UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · Citam-se os comentários de Giovanni Reale sobre...

121
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Marcelo Pereira Paiva Melo ANÁLISE DO CONCEITO DE JUSTIÇA NO DIÁLOGO ENTRE TRASÍMACO E SÓCRATES NO LIVRO 1 DA REPÚBLICA NATAL 2015

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · Citam-se os comentários de Giovanni Reale sobre...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Marcelo Pereira Paiva Melo

    ANLISE DO CONCEITO DE JUSTIA NO DILOGO ENTRE TRASMACO

    E SCRATES NO LIVRO 1 DA REPBLICA

    NATAL

    2015

  • Marcelo Pereira Paiva Melo

    ANLISE DO CONCEITO DE JUSTIA NO DILOGO ENTRE TRASMACO

    E SCRATES NO LIVRO 1 DA REPBLICA

    Dissertao apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao em Filosofia da

    UFRN, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Mestre em

    Filosofia

    Orientador: Prof. Dr. Edrisi de Arajo

    Fernandes

    NATAL

    2015

  • Marcelo Pereira Paiva Melo

    ANLISE DO CONCEITO DE JUSTIA NO DILOGO ENTRE TRASMACO

    E SCRATES NO LIVRO 1 DA REPBLICA

    Dissertao apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao em Filosofia da

    UFRN, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Mestre em

    Filosofia

    Orientador: Prof. Dr. Edrisi de Arajo

    Fernandes

    Data de defesa: 18 / 12 / 2015

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________________

    Edrisi de Arajo Fernandes UFRN

    ___________________________________________________

    Pablo Moreno Paiva Capistrano IFRN

    ___________________________________________________

    Srgio Eduardo Lima da Silva UFRN

  • AGRADECIMENTOS

    Sou grato aos que, de alguma maneira, contriburam voluntariamente

    para a construo dessa dissertao. Como no fiz muitos amigos durante a

    graduao e o mestrado, creio que ser suficiente agradecer: a Joo Paulo, por

    ter me apoiado firmemente durante o processo; a Roberto Solino, por seu

    contnuo e generoso apoio; a Pablo Capistrano, precursor e guia eventual nos

    caminhos da vida e da filosofia; aos professores Jorge Lima e Srgio Eduardo,

    que se dispuseram a ler e melhorar o texto a seguir.

    Meus respeito, gratido e amor por Pollyana Souza, que me salvou de

    mim mesmo.

    Ao professor e orientador Glenn Erickson, meus agradecimentos pelos

    conselhos e repercusses intelectuais. Sou grato pela inspirao de suas aulas

    e pelos insights provocados por seu discurso.

    Ao professor Edrisi Fernandes, que aceitou dar continuidade minha

    orientao e que contribuiu solidamente para a melhoria deste trabalho.

    Ao professor Markus Figueira, por ter-me apresentado Filosofia Grega

    de uma maneira agradvel e jovial.

    Tatiana Glcia, por tantas caronas e boas aulas.

    Liana, por ser a mulher que .

    Pai, sinto sua falta.

    Ah, Joo Paulo: preciso acreditar em um novo dia, na nossa grande

    gerao perdida!

  • Atentem, os que sondam o conhecimento;

    Que o dio criado em nome das tcnicas e das cincias, das coisas e

    das pessoas, no recair sobre outros que no vocs mesmos e aqueles

    que os circundam, pois o tempo a tudo destri, e mesmo as coisas que

    lhes so mais caras retornaro para onde vieram.

    Que as piores formas de prestgio so aquelas que apenas operam entre

    meia-dzia de outros, ignorados pelos muitos.

    Que a esterilidade do conhecimento dissociado de uma inteno de

    conforto fsico, tico ou material acaba por se restringir ao ganho do po

    e s pequenas indignidades.

    Que quando o homem s po e palavra no h imortalidade pela obra.

    Que a obra, esse muito de poucos, uma das poucas coisas

    importantes em um universo em que nada tem importncia em si, e que

    tudo existe apesar disto.

    Que ainda h esperana para a transformao da atual Particularidade

    em uma verdadeira Universidade.

  • RESUMO

    Esta dissertao tem por objetivo a reflexo acerca dos sentidos de Justia

    encontrados no Livro 1 dA Repblica, particularmente aqueles inseridos entre

    os trechos 336c e 354c. Analisa-se tambm a possibilidade de que o conceito

    de Trasmaco da Justia como convenincia do mais forte uma forma pr-

    platnica de entendimento da Justia que, apropriada por Plato, passa a ser

    vlida quando se considera o mais forte como sendo virtuoso e orientado ao

    Bem, situao apenas encontrada no contexto da Repblica. Desse modo,

    defende-se que Trasmaco no est inteiramente errado quanto ao seu

    conceito de Justia. Tambm se considera a noo de que a Justia, ao longo

    dA Repblica, seja a harmonia entre os elementos da alma e da Cidade-

    Estado.

    Palavras-chave: Plato; Trasmaco; justia; fora; virtude; harmonia;

    Repblica.

  • ABSTRACT

    This thesis intends to ponder the concepts of Justice found in The Republics

    book 1, mostly on those between excerpts 336c and 354c. It also considers the

    possibility that Thrasymachus concept of Justice the convenience of the

    stronger is a pre-Platonic view of Justice that is appropriated by Plato, who

    makes it valid when considering the stronger to be virtuous and oriented to the

    Good: such condition of the stronger can only be found on Platos Republic.

    Therefore, this thesis states that Thrasymachus may not be entirely wrong on

    his concept of Justice. Moreover, this thesis also considers the possibility that

    Justice, throughout The Republic, is harmony among the souls elements and

    the citys.

    Keywords: Plato; Thrasymachus; justice; strength; virtue; harmony; Republic.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................. 07

    1 ANLISE DO LIVRO 1 ................................................................................ 20

    1.1 O IMPACTO DOS CONCEITOS DE JUSTIA DE CFALO, SCRATES E TRASMACO NO ENTENDIMENTO DA JUSTIA NA REPBLICA .......

    33

    2 PORMENORES DO EMBATE ENTRE SCRATES E TRASMACO (336C-354C) ................................................................................................

    52

    3

    3.1

    A JUSTIA APROXIMADA DA FORA E DA CONVENINCIA ................ CONSIDERAES SOBRE A JUSTIA COMO HARMONIA...................................................................................................

    75 105

    CONCLUSO ..............................................................................................

    110

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................ 116

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................. 119

  • 7

    INTRODUO

    Esta dissertao tem por tpico ponderar o contedo filosfico contido

    no dilogo entre Trasmaco e Scrates nA Repblica (336c-354c), e tambm

    analisar os sentidos de Justia presentes no Livro 1, em particular aquele

    apresentado por Trasmaco ao afirmar que a Justia a convenincia do mais

    forte (338c). Mesmo se atendo ao contedo do Livro 1, esta dissertao visa,

    atravs da investigao inicial sobre os sentidos de Justia presentes na fala

    acima mencionada entre Trasmaco e Scrates, considerar a hiptese de que,

    para Plato, a Justia nA Repblica a harmonia entre os elementos da alma

    que, alcanada, ser espelhada pela harmonia entre os cidados da Cidade no

    Logos1, cuja organizao poltica alocar as tarefas aos cidados da Repblica

    de acordo com o que cada um tem de prprio, e tambm de acordo com o

    equilbrio dos elementos da alma.

    Alm do prprio A Repblica analisado nessa dissertao, faz-se

    breve meno aos comentrios de Leo Strauss e de Alan Bloom sobre o

    dilogo objeto da presente anlise. Ambos os autores dissertam sobre as

    interaes entre os personagens daquele dilogo platnico, nunca

    desmerecendo os pontos de contato entre filosofia e literatura nA Repblica,

    de modo que tais autores permitem um estudo plural sobre o dilogo aqui

    tratado. Ressalta-se que os referidos autores no so centrais neste texto, de

    modo que as menes aos mesmos so esparsas.

    Citam-se os comentrios de Giovanni Reale sobre A Repblica,

    presentes em sua Histria da Filosofia Antiga. Tambm se elenca Plato e a

    Retrica de Filsofos e Sofistas, de Marina McCoy e O Efeito Sofstico, de

    Barbara Cassin, visto que aqui se entende que o papel do sofista no contexto

    do Livro 1 to importante e necessrio progresso argumentativa do livro

    quanto o papel apresentado em outros dilogos platnicos que tratam da

    sofstica e de seus praticantes. Os textos Convenincia e Plausibilidade da

    1 Para fins de clareza, afirma-se que Kallipolis e Cidade no Logos sero usados intercambiavelmente, sendo todos referncias Cidade-Estado ideal proposta por Scrates ao longo dA Repblica.

  • 8

    Proposio de que Justica Harmonia nA Repblica de Plato e Perfeio em

    Plato, de Jorge Lima, tambm so referncia para este texto.

    Naquelas situaes em que dois autores com vises conflitantes sobre o

    mesmo tema sejam mencionados, este texto buscar se relacionar com ambas

    as vises de maneira inicialmente analtica, e ento sinttica. Tal procedimento

    se d porque no se pretende aqui favorecer qualquer linha interpretativa sobre

    A Repblica.

    Feitas estas brevssimas consideraes sobre os autores que inspiram

    este texto, alm do objeto de estudo a ser considerado, segue-se com uma

    curta apresentao de cada captulo vindouro.

    No primeiro captulo, Anlise do Livro 1, busca-se apresentar os

    elementos fundamentais da discusso sobre a Justia no livro inicial dA

    Repblica, quais sejam os personagens que tratam da Justia, o que esses

    personagens representam dentro do quadro simblico do dilogo, o que tais

    personagens dizem sobre a Justia e de que maneira os discursos ditos por

    cada personagem se relacionam com os smbolos e afetos que aquele

    personagem evoca.

    Sobre o conceito de Justia no Livro 1, cita-se Bernard Williams:

    Eis o que a Repblica pretende mostrar: No uma questo trivial a que estamos discutindo, diz Scrates, por volta do final do primeiro livro do dilogo: o que estamos falando a respeito de como devemos viver. Ele diz isso para Trasmaco, o outro representante de Plato (e retoricamente menos impressionante) dos inimigos da justia. Trasmaco havia defendido a idia de que quando uma pessoa tem alguma razo para agir com justia, sempre porque esta far algum bem para outrem. (WILLIAMS, 1999, p. 37)

    apresentada uma inteno interpretativa que se baseia na busca e

    anlise de sentidos e implicaes conceituais dentro do Livro 1. Por sentidos,

    entendam-se as afirmaes de ordem geral que cada personagem apresenta

    quando questionado sobre a natureza de um sentido qualquer, ou ainda de

    uma virtude. Por implicaes, entenda-se as derivaes argumentativas

    possveis e plausveis a serem retiradas dos sentidos apresentados no Livro 1:

  • 9

    por exemplo, a sugesto de que todas as poleis2 contemporneas data

    dramtica do dilogo tm conceitos de justia como sendo a convenincia de

    seus governantes, j que Trasmaco silencia quanto a exemplos de Cidades-

    Estado que venham a ter a Justia como outra coisa.

