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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO MILENA GADELHA CARVALHO RESPONSABILIDADE CIVIL E O ABANDONO AFETIVO NATAL/RN 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

MILENA GADELHA CARVALHO

RESPONSABILIDADE CIVIL E O ABANDONO AFETIVO

NATAL/RN

2013

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MILENA GADELHA CARVALHO

RESPONSABILIDADE CIVIL E O ABANDONO AFETIVO

Trabalho de Conclusão de Curso [artigo científico] como

requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito pela

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Orientador: Prof. Msc. Diogo Pignataro de Oliveira

NATAL/RN

2013

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PARECER

De acordo com a RESOLUÇÃO nº 01/2012 – CORDI, de 16 de março de

2012, do Colegiado do Curso de Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte que dispõe sobre a apresentação do

Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, componente curricular obrigatório para a

conclusão do Curso de Graduação em Direito, avalio o trabalho aqui apresentado,

sob a forma de artigo científico, e, considerando que este se encontra em

consonância com a legislação vigente e as normas da Associação Brasileira de

Normas Técnicas – ABNT.

Somos pela:

Aprovação ( ) e atribuímos a nota ___ ( ).

Não aprovação ( ) justificativa: _________________________________________.

Natal, 24 de junho de 2013.

Orientador Prof.

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RESUMO

Esse artigo tem por objetivo o estudo da aplicabilidade da responsabilidade civil nas

relações paterno-filiais, com enfoque para a possibilidade de reparação por dano

moral decorrente do abandono afetivo. Tal tema é fonte de controvérsias entre

doutrinadores, estudiosos do tema e até mesmo a jurisprudência. Nesse estudo,

analisa-se a entidade familiar e o princípio da afetividade que deve reger as relações

entre seus membros. É abordada, também, a importância dos pais no crescimento

da criança, assim como as consequências que a ausência da figura paterna pode

causar em seu desenvolvimento psicológico e emocional. É ressaltado que não é

todo e qualquer caso de filhos que crescem sem um pai presente que ensejam a

possibilidade de reparação. Para que reste configurada a responsabilidade civil é

necessária a caracterização de seus pressupostos no caso concreto, devendo-se

ficar evidente o dano causado, a conduta omissiva do pai que abandona o filho e o

nexo de causalidade entre eles.

Palavras-chave: Família. Responsabilidade civil. Abandono afetivo. Dano moral.

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ABSTRACT

This paper aims to study the applicability of civil liability in the parent-child

relationship, focusing on the possibility of compensation for moral damages resulting

from emotional abandonment. This issue is a source of controversy among scholars,

students of the subject and even jurisprudence. In this study, we analyze the family

unit and the principle of affection that should govern relations between its members.

It is also examined the importance of parents in the child's growth, as well as the

consequences that the absence of a father image can have on their psychological

and emotional development. It should be noted that not every case of children who

grow up without a father present that lead to the possibility of repair. For characterize

liability, it is essential to characterize all the assumptions in each case with evidence

of the damage, with the omission from the parent who abandons their child and the

causal relationship between the damage and the action.

Keywords: Family. Civil liability. Emotional abandonment. Moral damages.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................ 6

2. A FAMÍLIA E A INERENTE AFETIVIDADE: ESSÊNCIA DE UMA BASE

JURÍDICO-OBRIGACIONAL ............................................................................... 7

2.1 Principiologia do Direito de Família ............................................................... 8

2.2 Do poder familiar ........................................................................................... 11

3. ABANDONO AFETIVO E SEUS EFEITOS ..................................................... 13

4. FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM CASOS DE

ABANDONO EFETIVO ....................................................................................... 17

4.1 A responsabilidade civil e seus pressupostos ............................................... 17

4.2 Responsabilidade Civil. O dever de indenizar pelo abandono afetivo .......... 21

4.3 Aplicação dos Pressupostos da Responsabilidade Civil no Abandono

Afetivo ................................................................................................................. 27

5. CONCLUSÃO .................................................................................................. 31

REFERÊNCIAS ................................................................................................... 33

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1. INTRODUÇÃO

O Direito de Família atual está centrado no princípio da afetividade. Isso permitiu

a coexistência de uma pluralidade de entidades familiares, unidas não mais somente pelo

vínculo matrimonial, mas pelo afeto entre seus integrantes.

À medida que se alargam as espécies de famílias, aumenta-se também o

rompimento das relações conjugais. O problema ocorre quando há filhos oriundos dessa

relação e, por inúmeras razões, o pai que não fica com a guarda deixa de cumprir com

seus deveres de pai, negligenciando o cuidado que deveria ser proporcionado ao filho.

Não é suficiente, no desenvolvimento das crianças e adolescentes, o mero auxílio

material; é fundamental a convivência com os pais, incluindo-se nesta as noções de

educação, afeto, atenção, cuidado. É no seio da família que os filhos se desenvolvem

moral, psicológica e emocionalmente.

O pai que se furta à convivência com os filhos e é omisso quanto aos demais

deveres decorrentes do poder familiar, tem aptidão de causar prejuízos na formação

saudável deles, podendo gerar danos psicológicos e emocionais.

Diante desse contexto, a questão que se coloca é se é possível a caracterização

do abandono afetivo como fundamento ensejador da responsabilidade civil e consequente

dever de indenizar. Tal questionamento tem sido levado ao Poder Judiciário, havendo

julgamentos tanto pela não concessão quanto pela condenação à indenização por danos

morais em decorrência do abandono, ainda que o pai tenha se desincumbido do ônus

alimentar.

Recentemente, o tema ganhou forte repercussão na sociedade e imprensa com a

decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, em sede de recurso especial,

manteve decisão condenando um pai a indenizar a filha pelos danos oriundos do

abandono afetivo de que foi vítima. Foi a primeira vez que o STJ se manifestou nesse

sentido. Esse entendimento, contudo, não é pacífico, sendo tema de discussões

doutrinárias e jurisprudenciais, o que revela a necessidade de maiores estudos e

pesquisas na área.

O presente trabalho pretende abordar a temática da responsabilidade civil no

abandono afetivo, com exposição da doutrina sobre o assunto, bem como colacionar

alguns julgados relevantes. É necessário, antes, dois esclarecimentos. Será aqui utilizado

o termo pai para se referir ao ascendente ausente, tendo em vista as ações já ajuizadas o

terem sido contra o pai, pois na maioria dos casos de divórcio o filho fica sob a guarda da

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mãe. Além disso, é importante destacar que a relação de filiação estudada engloba tanto

a formada por laços sanguíneos, quanto a advinda da adoção.

2. A FAMÍLIA E A INERENTE AFETIVIDADE: ESSÊNCIA DE UMA BASE JURÍDICO-

OBRIGACIONAL

A família é uma realidade sociológica, cujo conceito está em constante

transformação. Inicialmente fundamentada no casamento e chefiada pelo homem, hoje a

família tem conceito plural, incluindo-se várias espécies que merecem igual tratamento:

família matrimonial, família monoparental, a família constituída pela união estável, até

mesmo a homoafetiva.

A antiga concepção religiosa de família, sobretudo a do ponto de vista católico, a

consagrava como instituição que necessitava do amparo do Direito aos que nela se

vinculassem de forma legítima. Assim, a instituição se fechava em sua própria proteção e,

por consequência, de seu patrimônio. Essa finalidade protetiva fazia com que a família

fosse vista por um viés econômico, cujos entes eram unidos principalmente por laços

patrimoniais, com a finalidade de formação e manutenção do patrimônio para os

descendentes. Aos poucos, a família passou a se fundamentar em valores e princípios

totalmente diversos, como a igualdade, dignidade da pessoa humana e afetividade.

Segundo Maria Berenice Dias1,

o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado”.

O direito pátrio inicialmente não se ocupava da disciplina da entidade familiar,

justamente porque ela era vista como algo único e indivisível, sem nuances ou

detalhamentos maiores que a lei ordinária regulamentaria a respeito do casamento

matrimonial. Com a Constituição Federal de 1988, a família foi abordada de forma mais

efetiva, para se amoldar à nova realidade decorrente das modificações ocorridas na

sociedade e no âmbito familiar. Um capítulo foi

dedicado à Família, criança, adolescente e idoso, dentro do Título VIII, que trata da

ordem social, assegurando a proteção especial do Estado. Dentre as alterações trazidas 1 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 43

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pela nova carta, incluem-se o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres, o

princípio da pluralidade de entidades familiares e a proibição de distinção entre filhos

havidos no casamento ou fora dele.

