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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
MEDICALIZAÇÃO DA INFANCIA E POLITICAS SOCIAIS: PROCESSOS DE SUBMISSÃO E RESISTENCIA NA PRODUÇÃO DA ECONOMIA DA
DIFERENÇA.
Renata Monteiro Garcia
NATAL
2018
Renata Monteiro Garcia
MEDICALIZAÇÃO DA INFANCIA E POLITICAS SOCIAIS: PROCESSOS DE SUBMISSÃO E RESISTENCIA NA PRODUÇÃO DA ECONOMIA DA
DIFERENÇA.
Tese elaborada sob a orientação da Professora
Doutora Ilana Lemos de Paiva e co-orientação da
Professora Doutora Maria de Fátima Pereira Alberto e
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte como requisito parcial para a obtenção do título
de Doutora em Psicologia.
Natal 2018
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Garcia, Renata Monteiro.
Medicalização da infância e políticas sociais: processos de submissão e resistência na produção da economia da diferença / Renata Monteiro Garcia. - 2018.
225f.: il.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Natal, RN, 2018.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ilana Lemos de Paiva.
1. Deficiência mental em crianças. 2. Patologização. 3. Prestação Continuada (psicologia). 4. Diagnóstico. 5. Desigualdade social. I. Paiva, Ilana Lemos de. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.973-053.2
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
A tese “Medicalização da Infância e Políticas Sociais: Processos de Submissão e Resistência
na Produção da Economia da Diferença”, elaborada por Renata Monteiro Garcia, foi
considerada APROVADA por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de
DOUTORA EM PSICOLOGIA.
Natal/RN, 09 de abril de 2018.
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Ilana Lemos de Paiva (Presidente) _______________________________
Prof. Dr. Herculano Ricardo Campos (Interno) _______________________________
Profª. Dr. Jader Ferreira Leite (Interno) _______________________________
Profª. Drª. Ana Vladia Holanda Cruz (Externo) _______________________________
Profª. Drª. Carla Biancha Angelucci (Externo) _______________________________
Aos meus avós
Ruth, Ivone, Jayme e Helio
(In Memoriam)
Agradecimentos
Esta foi a última parte da tese a ser escrita e, apesar de não se tratar de um conteúdo
teórico, sua importância no corpo deste trabalho me parece muitíssimo relevante. Caindo em
lugar comum, mas exatamente por se tratar da verdade, uma tese não se concretiza na solidão.
Ela é atravessada pela alteridade, por uma série de encontros com tantos outros que me
possibilitaram chegar até aqui.
Minha primeira reverência é a Deus, eu o encontrei revolucionário e amoroso, me
carregando com pegadas na areia e agradeço por sua tão visível força em minha vida.
Ao Junior, que sendo eu intensidade, se faz porto que me acolhe, acalma e fermenta
um amor sagrado. O companheiro que escolhi para toda a vida, com quem aprendo sobre
generosidade, amizade, sorrisos, resistência e força. Às vezes eu desejo a certeza pacata e ele
me oferece um mundo de infinitos, coragem e atrevimento. Ele resolveu todos os problemas
que apareceram pelo caminho para que eu chegasse sã e salva até aqui. Estamos lado a lado,
na mesma trincheira há 20 anos, escutando Belchior todas as manhãs, fazendo piada da vida,
planos para a revolução e tomando cafés demorados cercados do amor que construímos para
nós. Sim meu amor, “a felicidade é uma arma quente”.
Às minhas filhas Carol e Fefê, que desde tão cedo conhecem os caminhos da
universidade e acompanham nosso cotidiano de responsabilidades acadêmicas. Moças que já
sabem que resumo não tem parágrafo e que todo trabalho tem referência. Vocês são presença,
amor e ternura, sempre nos indagando, se indignando e subvertendo. Minhas mulheres mais
amigas, lindas companheiras “leoas” que me fazem mover e ser intensa nesta vida. “Quantas
páginas ainda faltam?”. Por hoje estas bastam. Gratidão por sua compreensão quando precisei
me ausentar e por sermos espelho quando precisei continuar.
À minha orientadora Ilana, que generosamente me aceitou como sua orientanda.
Durante estes anos acalmou minhas ansiedades e nervosismos e respeitosamente me deu a
liberdade para dialogarmos, nos compreendermos e nos encontrarmos. Sua consideração ao
meu trabalho e a confiança que depositou em mim foram grandes, como ela própria é.
Aprendi muito nesses anos e espero que nossa parceria siga firme para a vida.
À minha co-orientadora Fátima, por tantos ensinamentos, teóricos e de amor. À
acolhida no Nupedia, às orientações tão cuidadosas e essenciais para os caminhos desta tese,
aos vinhos e cafés, artigos e trabalhos e a amizade para uma vida inteira. Sou toda gratidão.
À minha eterna professora Lilia Lobo, que é referência fundamental deste trabalho e
da minha vida. Sempre de portas abertas e telefone pronto, nossas longas conversas foram
potência e acontecimento. Orgulho e atrevimento ter você tão perto!
Aos professores que gentilmente aceitaram o convite para colaborar com este trabalho
em diferentes momentos de sua feitura. À Cândida Dantas e Ana Vládia pela leitura cuidadosa
na qualificação e que tanto acrescentaram às reflexões do trabalho e à Isabel Fernandes pelas
considerações na orientação coletiva da Base, pelo cuidado comigo e por sua esperança no
meu trabalho. Finalmente, à Biancha Angelucci, Jáder Leite, Ana Vládia(!) e Herculano
Campos que aceitaram o desafio de compor a banca final. Cada um de vocês tem uma
participação especial na minha vida e uma contribuição singular neste trabalho.
Aos meus pais Tânia e Helio, minha inspiração e liberdade. Este trabalho foi possível
graças a sua fé em mim e todo apoio e amor incondicional que me proporcionaram. Nas
vindas até aqui ou em nossas idas até aí, dois mil quilômetros não foram páreo para todo o
amor e suporte que me deram. Nos momentos mais difíceis vocês estavam comigo.
Aos meus irmãos Simone, Rodrigo, André e Alessandra, gratidão pelo amor, pelas
acolhidas, pela ajuda imprescindível no cuidado com as crianças durante todos esses anos e
por torcerem tanto por mim. Vocês foram fundamentais, temos tanto a comemorar!
Neste abraço apalavrado de agradecimento enlaço João e sua preocupação comigo e
com as páginas de um trabalho que lhe pareciam uma imensidão. Seus olhos de atenção me
inspiraram. A você e Júlia cantadores de uma rima tão única, “tia”, todo meu carinho.
Ao GPME, especialmente ao professor Oswaldo, que generosa e respeitosamente nos
acolhe e cuida em manter a criticidade em nossos corações e trabalhos com tanta competência
e lucidez. Foi um privilégio, certamente. Assim, agradeço também nos nomes de Ludmila,
Keyla, Pablo, Fellipe, Bel, Luana, Joyce, Dani, Fernandinha e Carmen. Fui abraçada, recebida
com todo carinho, incluída nos trabalhos e nas comemorações, compartilhei da vida e da
amizade de pessoas maravilhosas. Agradeço pela paciência e tantos ensinamentos, foram
muitos, podem acreditar.
Às moças de ouro do Nupedia: Tâmara, Leilane, Denise, Manu, Cibele, Erlayne,
Gabriela e Noêmia, pela acolhida sempre pronta, as risadas, as leituras, as manhãs de estudo e
de afeto, as viagens para Natal e por terem sido meu grupo de doutorado em João Pessoa
durante estes anos. Cada uma das mulheres deste grupo foi um pedaço de mim neste
caminhar.
Ao Lapsus e cada um de seus membros que faz nosso trabalho acontecer de forma tão
coletiva e brava! Sou grata pelos encontros acadêmicos que me proporcionaram continuar
estudando e produzindo para além da tese. Com vocês aprendo a cada dia mais sobre estar
atenta e forte. Nós somos máquina de guerra e especialistas em Karaokê. Obrigada por serem
casa e abrigo!
Ao Gepedusc, especialmente meus colegas Ivonaldo e Gilmar que mantêm vivos
projetos de que me orgulho tanto e multiplicam nossas redes de amizade e parceria. Neste
período de afastamento me levaram junto em tantas atividades que agregaram muito em meu
caminhar.
À Taty que me inspira e ensina tanto. Nessa trajetória de doutorado compartilhamos
angústias e aflições, mas também rimos, brindamos e superamos. Ela me viu com olhos de
admiração e eu colhi forças para continuar. Sororidade em ato, afeto e política. Obrigada,
querida!
À Mariana, minha amiga antes que eu mesma pudesse imaginar. Todo carinho,
solidariedade, alegria, doçura e parceria sustentados em lindos encontros, risadas e meninas
que estão crescendo juntas. Nosso calendário de festas ampliando e um amor em espiral
infinito trançando nossas famílias. Grata desde as visitas que descansavam meu coração até a
ajuda com o abstract.
A Beto e Lia que num encontro ao acaso me inquietaram sobre o amadurecer no
doutorado e mobilizaram um turbilhão em mim. Eu entendi o que vocês disseram muito
tempo depois e, agora, em meio a uma dívida imensa de cafés que nos prometemos sempre,
temos mais um laço para tricotar.
À Ludmila que foi amiga solidária nesse trilhar da escrita. Sua força e perseverança
nas horas a fio debruçadas sobre sua tese no apartamento ao lado serviram de exemplo e
inspiração. Foram três teses em um só andar do Edifício Panorama, em que a solidariedade
com o trabalho, as crianças, as plantas e até as referências bibliográficas fermentaram nossa
amizade.
À Nara, por sua fortaleza e sensibilidade, que tem o sorriso mais lindo que eu conheço
e por nos faz crer que outro mundo é possível. Obrigada por compartilharmos as dúvidas, as
angústias, as certezas e as esperanças. A melhor sócia que eu poderia ter nessa vida.
À Rebecka que é amiga-coordenadora-musa e tão librianamente presente e necessária
em nossas vidas. Certamente a astrologia não está preparada para uma sinastria como a nossa,
de uma amizade cheia de afeto e sincronias, energias combinantes e reconfortantes. Grata por
sua torcida, suas acolhidas, nossas comemorações infinitas e por dividir e multiplicar tanto
amor.
Aos queridos Isadora, Igor e Gustavo por sua doce presença, momentos de partilha,
risadas, música, poesia e suavidade. Nossos encontros sempre permeados pelas melhores
energias foram combustível para seguir mais leve.
Aos ex-alunos e sempre amigos Adriana, Aline e Joanderson que não mediram
esforços para me ouvir, receber, acompanhar e fazer a pesquisa de campo acontecer.
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN, seu corpo docente composto
por pessoas inspiradoras e também a Cilene, Lizianne e Bruno, sempre atenciosos e
cuidadosos com as demandas na Secretaria. Tenho muito orgulho de ser aluna deste
Programa.
À Universidade Federal da Paraíba, especialmente ao Departamento de Educação, por
aprovar meu afastamento para capacitação, apostando na qualificação docente como
ferramenta essencial para a Educação Pública e de Qualidade.
Finalmente, às mulheres que aceitaram gentilmente participar desta pesquisa, abrindo
suas casas, falando de suas vidas e confiando em mim.
“Ver aquilo que temos diante do nariz
requer uma luta constante” (George Orwell)
S U M Á R I O
Lista de Siglas ....................................................................................................................... xiv
Lista de Figuras ...................................................................................................................... xv
Lista de Tabelas ..................................................................................................................... xvi
Resumo ................................................................................................................................. xvii
Abstract ................................................................................................................................ xviii
Resumè ................................................................................................................................... xix
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 20
1. A medicalização da vida e a normatização da infância.................................................. 35
1.1. Medicalização: um panorama conceitual................................................................... 35
1.2. Normatização da Infância ......................................................................................... 48
1.3. Medicalização e Infância Anormal: o que há de novo? ............................................ 61
1.4. Deficiência Mental: um acontecimento em análise .................................................. 81
2. Políticas de assistência à infância: um desenho sobre o encontro entre Educação,
Saúde e Assistência Social .............................................................................................. 94
2.1 Os caminhos da Escola ............................................................................................ 101
2.2 A medicalização nos circuitos da Saúde................................................................... 108
2.3Os acessos à Política de Assistência Social .............................................................. 111
3. A cidade, a desigualdade e as pessoas ........................................................................... 128
3.1 Porque gente é feita de histórias .............................................................................. 142
3.2 A Escola que se frequenta sem coragem ................................................................. 147
3.3 Mas se Deus resolve os problemas, para que serve a Assistência Social? .............. 155
3.4 A Funad ou mais um tijolo no muro ........................................................................ 167
3.5 No meio do caminho das políticas tinha uma pedra ................................................ 173
3.6 O BPC para além do papel ..................................................................................... 180
3.7 Ainda precisamos falar sobre a Economia da Diferença ......................................... 184
Considerações Finais ........................................................................................................... 189
Referências ........................................................................................................................... 193
Apêndices ............................................................................................................................. 208
Anexos .................................................................................................................................. 215
xiv
Lista de Siglas
AEE Atendimento Educacional Especializado
APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
BPC Benefício de Prestação Continuada
CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados
com a Saúde
CRAS Centro de Referência de Assistência Social
CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social
CTRT Companhia Têxtil de Rio Tinto
DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
EJA Educação de Jovens e Adultos
FUNAD Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INSS Instituto Nacional de Seguridade Social
LDB Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional
LOAS Lei Orgânica de Assistência Social
PBF Programa Bolsa Família
SUAS Sistema Único de Assistência Social
SUS Sistema Único de Saúde
TDAH Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade
UFPB Universidade Federal da Paraíba
xv
Lista de Figuras
Figura 1. Diagnósticos e Matrículas Especiais (2010-2013) ................................................ 22
Figura 2. BPC Escola (2010-2012) ....................................................................................... 25
Figura 3. Publicações com a palavra chave medicalization (1978-2015)...............................75
Figura 4. Publicações com a palavra chave medicalization (1996-2015) ..............................77
Figura 5. Distribuição do BPC para pessoa com deficiência por faixa etária .......................120
Figura 6. Foto da praça principal e Igreja Matriz ................................................................. 127
Figura 7. Foto da entrada principal da Funad ....................................................................... 166
Figura 8. Organograma dos Setores da Funad ...................................................................... 168
xvi
Lista de Tabelas
Tabela 1. Benefícios concedidos por espécie segundo as grandes regiões ........................... 121
Tabela 2. Diagnóstico de Retardo Mental e BPC ................................................................. 122
Tabela 3. Renda das famílias entrevistadas .......................................................................... 144
Tabela 4. Organização das famílias entrevistadas ................................................................ 144
Tabela 5. Nível de Escolaridade entre adultos das famílias entrevistadas............................. 145
Tabela 6. Relação entre ano e total de matrículas regulares nas escolas da rede pública ..... 146
Tabela 7. Relação entre ano e total de matrículas especiais nas escolas da rede pública .... 147
Tabela 8. Quadro Descritivo sobre a Inclusão Escolar dos participantes da pesquisa ........ 150
Tabela 9. Relação entre Participantes e remédios utilizados ................................................ 177
xvii
RESUMO
A medicalização é uma problemática social que se atualiza em diversos aspectos da vida cotidiana. Uma de suas vertentes mais visíveis é a incidência sobre a população infantil, principalmente no que diz respeito ao controle de comportamentos e sua patologização. Um levantamento preliminar realizado pela autora e que motivou a realização deste estudo, identificou uma elevação de 100% na taxa de crianças diagnosticadas com deficiência mental, matriculadas nas escolas públicas em um município do interior da Paraíba, no período de 2010 a 2014. Concomitantemente a isto, na mesma localidade, verificou-se também o crescimento de 400% no acesso ao Benefício de Prestação Continuada para pessoas de 4 a 17 anos. Assim, a tese objetivou analisar as relações existentes entre o fenômeno da multiplicação de diagnósticos de deficiência mental em crianças, a patologização da infância e o acesso às políticas sociais naquela realidade. Para tanto, apoiou-se no materialismo-dialético como fundamento teórico para analisar os processos históricos e políticos que possibilitaram a emergência e desenvolvimento da problemática de pesquisa. Como percurso metodológico, utilizou-se a pesquisa documental e a pesquisa de campo. Na primeira etapa, analisou-se legislações e relatórios oficiais sobre a realidade local e a estrutura das políticas sociais nos campos da saúde, educação e assistência social. Na segunda fase, realizou-se cinco entrevistas semi-estruturadas com as responsáveis de crianças diagnosticadas com deficiência mental, residentes no município estudado. Além disso, realizou-se um total de nove visitas a instituições que atendem a população no campo das políticas estudadas, cujas observações foram registradas em um diário de campo. Todo o material coletado foi categorizado e confrontado com o substrato teórico, de forma a subsidiar as discussões e conclusões desta tese. Concluiu-se que as complexas relações entre os diagnósticos de deficiência mental, a patologização da infância e as políticas sociais movimentam uma rede de valores financeiros e políticos que passamos a denominar como Economia da Diferença. Constatou-se, ainda, a importância do Benefício de Prestação Continuada para a sobrevivência de muitas famílias e, ao mesmo tempo, a necessidade de reflexões críticas sobre as políticas e suas implicações com a manutenção de um modelo de desigualdade social e da ordem social vigente. Palavras-chave: Patologização; Diagnóstico; Deficiência; Desigualdade Social; Benefício de Prestação Continuada.
xviii
ABSTRACT
Medicalization is a social issue impacting different aspects of daily life. One of its most noticeable dimensions is the prevalence among children, especially regarding behavior control and its pathologization. Preliminary data collection conducted by the author, which motivated the present study, identified an increase of 100% in the number of children enrolled at public schools in a municipality in the interior of Paraíba who were diagnosed as mentally ill between 2010 and 2014. Moreover, an increase of 400% in the access to the Continued Cash Benefit Program for people between the ages of 4 and 17 was verified. This thesis aimed at analyzing the relationship between the phenomenon of rapid increase in the number of children diagnosed as mentally ill, the pathologization of children and the access to social policies in this context. The study is based on dialectical materialism so as to analyze the historical and political processes which fostered the emergence and development of these issues. The methodology included document and field research. In the first stage, current legislation and official reports on the local reality and the structure of social policies in the fields of health, education and social welfare were analyzed. In the second stage, five semi-structured interviews were conducted with the parents or guardians of the children diagnosed with mental disability living in the municipality focused on in this study. A total of nine visits to institutions which assist the population regarding the policies considered in this study were carried out and the observations recorded in a field diary. The collected material was categorized and analyzed considering the theoretical framework in order tounder pin the discussions and conclusions of this doctoral thesis. Conclusions indicate that the complex relationships between the diagnoses of mental disability, the pathologization of children and social policies are shaped within a network of financial and political values which we named as Difference Economy. The importance of the Continued Cash Benefit Program to the survival of many families was also verified, as well as the need for critical reflections on the policies and their implications in keeping a socially unequal model and the current social order. Keywords: Pathologization; Diagnosis; Disability; Social Inequality; Continued Cash Benefit Program.
xix
RÉSUMÉ
La médicalisation est une problématique sociale qui touche différentes sphères de la vie quotidienne. L’une de ses facettes les plus visibles est son incidence sur la population infantile, en particulier en ce qui concerne le contrôle des comportements et leur pathologisation. À l’origine de ce travail figure une étude préliminaire de l’auteure constatant, pendant la période 2010-2014, une majoration de 100% du taux d’enfants diagnostiqués comme présentant des déficiences mentales parmi les enfants inscrits dans les écoles publiques d’une ville de l’intérieur de l’État de Paraíba. Une augmentation de 400% de l’accès au Bénéfice de Prestation Continue pour les personnes de 4 à 17 ans est enregistrée pour la même ville et dans le même temps. C’est pourquoi cette thèse a eu pour objectif d’analyser les relations existantes entre le phénomène de la multiplication des diagnostiques de déficience mentale chez les enfants, la pathologisation de l’enfance et l’accès aux politiques sociales dans cette réalité. Pour ce faire, nous nous sommes appuyée sur le matérialisme dialectique comme fondement théorique pour l’analyse des processus historiques et politiques qui ont permis l’émergence et le développement de la problématique de la recherche. Sur le plan méthodologique, nous avons eu recours à la recherche documentaire et au travail de terrain. Dans un premier temps, nous avons analysé la législation et les rapports officiels sur la réalité locale et la structure des politiques sociales dans les domaines de la santé, de l’éducation et de l’assistance sociale. Dans un second temps, nous avons réalisé cinq entretiens semi-structurés avec les responsables des enfants résidant dans la ville étudiée et diagnostiqués comme présentant des déficiences mentales. Par ailleurs, nous avons effectué un total de neuf visites dans les institutions qui reçoivent la population dans le domaine des politiques étudiées ; leurs observations ont été inscrites dans un carnet de terrain. L’ensemble des données recueillies ont été catégorisées et mises en perspective avec la théorie, de façon à alimenter les discussions et conclusions de cette thèse. Les conclusions montrent comment les complexes relations entre les diagnostiques de déficience mentale, la pathologisation de l’enfance et les politiques sociales orientent un réseau de valeurs financières et politiques que nous désignons comme « Économie de la Différence ». Sont constatées également l’importance du Bénéfice de Prestation Continue pour la survie de nombreuses familles, ainsi que l’importance de mener en parallèle une réflexion critique sur les politiques et leurs conséquences sur le maintien d’un modèle d’inégalité sociale et de l’ordre social en vigueur. Mots-clefs: Pathologisation, Diagnostique, Inégalité Sociale, Bénéfice de Prestation Continue.
20
Introdução
O problema de pesquisa que será apresentado neste trabalho surgiu de minha prática
docente, na atividade de pesquisa com estudantes de graduação em Pedagogia em um campus
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na região do litoral norte deste estado. A
investigação desenvolvida naquela ocasião buscava compreender a realidade da educação
inclusiva no município em que se situa a universidade, por meio de entrevistas com
professoras das escolas públicas.
O trabalho levado adiante com os alunos de graduação deu destaque às falas daquelas
professoras e demonstrou as dificuldades de lidar com as práticas inclusivas nas escolas de
ensino fundamental. As profissionais seguiam tentativas isoladas de cumprir o que os
documentos oficiais apregoam como necessário para uma educação de qualidade, enquanto a
instituição e o poder público moviam poucos esforços para a efetivação de mudanças.
Entretanto, um dado que não seria tão relevante naquele projeto, mas que nos chegou
em função da temática desenvolvida, tornou-se instigante para minhas reflexões: o aumento
de matrículas nas escolas públicas de crianças cujos laudos apontavam como resultado
diagnóstico a “deficiência mental”1.
Assim, tomada por minha trajetória acadêmica, reconhecer naqueles números algo que
não pode ser naturalizado, remontou aos estudos que me dedico desde a graduação a respeito
da história social da infância. Localizo o momento em que ao ser aceita pela professora Lilia
Lobo em seu grupo “Devir criança”, me tornei pesquisadora, ainda no terceiro período da
faculdade de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. O mestrado, que seguiu os
contornos da temática, tentando compreender os discursos sobre a assistência à infância no 1 O termo Deficiência Mental é amplamente utilizado na realidade estudada, entretanto, a terminologia atualizada e correta é Dificuldades Intelectuais e Desenvolvimentais. Neste sentido, o uso de aspas tornou-se necessário para o entendimento de que referimo-nos a uma categoria histórica e analítica. Trataremos desta mudança de perspectiva que constitui a nova acepção do termo no ítem 1.4.
21
Brasil no início do século XX, somou ferramentas teóricas para esta trajetória, que ao longo
dos anos foi incrementada com minha prática profissional e exercício docente.
Portanto, perceber no aumento de “matrículas especiais”2 uma problemática social que
mereceria investigação mais cuidadosa, teve direta relação com o entendimento de que a
escola é uma instituição histórica, inserida em contextos sociais, culturais e políticos, cujas
produções não podem ser entendidas fora da relação com estes contextos. As práticas
relacionadas à educação inclusiva dentro da escola se inserem nesta compreensão e por
precisarem ser nomeadas e legitimadas em função da dificuldade de lidarmos com a diferença
_ na escola e fora dela_ ocupam lugar de destaque nos debates daqueles que trabalham com
uma Psicologia crítica. Afinal, o que estes números poderiam revelar sobre aquela realidade?
Buscando informações mais específicas, acessamos os números das “matrículas
especiais” no município de Mamanguape e, mais particularmente, a distribuição destes
números de acordo com o diagnóstico de cada criança matriculada. Tais dados não foram o
foco do trabalho de iniciação científica, mas conduziram a um movimento de questionamento
e inquietação que possibilitaram a elaboração de um projeto de pesquisa para o doutorado.
O crescimento dos laudos cujo resultado diagnóstico era de “deficiência mental” se
apresentava muito distinto de outras deficiências descritas naquele levantamento. Ainda que
outros quadros nosológicos apresentassem diferenças significativas em números absolutos, a
“deficiência mental” mostrou alterações que se mostravam gritantes. Tal explicação pode ser
mais bem visualizada na figura abaixo:
2 Termo utilizado nos documentos acessados junto à Secretaria de Educação do município e que por não se tratar da forma adequada e em conformidade com as políticas atuais será usado sempre com aspas em nosso texto.
22
Figura 1. Diagnósticos e Matrículas Especiais (2010-2013) Nota: Relação entre matrículas especiais nas escolas públicas de Mamanguape de acordo com o diagnóstico, no período entre 2010 a 2013.
A disparidade apresentada pelos números ecoava como uma problemática. A produção
de infâncias desiguais, estudada desde o tempo da graduação, permitia estranhar um quadro
nosológico com tamanho crescimento. Foi possível que este estranhamento viesse permeado
com reflexões teóricas acerca das condições histórico-materiais do contexto social, da
patologização e medicalização da infância e das políticas de assistência à infância como
prováveis norteadores da compreensão do problema e como pautas imprescindíveis a serem
exploradas nesta pesquisa.
A inserção neste campo acontece enquanto ocupo o lugar de docente da universidade,
e certamente este foi um lugar privilegiado e que facilitou a inserção em lugares e com as
pessoas a quem recorri em busca do aprofundamento da compreensão do problema e,
posteriormente, na pesquisa de campo propriamente dita. Entretanto, minha vivência naquele
Def.Me
ntal
Sind.
Asperge
r
Def.
FísicaSurdez
Baixa
visão
Def.
Auditiv
a
Def.
múltipl
a
Autism
o
infantil
Trans.D
esintegr
ativo
Cegueir
a
2010 73 1 8 0 3 3 4 0 1 0
2011 100 2 7 0 4 4 5 2 3 0
2012 126 5 12 3 3 8 14 3 7 2
2013 140 4 5 2 2 5 11 5 4 0
0
20
40
60
80
100
120
140
160
Matrículas Especiais nas Escolas do Município
2010 2011 2012 2013
23
município, até o desenvolvimento desta pesquisa, era de estrangeira, que ia e vinha nos
horários de trabalho e que pouco circulava no cotidiano da cidade. O trajeto que leva à
universidade faz circular no centro e nos principais comércios, às vezes trajetos diferentes nos
levam a ruas com casas, janelas grudadas à calçada e gente circulando. Mas suas vias nem
sempre bem calçadas e poucos atrativos para o olhar forasteiro, não eram tão convidativos
para o pausar no encontro de sua gente e de sua história.
Portanto, foi nos números que busquei mais familiaridade com aquela realidade: a
cidade se desvelou em informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]
(2010): com cerca de 42 mil habitantes sua economia gira em torno do cultivo e
beneficiamento da cana-de-açúcar, agricultura, comércio local e funcionalismo público.
Entretanto, o indicador mais chamativo é de que 39,4% de seus habitantes estão abaixo da
linha da pobreza (Instituto de Desenvolvimento Estadual e Municipal da Paraíba
[IDEME/PB], 2016). Há neste parágrafo duas informações complementares: a cana-de-açúcar
e a pobreza. O cultivo e beneficiamento desta espécie vegetal estão ligados à exploração de
trabalhadores pouco qualificados e à concentração de terras e lucros em poucas
famílias/empresas. Retrato escancarado do sistema capitalista, a dinâmica do cultivo de cana
em nosso país é histórica e, ainda que não seja o único fator determinante para a desigualdade
social, é fator constituinte de uma realidade com tanta disparidade, como veremos com mais
detalhes ao longo deste trabalho.
Como era nítido o crescimento de crianças diagnosticadas com “deficiência mental”
matriculadas na rede escolar do município, importante aposta a seguir foi compreender a
origem destes laudos e que caminhos a partir de sua obtenção seriam possíveis para estas
crianças e suas famílias.
Os números precisavam de uma narrativa mais próxima da realidade e, ainda no
estágio de elaboração do projeto a ser apresentado no doutorado, foi possível uma reunião
24
com profissional que desempenhava atividades oficiais na Secretaria de Educação do
município3. Neste encontro, graças à disponibilidade da profissional e ao acesso a uma
amostra de cerca de 30 laudos encaminhados às escolas4, constatou-se o seguinte: os
documentos eram elaborados pela Fundação Estadual Centro Integrado de Apoio ao Portador
de Deficiência (FUNAD/PB), seguindo um modelo institucional que delimita um mínimo de
informações sobre o diagnóstico, resumindo-se ao nome da criança, data de nascimento, o
esclarecimento de que foi submetida a uma avaliação interdisciplinar e o diagnóstico seguido
do código na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados
com a Saúde (CID 10). Todos os laudos acessados, naquela ocasião, apontavam Deficiência
Mental, variando entre leve, moderada ou grave.
Os encaminhamentos e laudos, além de circularem no âmbito da escola e dos setores
de atendimento da FUNAD/PB (que além de diagnosticar, são responsáveis pelas indicações
terapêuticas), possibilitam que os responsáveis pelas crianças busquem acesso ao benefício de
prestação continuada, previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (BPC/LOAS).
Portanto, outra importante comparação refere-se ao crescimento significativo do
número de BPC/LOAS concedidos a pessoas com deficiência na faixa etária entre 4 e 17
anos, matriculadas no período de 2010 a 2012 naquele município.
3 Sua função e cargo não serão descritos para preservar sua identidade. 4 No ano de 2014, em função da Nota Técnica Nº 04 / 2014 / MEC / SECADI / DPEE deixou de ser obrigatória a entrega de laudo médico para a garantia do direito ao atendimento educacional especializado ou para declaração no Censo Escolar. (https://goo.gl/y6BWJX)
25
Figura 2. BPC Escola (2010-2012) Nota: Crescimento de concessão de Benefício de Prestação Continuada a pessoas com deficiência na faixa etária entre 4 e 17 anos, matriculadas em escola pública no período de 2010 a 2012, no município de Mamanguape.
A concessão de tal benefício não depende apenas do diagnóstico de deficiência, mas
de uma comprovação de pobreza que indique a necessidade do acesso à política. Tal
comprovação se estabelece a partir da renda familiar, que deve ser menor que 1/4 do salário
mínimo para cada membro da família. (Decreto 6.214/2007)
Ainda de acordo com a profissional da Secretaria de Educação do município, a procura
por este benefício tornou-se grande, e não só direcionada a crianças, mas a pessoas de todas as
idades. Tal fato era conhecido porque o Ministério Público solicitou um levantamento de
quantas pessoas em Mamanguape utilizariam medicamentos controlados para tratar de
transtornos mentais e/ou estariam em atendimento especializado buscando um diagnóstico. O
levantamento estaria sendo realizado com a ajuda dos agentes de saúde do município e foi
disparado por dois elementos importantes: a) a grande quantidade de processos que chegam
ao âmbito do judiciário, solicitando o BPC/LOAS; b) o aumento do numero de ônibus que se
deslocam do município em direção à capital para levar pessoas em atendimento à
FUNAD/PB. Tratava-se de três ônibus da prefeitura que saem quase diariamente para atender
0
50
100
150
200
250
2010 2011 2012
BPC/Escola
BPC/Escola
26
esta população. Cabe esclarecer que as pessoas que se dirigem à fundação, são aquelas que já
estão em tratamento e as que estão passando por processo de triagem/diagnóstico.
Durante este encontro, o contexto além de números, ganhou rostos e histórias que
delinearam melhor o contexto a ser investigado, mas uma das falas marcou profundamente a
importância e o desejo pela pesquisa ora proposta: “A gente trabalha com crianças muito
comprometidas e carentes. Elas não têm o mínimo de dignidade para viver, mas mantêm com
o benefício, uma família inteira.”
Ao revisitarmos alguns números sobre a população de Mamanguape, chama a atenção
pensar que quase 40% dos habitantes vivem abaixo da linha da pobreza, número maior que a
realidade do estado, representada por 30 % (IDEME/PB, 2016) e discrepante da realidade
nacional, representada por 7,4% (ONUBR, 2017). Em números absolutos representa cerca de
12 mil pessoas no município e que este também é o numero estimado de habitantes que
integram o grupo de deficientes que buscam, ou estão buscando, o BPC/LOAS.
Ainda ouvindo histórias de pessoas das comunidades ou de agentes do Sistema
Educacional, de maneira informal e não proposital (seja na universidade, nos relatos de alunos
sobre o cotidiano, seja nos locais da cidade em que moradores falam sobre a rotina) sabe-se
que é comum a prática de recomendar para a vizinha ou amiga o medicamento que o filho está
tomando e até emprestar alguns comprimidos para que outra criança se “comporte melhor” ou
fique “mais calma”. As mesmas recomendações sobre a obtenção do benefício social circulam
entre as mães5, bem como onde buscar ajuda, seja na Funad, no CAPSi da cidade vizinha, ou
com psiquiatras da rede pública.
A patologização e medicalização da infância enquanto problemáticas da Sociedade
Contemporânea emergem neste contexto de formas complexas. De maneira geral, os trabalhos
5 Utilizamos “mães” apenas para nos referirmos às cuidadoras de crianças com deficiência que em sua grande maioria são as mulheres, mães ou avós, e por isso mesmo, as figuras que mais aparecem nos discursos do senso comum, mas recusamos a lógica de culpabilização e estigmatização da mulher, como bem pode ser visto ao longo do trabalho.
27
a respeito da medicalização da infância têm se voltado principalmente para o campo
educacional no que se refere aos diagnósticos do Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade e sua relação com o medicamento metilfenidato. Sem dúvida, questões
imprescindíveis na realidade brasileira ao se levar em conta o alto consumo desta droga e suas
consequências para a saúde das crianças, o lucro e as engrenagens movidas pela indústria
farmacêutica, bem como, a articulação com os problemas no campo educacional e a
banalização do diagnóstico por profissionais da saúde, entre outras problemáticas (Moyses &
Collares, 2006 e 2010).
No que diz respeito à realidade que buscamos compreender, as questões que
perpassam e sustentam a patologização e medicalização da infância estão apoiadas na
produção da desigualdade social, ganhando contornos singulares. Os laudos, tratamentos e
medicações são direcionados às famílias pobres, que buscam por sua vez no BPC/LOAS uma
estratégia de sobrevivência.
Ao longo do trabalho tentamos discutir o conceito de medicalização, sob a perspectiva
de que problemas de ordem social, cultural e histórica transformam-se em problemas de
ordem médica com explicações biologizantes, tornando questões amplamente complexas e
situadas no tecido social, em versões de ordem meramente orgânica e individual. Ou seja,
trata-se de eficiente estratégia de controle de grupos sociais que nega direitos fundamentais e
garante por outro lado intervenções que mantém submissos e docilizados os sujeitos.
Há todo um complexo alinhamento de interesses políticos, econômicos e sociais que
estão em jogo. Nesta rede, em que os especialistas e o Estado apontam para a tutela e
submissão dos sujeitos, para a classificação e regulação dos grupos, as famílias criam
estratégias de sobrevivência.
Seria possível afirmar que existe uma relação entre o aumento de crianças
diagnosticadas com “deficiência mental”, as matrículas especiais nas escolas do município,
28
bem como o acesso ao BPC/LOAS? No centro desta problemática, as expressões
multifacetadas da “questão social”6, que de modo geral, já poderiam ser enumeradas aqui
como a desigualdade social, as estratégias de controle sobre as populações mais pobres, as
políticas sociais fragmentadas no atendimento das demandas sociais e a busca por parte destas
populações por estratégias de sobrevivência. Para que possamos compreender a dinâmica
entre medicalização, interesses econômicos, mecanismos de controle, práticas sociais e
também possíveis processos de resistência presentes nesta realidade, esse fenômeno precisa
ser investigado a partir de suas raízes.
Neste sentido, os pressupostos do materialismo histórico-dialético dirigiram a conduta
investigativa proposta por este trabalho. O conhecimento sobre o fenômeno estudado
demandou a apreensão de sua aparência, da forma como se apresenta na realidade, para que,
então, através da investigação da materialidade dos processos histórico-sociais fosse possível
a compreensão de sua gênese e seu desenvolvimento, desvelando os nexos e contradições,
nem sempre visíveis na aparência. O objeto de análise compõe uma totalidade histórica que o
constitui e, nesta dialética, é necessário situá-lo no campo singular, apreendendo a
materialidade concreta dos processos envolvidos e estabelecer suas relações com uma
determinada universalidade. A postura do investigador, nesta perspectiva, envolve a
organização do processo de conhecimento de forma crítica, compreendendo a realidade em
uma concretude situada por suas contradições e transformações históricas. Portanto, um
trabalho com vistas à transformação da realidade social em que está inserido.
Nesta tese, o problema de pesquisa baseou-se em torno de uma pergunta central:
Tomando como referência uma cidade do interior da Paraíba, quais as conexões entre, a
6 O fundamento das expressões da “questão social”, de acordo com Behring e Boschetti (2011): “se encontra nas relações de exploração do capital sobre o trabalho. A questão social se expressa em suas refrações e, por outro lado, os sujeitos históricos engendram formas de seu enfrentamento” (p.51).
29
patologização da infância, a medicalização da vida e as políticas públicas de assistência à
infância?
Assim, o objetivo geral do presente estudo foi analisar as relações existentes entre o
fenômeno da multiplicação de diagnósticos de deficiência mental em crianças, a
patologização da infância e as políticas de proteção social à infância em um município do
interior da Paraíba. Nesse sentido, os objetivos específicos foram: a) Caracterizar a população
infantil em idade escolar com diagnóstico de deficiência mental nos aspectos sócio-
demográficos, de inclusão escolar e de acesso ao BPC/LOAS; b) Caracterizar o processo de
elaboração do diagnóstico de deficiência mental: instituições responsáveis, demandas, etapas,
instrumentos utilizados e documentos produzidos; c) Relacionar o perfil sócio-econômico, a
trajetória de vida e os caminhos que a família da criança diagnosticada com deficiência
mental, que acessou o BPC/LOAS, percorre junto aos setores, equipamentos e serviços
disponibilizados pelas políticas públicas vigentes.
Como percurso metodológico, apostamos na pertinência de compor esta investigação
com dois procedimentos de pesquisa distintos, mas que estiveram interligados e se
complementam: pesquisa documental e pesquisa de campo, esta última composta por
entrevistas e pelo diário de campo.
No que diz respeito à pesquisa documental tratou-se de um levantamento junto a
documentos oficiais, relatórios, informes estatísticos e legislação a respeito de políticas
sociais em âmbito nacional e local, funcionamento dos equipamentos disponíveis e foco desta
pesquisa e números relativos à realidade a ser caracterizada. Com esta etapa, obtivemos uma
relação importante de dados que contemplaram parcialmente a necessidade de caracterização
do contexto em que se inserem nossas análises e que dialogaram com os dados obtidos em
outras etapas.
30
Com relação à pesquisa de campo, foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas com
os responsáveis por crianças diagnosticadas com deficiência mental e que recebiam, ou
estavam solicitando através de processo formal, o BPC/LOAS. Além disso, visitas aos
equipamentos das políticas sociais que se destacavam no circuito de atendimento das
demandas pelo diagnóstico ou pelo benefício foram realizadas e as informações obtidas
sistematizadas no diário de campo.
A etapa das entrevistas será descrita a seguir e destaque-se que houve muita dificuldade
em conseguir acessar estas pessoas. A primeira possibilidade seria conseguir contatar as mães
através do “Grupo de mães de pessoas deficientes” que acontecia no CRAS da cidade
quinzenalmente. Tomei conhecimento e participei de um encontro no ano de 2016. Entretanto,
em 2017 quando o trabalho de campo deveria ser aprofundado, o CRAS estava com as
atividades suspensas em função de uma mudança de imóvel e com nova equipe e
coordenação, o que inviabilizou a estratégia inicial.
Em seguida, optou-se por buscar os contatos na Secretaria de Educação, mas em função
de questões políticas referentes à mudança de governo, a troca de profissionais atuando no
órgão dificultou o diálogo e o acesso aos contatos.
Em função das eleições municipais no ano de 2016, houve troca de gestão da cidade no
início do ano de 2017, o que ocasionou a rotatividade de muitos cargos, tanto nas Secretarias,
quanto em órgãos e serviços ligados ao poder público municipal. O novo grupo político que
assumiu o governo era oposição à antiga gestão, o que significou para esta pesquisa, que as
pessoas que ocupavam as coordenações atuais não eram tão receptivas e impunham algumas
dificuldades para minha aproximação, pois entendiam que, se havia algum contato
estabelecido em ocasião anterior, haveria vínculo com o grupo político rival.
Diante de muitas idas ao município e dos obstáculos encontrados, recorri ao grupo de
alunos que compuseram meu grupo de iniciação científica, para que me apresentassem a
31
pessoas na cidade que teriam o perfil necessário para a pesquisa. Uma de minhas ex-alunas
me acompanhou em todas as entrevistas. A primeira entrevista foi com uma vizinha de sua
rua e, ao final, pedi que esta me indicasse outra pessoa, o que se repetiu em todas as
entrevistas, garantindo o método da bola de neve.
É preciso ressaltar que estar acompanhada desta ex-aluna, reconhecida pelas
entrevistadas como membro da comunidade local, garantiu que as pessoas se sentissem à
vontade não só para abrir o portão e me receber em suas casas, mas para estabelecer um
vínculo de confiança e responder sem constrangimento às perguntas. Ao final de cada
entrevista, as colaboradoras ofereciam água, café, doce, no que interpretamos um gesto de
gentileza e acolhida em sinal de terem se sentido à vontade durante o processo.
No total, foram realizadas cinco entrevistas, utilizando-se roteiro de entrevista semi-
estruturado e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, pautado na garantia dos
parâmetros éticos em pesquisa e ambos seguem como apêndice desta tese. Neste estágio,
cuidamos para que o instrumento de pesquisa escolhido, o roteiro de entrevista semi-
estruturado, fosse capaz de elencar em seus itens a coleta de informações como: o perfil
sócio-econômico, a trajetória de vida e os caminhos que a família da criança diagnosticada
com deficiência mental, que acessou o BPC/LOAS, percorreu junto aos setores, equipamentos
e serviços disponibilizados pelas políticas públicas vigentes. Tentou-se assim, a obtenção de
dados necessários para dialogar com os demais e subsidiar o debate que contemplasse os
objetivos desta tese.
