem Padre Cícero é materializado a partir de ações culturais que são produzidas e

reproduzidas na cidade de Juazeiro do Norte através de práticas históricas avigoradas e

cotidianamente construídas, transformadas ao longo dos anos. Os eventos decorridos todos os anos,

em datas marcadas no calendário da cidade e dos devotos do Padre Cícero em todo o país (romarias,

festejos de aniversário de nascimentos e morte), acabam construindo um avigoramento da sua

imagem e dos bens de consumo que são produzidos a partir da sua efígie. Portanto, podemos pensar

os bens de consumo inseridos num sistema de significados culturais através dos objetos, dando

matéria a uma determinada cultura.

Nesse meio, há a necessidade de instrumentos de transferência de significado, do mundo

para o bem. Tais instrumentos residem primeiro no mundo culturalmente constituído para ter sua

transferência para o bem. A crença, os rituais, as romarias, as narrativas históricas passadas de

geração para geração, produzidas, reproduzidas e transformadas pelos devotos do Padre Cícero,

podem tornar-se instrumentos de significância cultural que é passada para os bens de consumo, as

estátuas do Padre Cícero.

Há, portanto, um sistema de significados a partir do espaço de análise, do campo social ao

qual me refiro - a cidade de Juazeiro do Norte e toda sua constituição enquanto cidade, valores,

crenças, rotas, trajetória, ligadas a figura do Padre Cícero, já enfatizada neste texto. A delimitação

do espaço e campo de pesquisa se dá a partir de uma necessidade de aprofundamento e

complexidade, tendo como fim uma análise da cultura material em torno do consumo do bem em

tela.

Segundo Miller (2003, p. 52), os bens materiais estendem a nossa capacidade física na

nossa relação com o meio ambiente, nos mobilizam para a ação, nos constrangem e nos levam a

determinados comportamentos, exercendo a materialidade um impacto direto na nossa vida

cotidiana.

Partindo da análise proposta por Miller (2003, p. 52), a mercadoria, na verdade, não só

produz a relação entre ela mesma e as várias pessoas que trabalham com ela, mas também a relação

entre estas pessoas ao longo de uma cadeia. Pensar isso relação ao bem de consumo Padre Cícero a

partir de valores morais, crenças, ideias das quais constituem os objetos, e somos por eles

constituídos, nos dará a possibilidade, socialmente, de buscar alguns elementos simbólicos de

identificação sobre a ótica da cultura material. Tais fronteiras, entre consumo e identificação são

maleáveis, instáveis.

Acessar tais informações requer um aparato teórico-metodológico ligado à antropologia do

consumo e suas tendências, que estão postas intrinsecamente na abordagem do consumo.Vale

ressaltar que o conceito de consumo é estourado. Hoje, tudo é consumido a partir de uma

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

38

perspectiva cultural, desde o pôr do sol, a leitura de um bom livro, bom filme, degustação da taça de

vinho, Chopp, lazer com a família, dentre tantas possibilidades de consumo. Podemos dizer que o

consumo tornou-se uma experiência, ato pensado, construído a partir das relações sociais tidas,

fabricadas, durante o processo da vida social. Pensando nisso, entendo o consumo das estátuas do

Padre Cícero para além da necessidade de ter a coisa em casa.

As práticas de consumo não se banham em um vácuo cultural. Elas estão inseridas em um

contexto e são instruídas por lógicas sociais que dão sentido às práticas em um determinado

contexto. As práticas surgem com a tarefa de estruturarem nossa vida cotidiana, em um mundo

permanentemente em mudança em transformação. Elas oferecem uma plataforma de oportunidades

que dificilmente será passível de mudança. Essas escolhas não são aleatórias e irão variar de acordo

com o campo social em que se está inserido. O consumo nos constitui enquanto seres sociais.

O consumo não é uma ação coerente. Não é uma possibilidade de simetria a partir do

consumir. Na sociedade pós-moderna, há uma dificuldade estrutural de identificar uma sistemática

elaborada do consumo, do ato de consumir, pois existem diferentes demandas, demandas

contraditórias nos setores da vida. Perceber que assumimos diversos papéis sociais, o que nos

possibilita tomarmos decisões contrárias a partir do papel social assumido. O consumo não é

coerente, pois o mesmo lida com subjetividade e com o desejo.

Vale dizer que o consumo é um elemento negligenciado na literatura antropológica sobre

mercados ou práticas econômicas nas sociedades tradicionais ou industriais, a qual se concentra ou

nos aspectos integrativos da troca ou nas determinações culturais e ideológicas da produção e

circulação de mercadorias. Parte dessa resistência de tomar o consumo como um objeto da

antropologia vem da visão simplista que coloca como uma mera satisfação de necessidades básicas

de cunho fisiológico ou psicológico, ou como aceitação mecânica das tendências ideológicas e

discursivas que estruturam a produção e omarketing das mercadorias.

Segundo McCracken (2003), o consumo moderno foi a causa e a consequência de tantas

mudanças sociais que sua emergência marcou nada menos que a transformação do mundo ocidental.

Como sugeriu um historiador, o aparecimento da “revolução do consumo” rivaliza apenas com a

revolução neolítica no que toca à profundidade com que ambas mudaram a sociedade.

Para Guerra (2011), essa revolução do consumo, significou não somente a modificação nos

gostos e nos hábitos e preferências de compras, mas também uma fundamental remodelação na

cultura mundial da modernidade: alteram-se os conceitos de tempo, espaço, sociedade, indivíduo,

família e Estado.

Ainda segundo Guerra (2011), o que mudou na análise do consumo foi o entendimento de

que esse não é apenas uma função de suprimento e dispêndio, como se observa na visão utilitarista

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

39

de que se consome apenas em função das necessidades. A sociedade produz os bens que precisam

ser consumidos.

A ampliação do conceito de necessidades e o rompimento com a visão economicista

centrado na produção e no consumo individual para o suprimento de necessidades trouxeram à tona

a necessidade de debruçar-se sobre o consumo em busca de aspectos não mais baseados apenas na

produção, mas, em seus aspectos culturais e de seu papel na estrutura social (GUERRA, 2011).

Para percebermos inúmeras relações que se estabelecem entre cultura e indivíduo, trago

Bauman (2008) para dá sua contribuiçãoà discussão. Para o autor, o consumo é uma atividade

humana que existe há muito tempo:

O consumo é uma condição, e um aspecto, permanente e irremovível, semlimites temporais ou históricos; um elemento inseparável da sobrevivênciabiológica que nós humanos compartilhamos com todos os outrosorganismos vivos. Visto dessa maneira, o fenômeno do consumo tem raízestão antigas quanto os seres vivos – e com toda certeza é parte permanente eintegral de todas as formas de vida conhecidas a partir de narrativashistóricas e relatos etnográficos (BAUMAN, 2008, p. 38).

Bauman (2008) afirma ainda que, com o advento da modernidade, o consumo adquire

centralidade na vida de grande parte das pessoas, num processo que lhe imputa inúmeras alterações

e determina algumas de suas características que perduram até os dias de hoje, que ele chama de

sociedade de consumo. Bauman (2008) descreve, nesse sentido, a seguinte distinção entre consumo

e consumismo:

o “consumismo” chega quando o consumo assume o papel-chave que nasociedade de produtores era exercido pelo trabalho. De maneira distinta doconsumo, que é basicamente uma característica e uma ocupação dos sereshumanos como indivíduos, o consumismo é um atributo da sociedade(BAUMAN, 2008, p. 41)

A partir da inserção do indivíduo na sociedade moderna, o consumo torna-se objeto de

preocupação da academia. No entanto, a necessidade aqui é mostrar as várias possibilidades de

análise que podem surgir a partir da ideia de consumo na sociedade contemporânea. Nesse mesmo

sentido, McCracken (2003) define o consumo como o “processo pelo qual os bens e os serviços de

consumo são criados, comprados e usados”. O consumo é um elemento construtor de relações

sociais, pelo consumo os indivíduos criam vínculos entre eles e com a sociedade.

Em Cypriano (2008), a atividade de consumo na experiência contemporânea, busca

entender as questões de subjetividade e consumo, tendo como principais arcabouços de analise as

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

40

relações entre individuo e sociedade e entre o sujeito e objeto, constituídos de elaborações sobre as

noções de individualidade e subjetividade.Já para Barbosa e Campbell (2006), o mais importante é:

[...] a quantidade de trabalhos é a relevância teórica que a categoriaconsumo passou a ter em algumas disciplinas e a atribuição da classificaçãoconsumo a áreas e domínios que antes não eram percebidos como tal e nosquais sua eventual presença era inteiramente desqualificada – como, porexemplo, no caso da cidadania, da cultura, da política, do meio ambiente eda religião (BARBOSA E CAMPBELL, 2006, p. 23).

Os bens de consumo seguem uma trajetória que está rimada com a necessidade de

significância para aqueles que consomem ou para aqueles que esperam no consumo satisfações

além do objeto visto, palpável e manuseado. Tais bens de consumo são produtos e produtores ao

mesmo tempo, pois nascem de um emaranhado cultural e dessa teia de significados culturais ligados

ao bem. É dado a eles valor não apenas econômico, mas valores morais, éticos, identitários. Os bens

podem agir como marcadores sociais a partir de suas singularidades e atuações na sociedade.

Por décadas, a experiência narrativa que comanda os estudos sobre o consumo esteve

atrelada à economia política. Tal fenômeno é compreendido a partir da sociedade capitalista de

produção de mercadorias em massa, tendo relação direta com as políticas econômicas

desenvolvidas nos países capitalistas, onde o marketing, promoção de novos estilos de vida, é

perpassado diretamente pela produção de bens.Ao longo das décadas, tais experiências construíram

graves contradições ideológicas, pois o consumo não poderia ser visto apenas de forma

desvinculada de uma sociedade que detém a cultura do consumo.

O consumo é ao mesmo tempo um processo social, que diz respeito a múltiplas formas de

provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmo bens e serviços; um

mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentido e de identidades,

independentemente da aquisição de um bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais

diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos diretos, estilo de vida e

identidades; e uma categoria central na definição da sociedade contemporânea (BARBOSA E

CAMPBELL, 2006).

Como ocorre paulatinamente com ideologias, essa promoção do consumo é efetivada em

grande parte porque ela se torna o racional esperado por trás de um conjunto de esferas e práticas.

Assim como a crítica do consumo precisa ser desfeita por sua postura moral subjacente, o mesmo

vale para o apoio ao consumo.

A busca por entender o consumo específico de um objeto é muitas vezes abordada de uma

forma mais eficaz se demonstrando a diversidade de tal consumo (MILLER, 2007: p. 50). É por

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

41

isso que o treco Padre Cícero, as estátuas que são produzidas com a sua imagem, que são

conhecidas e reconhecidas por citadinos e visitantes é o foco deste trabalho. É a partir do treco que

desperto o interesse em saber como as coisas fazem as pessoas e como as relações são produzidas

em cadeia.

Para pensar o treco enquanto produtor de relações sociais, trago Marcel Mauss em Ensaio

sobre a dádiva (2011), com sua teoria sobre as trocas simbólicas,a fim de construir suporte teórico,

na perspectiva de reconhecer um sistema de obrigações básico para a criação de um vínculo social,

oque não significa estar automaticamente vinculadoà dádiva. Na troca de dádivas das pessoas que

visitam o Juazeiro, segundo Mauss (2003), é possível observar a presença constante de um sistema

de reciprocidade de caráter interpessoal.

Esse sistema, que podemos vislumbrar em Juazeiro do Norte, se expande ou se retrai a

partir de uma tríplice obrigação coletiva de doação, de recebimento e devolução de bens simbólicos

e materiais, é chamado por Mauss de “dom” ou “dádiva” (2011).Entendendo-os como

consumidores, não só material, os sujeitos sociais não querem apenas objetos para si, mas, para

dividir, dar, inserir-se dentro de padrões de consumo que são estabelecidas por desejos e

expectativas não apenas individuais, mas, coletivas.

Os caminhos percorridos no Juazeiro do Padre Cícero, os encontros e desencontros com

outros e comigo mesmo, reificaram em mim a importância das relações estabelecidas, não só de

sujeito a sujeito, mas de sujeito com as coisas, de sujeito com tudo o que compõe mundo, pois nós

nos inventamos e reinventamos nas coisas.

2.3 CAMINHOS DE JUAZEIRO: ENCONTROS E DESENCONTROS.

Para desenvolvimento da pesquisa, propus pensar o consumo das estátuas do Padre Cícero

pelos romeiros devotos a partir da explicação da significância cultural do treco e do sistema de

dádivas como fenômeno total que abarca a vida social na medida em que tudo aquilo que participa

da vida humana, sejam bens materiais ou simples gestos, tornar-se relevante para a construção da

vida em sociedade.

Lembro-me sempre que teoria e metodologia andam juntas. Nessa perspectiva, apresento

neste trabalho a possibilidade de pensar o treco junto à dádiva, diante da ideia de fundição das duas

teorias, como investigação do objeto de pesquisa apresentado, pois há um lugar onde se podem

apreender as duas teorias, das coisas e da dádiva. Que, nesse caso, é no consumo das estátuas. Então

o objeto é o consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros devotos enquanto treco, que

possibilita pensar esse bem como troca simbólica.

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

42

Portanto,dediquei-me ao uso de teorias, testando-as, ou seja, dissertando sobre um tema

diante de uma perspectiva teórica, antropológica, sociológica e histórica, atividade na qual pude

perceber que em algumas situações as teorias não se encaixam, sendo necessário propor, questionar,

dar uma contribuição.

A pesquisa de campo foi realizada através de entrevistas semiestruturadas, anotações em

diário de campo, observação e registros fotográficos de espaços e momentos considerados

relevantes para o estudo. Nesse sentido, a pesquisa de campo está pautada nas entrevistas

semiestruturadas e na observação, cujo objetivo foi obter dados para a construção de possibilidades

de descrição dos significados, do símbolo, representação, partindo da análise empírica e teórica

sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros devotos.

Na pesquisa, cada vez mais, vi-me obrigado a utilizar estratégias indutivas: em vez de

partir de teorias para testá-las, foram necessários “conceitos sensibilizantes” para abordagem de

contextos sociais a serem estudados posteriormente. As teorias são desenvolvidas a partir de estudos

empíricos. Já o conhecimento e a prática são estudados como conhecimento e prática locais

(GEERTZ, 1997).

De acordo com Flick (2004), a relevância especifica da pesquisa qualitativa para o estudo

das relações sociais deve-se ao fato da pluralização das esferas de vida. Expressões chaves para essa

pluralização são a nova obscuridade, a crescente “individualização das formas de vida e dos padrões

biográficos” (BECKER, 1992) e a dissolução de “velhas” desigualdades sociais dentro da nova

diversidade de ambientes, subculturas, estilos e formas de vida. Essa pluralidade exige uma nova

sensibilidade para o estudo empírico de tais questões.

A mudança social acelerada e a consequente diversificação de esferas de vida fazem com

que os pesquisadores sociais defrontem-se, cada vez mais, com novos contextos e perspectivas

sociais. Desse modo, entendemos que a pesquisa de campo sempre foi composta por caminhos de

descobertas. Os desencontros nos fazem vislumbrar outras possibilidades de estar e perceber o

campo de pesquisa e por essas questões acredito ser relevante nesse momento apresentar os

caminhos por mim percorridos na cidade de Juazeiro do Padre Cícero no ano de 2016 (fevereiro a

novembro). Fiz minha primeira inserção ao campo de pesquisa com o sentimento de aventura por

novos caminhos, sem saber o que iria encontrar nesse percurso, que, às vezes, pode ser solitário,

angustiante e doloroso, outras vezes, penso que pode ser alegre, satisfatório e bonito.

Mesmo em Juazeiro do Norte, a maior cidade da região sul do Ceará, onde nasci e moro

até os dias atuais, fico a me perguntar: que ruas são essas, que nunca as vi dessa forma? Que

pessoas são essas que fabricam, vendem e outras consomem o bem Padre Cícero? E que objeto é

esse, causador, transformador e produtor de relações sociais? São alguns questionamentos que

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

43

ajudaram a me encontrar e, ao mesmo tempo, desencontrar nesse campo de pesquisa. Caminhando

sempre lentamente, observando e interpretando práticas, escutando as palavras, num exercício de

aprendizagem na relação com as pessoas dos lugares percorridos, do “campo”. Nesse exercício,

penso o “campo” sendo a terra, que se afofa, que se tritura, que se sente, que se trabalha (AGIER,

2015. p. 10).

A pesquisa visa o saber universal, com alcance a toda a comunidade, tendo a antropologia

fundamentada na etnografia, na verificação das experiências sociais e descobertas dos

questionamentos produzidos pela investigação antropológica, visando construir um saber original,

prático, ou, como Agier se refere, saber-viver. Segundo Agier (2015), os antropólogos falam

diferentemente: as palavras que eles utilizam não são mais exatamente as mesmas, o estado dos

conhecimentos sobre o humano em geral evoluiu enormemente e, sobretudo, as “questões sociais”

nas quais eles situam suas pesquisas mudaram como as próprias sociedades.O debate universalista –

que interpela a antropologia – nunca é fechado e, consecutivamente, a antropologia faz apelo a

novas etnografias. Isso ocorre a partir do momento em que a pesquisa é proposta a partir da cidade,

que não pode ser pensada como objeto que poderia ser captado pelo pesquisador de forma

totalitária.