Para José Afonso da Silva2,

A família é uma comunidade natural, composta, em regra, de pais e filhos, aos quais a Constituição, agora, imputa direitos e deveres recíprocos, nos termos do artigo 229, pelo qual os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, havidos ou não da relação do casamento (art. 227, § 6º), ao passo que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

Em face dos avanços socioculturais e especialmente após a Constituição Federal

de 1988, observou-se a primazia do vínculo do afeto nas relações familiares. Desde

então, não são apenas os laços biológicos ou genéticos que unem seus integrantes, mas

sim o afeto, elemento estruturador das entidades familiares contemporâneas. Com isso, o

direito de família ganha nova roupagem, passando a família a ser encarada como

entidade que deve objetivar o pleno desenvolvimento da personalidade dos seus

membros, por meio da assistência mútua entre eles, e sendo núcleo que tem como

pressuposto o afeto.

A família é a base da sociedade e goza de especial proteção do Estado (art. 226,

CF). É o berço onde são criados os filhos, onde eles se desenvolvem, aprendem regras

de convivência e formam sua personalidade. Por isso, é um ambiente que deve ser sadio

e equilibrado, cabendo aos pais proporcionar todos os meios para que seja alcançado o

bem-estar de seus integrantes.

É no seio familiar que são dados os primeiros passos para um desenvolvimento emocional equilibrado e que a criança seja um adulto bem estruturado. Uma adequada criação influenciará no futuro de uma pessoa. Todo o cuidado e dedicação que os pais há de terem com os seus filhos, ajudarão estes a criarem confiança e auto-estima. Quando os pais ensinam os valores primordiais a seus filhos, esse individuo terá mais chances de ser uma pessoa digna e de boa relação com outros indivíduos da sociedade. Por tais razões, a família é de muita importância no desenvolvimento sadio do ser humano, como preceitua o art. 226 da Constituição Federal: “a família é a base da sociedade”.3

2.1 Principiologia do Direito de Família

O princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado pela Constituição da

República em seu artigo 1º, inciso III, institui uma cláusula geral de proteção à pessoa,

devendo modelar todas as interações da vida humana, como as relações familiares. Esse

2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p. 775 e 776 3 ALMEIDA Priscila Araújo de. Responsabilidade civil por abandono afetivo. Disponível em: http://www.ibdfam. org.br/artigos/detalhe/829.

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princípio fundamental constitui alicerce das entidades familiares, na medida em que as

relações entre seus membros devem ser permeadas pelo respeito mútuo, de forma que

haja uma boa convivência entre eles. Como bem afirmou Claudete Carvalho Canezin, “a

dignidade constitui-se num fator primordial a formação da personalidade humana, sendo

essencial ao relacionamento paterno-filial”.4

Neste contexto, Schuh5 entende que: A dignidade da pessoa humana, vista sob uma acepção moral e jurídica, está intimamente ligada às relações humanas, as quais implicam um recíproco dever de respeito, para que as pessoas se sintam valorizadas, seguras no meio social as quais estão inseridas. No concernente às crianças, tem-se que o primeiro lugar onde estabelecem relações sociais é no seio da família, a mais importante instituição na formação do ser humano; é inaceitável que a paternidade não seja uma escolha consciente.

Conectado ao princípio da dignidade da pessoa humana, encontra-se o princípio

da afetividade. Tal princípio foi reconhecido implicitamente pela Constituição Federal de

1988 ao permitir a coexistência de uma pluralidade de entidades familiares. O conceito

atual de família é baseado no vínculo afetivo que une as pessoas para a consecução de

uma vida comum, importando para tanto tão somente a finalidade que se almeja, e não

mais o cumprimento de requisitos legais em torno de uma relação jurídica formal,

sobrelevando a situação fática em detrimento de qualquer outra coisa. Neste sentido, não

é mais possível a identificação da família visualizando-se aspectos sanguíneos e

matrimoniais, mas sim por meio do vínculo de afeto que os une. Assim, o afeto é uma das

principais características da entidade familiar contemporânea, como destacam Tavares e

Angeluci6:

Ressalta em importância, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana que está intimamente relacionado com as questões afetivas, principalmente porque o ser humano não pode ser tratado apenas sob o ponto de vista exclusivista, independente de afeto. Muito pelo contrário, a afetividade é característica também humana que deve ser encarada na formação pessoal e na construção da dignidade.

4 CANEZIN, Claudete Carvalho. Da reparação do dano existencial ao filho decorrente do abandono paterno-filial. Revista Brasileira de Direito de Família. v. 8, n. 36, jun/jul, 2006. Porto Alegre. p.73 5 SCHUH, Lizete Peixoto Xavier. Responsabilidade civil por abandono afetivo: a valoração do elo perdido ou não

consentido. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, abri./maio 2006. p.53-77 APUD SANTOS, Margarete Martins dos. Responsabilidade civil por abandono afetivo. Trabalho de conclusão de curso. Faculdade Mineira de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Contagem, 2008. 6 ANGELUCI, Cleber Affonso; TAVARES, Ana Cláudia Vieira M. Considerações sobre o abandono afetivo paterno-filial na atualidade. Direito e Sociedade em Revista- Ano IV-2009. Disponível em <http://www.cursodireitocesd.com.br/revista_iv_21.html>

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Maria Berenice Dias7 enfatiza a importância do afeto e de seu reconhecimento em

nossa ordem jurídica:

Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual.

Além de ser o vínculo que une as pessoas na constituição familiar, o afeto é

também atributo que deve ser verificado nas relações entre os componentes dessa

entidade. Tanto o relacionamento conjugal, quanto o paterno-filial, deve ser permeado

pela afetividade. Especificamente em relação aos filhos, a afetividade é importante na

construção e desenvolvimento de sua personalidade, incluindo-se a formação psicológica

e moral.

Mesmo não constando a palavra afeto no Texto Maior, como direito fundamental, pode-se dizer que o afeto decorre da valorização do princípio da dignidade da pessoa humana. A afetividade, traduzida no respeito de cada um por si e por todos os membros, a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante o corpo social, é uma das maiores características da família atual.8

Além dos princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade, no âmbito

do direito de família há diversos outros princípios que auxiliam na compreensão desse

ramo do direito, dentre eles merece destaque no estudo que ora se faz o princípio da

paternidade responsável. Tal princípio está encartado no art. 226, § 7º da Constituição

Federal. Segundo ele, aquele que assume a responsabilidade de gerar um filho, deve

também assumir as obrigações de fornecer o sustento, material e moral, e de

acompanhar seu crescimento e desenvolvimento.

Segundo Marques9, em monografia sobre o tema da responsabilidade civil no

abandono afetivo,

o princípio da paternidade responsável orienta a entidade familiar que a formação de prole é uma opção livre e consciente do casal. Portanto, a mesma deverá ser exercida com responsabilidade, ou seja, se deseja ter filhos, que os tenha, porém, com a responsabilidade de proporcionar a cada um o desenvolvimento pleno de suas faculdades físicas e psicológicas.

7 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 70. 8 SOARES, Tania Regina Teixeira Vieira. Abandono afetivo e o dano moral indenizável. Trabalho de conclusão de curso. Universidade Cândido Mendes. Rio de Janeiro, 2009. p. 19. 9 MARQUES, Michele. Responsabilidade civil por abandono afetivo paterno. Trabalho de conclusão de curso. Faculdade de Ciências Jurídicas. Universidade Tuiti do Paraná. Curitiba, 2010. p. 60

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Como decorrência desse princípio, os genitores devem primar pelo bem estar de

seus filhos, devendo-se fazer presente na vida deles, de forma a contemplar o direito-

dever de convivência entre pais e filhos, convivência essa marcada pelo afeto entre as

partes e pelo respeito à dignidade.

2.2 Do poder familiar

Os pais possuem uma série de direitos e deveres quanto à pessoa dos filhos e de

seu patrimônio. A isso se chama poder familiar. Tal poder era antes conferido apenas ao

pai, chefe da família, em virtude do predomínio da sociedade patriarcal até o fim do século

XX. Assim, era o marido quem detinha o poder de chefiar a família, inclusive com poder

de tutela sobre os filhos. Por isso, era chamado, no Código Civil de 1916, de pátrio poder.

