Se o Mundo Fosse meu... E………………….. Se eu pudesse mudar as regras...
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENRO DE ... · A minha mãe e a todos os esforços...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ENTRE A CIDADE E O TRECO: UMA LEITURA SOBRE O CONSUMO DAS
ESTÁTUAS DO PADRE CÍCERO EM JUAZEIRO DO NORTE/CE
MICHAEL MEDEIROS MARQUES
NATAL-RN
2017
MICHAEL MEDEIROS MARQUES
ENTRE A CIDADE E O TRECO: UMA LEITURA SOBRE O CONSUMO DAS
ESTÁTUAS DO PADRE CÍCERO EM JUAZEIRO DO NORTE/CE
Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação em CiênciasSociais da Universidade Federal do RioGrande do Norte (UFRN), como requisitoparcial para obtenção do título de Mestreem Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carvalho deAssunção
NATAL-RN
2017
Marques, Michael Medeiros.
Entre o treco e a cidade: Uma leitura sobre o consumo das estátuas doPadre Cícero em Juazeiro do Norte/CE/ Michael Medeiros Marques. –Natal/RN: [s.n.], 2017. 96f.
Orientador: Luiz Carvalho de Assunção
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande doNorte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes – CCHLA.
Inclui Bibliografia
1. Antropologia. 2. Antropologia do Consumo. 3. Antropologia Urbana. I.Sposito, Luiz Carvalho de Assunção. II. Universidade Federal do Rio Grandedo Norte. Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. III. Título.
MICHAEL MEDEIROS MARQUES
ENTRE A CIDADE E O TRECO: UMA LEITURA SOBRE O CONSUMO DAS
ESTÁTUAS DO PADRE CÍCERO EM JUAZEIRO DO NORTE/CE
Dissertação defendida em: 25 / Agosto / 2017
BANCA EXAMINADORA:
PROF. DR. LUIZ DE CARVALHO ASSUNÇÃO (ORIENTADOR)
PROF. DR. MARIA LUCIA BASTOS ALVES (MEMBRO INTERNO)
PROF. DR. MARIA DAS GRAÇAS DE OLIVEIRA COSTA RIBEIRO (MEMBRO
EXTERNO)
MICHAEL MEDEIROS MARQUES
À Marconiette, Eliza, Marcondes, Michel,
José Marques (in memoriam)
e a todos familiares.
“E nossa história não estará pelo avesso assim
sem final feliz, teremos coisas bonitas para
contar. E até lá, vamos viver, temos muito ainda
por fazer, não olhe para trás, apenas começamos,
o mundo começa agora, apenas começamos”.
Renato Russo
AGRADECIMENTOS
Há certos momentos em nossas vidas que paramos para pensar nas pessoas
importantes que sempre estiveram ao nosso lado, ou, que em nossa caminhada, foram
agregadas de forma muito afetuosa. São tantas para dizer, que o risco de esquecer alguém é
eminente. Mas antes de começar tais agradecimentos, consigo lembrar-me de alguns pequenos
passos que dei no “chão de fábrica”, mercadinho, posto de combustível e agora na escola que
trabalho. De algumas experiências passadas que, com certeza, constroem o meu ser,
comportamento e a forma de vê o mundo. Não foi nada fácil chegar aqui, como diria o poeta:
“você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui. Percorri milhas e milhas antes de
dormir. Eu não cochilei”. Para tanto é necessário agradecer aqueles e aquelas que de forma
direta ou indireta estiveram presentes em muitos momentos de minha breve caminhada.
Primeiramente quero agradecer as forças além-mundo que atuam entre nós, pela
oportunidade da realização de um sonho, que por vezes esteve distante.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ao
Departamento de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em especial, aos secretários Otânio e
Jefferson, sempre prestativos e atenciosos com todos que vão atrás de informações e em busca
de sanar dúvidas sobre o programa e seu funcionamento.
Agradeço a toda minha família, que mesmo distante emanaram positividades,
confiança e torcida para que o trabalho se realizasse. Minha mãeMarconiette, meu irmão
Marcondes, minhas tias Vera, Vera Neide, Marluce, meus avós Antônio e Maria do Carmo.
Minhas primas Vânia e Ravena. Ao meu primo Leonardo e a toda família Medeiros, dedico o
meu trabalho.
Aos meus amigos de infância, que até os dias de hoje me aguentam falando das
minhas dificuldades, angústias, medos, alegrias e felicidades compartilhadas. São eles:
Rodrigo, Júnior, Mardonio, Jefferson, Antonio, Mirocles e Davio. Obrigado por todos os
momentos em que, no meu mais alto nível de desespero, me escutaram, acalmaram e
chamaram para jogar um game e relaxar. Por todas as risadas, discussões sobre futebol e
games. Obrigado pela amizade e companheirismo. Que possamos continuar sempre dessa
forma.
Agradeço de forma afetuosa ao professor Luiz Carvalho de Assunção que me
recebeu em sua sala no ano de 2014 para uma conversa informal sobre minha proposta de
pesquisa, antes mesmo da aceitação do meu projeto e a seleção do mestrado. Obrigado por ter
me acolhido, dado confiança e acreditado que eu seria capaz de realizar o trabalho. Por todas
as conversas formais e informais e pela confiança na disciplina de estágio. Levo comigo boas
lembranças e o desejo de retornar.
ÀProf.ª Eliane Tania Martins de Freitas, por todo o ensinamento provocado a partir
da disciplina de Antropologia do Consumo, na qual me foram apresentados autores que se
tornaram meus alicerces no trabalho construído e que mudou totalmente o rumo da
dissertação. Por todas as palavras, críticas, elogios, sempre com sapiência e propriedade. A
todos os livros indicados e pela participação notória na minha qualificação. Muitíssimo
obrigado e espero sinceramente que possamos nos encontrar novamente nas cadeiras da
Universidade. Grato.
Não poderia deixar de agradecer a todos os amigos e amigas de turma que me
ensinaram a viver em Natal/RN, sempre me orientando sobre qual ônibus pegar para chegar
aminha casa. Obrigado, Carol, Marla, Zeneide, Sidney, Modesto, Miro, Karine, Rayane e
Fátima. Em especial, ao meu colega de casa e amigo do Cariri/CE, Clécio. Por vários
momentos compartilhados, pelo racionamento de dinheiro, pelas conversas e
companheirismo.
Ao Luciano, amigo com o qual guardo lembranças com carinho, admiração e
respeito. Pelo acolhimento, ajuda financeira e algumas muitas caronas para a UFRN ou
qualquer lugar da cidade de Natal/RN. Mas, principalmente, pelo companheirismo e prontidão
no que fora necessário.
Indo para o Cariri...
Agradeço à Universidade Regional do Cariri (URCA), à PROAE (Pró Reitoria de
Assuntos Estudantis), pela atenção depositada no curso de Ciências Sociais, recentemente
implantado (ano de 2006), mas que, dentro das possibilidades, ajudou financeiramente com
viagens a encontros e congressos a fim de que eu tivesse a possibilidade de apresentar meus
primeiros artigos.
Ao Prof. Domingos Sávio, no qual deposito admiração, carinho e respeito. Por tudo
que fez por mim na graduação e na organização do projeto de pesquisa. Obrigado por sentar
comigo e pensar junto a melhor forma de se apresentar em um programa de pós-graduação.
Lembro com carinho a força dada e a confiança depositada na minha pessoa. Meu muitíssimo
obrigado!
ÀProf.ª Paula Cordeiro. Por vezes lembro-me do dizer “preciso bater para depois
assoprar” presente em vários momentos da graduação e na construção do projeto de pesquisa.
Pelos comentários direcionados, apontando erros e acertos. Obrigado.
À Prof.ª Renata Marinho, por todo ensinamento antropológico no início da
graduação. Lembro muito bem do meu encantamento pela disciplina e de sua forma sucinta,
calma e carregada de sapiência para transmitir as informações que eram necessárias.
Ao prof. Roberto Marques, pela sabedoria em dá complexidade aquilo que poderia
parecer comum, banal e algumas vezes não notado. Lembro-me da capacidade de dizer e vê
aquilo que dificilmente não conseguiríamos sem a sua ajuda.
Com muito afeto, agradeço aos meus amigos e amigas da turma de Ciências Sociais
2006.1 da URCA. Por todos os momentos vividos dentro e fora da URCA. Pelas conversas
banais, por várias e várias idas ao “Bistrol”, pelo companheirismo demonstrado em cada
encontro e por todas as viagens que já fizemos juntos. Por algumas conversas em momentos
de embriaguez e desordem, nas quais sempre fomos felizes e rimos uns dos outros nos dias
seguintes. Obrigado pelo afeto que já perdura por 11 anos. Tenho certeza que teremos sempre
mais coisas para contar.
Em especial, a minha amiga Eudivânia, que torceu e acompanhou-me em todos esses
momentos, desde a graduação, na qual estivemos na mesma turma, seleção de mestrado,
quando compartilhamos da mesma casa nos meses que morei em Natal, eu no mestrado e ela
no Doutorado. Obrigado por tudo, minha amiga. Por sentar várias vezes comigo e dar-me
instruções importantíssimas para que pudesse construir este trabalho. Nunca vou esquecer-me
da sua grata ajuda.
Ao meu amigo e camarada, Claudio Smalley, leitor dos meus textos e arranjador das
minhas ideias, sempre perguntando e escutando o que tenho a dizer. Sou muitíssimo grato por
tudo que me fez, pelos vários momentos à mesa, via e-mail e WhatsApp, nos quais discutimos
texto e trocamos ideias. Foi uma ajuda primordial para que eu pudesse ter confiança e
determinação em enfrentar todas as dificuldades. Muito obrigado. Jamais esquecerei.
Obrigado a todos os amigos e amigas da URCA, que em alguns momentos de minha
caminhada me ajudaram com palavras, incentivo e desejo de vitória.
Agradeço a minha companheira Eliza Espinoza, que tem se dedicado diariamente ao
nosso relacionamento, que transmite segurança e paz para mim e que, em nenhum momento
dessa caminhada, deixou de acreditar em mim. Obrigado pelo maior presente da minha vida,
meu Michelzinho Espinoza Marques. Querido e amado, esse filho que tanto sonhei. Ela me
deu a oportunidade de compartilhar a alegria de ser Pai. Pela mãe dedicada que é e por tudo
que já vivemos e ainda iremos viver juntos.
A minha mãe e a todos os esforços empreitados para que eu pudesse ter tido
oportunidade de realizar esse sonho. Por todo carinho depositado e por tudo que fez e faz por
mim. Nunca esquecerei a alegria e satisfação que te dou com minha caminhada acadêmica.
Ao meu irmão Marcondes, pelos ensinamentos da vida, incentivo e torcida.
Aos meus irmãos, Júnior, Nana, Lula, Fatinha. À tia Margarida (in memoriam), que
sempre me acolhia de forma bondosa e carinhosa quando ia à Fortaleza. Saudades e meu
muito obrigado.
Por fim, ao meu querido Pai, José Marques (in memoriam) por tudo que fez por mim.
Pela infância e juventude proveitosa e enriquecedora na minha formação enquanto indivíduo.
Tenho saudades eternas e nunca vou esquecê-lo em meus dias por aqui. A ele, dedico essa
dissertação.
RESUMO
Esta dissertação pretende considerar a área da antropologia do consumo e alguns olhares
sobre o estudo da cultura material na contemporaneidade, no sentido de perceber como as
coisas fazem as pessoas e produzem as relações sociais em cadeia. Reconhecendo que o
consumo pode ser visto como um meio de identificação de grupos sociais, inseridos em um
projeto de territorialidade e mapeamento, diversificando e ampliando os efeitos do consumo,
sua força simbólica, na tentativa de construir uma compreensão mais profunda de uma
humanidade não separada da materialidade. A pesquisa é situada na cidade de Juazeiro Norte
(Ceará), tendo como objeto o consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros devotos,
que reificam a ideia de que essas trocas simbólicas estruturam duas relações dentro e fora de
Juazeiro. Desse modo, o texto estrutura-se da seguinte forma:há uma apresentação inicial do
campo de estudo com discussão das incursões e problematização das aproximações e
distanciamentos com o mesmo, bem como, demostramos nossas perspectivas teóricas acerca
das possibilidades de análise sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero; damos
continuidade com a tentativa de efetivar uma nova leitura a partir da teoria das
coisas,analisando os sentidos, significados do consumo do treco (Miller, 2010) Padre Cícero e
o sistema de dádivas (Mauss, 2011) como um jogo constante de liberdade e obrigação.
Palavras-chave: Padre Cícero,consumo, dádiva.
ABSTRACT
This study intends to consider the area of anthropology of consumption and some views on
the study of material culture in the contemporary, in the sense of perceiving how things make
people and produce social relations in chains. Recognizing that consumption can be seen as a
means of identifying social groups, embedded in a project of territoriality and mapping,
diversifying and expanding the effects of consumption, its symbolic force, in an attempt to
build a deeper understanding of an unseparated humanity Of materiality. The research starts
from the city of Juazeiro do Norte (Ceará), with the purpose of consuming the statues of Padre
Cícero by devout pilgrims. It is structured in three moments: initial presentation of the field of
study; Theoretical perspectives on the possibilities of analysis on the consumption of the
statues of Father Cícero; Construction of a new reading from the theory of things, analyzing
the meanings, meanings of the consumption of treco (Miller, 2010) Father Cicero and the
system of gifts (Mauss, 2011) as a constant game of freedom and obligation.
Keywords: Father Cicero; consumption; gift.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................15
2 CAPÍTULO I - EU, NO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO E A PESQUISA DO “BEM
DE CONSUMO PADRE CÍCERO...........................................................................21
2.1 A ANTROPOLOGIA DOS OBJETOS...........................................................................30
2.2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS DO “BEM DE CONSUMO” PADRE CÍCERO.......34
2.3 CAMINHOS DE JUAZEIRO: ENCONTROS E DESENCONTROS.........................43
3 CAPÍTULO II - O “TRECO” COMO “PROVA QUE SOMOS ROMEIROS”...........59
3.1 SÍMBOLO RELIGIOSO: “A PROVA QUE SOMOS ROMEIROS”.........................66
3.2 O QUE SIGNIFICA O CONSUMO DO “TRECO” PADRE CÍCERO......................69
4 CAPÍTULO III - BENS TROCADOS: DÁDIVAS E TROCAS NO JUAZEIRO.........76
4.1 DÁDIVAS SAEM DO JUAZEIRO COMO “TRECOS”..............................................84
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................89
6. REFERÊNCIAS..................................................................................................................91
LISTA DE ILUSTRÇÕES
FOTO 0 - Padre Cícero em gesso na Loja Freitas Varejo (Juazeiro do Norte)..............22
FOTO 0 - Padre Cícero em gesso na Loja Zenir Móveis (Juazeiro do Norte)................23
FOTO 03 - Padre Cícero em gesso na Loja Padre Cícero (Largo do Socorro, Juazeiro do
Norte)........................................................................................................................................23
FOTO 04 - Mapa da Região Metropolitana do Cariri – RMC...........................................27
FOTO 05 - Mapa de representação do Bairro Socorro.......................................................49
FOTO 06 - Padre Cícero em alumínio e gesso(02 cm a 10 cm, respectivamente)............50
FOTO 07 -Conselhos do Padre Cícero espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte....51
FOTO 08 - Conselhos do Padre Cícero espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte....52
FOTO 09 - Santuário São Francisco das Chagas (Juazeiro do Norte)..............................53
FOTO 10 - Barracas localizadas ao redor do Santuário São Francisco das Chagas........54
FOTO 11 - Barracas localizadas ao redor do Santuário São Francisco das Chagas(Do
lado esquerdo da imagem vê-se o “passeio das almas”)......................................................54
FOTO 12 - Santuário São Francisco das Chagas / “Passeio das almas”...........................55
FOTO 13 - Estátua do Padre Cícero em Juazeiro do Norte...............................................65
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1INTRODUÇÃO
É difícil começar a dizer algo sobre alguma coisa. Há exigências que foram construídas ao
longo das décadas, dentro do espaço acadêmico, que por vezes nos dão limites epistemológicos e
que tantas outras vezes nos amarram a conceitos para que possamos conseguirconstruir o
“pesquisador”. De fato, é uma tarefa árdua, porém há muitos momentos gratificantes na caminhada
que ficarão em nossas lembranças para o resto de nossas vidas.
A investigação proposta com este trabalho está necessariamente vinculada aos estudos
sobre o consumo enquanto cultura material, dentro do universo da cidade do Juazeiro do
Norte/Ceará, ao personagem Padre Cícero Romão Batista, às suas estátuas vendidas na cidade e à
relação de troca simbólica estabelecida entre os seus consumidores.
Portanto, a pesquisa dar-se com os romeiros devotos do Padre Cícero e a relação
estabelecida, construída e reconstruída entre esses e o consumo das estátuas do sacerdote.
Nesse sentido, podemos admitir que possa existir comunicação entre o objeto e aquele que
o consome na medida em que os objetos são importantes, não porque sejam evidentes e fisicamente
restrinjam ou habilitem, mas justamente pelo contrário. Muitas vezes, é precisamente porque nós
não os vemos. Quanto menos tivermos consciência deles, mais conseguem determinar nossas
expectativas, estabelecendo o cenário e assegurando o comportamento apropriado, sem se submeter
a questionamentos (MILLER, 2007, p. 78).
Assim podemos pensar na teoria das coisas, ou como as coisas fazem as pessoas, pois as
mesmas só vêm a funcionar a partir do momento em que se tornam invisíveis, não mencionadas,
assim, podem nos dá a condição de familiaridade, de algo comum, de serem tidas como dadas. É
nessa perspectiva que é construída a cultura material, implicando grande parte do nosso ser, da
nossa experiência vivida e diária, nos dando consciência das coisas, das nossas ideias e do material
como algo exterior a nós mesmos.
Os objetos se apresentam em nossa vida social de forma a parecerem irrelevantes,
desprestigiados, negados a muitos estudos na academia. Talvez seja por conta da obviedade dos
objetos, da sua versão utilitária, chegando ao ponto de ficarmos cegos com sua presença, não
enxergando que essa materialidade pode vir a construir elementos na sociedade que podem dar
sentido, ter sentido, até mesmo estruturar todo um grupo social e suas relações produzidas em
cadeia.
Essa relação com os objetos tornou possível este trabalho. É o objeto como agente chave
que me dá apossibilidade de investigar práticas culturais, particulares de uma sociedade ou ainda
padrões culturais que são manifestados das mais diversas formas. Pensando na relação dos
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indivíduos com os objetos como, por exemplo, no consumo das estátuas do Padre Cícero,pode-se
aprender a construir relações de significados, apreensão, devoção, dedicação e trocas simbólicas.
Tais indivíduos e suas relações com as coisas nos apresentam ambientes culturais nos quais
nos moldamos. Podemos dizer que há a natureza, mas que a cultura nos dá a segunda natureza,
aquela que geralmente pomos em operação sem pensar. Coisasnão são coisas individuais, mas todo
o sistema de coisas, com sua ordem interna, fazem de nós as pessoas que somos. A lição da cultura
material é que, quanto mais deixamos de notá-la, mais poderosa e determinante ela se mostra. Isso
propicia uma teoria da cultura material que dá aos trecos1 muito mais significado do que se poderia
esperar, já que, acima de tudo, a cultura vem do treco. (MILLER, 2013, p. 83).
O que estou tentando dizer é que a cultura vem do treco e que temos a necessidade de
construir a teoria dos trecos como cultura material. Ou seja, temos a necessidade de investigar do
consumo das estátuas do Padre Cícero enquanto objeto da cultura material, pensando todo o mundo
exterior à materialidade e como tal objeto causa sensações, sonhos, desejos, tradições,
representações de um modo de vida, ideologias e leituras do mundo. Associa-se a isso a prática das
trocas simbólicas acionadas através das dádivas, que são trocadas a partir do consumo do treco.
Sobre a relação com a dádiva, “aos homens e as deuses têm também por finalidade
comprar a paz com uns e outros” (MAUSS, 2011, p. 75). Realizada a partir do consumo das estátuas
do Padre Cícero, essa troca simbólica acontece diante da sutileza da ação, mediante algumas
situações como gratidão, devoção, reverência, tradição, dentre outros elementos que veremos ao
longo do texto.
Contudo, destaco que as trocas simbólicas investigadas nesse estudo, tem como
sustentação teórica o livro Ensaio sobre a dádivade Marcel Mauss (2011). Em sua teoria existe um
tripé que fundamenta a relação de troca que é: dar, receber e retribuir. Ou seja, eu dou alguma coisa
a uma pessoa e essa pessoa que recebe se sente impulsionada a retribuir. Esse ciclo de retribuir abre
um novo ciclo que é o da doação, recepção e retribuição novamente. Na verdade, o que se troca é a
gratidão que vai e volta, e isso não acontece só com os objetos, mas também com as pessoas. Nessa
relação, o indivíduo sente-se endividado eternamente, positivamente, pelo resto da sua vida, em
função de algo que conquistou a partir da relação de troca simbólica que foi construída ao longo dos
anos.
1 Uso a categoria treco desenvolvida por Daniel Miller (2013) tem o intuito pensar o consumo da mercadoria(treco) enquanto cultura material. Treco não tem uma definição clara. Um treco é um e-mail ou uma moda,um beijo, uma folha ou uma embalagem. Cultura material não é mais bem-definida que treco. A culturamaterial prospera como substituta indisciplinada de uma disciplina: é inclusiva, abrangente, original, àsvezes com pesquisas e observações peculiares. O mundo dos objetos criados pelo ser humano.
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Podemos perceber a influência do sagrado na construção do comportamento das pessoas e
como as pessoas conduzem suas vidas a partir desse comportamento. Diante dele, estão postas
algumas representações, como é o caso das estátuas do Padre Cícero, apreendidas aqui enquanto
bem de consumo. Diante disso, apresento preliminarmente as bases que sustentam a escrita deste
trabalho e o formato segundo o qual ele foi dividido.
No primeiro capítulo, proponhouma reflexão sobre as estátuas do Padre Cícero, trazendo
algumas perspectivas teóricas que ajudarãoa pensar o consumo cultural projetando significações
sociais através do desvendamento dos códigos das práticas sociais cotidianas daqueles nelas
envolvidos. Tendo a possibilidade de investigar como são acionados os sistemas de códigos na
cidade de Juazeiro do Norte, seja pela linguagem, representação coletiva ou pela crença no Padre
Cícero, trago reflexões a partir da cultura material e suas várias possibilidades de leitura.
Essa possibilidade de investigação acompanha uma série de autores dos quais decorro em
busca da melhor forma de análise do objeto de estudo aqui indicado. A partir das várias leituras
existentes sobre consumo cultural, a dificuldade de eleger um fio teórico mediador de todos os
questionamentos propostos me fez pensar em vários autores, dos quais destaco: Bourdieu (2005),
McCracken (2007), Mary Douglas (2013), Baudrillard (1997), Lopes (1985), Daniel Miller (2013) e
Marcel Mauss (2011). Selecioná-los foi difícil, pois o campo e sua variabilidade de aceitação do
consumo das estátuas do Padre Cícero está imbricado em várias significações, o que me dava,
constantemente, múltiplas escolhas de leituras a serem feitas no decorrer da pesquisa. Pensar os
objetos portadores de significância cultural é dar importância às relações sociais que são produzidas
e reproduzidas a partir das coisas.
Com a tentativa de apresentar a necessidade de estudo sobre a materialidade, ou seja, um
mundo material que é produzido pela cultura dos lugares, em que as pessoas estão arranjadas a
comportamentos singulares que são indicados por uma semiótica dos objetos, a partir dos vários
significados que contém as coisas, o material, ou, bem de consumo.
Nesse caso, o estudo se direcionou com o olhar da antropologia sobre a cultura material,
ou, mesmo, a antropologia do consumo, dando uma ideia de como as coisas podem ser estudadas a
partir dos objetos, dentro de uma perspectiva na qual os objetos produzem relações sociais, e as
mesmas, se estendem dentro de um encadeamento cultural, com reforços através dos códigos, ou,
sistema de códigos singulares existente no local.
Apresento várias discussões entre autores que uso no estudo, e suas leituras sobre bens de
consumo. Nesse capítulo, elenco alguns autores como secundários: Baudrillard (1997), Lopes
(1985), McCracken (2007), Bourdieu (2005), Mary Douglas e Isherwood (2013). Esses me deram a
possibilidade de pensar o mundo material de forma mais ampla e maleável. Com isso, venho a
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perceber a necessidade de destacar, enquanto autores primários Miller (2007) e Mauss (2013), pois
nesse momento da pesquisa a ideia do mundo material enquanto produtor de sociabilidades e a
relação de troca percebida no consumo das estátuas do Padre Cícero já norteiam toda pesquisa.