Ao longo de todo o percurso metodológico, utilizamos o diário de campo como
expediente de observação do campo de pesquisa, sistematização de informações levantadas
durante reuniões, registro dos encontros com pessoas, detalhes do cotidiano e outros aspectos
relevantes que poderiam não ser contemplados com as outras estratégias utilizadas. Diversas
inserções em instituições e reuniões com responsáveis pelas mesmas_ tais como a FUNAD,
32
cuja recepção pelos profissionais colaborou grandemente para compreender o funcionamento
da instituição, elaboração dos laudos e encaminhamento para o recebimento do BPC/LOAS_
reunião com responsáveis por setores públicos e visitas ao CRAS do município, tiveram no
registro do diário de campo estratégia fundamental para utilização de dados na pesquisa.
O procedimento de notas do diário de campo acontecia da seguinte maneira: em
primeiro lugar registro de informações relevantes durante a realização da atividade em um
caderno próprio; em segundo lugar, assim que encerrava alguma atividade, sejam entrevistas,
visitas a instituições, reunião com pessoas, participação em grupo, etc, buscava-se um local
reservado e iniciava-se uma gravação de voz com dados sobre a atividade realizada (tempo de
duração, local, objetivo, participantes e ações desenvolvidas) e, em seguida, todas as
impressões tanto sobre pequenos detalhes percebidos, quanto aos momentos mais nítidos e
ligados aos objetivos da ação propriamente dita.
A transcrição das entrevistas e do diário de campo foi concomitante ao andamento da
pesquisa, ou seja, não ficou acumulada para um momento final. Isso colaborou sobremaneira
para o exercício de investigação, pois levava a pesquisadora a se manter conectada com os
dados produzidos de forma sistemática.
Todas as informações foram lidas exaustivamente e, posteriormente, postas em relação
com o substrato teórico. A estratégia utilizada para este empreendimento foi a criação de
eixos temáticos que contemplassem o debate proposto pelos objetivos deste trabalho. Isto
pode ser claramente conferido pela divisão proposta no terceiro capítulo, cujos subitens
propõem uma contextualização do cenário sociohistórico do município, a caracterização das
famílias entrevistadas, o modo de funcionamento das políticas sociais no campo da educação,
da assistência social e da saúde, o acesso ao BPC e finalmente, a articulação desses eixos com
o problema de pesquisa proposto nesta tese de modo mais enfático.
33
Neste sentido, a construção dos capítulos teóricos foi proposta em torno dos debates
sobre a Medicalização e as Políticas Sociais.
No primeiro capítulo, tratou-se de proceder a um levantamento histórico sobre o
conceito de medicalização, em seguida o debate sobre a normatização da infância como
articulado a esta temática e finalizando com a problematização do diagnóstico de deficiência
mental, elemento estratégico no tocante ao tema da pesquisa.
No segundo capítulo, buscou-se delinear o campo das políticas sociais no que tange ao
atendimento dos direitos da criança. O desenho de como se definem estas políticas,
principalmente caracterizando os serviços que deveriam ser ofertados, servem como subsídio
para o debate empreendido nas análises do capítulo seguinte. Deu-se ênfase principal no
campo da assistência social, ao Benefício de Prestação Continuada e os dados sobre esta
realidade no Brasil e no estado da Paraíba, de modo a compreendermos que a problemática
encontrada no município estudado não é isolada e carece de mais debates.
Finalmente, no terceiro capítulo, abordou-se a realidade local, articulando-se os diversos
elementos pesquisados e os dados da pesquisa de campo, de forma a, tanto delinear o contexto
específico, quanto a de debater a problemática de forma ampliada.
O trabalho de tese, a partir das análises empreendidas sobre a complexa relação entre
medicalização da infância e políticas sociais, propôs o conceito de Economia da Diferença
como forma de caracterizar a circulação de valores políticos e econômicos presentes nas
engrenagens que movimentam aquela relação. Tal conceito foi pensado ao longo da
investigação proposta, é inédito, transversal aos aspectos estudados e será melhor definido
após a descrição das categorias elencadas no ultimo capítulo, como forma de elucidar as
descrições feitas até ali e concretizar uma linha de raciocínio que se estabeleceu ao longo do
trabalho.
34
No tocante aos resultados, esperamos que as reflexões desse trabalho possam contribuir
com uma análise crítica a respeito da lógica da patologização da infância localizando-a como
uma estratégia de controle dos comportamentos desviantes, bem como colaborar para o debate
sobre a importância das políticas sociais. Outras contribuições foram sugeridas nas
Considerações Finais de forma a concluir este trabalho, não como o encerramento de um
debate, mas como a possibilidade de ampliar as perspectivas de problematização e diálogo
sobre a temática estudada.
35
CAPÍTULO 1 _________________________________________________
A medicalização da vida e a normatização da infância.
1.1. Medicalização: um panorama conceitual
De acordo com Murgia, Odorika e Lendo (2016), há na história do conceito de
medicalização uma polissemia, já que seu estudo perpassa diferentes disciplinas como a
antropologia, a saúde pública, a economia e a bioética. Nestes campos, é possível perceber
diferentes agendas de trabalho e estratégias de pesquisa. Entretanto, é necessário afirmar que
o conceito de medicalização encontra conciliação em todos os campos em sua definição mais
geral: significa transformar um problema que antes não seria médico em uma desordem,
doença, ou enfermidade, que precisa de atenção, cuidados e intervenção médica.
Varios autores coinciden en que la clave de la medicalización es su definición, de tal
forma que un problema de índole no médica se define como problema médico, es
descrito en lenguaje médico y se entiende a través de la adopción de un marco médico,
ya que según cómo se defina un problema cambiará el marco de referencia para
intervenir sobre él. (Natella, 2008, p.11)
A definição nestes termos colabora para a apreensão de uma dimensão mais geral do
conceito, mas a partir dele, deriva-se a necessidade de compreendê-lo como um fenômeno
cultural moldado por configurações históricas, sociais, políticas e econômicas. Afinal,
compreender o conceito não trata apenas de conhecer uma história da medicina, já que, à
primeira vista, poder-se-ia supor que transformar questões não-médicas em médicas, teria
36
relação direta apenas com este campo de saber. Trata-se de compor a complexidade deste
processo com a própria produção do normal e do patológico, implicada com outros campos do
conhecimento.
A emergência do conceito de medicalização surge em meados do século XX, na
Europa e nos Estados Unidos, em um contexto de efervescência do pensamento intelectual de
esquerda, problematizador da conjuntura política e social da época e contestador da produção
científica das ciências sociais e humanas baseadas em um enfoque positivista e liberal. A
crítica se dirigia à suposta neutralidade e objetividade nos estudos acerca das relações sociais.
Nesta direção, um importante questionamento a respeito de que a normatividade sobre os
comportamentos não poderia ser compreendida como parte de uma natureza humana, mas
determinada por uma realidade histórica implicada na fabricação de certo controle social.
Na esteira deste debate, o comportamento desviante pôde ser entendido como forjado
em uma construção histórica, política e cultural, localizada, principalmente, nas práticas e
discursos da instituição médica. Algumas das principais referências que poderíamos aludir:
“O normal e o patológico” (1943) e “Novas Reflexões referentes ao Normal e ao Patológico”
(1963-1966) de Georges Canguilhem, “O nascimento da Clínica” (1963), “O poder
psquiátrico” (1973) e “Os Anormais” (1974) todos de Michel Foucault, além de “O Mito da
Doença Mental” (1960) e “A fabricação da loucura” (1970) de Thomas Szasz.
Inspirados nestas obras, pensadores de diferentes concepções teóricas trouxeram,
como foco de seus estudos, questionamentos críticos a respeito destas engrenagens de
controle social ligadas à normatização da conduta humana. Um dos principais destaques é o
Movimento da Antipsiquiatria, que de acordo com Oliveira:“(...) questionava a psiquiatria em
seu cerne, negando todas as formas de tratamento tradicional da loucura, e seus seguidores
acreditavam que a loucura é construída, fabricada pelas relações de poder e também a partir
de práticas discursivas” (2011, p. 143)
37
No contexto de efervescência destes pensamentos críticos, emerge o conceito de
medicalização, alinhado às perspectivas contestadoras e de enfrentamento aos modelos
teóricos biomédicos.
De acordo com Odroika et al (2016), a palavra medicalização, concebida como um
conceito teórico que dará corpo a uma análise problematizadora das definições médicas de
desvio e seus efeitos na sociedade, surge pela primeira vez em 1968, em um texto de Jesse
Pitts na Encyclopedia Internacional of Social Sciences. Desde então, tornou-se um conceito
sociológico recorrente na literatura, aparecendo inclusive como verbete no Dicionário de
Sociologia, sendo definido da seguinte maneira:
Medicalização é o processo social através do qual uma experiência ou condição
humana são culturalmente definidas como patológicas e tratáveis pela medicina. Em
muitas sociedades industriais, por exemplo, a obesidade, o comportamento criminoso,
o abuso de álcool e drogas, a hiperatividade infantil e o abuso sexual foram definidos
como problemas médicos que são, como resultado, cada vez mais passados aos
cuidados e tratamento de profissionais do ramo. No que interessa à sociologia, o
processo é socialmente muito importante porque concede à profissão médica
autoridade para definir as respostas sociais apropriadas a várias condições e
comportamentos e, com ela, certo grau de controle sobre as mesmas. (Dicionário de
Sociologia, Allan Johnson, 1997)
No campo da Filosofia, o termo medicalização foi utilizado pela primeira vez por Ivan
Illich (1926 – 2002) em seu livro “Nemesis Medica” (1975). Na parte II deste livro, há,
justamente, um capítulo denominado “A medicalização da vida”, ainda que todo o texto
remeta à centralidade deste conceito. Importa ressaltar que já naquele momento de
efervescência de um campo teórico-crítico, Illich elabora um importante trabalho que
apontará as relações da medicina moderna com a indústria, a tecnologia e as relações sociais,
38
estabelecendo a medicalização como ponto nodal para a compreensão dos interesses e forças
que estarão em jogo neste cenário.
O primeiro parágrafo da Introdução anuncia aquilo que Illich desenvolverá em seu
livro:
La medicina institucionalizada ha llegado a convertirse em uma grave ameanaza para
la salud. La dependencia respecto de los profisionales que atienden la salud influye em
todas lãs relaciones sociales. Em los países ricos, la colonización médica ha alcanzado
proporciones morbrosas: em los países pobres está rapidamente ocurriendo lo mismo.
Hay que reconocer sin embargo el carácter político de este proceso, al que
denominaré la “medicalizacion de la vida”. (Illich, 1975, p.9)
Esta obra tornou-se referência para os trabalhos que tratam de medicalização,
principalmente por sua referência temporal. Artigos que elaboram um panorama histórico, o
utilizam como indicação de que inaugurou o uso do termo medicalização, sem que
privilegiem necessariamente os debates que empreende neste trabalho. Entretanto, trata-se de
um texto de grande relevância, que apresenta debates contundentes e importantes ainda hoje,
contendo dados a respeito do sistema de saúde da Europa, dos Estados Unidos e da América
Latina, que podem se configurar como dados históricos e comparativos com o cenário atual.
Sua análise teórica expõe a complexidade do tema diante de uma sociedade industrializada
que transforma a saúde em um bem de consumo, mostrando as relações econômicas derivadas
daí em diversos âmbitos sociais. Da mesma forma, aponta a alienação dos indivíduos sobre os
processos de saúde como artifício necessário para a ascensão do poder médico no cotidiano da
vida das pessoas.
Sua obra tornou-se referência no campo de estudos da Saúde Coletiva na década de
1970 e subsidiou posicionamentos críticos necessários naquele campo (Nogueira, 2003).
39
O conceito de medicalização ganhou visibilidade maior nos estudos de Peter Conrad
(1945-) que em seu trabalho “Identifying Hyperactive Children: The Medicalization of
Deviant Behavior”, lançado em 1976, trouxe à tona questionamentos críticos a respeito do
diagnóstico e tratamento do TDAH como pano de fundo para a discussão da medicalização.
Outros trabalhos do autor são considerados essenciais nos estudos a respeito do tema da
medicalização e ainda hoje, é uma referência internacional para a discussão desta temática.
(Murgia et al, 2016; Faraone, Barcala, Torricelli, Bianchi & Tamburrino, 2010; Barbiani,
Junges, Asquidamine & Sugizaki2014)
Quase trinta anos mais tarde, o mesmo autor publicou o artigo “The shifting engines
of medicalization” (2005), em que desenvolve uma revisão sobre o conceito de medicalização
e de como é preciso compreendê-lo segundo as transformações históricas, ilustradas em seu
trabalho pelas mudanças ocorridas da década de 1980 aos anos 2000. O autor aponta que nos
anos 1980 é possível elencar três aspectos principais que definirão a medicalização naquele
momento: a predominância do saber médico como lugar de poder e controle das populações
através da manutenção do conhecimento médico como lugar da verdade, que ele denomina de
‘medical colonization’. Além disso, o interesse de alguns grupos e movimentos sociais que
viam na medicalização a possibilidade de controle de comportamentos e eventos tidos como
desordens químicas, tais como o alcoolismo. Por último, a organização de profissionais em
torno de especialidades que legitimavam para si a intervenção sobre certos aspectos da vida,
como, por exemplo, a obstetrícia e a supressão das parteiras, bem como a pediatria ligada não
só ao controle do processo saúde/doença, mas ao comportamento infantil.
Murgia et al (2016) e Conrad (2007) afirmam que, na década de 1990, em função do
desenvolvimento de pesquisas voltadas para fenômenos concretos de medicalização, foi
possível uma virada conceitual que ampliou a compreensão do conceito. De acordo com os
pesquisadores, é preciso entendê-lo como um processo que vai além da medicamentalização,
40
ou seja, da prescrição e uso de fármacos. Devemos incluir o controle médico sobre a vida
como a faceta preponderante, e, também, o papel dinâmico dos múltiplos atores sociais que
compõem e dinamizam este cenário.
Como já afirmado anteriormente, os contextos histórico-sociais são o pano de fundo
para que o fenômeno possa se transformar, bem como as análises sobre ele. Os trabalhos de
Illich e Conrad, desenvolvidos na década de 1970, serão revistos pelos autores em décadas
posteriores, e guardadas as dimensões epistemológicas de suas obras, ambos apontarão novos
cenários e complexificação da problemática da medicalização, tanto em função das
transformações sucedidas no período de tempo decorrido, quanto da própria revisão
conceitual que compreendem como necessária.
De acordo com Nogueira (2003), na década de 1990, Illich fez uma autocrítica das
concepções desenvolvidas em “Nemesis Médica”. Em suas novas análises, o autor concebe
uma vertente que não teria sido pensada inicialmente: a busca do corpo sadio como um
empreendimento que é construído não só pela Medicina, mas pela mídia, indústria e comércio
interessados no mercado da experimentação da saúde ideal através do corpo perfeito. Tal
processo foca no indivíduo a função de buscar incessantemente este ideal. Influenciado pelos
trabalhos de Foucault, afirma que todo o investimento sobre o corpo gera uma necessidade
obsessiva pela saúde.
Para Conrad (2007), na década de 1990, percebe-se o alargamento das pesquisas
científicas ligadas ao funcionamento do corpo humano, tais como: a genética, o
desenvolvimento de exames de imagem de alta resolução, o avanço da indústria farmacêutica
e a abordagem neoliberal nas políticas de saúde (principalmente no caso dos Estados Unidos),
marcando uma diferenciação nos processos de medicalização daquela década para a
atualidade.
41
Em trabalho desenvolvido por Clarke e colaboradores (2003), estes aspectos indicam
uma transformação dos processos de medicalização em função da complexificação e
incremento da biomedicina e das tecnologias disponíveis para intervenção no corpo e na
saúde. Nesse sentido, usam o termo biomedicalização para abranger um novo modo de
compreender o fenômeno. As justificativas para o uso desta nova perspectiva se apoiam em
cinco pilares/recortes principais: 1) a reconstituição da política econômica de um vasto setor
da biomedicina, 2) o foco na saúde de si e o risco e vigilância da biomedicina, 3) o
incremento tecnológico e científico da biomedicina, 4) transformação em como o
conhecimento biomédico é produzido, distribuído e consumido, além da gestão da informação
médica, 5) transformação de corpos, incluindo a produção de novas identidades
tecnocientíficas individuais e coletivas.
(...) [biomedicalização] compreendido por uma nova economia biopolítica da
medicina, saúde e doença, por mudanças nas formas de viver e de morrer, pela
afirmação de uma arena complexa na qual os conhecimentos biomédicos, serviços e
tecnologias são cada vez mais intrincados, e por um novo e cada vez mais acirrado
foco na otimização e no aperfeiçoamento individual por meios tecnocientificos e na
elaboração do risco e da vigilância no nível individual, grupal e da população.
(Zorzanelli, Ortega & Bezerra Junior, 2014, p. 1864).
De acordo com Conrad (2005), as mudanças apontadas nesta perspectiva não se tratam
de transformações qualitativamente diferentes, capazes de denotar outro nível do processo
medicalização. Segundo o autor, são incrementos do mesmo processo e que a abordagem da
biomedicalização, ao apontar em outras direções, perde de vista o processo central que é a
transformação de questões não médicas em questões médicas. Aquilo que se apresenta para
além deste núcleo principal deve ser compreendido como incrementos sociais.
42
Entretanto, Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) afirmam que a abordagem da
biomedicalização guarda debates conceitualmente próximos daqueles que propõe Conrad
(1975 e 2007). Além disso, apostam na importância de que os temas trazidos pela
biomedicalização, tais como o transplante de órgãos e o uso de células-tronco, por exemplo,
aproximam-se de interseções com o campo da bioética, condição necessária para ampliação
do debate.
Importa pensar que o processo de medicalização visto na contemporaneidade está
diretamente ligado ao sucesso que a intervenção médica obteve e continua tendo nos
processos de adoecimento do corpo. É inegável que o avanço científico proporcionou
possibilidades de prevenção e intervenção sobre doenças, e o reconhecimento deste êxito é
também parte do giro conceitual. Ou seja, o entendimento de que as pessoas não estão apenas
passivas neste processo: seja resistindo ou promovendo a medicalização, os sujeitos sociais
estão ativos nesta relação (Conrad, 2007; Calrke, 2010; Zorzanelli, Ortega & Bezerra Junior,
2014). Portanto, ao positivar a compreensão da biomedicina, é possível dimensionar não só o
exercício do controle social, mas deixar de subestimar suas capacidades curativas e a
participação dos sujeitos sociais neste processo, e só a partir daí reconhecer a hegemonia do
modelo médico e ampliar nossas reflexões sobre ele. (Murgia et al., 2016).
Seria necessário pensar (...) o cenário cultural que propicia um crescimento de
processos de medicalização por escolha, para além dos impostos pela autoridade
médica, bem como dos diferentes usos das categorias diagnósticas, em prol de
objetivos medicalizantes e desmedicalizantes. (Zorzanelli, Ortega & Bezerra Junior,
2014, p. 1864).
Segundo a análise de Conrad (2005), três aspectos serão relevantes para compreender
a mudança da organização e conhecimento médicos que delineiam esta nova face da
43
medicalização: biotecnologia, consumidores (ou padrões de consumo) e gerenciamento do
cuidado.
A biotecnologia está ligada ao modo como o desenvolvimento do conhecimento
biológico sobre o corpo humano produz novas drogas, intervenções e procedimentos. Suas
reflexões apontam que a relação entre uma doença e o uso da medicação está diretamente
ligada a produção e comercialização de remédios que a indústria consegue fazer circular
legalmente.
As pesquisas ligadas à biotecnologia, especialmente as de genética humana, implicam
na possibilidade do mapeamento de gens e, portanto, na identificação das possíveis doenças
que o indivíduo poderia desenvolver em função de sua genética. Decorre daí, a criação de um
novo status de medicalização: a virtualidade do adoecimento, que produz novas fórmulas
medicamentosas capazes de prevenir aquilo que a genética apontou como potencialidade.
Entre os processos de medicalização podem ser apontados o consumo de produtos e
intervenções ligados aos cuidados e transformações com o corpo, à disposição física e sexual,
às habilidades cognitivas e sociais. Como exemplo: as cirurgias plásticas com finalidades
estéticas, o consumo de hormônios, as substâncias psicoativas para controle da ansiedade ou
para aumento da atenção.
En la actualidad, los saberes tecnológicos asociados a la teleinformática reproducen un
ritmo vertiginoso y global, virtual y digital, intentando un programa más radical de
producción de sujetos, interviniendo directamente en los códigos genéticos o circuitos
cerebrales. Las pruebas genéticas pueden “etiquetar” a las personas con riesgo de
padecer trastornos, en tanto los tratamientos genéticos avanzan en medio de
cuestionamientos éticos. (Natella, 2008, p. 13)
Seguindo o pensamento de Conrad e Leiter (2004), pacientes tornaram-se
consumidores de tratamentos, remédios, intervenções. Ligados a este mercado estão as
44
grandes corporações farmacêuticas, as clínicas e hospitais que apostam em um público-alvo
cada vez mais disposto a investir em não sofrer, estar dentro dos padrões estéticos, manter-se
produtivo e sociável. Exemplos deste mercado e consumo em larga escala são: o consumo de
Viagra, de HGH (Hormônio do Crescimento para Crianças), as cirurgias de seios e
lipoescultura, os antidepressivos, os psicotrópicos ligados ao TDAH.
A medicalização no século XXI implica problematizar um campo complexo entre a
indústria farmacêutica, suas propagandas e articulações com o mercado de saúde; as
descobertas das pesquisas de biotecnologia; as demandas de consumo e como são fabricadas
no tecido social; a saúde como um mercado que envolve atores diversos como médicos,
hospitais, clínicas e a própria política social de saúde; a globalização como fator de
internacionalização da produção de demandas em saúde, o que envolve pensar a internet, mas
também as grandes corporações que se instalam em diversos países.
Al ritmo que el capitalismo contemporáneo iba adoptando nuevas formas, dinámicas y
escalas, el proceso de medicalización ha variado sus prácticas, saberes y estrategias,
así como las clases y cantidad de problemas que incorpora. Por lo tanto, la
medicalización es en plural, ya que ha presentado variaciones no sólo en su campo
semántico y conceptual y en las características de los procesos, políticas, técnicas y
saberes por las que se lleva a cabo, sino también en sus consecuencias respecto de la
salud, bienestar y supervivencia para los sujetos y las comunidades. (Epele, 2008, p.
84)
Assim, alerta importante de Conrad (1992) é a importância do contexto cultural. Suas
investigações e intercâmbios com pesquisadores de diferentes lugares do mundo
demonstraram que as formas de adoecimento, bem como a expansão médica em determinados
campos da vida humana são determinados pelas construções sociais de cada contexto. Um dos
exemplos a que o autor recorre é o fato de não serem constatados, na época de elaboração do
45
artigo, na Indonésia, nem na China, casos de anorexia. Aponta ainda que o modo como o
nascimento é submetido ou não aos cuidados médicos dependem de como cada cultura
construiu a abordagem sobre este processo.
De acordo com Natella (2008), quadros que não eram conhecidos há quarenta anos,
tais como: anorexia, transtorno do pânico, síndrome pré-menstrual, por exemplo, demonstram
a expansão diagnóstica e a extensão da medicalização. Tais fatos apontam que as
manifestações subjetivas são capturadas pelas redes médicas, amplamente inseridas na
dinâmica social e interpessoal das relações humanas. Em outras palavras: as transformações
sociais e históricas geram novas formas subjetivas que podem ser de sofrimento, reação e
resistência a estas novas configurações, mas dentro da lógica medicalizante são
compreendidas como fora da normalidade, etiquetadas com diagnósticos e tratáveis com as
intervenções médicas disponíveis e anunciadas pelo grande mercado.
O compromisso com uma tese que utilize o conceito de medicalização como uma
ferramenta de análise implica em considerar que há diferentes proposições desenvolvidas para
este conceito. Tomar as diferentes vozes que ampliaram esta discussão colabora para
delinearmos caminhos que se aproximem do contorno teórico necessário a este trabalho.
Assim, cabe destacar que as contribuições dos diversos autores imprimiram
importantes reflexões, sobretudo as análises de Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014)
quando apontam que o conceito de medicalização deve estar localizado teórica, histórica,
cultural e politicamente.
Seguiremos com a compreensão de que há um processo em curso na Sociedade
Contemporânea de transformar questões pertencentes ao cotidiano, em questões de ordem
científica e mais especificamente, médicas. Compreensíveis apenas pelo olhar da ciência, tida
como capaz de explicar o funcionamento humano através de leis biológicas, quantificáveis e
diagnosticáveis. Onde a experiência da dor, do sofrimento, da pouca ou nenhuma
46
produtividade, da estética que escapa aos padrões, do envelhecimento e de questões que não
se enquadrem na ordem vigente, podem ser monitoradas, nomeadas, classificadas,
investigadas, tratadas e até transformadas através de um conhecimento especializado
disponível no fazer de certos profissionais. Em nossa sociedade, esta dinâmica está marcada
pela hegemonia médica, mas não se pode perder de vista que outros saberes sobre o ser
humano, tais como a Psicologia, estiveram (e estão) presentes no mover das engrenagens que
movimentam este conjunto de coisas.
Trata-se de uma realidade dialética, em que um conjunto de forças põe a funcionar a
dinâmica do mercado em que o próprio conhecimento médico-científico se faz produto e se
multiplica em tantos outros gêneros como medicamentos, exames, intervenções, pílulas
milagrosas, entre outros. Ainda faz circular pelos meios midiáticos, ideias, discursos e
propagandas. Compondo este tecido, subjetividades que se inclinam a este modo de produção
transformando-se não só em consumidores de serviços e gêneros disponibilizados no
mercado, mas de modelos de ser e estar que dizem respeito a comportamentos, bem-estar,
estado físico, psicológico e etc.
Os modos de subjetivação fabricados nesta complexa trama apontam para a
medicalização como estratégia de controle, vivenciada através da busca pelos padrões de
saúde. Entretanto, o acesso a estes bens de consumo não se dará da mesma maneira para todas
as pessoas. Há os que, pertencendo às classes privilegiadas, têm recursos para consumir os
produtos disponíveis no mercado, acessando as (im)possíveis formas de se colocar no padrão
social. Para os pobres, o processo político da sociedade contemporânea guarda caminhos
bastante ardilosos. Segundo Wacquant (2013), há em funcionamento “pelo menos três
estratégias principais para tratar as condições e as condutas que julgam indesejáveis, ofensivas
ou ameaçadoras” (p. 20), são elas a socialização, a medicalização e a penalização. No que
tange a esta discussão, o termo medicalização usado pelo autor aponta na mesma direção que
47
propomos neste debate, ou seja, processo em que um problema social é tratado como uma
desordem química, um problema individual, em que não se leva em conta as questões sociais
em que se inserem os sujeitos. A medicalização dirigida aos pobres encontra-se neste limiar
apontado por Wacquant, cujos efeitos precisam ser discutidos e problematizados, nas palavras
do autor:
São políticos, em primeiro lugar, na medida em que resultam das lutas pelo poder
travadas entre os agentes e as instituições no interior e em torno do campo burocrático,
para moldar e eventualmente dirigir a administração de “pessoas problemáticas” e
estados coletivos problemáticos. Em segundo lugar, a mudança na dosagem e o
objetivo da socialização, da medicalização e da penalização são políticas, uma vez que
resultam de escolhas que têm a ver com a concepção que temos de vida em comum.
(Wacquant, 2013, p. 22)
As estratégias mencionadas tratam de diferentes aspectos, mas que em sua essência
visam deslocar a atenção dos contextos socioeconômicos que produzem as desigualdades. São
formas de controle que atribuem aos indivíduos classificações sobre seus comportamentos,
tidos como desviantes. Wacquant (2013) exemplifica este estado de coisas citando o trabalho
de Arline Mathieu7, sobre como a medicalização colaborou com a remoção física dos sem-
teto em Nova York na década de 1980. Categorizar pessoas pobres, que vivem nas ruas, que
são usuárias de drogas, como doentes e incapazes de decidir sobre sua vida figura como
instrumento de “limpeza urbana” em nome da saúde pública. Os trabalhadores cujos corpos
adoecem pela exploração são medicalizados e silenciados. As crianças que resistem ao
sistema escolar e à docilização dos corpos são encaminhadas para tratamento médico. Assim,
o discurso da medicalização imprime nos sujeitos o lugar de doentes, incapazes de autonomia
e submetidos à ordem medica em nome de certa segurança social. 7 “The Medicalization of Homelessness and the Theater of Repression” Medical Anthropology Quarterly, junho 1993.
48
O tensionamento deste conjunto de forças pode se fazer presente nas resistências ao
tido como padrão e questionamentos à norma produzida; nas ocasiões em que algo falha ou
escapa ao discurso científico; quando se esbarra nas questões éticas da produção científica, ou
mesmo quando os sujeitos subvertem a norma colocando às avessas a lógica da
medicalização.
1.2.Normatização da Infância
Compreender a realidade em que estamos inseridos implica apreender os arranjos
históricos que possibilitaram as condições materiais e subjetivas que delimitam as relações
humanas que vivenciamos atualmente.
Para tratar de problemáticas sobre a infância na contemporaneidade, usar de uma única
definição sobre esta categoria seria um grande erro conceitual. Afinal, compreendê-la
necessita da questão de qual contexto se é/está criança. Diante da resposta abre-se a
possibilidade de visualizar as relações históricas e culturais de cuidado, afeto, educação,
responsabilidade que circulam entre os sujeitos que pertencem a determinadas realidades.
Estudos clássicos de autores como Ariès (1981), Costa (1999), Lobo (2008), Rizzini
(2011), Rizzini e Gondra (2014), Rizzini e Pilotti (2009), apontaram a infância como uma
categoria histórica, que deve ser compreendida de acordo com os sentidos produzidos para ela
em uma sociedade, em um dado momento da história. O modo como cada grupo social
compreende, se relaciona e atribui cuidados às crianças, diferencia-se em certos contextos
culturais, políticos e econômicos. Neste sentido, delimita-se o que é ser criança nestes
parâmetros, atribuindo-se, inclusive, a conotação do que é esperado ou não destes sujeitos, o
que é normal ou patológico.
Philippe Ariès (1981) nos confronta com cenários da Idade Média em que a infância
não era tida como uma fase diferenciada da vida adulta, a criança não possuía papel destacado
49
na vida familiar, não havia cuidados específicos para com ela. Se os índices de mortalidade
infantil eram muito grandes, a morte das crianças era encarada com naturalidade. Enfim, em
sua detalhada narração a partir de documentos, quadros, livros, tapeçarias, entre outras fontes
históricas, Ariès expõe diferentes práticas relacionadas ao cuidado com as crianças, bem
diferentes das que hoje são tidas como naturais.
A infância, enquanto etapa diferenciada da vida, cujo processo de desenvolvimento
merece atenção especial, teve sua emergência em meados do século XVIII, na Europa, em
função da mudança de paradigma que marcará a transição da Idade Média para a Sociedade
Moderna. Mudanças ocorridas nos campos econômico, político, social e filosófico
imprimiram novas formas de compreender o mundo. A dinâmica capitalista e a convicção
positivista de que a vida social poderia ser regida por uma ‘verdade absoluta’, a que somente
o conhecimento científico teria acesso, foram pilares fundamentais da nova era que se
inaugurava. (Arriès, 1981; Costa, 1999)
No contexto europeu daquele momento, todo modo de organização da vida precisou
tornar-se eficiente e lucrativo, o que possibilitou que o campo da medicina social ganhasse
força e pudesse legitimar sua inserção no meio familiar e ditar padrões sobre a criação, a
educação e a alimentação das crianças. (Donzelot, 1986).
No Brasil, as determinações sobre a infância encontraram sua emergência no início do
século XX. Naquele momento, a criança passou a ser foco de preocupações por parte dos
especialistas e do poder público por conta de três aspectos principais: a elevada taxa de
mortalidade infantil, o grande número de crianças abandonadas e a necessidade da figura do
médico para a manutenção da higiene física, mental e moral do núcleo familiar. (Rizzini,
2011; Costa, 1999)
Assim, através da apropriação da infância como objeto de saber, o discurso médico
ganhou um poderoso instrumento de intervenção na família.
50
O recorte e a circunscrição daquilo que se configurou como o tempo da infância e sua
objetivação pela medicina atenderam, então, ao objetivo maior de legitimação das
práticas de regulamentação e controle da vida cotidiana. Os médicos procuraram
apresentar-se como a autoridade mais competente para prescrever normas racionais de
conduta e medidas preventivas, pessoais e coletivas, visando produzir a nova família e
futuro cidadão. (Rago, 1997, p. 118)
A produção de novos conhecimentos no campo médico e jurídico a respeito da
infância constituiu-se a partir de um discurso nacionalista que delegou à criança uma posição
de bem econômico do país: a criança pobre seria o futuro da nação na medida em que se
tornasse um trabalhador docilizado (Rizzini & Gondra 2014).
O discurso de proteção à infância propagado neste período colocava em ação uma
demanda por políticas voltadas para a infância pobre. Afinal, a criança vista como futuro da
nação gerava preocupações de cunho econômico: por um lado representava investimento para
que se transformasse em dócil trabalhador, por outro lado, um gasto, na medida em que
poderia se tornar em um fardo para a sociedade como sujeito infrator das leis ou um
‘vagabundo’ que geraria custos aos cofres públicos. Tais discursos vão se valer de estratégias
de prevenção, educação, recuperação e repressão para concretizar seus fins. Como esclarece
Rizzini (2011): "Para se ter como moldar a criança com propósito de civilizar o país, era
preciso primeiro concebê-la como passível de periculosidade." (p. 88).
A apropriação da infância como alvo de discussão que deve ser assistido e protegido
como futuro da nação evidenciava a tentativa de um roteiro de construção de um país que não
se basearia em políticas voltadas para a base dos problemas sociais, tais como os salários
baixos, pouco ou nenhum acesso à terra, mecanismos opressivos de controle social, saúde
precária, falta de moradia e educação, mas na legitimação da entrada do especialista no núcleo
51
familiar, ditando normas e modelos a serem seguidos, docilizando as classes ditas perigosas,
com o objetivo final de preservar a ordem social, protegendo o futuro dos filhos da elite.
O projeto de reforma civilizatória que se estabeleceu após a proclamação da República
envolveu, principalmente, uma invenção da identidade nacional. Serviram a este projeto a
ideia da criança como futuro da nação e como ser moldável, para o bem ou para o mal.
Traçou-se, desta maneira, uma percepção a respeito da infância que a colocava em lugar
privilegiado com relação à construção da nação. Salvar a infância pobre de todos os perigos
que punham em risco uma boa formação física e moral tornou-se o lema daqueles que viam
na criança o futuro cidadão. Resgatá-la de todo o tipo de influência considerada negativa
significava formar uma população que construiria uma pátria condizente com os padrões de
civilização moderna ditados pela Europa. Salvar a criança era salvar o país.
O movimento que se constituiu com o objetivo de salvar a criança tem sua origem
exatamente a partir da crença de que herança e meio deletérios transformavam em
monstros, crianças já marcadas por certas inclinações inatas, acarretando
consequências funestas para a sociedade como um todo. Salvar essa criança era uma
missão que ultrapassava os limites da religião e da família e assumia a dimensão
política de controle, sob a justificativa de que havia que se defender a sociedade em
nome da ordem e da paz social. (Rizzini, 2011, p. 101)
O lugar privilegiado do discurso médico sobre a infância e a família tem uma história
no cenário brasileiro marcada por interesses políticos e econômicos de controle da população.
Devemos lembrar que o capitalismo produz um olhar sobre o corpo, objetivando-o como
força de trabalho, força de produção. Assim, também a disciplina médica investe sobre este
corpo útil, afinada com os ideais modernos de controle dos indivíduos (Foucault, 1992).
A construção de uma nova identidade nacional era perpassada pelas preocupações
eugênicas de aprimoramento racial. As articulações e fundamentos presentes nos discursos e
52
atividades de médicos e outros especialistas inspirados na Eugenia pautavam-se na
perspectiva evolucionista, amplamente divulgada e reconhecida como modelo de Ciência
Moderna.
As teorias eugênicas instrumentalizaram discursos e práticas voltadas para um suposto
melhoramento da espécie, mas se expandiram no Brasil de forma diferenciada ao que ocorreu
na Europa. O melhoramento do povo brasileiro passava pelas preocupações com a influência
do meio social e, portanto, acreditava-se, segundo esta perspectiva, que intervenções no
campo da prevenção através da higiene geral e mental deveriam ser privilegiadas.
De acordo com Kobayashi, Faria e Costa (2009), o movimento eugênico e o
movimento sanitarista eram compostos pelos mesmos membros: médicos eminentes que
ocupavam lugar de destaque em hospitais, universidade e institutos de pesquisa.
Influenciaram, assim, as políticas públicas de saúde, especialmente nas décadas de 1920 e
1930, que se basearam na noção de saneamento, numa visão nacionalista e regenerativa.
As preocupações centrais figuravam no melhoramento da raça e investiam no controle
dos corpos e do ambiente em que eles viviam, sendo os principais focos de discussão as
campanhas contra o álcool, a regulamentação do trabalho, a imigração, os exames pré-
nupciais, a esterilização e a preocupação com a infância.
Desqualificar os saberes populares foi estratégia fundamental para esvaziar os
cidadãos do conhecimento sobre si e seu cotidiano. Era necessário afirmar o saber médico
como aquele necessário a administrar a vida e mantê-la ordenada e saudável. Os discursos
técnico-científicos, no início do século XX, sejam eles médicos, pedagógicos, juristas ou
arquitetônicos, pautavam-se nos preceitos higienistas. Tratavam, de modo geral, desde os
aspectos do parto e da amamentação, cuidados com a alimentação, educação dos filhos,
cuidados higiênicos com a casa, prevenção às doenças, ao alcoolismo, até à promoção de
novas configurações arquitetônicas da cidade e introdução da figura do especialista na
53
administração pública. Higienizar a vida de modo a torná-la asséptica, controlada e produtiva.
(Costa,1999; Rizzini 2011; Garcia & Silva Junior, 2010).
Na empresa de constituição da família nuclear moderna, higiênica e privativa, a
redefinição do estatuto da criança pelo poder médico desempenhou um papel
fundamental. De uma posição secundária e indiferenciada em relação ao mundo dos
adultos, a criança foi paulatinamente separada e elevada à condição de figura central
no interior da família, demandando um espaço próprio e atenção especial: tratamento e
alimentação específicos, vestuário, brinquedos e horários especiais, cuidados
fundamentados nos novos saberes racionais da pediatria, da puericultura, da pedagogia
e da psicologia. (Rago, 1997, p. 117)
Deste modo, a figura do expert no cotidiano das pessoas e das cidades, constituiu-se na
intercessão de interesses voltados para a transformação de uma sociedade pautada nos moldes
monárquicos, coloniais e escravocratas para uma que se aproximasse do modelo europeu e
estadunidense de modernidade: novas relações marcadas pelos ideais liberais e positivistas,
principais contornos da ordem capitalista.
O processo que permitiu o caráter hegemônico à disciplina médica esteve calcado na
emergência, a partir do final do século XVIII, da ideia de hospital como instrumento
terapêutico. Este espaço não esteve sempre sob o controle destes profissionais, ao contrário,
em um momento histórico anterior, estava relegada ao médico a visita no hospital quando
solicitado por sua direção (que geralmente era coordenado por irmandades religiosas, cuja
administração e objetivo estavam ligados a uma prática caritativa de acolhimento e
amontoamento de doentes). A partir de uma produção de saber relativa à observação
sistemática e comparada nos e dos hospitais, a classe médica voltou para si a responsabilidade
da administração hospitalar (Foucault, 1977). De forma esclarecedora, Caponi (2000) relata:
54
(...) se faz possível a individuação dos doentes, pois, ao se dividir o espaço, pode ser
feita uma observação contínua, permanente e individualizada. Paralelamente, se
transforma o sistema de poder existente substituindo o pessoal religioso pelo médico,
como autoridade absoluta. Organiza-se um sistema de registros completo, que faz do
hospital não só um espaço de cura, mas também de aquisição de conhecimentos e de
produção do saber (p. 56).
A disciplinarização do espaço médico com a distribuição espacial dos indivíduos, o
controle sobre todo o desenvolvimento da doença e seu tratamento, a hierarquização das
funções técnicas, criou a possibilidade do isolamento do indivíduo e sua doença, o que em
larga escala permitiu a constatação e controle de patologias comuns a determinada população,
sua frequência e localização geográfica, por exemplo.
O hospital neste processo emerge como instituição representativa da relação de
desigualdade entre pobres e ricos. Aos primeiros restava buscar auxílio na instituição e se
submeter aos olhares e experimentações do especialista. Aos segundos, o lugar de formação
privilegiada, portanto reservada aos mais abastados, bem como a clínica como prática de
observação e controle técnico-científico dos sujeitos e populações “necessitados” (Caponi,
2000).
O poder médico toma como eixo de atuação dois extremos: o indivíduo e a população,
exercendo seu poder sobre ambos, como alvos de intervenção. O empreendimento de
organizar tais detalhes, ou seja, apreender e compreender as relações do corpo com o tempo, o
espaço e outros corpos, constituiu uma base fundamental para a Medicina e outras disciplinas
modernas, em que o Hospital e o Hospício serviram a este cometimento. A observação
minuciosa dos pequenos movimentos, das mínimas partes tornou-se ferramenta indispensável
para o cientista, implicando todo um conjunto de técnicas e processos de saber que visam uma
verdade sobre o corpo em vários níveis: análise, controle e inteligibilidade. Assim, passamos
55
de uma medicina ocupada unicamente com a cura, para uma que se torna disciplina da
prevenção (Foucault, 1977 e 1992).
Assim como a administração dos hospitais, a loucura também é reivindicada pelos
médicos brasileiros como objeto de seu interesse e cuidado. De acordo com Engel (1992), a
construção da loucura como doença mental, passível de classificação e cuidados
especializados, teve início no começo do século XIX com os estudos de Philippe Pinel (1745
– 1826), ganhou consistência através conceito de monomania criado por Jean-ÉtienneEsquirol
(1772-1840) e se ampliou com a teoria da degenerescência de Benedict Morel (1809 – 1873),
que possibilitou uma perspectiva organicista para a noção de doença mental. Entretanto,
naquele momento, a infância não constituía alvo destas preocupações da Psiquiatria. A figura
da “criança anormal”, sujeita aos acometimentos da doença mental e passível de cuidados
médicos, surgiu na Europa no final do século XIX e chegou ao Brasil, no início do século XX.
(Muller, 2005)
Durante quase todo o século XIX, vigorou a certeza de que quem enlouquecia era o
adulto, ou no máximo, o adolescente. Ainda assim, as questões da loucura, mesmo ao
considerar sua origem moral (sofrimentos, perdas, paixões), não remontavam aos
acontecimentos da infância. Uma predisposição inata, um choque recente ou ambos
desencadeavam a doença mental. Ou seja: ninguém ficava louco devido à infância e
muito menos no tempo da infância _ a loucura não era um desvio da norma da idade
infantil. (Lobo, 2008, p. 367)
Os estudos de Lobo sobre a genealogia da criança anormal no Brasil, em que se podem
elencar diversos textos de sua autoria (1992, 2000, 2007, 2008, 2016), apontam que a ideia de
uma infância que será categorizada e submetida a normas regidas pelo saber científico,
emerge no Brasil graças à influência de teorias europeias, principalmente de inspiração
francesa, sobre o desenvolvimento infantil e seus possíveis desvios.