Vale dizer que a cidade que pensamos corrobora com a ideia do Agier (2011), no sentido

de pensar a antropologia da cidade não baseada por uma definição externa, urbanística, estatística

ou administrativa da cidade. Não há um mínimo demográfico, um modelo de habitat, uma qualidade

rodoviária, ou quilômetros de redes técnicas para determinar o objeto da investigação. Há uma

multitude sem totalidade, a cidade é também demasiado heterogênea para que o próprio antropólogo

consiga aceder à sua complexidade sem se perder.

Neste trabalho, compreendo a cidade do ponto de vista dos visitantes, ou seja, romeiros

devotos, por “sobre os ombros” deles, deslocando assim o olhar da cidade para as pessoas que

visitam, sentem e fazem a cidade.É diante desse desejo de pensar a cidade e a dimensão do “campo”

de forma não previamente formulada que podemos pensar “por cima dos ombros”, focando em suas

práticas, consumo e modos de significação que estão ligadas ao processo histórico cultural e

material.

A antropologia se construiu historicamente como estudo do outro, entendido como outra

sociedade, outra cultura, outro grupo social. Pensando a pesquisa como a condição concreta para

produção de um novo conhecimento, estando associado à teoria, categorias e conceitos, com o

intuito de alumiar o objeto do conhecimento. Ao realizar essa tarefa, proponho produzir novas

discussões a partir do bem de consumo Padre Cícero, a proposta da pesquisa é trazer a significação

cultural do consumo das estátuas Padre Cícero para os romeiros.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

44

Portanto, minha inserção para o encontro com o campo acontece na cidade do Juazeiro do

Norte, mapeando as lojas que vendem o bem de consumo Padre Cícero em gesso. Por isso dou a

minha partida para o campo indo para a loja de bens religiosos do centro da cidade, Rua São Pedro,

esquina com Rua da Conceição. Nessa loja de bens religiosos há várias estátuas do Padre Cícero e

outros santos, sua posição no centro da cidade faz-me pensar: é por aqui que devo começar a

investigação sobre o bem de consumo Padre Cícero.

A loja está localizada no “coração”da cidade, fica entre a Rua São Pedro (principal rua do

comércio da cidade) e a Rua Nossa Senhora da Conceição (rua onde fica o centro financeiro da

cidade, onde estão localizadas o Banco do Bradesco e a Caixa Econômica Federal), seu espaço é

3x3, cheia de estantes de aço e um balcão de madeira espelhado com prateleiras internas, onde são

colocadas várias imagens. O teto é baixo, e cheio de rachaduras e buracos no forro. Um prédio com

várias marcas do tempo, com rachaduras e telhas acima amostra.

Porém, antes mesmo do início a pesquisa de campo, passava várias vezes por aquele local

e ficava a pensar que ali seria o melhor local, pois sua localização dentro do roteiro da fé 11, no

“coração” do centro, me atraiu. As várias pessoas que passavam pela calçada da loja, estando na rua

do circuito das romarias, me fizeram pensar que “não há melhor lugar para dá início a pesquisa de

campo”. A recepção não foi das melhores, a senhora que me atendeu, demonstrou esquivar-se de

qualquer pergunta e disse-me: “é o meu marido que sabe das coisas da loja”. Eu já havia entendido

que se quisesse saber de alguma coisa, teria que perguntar para ele, o marido.

Assim foi feito nos dias seguintes e junto com as informações obtidas me veio várias

inquietações, aflições e dúvidas. Fiquei inquieto com a parcimônia do local que havia pensado para

a pesquisa. Movimento calmo e entristecido. O trânsito escasso de pessoas dentro da loja fez-me

pensar em outro espaço onde tivesse mais contato com os consumidores das estátuas do Padre

Cícero. Naqueles dias de aflição,eu voltava sempre à loja e sentia um desprezo no que se refere a

minha presença. A desconfiança aumentava, pois era eu que toda às vezes tentava dialogar com o

casal de lojistas.

Por vezes, tínhamos alguns minutos de conversa, sempre a pergunta sobre o consumo das

estátuas do Padre Cícero, e sempre a escutar respostas diretas e prontas. Em alguns dias, comecei a

ser perguntado como eu usaria aquilo que eles disseram para mim, daí que pensei que deveria trazer

11 O roteiro da fé compreende em várias vias que formariam um percurso prioritário para o acontecimentodas romarias: prolongamento da Rua São José (projetado), Rua São José, trecho Rua do Cruzeiro-LeandroBezerra, Rua Santa Cecília, Rua Cansanção, trecho Rua Delmiro Gouveia, Rua São Bernardo, Rua SãoJorge, Rua São Francisco, com sentido duplo, Rua da Glória, trecho projetado no terreno do IBAMA (av. Dr.Floro Bartolomeu), ligando à Rua da Matriz existente. Indiretamente englobava Centro, Socorro, Salesianos,Franciscanos, São Miguel e Juvêncio Santana, bairros sob a influência do percurso.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

45

algo que legitimasse minha presença no estabelecimento do casal. Algo que me apresentasse como

pesquisador. Lembrei-me então, que além de pesquisador, atuo como professor de sociologia em

uma das maiores escolas estaduais da cidade de Juazeiro do Norte, a escola de ensino médio

Presidente Geisel, conhecida como Polivalente.

Não obstante, decidir tomar outro rumo, pensando que a mudança poderia me dá novas

oportunidades para entrevistas e coletas de dados. Assim foi feito. Não descartei voltar à loja,

porém, acreditei que deveria circular em outros lugares. Não poderia ficar toda a pesquisa de campo

apenas em uma loja de bens religiosos, já que o meu interesse sempre é nos consumidores.

Tomei rumo12 para a Rua São José, na quadra na qual está localizada a última morada do

Padre Cícero (hoje casa/museu do Padre Cícero), contendo várias lojas de bens Padre Cícero,

restaurantes de comida caseira, pousadas, ranchos e hotéis para os romeiros que vêm à cidade. Na

loja do senhor Wilson e senhora Irani encontrei uma grande quantidade de bens com a imagem do

Padre Cícero (chaveiros, camisas, shorts, bermudas, cortadores de unha, fitas com o nome do Padre

Cícero, bolsas, carteiras, quadros e fotografias). O casal mantém a loja há vinte e oito anos e

acreditam que tudo aquilo que é vendido, todo o crescimento do comércio da cidade desde sua

fundação até os dias de hoje, têm as bênçãos e permissão do “Padim Pade Ciço”13.

Passei alguns dias a escutar histórias do casal, seu Wilson metalúrgico na cidade de São

Bernardo do Campo, estado de São Paulo, e senhora Irani retirante de Juazeiro do Norte, foi a São

Bernardo para encontrar trabalho. Lá se encontram, construíram família e, logo depois da perca do

emprego do seu Wilson, a Irani fez a proposta para voltar para sua terra, Juazeiro do Norte, pois

tinha a fé no Padim Ciço de que nada iria faltar para seus filhos. E assim foi feito. Eles estão há

quase trinta anos vendendo bens de consumo Padre Cícero.

Diante da acolhida do casal Wilson e Irani, que têm dois pontos comerciais na Rua São

José, e toda a amizade construída entre os meses de maio e novembro, tornaram-se o meu ponto de

apoio. A Rua São José está dentro do roteiro da fé, ficando próxima da maior praça da cidade, Praça

Padre Cícero, local de grande aglomeração de visitantes na cidade. Comecei a fazer entrevistas com

os clientes do seu Wilson e Irani e depois ia até praça para continuar o trabalho. Voltava várias

vezes durante o dia, tomava água, picolé e rumava para a praça novamente.

Já estando no mês julho e seguindo o mesmo ritmo, fiquei pensando na pesquisa e

chegueià conclusão que não daria conta de todos os bens que contém a imagem do Padre Cícero.

Precisaria apontar uma direção que me desse maior objetividade e transparência metodológica.

12 Ir adiante, mesmo com algumas mudanças nos espaços do campo.

13 Termo usado pelos devotos para fazerem referência ao Padrinho Padre Cícero.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

46

Decidi que a estátua do Padre Cícero,esse bem de consumo, seria meu focoa partir de então. Porque

essas estátuas do Padim são vendidas? Quem compra, por que compra e para quem compra? Foram

essas algumas perguntas de partida que me ajudaram a seguir com a pesquisa.

Seguindo esse norte, busquei novamente mudanças no campo que atendessem minhas

necessidades como investigador da cultura material e, dessa vez, fui em busca das lojas

especializadas na venda das estátuas do Padre Cícero. Deixei para trás as longas e agradáveis

conversas em manhãs e tardes na loja do casal de amigos, tendo que me aventurar em outros

espaços.Ao que parece, as pesquisas de campo têm um sentido diferente de tudo aquilo que se faz

diante outros métodos de pesquisa, pois as mesmas estão baseadas nas limitações dos conceitos e

significados das palavras chaves que são usadas. No campo exige-se escutar, ouvir, olhar e escrever

(CARDOSO, 2000).

Minhas mudanças, que ocorrem desde as minhas primeiras incursões ao campo, me

fornecendo uma amplitude daquilo que estou a pesquisar, o bem de consumo Padre Cícero. Então,

fiquei a pensar nos últimos dias sobre tais bens e sua diversidade, ao que parece uma quantidade

infinita de objetos.

Nesse sentido, estaria me referindo ao conjunto de representações e sistemas de valores

diferenciados através de cada modalidade desses bens. A partir desse dia ouso a pensar apenas o

bem Padre Cícero, sua estátua produzida em gesso, espelhada na pessoa física. Por consequência,

mudo as ruas do campo de estudo, outrora estando na Rua São José, indo agora para o bairro do

Socorro, onde se localiza a igreja do Socorro (onde o Padre está enterrado). Nesta quadra há grande

quantidade de lojas que vendem, especificamente, o bem de consumo Padre Cícero, estátua.

Minha aventura no campo continuou e me dirigi ao largo do Socorro, espaço que contém a

capela do Perpétuo Socorro, onde estão os restos mortais do Padre Cícero, a praça de eventos

(eventos como, aniversário de nascimento e de morte do Padre, acontecem na praça do largo do

Socorro), feira de artigos religiosos e museu Padre Cícero. Estar no largo do Socorro foi, para mim,

a tentativa de romper com o senso comum, mas, como não conseguimos instaurar a vigilância

epistemológica o tempo todo, precisei autovigiar, compreender e romper vigiando.

FOTO 05 – Mapa de representação do Bairro Socorro

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

47

FONTE: (ARAUJO, Marcos A.G., 1988 / adaptado por MARQUES, Michael, 2016).

O largo do Socorro é o espaço de visitas com maior circulação dos devotos do Padim. É o

lugar que tem a maior concentração de lojas que vendem o bem Padre Cícero, estátuas do sacerdote,

além de ter a feira de artigos de religiosos no espaço do largo. Dentre as lojas que comercializam

bens de consumo Padre Cícero nesse espaço, algumas, se tornaram passagem obrigatória das

minhas idas e vindas ao campo, pois várias elas existem há mais de 30 anos. A loja de artigos

religiosos Padre Cícero, por exemplo, existe há trinta e nove anos comercializando bens religiosos,

e, principalmente, a estátua do Padre Cícero em gesso. A proprietária da loja, senhora Celmar, e sua

gerente Joana D’Arca, sempre estiveramà disposição para me dar informações sobre o Padre

Cícero, o largo do Socorro e os bens que são vendidos.

Havia também a Nininha, proprietária da loja vizinha, que sempre ia me cumprimentar e

relatar algo que aconteceu ou acontece no largo do Socorro. Por vezes, levava seu celular com

informações trazidas da rede mundial de computadores, mostra-me algo e tecendo sempre breves

comentários. Geralmente encontrava o Rogério (marido da Joana D’Arca, filho da Celmar,

historiador) com suas críticas fundadas a partir das suas experiências como morador antigo do

espaço.

Segundo Rogério, o largo do Socorro está abandonado, sem nenhum atrativo para o

turismo religioso, ao longo dos anos nada foi construído. Não há nenhuma novidade para aqueles

que visitam a cidade anualmente, o que resultaria em uma diminuição das visitações a cidade do

Juazeiro, tendo como consequência a diminuição das vendas do bem Padim Ciço.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

48

A loja Padre Cícero de artigos religiosos é a maior que existe no espaço largo do Socorro.

Nela encontram-se bens de consumo Padre Cícero de várias dimensões, que variam de dois

centímetros (2 cm) até um metro e oitenta (1,80m) de altura, havendo uma diversidade de preços de

acordo com a dimensão do bem. Os materiais que são usados na fabricação dos bens Padre Cícero,

nas oficinas espalhadas pela cidade, são: gesso, concreto, fibra, borracha, resina, PVC, acrílico,

louça, parafina e cristal.

FOTO06 -Padre Cícero em alumínio e gesso(02 cm a 10 cm, respectivamente).

FONTE: Michael Marques, 2016.

Durante os vários dias de trabalho de campo, entre conversas com meus informantes, dona

Celmar, Joana D’Arca, Rogério, senhora Nonô, donos de lojas no largo do Socorro, ouvi vários

dizeres, ganhei em forma de santinhos vários dizeres do Padim Ciço, que são entoados e

reproduzidos por vários citadinos e romeiros visitantes da cidade. Tais dizeres estão voltados para a

concepção de trabalho e fé (ARAÚJO, 2011), difundida pelo Padre Cícero14.No Joaseiro15, há

preceitos morais e econômicos, um código de honra que foi implantado pelo Padre Cícero e está nas

bases da formação civilizacional e econômica da cidade (DELLA CAVA, 2014. p. 260 a 261).

14 Ver mais em: ARAÚJO, Maria de Lourdes de. A cidade do Padre Cícero Trabalho e Fé. Fortaleza.IMEPH, 201; BARROS, Luitgarde O. C. A terra da Mãe de Deus - Um estudo do Movimento Religioso deJuazeiro do Norte. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, ed. MINC-INL, 1988; BARROS, LuitgardeOliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero. A terra da mãe de Deus. 3 Ed. Fortaleza: Editora IMEPH,2014; CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte.Fortaleza: IMPEH, 2011.

15Grafia usada em Joaseiro até o ano de 1914. A partir de então, passou a ser escrito Juazeiro do Norte.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

49

Tal código foi fundamentado na tradição cristão e as narrativas estão fortemente presentes

em toda a cidade, das quais se destacam as seguintes: “trabalhe como se nunca fosse morrer, reze

como se fosse morrer amanhã”, “Deus nunca deixou trabalho sem recompensa, nem lágrimas sem

consolação”, “dê o primeiro passo e o resto o nosso bom Deus fará”. Esse ideário de prosperidade

pelo trabalho e fé era difundido pelos imigrantes que chegavam ao Joaseiro e que vislumbravam

uma melhoria de vida na ‘terra da prosperidade’, com garantias subjetivas e objetivas para

subsistência das famílias e reprodução social e econômica da cidade do Padre Cícero16.

FOTO07 - Conselhos do Padre Cícero espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte

FONTE: Michael Marques, 2016.FOTO08 - Conselhos do Padre Cícero espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte

16 Para saber mais vê: (ARAÚJO, 2011); (BARROS, 2014); (CORDEIRO, 2014). Para esses autores asbases que sustentam essa sociedade se baseiam na ideologia da fé, como construtora da concepção do mundoe das relações sociais.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

50

FONTE: Michael Marques, 2016.

Pois bem, vamos à reviravolta. Quando pensei que todos os questionamentos da pesquisa

iriam ser respondidos naquele espaço do largo do Socorro, surgiu-me novamente a necessidade de

andanças, oumesmo mudança de campo, pois entendi que não erasomente os lojistas que teriam

respostas para o significado do consumo das estátuas do Padre Cícero. Os dados não funcionam

como queremos, não é o que imaginamos e sim o que o campo nos dá.

Diante dessa nova mudança, deparei-me amigos, sabedores da pesquisa em andamento,

que me convidaram a ir até o santuário de São Francisco das Chagas, com a prerrogativa de que ali

eu teria mais acesso aos romeiros (as) em virtude dos espaços de grande aglomeração que há no

santuário, o que facilitaria minha inserção no campo, observação e continuidade das entrevistas.

Vale lembrar que toda a minha infância e parte da adolescência morei no Bairro Franciscanos, visto

que, o espaço do santuário, as ruas ao seu redor, as casas dos amigos, não seriam nada estranhos

para mim.

Percebi, porém, que em alguns momentos da pesquisa, naquele espaço tão comum para

mim, o estrangeiro era eu. Não conseguia olhar mais as ruas, o santuário, a aglomeração de

romeiros visitantes como outrora. Naquele instante eu era “o de fora”, aquele que não reconhece

onde está, mesmo havendo familiaridade com aquilo tudo Impressiona a mudança na forma de

percepção, observação que tivera em tantos dias de pesquisa no espaço meramente conhecido, mas

que agora minha posição sendo “o de fora” impulsiona-me para seguir adiante, na tentativa de

reconhecimento daquele espaço, antigamente tão comum para mim.