Para tanto, foi necessário dividir esse capítulo, com a necessidade de contar os meus
caminhos traçados no campo de pesquisa, meus tantos encontros e desencontros dentro de um lugar
que conhecia, ou melhor, que supunha conhecer.Importante dizer que, em muitos momentos da
pesquisa de campo, estar perdido me fez repensar os caminhos, o que realmente eu queria com a
pesquisa, e confesso que em muitos daqueles dias não consegui pensar em nada que não fosse fazer
a seguinte pergunta para mim mesmo: para onde vou com isso?
Este trabalho me fez retomar algumas situações vividas por mim, como nativo da cidade,
onde algumas lembranças me fazem recobrar, reviver e repensar um “Juazeiro”, um “Padre Cícero”,
jamais conhecido na minha trajetória de vida. Pensando nisso, no primeiro capítulo trago de volta
lembranças do Palácio de Enfeites Padre Cícero, os muitos nomes fantasias das lojas que traziam
consigo o nome Padre Cícero, as reverências feitas às estátuas do Padre, as muitas lojas que
vendiam (vendem até hoje) as estátuas do principal personagem da cidade. Repensar isso tudo, foi
voltar ao um passado não tão distante, mas também emergir de forma profunda sobre alguns
significados das estátuas do Padre Cícero e do consumo das mesmas. Posso dizer que houve uma
ressignificação de tudo que tinha aprendido, como nativo, em relação às estátuas do Padre vendidas
na cidade, dos componentes culturais como: tradição, costumes, bênção, renovação, e tantos outros
que veremos ao longo deste trabalho.
Ainda no primeiro capítulo, descrevo as várias mudanças adotadas por mim. Essa
variabilidade no espaço de campo, sempre veio a surgir por conta de aflições, angústias e um tanto
de desespero. O campo não respondia como eu queria, e mesmo que respondesse, penso que
naquele momento nem a pesquisa nem o pesquisador estavam maduros o suficiente para atender as
respostas pelo campo. Por isso tantas partidas, muitos encontros e desencontros, até achar um lugar
que pudesse extrair do campo dados suficientes para pensar o meu objeto.
Não podendo esquecer as pessoas que tive o prazer de conhecer nessa trajetória, dou-lhes
nomes e participação especial neste trabalho, no qual não poderia deixar de dizer da importância das
mesmas na construção desta pesquisa. Muitos (as) deles (as) consegui uma relação além da situação
de pesquisador que me apresentava, penso que a quantidade de tempo que estive com eles (as), nos
fez criar vínculos de amizades, confidência e algumas coincidências trocadas nesses meses
gratificantes.
No segundo capítulo, trago a discussão contemporânea do mundo da cultura material e a
teoria das coisas. Com base no livro Treco, troços e coisas, de Miller (2013), tenho a pretensão de
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dizer que inauguro a possibilidade de investigação antropológica sobre o consumo das estátuas do
Padre Cícero, com o olhar da teoria das coisas proposta pelo autor citado. Nesse capítulo, esta a
proposta da discussão apresentada: quais os significados do consumo da estátua do Padre Cícero
para os romeiros devotos? É nele que começo a usar os dados coletados no campo de pesquisa, as
entrevistas feitas, dando-me a possibilidade de propor uma leitura sobre o consumo das estátuas do
Padre. Seria o consumo desse bem “a prova que somos romeiros”?
Tal capítulo serve como amarração teórica, preciosa para a fundamentação da pesquisa a
ser apresentada na academia, pois é notório que pesquisas que enveredam pela teoria das coisas,
baseando-se na cultura material, ainda, são muito escassas nesse universo. Como disse
anteriormente, inauguro, possibilito a ideia de uma nova investigação com todos os riscos que a
pesquisa e os resultados podem apresentar. Portanto, esse capítulo é primordial para pensar a
pesquisa e o seguimento da mesma.
No terceiro e último capítulo, sigo com mais um dos autores primários elencados na
pesquisa, Marcel Mauss (2013), tendo por base o livro Ensaio sobre a dádiva. Nele apresento a
possibilidade de investigação sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero, a partir da perspectiva
das dádivas trocadas.
Considero o capítulo um resgate da teoria da dádiva, relacionando ao objeto de pesquisa
proposto aqui. Resgatando a tríplice obrigação de dar, receber e retribuir sendo visto na relação
positiva da troca. A troca é observada não apenas pela materialidade das estátuas, mas, por uma
variabilidade de situações que são apresentadas além do material, e que neste trabalho demonstro de
várias formas.
Por fim, nesse último capítulo, indico a relação entre dádivas e trecos, apresentando a
dádiva como elemento estruturado estruturante representado no objeto, ou seja, no bem de
consumo, nas estátuas do Padre Cícero consumido pelos romeiros devotos.
Como diz o Miller (2013), os objetos não gritam para você como os professores, mas eles
lhe ajudam docilmente a aprender como agir de forma apropriada. Essa teoria dá contorno e forma à
ideia de que os objetos fazem as pessoas. Antes de realizarmos coisas, nós mesmos crescemos e
amadurecemos àluz de coisas que nos foram transmitidas pelas gerações anteriores. Os objetos
dirigem inconscientemente nossos passos, assim como o ambiente cultural ao qual nos adaptamos.
Nesse sentido, sugiro que na leitura destetrabalho seja sempre pensada a relação da cultura
enquanto elemento construtor e estruturador de uma sociedade, ou, grupo social. E que todos os
elementos propostos nesse texto são a partir da relação cultura/homem, interessando como as coisas
fazem as pessoas.
20
2CAPÍTULO I -EU NO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO E A PESQUISA DO “BEM DE
CONSUMO PADRE CÍCERO”2.
Por volta do ano de 1992, ainda criança com dez anos de idade morando em Juazeiro do
Norte, ficava me perguntando: Quem era esse senhor de Chapéu preto? E porque vejo tantas
imagens desse homem? Às vezes que eu ia ao centro da cidade, ficava espantado, assombrado em
ver a mesma imagem por todos os lugares da cidade. Pensava: “Deve ser um cara importante!”. Mas
não tinha ideia de qual importância era aquela. Queria saber mais sobre tal imagem, pois tinha (e
ainda tenho) contato direto com a mesma desde a minha infância. Havia o Palácio dos Enfeites
Padre Cícero (nome fantasia), que era a loja do meu pai (in memoriam) no centro da cidade. Nela se
vendia vários acessórios para carro, desde para-brisas a uma simples lanterna para os faróis dos
automóveis.
Diante de tudo isso, o que mais me marcava era a grande imagem do Padre Cícero, em
tamanho natural, que meu pai fazia questão de deixar na entrada da loja. Não sabia o significado
daquilo - Por que um homem branco de olhos claros, fisionomia de um senhor de idade, com uma
batina preta e seu cajado, tinha tanta importância? Por que algumas pessoasfaziam reverências
quando passavam ali e viam a imagem? Tal evento fazia parte do meu dia a dia, pois todas as tardes
eu estava no comércio dos meus pais olhando e observando tais práticas. Estava ligada a cultura
material e não percebia, ou, talvez não tivessem a profundidade do bem, por estar muito próximo
enão tinha a medida de como as coisas fazem as pessoas.
Nesta época, ficava a observar a imagem do Padre Cícero no layout de boa parte dos
estabelecimentos comerciais da cidade. Tal imagem não se limitava as paredes e placas publicitárias
do comércio, a mesma, estava entranhada dentro das lojas, por vezes em tamanho natural (feita de
gesso e madeira), pintada de acordo com imagens históricas do sacerdote, em quadros moldurados
de grande visibilidade, ou, dava-se um jeito para expor a imagem do Padre, em algum formato,
“dentro” das lojas. Com o passar dos anos essa curiosidade era aguçada e anseios e desejos de
leituras (não só sobre o Padre Cícero) já me levavam a querer ler todos os nomes das lojas do
comércio, numa curiosidade pautada pelo nome que quase sempre encontrava: Padre Cícero.
Minha mãe já me ensinara que no comércio algumas lojas possuem “nomes fantasias”, que
é uma espécie de nomenclatura não oficial para produzir efeitos naqueles que são e outros que
2 Algumas das informações contidas ao longo do texto foram extraídas de conversas informais edas sites do Santuário de São Francisco das Chagas e da Colina do Horto, disponíveisrespectivamente em: http://www.santuariodesaofrancisco.com.br/histrico-da-igreja> (Acesso em 09janeiro de 2017); e em: http://www.hortodopadrecicero.net.br> (Acesso em 03 maio de 2016).
21
podem vir a serem seus clientes. E desde já, conseguia observar que muitos “nomes fantasias” das
lojas do centro carrega o nome do sacerdote. Não era, e não é difícil encontrar alguma exposição da
imagem do Padre na cidade.
Ainda criança, não conseguia entender as reverências que eram dispostas em função da
imagem do sacerdote, as mesmas eram praticadas por muitos que estavam no centro da cidade,
alguns (as) faziam questão de parar, fazer o sinal da cruz e proferir algumas palavras em baixo tom
para aquela imagem. Era um ritual aprendido, marcado, conhecido e reconhecido por todos que o
viam, pois não havia nenhuma negação, ou, olhar desconhecido sobre as reverências causadas pela
imagem.
As fotos a seguir, permitem apresentar a presença do sagrado com a materialidade dos
objetos de consumo com fins estritamente de marketing comercial.
FOTO0 -Padre Cícero em gesso na Loja Freitas Varejo (Juazeiro do Norte)
FONTE: Michael Marques, 2017.
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FOTO0: Padre Cícero em gesso na Loja Zenir Móveis (Juazeiro do Norte)
FONTE: Michael Marques,2017.
FOTO03: Padre Cícero em gesso na Loja Padre Cícero (Largo do Socorro, Juazeiro do Norte)
FONTE: Michael Marques, 2016.
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As imagens do sacerdote são representadas a partir de fotos tiradas do Padre Cícero. Na
maioria delas, o mesmo aparece de chapéu e batina na cor preta, segurando o seu cajado de apoio,
em tantas outras aparece com batina branca, segurando uma bíblia, com cajado na mãe direita,
bíblia na mão esquerda, junto a um terço, pois há uma variabilidade de imagens que são produzidas.
A imagem do Padre Cícero passa necessariamente pelo processo de conhecimento e reconhecimento
que são reforçadas pelas narrativas contadas pela cidade de Juazeiro do Norte.
Sobre as narrativas, nós devemos lembrá-las e estudá-las como conhecimento produzido
através dos tempos, até o dito mundo civilizado contemporâneo. Contudo, vemos a influência do
sagrado na construção do pensamento humano, no processo histórico no qual as sociedades arcaicas
(ditas primitivas) tentam explicar a realidade que está posta por meio dos mitos. A maneira pela
qual são manifestados os mitos, e a forma como essas narrativas são contadas, nos passa uma ideia
do sagrado e de como aquela ou outra civilização é influenciada desde os primórdios.
A diferenciação clara é que os fatos ocorridos conosco seguem uma linha histórica na que
não podemos reconstruir, diferentemente das sociedades “primitivas”, que também seguem uma
linha histórica, mas conseguem, na forma de seus ritos, repetirem o que seus ancestrais o fizeram
através do mito manifestado pelos poderes do rito, constituindo assim uma história sagrada. Hão de
serem colocadas que todas as construções mitológicas têm seus mitos de origem, suas histórias de
iniciação. Diante da força simbólica do mito que temos como foco de estudo, o Padre Cícero surge
como modelo, o indivíduo que está situado numa esfera em que se torna passível de ser
mitologizado (CAMPBELL, 1990).
Assim, tentamos perceber que o inconsciente humano vem à tona na forma de como as
histórias nos são passadas. Explicitamente a linguagem mitológica usada hoje é de uma elaboração
fantástica, atingindo-nos ideologicamente, e na mais profunda percepção sensorial, ou seja, nossa
capacidade seletiva de captar informações do mundo externo, daquilo que não conhecemos, e
também daquilo que queremos ser.
Eu estava em um lugar, onde necessariamente, a imagem do Padre Cícero implicava
determinantemente uma posição no todo. Havia um conjunto de coisas a serem ponderadas a partir
de uma imagem, pois a mesma refletia sobre a composição e a estrutura do lugar. Tal composição
está refletida no jogo de posições relativas, de coisas que estariam sobre um mesmo plano e sobre a
estrutura do lugar, havendo aspectos fundamentais para serem pensados. Para mim, em anos
anteriores, não era fácilperceber a profundidade e a dimensão de uma imagem. Mas estava claro que
os eventos produzidos pelo Padre Cícero, e os produtos que a ele faziam referência, agiam como
componentes essenciais do lugar. O lugar antropológico se define como identitário, relacional e
histórico.
24
Identitário porque o lugar de nascimento, as regras de residência são como uma inscrição
no solo que compõe a identidade individual. Relacional a partir das referências compartilhadas, que
designam fronteiras e marcam a relação com seus próximos e os outros. Por fim, é histórico na
medida em que os nativos vivem na história (AUGÉ, 1994). Assim, como nativo do lugar, me
proponho a pensar as inscrições que compõem a minha identidade individual e que são marcadas
por compartilhamentos vividos durante minha história.
Coma minha inserção no curso de Ciências Sociais na Universidade Regional do Cariri
(URCA), junto às novas leituras que foram oferecidas no curso, comecei a tencionar a possibilidade
de investigar esse tema em especifico, o que se configurou a seguir em meu projeto de pesquisa de
mestrado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). Desde as minhas primeiras aulas no programa de pós-graduação na
disciplina de antropologia do consumo, ministrada pela professora Eliane Tânia, comecei as leituras
que me deram a oportunidade de perceber a perspectiva da significância da cultura material, com o
intuito de dar complexidade ao objeto pesquisado e de responder as perguntas necessárias no
decorrer da investigação.
Ao falar do bem de consumo Padre Cícero, as estátuas do Padre Cícero, estou a pensar, os
moradores e frequentadores do Juazeiro do Norte, as representações que foram construídas, de fé,
crença, sacrifícios, promessas, graças alcançadas, dentre outras, que são afirmadas cotidianamente
pelas relações sociais produzidas através dos bens que reproduzem sua imagem física, estátuas. Falo
de um mundo material, que é produzido pela cultura de um lugar, em que as pessoas desse lugar
estão associadas a arranjos comportamentais de forma singularizada. Não é algo superficial. Ao
contrário, é algo grandioso, pois parte do nosso comportamento não é sugerida por expectativas
determinadas que estejam relacionadas ao contexto da ação?
Entendendo as instituições como uma coisa relacional, posso afirmar que háuma diferença
entre o pesquisador e quem vive aquilo cotidianamente, enquanto ser político3. Pessoas assumem
papéis sociais e as mesmas não podem ser pensadas apenas de forma não consciente. O consumo
das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros (as) assumem características diversas, multifacetadas,
com significados e atuações diferentes, que serão trabalhadas ao longo do texto. Tal percurso será
minha preocupação enquanto investigador da cultura material, enquadrando o bem de consumo sob
aperspectiva cultural.
É importante dizer que a história da cidade se confunde com a história do Padre, pois há
um reforço na memória coletiva da cidade dos princípios de trabalho e fé deixados pelo sacerdote e
3 Em seu sentido amplo.
25
que são assumidos como um dos elementos fundamentais da cultura e da vida cotidiana. Nesse
sentido, a importância da memória na construção e formação do espaço da cidade pode ser
percebida através da semiótica dos objetos, a partir da linguagem dos signos das coisas que contém
sua imagem, sejam em espaços públicos ou privados.
É notório que a maior obra do Padre seja a própria cidade, resultado de elementos
associados profundamente à vida religiosa. A memória religiosa funda e mantém o espaço onde o
sagrado está contido nas vidas cotidianas, nas estátuas e nos bens que contém sua imagem. Esse
modelo de estudo teórico sobre a vida social das coisas e o consumo material está imbricado na
sociedade em qualquer período, havendo sistemas de classificações, de práticas, significados e
valores centrais a serem desvendados e que são dominantes e eficazes. O Padre Cícero, por estar
presente na memória e no imaginário coletivo da cidade, é representado das mais diversas formas,
tendo sua imagem veiculada em vários sistemas de representação social.
A proposta da pesquisa se dá a partir dos estudos antropológicos do consumo e da cultura
material, tendo como objeto o bem de consumo Padre Cícero, mais especificamente – os
significados do consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros (as) devotos e as relações em
cadeia produzidas através dessa ação. Então, ao propor esse estudo, não estarei a pensar apenas o
consumo do bem, mas também as relações sociais que são produzidas através do mesmo. Dito isto,
estou a me preocupar para além da ideia de consumo como estratégia econômica, pois minha
preocupação é com os estudos do mundo dos objetos criados pela humanidade.
A cidade de Juazeiro do Norte, situada ao sul do Ceará, faz divisa com as cidades de Crato
e Barbalha, as quais fazem parte da Região Metropolitana do Cariri (RMC)4, composta também
pelas cidades de Caririaçu, Farias Brito, Jardim, Santana doCariri, Missão Velha e Nova Olinda. É
na cidade de Juazeiro do Norte que ocorre o processo de investigação em torno do consumo das
estátuas do personagem mais conhecida por aqui, Padre Cícero Romão Batista. No entanto, antes de
estar imbuído na pesquisa proposta, sinto a necessidade de apresentar o principal personagem desse
lugar, sua importância histórica na formação da cidade e na continuidade da mesma.
FOTO04 – Mapa daRegião Metropolitana do Cariri - RMC
4 Foi criada pela Lei Complementar nº 78, de 29 de junho de 2009.
26
Em 1872, chega ao povoado o Padre Cícero Romão Batista. Juazeiro do Norteera uma vila
pequena no interior do Brasil, onde um jovem sacerdote dedicava-se a orientar a população local,
orientações estas que iam desde palavras de conforto ao uso de folhas medicinais, constando ainda
da propagação dos valores morais religiosos. Teve seu suporte fundamental no fato da hóstia
consagrada ter se transformado em sangue, passando a ser conhecido na literatura e no senso
comum como “milagre da hóstia”, que segundo Della Cava (1977) teria se transformado em sangue
por muitas vezes diante de curiosos e até da comissão diocesana, a qual veio apurar aqueles
acontecimentos que tinham a figura do Padre Cícero como participante.
Eis que o fenômeno acontece de forma surpreendente, diante dos olhos assustados do
Padre e dos demais presentes: a parte da hóstia entregue a uma das mulheres que estavam em
vigília, mais precisamente a beata Maria de Araújo, vai se transformando em sangue. O fato foi
tratado em sigilo, porém nos dias seguintes o fenômeno volta a ocorrer com a mesma beata. Mal a
hóstia tocava sua boca, logo se transformava em sangue, o que veio a se repetir inúmeras vezes.
Segundo Della Cava (1977), o fato extraordinário aconteceu durante todas as quartas e sextas feiras
27
da quaresma, durante dois meses; do domingo da paixão até o dia de festa da Ascensão do Senhor,
por 47 dias, voltou a ocorrer diariamente.
O “milagre” a que me refiro – uma beata, mulher do povo, recebe a hóstiaque se transforma em sangue – era atribuído a padre Cícero, mas, naverdade, estava ligado a outros contextos, nacional e internacional [...]Juazeiro evidencia processos de ordem regional, nacional e internacionalque definiram e foram definidos por esse movimento popular religioso(DELLA CAVA, 1977, p. 3-4).
A notícia sobre o “milagre” espalha-se por diferentes localidades do nordeste, tal fato
alcançava a memória coletiva dos sertanejos, onde em uma comunhão a beata teria recebido o
sangue do Nosso Senhor Jesus Cristo (DELLA CAVA, 2014).
Segundo Araújo (2011), o culto ao Padre Cícero surge intrinsecamente relacionado às
limitações materiais e imateriais presentes no espaço no qual o mesmo atuava: o sertão nordestino.
O mito Padre Cícero guarda relação com a ação econômica por ele empreendida na cidade do
Joaseiro5, onde a materialidade do espaço econômico guarda veiculação direta com a imaterialidade
da fé. O Padre Cícero representa o que está inscrito na utopia cristã: construir um mundo e uma
esperança de vida nova.
Para Barros (1988), o critério de santidade das camadas dominadas é a práxis, ao contrário
da igreja, cuja ação institucional requer a verificação pautada em procedimentos teológicos.
Segundo a autora, o catolicismo popular construiria a sua base pautada no materialismo. No caso do
Juazeiro, o espaço da cidade foi reconfigurado a partir do catolicismo popular, fazendo surgir novas
interpretações da ideia de religião, construindo e reorganizando moralmente e economicamente,
remodelando a concepção de mundo e construindo uma nova sociedade civil (BARROS, 1988, p.
150).
Tais interpretações das ideias religiosas seguem o passado histórico como parte da
estrutura, tanto da origem como da constituição das forças sociais presentes no movimento social do
Juazeiro. Como toda a história do Ceará constitui-se ao longo de um processo social cujas variáveis
presentes estão postas na formação social brasileira, emergindo de um mesmo movimento histórico
que conhecemos como colonização. Entendemos a colonização como um sistema de integração
dessa sociedade à dinâmica mercantilista, nascedouro do modo capitalista, tendo de forma
específica a formação social do Cariri cearense, que aparece como duplamente dependente:
diretamente do sistema social mercantilista e capitalista (BARROS, 2014, p. 40-41).
5 Grafia usada obedece ao português usado no século XIX.
28
O movimento religioso do Juazeiro do Norte é entendido como um movimento social, isto
é:
Como uma força social viva, expressão do possível histórico de camadas dapopulação brasileira em suas relações sociais de produção da vida material eideológica cotidiana, na construção de seu mundo material e espiritual, deseu universo simbólico (BARROS, 2014, p. 41).
Esse movimento religioso é, portanto, uma expressão do catolicismo popular, ou seja, uma
religião produzida no interior das classes sociais exploradas do sertão nordestino, distinta daquela
produzida pela hierarquia da Igreja Católica.
O Padre Cícero surgiu com o objetivo de promover a superação dos problemas que os
sertanejos enfrentavam, sobretudo, a fome e a seca que assolavam o sertão nordestino. Com a ideia
de trabalho e oração moldava-se as práticas devocionais e econômicas. Os conselhos do Padre eram
pautadosem princípios teológicos e filosóficos dentro de uma compreensão de desenvolvimento
baseada na teologia da prosperidade (ARAÚJO, 2011).
É nessa configuração do catolicismo popular que surgem os espaços sagrados e a eleição
de santidade do Padre Cícero no imaginário do devoto, ao almejar uma vida melhor, repercutindo
nas relações econômicas, rezando, trabalhando e agradecendo as graças alcançadas.É diante desse
contexto que é dado ao Padre Cícero o título de padrinho, ou “padim”, de acordo com o desejo do
sertanejo devoto.
O Padre Cícero foi padrinho de milhares de sertanejos, ‘meu padrinho’ paramilhões de nordestinos. Antes de tudo ele foi o sertanejo que viveu oscódigos de sua cultura, encarnou o protótipo, o modelo do padrinho protetor,reivindicando até a interferência divina para sê-lo. (…) Vivendointegralmente o papel cultural, recebeu dos afilhados o título honorífico, foio ‘meu padrinho’ (BARROS, 1988, p. 173).
Nesse sentido, todos os anos milhões de pessoas vão a uma cidade do interior do país, no
sertão nordestino, em busca de revitalização para sua crença, fé, desejosos de boa sorte e
prosperidade para suas vidas e bênçãos do padrinho. Essas pessoas percorrem milhares de
quilômetros para chegarem à cidade do Juazeiro do Norte, atraídas pela imagem6 que representa fé,
crença e devoção no Padre Cícero Romão Batista, sacerdote aclamado como santo por seus devotos
6 O monumento em homenagem ao Padre Cícero Romão Batista foi inaugurado no dia 1º de novembro de1969, no alto da Serra do Catolé ou, como é mais conhecida, Colina do Horto. A estátua conta com 27metros de altura, e se constitui na terceira maior do mundo em concreto. Fonte:www.hortodopadrecicero.net.br
29
do Nordeste e de todo o Brasil7. Podemos nos perguntar:O que alimenta o consumo da imagem do
Padre Cícero em Juazeiro? Através de quê esse bem de consumo é produzido,reproduzido e
fortalecido ao longo dos anos? Pensando essas relações, nos indagamos de uma forma geral a
pensar na importância de falar de Padre Cícero hoje em Juazeiro.
2.1 A ANTROPOLOGIA DOS OBJETOS.
Há um número imenso de objetos que aprendemos a lidar em nosso cotidiano. São
mobílias, roupas, instrumentos musicais, armas, alimentos, bebidas, meios de transportes, meios de
comunicação, objetos de arte. A quantidade de objetos materiais que circulam de forma significativa
em nossas vidas é grande, e os efeitos que os mesmos provocam em nós, são poucas vezes
estudados ou conhecidos.