    Ademais, busca-se compreender as relaes que o Livro 1 possui com o

    todo dA Repblica. Depois, considera-se brevemente o papel da fora dentro

    do Livro 1, e se tal papel pode ter implicaes filosficas. A discusso sobre a

    natureza proemial do Livro 1 ao resto dA Repblica brevissimamente

    considerada en passant, visto que no se trata do escopo desta dissertao.

    Menciona-se ademais a noo3, de autoria de Francis Cornford, de que o Livro

    1 representa um momento de passagem entre um mtodo filosfico inspirado

    na conduta socrtica e um mtodo filosfico propriamente platnico.

    Aborda-se, em seguida, o impacto das opinies de Scrates, Cfalo e

    Trasmaco na compreenso do sentido de Justia. Nesse momento, tenta-se

    defender a assertiva de que o dilogo entre Scrates e Trasmaco fortemente

    importante para a compreenso da Justia como harmonia, como uma virtude

    de Estado e pessoal. Tal importncia se d devido caracterstica gerencial e

    administrativa dessa virtude, sob o ponto de vista da polis, que est presente

    no conceito de Justia como convenincia do mais forte (338c),

    complementada pela afirmao de que os mais fortes so os governantes das

    Cidades-Estado (339a).

    Esclarecendo melhor a questo da Justia nA Repblica, cita-se

    Williams:

    Uma defesa adequada da justia, segundo Plato, deve necessariamente mostrar que racional para cada um o desejar ser justo, sejam quais forem as circunstncias de cada um, e a sugesto de Glauco e de Admanto no passa nesse teste: quando se algum poderoso, inteligente e suficientemente bem colocado, no se tem, com razo, nenhum interesse na justia. O que Scrates tem de mostrar que a justia louvada no simplesmente por seus efeitos, mas por si mesma. (WILLIAMS, 1999, p. 38)

    2 Ao longo deste texto, os termos polis e Cidade-Estado so utilizados intercambiavelmente. 3 Tal noo encontra-se em The Republic of Plato. Translated with Introduction and Notes by F. M. Cornford, Oxford University Press, 1969.

  • 10

    Tenta-se tambm elencar os pontos de divergncia e convergncia entre

    os discursos de Scrates e Trasmaco, sugerindo que ambos concordam mais

    do que a rivalidade entre sofistas e filsofos pode sugerir, primeira vista.

    Tem-se tambm por objetivo discutir sinteticamente sobre o entendimento,

    sustentado por Trasmaco, da Justia como um bem alheio, e busca-se

    averiguar se a opinio prevalente ao longo do Livro 1 dA Repblica vem a

    entender a Justia como um bem prprio, como um bem alheio ou ainda como

    ambas as coisas.

    No segundo captulo, investiga-se os pormenores do contedo filosfico

    contido na seo que compreende o embate entre Trasmaco e Scrates

    (336c-354c); objetiva-se indicar a distino entre o contedo filosfico e o

    literrio na extenso do embate mencionado, alm de comentar os elementos

    filosficos inseridos no trecho referente ao embate.

    No terceiro captulo, analisa-se a Justia como fora e convenincia.

    Menciona-se o contraste entre a natureza violenta e coercitiva da retrica e a

    natureza dialgica da filosofia. Trata-se do elemento descritivo contido na fala

    de Trasmaco, quando afirma que a Justia a convenincia do mais forte

    (338c). Se afirma Trasmaco como um representante da Cidade-Estado, ao

    passo que Scrates simboliza uma nova proposta tico-poltica, orientada ao

    Bem.

    Alm disso, postula-se que a Justia pode ser entendida como fora,

    mas apenas dentro do contexto da Repblica; necessria a fora interior,

    disciplina (enkrateia) para orientar-se ao Bem, assim como os governantes da

    Kallipolis precisam de fora para orientar a Cidade-Estado segundo a harmonia

    da alma. Afirma-se, ademais, que o problema central acerca do entendimento

    da Justia como fora a natureza do poderoso, do forte. Se o forte for

    virtuoso, as demonstraes de sua fora sero de acordo com a harmonia e

    com o Bem. Se no, haver a manifestao tradicional da fora como

    instrumento de coero.

    Sobre o acima afirmado, da harmonia na Kallipolis, cita-se Arajo:

  • 11

    Para se alcanar essa integrao recproca dos cidados, Plato concebe o ideal de eudaimonia, que se coloca para a tica antiga como a finalidade, a motivao, a satisfao pela conformidade promessa da ao moral e da boa vida, no corao da discusso aparncia/realidade. Estritamente unido ao problema da felicidade est o da virtude, instrumento de conjugao entre eudaimonia e moralidade. (ARAJO, 2009, p. 47)

    A Justia, quando realizada atravs da eudaimonia e da harmonia,

    tambm prxima da convenincia, visto que a Justeza deve ser a

    convenincia daquele que a aplica; quando aquele que exerce a Justia no

    age segundo sua convenincia, sua ao injusta. Novamente, o problema

    reside na natureza do agente, que se for vil e estiver agindo de maneira m,

    representar uma convenincia injusta; a ao orientada ao Bem e praticada

    por um agente de boas condutas ser justa (353e).

    Uma diviso do terceiro captulo trata da Justia como harmonia, no qual

    sustentada a hiptese de que o dilogo entre Scrates e Trasmaco contido

    no livro 1 uma introduo verdadeira esfera de discusso da Justia no

    Livro 1 dA Repblica, que a esfera pblica. A Justia , portanto, uma

    manifestao de fora interior (enkrateia) que requerida do homem para a

    consolidao da harmonia entre os trs elementos da alma.

    Lembra-se aqui que a fora mencionada por Trasmaco, mesmo que

    sem quaisquer conotaes sobre a harmonia, pode ser entendida como um

    elemento constitutivo da Justia como harmonia, desde que tal fora seja a

    interior (enkrateia). Cita-se Arajo:

    Outro aspecto do confronto entre Plato e Trasmaco deve ser considerado. A bem da verdade no se pode dizer que a tese desse ltimo foi refutada por completo, mas que ela foi subsumida pela tese de Plato. Justo o que convm ao mais forte pode ser interpretado como caso particular de conceito de justia platnica, na medida em que a unidade interna do homem justo torna-o um forte. Ainda mais, na construo do estado ideal, Plato partiu da aceitao por parte de Trasmaco de que o forte o era enquanto admitisse a unidade interna garantida por uma justia. (ARAJO, 2009, p. 114)

  • 12

    Apresentados os temas principais contidos nos captulos deste texto,

    dedica-se o espao restante desta introduo para a problematizao do

    sentido de Justia; espera-se que este espao para o questionamento reflexivo

    prepare o leitor para as discusses a serem apresentadas a seguir, a partir do

    captulo 1.

    Sobre a Justia como harmonia da Cidade no Logos, cita-se Roslyn

    Weiss:

    A noo de que a justia desejvel em si introduzida por Scrates no Livro 1 e desenvolvida no Livro 4. Ele argumenta que a justia o que traz harmonia alma (ou cidade); que aquilo sem o qual a alma (ou cidade) no pode funcionar bem.4 [Traduo do Autor] (WEISS, 2010, p. 113)

    A Justia como convenincia do mais forte (338c), entendida logo em seguida

    como a Justia segundo o Estado e os governantes, o ponto central da

    discusso filosfica contida no Livro 1 do dilogo. A especulao acerca de

    uma soluo tica para um problema poltico relevante; Plato sugere, ao

    longo dA Repblica, que uma soluo poltica para a recorrente dificuldade do

    bem viver coletivo no suficiente. Esta limitao causada pela prpria

    natureza da poltica no modelo tradicional de Cidade-Estado, representado no

    contexto histrico da obra pela fragilidade da democracia restaurada aps o

    perodo dos Trinta.

    A falibilidade do modelo poltico tradicional ateniense a dificuldade

    histrica a ser superada pela proposta terica dA Repblica. Se a essncia da

    poltica falha e encontra-se desgastada, no se pode depender daquela para

    solucionar os problemas sociais e internos de uma Cidade-Estado, mesmo que

    atravs da proposio da Cidade no Logos, proposta que segue ao longo dos

    dez livros do dilogo aqui analisado. A prpria noo de uma Kallipolis no

    pode partilhar dos erros fundamentais do modelo que se est tentando corrigir.

    4 The notion that justice is desirable in itself is one that Socrates introduces in Book 1 and develops in Book 4. He argues that justice is what brings harmony to a soul (or to a city); it is that without which the soul (or city) could not work well.

  • 13

    Assim, cabe tica guiar a estruturao do modelo de cidade que

    funcione como resposta fragilidade, ao erro da polis. O apelo tica no de

    sobremaneira estranho ao corpo filosfico platnico, visto que este tem como

    elemento norteador e originrio a Ideia de Bem, tambm guia de toda a tica

    platnica. Ento, a soluo para os erros da Cidade-Estado encontra-se na

    correta execuo do trato poltico e na boa gesto dos assuntos da cidade.

    Para Plato, a virtude alcanada atravs do exerccio e da busca.

    Assim, a Kallipolis no pode se manifestar no mundo sem um extenso preparo

    por parte dos governantes e, atravs destes e em seguida, dos governados. A

    Repblica no apresenta uma proposta poltica na qual a Cidade-Estado se

    orientar ao Bem de maneira espontnea: ao contrrio, a manuteno da

    estrutura da Kallipolis depende de uma rgida estrutura social que requer um

    preparo de ordem majoritariamente paidutica.

    A pedagogia e a instruo formal so de fundamental importncia para a

    constituio da Repblica, pois a formao do governante orientado ao Bem e

    do governado, este que necessita ser capaz de cumprir as determinaes

    polticas da Kallipolis, depende de um trabalho de instruo intelectual e fsica

    que requer aderncia rgida ao modelo educacional e tambm colaborao por

    parte daqueles submetidos s prticas pedaggicas que aliceram a Repblica.

    V-se a Paidia como uma forma de acesso tica em uma proposta para a

    resoluo de um problema poltico. Apesar dessa pluralidade, o elemento tico

    continua sendo central nA Repblica, visto que norteia a prtica paidutica e

    que o problema poltico da Cidade-Estado, se resolvido, culmina com a

    manifestao do Bem na Kallipolis, o que uma realizao tica.