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

51

Não encontrei outra forma de apresentar o meu trabalho, de apresentar esse objeto, se não

problematizando a mim mesmo. Por dias via o objeto de longe, onde tive que percorrer outros

espaços da cidade (centro e periferia), quando na verdade, na minha pesquisa, o “Juazeiro” estava

perto da minha casa. Achava que o deslocamento para o centro faria encontrar o “Juazeiro” que

queria, o objeto almejado, que respondesse todas as minhas questões, mas o “Juazeiro” estava em

todo lugar, inclusive perto da minha casa.

O santuário São Francisco das Chagas (também conhecido como Igreja dos Franciscanos)

teve sua pedra fundamental inaugurada em 06 de janeiro de 1950, tendo o seu benzimentoseis anos

depois, em 1956. A igreja dos Franciscanos se constituiu em um dos mais belos templos da ordem

no Brasil. Ela foi construída em estilo romano lombardo17, tendo a planta do templo forma de cruz

latina. Na construção do templo foram necessários 560.00 mil horas de trabalho, 4.591 sacas de

cimento, 10.500 quartas de cal, 49.088 quilos de ferro, 4.500 m³ de vidro, 3.050.000 de tijolos. Sua

torre de 45 metros de altura, conta com um bonito relógio e mais oito sinos, nos quais estão sem

funcionar por falta de manutenção. O santuário de São Francisco das Chagas, em dias de romarias,

chega a comportar cerca de 30 mil pessoas.

Foto 09 - Santuário São Francisco das Chagas (Juazeiro do Norte)

FONTE: Michael Marques, 2016.

17 O temploé de planta de cruz latina, embora também se encontrem construções de planta central.Generalizou-se a planta com girola e capelas radiais ou absidíolas. A girola utiliza-se preferencialmente nasigrejas de peregrinação e consiste em uma nave que dá a volta ao presbitério, também recebe o nome deambulatório. A cada absidíola permite a colocação de um altar, entre os que se abrem as janelas que alumiama girola.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

52

Ao chegar ao santuário, eu vi grandes possibilidades de atendimento das minhas

indagações, pois naquele local, em período de romarias, abrigam-se uma enorme quantidade de

barracas que comercializam panelas, roupas, imagens em molduras, gesso, madeira eplástico.

Outras que vendem comida e guloseimas (sorvete, picolé, doces, bolos), sandálias, gravadores,

chapéus, eletrônicos de vários tipos. Há aglomeração durante os cinco dias da romaria de finados,

que vai de 28 de outubro a 02 de novembro. Fazendo parte do roteiro da fé, no circuito das

romarias, o santuário de São Francisco das Chagas é um antro de passeio com significados diversos

para cada pessoa que visita o local.

FOTO 10 - Barracas localizadas ao redor do Santuário São Francisco das Chagas

FONTE: Michael Marques, 2016.

FOTO 11 - Barracas localizadas ao redor do Santuário São Francisco das Chagas(Do ladoesquerdo da imagem vê-se o “passeio das almas”).

FONTE: Michael Marques, 2016.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

53

Barracas se amontoam ao redor do Santuário. As dimensões da maioria não ultrapassa de 2

x 2 metros, ficando espremidas entre as Ruas Monsenhor Esmeraldo, D. Pedro II e a Avenida

Carlos Cruz. Não há uma uniformização das barracas, muito menos demarcações do poder público.

Em dias de romarias, moradores das casas das ruas ao redor do Santuário ficam sem sair com seus

carros, havendo uma quebra no ritmo diário desse local. Contudo, não há grandes reclamações, pois

os moradores dali aproveitam para montar seus botecos, restaurantes itinerários, ou vender

bugigangas para obterem uma renda extra.

Visto que o santuário dispõe de espaços de grande circulação, usei como estratégia estar no

“passeio das almas”, passarela suspensa que circula parte do santuário e na qual os fiéis dão voltas

(no mínimo uma) para se encontrarem consigo mesmos, elevando suas almas a Deus, a São

Francisco das Chagas e a Padre Cícero. Muitos veneram a beleza, alegando ser parte do paraíso na

terra, onde tudo de bom pode acontecer depois da volta dada no “passeio das almas”. É lá onde é

marcado o encontro com Deus, que tira todos os pecados do mundo. Voltas no “passeio das almas”

são acompanhadas de orações, pagamento de promessas, lágrimas nos olhos, veneração e várias

paradas para fotos, contendo expressões de satisfação e alegria. Naquele contexto de fé, alegria e

oração, eu pensei comigo: o campo me acolheu.

FOTO12 - Santuário de São Francisco das Chagas/“Passeio das almas”.

FONTE: Michael Marques, 2016.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

54

No“passeio das almas” foram feitas as entrevistas, cujo intuito foi compreender os

significados do consumo da estátua do Padre Cícero. As conversam permearam temas específicos:

além dos dados dos interlocutores, eu me preocupei em compreender os significados do Juazeiro

para aquelas pessoas mediante perguntas como: Qual o seu nome, idade e cidade de origem?

Quantas viagens já desses ao Juazeiro? O que significa estar em Juazeiro para você? Alguma vez, já

comprou aqui no Juazeiro a estátua do Padre Cícero? Para você o que significa comprar a estátua do

Padre Cícero? Voltaria ao Juazeiro? Acredito que essas perguntas trouxeram como possibilidade de

respostas uma relação simbólica com a cidade, com o que as pessoas entendem por Padre Cicero e

sobre o treco.

Mesmo tendo uma semiestrutura, as entrevistas aconteceram de forma aberta e espontânea,

pois entendi que a relação com o campo se dá a partir da interação mútua, na observação dos gestos,

ações e tudo que acontece ao seu redor. Foram realizadas 54 entrevistas, 18 delas ocorreram na

Praça Padre Cícero, Rua São José e Largo do Socorro, e as outras 36 no “passeio das almas”, no

santuário de São Francisco das Chagas.

As entrevistas na Praça Padre Cícero, entre julho e novembro, foram realizadas por

abordagem direta, na qual eu me apresentava como estudante pesquisador da Universidade Federal

do Rio Grande do Norte (UFRN). Os olhares desconfiados pairavam sobre mim,. Eu imagino que as

pessoas ficavam a se perguntar: “como ele prova isso?” Muitas dessas tentativas foram frustradas,

pois não conseguia aproximação para dialogo com aqueles que seriam meus principais informantes.

Passei alguns dias pensando em estratégias para as abordagens e resolvi levar a carteira de

estudante e uma folha de ofício com o nome (no início da folha em caixa alta) da Universidade

citada. Comprei umchapéu (na loja do seu Wilson) como proteção do sol, para cabeça e pescoço, e

comecei a usar uma mochila preta com algumas coisas para apoio como as folhas com as perguntas,

canetas e um gravador. Acredito que o “documento” (carteira de estudante) legitimava a minha

abordagem, alguns chegaram a pegar a carteira, ler as informações contidas, numa tentativa de

verificar sua veracidade. Essa estratégia facilitou a aproximação e passei a dialogar com as pessoas

do campo a fim de obter as entrevistas.

Outra estratégia usada para aproximação com informantes era o conhecimento de boa parte

das cidades de onde vinham. Alguns vinham dos estados de Sergipe, Alagoas, Bahia, Paraíba,

Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Piauí, Maranhão, dentre outros. Aocitarem a

cidade de origem, eu dizia a muito deles: “conheço” ou “já passei por lá” e até mesmo, “já fui ao

estado, masnão nessa cidade”. Supus que a ideia de conhecer a cidade de origem deles me daria

mais oportunidades para continuar com as entrevistas.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

55

Na Praça Padre Cícero, a maioria das entrevistas ocorreum em baixo de grandes árvores ou

nos bancos, onde todos buscavam um tanto de sombra para fugir da temperatura elevada18. Alguns

diálogos continuaram mesmo após ter sido desligado o gravador, principalmente com pessoas vinda

de Maceió, cidade da minha companheira, que conheço bem, o que facilitou citar nome de bairros e

ruas.

Em dias de romarias, a Praça Padre Cícero, recebe uma quantidade imensa de pessoas, que

circula pelo roteiro da fé. Dentre elas, ambulantes vendendo água, terços, escapulários, camisas com

a imagem do Padre Cícero e de outros santos, chapéus, bonés, picolés, sorvetes, pomadas que curam

todas as dores, pedintes e cantores peruanos nos quais montam uma pequena estrutura de som,

teclado, violão e tocam suas músicas em busca de venda de seus cd’s. Alguns romeiros e romeiras

arriscavam-se em dançar com seus parceiros, outros apenas escutavam e compravam cd’s das

músicas tocadas. Tais músicas eram regravações de grandes sucessos do Brasil e América latina,

sempre havia alegria e descontração entre uma música e outra.

No outro lado da praça, havia um palco de concreto, construído pelo poder público para

apresentações, que eram ocupados por grupos de jovens da Igreja Católica. Outro grupo que atuava

na praça se denomina JOCUM (Jovens com Uma Missão)19, e eram eles que também produziam as

apresentações no palco e distribuíam alegria para os romeiros que estavam em visitaà cidade. Às

vezes chamavam alguns romeiros para que eles dissessem de ondevinham, o que estavam achando

da romaria, se estavam gostando de estar no Juazeiro e se voltariam outras vezes.Nessa

configuração da Praça Padre Cícero é que as entrevistas foram feitas.

Na Rua São José, e largo do Socorro, a maioria das entrevistas foi feita com os clientes do

seu Wilson e senhora Irani. O casal amigo ajudava-me no que fora necessário, assim, convidava

alguns dos seus clientes a darem entrevistas, pois os mesmos conheciam alguns romeiros e romeiras

que vinham todos os anos, ou que já vieram outras vezes comprar na sua loja. A abordagem seguia

com a mesma estratégia de levar uma identificação e o gravador sempre no bolso para facilitar.

A maioria das entrevistas foi realizada no Santuário de São Francisco das Chagas, das

quais sinto imensa saudade desses dias e do contato com todos os romeiros e romeiras que tive

algum momento de diálogo. A alegria demonstrada em cada um, pelo fato de estar no Juazeiro, estar

18 As primeiras perguntas eram sobre a possibilidade da entrevista, logo em seguida pedia a permissão paraser gravada, e que a fala pudesse estar no texto da dissertação. Não tive problemas sobre não usar asentrevistas, aqueles e aquelas que me concederam sempre desejavam boa sorte no trabalho e felicidades paramim e minha família.

19 Para saber mais sobre a atuação do JOCUM nas romarias do Juazeiro do Norte, vê dissertação demestrado da Itamara Meneses Terreno vigilante: compreendendo as ações dos jovens com uma missão(JOCUM) em Juazeiro do Norte-CE.<https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/21484>.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

56

na romaria, fazendo a caminhada no “passeio das almas”, ajudou-me na abordagem, na qual,

definitivamente não houve nenhum problema.

Algumas vezes fui convidado para acompanhar a caminhada a fim de que, ao final,pudesse

acontecer a entrevista. Fiz várias vezes o mesmo caminho. O “passeio das almas” nesses dias é um

lugar de paz, em que as pessoas estão conectadas com seus pedidos de graças e agradecimentos por

mais um ano de vida, por mais uma oportunidade de estarem vivenciando novamente esses

momentos em suas vidas.

Nesse momento da pesquisa, já decorria para o mês de outubro a novembro, senti que

encontrei o campo e o campo me encontrou. Daqueles momentos em diante, houve uma interação

entre pesquisador, objeto e campo, uma aclamação que em nenhum período anterior da pesquisa eu

havia sentido.

Como já foi dito anteriormente, em muitas horas, dias e meses, fiquei inquieto com o não

andamento do texto, das entrevistas, e das pesquisas. Cheguei a fazer contato com o autor de alguns

trabalhos sobre o Juazeiro do Norte e o Padre Cícerocomo, por exemplo, Daniel Walker20, enviando

textos meus. Alguns deles me respondiam que não poderiam me ajudar, pois a minha pesquisa não

se tratava de algo que eles já leram ou escrevam em seus textos.

Após aquele momentos e depois de todo o processo de pesquisa,posso dizer que o arco

sobre consumo e religião em juazeiro não abarca tudo o que Juazeiro é e significa para as pessoas

que moram e fazem romarias lá. Aquela cidade é composta de arcos culturais tanto quando

sãopossíveis os arranjos de homens e mulheres em sociedade.

20 É uma das principais referências na cidade para pesquisadores, jornalistas e interessados, e exemplo daluta pela preservação da memória do Cariri. Daniel Walker mantém dois blogs ativos na internet, são eles:http://www.sitededanielwalker.com/ e http://www.portaldejuazeiro.com/. Nos quais se propõe a divulgar,discutir e analisar notícias sobre o Juazeiro e o Padre Cícero.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

57

3CAPÍTULO II - O TRECO COMO “PROVA QUE SOMOS ROMEIROS”.

Neste capítulo,trago a tentativa de analisar o treco do qual estamos a tratar junto à teoria

das coisas. No desejo de inaugurar uma nova leitura sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero

pelos romeiros devotos, eu ouso desenvolver este capítulo junto aos estudos dos objetos materiais e

o olhar sobre a cultura material do antropólogo britânico Miller (2013), já citado várias vezes neste

trabalho.

Nesse sentido, a prática do consumo do treco Padre Cícero pode ser vista como um canal

de participação, individual ou coletiva, no processo de organização de elementos distintos que

compõem a tradição religiosa de acordo com os critérios que são atribuídos pela devoção e valores

(tradição e fé) e que são estabelecidos pelos consumidores do treco. São vários os significados

atribuídos, dentro de uma variabilidade possível, para que se tenha, ou que se deseje consumir o

treco.

Essa variabilidade possível está dentro de uma inserção em um mundo de respeito, fé,

satisfação, oração, idolatria, histórico familiar, glória nas alturas, revigoramento e devoção à

divindade honrada. Para tanto, o consumo mencionado também está para adquirir, admitir e evocar

uma posição social de devoto. Há, com efeito, em grande parte desse consumo, um comportamento

racional não coerente e inesperado, pois não podemos naturalizar tal prática de consumo antes

mesmo de perceber o conjunto de estruturas e práticas subjacentes a ela.

No entanto, antes mesmo de tratarmos afundo do treco Padre Cícero, é válido esclarecer

quem são essas pessoas, visitantes, também conhecidos como romeiro? Segundo Cordeiro (2011, p.

113), “romeiro” parece ser uma categoria central e ao mesmo tempo paradoxal não só das romarias,

mas também na composição das alteridades e identidades em Juazeiro do Norte.

Ainda com Cordeiro (2011, p.114-117), há uma tipificação dos participantes das romarias

que se nomeiam romeiros em Juazeiro do Norte, quesão: romeiros moradores (migrantes e seus

descendentes de primeira e segunda geração), romeiros turistas (participantes que consideram o

lugar visitado passível de ser aproveitado), romeiros devotos (participantes tradicionais que

estabelecem um contrato vitalício de retorno anual), romeiros acompanhantes (curiosos de qualquer

idade ou jovens, menores de 18 anos a quem os familiares tentam inculcar a importância das

práticas religiosas).

Desse modo os “romeiros devotos” foram aqueles que destaquei para o desenvolvimento

da pesquisa. Com efeito, ao longo do processo de observação e participação, os devotos se

apresentaram como utilitários para a compreensão da dinâmica social, pois são eles eram

participantes assíduos da construção de significados do mundo dos bens, aqueles que consomem,

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

58

em sua maioria, o treco Padre Cícero, estando este ligado a uma ideia além da materialidade, que

ainda ireitrabalhar mais a frente no texto.

Dando continuidade ao desenvolvimento da ideia do consumo das estátuas do Padre Cícero

pelos romeiros devotos a partir da teoria das coisas, podemos entender o treco, sobretudo,

relacionando-o a rotinas cotidianas, práticas, valores, crenças aprendidas interagindo de várias

formas com o mundo da cultura material. Como exemplo de cultura, o treco Padre Cícero assume

uma elaboração de formas com dimensões sistemáticas, de modo que só podemos entendê-lo a

partir dos acontecimentos históricos que ocorreram em Juazeiro do Norte e suas interações como

elemento atuante no cenário da cidade e como construtor de maneira particular da própria

sociedade, ou seja, o treco como agente-chave.

Segundo Miller (2013), uma sociedade particular elabora suas práticas culturais mediante

um padrão subjacente, que é manifestado numa multiplicidade de formas diferentes. Ao aprender a

interagir com uma profusão de culturas materiais, o indivíduo cresce aceitando as normas que nós

chamamos de cultura. O objeto em destaque na pesquisa, as estátuas do Padre Cícero, treco, não

expressam suas vontades, não falam, por vezes são obscurecidos pela não notabilidade, ou

irrelevância, pois não temos a dimensão do seu papel no mundo da cultura material. Esses objetos

nos ajudam a aprender como agir de forma apropriada, corroborando com o postulado da teoria das

coisas de que os objetos fazem as pessoas.

Antes mesmo de nossas práticas diárias se tornarem algo comum, crescemos a mercê de

coisas que foram transmitidas através das gerações anteriores. O ambiente cultural vivido,

experimentado e adaptado, gera uma tendência à capacidade de não notarmos o quanto as coisas21

são determinantes. Essa não notação das coisas propicia uma teoria da cultura material, dando aos

trecos uma significação além daquilo que poderíamos esperar.

