UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · Conto com sua amizade por todos os outros anos...

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ CERES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES DHC CAMPUS DE CAICÓ GLEYZE SOARES MACEDO DE OLIVEIRA REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA: UMA SEPTUAGENÁRIA DA CIDADE DE CAICÓ CAICÓ/RN 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ – CERES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES – DHC

CAMPUS DE CAICÓ

GLEYZE SOARES MACEDO DE OLIVEIRA

REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA: UMA SEPTUAGENÁRIA DA CIDADE

DE CAICÓ

CAICÓ/RN

2015

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GLEYZE SOARES MACEDO DE OLIVEIRA

REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA: UMA SEPTUAGENÁRIA DA CIDADE DE

CAICÓ

Monografia apresentada ao Curso de História Bacharelado

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte –

CERES, sob orientação do Professor Dr. Joel Carlos de

Souza Andrade, para obtenção do título de Bacharel em

História.

CAICÓ/RN

2015

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Oliveira, Gleyze Soares Macedo de.

Reminiscências de Dona Baia: uma septuagenária da cidade de Caicó / Gleyze Soares

Macedo de Oliveira. - Natal, 2016.

55f: il.

Orientador: Joel Carlos de Souza Andrade.

Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES) – Departamento de História.

1. Dona Baia - Monografia. 2. Narrativa - Monografia. 3. Sujeito histórico – Caicó -

Monografia. I. Andrade, Joel Carlos de Souza. II. Título.

RN/UF/BCZM CDU 398.2

Catalogação da Publicação

Biblioteca Central Zila Mamede – Setor de Informação e Referência

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GLEYZE SOARES MACEDO DE OLIVEIRA

REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA: UMA SEPTUAGENÁRIA DA CIDADE DE

CAICÓ

Aprovada em: _____/_____/_______

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________

Professor Dr. Joel Carlos de Souza Andrade

Professor Orientador / Departamento de História do CERES – UFRN

______________________________________________________________________

Professor Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo

Departamento de História do CERES – UFRN

______________________________________________________________________

Professor Dr. José Pereira de Sousa Júnior

Departamento de História do CERES – UFRN

CAICÓ/RN

2015

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À minha mãe, por seu tão grande amor!

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AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas que me ajudaram enquanto graduanda e que

contribuíram direta ou indiretamente para a conclusão deste trabalho. Entre elas,

gostaria de prestar meus agradecimentos primeiramente a minha família, que fez todo o

possível para a conclusão de mais uma etapa em minha vida. A vocês, muito obrigada

pela confiança depositada e pela destreza de estarem me apoiando, sem esse apoio esta

vitória não teria o mesmo sabor.

Agradeço ao meu professor/orientador, Joel Carlos de Souza Andrade, pela

paciência, dedicação e apoio durante todos esses anos.

Agradeço ao curso de História por me permitir construir tão boas amizades e à

todos os meus colegas de graduação.

Um agradecimento em especial a Marianne Shirley, um anjo de luz que a vida

me presenteou, obrigada por todo o companheirismo e predisposição em estar sempre

pronta a ajudar durante esses anos. Conto com sua amizade por todos os outros anos

vindouros.

Muito obrigada também a Rosângela Silva pela linda amizade que cultivamos.

Agradeço em especial também a mais duas pessoas, duas almas maravilhosas

que me impulsionaram para chegar até aqui. Silvana Soares da Silva, minha mãe, que

nunca mediu esforços para me ajudar, a maior incentivadora em minha vida e que

sempre foi minha mola propulsora. Obrigada por estar sempre presente e por ser, desde

a minha infância, a pessoal na qual me espelho.

Tiago Araújo de Medeiros, meu namorado, te agradeço por ter sido minha base

nessa reta final, por todo o companheirismo, apoio, dedicação e incentivo, sem você eu

não teria chegado até aqui. Obrigada pela alegria que me dá em tê-lo ao meu lado.