56
A partir dos estudos da pesquisadora, destacam-se dois acontecimentos históricos que
podem dar contornos à compreensão da emergência dos saberes e práticas que incidirão sobre
a infância anormal, em meados do século XIX na Europa, e que influenciarão o cenário
brasileiro. São eles o caso de “Victor Aveyron” (Lobo, 2016) e os estudos sobre
desenvolvimento propostos por Esquirol e revistos por Séguin (Lobo, 2008).
Com relação ao caso de Victor, trata-se de um menino encontrado por camponeses,
vivendo nos bosques de Aveyron, como um garoto selvagem, no final do século XVIII. O
menino foi entregue aos cuidados de Jean-Marc GaspardItard (1774 – 1838), médico
inspirado na ideia de que seria possível, através de métodos pedagógicos, transformar a
situação selvagem do garoto. O debate estabelecido entre Itard e Pinel a respeito do
diagnóstico de Victor e de seu tratamento, ao qual cada um se colocou com versões diferentes,
gerou um importante panorama das perspectivas que se concretizavam naquele momento
histórico.
Para Pinel, o menino se equiparava aos loucos de Bicêtre. Em sua concepção baseada
no inatismo, o ser humano já nasceria com suas limitações e, portanto, não haveria cura e
consequentemente, tratamento possível para a reversão do quadro patológico.
Discordando desta posição, Itard investe na possibilidade de transformação do quadro
selvagem do menino através de intervenções pedagógicas. Durante dez anos realizou
trabalhos que denominava de “medicina moral”, escrevendo relatórios que descreviam tanto
os pontos que considerava avanços, quanto os que indicavam o insucesso de seu trabalho. As
contribuições produzidas por este modelo influenciaram Édouard Séguin (1812-1880),
médico que deu continuidade a tendência conceitual de compreender o desenvolvimento
humano como um processo. Seguindo esta normativa central sustentava, então, a
possibilidade de intervir sobre aspectos ligados à deficiência e atrasos. Seria possível atuar
naquilo que aparece como anormal, a partir do investimento sobre o que seria mais primitivo:
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as sensações e os movimentos. Este pulo conceitual é descrito nas palavras de Lobo (2016) da
seguinte maneira:
Séguin (...) apresenta a noção de desenvolvimento não mais como uma propriedade
ou uma faculdade dos indivíduos, mas como um processo universal, sujeito às
contingências de uma velocidade ou de uma parada. Na condição de processo, o
desenvolvimento é a norma da infância, quando poderá haver variações. E o mais
importante: ao universalizar o desenvolvimento, Séguin universalizou a idiotia como
etapa do desenvolvimento humano, que todas as crianças normais rapidamente
ultrapassam, enquanto as idiotas permanecem afundadas nesta etapa da infância
normal. (p. 545)
Segundo Lobo (2000, 2008 e 2016), os cuidados e conhecimentos desenvolvidos pela
Psiquiatria e pela Pedagogia, naquele período, produziram padronização e classificações a
respeito do desenvolvimento infantil, conhecimentos que visavam estabelecer certa
normalização desta etapa da vida. A partir daí, estabeleceu-se a infância como etapa passível
de intervenções e cuidados com relação à alienação. Ela própria como suscetível às doenças
mentais, ou como alvo de práticas preventivas ao adoecimento em outras etapas da vida.
No Brasil, o surgimento do Pavilhão-Escola Bourneville, em 1903, no Hospício
Nacional de Alienados, é um marco histórico para apontar a preocupação com a infância
anormal e os cuidados médicos e pedagógicos direcionados a esta população (Müller, 1998,
Lobo, 2008, Silva, 2009).
A construção de um pavilhão direcionado apenas para crianças fez parte de uma série
de mudanças ocorridas em função de denúncias com a situação em que se encontrava o
Hospício. Com relação às crianças, tornou-se preocupante o fato de estarem misturadas com
adultos e não receberem nenhum tipo de tratamento específico.
58
Historicamente, as reivindicações por mudanças na dinâmica da instituição surgiam
tanto da sociedade, através de denúncias em jornais, posicionamentos de figuras públicas
como também da própria classe médica. As novas estratégias utilizadas nos Hospícios
franceses, visitados por médicos brasileiros, de forma individual ou em comissões,
despertavam para a necessidade de adotar estratégias mais científicas e atualizadas naquela
instituição (Silva, 2009).
O nome utilizado para nomear o Pavilhão aponta para o caráter médico-pedagógico
destinado às práticas que deveriam ser desenvolvidas no estabelecimento. A referência era o
médico Desirè Magloire Bourneville (1840-1909), um dos principais promotores da laicização
dos hospitais parisienses, responsável pela separação entre adultos e crianças no Hospital de
Bicêtre, preconizador de uma educação médico-pedagógica pautada na metodologia que
visava à aprendizagem dos hábitos mais simples aos mais complexos, ajustando as crianças
anormais às normas sociais (Müller, 1998).
O crescente número de internações que se constatou ao longo dos anos, denota o
quanto a mentalidade da patologização dos comportamentos infantis e desqualificação das
famílias nos cuidados com as crianças, tornou-se dominante naquele contexto social. Em 1904
o pavilhão abrigava em torno de 36 crianças, mas, em 1907, o administrador do Hospício
alertava para a situação de superlotação. De acordo com Lobo (2007):
A consolidação do poder médico e o sucesso das campanhas de profilaxia dirigidas à
proteção à infância ajudaram a divulgar a necessidade da internação. (...) Instaurada a
caçada aos anormais com a expansão da rede escolar, a população do hospício só
tenderia a aumentar. (p. 77)
O novo lugar estabelecido para a infância e as articulações depreendidas da noção de
anormalidade para esta categoria, derivaram não apenas o hospício, como outras instituições
objetivadas para o controle desta população.
59
Articula-se à preocupação com a infância anormal a importância da utilidade do corpo
para o trabalho e adequação ao modo de produção capitalista. Portanto, serão os motivos
econômicos preponderantes para a detecção de crianças anormais: por um lado, o uso da mão-
de-obra de seus pais e cuidadores que dispensavam tempo atendendo às crianças e impediam
aqueles sujeitos de trabalhar e produzir para o capital; por outro, atentar para a anormalidade
era evitar, no futuro, o fardo social de perigos e degenerescências (Donzelot, 1980, Lobo,
2008). Os motivos escolares e profiláticos se associavam a estes de forma secundária, dando
contornos científicos e disciplinadores através das práticas e discursos especialistas.
Portanto, o hospício não foi o único a servir a estes fins. Também a noção de
periculosidade associada à criança pobre e abandonada produziu instituições com vistas à sua
recuperação e regeneração. Para este objetivo, serviu muito bem a associação entre os
discursos médico e jurista, que produziram a categoria menor, atribuída à infância pobre, que
passou a ser objeto de assistência e proteção do Estado (Rizzini, 2011).
(...) os saberes do direito, da pedagogia e da psicologia foram convocados a compor
um cordão sanitário ao redor da infância em nome da promoção de seu
desenvolvimento, compensando possíveis deficiências de um processo considerado
evolutivo. A construção desse cordão sanitário se deu a partir da identificação de
riscos a serem evitados. (Nascimento, Coimbra & Lobo, 2012, p.98)
Esta elaboração foi possível na medida em que o crime foi tomado como
comportamento desviante. Na esteira desta lógica, o discernimento do sujeito sobre seu ato
estava em jogo. Portanto, a compreensão do desvio seria passível de verificação pelo médico,
de encaminhamento pelo juiz e de prevenção e correção através da educação.
Ao se proclamar o aspecto perigoso do menor como marca natural de uma anomalia
ou um sintoma característico de uma doença, fez-se a partilha do controle da criança
entre o juiz e o médico, especificamente o psiquiatra. A ele atribuiu-se a autoridade,
60
não apenas para determinar o tratamento e as suas condições, mas o seu a priori, ou
seja, prevenir o perigo pela detecção antecipada de fatos possíveis de ocorrer, para agir
sobre o universo das intencionalidades. (Müller, 2005, p. 427)
O início do século XX viu crescer as instituições de acolhimento e de correção da
infância pobre. Privação de liberdade e atividades pedagógicas e laborais eram as estratégias
previstas para controlar os instintos desviados das crianças apreendidas. O esquadrinhamento
da infância pobre no Brasil está marcada pela construção de categorias ligadas à anormalidade
e perigo social. (Lobo, 2008, Rizzini, 2011)
No Brasil, este mesmo período foi caracterizado por profundas transformações no
cenário histórico e social, em que um projeto de nação, calcado em ideais positivistas e
liberais, entrava em curso. Colaborou para estas mudanças a ascensão dos especialistas
ditando, a partir de preceitos científicos, os padrões sobre os modos de ser, estar e viver que
condiziam com a dinâmica produtiva instaurada naquele momento.
O investimento sobre as famílias e, especialmente as crianças, deu-se pela ordem da
desapropriação do saber popular e introdução do saber médico no cotidiano dos grupos sociais
e dos indivíduos. O controle sobre o corpo e a saúde se estabeleceu através de estratégias que
incidiram sobre a criança como “bem da nação”. Os interesses econômicos e políticos
apontavam para a necessidade de regulação das famílias pobres e, portanto, dos trabalhadores
e de seus filhos (Rizzini, 2011).
A criança anormal emerge neste cenário a partir do discurso médico hegemônico, em
distintas ordens e diferentes intervenções, que, afinal, apontarão para o mesmo objetivo que
seria controle e regulação dos indivíduos dentro da dinâmica social estabelecida (Bianchi,
2015).
À infância pobre, como elemento econômico, (para o bem ou para mal, como vimos
anteriormente) restava o controle médico, pedagógico e jurídico: seja através da escola ou de
61
instituições filantrópicas em que eram vistas como passíveis de cuidados que garantissem um
futuro trabalhador dócil e impedissem a iminência de desvios; seja através da
institucionalização da criança anormal e/ou moralmente abandonada, ou seja, um perigo e um
fardo para a sociedade (Rizzini, 2011).
É neste complexo cenário de arranjos e contornos diversos que explicitamos a
emergência da criança anormal. Conceito que não é natural, possui uma história e uma
localização no tecido social, conforme pode-se observar neste capítulo.
Compreender uma leitura crítica do fenômeno da patologização da infância permite
dar visibilidade às engrenagens que puseram a funcionar a classificação de crianças através do
discurso médico e que se atualizam na contemporaneidade através de interesses e
configurações outras e que fabricam a lógica da medicalização da infância nos dias atuais.
1.3. Medicalização e infância anormal: o que há de novo?
Há no empenho de resgatar o contexto histórico da emergência da patologização da
infância, a tentativa de verificar em que contextos sociais, políticos e econômicos este
processo ganha contornos hegemônicos de controle das condutas e padronização de
comportamentos. Longe de acreditar que a patologização do início do século XX manteve-se
a mesma, apontamos que sua emergência naquele contexto histórico marca duas posições
importantes: a primeira de que ao se tratar de algo que não é natural, pode, portanto, ser
compreendido segundo os arranjos e interesses das contradições sociais sustentadas por
determinado modelo socioeconômico. A segunda é que, ao compreendermos esta emergência
e as engrenagens que a sustentaram, podemos apreender na história as aproximações e
distanciamentos das configurações presentes na contemporaneidade.
62
A aliança médico-pedagógica foi um dos principais pilares da emergência do controle
especialista sobre a infância, tal fenômeno pôde ser observado nos contextos de países
próximos ao Brasil, como afirma Bianchi (2015):
La infancia como preocupación se ligó históricamente a explicaciones tanto
conductuales como neurológicas. Diversos autores han rastreado descripciones de
figuras de infancia subsidiarias de estas explicaciones. Entre fines del siglo XIX y la
segunda década del siglo XX, en Europa, EEUU y América Latina, y desde espacios
médicos, jurídicos y escolares se crea un “mercado de la infancia”, que redunda en la
formación de un nuevo campo, el médico-pedagógico (p. 763)
Esta constituição aprofundou-se em diferentes facetas, usando do conhecimento “psi”
como ferramenta estratégica, especialmente no interior das escolas, uma de suas principais
atuações.
A expansão das redes escolares e o surgimento das primeiras classes especiais nas
escolas públicas aconteceu na década de 1930. Os espaços do internato e do colégio foram
alvo dos olhares de especialistas que os viam como modelos de ambiente em que deveriam
crescer as crianças: cercadas das condições propícias para a infância e educadas segundo
método pedagógico ditado pelos higienistas. Local de disciplinarização do corpo e da mente, a
escola deveria ter como objetivo o corpo forte, sexual e moralmente regrado, através da
disciplina física, moral e intelectual. (Costa, 1999)
A escola tornou-se instituição estratégica na intervenção e formação de sujeitos
adequados à nova ordem social. Por isso, tornar a educação mais “científica” significou inserir
os conhecimentos psicológicos no cotidiano escolar, transformando-os em regras
pedagógicas. De acordo com Patto (2000):
E a Psicologia era feita, sobretudo, de testes e aparelhos de mensuração psicofísica,
63
tidos como instrumentos infalíveis de organização da escola, de orientação vocacional
e profissional, de classificação dos alunos para diversificar a educação. (p. 324)
Este contexto garantiu que, na instituição escolar, pudessem ser apontados os
diferentes e inadequados ao sistema. Nas palavras de Lobo (2007) “a passagem pela escola
passou a ser, então, momento áureo da detecção dos anormais mediante toda a sorte de
classificações e gradações de anormalidade, cada vez mais apuradas.” (p.78)
Os discursos psicológicos que silenciavam, e ainda silenciam, as desigualdades sociais
e atribuem aos sujeitos características individuais e patologias que justificam o fracasso
escolar, consolidaram seu espaço no ambiente escolar amparados pelos discursos e métodos
científicos desenvolvidos nas décadas anteriores. Ao mesmo tempo, deram suporte a uma
prática clínica “psi” voltada para a adaptação das diferenças e desvios entre os alunos. Além
disso, a mensuração de questões subjetivas e cognitivas, possível através dos instrumentos e
testes psicológicos, coadunou perfeitamente com os interesses das classes econômicas
privilegiadas: na medida em que explicava cientificamente o fracasso sob uma perspectiva
individualista, silenciando os processos de resistência ao sistema de opressão reproduzido na
instituição escolar (Patto, 2005).
Mas a exclusão dessas crianças não se deveu apenas às práticas dos testes psicológicos
e das seleções escolares. A precariedade generalizada das condições de funcionamento
da grande maioria das escolas no país e a degradação ainda maior que se observa
atualmente no ensino público têm, até hoje, sua contrapartida num subproduto: as
figuras do “atrasado escolar” e do “portador de distúrbios de aprendizagem” ou, em
terminologia médica ainda mais atual, o TDAH (transtorno do déficit de atenção e
hiperatividade) – uma multidão de crianças que, mesmo após anos de escolarização,
sequer consegue alfabetizar-se. (Lobo, 2007, p.78)
64
Os discursos de especialistas sobre as formas corretas de educar, cuidar e castigar as
crianças e as consequências de não seguir as regras ditadas pelos experts, exerceram, e ainda
exercem, grande influência entre pais, educadores e a população em geral. O modelo médico e
as terapêuticas associadas a ele têm ampliado cada vez mais sua jurisdição, campos de
atuação e esferas de competência. Nesta esteira, seja a Medicina, ou as especialidades
associadas ao campo da saúde, como a Psicologia, a Fonoaudiologia, a Fisioterapia, por
exemplo, ganham cada vez mais legitimidade nos processos de produção de diagnósticos,
intervenções e prescrições sobre o bem-viver (Natella, 2008). A culpabilização da família por
qualquer tipo de comportamento desviante e a naturalização da intervenção do especialista
como fórmula salvadora de todo problema tiveram sua emergência em um determinado
contexto histórico, cujo projeto societário permanece em movimento. Tal configuração se
atualiza na contemporaneidade como importante estratégia de manutenção da ordem vigente,
cobrando-se das famílias “uma postura ativa na preservação da saúde e do ambiente como se
esses bens coletivos estivessem ao alcance individual, desconsiderando os determinantes das
iniquidades em saúde” (Barbiani, Junges, Asquidamine & Sugizaki, 2014, p. 567).
Historicamente, os arranjos institucionais da escola se montaram em torno de relações
hierarquizadas, discursos de meritocracia e culpabilização da família ou do aluno quando algo
vai mal no processo de ensino-aprendizagem (Patto, 2005; Souza, 2002). Afinal, considera-se
que o sujeito-aprendiz deve ser passivo e submisso, calmo e resignado, atento e obediente. O
que se apresenta a mais ou a menos pode ser a diferença que deve ser diagnosticada, tratada e
medicalizada. De acordo com Ribeiro (2015):
O que interessa é o atendimento aos padrões pré- estabelecidos e o alcance dos
resultados idealizados, independente das características e necessidades do processo de
escolarização das crianças/adolescentes, bem como de suas múltiplas expressões e
65
manifestações. Portanto, nega-se a diversidade e riqueza das experiências dos sujeitos
em detrimento da padronização institucionalizada do sistema escolar. (p. 21)
Diversos são os trabalhos que debatem a dificuldade da Escola para lidar com a
diferença. O que os pesquisadores apontam é que neste espaço ainda predominam as
tentativas de tornar os alunos silenciosos, competentes para a realização de provas, obedientes
a regras, enfim, enquadrados em um padrão de aluno: modelo e fôrma que não comportam as
singularidades humanas e as resistências à opressão social (Patto, 2005 e 2000; Ribeiro,
2014). Nesse contexto, as diferenças são apontadas como transtornos do comportamento ou
da aprendizagem, encontrando na lógica da patologização espaço para a culpabilização do
indivíduo por suas possíveis falhas ou limites.
Reverbera, portanto, nos campos da saúde e da educação o critério intimista que baseia
qualquer reflexão ou intervenção voltadas unicamente para sujeitos e famílias, descartando as
contradições históricas que produzem as subjetividades, as normas e as próprias condições de
existência.
Exemplo desta produção histórica sobre o controle e a normatização dos
comportamentos é a reflexão sobre a patologização da infância nos tempos atuais a partir de
uma consulta minuciosa aos manuais psiquiátricos em vigor, pois revelam uma enorme gama
de classificações do comportamento infantil. A leitura dos diagnósticos disponíveis nos ditos
manuais causa um enorme estranhamento, na medida em que se dedicam a tantas diferentes
expressões subjetivas que parece que todo e qualquer comportamento está passível de ser
categorizado.
A ampla gama de sintomas presentes nos manuais bem como a forma diagnóstica
proposta por eles permitem que muitos acontecimentos cotidianos, sofrimentos
passageiros ou outros comportamentos, possam ser registrados como sintomas
próprios de transtornos mentais. A socialização do DSM-IV na formação médica geral
66
permite que clínicos de outras especialidades, que não a psiquiátrica, possam medicar
com facilidade seus pacientes. Não se trata de sugerir a manutenção do domínio
psiquiátrico nesse caso, mas de revelar a banalização do diagnóstico e o uso irrestrito
de medicações como intervenção diante da vida. (Guarido, 2007, p. 158)
Os ditos comportamentos desviantes tornam-se frequentemente alvo de diagnósticos,
discursos e práticas biomédicas que culminam, muitas vezes, com a recomendação de
terapêuticas farmacológicas. A patologização acrítica aciona, portanto, o funcionamento de
engrenagens como a medicalização da vida,o uso banalizado de drogas psicotrópicas e seus
consequentes riscos para o desenvolvimento infantil (Conselho Federal de Psicologia, 2012;
Moyses & Collares, 2010; Nascimento, Coimbra & Lobo, 2012).
A medicalização da vida implica na compreensão de que o adoecimento tem como
única causa a desordem orgânica, e que a prescrição medicamentosa seria a solução ideal para
conter o sofrimento humano. Esta lógica biopolítica transforma questões de ordem social,
política, econômica, cultural e histórica, em uma suposta relação causal orgânica, ou seja, de
ordem médica (Canguilhem, 2009; Lemos, 2014; Lobo, 2008, 2007).
Entendemos por medicalização o processo em que as questões da vida social, sempre
complexas, multifatoriais e marcadas pela cultura e pelo tempo histórico, são reduzidas
à lógica médica, vinculando aquilo que não está adequado às normas sociais a uma
suposta causalidade orgânica, expressa no adoecimento do indivíduo. (Fórum sobre a
Medicalização da Educação e da Sociedade, 2010)
As consequências destes processos que rotulam e submetem a vida de crianças e suas
famílias a uma classificação nosológica ultrapassam a dimensão individual: incidem sobre o
contexto social de forma ampla e complexa. Tais mecanismos se tornam ainda mais graves
quando direcionados a crianças e famílias pobres. (Moyses & Collares, 2002, 2006, 2013;
Ribeiro, 2014).
67
A padronização e classificação do que é tido como aceitável e dentro das normas
estabelecidas, bem como daquilo que escapa desses limites, formam um só movimento.
(Canguilhem, 2009; Ribeiro 2014). Segundo Moysés e Collares (2013, p. 44) “Vivemos a Era
dos Transtornos. Uma época em que as pessoas são despossuídas de si mesmas e capturadas-
submetidas na teia de diagnósticos-rótulos-etiquetas, antigos e novos, cosmeticamente
rejuvenescidos ou reinventados”.
Na esteira deste pensamento, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou, em
2012, a cartilha “Subsídio à campanha não à medicalização da vida” em que afirma:
Uma vez classificadas como “doentes”, as pessoas tornam-se “pacientes” e
consequentemente “consumidoras” de exames, tratamentos, terapias e
medicamentos, que transformam seu corpo e sua subjetividade em problemas, alvos
da lógica medicalizante, que deverão ser sanados individualmente. (CFP, 2012, p.17)
Associado a este processo, assistimos a indústria farmacêutica crescendo
vertiginosamente em um contexto social que, apesar de alargar discursos moralistas e ações
repressoras sobre as drogas ilegais, legitima o crescente consumo das drogas lícitas
passivamente. O nicho mercadológico criado pela relação entre mal-estar e medicamentos
impulsiona uma economia promissora para a indústria de psicofármacos e outros atores
sociais atuantes nestas engrenagens. (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012)
Portanto, enquanto na sociedade brasileira são feitos enormes alardes em relação às
drogas ilícitas e campanhas envolvendo grandes somas de dinheiro público são
realizadas para o controle e tratamento de algumas delas, como o crack, há outra
questão de enorme importância que é o avanço na utilização das drogas lícitas. No
Brasil, por exemplo, o metilfenidato, substância dada para crianças e adolescentes com
a pretensão de diminuir o chamado “déficit de atenção” na escola, subiu de 70.000
caixas vendidas em 2000 para dois milhões de caixas em 2010, inserindo o Brasil no
68
segundo maior consumidor dessa droga no mundo, perdendo somente para os Estados
Unidos. (CFP, 2012, p. 5)
Para compreendermos esta importante denúncia, cabe ressaltar o destaque que o
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) tem alcançado nos trabalhos
críticos a respeito da medicalização. Por isso, trazê-lo neste momento, apesar de não ser
objeto desta pesquisa, serve como importante elemento analisador da patologização e
medicalização da infância em nossa realidade.
O TDAH é uma das possíveis classificações do diagnóstico de Transtornos
Hipercinéticos. Conceitualmente, tal transtorno é descrito pela 10ª Revisão da Classificação
Internacional de Doenças (CID-10) da seguinte maneira: trata-se de “falta de perseverança nas
atividades que exigem um envolvimento cognitivo, e uma tendência a passar de uma atividade
a outra sem acabar nenhuma, associadas a uma atividade global desorganizada, incoordenada
e excessiva.” Entre as classificações possíveis deste Transtorno encontram-se: Síndrome de
déficit da atenção com hiperatividade, Transtorno de déficit da atenção com hiperatividade
(TDAH), Transtorno de hiperatividade e déficit da atenção, Transtorno hipercinético de
conduta, entre outros. O comportamento tido como desatento, agitado, impulsivo,
desorganizado encontra no diagnóstico a justificativa para uma intervenção clínica, na maior
parte das vezes seguida de prescrição de medicamentos psicotrópicos. É preocupante pensar
que os instrumentos de diagnóstico destes Transtornos são questionáveis, que o Brasil ocupe o
segundo lugar mundial no consumo de metilfenidato e, mais ainda, que a Escola sustente
relação direta com esta produção (Moyses & Collares, 2002 e 2006).
A gestão da demanda pelo diagnóstico de Transtornos Hipercinéticos e o modo como
este é recebido pela Escola constitui-se importante analisador da relação entre Escola, Saúde e
Sociedade. Os sintomas associados ao Transtorno Hipercinético têm relação direta com o
desempenho escolar, o que coloca os números relativos ao diagnóstico e ao tratamento na
69
berlinda de um debate sobre políticas públicas de saúde, educação e atenção à infância. Para
compreendermos estes números, tomamos como base os índices de consumo do principal
medicamento prescrito para o TDAH.
Uma das principais intervenções diante de tal diagnóstico é o uso do medicamento
metilfenidato, também conhecido pelos nomes de Ritalina e Concerta. Dados registrados
no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), coordenado
pela ANVISA, sobre a prescrição e o consumo deste medicamento no Brasil, nos anos de
2009 a 2011, apontam o crescimento de 74,8% do consumo deste medicamento entre
crianças de 6 a 16 anos. O estudo demonstra a partir de uma análise criteriosa, além de
descrições sobre o medicamento e recomendações, dados estatísticos a respeito da
prescrição e do consumo do metilfenidato, no país de modo geral, por regiões e nas
principais capitais. Chama a atenção, além da evidência do aumento do consumo do
medicamento, o fato de que há, em todos os anos pesquisados, picos de utilização do
remédio no segundo semestre, e diminuição nos meses correspondentes ao período de
férias escolares. Cabe destacar, ainda, que na seção de conclusões, o estudo ressalta a
seguinte informação acerca da movimentação do mercado de metilfenidato e o diagnóstico
de TDAH:
A partir da estimativa de gasto direto total das famílias brasileiras com a aquisição
de metilfenidato, foi verificada uma concentração de mercado para o tratamento de
TDAH com três apresentações farmacêuticas, todas de um mesmo laboratório,
assegurando 92% das vendas de metilfenidato no país. (SNGPC, 2012, p. 13)
Em outras palavras, é possível supor, a partir deste relatório, que a relação
estabelecida entre o uso do medicamento e o desempenho escolar é proporcionalmente
direta. O padrão estabelecido para o sucesso escolar quando não alcançado pelas
crianças, torna-se queixa sobre comportamento. O caminho traçado neste percurso é
70
conhecido: encaminhamento a profissionais de saúde, onde o comportamento da criança
passa ser investigado, classificado, diagnosticado e medicalizado (Guarido, 2007;
Kamers, 2013).
O principal medicamento utilizado é o metilfenidato, um estimulante do Sistema
Nervoso Central que teria como objetivo melhorar a concentração, reduzir o cansaço e
colaborar no armazenamento de mais informação em menos tempo. Entretanto, é sabido
que este medicamento pode trazer dependência química, pois tem o mesmo mecanismo
de ação da cocaína, sendo, inclusive, classificada por um órgão do Departamento de
Justiça dos Estados Unidos como um narcótico.
Neste mesmo país, o departamento de saúde, ao fazer levantamento a respeito de
publicações sobre o TDAH, no período de 1980 a 2010, avaliou que grande quantidade
de trabalhos era inconsistente ou não apresentavam metodologias adequadas, sendo,
portanto, os discursos científicos a respeito do uso do metilfenidato como tratamento,
considerados inadequados. A recomendação aponta para a orientação familiar como
melhor estratégia de cuidado com as crianças (Gardenal, 2013).
De acordo com revisão sistemática publicada pela Cochrane8 (2015), não há certeza de
que o metilfenidato tenha benefícios no tratamento do suposto "TDAH", além de estar
associado ao aumento do risco de eventos adversos, tais como problemas de sono e
diminuição do apetite.
A médica-pediatra Maria Aparecida Moysés, em entrevista a EBC, enumera as reações
adversas suscitadas pelo uso prolongado da droga:
8Instituição não-governamental que reúne diversos pesquisadores no mundo para realizar revisões sistemáticas,
objetivando disponibilizar a melhor evidência possível sobre determinado assunto. Os profissionais de saúde utilizam essa base de dados como apoio a tomadas de decisões. (http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD009885.pub2/epdf/abstract)
71
As reações adversas estão em todo o organismo e, no sistema nervoso central
então, são inúmeras. Isso é mencionado em qualquer livro de Farmacologia. A
lista de sintomas é enorme. Se a criança já desenvolveu dependência química, ela
pode enfrentar a crise de abstinência. Também pode apresentar surtos de insônia,
sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações e
correm o risco de cometer até o suicídio. (...) Além disso, no sistema
cardiovascular é possível ter hipertensão, taquicardia, arritmia e até parada
cardíaca. No sistema gastrointestinal, quem já tomou remédio para emagrecer
conhece bem essas reações: boca seca, falta de apetite, dor no estômago. A droga
interfere em todo o sistema endócrino, que interfere na hipófise. Altera a secreção
de hormônios sexuais e diminui a secreção do hormônio de crescimento. Logo, as
crianças ficam mais baixas e também essa droga age no peso. (2014, p.1)
No ano de 2013, o Centro de Vigilância Sanitária do estado de São Paulo publicou um
Alerta Terapêutico em Farmacovigilância chamando a atenção de profissionais da saúde e
estabelecimentos farmacêuticos sobre os cuidados na prescrição, dispensação e uso de
medicamentos que contêm a substância metilfenidato. Tal documento foi elaborado em
função da avaliação de “553 notificações de suspeitas de reações adversas associadas ao uso
do metilfenidato, recebidas no período de dezembro de 2004 a junho de 2013”. As referidas
reações adversas incluíam sintomas como atraso no desenvolvimento, depressão, eventos
cardiovasculares, entre outros.
Importante ressaltar que, em 2014, a cidade de São Paulo instituiu o Protocolo do uso
do Metilfenidato através da portaria 986/2014, conquista emblemática no percurso histórico
de luta contra a medicalização.
72
Durante a Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos (RAADH), realizada
em Brasília, no ano de 2015, foi aprovada a Recomendação 01/2015: Medicalização de
Crianças e Adolescentes. Em seu texto, destaca-se o seguinte “Que, na perspectiva de garantia
de direitos e liberdades fundamentais, é importante garantir o direito de crianças e
adolescentes a não serem excessivamente medicados.” (RAADH, 2015, p. 01).
Outra importante mobilização, desta vez trazendo o Ministério da Saúde como
signatário, é o documento “Recomendações sobre o Uso Abusivo de Medicamentos na
Infância”. Lançado no ano de 2015, seu texto faz uma importante contextualização histórica e
de dados a respeito da problemática. Além disso, aponta em suas conclusões a importância da
“publicação de protocolos municipais e estaduais de dispensação de metilfenidato, seguindo
recomendações nacionais e internacionais para prevenir a excessiva medicalização de crianças
e adolescentes.” (Ministério da Saúde, 2015, p. 08).
Na Argentina, o Observatório de Drogas lançou, em 2008, o Relatório final de
pesquisa denominado: “La medicalización de lainfancia. Niños, escuela y psicotrópicos”. A
problemática do uso de psicotrópicos associado a crianças e ao ambiente escolar também se
apresenta naquele país como uma importante preocupação.
No referido relatório, o uso do medicamento aparece relacionado ao período escolar,
assim como apontado no Brasil. Além disso, no que diz respeito ao consumo do
metilfenidato, o trabalho aponta crescimento na importação do produto, o que em termos de
comercialização significaria aumento do consumo. Há uma importante elaboração a respeito
desta relação entre os sistemas de educação e saúde na problematização do diagnóstico e
cuidados em torno do TDAH. A sistematização dos dados da extensa pesquisa produzida
naquele país, em diálogo com os trabalhos desenvolvidos por aqui, podem nos ajudar a
produzir importantes reflexões de nossa realidade.
73
Na esteira dessa luta, o uso e abuso do medicamento e as consequências negativas
derivadas de seu uso são uma importante causa a ser debatida.
A medicalização do comportamento infantil aponta a grave problemática que precisa
ser enfrentada por nossa sociedade. É muito preocupante a evidência de que o uso de
metilfenidato tenha consequências graves sobre os corpos e desenvolvimento das crianças e
que, mesmo diante da frágil sustentação científica, tanto da existência dos transtornos para o
qual a droga legal se dirige, quanto para a eficácia do uso do medicamento, mesmo assim, se
multiplicam-se diagnósticos e prescrição de receitas em larga escala.
Ressalte-se que a problematização a ser amplamente dialogada com diversos setores
da sociedade, não deve ser resumida à eficácia ou não da droga, ainda que seja parte
fundamental deste problema, mas, à necessidade de enfrentarmos as engrenagens sociais que
insistem em normatizar o comportamento infantil e utilizar as drogas prescritas como única
terapêutica para o sofrimento humano.
Um segundo evento analisador a respeito da patologização e medicalização da infância
é a criação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do Desenvolvimento.
O importante alerta a respeito dos objetivos e interesses desta instituição foi elaborado por
Nascimento, Coimbra e Lobo (2012) que, ao se debruçarem sobre os projetos do Instituto,
convocam-nos a um posicionamento ético-político sobre a lógica que opera nestes
documentos. Investigações que podem ir desde a gestação à adolescência de sujeitos, até a
coleta de material genético de crianças e seus pais, com o intuito de investigar a relação gene-
ambiente. Este projeto implica em um dispositivo de prevenção e controle pautados na
perspectiva de que existe um padrão universal no desenvolvimento humano e que toda e
qualquer detecção de desvio do normal pode ser verificada, controlada, contornada. Ainda
prevalece uma perspectiva biologizante de que organismo apenas reage às interações com o
74
ambiente, garantindo neste discurso médico que o controle das reações poderia ser feito
através do governo do ambiente, ou do controle do organismo.
Além disso, também está presente nesta problemática a ação da indústria farmacêutica
apontada como financiadora dos projetos e sempre vinculada a estratégias de bonificação de
profissionais que prescrevem em boas quantidades seus produtos. Estão em jogo não apenas
as questões financeiras ligadas aos ganhos da indústria farmacêutica, por exemplo, mas
também o fato de que o uso das drogas lícitas torna os sujeitos mais alienados em relação ao
seu corpo, seu contexto social e sua vida.
Nascimento, Coimbra e Lobo (2012) apontam a estrita ligação dos projetos veiculados
por este Instituto às práticas eugênicas e o modo como elas se atualizam: “O levantamento de
fatores genéticos e ambientais e o acompanhamento à gestante, sob o pretexto da saúde
mental quanto à prevenção de riscos, vêm aperfeiçoando mecanismos eugênicos de controle
da vida, que recaem, sobretudo, nos filhos da pobreza.” (p. 94). Assim, repetem nos projetos a
lógica de que as escolas são aliadas na investigação junto a crianças e famílias que precisam
se submeter à pesquisa em saúde e educação para dispor do saber especialista sobre suas
vidas.
As problemáticas presentes nos analisadores aqui apresentados: o TDAH e os projetos
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do Desenvolvimento,
corroboram para problematização da patologização e medicalização da infância. Em comum.
certo modo de funcionamento das instituições escolares e de saúde, legitimado pelos
especialismos (o olhar negativo da falta), entre eles a Psicologia. Exibem um traço perverso
que é apontar uma falta na criança, que deve ser controlada e em nome do cuidado
estabelecem-se os critérios de prevenção, estigma e controle.
Diante deste cenário, pesquisadores de diferentes campos do conhecimento
construíram no Brasil, no ano de 2012, um importante espaço de debate sobre a medicalização
75
da vida: o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (FMES9), resultado de
uma intensa mobilização de diversas organizações ligadas à Psicologia, à Educação e à
Saúde10 para problematizar a lógica que transforma questões de ordem social, cultural e
histórica, como resumidas a condições orgânicas e passíveis de serem resolvidas através do
uso das drogas lícitas.
Desde sua criação, o Fórum tornou-se principal referência para profissionais e
pesquisadores. Além da coordenação nacional, há a organização de núcleos estaduais que
promovem discussões sobre temas relacionados à medicalização e a promoção de Seminários
Nacionais e Internacionais para divulgação e circulação dos principais debates, mobilizações
sociais e produções acadêmicas sobre a temática.
Vale ressaltar que a produção científica sistematizada sobre o tema também tem
ocupado espaço nos periódicos cadastrados em bases de dados renomadas. Tanto em âmbito
internacional, quanto nacional, o que se percebe com uma busca preliminar é o crescente
número de materiais que abordam a questão da medicalização.
Objetivando consubstanciar estes apontamentos, realizou-se, para fins desta tese, uma
busca na plataforma Scopus11, com o intuito de compreender os rumos da publicação
científica sobre a temática no cenário internacional. Para isto, introduziu-se o termo
medicalization no espaço de busca, utilizando-se o filtro keyword, com base no critério de que
trabalhos publicados em revistas científicas apresentam sempre uma versão do resumo como 9 medicalização.org.br 10O Fórum foi lançado no ano de 2010, durante o I Seminário Internacional “A Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e outros supostos transtornos”, em São Paulo. De acordo com a descrição do site oficial do Fórum:“Durante o lançamento do Fórum foi aprovado o Manifesto que, nesta ocasião, obteve a adesão de 450 participantes e de 27 entidades. Este documento destaca os objetivos do Fórum, suas diretrizes e propostas de atuação.” (Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade , 2010) Entre as entidades encontram-se o Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Federal de Farmácia, Sindicatos, Associações, Faculdades, Organizações da Sociedade Civil, entre outros. 11 De acordo com a Elsevier, editora da base de dados: “trata-se da maior base de dados de resumos e citações de literatura revisada por pares, com ferramentas bibliométricas para acompanhar, analisar e visualizar a pesquisa. Scopus contém mais de 22.000 títulos de mais de 5.000 editores em todo o mundo, abrangendo as áreas de ciência, tecnologia, medicina, ciências sociais e Artes e Humanidades. Além disso, contém mais de 55 milhões de registros que remontam a 1823, dois quais 84% possuem referências que datam de 1996.” (https://www.elsevier.com/__data/assets/pdf_file/0010/245818/Scopus-Quick-Reference-Guide-PT.pdf)
76
Abstract e junto a ele, as palavras-chave (keyword). Os resultados apresentados pela
plataforma confirmaram esta ideia ao identificar trabalhos em países de diferentes
continentes.
Os resultados obtidos foram significativos, ainda que seja necessário atentar para o
fato de que se trata apenas de uma busca preliminar e que os referidos trabalhos precisariam
de leitura criteriosa para que pudéssemos ter mais precisão nas análises. Além disso, muitos
periódicos científicos que estiveram em circulação no formato impresso, não estão
disponíveis no formato digital, o que exclui possíveis produções desenvolvidas naquele
modelo. Ainda assim, os dados apresentados a seguir colaboram para a ilustração de um
cenário científico a respeito do tema.
Estes dados podem ser verificados no gráfico abaixo, retirado diretamente da
plataforma Scopus.
Figura 3. Publicações com a palavra chave medicalization (1978-2015) Nota: Relação entre ano de publicação e quantidade de publicação, obtido na plataforma Scopus quando solicitada a busca na categoria palavra-chave do termo medicalization.12
12 Dados obtidos em 28/05/2017, retirados de: https://www.scopus.com
0
20
40
60
80
100
120
140
160
Ano de Publicação
1978
1980
1985
1990
1995
2000
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
77
Outro filtro foi adicionado nesta busca: área de conhecimento. Neste item, as primeiras
a serem enumeradas são as seguintes, com seus respectivos números de trabalhos associados:
1) Medicina (617); 2) Ciências Sociais (414); 3) Artes e Humanidades (157); 4) Psicologia
(142).
A mesma pesquisa foi realizada na plataforma BVS (Biblioteca Virtual em Saúde),
com entrada dos termos medicalization e medicalização. Os resultados obtidos foram os
mesmos para as duas palavras: 290 trabalhos listados, no período de 2007 a 2013. No caso
desta plataforma, como os trabalhos podem aparecer mais de uma vez na listagem,
consideramos relevante destacar que o período de tempo das publicações a respeito do tema,
acompanha a tendência de que tal temática ganhou mais visibilidade recentemente nas
discussões científicas.
Por fim, repetiu-se o procedimento na plataforma de busca de Banco de Teses e
Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
que diz respeito apenas à produção brasileira no nível de pós-graduação. O termo utilizado foi
medicalização e o resultado se expressa nos seguintes números: 616 trabalhos, no período de
1996 a 2016. O gráfico abaixo detalha a relação entre o ano e a quantidade de publicações:
78
Figura 4. Publicações com a palavra chave medicalization (1996-2015) Nota: Relação entre ano de publicação e quantidade de trabalhos de Pós-Graduação publicados, obtido na plataforma de Banco de Teses e Dissertações da CAPES13, quando solicitada a busca na categoria palavra-chave do termo medicalização. Dados obtidos em 28/05/2017, retirados de: bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/
Neste intervalo de tempo, a primeira aparição de um trabalho filiado a um Programa
de Pós-Graduação em Psicologia que tratasse de medicalização e infância aparece em 2009,
com o título “A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e
medicalização da infância”, de autoria de Fabiola Luengo, desenvolvida na Universidade do
Estadual Paulista (UNESP).
De um modo geral, os trabalhos aparecem vinculados a programas de Educação,
Saúde Coletiva, História, Antropologia, Enfermagem, entre outros.
13 Dados obtidos em 28/05/2017, retirados de: bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Ano de Publicação
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
79
Com relação aos Grupos de Pesquisa cadastrados no Diretório de Grupos do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) aparecem 35 resultados para
a busca derivada do termo “medicalização”. Estão localizados em diversas instituições de
pesquisa e universidades, e concentram-se em diferentes regiões do país: 6 no Sul, 14 no
Sudeste, 3 no Norte e 7 no Nordeste. As áreas de conhecimento são diversas, tais como Saúde
Coletiva, Psicologia, Sociologia, Enfermagem, Fonoaudiologia, etc. Trata-se, portanto, de um
retrato do cadastramento em bases oficiais, e não necessariamente uma ilustração dos
movimentos e produções de grupos percebidos no cotidiano das relações entre pesquisadores.
Atualmente, o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade agrega um
grupo de profissionais e pesquisadores de importante destaque e contribuição para os debates
promovidos em encontros acadêmicos e científicos nos âmbitos local, regional e nacional.
Entre algumas representantes poderíamos chamar a atenção para Lygia Souza Viegas,
professora da Universidade Federal da Bahia e Marilene Proença Rabello de Souza professora
da USP. Pesquisadoras de bastante relevo, que congregam estudantes de graduação e pós-
graduação atuantes na temática, além de ocuparem funções em Associações científico-
profissionais, Conselhos, e outras entidades de notório reconhecimento. Neste sentido, cabe
sinalizar que os principais eventos a respeito da medicalização _ ligados ao Fórum, direta ou
indiretamente_ estavam divididos no eixo Salvador - São Paulo nos últimos anos.