Em Juazeiro do Norte, grande parte dos indivíduos comporta-se a partir das expectativas

que o treco Padre Cícero gera. Essa maioria dos indivíduos, devotos e consumidores do treco Padre

Cícero, tornam conscientes suas ações a partir de normas subjacentes estabelecidas e enquadradas

por valores, crenças, ritos e fé. Portanto, na verdade, é o treco padre Cícero que também constrói a

cultura.

Proponho pensar que no mundo da cultura material o treco Padre Cícero produz as relações

sociais e estrutura toda relação que é produzida em cadeia, a partir da sua significação para os

citadinos e visitantes (romeiros e romeiras). Essa proposição está citada pelos vários indivíduos que

o campo me deu a oportunidade de dialogar.

21 A palavra coisa, que aparece em várias passagens dessa dissertação, referem-se aos trecos, isto é, asestátuas do Padre Cícero.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

59

As referências feitas ao consumir o treco Padre Cícero estão alocadas dentro de uma

variabilidade possível, pois como já foi dito, não há coerência no ato do consumo. Por isso, venho a

destacar uma das minhas entrevistadas, a senhora Adriana, advinda de Aracaju, estado de Sergipe e

que me serve de apoio para sustentar minha ideiasobre consumo do treco. A senhora Adriana,

contou-me que era a terceira vez que vinha ao Juazeiro e que, por isso, já se considera romeira. A

significância para ela de estar no Juazeiro é o sentimento de paz que tem quando se encontra na

cidade e que leva consigo até o seu local de origem.

Eu já vim aqui pedi para meu filho... ele não ia nem andar nem falar... entãofiz uma promessa para ele e tô aqui... fui de pé até lá o Horto assistir umamissa todinha de joelho no chão e foi bem aceita...hoje ele fala...eu pedi aele que no momento que ele ficasse com alguma lesão que ele pudessemorrer que eu não ia ter tempo para cuidar dele...e nem todo mundo quepega para cuidar tem cuidado...aí a promessa do meu filho foi válida...e euaconselho a todo mundo...e qualquer um que seja...qualquer tipo desanto...qualquer tipo de imagem faça de coração. E a minha foi bem aceita(Interlocutor não identificado).

O treco Padre Cícero assume um papel de intermediário com o sagrado, aquele que faz a

intersecção com a divindade na qual se pede em oração. Nesse momento o treco Padre Cícero

torna-se o agente-chave da relação entre humano e o divino. O treco é o objeto que está além da sua

própria imagem, pois assume uma significação além da sua materialidade. Assim, - o mesmo, deve

ser respeitado, honrado na mesma medida da graça pedida ou alcançada. O consumo do treco Padre

Cícero assume e constrói essa relação, entre o humano e divino, e todo comportamento

desencadeado através dessa ação. Aqui não há nada mais importante em ter, consumir o treco, que

seja para honrá-lo e lembrar a graça alcançada.

Entremosnoutra discussão necessária ser feita nesse momento. O treco, também, pode ser

outro objeto que não seja somente as estátuas do Padre Cícero. O mesmo pode assumir uma

variabilidade de materiais infinita, ou seja, cartas escritas pelos devotos parao Padre Cícero podem

ser vistas como treco. Para tratar desse aspecto basta reportarmo-nos a Graça (2014) em sua tese de

doutoradoDores e Cores nas mal traçadas linhas dos devotos do Padre Cícero: As trocas

linguísticas instauradas entre o discurso eclesial e o discurso epistolar dos romeiros. Nesse

trabalho houve uma incansável leitura e releitura das cartas produzidas pelos romeiros devotos. Em

tais cartas, são feitos pedidos de emprego, saúde, agradecimentos pela vida, trabalho, e tantos outros

que são vistos nas cartas.

Vale dizer que em vida, o Padre Cícero se preocupara com a sustentabilidade daqueles que

chegavam a essas terras, pois em seu discurso já havia tal noção da problemática que poderia via a

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

60

surgir com tantas pessoas sem trabalho e sustento. No livro “Padre Cícero, pessoas, fotos e fatos” há

depoimentos de pessoas que conviveram com o Padre Cícero, no qual retrata o sacerdote como uma

pessoa preocupada.

[...] ao chegar no Juazeiro em 1872 com sua mansuetude procurou associaro amor de Deus ao trabalho, proporcionando meios, ensinando novastécnicas e dando apoio material e moral. [...] Muitas vezes o levitacomparecia aos roçados, a fim de ensinar como o matuto deveria plantar.Fez vir de outras plagas determinadas sementes, dentre elas, a de milho,hoje conhecida como ‘milho do Padre Cícero’ [...] (BARBOSA, 2011, p.19).

Reforço essa ideia com Araújo (2005), ao pensar que,

[...] inserido em um Nordeste predominantemente rural, noqualencontravam-se presentes formas de relação de produção nãotipicamente capitalistas, como a utilização da mão-de-obra escrava, o Padreinseriu naquele espaço social um novo discurso, a partir do qual emergiamnovas práticas de trabalho, vinculadas à construção de um mundo melhor,mas igualitário e mais livre (p. 31).

É diante dessa vinculação de trabalho e fé que é construído uma herança espiritual que está

posta na cidade até os dias de hoje, sendo importante para a cidade de maior porte econômico do

interior do Ceará. É importante dizer isso, para que possamos voltar a tratar das cartas como trecos,

pois a pungência econômica da cidade fez e faz surgir uma quantidade imensa de trecos ligados a

imagem do Padre Cícero.

Agora, exploremos um pouco as cartas relacionadas no trabalho da Graça (2014).

Meu padrinhoAndo com o coração amargurado que só esta carta faz com que eu fiquemenos angustiado. São tantas as dúvidas que chego a pensar porque sempreestou a lhe escrever não só para lhe agradecer, mas para lhe pedir sempremais. E vós, em sua santidade sempre me ouve e alivia meus sofrimentos.[...] Fico confiante na esperança de que quando esta chegar em suas mãos asportas vão se abrir [...] (Anônimo. São Paulo 21 de outubro de 1993 – Cartanº 91).

As cartas, que aqui também podem ser vistas como trecos, agem como ponto dominante na

relação entre o indivíduo e o divino, pois a mesma é um elemento intermediário nessa relação

construída com o sagrado. É exatamente, nesse ponto dominante que encontro a relação com o treco

Padre Cícero estudado por mim, nesse texto.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

61

Como foi enfantizado, o treco pode ser qualquer coisa, desde que tenha a possibilidade de

interação cultural, e que nessa materialidade possa perceber uma relação além da materialidade.

Trouxe essa leitura das cartas, que também podem ser observadas e estudadas como trecos, para não

mais, prosseguir de forma solitária epistemologicamente, ou seja, há possibilidade de fazermos

novas leituras sobre os bens de consumo, e assim sendo, devemos pensar a materialidade como

elemento produtor de relações sociais e aquelas que são produzidas em cadeia. Tudo bem, já falei

isso aqui algumas vezes, mas sinto a necessidade de repetir às vezes que for necessário neste

trabalho.

Para continuarmos a discutir o treco Padre Cícero na perspectiva da cultura material é

importante dizer que as experiências religiosas dos peregrinos são construídas a partir de emoções e

sensações produzidas pela imersão do seu self nas atividades simbólicas e físicas da peregrinação,

como viagem, os rituais e o contrato com objetos e seres sagrados.

É notória a sensação de felicidade naqueles romeiros devotos que estão por aqui. Os

mesmo apresentam uma cidade dentro de outra, ou seja, uma cidade carregada e lembrada com

muito carinho, amor, afeto e fé. Todas as conversas obtidas ao longo do campo foram norteadas

para sensações de prazer, que os mesmos não encontrariam em nenhum lugar do mundo, que não

fosse aqui, na cidade do Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero.

A produção de elementos visuais ou táteis que possam expressar a memória emocional ou

corporal da experiência individual, no quadro de referências da tradição religiosa, se impõe como

um importante mecanismo disciplinar dos processos identitários desencadeados pela peregrinação.

A demanda por artefatos sagrados é gerada pelo próprio caráter experiencial da peregrinação, que

requer “marcadores de memória”, como objetos ou imagens, que constantemente reavivem e

permitam reviver a memória dessa experiência e que permitam que seus efeitos normativos e

existenciais durem por um longo período de tempo22 (PINTO, 2006).

Ainda segundo Pinto (2006), a produção de objetos para o consumo dos peregrinos leva a

uma mercantilização da tradição religiosa, aumentando a circulação e a difusão dos símbolos,

práticas e, mesmo, doutrinas, que são assim objetificados. Podemos perceber que há um reforço

carismático e afetivo que é sustentado pela tradição religiosa fazendo com que o treco Padre Cícero

haja no centro das atividades comerciais que são desencadeadas pelos romeiros (as) devotos (as)

que visitam a cidade.

O consumo do treco Padre Cícero é parte de toda composição da cidade e do

fortalecimento do personagem mais conhecido da mesma. Como já foi dito em outro momento, o

22 Para saber mais consultar o artigo Mercados de devoção: consumo e identidades religiosas nossantuários de peregrinação xiita na Síria de Pinto (2006).

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

62

personagem mais importante da cidade é visto, de fato, em toda cidade, de várias formas e modelos.

Por isso, pensar o consumo do treco Padre Cícero, é se confundi com a própria vivência desse lugar,

pois boa parte das ações, comerciais, religiosas se conduz a partir do sacerdote.

A participação coletiva na composição dos elementos da tradição religiosa é vista em

vários depoimentos coletados através dos meses em campo. Aqui, destaco as vozes dos peregrinos,

conhecidos como romeiros (as) do Padre Cícero, que vem até a cidade em busca de algo que estão

além de suas vidas, como proteção, salvação, glória, honra e respeito ao “santo” padre. O José

Nilton da cidade de Casa Nova, estado da Bahia diz:

Rapaz... eu acho que... o Padre Cícero já é que nem um santo...rapaz...pramim é muita coisa. Já é importante demais... na hora que eu vejo a estátuadele... aaa... já... eu gosto demais... eu peço a Deus né... intersecção porDeus pra me ajudar em muitas coisas.

Novamente é citado o papel religar do Padre Cícero como outras divindades. Não

podemos deixar de lembrar que, na cidade, mais precisamente na Serra do Catolé, conhecida como

colina do Horto, há a maior estátua do Padre Cícero construída nesse país, inaugurada em 01 de

novembro de 1969, medindo 27 metros de altura, se constitui na terceira maior do mundo em

concreto, esculpida por Armando Lacerda em um local que era sempre escolhido pelo sacerdote

para os seus retiros espirituais. Existe uma estimativa que aponta a visitação ao monumento na

ordem de 2,5 milhões de pessoas por ano. De um lado fica o Museu Vivo e, do outro, enorme

quadro da ceia larga com 17x4m, enquanto a alguns metros está sendo construída a Igreja de Bom

Jesus do Horto.

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

63

FOTO 13 - Estátua do Padre Cícero em Juazeiro do Norte

Fonte: Site da Prefeitura Municipal, 2016.

Evidentemente, há uma ligação entre a formação do lugar e os hábitos que foram

construídos nele, inclusive, o consumo do treco Padre Cícero, que está inclinado como agente

fortalecedor da tradição aos espaços de visitação, honrarias, encantamento e pedidos e desejos de

bênção, que estão presentes nesse lugar, nessa cidade.

Os votos ao Padre Cícero, entoam sobre os votos que são feitos ao treco Padre Cícero, por

meio de canções, oração, rezas, ladainhas, pedidos de cura e devoção. Sentir todo esse calor

desejoso das pessoas que tem o treco como algo sagrado é impressionante, mais do que isso, é

perceber que as coisas, os objetos, também fazem as pessoas, direcionando-as para uma vida de

respeito às tradições religiosas. Mais do que isso, o reconhecimento do treco como agente

fortalecedor de todas as relações que são desencadeadas a partir da vinda ao Juazeiro, é estar com

um “pedacinho do Juazeiro em sua casa”, é notar que a humanidade nunca esteve separada da

materialidade. Pelo contrário, a materialidade fortalece a humanidade, na medida em que

reconhecemos estarmos intrinsecamente ligados a cultura material em todos os aspectos de nossas

vidas.

Pensando nisso resgato uma das entrevistas que mais me marcaram nessa caminhada, a da

dona Maria José Gonçalo de Oliveira, da cidade Carpina, estado do Pernambuco. Quando fora

perguntada qual a significância do consumo, de ter, treco Padre Cícero em sua vida? Nesse

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

64

momento há um misto de pensamento antes mesmo de ser entoada uma das respostas mais marcante

no campo para mim. Dona Maria de Oliveira olha para os lados, para a amiga, companheira de

viagem, nas muitas pessoas que estão ao redor da praça, e alguns curiosos que ao verem o gravador

aproximam-se para perguntarem do que se trata, e pensa nas mais de vinte viagens que já desses ao

Juazeiro, buscando a resposta ideal para a pergunta que se fez importante para si naquela ocasião.

Fiquei a pensar no que ela poderia me responder que não fosse parecido com aquilo que já escutara

nas minhas andanças pelo campo. Dona Maria de Oliveira voltou o olhar para mim e disse de forma

surpreendente:

3.1 SÍMBOLO RELIGIOSO: “A PROVA QUE SOMOS ROMEIROS”.

O ato de consumo do treco Padre Cícero não está no vácuo cultural. Há, ao contrário,

associação com a tradição religiosa, e as relações sociais que as pessoas têm com as coisas. Não

podemos negar a materialidade como agente que desenvolve a cultura, economia, tradição, hábitos e

costumes que são conhecidos e reconhecidos por citadinos e visitantes.

Outra ideia sobre o consumo do treco Padre Cícero pelos visitantes da cidade, romeiros do

Padre, é o pensamento sobre a representação que a estátua tem sobre a vida das pessoas. Como o

treco age na construção da representação do Padre Cícero para algumas pessoas? Advinda da cidade

de Serra Talhada, estado do Pernambuco, sobre o treco Padre Cícero a dona Maria de Lourdes fala o

seguinte:

Assim... não é questão de ter apenas uma estátua...é questão de você vênaquela estátua significado real...tipo...a presença...éééé...no caso padeCiço...presença do pade Ciço em você...não é questão...mesmo se eu nãotivesse uma estátua...se não tivesse comprado...mas eu acredito que a gentecolocou na cabeça que uma estátua...assim...na casa...próximo...representamuita coisa né...de forma tem que está no seu coração mesmo...não umaquestão de estátua né...

Nesse caso, o treco Padre Cícero assume uma relação de presença física e espiritual com as

pessoas. É nele que é depositada a presença real do sacerdote em suas casas e, ao mesmo tempo, é

no treco que está à relação de confirmação de fé e respeitabilidade através das orações e a presença

espiritual do Padre que representa. Segundo Miller (2013), o treco vem representar não só as cosias

individuais, mas todo o sistema de coisas, com sua ordem interna, fazendo de nós as pessoas que

somos. Eles são exemplares em sua humildade, sem nunca chamar atenção para o quanto devemos.

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

65

Porém, a lição da cultura material é que, quanto mais deixamos de notá-la, mais poderosa e

determinante ela se mostra. Isso propicia uma teoria da cultura material que dá aos trecos muito

mais significados de que se podia esperar. Acima de tudo, a cultura vem dos trecos.

Para o autor, as coisas e sua materialidade são parte necessária do processo que nos torna

quem nós somos. O mesmo toma por base de análise para os estudos da cultura material as ideias de

Goffman (1975) e Gombrich (1985). Com o Goffman (1975) o comportamento humano é em

grande medida, determinado pelos quadros que constituem o contexto de uma ação, tal como uma

encenação. São “as deixas”, os objetos de cenas, o cenário e os adereços, que nos informam de

forma inconsciente se o desempenho da ação é ou não é apropriado. Isto se dá de forma

inconsciente.

O argumento de Gombrich (1985), quando uma moldura de uma obra de arte é adequada

ao quadro ela simplesmente se torna oculta aos olhos de quem a vê. E estas molduras nos passam a

maneira com que devemos enxergar aquilo que enquadra. Os objetos matérias são como um cenário

e/ou como uma moldura eles nos orientam e nos informam quais as práticas que são mais adequadas

e apropriadas para a atuação e a compreensão da ação. Portanto, quando menos houver consciência

da presença desses objetos em cena, maior será a influência que eles exercerão sobre as ações

desempenhadas e no seu convencimento.

Entretanto, é a partir da teoria de Bourdieu (2009) que o autor refina a sua análise da

cultura material a respeito de como as pessoas se tornam o que são e a enxergar o mundo da

maneira particular como fazem. O agente fundamental nesse processo de sociabilidade são,

novamente, os trecos. Aprendemos a nos habituar com a ordem entorno deles. E, o mais importante,

somos educados com eles e através deles. Os nossos comportamentos, nossos corpos, nossos

sentimentos e até os nossos sonhos passam por uma “domesticação” mediada pelos tais objetos.

Crescemos admitindo as normas que os objetos nos impõem.