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Por fim, agradeço a todos aqueles que fizeram parte de minha trajetória nesses

quatro anos de história, das meninas da cantina aos meus professores, muito obrigada

pela formação e pelas críticas construtivas, foram de muita importância.

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“A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o

que ainda ninguém pensou sobre aquilo que todo mundo vê”

(Arthur Schopenhauer).

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RESUMO

O presente trabalho vem tratar das formas pelas quais se constitui as narrativas e suas

artes a partir da perspectiva da senhora Maria José da Silva, conhecida como Baia,

septuagenária, negra, marginalizada e nascida em Caicó, um personagem singular,

“comum” aos olhos do mundo. O mesmo caracteriza-se como um estudo de caso que

permitiu, a partir do consentimento da referida personagem, uma análise dos seus

modos de discorrer sobre sua vida, assim como os meios encontrados para se sobressair

de determinadas situações de desconforto. As demarcações utilizadas para registrar cada

acontecimento de sua trajetória é um fato curioso, haja vista que cada passagem se

encerra com algum acontecimento trágico precedido de uma “superação”. No decurso

deste estudo, falar-se-á a respeito de alguns aspectos sobre as novas abordagens da

historiografia, sobretudo, os usos da História Oral enquanto metodologia e a narrativa

enquanto fonte, em relação ao sujeito histórico e a relação próxima e tensa entre a

História, a memória e a narrativa. Personagem emblemático, Dona Baia será abordada a

partir das (des)tessituras de suas vivências em sociedade, construindo para si, um lugar

próprio de existência.

Palavras – chave: Dona Baia; história; narrativa; sujeito histórico; Caicó.

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ABSTRACT

This paper deals with the narratives and their arts from the perspective of a

septuagenarian lady, black, marginalized and born in Caico, a unique character,

"common" in the eyes of many. The same is characterized as a case study that allowed

from the consent of that character, an analysis of ways to talk about your life, as well as

their means found to excel in certain situations of discomfort. Demarcations used to

record every event of his career is a curious fact, considering that each passage ends

with a tragic event preceded by "overcoming". During the work will be speaking about

some aspects such as new approaches to history, for example, as well as oral history as a

source and methodology; the historical subject; and the relationship between history,

memory and narrative. Dona Bay, our character, will be analyzed while a "regular guy"

who is the margins of society, and that, therefore, have to use the means available to

differentiate among so many who are in the same position as the your.

Key – words: Dona Baia; history; narrative; historical subject and Caicó.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Art. - Artigo

Ed. - Edição

Nº. - Número

P. – Página

Rev. - Revista

V. - Volume

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 - PERSPECTIVAS HISTÓRICAS: ENFRENTAMENTOS DO

SUJEITO ................................................................................................................................. 17

1.1 ANÁLISE HISTÓRICA ..................................................................................................... 17

1.2 ESTUDO DA HISTORIOGRAFIA .................................................................................. 18

1.3 NOVA HISTÓRIA CULTURAL ........................................................................................ 19

1.4 A NARRATIVA HISTÓRICA ............................................................................................ 21

1.5 HISTÓRIA, MEMÓRIA E ORALIDADE ......................................................................... 23

1.6 HISTÓRIA ORAL, SEUS MÉTODOS E POSSIBILIDADES ......................................... 27

CAPÍTULO 2 - HISTÓRIAS PELAS REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA ................ 32

2.1 UMA MULLHER NEGRA NA MULTIDÃO .................................................................... 32

2.2 O SUJEITO HISTÓRICO .................................................................................................. 35