Aos poucos, com o reconhecimento da igualdade de direitos entre homens e

mulheres, essa responsabilidade passou a ser exercida conjuntamente pelo pai e pela

mãe. A própria Constituição assegura o exercício desse poder a ambos os pais: “É dever

dos pais, em igualdade de condições entre pai e mãe, assistir, criar e educar os filhos

menores” (art. 229, CF). O Código Civil de 2002 também teve a sensibilidade de mudar a

denominação para “poder familiar”.

Maria Helena Diniz10 conceitua poder familiar como

um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido, em igualdade de condições, por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em visa o interesse e a proteção do filho.

O poder familiar é exercido com base no interesse do menor, mas pode o Estado

intervir nessa relação. Tanto é assim que o Código Civil traz as hipóteses em que podem

ocorrer a suspensão ou a extinção do poder familiar (arts. 1.637 e 1.638). Dessa forma,

ele pode ser considerado como um múnus público, uma espécie de poder-dever, em

função de não ser absoluto o formato do exercício desse poder, o qual precisa ser

amoldado à finalidade a que se destina, razão dos deveres inerentes, cujo controle e

fiscalização é exercido pelo Estado. É, ainda, irrenunciável, inalienável ou indisponível e

imprescritível.

Para Silvio Venosa11, a designação mais adequada para esse termo seria

“autoridade parental”. Segundo ele, essa terminologia seria a adotada pelo Projeto do

Estatuto das Famílias, para evitar da ideia de poder, que não deve existir numa família. 10

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 588

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Tal, também, seria a posição de Claudete Carvalho Canezin12:

no seio da família contemporânea, as relações familiares não devem ser mais entendidas como relações de poder, e sim como relações de afetividade, voltadas às necessidades manifestas pelos filhos, em termos de afeto e proteção”.

O Código Civil reservou um capítulo para tratar do poder familiar, disciplinando-o

nos artigos 1.630 a 1.638. No artigo 1.634 do CC/2002 são elencados os modos de

exercício desse poder:

Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), também regula o

exercício do poder familiar. Com relação a esse diploma, Maria Berenice Dias13 enfatiza

que:

O ECA, acompanhando a evolução das relações familiares, mudou substancialmente o instituto. Deixou de ter um sentido de dominação para se tornar sinônimo de proteção, com mais características de deveres e obrigações dos pais para com os filhos do que de direitos em relação a eles.

Para a mesma autora, as competências elencadas no art. 1.634 do Código Civil

não seriam um rol taxativo, pois dela não constam talvez os mais importantes deveres de

pai, que seriam o de dar amor, afeto e carinho a seus filhos.

Assim, os deveres dos genitores quanto aos filhos não se restringem a aspectos

materiais, mas está ligado principalmente a questões afetivas, abrangendo o dever de

cuidar do desenvolvimento do filho de forma saudável, tanto emocional, física e

psicologicamente.

11 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2008. p.293 12 CANEZIN, Claudete Carvalho. Da reparação do dano existencial ao filho decorrente do abandono paterno-filial. Revista Brasileira de Direito de Família. v. 8, n. 36, jun/jul, 2006. Porto Alegre. p.85. 13 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 413.

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Dentre os deveres decorrentes do poder familiar, merece destaque o dever de

convivência, que, para os filhos, é verdadeiro direito, assegurado no art. 227 da

Constituição Federal e reiterado no art. 19, do ECA:

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

A convivência entre pais e filhos deve ser harmoniosa e fundamentada no afeto,

favorecendo o desenvolvimento saudável da criança e adolescente e assegurando sua

integridade física, moral e psicológica.

A convivência familiar não se esgota apenas na mera presença física do genitor.

O pai, além de fisicamente presente, deve assegurar ao filho sua assistência moral, ou

seja, deve proporcionar-lhe afeto, cuidado e atenção, participando ativamente de seu

crescimento e desenvolvimento.

3. ABANDONO AFETIVO E SEUS EFEITOS

Ao mesmo tempo em que se alargam o número de entidades familiares

reconhecidas pelo direito, ocorre também o aumento na desconstituição dessas famílias,

em virtude, especialmente, do reconhecimento jurídico a toda e qualquer situação de fato

que tenha a intenção de se transformar em uma família, possibilitando não apenas uma

maior facilidade nos seus reconhecimentos, mas também nas suas rupturas. Quando isso

ocorre em famílias com filhos, geralmente a guarda fica com um dos genitores, cabendo

ao outro a responsabilidade pelo pagamento de alimentos e o direito à visitação.

Desde 2008, com a Lei da Guarda Compartilhada (Lei federal nº 11.698),

dependendo do tipo de relacionamento dos pais após o divórcio, a guarda pode ser

repartida entre eles, de modo a proporcionar a convivência do filho com ambos os pais.

Mas isso, infelizmente, ainda não é a regra nos dias de hoje.

O que se observa atualmente é que, com o divórcio, o genitor que não ficou com

a guarda, acaba perdendo os laços também com os filhos. As responsabilidades advindas

do papel de pai são substituídas pelo mero pagamento de pensão alimentícia,

restringindo-se à questão financeira, como se isso fosse suficiente para o crescimento e

desenvolvimento do menor, a despeito de sua considerável relevância, porém integrante

de um contexto maior, onde é apenas uma parte do que se imputa como

responsabilidades do genitor.

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O término do relacionamento amoroso não deveria afetar o vínculo paterno-filial.

O rompimento ocorreu entre os pais e não entre estes e seus filhos. Não dividir o mesmo

teto não isenta os deveres e obrigações. O poder familiar subsiste ainda que o filho esteja

sob a guarda de somente um dos pais, permanecendo os deveres de convívio, criação e

educação. Tal obrigação é confirmada pelo que dispõe o art. 1.632: “A separação judicial,

o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos

senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os

segundos”.

Em alguns casos, o pai não guardião deseja manter os vínculos com o filho e

participar ativamente de sua formação, mas é impedido por conta de comportamentos

daquele que detém a guarda. Trata-se do fenômeno da alienação parental, que

normalmente ocorre quando o rompimento conjugal é realizado de forma não amigável,

marcado por mágoas e ressentimentos de um ou de ambos os lados.

Diante da relevância do tema, em 26 de agosto de 2010 foi promulgada a Lei nº

12.318, que tem por objetivo estabelecer instrumentos processuais hábeis a inibir ou

atenuar os efeitos da alienação parental, bem como punir o genitor que promove atos

dessa espécie. Em seu art. 2º 14, a norma traz o conceito de ato de alienação parental e

seu parágrafo único elenca em rol exemplificativo algumas condutas que se enquadrariam

em tal conceito.

O pai alienador usa de vários artifícios para afastar o convívio do filho com o

genitor não detentor da guarda. Dessa forma, o alienante pode promover a

desmoralização do pai alienado ou a desconstituição de sua imagem, por meio de um

processo de implantação de falsas memórias, manipulando a realidade da maneira que

lhe for mais conveniente.

Perante a rejeição do filho alienado, o pai tende a se afastar, até mesmo contra

sua vontade, para evitar, em sua percepção, danos maiores para o filho. Assim, o

abandono afetivo porventura existente pode ser consequência da alienação parental

exercida pelo outro genitor e não em decorrência da vontade do genitor alienado.

14 Lei nº 12.318, Art. 2o. Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

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Segundo Hamada15, são três as formas possíveis de abandono paterno-filial: o

material, o intelectual e o afetivo. O abandono material é aquele em que o pai deixa de

fornecer o sustento ao filho, inclusive quanto se furta ao pagamento de pensão

alimentícia. É reprovado pelo direito, constituindo até crime tipificado no art. 244 do

Código Penal, o qual consiste na única hipótese hoje aceita no ordenamento jurídico

pátrio de prisão civil. O abandono intelectual também goza de reprovação estatal, sendo

crime previsto no art. 246 do Código Penal. O abandono afetivo, por outro lado, não está

tipificado expressamente em nenhum diploma legal. A Constituição e o Estatuto da

Criança e do Adolescente, entretanto, instituem o dever de os pais assegurarem aos filhos

o direito a dignidade e à convivência familiar, independentemente se o relacionamento

entre os seus pais se extinguiu, uma vez que permanecessem todos vinculados

juridicamente, inclusive pelo fato de que, entre cada genitor e seu filho existe uma

entidade familiar autônoma, distinta daquela que poderia haver anteriormente. O

descumprimento de tais deveres seria um dos fundamentos para a configuração do

abandono afetivo.