Estamos expostos diariamente a essa intensa diversidade de objetos e aos seus múltiplos
significados e relevância na sociabilidade dos indivíduos e na relação simbólica que construímos
com os mesmos. Pensar os objetos para além da relevância material nos faz crer que sua existência
está pautada na eficácia dos sistemas de classificação que são percebidos: quando, por exemplo,
como diria Sahlins (1996), nos limitamos a perceber os objetos pela uma “razão prática”, ou seja,
pela utilidade prática que o material proporciona para todos os indivíduos, sendo assim, somos
movidos pela utilidade dos objetos e não pela significância que os tais apresentam.
Para Gonçalves (2007), na medida em que os objetos materiais circulam permanentemente
na vida social, importa acompanhar descritiva e analiticamente seus deslocamentos e suas
transformações (ou reclassificações) através dos diversos contextos sociais e simbólicos: sejam as
trocas mercantis, sejam as trocas cerimoniais, sejam aqueles espaços institucionais e discursivos tais
como as coleções, os museus e os chamados patrimônios culturais.
Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses
contextos é em grande parte entender a própria dinâmica da vida social e cultural, seus conflitos,
ambiguidades e paradoxos, assim como seus efeitos na subjetividade individual e coletiva. Os
estudos antropológicos produzidos sobre objetos materiais, repercutindo esse quadro, têm oscilado
seu foco de descrição e análise entre esses contextos sociais, cerimoniais, institucionais e
discursivos.
7Em 14/12/2015, o Vaticano perdoa punições ao Padre Cícero. Disponível em:http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/12/igreja-catolica-se-reconcilia-com-padre-cicero-santo-popular-no-ceara.html
30
Portanto, não se configura como algo exagerado a necessidade de vermos a vida social e
cultural implicando diretamente no mundo dos objetos materiais, pois esses sempre estiveram
presentes na história de todos os grupos sociais, na antropologia social e na literatura das
etnografias produzidas ao longo da história da disciplina.
Para Levi Strauss (1973),os processos históricos de difusão de objetos materiais e traços
culturais entre diversas sociedades preocupavam muitos autores, os quais viam os objetos como
meios de reconstituir esses processos. Ao longo dos trajetos de difusão os objetos sofriam
modificações, tornavam-se mais complexos. A cultura humana, para eles, era raramente um assunto
de invenção, mas de transmissão. Alguns operavam com modelos nos quais se traçavam círculos
concêntricos, onde o ponto central era onde supostamente se situava o objeto em sua forma
primeira, sua forma original.
Na medida em que se difundiam, eles se transformavam. Esse raciocínio valia tanto para
objetos materiais como para instituições, práticas sociais, ideias e valores, sendo que alguns levaram
essa visão a extremos, afirmando que era possível identificar um único centro de onde teria partido
todas as invenções culturais significativas da humanidade. Apesar das diferenças que os separavam,
os paradigmas evolucionistas e difusionistas, no entanto, convergiam quanto a um ponto
fundamental: a cultura era concebida como um agregado de objetos e traços culturais. Isto significa
dizer que esses eram interpretados como elementos que responderiam a questões e dificuldades
universais. Estava aberta a porta para uma percepção e entendimento claramente etnocêntricos
desses objetos e das culturas das quais faziam parte.
Assim era fornecido o modelo de investigação a ser seguido no século XIX. Para tanto, o
objetivo era narrar a história da humanidade, traçando uma linha entre o passado e a evolução das
sociedades até a contemporaneidade, as ditas modernas sociedades ocidentais. É a partir daqui que
se começa a pensar a cultura material, tendo uma ideia de cultura, devendo haver delimitações
necessárias para se apreender traços culturais, com eles, objetos materiais daquela cultura a ser
investigada.
Aqui não tenhoo interesse em formular ou traçar uma linha histórica da antropologia no
que diz respeito a antropólogos que construíram com brilhantes etnografias ao longo da disciplina,
mas sim delinear em poucas palavras como a antropologia adentrou-se no mundo da cultura
material.
Segundo Gonçalves (2007), a formação desses antropólogos não passava necessariamente
pelos museus e pela atenção à “cultura material”. As teorias antropológicas com as quais operavam
vieram a deslocar o seu foco de discussão dos objetos materiais para as relações sociais e para os
significados dessas relações. Os objetos passam a ser interpretados com base num esquema teórico
31
onde eles existiam não em função de estarem respondendo a necessidades práticas universais, nem
como indicadores de processos evolutivos e de difusão, mas como meios de demarcação de
identidades e posições na vida social.
É nessa perspectiva que está posto este trabalho, na relação de construção de identidades,
demarcação de práticas da vida social. Visto que os objetos materiais devem ser pensados como um
sistema de classificação, meios simbólicos através dos quais os indivíduos agem ou emitem suas
informações e posições sociais.
Ainda com Gonçalves (2007), os objetos materiais são aqui pensados não mais enquanto
parte de uma totalidade social e cultural que se confunde com os limites de uma determinada
sociedade ou cultura empiricamente considerada, mas sim enquanto parte de sistemas simbólicos ou
categorias culturais cujo alcance ultrapassa esses limites empíricos e cuja função, mais do que a de
“representar”, é a de organizar e constituir a vida social. Em outros termos, os objetos materiais
podem ser investigados como “fatos sociais totais” (MAUSS, 2003), tendo a exigência de se
problematizar, observar algumas categorias passíveis de classificação na sociedade do investigador.
No livro Antropologia dos objetos, Gonçalves (2007) conta que é a partir dos anos oitenta,
como parte do processo de historicização da disciplina, que os objetos materiais, especificamente
enquanto partes integrantes de coleções, museus, arquivos e “patrimônios culturais”, virão a ser
tematizados como foco estratégico para a pesquisa e reflexão sobre as relações sociais e simbólicas
entre os diversos personagens da história da antropologia social ou cultural: viajantes, missionários,
etnógrafos, antropólogos, nativos, colecionadores, museus, universidades, poderes coloniais,
lideranças étnicas, dentre outros.
É nesse momento da antropologia que se começa a perceber a vida dos objetos e
apreendê-los como elementos cruciais nos processos sociais simbólicos, permitindo a
transformação, ressignificação, leitura da significância dos objetos, ainda que esses carreguem
ideias, valores e identidades que são assumidas por grupos sociais.
Os processos sociais e culturais que levam à escolha desses objetos escapam em grande
parte às nossas ações conscientes e propositais de natureza política e ideológica (GONÇALVES,
2007). Nesses processos de reclassificação que podemos surpreender a construção e os efeitos
daquelas categorias fundamentais de objetos situados para além da condição de mercadorias ou
dádivas: objetos que, retirados da circulação mercantil e da troca recíproca de presentes, ascendem à
condição de “bens inalienáveis”, e que circulam, paradoxalmente, para serem guardados e mantidos
sob o controle de determinados grupos e instituições, assegurando a continuidade dessas últimas no
tempo e no espaço.
32
Importante perceber que as nossas relações com os bens materiais(para antropologia, bens
simbólicos,por serem carregados de significados particulares a um contexto especifico) são
notoriamente intercedidas socialmente. Dito de outra forma, eles participam de nossas relações
sociais e da construção da nossa subjetividade.
Para Bitar (2013), os objetos materiais não atendem apenas à função utilitária nem são
apenas suportes identitários, mas mediadores e constituidores da vida social.As histórias de vida
relacionadascom os objetos expressam um marco para as pessoas, que constroem suas narrativasa
partir deles. Assim podemos dizer que os objetos podem construir redes sociais extensas,
envolvendo as pessoas de forma simbólica e que os objetos que as constituem não podem ser
separados de determinada noção de pessoa (MAUSS, 2003).
Por meio da concepção de “biografia dos objetos” (KOPYTOFF, 1986), podemos
problematizar o dualismo pelo qual as relações entre objetos e sujeitos são usualmente pensadas. Ao
explorar essa ideia, inferimos que as mesmas perguntas feitas às pessoas devem ser feitas às coisas,
levando em consideração que todas as biografias são parciais. Não obstante, as perguntas
formuladas não são dadas, elas seguem paradigmas específicos de cada contexto e época, tornando
relevantes certas questões em detrimento de outras (BITAR, 2013).
Voltamos a dialogar com Gonçalves (2007) a fim de entendermos a categoria “patrimônio”
que facilitará o entendimento sobre os objetos. Segundo o autor, “patrimônio”8pode ser considerado
uma categoria de pensamento que cuja compreensão pode assumir diferentes contornos semânticos
de acordo com contextos socioculturais específicos. Assim, o processo de formação de
“patrimônio”, segundo o autor, pode ser traduzido pela categoria “colecionamento”, o que implica
na demarcação de um domínio subjetivo em oposição a um “outro”, por meio da atividade de reunir
objetos móveis e imóveis. Com Bitar (2013) essa categoria pode ser confundida com a de
“propriedade”. No entanto, a ideia de acumulação de objetos materiais em torno do indivíduo ou de
um grupo, concebendo a identidade como riqueza, não é universal.
Para Mauss (2003), “na troca, há muito mais que as coisas trocadas”. Para nós humanos, as
coisas estão misturadas, no que se refere ao material, à sua simbologia e às tensões que são
provocadas pela cultura material, que se apresentam em fronteiras movediças e instáveis,
constituídasde múltiplas formas. Analisar esse emaranhado de elementos nos dá uma tarefa árdua a
ser cumprida.
É nessa configuração que venho a trazer o estudo sobre o treco (MILLER, 2013) Padre
Cícero diante da perspectiva do consumo, ou seja, abordo o fenômeno do consumo desse treco a
8 Neste trabalho optamos por não se debruça sobre a categoria patrimônio material ou imaterial. Para sabermais, consultar: http://naui.ufsc.br/files/2010/09/antropologia_dos_objetos_V41.pdf
33
partir das relações culturais que são estabelecidas mediante valores e ideias que constituídas pelos
romeiros devotos nas trocas simbólicas efetivadas na relação indivíduo e objeto.
2.2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS SOBRE O “BEM DE CONSUMO PADRE CÍCERO”.
Os bens simbólicos estão relacionados ao consumo cultural e projetam uma relação de
identidade entre os seus usuários, distinguindo-os dos demais. Segundo Baudrillard (1997), o
consumo é uma instituição promotora da função econômica e da função de signo na produção, na
apropriação e no uso dos bens simbólicos, construindo-se num sistema integração social a partir das
trocas simbólicas.
Os objetos são portadores de significações sociais a eles inerentes, bem como abrigam uma
hierarquia cultural, social e econômica, vindo a construir um código(BAUDRILLARD, 1997). O
citado código não é acionado de maneira homogênea, linear, fenomenológica; ele obedece a
narrativas móveis de pensamentos e sentimentos, sonhos e conflitos inconscientes dos grupos e
indivíduos. A sintaxe e a retórica dos objetos remetem a objetivos sociais e opera uma lógica social.
A função dos objetos consiste em torná-los signos distintivos, ou seja, objetos que distinguem
aqueles que os distinguem, a partir de práticas de inclusão ou exclusão de determinados espaços
sociais.
No Juazeiro, há um conjunto de códigos, signos, linguagens e representação do sentimento
coletivo que estão imbricados nos rituais de devoção ao Padre Cícero. O uso do bem simbólico está
associado às práticas cotidianas dos citadinos e devotos que visitam a cidade. Tais bens simbólicos
identificam e distinguem o espaço social.
Segundo Lopes (1985), fazer compras em Juazeiro se constitui parte da devoção ao “santo
de casa” e os romeiros querem levar um pedacinho da cidade santa para suas residências como
símbolo de proteção. Lopes diz ainda que, após a morte, a imagem do Padre Cícero representa a sua
presença na cidade, impulsionando a economia local através da produção de estátuas de gesso e
madeira, confeccionadas em diferentes tamanhos pelas mãos habilidosas dos “santeiros do Padre
Cícero”.
Partindo de premissas dos estudos da cultura material, que trabalha através na abordagem
sobre os objetos materiais, há uma tentativa de compreender de forma mais profunda os signos e
significados do consumo. Tais estudos têm ajudado a demonstrar como o mundo é provido de
objetos materiais que contribuem para a sua constituição cultural e refletem como categorias
culturais são materializadas (MCCRACKEN, 2007). Perceber a materialidade não distante da
humanidade, sobretudo, teorizar e analisar essas relações de consumo enquanto elementos de
34
identificação e demonstração diversificada de consumo sobre uma mesma coisa se faz necessário
para a busca de uma análise profunda e complexa.
É importante frisar a dificuldade em buscar uma identidade social a partir do consumo,
devido à relação entre objetos e mercadorias e as abordagens que enfatizam seus usos como
marcadores e constituintes de um processo cultural que se constrói articulando muitos atores,
construindo e consolidando sentidos, apresentando importante tradição de estudos na antropologia
recente, especialmente aqueles que analisam o protagonismo dos consumidores a partir da aquisição
de bens materiais.
Dentro da teoria do poder simbólico, o habitus9 é o elemento que articula “os sistemas
simbólicos como estruturas estruturadas (passíveis de uma análise estrutural)” e as “estruturas
estruturantes”, ou seja, a “concordância das subjetividades estruturantes” (BOURDIEU, 2005, p. 8).
A partir do conceito do Bourdieu, pode-se afirmar que estruturas estão presentes na construção
histórica dos espaços sociais em Juazeiro do Norte, como: mito, arte, língua, religião, ciência. Para
Bourdieu (2009), os sistemas simbólicos são instrumentos de conhecimento e de comunicação e só
podem exercer um poder estruturante porque são estruturados.
Nessa perspectiva, os símbolos são instrumentos de conhecimento e comunicação e eles
tornam possível a reprodução da ordem social.Os símbolos são os instrumentos por excelência da
integração social, pois eles tornam possível o consenso sobre o sentido do mundo social que
contribui para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a condição da integração moral.
Podemos pensar o consumo a partir da perspectiva da identificação social, mas não
podendo ser visto como uma ação coerente, haja vista que a sociedade pós-moderna localiza-se
dentro de uma dificuldade de identificar uma sistemática bem elaborada do consumo, do ato de
consumir. Existem diferentes demandas, demandas contraditórias nos setores da vida. O consumo
não é coerente, pois o mesmo lida com subjetividade, a qual aponta para o indivíduo espontâneo,
relacional e ativo.
Podemos pensar a prática de consumo não destituída de um vazio cultural. Elas estão
inseridas em um espaço, um contexto e são instruídas por lógicas sociais que dão sentido às práticas
em determinados contextos. Não são ações voluntaristas; as mesmas tendem a identificar e
9 De acordo com o autor, as estruturas sociais por si só não determinam a vida em sociedade comopretendiam os estruturalistas. A dimensão individual, o agente social – e daí decorre a importância doconceito de “habitus” reintroduzido por Bourdieu – não é uma simples consequência das determinações daestrutura social. Internalizamos regras e normas sociais, mas existem aspectos de nossas condutas que nãosão previsíveis. É como um jogo que sabemos as regras e o seu sentido, mas que também podemosimprovisar. A noção de “habitus” exprime, sobretudo, “[...] a recusa a toda uma série de alternativas nasquais a ciência social se encerrou a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e domecanismo” (BOURDIEU, 1989, p.60).
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estruturar a vida social, o cotidiano, mesmo em um mundo repleto de permanentes transformações.
Elas (práticas de consumo) estão alocadas em um conjunto de oportunidades, que dificilmente serão
mudadas. Essas escolhas, por não serem voluntárias, irão oscilar dentro de uma variabilidade
oferecida pelo campo social.
O consumo pode estar ligado aos costumes e tradições, já tais forças estariam voltadas para
uma noção de necessidade estável, mais do que indeterminada no consumo moderno. Podemos
encontrar essas noções, de costume, tradição e modernidade, no consumo do bem Padre Cícero10. O
costume está inserido em toda a historicidade e composição da cidade, a tradição voltada aos
preceitos do Padre Cícero em vida e suas referências ao trabalho e a fé, a modernidade encontrada
em várias matérias-primas usadas na fabricação de suas imagens e o método de produção artesanal
das mesmas. Desse modo, poderíamos pensar, a partir das ideias de costume, tradição e
modernidade, se há uma necessidade de consumo do bem Padre Cícero nesse campo. Seria possível
até, ao final deste trabalho, observar possíveis renovações desse bem e de que forma supor de que
forma se daria essa relação com seus consumidores.
Algumas premissas podem ser importantes na tentativa de elucidar o consumo do bem em
questão, o Padre Cícero. Diante dessa preocupação, há uma necessidade de esclarecer a
problemática apresentada, consumo das estátuas do Padre Cícero, pelos romeiros (as), trazendo
alguns autores que pensam o consumo enquanto significância cultural.
Com Douglas e Isherwood (2013), encontramos uma forma mais complexa para pensar os
bens de consumo, pois os autores apresentam esses com uma significância que vai além do seu
caráter utilitário e seu valor comercial. Essa significância reside, em grande medida, na capacidade
que os bens de consumo têm de carregar e comunicar significado cultural.
[...] a teoria do consumo tem de ser uma teoria da cultura e uma teoria davida social. Separar a cultura da organização é flutuar em direção ao mar dorelativismo. Se a organização funciona suficientemente bem, pode dotar osobjetos de valor; dizer de um objeto que ele está apto para o consumo é omesmo que dizer que o objeto está apto a circular como marcador deconjuntos particulares de papéis sociais (DOUGLAS E ISHERWOOD,2013, p. 41).
Ainda sobre a perspectiva abordada por Mary Douglas e Isherwood (2013, p. 43),
deveríamos saber de que modo os bens funcionam como comunicadores, ou melhor, uma
perspectiva segunda a qual os bens não são agentes ativos, mas apenas sinais. Deveríamos saber de
10 É importante dizer que quando me refiro ao “consumo do bem Padre Cícero”, estou a pensar no consumodas estátuas do Padre Cícero que são vendidas em lojas e feiras de artigos religiosos na cidade do Juazeiro doNorte CE. E as imagens que estão expostas no comércio em toda a cidade.
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que forma são usados. Acontece que tudo depende de qual maneira as pessoas são organizadas,
percebendo a comunidade como um todo enquanto caixa de sinais.
Eventualmente, teremos um modelo que começa com os consumidores cujas tendências
culturais comandam sua demanda por bens. A demanda do consumidor comanda a produção, a
produção provocada pela demanda comanda a tecnologia e a tecnologia tem efeitos nas vidas
humanas. Cada ambiente social permite apenas certos tipos de controle, e isso permite que a
tendência cultural dominante se desenvolva. O consumo, no entanto não se caracteriza como algo
coerente, não há uma possibilidade de simetria através do consumo. Na sociedade pós-moderna há
uma dificuldade estrutural em identificar uma sistemática elaborada do consumo, do ato de
consumir.
Desse modo é necessário analisar o consumo a partir da significação cultural, percebendo
as expressões de categorias e princípios culturais, cultivar ideias e sustentar estilos de vida,
construir noções de si e criar (e sobreviver a) mudanças sociais. O consumo possui um caráter
completamente cultural (MCCRACKEN, 2003).É essa tendência cultural, ou princípios culturais,
que constrói o mundo dos bens.
De acordo com McCracken (2007), o mundo culturalmente constituído reside nos bens de
consumo. Trata-se do mundo da experiência rotineira, em que o mundo dos fenômenos se apresenta
aos sentidos individuais plenamente formados e constituídos pelas crenças e premissas de sua
cultura. É importante explicar que cada cultura estabelece sua própria visão particular do mundo,
fazendo com que entendimentos e regras sejam apropriados em um contexto cultural e
absurdamente impróprios em outro.
Uma cultura estabelece um conjunto apropriado de termos dentro do qual nada parece
estranho ou ininteligível para o membro da cultura e fora do qual não há ordem, sistema, premissa
segura e compreensão imediata. Cultura constitui o mundo e é de um mundo assim constituído que
decorre o significado destinado aos bens de consumo, poisse pode pensar o bem de consumo como
ação legítima que representa o mundo cultural, ou seja:
As categorias culturais, os princípios culturais se materializam em bens deconsumo e que esses bens, assim carregados, nos ajudam a compor o mundoculturalmente constituído. As categorias culturais e os princípios culturaisorganizam o mundo dos fenômenos e os esforços de uma comunidade paramanipular esse mundo. Os bens materializam tanto categorias quantoprincípios e, portanto, entram no mundo culturalmente constituído tantocomo objeto quando como objetificação desse mundo. Em suma, os benssão tanto as criações como os criadores do mundo culturalmente constituído(MCCRACKEN, 2007. p. 103)
37
O bem Padre Cícero é materializado a partir de ações culturais que são produzidas e
reproduzidas na cidade de Juazeiro do Norte através de práticas históricas avigoradas e
cotidianamente construídas, transformadas ao longo dos anos. Os eventos decorridos todos os anos,
em datas marcadas no calendário da cidade e dos devotos do Padre Cícero em todo o país (romarias,
festejos de aniversário de nascimentos e morte), acabam construindo um avigoramento da sua
imagem e dos bens de consumo que são produzidos a partir da sua efígie. Portanto, podemos pensar
os bens de consumo inseridos num sistema de significados culturais através dos objetos, dando
matéria a uma determinada cultura.
Nesse meio, há a necessidade de instrumentos de transferência de significado, do mundo
para o bem. Tais instrumentos residem primeiro no mundo culturalmente constituído para ter sua
transferência para o bem. A crença, os rituais, as romarias, as narrativas históricas passadas de
geração para geração, produzidas, reproduzidas e transformadas pelos devotos do Padre Cícero,
podem tornar-se instrumentos de significância cultural que é passada para os bens de consumo, as
estátuas do Padre Cícero.
Há, portanto, um sistema de significados a partir do espaço de análise, do campo social ao
qual me refiro - a cidade de Juazeiro do Norte e toda sua constituição enquanto cidade, valores,
crenças, rotas, trajetória, ligadas a figura do Padre Cícero, já enfatizada neste texto. A delimitação
do espaço e campo de pesquisa se dá a partir de uma necessidade de aprofundamento e
complexidade, tendo como fim uma análise da cultura material em torno do consumo do bem em
tela.
Segundo Miller (2003, p. 52), os bens materiais estendem a nossa capacidade física na
nossa relação com o meio ambiente, nos mobilizam para a ação, nos constrangem e nos levam a
determinados comportamentos, exercendo a materialidade um impacto direto na nossa vida
cotidiana.
Partindo da análise proposta por Miller (2003, p. 52), a mercadoria, na verdade, não só
produz a relação entre ela mesma e as várias pessoas que trabalham com ela, mas também a relação
entre estas pessoas ao longo de uma cadeia. Pensar isso relação ao bem de consumo Padre Cícero a
partir de valores morais, crenças, ideias das quais constituem os objetos, e somos por eles
constituídos, nos dará a possibilidade, socialmente, de buscar alguns elementos simbólicos de
identificação sobre a ótica da cultura material. Tais fronteiras, entre consumo e identificação são
maleáveis, instáveis.
Acessar tais informações requer um aparato teórico-metodológico ligado à antropologia do
consumo e suas tendências, que estão postas intrinsecamente na abordagem do consumo.Vale
ressaltar que o conceito de consumo é estourado. Hoje, tudo é consumido a partir de uma
38
perspectiva cultural, desde o pôr do sol, a leitura de um bom livro, bom filme, degustação da taça de
vinho, Chopp, lazer com a família, dentre tantas possibilidades de consumo. Podemos dizer que o
consumo tornou-se uma experiência, ato pensado, construído a partir das relações sociais tidas,
fabricadas, durante o processo da vida social. Pensando nisso, entendo o consumo das estátuas do
Padre Cícero para além da necessidade de ter a coisa em casa.
As práticas de consumo não se banham em um vácuo cultural. Elas estão inseridas em um
contexto e são instruídas por lógicas sociais que dão sentido às práticas em um determinado
contexto. As práticas surgem com a tarefa de estruturarem nossa vida cotidiana, em um mundo
permanentemente em mudança em transformação. Elas oferecem uma plataforma de oportunidades
que dificilmente será passível de mudança. Essas escolhas não são aleatórias e irão variar de acordo
com o campo social em que se está inserido. O consumo nos constitui enquanto seres sociais.
O consumo não é uma ação coerente. Não é uma possibilidade de simetria a partir do
consumir. Na sociedade pós-moderna, há uma dificuldade estrutural de identificar uma sistemática
elaborada do consumo, do ato de consumir, pois existem diferentes demandas, demandas
contraditórias nos setores da vida. Perceber que assumimos diversos papéis sociais, o que nos
possibilita tomarmos decisões contrárias a partir do papel social assumido. O consumo não é
coerente, pois o mesmo lida com subjetividade e com o desejo.
Vale dizer que o consumo é um elemento negligenciado na literatura antropológica sobre
mercados ou práticas econômicas nas sociedades tradicionais ou industriais, a qual se concentra ou
nos aspectos integrativos da troca ou nas determinações culturais e ideológicas da produção e
circulação de mercadorias. Parte dessa resistência de tomar o consumo como um objeto da
antropologia vem da visão simplista que coloca como uma mera satisfação de necessidades básicas
de cunho fisiológico ou psicológico, ou como aceitação mecânica das tendências ideológicas e
discursivas que estruturam a produção e omarketing das mercadorias.