  • 14

    Acerca do intrnseco atributo dos governantes, sua preparao para

    governar a Cidade no Logos, cita-se Williams:

    O problema de como a justia pode ser preservada no mundo foi solucionado pela volta dos guardies para governar, contra a sua vontade, na caverna. A questo acerca de porque eles devem voltar considerada apenas na Repblica. Certamente Plato acha que melhor que o justo e o sbio governem, ainda que contra a sua vontade, ao invs daqueles que realmente desejam o poder. Mas isso deve significar, por certo, o melhor para o mundo, e Plato ter que reconhecer a realidade do mundo material tendo em vista que o destino de Scrates e outras injustias, e os horrores descritos na degenerao da cidade, so realmente males os quais melhor prevenir. (WILLIAMS, 1999, p. 54)

    O impedimento do uso de uma soluo poltica para a orientao da

    Cidade-Estado ao Bem o fato de que a poltica tradicional no se encontra

    orientada ao gnero h pouco mencionado. Plato deixa implcita essa

    divergncia entre a poltica tradicional e aquela a ser praticada na Kallipolis

    quando, em sua prescrio terica, opta por comear novamente: a estrutura

    poltica e social da Kallipolis requer necessariamente um rompimento, ainda

    que gradual, com os valores da polis. Os maiores problemas de uma

    renovao ampla de um modelo scio-poltico de Cidade-Estado esto situados

    naquilo que concerne a implementao das novas diretrizes da educao dos

    jovens. Um perodo de transio entre os hbitos da polis e aqueles da cidade

    proposta por Plato requereriam pacincia e constante reforo social por parte

    de um regime de transio.

  • 15

    Sobre a educao nA Repblica, cita-se Evilzio Teixeira:

    A idia platnica de uma educao orgnica para um Estado, funcionando como um organismo, vai determinar a definio de justia que dada no Livro IV. O conceito de justia em Plato est diretamente associado sua tentativa de busca de maior organicidade educacional, que possibilite um desenvolvimento mais harmonioso do Estado. A justia consiste, portanto, no seguinte: Que cada um deve ocupar-se de uma funo na cidade, aquela para qual a sua natureza mais adequada. Alm disso, executar a tarefa prpria, e no se meter nas dos outros. (TEIXEIRA, 2006, p. 41)

    razovel pensar que a mudana de um regime scio-poltico como a

    mencionada afastaria muitos dos governados acostumados antiga forma de

    governo. Todos os opositores s novas premissas polticas deveriam ser

    afastados do ambiente da Cidade-Estado; dissidncias violentas deveriam ser

    aplacadas. Esta breve especulao refora o pensamento de que a principal

    falha da especulao platnica nA Repblica, pressupondo que aquela pode

    ser algo alm de um exerccio retrico, est na improbabilidade da

    implementao da cidade proposta por Plato. Por isso, a Kallipolis tambm

    chamada de Cidade no Logos.

    Outra dificuldade surge quando Plato supe que todos os governados

    da Kallipolis podero ser integrados, dado aquilo que tm de prprio e com a

    ajuda da educao vinda do Estado, nos grupos preconizados como

    integrantes da Cidade no Logos. O que fazer com aqueles que, por qualquer

    motivo, no tiverem condies de se tornar reis-filsofos, produtores ou

    auxiliares?

    Um outro problema da prescrio platnica para a Cidade no Logos,

    problema este que ser analisado neste texto, a insustentabilidade do

    conceito de Justia como convenincia do Estado (339a) fora do contexto da

    Repblica. O fato de Trasmaco figurar no Livro 1, onde a discusso sobre a

    Justia ainda prematura, um indicador de que o conceito em 339a errado

    ou insuficiente. Todos os personagens do Livro 1 que apresentam opinies

    sobre a Justia Cfalo, Polemarco e Trasmaco acabam por errar em suas

    tentativas de resposta Scrates, que conduz a discusso ao afastar o debate

  • 16

    de opinies insuficientes e tentar aproxim-lo de opinies suficientes e,

    portanto, corretas.

    A maior gravidade do conceito de Trasmaco, h pouco mencionado,

    est no fato de que o mesmo no permite o conhecimento. Se a Justia varia

    conforme a convenincia dos governantes, ento de se supor que haja

    diversas variaes de Justia, sempre de acordo com uma dada circunstncia.

    O problema no se encontra nas diferentes aplicaes da Justia, pois o

    prprio carter generalista do conceito platnico d ensejo a diversas

    aplicaes de uma mesma noo; o erro ocorre quando um conceito de

    amplitude ambgua, como no caso daquela de Trasmaco em 339a, acaba por

    permitir interpretaes conflitantes e, assim, no permitir a elaborao de uma

    definio nica.

    Se, para Plato, no se pode conhecer sem se ter clareza intelectual

    sobre um conceito, ento Trasmaco equivoca-se quanto falta de lucidez

    sobre seu sentido de Justia. Ademais, a interpretao de Trasmaco sobre a

    Justia descritivista, isto : tal interpretao apresenta a Justia como

    observada no mundo, na physis. Por sua vez, a natureza, para Plato, no

    pode ser a nica fonte de conhecimento incontingente, dada a sua contnua

    mudana, e isso tambm se aplica a um conceito oriundo da observao

    natural.

    Plato faz, ao longo dA Repblica, um movimento gradual de

    afastamento da historicidade que se inicia com Trasmaco como voz com a

    Justia como tem sido, indo at o extremo oposto, com a Justia como

    realizao no Logos, de aplicao apenas conceitual. Assim, A Repblica

    configura-se como proposta questo da aplicao e do entendimento da

    Justia quando apresenta o problema atravs de Trasmaco e sua Justia

    histrica e prope uma soluo ao fazer uso de Scrates e de sua Justia

    atemporal, no Logos.

    Tal Justia atemporal, entretanto, baseada e dependente da fora,

    aludida parcialmente por Trasmaco em 338c. Sobre o tema, cita-se Arajo:

  • 17

    O forte em Plato no se constitui a partir do agir, mas a partir de certa condio interna. Com isso Plato, ao transferir o acento do forte para sua parte interna e no para a ao, permite compreender o homem como capaz de exercer o poder de imitao do divino e por isso capaz de construir um ordenamento externo, a partir do ordenamento interno e, segundo a razo, orienta-se dialeticamente ao Bem. (ARAJO, 2009, p. 115-116)

    Como mencionado anteriormente, a fora aludida por Plato interna,

    da alma (enkrateia). Na ausncia dessa enkrateia, s resta um simulacro de

    Justia, falho e histrico. O fato de a Justia platnica ser irrealizvel no

    contexto histrico permite a interpretao de que Plato, com esse

    distanciamento entre ser e dever ser, afirma que a Justia enquanto Ideia e

    perfeio inatingvel aos homens, que so parte irrevogvel da physis e de

    sua constante mudana, que impossibilita a realizao plena das formas5: isto

    est em consonncia com o distanciamento de carter prtico e tambm de

    constituio entre os elementos constituintes da physis e os constituintes das

    formas.

    A obra platnica sugere que a maneira que permite a diminuio da

    distncia entre aquilo que histrico e as Ideias to somente a contemplao

    das formas. Atravs da contemplao, que requer preparo intelectual prvio e

    condutas especficas6, o homem pode aproximar-se das coisas como so,

    afastando-se provisoriamente da esfera natural que o cerca. No que concerne

    a Repblica, o preparo prvio para a contemplao das formas d-se no

    treinamento dos guardies7, tambm chamados de reis-filsofos, que so

    incentivados desde a infncia a orientarem-se s formas e, por isso, so

    capazes de guiar a Cidade no Logos em direo ao Bem, que a forma por

    excelncia.

    Uma dificuldade trazida pelo acima exposto o fato de que os guardies

    assim como todos os outros componentes da Kallipolis durante o processo de

    5 Nessa ocorrncia e em diversas outras, a palavra forma um sinnimo de ideia, conceitos a serem interpretados em sua acepo platnica, isto , como gnero imutvel, atemporal e perfeito, do qual apenas possvel aproximar-se atravs do intelecto, e que tem por representao na physis uma sombra,

    um simulacro de sua realidade. 6 O Scrates platnico oferece bons indcios de tais condutas: em primeiro lugar, desejo pelo conhecimento e pela verdade, assim como uma atitude inquisitiva e questionadora. Tambm a prtica da dialtica, em detrimento da erstica. 7 Tal treinamento passa pelo aprendizado do clculo e da aritmtica (525b), da geometria (527a-b), da astronomia (529b), da harmonia (530d-531a) e da dialtica (531d-532b; 533a-b).

  • 18

    transio a partir da polis precisam ser treinados por indivduos que no

    detm todas as caractersticas que se almeja que seus alunos possuam.

    Assim, existe uma situao transitria em que homens inseridos no processo

    histrico passam a orientar as novas geraes, paulatinamente,

    contemplao das formas.

    Do modo acima descrito, ocorre a gradual transio entre pessoas com

    pouca insero no perfil desejvel ao indivduo que parte da Kallipolis at

    indivduos plenamente aptos a figurarem como parte da Cidade no Logos.

    Apenas a partir de um momento avanado na transmisso dos costumes e

    valores necessrios manuteno da Kallipolis haver a situao em que

    pessoas plenamente inseridas na orientao s formas estaro ensinando

    jovens que, por sua vez, reproduziro aquilo que adequado para a Repblica.

    preciso esclarecer que a orientao s formas, no contexto dA

    Repblica, pode ser auxiliada por comportamentos no intelectuais8 que,

    inspirados pela educao dos guardies, corroboraro o esforo tico-poltico

    para a manuteno de um regime orientado ao Bem. Sobre a referida

    abordagem e tambm o carter mltiplo da educao para o Bem, cita-se

    Richard Kraut:

    Muito embora Plato, sem dvida, tenha aceitado essas doutrinas quando esteve sob a fala de Scrates e quando escreveu seus primeiros dilogos, acabou por modific-las de maneiras importantes. Por exemplo, um de seus pontos de partida mais significativos a sua crena em que Scrates teria ignorado um aspecto no racional da motivao humana; tal como ele argumenta na Repblica, um treinamento na virtude envolve tanto um apelo razo como uma educao das emoes e dos apetites, no sendo questo puramente intelectual, como Scrates havia pensado. (KRAUT, 2013, p. 26-27)

    Desse modo, mesmo que as classes dos produtores ou dos auxiliares

    no participem de um processo rotineiro de contemplao intelectual das

    8 Por no intelectuais, entenda-se a gama de aes e rotinas acessrias execuo e manuteno da intelectualidade, esta exercida sob a orientao pedaggica prescrita pelos guardies. O jovem da Cidade no Logos, para poder receber a educao que o orientar ao Bem, dever estar sadio e bem alimentado, condies estas mantidas atravs de esforos no intelectuais do prprio jovem e dos agricultores e mdicos, por exemplo. Para ter uma educao bem-sucedida, o jovem tambm ter que ser disciplinado, disciplina esta que no uma condio ou rotina em si intelectual.

  • 19

    Ideias, tais classes estaro condicionadas a comportamentos e hbitos

    necessrios e desejveis manuteno da Kallipolis.

    Expostas as preocupaes acima descritas, parte-se para uma anlise

    dos elementos auxiliares discusso entre Trasmaco e Scrates no Livro 1.

    Tais elementos, quais sejam o cenrio, a ambientao, as possveis intenes

    filosficas dos personagens e o papel que cada personagem cumpre no

    contexto do Livro 1, so importantes para que, posteriormente, trate-se do

    trecho referente ao dilogo entre Scrates e Trasmaco, ponto central da

    anlise deste texto.