Pensando nisso passaremos a discutir os significados do treco que foram apontados pelos

visitantes que vem a cidade de Juazeiro do Norte. Lembrando que em uma sociedade de consumo, o

significado cultural se move incessantemente de forma processual, de um para o outro, ou seja, o

significado cultural se move primeiro do mundo culturalmente constituído para os bens de consumo

e desses para o consumidor individual.

O processo de consumo através da perspectiva da significância cultural é dinâmico e

recíproco produzindo simultaneamente criador e criatura. A esse processo, Miller (2013) dá o nome

de objetificação nos quais objetos e sujeitos se misturam. Assim, esses trecos podem se tornar

opressivos a tal ponto que podemos esquecer de que um dia nós os criamos. Esta é uma contradição

inerente aos trecos.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

66

Outra discussão fundamental que seu livro traz é sobre a materialidade. Ela diz respeito

tanto aos significados de materialidade quanto às suas implicações. A questão da materialidade das

coisas está presente, como coloca Miller (2013), nas religiões, sobretudo as do sul da Ásia como o

hinduísmo e o budismo, abarcando o próprio catolicismo. Essa questão é o que nos remete ao que é

aparente e superficial.

Segundo Miller (2013), a busca das religiões é transcender a materialidade do mundo em

busca da imaterialidade. É nesse contexto que a questão a ser buscada pelos pesquisadores, de

acordo com Miller (2013), é saber o que as pessoas dizem sobre a materialidade, quais são as suas

estratégias para escapar (de que ou quem?) e como elas empregam esta ideia na prática. Os

paradoxos da materialidade são demonstrados por meio das pesquisas empíricas: o imaterial que se

expressa pelo material, pessoas sem materialidade, as economias de objetos que não existem,

moedas que expressam de um lado as trocas seculares e do outro a divindade.

A observação desses fenômenos sociais é motivo para que seja dada mais atenção às coisas

e não ignorá-las como algo frívolo e de menor importância. Uma oposição entre sujeito e objetos

não é mais uma possibilidade para uma ciência social moderna. Não se pode condenar a

materialidade focando no idealismo. Temos que aceitar tanto a nossa própria materialidade quanto a

do mundo.

Assim sendo, o estudo da cultura material, ou seja, esse rearranjo da oposição entre

pessoas e coisas, entre sujeitos e objetos, não implica numa pretensão em se abordar verticalmente

os trecos, de maneira a colocá-los acima ou abaixo da humanidade, mas trata-se, antes, de situá-los

numa perspectiva horizontal, na qual humanos e coisas possam ser observados e percebidos a partir

das inúmeras relações entre eles. Isto representa jamais perder o foco nas coisas. A abordagem de

Miller (2013) pretende ir além dos estudos semióticos, onde os objetos materiais são considerados

apenas como signos e, assim, relegados a formas de comunicação.

3.2 O QUE SIGNIFICA O CONSUMO DO “TRECO” PADRE CÍCERO.

Nos discursos dos meus entrevistados, vários significados são dados ao treco Padre Cícero.

Alguns deles me chamaram mais atenção, como: tradição familiar, respeito, representação, santo

poderoso, lembrança de uma pessoa do passado, fé, glória, católica praticante, milagre, benção,

proteção, realização de pedidos, coração, idolatria, prazer, história, agradecimento à vitória, padre

santo, padre poderoso, promessa, santo na minha casa, representação da bênção de Deus, reza,

lembrança de Juazeiro, um santo que lutou pela pobreza e foi perseguido pelos nobres, símbolo

religioso, a prova que somos romeiros, intersecção por Deus, santo.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

67

Desse modo, quem dá significado ao treco são as pessoas que se apropriam da matéria

como algo para além de si mesmo.Podemos, ainda, dizer que é pelo consumo do treco Padre Cícero

que as pessoas vêm a se identificar com um projeto de vida, tendo aspirações voltadas para aquilo

que se deseja ao obter o treco.

No que diz respeito a estruturar, projetar e pensar toda uma vida em torno de algum

significado além de si mesmo, em função de bases religiosas, para Weber (1994), foi a base

religiosa que forneceu subsídios morais e racionais que serviram para o desenvolvimento do

capitalismo moderno, pois esse processo de busca de riqueza gerou uma mentalidade voltada para

os bens materiais via consumismo. Em função desse capitalismo moderno se deu o

“desencantamento do mundo” pelo afastamento da mentalidade comedida dos protestantes, onde as

relações sociais ficaram estritamente egoístas ocasionando a extinção dos valores humanos da

sobriedade e espiritualidade. A busca de riqueza, diferentemente do ascetismo, ganha “caráter de

prazer”, o hedonismo e o consumo de mercadorias serve às paixões puramente mundanas, ou seja, a

ostentação.

Para Baudrillard (1995), pode-se, com efeito, conceber o consumo como uma modalidade

característica de nossa civilização industrial. O consumo não é esse modo passivo de absorção ou de

apropriação, que se opõe ao modo ativo da produção para que sejam confrontados os esquemas

ingênuos de comportamento e de alienação, como afirmam os críticos da cultura de massa

consumista moderna.

É preciso que fique claramente estabelecido que, desde o início, o consumo é um modo

ativo de relação com a coletividade e com o mundo, e um modo de atividade sistemática e de

resposta à produção capitalista, no qual se funda todo o sistema cultural ocidental. Baudrillard

(1995) destaca que é necessário estabelecer claramente que não são os produtos materiais que são

objetos de consumo e resultantes da necessidade e da satisfação. Em todos os tempos comprou-se,

possuiu-se, usufruiu-se, gastou-se e, contudo, não se “consumiu”.

Os consumidores ascendem à condição de mercado não como simples lugar de troca de

mercadorias, mas como parte de interações socioculturais mais complexas, onde se destacam a

distinção e personalização simbólica dos objetos comprados. É nisso que atingimos uma das

significações do treco Padre Cícero. O consumo é notoriamente cultural, respeitando todo o

arcabouço simbólico, histórico e religioso do lugar.

Passamos a vê a variabilidade dos significados da prática de consumo do treco Padre

Cícero. Não. Antes devemos pensar que há uma necessidade de pensar o consumo enquanto estudos

de cultura material, através da especificidade de objetos materiais para, em última instância, criar

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

68

uma compreensão mais profunda da especificidade de uma humanidade inseparável de sua

materialidade.

Para Miller (2013), a emergência de uma série de estudos que olharam para o potencial

produtivo do consumo através de um foco na transformação de mercadorias produziu uma literatura

extensa que se desviou do consumo como um objeto geral sociológico, e na direção da

especificidade de formas particulares de consumo e gêneros particulares de mercadorias. A virtude

de teorizar o consumo naquele tempo foi de que isso liberou o tópico de ser meramente um serviçal

na caracterização do capitalismo, e permitiu que se voltasse à sua especificidade, a qual, em muitos

aspectos também significou uma volta à sua materialidade. Se a teoria deveria ter algum uso

substantivo, esse sugeriria que há muitas maneiras diferentes pelas quais o consumo pode se

manifestar enquanto produção de grupos sociais e que esses tem de ser examinados um por um.

Há uma necessidade cada vez mais latente de produzir novos olhares e leituras sobre as

especificidades do consumo, pensando nos lugares que acontecem tais ações. Tendo por base as

entrevistas que foram feitas mediante o significado do treco Padre Cícero para os entrevistados,

nota-se que o treco Padre Cícero assume o papel dominante, ou seja, é o produtor das relações

sociais, entre ele mesmo e as várias pessoas que adquirem o bem. O treco aqui é o agente-chave, é

um dos elementos que estruturam a ligação entre o indivíduo e o mundo. Sendo importante pensar

que há uma variabilidade nas relações sociais, no que diz respeito de como elas são construídas em

relação ao treco Padre Cícero.

Tais relações sociais são construídas a partir de sentidos e funções diferentes, que algumas

são: tradição familiar, respeito, representação, santo poderoso, lembrança de uma pessoa do

passado, fé, glória, católica praticante, milagre, benção, proteção, realização de pedidos, coração,

idolatria, prazer, história, agradecimento à vitória, Padre Santo, Padre poderoso, promessa, santo na

minha casa, representação da bênção de Deus, reza, lembrança de Juazeiro, um Santo que lutou pela

pobreza e foi perseguido pelos nobres, símbolo religioso, a prova que somos romeiros, intersecção

por Deus, santo.

O treco assume um papel transformador, definidor, redefinindo, construtor e estruturador

das relações sociais que são estabelecidas através do consumo do mesmo. Nele (treco) é depositado

o ponto referencial ideal das relações sociais que são construídas, pois há um conhecimento e

reconhecimento do treco Padre Cícero como símbolo que se constrói baseado em sentidos humanos,

dos quais fenômenos naturais ou sociais dão sentido a sua existência individual e coletiva.

Portanto, o poder simbólico, em especial do treco, se constitui através da enunciação de

seus atores, participantes das práticas que são estabelecidas com o contato e ação sobre o mundo em

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

69

que existe o poder constituinte. Fazer ver e fazer crer, confirmar ou transformar a visão de mundo,

permitindo o reconhecimento e conhecimento da força simbólica do treco.

Ainda sobre o treco investigado é importante salientar, segundo Berger (1983), que o ser

humano, comparado aos outros mamíferos, tem uma dupla relação com o mundo. Por um lado, o ser

humano está em um mundo que precede o seu aparecimento, por outro, esse mundo não é

simplesmente dado, é pré-fabricado para ele. Isto nos ajuda a pensar o modo como foi definida a

cultura na sociedade juazeirense, onde o pensamento simbólico em torno do treco “Padim Ciço”

acaba fornecendo as bases, os hábitus23 e costumes da cultura e sociedade local, ao mesmo tempo

em que os indivíduos o constituem continuamente. Há, portanto, uma adesão inerente ao indivíduo.

Ao treco Padre Cícero é dado aspectos místicos, sociais, são as experiências dos sujeitos

que visitam e estão inseridos nesse espaço que seus feitos, efeitos e atributos destacam-se, em um

cosmos cujas fronteiras entre sagrado e profano configuram-se borradas. O desejo de proteção se

faz no cotidiano de devotos, no dia-a-dia do romeiro (a) e do citadino, onde os mesmos se orientam

e constroem laços de proteção, afetividade e fé no “Padim Ciço”.

As entrevistas acerca da variabilidade de significados do treco Padre Cícero reforçam a

perspectiva da importância do estudo da cultura material. Segundo McCracken (2007), a localização

original do significado cultural que afinal reside o mundo dos bens de consumo é o mundo

culturalmente constituído. Trata-se do mundo da experiência rotineira, em que o mundo dos

fenômenos se apresenta, aos sentidos individuais, plenamente formados e constituídos pelas crenças

e premissas de sua cultura. A cultura constitui o mundo dos fenômenos.

Ainda McCracken (2007), cada cultura estabelece sua própria visão particular do mundo,

assim, com que entendimentos e regras sejam apropriados num contexto cultural e absurdamente

impróprios em outros. Uma cultural estabelece um conjunto privilegiado de termos dentro do qual

nada parece estranho ou ininteligível para o membro da cultura e fora do qual não há ordem,

sistema, premissa segura de compreensão imediata. Ao investir o mundo de seu próprio significado

particular, a cultura “constitui” o mundo. É de um mundo assim constituído que decorre o

significado destinado aos bens de consumo.

Para isso, o treco padre Cícero está categorizado dentro de uma matriz conceitual de um

mundo culturalmente constituído. Essa categorização determina como esse mundo será construído

em parcelas distintas e inteligíveis, e como essas parcelas serão formadas e organizadas dentro de

23 O conceito de“habitus”foi desenvolvido pelo sociólogo francêsPierre Bourdieu com o objetivo de pôr fimà antinomia indivíduo/sociedade dentro da sociologiaestruturalista. Relaciona-se à capacidade de umadeterminada estrutura social ser incorporada pelos “agentes”por meio de disposições para sentir, pensar eagir.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

70

um sistema maior e lógico. A gratidão, tradição e fé são categorias que podem ser elencadas, no que

diz respeito ao consumo do treco Padre Cícero.

A gratidão que é vista a partir das falas de alguns romeiros devotos, como reconhecimento

pelos dias, ou, pelos próximos dias de saúde, paz e revigoramento da fé individual e familiar. O

reconhecimento dos laços sociais com a entidade divina, representante de Deus aqui na terra. Essas

situações aparecem nos discursos dos entrevistados de forma sucinta e delicada, mas, que reforçam

os sentimentos afetivos nutridos a cada viagem, a cada consumo do treco Padre Cícero.

Através dos discursos dos nossos entrevistados, entendemos por "tradição" a relação

pretendida e construída entre a família, a lembrança de um ente querido que já se foi, que não pode

mais fazer a viagem para o Juazeiro do Padre Cícero. O reforço dos ritos que aparecem nas visitas a

lugares sacros, no consumo do treco Padre Cícero e na relação com os espaços percorridos em dias

de visitas.

Por fim, a fé que alimenta, dá força, prova a todo instante a vontade de estar aqui,

agradecendo, pedindo e construindo laços permanentes com a entidade de devoção. Portanto, as

categorias gratidão, tradição e fé aparecem aqui no texto como dádivas, ou seja, relação de trocas

simbólicas. Dito isto, a melhor maneira de entendermos, transmitimos e apreciarmos a humanidade,

é dando atenção a nossa materialidade fundamental. (MILLER, 2013. p, 10).

Para McCracken (2007), os objetos contribuem para a construção do mundo culturalmente

constituído justamente porque registram de maneira vital e tangível um significado cultural que sem

eles seria intangível. Com efeito, não é exagero dizer que os objetos têm uma função

“performativa”, na medida em que dão ao significado cultural uma concretude que ele do contrário

não teria para o indivíduo. O significado cultural que organize esse mundo torna-se parte visível e

demonstrável de tal mundo por meio dos bens, ou, dos trecos.

Podemos ver o treco Padre Cícero a partir da oportunidade de fazer uma leitura do mundo

culturalmente constituído, de dá matéria a uma cultura. O treco permite que os indivíduos

discriminem, especifiquem de forma materializada alguns significados da sua cultura constituída

por princípios culturais. Esses princípios culturais são as premissas iniciais que possibilitam os

fenômenos culturais, para que sejam distinguidos, classificados e inter-relacionados.

Por vezes os princípios culturais dos lugares (e aqui, tratamos das bases constituintes da

cidade de Juazeiro do Norte, já mencionadas no texto) são conceitos norteadores do pensamento e

ação dos indivíduos perante os trecos que são construídos, reforçados, reinventados, e que são

expressões de todos os aspectos da vida social das pessoas que acolhem, respeitam, veneram, oram,

rezam e honram o personagem Padre Cícero Romão Batista e sua história conhecida e reconhecida.

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

71

Com isso,trago mais um relato acerca do significado do treco Padre Cícero, para a senhora

Marilene de Santana Nunes da cidade de São Brás, estado de Alagoas.

AH! É mesmo que tá meu pai... minha mãe...meu pai tá junto de mim alisabe...então quando eu me acordo ô meu padrinho me abençoe me ajude queeu volte lá novamente...vai e volte com saúde e deixe também meusfamiliares com saúde...GRAÇAS A DEUS. Ói... eu vim pagar sabe quantaspromessas? Ontem eu paguei três que eu fiz, de outra vez que eu vim pagueiuma dessa mão que quebrei... eu tenho sessenta e seis anos...quando euquebrei eu já tinha sessenta e cinco anos...aí quando eu fiz...aí todo mundoné...por que você já é uma pessoa de idade vai demorar a sarar...aí quandoeu fiz a cirurgia aí o médico foi e disse: olhe dona Marilene parece umacriança num instante sara...mas a senhora vai...mas a senhora não temdiabete com fé em Deus vai sarar logo...quando eu fui fazer a revisão...eu fizuma promessa pro meu padrinho Cícero...SE EU FICASSE BOA DAMINHA MÃO24...não tivesse aquelas dor nem leseira que dá...nem dóigraças a Deus sabe...aí eu trazia...comprava aqui uma mão pra dá a ele...pradeixar na casa do milagre e uma contribuiçãozinha que a gente também temque dá né...aí quando foi com um mês eu voltei lá pra fazer a revisão e foitirou o gesso né e quando botou na máquina para fazer o raio x...que eucheguei lá ele olhou pra mim e riu...aí disse: dona Marilene eu estouadmirado da idade da senhora parece uma criança...o braço já tá recuperadosem tortura nenhuma. Eu digo: a fé que eu tenho em Deus e meu padrinhoCícero e ele deu risada e disse: é mesmo dona Marilene a fé cura mesmo. Equando eu fui... na minha cidade não tem médico...fui pra outra cidade...fuiaté com ela (aponta para a parceira ao lado)...fui pedindo a Deus que nãoprecisasse eu ir pra Aracaju...Aracaju é muito longe...e pra onde a genteia...é que nem você vai muita gente...o hospital é muito bom...mas ademanda é grande né...não tem como. Tenho fé em Deus e meu padrinhoCícero que eu vou encontrar um médico em Propiá que ele vai fazer minhacirurgia... foi Deus mesmo que botou aquele médico né. Então a gente sótem o que agradecer a Deus né... eu não venho porque não é para fazercompra não...só venho porque eu tenho fé em Deus e meu padrinho Cícero.