Segundo McCracken (2003), o consumo moderno foi a causa e a consequência de tantas
mudanças sociais que sua emergência marcou nada menos que a transformação do mundo ocidental.
Como sugeriu um historiador, o aparecimento da “revolução do consumo” rivaliza apenas com a
revolução neolítica no que toca à profundidade com que ambas mudaram a sociedade.
Para Guerra (2011), essa revolução do consumo, significou não somente a modificação nos
gostos e nos hábitos e preferências de compras, mas também uma fundamental remodelação na
cultura mundial da modernidade: alteram-se os conceitos de tempo, espaço, sociedade, indivíduo,
família e Estado.
Ainda segundo Guerra (2011), o que mudou na análise do consumo foi o entendimento de
que esse não é apenas uma função de suprimento e dispêndio, como se observa na visão utilitarista
39
de que se consome apenas em função das necessidades. A sociedade produz os bens que precisam
ser consumidos.
A ampliação do conceito de necessidades e o rompimento com a visão economicista
centrado na produção e no consumo individual para o suprimento de necessidades trouxeram à tona
a necessidade de debruçar-se sobre o consumo em busca de aspectos não mais baseados apenas na
produção, mas, em seus aspectos culturais e de seu papel na estrutura social (GUERRA, 2011).
Para percebermos inúmeras relações que se estabelecem entre cultura e indivíduo, trago
Bauman (2008) para dá sua contribuiçãoà discussão. Para o autor, o consumo é uma atividade
humana que existe há muito tempo:
O consumo é uma condição, e um aspecto, permanente e irremovível, semlimites temporais ou históricos; um elemento inseparável da sobrevivênciabiológica que nós humanos compartilhamos com todos os outrosorganismos vivos. Visto dessa maneira, o fenômeno do consumo tem raízestão antigas quanto os seres vivos – e com toda certeza é parte permanente eintegral de todas as formas de vida conhecidas a partir de narrativashistóricas e relatos etnográficos (BAUMAN, 2008, p. 38).
Bauman (2008) afirma ainda que, com o advento da modernidade, o consumo adquire
centralidade na vida de grande parte das pessoas, num processo que lhe imputa inúmeras alterações
e determina algumas de suas características que perduram até os dias de hoje, que ele chama de
sociedade de consumo. Bauman (2008) descreve, nesse sentido, a seguinte distinção entre consumo
e consumismo:
o “consumismo” chega quando o consumo assume o papel-chave que nasociedade de produtores era exercido pelo trabalho. De maneira distinta doconsumo, que é basicamente uma característica e uma ocupação dos sereshumanos como indivíduos, o consumismo é um atributo da sociedade(BAUMAN, 2008, p. 41)
A partir da inserção do indivíduo na sociedade moderna, o consumo torna-se objeto de
preocupação da academia. No entanto, a necessidade aqui é mostrar as várias possibilidades de
análise que podem surgir a partir da ideia de consumo na sociedade contemporânea. Nesse mesmo
sentido, McCracken (2003) define o consumo como o “processo pelo qual os bens e os serviços de
consumo são criados, comprados e usados”. O consumo é um elemento construtor de relações
sociais, pelo consumo os indivíduos criam vínculos entre eles e com a sociedade.
Em Cypriano (2008), a atividade de consumo na experiência contemporânea, busca
entender as questões de subjetividade e consumo, tendo como principais arcabouços de analise as
40
relações entre individuo e sociedade e entre o sujeito e objeto, constituídos de elaborações sobre as
noções de individualidade e subjetividade.Já para Barbosa e Campbell (2006), o mais importante é:
[...] a quantidade de trabalhos é a relevância teórica que a categoriaconsumo passou a ter em algumas disciplinas e a atribuição da classificaçãoconsumo a áreas e domínios que antes não eram percebidos como tal e nosquais sua eventual presença era inteiramente desqualificada – como, porexemplo, no caso da cidadania, da cultura, da política, do meio ambiente eda religião (BARBOSA E CAMPBELL, 2006, p. 23).
Os bens de consumo seguem uma trajetória que está rimada com a necessidade de
significância para aqueles que consomem ou para aqueles que esperam no consumo satisfações
além do objeto visto, palpável e manuseado. Tais bens de consumo são produtos e produtores ao
mesmo tempo, pois nascem de um emaranhado cultural e dessa teia de significados culturais ligados
ao bem. É dado a eles valor não apenas econômico, mas valores morais, éticos, identitários. Os bens
podem agir como marcadores sociais a partir de suas singularidades e atuações na sociedade.
Por décadas, a experiência narrativa que comanda os estudos sobre o consumo esteve
atrelada à economia política. Tal fenômeno é compreendido a partir da sociedade capitalista de
produção de mercadorias em massa, tendo relação direta com as políticas econômicas
desenvolvidas nos países capitalistas, onde o marketing, promoção de novos estilos de vida, é
perpassado diretamente pela produção de bens.Ao longo das décadas, tais experiências construíram
graves contradições ideológicas, pois o consumo não poderia ser visto apenas de forma
desvinculada de uma sociedade que detém a cultura do consumo.
O consumo é ao mesmo tempo um processo social, que diz respeito a múltiplas formas de
provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmo bens e serviços; um
mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentido e de identidades,
independentemente da aquisição de um bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais
diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos diretos, estilo de vida e
identidades; e uma categoria central na definição da sociedade contemporânea (BARBOSA E
CAMPBELL, 2006).
Como ocorre paulatinamente com ideologias, essa promoção do consumo é efetivada em
grande parte porque ela se torna o racional esperado por trás de um conjunto de esferas e práticas.
Assim como a crítica do consumo precisa ser desfeita por sua postura moral subjacente, o mesmo
vale para o apoio ao consumo.
A busca por entender o consumo específico de um objeto é muitas vezes abordada de uma
forma mais eficaz se demonstrando a diversidade de tal consumo (MILLER, 2007: p. 50). É por
41
isso que o treco Padre Cícero, as estátuas que são produzidas com a sua imagem, que são
conhecidas e reconhecidas por citadinos e visitantes é o foco deste trabalho. É a partir do treco que
desperto o interesse em saber como as coisas fazem as pessoas e como as relações são produzidas
em cadeia.
Para pensar o treco enquanto produtor de relações sociais, trago Marcel Mauss em Ensaio
sobre a dádiva (2011), com sua teoria sobre as trocas simbólicas,a fim de construir suporte teórico,
na perspectiva de reconhecer um sistema de obrigações básico para a criação de um vínculo social,
oque não significa estar automaticamente vinculadoà dádiva. Na troca de dádivas das pessoas que
visitam o Juazeiro, segundo Mauss (2003), é possível observar a presença constante de um sistema
de reciprocidade de caráter interpessoal.
Esse sistema, que podemos vislumbrar em Juazeiro do Norte, se expande ou se retrai a
partir de uma tríplice obrigação coletiva de doação, de recebimento e devolução de bens simbólicos
e materiais, é chamado por Mauss de “dom” ou “dádiva” (2011).Entendendo-os como
consumidores, não só material, os sujeitos sociais não querem apenas objetos para si, mas, para
dividir, dar, inserir-se dentro de padrões de consumo que são estabelecidas por desejos e
expectativas não apenas individuais, mas, coletivas.
Os caminhos percorridos no Juazeiro do Padre Cícero, os encontros e desencontros com
outros e comigo mesmo, reificaram em mim a importância das relações estabelecidas, não só de
sujeito a sujeito, mas de sujeito com as coisas, de sujeito com tudo o que compõe mundo, pois nós
nos inventamos e reinventamos nas coisas.
2.3 CAMINHOS DE JUAZEIRO: ENCONTROS E DESENCONTROS.
Para desenvolvimento da pesquisa, propus pensar o consumo das estátuas do Padre Cícero
pelos romeiros devotos a partir da explicação da significância cultural do treco e do sistema de
dádivas como fenômeno total que abarca a vida social na medida em que tudo aquilo que participa
da vida humana, sejam bens materiais ou simples gestos, tornar-se relevante para a construção da
vida em sociedade.
Lembro-me sempre que teoria e metodologia andam juntas. Nessa perspectiva, apresento
neste trabalho a possibilidade de pensar o treco junto à dádiva, diante da ideia de fundição das duas
teorias, como investigação do objeto de pesquisa apresentado, pois há um lugar onde se podem
apreender as duas teorias, das coisas e da dádiva. Que, nesse caso, é no consumo das estátuas. Então
o objeto é o consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros devotos enquanto treco, que
possibilita pensar esse bem como troca simbólica.
42
Portanto,dediquei-me ao uso de teorias, testando-as, ou seja, dissertando sobre um tema
diante de uma perspectiva teórica, antropológica, sociológica e histórica, atividade na qual pude
perceber que em algumas situações as teorias não se encaixam, sendo necessário propor, questionar,
dar uma contribuição.
A pesquisa de campo foi realizada através de entrevistas semiestruturadas, anotações em
diário de campo, observação e registros fotográficos de espaços e momentos considerados
relevantes para o estudo. Nesse sentido, a pesquisa de campo está pautada nas entrevistas
semiestruturadas e na observação, cujo objetivo foi obter dados para a construção de possibilidades
de descrição dos significados, do símbolo, representação, partindo da análise empírica e teórica
sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros devotos.
Na pesquisa, cada vez mais, vi-me obrigado a utilizar estratégias indutivas: em vez de
partir de teorias para testá-las, foram necessários “conceitos sensibilizantes” para abordagem de
contextos sociais a serem estudados posteriormente. As teorias são desenvolvidas a partir de estudos
empíricos. Já o conhecimento e a prática são estudados como conhecimento e prática locais
(GEERTZ, 1997).
De acordo com Flick (2004), a relevância especifica da pesquisa qualitativa para o estudo
das relações sociais deve-se ao fato da pluralização das esferas de vida. Expressões chaves para essa
pluralização são a nova obscuridade, a crescente “individualização das formas de vida e dos padrões
biográficos” (BECKER, 1992) e a dissolução de “velhas” desigualdades sociais dentro da nova
diversidade de ambientes, subculturas, estilos e formas de vida. Essa pluralidade exige uma nova
sensibilidade para o estudo empírico de tais questões.
A mudança social acelerada e a consequente diversificação de esferas de vida fazem com
que os pesquisadores sociais defrontem-se, cada vez mais, com novos contextos e perspectivas
sociais. Desse modo, entendemos que a pesquisa de campo sempre foi composta por caminhos de
descobertas. Os desencontros nos fazem vislumbrar outras possibilidades de estar e perceber o
campo de pesquisa e por essas questões acredito ser relevante nesse momento apresentar os
caminhos por mim percorridos na cidade de Juazeiro do Padre Cícero no ano de 2016 (fevereiro a
novembro). Fiz minha primeira inserção ao campo de pesquisa com o sentimento de aventura por
novos caminhos, sem saber o que iria encontrar nesse percurso, que, às vezes, pode ser solitário,
angustiante e doloroso, outras vezes, penso que pode ser alegre, satisfatório e bonito.
Mesmo em Juazeiro do Norte, a maior cidade da região sul do Ceará, onde nasci e moro
até os dias atuais, fico a me perguntar: que ruas são essas, que nunca as vi dessa forma? Que
pessoas são essas que fabricam, vendem e outras consomem o bem Padre Cícero? E que objeto é
esse, causador, transformador e produtor de relações sociais? São alguns questionamentos que
43
ajudaram a me encontrar e, ao mesmo tempo, desencontrar nesse campo de pesquisa. Caminhando
sempre lentamente, observando e interpretando práticas, escutando as palavras, num exercício de
aprendizagem na relação com as pessoas dos lugares percorridos, do “campo”. Nesse exercício,
penso o “campo” sendo a terra, que se afofa, que se tritura, que se sente, que se trabalha (AGIER,
2015. p. 10).
A pesquisa visa o saber universal, com alcance a toda a comunidade, tendo a antropologia
fundamentada na etnografia, na verificação das experiências sociais e descobertas dos
questionamentos produzidos pela investigação antropológica, visando construir um saber original,
prático, ou, como Agier se refere, saber-viver. Segundo Agier (2015), os antropólogos falam
diferentemente: as palavras que eles utilizam não são mais exatamente as mesmas, o estado dos
conhecimentos sobre o humano em geral evoluiu enormemente e, sobretudo, as “questões sociais”
nas quais eles situam suas pesquisas mudaram como as próprias sociedades.O debate universalista –
que interpela a antropologia – nunca é fechado e, consecutivamente, a antropologia faz apelo a
novas etnografias. Isso ocorre a partir do momento em que a pesquisa é proposta a partir da cidade,
que não pode ser pensada como objeto que poderia ser captado pelo pesquisador de forma
totalitária.
Vale dizer que a cidade que pensamos corrobora com a ideia do Agier (2011), no sentido
de pensar a antropologia da cidade não baseada por uma definição externa, urbanística, estatística
ou administrativa da cidade. Não há um mínimo demográfico, um modelo de habitat, uma qualidade
rodoviária, ou quilômetros de redes técnicas para determinar o objeto da investigação. Há uma
multitude sem totalidade, a cidade é também demasiado heterogênea para que o próprio antropólogo
consiga aceder à sua complexidade sem se perder.
Neste trabalho, compreendo a cidade do ponto de vista dos visitantes, ou seja, romeiros
devotos, por “sobre os ombros” deles, deslocando assim o olhar da cidade para as pessoas que
visitam, sentem e fazem a cidade.É diante desse desejo de pensar a cidade e a dimensão do “campo”
de forma não previamente formulada que podemos pensar “por cima dos ombros”, focando em suas
práticas, consumo e modos de significação que estão ligadas ao processo histórico cultural e
material.
A antropologia se construiu historicamente como estudo do outro, entendido como outra
sociedade, outra cultura, outro grupo social. Pensando a pesquisa como a condição concreta para
produção de um novo conhecimento, estando associado à teoria, categorias e conceitos, com o
intuito de alumiar o objeto do conhecimento. Ao realizar essa tarefa, proponho produzir novas
discussões a partir do bem de consumo Padre Cícero, a proposta da pesquisa é trazer a significação
cultural do consumo das estátuas Padre Cícero para os romeiros.
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Portanto, minha inserção para o encontro com o campo acontece na cidade do Juazeiro do
Norte, mapeando as lojas que vendem o bem de consumo Padre Cícero em gesso. Por isso dou a
minha partida para o campo indo para a loja de bens religiosos do centro da cidade, Rua São Pedro,
esquina com Rua da Conceição. Nessa loja de bens religiosos há várias estátuas do Padre Cícero e
outros santos, sua posição no centro da cidade faz-me pensar: é por aqui que devo começar a
investigação sobre o bem de consumo Padre Cícero.
A loja está localizada no “coração”da cidade, fica entre a Rua São Pedro (principal rua do
comércio da cidade) e a Rua Nossa Senhora da Conceição (rua onde fica o centro financeiro da
cidade, onde estão localizadas o Banco do Bradesco e a Caixa Econômica Federal), seu espaço é
3x3, cheia de estantes de aço e um balcão de madeira espelhado com prateleiras internas, onde são
colocadas várias imagens. O teto é baixo, e cheio de rachaduras e buracos no forro. Um prédio com
várias marcas do tempo, com rachaduras e telhas acima amostra.
Porém, antes mesmo do início a pesquisa de campo, passava várias vezes por aquele local
e ficava a pensar que ali seria o melhor local, pois sua localização dentro do roteiro da fé 11, no
“coração” do centro, me atraiu. As várias pessoas que passavam pela calçada da loja, estando na rua
do circuito das romarias, me fizeram pensar que “não há melhor lugar para dá início a pesquisa de
campo”. A recepção não foi das melhores, a senhora que me atendeu, demonstrou esquivar-se de
qualquer pergunta e disse-me: “é o meu marido que sabe das coisas da loja”. Eu já havia entendido
que se quisesse saber de alguma coisa, teria que perguntar para ele, o marido.
Assim foi feito nos dias seguintes e junto com as informações obtidas me veio várias
inquietações, aflições e dúvidas. Fiquei inquieto com a parcimônia do local que havia pensado para
a pesquisa. Movimento calmo e entristecido. O trânsito escasso de pessoas dentro da loja fez-me
pensar em outro espaço onde tivesse mais contato com os consumidores das estátuas do Padre
Cícero. Naqueles dias de aflição,eu voltava sempre à loja e sentia um desprezo no que se refere a
minha presença. A desconfiança aumentava, pois era eu que toda às vezes tentava dialogar com o
casal de lojistas.
Por vezes, tínhamos alguns minutos de conversa, sempre a pergunta sobre o consumo das
estátuas do Padre Cícero, e sempre a escutar respostas diretas e prontas. Em alguns dias, comecei a
ser perguntado como eu usaria aquilo que eles disseram para mim, daí que pensei que deveria trazer
11 O roteiro da fé compreende em várias vias que formariam um percurso prioritário para o acontecimentodas romarias: prolongamento da Rua São José (projetado), Rua São José, trecho Rua do Cruzeiro-LeandroBezerra, Rua Santa Cecília, Rua Cansanção, trecho Rua Delmiro Gouveia, Rua São Bernardo, Rua SãoJorge, Rua São Francisco, com sentido duplo, Rua da Glória, trecho projetado no terreno do IBAMA (av. Dr.Floro Bartolomeu), ligando à Rua da Matriz existente. Indiretamente englobava Centro, Socorro, Salesianos,Franciscanos, São Miguel e Juvêncio Santana, bairros sob a influência do percurso.
45
algo que legitimasse minha presença no estabelecimento do casal. Algo que me apresentasse como
pesquisador. Lembrei-me então, que além de pesquisador, atuo como professor de sociologia em
uma das maiores escolas estaduais da cidade de Juazeiro do Norte, a escola de ensino médio
Presidente Geisel, conhecida como Polivalente.
Não obstante, decidir tomar outro rumo, pensando que a mudança poderia me dá novas
oportunidades para entrevistas e coletas de dados. Assim foi feito. Não descartei voltar à loja,
porém, acreditei que deveria circular em outros lugares. Não poderia ficar toda a pesquisa de campo
apenas em uma loja de bens religiosos, já que o meu interesse sempre é nos consumidores.
Tomei rumo12 para a Rua São José, na quadra na qual está localizada a última morada do
Padre Cícero (hoje casa/museu do Padre Cícero), contendo várias lojas de bens Padre Cícero,
restaurantes de comida caseira, pousadas, ranchos e hotéis para os romeiros que vêm à cidade. Na
loja do senhor Wilson e senhora Irani encontrei uma grande quantidade de bens com a imagem do
Padre Cícero (chaveiros, camisas, shorts, bermudas, cortadores de unha, fitas com o nome do Padre
Cícero, bolsas, carteiras, quadros e fotografias). O casal mantém a loja há vinte e oito anos e
acreditam que tudo aquilo que é vendido, todo o crescimento do comércio da cidade desde sua
fundação até os dias de hoje, têm as bênçãos e permissão do “Padim Pade Ciço”13.
Passei alguns dias a escutar histórias do casal, seu Wilson metalúrgico na cidade de São
Bernardo do Campo, estado de São Paulo, e senhora Irani retirante de Juazeiro do Norte, foi a São
Bernardo para encontrar trabalho. Lá se encontram, construíram família e, logo depois da perca do
emprego do seu Wilson, a Irani fez a proposta para voltar para sua terra, Juazeiro do Norte, pois
tinha a fé no Padim Ciço de que nada iria faltar para seus filhos. E assim foi feito. Eles estão há
quase trinta anos vendendo bens de consumo Padre Cícero.
Diante da acolhida do casal Wilson e Irani, que têm dois pontos comerciais na Rua São
José, e toda a amizade construída entre os meses de maio e novembro, tornaram-se o meu ponto de
apoio. A Rua São José está dentro do roteiro da fé, ficando próxima da maior praça da cidade, Praça
Padre Cícero, local de grande aglomeração de visitantes na cidade. Comecei a fazer entrevistas com
os clientes do seu Wilson e Irani e depois ia até praça para continuar o trabalho. Voltava várias
vezes durante o dia, tomava água, picolé e rumava para a praça novamente.
Já estando no mês julho e seguindo o mesmo ritmo, fiquei pensando na pesquisa e
chegueià conclusão que não daria conta de todos os bens que contém a imagem do Padre Cícero.
Precisaria apontar uma direção que me desse maior objetividade e transparência metodológica.
12 Ir adiante, mesmo com algumas mudanças nos espaços do campo.
13 Termo usado pelos devotos para fazerem referência ao Padrinho Padre Cícero.
46
Decidi que a estátua do Padre Cícero,esse bem de consumo, seria meu focoa partir de então. Porque
essas estátuas do Padim são vendidas? Quem compra, por que compra e para quem compra? Foram
essas algumas perguntas de partida que me ajudaram a seguir com a pesquisa.
Seguindo esse norte, busquei novamente mudanças no campo que atendessem minhas
necessidades como investigador da cultura material e, dessa vez, fui em busca das lojas
especializadas na venda das estátuas do Padre Cícero. Deixei para trás as longas e agradáveis
conversas em manhãs e tardes na loja do casal de amigos, tendo que me aventurar em outros
espaços.Ao que parece, as pesquisas de campo têm um sentido diferente de tudo aquilo que se faz
diante outros métodos de pesquisa, pois as mesmas estão baseadas nas limitações dos conceitos e
significados das palavras chaves que são usadas. No campo exige-se escutar, ouvir, olhar e escrever
(CARDOSO, 2000).
Minhas mudanças, que ocorrem desde as minhas primeiras incursões ao campo, me
fornecendo uma amplitude daquilo que estou a pesquisar, o bem de consumo Padre Cícero. Então,
fiquei a pensar nos últimos dias sobre tais bens e sua diversidade, ao que parece uma quantidade
infinita de objetos.
Nesse sentido, estaria me referindo ao conjunto de representações e sistemas de valores
diferenciados através de cada modalidade desses bens. A partir desse dia ouso a pensar apenas o
bem Padre Cícero, sua estátua produzida em gesso, espelhada na pessoa física. Por consequência,
mudo as ruas do campo de estudo, outrora estando na Rua São José, indo agora para o bairro do
Socorro, onde se localiza a igreja do Socorro (onde o Padre está enterrado). Nesta quadra há grande
quantidade de lojas que vendem, especificamente, o bem de consumo Padre Cícero, estátua.
Minha aventura no campo continuou e me dirigi ao largo do Socorro, espaço que contém a
capela do Perpétuo Socorro, onde estão os restos mortais do Padre Cícero, a praça de eventos
(eventos como, aniversário de nascimento e de morte do Padre, acontecem na praça do largo do
Socorro), feira de artigos religiosos e museu Padre Cícero. Estar no largo do Socorro foi, para mim,
a tentativa de romper com o senso comum, mas, como não conseguimos instaurar a vigilância
epistemológica o tempo todo, precisei autovigiar, compreender e romper vigiando.
FOTO 05 – Mapa de representação do Bairro Socorro
47
FONTE: (ARAUJO, Marcos A.G., 1988 / adaptado por MARQUES, Michael, 2016).
O largo do Socorro é o espaço de visitas com maior circulação dos devotos do Padim. É o
lugar que tem a maior concentração de lojas que vendem o bem Padre Cícero, estátuas do sacerdote,
além de ter a feira de artigos de religiosos no espaço do largo. Dentre as lojas que comercializam
bens de consumo Padre Cícero nesse espaço, algumas, se tornaram passagem obrigatória das
minhas idas e vindas ao campo, pois várias elas existem há mais de 30 anos. A loja de artigos
religiosos Padre Cícero, por exemplo, existe há trinta e nove anos comercializando bens religiosos,
e, principalmente, a estátua do Padre Cícero em gesso. A proprietária da loja, senhora Celmar, e sua
gerente Joana D’Arca, sempre estiveramà disposição para me dar informações sobre o Padre
Cícero, o largo do Socorro e os bens que são vendidos.
Havia também a Nininha, proprietária da loja vizinha, que sempre ia me cumprimentar e
relatar algo que aconteceu ou acontece no largo do Socorro. Por vezes, levava seu celular com
informações trazidas da rede mundial de computadores, mostra-me algo e tecendo sempre breves
comentários. Geralmente encontrava o Rogério (marido da Joana D’Arca, filho da Celmar,
historiador) com suas críticas fundadas a partir das suas experiências como morador antigo do
espaço.
Segundo Rogério, o largo do Socorro está abandonado, sem nenhum atrativo para o
turismo religioso, ao longo dos anos nada foi construído. Não há nenhuma novidade para aqueles
que visitam a cidade anualmente, o que resultaria em uma diminuição das visitações a cidade do
Juazeiro, tendo como consequência a diminuição das vendas do bem Padim Ciço.
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A loja Padre Cícero de artigos religiosos é a maior que existe no espaço largo do Socorro.