Abandono afetivo é a negligência dos pais no cumprimento de seus deveres

legais e morais. Segundo Giselda Maria Fernandes Hironaka16, o abandono afetivo

configura-se como a “omissão dos pais ou de um deles, pelo menos relativamente ao

dever de educação, entendido este na sua acepção mais ampla, permeada de afeto,

carinho, atenção, desvelo”.

Na lição de Paulo Lôbo17,

O abandono afetivo é o inadimplemento dos deveres jurídicos de paternidade. Seu campo não é exclusivamente moral, pois o direito o atraiu para si, conferindo-lhe consequências jurídicas que não podem ser desconsideradas.

Essa espécie de abandono é mais observada nas famílias em que houve

separação dos pais, ficando a guarda dos filhos com um deles e ao outro se reservando o

direito de visita. Esquece-se esse pai que não detém a guarda de que, embora o

relacionamento tenha chegado ao fim, o vínculo parental-filial é permanente, para o resto

da vida, não podendo ser rompido pelo fim da relação amorosa.

15 HAMADA, Thatiane Miyuki Santos. O abandono afetivo paterno-filial, o dever de indenizar e considerações acerca da decisão inédita do STJ. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/872>. 16 HIRONAKA Giselda Maria Fernandes Novaes . Pressuposto, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo.. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/288. 17 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 285.

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16

Pode ser mais raro, mas também ocorre o abandono afetivo quando os pais

convivem sob o mesmo teto que os filhos, caso em que o pai não administra ao filho a

menor forma de cuidado e afeto, podendo até mesmo lhe causar maus tratos.

O abandono afetivo fere, dentre outros, os princípios da dignidade da pessoa

humana e da paternidade responsável. Ocorre quando o pai negligencia intencionalmente

o exercício do poder familiar e fere o dever de convivência. Ao filho abandonado

afetivamente falta, por parte do pai omisso, carinho, afeto, educação, orientação social.

Além disso, o pai não se faz presente nos eventos sociais e familiares importantes, como

aniversários, reuniões escolares, dia dos pais/mães.

De acordo com Canezin18, o abandono afetivo seria pior do que o próprio

desamparo material, na medida em que a falta de recursos pode ser provida por outras

pessoas como parentes, amigos, inclusive subsidiariamente aos avós quando da busca

judicial da prestação alimentícia, a teor do art. 1.698 do CC19, ou até mesmo pelo Estado,

porém “o afeto e o carinho negado pelo pai a seu filho não pode ser suprido pelo afeto de

terceiros, muito menos pode o Estado suplantar a ausência paterna.”

Tal espécie de abandono pode trazer sérias consequências às crianças e

adolescentes. Além de sentir-se rejeitada pelo pai ausente, suas vítimas podem

desenvolver sentimentos de insegurança, baixa autoestima e fragilidade. A rejeição pode

afetar de tal modo o filho, que ele pode tornar-se um adulto agressivo, com problemas de

alcoolismo ou drogas. O abandono pode refletir também no rendimento escolar, o que

influencia na vida profissional futura.

Ionete de Magalhães Souza20, em artigo publicado no Portal do IBDFAM (Instituto

Brasileiro de Direito de Família), aponta algumas consequências apresentadas pela

criança abandonada pelo pai:

A dor psicológica de não ser querido e cuidado por quem se espera tais sentimentos e atitudes, naturalmente, são capazes de desmoronar o ser em formação e a lógica (tão ilógica) que permeia suas indagações mais íntimas. É o querer saber por que "todos" têm pai presente, e somente ele não; é generalizar que seus amigos são amados por seus pais e que estes os têm com as melhores expectativas para o futuro. Mas, que o seu caso é "abandono premeditado", por não ser digno, por exemplo, de ser amado. As consequências são distúrbios de comportamento, com baixa alto-estima, problemas escolares, de relacionamento

18 CANEZIN, Claudete Carvalho. Da reparação do dano existencial ao filho decorrente do abandono paterno-filial. Revista Brasileira de Direito de Família. v. 8, n. 36, jun/jul, 2006. Porto Alegre. p. 79. 19 Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide. 20 SOUZA, Ionete de Magalhães. Responsabilidade Civil e paternidade responsável: análise do abandono afetivo no Brasil e na Argentina. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/572

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social e sensação da perda de uma chance, mesmo que ilusória, de ser completo e mais feliz. Isso, não se contando o abandono material e suas carências para a vida do filho, o que geralmente é o que acontece.

Dessa forma, são vários e podem ser graves os malefícios causados pela

ausência da figura do pai no crescimento e formação do filho. Importa perquirir agora

acerca da possibilidade de tais danos serem objeto de indenização por meio do instituto

da responsabilidade civil.

4. FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM CASOS DE ABANDONO

EFETIVO

4.1 A responsabilidade civil e seus pressupostos

O direito pune aquele que causa prejuízos a outrem por meio da responsabilidade

civil, pois a ninguém é permitido lesionar os direitos nem causar danos a terceiros.

Violada uma norma jurídica que protege direitos individuais e surgindo dano dessa

violação, o dano deve ser devidamente reparado.

Diniz21 conceitua o instituto da responsabilidade civil como

a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesmo praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal.

O art. 927 do Código Civil de 2002, conjugado com o art. 186 do mesmo diploma,

traz o fundamento legal da responsabilidade civil. In verbis:

Art. 186: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927: Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho22, a principal função da

responsabilidade civil é a reparação do dano causado à vítima, desfazendo, na medida do

possível, seus efeitos. Tenta-se, com isso, retornar à situação anterior ao dano (status

quo ante). Visa, portanto, reestabelecer o equilíbrio anteriormente existente à ocorrência

do dano. Isso é possível de acontecer quando se está diante de danos patrimoniais.

Nesses casos, duas possibilidades emergem: restitui-se o mesmo bem jurídico violado ou,

21

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p.35

22 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 63

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quando isso não é possível, impõe-se uma indenização, cujo valor será equivalente ao do

bem perdido. Nos casos de danos morais, a solução não é tão simples, tendo em vista

tratar-se de danos que afetam interesses extrapatrimoniais, como os direitos de

personalidade do indivíduo. Por serem danos imensuráveis economicamente, a reparação

aqui é do tipo compensatória, visando proporcionar ao lesado uma satisfação que atenue

a ofensa causada. Dessa forma, o juiz arbitrará, de acordo com seu convencimento, o

valor da indenização que entender justo para compensar o prejuízo ocasionados.

Alguns doutrinadores citam outras duas finalidades para a responsabilidade civil:

a punitiva e a preventiva. É o entendimento de Bernardo Castelo Branco23:

Mais do que reparar o dano experimentado pelo lesado, a responsabilização deixa a esfera do interesse estritamente privado, passando a constituir importante instrumento de equilíbrio social, promovendo-se à condição de instrumento de sanção e prevenção, por conta do qual se procura coibir a adoção de comportamentos lesivos aos interesses individuais e coletivos.

Como função punitiva, a responsabilidade civil visa sancionar o ofensor pelas

consequências que seus atos provocaram, além de coibi-lo a não mais lesionar, sendo

uma espécie de prevenção individual. A função preventiva ou pedagógica, por sua vez,

objetiva desestimular a sociedade a praticar condutas semelhantes, tendo em vista que

aqueles que o façam serão devidamente reprimidos.

Para que haja o dever de indenizar decorrente da responsabilidade civil, faz-se

necessário que estejam presentes seus elementos ou pressupostos, quais sejam:

conduta, dano e nexo de causalidade. Na responsabilidade subjetiva, que ainda é a regra

em nosso ordenamento jurídico - a despeito de o Código Civil elencar várias hipóteses de

responsabilidade objetiva-, é imprescindível mais um elemento: a culpa/dolo.