  • 20

    1. ANLISE DO LIVRO 1

    A Repblica, de Plato, um dos trabalhos mais analisados de toda a

    filosofia. Ainda assim, sua amplitude interpretativa inibiu afirmaes

    incontestveis sobre seus conceitos e acerca de seu progressivo

    desenvolvimento argumentativo. Tal a sina dos grandes livros, pois no

    aceitam amarras, no se enquadram em pequenas formas. Os grandes

    trabalhos renovam-se, sob o olhar do intrprete, trazendo pensamentos

    reconhecidos por todos e mensagens individuais debatidas por muitos.

    Neste texto ser analisado o Livro 1 dA Repblica em busca de dois

    elementos filosficos, que so os conceitos sobre a Justia contidos na fala de

    Trasmaco no Livro 1, e as derivaes intelectuais provveis de tais sentidos.

    Sobre tais escolhas, cabem explicaes.

    Os sentidos ou interpretaes, quase sempre provisrios e presentes em

    toda a obra platnica, costumam variar em grau de importncia quanto ao

    desenvolvimento argumentativo do texto em que esto inseridos. Plato d

    importncia at mesmo aos conceitos acessrios de seus dilogos, tornando-

    os parte de um processo indutivo maior que objetiva esclarecer o conceito

    primrio do dilogo, de modo que aqui se identifica esse processo indutivo

    como a dialtica. Para os fins desse texto, d-se ateno aos conceitos do

    Livro 1 que participam diretamente do percurso argumentativo sobre o tema dA

    Repblica, que a busca pelo conceito de Justia.

    Segundo esta opo de anlise, exemplifica-se o que aqui se entende

    por conceito acessrio utilizando-se o conceito de amigo Amigo o que

    parece e , na realidade, honesto (335a)9, que aqui considerado secundrio

    presente nfase analtica. De forma alguma se sugere que o pequeno trecho

    (335a) dispensvel ao entendimento das sutilezas implicadas pelo texto

    platnico, j que outros conceitos de Justia no Livro 110, que so a Justia

    como devolver o que se tomou e dizer a verdade e a Justia como

    convenincia do mais forte e, em seguida, do Estado, possuem mais

    9. PLATO, 2012. p. 16 10 331d e 338c-e

  • 21

    importncia para a compreenso do conceito de Justia, e a eles que esse

    texto se atm, em maior ou menor grau conforme o conceito.

    Como outro exemplo de um conceito secundrio, elenca-se o primeiro

    conceito de mais forte (338d)11, em que Trasmaco esclarece a Scrates que a

    fora em questo de ordem poltica, e no a fora fsica possuda pelos

    homens. Isso no quer dizer, entretanto, que o Estado no seja capaz do uso

    da fora fsica para submeter a populao.

    Espera-se fazer compreender que h uma gradao de importncia dos

    conceitos apresentados durante o Livro 1, sendo o da Justia o mais

    importante, assim como tema do dilogo e objeto desse trabalho; um conceito

    primrio, como a Justia, seguido por conceitos acessrios compreenso

    do conceito maior, como a explicao sobre o mais forte (339a) Ora, em cada

    Estado, no o governo que detm a fora?. Serve tambm de exemplo de

    conceito secundrio aquele do piloto (341d)12, que afirma chefe dos

    marinheiros.

    A inteno classificatria acima tem por objetivo fundamentar a

    orientao ao estudo do conceito de Justia, dentro do Livro 1, em detrimento

    de outros tambm presentes no mesmo livro. Uma anlise ampla do Livro 1 dA

    Repblica est fora do escopo deste trabalho.

    No se quer implicar, de sobremaneira, que o entendimento de qualquer

    dilogo platnico pode ser feito a partir de interpretaes que venham a

    menosprezar a importncia de quaisquer sentidos nos dilogos platnicos,

    ainda que secundrios ao tema principal do texto estudado.

    Todos os sentidos de Justia no Livro 1 compem, em fraes distintas,

    significados que so vinculados uns aos outros atravs do fio condutor por

    excelncia apresentado por Plato: as sucessivas perguntas do personagem

    Scrates. A presena desse fio condutor a razo porque mesmo conceitos

    acessrios ou secundrios em Plato no devem ser objeto de pouco caso.

    11 (PLATO, 2012. p. 24) 12 (PLATO, 2012. p. 16)

  • 22

    Sobre a Justia, segundo Plato, cita-se Jayme Paviani:

    Desse modo, a Ideia de justia no pode ser compreendida sem a Ideia de bem e sem sua conexo com a formao dos governantes-filsofos. Nesse caso, a idia de bem esclarecida na medida em que ilumina a justia, a constituio da polis ideal e a necessidade de educao dos governantes. (PAVIANI, 2013, p. 58)

    Afirma-se que a interpretao do texto platnico demasiadamente

    dependente do contexto no qual as frases e conceitos se encontram, pois a

    expresso estilstica por excelncia do Scrates platnico a ironia, uma forma

    de afirmao que no tem a sua compreenso plena executada a partir de uma

    interpretao isolada da frase analisada.

    Aprofundando o exposto previamente, Scrates examina o conceito de

    Justia como sendo a restituio do que foi tomado (331b)13. A assertiva que

    surge aps a anlise desse sentido, partindo do pressuposto de que

    verdadeiro e possvel, a de que justo restituir aquilo que foi tomado. O

    oposto, a injustia causada pela restituio, implicada ao se apresentar o

    exemplo do amigo louco (331c), sugerindo-se que a Justia promove o bem

    daquele que dela alvo.

    Scrates, ao apresentar o exemplo do amigo louco (331c), mostra que a

    implicao inicial feita a partir da premissa principal, do conceito de Justia

    apresentado, falha pois, retirado de contexto, o conceito de Justia como

    retribuio talvez pudesse ter como implicao a noo de que justo restituir

    o que tomado at mesmo a um louco, o que prontamente refutado por

    Scrates.

    Novamente, firma-se que qualquer sentido de Justia no Livro 1 precisa

    ser analisado a partir e dentro das implicaes que nele orbitam. Pode haver a

    necessidade de que qualquer mensagem precisa ser observada

    contextualmente, mas melhor expor e refletir sobre esse elemento da

    interpretao textual por questes de clareza quanto s orientaes intelectuais

    dessa dissertao; ademais, o texto platnico sutil, pois porta diversos nveis

    13 Como este exemplo: se algum recebesse armas de um amigo em perfeito juzo e, este, tomado de loucura, lhas reclamasse, toda a gente diria que no se lhe deviam entregar, e que no seria justo restituir-lhas, nem to-pouco consentir em dizer toda a verdade a um homem nesse estado. (PLATO, 2012. p. 09)

  • 23

    de compreenso acerca de uma mesma passagem, manifestos de acordo com

    o preparo do leitor e sua intimidade com a obra de Plato.

    Sobre as nuances da interpretao conceitual em Plato, cita-se Paviani:

    preciso entender o sentido das tentativas de Plato de definir o bem, a virtude e o fato de elas acabarem em fracasso nos seus dilogos. Isso no defeito, ao contrrio, parte integrante do mtodo, do processo de aprendizagem (PAVIANI, 2013, p. 71).

    Deste modo, a anlise do Livro 1 busca de conceitos e implicaes

    relevantes, entendidos como elementos de orientao para a interpretao

    contida nessa dissertao; intenta-se vislumbrar como o Livro 1 dA Repblica

    se situa dentro do contexto dos outros nove livros componentes do dilogo e

    qual o impacto da interao entre Scrates e Trasmaco para a compreenso

    do conceito de Justia em seus dois mbitos: aquele contido no Livro 1 e o

    maior, referente ao todo do dilogo aqui analisado.

    tambm importante ressaltar que aqui no se tratar do interessante

    debate acerca da possibilidade do Livro 1 ter sido escrito ou no imediatamente

    antes dos outros livros dA Repblica, e tambm da possvel natureza proemial

    do primeiro livro, pois tais temas so por demais distantes da anlise especfica

    que se pretende aqui apresentar. O Livro 1 serve como introduo ao tema

    principal da investigao filosfica nA Repblica, alm de apresentar os

    personagens que elencaro a narrativa contida no texto.

    Sobre a possvel natureza proemial do Livro 1, reforada pela mudana

    no discurso de Scrates ao longo dA Repblica, se menciona Christopher

    Rowe:

    O que alimenta particularmente a tentao de separar o Livro 1, entretanto, o senso de que os Livros 210 anunciam a chegada de um novo Plato, escrevendo e pensando de uma nova maneira. O Livro 1, a partir dessa perspectiva, representa um tipo de apario de despedida do velho Scrates antes que ele d passagem para as novas, ambiciosas construes que so a marca do Plato maduro (ou intermedirio).14 [Traduo do Autor] (ROWE, 2007, p. 42)

    14 What particularly feeds the temptation to separate Book 1, however, is the sense that Books 210 announce the arrival of a new Plato, writing and thinking in a new way. Book 1, from this perspective, represents a kind of farewell appearance for the old Socrates before he gives way to the new, ambitious constructions that are the mark of the mature (or middle) Plato.

  • 24

    O que est alm do carter introdutrio do Livro 1? H nuances que

    Plato apresenta e que sero tnicas da investigao filosfica a seguir ao

    longo dos outros nove livros dA Repblica. Os primeiros trechos do Livro 1

    apresentam ao leitor um momento de coero: Scrates e Glucon se veem

    obrigados a seguirem com Polemarco e seus acompanhantes casa do ltimo

    (327c)15. Nisto, Polemarco apresentado se valendo de fora fsica para

    persuadir Scrates a acompanh-lo.

    Entende-se que a meno fora fsica se d de modo a marcar um

    momento anti-filosfico, no qual o convencimento se d atravs da intimidao

    e da fora. perfeitamente cabvel pensar a filosofia platnica como um

    exerccio dialgico, sendo os dilogos do autor a maior evidncia de tal fato. A

    ausncia de discurso, razo (logos), no caso de Polemarco substitudo por

    fora (kratos), impossibilita qualquer elaborao intelectual e/ou a investigao

    racional, essencialmente constituintes da prtica filosfica. Scrates no pode

    se valer de sua argumentao para no acompanhar Polemarco e amigos.

    A substituio do discurso/razo pela fora elimina o carter intelectivo

    da abordagem e cria um impasse, caracterizando uma completa anttese de

    princpios basilares da filosofia platnica, como o uso da razo como logos, a

    investigao de um problema/questo, a anlise intelectiva e a substituio dos

    argumentos atravs do dilogo ou da introspeco.

    Scrates (327c) contrape o momento no-filosfico apresentado por

    Polemarco ao sugerir que poderia tentar convencer o grupo que o interpelava a

    deix-lo partir. Polemarco, por sua vez, responde: Porventura sereis capazes

    de nos persuadir, se nos recusarmos a ouvir-vos?". Percebe-se que Plato

    novamente nos apresenta um novo requisito filosofia, que preciso haver

    abertura emocional entre os debatedores para que aceitem mudar de opinio.