A criação do Movimento “Despatologiza”14 no ano de 2014, está ligada a ruptura de
importantes profissionais com o Fórum, no ano de 2013, o que apontou uma cisão entre o
grupo e a emergência de uma nova Associação de caráter multidisciplinar. Maria Aparecida
Moysés (Unicamp) e Cecília Collares (Unicamp), cuja produção acadêmico-científica é uma
das mais importantes na área e historicamente reconhecidas por sua militância na temática,
lideraram e concentram em torno de sua atividade o Movimento. As ações se desenvolvem
14 https://www.despatologiza.com.br/
80
principalmente em Campinas, cidade sede da Associação, mas já encontra núcleos em Recife
e Belo Horizonte. (Carvalho, 2016)
Cabe registrar que a movimentação em torno do Fórum e do Despatologiza ganham
contornos mais estáveis na medida em que ligados a grupos de pesquisa nas universidades. A
ruptura dos grupos não significou a criação de uma oposição, ambas divulgam as atividades e
publicações da outra em suas redes sociais, por exemplo.
Importante movimento de reforço nas discussões sobre a medicalização é a
emergência da figura de Paulo Amarante, renomado professor e pesquisador da Fiocruz,
conhecido por sua atuação na Luta Antimanicomial, desenvolvendo com seu grupo de
pesquisa trabalhos e eventos acerca do tema. Ainda no ano de 2017, a realização do Seminário
Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas”, contou com convidados como Robert
Whitaker e outros destaques internacionais e nacionais. Tal atividade não teve relação direta
com o Fórum, ainda que o mesmo tenha divulgado em suas redes sociais o evento15, mas
conta com o apoio do Despatologiza e a presença das pesquisadoras Maria Aparecida Moysés,
Cecília Collares e Biancha Angelucci (USP), mostrando novos vínculos políticos e
acadêmicos em curso entre os pesquisadores com interesse sobre o tema.
O breve panorama abordado até aqui colabora para ratificar a compreensão de que os
debates a respeito da medicalização tornaram-se mais volumosos no início deste século. Neste
sentido, atenta-se para a representação que as discussões promovidas neste campo ganham,
mostrando uma preocupação da comunidade científica com o cenário complexo e preocupante
que tal fenômeno passou a tomar.
15 O que não quer dizer que não haja relação entre o grupo do professor e o Fórum, já que Paulo Amarante foi convidado do Seminário Regional do Fórum, realizado na Universidade Federal Fluminense no mês de setembro do mesmo ano.
81
Nesta perspectiva, a colaboração deste trabalho à temática tentará circunscrever o
diagnóstico de deficiência mental como mais uma das facetas do processo de medicalização
da infância e as implicações históricas e políticas no contexto atual.
1.4 “Deficiência Mental”: um acontecimento em análise
A utilização do termo “Deficiência Mental” refere-se ao modo como o quadro
nosológico de Dificuldades Intelectuais e Desenvolvimentais é conhecido e utilizado na
realidade pesquisada. Neste sentido, ao recorrermos a esta expressão, referimo-nos a uma
categoria histórica e analítica.
A “deficiência mental” serve como um dos analisadores desta tese e remonta às
fronteiras entre a problemática da medicalização e da infância anormal. O crescimento do
número de crianças diagnosticadas na cidade estudada impulsiona a necessidade de analisar a
“deficiência mental” como uma categoria que possui uma história e, portanto, deve ser
articulada com as condições que propiciaram sua emergência, rupturas e permanências.
A noção de “deficiência mental” remonta ao século XVIII e está ligado à perspectiva
funcional do desenvolvimento humano. Historicamente, está associada à categoria de idiotia
utilizada naquele momento para designar os considerados desvios do comportamento e falta
de inteligência. De acordo com Carvalho e Maciel (2003), a deficiência mental aparece
representada como um “comprometimento permanente da racionalidade e do controle
comportamental” (p. 149). Tais noções eram atribuídas a desordens no funcionamento das
estruturas orgânicas dos sujeitos que geravam déficit intelectual, social e afetivo.
No início do século XIX, tomado como de natureza psicopatológica, o idiotismo,
termo que constitui a emergência da categoria “Deficiência Mental”, foi categorizado como
uma forma de alienação mental em “Traité Médico-philosophiquesurl’alienation mental”,
82
obra clássica de Pinel datada de 1809. Diferenciado da mania, da melancolia e da demência,
dimensões atribuídas à loucura, tal categoria significava “carência ou insuficiência
intelectual” (Pessotti, 1999, p. 57).
A trajetória histórica desta classificação remonta não a uma categoria estável que
passou por um longo processo de transformação, mas ao contrário, aos usos que se fizeram
presentes em diferentes momentos históricos de uma denominação de ordem médica para
designar valor e intervenções sobre grupos de pessoas a quem eram atribuídas certas
características, especialmente crianças.
As estratégias de esquadrinhar diversos modos de ser e atribuir valoração sobre a
normalidade ou não dos comportamentos estavam associadas à perspectiva da produtividade
dos corpos e concentradas no fazer da Medicina como ciência legitimada a conduzir
diagnósticos pautados em explicações organicistas e na neutralidade científica. Isto só foi
possível na medida em que as condições socioeconômicas deram sustentação a certo processo
de individualização: o da experiência da subjetividade privatizada.
A Sociedade Moderna, que emerge sob os alicerces do Capitalismo, inaugurou formas
de sociabilidade pautadas na lógica do mercado. Os modos de viver passam a ser marcados
pela relação de exploração, pela dinâmica do lucro, da compra e venda de produtos e da
própria mão-de-obra, em que os interesses individuais se tornam mais importantes que os
coletivos. Na esteira desta dinâmica, as existências individuais deveriam ser concebidas como
investidas singulares e complexas, que necessitariam ser fragmentadas e estudadas em níveis
quase invisíveis, somente acessíveis ao conhecimento científico especializado. O foco no
indivíduo e na subjetividade como objetos da ciência constituiu-se importante artifício de
controle e submissão dos sujeitos (Figueiredo &Santi, 2004).
A valorização da produção de saber, pautada no Positivismo, promoveu a investigação
compartimentada da vida: uma ciência para cada objeto, entre estes objetos o homem. O
83
desenvolvimento das ciências humanas e sociais, neste cenário histórico, esteve atrelado à
construção de teorias e conhecimentos que visavam determinar formas de antever e conter
sujeitos e/ou grupos que pudessem ir contra a ordem social.
A eficiência da investigação científica está no uso de mecanismos que acabam por
“imobilizar” o objeto de estudo. Separar, analisar, diferenciar, enfim, utilizar
processos de decomposição que, esquartejando seu objeto de estudo em partes cada
vez menores, proporcionarão ao expert se apropriar ainda mais e melhor do todo
(Garcia, 2001, p. 18).
As Ciências Humanas e Sociais atribuem para si a tarefa de desvelar o mais íntimo de
cada individuo, esvaziando os sujeitos de um suposto saber sobre si e, mais além,
enfraquecendo-os politicamente, na medida em que é preciso saber sobre si a partir de uma
perspectiva intimista e investigando causas biológicas e individuais para o adoecer e não das
relações com o coletivo e das condições sociais, políticas e históricas de existência. O que
inaugura formas de controle e previsão asseguradas pelo papel do especialista a serviço dos
interesses hegemônicos: A pergunta passa a ser “o que eu tenho?”, ao invés de “o que fizeram
comigo?”, em que seriam possíveis críticas sobre o mundo social.
A loucura e o adoecimento atribuído ao campo da mente humana passam a ser regidos
por uma nova sensibilidade emergente na Sociedade Moderna. O controle social sobre os que
não se submetem à razão capitalista deve imperar para garantir a ordem das cidades. Os
sujeitos incapazes de trabalhar, produzir, inserir-se nas dinâmicas sociais previstas pela lógica
dominante precisam ser neutralizados (Lobo, 2008).
As classificações a respeito dos grupos ou sujeitos que precisariam ser observados e
tutelados para garantia de manutenção do sistema estavam voltadas para os pobres,
vagabundos e desempregados. De acordo com Foucault (2010):
84
Até a Renascença, a sensibilidade à loucura estava ligada à presença de
transcendências imaginárias. A partir da era clássica e pela primeira vez, a loucura é
percebida através de uma condenação ética da ociosidade e numa imanência social
garantida pela comunidade de trabalho. Esta comunidade adquire um poder ético de
divisão que lhe permite rejeitar, como num outro mundo, delimitado pelos poderes
sagrados do labor, que a loucura vai adquirir este estatuto que lhe reconhecemos. Se
existe na loucura clássica alguma coisa que fala de outro lugar e de outra coisa, não é
porque o louco vem de outro céu, o do insano, ostentando seus signos. É porque ele
atravessa por conta própria as fronteiras da ordem burguesa, alienando-se fora dos
limites sacros de sua ética. (p. 73)
Robert Castel apontava, em seu livro “Ordem Psiquiátrica: a idade de ouro do
alienismo” (1978), a trajetória da medicina mental no contexto francês para problematizar a
história da Psiquiatria como vinculada a processos políticos e de controle social que se
distanciavam da suposta lógica neutra e asséptica da ciência. O autor debatia o campo da
medicina mental como uma racionalidade que atendia a diversos interesses da lógica
administrativa e jurídica, transferindo para si uma problemática política que era a
“sequestração dos alienados”.
Ao enveredar por esta temática, Castel (1978) discorre sobre os modos como a
emergência da Psiquiatria serviu a uma série de interesses sociais de controle e tutela, dentre
eles a segregação como lócus de neutralização da loucura, representado pelo aparato asilar,
pautado na moralidade e controle da ordem segundo um modelo jurídico de “leis, obrigações
e constrições” (p. 87).
A medicina mental legitimou-se como um campo teórico que estava pautado na
observação e classificação de comportamentos, estes vistos como manifestação de sintomas.
Entretanto, a previsão e diagnóstico de qualquer sinal de adoecimento, seriam detectáveis
85
exclusivamente pela racionalidade classificatória da Psiquiatria, que elencava um conjunto de
nosografias passíveis de sua intervenção.
(...) o diagnóstico passa a ser estabelecido considerando os sintomas manifestos como
apenas uma etapa aparente de uma evolução nosológica em curso, anterior, portanto,
aqueles. Desse modo, esvaía-se gradualmente a concepção de doença mental como
manifestação visível para todos, tornando-se a mesma um fenômeno quase invisível,
sempre latente, a necessitar de especialistas que a percebessem aonde leigos ainda
nada suspeitassem de anormal. Abria-se o campo para o diagnóstico precoce, para a
proposição de intervenção profilática no espaço social aonde a doença virtualmente
viria explodir posteriormente. (Schechtman, 1981, p. 07)
A medicina mental articulou-se aos interesses dominantes que, por sua vez,
encontraram na competência médica solução para suas próprias dificuldades. Castel (1978)
demonstrou como no século XIX a experiência de novas práticas gerenciadas pelo Estado - e
abalizadas pelo ponto de vista médico - desdobraram-se na França em estabelecimentos
especiais voltados para a doença mental, denunciando que o gerenciamento da problemática
das populações marginais é essencialmente um problema político travestido de serviços de
assistência e saúde. O sequestro e isolamento de sujeitos passa a ter um subsídio técnico,
científico e jurídico sob o amparo da medicina mental. Os asilos são tomados como
instituições terapêuticas de tratamento moral cujo fim é a educação de caráter especial, o que
representava, na verdade, técnicas disciplinares de caráter coercitivo e separação do quadro
social e familiar.
O medicalizável e o administrável, como nos alerta o mesmo autor: a saúde mental
tornou-se tema de negociação de políticas. As demandas emergentes da Psiquiatria
perpassavam a administração pública através das exigências de gestão e controle dos asilos.
86
Medicalizar e administrar a loucura passaram a compor as emergências de ordem pública, sob
a tutela da Psiquiatria.
Tal modelo de ciência médica teve grande influência sobre a realidade brasileira. Lobo
(2008) alerta sobre as especificidades dos contextos históricos do Brasil e da França e que,
guardadas estas diferenças, é possível afirmar que os trabalhos desenvolvidos nos asilos
franceses com as crianças ditas idiotas serviram de inspiração para os médicos brasileiros, no
final do século XIX.
A experiência de ambos os países apontou para a não separação da figura do idiota da
loucura; a intervenção pautada em princípios educativos como prática disciplinadora e, ainda,
uma racionalidade que apontava mais para a preocupação com características morais do
comportamento, do que para a suposta falta de inteligência característica deste quadro
nosológico. De acordo com a autora: “será possível concluir que não foi a criança louca, mas
a idiota que deu origem à psiquiatrização da infância” (Lobo, 2008, p. 364).
Como ressaltamos em sessão anterior, o trabalho de GaspardItard com o menino
Victor Aveyron, inaugurou uma perspectiva médico-educacional que será desenvolvida e
ampliada por Séguin, que foi seu aluno e precursor de uma escola de reeducação para crianças
no Hospital Bicêtre, em 1842.
A proposta médico-pedagógica oferecida nos serviços é fruto de uma Psiquiatria
apoiada na ideia de humanizar os que, apresentando uma condição selvagem, podem ser
convertidos através de tratamento moral. Neste sentido, as possibilidades de tratamento não
propunham uma reversibilidade dos quadros sintomatológicos, já que se acreditava que isso
não era possível, mas a tentativa de alcançar algum controle das funções sensoriais para
autonomia destas pessoas nas atividades cotidianas. O foco no treino de comportamentos e
estimulação sensorial para adaptação funcional indicava a intervenção que se produzia em
87
função de uma normatização das condutas, de uma sociabilidade e produtividade vigentes
(Cabral, 2011).
A detecção das crianças anormais não se justificava inicialmente apenas por motivos
escolares (elas estorvavam as aulas e eram prejudiciais às outras crianças), ou
profiláticos (evitar que se tornassem parasitas ou perigosas), mas também por motivos
econômicos do uso de mão-de-obra de seus pais e parentes (LOBO, 2008, p. 239).
A possibilidade de gradação do adoecimento mental a partir do déficit intelectual, bem
como a classificação de inúmeras outras formas de apreender o comportamento e o sofrimento
infantil, foram visíveis ao longo do século XX. Além dos subsídios criados pela psicometria,
os exames de imagem e outros tipos de tecnologia médica colaboraram para a expansão da
Psiquiatria.
A emergência da Psicologia como ciência, especificamente nos primórdios da
Psicologia Experimental, proporcionou aporte teórico e instrumentos que legitimaram a
consolidação de diagnósticos.
Tais achados da psicologia experimental foram de capital importância para
impulsionar e consolidar a psiquiatria infantil que no início dos anos 1900 estava às
voltas com as questões do retardamento mental segundo uma leitura higiêncio-
pedagógica e que, diferentemente da psiquiatria do adulto que já tinha delimitado seu
objeto, patinava no empirismo, sem uma elaboração teórica que lhe emprestasse rigor
e cientificidade (Cirilo, 2008, p. 28).
Os experimentos e estudos que validavam os padrões de comportamento,
desenvolvimento e inteligência tinham como pressuposto uma perspectiva biologizante da
subjetividade humana. Traduzida em normativas e funcionalidades, as respostas que os
sujeitos deveriam dar a determinados estímulos eram passíveis de classificações e medições.
88
O teste de “Binet e Simon”16 é um claro analisador de como o tratamento estatístico
aliado a estas concepções psicológicas colaboraram, não só para consolidar a Psiquiatria
Infantil, mas para impulsionar as gradações derivadas da idiotia ou do retardo mental. O
instrumento permitia comparar o desempenho médio de crianças da mesma idade,
determinando o resultado esperado para cada faixa etária. Ao obter certos resultados, seria
possível, então, estipular o tempo de atraso mental em que se encontrava cada sujeito. O
déficit intelectual a partir dessa medição era atribuído a uma deficiência mental que por sua
vez era automaticamente ligada à constituição orgânica (Cirilo, 2008).
Belo, Caridade, Cabral e Sousa (2008) afirmam que a noção de inteligência foi o
critério determinante para o diagnóstico de “deficiência mental” durante toda a primeira
metade do século XX. No período seguinte, os estudos de Jean Piaget a respeito da
psicogênese deram subsídios para o fortalecimento de perspectivas voltadas para a interação
do sujeito-ambiente e a noções de fases evolutivas do desenvolvimento humano com ênfase
nos aspectos cognitivos.
A psicanálise também desempenhou importante influência nos estudos sobre a
infância que escapa da norma. Estudiosos como Jacques Lacan (1901-1981), Maud Manoni
(1923-1998) e Françoise Dolto (1908-1988) desenvolveram trabalhos relevantes dentro deste
espectro teórico que concorriam com as explicações organicistas sobre a “deficiência mental”.
Neste sentido, a terminologia debilidade mental foi amplamente usada na clínica psicanalítica
(Cirilo, 2008).
A respeito da terminologia e conceitualização da deficiência mental, importante
instituição de referência neste campo é a Associação Americana para Dificuldades
Intelectuais e Desenvolvimentais (AAIDD), criada em 1876 e sediada em Washington. Desde
então, desenvolve estudos, conceitos, terminologias, modelos teóricos e orientações no campo 16 Instrumento de avaliação composto por escalas de medida de idade mental, publicado na França em 1905 por Alfred Binet e Théodore Simon, mais tarde renomeado para Quoeficiente de Inteligência (QI).
89
das políticas, práticas e direitos das pessoas com deficiência. Ao longo de mais de cem anos
elaborou diferentes versões de manuais com informações relativas a terminologias,
classificações e informações sobre “deficiência mental”. Desde 1908 a Associação já
redefiniu o termo associado à condição de “deficiência mental” dez vezes. Em 1992, o
chamado retardo mental foi designado para atribuir esta condição e, em 2007, estabeleceram-
se dificuldades intelectuais e desenvolvimentais (Belo, Caridade, Cabral, & Sousa, 2008).
Tais movimentos se devem a novas configurações histórico-sociais que possibilitaram
mudança de paradigma e a legitimação de novas abordagens e teorias.
A doença mental entra em crise dando lugar aos distúrbios mentais: a doença
refere-se ao corpo e não à mente. À mente seria mais propício considerar como
acometida por uma disfunção que se expressa fenomenologicamente em um
distúrbio de conduta (Cirilo, 2008, p. 31).
Os movimentos que defendem a nova nomenclatura para dificuldades intelectuais e
desenvolvimentais trouxeram em seu bojo a necessidade de, entre outras coisas, distanciar-se
da expressão “transtorno mental”, designada para os quadros de sofrimento psíquico. A
justificativa paira sobre a perspectiva de que: “a avaliação realizada é de facto, sobre factores
intelectuais (...) subjacentes ao constructo do funcionamento da inteligência que é mais
analítico que o da mente ou mental, que é mais global” (Belo, Caridade, Cabral, & Sousa,
2008, p. 8).
Acompanhar a mudança de nomenclatura importa para pensarmos que, ao longo da
história, diferentes formas de “tratamentos” serão dadas aos sujeitos e à categorização da
diferença, entendida como falta, doença, anormalidade. Além disso, importa reconhecer na
história os embates sobre a narrativa e a luta por direitos das pessoas com deficiência como
importantes e necessários movimentos para a transformação da realidade.
90
Para além de considerar uma linearidade entre a idiotia e a “deficiência mental”_
agora dificuldades intelectuais e desenvolvimentais_ é necessário problematizar o quanto as
contradições sociais implicam na constituição de um fenômeno que não pode ser considerado
apenas pela sua expressão individual, mas na sua implicação coletiva e política. A produção
de um diagnóstico não se faz de forma asséptica e neutra. Passa, sobretudo, pelas fronteiras
entre o normal e o patológico, construídas social e culturalmente.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, no relatório “Atlas: Global
Ressources for personswith intelectual disabilities” (2007)17, as terminologias associadas à
“eficiência intelectual são: retardo mental (76%), dificuldades intelectuais (56,8%),
incapacidade mental (39,7%), dificuldade mental (39%), dificuldades de aprendizagem
(32,2%), dificuldades desenvolvimentais (22,6%) e deficiência mental (17,2%).
Ainda segundo a Organização Mundial de Saúde, 10% da população em países em
desenvolvimento, são constituídas por pessoas com deficiência, sendo que metade destes são
pessoas com “deficiência mental”.
No caso do Brasil, o IBGE realizou, nos censos de 2000 e 2010, levantamento acerca
da categoria “deficiência mental”18. No primeiro, constatou-se que, de casos declarados de
deficiência, 8,3% possuíam “deficiência mental”19. Já no ano de 2010, este índice foi de 1,4%.
A discrepância entre os números apresentados ampara-se na metodologia utilizada em cada
período. Em 2000, seguindo a orientação da OMS, foi utilizada uma escala de gradação de
dificuldades na realização de tarefas, o que possibilitou uma inclusão mais abrangente de
possíveis diferentes quadros nosológicos. No ano de 2010, só foram considerados na categoria
de “deficiência mental” pessoas entre 0 e 18 anos.
17 Estudo realizado em 147 países, com representatividade de 95% da população mundial. 18 O termo utilizado pelo IBGE foi deficiência mental, por isso repetimos seu uso. 19 A maior proporção se encontrava na região nordeste, especialmente os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Piauí.
91
De acordo com o Atlas da OMS, o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos
Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM) é um dos materiais
mais utilizados para orientar os diagnósticos entre médicos da área da saúde mental, após a
Classificação Internacional de Doenças. Publicado desde 1952, pela Associação Americana
de Psiquiatria, o DSM encontra-se, atualmente, em sua 5ª versão. Trata-se de material que
incorpora a codificação e validação de um sistema classificatório no escopo da Psiquiatria
contemporânea. Sua publicação mais recente data de 2013 e, apesar de ter influência relevante
na área da saúde e de ser considerada a “bíblia da psiquiatria”, sua existência sempre esteve
cercada controvérsias. Fato que evidencia uma de suas polêmicas é a figuração da
homossexualidade no referido manual até o ano de 1973.
O elenco de quadros nosológicos presente ao longo das edições do Manual causa
estranhamento: o DSM-I, lançado em 1952, possuía 106 categorias de desordens mentais
(expressão usada na época e que perdurou até 1980); o DSM-II, publicado em 1968, contava
com 182 categorias; o DSM-III divulgado em 1980 possuía 265, quando revisado em 1987 e
denominado DSM-III-R este número aumentou para 292 diagnósticos (nova expressão
utilizada); o DSM-IV lançado em 1994 tinha 297 transtornos (nova denominação) e sua
revisão datada de 2000 manteve o mesmo número.
A quinta versão do DSM foi lançada em 2013 e é apontada como fruto de mais de
doze anos de estudo e seu resultado estaria apoiado numa perspectiva de colaborar de forma
mais segura para aplicação em pesquisa e na prática clínica. Novos capítulos e agrupamentos
de quadros nosológicos foram implementados e o Retardo Mental que aparecia como
classificação do capítulo “Transtornos Geralmente Diagnosticados pela Primeira Vez na
Infância ou na Adolescência” (extinto na nova versão) passou a ser denominado Deficiência
Intelectual e a compor o capítulo “Transtornos do Neurodesenvolvimento” (Araujo & Lotufo,
2014)
92
A mudança se apoia na concepção de que não se trata apenas de um déficit cognitivo,
mas um déficit funcional que envolve tanto elementos intelectuais quanto adaptativos. Nesse
sentido, o teste de inteligência não poderá ser o único abalizador do diagnóstico, senão
acrescido por uma avaliação que leve em conta a adaptação do sujeito às demandas cotidianas
e sociais.
A análise negativa do DSM-V vinda de Allen Frances, psiquiatra que dirigiu a equipe
de elaboração do DSM-IV, criou uma ampliação e visibilidade das críticas dirigidas ao
material produzido e às próprias práticas medicalizantes em voga na nossa sociedade. De
acordo com entrevista para o jornal El Pais, o autor do livro “SavingNormal”(2013) afirma
que o DSM-IV produziu uma inflação de diagnósticos e que o DSM-V transformará em
hiperinflação. A numerosa relação de diagnósticos, somada a descrições pouco especificadas,
e por isso muito amplas, além do jogo de interesse do mercado das indústrias farmacêuticas
possibilitou este processo (Oliva, 2014).
No caso da deficiência mental, é possível supor que o fato de crianças
diagnosticadas com este quadro apresentarem diferentes formas subjetivas e condições de se
“adaptar” ao cotidiano, demandarão formas diversificadas de controle do comportamento para
cada demanda: agressividade, irritabilidade, falta de sono, concentração, fadiga, enfim, as
mais diversas queixas que a família, a escola, ou o próprio médico podem entender como
necessárias de sofrerem intervenção através da medicação. Sendo assim, não há uma droga
específica para o transtorno, mas podem ser associados diversos medicamentos de acordo com
os “sintomas” que precisam ser controlados.
A possibilidade de um resgate histórico a respeito da “deficiência mental” auxilia a
compreensão da problemática que se delineia hoje com relação às crianças no município de
Mamanguape. Depreende desta breve análise que os diagnósticos de “deficiência mental” não
93
podem ser problematizados sem que se leve em conta as condições materiais de vida daquela
população, relacionadas com um campo de forças mais amplo.
É necessário se posicionar criticamente diante da produção deste diagnóstico buscando
elencar o acesso às políticas disponíveis para aquele grupo social, os interesses que envolvem
o campo da medicalização e as articulações com um cenário histórico-político mais amplo.
Atualmente, as crianças e adolescentes com o diagnóstico de “deficiência mental”
podem ser incluídas em serviços e programas disponíveis nas políticas de educação, saúde e
assistência social. Compreender como estas se delineiam a partir do reconhecimento de que
crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, torna-se tema imprescindível para
compreensão da problemática da tese.
94
CAPÍTULO 2 _________________________________________________
Políticas de assistência à infância: Um desenho sobre o encontro entre
Educação, Saúde e Assistência Social
Como visto em sessão anterior, a infância é uma categoria histórica que emerge em
determinado contexto e as crianças passam a ser reconhecidas como sujeitos sociais, para as
quais devem se dirigir determinadas práticas, de acordo com os interesses políticos e
econômicos dominantes em cada cenário histórico.
(...) entendemos que as práticas sociais desenvolvidas no campo das políticas sociais
públicas correspondem, no plano ideopolitico, a representações a cerca de seus
destinatários, num complexo processo de constituição e reconhecimento social desses
sujeitos. Isto significa que a institucionalidade da vida em sociedade, ao definir as
práticas sociais que a orientam, define também o lugar dos sujeitos que vão, ao longo
de sua existência social, integrá-las (Nunes 2013, p. 107).
A reflexão sobre as políticas dirigidas à infância no Brasil pode ser pontuada a partir
do final do século XIX, quando se inicia em nosso país uma preocupação com os cuidados
acerca daqueles sujeitos e sua relação com a organização social. Não existia, até aquele
momento, uma legislação ou práticas de Estado voltadas exclusivamente para a infância, mas
as que se organizaram no início do século XX, tiveram origem nas primeiras discussões e
preocupações ali produzidas.
No cenário de uma república recém instituída, em que predominavam os interesses
liberais e positivistas de ordem social, a infância_ especialmente a pobre_ passou a ser o alvo
central nos debates políticos, acadêmicos e científicos, figurando como elemento econômico:
95
vista como investimento para o futuro, seja como mão-de-obra, para compor uma massa de
trabalhadores submetidos ao mercado e à ordem social, seja como dispêndio para o Estado, no
caso de se tornarem vagabundos ou delinquentes (Rizzini, 2011).
Os debates instituídos na época apontavam para a necessidade de proteção da infância
como futuro do país e que precisaria ser cuidada e afastada das influências que poderiam
corromper seu desenvolvimento. Para tanto, as práticas desenvolvidas estavam pautadas, por
um lado, em um modelo assistencial baseado na filantropia e concentrado na esfera privada,
preocupada com a infância pobre abandonada, tida como vítima da família e da sociedade.
Por outro lado e compondo com a primeira, medidas de controle jurídico, de responsabilidade
do Estado, voltadas para os chamados delinquentes, considerados ameaças para a vida social.
(Nunes, 2013; Scheinvar, 2002)
A materialidade destas relações, produzidas em torno da infância pobre como
preocupação social, está refletida na legislação criada em 1927, denominada Código de
Menores. A Legislação figura como um dos elementos produzidos na época e que na prática
será exercida através do trinômio vigilância, disciplina e proteção.
A impressão que se tem é que através da lei em questão procurou-se cobrir um amplo
espectro de situações envolvendo a infância e a adolescência. Parece-nos que o
legislador, ao propor a regulamentação de medidas “protectivas” e também
assistenciais, enveredou por uma área social que ultrapassava em muito as fronteiras
do jurídico. O que o impulsionava era “resolver” o problema dos menores, prevendo
todos os possíveis detalhes e exercendo firme controle sobre os menores, através de
mecanismos de “tutela”, “guarda”, “vigilância”, educação”, “preservação” e “reforma”
(Rizzini, 2009a, p. 133).
Ao longo do século XX, a categoria “menor”, tida como uma referência no trato com a
questão social da infância, sustentará a pobreza como referência para o desenvolvimento de
96
políticas voltadas para esta população, tendo a periculosidade e a prevenção como eixos
centrais de atuação. Não se trata de produzir transformações nas condições de vida ou acesso
aos bens materiais e culturais produzidos na sociedade, mas na garantia de manutenção e
controle de uma camada da população que colabore na manutenção das engrenagens do
Capital.
Portanto, as práticas de assistência dirigidas à infância se distinguirão em função da
categoria a quem se dirigem: o menor (infância perigosa) ou a criança (infância em perigo).
Durante quase um século esta distinção marcará as políticas para a infância, atingindo maior
notoriedade no Governo Vargas na criação do Departamento Nacional da Criança (1940) e do
Serviço de Assistência a Menores - SAM (1941). O primeiro voltado para proteção materno-
infantil, com programas que focavam a criança pequena, pobre e que possuía família e cujas
ações pautavam-se na higienização, assistência e capacitação para o mercado. O segundo
tinha como foco central “os abandonados e delinquentes já inseridos no circuito da exclusão
social” (Nunes, 2013, p. 110). As práticas definidoras desta tendência serão a reclusão, o
confinamento, a criminalização e a disciplinarização para o trabalho.
De acordo com Irma Rizzini (2009) “O menor permanece na esfera policial-jurídica,
sob controle do Ministério da Justiça, e a criança é exclusividade da esfera médico-
educacional, cujas ações são coordenadas pelo Ministério da Educação e Saúde.” (p. 282)
Na década de 1960, o contexto econômico expressava o aprofundamento das
desigualdades sociais e o êxodo migratório para as cidades acirrou a miséria e o número de
crianças desamparadas. No âmbito político, a tensão gerada pelo interesse do capital
monopolista, em um cenário internacional da Guerra Fria, corroborou para o golpe Militar e
instauração de uma ditadura civil-militar em nosso país. Nesta conjuntura político-autoritária
a questão do “menor” passou a ser tratada como uma questão de segurança nacional. Tal
97
lógica era sustentada pelo argumento do combate ao inimigo interno, ou seja, qualquer pessoa
ou situação que não se ajustasse à ordem vigente era considerada um perigo ao ideal de vida
trazido pelo capitalismo (Coimbra, Matos, & Torralba, 2002).
A política para a infância e a adolescência, criada naquele momento, tinha como
parâmetro a ordem, o desenvolvimento e a segurança como bens maiores da nação. Portanto,
a Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM), criada em dezembro de 1964, foi
amplamente influenciada pela Doutrina de Segurança Nacional. Além disso, as fortes críticas
dirigidas ao SAM, tais como abusos contra os internos, corrupção e clientelismo,
possibilitaram a emergência de um novo modelo de assistência que pudesse superar tal
histórico.
A execução da política se dava através da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
(FUNABEM), que coordenava as diversas Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor
(FEBEMs), sob um novo “arcabouço institucional”. (Nunes, 2013, p. 111).
Em 1979, foi formulado um novo Código de Menores, que também influenciado pela
Doutrina da Segurança Nacional, reforçava o punitivismo através da penalização severa como
forma de enfrentar os efeitos da exclusão social, que eram refletidos no aumento de crianças e
jovens abandonados e infratores. Não se tratava, portanto, de cuidar de sujeitos cujos direitos
básicos eram negados, mas de intervir, através do controle social da pena, no conflito
instalado. “O novo Código via as crianças como doentes sociais que, por estarem fora dos
padrões da segurança nacional, eram considerados criminosos em potencial, devendo estar
então em instituições especializadas, longe do convívio da família e da comunidade”
(Coimbra, Matos, & Torralba, 2002, p. 180-181)
Foi também na década de 1970 que a pesquisa e a análise científica na área da infância
possibilitou estudos críticos sobre as condições de vida, abandono e pobreza, subsidiando a
defesa da transformação das políticas voltadas para este grupo. Além disso, a mobilização de
98
Movimentos Sociais como a Pastoral do Menor e o Movimento em Defesa do Menor
denunciando as violências sofridas nas FEBEMs, foram significativas formas de
enfrentamento a esta política.
Com o período da abertura política e a importante articulação de movimentos sociais
para o debate da “redomocratização”, o contexto social ganha novas possibilidades de
resistência e embate que disputarão as novas produções no campo legal e das políticas sociais.
A promulgação da Constituição de 1988, denominada “Constituição Cidadã” garantiu
a incorporação de reivindicações importantes no campo democrático, como mecanismos de
participação da população na gestão, tais quais os Conselhos20 (Behring & Boschetti, 2011;
Scheinvar, 2009).
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, promulgado em 1990, contrariando a
legislação anterior, pautada na situação irregular, assentará seus alicerces na ampla política de
garantia de direitos. O reconhecimento da criança (todas as crianças) como sujeito de direitos,
em peculiar condição de desenvolvimento, afeta diretamente o modo como se concebem as
práticas que devem ser dirigidas a esta população. A exclusão da expressão “menor” desta
nova concepção imprime um caráter universal às políticas e seu formato integral, prevendo a
assistência e o cuidado como deveres da família, da comunidade e do Estado. Em seu artigo
3º a legislação afirma:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-
se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes
facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de
liberdade e de dignidade.
20 De acordo com Gomes (2003): “Os conselhos constituem-se normalmente em órgãos públicos de composição paritária entre a sociedade e o governo, criados por lei, regidos por regulamento aprovado por seu plenário, tendo caráter obrigatório uma vez que os repasses de recursos ficam condicionados à sua existência, e que assumem atribuições consultivas, deliberativas e/ou de controle” (p. 10).
99
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e
adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça,
etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e
aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou
outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.
(ECA, 1990)
As políticas de assistência à infância preveem medidas de proteção quando os direitos
da criança ou do adolescente forem ameaçados ou violados, e medidas socioeducativas para
os que cometem atos infracionais. Tais ações, articuladas no campo da garantia de direitos,
tentam romper com a lógica punitivista de disciplinarização, confinamento e repressão. Na
prática, os longos anos de institucionalização da infância pobre e as contradições impostas
pela realidade econômica e política, criam barreiras para a efetivação concreta de uma nova
perspectiva. Nas palavras de Scheinvar (2009):
Assim, tanto a Constituição Federal “cidadã” como a legislação complementar que
esta cria _ o ECA_ são a encarnação de um “dever ser” que se propõe universal, mas
que é sempre um “dever ser” em um espaço-tempo determinado, com conteúdos
concretos. As legislações são projetos políticos que se tornam hegemônicos
conjunturalmente, em um debate com muitos outros, num jogo em que a legalidade
expressa uma forma de soberania que pode ser transformada de acordo com os
interesses em disputa, por ser o espaço da legalidade um espaço de guerra. (p. 71)
O ECA é considerado uma legislação avançada e que preconiza os direitos das
crianças atendendo prerrogativas de acordos internacionais. As políticas sociais,
especialmente as dirigidas à infância, devem apoiar-se nas concepções derivadas daquela para
desenvolver suas ações. Entretanto, concordamos com Bering e Boschetti (2011) que afirmam
que:
100
A distância entre a definição dos direitos em lei e sua implementação real persiste até
os dias de hoje. Tem-se também uma forte instabilidade dos direitos sociais,
denotando a sua fragilidade, que acompanha uma espécie de instabilidade institucional
e política permanente, com dificuldades de configurar pactos mais duradouros e
inscrever direitos inalienáveis. (p. 79)
Nesse sentido, é importante compreender que as políticas sociais se concretizam em
um campo de possibilidade que se abre frente aos embates históricos entre trabalhadores e
capital. Afinal, tais embates têm sua origem na própria estrutura do sistema capitalista, na
medida em que a vida social, regida pelos interesses da exploração do capital, será também
contexto das desigualdades e problemas gerados por ele. (Yamamoto & Oliveira, 2010).
A luta cotidiana por melhores condições de vida e mais dignidade segue a contramão
dos interesses do capital, sempre focado na maior exploração possível, visando o lucro e não o
enfrentamento das desigualdades, que como visto, são estruturais. As políticas adotadas pelo
Estado são compreendidas como estratégias de enfrentamento a esta questão social, que é
tratada de forma fragmentada e setorializada, de modo que, como nos chama atenção Behring
e Boschetti (2011), há: “o reconhecimento de direitos sem colocar em xeque os fundamentos
do capitalismo.” (p. 63) Portanto, a garantia da implementação de políticas não é um processo
linear, nem tão pouco sem a presença de contradições e retrocessos.
Com relação ao campo das políticas destinadas à infância, ainda que o ECA se
mostre avançado em uma serie de normatizações para a garantia de direitos, o contexto
histórico e político de nosso país está permeado pelas contradições impostas por uma
sociedade que ainda reproduz a perspectiva da menoridade em seu cotidiano e cujas práticas
institucionais ainda se apóiam, em muito, na repressão e tutela como estratégias de controle
da infância e adolescência pobres.
101
As políticas de educação, saúde e assistência social, de maneira geral, constituem-se
para o atendimento universal, mas por vezes são instituídas com foco específico na infância,
centralizando seus interesses neste grupo. O que queremos dizer é que nossa tentativa de
traçar um desenho sobre estas políticas não tem a ousadia de descrevê-las ou debatê-las cada
uma em profundidade. O que se pretende é chamar a atenção para o fato de que: em primeiro
lugar, o ECA institui uma nova legalidade sobre o reconhecimento destes sujeitos, o que
demanda novas políticas voltadas para este grupo e, em segundo lugar, que a fragmentação
das políticas vistas sobre setores compartimentados como educação, saúde e assistência nos
possibilitariam visualizar de que maneira estas ações se encontram voltadas para a infância
como deficiência. (e em que medida se encontram no cotidiano estabelecendo estratégias de
controle)
Neste sentido, a história da elaboração e concretização das políticas de educação,
saúde de assistência social pautadas na nova legislação brasileira são marcadas pelos
importantes avanços implementados pelos princípios da universalização, descentralização e
democratização das ações, mas também pela fragmentação das políticas, descontinuidade e
insuficiência de Programas que, afinal, não são capazes de se configurar como reais
estratégias de enfrentamento à pobreza. (Yamammoto & Oliveira, 2010, Silva e Silva, 2010)
2.1 Os caminhos da escola
Atualmente, a Educação está normatizada através da Lei de Diretrizes e Bases para a
Educação Nacional [LDB] (1996), que prevê a regulamentação da educação escolar. Redigido
102
em 92 artigos e dividido em nove títulos, o documento passou por alterações ao longo dos
anos, desde sua promulgação21.
Frigotto (1997) aponta o movimento histórico de elaboração desta Lei como permeado
das contradições e lutas sociais pela educação pública, em que parlamentares de tradição
oligárquica barraram significativos avanços propostos no projeto original, construído a partir
de anos de debates com movimentos sociais. Na ocasião de seu debate e promulgação na
Assembleia Legislativa, o projeto de Lei original pautou-se nas teses de longos anos de
discussões de educadores nas Conferências Brasileiras de Educação e reuniões anuais da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). Entretanto, o
choque de interesses com partidos ultraconservadores e as inúmeras negociações que
derivaram deste conflito, acabaram por tornar a Lei mutilada de suas principais concepções
originais.
Ao longo dos anos e transformações no contexto político-econômico do país, a LDB
passou por modificações através de decretos e Leis que a compõem como vemos hoje. Trata-
se de um complexo jogo de relações de poder que transformam a lei de acordo com as tensões
e embates entre os interesses hegemônicos e os interesses dos movimentos sociais. Será o
próprio Frigotto, que em trabalho publicado em 2003 com Ciavatta, analisando as políticas
educacionais dos anos de 1990, elucidará este processo:
O infindável processo de tramitação da LDB e as centenas de emendas e destaques
feitos pelos parlamentares da base de governo, em verdade, eram uma estratégia para
ganhar tempo e ir implantando a reforma educacional por decretos e outras medidas. O
pensamento dos educadores a sua proposta de LDB não era compatível com a
ideologia e com as políticas do ajuste e, por isso, aqueles duramente combatidos e
21 Sua última alteração ocorreu em 16 de fevereiro de 2017 através da Lei nº 13.415, da qual não faremos menção no corpo do texto por se tratar de modificação que ocorreu durante a elaboração final deste trabalho. Assim, optamos por manter a escrita entendendo que contemplou a realidade investigada.
103
rejeitados. Foi por isso, também, que o projeto de LDB oriundo das organizações dos
educadores, mesmo sendo coordenado, negociado e desfigurado pelos relatores do
bloco de sustentação governamental, foi rejeitado pelo governo. Todas as decisões
fundamentais foram sendo tomadas pelo alto, pelo Poder Executivo, por meio de
medidas provisórias, decretos ou por leis conquistadas no Parlamento mediante o
expediente da troca de favores. (Frigotto & Ciavatta, 2003, p. 109-110)
A partir da década de 1990, o cenário social e político de nosso país exibiu o processo
de consolidação da democracia e a estabilização e fortalecimento da economia, o que permitiu
uma importante representatividade política do Brasil no cenário internacional. Em
contrapartida, era necessária a apresentação de números, inclusive no campo da educação, que
indicassem investimento e desenvolvimento social do país.
De acordo com Patto (2005), os altos índices de repetência, analfabetismo, abandono
da escola, de jovens e crianças sem acesso à educação formal, deveriam ser transformados.
Entretanto, no Estado neoliberal, os investimentos na escola pública apenas maquiam a
realidade cotidiana. As políticas públicas para Educação elaboradas sob esta ótica
estabelecem parâmetros que estão longe de provocar uma mudança efetiva na qualidade da
escola pública.