A conduta é a ação humana, voluntária, exteriorizada sob a forma comissiva ou

omissiva, e que produz consequências jurídicas. Diniz24 conceitua conduta como sendo “o

ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável,

do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano

a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado”

Sérgio Cavalieri Filho25 assim diferencia ação de omissão:

A ação é a forma mais comum de exteriorização da conduta (...). Consiste, pois, em um movimento corpóreo comissivo, um comportamento positivo, como a destruição de uma coisa alheia, a morte ou lesão corporal causada em alguém, e

23

BRANCO, Bernardo Castelo. Dano moral no direito de família. São Paulo: Método, 2006. p. 41 24 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p.38-39. 25 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.24

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assim por diante. Já, a omissão, forma menos comum de comportamento, caracteriza-se pela inatividade, abstenção de alguma coisa devida.

Dano é a lesão a um bem juridicamente protegido, sem a qual inexiste a

obrigação de indenizar. Maria Helena Diniz26 conceitua dano como “a lesão (diminuição

ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra a sua vontade,

em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral”.

A mesma autora27 define dano patrimonial como

a lesão concreta, que afeta um interesse relativo ao patrimônio da vítima, consistente na perda ou deterioração, total o parcial, dos bens materiais que lhe pertencem, sendo suscetível de avaliação pecuniária e de indenização pelo responsável.

Antigamente era controverso na doutrina e jurisprudência o caráter indenizável do

dano moral. Com a Constituição Federal de 1988, a indenização por dano moral foi

elevada à condição de direito fundamental, assegurado em seu art. 5º, incisos V e X:

V- é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação

O Código Civil também se refere expressamente ao dano moral em seu artigo

186.

Com relação a esse tipo de dano, a dificuldade encontrada pelos doutrinadores

reside em definir seu conceito e sua quantificação para fins de indenização. Essa

dificuldade é decorrente da grande abrangência desse dano e pelo fato de ele ser

relacionado ao sentimento humano, que goza de ampla subjetividade, variando muito de

uma pessoa para outra.

Dano moral é aquele que fere a dignidade da pessoa humana e os direitos da

personalidade, como a honra, intimidade, imagem, integridade física. Para Sílvio de Salvo

Venosa28, o dano moral é

o prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Sua atuação é dentro dos direitos da personalidade. Nesse campo, o prejuízo transita pelo imponderável, daí por que aumentam as dificuldades de se estabelecer a justa recompensa pelo dano. Em muitas situações, cuida-se de indenizar o inefável. Não é também qualquer dessaborzinho da vida que pode acarretar indenização.

26 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p 62 27 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p 66 28 VENOSA, Sílvio de Sávio. Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 41

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20

Sobre o tema, merece destaque o pensamento do Desembargador Sergio

Cavalieri Filho29:

Nessa linha de princípio, só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos.

Assim, não é qualquer incômodo ou aborrecimento que caracterizam o dano

moral, mas apenas aquele que efetivamente cause violação à dignidade da pessoa.

Segundo Venosa30, “será moral o dano que ocasiona um distúrbio anormal na vida do

indivíduo; uma inconveniência de comportamento ou, como definimos, um desconforto

comportamental a ser examinado em cada caso”.

Mais uma vez merece destaque a lição de Sérgio Cavalieri Filho31:

O dano moral não mais se restringe à dor, tristeza e sofrimento, estendendo a sua tutela a todos os bens personalíssimos – os complexos de ordem ética, razão pela qual revelasse mais apropriado chamá-lo de dano imaterial ou não patrimonial, como ocorre no Direito Português. Em razão dessa natureza imaterial, o dano moral é insuscetível de avaliação pecuniária, podendo apenas ser compensado com a obrigação pecuniária imposta ao causador do dano, sendo esta mais uma satisfação do que uma indenização.

Por ser espécie de dano que goza de ampla subjetividade, cabe ao magistrado,

diante do caso concreto, analisar se tal dano de fato ocorreu e em que medida atingiu o

lesado, para que possa fixar o valor da indenização cabível. A função dessa indenização

não é, como criticam alguns, dar preço ao sofrimento ou humilhação sofrida, mas sim

compensar esses sentimentos de alguma forma.

O último elemento primordial para configuração da responsabilidade civil é o nexo

de causalidade. Trata-se do elo que liga a conduta do lesante ao resultado danoso. Só

será possível a indenização caso a vítima consiga provar que o dano o qual sofreu é

decorrência do comportamento do ofensor. Talvez seja o elemento de mais fácil

compreensão, porém de prova muitas vezes difícil na prática.

29 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.78 30 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 42 31 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 81

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21

Nos casos em que a responsabilidade é do tipo subjetiva, há mais um elemento

cuja prova faz-se necessária: a culpa. Esse tipo de responsabilidade está previsto no

artigo 186 do Código Civil de 2002:

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Nem todo prejuízo provocado por uma conduta pode ser indenizável. Isso porque

o direito traz casos em que há excludentes de responsabilidade que impedem o dever de

indenizar. Dependendo do tipo de responsabilidade alegada, podem ser causas de

exclusão de responsabilidade: o estado de necessidade, a legítima defesa, a culpa

exclusiva da vítima, o caso fortuito e força maior e a cláusula de não indenizar.

Cada vez mais se observa o aumento no número de demandas judiciais que

buscam indenização por dano moral com base em algum dos tipos de relações familiais.

São vários os pleitos possíveis, como as indenizações por rompimento de noivado,

abandono no altar, adultério do outro cônjuge e, nas relações paterno-filiais, cresce o

número de ações com pedido de dano moral por abandono afetivo.

4.2 Responsabilidade Civil. O dever de indenizar pelo abandono afetivo

Muito se discute acerca da possibilidade de reparação civil por danos morais nas

relações paterno-filiais. Há vários argumentos defendidos tanto por aqueles que são a

favor de tal indenização, quanto por aqueles que são contra.

Os doutrinadores desfavoráveis à reparação utilizam-se de um ou mais dos

seguintes argumentos: 1. O fato de ninguém poder obrigar um pai a amar seu filho; 2. A

monetarização do amor que seria consequência da indenização; 3. A existência de uma

sanção legal prevista à infração dos encargos decorrentes do poder familiar; e 4. A

possibilidade de um litígio judicial acentuar ainda mais a falta de afetividade existente

entre o genitor e o filho.

A tese de que não se pode comprar o amor decorre do fato de que o amor é um

sentimento que ocorre naturalmente, sendo impossível sua imposição a terceiro. Nesse

sentido são as palavras de Lizete Schuh32:

É dificultoso cogitar-se a possibilidade de determinada pessoa postular amor em juízo, visto que a capacidade de dar e de receber carinho faz parte do íntimo do

32 SCHUH, Lizete Peixoto Xavier. Responsabilidade civil por abandono afetivo: a valoração do elo perdido ou não consentido. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, abril/maio 2006, p. 67-68. APUD MACHADO, Gabriela Soares Linhares . Análise doutrinária e jurisprudencial acerca do abandono afetivo na filiação e sua reparação. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/861>.

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ser humano, necessitando apenas de oportunidades para que aflore um sentimento que já lhe faz parte, não podendo o amor, em que pese tais conceitos, sofrer alterações histórico-culturais, ser criado ou concedido pelo Poder Judiciário.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no julgamento da Apelação Cível nº

1002407790961-2, proferiu entendimento de que a omissão dos genitores não caracteriza

ilícito por inexistir obrigação de amar:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - ABANDONO AFETIVO - ATO ILÍCITO - INEXISTÊNCIA - DEVER DE INDENIZAR - AUSÊNCIA. A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, porquanto ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor. Inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do Código Civil, eis que ausente o ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como passível de indenização.33

Assim também já decidiu, em 2006, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento

do REsp nº 754.411 – MG, de relatoria do Ministro Fernando Gonçalves, de cujo voto se

extrai o seguinte trecho: “Escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou

manter um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com

a indenização pleiteada”.

Assim como não se pode impor o sentimento de amor a alguém, tampouco se

pode quantificá-lo. Dessa forma, para aqueles como Rosenvald34 que entendem pela

impossibilidade de responsabilização civil, a reparação seria verdadeira forma de valorar

o afeto, o que poderia incentivar outras pessoas a ajuizarem ações da mesma espécie,

surgindo, em consequência da monetarização do amor, as inconvenientes indústrias

indenizatórias.

Há quem argumente, ainda, que o descumprimento das obrigações decorrentes

do poder familiar já encontra sanção no próprio direito de família, que seria a destituição

deste poder, com previsão no Código Civil e ECA. Tal é a posição de Renan Kfuri

Lopes35: “Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres familiares gera apenas as

sanções no âmbito do direito de família, refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e

psicológico da relação”.