    O exerccio filosfico platnico pressupe a busca por um conceito

    universal e verdadeiro, uma Ideia, sobre um tema. Qualquer sentido correto e

    suficiente, se encontrado, seria auto evidente em sua desejabilidade, pois

    partiria de um exerccio dialtico entre uma ou mais partes e seria uma

    resposta cabvel a todas as circunstncias que tratassem do conceito

    15 Pois ento replicou ou haveis de ser mais fortes que estes amigos, ou tendes de permanecer aqui. (PLATO, 2012. p. 02)

  • 25

    alcanado, se tornando algo com certo carter de realidade, pois o alcance de

    uma afirmao suficiente e correta sobre um tema a aproximaria das formas

    platnicas sobre as quais tal afirmao trataria.

    A dialtica, no contexto do pargrafo anterior, o nico caminho para a

    aproximao Ideia, como afirmado por Plato (533d):

    O mtodo da dialtica o nico que procede, por meio da destruio das hipteses, a caminho do autntico princpio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espcie de lodo brbaro em que est atolada e eleva-os s alturas, utilizando como auxiliares para ajudar a conduzi-los as artes que analisamos. (PLATO, 2012, p. 347)

    Na impossibilidade de uma conduta razovel por parte de um dos interlocutores

    envolvidos em um dilogo, no se pode pensar que haja condies para uma

    mudana conceitual bem-sucedida. A atitude resistente do interlocutor que no

    aceita ser convencido cria uma situao de distncia da verdade.

    Esse afastamento se configura pela impossibilidade de que uma pessoa

    se distancie de sua condio de ignorncia para abraar um exerccio de

    reformulao conceitual que, se corretamente conduzido, o coloque mais

    prximo da verdade sobre um conceito, representado por sua Ideia. Essa

    insistncia na dificuldade, dvida (aporia), mesmo no se tratando de uma

    condio possvel para a filosofia, ainda assim possui um elemento

    fundamental que est ausente no convencimento atravs da fora, que o uso

    do discurso.

    A ida dos personagens casa de Polemarco e o incio do dilogo deste

    com Scrates marca, ento, o incio do momento de uma dialogia filosfica e

    oral na narrativa. Nele, todos os interlocutores ativos mostram-se desejosos por

    debater sobre as questes apresentadas, abandonando a irascibilidade que

    Polemarco demonstra ao ser confrontado com a possibilidade de no ter

    Scrates como hspede (327c)16.

    Imagina-se que Plato sugere que o exerccio do pensamento melhor

    praticado quando livre da tirania do amo delirante e selvagem (329c)17, dos

    16 Ento compenetrai-vos de que no vos ouviremos. (PLATO, 2012. p. 02) 17 Sinto-me felicssimo por lhe ter escapado, como quem fugiu a um amo delirante e selvagem. (PLATO, 2012. p. 05)

  • 26

    apetites do corpo. Os prprios dilogos platnicos no excluem os jovens do

    exerccio filosfico, j que Meno, Polemarco, Lisis e Alcibades so alguns dos

    exemplos da presena da juventude na lista de personagens dA Repblica,

    alm de alguns desses jovens figurarem como personagens principais de

    outros dilogos platnicos.

    Cita-se Paviani no que trata da relao entre pensamento e corpo para

    Plato:

    O problema das relaes entre os sentidos e o conhecimento, ou entre a sensao/percepo e a crena verdadeira justificada, apresentado de modo mais direto no Teeteto. Plato faz distines entre aisthesis e doxa. A aisthesis pode ser traduzida como juzo perceptivo. Mas, no Teeteto, a cincia ou o conhecimento no sensao ou percepo nem opinio. Plato tambm distingue o modo de perceber corpreo, isto , com os sentidos do ouvido e da viso e o modo de ver por ela mesma, sem a ajuda dos sentidos (PAVIANI, 2013, p. 129).

    Ento, deve-se pensar sobre qual a caracterstica inerente

    maturidade que permite uma melhor aproximao boa prtica filosfica. O

    texto (329c) j deixa clara a principal razo, que o afastamento de impulsos,

    predisposies e necessidades que possam distanciar o homem de duas

    condutas fundamentais do exerccio filosfico: a prtica intelectual da dialtica

    e o ceticismo argumentativo orientado busca da verdade.

    Por ceticismo argumentativo entenda-se a conduta inquisitiva,

    representada nA Repblica por Scrates, que tem por princpio o entendimento

    do mundo a partir do dilogo, atravs de uma atitude de questionamento

    acerca da veracidade de afirmaes. Tal atitude ctica pois, quando

    defrontada com algo digno de ser investigado, no confirma o que foi dito nem

    refuta aquilo que foi afirmado sem que haja antes uma investigao racional.

    Aqui se vislumbra a hiptese que a desvinculao das funes pblicas

    advinda da maturidade pode trazer o interesse pelo debate sobre especulaes

    conceituais, no necessariamente de aplicao imediata. O homem maduro

    pode ter mais maturidade e razoabilidade quanto ao que pensa; a juventude,

    ao contrrio, traz consigo os desejos do corpo, a energia juvenil e as

    obrigaes polticas e sociais: do cidado para com a polis, para com sua

  • 27

    famlia e esposa. Deste jovem cidado esperado que tenha um emprego, que

    v guerra e assembleia e que seja pai e marido.

    Tambm especula-se que a maturidade traz ao cidado o desencargo

    de muitas obrigaes para com a Cidade-Estado e para com a famlia, j que o

    homem maduro passa do papel de cuidador para o de cuidado. No tendo que

    ocupar seus dias com atribulaes da vida cotidiana e do trabalho, pode se

    dedicar melhor busca das grandes respostas, em grupo ou individualmente.

    A prpria idade do homem uma questo importante para Plato, nA

    Repblica, no tocante educao a ser dispensada pelo governo. Cita-se

    Thomas Szlezk:

    Na Repblica, o preciso programa para a formao da elite filosfica dos governantes pressupe que o contedo da educao no esteja livremente disposio de todos. Por exemplo, a prescrio de conduzir apenas os mais capazes contemplao do princpio supremo, a Idia do Bem, e isso apenas depois dos 50 anos (Repblica, 540a), simplesmente no faria sentido se os jovens de 20 anos entre os quais os talentos mdios e mais fracos, que devem ser excludos da educao mais precisa (503d) pudessem obter informaes em toda parte, at mesmo na forma escrita, sobre as atividades filosficas da ltima fase. (SZLEZK, 2005, p. 31)

    Entende-se que a maturidade, isoladamente, no suficiente nem

    necessria para o desenvolvimento do interesse filosfico. Apresenta-se,

    ento, como um facilitador da dedicao filosofia, pois o desencargo das

    obrigaes advindo da maturidade costuma produzir tempo livre, que pode ser

    usado para o engajamento filosfico.

    pessoa madura pode faltar a pujana intelectual e a disposio fsica

    para os longos debates, atributos tpicos da juventude, mas tem por aliados a

    experincia e a prudncia que costumam advir com a idade. Entende-se aqui

    que os prprios personagens Trasmaco e Scrates possuem atributos

    associados juventude e maturidade.

    Scrates, prudente, questiona aquilo que lhe dito, talvez por entender

    que nem tudo o que aparenta ser e que os homens se enganam. Experiente,

    vale-se de um histrico de debates pblicos em Atenas como auxlio sua

    argumentao contra Trasmaco e, posteriormente, explanao detalhada

    daquilo que compe a Repblica. Entende-se que Scrates, no Livro 1,

  • 28

    representa tambm os traos desejveis da maturidade quando aplicados ao

    exerccio filosfico.

    Menciona-se tambm o fato de que Plato, em seus dilogos, apresenta

    Scrates descrito por Plato como o filho de comerciantes e homem de

    poucas posses em situaes dignas da aristocracia ateniense. Lembra-se

    que Plato no apresenta Scrates envolvido em qualquer trabalho com o

    objetivo de sustentar sua famlia: ao contrrio, Scrates depende da boa

    vontade alheia para subsistir. Alm disso, Scrates envolve-se constantemente

    em debates acerca de questes intelectuais, alm de ser representado em

    banquetes e passeios em Atenas.

    Trasmaco, aqui entendido como figurativamente jovem, vale-se de

    audcia e de uma presuno imatura quanto a seu conhecimento sobre a

    Justia. Ele, simbolicamente, representa o jovem insolente que, pensando

    compreender o que no domina, lana-se contra Scrates ao t-lo como um

    defensor de noes retrgradas e ingnuas, com o intuito de ensin-lo e

    atualiz-lo.

    O embate entre Scrates e Trasmaco o pice da progresso

    dramtica do Livro 1. Inclusive, a mais contundente contribuio do Livro 1

    Repblica o estabelecimento do objeto de investigao a ser perseguido ao

    longo dA Repblica. Naturalmente, A Repblica torna-se muito mais do que

    uma investigao direta sobre a Justia na Cidade-Estado e no homem,

    passando a apresentar uma soluo no discurso (logos) para a realizao do

    gnero da Justia.

    Sobre A Repblica, cita-se Paviani:

    A Ideia de bem e de dialtica so apresentadas como noes necessrias para fundamentar a polis ideal e justa, portanto, sem uma fundamentao mais completa. No livro VIII, aps examinar as cinco modalidades de constituio que correspondem s formas de vida humana, descritas com um toque de pessimismo e at de empirismo, Plato volta a insistir no programa educativo, e acrescenta que a polis ideal deve ser governada por algum com formao centrada na filosofia. (PAVIANI, 2013, p. 108)

  • 29

    A ausncia no Livro 1 de uma passagem to memorvel quanto a do Mito da

    Caverna compensada pela presena da notvel e impactante declarao de

    Trasmaco (338c)18.

    Rocha Pereira trata de uma caracterstica importante do Livro 1 em

    relao aos outros dA Repblica:

    [...] neste dilogo que se desenha a bifurcao entre o mtodo de Scrates e o de Plato: no Livro I evidencia-se a falncia daquele; a continuao mostra os novos caminhos, segundo os quais no cada um a organizar a sua busca do bem, mas a ordem social que h de tirar de cada um o melhor. (ROCHA PEREIRA, 2012, p. IX)

    Percebe-se que um dos maiores elementos de distino do Livro 1 em relao

    aos outros livros componentes do dilogo aqui estudado exatamente a crtica

    mudana de mtodo, de abordagem evidenciada por Cornford19. Naturalmente,

    o contraste entre o entendimento socrtico e o platnico acerca da virtude

    (arete) aplicada poltica fica ainda mais marcante quando o Livro 1

    considerado, apesar de sua aporia final: uma parte indivisvel dA Repblica.