Análises mais detidas dessa política, para além da superfície das estatísticas oficiais,
têm revelado o abismo que separa o discurso democratizante e a realidade das práticas
escolares. As metas oficiais implícitas têm sido, em primeiro lugar, diminuir os
investimentos em educação popular, torná-la mais barata aos cofres públicos, tendo
em vista ajustar a economia à lógica econômica perversa que preside na nova ordem
mundial. Em segundo lugar, fazer crescer os índices numéricos de escolaridade, não
importando a qualidade do ensino oferecido a uma maioria que integra, em número
104
cada vez maior, o contingente dos que vêm tendo seu trabalho descartado pela lógica
do capital. Em terceiro lugar, dar aos excluídos a ilusão de que estão sendo incluídos
na escola e, pela obtenção do diploma, no universo do trabalho. (Patto, 2005, p. 33)
Ao debater a articulação entre educação e a fase de vigência da acumulação
financeirizada e flexível na contemporaneidade, Antunes (2017) chama a atenção para o
entendimento de que o projeto de educação para o início do século XXI está pautado no
trabalhador flexível, que precisa desenvolver capacidades criativas e comportamentais, que
por sua vez, estejam em sintonia com a reestruturação produtiva do capital em curso na
atualidade. A descrição elaborada pelo autor colabora para compreendermos que, apesar de
verificarmos uma legislação em vigor que prima pelo reconhecimento das desigualdades, na
realidade concreta, o projeto de formação de trabalhadores para o Capital, permanece voltado
para a manutenção das desigualdades, e nas palavras de Antunes: “Não é difícil perceber que
a “educação” instrumental do século XXI, desenhada pelos capitais em sua fase mais
destrutiva, não poderá desenvolver nenhum sentido humanista e crítico”. (p. 12)
Atualmente, as problemáticas vivenciadas na Escola são de diversas ordens: a
desqualificação profissional e financeira da carreira docente que gera desmotivação e
adoecimento dos professores; os projetos políticos-pedagógicos elaborados e implantados de
forma verticalizada; as relações de poder que se reproduzem no ambiente escolar; as situações
de violência na escola e da escola; a dificuldade da instituição em tratar de temas como
sexualidade, drogas, gravidez precoce; os impasses em efetivar a inclusão; entre tantos outros
temas que, atualmente, se apresentam como desafios cotidianos, ao mesmo tempo em que são
amplamente analisados e debatidos por pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais,
inclusive da Psicologia. (Patto, 1997; Del Prette, 2003; Marinho-Araújo, 2009)
105
A escola, instituição da educação formal, não foi feita para lidar com a diferença: em
suas práticas estão presentes as tentativas de tornar os alunos silenciosos, competentes para a
realização de provas, obedientes a regras, enfim, enquadrados em um padrão de aluno:
modelo e fôrma que não comportam as singularidades humanas e as resistências à opressão
social. (Patto, 2005 e 2000) Diante desta perspectiva, cabe ressaltar que a denominada
educação inclusiva, que visa debater e implantar medidas que incluam as pessoas com
deficiência na escola, enfrenta este contexto de sucateamento da educação pública como um
todo e as condições históricas e sociais descritas até aqui.
Na perspectiva da previsão da Lei, é importante reconstituir os caminhos previstos na
política de Educação para pessoas com deficiência. Em primeiro lugar, a garantia na
Constituição Federal em seu Artigo 6º de que Educação é um direito social, e definido no Art.
205 como “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
De acordo com a legislação brasileira, o aluno com necessidades educacionais
especiais deve não só frequentar a escola, mas também ser assistido em suas necessidades e
ser respeitado por todos. Os significados desta afirmação podem ser encontrados em diversos
documentos: na Constituição Federal; na Lei 8069/1990 – Estatuto da Criança e do
Adolescente; na Lei 9394/1996 – Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no Decreto Nº
6.949/2009 (que promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007).
Tais garantias representam uma conquista histórica e o avanço nos debates nacionais e
internacionais sobre a democratização das oportunidades educacionais (Declaração de
Jomtien, 1990; Declaração de Salamanca, 1994; Declaração de Guatemala, 1999 Declaração
Internacional de Montreal sobre Inclusão, 2001; Convenção Internacional sobre os Direitos
106
das Pessoas com Deficiência, 2006 ). Na prática, o cotidiano escolar não reflete esta realidade:
a inclusão não tem sido um caminho tranquilo de se trilhar neste espaço educacional
(Machado et all, 2005; Veiga-Neto & Lopes, 2007).
Vejamos como se delineiam os caminhos propostos para estudantes com deficiência.
De acordo com as Diretrizes Educacionais da Educação Básica (Resolução CNE/CEB nº
4/2010), os estudantes com deficiência devem ser matriculados no ensino regular e frequentar
o Atendimento Educacional Especializado no turno oposto.
De acordo com Diretrizes da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva, a proposta do atendimento educacional especializado deveria
possibilitar “identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que
eliminem as barreiras para a plena participação dos estudantes, considerando suas
necessidades específicas” (p. 15). Isto significa pensar estratégias não somente na sala de
atendimento, como na escola regular em que a criança está matriculada, promovendo a
garantia de que as crianças com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional sob a
alegação de sua deficiência.
O Atendimento Educacional Especializado (AEE) deve ser oferecido como
complementar ou suplementar à escolarização, em Salas de Recursos Multifuncionais. As
instituições que oferecem este serviço são de caráter público, ou de instituições comunitárias,
confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos.
No caso da esfera pública, para oferecer o AEE instituiu-se o Programa de
Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais (Portaria Normativa Nº 13/2007), que
estabelece um convênio entre o governo federal e os municípios, em que o primeiro fornece
uma série de equipamentos, de diferentes naturezas, voltados para o apoio da organização e
oferta do atendimento educacional especializado; enquanto o segundo deve garantir o espaço
107
físico, a manutenção dos equipamentos e a formação qualificada de professores para atuarem
neste ambiente.
Há neste Programa Federal uma série de critérios a serem atendidos pela instância
municipal, através da Secretaria de Educação e dos gestores de escolas, para que esta parceria
seja estabelecida, tais como: elaboração do Plano de Ações Articuladas, adequação do Projeto
Político Pedagógico, espaço físico para instalação de equipamentos, matrículas de estudantes
público alvo da educação especial em classe comum.
As diretrizes definidas para a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva estão fundamentadas numa perspectiva de Direitos Humanos em que
“conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, e que avança em relação à idéia
de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produção da exclusão
dentro e fora da escola” (Ministério da Educação, 2008, p. 01).
A educação especial passou a ser um direito em todas as etapas e modalidades,
devendo ser oferecido na rede regular de ensino público, e podendo ser complementado em
instituições públicas ou de outra natureza, com finalidade de atendimento educacional
especializado. A Educação de Jovens e Adultos está incluída como modalidade de ensino que
deve primar por estes preceitos, principalmente, porque recebe sujeitos que historicamente
foram excluídos do ensino regular. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de
Jovens e Adultos (DCN-EJA) exprimem da seguinte maneira a importância desta modalidade:
Desse modo, a função reparadora da EJA, no limite, significa não só a entrada no
circuito dos direitos civis pela restauração de um direito negado: o direito a uma escola
de qualidade, mas também o reconhecimento daquela igualdade ontológica de todo e
qualquer ser humano. Desta negação, evidente na história brasileira, resulta uma
108
perda: o acesso a um bem real, social e simbolicamente importante. Logo, não se deve
confundir a noção de reparação com a de suprimento. (DCN-EJA, 2000, p. 07)
A letra da Lei expressa a dimensão de uma escola inclusiva que possa inserir a
diversidade e promover a educação a partir das singularidades. Prevendo que tal tarefa exige
estrutura específica, estratégias educacionais diferenciadas, formação de pessoal, entre outras
demandas, há também a previsão para tais questões. A materialidade de tal exigência,
entretanto, vai de encontro ao sucateamento da educação pública e entraves burocráticos que
se colocam para a efetivação do que está no papel. Como nos alerta Demo (2003): “(...) a
escola fundamental, pública, gratuita, universal, está, à revelia, absolutamente focalizada
sobre o pobre porque é, como regra, “coisa pobre para pobre”. Com isto evita-se o que a elite
teme, ou seja, que o pobre, um dia, venha a ter a mesma oportunidade escolar que ele tem no
sistema privado.” (p. 122)
2.2 A mercantilização nos circuitos da Sáude
Uma das formas de lidar com a dificuldade de acolher a diferença na escola é o
encaminhamento de alunos para profissionais da saúde. Aqueles que escapam da norma, seja
porque não se comportam como deveriam, não aprendem no ritmo esperado ou não atendem
às expectativas da rotina escolar são incentivados a consultar médicos, fonoaudiólogos,
psicólogos, que possam diagnosticar e conferir legitimidade à queixa produzida pela escola e,
mais ainda, ser responsável pela terapêutica daquele problema.
Assim, o campo da saúde entra no circuito da produção do fracasso escolar, na medida
em que possibilita a culpabilização do indivíduo, atribuindo um diagnóstico e um tratamento
ao problema originado na instituição escolar. Reforçando um legado histórico de
cumplicidade com as práticas de domesticação e alienação produzidas na instituição.
109
Naturaliza-se, então, o rito de creditar ao aluno e sua família a busca por soluções no campo
médico sobre a dificuldade da educação formal de incluir a diferença. (Patto, 2005)
A organização da assistência pública em saúde no Brasil está formalizada em torno do
Sistema Único de Saúde (SUS). Reconhecido como um sistema diferencial por seus
princípios universalistas e igualitários, em que a saúde é definida como direito de todos e
dever do Estado, o SUS é resultado de uma intensa mobilização social iniciada na década de
1970, conhecida como Movimento pela Reforma Sanitária.
O Sistema Único de Saúde foi instituído pela Constituição Federal (1988), em que se
pode reconhecer nos artigos 196 a 200 as premissas que organizam seu caráter e atuação e,
posteriormente, sancionado pela a Lei Orgânica da Saúde, de nº 8.080, de 19 de setembro de
1990. Suas diretrizes centrais são a universalidade, a equidade e a integralidade, articuladas
em princípios organizativos de regionalização e hierarquização; descentralização e comando
único e a participação social, destaques que rompem com os sistemas nacionais adotados no
passado e criam um formato inédito de cidadania.
Essa construção do SUS rompeu com o caráter meritocrático que caracterizava a
assistência à saúde no Brasil até a Constituição de 1988, e determinou a incorporação
da saúde, como direito, numa ideia de cidadania, que naquele momento se expandia, e
que considera não apenas o ponto de vista de direitos formais, de direitos políticos,
mas principalmente a ideia de uma democracia substancial, de direitos substantivos,
que envolviam certa igualdade de bem-estar. Nesse campo, cabe lembrar, a saúde teve
papel preponderante no ideário de nossa Constituição cidadã. (Menicucci, 2014, p. 78)
Os serviços disponíveis à população em uma rede que engloba ações e serviços de
saúde estão dispostos entre a atenção básica, média e de alta complexidades, os serviços de
urgência e emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias
epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência farmacêutica.
110
No caso das pessoas com deficiência, o Ministério da Saúde instituiu em 2012 a Rede
de Cuidados à Pessoa com Deficiência, no âmbito do SUS. De acordo com a legislação que
dispõe sobre esta medida, o objetivo principal é:
Art. 1º Esta Portaria institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, por meio
da criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com
deficiência temporária ou permanente; progressiva, regressiva, ou estável; intermitente
ou contínua, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
No esteio desta proposta, são previstos os Centros Especializados de Reabilitação
(CER), que podem ser classificados em diferentes níveis de acordo com o tipo e quantidade
de serviços ofertados por categoria de deficiência: auditiva, intelectual, física, visual.
Os alunos encaminhados aos serviços de saúde pela escola podem procurar as
Unidades Básicas de Saúde, que são consideradas as “portas de entrada” do Sistema de Saúde.
Através deste serviço de atenção básica, as demandas são direcionadas para outros serviços,
tais como exames mais complexos ou redes de atendimento que incluam especialidades, tais
como os CER. Geralmente, como se trata de buscar diagnósticos ligados aos processos de
aprendizagem, à atenção, ao comportamento e ao desenvolvimento intelectual, é necessário
buscar consultas com profissionais que atendam a estas necessidades. Os CER que cuidam da
deficiência intelectual podem receber tais demandas.
Apesar de seu caráter integrativo e funcionamento em rede, o sistema de saúde não
possui estrutura para efetivar devolutivas à escola que possibilitem um trabalho conjunto. A
demanda encaminhada pela escola faz com que os responsáveis pelo aluno procurem o
atendimento na saúde, desde a busca por diagnóstico ao tratamento indicado, retornando com
informações na escola, como o laudo ou a receita dos remédios prescritos, sem que os campos
da educação ou da saúde, representados por seus profissionais, estabeleçam qualquer diálogo.
111
Presentifica-se a medicalização como processo que naturaliza o mal-estar como um
problema estritamente biológico, tratável pelo instrumento da medicina e seus adjacentes.
A educação e a saúde, previstos como direitos universais e delineados por importantes
conquistas sociais, estão permeados de contradições, em função dos interesses econômicos
hegemônicos. As estratégias de sucateamento e desfiguração da proposta do SUS vão de
encontro aos auspícios do neoliberalismo. O desmonte das políticas sociais passa pela
precarização e privatização dos serviços, enquanto as parcerias do Estado com setores
privados e a mercantilização dos serviços sociais se amplia cada vez mais. (Oliveira
&Yamamoto, 2014)
2.3 Os acessos à Política de Assistência Social
A história de nosso país é marcada por uma colonização com fins de exploração, cuja
organização econômica esteve pautada no escravismo e no cultivo de culturas como café e
cana-de-açúcar, concentradas em latifúndios e dependente da economia internacional.
Este cenário produziu relações sociais de grande desigualdade em que a pobreza se apresenta
como elemento estrutural. Nas palavras de Silva e Silva (2010):
(...) no Brasil, a pobreza aprofundou-se como consequência de um desenvolvimento
concentrador da riqueza socialmente produzida e dos espaços territoriais,
representados pelos grandes latifúndios no meio rural, e pela especulação imobiliária
no meio urbano. Tem raízes na formação sócio-histórica e econômica da sociedade
brasileira. (p. 157)
As políticas públicas de intervenção sobre a pobreza devem ser consideradas segundo
o momento histórico e político em que se desenvolvem, mas de um modo geral, pode-se
afirmar que, ao longo da história de nosso país, não tiveram caráter de enfrentamento real _ já
112
que isso levaria em conta o próprio enfrentamento ao sistema capitalista, gerador da
desigualdade_ mas oscilaram entre a redução ou regulação da pobreza.
De acordo com autoras como Iamamoto (2009) e Oliveira (2009) há um legado
histórico presente em nossa formação social, que marca o caráter das políticas sociais
profundamente: as relações de poder apoiadas em vínculos de dependência pessoal, tais como
o coronelismo e o clientelismo. O interesse privado se sobrepondo ao público e os usos da
coisa pública como favorecimento de pessoas ou grupos, são modos de expressão de tais
processos. As políticas sociais, tomadas neste plano, emergem como ações pontuais e
fragmentadas, elaboradas para conter e regular a pobreza extrema e interpretadas socialmente
como favores e benefícios.
Assim, as marcas de uma “cultura do atraso” persistem e são instrumentos para a
hegemonia de classes dominantes e a sua sempre renovada permanência nos espaços
de poder do Estado em todos os níveis. Essas práticas, à medida que são mantidas e
reproduzidas, contribuem para retardar a realização de direitos e a construção de uma
cultura política baseada no direito, na ética, na cidadania, nas relações democráticas
horizontais e na participação popular. (Pereira, 2009, p. 127)
Importante marco na história do país, a Constituição Federal de 1988 é resultado da
intensa disputa entre as forças populares e as hegemônicas. O cenário de mobilização popular
em torno da democratização em nosso país possibilitou marcas na Constituição que
Yamamoto e Oliveira (2010) descreveram como: “resultado da intensa mobilização popular e
do embate político-ideológico que marca a agenda pública dos anos de 1980, mescla avanços
significativos no campo social com a manutenção de traços conservadores.” (p. 11)
O principal avanço pode ser visto na ampliação e universalização dos direitos sociais a
partir da perspectiva de um padrão público universal de proteção social. Ou seja, estavam
garantidos em lei princípios que regulavam a proteção social a partir da previsão de que é um
113
direito de todos e todas, e não só do trabalhador inserido no mercado formal de trabalho, por
exemplo, a garantia à educação, à saúde, à previdência social, à assistência social, etc.
Apesar da intensa disputa de diferentes projetos políticos para o país: por um lado, a
conquista de direitos sociais, por outro, o avanço das forças neoliberais e retração do Estado, a
conquista da universalidade e da democratização dos espaços públicos, através do mecanismo
de Conselhos, são aportes essenciais para dimensionar as novas perspectivas que se constroem
a partir da Constituição, ainda que sua materialidade seja composta por rupturas e muitos
obstáculos. (Behring & Boschetti, 2011)
A Lei Orgânica da Assistência Social foi sancionada em 1993 de forma a regulamentar
o que foi assegurado na Constituição. Entretanto, nos anos seguintes, sob o governo de
Fernando Henrique Cardoso:
(...) o Brasil havia estruturado uma rede de proteção social ampla, fragmentada e com
programas que se sobrepunham e concorriam uns com os outros por financiamento. As
políticas eram focalizadas e não universais, e os recursos, insuficientes para retirar os
beneficiários dos níveis de pobreza em que se encontravam. (Yamamoto & Oliveira,
2010, p. 17)
Será a partir do governo de Lula da Silva que se implementa o Sistema Único da
Assistência Social (SUAS), em 2004. O Sistema se constitui como uma importante estratégia
para execução da política de assistência social, organizando suas ações em dois níveis de
complexidade: a proteção social básica e a proteção social especial, além de gerir os
benefícios assistenciais e o cadastro de organizações e entidades ao Sistema (MDS, 2015).
A proteção social básica é executada através do Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS), cuja definição está prevista na LOAS, em seu artigo 6º, parágrafo 1º:
(...) a unidade pública municipal, de base territorial, localizada em áreas com maiores
índices de vulnerabilidade e risco social, destinada à articulação dos serviços
114
socioassistenciais no seu território de abrangência e à prestação de serviços, programas
e projetos socioassistenciais de proteção social básica às famílias. (LOAS Lei n.
8.742/1993, art. 6º, §1º)
Os princípios definidores da política comparecem na descentralização, na medida em
que se trata de uma unidade municipal, em articulação com os poderes estadual e federal; cuja
inserção se dá através do território, compreendido não apenas como espaço físico-geográfico,
mas composto por pessoas e suas relações e usos com este lugar; gestora de programas e
ações que componham os fins da política; voltados para a família como unidade de atenção,
compreendida não apenas como núcleo composto por pessoas que possuem laços
consanguíneos, mas vínculos afetivos e de interdependência.
Com relação à proteção social especial será o Centro de Referência Especializado de
Assistência Social que desenvolverá os programas e ações neste âmbito.
O Creas é a unidade pública de abrangência e gestão municipal, estadual ou regional,
destinada à prestação de serviços a indivíduos e famílias que se encontram em situação
de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência, que demandam
intervenções especializadas da proteção social especial. (LOAS Art. 6º, §2º)
De acordo com informações do MDS (2015), o CREAS oferta de forma obrigatória o
Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), além de
serviços como Abordagem Social, Serviço para pessoas com Deficiência, Idosas e suas
famílias e Medidas Socioeducativas em Meio Aberto.
Um dos princípios que alicerçam as políticas sociais é o do funcionamento em redes
articuladas, seja no âmbito da própria assistência, seja com outras políticas, como por
exemplo, a saúde.
115
As prerrogativas de funcionamento da política de assistência social na atualidade
caracterizam-se como um importante avanço frente aos modelos anteriores desenvolvidos no
Brasil. Entretanto, diversos autores questionam as formas como a execução desta política tem
sido feita, apontando, principalmente, a precariedade das condições para realização das ações
e as limitações dos programas para o enfrentamento real da pobreza. (Yamamoto &Oliveira,
2010; Silva, 2010; Behring &Boschetti, 2011; Dantas, 2013)
A política de assistência social também prevê a concessão de benefícios. Com relação
ao seu gerenciamento, destacamos que o CRAS é responsável pelo Programa Bolsa Família
(PBF) e colaborador na implantação do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Sobre o
primeiro, trata-se de um programa de distribuição de renda que visa atender as famílias que
vivem em situação de pobreza ou extrema pobreza. Tal constatação se faz a partir dos
seguintes critérios: famílias com renda per capta de até R$85,00 mensais, ou famílias com
renda por pessoa entre R$ 85,01 e R$ 170,00 mensais, desde que tenham crianças ou
adolescentes de 0 a 17 anos. (MDS, 2015)22. O acesso é feito através de cadastramento no
Cadastro Único para programas sociais do Governo Federal, realizado pelo CRAS de seu
município. É necessário, ao ingressar no Programa, atender às condições de vínculo com
outras políticas sociais, tais como a educação e a saúde: a alegação é de que as
condicionalidades são importantes para reforçar o acesso aos direitos sociais.
No tocante ao PBF, importa ressaltar que se trata do maior programa de transferência
de renda implementado no Brasil, até então. Os resultados obtidos através dele são muito
relevantes, especialmente se pensarmos nas condições de sobrevivência imediata de diversas
famílias em condição de extrema pobreza. Entretanto, há importantes debates sobre as
condicionalidades e os resultados a longo prazo desta estratégia que, apesar de não serem
aprofundados neste trabalho, merecem menção por tratarem da importância de mantermos a
22 http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia/o-que-e/como-funciona/como-funciona
116
criticidade diante das ações empreendidas na realidade de famílias pobres e as estratégias de
controle da população. As críticas principais tratam da direta relação destas ações com a
lógica neoliberal e a inclusão perversa no sistema através da regulação da pobreza. A lógica
das condicionalidades é questionada na medida em que um direito não pode estar vinculado a
condições para ser garantido e, mais ainda, de que a oferta das políticas sociais feita de forma
tão precária, não garante o real acesso à condições de cidadania propostos no Programa.
(Silva e Silva, 2010, Yamamoto &Oliveira, 2010, Dantas, 2013)
(...) os programas tão somente aliviam a pobreza, são emergenciais, assistencialistas e
descontínuos, e têm funcionado para distribuir, e não redistribuir, renda entre a
população, de maneira que haja modificações positivas nos níveis de concentração da
riqueza socialmente produzida. Como produto, não tem sido possível (nem almejado)
reverter o quadro da pobreza e indigência característico da sociedade brasileira.
(Yamamoto& Oliveira, 2010, p. 19)
No que concerne ao BPC, cabe destacar que se trata de benefício ligado à atenção
básica e ao CRAS compete a responsabilidade pela orientação e encaminhamento para acesso
ao benefício, bem como acompanhamento aos beneficiários e suas famílias, pois tornam-se
reconhecidamente um grupo vulnerável que necessita dos serviços socioassistenciais. (MDS,
2016)
O Benefício de Prestação Continuada foi criado em 1993, no âmbito da LOAS, através
da seguinte definição:
O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à
pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que
comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida
por sua família. (LOAS, 1993, Art. 20)
117
A gestão do BPC cabe ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), por meio da
Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), “que é responsável pela implementação,
coordenação, regulação, financiamento, monitoramento e avaliação do benefício”. (MDS,
2015) De acordo com Medeiros, Diniz e Squinca (2006), trata-se do segundo maior programa
não contributivo de transferência de renda no Brasil, sendo menor apenas que o Bolsa-
Família.
Além de ser direcionada para um público específico: idosos e pessoas com deficiência,
é necessário comprovar renda mensal familiar menor que um quarto (1/4) de salário mínimo
por pessoa. Portanto, a condição de pobreza surge mais uma vez como elemento norteador
para a concessão da política. O BPC é uma transferência que independe de contribuição
prévia à Seguridade Social. Além disso, a previsão da Lei é de que haja uma reavaliação das
condições que deram origem ao benefício para determinação de sua continuidade ou
suspensão.
Após seu primeiro ano de funcionamento, os números relativos ao programa
contabilizavam 346 mil beneficiários, já em 2005, este número cresceu para 2,7 milhões de
pessoas atendidas. (Medeiros, Diniz, & Squinca, 2006). No ano de 2015, alcançou cerca de 4
milhões de beneficiários (Vaitsman & Lobato, 2017).
O acesso ao Benefício acontece da seguinte maneira: é necessário agendar, através do
número de telefone 135, a primeira habilitação em uma agência da previdência social.
Entretanto, é preciso atender a alguns critérios: estar inscrito no Cadastro de Pessoa Física
(CPF) e no Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico)23. No dia
determinado, comparecer com toda a documentação exigida e que é informada pelo
23 A obrigatoriedade de inscrição no CadÚnico foi determinada recentemente pelo Decreto Nº 8.805, de 7 de julho de 2016 que pode ser acessado no sítio: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8805.htm . A responsabilidade pelo cadastramento de famílias no CadÚnico é das Secretarias Municipais de Assistência Social ou dos CRAS.
118
atendimento telefônico. O sítio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)24 esclarece, na
sessão destinada a informar sobre procedimentos para a obtenção do benefício, que é possível
esclarecer dúvidas e obter informações sobre o preenchimento de formulários no CRAS. O
atendimento nas agências do INSS é feito por técnicos que avaliam a documentação para
entrada do requerimento e, se está tudo correto, há o agendamento para avaliação social e
perícia médica. Caso contrário, o requerente terá 30 dias para retornar com as exigências
atendidas, ou o processo será indeferido. Após os procedimentos de apreciação social e
médica o benefício poderá ser implementado, ou não.
Antes do Decreto Nº 8.805, de 7 de julho de 2016, não era necessário o critério de
estar inscrito no CadÚnico e, portanto, pareciam existir lacunas na coordenação e cooperação
entre o INSS e o CRAS, no que diz respeito ao BPC. Vaitsman e Lobato (2017) destacam em
seu estudo as barreiras para o acesso a este benefício por pessoas com deficiência, indicando
diversas fragilidades no processo de habilitação no que se refere às ações intersetoriais. Entre
os principais aspectos levantados: a dimensão partidária que define as relações entre a esfera
municipal e a federal, constituindo barreira para cooperação interfederativa, que poderia ser
melhor estruturada entre as agências do INSS e o CRAS. Como os municípios dispõem de
autonomia para aderir a mecanismos de gestão conjunta, de acordo com a os grupos políticos
que ocupam cada instância (municipal, estadual e federal), o diálogo e a cooperação podem
não ocorrer a favor da política como coisa pública25.
Outro aspecto seria a necessidade de maior interface entre o INSS e o CRAS que
estaria ligada a demanda de que o trabalho de habilitação do primeiro poderia ser melhor
24 https://portal.inss.gov.br/informacoes/beneficio-assistencial-ao-idoso-e-a-pessoa-com-deficiencia-bpc/ 25 “A palavra pública, que sucede a palavra política, não tem identificação exclusiva com o Estado. Sua maior identificação é com o que em latim se denomina de res publica , isto é, res (coisa), publica (de todos), e, por isso, constitui algo que compromete tanto o Estado quanto a sociedade. (...) Quando se fala de res publica, está se falando também de uma forma de organização política que se pauta pelo interesse comum, da comunidade, da soberania popular e não da soberania dos que governam.” (Pereira, 2009, p. 94)
119
encaminhado com dados e colaboração do segundo. Assim, um segundo problema apontado
por Vaitsman e Lobato (2017) é o fato de que apesar da porta de entrada do BPC ser o INSS,
a população geralmente busca o CRAS atrás de informações sobre como solicitar o benefício.
Sobre esta falta de informação sobre o BPC, Medeiros, Diniz e Squinca (2006) esclarecem:
A disseminação de informações é um ponto a ser fortalecido pelo programa. Enquanto
outros programas de benefício de renda, como o Bolsa-Família e seus precedentes, são
amplamente divulgados, pouco se vê do BPC na mídia. Uma explicação possível para
esse fato pode ser que, por ter sido criado pela Constituição de 1988, o BPC não
pertence a nenhum governo específico e, portanto, não recebe a mesma atenção
política nem gera os créditos políticos que o Bolsa-Família e iniciativas similares. (p.
20)
Como prestar esta informação é uma atribuição do CRAS, mas este não possui um
papel formal sobre o processo de solicitação do Benefício, muitas vezes as assistentes sociais,
sobrecarregadas com outras funções, não procedem este atendimento como uma iniciativa
regular e, por isso, nem sempre é possível obter a ajuda necessária. Além disso, a rotatividade
nos cargos ligados ao CRAS, a formação precária, e a falta de preparo e conhecimento amplo
sobre as políticas são questões que determinam as práticas dos profissionais (assistentes
sociais e psicólogos) que atuam neste lugar.
Apesar de política em amplo processo de consolidação, com ganhos constitucionais
bastante importantes do ponto de vista dos direitos sociais, e com um forte apelo
redistributivo, o trabalho na assistência social é caracterizado historicamente por uma
desprofissionalização, por uma prática eventual e assistemática e por ações
inconsistentes. Seus profissionais têm relações empregatícias instáveis, com alta
rotatividade e baseadas em vínculos de confiança, ao invés de competência
profissional. (Yamamoto & Oliveira, 2010, p. 19)
120
O usuário pode seguir, então, um caminho espinhoso na busca pelo benefício: perdido
no preenchimento de formulário, juntando a documentação necessária ou caindo em exigência
pela falta de alguma, refazendo o deslocamento até a agência do INSS, que nem sempre está
localizada no município de sua residência. Contando que as pessoas envolvidas vivem em
situação de vulnerabilidade social e econômica, esta situação gera grande desgaste. Por isso, é
comum recorrer a um intermediário que, tendo conhecimento de toda a burocracia, colabore
no processo de solicitação do BPC, mesmo tendo que abrir mão de algumas parcelas do
benefício para pagar o “trabalho” deste agente. Os técnicos do INSS não podem impedir que
os requerentes estejam acompanhados de outras pessoas, que geralmente são apontados como
“vizinhos” ou “amigos”: “Os técnicos administrativos se queixam muito dos intermediários, a
quem os requerentes devem pagar se o benefício é deferido” (Vaitsman & Lobato, 2017, p.
353)
O terceiro aspecto diz respeito à avaliação social feita pelo INSS: a) porque poderia
ser melhor amparada por informações do CRAS; b) porque no caso de não deferimento de sua
solicitação, o CRAS poderia encaminhar o usuário para outra política e não deixá-lo
vulnerável.
A resolução destes entraves apontados pelas autoras não serão solucionados através do
Decreto 8.805/2016. Por certo, a exigência do CadÚnico visa subsidiar com mais e melhores
informações o Sistema de Avaliação do INSS, entretanto isto não garante que os mecanismos
de coordenação e cooperação superem os obstáculos descritos até aqui.
Em se tratando de um benefício para pessoas com deficiência, Medeiros, Diniz e
Squinca (2006) destacam importante dado a este respeito para nossa pesquisa:
As informações de caráter demográfico sobre a concessão de benefícios para pessoas
deficientes no ano de 2004, obtidas no processo de cadastramento dos novos
121
beneficiários processado pelo Dataprev indicam que grande parte das concessões por
deficiência ocorre entre crianças e jovens. Cerca de 42% dos benefícios foram
concedidos a pessoas em idades entre 0 e 24 anos, sendo boa parte deles concentrados
nas idades mais jovens. A população de 25 a 45 anos representa cerca de 29% das
novas concessões e a população de 46 a 64, a uma fração igual, 29%. (p. 26)
Os números em relação ao BPC foram descritos em diversos aspectos numéricos no
Boletim BPC 2015, elaborado pelo MDS (2016). No que tange a este trabalho, traremos em
destaque aqueles referentes à pessoa com deficiência para compreender alguns percentuais
ligados a esta população.
No Brasil, a quantidade de benefícios ativos para pessoas com deficiência é mais
concentrada na faixa etária de 0 a 18 anos, este grupo representa aproximadamente 22% do
total.
Figura 5. Distribuição do BPC para pessoa com deficiência por faixa etária
Nota: Gráfico retirado do Relatório BPC 2015, (MDS, 2016, p. 19)
122
A Região Nordeste é a que mais concentra quantidade de benefícios ativos para
pessoas com deficiência por região.
Tabela 1
Benefícios concedidos por espécie segundo as grandes regiões.
Nota: Quadro retirado do Relatório BPC 2015, (MDS, 2016, p. 11)
No documento ainda é possível verificar que a distribuição de benefícios ativos para
pessoa com deficiência, está distribuída segundo a classificação do CID -Classificação
Internacional de Doenças Selecionadas e que, do total geral de 772.641 pessoas com
deficiência, cerca de 45% dos diagnósticos estão concentradas na classificação de Retardo
Mental. As informações podem ser verificadas da seguinte maneira:
Tabela 2:
Diagnóstico de Retardo Mental e BPC
CID Total Porcentagem
F71 Retardo Mental Moderado 148.610 19,23%
F72 Retardo Mental Grave 116.272 15%
123
F79 Retardo Mental Ne 33.679 4,35%
F70 Retardo Mental Leve 31.914 4,13%
F73 Retardo Mental Profundo 19.937 2,58%
Nota: Elaborada a partir dos dados disponíveis no Boletim BPC 2015 (MDS, 2016 pp. 20-21)
Outra relevante informação para fins deste trabalho refere-se à evolução de benefícios
concedidos por decisão judicial a pessoas com deficiência. Quando o processo de solicitação
do benefício é indeferido no INSS, muitos usuários buscam o Sistema Judiciário para acessar
o benefício. Os “intermediários” de que falavam Vaitsman e Lobato (2017) prestam serviços
também neste campo quando cessam as possibilidades pela via comum. Neste sentido, os
números comprovam que tem sido cada vez mais utilizado este recurso. Vejamos a evolução
destes números no Brasil: em 2004, 9.497 benefícios foram concedidos via processo judicial
para pessoas com deficiência, o que representava 6,71% do total de benefícios concedidos
naquele ano. Em 2015, este número passou para 40.498, o que significa cerca de 30% de
concessões via judiciário do total de concessões daquele ano. Na Paraíba, estes números
acompanham o crescimento nacional: enquanto em 2004 foram 227 benefícios concedidos
pela Justiça para pessoas com deficiência; no ano de 2015 este número subiu para 2.307.
(MDS, 2016)
A preocupação com este cenário fez com que o próprio Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, junto à Secretaria Nacional de Assistência Social
e o Departamento de Benefícios Assistenciais, lançasse em 2016 a Nota Técnica N.º
03/2016/DBA/SNAS/MDS sobre as concessões judiciais do BPC e sobre o processo de
judicialização do benefício. Neste documento, importantes análises são suscitadas e vão desde
a compreensão do que seja a judicialização, até as relações estabelecidas entre a Justiça e a
Assistência Social, além da apreciação de relatórios elaborados sobre o tema.
124
O conceito de judicialização utilizado no referido relatório vai de encontro ao
entendimento de que o Sistema de Justiça não está alheio, nem mesmo neutro, aos processos
sociais e históricos da sociedade em que está inserido. Ao contrário, as instâncias jurídicas ao
proferirem suas sentenças passam, cada vez mais, a se posicionar influenciando a agenda
política. A referida Nota Técnica destaca o seguinte:
O fenômeno da judicialização das políticas públicas tem ganhado relevância tanto no
contexto internacional, como no âmbito nacional. Primeiro, cabe observar que há uma
influência recíproca entre direito e política, principalmente no que se refere às normas
constitucionais. Trata-se de interação complexa e sutil que consiste no fato de questões
de relevância política, social ou moral, serem, cada vez mais, disciplinadas em
Constituições Nacionais. O fenômeno da judicialização, por sua vez, significa que
questões de relevância política e social passaram a ser decididas, em última instância,
pelo Poder Judiciário; não estando mais restritas às esferas políticas tradicionais de
promoção das políticas públicas – o Legislativo ou o Executivo (pp. 5-6)
De acordo com Faria (2004), a judicialização tornou-se um fenômeno presente no
cenário nacional principalmente a partir da elaboração da Constituição Federal de 1988, nas
palavras do autor: “o texto constitucional ficou ambíguo e sem espírito definido, sendo
impossível saber ao certo em várias matérias o que de fato é direito adquirido, o que pode ser
objeto de emenda e o que foi convertido em cláusula pétrea.” (p. 110) Desta maneira, o papel
do sistema de justiça passa a ser ampliado e suas decisões decorrem diretamente no sistema de
política e de economia.
As instâncias judiciais atuam num contexto social contraditório de interesses
antagônicos, cujos cidadãos não gozam das prerrogativas do direito da mesma forma. A
judicialização implica em conceder ao judiciário a tarefa de decisão sobre conflitos que,
125
incidindo no sistema econômico, político e mais diretamente, na vida das pessoas, não pode
ser tomado como indiferente ou imparcial. (Faria, 2004)
Assim, elemento de judicialização que materializa a delicada relação entre o judiciário
e o Sistema de Assistência Social são os critérios de elegibilidade para concessão do BPC.
Tais critérios foram tema de decisões de acórdãos do STF, mostrando a necessidade de
alterações na Lei que regulamenta tal assunto. Os ministros julgaram improcedente que a
determinação de miserabilidade fosse instituída apenas pelo cálculo da renda per capta, sob a
alegação de que outros fatores são necessários para condicionar o nível de pobreza em que
vive uma família. (Nota Técnica 03/2016)
Ainda sobre este tema, a Nota Técnica caracteriza o trânsito das ações da seguinte
maneira:
É importante ressaltar que essas ações, nos juizados especiais federais, tramitam em
média por um ano e nove meses, o que acaba por gerar importantes custos ao sistema
de Assistência Social, na forma do pagamento de benefícios em atraso. Os motivos
pelos quais os JEFs concedem o BPC variam, mas as questões “de fato” costumam ser
mais relevantes do que as “de direito”, ou seja, é mais comum que a Justiça Federal
conceda o benefício por discordar da avaliação feita pela autarquia previdenciária
sobre a situação social, o nível de renda, ou a condição de pessoa com deficiência do
eventual beneficiário, do que de qualquer divergência de entendimento sobre o
conteúdo da legislação vigente. (pp. 16-17)
O Boletim BPC 2015 (MDS, 2016) e a Nota Técnica 03/2016 (DBA, SNAS, MDS,
2016) constituem importantes referências para compreensão do panorama da concessão do
Benefício de Prestação Continuada em nosso país. As informações elencadas nos documentos
trazem à tona a necessidade de problematizarmos a política como um benefício necessário e
que precisa estar mais acessível à população.
126
Os programas de transferência de renda são estratégias de proteção social que se
constituem como transferências monetárias a famílias ou beneficiários que se encontram em
situação de pobreza crônica ou estrutural. Tais programas começaram a ser implementados
nos países da América Latina entre as décadas de 1980 e 1990, incentivados pelo Banco
Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, em função do êxito experimentado
por experiência semelhante no México. Os interesses do capital econômico em tais iniciativas
demonstram que os programas atendem a variante de crescimento econômico e importam para
a manutenção da ordem vigente. O atendimento às necessidades básicas acaba por se limitar à
sobrevivência e, de acordo com Stein (2009), tais programas são “destituídas do caráter de
direito social” (p. 201)
Ainda assim, o Benefício de Prestação Continuada segue como importante forma de
sobrevivência aos que são acolhidos por tal política. Os dados apresentados pelo Boletim BPC
(2015) demonstram a necessidade iminente do público em tela, suas características e sua
distribuição no país. Isto nos defronta com a importância de uma reflexão mais aprofundada
sobre as especificidades, das pessoas e das políticas, que os números isoladamente não podem
demonstrar. O critério de comprovação de pobreza para adesão ao BPC representa um
importante dado sobre a desigualdade social em nosso país. Da mesma maneira, a
concentração de pessoas entre 0 a 18 anos como beneficiárias, apresenta-se como importante
referência para a necessidade de repensar as políticas disponíveis para este público, a falta de
oportunidades para as pessoas com deficiência e a necessidade de programas que promovam
real transformação em suas vidas.
A manutenção da política fragmentária e calcada em sistemas burocráticos que mais
dificultam do que facilitam o acesso dos cidadãos, circunscreve-se no modelo neoliberal de
composição de um Estado menos presente nas políticas sociais. Entretanto, é necessário
esclarecer que os programas de transferência de renda assumem dupla função: por um lado,
127
aqueles que acessam o benefício passam a ter meios para consumir e suprir as necessidades
mais urgentes, por outro, isto significa movimentar um mercado, situando estes sujeitos como
agentes econômicos que se inserem num contexto mais amplo.
Este complexo cenário necessita ser problematizado nos seus diversos aspectos: há
uma movimentação de mercado, o que possibilita a manutenção da ordem capitalista e, não
necessariamente, garante a superação da pobreza e da desigualdade social. Assim, tais
políticas, reconhecidamente necessárias para o mínimo de sobrevivência de tantas famílias,
não viabilizam por si só mudanças significativas se não forem acompanhadas de outras
possibilidades de transformação social.
128
CAPÍTULO 3 ____________________________________________________
A cidade, a desigualdade e as pessoas.
Figura 6. Foto da praça principal e Igreja Matriz de São Paulo e São Pedro Nota: Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2015).
A igreja e a praça, locais privilegiados dos encontros e passagens, demarcam a história
e o presente de uma cidade que, localizada no litoral, faz as vezes de um lugarejo do interior.
Nas épocas de festa, as bandeirolas penduradas em meio aos fios, colorem o caminho
obrigatório de qualquer visitante que deseje adentrar em seu cotidiano.
129
A cidade que está na rota da grande rodovia duplicada, fica entre a capital paraibana e
a potiguar. O acesso à pista lateral fica em seguida da usina de açúcar, com sua chamativa
placa e imponente construção. O caminho é quase monocromático: vindo de uma capital ou
de outra, é a plantação de cana-de-açúcar que predomina por toda viagem. Dependendo da
época do ano, é preciso ter cuidado com as grandes queimadas que tomam os campos, a
fumaça espessa, meio cinza, meio preta, avança na estrada impedindo a visibilidade e
sufocando a respiração.
A chegada, no entanto, é fácil e previsível, a avenida principal estreita guarda duas
pistas simples cortadas por um canteiro, é só seguir a mão e depois de algumas curvas chegar
na praça principal. Depois da igreja: a cadeia, a delegacia, os bancos, a feira, o comércio e a
universidade. No caminho de volta: cemitério, escola, hospital, outra igreja, mais comércio e a
saída para a BR.
O olhar apressado pode passar despercebido pela história de ascensão e declínio
daquela que já foi a segunda maior economia do estado, durante o período da Colonização.
Pelas ruas transversais que abrigam casas e pequenos comércios, os moradores circulam e
vivenciam suas dinâmicas, principalmente a de se sentar nas calçadas ao entardecer e de
varrer suas varandas e quintais das fuligens jogadas cotidianamente pelas usinas.
O nome da cidade tem sua origem em uma designação do povo potiguara:
Maman: de beber, para beber; Gua: água; Pe: nas. Significando então, Mamanguape, “Nas
águas de beber” ou o mais popularmente difundido “No bebedouro”. O termo atribuído ao
principal rio da região nomeou o vilarejo cheio de histórias desde o século XVI.
No primeiro século da exploração europeia no Brasil, foram os franceses que,
estabelecendo relações de troca com os índios potiguar, manejaram a extração do pau-brasil
de forma ostensiva na região. Graças à aliança com a população indígena, mantiveram o
domínio local e contiveram os avanços portugueses até o final deste período.
130
Após confronto e derrota dos franceses, os portugueses visando maior controle da
região, adotaram a política da catequese, fundando na região o centro religioso da Companhia
de Jesus e instalaram alguns edifícios e engenhos.
Este processo foi interrompido com a invasão holandesa em 1633. Os conflitos
derivados dos quase 20 anos de dominação e finalmente, a retomada portuguesa da região, se
refletiu na destruição de casas, engenhos e canaviais (Andrade & Vasconcelos, 2005).
A partir de então, houve preocupação com a colonização do Brasil de forma mais
contundente. A região do nordeste recebeu incentivos ligados à cultura agrícola, mas
principalmente, em relação ao algodão e à cana-de-açúcar.
Mamanguape possuía características naturais propícias aos interesses dominantes de
exploração da terra: além de oferecer o pau-brasil, possuía boa qualidade do solo para o
plantio de culturas, as águas de rios para abastecimento das necessidades locais e a
navegabilidade do rio Mamanguape.