O treco Padre Cícero torna-se o intercessor, aquele agente responsável pela união, com as

forças divinas. É nele que é depositado crença, fé, arraigado a algum desejo individual ou coletivo.

O treco é a superação da não presença de entes queridos que já se foram, é a transformação da

gratidão pela fé, por pedidos e graças alcançadas, relacionadas a vários aspectos da vida. O treco

está além da compreensão individual, o mesmo é marcado por várias facetas e depoimentos que

reforçam sua importância para além da materialidade.

Vejamos a entrevista da Citália de São Bento do Uma, do estado do Pernambuco, ainda

acerca do significado do treco Padre Cícero.

24 No momento da fala, a senhora Marilene mostra suas mãos com movimentos para cima e para baixo,aperta-as demonstrando está curada da enfermidade.

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

72

A mãe é devota né... aí já...inclusive esse ano a gente já veio pagar umapromessa da minha mãe...porque a gente pede para ele interceder pelagente...pela família da gente...e graças a Deus a gente sempre foiouvido...todos os milagres...pode dizer que são milagres...foram concedidos.

Lembro que a Citália era uma jovem de pouco mais de 20 anos, e que toda a nossa

conversa fora pautada a partir do momento que pergunto para ela: quantas viagens já desses ao

Juazeiro? A mesma responde rapidamente, com um olhar de satisfação e diz: “bom... eu não sei,

tenho vinte e três anos... a gente vem uma vez por ano, tem ano que a gente vem mais de uma vez

por ano... aí eu não sei. Venho aqui desde vinte e oito dias de nascida”. No caso da Citália, a viagem

sempre se faz em família, como a mesma diz: “é tradição”.

Novamente aparece nas falas dos entrevistados, a ideia de intersecção, tradição familiar, e

ainda o crédito de fazedor de milagres. A crença, a fé, ligada ao anseio de mudança, o pedido de

bênçãos, promessas feitas em função de graças a alcançar, o vir descarregar o peso de todo o ano de

sacrifícios e muito trabalho, de algumas perdas e ganhos, dentre outros efeitos, dão alicerce para

construção de princípios culturais, construídos a partir de um mundo cultural construído

diariamente, seja em períodos de grandes aglomerações de romeiros na cidade, ou, para os

citadinos.

Já para Silmara, da cidade de Belém do São Francisco, no estado de Sergipe, o treco Padre

Cícero significa:

Então... proteção. Nós somos de uma família muito religiosa e acreditamuito... assim...em santos que eles protegem entendeu...qualquer coisa que agente tá passando por aperto...por algum aperto ou coisa parecida...vamoslá...a gente vai lá ajoelha pede...ter fé...com fé...tendo fé acho que é tudo.

Aqui o treco Padre Cícero, estabelece uma conexão com o indivíduo, sendo o agente

protetor, escutador e solucionador de problemas, apertos, que porventura alguém possa passar.

Segundo a Silmara, todas as vezes que vem ao Juazeiro, ela leva o treco Padre Cícero e muitos

parentes e amigos levam também como recordação do Juazeiro, ou levam para vizinhos e

conhecidos que não puderam vir.

Há uma infinidade de motivações para que as pessoas consumam o treco Padre Cícero.

Diante de uma variabilidade muito grande de motivações para o consumo do treco, entendo que não

se pode ou não há necessidade de se tentar construir uma definição de por que se consome o treco.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

73

Percebo que qualquer tentativa de construção, de sistematização do consumo do treco Padre Cícero,

corre-se o risco de cair em armadilhas metodológicas.

Entendendo que o mundo culturalmente estabelecido nessa cidade, Juazeiro do Norte,

abraça inúmeras causas, desde religiosas, míticas, místicas, econômicas, políticas, de interesses

diversos e por vezes momentâneos, passamos a discutir, no capítulo seguinte, o porquê da vinda ao

Juazeiro e o que o treco Padre Cícero provoca nas pessoas a partir da perspectiva da dádiva.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

74

4CAPÍTULO III - BENS TROCADOS: DÁDIVAS E TROCAS NO JUAZEIRO.

A proposta desse capítulo é demonstrar a possibilidade do consumo do treco como dádivas

trocadas, a partir da teoria da dádiva construída por Mauss (2011). Aqui, pensamos como as três

obrigações, o dar, receber e retribuir pode agir sobre o consumo do treco Padre Cícero pelos

romeiros devotos. Portanto, a compreensão se dá pelo sistema de trocas na vida social.

Na vida material e moral, a troca funciona aí sob uma forma desinteressada e obrigatória

ao mesmo tempo. Além disso, esta obrigação exprime-se de maneira mítica, imaginária, ou, se se

quiser, simbólica e coletiva: assume o aspecto do interesse ligado às coisas trocadas: estas não estão

nunca completamente desligadas dos seus agentes de troca; a comunhão e a aliança que elas

estabelecem são relativamente indissolúveis. Na realidade, esse símbolo da vida social – a

permanência de influência das coisas trocadas – não faz senão traduzir bastante diretamente a

maneira como os subgrupos dessas sociedades segmentadas, de tipo arcaico, estão constantemente

imbricados uns nos outros, e sentem que se devem tudo (MAUSS, p. 106).

É claro que nas ciências sociais ao longo das décadas muito se tem discutido sobre as

correntes teóricas e campos do saber, sobre a existência social vinculada as soluções materiais, ao

dinheiro e a economia utilitarista. Poderíamos resgatar, contudo, a discussão sobre fenômenos

presentes na esfera simbólica das relações sociais. Portanto, tal questionamento me leva a uma das

principais teorias já desenvolvidas nas ciências sociais acerca da complexidade da ação social, a

teoria da dádiva, que por sua vez, me conduz a herança deixada por Mauss (2011).“um presente

dado espera sempre um presente de volta”. A dádiva tem foco no caráter voluntário, aparentemente

livre e gratuito, e, no entanto obrigatório e interessado. Uma arqueologia das transações humanas,

composta por três obrigações: dar, receber e retribuir.

Diante da tentativa de elucidação do mundo da cultura material ligado ao treco Padre

Cícero, e a materialidade intrínseca as relações humanas, venho trazer o pensamento de Marcel

Mauss sobre a “dádiva” (2011), no qual o papel do objeto, ou, como estamos a tratar, do treco, é,

também, dominante na perspectiva das relações sociais. É importante dizer que a leitura sobre a dádiva de Mauss para a nossa pesquisa parte do

consagrado Ensaio sobre a Dádiva (2011), onde em um mundo em que a desigualdade econômica é

tão marcante, a releitura do paradigma da dádiva poderia anunciar outras possibilidades de relações

sociais que não as marcadas pelo lucro e pela desigualdade? Sobre dádiva devemos entender tudo

que circula na sociedade que não está ligado nem ao mercado, nem ao estado. É, também, o que

circula em prol do ou em nome dos laços sociais. A dádiva não corresponde ao modelo mercantil,

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

75

sendo equivocado inseri-la no modelo de fins-meios. No modelo mercantil, a liquidação da dívida

torna-se sua base. A dádiva se baseia de forma contrária na dívida.

[...] uma dádiva feita por obrigação, por obediência a uma norma, éconsiderada de qualidade inferior. A moral do dever não se aplica àdádiva[...].Além disso, a relação da dádiva com as regras torna-a diferentedo paradigma holista, e igualmente do modelo individualista. Pois osmembros de um sistema de dádiva possuem uma relação muito particularcom as regras. Antes de tudo, as regras devem estar implícitas. Por isso, é demuito mau gosto deixar o preço num presente, ou aludir a ele.[...] existeuma tendência geral entre os atores de negar a obediência a regras nocomportamento da dádiva. Essa tendência chega até mesmo a negar aimportância da própria dádiva. Este é um dos mais estranhoscomportamentos da dádiva, à primeira vista: a negação da importância dadádiva por parte do doador (GODBOUT, 1998, p. 10).

A dádiva seria uma das rochas humanas sobre as quais são construídas as nossas

sociedades. Vale lembrar que a dádiva não se refere apenas a indivíduos, mas, são coletividades que

se obrigam mutuamente, em grupos, ofertas individuais e coletivas, trocas, pois os membros de um

sistema de dádiva têm relação particular com as regras. As regras estão implícitas, sendo um

equívoco deixar de aludi-las. Segundo Godbout (1998, p.8), existe liberdade na dádiva, “mas, não é o mesmo tipo de

liberdade que existe no mercado. A liberdade que se percebe aqui não se realiza na liquidação da

dívida e não consiste na facilidade, para o ator, de sair da relação; situa-se, ao contrário, dentro do

laço social, e consiste em tornar o próprio laço mais livre, multiplicando os rituais que visam

diminuir, para o outro, o peso da obrigação no seio da relação. A dádiva é um jogo constante de

liberdade e obrigação”.Vê-se que o estar em Juazeiro para muitos é um dever, ou, uma troca por graças concedidas

durante o ano que passara. O espaço da cidade do Juazeiro é tomado por um misto de obrigações a

visitas a igrejas, ao consumo do treco Padre Cícero, a orações e renovações de pedidos, e

fortalecimento de alianças com o principal personagem da cidade para que aconteçam viagens

futuras. Penso que no Juazeiro do Norte, e toda sua cosmologia fundante, baseada nos princípios

culturais ligados ao Padre Cícero (já dito anteriormente) que constroem e mantém a cidade, há o

sistema de dádiva. Penso a dádiva a partir da obrigação social ou moral de visitar a cidade,

incluindo consumo do treco Padre Cícero. A relação com a obrigação é o suporte, o núcleo da

dádiva, sendo praticamente impossível de observar de forma direta, em seu próprio movimento,

pois a percebemos sempre como regra social, tradicional e racional. Sabendo que a dádiva é um

gesto espontâneo socialmente vivido, a mesma é um movimento impossível de apreender, é uma

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

76

obrigação que o doador dá a si mesmo, obrigação interna, imanente. Assim, o consumo do treco

Padre Cícero insere-se no movimento da dádiva, na lógica da obrigação por doação, recebimento e

retribuição.É importante dizer que a lógica da obrigação supracitada, remete-se a outra lógica, a

antiutilitarista, chamado por Mauss (2011) de dom. Esta proporciona à ação social, uma dimensão

expressiva (mágica, sentimental, ritualizada), o que dá origem a uma complexidade e variedade da

existência humana. Para apoiar seu argumento, Mauss mostra que o sistema do dom, sob a forma do

ciclo de dar-receber–retornar, existe antes mesmo do mercado e do Estado como nós conhecemos

hoje, e continua a existir. Há uma dimensão moral a ser percebida no pensamento do autor, pois o

dom sempre se manifesta por meio de regras de honra, prestígio e de redistribuição de serviços e

presentes que obrigam mutuamente aqueles que participam do ciclo. Nesse sentido, a doação do tempo, ao alegrar-se em estar aqui no Juazeiro do Norte, o dom

de perceber a vida sem peso, com encantamento, com a riqueza espiritual proporcionada pela visita

à cidade, lugar de oração, de pagar promessas, de significância de tudo, missão, clareamento dos

caminhos, romarias. Uma parte considerável da nossa moral e da nossa própria vida permanece sempre nesta

mesma atmosfera da dádiva, da obrigação e ao mesmo tempo da liberdade. Felizmente, nem tudo

está ainda classificado exclusivamente em termos de compra e venda. As coisas têm ainda um valor

de sentimento para além do seu valor venal, supondo a existência de valores que sejam apenas

desde gênero. Não temos senão uma moral de mercadores. Restam-nos pessoas e classes que

mantêm ainda os costumes de antigamente e quase todos nós no sujeitamos a eles, pelo menos em

certas épocas do ano ou em certas ocasiões (Mauss, 2011. p. 195).

A dádiva em estar aqui no Juazeiro do Norte, de fazer mais uma viagem,com as graças do “Padim” para alguns visitantes (romeiros [(as)]) éacompanhada de uma euforia e da impressão de participar de algo diferente,que está acima da ordem das coisas, ou, das necessidades da ordem domundo material. A dádiva completa a si mesma, dá-se seu próprio início,meio e fim, pois “não é o sujeito que dá; este sujeito segue a dádiva”(Godbout, 1998, p.11).

Seguindo com Godbout (1998), a dádiva é uma experiência social fundamental no sentido

literal, de experiência dos fundamentos da sociedade, daquilo que nos liga a ela para além das

regras cristalizadas e institucionalizadas como normas de justiça. Sentimo-la passar em nós, o que

cria um estado psíquico especial. É isso que Mauss chamava de fato social total. Uma experiência

que concretiza a tensão entre indivíduo e sociedade, entre liberdade e obrigação.A liberdade de poder vir e a obrigação de estar no Juazeiro faz com que tenhamos a troca

de dádivas, ou, dádivas trocadas. Sobretudo, porque estar no Juazeiro faz parte da graça alcançada,

pedida durante todo o ano que passara, e que a mesma, é concretizada a partir do momento da

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

77

chegada à cidade. A partir de então, aqueles (as) que estão classificados dentro do sistema de

dádivas, há a obrigação do retorno, pois a graça dada, ou, o convite dado e recebido deve ser

retribuído com os esforços em fazer uma nova viagem, com orações, comportamento moral,

prolongamento da tradição durante toda a vida. As entrevistas que destaco se referem à ordem do sistema de dádivas, que podemos

traduzir dos meus vários entrevistados. Por exemplo, o senhor Evandro C. Felício da cidade de São

Bento do Uma, no estado de Pernambuco, diz o seguinte:

“Rapaz... uma das coisas principal que eu acho da minha vida é eu tercumprido minha missão...pagar minha promessa...e essa promessa é até ofinal da vida que eu tiver e puder vir aqui...sou feliz quando eu faço minhaviagem”.

No caso do Evandro, “cumprir minha missão” é não está em débito com a dádiva que

recebe todos os anos de está na cidade de Juazeiro do Norte. É pagar o débito, da graça pedida e

recebida da saúde plena, é alcançar a felicidade por fazer todos os anos sua viagem, é também,

agradecer a possibilidade física de vir, e em troca não medir esforços para que possa voltar “até o

final da vida”. Lembrando que, se para Mauss (2011, p. 212) “o que se troca não são

exclusivamente bens, riquezas, bens móveis e imóveis, coisas uteis economicamente. [...] Trata-se,

no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas”. Então, se

para seu Evandro o Juazeiro é lugar de “missão”, o treco Padre Cícero (que, segundo o mesmo,

todos os anossempre leva consigo uma peça) acaba sendo “uma grande referência”, e nisso estaria

sua justificativa para o consumo do treco, em que os efeitos do material e do espiritual se misturam,

podendo dizer que a coisa dada leva algo do seu doador.Outra entrevista foi com a Luísa, conhecida como Lusa, da cidade de Belém do São

Francisco, no estado do Pernambuco. Uma jovem de grande energia, com fala animada, cativante e

cheia de alegria com as pessoas que estão em viagem com ela. Segundo a Lusa estar no Juazeiro é:

AVE MARIA é um BÊNÇÃO... porque só na gente vim é só reza...a gentevem pra igreja...coisa que...assim...em casa...tem aquele dia que a gente saipra igreja...não é que nem aqui que a gente vai...não tem negócio debebedeira...essas coisas assim de frejo...aqui é só reza...só oração. É muitobom pra alma da gente... tudo...tá metido a gente entra...é bom.

Para a jovem Lusa, a ideia da desordem e do caos passa longe do Juazeiro, pois nesse lugar

não há espaço para “frejo”. Parece que ao receber a dádiva de estar aqui, se constrói a ideia de um

lugar perfeito, “bom para alma da gente”, aqui não há possibilidade de acontecer à desordem vista

na sua cidade de origem. Há notoriamente a necessidade da presença na cidade de Juazeiro do Norte

para receber a “bênção”, ou seja, todo o ciclo do sistema de dádiva impõe positivamente a

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

78

obrigatoriedade da presença. Na medida em que não há desordem ou bebedeira, há ordem e

sossego, pois por aqui não há a permissão para algo desviante. Na tentativa de deixar claro do que estamos a tratar, digo-lhes que a dádiva está situada em

uma mistura de liberdade e obrigação. Segundo Martins (2006, p. 05), Mauss compreendeu que a

vida social é essencialmente um sistema de prestações e contraprestações que obriga a todos os

membros da comunidade. Mas, entendeu, também, que essa obrigação não é absoluta na medida em

que, na experiência concreta das práticas sociais, os membros da coletividade têm certa liberdade

para entrar ou sair do sistema de obrigações. Havendo diferenciações no cumprimento da obrigação,

não podemos pensar a dádiva como um sistema estruturado, pois “há uma incerteza estrutural no

sistema de circulação de dádivas” (MARTINS, 2006, p. 06).Perante a ideia de incerteza estrutural, ou seja, o não enrijecimento do ciclo da dádiva,

perguntou-se aos entrevistados a seguinte questão: o que significa estar aqui no Juazeiro para você?