    A diferena entre o entendimento Socrtico e o Platnico sobre a virtude

    na poltica encontra-se no fato de que Scrates defende a virtude poltica

    atravs do auto entendimento e da busca interpessoal pela verdade, ignorando

    qualquer tipo de aplicao da virtude atravs da educao massificada e dos

    atos de governo; Plato, em contraste, utiliza A Repblica como uma forma de

    afirmao de que apenas o Estado organizado pode instaurar a virtude sobre a

    Repblica, atravs de um mtodo pedaggico abrangente a todos os cidados

    da Cidade no Logos.

    O Scrates platnico, identificado por suas abordagens individuais ou

    em pequenos grupos e precedentes a questionamentos indutivos, na tentativa

    de esclarecer um sentido sobre algo, no sugere que a virtude (arete) seja um

    projeto coletivamente institudo, sendo no mximo individualmente alcanvel

    por cada cidado de Atenas. Plato apresenta nA Repblica um Scrates que

    faz parte da criao intelectual de um projeto de governo que permita que cada 18 Ouve ento. Afirmo que a justia no outra coisa seno a convenincia do mais forte. (PLATO, 2012. p. 16) 19 Melhores informaes sobre a hiptese de Cornford acerca de uma mudana de mtodo filosfico

    durante o Livro 1, do socrtico para o platnico, podem ser encontradas em The Republic of Plato.

    Translated with Introduction and Notes by F. M. Cornford, Oxford University Press, 1969.

  • 30

    homem da Cidade-Estado alcance sua virtude, a excelncia que apenas se

    realiza quando o homem executa as atividades que lhe so prprias.

    Quando Rocha Pereira afirma que, nA Repblica, h uma transio do

    mtodo socrtico para o platnico (2012, p. IX), d ensejo hiptese aqui

    apresentada de que a prtica interpessoal da filosofia, to comumente atribuda

    a Scrates, j no suficiente para orientar a polis ao Bem. Assim, Plato

    distancia-se de Scrates ao propor uma abordagem de governo para a

    promoo do Bem.

    Os mtodos acima descritos no so excludentes; ao contrrio: aqui

    entende-se que o mtodo platnico, de governo uma evoluo do mtodo

    socrtico, interpessoal. A limitao do mtodo socrtico quanto promoo

    tica na polis manifesta-se numericamente, pois Scrates no poderia ter

    acesso a todos os atenienses valendo-se de uma abordagem dialgica, como

    costumava fazer.

    Os mtodos tradicionais de comunicao s massas, notadamente o

    discurso e as cartas, quando lidas em pblico, so deficientes exatamente por

    no promoverem o dilogo com o autor do texto, visto que o mesmo muitas

    vezes encontra-se ausente ou no pode dar ateno a todos os que

    comparecem a seu monlogo. Percebe-se, aqui, a crtica platnica

    insuficincia do monlogo como forma de criao filosfica ao se valer de

    Trasmaco, um retor, como antagonista de Scrates.

    Scrates no teria condies de examinar cada habitante da polis e

    tambm no teria garantias de que suas palavras, quando aceitas por algum

    influente como um governante, se converteriam em atos de governo fiis

    suas premissas ticas. Desse modo, a nica forma de levar s massas a uma

    conduta tica seria atravs do estabelecimento de um governo de pessoas

    preparadas, filsofos, que se valeriam da educao estatal para a instruo

    tica.

    por isso que Plato apresenta a soluo tica para a polis como uma

    iniciativa abrangente de governo. O mtodo platnico de ensinamento tico nA

    Repblica devedor ao mtodo socrtico no momento em que aquiesce a

    necessidade da formao dos reis-filsofos, estes instrudos atravs de

    prelees ao estilo socrtico.

  • 31

    O enfoque desta suposta transio de mtodos a mudana de uma

    incitao virtude individual para uma exortao da virtude coletiva e tutelada

    por um Estado, de modo a superar a expectativa silenciosa do Scrates

    platnico de que sua maiutica incitaria seus interlocutores virtude e ao Bem,

    e que aqueles poderiam manter-se assim orientados mesmo quando distantes

    de sua companhia.

    Nesta dissertao entende-se que tal expectativa socrtica quanto s

    mudanas ticas causadas por seu discurso d-se pois o Bem a melhor

    manifestao de uma Ideia (508e), situao na qual todos os envolvidos esto

    fazendo aquilo que lhes prprio (dynamis) e de maneira a efetivar todas as

    potencialidades envolvidas. Correlaciona-se isso tese de que, no mtodo

    socrtico, aquele que no est orientado ao Bem no o faz por ignorncia,

    pois, novamente, o Bem algo transcendente e que permite a execuo de

    tudo da melhor maneira possvel, de acordo com a respectiva dynamis.

    Sobre o Bem, cita-se Luc Brisson e Jean-Franois Pradeau:

    Na tradio grega, o bem (t agathn) aquilo cuja posse proporciona a felicidade (eudaimona), que o fim ltimo perseguido por todo o ser humano (Ban., 205a). Por isso, para definir o bem, convm lembrar que para Plato um ser humano um vivente, definido como a associao provisria de uma alma com um corpo. Nessa perspectiva, os bens para o corpo sero uns e os bens para a alma, outros. E, como a alma e o corpo no tm as mesmas funes, estabelece-se uma ordem de prioridade entre esses bens: o bem da alma deve prevalecer. (BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 16)

    Uma questo a ser considerada no pensamento de Plato, em seu

    Scrates dos dilogos da juventude, a pressuposio de que um contato

    parcial com o Bem implicar na prtica do mesmo, que o contato com a virtude

    ser comunho com a mesma. Esse Scrates parecia ignorar o fato de que

    possvel ouvir sobre o Bem e no viv-lo. Desse modo, a polis no se

    permeava da virtude visto que os interlocutores de Scrates eram incapazes de

    conhecer e praticar a arete, ou ainda no desejavam faz-lo por acreditarem

    que seus interesses confrontavam as sugestes do exame dialgico promovido

    pelo mestre de Plato.

    O momento da mudana entre a abordagem dita Socrtica para a

    Platnica, iniciada no Livro 1, est tambm na percepo de que deve partir do

  • 32

    Estado o suprimento da carncia do homem quanto orientao ao Bem ou ao

    seu prprio, sua virtude. O traado poltico apresentado ao longo dos livros

    dA Repblica sugere exatamente que o Estado seja forte quando o indivduo

    fraco, e que aquele possa guiar os cidados da Kallipolis em direo

    harmonia.

    A proposta executada na Kallipolis aquiesce que apenas o discurso

    (logos) estruturado e cristalizado dentro das normas da cidade poderia inibir os

    comportamentos individuais que colocassem seus prprios interesses acima

    daqueles da comunidade, desestabilizando a sociedade. Plato indica, com

    isso, que a harmonia e o Bem so inalcanveis aos que se encontram em

    contextos polticos afastados das formas platnicas, h pouco mencionadas.

    Ou seja, o indivduo no poderia desenvolver seus potenciais e buscar as

    formas enquanto estivesse cercado da corrupo e da opinio (doxa) que

    dominavam a Cidade-Estado convencional.

    Esta polis, mesmo democrtica, ainda era habitada por humanos

    dotados de interpretaes equivocadas acerca dos valores importantes boa

    vida, aqui um sinnimo de vida conforme o Bem, como os investigados pelo

    Scrates platnico.

    A impossibilidade de ser virtuoso em um contexto degradado sugeriria a

    necessidade de uma reformulao da ordem poltica e social, de modo que a

    Cidade-Estado fundada no discurso poderia corrigir as falhas estruturais da

    polis grega. Cita-se Rodrigo Arajo quanto ao papel da lei na Repblica:

    Na busca por superar conflitos de diversas naturezas, a lei ser considerada o eixo do projeto educativo na cidade. A lei estar destinada a formar os cidados que ela mesma necessita, a convert-los em iguais. A lei ser o paradigma da virtude. (ARAJO, 2009, p. 56)

    A possibilidade do Livro 1 ser o palco da coletivizao da busca pelas

    virtudes (aretai), coletivizao essa que aqui se entende como sendo o mtodo

    platnico mencionado por Rocha Pereira (2012, p. XXXI), plausvel; Plato

    teria percebido a fragilidade do homem manifesta em sua propenso ao vcio, o

    que o fez propor uma alternativa essa fragilidade sob a forma da Repblica.

  • 33

    Dado o exposto, parte-se para a anlise do impacto do dilogo entre

    Scrates e Trasmaco, no Livro 1, para uma melhor compreenso do conceito

    de Justia.

    1.1 O IMPACTO DOS CONCEITOS DE JUSTIA DE CFALO, SCRATES E

    TRASMACO NO ENTENDIMENTO DA JUSTIA NA REPBLICA

    Plato apresenta, no Livro 1, a figura mordaz e incisiva de Trasmaco,

    assim como a sbria e plcida imagem de Cfalo. Dado o impacto da fala de

    ambos os personagens durante o Livro 1, ser feita breve anlise sobre as

    implicaes, para a compreenso da Justia, do discurso e de conceitos

    defendidos por Cfalo e Trasmaco, analisando a relao do texto que cabe a

    ambos os personagens com o discurso de Scrates.

    At a primeira interveno, decididamente furiosa, de Trasmaco

    (336b)20, o fluxo da discusso entre Scrates e os presentes pode ser resumido

    em um momento de aclimatao dramtica, no qual o ambiente e

    circunstncias da cena so descritos (327a-330d); outro momento importante

    a introduo a um dos grandes temas dA Repblica atravs da primeira

    abordagem Justia (331c)21, que segue at o final do Livro 1. Tal diviso tem

    por objetivo tornar claros dois fatos, o primeiro que a discusso sobre a Justia

    toma boa parte do Livro 1 (331a-354c) e o segundo que Trasmaco ocupa boa

    parte do dilogo do Livro 1, como observa-se atravs de sua primeira fala

    (336c)22 e de sua ltima (354a)23.

    No obstante o conceito de Justia analisado no Livro 1, Arajo analisa

    a suficincia de tal conceito:

    20 Assim que parmos e eu disse aquelas palavras, no mais ficou sossegado, mas, formando salto, lanou-se sobre ns como uma fera, para nos dilacerar. (PLATO, 2012. p. 19) 21 Mas essa mesma qualidade da justia, diremos assim simplesmente que ela consiste na verdade e em restituir aquilo que se tomou de algum, ou diremos antes que essas mesmas coisas, umas vezes justo, outras injusto faz-las? (PLATO, 2012. p. 09) 22 Que estais para a a palrar h tanto tempo, Scrates? (PLATO, 2012. p. 20) 23 Regala-te l com este manjar, Scrates, para o festival das Bendideias! (PLATO, 2012. p. 51)

  • 34

    As fontes para a resoluo do conflito tico assentam na teoria da virtude simultaneamente na alma e na cidade. Na Repblica, ao articular a cidade com a teoria da virtude, na cidade e no cidado, Plato supera a oposio nomos/physis, impondo a subordinao do poltico ao tico, com a sua reformulao da tica no campo da cidade. (ARAJO, 2009, p. 60)

    Quanto delimitao da discusso da Justia, que o debate sobre o tema

    comea ainda antes da primeira dvida de Scrates sobre o sentido

    apresentado por um de seus interlocutores (331c). O incio do debate sobre a

    Justia se d a partir da primeira fala de Cfalo sobre a maturidade, que d

    ensejo ao pedido de esclarecimento de Scrates e um momento narrativo

    fundamental para o encadeamento de opinies para a discusso do tema.