Tinha de tudo. A cristalina água de suas fontes, solo fértil, a melhor e mais procurada
mercadoria da época– o pau-brasil e outras madeiras de lei, que se constituíram em
produtos de um comércio exportador. Todos esses fatos atraíram novos habitantes e
até senhores-de-engenho de Pernambuco, que vieram aplicar suas fortunas no
território mamanguapense, onde implantaram os seus engenhos para a fabricação do
açúcar (Costa, 1986, p. 45)
Nesse sentido, a criação de portos na região, que garantiam o escoamento das
mercadorias, e as características acima mencionadas possibilitaram que o crescimento
econômico desse grande visibilidade à Mamanguape.
O auge de sua ascensão, no período colonial, remete à visita do imperador D. Pedro II
em 1859. A casa onde se hospedou à época, funciona hoje como Prefeitura da cidade e se
constitui como um dos poucos patrimônios históricos restantes na cidade. A igreja matriz, a
131
cadeia pública, a igreja de Nossa Senhora do Rosário e alguns poucos prédios que guardam,
ainda que de forma decadente, a fachada arquitetônica daquele tempo.
Das casas de azulejos português, herança do período em que famílias portuguesas e
italianas se fizeram presentes no desenvolvimento da região, apenas uma guarda sua forma
original. A história da cidade e das pessoas foi tomada pela decadência, pela falta de
reconhecimento ao passado, pelo descaso com as memórias populares e atropelada por um
processo de crescimento sustentado no agronegócio, que não preza pelas raízes ou
sustentabilidade regional, como veremos adiante.
Do ápice à decadência, atribui-se que a construção de uma ferrovia que ligava cidades
do interior à capital, facilitando o escoamento de mercadorias, concomitante à deterioração
dos portos ligados à Mamanguape, provocaram o declínio da região. No final do século XIX,
a cidade que não tinha nem estrada de ferro, nem porto, viu as famílias abandonarem seus
comércios e suas casas. Nas palavras de Costa (1986): “Cada comerciante que via sair outro
da cidade, no dia seguinte, também fugia dela. Desta forma, em pouco tempo estavam
fechadas as casas comerciais e as residências. Parecia ter havido uma peste na Cidade, onde
não seria mais possível a vida” (p. 167).
A região, de uma maneira geral, estruturada no espaço agrário manteve até meados do
século XX as características de monopólio fundiário, na monocultura canavieira e na
exploração do trabalho. De acordo com Targino, Moreira e Menezes (2011):
Apenas com a Abolição, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho dos
moradores. Como todas as terras da Zona da Mata já estavam apropriadas e a Abolição
não foi acompanhada da distribuição de terras como pretendiam alguns abolicionistas,
a mão de obra escrava não teve alternativa senão permanecer como moradores de seus
antigos senhores (p. 87)
132
A nova guinada econômica acontece na década de 1920, com a inauguração da
Companhia de Tecidos Rio Tinto. Seus tijolos vermelhos característicos, feitos do barro local,
deram forma à fábrica e às varias construções no entorno. Mamanguape tornou a ganhar
visibilidade em função do negócio tido como propício para a região.
Entretanto, o discurso oficial do promissor empreendimento foi bem confrontado por
trabalhos históricos que demonstraram os interesses políticos e econômicos em jogo na
implementação da fábrica no interior da Paraíba. A isenção fiscal por um período de trinta
anos, oferecida pelo governo do estado, somado ao distanciamento da capital e dos
movimentos operários que se fortaleciam em Recife (cidade de origem da família Lundgren,
possuidora de muitos negócios naquela cidade, idealizadora e proprietária do
empreendimento) eram elementos contingenciais para a estrutura industrial que se pretendia
(Vale, 2008).
Fundou-se a cidade-fábrica, em que a vila operária circundava as instalações da fábrica
e toda estrutura de suporte como farmácia, escola e até clube foram erguidas para a
manutenção da vida social que deveria girar em torno do trabalho fabril. Rago (1997)
demonstra de que maneira as vilas operárias na República Velha estavam submetidas à
ordenação da fábrica: “Eliminando todos os intervalos que separam a vida do trabalhador do
dia-a-dia do operário, a forma burguesa de habitação designada para o pobre instaura um novo
campo de moralização e de vigilância”. (p. 177)
O empreendimento que chegou à Mamanguape modificou o nome do vilarejo de Vila
Preguiça para Rio Tinto. E não foi apenas o nome que sofreu mudanças: a paisagem e os
moradores transformaram-se com a chegada dos negócios da família Ludgren. Pescadores,
índios e trabalhadores rurais viraram operários da fábrica. Terras indígenas foram invadidas e
exploradas para benefício dos negócios. As reivindicações da população indígena pelas terras
geraram contendas e ainda hoje há conflitos de demarcação. Portanto, diferente do que prega
133
o discurso oficial, a industrialização do litoral norte não foi uma história sem embates,
conflitos, exploração e violência (Palitot, 2011).
A aquisição de terras pela família Lundgren, associada ao ideário de industrialização
da região acirrou também as contendas entre grupos latifundiários, o que marcou
profundamente a dinâmica da região na primeira metade do século XX. Por um lado a família
pernambucana, de origem sueca, delineando um processo de industrialização e disputando
lugares de poder político com a família Fernandes de Lima, latifundiários tradicionais da
região, proprietários da Usina Monte Alegre e habituais detentores da Prefeitura de
Mamanguape.
Na década de 1940, a inauguração da usina Monte Alegre, aquela que fica às margens
da BR, na entrada de Mamanguape, foi considerada um grande avanço no desenvolvimento
industrial da região e marca de poder daquele grupo político.
A disputa se concretizava também na demanda por mão-de-obra para o trabalho. Na
época da safra muitos trabalhadores vindos do agreste e do sertão convergiam para a zona das
usinas para o trabalho ligado à cana-de-açúcar. Entretanto, como nos afirma Mendonça
(2013):
(...) bem mais intenso fora o influxo da Cia. de Tecidos Rio Tinto, que atraia famílias
inteiras das mais diversas regiões, principalmente nos períodos de seca. No ano de
1940 o distrito de Rio Tinto, superara em urbanização e densidade demográfica a sede
administrativa (p. 11).
A migração pela promessa de trabalho gerou grande fluxo de famílias para aquele
contexto, muitas delas vindas do sertão, da realidade rural, para tornarem-se operários fabris.
A demanda empresarial era de contratar famílias de pelo menos três pessoas: pai, mãe e filhos
que eram empregados segundo a lógica de atividades específicas para cada gênero e idade. A
docilização passava pela necessidade de, contratando a família, classificando suas funções e
134
dando-lhe moradia, controlar de forma mais efetiva o grupo de trabalhadores. Tais estratégias
produziram o que Vale, citando Rosilene Alvim, destaca: “Elas se transformam em famílias
de trabalhadores industriais e nesse processo, vários dramas são vividos, hierarquias
familiares e intergeracionais reconstruídas, um novo modo de vida e de trabalho lhes é
imposto.” (Vale, 2008, p. 44).
As condições de trabalho e moradia, tanto dos trabalhadores da Companhia Têxtil de
Rio Tinto (CTRT), quanto dos trabalhadores rurais submetidos à lógica do latifúndio, eram
precárias e configuravam situações de exploração e violência.
Embora formalmente livres, os moradores mantinham dependência econômica, social
e política em relação aos proprietários. Estavam subordinados a uma extrema
exploração da sua força de trabalho, bem como de todos os familiares. Tal relação
determinava o quadro de extrema pobreza em que vivia a maioria da população da
Zona da Mata (Targino, Moreira & Menezes, 2011, p. 87).
A situação de moradia obedecia à lógica de que, ao habitar na propriedade do patrão e
ser empregado por ele, os trabalhadores deveriam se submeter às determinações daquela
relação. Além de receberem muito pouco pelas suas horas de trabalho (que geralmente iam do
amanhecer ao anoitecer), deveriam consumir do barracão, de propriedade também do
latifundiário, eram proibidos de cultivar qualquer gênero ou criar animais que poderiam servir
para consumo próprio e deveriam cumprir certa jornada de trabalho extra como forma de
pagamento pela moradia. A desobediência custava não somente a expulsão de toda a família
da propriedade, quanto a própria vida do trabalhador.
135
A resistência ao contexto de exploração vivido surgiu de forma organizada com o
surgimento das Ligas Camponesas26 nos idos de 1950. Antes disso, como nos esclarece
Targino, Moreira e Menezes (2011):
(...) em um contexto de repressão e extrema violência, tinham poucas alternativas de
resistência aberta, de enfrentamento direto com os patrões. A intensidade do
crescimento quantitativo dos participantes e a expansão geográfica e política das ligas
podem também ser entendidas como a expressão de uma consciência da exploração já
presente entre os camponeses, que, até então, não havia tido a oportunidade de se
expressar pública e coletivamente. (p. 90)
A constituição da Liga Camponesa na região e sua história de luta e resistência
demarcam a luta da população rural contra esse contexto de exploração advinda do modelo
latifundiário (Mendonça, 2013). Há de se levar em conta que o núcleo da Liga Camponesa em
Mamanguape possuía o segundo maior numero de associados do estado.
O cenário de lutas e embates foi acirrado, pois a militância das Ligas surtiu muitos
efeitos e possibilitou tanto mudanças na dinâmica das relações sociais e de trabalho, quanto
visibilidade às lutas dos trabalhadores rurais. Tais forças competiam com os interesses dos
senhores de terra que secularmente viam seu poder intocado e agora, precisavam reprimir o
movimento que ameaçava seu poderio. A repressão tinha diversos contornos, desde ameaças e
confrontos à organização, até processos de violência contra as lideranças pessoalmente e suas
famílias. O poder político dos latifundiários se expressava pelas alianças com representantes
políticos no governo e influências em órgãos de repressão como a polícia e o exército, que
participaram nas estratégias e ações de combate às Ligas.
26 Não caberia neste trabalho aprofundar a importante e complexa história da Liga Camponesa no contexto brasileiro, ou mesmo paraibano, mas precisamos destacar a imprescindível luta conduzida no embate social travado entre trabalhadores e proprietários no cenário social em curso, onde os discursos oficiais insistem em invisibilizar a participação da classe trabalhadora e suas lutas de resistência na construção da Sociedade.
136
O momento de maior repressão foi após o Golpe civil-militar de 1964 em que a prisão,
cassação de direitos políticos, perseguição e assassinatos dos principais líderes do movimento,
além do clima de terror imposto às bases do movimento camponês, acabaram por impor o
silêncio e o medo.
Será também na década de 1960 que a CTRT inicia um processo de decadência. A
crise ligada ao setor algodoeiro afetou grandemente a fábrica que só trabalhava com este
material. Além disso, o maquinário obsoleto não possibilitava uma produção mais rápida e de
qualidade, capaz de competir com a produção do sul. A tentativa de manter-se no mercado
através de subsídios públicos possibilitou a aquisição de uma parte de equipamentos mais
modernos, o que culminou em um processo de demissões, já que a operação das máquinas
novas exigia menos trabalhadores. A CTRT que chegou a contabilizar cerca de 15 mil
funcionários em seus quadros, demitiu por volta de 3 mil trabalhadores naquela década.
Atribui-se à falta de modernização a perda de competitividade no mercado e
consequente decadência do empreendimento. Como parte do acordo das demissões vários
funcionários receberam as casas que eram suas moradias.
A Fábrica de tecidos foi desativada no ano de 1983 e nesta mesma década a família
Lundgren vendeu parte de suas terras para serem destinadas ao cultivo da cana. Ainda assim,
continua detentora de grande parte do que existe em Rio Tinto (Silva, 2011).
As instalações da fábrica abrigam, atualmente, parte do campus Litoral Norte da
UFPB. Em seu lastro histórico, a indústria e a influência política de seus donos possibilitaram
a emancipação de Rio Tinto em 1956, antes distrito de Mamanguape (Lima, 2013).
O site oficial da cidade27 aponta como importantes fatores históricos de
desenvolvimento para a região a chegada de uma agência da Caixa Econômica Federal, a
27http://www.mamanguape.pb.gov.br/historia/
137
iluminação da cidade com energia elétrica, o abastecimento de água e a criação da
maternidade, todos ocorridos na década de 1950.
Na década de 1970, importante marco é a construção do trecho da BR 101 que,
cruzando Mamanguape, passou a ligar João Pessoa a Natal.
Acrescente-se a este período, que o governo federal lançou o Programa Nacional do
Álcool (PROÁLCOOL), incentivando o plantio de cana-de-açúcar e a produção de álcool.
Isto favoreceu a expansão dos canaviais e a dinâmica econômica que envolve a cultura e
beneficiamento da cana, como veremos adiante (Lima, 2013).
Ainda que estes elementos demonstrem certo desenvolvimento, visto sob um olhar
crítico, é preciso ressaltar os interesses econômicos em jogo no processo histórico e que
estavam voltados para as classes mais privilegiadas, especificamente do grande produtor rural.
Os investimentos sociais para a população da região, ou a atenção às comunidades indígenas
originárias daquela terra são invisibilizadas na narrativa linear e oficial contada sobre
Mamanguape.
A comunidade indígena, por exemplo, constitui um grupo social que ao longo da
história brasileira e, especialmente na região do litoral norte, foram postos diante de um
intrincado jogo de forças, interesses e exploração sobre a terra, sobre sua identidade e sua
força de trabalho. Sobre isso, Palitot (2011), desenvolvendo estudo sobre os Potiguara na
região, esclarece que tanto a CTRT, quanto o Serviço de Proteção aos Índios, no início do
século XX, instituíram dinâmicas que implicaram no campo da sociabilidade:
A Companhia vai exercer um controle patronal e industrial sobre os índios do antigo
aldeamento de Monte-Mór, forçando a negação da identidade indígena na sua área de
atuação. O SPI vai estabelecer um regime tutelar de controle dos recursos territoriais e
populacionais na Baía da Traição, normatizando o acesso de particulares às terras,
138
através de arrendamentos, e buscando controlar a população indígena através do
regime de indianidade (Palitot, 2011, p. 38)
Os institutos de Serviço de Proteção ao Índio, no início do século XX, e,
posteriormente, a Fundação Nacional do Índio, criada na década de 1960, tinham como intuito
desenvolver políticas indigenistas de reconhecimento e garantia de direitos daquele grupo. Na
realidade, as ações destes órgãos se efetivaram como ações de tutela e exercício de poder e
controle dos recursos existentes na área indígena, o que não ocorreu sem conflitos e
contradições. (Palitot, 2011)
Se tudo que os olhos alcançam na BR 101 é plantação de cana, também na dinâmica
imposta às relações sociais e econômicas da região, o imperativo está sob à égide da produção
canavieira.
O modelo de exploração da agroindústria do açúcar e do álcool no Brasil privilegiou
assim as grandes extensões de terras e a monocultura, sustentada por grandes
contingentes de mão-de-obra humana, explorados em condições desumanas de
trabalho. (Araujo, 2013, p. 56)
De acordo com Moreira, Targino, Siva, Borges e Madeiros (2003), na década de 1960
emergiu um novo foco da industrialização no Brasil que se caracterizou pela produção voltada
para a modernização da agricultura. Tratores, equipamentos agrícolas, fertilizantes, rações e
medicamentos veterinários estão entre os itens que passaram a fazer parte de um mercado em
vias de expansão. Uma nova rede de consumo e produção voltada para a agricultura e com
incentivos do Estado instaurou novas dinâmicas do capital, mas não modificou a característica
da concentração da atividade latifundiária.
Após longo período de crise, o setor canavieiro ganhou novo fôlego com este processo
de modernização associado com a crise do petróleo. O enfrentamento desta crise concretizou-
se com a criação do Proalcool, que se constituía como uma política governamental de
139
incentivos fiscais e créditos aos diferentes propreitários dos diversos setores do processo de
produção do álcool. As condições de financiamento eram privilegiadas, já que os juros sem
correção monetária, em uma economia inflacionária, chegavam a ficar negativados para a
agroindústria.
Este cenário foi paulatinamente se modificando na década de 1980, na medida em que
a crise do petróleo foi atenuada no cenário nacional e, posteriormente, a desestruturação do
Proalcool: seja porque o motivo de sua criação perdia o sentido, seja porque juntamente com a
revisão de políticas de subsídio do governo brasileiro, que na época vivia uma grave crise, os
gastos públicos foram suprimidos, atendendo acordos com o Fundo Monetário Internacional
(FMI).
À redução drástica do crédito subsidiado e abundante, elemento primordial da política
instituída pelo Proalcool, somou-se a crise financeira e fiscal, determinando a
cobrança das dívidas do setor para os cofres tanto da União como dos estados, o que
representou um abalo forte sobretudo no segmento arcaico da atividade sucro-
alcooleira nordestina. Como consequência, assiste-se à diminuição do nível do
emprego gerado pelo setor e a precarização das relações de trabalho. (Moreira et all,
2003, p. 48)
A atividade canavieira, apesar das crises e ascensões vistas no breve percurso
histórico, ainda se mantém como negócio predominante na Zona da Mata, onde se encontra a
cidade de Mamanguape.
Da plantação à colheita e daí ao beneficiamento, no negócio da cana-de-açúcar o que
se pode constatar é a exploração da terra e do trabalhador. Ainda que os discursos oficiais
insistam em flexibilizar afirmações que apontam para a modernização como melhoria dos
processos ligados a esta produção, a realidade se mostra bastante difícil. A Comissão Pastoral
da Terra Nordeste exibe dados alarmantes sobre o assunto:
140
Apesar da roupagem moderna e ecologicamente correta divulgada pelo marketing da
indústria automobilística, é das senzalas do corte de cana de açúcar que mais se
libertam trabalhadores em situação de trabalho escravo. Somente de janeiro de 2007 a
setembro de 2009, segundo dados da comissão Pastoral da Terra 6.855 foram
libertados no setor sucroalcooleiro nas operações de fiscalização coordenada pelo
Ministério do Trabalho e Emprego. O número representa 48,8 % do universo de
14.045 trabalhadores libertados da situação de escravidão no período. (Navarro, 2009,
p. 01)
A ocupação de vastas áreas para aumento de produção tem como consequência a
destruição da fauna e da flora e o esgotamento da terra. Demonstrando em dados
comparativos, Araújo (2013) verifica que, na cidade de Mamanguape, em 1990, a área
utilizada pelo agronegócio era de 4.273 mil hectares, enquanto em 2007, passou para 6.692
mil hectares. Dados do IBGE28 indicam que este número em 2014 saltou para 9.200 hectares.
A terra sofre com as queimadas e o lançamento de agrotóxico para prevenir pragas na
plantação. Se estiver de passagem pela BR 101, ao avistar grandes braços mecânicos a rodar e
jorrando líquido na plantação de cana, imediatamente surgirá o cheiro repugnante dos
produtos utilizados. De acordo com a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (2014) “A
aplicação de venenos na agricultura se constituiu em um problema de saúde pública, pois é
feita indiscriminadamente, tanto através da fumigação aérea quanto manualmente, afetando os
trabalhadores e a população em geral.” (p. 24)
A mecanização também chegou ao processo de colheita. E os argumentos utilizados
remetem à proteção da saúde do trabalhador. Entretanto, as máquinas só são capazes de lidar
com campos lineares e a cana “de pé”, resta ao trabalhador a parte mais árdua do trabalho:
28 Paraíba – Mamanguape - Produção Agrícola Municipal – Lavoura Temporária. Visitado em 05/07/2017. Em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=250890&idtema=149&search=paraiba|mamanguape|producao-agricola-municipal-lavoura-temporaria-2014
141
corte em áreas irregulares e da cana deitada, muito mais perigoso em termos de segurança do
trabalho, muito menos rentável para o trabalhador que ganha por produtividade. (Araújo,
2013, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2014)
As vagas no cultivo da cana-de-açúcar são sazonais. Principalmente durante o corte e
colheita da cana, os trabalhadores são contratados por períodos que, geralmente, não
ultrapassam os seis meses. No período seguinte, ficam desempregados e sem salários. Quando
contratados, não possuem assegurados seus direitos, a carga horária e o tipo de serviço que
exercem são cansativos e subumanos. “A intensificação do trabalho aumenta o risco de
doenças crônicas, ferimentos e mutilações. Como em geral o sistema de contratação é
terceirizado, muitos trabalhadores doentes ou mutilados não conseguem garantir seus direitos
a saúde e aposentadoria” (Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2014, p. 23)
Os postos de trabalho se tornam escassos durante a entressafra. Neste período, os
trabalhadores são dispensados e a inserção em nova atividade remunerada é muito difícil.
Sobre esta situação, a pesquisa de Araújo (2013) assinalou que os trabalhadores de
Mamanguape entrevistados por ela afirmam, em sua maioria, que para sobreviver precisam
das Políticas Sociais como o Bolsa-Família ou buscar pequenos serviços que chamam de
“bicos”. Também não há garantia de que serão recontratados no período da safra.
Em relatório disponibilizado pelo site do Ministério do Desenvolvimento Social29,
gerado no mês de novembro de 2017, 6.798 famílias eram beneficiárias do Programa Bolsa
Família. Isto representa 39,68% da população do município. Este dado está acima do
percentual previsto para o estado da Paraíba que é de 32,92%.
A desigualdade do município também é visível em números. Abaixo da linha da
pobreza estão 39,4% da população (IBGE, 2010). Em 2011, do número total de 9.740 crianças
pesadas pelo Programa Saúde Familiar, 1,9% encontravam-se desnutridas. Agravando ainda
29 http://mds.gov.br/bolsafamilia
142
mais este quadro, a Pesquisa de Orçamento Familiar publicada em 2008, apontou que 31,8%
das famílias pesquisadas informaram que a quantidade de alimentos consumidos no domicílio
às vezes não era suficiente, enquanto que 7,9% afirmaram que normalmente a quantidade de
alimentos não era suficiente. (IDEME, 2016)
3.1 Porque gente é feita de histórias
“Natureza da gente não cabe em certeza nenhuma” Graciliano Ramos
É neste cenário que encontramos com cinco famílias, cujo perfil atendeu aos critérios
desta pesquisa e que gentilmente colaboraram com informações que, somadas a outras fontes,
subsidiam e ilustram os debates empreendidos.
As entrevistas ocorreram nas casas das próprias participantes, pois, como já descrito
na Introdução, a metodologia “bola de neve” implicou na indicação de pares que geralmente
eram vizinhas de bairro, o que nos fez percorrer as ruas e solicitar a entrevista através de
visitas. Como as colaboradoras nos recebiam em suas casas, aceitando prontamente nossa
presença, iniciávamos o levantamento de dados naquele mesmo local.
Atentando para os preceitos éticos em pesquisa com seres humanos, resguardaremos
informações pessoais como nomes e detalhes de relato que possam identificar as participantes,
as colaboradoras e suas famílias. Antes da entrevista, todas receberam as informações sobre
confidencialidade e possibilidade de desistência do fornecimento das informações a qualquer
tempo. Além disso, assinaram o termo de consentimento30 e receberam uma cópia em que
constavam os contatos da pesquisadora.
Em todas as famílias as pessoas que nos receberam eram mulheres, quatro mães e uma
avó, que sendo responsáveis pelos cuidados com as crianças, nos receberam e prestaram as
30 Anexado ao final deste trabalho.
143
informações solicitadas. Neste sentido, denominaremos estas mulheres de colaboradoras, na
condição de narradoras capazes de descrever as histórias e condições em que se encontra a
criança. Esta por sua vez será chamada de participante, já que se trata de sua trajetória de vida
e articulações com a política que estarão em análise e, com exceção de uma delas, todas
estiveram presentes durante a entrevista.
A primeira entrevista foi concedida pela mãe do menino que chamaremos de Bento.
Seu núcleo familiar é composto por ele, sua mãe, pai e irmã. Os dois primeiros frequentam a
EJA, seu pai tem o Ensino Fundamental incompleto e sua irmã ainda está na escola regular,
cursando o Ensino Fundamental. Moram todos na mesma residência, declarada como casa
própria, com energia elétrica, em um bairro periférico, rua sem calçamento e sem saneamento
básico. A renda da família é de um salário mínimo proveniente do trabalho do pai e do
Benefício recebido por Bento. Aos quatro anos de idade um agente de saúde sugeriu que a
mãe procurasse a Funad porque ele não falava e era muito agitado. Atendendo a
recomendação, foram até a Fundação, a criança passou pela triagem e recebeu um laudo aos
seis anos e para acessar o Benefício precisou da via judicial, o que levou cerca de cinco anos.
Bento toma quatro medicamentos diferentes: Neuleptil, Haldol, Fluoxetina e Rivotril.
A segunda entrevista foi concedida pela mãe da menina que denominaremos Ruth. A
família é composta por ela, sua mãe e seu pai, todos analfabetos. Residem em uma casa de
alvenaria com tijolo aparente, declarada como casa própria, localizada em rua sem calçamento
e sem saneamento básico. A renda da família é de um salário mínimo proveniente da
aposentadoria da mãe e do Benefício recebido por Ruth. Seu pai trabalha com função ligada
ao ciclo da cana e consegue serviços esporádicos. A colaboradora não tinha dados precisos
sobre o laudo, mas afirmou que conseguiu o Benefício quando Ruth tinha sete anos de idade e
garantiu que passou 15 anos sendo atendida na Funad e deixou de frequentar porque o médico
disse que não ia aprender mais nada. Ela toma duas medicações, mas a caixa de remédios que
144
a colaboradora mostrou para comprovar o nome está ilegível. Em seu relato afirma que pega a
receita com um médico do PSF que nunca viu Ruth.
A terceira entrevista aconteceu com a avó de Ana Maria, nome fictício da criança de
nove anos que reside com avô, avó, tio e irmão por parte de mãe. Moram todos em casa
própria, localizada em um bairro periférico, rua sem calçamento, nem saneamento básico. Os
adultos possuem Ensino Fundamental incompleto e as crianças estão na escola cursando este
mesmo nível. A renda da família é de um salário mínimo proveniente do emprego do avô que
trabalha na construção civil e o tio, apesar de trabalhar, não colabora naquele núcleo porque
atende filhos e esposa de quem se separou recentemente. Ana Maria recebeu o laudo com sete
anos e a avó, para acessar o BPC, preferiu a ajuda de um advogado para mediar a relação com
a mãe, que ainda é a responsável legal pela criança, e para acessar a Justiça, caso o INSS
negue o pedido. A menina faz uso de Risperidona.
Chamaremos de Jorge o menino de quem se tratou na quarta entrevista. Mora em
residência própria com o pai e a mãe, em bairro construído como conjunto habitacional que
fica situado do lado oposto da BR 101, em relação às outras entrevistas. Neste bairro, há
saneamento básico e as ruas são calçadas. Sua mãe tem o Ensino Fundamental completo e seu
pai incompleto. A renda atual da família vem do Benefício recebido por Jorge, já que seu pai
está desempregado. O menino foi diagnosticado na Funad com dois anos e uma nova
avaliação foi realizada recentemente, quando completou sete anos. Faz uso de Neuleptil e
Risperidona.
A última criança chamaremos de Joaquim. Ele mora na mesma rua pavimentada de
casas do conjunto habitacional, em bairro com saneamento básico, junto ao seu pai, sua mãe e
seus dois irmãos. Seus pais não concluíram o Ensino Fundamental e tanto ele quanto os
irmãos estão cursando a escola regular neste nível. A casa da família é própria e a renda
familiar é de um salário mínimo, proveniente do trabalho de agricultor do pai, além de
145
receberem o Bolsa-Família e o Benefício de Prestação Continuada. O diagnóstico de Joaquim,
diferente das outras crianças não foi elaborado pela Funad, mas por um psiquiatra durante
uma consulta em um Hospital público de João Pessoa. Então, com quatro anos o menino tinha
seu diagnóstico. O acesso ao BPC se deu via processo judicial. Joaquim faz uso de Neuleptil.
O perfil socioeconômico destas famílias pode ser descrito da seguinte maneira:
a) Renda Familiar:
No que diz respeito à renda, três famílias vivem com um salário mínimo, além de
receberem o Benefício destinado à criança com deficiência.
Uma família tem como renda um salário mínimo e outra vive apenas com o Benefício
porque os pais estão desempregados.
Tabela 3
Renda das famílias entrevistadas
Família Bento Família Ruth Família Ana Maria Família Jorge Família Joaquim
Salário Mínimo
BPC
Salário mínimo
BPC
Salário Mínimo
BPC
Salário Mínimo
BPC
Nota: Quadro elaborado a partir das informações coletadas durante entrevista para esta pesquisa.
b) Organização familiar
No que diz respeito a este item, todos os núcleos familiares são compostos por um
casal de adultos e as crianças. No quadro abaixo reproduzimos a quantidade de pessoas que
compõem o núcleo:
Tabela 4
Organização das famílias entrevistadas
Família Bento Família Ruth Família Ana Maria
Família Jorge Família Joaquim
Pai Pai Avô Pai Pai
146
Mãe Filho 1(Bento) Filho 2
Mãe Filha (Ruth)
Avó Tio Neto Neta
Mãe Filho (Jorge)
Mãe Filho 1 Filho 2 Filho 3 (Joaquim)
Nota: Quadro elaborado a partir das informações coletadas durante entrevista para esta pesquisa.
c) Nível de Escolaridade
O nível de escolaridade dos adultos responsáveis pelo núcleo familiar variou entre o
analfabetismo e o Ensino Fundamental incompleto. Apenas uma cuidadora possuía o Ensino
Fundamental completo.
Tabela 5
Nível de Escolaridade entre adultos das famílias entrevistadas
Família Bento Família Ruth Família Ana Maria
Família Jorge Família Joaquim
Pai Ens. Fund. Incompleto Mãe Ens. Fund. Incompleto
Pai - Analfabeto Mãe - Analfabeta
Avô Ens. Fund. Incompleto Avó Ens. Fund. Incompleto Filho Ens. Fund. Incompleto
Pai Ens. Fund. Incompleto Mãe Ens. Fund. Completo
Pai Ens. Fund. Incompleto Mãe Ens. Fund. Incompleto
Nota: Quadro elaborado a partir das informações coletadas durante entrevista para esta pesquisa.
Portanto, a organização do núcleo familiar é composta por um casal de adultos, que na
sua grande maioria possui apenas o Ensino Fundamental incompleto, em que o trabalho
remunerado está ligado à figura masculina, enquanto às mulheres cabe o cuidado com a casa e
a família. Moram em casa própria, em bairros periféricos, a maioria sem saneamento básico.
Entre as cinco crianças com diagnóstico, todas recebem medicação controlada, quatro
acessaram o BPC e uma está em processo de submissão. Além disso, todas já foram ou
recebem atendimento pela Funad.
147
Diante deste panorama, tentaremos estabelecer algumas conexões entre a realidade
local, as políticas sociais, as vivências das famílias entrevistadas e os processos de
patologização e medicalização que colaboram para a manutenção do que chamaremos de uma
Economia da Diferença.
3.2 A escola que se frequenta sem coragem
Em um cenário de acirrada desigualdade, os índices educacionais do município não
trazem horizontes mais favoráveis. De acordo com o Censo do IBGE (2010) em 2010, 13,7%
das crianças de 7 a 14 anos não estavam cursando o ensino fundamental. A taxa de conclusão,
entre jovens de 15 a 17 anos, era de apenas 29,4%.
Dados obtidos através do Censo Escolar31 demonstram que, entre 2010 e 2014, houve
defasagem nas matrículas regulares das escolas públicas do município. Em 2010, contabiliza-
se 11.240 matrículas regulares e este número sofre queda gradativa durante o período, até
chegar a 9.792 em 2014, o que numericamente representa uma queda de aproximadamente
15%. Estes números correspondem ao conjunto de matrículas regulares nos níveis de
Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos, na
área urbana e rural. A tabela abaixo revela melhor esta equação:
Tabela 6
Relação entre ano e total de matrículas regulares nas escolas da rede pública do município
Ano Matrículas Regulares
2010 11.240
2011 10.890 2012 10.573 2013 10.258 2014 9.792
Nota: Elaborada segundo dados do Censo Escolar.
31Os dados foram sistematizados e organizados em tabelas que se encontram em anexo neste trabalho. Fonte: http://portal.inep.gov.br/resultados-e-resumos
148
No que se refere à educação especial, os números são surpreendentes. Enquanto em
2010 registrou-se 94 matrículas, no ano de 2014 este número chegou a 183. Numericamente
isto significou aproximadamente 95% de crescimento, indo na direção oposta do que foi
apresentado nas matrículas regulares.
Tabela 7
Relação entre ano e total de matrículas especiais nas escolas da rede pública do município
Ano
Matrículas Especiais
2010
94
2011
108
2012
144
2013
163
2014
183
Nota: Elaborada segundo dados do Censo Escolar.
Apesar deste crescimento significativo, o município, até o ano de 2016, possuía apenas
uma escola (municipal) com Sala de Recursos Multifuncionais. Na cidade de Mamanguape, o
convênio com o Governo Federal para implantação das Salas de Atendimento Educacional
Especial se deu a partir de 2008, na escola Iracema Soares, localizada no centro da cidade. As
crianças com deficiência devem frequentar escolas próximas a seus bairros e no turno
contrário, em horário determinado, vão à escola municipal que mantém o serviço.
Uma visão deste estado de coisas significa pensar que, em 2010, por exemplo, havia
uma sala para o atendimento de 183 crianças com deficiência, das quais 140 diagnosticadas
com “deficiência mental”.
Sobre esta realidade, ao relatar o cotidiano escolar de sua neta Ana Maria, a
colaboradora ilustra a dinâmica de muitas destas crianças:
149
[Mas ela frequenta a escola regular?] Sim, aqui... porque foi solicitado uma cuidadora
pra ela [Aqui?] Sim, aqui na escola pública do bairro, foi solicitado através da
coordenadora das crianças especiais, acho que de toda região daqui de Mamanguape...
Então, eu contei a dificuldade que ela não ficava na escola de forma alguma, já tinha
tentado colocar, mas ela não ficava sem mim, que ela não fica. Então, ela veio estudar
há um mês atrás, porque esse tempo todo eles estavam batalhando... E eu agradeço
primeiro a Deus e depois a ela por ter conseguido uma cuidadora só pra ela, essa
professora de... o nome dela eu não sei como é, eu sei que o apelido dela é N. e ela já é
cuidadora de outras crianças... e devido ao medicamento que ela faz, que é o
Risesperidona, ela toma um comprimido de manhã e dois a noite... então, como no
outro dia ela tem dificuldade pra acordar, eu posso entrar com ela até 8h. e pegar de
10:30h. da manhã.[Então durante a semana ela vai para a escola, nesse horário que a
senhora falou, tem essa cuidadora, e em outros dois dias da semana ela vai para a sala
de recursos] Sim, que é uma hora. Na quarta ela vai de 14h as 15h e na quinta ela vai
de 15:15 as 16:15h. [No horário contrário da escola] É. Um dia que ela vai pra Funad,
ela não vai pra escola. (Colaboradora 3 – Avó de Ana Maria)
A precariedade destes preceitos se apresenta na realidade com uma criança de nove
anos que há apenas um mês consegue frequentar a escola, mesmo assim, com horário
reduzido e faltando uma vez por semana para realizar seu atendimento de saúde. Ao mesmo
tempo, é preciso questionar: a sala de atendimento educacional especial, que deveria atentar
para as especificidades e demandas de cada sujeito, pode desenvolver estas atividades com
qualidade com um grupo de 180 crianças? Se não estão atendendo as 180 crianças, para quem
fica esta responsabilidade?
No caso do menino que chamaremos de Bento, a escola não se apresentou como lugar
possível. De acordo com sua mãe, a trajetória foi interrompida na medida em que ele não
150
conseguiu desempenho suficiente e foi repetindo de ano, até estar grande demais para
compartilhar a sala com crianças menores. Segundo ela: “Porque ele ficou na 4ª série, aí não
passou de ano e ficou difícil para colocar ele com as crianças, né?! (Colaboradora 1 - Mãe de
Bento)
A escola regular não era mais lugar para acolher Bento que já tinha completado 18
anos. Sua mãe, em um esforço de garantir a educação, entendeu que o melhor seria procurar a
Educação de Jovens e Adultos (EJA). No turno da noite, seguem mãe e filho para a escola,
que de acordo com ela: “Ele frequenta sem coragem”, para se referir ao modo como ele
precisa ir “obrigado” para lá. A EJA não oferece recursos diferenciados para Bento. A mãe o
matriculou para garantir a continuidade do tratamento dele na Funad, e acabou se
matriculando também, de acordo com ela para aprender mais, já que precisa estar presente na
sala de aula com o filho. Sobre esta modalidade de educação ela diz: “É uma sala de aula
normal. Aprendizagem normal. Um colégio normal.”
No caso de Mamanguape, as crianças matriculadas na escola pública frequentam a
escola regular próxima de sua residência e, em turno contrário, a Sala de Atendimento
Educacional Especializado localizada em uma escola pública no centro da cidade, única a
oferecer tal serviço. Esta é o caso de Ana Maria, Bento e Jorge.
Uma alternativa utilizada por algumas famílias é matricular as crianças em escolas
particulares, ou na escola da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), esta
utilizada como escola regular ou como serviço auxiliar no tratamento das crianças, o que não
foi o caso de nenhum dos entrevistados na ocasião, senão pela menção da mãe de Joaquim de
que já teria utilizado o serviço desta instituição.
Em vista da realidade da inclusão escolar vivenciada pelas cinco pessoas que
entrevistamos, elaboramos um Quadro que descreve melhor as situações que encontramos:
151
Tabela 8
Quadro Descritivo sobre a Inclusão Escolar dos participantes da pesquisa
Participantes Série que frequenta Frequenta Escola Publica
ou Particular
AEE Funad APAE
Bento EJA Pública Não Sim Não
Ruth Não Frequenta Não Frequenta Não Não Não
Ana Maria 1º ano Ensino Fundamental Pública Sim Sim Não
Jorge 2º ano Ensino fundamental Pública Sim Sim Não
Joaquim 1º ano Ensino Fundamental Particular Não Não Sim
Nota: Relação entre as crianças participantes da pesquisa, as séries que frequentam, se matriculadas em escola pública ou privada, se utilizam a sala AEE e se frequentam os serviços oferecidos pela FUNAD ou pela APAE. (Dados fornecidos pelas entrevistadas na pesquisa)
Através das entrevistas das mães de Ana Maria e Joaquim esta realidade se
exemplifica nas poucas horas que passam na escola regular, na necessidade de uma assistente
em sala de aula, na pouca expectativa de que a escola possa ser um lugar de aprendizagem e
acolhimento. As duas crianças frequentam o Ensino Fundamental na escola pública regular.
Na perspectiva da mãe de Joaquim: “ele está fazendo o 2º ano, mas não sabe de nada, é
porque tem q estar na escola, né?” A escola é vista como uma obrigação e há motivos para
isso: as crianças que recebem o BPC precisam apresentar frequência escolar, além disso, para
utilizar os serviços oferecidos pela Funad a matrícula é um requisito fundamental.
A obrigação de estar na escola é também a obrigação de acolher na escola, que muitas
vezes se traveste de precariedade. No relato da avó de Ana Maria, percebemos que a menina
frequenta apenas parcialmente a escola já que entra às oito horas e sai às dez e meia da
manhã. Em que pese este pequeno período, ainda falta uma vez por semana para frequentar as
atividades da Funad. Quando está na escola é auxiliada por uma assistente, provavelmente
porque não há preparo da equipe para receber a menina em sua singularidade, afinal, apenas
152
no mês de realização da entrevista foi que a menina, aos 9 anos, começou a frequentar a
escola. Sobre a dificuldade enfrentada, a avó relata:
Pra ela estudar eu lutei 2015 e botei, 2016 ela não ficou, só foi os dois anos, ela foi três
dias. Não fiz porque a professora não quis aceitar, porque a professora disse a mim
que ela não era cobrada pelo aprendizado dela, e sim dos outros. Então fiquei
decepcionada, fiquei magoada, fiquei triste. Até a diretora, foi até a sala da diretora,
porque ela disse que Ana Maria tinha rasgado o caderno, realmente porque ela não tem
noção. (...) a diretora perguntou se eu não poderia ficar com ela na sala pelo menos
uma hora para que a menina frequentasse a aula, mas a professora não quis. Eu ia fazer
o quê? (Entrevista com Avó de Ana Maria)
É preciso ir à escola, mesmo sem coragem. Em cada uma das histórias contadas pelas
cuidadoras, repete-se o elemento de que o campo da educação é árido e avesso às diferenças.
Espera-se que as crianças atendam a um modelo de docilização e quando não o fazem as
demandas pela patologização e medicalização surgem como saídas para justificar a exclusão
e, depois, a inserção em espaços diferenciados como a Funad, a sala de Atendimento
Educacional Especializado ou a APAE. Ainda que a política seja desenhada sob os preceitos
da inclusão nos espaços regulares de escolarização, o que se vê, como no caso emblemático
de Ana Maria, é a utilização de estratégias que servem como muletas para a lida com sua
presença na sala de aula: a ajudante para auxiliá-la (somente para ela), os horários reduzidos,
a ausência para estar na Funad. A cuidadora de Joaquim prefere que ele frequente a escola
particular porque não atribui à escola pública serviço de qualidade para seu filho. A escola
precisa de coragem para receber as pessoas com deficiência, pois as barreiras impostas para
recebê-las parecem maiores que as tentativas de acolhê-las em suas diferenças.
A dinâmica da inclusão na escola precisa ser questionada em seu aspecto mais amplo e
complexo que é a sua relação com a domesticação dos sujeitos. Na medida em que se
153
problematiza a dinâmica precária de inclusão é preciso colocar em jogo a impossibilidade da
instituição escolar de se relacionar com a diversidade e ir além, nas suas engrenagens de
normatização e docilização. Quando adquire a posição de política pública, com
características que se adéquem aos princípios estabelecidos nos tratados internacionais dos
quais o Brasil é signatário, a inclusão de pessoas com deficiência na escola esbarra com a
implementação de estratégias eficazes que garantam o acesso e permanência destas pessoas.
Não basta garantir reformas na estrutura física, ou adquirir equipamentos, se não se pode
promover capacitação técnica e política com os atores sociais da escola.
Se a instituição permanece patologizando comportamentos e encaminhando o que
considera anormal para o campo da saúde, se seus professores não encontram espaço para
discutir suas práticas e construir novas estratégias, se as diferenças que compõem a
subjetividade só podem ser aceitas e “suportadas” mediante um laudo, então sim, as políticas
de inclusão continuam falhando e sendo apenas remediadoras de uma superfície cujas raízes
são bem mais profundas. Nesse caso, os processos ligados à inclusão da diversidade ganham o
status de legitimidade proferida pelo campo da saúde, como é caso das crianças com
“deficiência mental”, ou outros diagnósticos: elas podem acessar serviços, mas que são
limitados (como no caso do tempo que podem frequentar), precarizados (como frequentar a
escola regular, mas apenas com uma cuidadora) ou mesmo sucateados (não só no que diz
respeito à estrutura física, mas à remuneração de pessoal, capacitação profissional, diálogo
com a comunidade, por exemplo). Na maioria das vezes, a escola reproduz as opressões do
sistema social em que está inserida e naturaliza tantas outras formas de violência e exclusão
presentes em seu cotidiano.