2.3 CASAMENTO: DAS AMARRAS À LIBERTAÇÃO ...................................................... 37

2.4 A IRMANDADE DOS NEGROS DO ROSÁRIO ............................................................. 40

2.5 UMA FIGURA MARGINALIZADA – TECITURAS DE UMA VIDA ........................... 43

2.6 O HOMEM ORDINÁRIO: BAIA E AS ARTIMANHAS DA VIDA ................................ 45

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 50

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 53

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INTRODUÇÃO

O presente estudo surgiu da necessidade de se trabalhar o coletivo partindo de

um caso particular, ir à busca não dos grupos, mas de um indivíduo que o compõe, a fim

de captar, por meio de sua perspectiva, como se dá a relação de um sujeito oriundo de

uma camada marginalizada, em uma dada comunidade, e os usos que o mesmo faz para

se inserir em seu meio e criar as condições próprias de sobrevivência. Foi partindo desta

inquietação, e acompanhando as perspectivas de uma abordagem histórico-cultural, que

elegemos a senhora Maria José da Silva, conhecida na cidade de Caicó/RN como Dona

Baia, a nossa personagem, sobre a qual faremos uma reflexão das suas “reminiscências

pessoais”.1

Neste sentido, partimos, também, de uma outra inquietação relacionada aos

estudos que têm, no âmbito local, abordado a problemática do negro. Nota-se que há,

com regularidade, uma preocupação por trazer à tona o enfoque nas irmandades, em

especial, a Irmandade do Rosário, e nos grupos remanescentes (ou não) quilombolas,

tais como os Negros do Riacho e a Comunidade da Boa Vista. Ora, se a convocatória de

experiências que tratam sobre o Seridó potiguar se constitui como uma experiência

extremamente válida, sobretudo, por haver uma tradição de trabalhos (históricos,

memorialísticos) que enfocam o “lugar do branco” como o “herói” desta terra, não

podemos deixar de levantar alguns questionamentos. É que nas nossas sondagens,

percebemos a pouca atenção dada a um personagem específico, pois os interlocutores

geralmente foram enredados ao lugar do “grupo”, do coletivo negro e não sobre a sua

inserção enquanto sujeito múltiplo na sociedade.

À procura de trabalhos já feitos com o indivíduo, seja ele negro ou não,

encontrou-se alguns escritos locais que tiveram como ponto de partida o coletivo. A

monografia de José Jerre Lima da Silva (2002), um dos mais recentes trabalhos feitos a

respeito da Irmandade intitulado “A festa da Irmandade do Rosário (Caicó/RN):

(des)caminhos de uma tradição”, por exemplo, trata em seu estudo com a preocupação

com a defasagem que está ocorrendo na Irmandade e com a consequente diminuição do

1THOMPSON, Alistair. Recompondo a memória. Questões sobre a relação entre a História Oral e as

memórias. Revista Projeto História. São Paulo, v. 15, abril de 1997.

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porte das festas do grupo. Para a elaboração do mesmo Lima da Silva contou com as

narrativas daqueles pertencentes ao grupo, lidando, assim, com a análise do coletivo.

Um outro estudo feito, “Entre Estratégias e Táticas: enredos das Festas dos

Negros do Rosário de Jardim do Seridó-RN”, do historiador. Diego Marinho de Gois

(2006), retrata a relação entre o sagrado e o profano, tendo como base os depoimentos

de membros da Irmandade das cidades de Parelhas – RN e Jardim do Seridó – RN. Um

trabalho importante para a historiografia local que também faz uso do coletivo.

Os trabalhos existentes que falam do negro ou de seus grupos, partem de

análises que enfocam o grupo e sua força, e não o indivíduo. O negro só é analisado a

partir do momento que se insere em um grupo. Trabalhos com o coletivo reforçam

ideais pré-existentes e é nessa perspectiva que o trabalho com o individual se difere, é o

olhar do micro que toma as grandes proporções e que torna o indivíduo em sujeito

histórico.

Portanto, diante do exposto, o objetivo principal do trabalho é analisar, numa

perspectiva aberta que possa captar as experiências de vida de Dona Baia convertidas

em narrativas, suas artes e modos de narrar e desnarrar, assim como o mundo perante os

seus olhos. Isto, provindo de um “sujeito ordinário” ou mesmo “comum”2, captando,

assim, suas “artes e astúcias” no que se refere à maneira de como lida com o cotidiano.