    Deste modo, considera-se que os trechos 331a-b so inseparveis da

    busca sobre o conceito de Justia, mesmo que a primeira meno injustia

    (331a) se d um pouco antes do primeiro momento investigativo sobre a

    Justia (331c).

    Explorados os detalhes acima, deve-se agora considerar o trmite das

    refutaes acerca da Justia presentes no Livro 1 e que, seguindo o mtodo do

    Scrates de Plato, percorre trs sentidos de Justia (331b-d, 331e-332b,

    338c,). Os trs so insuficientes por serem demasiado especficos na busca

    por um conceito abrangente e irrefutvel, de modo a satisfazer o esforo por

    um conceito geral. Demonstra-se abaixo a insuficincia dos trs sentidos

    mencionados acima.

    Em 331b-d, Plato afirma que a Justia dizer a verdade e restituir

    aquilo que se tomou (331d), no negando a opinio de que a Justia dizer a

    verdade, mas afirmando-a. Quanto restituio, Scrates facilmente mostra

    que nem todas as devolues daquilo pertencente a outrem so desejveis,

    visto que por vezes podem prejudicar o destinatrio. Plato mostra, com a

    refutao acima, que a Justia no pode ser responsvel pelo mal alheio,

    antecipando a opinio de que a justia o bem alheio.

    331e-332b nos apresentam a noo de que o justo restituir a cada um

    o que se lhe deve (331e), que logo evoluda para a opinio de que deve-se

    fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos. Scrates novamente rechaa a

    noo de que a Justia pode ser algo relacionado ao mal alheio; aqui entende-

    se que tal afastamento da Ideia de Mal est em perfeita consonncia com a

  • 35

    tica platnica que tem por norte a aproximao do Bem atravs da realizao

    de cada dynamis.

    A definio presente em 338c a de que a justia no outra coisa

    seno a convenincia do mais forte. A insuficincia desta opinio encontra-se

    no fato de que a noo de mais forte, mesmo que entendida como Estado

    (339a), varivel. A convenincia de cada Estado pode variar em diferentes

    contextos; alm disso, a vinculao da Justia ao poder imposto atravs da

    fora algo distinto do modelo dialtico apresentado por Plato. No se pode

    realizar a Justia na physis sem o intermdio da dialtica e do apreo filosfico.

    No Livro 1, Plato no apenas refuta trs opinies sobre o que a

    Justia, mas tambm busca afastar formas de pensamento, orientaes que

    no apontam para a direo desejvel, afastamento esse que eventualmente

    levar ao conceito adequado sobre a Justia. Sobre essas orientaes, pode-

    se ressaltar a tomada da Justia como um bem meramente alheio, refutada

    posteriormente (345d-e). Cita-se Plato:

    Por estas razes, eu conclu h pouco que foroso que concordemos que todo o governo, como governo, no tem por finalidade velar pelo bem de mais ningum, seno do sbdito de que cuida, quer este seja uma pessoa pblica ou particular. (PLATO, 2012, p. 35)

    Tambm est no Livro 1 a noo de Justia como mera retribuio,

    desfeita aps o contido em 335e, uma Justia como um bem individual e sem

    relao com a comunidade, atacada ao longo dos quatro primeiros livros dA

    Repblica. Cita-se Plato:

    Portanto, se algum disser que a justia consiste em restituir a cada um aquilo que lhe devido, e com isso quiser significar que o homem justo deve fazer mal aos inimigos, e bem aos amigos quem assim falar no sbio, porquanto no disse a verdade. (PLATO, 2012, p. 18)

  • 36

    Teixeira comenta a natureza da Justia nA Repblica:

    Por diversas vezes, Plato refere-se virtude como sendo uma harmonia. A virtude harmoniza os diversos elementos que compe o complexo humano. [...] Tanto no Grgias quanto em A Repblica, a justia (dikaiosyne) aparece como a virtude mais importante. Praticando-a, nos assemelhamos ao que invisvel, divino, imortal e sbio. Por meio da justia, chegamos felicidade. (TEIXEIRA, 2006, p. 37)

    A discusso sobre a Justia, iniciada com uma interpelao acerca da

    riqueza, inicia-se com a resposta de Cfalo a Scrates sobre os benefcios da

    riqueza. O acompanhamento dos momentos iniciais da fala do estrangeiro

    permite perceber que ele considera a riqueza como um meio de acesso

    Justia, um facilitador da execuo de prticas que, para a personagem, daro

    paz de esprito e a sensao de dever cumprido a quem as exercer,

    principalmente na maturidade.

    Agora, sobre a noo de Justia que afirma que se deve dizer a verdade

    e pagar o que se deve, percebe-se que esse argumento, possui dois aspectos,

    um retributivo e outro piedoso. Ambos sero tratados a seguir.

    O aspecto retributivo da opinio de Cfalo sobre a Justia mostra-se no

    pagamento dos dbitos, sugerindo que deve haver um elemento harmnico nas

    relaes entre pessoas, que o necessrio equilbrio para a boa manuteno

    das relaes interpessoais. Cfalo sugere que a insatisfao gerada pela

    quebra dos acordos polticos torna penoso o envolvimento coletivo para

    interesses comuns, o que inviabilizaria o refinamento das relaes polticas e

    sociais dado um estado de insegurana jurdica e poltica, sob o qual no se

    poderia ter certeza da aplicao de uma isonomia na relao entre credor e

    devedor, na qual ambos herdam vantagens e desvantagens da ao de

    emprstimo.

    O aspecto piedoso do conceito trazido por Cfalo surge quando o

    mesmo advoga pela sinceridade, sugerindo que a verdade agrada aos deuses

    e que o homem pio deve tratar das coisas como so. Percebe-se que a

    representao da personagem como um homem piedoso, visto que estava

    envolvido em um rito sacrificial durante a chegada de seus convidados, refora

  • 37

    a viso h pouco exposta; alm disso, o esforo filosfico de Plato j se

    encontra sugerido no apreo de Cfalo pela verdade.

    Para Plato, a busca pelas coisas verdadeiras, como so, a condio

    necessria e final para o conhecimento, e Cfalo assim o d a entender ao

    sobrepor a verdade s posses, pondo-as como mais uma forma de acesso

    virtude (arete).

    A busca pela verdade requer, para Plato, o uso do logos. A verdade, a

    estabilidade nela presente e aquilo que pertence alma so priorizados sobre

    o que referente ao corpo. Sobre isso, cita-se Teixeira:

    Em A Repblica, descreve de um modo trgico a existncia daqueles que pautam sua vida segundo o imperativo do prazer: vivem errantes, so incapazes de ultrapassar o limite do prazer e elevar-se at o verdadeiro ser, nem podem provar o que seja um prazer slido e puro. Engordam e acasalam-se, semelhantes aos animais, vivem pela cupidez dos sentidos, dilaceram-se e batem uns nos outros, matando-se por causa de seu apetite insacivel. Passam a vida em prazeres misturados com sofrimentos, so fantasmas do prazer verdadeiro. So insaciveis, porquanto no enchem de alimentos consistentes a parte real e estanque de si mesmos. (TEIXEIRA, 2006, p. 30)

    Cfalo aqui um bom exemplo daquele que passou, dada sua idade, a

    priorizar as questes do logos e afastar-se da primazia dos prazeres do corpo.

    Ainda sobre tal personagem, retorna-se ao debate na casa de Cfalo.

    Polemarco substitui seu pai na conversa e assume um sentido de Justia

    segundo Simnides24, afirmando que o justo consiste em dar a cada um o que

    lhe devido. Pode-se observar que esse sentido herdeiro do conceito

    apresentado por Cfalo, assim como Polemarco seu herdeiro na discusso.

    Entende-se o fato do conceito atribudo a Simnides no ser,

    sobremaneira, empecilho para a percepo do paralelo observado acima. Nota-

    se que o segundo sentido de Justia expande a abrangncia da mesma ao

    contemplar quaisquer tipos de dbitos, pois o pagamento destes uma forma

    24 Simnides (gr. ) foi o mais importante autor de epigramas do Perodo Arcaico. Era tio do poeta Baqulides. Nasceu em -556, na ilha de Ceos, e morreu por volta de -468. Era extremamente verstil e tambm comps hinos, ditirambos, epincios e elegias. Compunha por encomenda e esteve em Atenas por volta de -522, trazido pelo tirano Hiparco; depois, foi para a Tesslia e voltou a Atenas em -490. Esteve aparentemente tambm em Siracusa, na poca do tirano Hieron I (-476), e em Acrags, durante a tirania de Teron (-488/-472). Segundo a tradio, Simnides inventou o epincio e foi o primeiro poeta a receber pagamento pelo seu trabalho. (Retirado de http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0787) (Acessado em 19/08/2015, s 15:30).

    http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0787

  • 38

    de dar aquilo que se deve, e tambm ao englobar as formas de auxlio ou

    repdio (332d).

    Fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos claramente uma

    manifestao tambm retributiva, porm de uma forma indireta e distinta

    daquela retribuio defendida por Cfalo. Nela, percebe-se que h um carter

    de punio e de recompensa ao se fazer o bem queles que so amigos,

    sugerindo que estes so os que nos fazem o bem, e ao se fazer o mal queles

    que so inimigos, tambm dando a entender que so os que nos fazem mal.

    O carter da Justia se d na sugesto de que a prtica do bem aos

    homens deve ser retribuda por esta mesma coletividade abstrata, alm de

    suscitar a Ideia de que o Bem atrai aquilo que lhe semelhante, o mesmo

    ocorrendo com o Mal. Mesmo no havendo uma meno direta a uma forma de

    recompensa e/ou punio poltica, percebe-se que possvel uma expanso

    da Ideia de amigos, ao se afastar do crculo de amizades de um s ser e

    ampliar os horizontes deste conceito para a prpria polis, formada por inmeros

    conjuntos de amigos e de inimigos.