As respostas obtidas foram: romaria, bom para alma, encantamento, clareamento dos caminhos da

vida, pedacinho do céu, encontro, momento de paz, lugar abençoado, terra do Padre salvação, busca

de aprendizagem, culto com Deus, felicidade, paraíso, esquecer o que é ruim, renovação,

emocionante, tradição, família, tudo na vida, bênção, saúde, missão, alegria, fé, significa tudo,

realizar pedidos, pagar promessa, lazer, riqueza espiritual, oração.Diante do questionamento apresentado, percebemos que a dádiva não pode ser reduzida a

coisas particulares, sejam elas religiosas ou econômicas. Aqui vale ressaltar que a dádiva é

fundamento de toda sociabilidade e comunicação humanas, assim como sua presença e sua diferente

institucionalização em várias sociedades analisadas. Devemos sempre notar que o argumento

central do Ensaio é de que a dádiva produz a aliança, tanto as alianças matrimoniais como as

políticas (trocas entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas (como nos sacrifícios,

entendidos como um modo de relacionamento com os deuses), econômicas, jurídicas e diplomáticas

(incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade).Ainda sobre a dádiva, é dada a abordagem do caráter espontâneo, livre e gratuito, e, no

entanto, positivo, obrigatório e interessado, dessas prestações. São esses os princípios geradores

desta forma necessária de troca: "Que força existe, na coisa dada, que faz que o donatário a

retribua" (Mauss, 2011). Uma arqueologia das transações humanas em outras sociedades. As codificações feitas através de cada cultura sofrem desvios no sentido dos significados

linguísticos, e no caso do Juazeiro do Norte, a dificuldade da compreensão é aumentada por não

haver uma sistematização estruturada da dádiva. No entanto, é possível observar a presença

constante das três obrigações (dar, receber e retribuir) e do caráter da reciprocidade, dos bens

simbólicos e materiais, conhecido como dom ou dádiva. Ainda Martins (2006, p. 10-11), na perspectiva da dádiva, sociedade e indivíduo são modos

de manifestação do fato total, são possibilidades fenomenais que se engendram incessantemente por

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

79

meio de um continuum de inter-relações motivadas pela circulação do “espírito da coisa dada”

(mana, para Mauss), essas interdependências desdobra-se entre os planos micro, macro e

mesossocial. Ainda que exista objetividade, o sistema de dádiva só se realiza na prática, não

havendo a separação das relações particulares, o que nos dá a possibilidade de relações

variáveis.Dito isto fico a pensar no treco Padre Cícero contendo o “espírito da coisa dada”, ou seja,

que existe nessa materialidade algo além do ter, do consumo. Contudo, a diante iremos trabalhar

melhor tal posicionamento. Voltemos a algumas entrevistas para deixar claro a perspectiva das dádivas trocadas em

estar no Juazeiro do Norte. Trago-lhes a conversa agradável que tive com a Marilene de Santana

Nunes da cidade de São Brás, no estado de Alagoas. A mesma já fez esse trajeto cinco vezes, e já

levou o treco Padre Cícero para sua casa “várias e várias vezes”, e por ocasiões leva por encomenda

para sua cidade de origem. Ao ser indagada sobre o que qual o significado de estar no Juazeiro, ela

responde:

Ah menino eu não sei... a gente parece que... sei lá...a gente sente um alíviotão grande que parece você quando vem...você não vem com peso nascostas?...quando você entra no Juazeiro... quando você a vista a estátua jácomeça a alegria né...menino tudo é maravilhoso...tudo é só de bênção.Quando a gente entra na igreja parece que Jesus está aqui... daqui pra lá ficatudo...você vai voltar renovado. E essa daí (aponta para sua parceira deromaria) tem problemas de joelho e já foi para tudo quanto é canto aqui (jájájá é a voz da parceira)... e quando ela vai assim... ôôô cheguei na minhacasa...ô menia não to aguentando o joelho que esse joelho...aqui não...bateuumas pedras...as pedras tudinho e aqui não...graças a Deus. Sobe escada...desce escada e aqui não tem...graças a Deus. É uma maravilha mesmo estáaqui no Juazeiro... só as bênçãos de Deus e do meu padrinho Cícero que agente tá qui...é uma glória mesmo do pai.

Há dois aspectos importantes na fala acima a serem destacados a partir da perspectiva do

sistema de dádivas, a ideia de renovação e de paraíso. A renovação é dada desde a chegada a cidade,

valendo toda a doação do sacrifício da viagem para que se possa buscar a alegria e as bênçãos das

divindades citadas, pois só aqui é possível receber tais bênçãos, na terra do “Padim”. O paraíso

citado é onde tudo é dado como dádiva, onde nada de ruim irá acontecer e todas as curas são dadas

com as graças que são merecidas por todos que aqui vieram. Aqui o valor importante não é

quantitativo, não importa quantas vezes veio em um ano, o que importa é vir ao menos uma vez,

pois o retorno não será dado necessariamente de forma instantânea (senão corre-se o risco da ação

ser interpretada como uma equivalência que levaria à ruptura da interação).

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

80

O presente, da cura de enfermidades, de boas chuvas no sertão, que nada de ruim aconteça

durante o ano, de fartura na roça, de saúde plena, da riqueza espiritual, pode ser retribuído em outro

momento, assim, faz-se circular a moagem das práticas sociais e experiências de vida entre aqueles

que estão envolvidos. Como sugere Martins (2006, p. 12-19), a dádiva está presente em todas as

partes e não diz respeito apenas a momentos isolados e descontínuos da realidade. O que circula

tem vários nomes: dinheiro, carro, imóveis, roupas, mas também sorrisos, gentilezas, palavras,

hospitalidades, presentes, serviços gratuitos.

Sendo assim, a dádiva é, por natureza, uma regra ambivalente, que permite ultrapassar a

antítese entre o eu e o outro, entre a obrigação e a liberdade, entre o mágico e o técnico. Na dádiva,

participam a obrigação e o interesse, mas também a espontaneidade, a liberdade, a amizade, a

criatividade. Por isso, para a senhora Maria Angélica Freitas de Oliveira, da cidade de Itaporanga

D’Ajuda que fica pertinho de Aracaju, menos de uma hora de viagem, segundo a dona Maria, que

não tinha o treco Padre Cícero em casa, usava a criatividade para manter a relação de troca firmada

com o Padre Cícero, segundo ela:

Sou devota dele... mas nunca adquirir a imagem dele. Inclusive eu já pediuma graça a ele... e ele deu. E alcancei... passando de ônibus todos os diaseu pedi a ele... eu vi um rapaz que tinha uma grutazinha... uma capelinhaassim... uma oficina de carro e eu olhava e pedia todo dia que ele me tirassedaquele trabalho e arranjasse um trabalho melhor mais perto de casa... e derepente eu conseguir. E eu agradeci a ele por ele ter conseguido essa graça.E esse ano mais uma vez ele me deu essa oportunidade de estar aqui maispróximo dele... porque eu me aposentei... e eu pedi a ele... se eu meaposentasse... conseguisse me aposentar eu viria aqui no Juazeiro. E derepente surgiu assim... a chance de vir e eu não perdi a oportunidade.

Nesse caso, a manutenção do sistema de dádivas se dá através das sensações provocadas,

do sentimento construído, contato e influência de outros.A sociedade, nessa perspectiva relacional, é

um fenômeno social total, porque ela se faz primeiramente pela circulação de dádivas, considerados

símbolos básicos na constituição dos vínculos sociais.

Acrescento a isso, no caso do Juazeiro, fé, crença, bênção, salvação, busca de

aprendizagem, encantamento, oração, lazer, clareamento dos caminhos da vida, realização de

pedidos, missão, momento de paz, tradição familiar, renovação, pedacinho do céu, paraíso, riqueza

espiritual, pagar promessa, tudo isso se traduzindo em um sistema de circulação de trocas dádivas

não sistematizado estruturalmente. Devemos entender que aquilo que circula influi de forma

decisiva na construção e formação dos indivíduos envolvidos e na forma de como são definidos os

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

81

lugares. Nisso a dádiva pode aparecer de forma múltipla estando de acordo com as práticas sociais.

Para Mauss,

Os fenômenos sociológicos são fenômenos para a vida – na medida em quehá apenas sociedade “entre seres vivos” – diferentemente dos animais, ohumano se caracteriza pela presença da vontade, da pressão da consciênciade uns sobre os outros, das comunicações de ideias, da linguagem, das artesplásticas e estéticas, dos agrupamentos e religiões, em uma palavra,complementa, das “instituições que são os traços da nossa vida em comum”(2003: p. 319-320).

Para o fenômeno demonstrado ao longo do texto, podemos dizer que são as pessoas de vida

simples e comum, de rostos sofridos pelo tempo, ou, pela vida escassa de recursos materiais, das

viagens longas e difíceis, com pouquíssimos recursos financeiros, mas, com a alegria, felicidade e

esperança que depois de dias em Juazeiro, pode alcançar a graça de vir coisas melhores para família

e amigos. São essas pessoas que fornecem toda a possibilidade, de acordo com suas práticas sociais

e formação da coletividade, da construção do sistema de dádiva. No fundo, são misturas.

Misturam-se alma nas coisas; misturam-se coisas nas almas. Misturam-se as vidas e eis como as

pessoas e as coisas misturadas saem, cada uma, das suas esferas se misturam: o que é precisamente

o contrato e a troca (Mauss, 2011, p. 90).Além disso, as pessoas sentem que devem tudo às entidades, especificamente, ao Padre

Cícero, que é o intermediador de Deus na terra. A vida faz sentido, quando se paga uma promessa,

ou, se estar no paraíso, até mesmo levar um “pedacinho do céu”. Troca-se a liberdade pela

obrigação de se estar aqui no Juazeiro. Obrigação implícita, mítica, imaginária, simbólica e coletiva.

Assume-se o interesse das coisas trocadas, e o fortalecimento da aliança que estão praticamente

ligadas para todo o sempre. Podemos dizer que tal aliança, é fato marcante, ou, um símbolo na vida

desses indivíduos, que permanecem sobre a influência das coisas trocadas, traduzindo como tais

grupos se comportam diante da sociedade.

4.1 DÁDIVAS SAEM DO JUAZEIRO COMO “TRECOS”.

Durante toda a caminhada no campo, vi, observei, conversei com pessoas de várias cidades

e estados desse Brasil imenso e culturalmentediverso. No caso do Juazeiro, nada as deixariam mais

felizes do que a oportunidade de estar novamente na referida cidade. Por vezes, perguntava aos

meus entrevistados: voltaria ao Juazeiro? E todas as respostas eram afirmativas e diversificadas em

seus interesses, motivações, promessas cumpridas e pedidos a serem feitos. Algumas respostas

foram: pretendo voltar a esselugar abençoado... me sinto bem, enquanto Deus me dê condição, com

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

82

saúde votaria sempre, se Deus quiser, se para o ano for viva, com certeza, oxente... só deixo quando,

todos os anos que Deus permitir, com a intersecção do Padre Cícero estarei aqui, tradição, familiar,

enquanto estiver viva estou aqui, peço a Deus, Padre Cícero e nossa Senhora das Dores que sim,

varias vezes, é o único lugar que viajo com a família, vem de família, só deixo de vir quando

morrer, voltarei todos os anos, jamais deixarei de vir, com fé em Deus e nossa Senhora, meu Pade

Ciço quiser.

Vê-se que as motivações sociais e o simbolismo são presentes no cotidiano daqueles que

estão envolvidos dentro do sistema da dádiva. A volta ao Juazeiro está para a demanda da dádiva,

assim como, os interesses e motivações estão para os indivíduos abarcados. Voltar à cidade é ter

certeza que foi obtido bênçãos das entidades divinas inseridas, é compor mais um ano de tradição

familiar, é em troca de mais um ano de vida, vir novamente agradecer. Estar vivo, com saúde, é

graças à fé inabalada, que sustenta e dá mais uma oportunidade de fazer a viagem. Mas, é

necessário haver uma querência do Padre Cícero, Nossa Senhora das Dores ou do próprio Deus,

para que tenha a possibilidade da volta. É essa a dádiva recebida, que é agradecida e retribuída com

mais uma viagem.

Para tanto as dádivas não são trocadas apenas pela viagem em si. Há um elemento

importante na representação dessa ação, da troca, que é o treco Padre Cícero, pois é nele, muitas

vezes, que são depositados todos os agradecimentos e pedidos para que haja novamente a viagem.

O treco age como elemento de sustentação da promessa, pedidos e agradecimentos, nele é

colocado honraria, pois está sempre em um lugar visível dentro das casas. Não é simplesmente

“levar um pedacinho do Juazeiro”, há uma necessidade de demonstração coletiva, de guardá-lo com

significado especial. A senhora Silmara da cidade de Canindé de São Francisco, no estado de

Sergipe, diz que “no quintal tem um altazinho com água caindo entendeu... tudo bonitinho...você

tem seus momentos que você vai lá quer falar com Deus mais presente...você vai lá,

ajoelha...pedindo a proteção divina”.

Ter o treco é inserir-se no movimento da dádiva, na lógica da liberdade e obrigações por

desejos, pedidos e graças alcançadas. É ajuizar os laços contratuais com a sociedade e normas

externas. Os envolvidos no sistema de dádivas têm o dever moral para com algumas práticas

sociais. Entretanto, esse dever moral não deve ser algo agressivo, impositivo ou classificatório, o

mesmo, age acima dos indivíduos, de modo que a vontade sai do próprio ser. Essa moral vem da

religião, onde segundo Durkheim:

[...] a religião ensina que, acima do mundo em que vivemos e do qualfazemos parte, existe um poder moral de outro gênero, que nos domina, que

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

83

é superior a nós, e do qual dependemos. Porque nos é superior, tem tudoaquilo que é necessário para ser o legislador de nossa conduta, e nós somosapenas seus súditos. É o poder divino (DURKHEIM, 2006, p. 67).

Um Deus, ou, a entidade da qual o treco é espelhado, Padre Cícero, atua como amigo,

irmão, padre caridoso, curador dos pecados terrenos, tem tudo aquilo que o ato moral fraterno,

paterno possa agir sobre aqueles que estão envolvidos no sistema da dádiva. A moral se constitui a

partir da ação social dos indivíduos, não apenas em um único momento da vida, a sociedade

entranhar-se em todos os momentos, é a partir dela que prosseguimos com a ordem social moral25.

Por vezes a dádiva age como princípio vital aos organismos vivos, aos sistemas sociais

vivos, a mesma age através da cultura de forma estruturada. É na dádiva que temos uma das formas

de perceber o movimento do consumo ao treco Padre Cícero entre os romeiros que visitam a cidade

todos os anos, pois o consumo do treco Padre Cícero está para a retribuição das coisas dadas. Nessa

ação se retribui o respeito, as graças alcançadas, realização de pedidos, e a renovação da saúde para

mais uma viagem. É importante dizer novamente, que as pessoas se doam ao dar, e se as pessoas se

dão é porque devem algo ao Padre Cícero. As dádivas vão e voltam, havendo uma necessária

reciprocidade, na devolução e retribuição.

Dessa forma, entendemos que o treco Padre Cícero atua como dádivas que saem do

Juazeiro, ou, dádivas trocadas. Para o Gilvando da cidade de Salgado, no estado de Sergipe o treco

Padre Cícero faz “a gente lembrar e agradecer a vitória que Padre Cícero dá a gente né”. A

lembrança da vitória é a lembrança que algo está em débito, alguma coisa está destoando nessa

relação tríplice de dá, receber e retribuir. O débito precisa ser sanado com o consumo26 do treco e a

visita à cidade do Padre.

Os bens trocados fazem parte do sistema de dádivas, pois quando há o momento da volta

para casa, há o deixa-se um pouco de si no Juazeiro, e carrega-se consigo um pouco dos “momentos

de paz” que viveu na forma de treco. Ou quando se leva o treco e dá para alguém, é dito que: “o que

é de mais importante e sagrado para mim, eu trouxe para você”. A partir do momento em que há o

consumo do treco Padre Cícero, para ser repassado para outra pessoa, forma-se a reciprocidade

indireta, podendo ser seguido por tradição familiar ou gerações.

Assim, constrói-se a estrutura coletiva da reciprocidade indireta. Podemos dizer, também,

que a transmissão de cultura se dá através da reciprocidade indireta. Portanto, as dádivas se

25 Para saber mais, acessar Durkheim, Émilie (Trad. Raquel Weiss). O ensino da moral na escola primária.In: Novos Estudos. No 78. Julho/2007. p. 59 – 75. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/nec/n78/ 08.pdf.

26 Consumo no qual me refiro são bens trocados.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

84

estendem para além do território do Juazeiro do Norte, quando se leva o treco para ser dado a

outrem. As dádivas saem do Juazeiro quando as pessoas levam o treco Padre Cícero para suas casas.

A questão é que no consumo do treco há uma aceitação inconsciente de todo o sistema da

dádiva apresentada, na medida em que, os participantes se doam para receber em troca, para depois

retribuir consumindo novamente, fazendo outra viagem, visitações aos templos é reforçada a

perspectiva da dádiva, tornando-se um ciclo individual e coletivo, por vezes passado por gerações.

É exatamente o que o autor da teoria da dádiva pode chamar de fenômenos sociais “totais”.

Nesses fenômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los,exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas,jurídicas e morais – estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -;econômicas – estas supondo formas particulares da produção e do consumo,ou melhor, do fornecimento e da distribuição [...] (Mauss, 2003: p. 187).