Nela encontram-se bens de consumo Padre Cícero de várias dimensões, que variam de dois
centímetros (2 cm) até um metro e oitenta (1,80m) de altura, havendo uma diversidade de preços de
acordo com a dimensão do bem. Os materiais que são usados na fabricação dos bens Padre Cícero,
nas oficinas espalhadas pela cidade, são: gesso, concreto, fibra, borracha, resina, PVC, acrílico,
louça, parafina e cristal.
FOTO06 -Padre Cícero em alumínio e gesso(02 cm a 10 cm, respectivamente).
FONTE: Michael Marques, 2016.
Durante os vários dias de trabalho de campo, entre conversas com meus informantes, dona
Celmar, Joana D’Arca, Rogério, senhora Nonô, donos de lojas no largo do Socorro, ouvi vários
dizeres, ganhei em forma de santinhos vários dizeres do Padim Ciço, que são entoados e
reproduzidos por vários citadinos e romeiros visitantes da cidade. Tais dizeres estão voltados para a
concepção de trabalho e fé (ARAÚJO, 2011), difundida pelo Padre Cícero14.No Joaseiro15, há
preceitos morais e econômicos, um código de honra que foi implantado pelo Padre Cícero e está nas
bases da formação civilizacional e econômica da cidade (DELLA CAVA, 2014. p. 260 a 261).
14 Ver mais em: ARAÚJO, Maria de Lourdes de. A cidade do Padre Cícero Trabalho e Fé. Fortaleza.IMEPH, 201; BARROS, Luitgarde O. C. A terra da Mãe de Deus - Um estudo do Movimento Religioso deJuazeiro do Norte. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, ed. MINC-INL, 1988; BARROS, LuitgardeOliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero. A terra da mãe de Deus. 3 Ed. Fortaleza: Editora IMEPH,2014; CORDEIRO, Maria Paula J. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte.Fortaleza: IMPEH, 2011.
15Grafia usada em Joaseiro até o ano de 1914. A partir de então, passou a ser escrito Juazeiro do Norte.
49
Tal código foi fundamentado na tradição cristão e as narrativas estão fortemente presentes
em toda a cidade, das quais se destacam as seguintes: “trabalhe como se nunca fosse morrer, reze
como se fosse morrer amanhã”, “Deus nunca deixou trabalho sem recompensa, nem lágrimas sem
consolação”, “dê o primeiro passo e o resto o nosso bom Deus fará”. Esse ideário de prosperidade
pelo trabalho e fé era difundido pelos imigrantes que chegavam ao Joaseiro e que vislumbravam
uma melhoria de vida na ‘terra da prosperidade’, com garantias subjetivas e objetivas para
subsistência das famílias e reprodução social e econômica da cidade do Padre Cícero16.
FOTO07 - Conselhos do Padre Cícero espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte
FONTE: Michael Marques, 2016.FOTO08 - Conselhos do Padre Cícero espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte
16 Para saber mais vê: (ARAÚJO, 2011); (BARROS, 2014); (CORDEIRO, 2014). Para esses autores asbases que sustentam essa sociedade se baseiam na ideologia da fé, como construtora da concepção do mundoe das relações sociais.
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FONTE: Michael Marques, 2016.
Pois bem, vamos à reviravolta. Quando pensei que todos os questionamentos da pesquisa
iriam ser respondidos naquele espaço do largo do Socorro, surgiu-me novamente a necessidade de
andanças, oumesmo mudança de campo, pois entendi que não erasomente os lojistas que teriam
respostas para o significado do consumo das estátuas do Padre Cícero. Os dados não funcionam
como queremos, não é o que imaginamos e sim o que o campo nos dá.
Diante dessa nova mudança, deparei-me amigos, sabedores da pesquisa em andamento,
que me convidaram a ir até o santuário de São Francisco das Chagas, com a prerrogativa de que ali
eu teria mais acesso aos romeiros (as) em virtude dos espaços de grande aglomeração que há no
santuário, o que facilitaria minha inserção no campo, observação e continuidade das entrevistas.
Vale lembrar que toda a minha infância e parte da adolescência morei no Bairro Franciscanos, visto
que, o espaço do santuário, as ruas ao seu redor, as casas dos amigos, não seriam nada estranhos
para mim.
Percebi, porém, que em alguns momentos da pesquisa, naquele espaço tão comum para
mim, o estrangeiro era eu. Não conseguia olhar mais as ruas, o santuário, a aglomeração de
romeiros visitantes como outrora. Naquele instante eu era “o de fora”, aquele que não reconhece
onde está, mesmo havendo familiaridade com aquilo tudo Impressiona a mudança na forma de
percepção, observação que tivera em tantos dias de pesquisa no espaço meramente conhecido, mas
que agora minha posição sendo “o de fora” impulsiona-me para seguir adiante, na tentativa de
reconhecimento daquele espaço, antigamente tão comum para mim.
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Não encontrei outra forma de apresentar o meu trabalho, de apresentar esse objeto, se não
problematizando a mim mesmo. Por dias via o objeto de longe, onde tive que percorrer outros
espaços da cidade (centro e periferia), quando na verdade, na minha pesquisa, o “Juazeiro” estava
perto da minha casa. Achava que o deslocamento para o centro faria encontrar o “Juazeiro” que
queria, o objeto almejado, que respondesse todas as minhas questões, mas o “Juazeiro” estava em
todo lugar, inclusive perto da minha casa.
O santuário São Francisco das Chagas (também conhecido como Igreja dos Franciscanos)
teve sua pedra fundamental inaugurada em 06 de janeiro de 1950, tendo o seu benzimentoseis anos
depois, em 1956. A igreja dos Franciscanos se constituiu em um dos mais belos templos da ordem
no Brasil. Ela foi construída em estilo romano lombardo17, tendo a planta do templo forma de cruz
latina. Na construção do templo foram necessários 560.00 mil horas de trabalho, 4.591 sacas de
cimento, 10.500 quartas de cal, 49.088 quilos de ferro, 4.500 m³ de vidro, 3.050.000 de tijolos. Sua
torre de 45 metros de altura, conta com um bonito relógio e mais oito sinos, nos quais estão sem
funcionar por falta de manutenção. O santuário de São Francisco das Chagas, em dias de romarias,
chega a comportar cerca de 30 mil pessoas.
Foto 09 - Santuário São Francisco das Chagas (Juazeiro do Norte)
FONTE: Michael Marques, 2016.
17 O temploé de planta de cruz latina, embora também se encontrem construções de planta central.Generalizou-se a planta com girola e capelas radiais ou absidíolas. A girola utiliza-se preferencialmente nasigrejas de peregrinação e consiste em uma nave que dá a volta ao presbitério, também recebe o nome deambulatório. A cada absidíola permite a colocação de um altar, entre os que se abrem as janelas que alumiama girola.
52
Ao chegar ao santuário, eu vi grandes possibilidades de atendimento das minhas
indagações, pois naquele local, em período de romarias, abrigam-se uma enorme quantidade de
barracas que comercializam panelas, roupas, imagens em molduras, gesso, madeira eplástico.
Outras que vendem comida e guloseimas (sorvete, picolé, doces, bolos), sandálias, gravadores,
chapéus, eletrônicos de vários tipos. Há aglomeração durante os cinco dias da romaria de finados,
que vai de 28 de outubro a 02 de novembro. Fazendo parte do roteiro da fé, no circuito das
romarias, o santuário de São Francisco das Chagas é um antro de passeio com significados diversos
para cada pessoa que visita o local.
FOTO 10 - Barracas localizadas ao redor do Santuário São Francisco das Chagas
FONTE: Michael Marques, 2016.
FOTO 11 - Barracas localizadas ao redor do Santuário São Francisco das Chagas(Do ladoesquerdo da imagem vê-se o “passeio das almas”).
FONTE: Michael Marques, 2016.
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Barracas se amontoam ao redor do Santuário. As dimensões da maioria não ultrapassa de 2
x 2 metros, ficando espremidas entre as Ruas Monsenhor Esmeraldo, D. Pedro II e a Avenida
Carlos Cruz. Não há uma uniformização das barracas, muito menos demarcações do poder público.
Em dias de romarias, moradores das casas das ruas ao redor do Santuário ficam sem sair com seus
carros, havendo uma quebra no ritmo diário desse local. Contudo, não há grandes reclamações, pois
os moradores dali aproveitam para montar seus botecos, restaurantes itinerários, ou vender
bugigangas para obterem uma renda extra.
Visto que o santuário dispõe de espaços de grande circulação, usei como estratégia estar no
“passeio das almas”, passarela suspensa que circula parte do santuário e na qual os fiéis dão voltas
(no mínimo uma) para se encontrarem consigo mesmos, elevando suas almas a Deus, a São
Francisco das Chagas e a Padre Cícero. Muitos veneram a beleza, alegando ser parte do paraíso na
terra, onde tudo de bom pode acontecer depois da volta dada no “passeio das almas”. É lá onde é
marcado o encontro com Deus, que tira todos os pecados do mundo. Voltas no “passeio das almas”
são acompanhadas de orações, pagamento de promessas, lágrimas nos olhos, veneração e várias
paradas para fotos, contendo expressões de satisfação e alegria. Naquele contexto de fé, alegria e
oração, eu pensei comigo: o campo me acolheu.
FOTO12 - Santuário de São Francisco das Chagas/“Passeio das almas”.
FONTE: Michael Marques, 2016.
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No“passeio das almas” foram feitas as entrevistas, cujo intuito foi compreender os
significados do consumo da estátua do Padre Cícero. As conversam permearam temas específicos:
além dos dados dos interlocutores, eu me preocupei em compreender os significados do Juazeiro
para aquelas pessoas mediante perguntas como: Qual o seu nome, idade e cidade de origem?
Quantas viagens já desses ao Juazeiro? O que significa estar em Juazeiro para você? Alguma vez, já
comprou aqui no Juazeiro a estátua do Padre Cícero? Para você o que significa comprar a estátua do
Padre Cícero? Voltaria ao Juazeiro? Acredito que essas perguntas trouxeram como possibilidade de
respostas uma relação simbólica com a cidade, com o que as pessoas entendem por Padre Cicero e
sobre o treco.
Mesmo tendo uma semiestrutura, as entrevistas aconteceram de forma aberta e espontânea,
pois entendi que a relação com o campo se dá a partir da interação mútua, na observação dos gestos,
ações e tudo que acontece ao seu redor. Foram realizadas 54 entrevistas, 18 delas ocorreram na
Praça Padre Cícero, Rua São José e Largo do Socorro, e as outras 36 no “passeio das almas”, no
santuário de São Francisco das Chagas.
As entrevistas na Praça Padre Cícero, entre julho e novembro, foram realizadas por
abordagem direta, na qual eu me apresentava como estudante pesquisador da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Os olhares desconfiados pairavam sobre mim,. Eu imagino que as
pessoas ficavam a se perguntar: “como ele prova isso?” Muitas dessas tentativas foram frustradas,
pois não conseguia aproximação para dialogo com aqueles que seriam meus principais informantes.
Passei alguns dias pensando em estratégias para as abordagens e resolvi levar a carteira de
estudante e uma folha de ofício com o nome (no início da folha em caixa alta) da Universidade
citada. Comprei umchapéu (na loja do seu Wilson) como proteção do sol, para cabeça e pescoço, e
comecei a usar uma mochila preta com algumas coisas para apoio como as folhas com as perguntas,
canetas e um gravador. Acredito que o “documento” (carteira de estudante) legitimava a minha
abordagem, alguns chegaram a pegar a carteira, ler as informações contidas, numa tentativa de
verificar sua veracidade. Essa estratégia facilitou a aproximação e passei a dialogar com as pessoas
do campo a fim de obter as entrevistas.
Outra estratégia usada para aproximação com informantes era o conhecimento de boa parte
das cidades de onde vinham. Alguns vinham dos estados de Sergipe, Alagoas, Bahia, Paraíba,
Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Piauí, Maranhão, dentre outros. Aocitarem a
cidade de origem, eu dizia a muito deles: “conheço” ou “já passei por lá” e até mesmo, “já fui ao
estado, masnão nessa cidade”. Supus que a ideia de conhecer a cidade de origem deles me daria
mais oportunidades para continuar com as entrevistas.
55
Na Praça Padre Cícero, a maioria das entrevistas ocorreum em baixo de grandes árvores ou
nos bancos, onde todos buscavam um tanto de sombra para fugir da temperatura elevada18. Alguns
diálogos continuaram mesmo após ter sido desligado o gravador, principalmente com pessoas vinda
de Maceió, cidade da minha companheira, que conheço bem, o que facilitou citar nome de bairros e
ruas.
Em dias de romarias, a Praça Padre Cícero, recebe uma quantidade imensa de pessoas, que
circula pelo roteiro da fé. Dentre elas, ambulantes vendendo água, terços, escapulários, camisas com
a imagem do Padre Cícero e de outros santos, chapéus, bonés, picolés, sorvetes, pomadas que curam
todas as dores, pedintes e cantores peruanos nos quais montam uma pequena estrutura de som,
teclado, violão e tocam suas músicas em busca de venda de seus cd’s. Alguns romeiros e romeiras
arriscavam-se em dançar com seus parceiros, outros apenas escutavam e compravam cd’s das
músicas tocadas. Tais músicas eram regravações de grandes sucessos do Brasil e América latina,
sempre havia alegria e descontração entre uma música e outra.
No outro lado da praça, havia um palco de concreto, construído pelo poder público para
apresentações, que eram ocupados por grupos de jovens da Igreja Católica. Outro grupo que atuava
na praça se denomina JOCUM (Jovens com Uma Missão)19, e eram eles que também produziam as
apresentações no palco e distribuíam alegria para os romeiros que estavam em visitaà cidade. Às
vezes chamavam alguns romeiros para que eles dissessem de ondevinham, o que estavam achando
da romaria, se estavam gostando de estar no Juazeiro e se voltariam outras vezes.Nessa
configuração da Praça Padre Cícero é que as entrevistas foram feitas.
Na Rua São José, e largo do Socorro, a maioria das entrevistas foi feita com os clientes do
seu Wilson e senhora Irani. O casal amigo ajudava-me no que fora necessário, assim, convidava
alguns dos seus clientes a darem entrevistas, pois os mesmos conheciam alguns romeiros e romeiras
que vinham todos os anos, ou que já vieram outras vezes comprar na sua loja. A abordagem seguia
com a mesma estratégia de levar uma identificação e o gravador sempre no bolso para facilitar.
A maioria das entrevistas foi realizada no Santuário de São Francisco das Chagas, das
quais sinto imensa saudade desses dias e do contato com todos os romeiros e romeiras que tive
algum momento de diálogo. A alegria demonstrada em cada um, pelo fato de estar no Juazeiro, estar
18 As primeiras perguntas eram sobre a possibilidade da entrevista, logo em seguida pedia a permissão paraser gravada, e que a fala pudesse estar no texto da dissertação. Não tive problemas sobre não usar asentrevistas, aqueles e aquelas que me concederam sempre desejavam boa sorte no trabalho e felicidades paramim e minha família.
19 Para saber mais sobre a atuação do JOCUM nas romarias do Juazeiro do Norte, vê dissertação demestrado da Itamara Meneses Terreno vigilante: compreendendo as ações dos jovens com uma missão(JOCUM) em Juazeiro do Norte-CE.<https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/21484>.
56
na romaria, fazendo a caminhada no “passeio das almas”, ajudou-me na abordagem, na qual,
definitivamente não houve nenhum problema.
Algumas vezes fui convidado para acompanhar a caminhada a fim de que, ao final,pudesse
acontecer a entrevista. Fiz várias vezes o mesmo caminho. O “passeio das almas” nesses dias é um
lugar de paz, em que as pessoas estão conectadas com seus pedidos de graças e agradecimentos por
mais um ano de vida, por mais uma oportunidade de estarem vivenciando novamente esses
momentos em suas vidas.
Nesse momento da pesquisa, já decorria para o mês de outubro a novembro, senti que
encontrei o campo e o campo me encontrou. Daqueles momentos em diante, houve uma interação
entre pesquisador, objeto e campo, uma aclamação que em nenhum período anterior da pesquisa eu
havia sentido.
Como já foi dito anteriormente, em muitas horas, dias e meses, fiquei inquieto com o não
andamento do texto, das entrevistas, e das pesquisas. Cheguei a fazer contato com o autor de alguns
trabalhos sobre o Juazeiro do Norte e o Padre Cícerocomo, por exemplo, Daniel Walker20, enviando
textos meus. Alguns deles me respondiam que não poderiam me ajudar, pois a minha pesquisa não
se tratava de algo que eles já leram ou escrevam em seus textos.
Após aquele momentos e depois de todo o processo de pesquisa,posso dizer que o arco
sobre consumo e religião em juazeiro não abarca tudo o que Juazeiro é e significa para as pessoas
que moram e fazem romarias lá. Aquela cidade é composta de arcos culturais tanto quando
sãopossíveis os arranjos de homens e mulheres em sociedade.
20 É uma das principais referências na cidade para pesquisadores, jornalistas e interessados, e exemplo daluta pela preservação da memória do Cariri. Daniel Walker mantém dois blogs ativos na internet, são eles:http://www.sitededanielwalker.com/ e http://www.portaldejuazeiro.com/. Nos quais se propõe a divulgar,discutir e analisar notícias sobre o Juazeiro e o Padre Cícero.
57
3CAPÍTULO II - O TRECO COMO “PROVA QUE SOMOS ROMEIROS”.
Neste capítulo,trago a tentativa de analisar o treco do qual estamos a tratar junto à teoria
das coisas. No desejo de inaugurar uma nova leitura sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero
pelos romeiros devotos, eu ouso desenvolver este capítulo junto aos estudos dos objetos materiais e
o olhar sobre a cultura material do antropólogo britânico Miller (2013), já citado várias vezes neste
trabalho.
Nesse sentido, a prática do consumo do treco Padre Cícero pode ser vista como um canal
de participação, individual ou coletiva, no processo de organização de elementos distintos que
compõem a tradição religiosa de acordo com os critérios que são atribuídos pela devoção e valores
(tradição e fé) e que são estabelecidos pelos consumidores do treco. São vários os significados
atribuídos, dentro de uma variabilidade possível, para que se tenha, ou que se deseje consumir o
treco.
Essa variabilidade possível está dentro de uma inserção em um mundo de respeito, fé,
satisfação, oração, idolatria, histórico familiar, glória nas alturas, revigoramento e devoção à
divindade honrada. Para tanto, o consumo mencionado também está para adquirir, admitir e evocar
uma posição social de devoto. Há, com efeito, em grande parte desse consumo, um comportamento
racional não coerente e inesperado, pois não podemos naturalizar tal prática de consumo antes
mesmo de perceber o conjunto de estruturas e práticas subjacentes a ela.
No entanto, antes mesmo de tratarmos afundo do treco Padre Cícero, é válido esclarecer
quem são essas pessoas, visitantes, também conhecidos como romeiro? Segundo Cordeiro (2011, p.
113), “romeiro” parece ser uma categoria central e ao mesmo tempo paradoxal não só das romarias,
mas também na composição das alteridades e identidades em Juazeiro do Norte.
Ainda com Cordeiro (2011, p.114-117), há uma tipificação dos participantes das romarias
que se nomeiam romeiros em Juazeiro do Norte, quesão: romeiros moradores (migrantes e seus
descendentes de primeira e segunda geração), romeiros turistas (participantes que consideram o
lugar visitado passível de ser aproveitado), romeiros devotos (participantes tradicionais que
estabelecem um contrato vitalício de retorno anual), romeiros acompanhantes (curiosos de qualquer
idade ou jovens, menores de 18 anos a quem os familiares tentam inculcar a importância das
práticas religiosas).
Desse modo os “romeiros devotos” foram aqueles que destaquei para o desenvolvimento
da pesquisa. Com efeito, ao longo do processo de observação e participação, os devotos se
apresentaram como utilitários para a compreensão da dinâmica social, pois são eles eram
participantes assíduos da construção de significados do mundo dos bens, aqueles que consomem,
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em sua maioria, o treco Padre Cícero, estando este ligado a uma ideia além da materialidade, que
ainda ireitrabalhar mais a frente no texto.
Dando continuidade ao desenvolvimento da ideia do consumo das estátuas do Padre Cícero
pelos romeiros devotos a partir da teoria das coisas, podemos entender o treco, sobretudo,
relacionando-o a rotinas cotidianas, práticas, valores, crenças aprendidas interagindo de várias
formas com o mundo da cultura material. Como exemplo de cultura, o treco Padre Cícero assume
uma elaboração de formas com dimensões sistemáticas, de modo que só podemos entendê-lo a
partir dos acontecimentos históricos que ocorreram em Juazeiro do Norte e suas interações como
elemento atuante no cenário da cidade e como construtor de maneira particular da própria
sociedade, ou seja, o treco como agente-chave.
Segundo Miller (2013), uma sociedade particular elabora suas práticas culturais mediante
um padrão subjacente, que é manifestado numa multiplicidade de formas diferentes. Ao aprender a
interagir com uma profusão de culturas materiais, o indivíduo cresce aceitando as normas que nós
chamamos de cultura. O objeto em destaque na pesquisa, as estátuas do Padre Cícero, treco, não
expressam suas vontades, não falam, por vezes são obscurecidos pela não notabilidade, ou
irrelevância, pois não temos a dimensão do seu papel no mundo da cultura material. Esses objetos
nos ajudam a aprender como agir de forma apropriada, corroborando com o postulado da teoria das
coisas de que os objetos fazem as pessoas.
Antes mesmo de nossas práticas diárias se tornarem algo comum, crescemos a mercê de
coisas que foram transmitidas através das gerações anteriores. O ambiente cultural vivido,
experimentado e adaptado, gera uma tendência à capacidade de não notarmos o quanto as coisas21
são determinantes. Essa não notação das coisas propicia uma teoria da cultura material, dando aos
trecos uma significação além daquilo que poderíamos esperar.
Em Juazeiro do Norte, grande parte dos indivíduos comporta-se a partir das expectativas
que o treco Padre Cícero gera. Essa maioria dos indivíduos, devotos e consumidores do treco Padre
Cícero, tornam conscientes suas ações a partir de normas subjacentes estabelecidas e enquadradas
por valores, crenças, ritos e fé. Portanto, na verdade, é o treco padre Cícero que também constrói a
cultura.
Proponho pensar que no mundo da cultura material o treco Padre Cícero produz as relações
sociais e estrutura toda relação que é produzida em cadeia, a partir da sua significação para os
citadinos e visitantes (romeiros e romeiras). Essa proposição está citada pelos vários indivíduos que
o campo me deu a oportunidade de dialogar.
21 A palavra coisa, que aparece em várias passagens dessa dissertação, referem-se aos trecos, isto é, asestátuas do Padre Cícero.
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As referências feitas ao consumir o treco Padre Cícero estão alocadas dentro de uma
variabilidade possível, pois como já foi dito, não há coerência no ato do consumo. Por isso, venho a
destacar uma das minhas entrevistadas, a senhora Adriana, advinda de Aracaju, estado de Sergipe e
que me serve de apoio para sustentar minha ideiasobre consumo do treco. A senhora Adriana,
contou-me que era a terceira vez que vinha ao Juazeiro e que, por isso, já se considera romeira. A
significância para ela de estar no Juazeiro é o sentimento de paz que tem quando se encontra na
cidade e que leva consigo até o seu local de origem.
Eu já vim aqui pedi para meu filho... ele não ia nem andar nem falar... entãofiz uma promessa para ele e tô aqui... fui de pé até lá o Horto assistir umamissa todinha de joelho no chão e foi bem aceita...hoje ele fala...eu pedi aele que no momento que ele ficasse com alguma lesão que ele pudessemorrer que eu não ia ter tempo para cuidar dele...e nem todo mundo quepega para cuidar tem cuidado...aí a promessa do meu filho foi válida...e euaconselho a todo mundo...e qualquer um que seja...qualquer tipo desanto...qualquer tipo de imagem faça de coração. E a minha foi bem aceita(Interlocutor não identificado).
O treco Padre Cícero assume um papel de intermediário com o sagrado, aquele que faz a
intersecção com a divindade na qual se pede em oração. Nesse momento o treco Padre Cícero
torna-se o agente-chave da relação entre humano e o divino. O treco é o objeto que está além da sua
própria imagem, pois assume uma significação além da sua materialidade. Assim, - o mesmo, deve
ser respeitado, honrado na mesma medida da graça pedida ou alcançada. O consumo do treco Padre
Cícero assume e constrói essa relação, entre o humano e divino, e todo comportamento
desencadeado através dessa ação. Aqui não há nada mais importante em ter, consumir o treco, que
seja para honrá-lo e lembrar a graça alcançada.