    O homem que faz mal ao seu inimigo est, como Scrates mesmo

    revela em seu debate com Polemarco, afastando quele outro da prpria Ideia

    de Bem. Assim, considerando que o afastamento do Bem contraria toda a tica

    platnica, est de acordo o ataque de Scrates imposio do mal ao inimigo;

    pensa-se que tal sugesto pode corroborar um ordenamento inteligvel do

    mundo, visto que sugere a atrao entre gneros semelhantes.

    importante ressaltar que a tica platnica busca aproximar o indivduo

    do Bem, e h de se concordar com Paviani, quando este afirma: O objetivo

    ltimo da filosofia o acesso idia de bem (2013, p. 29). Sobre a tica

    platnica, cita-se Paviani:

    A tica platnica caracteriza-se principalmente pelos conceitos de virtude, de bem e de felicidade e, ainda, de prudncia, de justia, de coragem e de moderao postos como condies de moralidade do indivduo e da cidade. Esses conceitos dependem de um conjunto de outros aspectos; por exemplo, dos modos de existncia da alma, das relaes dos saberes, da constituio psicolgica e social da cidade, das formas de governo, das relaes entre a felicidade e os prazeres mistos e puros, e at da organizao do cosmos e da sua relao com a alma do mundo (PAVIANI, 2013, p. 29).

  • 39

    Por fim, Trasmaco faz seu ataque raivoso e descritivo, buscando afirmar

    os fatos como costumam ser e refutando a busca socrtica por gneros

    definidores, que pode acabar por criar sentidos distintos de suas manifestaes

    cotidianas. Trasmaco d a entender a Scrates que o que importa ter como

    real aquilo que o mundo nos apresenta, e que a afirmao platnica de uma

    realidade diferente ftil.

    Trasmaco traz uma viso descritiva das sociedades, em que as

    relaes de poder eram estabelecidas inicialmente pela fora e, aps diversos

    desdobramentos civilizatrios, este mesmo poder passava a ser reconhecido e

    conferido aos poderosos; isso no implica em dizer que o poder no seja

    estabelecido pela fora, nem que esta no seja algo sempre presente nas

    relaes polticas e sociais, ou ainda que a fora no possa tomar diversas

    formas. Scrates diz que o refinamento das relaes sociais, aqui representado

    pela prpria existncia do sentido de Justia, no pode ser governado por uma

    prtica to excludente e primitiva quanto aquela da fora, seja ela fsica ou

    representada pelo poder poltico.

    Scrates convida Trasmaco a uma percepo da existncia de outra

    via, a de uma nova possibilidade de convvio entre os homens que tm o

    interesse coletivo e a aquiescncia da alteridade como algo basilar: tal atitude

    se manifesta atravs da prpria conduta de Scrates quando lida com

    Trasmaco. A Repblica, em seus livros posteriores, deixa claro que a Justia

    a harmonia dos componentes da Cidade-Estado (434c), espelhada pela

    harmonia dos apetites do cidado.

    Cita-se Plato:

    [...] a confuso e mudana destas trs classes umas para as outras seria o maior dos prejuzos para a cidade e com razo se poderia classificar de o maior dos danos.

    Inteiramente O maior dos danos para com a sua cidade, no dirs que a injustia? injustia? Como no?

    Por conseguinte, isso a injustia. E a gora digamos a inversa: se a classe dos negociantes, auxiliares e guardies se ocupar de suas prprias tarefas, executando cada um deles o que lhe compete na cidade, no se verificaria o contrrio do caso anterior, a existncia da justia, e isso no tornaria a cidade justa? (PLATO, 2012. p. 188)

  • 40

    A Justia, nA Repblica, nunca poderia ser um bem prprio e por isso

    precisa levar em conta as necessidades e potencialidades do outro. Esse

    senso de coletividade encontra-se perfeitamente de acordo com a Ideia de um

    cidado da Kallipolis, nunca isolado das questes de sua Cidade-Estado nem

    desejoso de tal coisa.

    Convm mencionar que a personagem de Trasmaco foi inicialmente

    entendida como bem intencionada em suas aspiraes sobre a Justia, sendo

    por demais apegada uma abordagem descritivista da realidade, a ponto de

    desconsiderar a tentativa de conceituao apresentada por Scrates,

    Trasmaco representava o homem embrutecido, resultado de um pragmatismo

    forado que permeado por um senso de desesperana e de desconfiana

    entre os homens, um pragmatismo que pressupunha que o homem

    intrinsicamente propenso ao mal e, portanto, precisa ser ameaado para

    civilizar-se.

    Scrates representa, por outro lado, a opinio de que o homem

    intrinsicamente propenso ao Bem. Cita-se Teixeira:

    Em Plato, [...], aparecem duas concepes de maldade: maldade na alma e maldade fruto da ignorncia. Existe uma tendncia natural do homem para o bem, mas, por causa da falta de conhecimento, muitas vezes o homem no concretiza esse objetivo. [...] Em geral, os homens reconhecem o primeiro tipo de maldade (maldade como desordem da alma); porm, no conseguem ver a maldade muito mais radical a ignorncia. A ignorncia s ser erradicada por meio de uma educao comprometida com o ensino da verdade. Somente assim o mal poder ser superado. O educador-filsofo, por vezes, assume em Plato um carter de terapeuta. Sua misso curar os males da alma, fruto do no-saber e da falta de virtude. O prprio Plato aborda com frequncia o mal como enfermidade da alma e identifica a virtude com a sade, e o mal com a doena. (TEIXEIRA, 2006, p. 69)

    Trasmaco realmente acredita que a injustia deve prevalecer e sequer

    pensa que deveria ser de outra maneira: Plato mostra Scrates afirmando que

    se Trasmaco ainda dissesse que a injustia um vcio, porm vantajoso,

    Trasmaco poderia ser refutado (348e). Scrates afirma, e Trasmaco

    concorda, que o sofista dir que a injustia bela e forte, e que prefervel

    Justia. Escreve Plato:

  • 41

    Isso disse eu uma posio ainda mais irredutvel, companheiro, e j no fcil arranjar maneira de a refutar. Porquanto, se punhas a hiptese de a injustia ser vantajosa, mas concordas, contudo, com alguns outros, que ela um vcio ou uma coisa vergonhosa, poderamos responder-te, de acordo com a opinio geral. Porm a verdade que evidente que vais afirmar que ela bela e forte, e lhe atribuirs todas as demais qualidades que ns estvamos habituados a atribuir justia, uma vez que ousaste coloc-la ao lado da virtude e da sabedoria.

    Adivinhaste a pura verdade, disse ele. (PLATO, 2012. p. 40)

    Cita-se Santos, no tocante injustia nA Repblica:

    Correspondentemente a injustia ser a luta entre as partes da alma e a ingerncia de umas nas outras, conducentes revolta de uma parte contra o todo, visando ao comando. na desordem e na confuso que consistem a injustia, a covardia e a ignorncia, em suma, todos os vcios (444b), sendo a sade da alma a hierarquia que subordina as partes segundo a natureza, e a doena na alma a que as subordina contra a natureza. Daqui resulta ser a virtude a sade, a beleza e o bem-estar da alma, e o vcio a doena, a fealdade e a fraqueza (444d-e). (SANTOS, 2009, p. 75)

    O aqui exposto no implica em dizer que Trasmaco seja um

    personagem menor. Ao contrrio, pensa-se que sua importncia no Livro 1 s

    inferior do prprio Scrates, e que seu posicionamento fundamental para o

    desenvolvimento filosfico do conceito de Justia, visto que Trasmaco termina

    o dilogo anuindo o percurso lgico do argumento de Scrates (353e). Cita-se

    Plato:

    No concordmos que a justia uma virtude da alma, e a injustia um defeito? Concordmos, efetivamente. Logo, a alma justa e o homem justo vivero bem, e o injusto mal. Assim parece, segundo teu raciocnio. (PLATO, 2012, p. 50)

    Afirmando conjuntamente que a Justia convenincia, Scrates aplaca

    Trasmaco, chegando a afirmar que este deixou de ser desagradvel (354b).

    Essa opinio comum uma sutil sugesto de Plato, tratando da importncia

    da participao da personagem do sofista na busca pela Justia e que o

    mesmo mais semelhante a Scrates do que qualquer outro personagem

    presente no Livro 1, visto que ambos fazem da fala e do pensamento suas

  • 42

    principais ocupaes e tambm que Scrates possui diversas caractersticas

    de um sofista, como observa Henri Bergson.25

    Scrates e Trasmaco representam posies discursivas semelhantes ao

    serem portadores de uma viso de Justia que entende o indivduo como

    dotado de certo poder sobre a realizao alheia. Ou seja, as vises

    apresentadas por ambos os personagens ao longo do Livro 1 convergem

    quanto ao fato de que o justo, dentre as possibilidades de sentido de Justia

    apresentadas, transfere parte de sua prpria viso sobre a Justia atravs da

    influncia de seus atos.

    O justo, nesse momento entendido como o mais forte ou ainda o sbio e

    virtuoso, molda o mundo a partir de seu carter (ethos), imprimindo

    externamente a maneira do relacionamento com suas predisposies, apetites

    e virtude (arete). Ou seja, de certo modo, o conceito de Justia defendida por

    um indivduo ser tambm a Justia para outro, pois o alvo da ao daquele

    que justo receber os frutos da orientao daquele que nele age.

    Sobre a Justia como algo para outro, cita-se Arajo:

    Na pragmtica poltica, a vida na cidade se estrutura e se estabelece como campo da dxa, ou seja, da imagem e da contradio por excelncia. O indivduo humano, pelos argumentos que avana, pelas representaes que produz e pelas aes que realiza na cidade, se encontra face a face com outro indivduo humano. (ARAJO, 2009, p. 94)

    A Justia feita ao outro est em consonncia com a investigao acerca

    de que se a Justia ou no um bem alheio (343c, 347a). Se no o fosse, no

    seria possvel sequer afirmar que um indivduo foi objeto de uma ao justa ou

    injusta, visto que o atributo da Justia no seria capaz de ser exprimido alm

    do homem que a aplica.

    Trasmaco e Scrates concordam que a Justia algo feito ao outro,

    mas divergem quanto utilidade de tal situao. A Ideia do Bem como til

    encontra respaldo em Bergson (2005, p. 103), que escreve: ...a moral

    socrtica est fundada na Ideia do Bem considerado ele prprio como residindo

    antes de mais nada no til.... J Trasmaco sugere que a utilidade da Justia

    25BERGSON, Henri. Cursos sobre a Filosofia Grega. So Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 95-96

  • 43

    se encontra na prtica do bem a si prprio atravs da orientao ao outro,

    usando-o para os prprios fins.

    O entendimento da Justia como um bem alheio fundamental para a

    construo de uma filosofia poltica inspirada naquela presente na Atenas do

    perodo clssico. Afinal, impossvel construir o embate poltico e equilibrar os

    distintos interesses sociais baseando-se em algo inefvel. Entender a Justia

    como um bem alheio mais um passo em um processo notico orientado ao

    prprio da Justia; o Livro 1 j apresenta um dos elementos fundamentais ao

    conceito de Justia a ser apresentada futuramente nA Repblica.

    A questo a ser ponderada a forma de relao com o outro, a maneira

    como a Justia ser aplicada sobre o outro. Scrates claramente defende a

    orientao de uma Justia como algo orientado ao outro, porm til aquele que

    pratica. Quanto esta utilidade, cita-se SantAnna:

    no contexto destas dificuldades que Plato, atravs de Scrates, tentar propor uma nova concepo de Justia que evitar os prob