A imposição de pagamento de pensão alimentícia também seria espécie de

sanção ao pai que não se faz presente na vida do filho. Nas palavras de Carbone36:

33 TJMG. 12º Câmara Cível. Apelação Cível nº 1002407790961-2. Relator: Des. Alvimar de Ávila. DJ 13.07.2009 34 ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Iures, 2010. 35 LOPES, Renan Kfuri. Panorama da responsabilidade civil. Adv Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas. São Paulo: COAD, nov. 2006, p. 54. APUD MACHADO, Gabriela Soares Linhares . Análise doutrinária e jurisprudencial acerca do abandono afetivo na filiação e sua reparação. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/861>. 36 CARBONE, Angelo. Justiça não pode obrigar o pai a amar o filho. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2005-dez-25/justica_nao_obrigar_pai_amar_filho>.

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Na verdade, não existe dano moral nem situação similar que permita uma penalidade indenizatória por abandono afetivo. O pai deve cumprir suas responsabilidades financeiras. O pagamento regular da pensão alimentícia supre outras lacunas, inclusive sentimentais.

O TJRS já proferiu decisão, cujo voto do relator Alzir Felippe Schmitz utilizou-se

desse argumento, nestes termos:

Enfim, não se pode negar que a falta de afeto paterno pode, sim, causar sofrimentos. Todavia, por mais reprovável que seja o abandono praticado pelo pai e a dor suportada pelo filho - no caso, não demonstrada -, as respostas jurídicas possíveis são a fixação de alimentos, no que tange ao dano material, e a destituição do pátrio poder, no campo extrapatrimonial.37

Ainda para os avessos à aplicação da teoria da responsabilidade civil no

abandono afetivo, a propositura da ação poderia comprometer a já abalada relação pai-

filho, afastando de vez a possibilidade de aproximação entre eles. De acordo com Simioni

e Aldrovandi38, as decisões judiciais afastam filhos e pais condenados, o que inibe

qualquer expectativa de perdão ou afetividade. Nesse sentido, há decisão do TJSC39:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - CERCEAMENTO DE DEFESA - PROEMIAL AFASTADA - ABANDONO AFETIVO - COMPENSAÇÃO REQUERIDA PELO FILHO AO PAI E AOS AVÓS PATERNOS - MANIFESTAÇÃO DE AMOR E RESPEITO ENTRE PAI E FILHO - SENTIMENTOS IMENSURÁVEIS - PLEITO COMPENSATÓRIO AFASTADO - RECURSO DESPROVIDO. (...) Não se nega a dor tolerada por um filho que cresce sem o afeto do pai, bem como o abalo que o abandono causa ao infante; porém a reparação pecuniária além de não acalentar o sofrimento do filho ou suprir a falta de amor paterno poderá provocar um abismo entre pai e filho, na medida que o genitor, após a determinação judicial de reparar o filho por não lhe ter prestado auxílio afetivo, talvez não mais encontre ambiente para reconstruir o relacionamento.

Negar, de pronto, a responsabilização por danos morais no âmbito familiar seria

permitir-se a violação da dignidade humana, consentindo que atos semelhantes

continuem a ser praticados sem uma adequada resposta do direito. Seria justo que a

negativação de crédito de uma pessoa seja capaz de gerar dano moral, enquanto que um

comportamento censurável na relação familiar, capaz de causar prejuízos morais muito

mais nefastos que àquele, não seja indenizável? Considerando que a família é berço do

37 TJRS. Apelação Cível nº 70030142285. Relator: Alzir Felippe Schmitz, 30 de jul de 2009. 38 ALDROVANDI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. O direito de família no contexto de organizações socioafetivas: Dinâmica, instabilidade e polifamiliaridade. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, n. 34, fev./mar., 2006. p. 24. 39 TJSC. Apelação Cível nº 2008.057288-0. Relator: Des. Fernando Carioni. 11-11-2008

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afeto, que deve proporcionar um ambiente de bem-estar, para desenvolvimento sadio e

harmonioso de seus integrantes, a resposta só pode ser negativa.

Nesse sentido é o entendimento de Bernardo Castelo Branco40: Havendo violação dos direitos da personalidade, mesmo no âmbito da família, não se poder negar ao ofendido a possibilidade de reparação por dano moral, não atuando esta como fator desagregador daquela instituição, mas de proteção da dignidade dos seus membros. A reparação, embora expressa em pecúnia, não busca, nesse caso, qualquer vantagem patrimonial em benefício da vítima, revelando-se na verdade como forma de compensação diante da ofensa recebida, que em sua essência é de fato irreparável, atuando ao mesmo tempo em seu sentido educativo, na medida em que representa uma sanção aplicada ao ofensor, irradiando daí seu efeito preventivo.

De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira41, a reparabilidade de tal dano não

visaria obrigar o pai a amar o filho:

(...) não é possível obrigar ninguém a amar. No entanto, a esta desatenção e a este desafeto devem corresponder uma sanção, sob pena de termos um direito acéfalo, um direito vazio, um direito inexigível. Se um pai ou uma mãe não quiserem dar atenção, carinho e afeto àqueles que trouxeram ao mundo, ninguém pode obrigá-los, mas a sociedade cumpre o papel solidário de lhes dizer, de alguma forma, que isso não está certo e que tal atitude pode comprometer a formação e o caráter dessas pessoas abandonadas, afetivamente.

De fato, não se questiona na ação de reparação em apreço a ausência de amor

na relação parento-filial, mas sim a carência do convívio do genitor na vida do filho e sua

omissão quanto à educação e criação deste. Tampouco se trata a indenização de ‘dar

preço ao amor’, como explica Cláudia Maria da Silva42 ao afirmar que a responsabilidade

dos pais não se exaure na mera contribuição material, tendo a reparação função tanto

punitiva quanto dissuasória.

O STJ, que no julgamento do REsp nº 754.411, anteriormente citado, havia se

manifestado sobre a impossibilidade de reparação por dano moral nesses casos,

reformou seu entendimento em importante e inédita decisão de sua 3ª Turma na análise

do REsp 1.159.242, julgado no dia 24 de abril de 2012. O processo versava sobre pedido

de indenização por danos materiais e compensação por danos morais, ajuizado por uma

filha contra seu pai, alegando ter sofrido abandono material e afetivo durante a infância e

juventude. A Ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, afirmou que não há restrições

legais à aplicação da teoria da responsabilidade civil, e consequente obrigação de

indenizar, no Direito de Família. Afirmou, ainda, que: 40 BRANCO, Bernardo Castelo. Dano moral no direito de família. São Paulo: Método, 2006. p. 116 41 PEREIRA Rodrigo da Cunha. Nem só de pão vive o Homem: Responsabilidade civil por abandono afetivo. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/392. 42 SILVA, Cláudia Maria da. Descumprimento do dever de convivência familiar e indenização por danos à personalidade do filho. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, p. 122-147, ago. /set. 2005.

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Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. (...) Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.

O argumento de que a destituição do poder familiar seria sanção suficiente ao pai

que abandona moralmente o filho é totalmente despropositado. A destituição, que é a

perda do poder familiar do pai ausente, seria forma de corroborar um comportamento de

ausência do pai, ao liberá-lo de seus direitos e deveres para com o filho, como questiona

Bodanese43: “(...) a perda de direitos, e principalmente, de deveres com o filho seria

sanção ou verdadeira 'carta de alforria' ao pai irresponsável? Quem, de fato, sofreria

punição com a perda da patria potestas: o pai ou o filho?”

O litígio instaurado pelo filho contra o pai ausente pode, de fato, exacerbar o

distanciamento entre eles, porém não é objetivo do processo uma aproximação ou a

recuperação do afeto perdido pelo longo tempo de ausência do genitor. A pretensão tem

por finalidade o reconhecimento de que tal omissão lhe foi prejudicial no desenvolvimento

e a reparação pelos danos causados. Esse é o entendimento de Júnia Fraga Reis44, em

artigo sobre o tema em estudo:

O que se busca com a indenização, não é a reconstituição do laço afetivo entre o pai e o filho abandonado, uma vez que amor não se compra, não se pede e não se implora, tampouco se quantifica. Não se espera que um filho ao bater à porta do Judiciário, vá se deparar com um pai zeloso e preocupado, de braços abertos para acolher seu rebento.