Entremosnoutra discussão necessária ser feita nesse momento. O treco, também, pode ser
outro objeto que não seja somente as estátuas do Padre Cícero. O mesmo pode assumir uma
variabilidade de materiais infinita, ou seja, cartas escritas pelos devotos parao Padre Cícero podem
ser vistas como treco. Para tratar desse aspecto basta reportarmo-nos a Graça (2014) em sua tese de
doutoradoDores e Cores nas mal traçadas linhas dos devotos do Padre Cícero: As trocas
linguísticas instauradas entre o discurso eclesial e o discurso epistolar dos romeiros. Nesse
trabalho houve uma incansável leitura e releitura das cartas produzidas pelos romeiros devotos. Em
tais cartas, são feitos pedidos de emprego, saúde, agradecimentos pela vida, trabalho, e tantos outros
que são vistos nas cartas.
Vale dizer que em vida, o Padre Cícero se preocupara com a sustentabilidade daqueles que
chegavam a essas terras, pois em seu discurso já havia tal noção da problemática que poderia via a
60
surgir com tantas pessoas sem trabalho e sustento. No livro “Padre Cícero, pessoas, fotos e fatos” há
depoimentos de pessoas que conviveram com o Padre Cícero, no qual retrata o sacerdote como uma
pessoa preocupada.
[...] ao chegar no Juazeiro em 1872 com sua mansuetude procurou associaro amor de Deus ao trabalho, proporcionando meios, ensinando novastécnicas e dando apoio material e moral. [...] Muitas vezes o levitacomparecia aos roçados, a fim de ensinar como o matuto deveria plantar.Fez vir de outras plagas determinadas sementes, dentre elas, a de milho,hoje conhecida como ‘milho do Padre Cícero’ [...] (BARBOSA, 2011, p.19).
Reforço essa ideia com Araújo (2005), ao pensar que,
[...] inserido em um Nordeste predominantemente rural, noqualencontravam-se presentes formas de relação de produção nãotipicamente capitalistas, como a utilização da mão-de-obra escrava, o Padreinseriu naquele espaço social um novo discurso, a partir do qual emergiamnovas práticas de trabalho, vinculadas à construção de um mundo melhor,mas igualitário e mais livre (p. 31).
É diante dessa vinculação de trabalho e fé que é construído uma herança espiritual que está
posta na cidade até os dias de hoje, sendo importante para a cidade de maior porte econômico do
interior do Ceará. É importante dizer isso, para que possamos voltar a tratar das cartas como trecos,
pois a pungência econômica da cidade fez e faz surgir uma quantidade imensa de trecos ligados a
imagem do Padre Cícero.
Agora, exploremos um pouco as cartas relacionadas no trabalho da Graça (2014).
Meu padrinhoAndo com o coração amargurado que só esta carta faz com que eu fiquemenos angustiado. São tantas as dúvidas que chego a pensar porque sempreestou a lhe escrever não só para lhe agradecer, mas para lhe pedir sempremais. E vós, em sua santidade sempre me ouve e alivia meus sofrimentos.[...] Fico confiante na esperança de que quando esta chegar em suas mãos asportas vão se abrir [...] (Anônimo. São Paulo 21 de outubro de 1993 – Cartanº 91).
As cartas, que aqui também podem ser vistas como trecos, agem como ponto dominante na
relação entre o indivíduo e o divino, pois a mesma é um elemento intermediário nessa relação
construída com o sagrado. É exatamente, nesse ponto dominante que encontro a relação com o treco
Padre Cícero estudado por mim, nesse texto.
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Como foi enfantizado, o treco pode ser qualquer coisa, desde que tenha a possibilidade de
interação cultural, e que nessa materialidade possa perceber uma relação além da materialidade.
Trouxe essa leitura das cartas, que também podem ser observadas e estudadas como trecos, para não
mais, prosseguir de forma solitária epistemologicamente, ou seja, há possibilidade de fazermos
novas leituras sobre os bens de consumo, e assim sendo, devemos pensar a materialidade como
elemento produtor de relações sociais e aquelas que são produzidas em cadeia. Tudo bem, já falei
isso aqui algumas vezes, mas sinto a necessidade de repetir às vezes que for necessário neste
trabalho.
Para continuarmos a discutir o treco Padre Cícero na perspectiva da cultura material é
importante dizer que as experiências religiosas dos peregrinos são construídas a partir de emoções e
sensações produzidas pela imersão do seu self nas atividades simbólicas e físicas da peregrinação,
como viagem, os rituais e o contrato com objetos e seres sagrados.
É notória a sensação de felicidade naqueles romeiros devotos que estão por aqui. Os
mesmo apresentam uma cidade dentro de outra, ou seja, uma cidade carregada e lembrada com
muito carinho, amor, afeto e fé. Todas as conversas obtidas ao longo do campo foram norteadas
para sensações de prazer, que os mesmos não encontrariam em nenhum lugar do mundo, que não
fosse aqui, na cidade do Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero.
A produção de elementos visuais ou táteis que possam expressar a memória emocional ou
corporal da experiência individual, no quadro de referências da tradição religiosa, se impõe como
um importante mecanismo disciplinar dos processos identitários desencadeados pela peregrinação.
A demanda por artefatos sagrados é gerada pelo próprio caráter experiencial da peregrinação, que
requer “marcadores de memória”, como objetos ou imagens, que constantemente reavivem e
permitam reviver a memória dessa experiência e que permitam que seus efeitos normativos e
existenciais durem por um longo período de tempo22 (PINTO, 2006).
Ainda segundo Pinto (2006), a produção de objetos para o consumo dos peregrinos leva a
uma mercantilização da tradição religiosa, aumentando a circulação e a difusão dos símbolos,
práticas e, mesmo, doutrinas, que são assim objetificados. Podemos perceber que há um reforço
carismático e afetivo que é sustentado pela tradição religiosa fazendo com que o treco Padre Cícero
haja no centro das atividades comerciais que são desencadeadas pelos romeiros (as) devotos (as)
que visitam a cidade.
O consumo do treco Padre Cícero é parte de toda composição da cidade e do
fortalecimento do personagem mais conhecido da mesma. Como já foi dito em outro momento, o
22 Para saber mais consultar o artigo Mercados de devoção: consumo e identidades religiosas nossantuários de peregrinação xiita na Síria de Pinto (2006).
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personagem mais importante da cidade é visto, de fato, em toda cidade, de várias formas e modelos.
Por isso, pensar o consumo do treco Padre Cícero, é se confundi com a própria vivência desse lugar,
pois boa parte das ações, comerciais, religiosas se conduz a partir do sacerdote.
A participação coletiva na composição dos elementos da tradição religiosa é vista em
vários depoimentos coletados através dos meses em campo. Aqui, destaco as vozes dos peregrinos,
conhecidos como romeiros (as) do Padre Cícero, que vem até a cidade em busca de algo que estão
além de suas vidas, como proteção, salvação, glória, honra e respeito ao “santo” padre. O José
Nilton da cidade de Casa Nova, estado da Bahia diz:
Rapaz... eu acho que... o Padre Cícero já é que nem um santo...rapaz...pramim é muita coisa. Já é importante demais... na hora que eu vejo a estátuadele... aaa... já... eu gosto demais... eu peço a Deus né... intersecção porDeus pra me ajudar em muitas coisas.
Novamente é citado o papel religar do Padre Cícero como outras divindades. Não
podemos deixar de lembrar que, na cidade, mais precisamente na Serra do Catolé, conhecida como
colina do Horto, há a maior estátua do Padre Cícero construída nesse país, inaugurada em 01 de
novembro de 1969, medindo 27 metros de altura, se constitui na terceira maior do mundo em
concreto, esculpida por Armando Lacerda em um local que era sempre escolhido pelo sacerdote
para os seus retiros espirituais. Existe uma estimativa que aponta a visitação ao monumento na
ordem de 2,5 milhões de pessoas por ano. De um lado fica o Museu Vivo e, do outro, enorme
quadro da ceia larga com 17x4m, enquanto a alguns metros está sendo construída a Igreja de Bom
Jesus do Horto.
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FOTO 13 - Estátua do Padre Cícero em Juazeiro do Norte
Fonte: Site da Prefeitura Municipal, 2016.
Evidentemente, há uma ligação entre a formação do lugar e os hábitos que foram
construídos nele, inclusive, o consumo do treco Padre Cícero, que está inclinado como agente
fortalecedor da tradição aos espaços de visitação, honrarias, encantamento e pedidos e desejos de
bênção, que estão presentes nesse lugar, nessa cidade.
Os votos ao Padre Cícero, entoam sobre os votos que são feitos ao treco Padre Cícero, por
meio de canções, oração, rezas, ladainhas, pedidos de cura e devoção. Sentir todo esse calor
desejoso das pessoas que tem o treco como algo sagrado é impressionante, mais do que isso, é
perceber que as coisas, os objetos, também fazem as pessoas, direcionando-as para uma vida de
respeito às tradições religiosas. Mais do que isso, o reconhecimento do treco como agente
fortalecedor de todas as relações que são desencadeadas a partir da vinda ao Juazeiro, é estar com
um “pedacinho do Juazeiro em sua casa”, é notar que a humanidade nunca esteve separada da
materialidade. Pelo contrário, a materialidade fortalece a humanidade, na medida em que
reconhecemos estarmos intrinsecamente ligados a cultura material em todos os aspectos de nossas
vidas.
Pensando nisso resgato uma das entrevistas que mais me marcaram nessa caminhada, a da
dona Maria José Gonçalo de Oliveira, da cidade Carpina, estado do Pernambuco. Quando fora
perguntada qual a significância do consumo, de ter, treco Padre Cícero em sua vida? Nesse
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momento há um misto de pensamento antes mesmo de ser entoada uma das respostas mais marcante
no campo para mim. Dona Maria de Oliveira olha para os lados, para a amiga, companheira de
viagem, nas muitas pessoas que estão ao redor da praça, e alguns curiosos que ao verem o gravador
aproximam-se para perguntarem do que se trata, e pensa nas mais de vinte viagens que já desses ao
Juazeiro, buscando a resposta ideal para a pergunta que se fez importante para si naquela ocasião.
Fiquei a pensar no que ela poderia me responder que não fosse parecido com aquilo que já escutara
nas minhas andanças pelo campo. Dona Maria de Oliveira voltou o olhar para mim e disse de forma
surpreendente:
3.1 SÍMBOLO RELIGIOSO: “A PROVA QUE SOMOS ROMEIROS”.
O ato de consumo do treco Padre Cícero não está no vácuo cultural. Há, ao contrário,
associação com a tradição religiosa, e as relações sociais que as pessoas têm com as coisas. Não
podemos negar a materialidade como agente que desenvolve a cultura, economia, tradição, hábitos e
costumes que são conhecidos e reconhecidos por citadinos e visitantes.
Outra ideia sobre o consumo do treco Padre Cícero pelos visitantes da cidade, romeiros do
Padre, é o pensamento sobre a representação que a estátua tem sobre a vida das pessoas. Como o
treco age na construção da representação do Padre Cícero para algumas pessoas? Advinda da cidade
de Serra Talhada, estado do Pernambuco, sobre o treco Padre Cícero a dona Maria de Lourdes fala o
seguinte:
Assim... não é questão de ter apenas uma estátua...é questão de você vênaquela estátua significado real...tipo...a presença...éééé...no caso padeCiço...presença do pade Ciço em você...não é questão...mesmo se eu nãotivesse uma estátua...se não tivesse comprado...mas eu acredito que a gentecolocou na cabeça que uma estátua...assim...na casa...próximo...representamuita coisa né...de forma tem que está no seu coração mesmo...não umaquestão de estátua né...
Nesse caso, o treco Padre Cícero assume uma relação de presença física e espiritual com as
pessoas. É nele que é depositada a presença real do sacerdote em suas casas e, ao mesmo tempo, é
no treco que está à relação de confirmação de fé e respeitabilidade através das orações e a presença
espiritual do Padre que representa. Segundo Miller (2013), o treco vem representar não só as cosias
individuais, mas todo o sistema de coisas, com sua ordem interna, fazendo de nós as pessoas que
somos. Eles são exemplares em sua humildade, sem nunca chamar atenção para o quanto devemos.
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Porém, a lição da cultura material é que, quanto mais deixamos de notá-la, mais poderosa e
determinante ela se mostra. Isso propicia uma teoria da cultura material que dá aos trecos muito
mais significados de que se podia esperar. Acima de tudo, a cultura vem dos trecos.
Para o autor, as coisas e sua materialidade são parte necessária do processo que nos torna
quem nós somos. O mesmo toma por base de análise para os estudos da cultura material as ideias de
Goffman (1975) e Gombrich (1985). Com o Goffman (1975) o comportamento humano é em
grande medida, determinado pelos quadros que constituem o contexto de uma ação, tal como uma
encenação. São “as deixas”, os objetos de cenas, o cenário e os adereços, que nos informam de
forma inconsciente se o desempenho da ação é ou não é apropriado. Isto se dá de forma
inconsciente.
O argumento de Gombrich (1985), quando uma moldura de uma obra de arte é adequada
ao quadro ela simplesmente se torna oculta aos olhos de quem a vê. E estas molduras nos passam a
maneira com que devemos enxergar aquilo que enquadra. Os objetos matérias são como um cenário
e/ou como uma moldura eles nos orientam e nos informam quais as práticas que são mais adequadas
e apropriadas para a atuação e a compreensão da ação. Portanto, quando menos houver consciência
da presença desses objetos em cena, maior será a influência que eles exercerão sobre as ações
desempenhadas e no seu convencimento.
Entretanto, é a partir da teoria de Bourdieu (2009) que o autor refina a sua análise da
cultura material a respeito de como as pessoas se tornam o que são e a enxergar o mundo da
maneira particular como fazem. O agente fundamental nesse processo de sociabilidade são,
novamente, os trecos. Aprendemos a nos habituar com a ordem entorno deles. E, o mais importante,
somos educados com eles e através deles. Os nossos comportamentos, nossos corpos, nossos
sentimentos e até os nossos sonhos passam por uma “domesticação” mediada pelos tais objetos.
Crescemos admitindo as normas que os objetos nos impõem.
Pensando nisso passaremos a discutir os significados do treco que foram apontados pelos
visitantes que vem a cidade de Juazeiro do Norte. Lembrando que em uma sociedade de consumo, o
significado cultural se move incessantemente de forma processual, de um para o outro, ou seja, o
significado cultural se move primeiro do mundo culturalmente constituído para os bens de consumo
e desses para o consumidor individual.
O processo de consumo através da perspectiva da significância cultural é dinâmico e
recíproco produzindo simultaneamente criador e criatura. A esse processo, Miller (2013) dá o nome
de objetificação nos quais objetos e sujeitos se misturam. Assim, esses trecos podem se tornar
opressivos a tal ponto que podemos esquecer de que um dia nós os criamos. Esta é uma contradição
inerente aos trecos.
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Outra discussão fundamental que seu livro traz é sobre a materialidade. Ela diz respeito
tanto aos significados de materialidade quanto às suas implicações. A questão da materialidade das
coisas está presente, como coloca Miller (2013), nas religiões, sobretudo as do sul da Ásia como o
hinduísmo e o budismo, abarcando o próprio catolicismo. Essa questão é o que nos remete ao que é
aparente e superficial.
Segundo Miller (2013), a busca das religiões é transcender a materialidade do mundo em
busca da imaterialidade. É nesse contexto que a questão a ser buscada pelos pesquisadores, de
acordo com Miller (2013), é saber o que as pessoas dizem sobre a materialidade, quais são as suas
estratégias para escapar (de que ou quem?) e como elas empregam esta ideia na prática. Os
paradoxos da materialidade são demonstrados por meio das pesquisas empíricas: o imaterial que se
expressa pelo material, pessoas sem materialidade, as economias de objetos que não existem,
moedas que expressam de um lado as trocas seculares e do outro a divindade.
A observação desses fenômenos sociais é motivo para que seja dada mais atenção às coisas
e não ignorá-las como algo frívolo e de menor importância. Uma oposição entre sujeito e objetos
não é mais uma possibilidade para uma ciência social moderna. Não se pode condenar a
materialidade focando no idealismo. Temos que aceitar tanto a nossa própria materialidade quanto a
do mundo.
Assim sendo, o estudo da cultura material, ou seja, esse rearranjo da oposição entre
pessoas e coisas, entre sujeitos e objetos, não implica numa pretensão em se abordar verticalmente
os trecos, de maneira a colocá-los acima ou abaixo da humanidade, mas trata-se, antes, de situá-los
numa perspectiva horizontal, na qual humanos e coisas possam ser observados e percebidos a partir
das inúmeras relações entre eles. Isto representa jamais perder o foco nas coisas. A abordagem de
Miller (2013) pretende ir além dos estudos semióticos, onde os objetos materiais são considerados
apenas como signos e, assim, relegados a formas de comunicação.
3.2 O QUE SIGNIFICA O CONSUMO DO “TRECO” PADRE CÍCERO.
Nos discursos dos meus entrevistados, vários significados são dados ao treco Padre Cícero.
Alguns deles me chamaram mais atenção, como: tradição familiar, respeito, representação, santo
poderoso, lembrança de uma pessoa do passado, fé, glória, católica praticante, milagre, benção,
proteção, realização de pedidos, coração, idolatria, prazer, história, agradecimento à vitória, padre
santo, padre poderoso, promessa, santo na minha casa, representação da bênção de Deus, reza,
lembrança de Juazeiro, um santo que lutou pela pobreza e foi perseguido pelos nobres, símbolo
religioso, a prova que somos romeiros, intersecção por Deus, santo.
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Desse modo, quem dá significado ao treco são as pessoas que se apropriam da matéria
como algo para além de si mesmo.Podemos, ainda, dizer que é pelo consumo do treco Padre Cícero
que as pessoas vêm a se identificar com um projeto de vida, tendo aspirações voltadas para aquilo
que se deseja ao obter o treco.
No que diz respeito a estruturar, projetar e pensar toda uma vida em torno de algum
significado além de si mesmo, em função de bases religiosas, para Weber (1994), foi a base
religiosa que forneceu subsídios morais e racionais que serviram para o desenvolvimento do
capitalismo moderno, pois esse processo de busca de riqueza gerou uma mentalidade voltada para
os bens materiais via consumismo. Em função desse capitalismo moderno se deu o
“desencantamento do mundo” pelo afastamento da mentalidade comedida dos protestantes, onde as
relações sociais ficaram estritamente egoístas ocasionando a extinção dos valores humanos da
sobriedade e espiritualidade. A busca de riqueza, diferentemente do ascetismo, ganha “caráter de
prazer”, o hedonismo e o consumo de mercadorias serve às paixões puramente mundanas, ou seja, a
ostentação.
Para Baudrillard (1995), pode-se, com efeito, conceber o consumo como uma modalidade
característica de nossa civilização industrial. O consumo não é esse modo passivo de absorção ou de
apropriação, que se opõe ao modo ativo da produção para que sejam confrontados os esquemas
ingênuos de comportamento e de alienação, como afirmam os críticos da cultura de massa
consumista moderna.
É preciso que fique claramente estabelecido que, desde o início, o consumo é um modo
ativo de relação com a coletividade e com o mundo, e um modo de atividade sistemática e de
resposta à produção capitalista, no qual se funda todo o sistema cultural ocidental. Baudrillard
(1995) destaca que é necessário estabelecer claramente que não são os produtos materiais que são
objetos de consumo e resultantes da necessidade e da satisfação. Em todos os tempos comprou-se,
possuiu-se, usufruiu-se, gastou-se e, contudo, não se “consumiu”.
Os consumidores ascendem à condição de mercado não como simples lugar de troca de
mercadorias, mas como parte de interações socioculturais mais complexas, onde se destacam a
distinção e personalização simbólica dos objetos comprados. É nisso que atingimos uma das
significações do treco Padre Cícero. O consumo é notoriamente cultural, respeitando todo o
arcabouço simbólico, histórico e religioso do lugar.
Passamos a vê a variabilidade dos significados da prática de consumo do treco Padre
Cícero. Não. Antes devemos pensar que há uma necessidade de pensar o consumo enquanto estudos
de cultura material, através da especificidade de objetos materiais para, em última instância, criar
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uma compreensão mais profunda da especificidade de uma humanidade inseparável de sua
materialidade.
Para Miller (2013), a emergência de uma série de estudos que olharam para o potencial
produtivo do consumo através de um foco na transformação de mercadorias produziu uma literatura
extensa que se desviou do consumo como um objeto geral sociológico, e na direção da
especificidade de formas particulares de consumo e gêneros particulares de mercadorias. A virtude
de teorizar o consumo naquele tempo foi de que isso liberou o tópico de ser meramente um serviçal
na caracterização do capitalismo, e permitiu que se voltasse à sua especificidade, a qual, em muitos
aspectos também significou uma volta à sua materialidade. Se a teoria deveria ter algum uso
substantivo, esse sugeriria que há muitas maneiras diferentes pelas quais o consumo pode se
manifestar enquanto produção de grupos sociais e que esses tem de ser examinados um por um.
Há uma necessidade cada vez mais latente de produzir novos olhares e leituras sobre as
especificidades do consumo, pensando nos lugares que acontecem tais ações. Tendo por base as
entrevistas que foram feitas mediante o significado do treco Padre Cícero para os entrevistados,
nota-se que o treco Padre Cícero assume o papel dominante, ou seja, é o produtor das relações
sociais, entre ele mesmo e as várias pessoas que adquirem o bem. O treco aqui é o agente-chave, é
um dos elementos que estruturam a ligação entre o indivíduo e o mundo. Sendo importante pensar
que há uma variabilidade nas relações sociais, no que diz respeito de como elas são construídas em
relação ao treco Padre Cícero.
Tais relações sociais são construídas a partir de sentidos e funções diferentes, que algumas
são: tradição familiar, respeito, representação, santo poderoso, lembrança de uma pessoa do
passado, fé, glória, católica praticante, milagre, benção, proteção, realização de pedidos, coração,
idolatria, prazer, história, agradecimento à vitória, Padre Santo, Padre poderoso, promessa, santo na
minha casa, representação da bênção de Deus, reza, lembrança de Juazeiro, um Santo que lutou pela
pobreza e foi perseguido pelos nobres, símbolo religioso, a prova que somos romeiros, intersecção
por Deus, santo.
O treco assume um papel transformador, definidor, redefinindo, construtor e estruturador
das relações sociais que são estabelecidas através do consumo do mesmo. Nele (treco) é depositado
o ponto referencial ideal das relações sociais que são construídas, pois há um conhecimento e
reconhecimento do treco Padre Cícero como símbolo que se constrói baseado em sentidos humanos,
dos quais fenômenos naturais ou sociais dão sentido a sua existência individual e coletiva.
Portanto, o poder simbólico, em especial do treco, se constitui através da enunciação de
seus atores, participantes das práticas que são estabelecidas com o contato e ação sobre o mundo em
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que existe o poder constituinte. Fazer ver e fazer crer, confirmar ou transformar a visão de mundo,
permitindo o reconhecimento e conhecimento da força simbólica do treco.
Ainda sobre o treco investigado é importante salientar, segundo Berger (1983), que o ser
humano, comparado aos outros mamíferos, tem uma dupla relação com o mundo. Por um lado, o ser
humano está em um mundo que precede o seu aparecimento, por outro, esse mundo não é
simplesmente dado, é pré-fabricado para ele. Isto nos ajuda a pensar o modo como foi definida a
cultura na sociedade juazeirense, onde o pensamento simbólico em torno do treco “Padim Ciço”
acaba fornecendo as bases, os hábitus23 e costumes da cultura e sociedade local, ao mesmo tempo
em que os indivíduos o constituem continuamente. Há, portanto, uma adesão inerente ao indivíduo.
Ao treco Padre Cícero é dado aspectos místicos, sociais, são as experiências dos sujeitos
que visitam e estão inseridos nesse espaço que seus feitos, efeitos e atributos destacam-se, em um
cosmos cujas fronteiras entre sagrado e profano configuram-se borradas. O desejo de proteção se
faz no cotidiano de devotos, no dia-a-dia do romeiro (a) e do citadino, onde os mesmos se orientam
e constroem laços de proteção, afetividade e fé no “Padim Ciço”.
As entrevistas acerca da variabilidade de significados do treco Padre Cícero reforçam a
perspectiva da importância do estudo da cultura material. Segundo McCracken (2007), a localização
original do significado cultural que afinal reside o mundo dos bens de consumo é o mundo
culturalmente constituído. Trata-se do mundo da experiência rotineira, em que o mundo dos
fenômenos se apresenta, aos sentidos individuais, plenamente formados e constituídos pelas crenças
e premissas de sua cultura. A cultura constitui o mundo dos fenômenos.
Ainda McCracken (2007), cada cultura estabelece sua própria visão particular do mundo,
assim, com que entendimentos e regras sejam apropriados num contexto cultural e absurdamente
impróprios em outros. Uma cultural estabelece um conjunto privilegiado de termos dentro do qual
nada parece estranho ou ininteligível para o membro da cultura e fora do qual não há ordem,
sistema, premissa segura de compreensão imediata. Ao investir o mundo de seu próprio significado
particular, a cultura “constitui” o mundo. É de um mundo assim constituído que decorre o
significado destinado aos bens de consumo.