A garantia da inclusão de pessoas com deficiência se insere na lógica dos processos de
patologização e medicalização, que viabilizam a camada de legitimidade sobre a dimensão de
154
uma diferença marcada no corpo, na cognição ou no comportamento que tomamos como
tratáveis ou remediáveis.
(...) criamos a incrível abstração pessoa deficiente, a fim de designar todo o conjunto
de pessoas que aprendemos a perceber como massa amorfa, porque a todos(as) lhes
falta algo. Aprisionamos experiências distintas, organizações perceptivas variadas,
experiências com o corpo e a cognição diferentes em um mesmo conjunto que, para
nós, é homogêneo. Tornamos compulsória a necessidade de que se tratem, se
reabilitem, procurem próteses, órteses, implantes, a fim de que se tornem o mais
normais quanto for possível. Que se virem do avesso, mas que busquem ser mais como
nós! A medicalização da vida em uma de suas expressões mais exuberantes: o olhar
que recorta o corpo, torna-o objeto, passível de controle e ajustamento, visando à
normalidade. (Angelucci, 2014, 121, grifos da autora)
A criança, adornada de um laudo, é recebida pela escola como um sujeito com poucas
perspectivas de desenvolvimento, ou como quem demandará esforços extras para que alcance
algum avanço. O trabalho direcionado para a falta parece já iniciar fadado ao fracasso, que
por sua vez é atribuído ao aluno, ao indivíduo. Aconteceu e acontece com Bento, com Ana
Maria, com Jorge, com as crianças de quem a escola desiste antes mesmo de tentar, porque
espera dos “tratamentos” e das famílias que executem as devidas providências em busca da
normalidade. A produção da miséria social é política, econômica e passa pelos bancos
escolares e consultórios assépticos dos profissionais da saúde.
No trâmite inverso, a mãe de Jorge foi aconselhada pela diretora da escola a procurar
um diagnóstico, porque aos dois anos de idade alegavam que ele não era “normal”. Após
cinco meses em processo de diagnóstico, Jorge tinha deficiência de grau não especificado,
dificuldade de linguagem e traços de autismo. Dois anos de idade. Aos sete anos, após nova
avaliação, o laudo aponta deficiência intelectual moderada e autismo.
155
As cuidadoras de Jorge, Bento e Ana Maria não problematizam o discurso da escola
de que as crianças não se adaptam à rotina e deveres da instituição, pois acreditam no discurso
oficial, da educação e da saúde, de que quem vai mal são os alunos, por conta de suas
deficiências. Engrenagem competente de silenciamento e culpabilização do indivíduo e sua
família, a patologização garante a imobilidade e acomodação para quem a escola é uma
promessa. A partir desse eficiente processo as crianças e suas famílias percorrem os diferentes
espaços das políticas sociais, que possam intervir e atuar em suas demandas.
3.3 Mas se Deus resolve os problemas, para que serve a Assistência Social?
No que se refere à rede de atendimento a cidade possui um CRAS, um CREAS, três
Unidades Básicas de Saúde e um Conselho Tutelar, de acordo com o Mapa de Oportunidades
e Serviços Públicos, disponibilizado na página do MDS32. Todos estes equipamentos
funcionam na área urbana, a maioria no centro da cidade.
A aproximação inicial com esta política se deu através da Secretaria de Ação Social,
com o objetivo inicial de obter dados que esclarecessem a organização dos ônibus que
levavam os moradores do município aos serviços de atendimento na capital. Acreditávamos
que a partir da abordagem deste tema, poderíamos obter dados iniciais e dar continuidade à
pesquisa das outras informações necessárias.
A Secretaria se localiza em uma rua perpendicular à avenida principal, também se trata
de uma casa adaptada que ganhou divisórias e mobiliário para funcionar como prédio público.
Logo na entrada uma varanda com cadeiras plásticas arrumadas em filas e em seguida uma
sala composta por vários guichês de atendimento ao público. No interior, a cozinha, o
banheiro e dois cômodos organizados como escritórios. A reunião com a então secretária do
município ocorreu em seu gabinete bem mobiliado e com ar condicionado. As informações a
32 https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/mops/serv-mapa.php?s=1&codigo=250890
156
respeito dos ônibus não eram formalizadas: não havia um controle oficial de quantas e quais
pessoas utilizavam o serviço, nem quando e quantos ônibus faziam esta viagem. A secretária
achava que saiam nas terças e sextas, mas que as informações poderiam ser obtidas no CRAS
ou com a responsável pelas viagens (uma pessoa contratada pela Secretaria para cuidar deste
transporte, da lista de pessoas autorizadas a embarcar e dos horários disponíveis).
Obter dados a respeito das viagens destes ônibus não se constituiu tarefa fácil. A
concentração destas informações estava apenas com uma pessoa: nem a Secretaria, nem a
coordenação do CRAS mostraram disponibilidade em viabilizar qualquer dado, porque
afirmavam não dispor de elementos formalizados ou sistematizados sobre o assunto.
No final do Grupo vi a assistente social solicitando que as mulheres levassem cópia de
alguns documentos para elaboração de um cadastro. Questionei se ela teria uma
relação das pessoas que frequentam o ônibus e ela disse que não, pois está tentando
organizar isto, mas que as mulheres têm medo de qualquer cadastro, pois pensam que
podem perder o auxílio. Perguntei quem teria esta relação, e ela disse que não sabia,
mas que eu conversasse com a “nome da pessoa”, responsável pelo ônibus. (Diário de
Campo, Relato 5)
A pessoa responsável pela tarefa de organizar os ônibus era uma senhora, contratada
para a tarefa e que no período em que foram realizadas as visitas, sofreu um acidente durante
o trabalho que ocasionou em sua morte. O trágico fato fez com que algumas atividades do
CRAS, ligadas às famílias de pessoas com deficiência, fossem suspensas durante algum
tempo. O serviço passou a ser desempenhado por sua filha que já acompanhava as viagens e
deu prosseguimento durante algum tempo ao trabalho. Não foi possível encontrá-las para
questionar sobre a sistematização dos dados ou os modos de funcionamento dos ônibus. As
informações fragmentadas que possibilitaram a compreensão mínima sobre a questão
157
acabaram vindo das entrevistas ou reuniões realizadas com outros atores sociais, tais como
coordenadoras do CRAS.
Os ônibus com destino à Funad, em João Pessoa, saíam nas terças e sextas-feiras. Para
acessar este serviço era necessário fazer contato com a responsável do ônibus que organizava
tanto os que já faziam tratamento, quanto àqueles que precisavam passar pelo processo de
triagem na Funad. Os ônibus deveriam seguir com os assentos preenchidos, mas durante
entrevistas, há relatos de que algumas vezes as pessoas vão em pé por conta da lotação
excessiva.
(...) é porque são muita gente dia de terça-feira, então, o certo é ir três ônibus, então
como só foram dois ônibus, a gente tivemos, mães, que ir em pé (...) porque eu nem
posso, já até adverti isso lá, porque eu tenho um problema sério nesse meu joelho,
nessa perna minha, que adquiri derrame e bursite nela, eu não posso viajar em pé.
(Colaboradora 1 – Mãe de Bento)
O serviço disposto sobre as viagens do ônibus, na forma como se apresenta,
caracteriza uma forma de clientelismo dentro da política de assistência social. A cidade não
dispõe dos serviços públicos de diagnóstico e tratamento, possíveis na capital através da
Funad. Por isso, disponibiliza os ônibus para que os cidadãos possam acessar tais serviços. O
fato de que todo o processo que envolve os ônibus está concentrado em uma pessoa, em que
os critérios e trâmites de acesso e permanência não são sistematizados e formalizados,
consequentemente não estão sob o controle da gestão pública, e sim, sob os cuidados de uma
pessoa em particular, apontam o clientelismo presente como estratégia de favorecimento e
privatização da prática da assistência social.
Apesar dos avanços e conquistas da Política Social após a promulgação da
Constituição Federal, a manutenção de algumas características históricas se fazem presentes
no cotidiano da política. As ações de âmbito clientelista ainda permanecem como formas de
158
uso da coisa pública, através da tutelação e com interesses eleitoreiros. Na prática, os serviços
que deveriam ser reconhecidos como direitos, passam a ser geridos como benevolência e,
portanto, tomados como favorecimento que deve ser creditado e cobrado em forma de
submissão política-eleitoreira. (Behring & Boschetti, 2011; Dantas, 2013)
A assistência é a política que mais vem sofrendo para se materializar como política
pública e para superar algumas características históricas como (...) manutenção e
mesmo reforço do caráter filantrópico, com forte presença de entidades privadas na
condução de diversos serviços, sobretudo os dirigidos às pessoas idosas e com
deficiência; e permanência de apelos e ações clientelistas. (Behring & Boschetti, 2011,
p. 161-162)
Ainda que não formalizadas, existiam condicionalidades para usufruir dos serviços de
ônibus disponibilizados: o primeiro era ter vínculo com algum dos serviços da Funad (tiragem
ou tratamento), e o segundo, frequentar o grupo de familiares de pessoas com deficiência
atendidas pelo serviço, promovido quinzenalmente pelo CRAS.
O trajeto de pesquisa, sempre surpreendente, levou-nos a informações impensáveis. A
primeira passagem em busca de dados sobre o ônibus foi na Secretaria de Ação Social, que
nos encaminhou para o CRAS e as relevantes informações que destacaremos para fins deste
trabalho.
O Centro de Referência de Assistência Social do município está localizado na zona
urbana, no centro da cidade. No período de realização desta pesquisa, a sede funcionava em
uma casa adaptada, localizada em uma rua residencial, transversal à avenida principal e muito
próxima à Secretaria de Ação Social.
A primeira visita realizada foi imediatamente após a reunião com secretária do
município e por encaminhamento da mesma. Foi possível nos reunirmos com a coordenadora
do CRAS e outra profissional, ambas formadas em Psicologia. Na sala da coordenação, um
159
imenso rosário pendurado na parede; no pulso, a coordenadora trazia mais um símbolo
religioso da fé católica e várias vezes se referiu à pesquisadora como “irmãzinha”.
O relato das profissionais a respeito do grupo de familiares de pessoas com deficiência
apontou que o grupo não é constante e, apesar da frequência quinzenal, a quantidade de
pessoas oscila bastante, em ocasiões já teriam agrupado 46 pessoas e em outras apenas seis.
Atribuem esta diferença ao caráter dado a cada encontro: quando se trata de uma
comemoração com sorteio de brindes e premiação há mais participantes. Descreveram que de
modo geral, entendem que o grupo deve ter como função melhorar a autoestima das
cuidadoras de pessoas com deficiência, pois são pessoas muito atribuladas que não têm tempo
para si mesmas. Sobre esta realidade, destacamos um trecho do Diário de Campo:
As psicólogas pareceram mais sensíveis à questão da pobreza, do sofrimento social
destas mães, ainda que a fala delas seja muito pautada na dor e na dificuldade de
cuidar de uma criança com deficiência como questão isolada de outros determinantes.
Mas reconhecem que a pobreza é um fator recorrente e que muitas vezes as mães vão
para o grupo para se queixar da dinâmica do ônibus: de quando tem ou não, de quando
são avisadas ou não, de quando não conseguem se comunicar com a responsável pelo
ônibus, etc. A psicóloga insistiu diversas vezes que o objetivo do grupo é a autoestima,
elevar a autoestima. Ou seja, as mães parecem demandar um grupo que trate de suas
vivências, de seus problemas, desses impasses. Pelo que entendi as psicólogas
compreendem esses encontros como necessários para falar do sofrimento não como
causa social que afeta o coletivo, mas como algo da ordem de um sofrimento psíquico
individual, onde fortalecer a autoestima deve ser o caminho necessário a ser trilhado.
(Diário de Campo, relato 4)
O trabalho do psicólogo(a) no campo da Assistência Social deve se pautar na garantia
dos direitos sociais, tendo em vista que a política está voltada para o enfrentamento de
160
situações de vulnerabilidade social, em que é necessário fortalecer os vínculos sociais e
comunitários de sujeitos e famílias atendidos pelos programas de nível de atenção básica. De
acordo com as Referências Técnicas para atuação do(a) Psicólogo(a) no CRAS/SUAS:
(...) as práticas psicológicas não devem categorizar, patologizar e objetificar as pessoas
atendidas, mas buscar compreender e intervir sobre os processos e recursos
psicossociais, estudando as particularidades e circunstâncias em que ocorrem. Tais
processos e recursos devem ser compreendidos de forma indissociada aos aspectos
histórico-culturais da sociedade em que se verificam, posto que se constituem
mutuamente. (CREPOP, 2007, p. 17)
O atendimento em grupo pautado na categoria “autoestima” acaba por desconsiderar o
contexto sócio-histórico e focaliza no indivíduo a necessidade de investir em afeto e confiança
em si próprio. Esta categoria, isolada de outras discussões e pautas, responsabilizam
unicamente o sujeito por sua vida e individualizam o sofrimento e as condições em que estão
inseridas as mulheres atendidas pelo programa. O que não contribui para o papel primeiro da
Psicologia inserida no CRAS e sustentado pelos princípios já expostos neste texto.
Entretanto, a perspectiva adotada pelas profissionais não é experiência isolada.
Oliveira, Dantas, Solon e Amorim (2011) apontam que o fazer profissional do psicólogo no
âmbito do CRAS ainda é permeado pela falta de clareza sobre as formas de atuação que
intervenham nas situações de pobreza e desigualdade social. A lógica “particularista e
individualizante” (p. 148) não é exclusividade da Psicologia, mas herança histórica da própria
Assistência Social.
Além disso, a prática desenvolvida pelas psicólogas no CRAS do município de
Mamanguape esbarra naquilo que Dantas, Oliveira e Yamamoto (2010) apontam sobre a
necessidade de construção de “teorias e técnicas inovadoras de trabalho” para os
161
psicólogos(as) que atuam com populações pobres. De acordo com estudo desenvolvido pelos
autores ficou evidente que:
(...) é a existência de lacunas decorrentes da dificuldade de articulação da pobreza com
o desenvolvimento e estruturação da sociedade capitalista, que impede uma
compreensão mais ampla do fenômeno, bem como o reconhecimento das limitações
no entendimento da questão e das possibilidades de construção de um conhecimento
que transforme efetivamente o saber/fazer, e não se restrinja à adaptação de teorias e
técnicas psicológicas. (p. 110)
Ainda que não estivesse previsto a priori, participar de um dos encontros deste grupo
tornou-se necessário para uma aproximação mais efetiva com a realidade investigada. Então,
a convite da coordenadora, estive presente no que elas denominam “Grupo de Mães”, no mês
de novembro. A chegada antecipada ao horário marcado, fez com que pudéssemos nos reunir
com o grupo de trabalho do CRAS, durante um café organizado na cozinha da instituição.
Nesta época, as eleições já tinham acontecido e o grupo político que se encontrava na
prefeitura há alguns anos perdeu as eleições para o grupo de oposição, implicando na
reconfiguração de espaços e equipes que funcionavam no município, inclusive no CRAS.
Ainda que o novo grupo só fosse tomar posse no início do ano, a transição de gestão estava
em processo e as funcionárias daquele equipamento relatavam que nenhuma delas ficaria para
o próximo ano. Da assistente social à servente, todas eram contratadas e seriam dispensadas,
apenas uma das psicólogas era concursada e seria transferida para outro serviço.
O trabalho precário é um obstáculo para o desenvolvimento das políticas públicas,
compromete a relação dos trabalhadores com o sistema e prejudica a qualidade e a
continuidade de serviços essenciais.(CREPOP/CFP, 2007, p. 31)
A atividade agendada para as 9 horas da manhã só teve início às 9:45h. Neste intervalo
de tempo, doze mulheres foram chegando esporadicamente e sentando numa sala próxima à
162
recepção, onde cadeiras brancas de plástico estavam arrumadas em forma de semicirculo. Elas
cochichavam de como estavam com calor, reclamando do atraso e de como aquela situação
parecia injusta, já que diziam para elas que aquela atividade era obrigatória e necessária para
manter a “vaga” no ônibus, mas que várias pessoas não compareciam e tudo continuava igual.
A facilitadora do grupo foi a assistente social, já que as duas psicólogas, principais
responsáveis pela função, estavam ausentes. A primeira atividade foi uma prece de
agradecimento, em seguida a proposta era um leve alongamento que foi recebido em meio a
resmungos, por outro lado, foram respondidos pela profissional com falas de ordem e a
justificativa de que tinham que cuidar de seus corpos já que são cuidadoras de outros. Em
meio a este enfrentamento nada sutil, uma demanda da recepção fez com que a profissional
saísse da sala por alguns minutos. Ao retornar, sugeriu uma dinâmica que envolvia ficar de pé
e fazer movimentos, que foi executada, mas ao final, solicitando que as pessoas se
posicionassem sobre o sentido da atividade, não teve retorno e desenvolveu um discurso sobre
a necessidade de diante dos problemas termos paciência e fé, conforme relato do Diário de
Campo:
A assistente social tentou fazer uma fala sobre o que poderia ser aprendido sobre
aquela dinâmica, mas como nenhum debate foi promovido, rapidamente aquela tarefa
perdeu o sentido. Além disso, seu discurso foi enfático sobre o fato de que todas as
pessoas têm problemas, de que aquele era um grupo de pessoas que cuidavam de
filhos com deficiência, que tinham um cotidiano muito difícil, mas que todas tinham
que ter paciência e fé. Então, lançou a pergunta: “quem vai resolver nossos
problemas?” E ela mesma respondeu: “Deus!” (Diário de Campo, Relato 5)
A pergunta que dá título a esta seção deriva da presença constante dos elementos de fé
impostos pelas profissionais no ambiente de trabalho, local de ofício público e que, portanto,
deveria ser laico. Espaço de acolhimento de pessoas que vivenciam a desigualdade social em
163
formas perversas e que encontram nas paredes, no corpo e nas palavras a moral religiosa que
aponta o sofrimento como remissão dos pecados. Se Deus resolve nossos problemas, qual o
papel da política social?
Retomamos Oliveira, Dantas, Solon e Amorim (2011) para destacar o papel da
formação nesta relação:
O trabalho com famílias visando à sua emancipação, organização e conscientização
sobre seus direitos, exige um tipo de abordagem que não é apenas coletiva, é política.
Essa postura não pode ser orientada por meio de manuais; faz parte de uma formação
que, de fato, passa distante dos bancos acadêmicos ou das capacitações. (p. 147)
A atuação com vistas ao enfrentamento das desigualdades sociais, ou no mínimo, para
o acolhimento de pessoas que vivem situações de desamparo, pobreza e discriminação,
especialmente no âmbito das políticas públicas sociais, deve pautar-se no reconhecimento de
“princípios e práticas democráticas” e consequentemente na “defesa intransigente dos direitos
humanos” (Iamamoto, 1998, p. 141). Trata-se, portanto, da necessidade de uma formação
pautada em princípios políticos que necessita do reconhecimento de que a origem das
desigualdades sociais se encontra na dimensão histórica, política, econômica e cultural de
nossa Sociedade.
Os posicionamentos religiosos precisam permanecer, portanto, no âmbito da vida
privada, já que suas premissas escapam à compreensão da produção social e acabam por
dispor lógicas de conformismo, resignação e individualização, vínculos e determinações
estabelecidos com um plano espiritual, que não condizem com os princípios estabelecidos
para a atuação no SUAS, nem com as referências propostas pelos Conselhos de Profissão da
Psicologia e do Serviço Social.
Ademais, é preciso considerar a diversidade de credos religiosos e reconhecer o direito
à participação e respeito às diferenças neste escopo. Quando um profissional, ocupando um
164
lugar hierárquico em espaço público, expõe símbolos de seu credo no espaço de trabalho, ou
declara que Deus resolve todos os problemas, nega princípios democráticos de afirmação das
diferenças e de possibilidade de construção de novas formas de resistência e enfrentamento às
situações de desigualdade.
O grupo seguiu com apresentações pessoais, da pesquisadora e das pessoas presentes.
Verificou-se que todas as mulheres são responsáveis/acompanhantes de pessoas com
deficiência, entre crianças e adultos, moram em bairros pobres e afastados do centro, mas
vinham caminhando durante alguns quilômetros embaixo do sol quente para chegar no
CRAS, não sabiam relatar o diagnóstico da pessoa de quem cuidavam, respondendo na
maioria das vezes que era um “problema mental”. O grupo foi encerrado e concluído com um
lanche modesto oferecido pelo CRAS.
Sobre a composição e caracterização deste grupo, que no caso descrito é apelidado de
“Grupo de Mães”, Medeiros, Diniz e Squinca (2006) alertam que cuidar de crianças ou de
idosos é uma função exercida, principalmente, por mulheres, uma vez que na sociedade
brasileira a atribuição do cuidado é naturalizada para o gênero feminino. Isto implica em dizer
que muitas acumulam a função de gerenciamento da casa, tarefas de manutenção do lar,
assistência às pessoas mais “frágeis” da família, além de serem responsáveis pela busca de
habilitação do benefício.
As colaboradoras desta pesquisa durante a entrevista expressam literalmente esta
problemática: “Eu não posso trabalhar com ele. Eu não posso sair pra trabalhar e ele necessita,
né? “ (Colaboradora 1 – Mãe de Bento), ou “Se não fosse ele (o benefício) eu ia ter que
trabalhar, ia ter que deixar ele, acho que uso meu tempo mais pra ele, me dedicar a ele (...)”
(Colaboradora 4 – Mãe de Jorge), ou “Se por um acaso eu morrer, com quem ele vai ficar?”
(Colaboradora 5 – Mãe de Joaquim).
165
Assim, à vulnerabilidade econômica e social desta parcela da população, pode-se
somar a questão gênero. Cabe ressaltar que os autores ainda chamam a atenção para o fato de
que as atividades desempenhadas por estas mulheres restringem sua participação no mercado
formal de trabalho e os direitos sociais que poderiam advir deste. Em trabalho dedicado ao
tema do cuidado, os mesmos autores afirmam:
A combinação de uma estrutura social pouco sensível à deficiência com um quadro de
extrema desigualdade, em que o salário formal ou informal das cuidadoras é igual ou
inferior ao benefício, facilita a saída das mulheres do mercado de trabalho para o
cuidado permanente dos filhos deficientes. Em um contexto social pouco sensível à
inclusão do deficiente, de pouca valorização do cuidado como um princípio coletivo
de bem-estar e de quase total ausência de escolas ou instituições preparadas para os
deficientes, a exigência do recorte de renda converte-se em um incentivo pernicioso à
saída das mulheres do mercado de trabalho formal. (Medeiros, Diniz & Squinca,
2006a, p. 91)
As mulheres e famílias que vão ao CRAS procuram o atendimento de seus direitos
através das políticas. É necessário que os projetos e programas destinados a esta parcela da
população possibilitem que a caminhada quente e árdua, da vida e do caminho até o CRAS,
esteja mais implicada com os princípios de autonomia e emancipação.
Com a mudança de gestão do município, a sede do CRAS foi transferida para um
prédio reformado pela prefeitura localizado na avenida principal do Centro. Tal mudança não
se fez tranquilamente. O período de transição de sede durou mais de seis meses e o grupo de
mães de pessoas com deficiência foi suspenso neste período.
A mudança de gestão também trouxe outras alterações: a equipe de profissionais foi
dispensada, as técnicas contratadas foram demitidas e a única concursada seria transferida
para outra função, já que exercia a coordenação do CRAS, considerado cargo de confiança e,
166
portanto, de interesse político-partidário. Este quadro não é situação isolada e sobre isso
Iamamoto (1998) destaca que:
Os assistentes sociais funcionários públicos vêm sofrendo os efeitos deletérios da
Reforma do Estado no campo do emprego e da precarização das relações de trabalho,
tais como a redução dos concursos públicos, demissão dos funcionários não estáveis,
contenção salarial (...), tercerização acompanhada de contratação precária, temporária,
com perdas de direitos, etc. (p. 124)
A organização do serviço público com estas características não se resume apenas aos
assistentes sociais, mas a todo corpo técnico que, de acordo com um modelo de
funcionamento de Estado, acaba submetido a estas condições de trabalho (Oliveira &
Yamamoto, 2010). Tal modelo, garante a manutenção de postos que empregam trabalhadores
a serviço do grupo político que está no poder e a manutenção dos interesses hegemônicos.
Enquanto o novo prédio ainda estava em construção, o CRAS manteve apenas
serviços básicos. O “Grupo de Mães” estava suspenso e tinha previsão de retorno apenas para
o meio do ano, o que inviabilizou outras visitas.
Este recorte sobre o campo da assistência social, no que concerne ao nível municipal,
desenha um quadro de relações de forças presentes no cotidiano das pessoas que participam
deste contexto. O modo como as ações neste campo se organizam denunciam o que trabalhos
anteriores já sinalizavam sobre a precariedade e os interesses em jogo na política social.
Entretanto, convém ressaltar também os modos de resistência impressos pelas usuárias do
serviço diante da máquina burocrática que insiste em submetê-las à sua (des)ordem. Diante da
imposição da participação no “Grupo de Mães” elas faltam; se fazem presentes, mas se opõem
a seguir as regras; participam do grupo, mas buscam obter “favores” por sua tolerância; não
entregam papeis solicitados ou adiam as solicitações das profissionais. As estratégias de
sobrevivência perpassam a capacidade de reinventar o jogo conduzido pelas forças
167
hegemônicas, retorcer as teias da submissão resignada imposta aos que vivenciam a
desigualdade no dia a dia, na pele, na fome, na alma.
3.4 A FUNAD ou Mais um tijolo no muro
Figura 7. Foto da entrada principal da Funad Nota: Retirada do site Conexão Boa Notícia(novembro/2017): http://www.conexaoboasnoticias.com.br/funad-realiza-6a-mostra-de-arte-inclusiva-do-estado-da-paraiba/
Instituída a partir da Lei 5.208 do ano de 1989, a Fundação Centro Integrado de Apoio
ao Portador de Deficiência, é um órgão ligado ao Governo do Estado, cujos fins e objetivos
são descritos na legislação de sua fundação da seguinte maneira:
Art. 5º Constituem finalidade e objetivos básicos da Fundação: I – planejar e coordenar, a nível estadual, a reabilitação dos portadores de deficiências; II – prestar atendimento às pessoas portadoras de deficiência física, mental, visual, auditiva e múltipla visando ao desenvolvimento de suas potencialidades; III – desenvolver pesquisa científica relacionada às áreas de sua atividade; IV – promover a formação de pessoal técnico especializado; V – celebrar convênios, acordos, contratos e ajustes com entidades públicas ou privadas, nacionais e estrangeiras que objetivem a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência; VI – manter intercâmbio técnico–científico com outras entidades nacionais e estrangeiras, visando ao desenvolvimento e aprimoramento de suas atividades de reabilitação e habilitação das pessoas portadoras de deficiência; VII – prestar assistência técnica a entidades públicas ou privadas que desenvolvam atividades ligadas à reabilitação de pessoas portadoras de deficiência;
168
VIII – criar, organizar, administrar e manter unidades de atendimento a pessoas portadoras de deficiência, objetivando a interiorização do atendimento; IX – desenvolver outras atividades. O efetivo funcionamento da instituição se deu no mês de abril de 1991 e, segundo
dados divulgados na imprensa, na ocasião da comemoração de seus 20 anos, a Funad
completou o número de 24 mil atendimentos prestados.
A Fundação está ligada ao governo do estado através da Secretaria de Educação e
possui um quadro de aproximadamente 400 funcionários, distribuídos em atividades diversas,
entre eles, especialistas de várias áreas: psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas,
pedagogos, assistentes sociais, médicos, entre outros, que formam equipes multidisciplinares
nos diferentes setores disponíveis.
Atualmente, a Funad está dividida em diferentes serviços que por sua vez, estão
segmentados de acordo com o campo de atuação: Educação, Saúde, Inclusão Social e Outros
Serviços. De acordo com o sítio oficial da Fundação, a classificação está agrupada da seguinte
maneira: na área da Educação estão os setores de Assessoria Educacional Especial (AEE); o
Núcleo de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAHS) e a Escola Estadual de
Educação Especial Ana Paula Ribeiro Barbosa (EEEEAPRB); no campo da Saúde estão
Coordenadoria de Atendimento à Pessoa com Deficiência Física (CODAFI); Coordenadoria
de Atendimento à Pessoa com Deficiência Auditiva (CODAPA); Coordenadoria de
Atendimento à Pessoa com Deficiência Visual (CODAVI); Serviço Especializado de
Reabilitação Intelectual (CODAM/SERI); na Inclusão Social ficam Núcleo de Vivência e
Artes (NVA), Núcleo de Educação Física e Desporto (NED), Coordenadoria de Treinamento,
Produção e Ensino Profissionalizante (CORPU) Central de Interpretação de Libras (CIL); e
por fim a sessão de Outros Serviços que inclui: Centro de Referência em Esclerose Múltipla
(CREM), Hidroterapia e Atividades Aquáticas e Bebê de Alto Risco.
O acesso a qualquer dos serviços e programas oferecidos pela Funad
da Coordenadoria de Triagem e Diagnóstico que, como o próprio nome sinaliza, recepciona as
demandas, elabora o diagnóstico e direciona os encaminhamentos. De f
melhor o fluxo da organização, elaborou
disponibilizadas pelo sítio oficial da Fundação.
Figura 8. Organograma dos Setores da FunadNota: Elaborado a partir de informações do sítio oficial d
Após a criação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência
Saúde, no ano de 2012, que estabeleceu a criação, ampliação e articulação de pontos de
atendimento à população com deficiên
835/2012 , que se destinava à reforma, ampliação e aquisição de equipamentos necessários ao
melhoramento dos serviços oferecidos à população.
pelo Ministério da Saúde
Reabilitação Nível IV, pois oferece serviço de habilitação e r
deficiência: física, mental, visual e
Funad
CORDI Coordenadoria de
Triagem e Diagnóstico
Nucleo de Educação Permanente
O acesso a qualquer dos serviços e programas oferecidos pela Funad
da Coordenadoria de Triagem e Diagnóstico que, como o próprio nome sinaliza, recepciona as
demandas, elabora o diagnóstico e direciona os encaminhamentos. De f
melhor o fluxo da organização, elaborou-se este organograma com as informações
disponibilizadas pelo sítio oficial da Fundação.
. Organograma dos Setores da Funad Elaborado a partir de informações do sítio oficial da Funad, acessado de: http://funad.pb.gov.br/a
pós a criação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência
Saúde, no ano de 2012, que estabeleceu a criação, ampliação e articulação de pontos de
atendimento à população com deficiência, a Funad recebeu recursos,
, que se destinava à reforma, ampliação e aquisição de equipamentos necessários ao
melhoramento dos serviços oferecidos à população. No ano de 2013,
pelo Ministério da Saúde, através da Portaria 496/2013, como Centro Especializado de
Reabilitação Nível IV, pois oferece serviço de habilitação e reabilitação nas quatro áreas da
física, mental, visual e auditiva.
CORDI Coordenadoria de
Triagem e Diagnóstico
Educação
Saúde
Inclusão Social
Outros Serviços Bebê de alto risco
NEP
Nucleo de Educação Permanente
169
O acesso a qualquer dos serviços e programas oferecidos pela Funad acontece a partir
da Coordenadoria de Triagem e Diagnóstico que, como o próprio nome sinaliza, recepciona as
demandas, elabora o diagnóstico e direciona os encaminhamentos. De forma a compreender
se este organograma com as informações
http://funad.pb.gov.br/a-funad
pós a criação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência pelo Ministério da
Saúde, no ano de 2012, que estabeleceu a criação, ampliação e articulação de pontos de
a Funad recebeu recursos, através da Portaria
, que se destinava à reforma, ampliação e aquisição de equipamentos necessários ao
No ano de 2013, foi habilitada, então,
Centro Especializado de
eabilitação nas quatro áreas da
CODAFI
CODAPA
CODAVI
CODAM/SERI
CREM
Hidroterapia
Bebê de alto risco
AEE
NAAS
EEEEAPRBL
NVA NED
CORPU CIL
170
Mesmo ligada à Secretaria de Educação por seus interesses de pesquisa científica,
formação de pessoal técnico e atendimento educacional, conjuga interesses da área da saúde,
o que reflete a manutenção de recebimento de incentivos financeiros do Ministério da Saúde.
A Funad é um equipamento que atende à população de todo estado da Paraíba, pois é
uma referência no atendimento a pessoas com deficiência e o único deste porte no estado.
Neste sentido, é rotineira a chegada de ônibus, microônibus, vans e carros menores
pertencentes a prefeituras do interior que trazem semanalmente pessoas para atendimento.
A estrutura física é composta por um imenso prédio de dois andares que comporta os
diversos setores, auditórios, refeitório; um prédio anexo que se refere à Escola Estadual
Especial Ana Paula Ribeiro Barbosa Lira, além do ginásio e da piscina.
Para fins desta pesquisa foram realizadas três visitas à instituição em diferentes
ocasiões. Sobre a dimensão física destacamos trechos do Diário de Campo que ilustrem nossa
percepção:
Reparei que, na verdade, a porta lateral é mais movimentada, pois os setores de
atendimento para triagem ficam daquele lado. Andei por todo o piso térreo. Apesar de
comportar auditórios e setores de diversos tipos, ainda resta um pátio central amplo,
que abriga um palco e muito espaço de circulação. Era meio da tarde e há um
refeitório em que se fazia uma pequena fila de mulheres e crianças. No palco e em
torno dele outro grupo que conversava, mas não tinha lugar que eu pudesse sentar para
ficar próxima. Fui na direção das escada e percebi adultos e jovens que passavam ou
se sentavam por perto. Sentei também naquele espaço. Olhei para cima, as salas
indicavam salas de aula de Libras. As pessoas à minha volta conversavam na
linguagem dos sinais e naquela parte não via crianças. Demorei-me quase meia hora
tentando entender o movimento e para onde as pessoas iam. (Diário de Campo, Visita
2)
171
As salas de atendimento que pude ver têm bom tamanho e muitos brinquedos.
Descemos para o térreo e fomos visitar o setor de triagem. A distribuição espacial é
bem parecida, porém, as especialidades variaram um pouco, pois neste há
neurologista, cardiologista, fisioterapeuta, assistente social. (Diário de Campo, Visita
3)
O início do vínculo com a instituição acontece pelo Setor de Triagem e Diagnóstico.
As pessoas procuram a secretaria e se inscrevem para o atendimento inicial, tendo como
condição para elegibilidade no serviço serem usuárias do SUS. Há uma fila de espera que
pode demorar entre um e dois meses, devido a grande procura. O referido setor é composto
por médico, psicólogo, fisioterapeuta e assistente social. O trabalho de diagnóstico leva em
média seis meses e, de acordo com as conclusões elaboradas, a pessoa (criança, jovem ou
adulto) recebe um laudo com o diagnóstico e é encaminhada para outros setores da instituição,
onde pode escolher permanecer ou não. Conforme o diagnóstico, há esclarecimentos
específicos de assistentes sociais sobre direitos no campo da educação, profissionalização,
saúde e assistência social. Com relação ao interesse específico desta pesquisa, obtivemos a
informação, na segunda visita à Funad (Diário de Campo, visita 2), de que as crianças cujos
diagnósticos e perfil social se adéquam ao possível acesso ao BPC, são orientadas a esse
respeito.
O fluxo de demandas da instituição é muito alto, o Setor de Triagem e Diagnóstico,
sendo a porta de entrada para todos os outros serviços, recebe uma demanda muito alta para
um serviço que necessitaria de um ritmo de trabalho condizente com o atendimento de
anamnese e levantamento de informações, debate dos casos na equipe, elaboração de
relatórios e produção de laudos.
Durante participação num evento acadêmico-científico, encontrei ao acaso um
profissional que compunha a equipe do setor. Ao longo de uma conversa informal sobre o
172
trabalho com as crianças, ele proferiu a seguinte frase: “Parece uma fábrica de diagnóstico”.
As crianças entram uma após a outra durante todo o turno do horário de trabalho. Se
contarmos que a Fundação contabiliza um media de cinco mil usuários por mês33, que há filas
de espera para o atendimento em vários setores e que é a única instituição deste porte no
estado é possível situar a afirmação do profissional.
Há três elementos que chamam a atenção e deveriam ser problematizados: as
condições de trabalho dos profissionais, sua postura política diante da “fabricação” dos laudos
e a naturalização da demanda que chega àquele lugar. Não é possível pensar um sem o outro e
ao mesmo tempo sem levar em conta estes elementos como parte de um contexto mais amplo
e que vem sendo discutido ao longo deste trabalho.
A fabricação de infâncias anormais estampa nosso tempo histórico como marca de
uma engrenagem da medicalização, tornando problemas que são de ordem social em sintomas
individuais, de natureza orgânica e passíveis de tratamentos paliativos. Neste cenário, os
diversos quadros nosológicos impressos nos manuais médicos dão conta de classificar cada
pequeno gesto, comportamento, ritmo de aprendizagem ou desenvolvimento em sintoma de
um transtorno passível de enquadramento, medicação e terapia.
A medicalização como processo que imprime marcas no cotidiano, perpassa a
velocidade com que o trabalho de profissionais deve ser realizado, em processo fabril de
produtividade e desempenho. Tanto mais fácil se a formação e postura política permitem que
adotem de forma acrítica os padrões impostos pelas demandas do público, da instituição e do
Estado que, muitas vezes, são as suas próprias. Tanto mais fácil se a técnica imperar deixando
os papéis das entrevistas, os testes e instrumentos reinarem sobre o aval que marcará aquele
par de letras e números que definem o rótulo, digo, diagnóstico.
33 Este dado consta em material de apresentação da Funad, produzido e cedido pela coordenação do Núcleo de Educação Permanente (NEP) da Fundação.
173
Não se quer dizer com isso que os profissionais do setor são culpados pelo processo de
patologização. Assim como as assistentes sociais do CRAS, a quem nos referimos na sessão
anterior, são atores sociais que movimentam esta contraditória realidade. Sua atuação
profissional precisa ser pensada não de modo personalístico, mas como situado num
complexo emaranhado de produções sociais, constituído historicamente. É preciso situar os
interesses hegemônicos, problematizar a formação profissional, a atuação política dos
especialistas, a função da instituição na produção da demanda e seus encaminhamentos, a
precariedade das condições de trabalho, a falta de outras políticas e equipamentos de acesso à
saúde e educação, entre tantos outros fios que compõem esta intricada problemática.
O processo de diagnóstico leva alguns meses, as crianças passam por diversos
profissionais, mas por eles também passam diversas crianças. Elas não aprendem, não se
comportam, não se adéquam, dizem a escola, dizem as famílias. A naturalização dos
Transtornos de Atenção e Hiperatividade, de autismo e de Dificuldades Intelectuais e
Desenvolvimentais faz circular, seja no discurso dos especialistas, seja no discurso do senso
comum, uma obviedade sobre o que não é normal em uma criança. Tanto que a própria
Fundação tem um setor e serviços específicos para estes dois últimos diagnósticos: A
CODAM, que significa Coordenadoria de Deficiência Mental, mas que, oficialmente, fez a
alteração para SERI, Serviço Especializado de Reabilitação Intelectual, em função da própria
mudança de nomenclatura sugerida pelo DSM para deficiência intelectual e que abrange a
oferta de terapias para autismo. Dispõem dos serviços de estimulação precoce, orientação e
apoio à família, atividades de vida diária e atendimento psicológico e psicopedagógico.
3.5 No meio do caminho das políticas tinha uma pedra
Acessar as políticas públicas através de seus serviços e equipamentos não é uma tarefa
fácil. Associado à crescente dinâmica de demanda pelo diagnóstico e tratamento no campo da
174
saúde, há a necessidade de inclusão na escola, no que diz respeito ao campo educacional e a
busca pelo acesso ao BPC no campo da Assistência Social. Afinal, tratando-se da garantia de
um salário mínimo mensal para pessoa idosa ou com deficiência, por não ter condições de se
manter financeiramente ou tê-las providas por seu grupo familiar, surge como possibilidade
de acréscimo à pouca ou nenhuma renda de muitas famílias. Para além disso, há outros
direitos que deveriam ser providos a estas crianças e suas famílias que acabam ganhando
menos visibilidade em função do benefício se mostrar como paliativo imediato frente ao
quadro de pobreza enfrentado por estas pessoas.
No que diz respeito ao campo da saúde, as Colaboradoras (3) e (5) relatam a
dificuldade de conseguir realizar marcação para procedimentos e exames na esfera pública.
No primeiro caso, o médico de Ana Maria solicitou uma tomografia em 2014 e, mesmo dando
entrada com a solicitação junto à Secretaria Municipal de Saúde, a menina ainda não teve o
exame marcado. A cuidadora narra que já fez o procedimento duas vezes, mas que não obteve
sucesso. Em suas palavras:
O neuro daqui que eu fui, por incrível que pareça, me pediu esse exame em 2014,
quando eu cheguei que eu levei ela lá e até hoje nunca saiu: a tomografia.(...)
E outra coisa pior: essa tomografia que ela tem que ser sedada... quatro anos
esperando, vai fazer agora (...) É municipal, é pela prefeitura, mas ainda não... e se eu
tivesse o benefício dela, claro que eu já teria feito esse exame, eu não estaria pedindo a
ninguém.(...) tá tudo aqui, desde 2014 e quando eu passei em 2016, a neuro me deu
novamente, de lá da Funad, no caso... é... são duas que foi solicitada e infelizmente o
município não solicitou pra mim ainda não... (Colaboradora 3 – Cuidadora de Ana
Maria)
175
Situação semelhante vivenciada pela Cuidadora (1) que necessita de consulta e
medicação para um problema de glaucoma e não obtém retorno de sua solicitação na
Secretaria de Saúde. De acordo com ela:
Eu que já tenho problema de saúde, que eu tô com um glaucoma profundo, não tenho
nem condições de tá fazendo tratamento. Desde 2014 que já botei diversas vezes pra
Secretaria de Saúde papel desse problema meu e até agora não veio nada. Em janeiro
desse ano eu botei um encaminhamento prá lá, to esperando até agora e eu não posso
nem mesmo que eu tenha condições, eu não posso comprar o colírio sem a orientação
do médico. Então eu tenho que ir pra João Pessoa, pra isso eu tenho que vir na
Secretaria, pra me encaminharem, e isso aí até agora não aconteceu. Quer dizer, tá
uma coisa muito parada assim pra gente, pra perecer e sofrendo. (Colaboradora 1 –
Cuidadora de Bento)
As dificuldades vividas pela Colaboradora (5) se aproximam desta mesma realidade,
mas sua narrativa relata a possibilidade do descumprimento das vias legais, o que pode ser
prejudicial ao acesso igualitário a um direito que é para todos:
Já eu tive assim... eu tive um pouco de dificuldade, só não tive mais por causa de uma
menina que trabalhava na Secretaria e foi ela que me ajudou. (...) Demorou um
pouco... e eu ainda dou graças a Deus que a menina me ajudou, a menina do posto que
ela tinha conhecimento lá dentro e me ajudou, que ela falou com a menina lá dentro e
ela me ajudou a entrar na consulta. (Colaboradora 5 – Cuidadora de Joaquim)
A possibilidade de fazer contato com alguém conhecido, que agiliza o trâmite da
solicitação de consulta ou exame, acaba gerando a lógica de favorecimento, criando condições
desiguais em um processo que já é lento e dificultoso.