São vários os diplomas legais que estabelecem direitos às crianças e

adolescentes, bem como deveres aos pais, com o objetivo de proteger esses seres em

formação, para que eles possam crescer e desenvolver-se saudável e adequadamente.

A Constituição Federal, além de albergar a dignidade da pessoa humana, a

convivência familiar e a proteção integral do menor, traz normas específicas de proteção

principalmente nos arts. 226, 227 e 229. No Código Civil, dentro do livro de Direito de

Família, há vários capítulos que se destinam ao resguardo dos filhos, merecendo

destaque aqueles que cuidam "Da Proteção da Pessoa dos Filhos" e do “Poder familiar”.

43 BONADESE, Paula. O dever de indenizar por dano afetivo nas relações paterno-filiais. Trabalho de conclusão de curso. Faculdade de Direito. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011. p. 22-23 Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/ bitstream/handle/10183/36029/000817251.pdfsequence=1> 44 REIS, Júnia Fraga. Responsabilidade civil por abandono afetivo: o verdadeiro valor do afeto na relação entre pais e filhos. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2010. Disponível em http://www3.pucrs.br/ pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_1/junia_reis.pdf

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Além disso, várias outras normas podem ser encontradas no Estatuto da Criança do

Adolescente.

O pai que abandona o filho viola, dentre vários outros dispositivos, o art. 5º do

ECA: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei

qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”

De nada serviriam todos esses princípios, dispositivos e diplomas legais se a

conduta omissiva dos pais não originasse nenhuma consequência. Dessa forma, podem

eles ser utilizados como fundamentos para legitimar a condenação por danos morais

decorrentes de abandono afetivo.

O exercício da paternidade responsável impõe aos pais a educação de seus

filhos, a qual não se converte no mero pagamento de pensão alimentícia. É preciso,

principalmente, que haja assistência moral, psicológica e afetiva. Este é o pensamento de

Paulo Lôbo45:

[...] Entendemos que o princípio da paternidade responsável estabelecido no art. 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória.

O abandono afetivo como gerador de responsabilidade civil, restaria configurado

quando ocorre o inadimplemento dos deveres jurídicos da paternidade, em especial o

dever de convivência, e esse descumprimento ocasionar danos à personalidade do filho.

Como bem expõe Maria Berenice Dias46:

A falta de convívio dos pais com os filhos, em face do rompimento do elo de afetividade, pode gerar severas sequelas psicológicas e comprometer o desenvolvimento saudável da prole. A omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação. Se lhe faltar essa referência, o filho estará sendo prejudicado, talvez de forma permanente, para o resto de sua vida. Assim, a falta da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo da vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida. Tornam-se pessoas inseguras, infelizes.

Venosa47 também é adepto de que o agravo decorrente do abandono do pai seja

ensejador de dano moral:

45

LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 308. 46 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 449. 47 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 286

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Assim, sustenta-se modernamente, com razão, que ofende a dignidade do filho não só a ausência de socorro material, como a omissão no apoio moral e psicológico. O abandono intelectual do progenitor com relação a filho menor gera, sem dúvida, traumas que deságuam no dano moral. Nesse diapasão, a afetividade liga-se inexoravelmente à dignidade do ser humano.

Também favorável à responsabilização, Rolf Madaleno48 afirma que o pai que

abandona o filho acaba por desconsiderar a pessoa da criança ou adolescente,

instituindo-lhe carências afetivas e traumas, que vão acompanhá-lo em seu crescimento

mental e físico. Desta feita, para ele, é indiscutível que exista o direito a “integral

reparação do agravo moral sofrido pela negativa paterna do direito que tem o filho à sadia

convivência e referência parental, privando o descendente de um espelho que deverá

seguir e amar.”

Ainda no mesmo sentido, tem-se o ensinamento de Rui Stoco49: [...] o que se põe em relevo e exsurge como causa de responsabilização por dano moral é o abandono afetivo, decorrente do distanciamento físico e da omissão sentimental, ou seja a negação de carinho, de atenção, de amor e de consideração, através do afastamento, do desinteresse, do desprezo e falta de apoio e, às vezes, da completa ausência de relacionamento entre pai (ou mãe) e filho.

Dessa forma, a conduta omissiva do pai fere o cumprimento do dever de

convivência familiar, além de atentar contra os princípios da dignidade da criança e o

princípio implícito da afetividade, prejudicando o desenvolvimento intelectual, social e

emocional completo e sadio do filho.

4.3 Aplicação dos Pressupostos da Responsabilidade Civil no Abandono Afetivo

Considerando como possível a aplicação da teoria da responsabilidade civil aos

casos de abandono afetivo, para que seja caracterizada a obrigação de indenizar, devem

estar presentes no caso concreto, seus elementos caracterizadores.

O primeiro elemento que deve ser verificado é a conduta, a qual pode ser

observada no comportamento do pai que, voluntariamente, deixa de cumprir com seu

papel de pai e deliberadamente fere os deveres inerentes ao exercício do poder familiar.

Geralmente essa conduta é externada na forma omissiva, manifestando-se sob a forma

de negligência do pai na criação, educação e acompanhamento do desenvolvimento do

48 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 311 e 312. APUD REIS, Júnia Fraga. Responsabilidade civil por abandono afetivo: o verdadeiro valor do afeto na relação entre pais e filhos. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2010. Disponível em http://www3.pucrs.br/ pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_1/junia_reis.pdf 49 STOCO, Rui.Tratado de Responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 946.

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filho. Assim sendo, ocorre o descumprimento do dever legal de cuidar e preenchido está o

primeiro requisito para aferição da responsabilidade civil.

Além da conduta, devem ser comprovados os efetivos danos psicológicos

causados ao filho associados ao abandono afetivo por parte do pai. Trata-se de prejuízos

à personalidade do indivíduo em formação, que causam dor psíquica e decorrem da falta

de afeto, cuidado e proteção que cabia ao pai lhe prover. A prova deste dano deve ser

feita, preferencialmente, por meio de perícia técnica, mediante laudos elaborados por

profissionais da área de assistência social, psicologia ou psiquiatria. Esses laudos podem

determinar o real dano e sua efetiva extensão.

Como nem sempre é possível a utilização de perícias técnicas e, mesmo no caso

de sua utilização, o laudo pode não ser conclusivo quanto aos danos psicológicos,

podendo ser empregados outros tipos de provas para formar o convencimento do

magistrado, como a testemunhal, por exemplo.

Entre a conduta omissiva do genitor e os danos sofridos pelo filho abandonado

deve haver uma necessária relação de causa e efeito. Para Hironaka50, o nexo de

causalidade é o elemento de mais difícil comprovação:

Com efeito, ainda que comprovada a culpa do genitor que assume conduta omissiva e abandona afetivamente a sua prole e ainda que a perícia psicológica consiga detectar e esclarecer os danos sofridos pelo filho abandonado, bem como a sua extensão, mais difícil será estabelecer o necessário nexo de causalidade entre o abandono culposo e o dano vivenciado.

Por isso, deve ser, mais uma vez, ressaltada a importância da perícia técnica no

processo judicial que intente a responsabilização civil do genitor, a qual deve estabelecer

além da existência do dano, a causa que lhe deu origem. Ainda segundo Hironaka, a

perícia deve fixar a época em que houve o início da manifestação dos sintomas que o

abandono provocou, para que o pai não seja obrigado a indenizar um dano que ocorrera

antes da concretização do abandono.

A responsabilidade civil por abandono afetivo é do tipo subjetiva, a qual exige

para sua concretização a comprovação da culpa do pai “abandônico”. E essa culpa é

visualizada aqui em sua modalidade omissiva, devendo a ação ou omissão do pai estar

associada à negligência quanto aos deveres impostos pelo poder familiar. Assim,

observa-se a culpa na conduta do pai que deliberadamente se nega a conviver e a cuidar

do filho, furtando-se ao acompanhamento de sua formação moral, psicológica e afetiva. 50 HIRONAKA Giselda Maria Fernandes Novaes . Pressuposto, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo.. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/288.

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Paula Bonadese51, em monografia intitulada "O dever de indenizar por dano

afetivo nas relações paterno-filiais" trata das causas excludentes de responsabilidade nos

casos de abandono afetivo. Para ela, não seriam passíveis de indenização as hipóteses

em que o genitor desconhecesse sua condição de pai, a alienação parental provocada

pelo genitor guardião, a inexistência de dano psicológico na formação do filho e a omissão

paterna ocorrida apenas quando os filhos já são maiores e capazes.