Para isso, o treco padre Cícero está categorizado dentro de uma matriz conceitual de um
mundo culturalmente constituído. Essa categorização determina como esse mundo será construído
em parcelas distintas e inteligíveis, e como essas parcelas serão formadas e organizadas dentro de
23 O conceito de“habitus”foi desenvolvido pelo sociólogo francêsPierre Bourdieu com o objetivo de pôr fimà antinomia indivíduo/sociedade dentro da sociologiaestruturalista. Relaciona-se à capacidade de umadeterminada estrutura social ser incorporada pelos “agentes”por meio de disposições para sentir, pensar eagir.
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um sistema maior e lógico. A gratidão, tradição e fé são categorias que podem ser elencadas, no que
diz respeito ao consumo do treco Padre Cícero.
A gratidão que é vista a partir das falas de alguns romeiros devotos, como reconhecimento
pelos dias, ou, pelos próximos dias de saúde, paz e revigoramento da fé individual e familiar. O
reconhecimento dos laços sociais com a entidade divina, representante de Deus aqui na terra. Essas
situações aparecem nos discursos dos entrevistados de forma sucinta e delicada, mas, que reforçam
os sentimentos afetivos nutridos a cada viagem, a cada consumo do treco Padre Cícero.
Através dos discursos dos nossos entrevistados, entendemos por "tradição" a relação
pretendida e construída entre a família, a lembrança de um ente querido que já se foi, que não pode
mais fazer a viagem para o Juazeiro do Padre Cícero. O reforço dos ritos que aparecem nas visitas a
lugares sacros, no consumo do treco Padre Cícero e na relação com os espaços percorridos em dias
de visitas.
Por fim, a fé que alimenta, dá força, prova a todo instante a vontade de estar aqui,
agradecendo, pedindo e construindo laços permanentes com a entidade de devoção. Portanto, as
categorias gratidão, tradição e fé aparecem aqui no texto como dádivas, ou seja, relação de trocas
simbólicas. Dito isto, a melhor maneira de entendermos, transmitimos e apreciarmos a humanidade,
é dando atenção a nossa materialidade fundamental. (MILLER, 2013. p, 10).
Para McCracken (2007), os objetos contribuem para a construção do mundo culturalmente
constituído justamente porque registram de maneira vital e tangível um significado cultural que sem
eles seria intangível. Com efeito, não é exagero dizer que os objetos têm uma função
“performativa”, na medida em que dão ao significado cultural uma concretude que ele do contrário
não teria para o indivíduo. O significado cultural que organize esse mundo torna-se parte visível e
demonstrável de tal mundo por meio dos bens, ou, dos trecos.
Podemos ver o treco Padre Cícero a partir da oportunidade de fazer uma leitura do mundo
culturalmente constituído, de dá matéria a uma cultura. O treco permite que os indivíduos
discriminem, especifiquem de forma materializada alguns significados da sua cultura constituída
por princípios culturais. Esses princípios culturais são as premissas iniciais que possibilitam os
fenômenos culturais, para que sejam distinguidos, classificados e inter-relacionados.
Por vezes os princípios culturais dos lugares (e aqui, tratamos das bases constituintes da
cidade de Juazeiro do Norte, já mencionadas no texto) são conceitos norteadores do pensamento e
ação dos indivíduos perante os trecos que são construídos, reforçados, reinventados, e que são
expressões de todos os aspectos da vida social das pessoas que acolhem, respeitam, veneram, oram,
rezam e honram o personagem Padre Cícero Romão Batista e sua história conhecida e reconhecida.
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Com isso,trago mais um relato acerca do significado do treco Padre Cícero, para a senhora
Marilene de Santana Nunes da cidade de São Brás, estado de Alagoas.
AH! É mesmo que tá meu pai... minha mãe...meu pai tá junto de mim alisabe...então quando eu me acordo ô meu padrinho me abençoe me ajude queeu volte lá novamente...vai e volte com saúde e deixe também meusfamiliares com saúde...GRAÇAS A DEUS. Ói... eu vim pagar sabe quantaspromessas? Ontem eu paguei três que eu fiz, de outra vez que eu vim pagueiuma dessa mão que quebrei... eu tenho sessenta e seis anos...quando euquebrei eu já tinha sessenta e cinco anos...aí quando eu fiz...aí todo mundoné...por que você já é uma pessoa de idade vai demorar a sarar...aí quandoeu fiz a cirurgia aí o médico foi e disse: olhe dona Marilene parece umacriança num instante sara...mas a senhora vai...mas a senhora não temdiabete com fé em Deus vai sarar logo...quando eu fui fazer a revisão...eu fizuma promessa pro meu padrinho Cícero...SE EU FICASSE BOA DAMINHA MÃO24...não tivesse aquelas dor nem leseira que dá...nem dóigraças a Deus sabe...aí eu trazia...comprava aqui uma mão pra dá a ele...pradeixar na casa do milagre e uma contribuiçãozinha que a gente também temque dá né...aí quando foi com um mês eu voltei lá pra fazer a revisão e foitirou o gesso né e quando botou na máquina para fazer o raio x...que eucheguei lá ele olhou pra mim e riu...aí disse: dona Marilene eu estouadmirado da idade da senhora parece uma criança...o braço já tá recuperadosem tortura nenhuma. Eu digo: a fé que eu tenho em Deus e meu padrinhoCícero e ele deu risada e disse: é mesmo dona Marilene a fé cura mesmo. Equando eu fui... na minha cidade não tem médico...fui pra outra cidade...fuiaté com ela (aponta para a parceira ao lado)...fui pedindo a Deus que nãoprecisasse eu ir pra Aracaju...Aracaju é muito longe...e pra onde a genteia...é que nem você vai muita gente...o hospital é muito bom...mas ademanda é grande né...não tem como. Tenho fé em Deus e meu padrinhoCícero que eu vou encontrar um médico em Propiá que ele vai fazer minhacirurgia... foi Deus mesmo que botou aquele médico né. Então a gente sótem o que agradecer a Deus né... eu não venho porque não é para fazercompra não...só venho porque eu tenho fé em Deus e meu padrinho Cícero.
O treco Padre Cícero torna-se o intercessor, aquele agente responsável pela união, com as
forças divinas. É nele que é depositado crença, fé, arraigado a algum desejo individual ou coletivo.
O treco é a superação da não presença de entes queridos que já se foram, é a transformação da
gratidão pela fé, por pedidos e graças alcançadas, relacionadas a vários aspectos da vida. O treco
está além da compreensão individual, o mesmo é marcado por várias facetas e depoimentos que
reforçam sua importância para além da materialidade.
Vejamos a entrevista da Citália de São Bento do Uma, do estado do Pernambuco, ainda
acerca do significado do treco Padre Cícero.
24 No momento da fala, a senhora Marilene mostra suas mãos com movimentos para cima e para baixo,aperta-as demonstrando está curada da enfermidade.
72
A mãe é devota né... aí já...inclusive esse ano a gente já veio pagar umapromessa da minha mãe...porque a gente pede para ele interceder pelagente...pela família da gente...e graças a Deus a gente sempre foiouvido...todos os milagres...pode dizer que são milagres...foram concedidos.
Lembro que a Citália era uma jovem de pouco mais de 20 anos, e que toda a nossa
conversa fora pautada a partir do momento que pergunto para ela: quantas viagens já desses ao
Juazeiro? A mesma responde rapidamente, com um olhar de satisfação e diz: “bom... eu não sei,
tenho vinte e três anos... a gente vem uma vez por ano, tem ano que a gente vem mais de uma vez
por ano... aí eu não sei. Venho aqui desde vinte e oito dias de nascida”. No caso da Citália, a viagem
sempre se faz em família, como a mesma diz: “é tradição”.
Novamente aparece nas falas dos entrevistados, a ideia de intersecção, tradição familiar, e
ainda o crédito de fazedor de milagres. A crença, a fé, ligada ao anseio de mudança, o pedido de
bênçãos, promessas feitas em função de graças a alcançar, o vir descarregar o peso de todo o ano de
sacrifícios e muito trabalho, de algumas perdas e ganhos, dentre outros efeitos, dão alicerce para
construção de princípios culturais, construídos a partir de um mundo cultural construído
diariamente, seja em períodos de grandes aglomerações de romeiros na cidade, ou, para os
citadinos.
Já para Silmara, da cidade de Belém do São Francisco, no estado de Sergipe, o treco Padre
Cícero significa:
Então... proteção. Nós somos de uma família muito religiosa e acreditamuito... assim...em santos que eles protegem entendeu...qualquer coisa que agente tá passando por aperto...por algum aperto ou coisa parecida...vamoslá...a gente vai lá ajoelha pede...ter fé...com fé...tendo fé acho que é tudo.
Aqui o treco Padre Cícero, estabelece uma conexão com o indivíduo, sendo o agente
protetor, escutador e solucionador de problemas, apertos, que porventura alguém possa passar.
Segundo a Silmara, todas as vezes que vem ao Juazeiro, ela leva o treco Padre Cícero e muitos
parentes e amigos levam também como recordação do Juazeiro, ou levam para vizinhos e
conhecidos que não puderam vir.
Há uma infinidade de motivações para que as pessoas consumam o treco Padre Cícero.
Diante de uma variabilidade muito grande de motivações para o consumo do treco, entendo que não
se pode ou não há necessidade de se tentar construir uma definição de por que se consome o treco.
73
Percebo que qualquer tentativa de construção, de sistematização do consumo do treco Padre Cícero,
corre-se o risco de cair em armadilhas metodológicas.
Entendendo que o mundo culturalmente estabelecido nessa cidade, Juazeiro do Norte,
abraça inúmeras causas, desde religiosas, míticas, místicas, econômicas, políticas, de interesses
diversos e por vezes momentâneos, passamos a discutir, no capítulo seguinte, o porquê da vinda ao
Juazeiro e o que o treco Padre Cícero provoca nas pessoas a partir da perspectiva da dádiva.
74
4CAPÍTULO III - BENS TROCADOS: DÁDIVAS E TROCAS NO JUAZEIRO.
A proposta desse capítulo é demonstrar a possibilidade do consumo do treco como dádivas
trocadas, a partir da teoria da dádiva construída por Mauss (2011). Aqui, pensamos como as três
obrigações, o dar, receber e retribuir pode agir sobre o consumo do treco Padre Cícero pelos
romeiros devotos. Portanto, a compreensão se dá pelo sistema de trocas na vida social.
Na vida material e moral, a troca funciona aí sob uma forma desinteressada e obrigatória
ao mesmo tempo. Além disso, esta obrigação exprime-se de maneira mítica, imaginária, ou, se se
quiser, simbólica e coletiva: assume o aspecto do interesse ligado às coisas trocadas: estas não estão
nunca completamente desligadas dos seus agentes de troca; a comunhão e a aliança que elas
estabelecem são relativamente indissolúveis. Na realidade, esse símbolo da vida social – a
permanência de influência das coisas trocadas – não faz senão traduzir bastante diretamente a
maneira como os subgrupos dessas sociedades segmentadas, de tipo arcaico, estão constantemente
imbricados uns nos outros, e sentem que se devem tudo (MAUSS, p. 106).
É claro que nas ciências sociais ao longo das décadas muito se tem discutido sobre as
correntes teóricas e campos do saber, sobre a existência social vinculada as soluções materiais, ao
dinheiro e a economia utilitarista. Poderíamos resgatar, contudo, a discussão sobre fenômenos
presentes na esfera simbólica das relações sociais. Portanto, tal questionamento me leva a uma das
principais teorias já desenvolvidas nas ciências sociais acerca da complexidade da ação social, a
teoria da dádiva, que por sua vez, me conduz a herança deixada por Mauss (2011).“um presente
dado espera sempre um presente de volta”. A dádiva tem foco no caráter voluntário, aparentemente
livre e gratuito, e, no entanto obrigatório e interessado. Uma arqueologia das transações humanas,
composta por três obrigações: dar, receber e retribuir.
Diante da tentativa de elucidação do mundo da cultura material ligado ao treco Padre
Cícero, e a materialidade intrínseca as relações humanas, venho trazer o pensamento de Marcel
Mauss sobre a “dádiva” (2011), no qual o papel do objeto, ou, como estamos a tratar, do treco, é,
também, dominante na perspectiva das relações sociais. É importante dizer que a leitura sobre a dádiva de Mauss para a nossa pesquisa parte do
consagrado Ensaio sobre a Dádiva (2011), onde em um mundo em que a desigualdade econômica é
tão marcante, a releitura do paradigma da dádiva poderia anunciar outras possibilidades de relações
sociais que não as marcadas pelo lucro e pela desigualdade? Sobre dádiva devemos entender tudo
que circula na sociedade que não está ligado nem ao mercado, nem ao estado. É, também, o que
circula em prol do ou em nome dos laços sociais. A dádiva não corresponde ao modelo mercantil,
75
sendo equivocado inseri-la no modelo de fins-meios. No modelo mercantil, a liquidação da dívida
torna-se sua base. A dádiva se baseia de forma contrária na dívida.
[...] uma dádiva feita por obrigação, por obediência a uma norma, éconsiderada de qualidade inferior. A moral do dever não se aplica àdádiva[...].Além disso, a relação da dádiva com as regras torna-a diferentedo paradigma holista, e igualmente do modelo individualista. Pois osmembros de um sistema de dádiva possuem uma relação muito particularcom as regras. Antes de tudo, as regras devem estar implícitas. Por isso, é demuito mau gosto deixar o preço num presente, ou aludir a ele.[...] existeuma tendência geral entre os atores de negar a obediência a regras nocomportamento da dádiva. Essa tendência chega até mesmo a negar aimportância da própria dádiva. Este é um dos mais estranhoscomportamentos da dádiva, à primeira vista: a negação da importância dadádiva por parte do doador (GODBOUT, 1998, p. 10).
A dádiva seria uma das rochas humanas sobre as quais são construídas as nossas
sociedades. Vale lembrar que a dádiva não se refere apenas a indivíduos, mas, são coletividades que
se obrigam mutuamente, em grupos, ofertas individuais e coletivas, trocas, pois os membros de um
sistema de dádiva têm relação particular com as regras. As regras estão implícitas, sendo um
equívoco deixar de aludi-las. Segundo Godbout (1998, p.8), existe liberdade na dádiva, “mas, não é o mesmo tipo de
liberdade que existe no mercado. A liberdade que se percebe aqui não se realiza na liquidação da
dívida e não consiste na facilidade, para o ator, de sair da relação; situa-se, ao contrário, dentro do
laço social, e consiste em tornar o próprio laço mais livre, multiplicando os rituais que visam
diminuir, para o outro, o peso da obrigação no seio da relação. A dádiva é um jogo constante de
liberdade e obrigação”.Vê-se que o estar em Juazeiro para muitos é um dever, ou, uma troca por graças concedidas
durante o ano que passara. O espaço da cidade do Juazeiro é tomado por um misto de obrigações a
visitas a igrejas, ao consumo do treco Padre Cícero, a orações e renovações de pedidos, e
fortalecimento de alianças com o principal personagem da cidade para que aconteçam viagens
futuras. Penso que no Juazeiro do Norte, e toda sua cosmologia fundante, baseada nos princípios
culturais ligados ao Padre Cícero (já dito anteriormente) que constroem e mantém a cidade, há o
sistema de dádiva. Penso a dádiva a partir da obrigação social ou moral de visitar a cidade,
incluindo consumo do treco Padre Cícero. A relação com a obrigação é o suporte, o núcleo da
dádiva, sendo praticamente impossível de observar de forma direta, em seu próprio movimento,
pois a percebemos sempre como regra social, tradicional e racional. Sabendo que a dádiva é um
gesto espontâneo socialmente vivido, a mesma é um movimento impossível de apreender, é uma
76
obrigação que o doador dá a si mesmo, obrigação interna, imanente. Assim, o consumo do treco
Padre Cícero insere-se no movimento da dádiva, na lógica da obrigação por doação, recebimento e
retribuição.É importante dizer que a lógica da obrigação supracitada, remete-se a outra lógica, a
antiutilitarista, chamado por Mauss (2011) de dom. Esta proporciona à ação social, uma dimensão
expressiva (mágica, sentimental, ritualizada), o que dá origem a uma complexidade e variedade da
existência humana. Para apoiar seu argumento, Mauss mostra que o sistema do dom, sob a forma do
ciclo de dar-receber–retornar, existe antes mesmo do mercado e do Estado como nós conhecemos
hoje, e continua a existir. Há uma dimensão moral a ser percebida no pensamento do autor, pois o
dom sempre se manifesta por meio de regras de honra, prestígio e de redistribuição de serviços e
presentes que obrigam mutuamente aqueles que participam do ciclo. Nesse sentido, a doação do tempo, ao alegrar-se em estar aqui no Juazeiro do Norte, o dom
de perceber a vida sem peso, com encantamento, com a riqueza espiritual proporcionada pela visita
à cidade, lugar de oração, de pagar promessas, de significância de tudo, missão, clareamento dos
caminhos, romarias. Uma parte considerável da nossa moral e da nossa própria vida permanece sempre nesta
mesma atmosfera da dádiva, da obrigação e ao mesmo tempo da liberdade. Felizmente, nem tudo
está ainda classificado exclusivamente em termos de compra e venda. As coisas têm ainda um valor
de sentimento para além do seu valor venal, supondo a existência de valores que sejam apenas
desde gênero. Não temos senão uma moral de mercadores. Restam-nos pessoas e classes que
mantêm ainda os costumes de antigamente e quase todos nós no sujeitamos a eles, pelo menos em
certas épocas do ano ou em certas ocasiões (Mauss, 2011. p. 195).
A dádiva em estar aqui no Juazeiro do Norte, de fazer mais uma viagem,com as graças do “Padim” para alguns visitantes (romeiros [(as)]) éacompanhada de uma euforia e da impressão de participar de algo diferente,que está acima da ordem das coisas, ou, das necessidades da ordem domundo material. A dádiva completa a si mesma, dá-se seu próprio início,meio e fim, pois “não é o sujeito que dá; este sujeito segue a dádiva”(Godbout, 1998, p.11).
Seguindo com Godbout (1998), a dádiva é uma experiência social fundamental no sentido
literal, de experiência dos fundamentos da sociedade, daquilo que nos liga a ela para além das
regras cristalizadas e institucionalizadas como normas de justiça. Sentimo-la passar em nós, o que
cria um estado psíquico especial. É isso que Mauss chamava de fato social total. Uma experiência
que concretiza a tensão entre indivíduo e sociedade, entre liberdade e obrigação.A liberdade de poder vir e a obrigação de estar no Juazeiro faz com que tenhamos a troca
de dádivas, ou, dádivas trocadas. Sobretudo, porque estar no Juazeiro faz parte da graça alcançada,
pedida durante todo o ano que passara, e que a mesma, é concretizada a partir do momento da
77
chegada à cidade. A partir de então, aqueles (as) que estão classificados dentro do sistema de
dádivas, há a obrigação do retorno, pois a graça dada, ou, o convite dado e recebido deve ser
retribuído com os esforços em fazer uma nova viagem, com orações, comportamento moral,
prolongamento da tradição durante toda a vida. As entrevistas que destaco se referem à ordem do sistema de dádivas, que podemos
traduzir dos meus vários entrevistados. Por exemplo, o senhor Evandro C. Felício da cidade de São
Bento do Uma, no estado de Pernambuco, diz o seguinte:
“Rapaz... uma das coisas principal que eu acho da minha vida é eu tercumprido minha missão...pagar minha promessa...e essa promessa é até ofinal da vida que eu tiver e puder vir aqui...sou feliz quando eu faço minhaviagem”.
No caso do Evandro, “cumprir minha missão” é não está em débito com a dádiva que
recebe todos os anos de está na cidade de Juazeiro do Norte. É pagar o débito, da graça pedida e
recebida da saúde plena, é alcançar a felicidade por fazer todos os anos sua viagem, é também,
agradecer a possibilidade física de vir, e em troca não medir esforços para que possa voltar “até o
final da vida”. Lembrando que, se para Mauss (2011, p. 212) “o que se troca não são
exclusivamente bens, riquezas, bens móveis e imóveis, coisas uteis economicamente. [...] Trata-se,
no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas”. Então, se
para seu Evandro o Juazeiro é lugar de “missão”, o treco Padre Cícero (que, segundo o mesmo,
todos os anossempre leva consigo uma peça) acaba sendo “uma grande referência”, e nisso estaria
sua justificativa para o consumo do treco, em que os efeitos do material e do espiritual se misturam,
podendo dizer que a coisa dada leva algo do seu doador.Outra entrevista foi com a Luísa, conhecida como Lusa, da cidade de Belém do São
Francisco, no estado do Pernambuco. Uma jovem de grande energia, com fala animada, cativante e
cheia de alegria com as pessoas que estão em viagem com ela. Segundo a Lusa estar no Juazeiro é:
AVE MARIA é um BÊNÇÃO... porque só na gente vim é só reza...a gentevem pra igreja...coisa que...assim...em casa...tem aquele dia que a gente saipra igreja...não é que nem aqui que a gente vai...não tem negócio debebedeira...essas coisas assim de frejo...aqui é só reza...só oração. É muitobom pra alma da gente... tudo...tá metido a gente entra...é bom.
Para a jovem Lusa, a ideia da desordem e do caos passa longe do Juazeiro, pois nesse lugar
não há espaço para “frejo”. Parece que ao receber a dádiva de estar aqui, se constrói a ideia de um
lugar perfeito, “bom para alma da gente”, aqui não há possibilidade de acontecer à desordem vista
na sua cidade de origem. Há notoriamente a necessidade da presença na cidade de Juazeiro do Norte
para receber a “bênção”, ou seja, todo o ciclo do sistema de dádiva impõe positivamente a
78
obrigatoriedade da presença. Na medida em que não há desordem ou bebedeira, há ordem e
sossego, pois por aqui não há a permissão para algo desviante. Na tentativa de deixar claro do que estamos a tratar, digo-lhes que a dádiva está situada em
uma mistura de liberdade e obrigação. Segundo Martins (2006, p. 05), Mauss compreendeu que a
vida social é essencialmente um sistema de prestações e contraprestações que obriga a todos os
membros da comunidade. Mas, entendeu, também, que essa obrigação não é absoluta na medida em
que, na experiência concreta das práticas sociais, os membros da coletividade têm certa liberdade
para entrar ou sair do sistema de obrigações. Havendo diferenciações no cumprimento da obrigação,
não podemos pensar a dádiva como um sistema estruturado, pois “há uma incerteza estrutural no
sistema de circulação de dádivas” (MARTINS, 2006, p. 06).Perante a ideia de incerteza estrutural, ou seja, o não enrijecimento do ciclo da dádiva,
perguntou-se aos entrevistados a seguinte questão: o que significa estar aqui no Juazeiro para você?
As respostas obtidas foram: romaria, bom para alma, encantamento, clareamento dos caminhos da
vida, pedacinho do céu, encontro, momento de paz, lugar abençoado, terra do Padre salvação, busca
de aprendizagem, culto com Deus, felicidade, paraíso, esquecer o que é ruim, renovação,
emocionante, tradição, família, tudo na vida, bênção, saúde, missão, alegria, fé, significa tudo,
realizar pedidos, pagar promessa, lazer, riqueza espiritual, oração.Diante do questionamento apresentado, percebemos que a dádiva não pode ser reduzida a
coisas particulares, sejam elas religiosas ou econômicas. Aqui vale ressaltar que a dádiva é
fundamento de toda sociabilidade e comunicação humanas, assim como sua presença e sua diferente
institucionalização em várias sociedades analisadas. Devemos sempre notar que o argumento
central do Ensaio é de que a dádiva produz a aliança, tanto as alianças matrimoniais como as
políticas (trocas entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas (como nos sacrifícios,
entendidos como um modo de relacionamento com os deuses), econômicas, jurídicas e diplomáticas
(incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade).Ainda sobre a dádiva, é dada a abordagem do caráter espontâneo, livre e gratuito, e, no
entanto, positivo, obrigatório e interessado, dessas prestações. São esses os princípios geradores
desta forma necessária de troca: "Que força existe, na coisa dada, que faz que o donatário a
retribua" (Mauss, 2011). Uma arqueologia das transações humanas em outras sociedades. As codificações feitas através de cada cultura sofrem desvios no sentido dos significados
linguísticos, e no caso do Juazeiro do Norte, a dificuldade da compreensão é aumentada por não
haver uma sistematização estruturada da dádiva. No entanto, é possível observar a presença
constante das três obrigações (dar, receber e retribuir) e do caráter da reciprocidade, dos bens
simbólicos e materiais, conhecido como dom ou dádiva. Ainda Martins (2006, p. 10-11), na perspectiva da dádiva, sociedade e indivíduo são modos
de manifestação do fato total, são possibilidades fenomenais que se engendram incessantemente por
79
meio de um continuum de inter-relações motivadas pela circulação do “espírito da coisa dada”
(mana, para Mauss), essas interdependências desdobra-se entre os planos micro, macro e
mesossocial. Ainda que exista objetividade, o sistema de dádiva só se realiza na prática, não
havendo a separação das relações particulares, o que nos dá a possibilidade de relações
variáveis.Dito isto fico a pensar no treco Padre Cícero contendo o “espírito da coisa dada”, ou seja,
que existe nessa materialidade algo além do ter, do consumo. Contudo, a diante iremos trabalhar
melhor tal posicionamento. Voltemos a algumas entrevistas para deixar claro a perspectiva das dádivas trocadas em
estar no Juazeiro do Norte. Trago-lhes a conversa agradável que tive com a Marilene de Santana
Nunes da cidade de São Brás, no estado de Alagoas. A mesma já fez esse trajeto cinco vezes, e já
levou o treco Padre Cícero para sua casa “várias e várias vezes”, e por ocasiões leva por encomenda
para sua cidade de origem. Ao ser indagada sobre o que qual o significado de estar no Juazeiro, ela
responde:
Ah menino eu não sei... a gente parece que... sei lá...a gente sente um alíviotão grande que parece você quando vem...você não vem com peso nascostas?...quando você entra no Juazeiro... quando você a vista a estátua jácomeça a alegria né...menino tudo é maravilhoso...tudo é só de bênção.Quando a gente entra na igreja parece que Jesus está aqui... daqui pra lá ficatudo...você vai voltar renovado. E essa daí (aponta para sua parceira deromaria) tem problemas de joelho e já foi para tudo quanto é canto aqui (jájájá é a voz da parceira)... e quando ela vai assim... ôôô cheguei na minhacasa...ô menia não to aguentando o joelho que esse joelho...aqui não...bateuumas pedras...as pedras tudinho e aqui não...graças a Deus. Sobe escada...desce escada e aqui não tem...graças a Deus. É uma maravilha mesmo estáaqui no Juazeiro... só as bênçãos de Deus e do meu padrinho Cícero que agente tá qui...é uma glória mesmo do pai.