Tal característica se apresentou também no âmbito da solicitação do BPC. A
Colaboradora (5) descreve da seguinte maneira:
176
Aquela coisa... quando você tem um conhecimento, aí vai pra frente, se você não tem
conhecimento, aí fica difícil. Aí pronto, eu não tinha conhecimento lá dentro, né? A
menina que me ajudou, ela queria também fazer tipo um empréstimo, ela ia me ajudar
lá dentro também, só que ela queria fazer um empréstimo, assim, ela queria três mil
reais. Aí eu disse não, é melhor eu fazer tudo certinho e ir com a verdade.
(Colaboradora 5 – Cuidadora de Joaquim)
De acordo com o relato, a pessoa mencionada não trabalha mais no setor porque
mudou a gestão da prefeitura. O que nos leva a suposição de que não seria funcionária
pública.
Diante das dificuldades de acessar os serviços públicos, a Colaboradora (4) diante da
necessidade de um acompanhamento com médico psiquiatra, solicitado pela própria Funad,
alega que procurou atendimento público, mas descreve que estas consultas são realizadas na
Clínica-Escola de uma faculdade particular localizada na região da Grande João Pessoa.
Quando perguntada se o atendimento era particular ela respondeu:” Não, é não, é público
mesmo, sabe?!” A instituição em questão realiza atendimentos pelo SUS quando os usuários
são encaminhados pelas Unidades Básicas de Saúde. Do contrário, realizam atendimentos a
preços populares, como no caso da Colaboradora (5), que afirma levar Jorge a consultas
mensalmente, pagando o preço de 30 reais. Em suas palavras: “Aí eles cobram uma taxazinha,
mas é coisinha pouca, 30 reais por consulta. Aí todos os meses eu vou.”
O fato da Clínica-Escola estabelecer um convênio com o SUS, não a caracteriza como
uma instituição pública, mas o desconhecimento por parte da cuidadora de Jorge, e de grande
parte da população, não é à toa: o setor privado acaba absorvendo boa parte do público do
SUS, tanto através dos convênios estabelecidos, em que verbas públicas são destinadas a estas
instituições para arcar com o serviço prestado, quanto pela oferta de atendimento que
cumpriria uma função social ofertada a preços mais acessíveis. A parcela da população que se
177
vê diante de situações como as narradas pelas Colaboradoras (1) e (3), que esperam longos
períodos pela realização de um exame, percebem nestes serviços uma alternativa satisfatória
ao insucesso de suas demandas no setor público.
Tal situação se tipifica no quadro de desmonte das políticas públicas, no contexto
neoliberal de transferência da responsabilidade para setores privados ou organizações sem fins
lucrativos, de serviços que deveriam ser providos pelo Estado, sem que se desconfigure
completamente a previsão constitucional das políticas sociais. De acordo com Behring e
Boschetti (2011), citando Soares, tal desmonte pode ser denominado de “descentralização
destrutiva” (p. 163) e se constitui como um retrocesso histórico. Segundo a análise das
autoras:
Na saúde, o principal paradoxo é que o Sistema Único de Saúde, fundado nos
princípios de universalidade, equidade, integralidade das ações, regionalização,
hierarquização, descentralização, participação dos cidadãos e complementariedade do
setor privado, vem sendo minado pela péssima qualidade dos serviços, pela falta de
recursos, pela ampliação dos esquemas privados que sugam os recursos públicos e
pela instabilidade do financiamento. A proposta de saúde pública e universal parece
estar, na prática, sofrendo um processo de privatização passiva (Behring & Boschetti
2011, p. 163-164)
A precarização no campo da saúde aparece no discurso da Cuidadora (2) quando relata
que sua filha recebia visitas mensais da médica da Unidade Básica de Saúde que fazia a
consulta e receitava os remédios, mas desde que houve troca de profissional, ela mesma vai
até a Unidade e pega a receita, elaborada como cópia das anteriores, com o médico que sequer
conhece a paciente.
A medicalização aparece, assim, como uma das facetas da precarização da saúde. O
profissional de medicina ao naturalizar a demanda por medicação e desconsiderar a
178
necessidade de conhecer sua paciente, atualiza as engrenagens que desumanizam a relação de
cuidado e atenção, preceitos básicos da política de saúde.
Nesse sentido, a prescrição de remédios para crianças diagnosticadas parece uma
regra. Todas as Participantes eram medicadas com remédios controlados.
Tabela 9
Relação entre Participantes e remédios utilizados
Bento Participante 1
Ruth Participante 2
Ana Maria Participante 3
Jorge Participante 4
Joaquim Participante 5
Neuleptil
Aldol Fluoxetina
Rivotril
A colaboradora não soube dar o
nome da medicação,
apenas que era de uso controlado
Risperidona
Neuleptil
Risperidona
Neuleptil
O remédio denominado Neuleptil tem como substância principal a periciazina,
caracterizado como neuroléptico, ou mais comumente chamado antipsicótico. A bula descreve
que sua indicação é para tratamento de “distúrbios do caráter e do comportamento” e que seria
eficaz em diversos sintomas ligados a esta característica tais como agressividade,
negatividade, indiferença, oposição, entre outros. As advertências e precauções são inúmeras
e vão desde aumento de açúcar no sangue ou intolerância à glicose, até risco de ataque de
arritmias ventriculares graves, acidente vascular cerebral, casos de tromboembolismo venoso.
Por sua vez, a Risperidona é a substância principal que dá nome ao medicamento. A
descrição indica que se trata de um antipsicótico com efeito sobre transtornos relacionados ao
pensamento ou às emoções. A bula descreve diversas formas de administração com outros
medicamentos que devem ser cuidados por conta dos riscos colaterais, além disso, aumento de
açúcar no sangue. O uso prolongado pode causar contraturas involuntárias no rosto e estado
de confusão mental.
179
A medicação prescrita, além dos efeitos colaterais graves e que exigem atenção e
cuidado, são drogas desenvolvidas para psicoses e adaptadas para os quadros de “deficiência
mental”, que como vimos anteriormente, não têm uma medicação específica. Como se trata de
intervir sobre os ditos quadros sintomatológicos, a medicação é utilizada por sua intervenção
em situações específicas tais como agressividade e irritabilidade, por exemplo.
As Colaboradoras atribuem papel importante à medicação porque se trata de
terapêutica que deixa os filhos mais calmos, ou fazem dormir e que sem a medicação eles não
estariam sob controle. De acordo com suas palavras:
“Ela tava dormindo, porque eu dei o medicamento a ela que ela tava bem estressada.”
(Colaboradora 3 – cuidadora de Ana Maria)
“Ela está mais agitada, tem dia que dorme, dia que não dorme, se acorda às 3 horas da
madrugada e aí não quer dormir mais. Toma duas qualidade de remédio, mas não tem
jeito não...” (Colaboradora 2 – cuidadora de Ruth)
“Ele às vezes, se eu passar da hora de dar o remédio a ele, aí ele se aborrecer, tiver
uma raiva, ele quer chutar eu, chuta a porta, dá murro na geladeira, grita com a gente,
só isso... (...) Ele é normal com o Neuleptil (...) já eu tenho um pouco de receio de dar
esse Risperidona que ele é mais forte, né?! Mas só que ele fica tranquilo, né?!”
(Colaboradora 5 – cuidadora de Joaquim)
“O Rivotril foi passado agora, o médico passou. Aí ele toma assim... às vezes a noite
ele não dopa direto assim... pra dormir, ele fica querendo ficar a noite acordado. Aí eu
vou e já dou um Rivotril a ele.” (Colaboradora 1 – cuidadora de Bento)
A prescrição de remédios controlados e cujos riscos devem ser pesados por seus
efeitos e, sobretudo, por suas contra-indicações, são a terapêutica utilizada com pessoas em
desenvolvimento, a quem deveria ser proporcionado acesso a esporte, lazer, cultura e
180
socialização que garantisse outras experiências, mais propícias ao crescimento saudável e
menos adoecedoras.
Todas as Colaboradoras foram unânimes em afirmar que desconhecem a oferta por
parte da Política Social de projetos, atividades, serviços ou programas disponíveis na cidade
para as crianças. Apontaram, de maneira geral, a necessidade de atividades de lazer e esporte
que são ausentes no município. A falta de espaços públicos para convivência, praças com
brinquedos e atividades físicas foram levantadas por algumas delas como possibilidades que
deveriam ser oferecidas.
3.6 O BPC para além do papel
Diante das dificuldades encontradas para acessar as políticas sociais, o Benefício de
Prestação Continuada se apresenta como uma possibilidade de acréscimo à renda e, portanto,
elemento de sobrevivência para estas famílias.
O BPC ganha conotações diversas na fala das Colaboradoras, mas quatro foram
unânimes em afirmar que graças ao Benefício é possível comprar remédios e roupas para os
filhos com deficiência. A única entrevistada que não recebe o BPC, mas está em processo de
solicitação, aponta que o Benefício serviria para pagar por escola e serviços de saúde
privados, o que coaduna com a Colaboradora (5) que além dos remédios e roupas citados
anteriormente, afirma usar o benefício para pagar uma escola particular para o filho.
Quando perguntadas sobre o significado do BPC para si e para sua família, as quatro
Colaboradoras que recebem o benefício deram respostas enfáticas: “Muita Coisa!”
(Colaboradoras 1 e 2) ; “Tudo!” (Colaboradora 3); “Ajuda muito a gente. Representa muito!”
(Colaboradora 5).
Além disso, como já mencionado em item anterior, o recebimento do Benefício é
percebido como garantia de uma monetarização que compensaria o fato das cuidadoras não
181
desempenharem atividades remuneradas, em função de serem responsáveis pelo cuidado com
a criança.
Situação mais grave é sinalizada pela Colaboradora (4) que afirma sobre o BPC: “A
gente tá vivendo desse salário.” Situação semelhante a da Colaboradora (2), cujo companheiro
depende do ciclo da Cana e vive de serviços esporádicos e remuneração precária.
Acessar o Benefício não constituiu tarefa simples para duas Colaboradoras, foi
necessário processo judicial para garantir o recebimento. Já as cuidadoras de Ruth e Jorge
(Colaboradoras 2 e 4) afirmam ter acessado através de procedimento junto ao INSS, sem
problemas. Já a Colaboradora (3) constituiu advogado antes mesmo de solicitar o benefício, o
profissional cuidará de todo o procedimento. Em suas palavras: “Não, eu não fui no INSS
ainda não... Eu botei logo um advogado, porque assim, caso vier negado eles já botam na
federal”.
Os critérios de elegibilidade no BPC configuram-se como elementos de dissonância na
relação entre a Política Social e o Sistema Judiciário. Ainda que não haja discordância sobre a
legislação em si e a garantia do direito, a referência à comprovação biomédica das
incapacidades e/ou à renda surgem como variáveis a serem debatidas no campo jurídico
quando não são reconhecidas no campo pericial do INSS.
A definição de deficiência esbarra, por um lado, nos preceitos do discurso médico, que
a reconhece como lesão grave ou incapacitante e, por outro, a perspectiva de justiça
distributiva, que prevê que a deficiência está em relação direta com a sociedade e as
condições em que o sujeito deficiente se insere, o que justificaria ações de reparação de
desigualdade.
Seguimos, portanto, concordando com Medeiros, Diniz e Squinca (2006a) que a
avaliação das políticas sociais a respeito da elegibilidade para recebimento do Benefício
precisaria problematizar o fato de que pessoas com deficiência precisam ser vistas sob
182
aspectos que levem em consideração não somente variáveis de caráter absoluto, mas a
complexa interação entre corpo, habilidades e sociedade. O modo como cada sujeito
experimenta as restrições de habilidades dependerá das condições sociais impostas ao seu
corpo e sua subjetividade, o que definirá sua experiência de deficiência. Isto significa dizer,
por exemplo, que sujeitos que vivenciam a diferença subjetiva em formas definidas por nossa
sociedade como deficientes, estarão mais vulneráveis a esta experiência quando submetidos a
situações de pobreza, dificuldade de acesso a educação e à saúde, que dificultam sua inserção
no mercado de trabalho ou condições de vida digna. E isto não pode se amparar apenas na
equação de renda familiar per capta de ¼ do salário mínimo, pois a pobreza deve ser definida
para além destes parâmetros, nem pelo aval do perito médico, através da definição biológica
de deficiência, quando esta só existe na relação com aspectos sociais, que definem a limitação
e obstacularização do sujeito e suas interações.
A medicalização se faz presente na medida em que o laudo médico é definidor da
condição de deficiência do sujeito. Os elementos que determinam o limiar entre o normal e
patológico são tomados como um fazer científico, portanto neutro e objetivo, capaz de
catalogar as faltas e lesões que determinam o que está fora da norma. A definição construída
sob aspectos puramente biológicos desconsidera o modo como a experiência do que se
convencionou fora do padrão pode estar atrelada aos elementos de realidade em que cada
sujeito está inserido: vivências de sofrimento e/ou vulnerabilidade, ou, ao contrário, inserção e
acesso sem dificuldades.
O acesso ao benefício somente é possível por uma avaliação pericial biomédica que
define o corpo deficiente: o deficiente não é aquele que considera sua “lesão grave ou
incapacitante para a vida independente e o trabalho”, mas sim aquele que o discurso
médico reconhece como tal. É somente após a perícia biomédica que um corpo com
lesões ascende à categoria de corpo deficiente para as políticas sociais do Estado. E
183
nesse processo de transformação de um corpo com lesões em um corpo deficiente é
que o discurso biomédico da perícia adquire poder normativo sobre a deficiência.
(Medeiros, Diniz & Squinca, 2006a, p. 87)
Outro elemento a ser problematizado é a exigência da comprovação de pobreza
familiar. Quando apoiado na renda da família, e não na capacidade de autonomia e
independência para inserção no trabalho e ausência de renda da pessoa com deficiência, a
política apoia-se na compensação familiar, aproximando-se mais de uma política de
transferência do que de um benefício no campo dos direitos individuais. As considerações de
Mioto (2009) a este respeito vão de encontro a esta constatação, naquilo que a autora
denomina de “processo de familiarização” das políticas sociais. De acordo com a autora “(...)
assiste-se o atrelamento da possibilidade de provisão de bem-estar das famílias à renda que
conseguem obter no mercado e, portanto, é ela que vai determinar a qualidade de vida dos
indivíduos enquanto membros de uma família.” (p. 141) As consequências disto são políticas
que se voltam apenas para as famílias mais desassistidas, com foco emergencial na renda, o
que implica, em primeiro lugar, em não se combater a desigualdade em sua raiz e, em
segundo lugar, no reforço dos papeis de gênero tradicionais, já que estabelecida desta forma,
foca no deficiente que depende de cuidados da sua família pobre, o que faz as mulheres
assumirem os cuidados e abrirem mão de trabalhos remunerados e sua inclusão no sistema
previdenciário para garantir o benefício e o cuidado com os filhos.
As famílias e suas condições de vida não podem passar por transformações se a
elegibilidade para obter um benefício é determinada apenas pela situação de pobreza e
deficiência na forma como são aplicadas hoje.
Tanto no aspecto da medicalização, quanto da política no formato do BPC, as famílias
estão imersas na naturalização da patologização, o que as insere na engrenagem que
movimenta os interesses hegemônicos do Capital, em que os comportamentos considerados
184
anormais são contidos em quadros nosológicos, tratamentos e medicamentos, fazendo circular
certa economia, e das políticas que mantêm as condições de desigualdade através de ações
que não produzem transformações efetivas do cenário de vulnerabilidade, e no caso do BPC
ainda move monetariamente o tal mercado. Isto vai de encontro ao que Montaño e Durigueto
(2011) afirmam: “(...) na atualidade, o volume de desempregados cumpre novas funções
econômicas e políticas: é objeto de políticas sociais, tornando-se tanto consumidores como
cumprindo uma função política ligada ao clientelismo (massa de manobra para ampliar o
caudal eleitoral)” (p. 95).
Esta naturalização possibilita que as famílias recorram na justiça quando entendem
que, sendo pobres e com uma criança diagnosticada e possuidora de um documento que atesta
sua deficiência: o laudo, deveriam ter o direito de acessar o benefício. Fortalece esse
entendimento a oferta de profissionais que auxiliam nos processos burocráticos que as pessoas
desconhecem e temem. Assim, seja no âmbito do judiciário, ou mesmo no INSS, estes
“intermediários”, de que falavam Vaitsman e Lobato (2017), dos quais tratamos em capítulo
anterior, obtém ganhos mantendo o interesse na patologização da criança e no acesso ao
benefício.
O Benefício atende às necessidades urgentes de famílias pobres que cuidam de
crianças cujas demandas demarcam uma medicalização da vida, o que torna suas realidades
mais vulneráveis ainda. Sua importância na manutenção da vida destas pessoas é inegável,
entretanto, é preciso considerar as problematizações apresentadas para que seja possível
superar algumas contradições presentes neste cenário.
3.7 Ainda precisamos falar sobre a Economia da Diferença
A complexa realidade que buscamos compreender está composta de diversos
alinhamentos de forças que precisaram ser detalhados e analisados ao longo deste trabalho.
185
Em nossa compreensão, a manutenção desta intrincada problemática se dá em função de um
mercado que funciona eficientemente a favor de interesses hegemônicos. Neste sentido,
apostamos no entendimento de que há uma Economia da Diferença, ou seja, uma circulação
de valores, econômicos e políticos, em torno da patologização da infância.
A diferença instituída pela produção de uma infância anormal é sustentada pelas
explicações no campo de certa ciência, que insiste em apontar esquemas orgânicos
disfuncionais para diagnosticar, e drogas fabricadas em larga escala como terapêutica.
Estrutura-se um mercado amplo para produção e consumo das drogas criadas por
Indústrias/Laboratórios multinacionais. Se este alerta já tem sido necessária e amplamente
debatido na relação com o TDAH e o metilfenidato, está posto que a “deficiência mental”
como diagnóstico que possui critérios amplos e variáveis, possibilita um elenco de
medicamentos voltados para a diversidade de comportamentos e emoções a serem contidos.
No caso da pesquisa em tela, o Neuleptil e a Risperidona, classificados como antipsicóticos,
fizeram a vez entre as drogas prescritas para crianças. “deficiência mental” e doença mental,
que historicamente vêm ganhando tentativas de diferenciação, seja nos manuais psiquiátricos,
seja entre pesquisadores de outras áreas, são diagnósticos que compartilham da mesma
prescrição medicamentosa. Ainda que não concordemos com tais processos de patologização
em nenhuma de suas formas, é necessário apontar a contradição posta neste fenômeno.
Incrementando formas de silenciamento ao comportamento divergente, a
patologização da infância é tomada na escola como processo natural: as crianças que não se
adaptam e não condizem com os padrões devem ser encaminhadas a profissionais de saúde
para avaliação e diagnóstico por suas faltas ou excessos. O caminho inverso, que é da chegada
de crianças com diagnósticos na escola, estipula estratégias e procedimentos que garantam sua
permanência, não necessariamente a inclusão: manter as cuidadoras (mães ou avós) nas salas
de aula, garantir auxiliares nos períodos em que a criança está na escola, estabelecer horários
186
reduzidos, entre outras. A sala de Recursos Multifuncionais, projetada para apoiar a oferta de
Atendimento Educacional Especializado, funciona em uma escola no centro da cidade e
programa atendimentos semanais para os estudantes. Os limites deste trabalho não
possibilitaram conhecer detalhadamente as articulações empreendidas por este projeto, mas a
tomar pelo crescente numero de matrículas especiais no período de 2010 a 2014,
reconhecemos a importância de que, no campo da educação, é necessária uma transformação
no que diz respeito ao processo de inclusão. Com isso queremos dizer que é preciso repensar,
inclusive, a inclusão como processo permeado por entraves, obstáculos e contradições
presentes na própria essência da instituição escolar.
As demandas por diagnóstico tornam-se banalizadas por um processo social que,
obviamente é composto pela escola, mas não só por ela. A normatização da infância é tecida
em longos fios históricos e se atualiza nos contextos políticos e econômicos que possibilitam
estratégias de submissão dos corpos e subjetividades. Uma criança diagnosticada vale algo.
Vale a(s) consulta(s) pelo diagnóstico, os remédios a serem consumidos diariamente, os
exames que comprovam (ou não) a marca orgânica da falta (mesmo que ela não esteja lá), os
tratamentos com especialistas tantos, a desculpa da escola de que quem falha é o sujeito, a
culpa da família que precisa se submeter a toda esta série de estratégias para cuidar de seu
filho.
Há também outros ganhos, se a família comprovar sua pobreza, as pessoas com
deficiência podem solicitar o Benefício de Prestação Continuada. Importante política de
beneficiamento daqueles que não têm condições de garantir uma renda mínima pela inserção
no mercado de trabalho, o benefício surge como garantia de dignidade básica para famílias
que se vêem diante da necessidade de suprir as demandas de uma criança com deficiência. Em
torno disto se estabelece uma rede de interesses e valores.
187
Os “intermediários” que estabelecem ganhos diante da dificuldade de algumas famílias
de lidar com os processos no INSS ou na Justiça são uma superfície visível desta rede.
Para além disto, uma cidade com 39,4% de pessoas vivendo abaixo da linha da
pobreza, que têm seus ganhos sustentados por empregos temporários, esporádicos e
precarizados, passa a contar com a monetarização de famílias que ganham o benefício
mensalmente e precisam comprar remédios, fraldas, comida etc., fazendo circular a economia
local.
A elas são ofertados serviços públicos que, por garantia das políticas, deveriam
promover emancipação e autonomia, numa perspectiva de transformação das desigualdades
sociais. Entretanto, as marcas históricas e os interesses políticos e econômicos, se fazem
presentes no cotidiano, e se materializam na precarização de tais serviços.
A contratação de pessoas por vias alheias a do concurso público, a atuação de
profissionais (contratados ou concursados) reforçando o clientelismo e a política de favor, a
falta de formação crítica de profissionais para atuação no campo das políticas sociais,
aparecem como alguns dos fatores que dificultam o funcionamento dos serviços e
equipamentos de forma qualificada. A política fragmentada se fragiliza ainda mais diante
destes elementos.
A manutenção destas engrenagens garante práticas de tutela e submissão das pessoas
atendidas, exemplo categórico é a manutenção do “Grupo de Mães” que se articula em função
da garantia da mobilidade (ônibus) para o tratamento das pessoas com deficiência com
encontros quinzenais que pouco se articulam com a perspectiva democrática de promoção de
autonomia e emancipação, já que estão pautados na categoria individualizante da melhoria da
autoestima.
As famílias resistem e sobrevivem. A resistência se faz presente nas tentativas de não
se submeter a tudo, de faltar aos encontros do “Grupo de Mães”, de diante das negativas da
188
escola frequentar a sala de aula para que o filho seja incluído, de procurar saber sobre os
remédios, de trocar informações com as vizinhas e outras mães sobre a concessão do
benefício e até de saber os caminhos da narrativa que precisam estar presentes no consultório
médico.
Eficaz estratégia de sobrevivência, driblar os caminhos de submissão impostos pelas
normativas do manual psiquiátrico, das leis e das políticas. A insubmissão que se materializa
no dia a dia e produz algum tipo de contradição na realidade vivida.
Na prática, é necessário mais que isto para a efetivação de uma mudança deste estado
de coisas. Entretanto, nesta rede, onde os especialistas e o Estado apontam para a tutela e
submissão dos sujeitos, para a classificação e regulação dos grupos, as famílias tentam criar
suas próprias estratégias de sobrevivência.
189
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam.
Os lírios não nascem da lei. (Carlos Drummond de Andrade)
Os estudos no campo da medicalização vêm sendo realizados de forma cada vez mais
ampliada em nosso país, subsidiando os movimentos acadêmicos e sociais na busca por dar
visibilidade a esta questão de forma crítica e propositiva. As dimensões deste debate
extrapolam o campo da educação e da saúde, congregando diferentes grupos e temáticas: a
infância, o parto humanizado, a sexualidade, a estética imposta aos corpos, entre tantos temas
em destaque na atualidade, como pautas fundamentais no encontro dos interesses do campo
da medicalização.
Cabe ressaltar que as possibilidades de debate extrapolam uma única abordagem
teórica, mas o posicionamento crítico diante das problemáticas impostas neste campo são
comuns. Em nosso trabalho foi proposta uma investigação apoiada no materialismo-dialético
em que, a partir de um recorte da realidade, buscamos, nos processos históricos e políticos, a
materialidade da origem e desenvolvimento do objeto de pesquisa investigado. Tal estratégia
possibilitou uma análise das complexas relações entre os diagnósticos de “deficiência
mental”, a patologização da infância e as políticas sociais.
A produção de diagnósticos de “deficiência mental” foi compreendida a partir de uma
leitura histórica tanto sobre a patologização da infância, quanto pela própria origem do
conceito nosológico, articulando a compreensão de que critérios abrangentes sobre faltas de
habilidades para a vida social, acadêmica, ou seja, dificuldades intelectuais e
desenvolvimentais acabam sendo estabelecidos a partir de uma lógica normatizante, que
estigmatiza e é construída a partir de padrões estabelecidos socialmente, pautadas em
referências de eficiência e produtividade atreladas às instituições capitalistas, mais
190
especificamente a escola e a fábrica34. Ao receber um diagnóstico e ser submetida a
tratamentos e medicação controlada, a criança está com seu desenvolvimento atrelado ao
rótulo de inadequação e falta de inteligência, culpabilização por qualquer falta e as reações
adversas causadas pelas drogas controladas que lhe são impostas. Sua sensibilidade e
interações com a vida que a cercam são suplantadas por um agir que a condicionará ao lugar
da deficiência.
O lugar e os cuidados atribuídos à criança deficiente e sua família compõem, então,
um complexo jogo de forças e interesses que movimentarão o que denominamos de Economia
da Diferença. Ao fazer circular valores financeiros e políticos sobre a patologização da
infância, entendemos que engrenagens são postas a funcionar para a manutenção dos
interesses hegemônicos do sistema Capitalista.
As políticas sociais, tão caras ao enfrentamento das desigualdades, acabam por
colaborar com este estado de coisas na medida em que os serviços no campo da educação,
saúde e assistência social colaboram como engrenagens bem articuladas na estigmatização e
tutela das crianças e famílias atendidas.
Há também um importante mercado atrelado à patologização da infância que se
beneficia seja através dos “intermediários” que atuam nos sistemas públicos de acesso ao
Benefício; seja através da venda de exames, tratamentos e medicamentos; além da circulação
de valores em uma cidade pobre, cujos habitantes se utilizam deste benefício para sobreviver.
A banalização com que são tratadas as formas de atribuir falta ou desvio no
comportamento das crianças acaba fazendo circular uma compreensão no senso comum de
que um diagnóstico ou a medicação controlada não se constituem elementos estranhos na
dinâmica social.
34 Aqui compreendida como instituição que representa o espaço formal do trabalho.
191
Todos estes elementos dispostos nas análises desta tese cumpriram a árdua tarefa de
contribuir com o aprofundamento do debate sobre a medicalização e as políticas sociais,
especialmente no que se refere à infância. O problema de pesquisa investigado partiu de um
contexto local, mas que pode ser reconhecido com o retrato de uma realidade mais ampla,
cujos aspectos estudados evidenciam aproximação com uma problemática que invade outros
campos e territórios.
Longe de atingirmos o esgotamento do debate, mas ao contrário, pensando a
construção da tese como a possibilidade de abertura para a ampliação de novos diálogos,
apontamos a contribuição de Wacquant (2013) ao sinalizar que junto aos processos de
socialização e punitivismo, a medicalização pode ser pensada como a legitimação de
estratégias de controle, submissão e contenção, que num paralelo aos usos da prisão, mantém
uma poderosa economia financeira e política de assujeitamento dos pobres. Modo de desviar a
atenção das raízes socioeconômicas dos problemas sociais, reduzindo-os a uma forma de
tratamento individual. O aprofundamento destas contribuições parece-nos um horizonte
importante a ser explorado para a compreensão e o enfrentamento deste estado de coisas.
A preocupação com a patologização da infância segue como elemento fundamental
para a construção de novas estratégias de resistência no campo da medicalização. Como visto
ao longo deste trabalho, tal lógica tem se disseminado nas políticas sociais no campo da
saúde, educação e assistência social, sendo urgente desafiarmos a elaboração de novos
caminhos. Tal embate deve somar e contribuir também para a problematização da
medicalização em contextos como a socioeducação e o acolhimento institucional, cujo
cotidiano tem sido permeado por tal processo, escamoteando as complexas relações sociais
que os constroem.
A respeito das políticas sociais é preciso reconhecê-las como produto de conquistas
históricas e essenciais no tensionamento da Questão Social. Entretanto, em tempos sombrios,
192
em que vivenciamos um Golpe de Estado e os retrocessos políticos com a perda de tantos
direitos, manter a criticidade acadêmica parece a postura acertada na legitimação da luta pela
transformação social. Não é papel da universidade, nem das políticas sociais a mudança
necessária nas condições de desigualdade impostas pelo modelo capitalista, mas qualificar o
debate e apontar possíveis estratégias de resistência são essenciais na colaboração para tal
embate.
Neste sentido, a atuação profissional nos equipamentos e serviços das políticas ocupa
papel fundamental na construção de fissuras deste sistema. A formação e capacitação dos
técnicos-especialistas que trabalham na educação, saúde e assistência social ocupam lugar
estratégico para a constituição de uma perspectiva crítica e fundamentada em aspectos sociais,
políticos, culturais e econômicos que se diferenciem da lógica individualista e culpabilizante
presente nos dias atuais.
Há movimentos históricos que vêm empreendendo importante força nos horizontes
comunitários e de articulação coletiva que são fundamentais para a transformação desejada: a
luta antimanicomial, a medicina social, os movimentos sociais contra a medicalização da vida,
por exemplo, e toda forma que envolva a possibilidade de reforçar o front das lutas que
apontem para o coletivismo, a atuação em rede e o protagonismo social.
Este trabalho caminhou na perspectiva de aprofundar a compreensão sobre a temática
da medicalização da infância e sua articulação com as políticas, acreditando que uma postura
crítica diante desta realidade proporciona ferramentas para reflexão e produção de novos
caminhos. Trilhá-los, no entanto, só é possível no diálogo com outras reflexões e práticas que
se encontrem na contra-mão dos interesses hegemônicos e articulando-se fortemente na
construção de novos horizontes. A tese fica, então, como convite e ingresso aos novos
diálogos que possam ser fomentados.
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208
Apêndice 1 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
209
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
Este é um convite para você participar da pesquisa: “A economia da diferença nas
políticas de assistência à infância”, que tem como pesquisadora responsável Renata Monteiro
Garcia. Este trabalho está sendo desenvolvido em nível de doutorado, junto à Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Esta pesquisa pretende analisar a relação entre o crescimento de diagnósticos de
deficiência mental em crianças, a patologização da infância e o acesso às políticas de proteção
social à infância.
O motivo que nos leva a fazer este estudo é contribuir com uma análise crítica a respeito
da lógica da patologização da infância, além de questionar as políticas de assistência à
infância e suas implicações com a manutenção de um modelo de desigualdade social e
manutenção da ordem vigente.
Caso você decida colaborar, você participará de uma entrevista semi estruturada, com
duração média de meia hora e, se você autorizar, o áudio será gravado para posterior
transcrição e análise das respostas. Caso você não se sinta à vontade, por motivo de qualquer
natureza, por uma ou mais perguntas, você tem o direito de não respondê-las.
Durante todo o período da pesquisa você poderá tirar suas dúvidas ligando para Renata
Monteiro Garcia, no telefone (83) 98610-7144.
Você tem o direito de se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer
fase da pesquisa, sem nenhum prejuízo para você.
Os dados que você irá nos fornecer serão confidenciais e serão utilizados apenas em
atividades acdêmico-científicas, tais como congressos ou publicações científicas, não havendo
divulgação de nenhum dado que possa lhe identificar.
Esses dados serão guardados pelo pesquisador responsável por essa pesquisa em local
seguro e por um período de 5 anos.
Este documento foi impresso em duas vias. Uma ficará com você e a outra com a
pesquisadora responsável Renata Monteiro Garcia.
210
Consentimento Livre e Esclarecido Após ter sido esclarecido sobre os objetivos, importância e o modo como os dados serão
coletados nessa pesquisa, concordo em participar da pesquisa “A economia da diferença nas
políticas de assistência à infância”, e autorizo a divulgação das informações por mim
fornecidas em congressos e/ou publicações científicas desde que nenhum dado possa me
identificar.
Paraíba, ___ de _________de______.
_______________________________________
Assinatura do participante da pesquisa
_______________________________________
Assinatura do pesquisador responsável
211
Apêndice 2 – Instrumento de Pesquisa
Roteiro de EntrevistaSemi-estruturado
212
Roteiro de Entrevista Semi-Estruturado
1. Perfil Sócio-Econômico
Nome do entrevistado: __________________________________________________
Idade: ___________________ Parentesco com a criança: ______________________
Nome da criança diagnosticada: ________________________________________
Idade: ____________
Bairro: _____________________ Residência: ( ) própria ( ) alugada ( ) outros
A casa possui: energia elétrica ( ) água ( ) esgoto ( )
Quantas pessoas moram nesta residência? ____________________________
( ) Criança Idade: ___ Escolaridade: ________
( ) Mãe Idade: ___ Escolaridade: ________ Ocupação: __________________
( ) Pai Idade: ___ Escolaridade: ________ Ocupação: __________________
( ) Irmão Idade: ___ Escolaridade: ________ Ocupação: __________________
( )Irmã Idade: ___ Escolaridade: ________ Ocupação: __________________
( ) Avô Idade: ___ Escolaridade: ______ ( ) Tio Idade: ___ Escolaridade: _____
( ) Avó Idade: ___ Escolaridade: ______ ( ) Tia Idade: ___ Escolaridade: _____
( ) Outros
Qual a renda familiar?
( ) Menos de um salário mínimo ( ) Um salário mínimo
( ) Entre um e dois salários mínimos ( ) Entre dois e três salários mínimos
( ) Mais que três salários mínimos ( ) Outros: _______________
213
2. Trajetória de vida
1) Fale sobre o nascimento da criança: Quando ela nasceu, como estava a organização familiar?
Já havia outros filhos? Moravam na mesma casa que residem hoje?
2) Como foi o processo que levou a desconfiança de que a criança teria algum “problema”?
3) Com que idade foi diagnosticada? _________________
4) Durante o processo de diagnóstico: Quais especialistas? Quais instituições?
5) Teve dificuldade para acessar a rede de saúde ou de assistência social para conseguir o
diagnóstico?
6) Houve mudança na rotina da família durante esse processo?
7) Toma medicação? ( ) Sim ( ) Não
Qual? Com que frequência? ____________________________________________
___________________________________________________________________
8) Onde você obtém o medicamento? _______________________________________
9) Frequenta a escola? ( ) Sim ( ) Não
( ) Pública ( ) Particular
10) Faz algum tipo de acompanhamento com profissional de saúde?
( ) Sim ( ) Não
11) Qual? Onde? Com que frequência?
12) A criança frequenta alguma atividade extra-curricular? (reforço escolar, atividade física,
atividade cultural, etc) Onde?
3. Relação com Políticas Sociais
13) Na sua família, existe alguém, ou a própria criança, que é beneficiário de algum programa
social? (Ex: benefício de prestação continuada, bolsa-família, aluguel-social)?
14) A criança ou alguém da família frequenta algum tipo de projeto, reunião, ou atividade junto
ao CRAS, CREAS, NASF, etc...? (Em caso positivo) Qual seria?
14.a) O que você acha desta atividade?
15) Sua família teve acesso ao BPC/LOAS?
16) Como ficou sabendo do BPC/LOAS?
17) Quais documentos foram necessários para acessar o benefício?
18) Quais lugares precisaram ir para conseguir o benefício?
214
19) Houve alguma pessoa ou profissional em especial que tivesse ajudado?
20) Quanto tempo levou do diagnóstico à obtenção do benefício?
22) Você precisa fazer confirmação de cadastro nos programas que participa? Como
acontece?
21) O que este benefício representa para você e sua família?
* Há mais alguma coisa sobre sua realidade que você ache importante ou gostaria de falar para completar as informações que me deu?
215
Anexo – Dados Quantitativos Sistematização de dados sobre matrículas nas escolas do município
216
Tabela comparativa de dados das matrículas especiais e regulares no município de Mamanguape, no período de 2010 a 201435.
Ano Regulares Especiais Deficiência Mental 2010 11.240 94 73 2011 10.890 108 100 2012 10.573 144 126 2013 10.258 163 140 2014 9.792 183 ?
∑ = 2014 – 2010 = - 1706 = -15,18%
∑ = 2014-2010 = +89 = + 94,68%
∑ = 2014-2010= +67 = +91,78%
Relação entre as matrículas: 2010 ����0,83 mat. Especiais para cada mat. Regular 2014����1,90 mat. Especiais para cada mat. Regular Aumento de 128% nesta relação
35 Dados obtidos na Secretaria de Educação de Mamanguape e no Censo Escolar disponível no site do Ministério da Educação
217
Levantamento de Matrícula Escolar/ Educação Especial – Censo Escolar Ano - 2010
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Educação Especial (Alunos de Escolas Especiais, Classes Especiais e Incluídos)
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral
MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 8 0 2 0 0 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana 0 0 0 0 65 0 1 0 0 0 6 0 0 0
Municipal Rural 0 0 0 0 11 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Estadual e Municipal 0 0 0 0 85 0 3 0 0 0 6 0 0 0
Total: 94
Def. Mental 84
Sind. Asperger 01
Def. Fisica 08
Surdez 00
Baixa Visão 03
Def. Auditiva 03
Def. Multipla 04
Autismo 00
Transt. Desinteg. 01
218
Levantamento de Matrícula Escolar/ Educação Especial – Censo Escolar Ano - 2011
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Educação Especial (Alunos de Escolas Especiais, Classes Especiais e Incluídos)
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral
MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 4 0 4 0 0 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana 0 0 6 0 64 0 5 0 0 0 9 0 0 0
Municipal Rural 0 0 0 0 13 0 0 0 0 0 1 0 0 0 Estadual e Municipal 0 0 6 0 83 0 9 0 0 0 10 0 0 0
Total: 108
Def. Mental 100
Sind. Asperger 02
Def. Fisica 07
Surdez 00
Baixa Visão 04
Def. Auditiva 04
Def. Multipla 05
Autismo 02
Transt. Desinteg 03
219
Levantamento de Matrícula Escolar/ Educação Especial – Censo Escolar Ano - 2012
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Educação Especial (Alunos de Escolas Especiais, Classes Especiais e Incluídos)
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 4 0 5 0 1 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 3 0 2 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana
0 0 4 0 85 0 11 1 0 0 11 0 0 0
Municipal Rural 0 0 0 0 17 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Estadual e Municipal
0 0 4 0 109 0 18 1 1 0 11 0 0 0
Total:
144
Def. Mental: 126
Sind. Asperger:
05
Def. Fisica: 12
Surdez: 03
Baixa Visão: 03
Def. Auditiva: 08
Def. Multipla: 14
Autismo: 03
Transt. Desinteg.: 07
Cegueira: 02
220
Levantamento de Matrícula Escolar/ Educação Especial – Censo Escolar Ano - 2013
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Educação Especial (Alunos de Escolas Especiais, Classes Especiais e Incluídos)
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 5 0 12 0 1 0 2 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana
0 0 5 1 25 62 12 3 0 0 12 0 0 0
Municipal Rural 0 0 0 0 20 0 0 0 0 0 1 0 0 0
Estadual e Municipal
0 0 5 1 52 62 24 3 1 0 15 0 0 0
Total 163
Def. Mental: 140
Sind. Asperger:
04 04
Def. Fisica: 05
Surdez: 02
Baixa Visão: 02
Def. Auditiva: 05
Def. Multipla: 11
Autismo 05
Transt. Desinteg. 04
Cegueira 00
221
Levantamento de Matrícula Escolar/ Educação Especial – Censo Escolar Ano - 2014
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Educação Especial (Alunos de Escolas Especiais, Classes Especiais e Incluídos)
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 9 0 11 1 4 0 2 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 1 1 1 1 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana
0 0 4 0 12 67 8 11 0 0 19 0 0 0
Municipal Rural 0 0 0 0 16 14 0 0 0 0 1 0 0 0
Estadual e Municipal
0 0 4 0 38 82 20 13 4 0 22 0 0 0
Total: 183
222
Levantamento de Matrícula Regular – Censo Escolar Ano - 2010
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Ensino Regular EJA
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral
MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 273 0 2.100 0 1.591 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 456 0 238 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana 0 55 526 0 2.517 0 875 0 0 0 865 0 0 0
Municipal Rural 0 19 377 46 934 0 280 0 0 0 88 0 0 0 Estadual e Municipal 0 74 903 46 4.180 0 3.493 0 1.591 0 953 0 0 0
Total: 11240
223
Levantamento de Matrícula Regular – Censo Escolar Ano - 2011
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Ensino Regular EJA
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral
MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 238 0 1.966 26 1.694 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 413 0 244 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana 0 28 497 34 2.269 0 736 0 0 0 1.001 0 0 0
Municipal Rural 0 32 352 43 974 0 262 0 0 0 81 0 0 0 Estadual e Municipal 0 60 849 77 3.894 0 3.208 26 1.694 0 1.082 0 0 0
Total: 10890
224
Levantamento de Matrícula Regular – Censo Escolar Ano - 2012
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Ensino Regular EJA
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 173 0 1.743 0 1.658 0 0 0 0 0
Estadual Rural 0 0 0 0 390 0 279 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana
0 36 476 35 2.257 73 807 34 0 0 925 0 0 0
Municipal Rural 0 21 301 49 978 0 254 0 0 0 84 0 0 0
Estadual e Municipal
0 57 777 84 3.798 73 3.083 34 1.658 0 1.009 0 0 0
225
Levantamento de Matrícula Regular – Censo Escolar Ano - 2013
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Ensino Regular EJA
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 140 0 1.118 66 1.632 0 397 0 154 0
Estadual Rural 0 0 0 0 372 0 285 0 0 0 0 0 0 0
Municipal Urbana
0 29 451 60 930 1.268 737 95 0 0 806 0 0 0
Municipal Rural 0 19 321 51 963 0 250 0 0 0 124 0 0 0
Estadual e Municipal
0 48 772 111 2.405 1.268 2.390 161 1.632 0 1.327 0 154 0
Total: 10268
226
Levantamento de Matrícula Regular – Censo Escolar Ano - 2014
Unidades da Federação Municípios Dependência Administrativa
Matrícula inicial
Ensino Regular EJA
Educação Infantil Ensino Fundamental Médio
EJA Presencial
Creche Pré- escola Anos Iniciais Anos Finais Fundamental Médio
Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral Parcial Integral MAMANGUAPE
Estadual Urbana 0 0 0 0 138 0 954 239 1.642 0 190 0 159 0
Estadual Rural 0 0 0 0 129 155 32 226 0 0 48 0 0 0
Municipal Urbana
0 26 477 47 673 1.365 278 515 0 0 723 16 0 0
Municipal Rural 0 13 358 62 766 217 127 89 0 0 128 0 0 0
Estadual e Municipal
0 39 835 109 1.706 1.737 1.391 1.069 1.642 0 1.089 16 159 0
Total: 9792