Se o genitor, por escolha privativa da mãe, desconhece sua condição de pai, não

há que se falar em indenização por danos em decorrência do abandono que, por motivos

alheios a sua vontade, causou. Nesse caso, se alguém deve indenizar outrem, esse

alguém com certeza é a mãe, que impediu que se formasse o vínculo entre pai e filho.

A autora explica como a alienação parental pode configurar uma excludente de

responsabilidade:

(...) quando o pai comprova que, apesar de seus esforços, a iniciativa da progenitora mostrou-se crucial para o seu distanciamento do filho. Clássicos são os casos das mães que, com o deliberado intuito de privar o ex-companheiro da convivência com os descendentes, mudam-se para localidades distantes, ou impedem que o pai ao menos converse por telefone com as crianças.

Quanto à ausência de dano psicológico na formação da criança, há

posicionamentos divergentes, que não enquadram tal hipótese como excludente de

responsabilidade. O entendimento de Bonadese é o de que deve haver danos concretos

decorrentes do abandono, de modo que o mero aborrecimento ou tristeza experimentados

pelo filho não são capazes de gerar, por si só, o dever de indenizar.

Já para Helena Carvalho Moysés52, a reparação por dano moral pode ser

concedida mesmo na ausência de comprovação de efetivos danos psicológicos. Para ela,

mesmo que o filho, ao atingir a fase adulta, consiga firmar-se como cidadão, exercendo seus direitos e deveres frente à sociedade, ainda assim trará marcas em seu íntimo, de desilusão, de abandono e de mágoa. Desse modo, mesmo ausente a patologia psicológica, ainda assim existe a possibilidade de compensação por dano moral. (...) Assim, não há dúvidas de que o pai negligente, que deixa faltar o cuidado e o afeto, tão indispensáveis ao filho, causa perenes danos à saúde psicológica dessa criança, com reflexos em toda sua vida. Isso não quer dizer que uma pessoa que sofreu abandono afetivo jamais lute por seus direitos ou saiba respeitar os demais indivíduos da sociedade; definitivamente, não é isso. Pelo contrário, muitas pessoas existem que

51 BONADESE, Paula. O dever de indenizar por dano afetivo nas relações paterno-filiais. Trabalho de conclusão de curso. Faculdade de Direito. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/ bitstream/handle/10183/36029/000817251.pdfsequence=1> 52

MOYSÉS, Helena Carvalho. O abandono afetivo dos filhos e a possibilidade de compensação por danos morais. De jure: revista jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.19, p.262-275, jul./dez., 2012.

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passaram por esse tipo de abandono e, hoje, são adultos com família constituída, bem-sucedidos profissionalmente, exercendo seus papéis de cidadãos na sociedade. Contudo, não há como negar que a falta de afetividade causa marcas para o resto da vida, como a mágoa, a tristeza e a sensação de abandono.

A autora, neste caso, adota a “teoria do risco”, modalidade de responsabilidade

civil objetiva, a qual presume a existência de dano quando a conduta do lesante for tão

reprovável que é capaz de, sozinha, gerar a obrigação de indenizar. A conduta, por si só,

implica risco de dano para os direitos de outrem.

A teoria do risco é fundada no dever genérico de não prejudicar, sendo o autor

responsável pelos riscos ou danos que sua conduta promova, mesmo que esta seja

realizada sem culpa. Parte do pressuposto de que todo risco deve ser garantido, em face

da proteção à pessoa humana.

Outra hipótese considerada por alguns como excludente de responsabilidade é o

fato de o abandono afetivo apenas ocorrer quando os filhos já são maiores e capazes.

Para os que a defendem, apenas filhos menores teriam legitimidade para requerer a

reparação porque apenas crianças e adolescentes é que são indivíduos em fase de

formação e desenvolvimento de sua personalidade. Outros consideram a possibilidade de

o abandono ocorrer mesmo no caso de filhos maiores, pois nada garante que nessa etapa

da vida a personalidade do indivíduo não possa sofrer impactos com o abandono. Nesse

caso, caberia ao magistrado, diante do caso concreto, analisar atenciosamente a

ocorrência ou não de danos advindos do abandono.

Maria Isabel Pereira da Costa53, autora adepta da primeira corrente, assim expõe

seu pensamento:

Assim, só os filhos menores de idade, ou incapazes, têm legitimidade para pedir indenização aos pais pela omissão do afeto. Em relação aos filhos maiores de idade e capazes, não tem cabimento indenização pela ausência de afeto por parte dos pais, porque não estão em fase de formação da personalidade. (...) No caso do afeto, a cobrança da reciprocidade pura e simples não é conveniente, pois os filhos não têm o dever de fornecer as condições para formar a personalidade dos pais, por impossibilidade absoluta!

Com o intuito de se evitar a banalização desse tipo de demanda, os casos

levados ao exame do Poder Judiciário devem merecer uma análise criteriosa, devendo os

53

COSTA, Maria Isabel Pereira da. Família: do autoritarismo ao afeto; como e a quem indenizá-lo? Revista Magister – Direito civil e processual civil. Porto Alegre, n. 5, 2005, p. 58-75. APUD HIRONAKA Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressuposto, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/288.

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magistrados atuar com muita cautela no exame da real ocorrência do dano moral. Sobre o

tema, disserta Gonçalves54:

A questão é delicada, devendo os juízes ser cautelosos na análise de cada caso, para evitar que o Poder Judiciário seja usado, por mágoa ou por outro sentimento menos nobre, como instrumento de vingança contra pais ausentes ou negligentes no trato com os filhos. Somente casos especiais, em que fique cabalmente demonstrada a influência negativa do descaso dos pais na formação e no desenvolvimento dos filhos, com rejeição pública e humilhante, justifica o pedido de indenização por danos morais. Simples desamor e falta de afeto não bastam.

Dessa forma, mesmo considerando-se como possível a responsabilização civil

por abandono afetivo paterno-filial, quando preenchidos todos os pressupostos para tanto,

deve o magistrado agir com a parcimônia necessária à análise de tema tão delicado, que

envolve os sentimentos mais nobres que deveriam ser o amor entre pais e filhos.

5. CONCLUSÃO

Crianças e adolescentes são sujeitos que gozam de tutela constitucional, além de

terem direitos albergados em legislações infraconstitucionais, como o Código Civil e o

Estatuto da Criança e do Adolescente. Ademais, as relações familiares também devem

obediência a vários princípios, como o da dignidade da pessoa humana, afetividade,

paternidade responsável e convivência familiar, dentre outros.

A conduta omissiva do pai que fere todo esse aparato protecionista afronta os

direitos fundamentais, inclusive direitos à personalidade, de indivíduos que necessitam de

todas as condições para um satisfatório desenvolvimento psicológico e moral.

Diante de todo o exposto, entende-se como possível a responsabilização civil dos

pais por abandono afetivo dos filhos, haja vista que o Direito deve oferecer uma tutela

adequada àqueles que sofreram prejuízos concretos em decorrência da negligência de

seus pais e considerando também que a própria Constituição Federal garante o direito à

indenização por danos morais (art. 5º, incs. V e X), sem estabelecer qualquer restrição.

A indenização, nesses casos, servirá como meio de se atenuar os danos

causados na formação da personalidade da criança ou adolescente, penalizando o pai

que deixou de cumprir os seus deveres, além de ser forma de desincentivo aos pais que

praticam tal conduta omissiva.

É importante ressaltar que não é toda e qualquer ausência de afeto e convivência

entre pais e filhos que são aptos a ensejar a responsabilidade civil daqueles. Na análise

54

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 700

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do caso concreto, o juiz deve estar convicto de que há provas da existência do nexo de

causalidade entre o dano suportado pelo filho e a conduta culposa do pai no cumprimento

de seus deveres. Só com a presença de todos os pressupostos da responsabilidade civil

surge o dever de indenizar.

O certo é que se trata de tema ainda polêmico, que causa divergência na doutrina

e jurisprudência, impondo ao magistrado cautela e razoabilidade na análise dos casos

concretos que lhe são postos, socorrendo-se, preferencialmente, do auxílio de

profissionais psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais.

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