Há dois aspectos importantes na fala acima a serem destacados a partir da perspectiva do
sistema de dádivas, a ideia de renovação e de paraíso. A renovação é dada desde a chegada a cidade,
valendo toda a doação do sacrifício da viagem para que se possa buscar a alegria e as bênçãos das
divindades citadas, pois só aqui é possível receber tais bênçãos, na terra do “Padim”. O paraíso
citado é onde tudo é dado como dádiva, onde nada de ruim irá acontecer e todas as curas são dadas
com as graças que são merecidas por todos que aqui vieram. Aqui o valor importante não é
quantitativo, não importa quantas vezes veio em um ano, o que importa é vir ao menos uma vez,
pois o retorno não será dado necessariamente de forma instantânea (senão corre-se o risco da ação
ser interpretada como uma equivalência que levaria à ruptura da interação).
80
O presente, da cura de enfermidades, de boas chuvas no sertão, que nada de ruim aconteça
durante o ano, de fartura na roça, de saúde plena, da riqueza espiritual, pode ser retribuído em outro
momento, assim, faz-se circular a moagem das práticas sociais e experiências de vida entre aqueles
que estão envolvidos. Como sugere Martins (2006, p. 12-19), a dádiva está presente em todas as
partes e não diz respeito apenas a momentos isolados e descontínuos da realidade. O que circula
tem vários nomes: dinheiro, carro, imóveis, roupas, mas também sorrisos, gentilezas, palavras,
hospitalidades, presentes, serviços gratuitos.
Sendo assim, a dádiva é, por natureza, uma regra ambivalente, que permite ultrapassar a
antítese entre o eu e o outro, entre a obrigação e a liberdade, entre o mágico e o técnico. Na dádiva,
participam a obrigação e o interesse, mas também a espontaneidade, a liberdade, a amizade, a
criatividade. Por isso, para a senhora Maria Angélica Freitas de Oliveira, da cidade de Itaporanga
D’Ajuda que fica pertinho de Aracaju, menos de uma hora de viagem, segundo a dona Maria, que
não tinha o treco Padre Cícero em casa, usava a criatividade para manter a relação de troca firmada
com o Padre Cícero, segundo ela:
Sou devota dele... mas nunca adquirir a imagem dele. Inclusive eu já pediuma graça a ele... e ele deu. E alcancei... passando de ônibus todos os diaseu pedi a ele... eu vi um rapaz que tinha uma grutazinha... uma capelinhaassim... uma oficina de carro e eu olhava e pedia todo dia que ele me tirassedaquele trabalho e arranjasse um trabalho melhor mais perto de casa... e derepente eu conseguir. E eu agradeci a ele por ele ter conseguido essa graça.E esse ano mais uma vez ele me deu essa oportunidade de estar aqui maispróximo dele... porque eu me aposentei... e eu pedi a ele... se eu meaposentasse... conseguisse me aposentar eu viria aqui no Juazeiro. E derepente surgiu assim... a chance de vir e eu não perdi a oportunidade.
Nesse caso, a manutenção do sistema de dádivas se dá através das sensações provocadas,
do sentimento construído, contato e influência de outros.A sociedade, nessa perspectiva relacional, é
um fenômeno social total, porque ela se faz primeiramente pela circulação de dádivas, considerados
símbolos básicos na constituição dos vínculos sociais.
Acrescento a isso, no caso do Juazeiro, fé, crença, bênção, salvação, busca de
aprendizagem, encantamento, oração, lazer, clareamento dos caminhos da vida, realização de
pedidos, missão, momento de paz, tradição familiar, renovação, pedacinho do céu, paraíso, riqueza
espiritual, pagar promessa, tudo isso se traduzindo em um sistema de circulação de trocas dádivas
não sistematizado estruturalmente. Devemos entender que aquilo que circula influi de forma
decisiva na construção e formação dos indivíduos envolvidos e na forma de como são definidos os
81
lugares. Nisso a dádiva pode aparecer de forma múltipla estando de acordo com as práticas sociais.
Para Mauss,
Os fenômenos sociológicos são fenômenos para a vida – na medida em quehá apenas sociedade “entre seres vivos” – diferentemente dos animais, ohumano se caracteriza pela presença da vontade, da pressão da consciênciade uns sobre os outros, das comunicações de ideias, da linguagem, das artesplásticas e estéticas, dos agrupamentos e religiões, em uma palavra,complementa, das “instituições que são os traços da nossa vida em comum”(2003: p. 319-320).
Para o fenômeno demonstrado ao longo do texto, podemos dizer que são as pessoas de vida
simples e comum, de rostos sofridos pelo tempo, ou, pela vida escassa de recursos materiais, das
viagens longas e difíceis, com pouquíssimos recursos financeiros, mas, com a alegria, felicidade e
esperança que depois de dias em Juazeiro, pode alcançar a graça de vir coisas melhores para família
e amigos. São essas pessoas que fornecem toda a possibilidade, de acordo com suas práticas sociais
e formação da coletividade, da construção do sistema de dádiva. No fundo, são misturas.
Misturam-se alma nas coisas; misturam-se coisas nas almas. Misturam-se as vidas e eis como as
pessoas e as coisas misturadas saem, cada uma, das suas esferas se misturam: o que é precisamente
o contrato e a troca (Mauss, 2011, p. 90).Além disso, as pessoas sentem que devem tudo às entidades, especificamente, ao Padre
Cícero, que é o intermediador de Deus na terra. A vida faz sentido, quando se paga uma promessa,
ou, se estar no paraíso, até mesmo levar um “pedacinho do céu”. Troca-se a liberdade pela
obrigação de se estar aqui no Juazeiro. Obrigação implícita, mítica, imaginária, simbólica e coletiva.
Assume-se o interesse das coisas trocadas, e o fortalecimento da aliança que estão praticamente
ligadas para todo o sempre. Podemos dizer que tal aliança, é fato marcante, ou, um símbolo na vida
desses indivíduos, que permanecem sobre a influência das coisas trocadas, traduzindo como tais
grupos se comportam diante da sociedade.
4.1 DÁDIVAS SAEM DO JUAZEIRO COMO “TRECOS”.
Durante toda a caminhada no campo, vi, observei, conversei com pessoas de várias cidades
e estados desse Brasil imenso e culturalmentediverso. No caso do Juazeiro, nada as deixariam mais
felizes do que a oportunidade de estar novamente na referida cidade. Por vezes, perguntava aos
meus entrevistados: voltaria ao Juazeiro? E todas as respostas eram afirmativas e diversificadas em
seus interesses, motivações, promessas cumpridas e pedidos a serem feitos. Algumas respostas
foram: pretendo voltar a esselugar abençoado... me sinto bem, enquanto Deus me dê condição, com
82
saúde votaria sempre, se Deus quiser, se para o ano for viva, com certeza, oxente... só deixo quando,
todos os anos que Deus permitir, com a intersecção do Padre Cícero estarei aqui, tradição, familiar,
enquanto estiver viva estou aqui, peço a Deus, Padre Cícero e nossa Senhora das Dores que sim,
varias vezes, é o único lugar que viajo com a família, vem de família, só deixo de vir quando
morrer, voltarei todos os anos, jamais deixarei de vir, com fé em Deus e nossa Senhora, meu Pade
Ciço quiser.
Vê-se que as motivações sociais e o simbolismo são presentes no cotidiano daqueles que
estão envolvidos dentro do sistema da dádiva. A volta ao Juazeiro está para a demanda da dádiva,
assim como, os interesses e motivações estão para os indivíduos abarcados. Voltar à cidade é ter
certeza que foi obtido bênçãos das entidades divinas inseridas, é compor mais um ano de tradição
familiar, é em troca de mais um ano de vida, vir novamente agradecer. Estar vivo, com saúde, é
graças à fé inabalada, que sustenta e dá mais uma oportunidade de fazer a viagem. Mas, é
necessário haver uma querência do Padre Cícero, Nossa Senhora das Dores ou do próprio Deus,
para que tenha a possibilidade da volta. É essa a dádiva recebida, que é agradecida e retribuída com
mais uma viagem.
Para tanto as dádivas não são trocadas apenas pela viagem em si. Há um elemento
importante na representação dessa ação, da troca, que é o treco Padre Cícero, pois é nele, muitas
vezes, que são depositados todos os agradecimentos e pedidos para que haja novamente a viagem.
O treco age como elemento de sustentação da promessa, pedidos e agradecimentos, nele é
colocado honraria, pois está sempre em um lugar visível dentro das casas. Não é simplesmente
“levar um pedacinho do Juazeiro”, há uma necessidade de demonstração coletiva, de guardá-lo com
significado especial. A senhora Silmara da cidade de Canindé de São Francisco, no estado de
Sergipe, diz que “no quintal tem um altazinho com água caindo entendeu... tudo bonitinho...você
tem seus momentos que você vai lá quer falar com Deus mais presente...você vai lá,
ajoelha...pedindo a proteção divina”.
Ter o treco é inserir-se no movimento da dádiva, na lógica da liberdade e obrigações por
desejos, pedidos e graças alcançadas. É ajuizar os laços contratuais com a sociedade e normas
externas. Os envolvidos no sistema de dádivas têm o dever moral para com algumas práticas
sociais. Entretanto, esse dever moral não deve ser algo agressivo, impositivo ou classificatório, o
mesmo, age acima dos indivíduos, de modo que a vontade sai do próprio ser. Essa moral vem da
religião, onde segundo Durkheim:
[...] a religião ensina que, acima do mundo em que vivemos e do qualfazemos parte, existe um poder moral de outro gênero, que nos domina, que
83
é superior a nós, e do qual dependemos. Porque nos é superior, tem tudoaquilo que é necessário para ser o legislador de nossa conduta, e nós somosapenas seus súditos. É o poder divino (DURKHEIM, 2006, p. 67).
Um Deus, ou, a entidade da qual o treco é espelhado, Padre Cícero, atua como amigo,
irmão, padre caridoso, curador dos pecados terrenos, tem tudo aquilo que o ato moral fraterno,
paterno possa agir sobre aqueles que estão envolvidos no sistema da dádiva. A moral se constitui a
partir da ação social dos indivíduos, não apenas em um único momento da vida, a sociedade
entranhar-se em todos os momentos, é a partir dela que prosseguimos com a ordem social moral25.
Por vezes a dádiva age como princípio vital aos organismos vivos, aos sistemas sociais
vivos, a mesma age através da cultura de forma estruturada. É na dádiva que temos uma das formas
de perceber o movimento do consumo ao treco Padre Cícero entre os romeiros que visitam a cidade
todos os anos, pois o consumo do treco Padre Cícero está para a retribuição das coisas dadas. Nessa
ação se retribui o respeito, as graças alcançadas, realização de pedidos, e a renovação da saúde para
mais uma viagem. É importante dizer novamente, que as pessoas se doam ao dar, e se as pessoas se
dão é porque devem algo ao Padre Cícero. As dádivas vão e voltam, havendo uma necessária
reciprocidade, na devolução e retribuição.
Dessa forma, entendemos que o treco Padre Cícero atua como dádivas que saem do
Juazeiro, ou, dádivas trocadas. Para o Gilvando da cidade de Salgado, no estado de Sergipe o treco
Padre Cícero faz “a gente lembrar e agradecer a vitória que Padre Cícero dá a gente né”. A
lembrança da vitória é a lembrança que algo está em débito, alguma coisa está destoando nessa
relação tríplice de dá, receber e retribuir. O débito precisa ser sanado com o consumo26 do treco e a
visita à cidade do Padre.
Os bens trocados fazem parte do sistema de dádivas, pois quando há o momento da volta
para casa, há o deixa-se um pouco de si no Juazeiro, e carrega-se consigo um pouco dos “momentos
de paz” que viveu na forma de treco. Ou quando se leva o treco e dá para alguém, é dito que: “o que
é de mais importante e sagrado para mim, eu trouxe para você”. A partir do momento em que há o
consumo do treco Padre Cícero, para ser repassado para outra pessoa, forma-se a reciprocidade
indireta, podendo ser seguido por tradição familiar ou gerações.
Assim, constrói-se a estrutura coletiva da reciprocidade indireta. Podemos dizer, também,
que a transmissão de cultura se dá através da reciprocidade indireta. Portanto, as dádivas se
25 Para saber mais, acessar Durkheim, Émilie (Trad. Raquel Weiss). O ensino da moral na escola primária.In: Novos Estudos. No 78. Julho/2007. p. 59 – 75. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/nec/n78/ 08.pdf.
26 Consumo no qual me refiro são bens trocados.
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estendem para além do território do Juazeiro do Norte, quando se leva o treco para ser dado a
outrem. As dádivas saem do Juazeiro quando as pessoas levam o treco Padre Cícero para suas casas.
A questão é que no consumo do treco há uma aceitação inconsciente de todo o sistema da
dádiva apresentada, na medida em que, os participantes se doam para receber em troca, para depois
retribuir consumindo novamente, fazendo outra viagem, visitações aos templos é reforçada a
perspectiva da dádiva, tornando-se um ciclo individual e coletivo, por vezes passado por gerações.
É exatamente o que o autor da teoria da dádiva pode chamar de fenômenos sociais “totais”.
Nesses fenômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los,exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas,jurídicas e morais – estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -;econômicas – estas supondo formas particulares da produção e do consumo,ou melhor, do fornecimento e da distribuição [...] (Mauss, 2003: p. 187).
Nesse caso, o treco do qual me refiro está para representação do fenômeno social total, a
partir das relações estabelecidas com os envolvidos. Essas relações se dão de várias formas,
religiosas, morais e de consumo particular que engendra e fortalece essas prestações totais. Para
Mauss (2011, p. 75), as dádivas aos homens e aos deuses têm por finalidade comprar a paz com uns
e outros. Desse modo entendemos mais uma das motivações nesse processo de troca de dádivas, ou
como as dádivas saem do Juazeiro do Norte. As dádivas são trocadas por haver sacrifício-contrato,
isso implica em dizer que a qualificação da dádiva está na forma de relação social, sobretudo na
universalidade da tríplice obrigação “dar, receber e retribuir” que permite a construção do princípio
da reciprocidade.
Passamos a revisitar algumas entrevistas feitas durante o processo de construção do treco
como elemento fundamental dentro do sistema da dádiva. A dona Maria, da cidade de Belmonte, no
estado do Pernambuco, ao ser indagada sobre o treco Padre Cícero afirma que “Para mim eu
considero que é um santo né... pra mim é um santo que eu tenho na minha casa”. A senhora Maria,
da cidade de Caruaru, no estado do Pernambuco afirma “Olhe... pra mim...muito bom...por que...eu
gosto...eu gosto né. Eu me sinto bem quando rezo... e...faço pedidos pra mim...vai revigorando cada
vez mais”.
O senhor Rafael, da cidade de Aracajú, no estado do Sergipe, sujeito de fala mansa, que
parece estar sem pressa, contudo, atencioso e entusiasta romeiro, diz que o treco Padre Cícero
“Representa uma bênção de Deus... uma bênção de Deus”. Para o Paulo de Lima, da cidade de
Itabaiana, no estado do Sergipe, que trás sempre a família consigo, mulher e três filhos, há mais de
dez anos, diz que o treco Padre Cícero “[...]significa tudo...quando a gente tá meicoisado...agente
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vai e olha a estátua...a gente lembra de Juazeiro...de Padre Cícero...lembra de tudo...a gente se
acalma mais né.
Ao ser indagada sobre o que significa ter o Treco Padre Cícero em sua casa, a senhora
Maria de Lurdes Silva, da cidade Patos, no estado da Paraíba, com mais de trinta viagens ao
Juazeiro, diz o seguinte:
Olha... desde que eu conheci...desde que eu comeceivim...minhas...minhas...minha vó...minha mãe...dizia assim...que ele eranosso padrim...e eu tomei por padrim...a mãe Maria santíssima por mãe...eele pelo meu padrim...Eu já pedi...assim...eu nunca vim pra pedigraça...assim...interseção por ele...pedindo a interseção dele...como meupadrim...pra mim guiar no meu caminho...assim como ele era no caminho deJesus...eu quero seguir no caminho dele...mermo com meuspecados...minhaspequinez...com as minhas misérias...mas eu tôseguindo...venho se não tiver doente...mas se eu tiver boa...eutô aqui.
Notoque em todas as falas dos entrevistados há o reconhecimento do treco com a divindade
que o mesmo representa. Dessa forma percebemos inúmeras variáveis no que diz respeito às
dádivas levadas para suas casas. Os valores, os fins, os desejos, pedidos e interesses são
indetermináveis, contudo, isso não se constitui um problema na análise sobre a perspectiva da
dádiva. Indagamos como os indivíduos tomam suas decisões, uma vez que na análise do sistema da
dádiva, nas particularidades dos indivíduos que destoam ao movimento do Juazeiro do Norte,
podemos pensar a respeito de suas liberdades e obrigações para com as dádivas que saem na forma
de treco da cidade.
Levar o treco Padre Cícero para suas casas é lembrar a aquisição de uma graça, um pedido
atendido, e que uma das formas encontradas para a satisfação desse contrato é no consumo do treco.
Quando isso acontece, há uma aceitação de ambas as partes de que a partir daquele momento foi
selado um acordo eterno entre o que foi recebido e o que precisa ser retribuído. Dessa forma,
podemos entender de outro modo como às relações são determinadas pelas obrigações, dando-se
uns aos outros, estando submetido à lei de símbolos que são construídos e fazem circular através
dos indivíduos, produzindo suas individualidades e o conjunto social que estão envolvidos.Importa
dizer que aqueles que estão envolvidos no sistema da dádiva sentem-se prestigiados, valorizados e
honrados ao participarem dessas relações. Contudo, que força há na coisa dada que obrigue o
donatário a devolver?
As dádivas voltam, são recíprocas e necessariamente devolvidas. A obrigação de devolver
aparece para desmentir a gratuidade da dádiva. No caso do treco Padre Cícero em Juazeiro do
Norte, a força motriz do sistema da dádiva está diretamente acionado à divindade do personagem
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principal da cidade, Padre Cícero Romão Batista. Toda sua história é composta por elementos
religiosos que reforçam a ideia do “santo” instigado pelos romeiros que aqui veem fazer suas visitas
anualmente, pois aqueles romeiros devotos que aceitam o Padre Cícero, podem vir a compor todo o
sistema de dádiva, que é representado no treco, e levado para suas casas na forma de
prestígio,honra, liberdade e obrigação.
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5CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das várias possibilidades de investigação sobre o bem de consumo “treco Padre
Cícero”, eu optei a escolher a possibilidade de fazer a relação entre a teoria das coisas e a dádiva,
demonstrando que há uma relação entre o treco Padre Cícero consumido pelos romeiros devotos
que vão a Juazeiro do Norte, uma relação de troca simbólica obtida através desse mesmo consumo.
Considero o estudo realizado por mim sob a perspectiva da possibilidade de efetivação de
novos trabalhos sobre a temática abordada, pois não houve a pretensão de esgotamento de qualquer
ideia, ou mesmo um fechamento daquilo que fora exposto aqui. Ao contrário, com esse estudo,
busquei inaugurar um novo olhar investigativo sobre o consumo das estátuas do Padre Cícero pelos
romeiros devotos que vêm ao Juazeiro copiosamente.
Ao longo da investigação, tanto na dedicação de tempo às leituras como aos trabalhos de
campo e às análises dos dados produzidos, percebemos que algumas coisas mudaram desde o
projeto inicial até chegar a este resultado final, a dissertação. Alguns elementos foram introduzidos
no processo de investigação, ao mesmo tempo em que alguns se tornaram secundários e já outros
foram até mesmo esquecidos. Faz parte da pesquisa, que é feita de escolhas tanto teóricas quanto
metodológicas e é por isso que a ciência está em constante transformação.
A discussão aqui apresentada é resultado de observações, informações e entrevistas ao
longo de 03 anos, problematizando e buscando um novo olhar sobre o consumo das estátuas do
Padre Cícero. Acabamos por construir um texto no qual os romeiros devotos contam suas histórias
em torno de suas viagens ao Juazeiro, dificuldades, pedidos, graças alcançadas e o prazer de estar
na cidade.
Nosso objetivo foi o de propor um novo estudo e com isso as lacunas notadas a partir da
leitura do texto justificam-se pelo fato que o real é captado a partir de um conjunto de relações, de
elementos e particularidades dentro de um sistema social. Por isso, o fato de escolher um objeto de
pensamento requer adentrar estrategicamente no seu interior, na sua particularidade, mesmo que
seja dentro de uma totalidade que jamais alcançaríamos.
Durante o processo foi possível dialogar com vários autores, dos quais foram eleitos alguns
como pilares referenciais, os quais me deram a oportunidade de mostrar, ou pelos menos tentar
demonstrar, a possibilidade de uma nova leitura sobre as estátuas do personagem tal conhecido e
reconhecido de norte a sul do país, Padre Cícero.Tive um real prazer em conversar com todos os
romeiros devotos, que me apresentaram um “Juazeiro” que eu não conhecia,acesso a espaços da
cidade tão valorizados que, mesmo para um nativo da cidade como eu, não seria possível sem a
pesquisa de campo.
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Durante a caminhada, surgiu um novo fato que destaco como relevante para outras
pesquisas que possam vir. O fato registrado se refere à produção de garrafas pet de água mineral
(500 ml) com o formato característico do Padre Cícero. Totalmente transparente, a embalagem
representa Padre Cícero segurando uma bengala, e a tampa preta se assemelha com o chapéu
utilizado pelo Padre. E diante disso, destaco também a compreensão da dificuldade encontrada ao
propor esse fato como objeto de estudo, tal como o que propus, seja pela ausência de referências,
seja pela possibilidade defalha na sistematização das ideias aqui apresentadas.
Fica a contribuição dada por esse texto a partir da inserção de uma nova leitura sobre o
consumo das estátuas do Padre Cícero pelos romeiros devotos. Esse aporte se dá de forma primária
pelos estudos da cultura material, através da ideia do treco do Miller (2013) e da relação desse
mesmo treco com a dádiva de Mauss (2011). Apontando a necessidade de estudarmos as coisas a
partir delas mesmas, ou seja, das relações sociais que as coisas constroem conosco e em cadeia.
O treco transforma-se em dádivas trocadas, que é a forma de retribuição dos romeiros
devotos e que é capaz de manter o sistema de trocas ativo e atuante, sobretudo, a partir do consumo
do treco Padre Cícero. É nele, no treco, que é depositado essa relação, pois é possível observar
através das falas dos entrevistados (como foi visto no texto)que tal objeto exerce uma força
mantenedora dessa relação. Entendo que é no treco, no fato de ter em suas casas, romeiros devotos,
que possibilita o reforçar dessa relação. E que nem mesmo os romeiros devotos sabem explicar a
necessidade, grandiosidade da significância em ter o treco em suas humildes residências.
Portanto, deixo o entendimento de que é a partir do treco que é gerado a relação de trocas,
e nessas trocas simbólicas que acontecem as dádivas são trocadas.Dito isto, reforço a ideia de que
tudo é simbólico e que em tudo há reciprocidade.
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