Nesse caso, o treco do qual me refiro está para representação do fenômeno social total, a

partir das relações estabelecidas com os envolvidos. Essas relações se dão de várias formas,

religiosas, morais e de consumo particular que engendra e fortalece essas prestações totais. Para

Mauss (2011, p. 75), as dádivas aos homens e aos deuses têm por finalidade comprar a paz com uns

e outros. Desse modo entendemos mais uma das motivações nesse processo de troca de dádivas, ou

como as dádivas saem do Juazeiro do Norte. As dádivas são trocadas por haver sacrifício-contrato,

isso implica em dizer que a qualificação da dádiva está na forma de relação social, sobretudo na

universalidade da tríplice obrigação “dar, receber e retribuir” que permite a construção do princípio

da reciprocidade.

Passamos a revisitar algumas entrevistas feitas durante o processo de construção do treco

como elemento fundamental dentro do sistema da dádiva. A dona Maria, da cidade de Belmonte, no

estado do Pernambuco, ao ser indagada sobre o treco Padre Cícero afirma que “Para mim eu

considero que é um santo né... pra mim é um santo que eu tenho na minha casa”. A senhora Maria,

da cidade de Caruaru, no estado do Pernambuco afirma “Olhe... pra mim...muito bom...por que...eu

gosto...eu gosto né. Eu me sinto bem quando rezo... e...faço pedidos pra mim...vai revigorando cada

vez mais”.

O senhor Rafael, da cidade de Aracajú, no estado do Sergipe, sujeito de fala mansa, que

parece estar sem pressa, contudo, atencioso e entusiasta romeiro, diz que o treco Padre Cícero

“Representa uma bênção de Deus... uma bênção de Deus”. Para o Paulo de Lima, da cidade de

Itabaiana, no estado do Sergipe, que trás sempre a família consigo, mulher e três filhos, há mais de

dez anos, diz que o treco Padre Cícero “[...]significa tudo...quando a gente tá meicoisado...agente

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

85

vai e olha a estátua...a gente lembra de Juazeiro...de Padre Cícero...lembra de tudo...a gente se

acalma mais né.

Ao ser indagada sobre o que significa ter o Treco Padre Cícero em sua casa, a senhora

Maria de Lurdes Silva, da cidade Patos, no estado da Paraíba, com mais de trinta viagens ao

Juazeiro, diz o seguinte:

Olha... desde que eu conheci...desde que eu comeceivim...minhas...minhas...minha vó...minha mãe...dizia assim...que ele eranosso padrim...e eu tomei por padrim...a mãe Maria santíssima por mãe...eele pelo meu padrim...Eu já pedi...assim...eu nunca vim pra pedigraça...assim...interseção por ele...pedindo a interseção dele...como meupadrim...pra mim guiar no meu caminho...assim como ele era no caminho deJesus...eu quero seguir no caminho dele...mermo com meuspecados...minhaspequinez...com as minhas misérias...mas eu tôseguindo...venho se não tiver doente...mas se eu tiver boa...eutô aqui.

Notoque em todas as falas dos entrevistados há o reconhecimento do treco com a divindade

que o mesmo representa. Dessa forma percebemos inúmeras variáveis no que diz respeito às

dádivas levadas para suas casas. Os valores, os fins, os desejos, pedidos e interesses são

indetermináveis, contudo, isso não se constitui um problema na análise sobre a perspectiva da

dádiva. Indagamos como os indivíduos tomam suas decisões, uma vez que na análise do sistema da

dádiva, nas particularidades dos indivíduos que destoam ao movimento do Juazeiro do Norte,

podemos pensar a respeito de suas liberdades e obrigações para com as dádivas que saem na forma

de treco da cidade.

Levar o treco Padre Cícero para suas casas é lembrar a aquisição de uma graça, um pedido

atendido, e que uma das formas encontradas para a satisfação desse contrato é no consumo do treco.

Quando isso acontece, há uma aceitação de ambas as partes de que a partir daquele momento foi

selado um acordo eterno entre o que foi recebido e o que precisa ser retribuído. Dessa forma,

podemos entender de outro modo como às relações são determinadas pelas obrigações, dando-se

uns aos outros, estando submetido à lei de símbolos que são construídos e fazem circular através

dos indivíduos, produzindo suas individualidades e o conjunto social que estão envolvidos.Importa

dizer que aqueles que estão envolvidos no sistema da dádiva sentem-se prestigiados, valorizados e

honrados ao participarem dessas relações. Contudo, que força há na coisa dada que obrigue o

donatário a devolver?

As dádivas voltam, são recíprocas e necessariamente devolvidas. A obrigação de devolver

aparece para desmentir a gratuidade da dádiva. No caso do treco Padre Cícero em Juazeiro do

Norte, a força motriz do sistema da dádiva está diretamente acionado à divindade do personagem

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

86

principal da cidade, Padre Cícero Romão Batista. Toda sua história é composta por elementos

religiosos que reforçam a ideia do “santo” instigado pelos romeiros que aqui veem fazer suas visitas

anualmente, pois aqueles romeiros devotos que aceitam o Padre Cícero, podem vir a compor todo o

sistema de dádiva, que é representado no treco, e levado para suas casas na forma de

prestígio,honra, liberdade e obrigação.

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

87

5CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das várias possibilidades de investigação sobre o bem de consumo “treco Padre

Cícero”, eu optei a escolher a possibilidade de fazer a relação entre a teoria das coisas e a dádiva,

demonstrando que há uma relação entre o treco Padre Cícero consumido pelos romeiros devotos

que vão a Juazeiro do Norte, uma relação de troca simbólica obtida através desse mesmo consumo.

Considero o estudo realizado por mim sob a perspectiva da possibilidade de efetivação de

novos trabalhos sobre a temática abordada, pois não houve a pretensão de esgotamento de qualquer

ideia, ou mesmo um fechamento daquilo que fora exposto aqui. Ao contrário, com esse estudo,

busquei inaugurar um novo olhar investigativo sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero pelos

romeiros devotos que vêm ao Juazeiro copiosamente.

Ao longo da investigação, tanto na dedicação de tempo às leituras como aos trabalhos de

campo e às análises dos dados produzidos, percebemos que algumas coisas mudaram desde o

projeto inicial até chegar a este resultado final, a dissertação. Alguns elementos foram introduzidos

no processo de investigação, ao mesmo tempo em que alguns se tornaram secundários e já outros

foram até mesmo esquecidos. Faz parte da pesquisa, que é feita de escolhas tanto teóricas quanto

metodológicas e é por isso que a ciência está em constante transformação.

A discussão aqui apresentada é resultado de observações, informações e entrevistas ao

longo de 03 anos, problematizando e buscando um novo olhar sobre o consumo das estátuas do

Padre Cícero. Acabamos por construir um texto no qual os romeiros devotos contam suas histórias

em torno de suas viagens ao Juazeiro, dificuldades, pedidos, graças alcançadas e o prazer de estar

na cidade.

Nosso objetivo foi o de propor um novo estudo e com isso as lacunas notadas a partir da

leitura do texto justificam-se pelo fato que o real é captado a partir de um conjunto de relações, de

elementos e particularidades dentro de um sistema social. Por isso, o fato de escolher um objeto de

pensamento requer adentrar estrategicamente no seu interior, na sua particularidade, mesmo que

seja dentro de uma totalidade que jamais alcançaríamos.

Durante o processo foi possível dialogar com vários autores, dos quais foram eleitos alguns

como pilares referenciais, os quais me deram a oportunidade de mostrar, ou pelos menos tentar

demonstrar, a possibilidade de uma nova leitura sobre as estátuas do personagem tal conhecido e

reconhecido de norte a sul do país, Padre Cícero.Tive um real prazer em conversar com todos os

romeiros devotos, que me apresentaram um “Juazeiro” que eu não conhecia,acesso a espaços da

cidade tão valorizados que, mesmo para um nativo da cidade como eu, não seria possível sem a

pesquisa de campo.

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

88

Durante a caminhada, surgiu um novo fato que destaco como relevante para outras

pesquisas que possam vir. O fato registrado se refere à produção de garrafas pet de água mineral

(500 ml) com o formato característico do Padre Cícero. Totalmente transparente, a embalagem

representa Padre Cícero segurando uma bengala, e a tampa preta se assemelha com o chapéu

utilizado pelo Padre. E diante disso, destaco também a compreensão da dificuldade encontrada ao

propor esse fato como objeto de estudo, tal como o que propus, seja pela ausência de referências,

seja pela possibilidade defalha na sistematização das ideias aqui apresentadas.

Fica a contribuição dada por esse texto a partir da inserção de uma nova leitura sobre o

consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros devotos. Esse aporte se dá de forma primária

pelos estudos da cultura material, através da ideia do treco do Miller (2013) e da relação desse

mesmo treco com a dádiva de Mauss (2011). Apontando a necessidade de estudarmos as coisas a

partir delas mesmas, ou seja, das relações sociais que as coisas constroem conosco e em cadeia.

O treco transforma-se em dádivas trocadas, que é a forma de retribuição dos romeiros

devotos e que é capaz de manter o sistema de trocas ativo e atuante, sobretudo, a partir do consumo

do treco Padre Cícero. É nele, no treco, que é depositado essa relação, pois é possível observar

através das falas dos entrevistados (como foi visto no texto)que tal objeto exerce uma força

mantenedora dessa relação. Entendo que é no treco, no fato de ter em suas casas, romeiros devotos,

que possibilita o reforçar dessa relação. E que nem mesmo os romeiros devotos sabem explicar a

necessidade, grandiosidade da significância em ter o treco em suas humildes residências.

Portanto, deixo o entendimento de que é a partir do treco que é gerado a relação de trocas,

e nessas trocas simbólicas que acontecem as dádivas são trocadas.Dito isto, reforço a ideia de que

tudo é simbólico e que em tudo há reciprocidade.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

89

6REFERÊNCIAS

AGIER, Michel (2011). Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo, Editora Terceiro Nome.

AGIER, Michel (2015). Encontros etnográficos: Interação, contexto e comparação. São Paulo: Editora UNESP; Alagoas: EDUFAL.

ARAÚJO, Maria de Lourdes de (2011). A cidade do Padre Cícero Trabalho e Fé. Fortaleza: IMEPH.

AUGÉ, Marc (1994). Não Lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade.Venda Nova: Bertrand.

AUGÉ, Marc (1994). Não-lugares:Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus.

BARROS, Luitgarde O. C. (1988). A terra da Mãe de Deus - Um estudo do Movimento Religioso de Juazeiro do Norte.Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, ed. MINC-INL.

BARROS, Luitgarde O. C. (2014). Juazeiro do Padre Cícero. A terra da mãe de Deus. 3. Ed. Fortaleza: Editora IMEPH.

BAUDRILLARD, Jean (1995). A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos.

BAUDRILLARD, Jean (1997). O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas emmercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008.

BECKER, Howard S. (1993).“Sobre Metodologia”In Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec.

BOURDIEU, Pierre (2007).A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre, RS: Zouk.

BOURDIEU, Pierre (2009). A economia das trocas simbólicas. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

90

BOURDIEU, Pierre (2007). O Poder Simbólico. 11 Ed. São Paulo: Editora Bertrand Brasil.

CAMPBELL, Colin (2006).Eu compro, logo sei que existo: as bases metafísicas do consumo modernoIn: BARBOSA, Lívia & CAMPBELL, Colin (org). Consumo, cultura e identidade. Rio de Janeiro: Editora FGV.

CORDEIRO, Maria Paula J. (2011).Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte. Fortaleza: IMPEH.

CYPRIANO. C. P (2008). Nada tão fútil que não posso dizê-lo útil. A atividade de consumo na experiência contemporânea. Dissertação apresentada a Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte.

DELLA CAVA, Ralph ([1977]1985). Milagre em Joaseiro. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

DELLA CAVA, Ralph (2014). Milagre em Joaseiro. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras. Disponível em <http://www.juazeiro.ce.gov.br/Cidade/Estatua-de-Padre-Cicero/>. (Acesso em 03 jan. 2017).

DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron (2004). O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

DURKHEIM, Émile (2005). As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret.

DURKHEIM, Émile (2007). Trad. Raquel Weiss. O ensino da moral na escola primária In: Novos Estudos. No 78. Julho/2007. p.59 – 75. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/nec/n78/ 08.pdf>(Acesso em: 05 de fev. de 2017).

FLICK, Uwe (2004). Uma introdução à pesquisa qualitativa. Trad. Sandra Netz. 2. Ed. Porto Alegre: Bookman.

GEERTZ, Clifford (2013). Interpretações das culturas. Rio de Janeiro: LTC.

GEERTZ, Clifford (1997).O saber local. Petrópolis: Vozes.

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

91

GODBOUT, Jacques T. (1998). Introdução à Dádiva.Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 38,v. 13, ANPOCS.

GODELIER, Maurice. (2001). O Enigma do Dom. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

GOFFMAN, E. (1975).A representação do eu na vida cotidiana, Rio de Janeiro: Vozes.

GOMBRICH, E. H. (1985).A História da Arte. Trad. de Álvaro Cabral. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos (2007). Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro.

GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ (2002).Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte. PlanoDiretor de Desenvolvimento Urbano de Juazeiro do Norte - Termos de Referência para Elaboração de Projetos Executivos - Projeto Roteiro da Fé, Juazeiro, 2002.

GUERRA, Renata de Souza (2011). Dimensões do consumo na vida social. Tese de Doutorado. UFMG. Disponível em: <https:// repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/21484> (Acesso em 18 de fevereiro de 2017).

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Documentação Territorial do Brasil. Juazeiro do Norte, Ceará. 19--. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/ceara/juazeirodonorte.pdf Acesso em: 03 Jul. 2014.

INSTITUTO DE PESQUISA E ESTRATÉGIA ECONÔMICA DO CEARÁ (1959) Juazeiro do Norte. In: Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. IBGE: Rio de Janeiro. p. 331-340.

INSTITUTO DE PESQUISA E ESTRATÉGIA ECONÔMICA DO CEARÁ (2010). Perfil Básico Municipal de Juazeiro do Norte. Disponível em: http://www2.ipece.ce.gov.br/atlas/capitulo1/11/116x.htm. Acesso em: 19/02/2017.

LEVI-STRAUSS. C. (1973). “O desdobramento da representação nas Artes da Ásia e da América” In: Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

LOPES CAMPINA, Maria da Conceição (1985). Voz do Padre Cícero e outras memórias. São Paulo: Edições Paulinas.

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

92

LOPES, Regis (2000). O meio do mundo: territórios de sagrado em Juazeiro do Padre Cícero. Tese de Doutorado, PUC: São Paulo.

LOPES, Regis (1986). O verbo encantado: a construção do Padre Cícero no imaginário dos devotos. Rio Grande do Sul: Ijuí.

LOPES, Regis (2000). Padre Cícero. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha.

MARTINS, Paulo H; CAMPOS, Roberta Bivar C. (Org.) (2006). Polifonia do Dom. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Recife: EDUFPE.

MAUSS, Marcel (2011). Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70 LDA.

MAUSS, Marcel (2003). Sociologia e antropologia, São Paulo, Cosac &Naify.

MCCRACKEN, G. (2007). Cultura e Consumo: Uma explicação teórica da estrutura e do movimento do significado cultural dos bens de consumo. Revista de Administração de Empresas – RAE, v. 47, n. 1, p. 99-115, jan./mar.

MCCRACKEN, Grant (2003). Cultura e consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e atividades de consumo. Rio de Janeiro: Mauad.

MENESES, Itamara Freires de (2016). Terreno vigilante: compreendendo as ações dos jovens com uma missão (JOCUM) em Juazeiro do Norte-CE.2016. 100f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. Disponível em:https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/13848/1/MariaGOCR_TESE.pdf(Acesso em 29 Jun. de 2017).

MILLER, Daniel (2007). Consumo como cultura material. Horizontes Antropológicos, ano 13, n.28.

MILLER, Daniel (2013).Treco, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Ed. Zahar.

MILLER, Daniel (2015). Trecos, Troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar. Autor da Resenha: Rafael Velasquez. Revista Antropolítica, Niterói, n. 38, p.377-381, 1º Sem.

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido oportunidade de realizar esse sonho. Por todo

93

OLIVEIRA, Roberto Cardoso (2000). O trabalho do antropólogo.2 ed. São Paulo. Editora UNESP

PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha (2006). Mercados de devoção: consumo e identidades religiosas nos santuários de peregrinação xiita na Síria. In: Cultura consumo e identidade. Rio de Janeiro: FGV.

RIBEIRO, Maria das Graças de Oliveira Costa (2014). Dores e cores nas mal traçadas linhas dos devotos do padre Cícero: as trocas linguísticas instauradas entre o discurso eclesial e o discurso epistolar dos romeiros.2014. 290 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Regional; Cultura e Representações) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

SABORIN, Eric (2008). Marcel Mauss: Da dádiva à questão da reciprocidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 66, v. 23, p. 131-208.

SAHLINS, Marshall ([1996]2004). “A tristeza da doçura, ou a antropologia nativa da cosmologia ocidental”. In: Cultura na prática. Pp: 563-620. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ.

WEBER, Max (1994). A ética protestante e o espírito do capitalismo. 8ª ed.São Paulo: Pioneira.