O aporte teórico utilizado foi do historiador e filósofo francês Michel de

Certeau, onde nos valeremos de suas discussões referentes a construção do espaço assim

como os elementos que o constituem, um estudo da perspectiva histórica e o homem

que utiliza de suas “artes e astúcias” para sobreviver. Faremos uso de algumas de suas

obras como “A invenção do cotidiano – artes de fazer”, onde, por meio da qual,

analisaremos primordialmente as práticas cotidianas e os relatos de espaço trabalhados

pelo teórico; assim como também seu artigo intitulado “A operação historiográfica”,

presente na obra “A escrita da história” trabalhada na perspectiva de como se produz

história e a importância em se trabalhar com as singularidades que abrem margem para

novos discursos.

2Nesse sentido, “comum” refere-se ao indivíduo que leva sua vida de maneira pacata, sem realizar

grandes feitos, que vive um dia de cada vez e que tem como a cada dia seguinte uma batalha a ser

vencida.

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Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade

de uma sistematização totalizante, e considerar como essencial ao

problema a necessidade de uma discussão proporcionada a uma

pluralidade de procedimentos científicos, de funções sociais e de

convicções fundamentais. Por aí se encontra, já esboçada, a função

dos discursos que podem esclarecer a questão, e que se inscrevem,

eles próprios em seguimento a ou ao lado de muitos outros: enquanto

falam da história, estão sempre situados na história.3

Partindo das discussões feitas por Certeau a respeito do espaço e da construção

da memória, analisaremos os meios pelos quais Dona Baia utilizou para se inserir na

sociedade, naquele lugar por ela “projetado”.

Numa outra perspectiva, convocamos as discussões sobre a memória cujo

marco principal pode ser considerado o sociólogo francês Maurice Halbwachs,

pertencente à escola durkheimiana4 que, ainda no início do século XX, inseriu o debate

sobre a “memória coletiva”, essencial em discussões a respeito de memórias de um

caráter grupal e individual. Utiliza-se de Halbwachs – além de contemporâneos ao

estudo – por ele ter sido o pioneiro nas discussões sobre a memória em seu viés

coletivo.

Entendemos que toda mudança exige que passemos por um processo de

adaptação, sem que, no entanto, se perca as raízes que estão arraigadas ao lugar de

origem. Um dos elementos que faz com que haja uma reconstituição de lembranças

antigas é a paisagem, a captura da imagem de um lugar, esteja nele contido elementos

naturais ou culturais. Um simples traço de semelhança com outro lugar já ascende à

faísca da memória, já traz à tona lembranças de uma época remota, evocando, além de

memórias, sentimentos e sensações. A cidade de Caicó será o “lugar de memória” a ser

abordado a partir das reminiscências de Dona Baia.

A partir da coleta dos depoimentos de Baia percebe-se que uma narrativa tanto

pode transformar o lugar em espaço como o espaço em lugar. A construção de espaços

está intrinsicamente ligada à formulação da memória. Suas narrações remetem à

construção de um espaço que se transformou em lugar, um lugar de memória. O espaço

se torna lugar quando deixa e ser habitado e se torna um lugar investido de lembranças,

“contemplação”, onde se exerce a rememoração. “O sentimento de continuidade torna-

3CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 1982, p. 23 4David Émile Durkheim, sociólogo do século XX voltado para o âmbito das ciências sociais como a

Sociologia, Antropologia.

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se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória”5. O

contar histórias é algo natural no cotidiano de Baia, reforça-se a história para que ela

não seja esquecida, para que todo o transtorno e frustração passados não tenham sido

em vão.

O curioso nos depoimentos de Baia é que cada demarcação temporal está

marcada por algum acontecimento trágico em sua vida, mas sempre precedido de uma

superação. Os momentos trágicos não a abalaram, mas a fortificaram e lhes serviram de

exemplo e incentivo para seguir em frente.

No compasso de que a memória não só faz parte da vida como ela é vida, a

mesma está em permanente “evolução”, em um elo vivido no eterno presente. Na

concepção de Pierre Nora, lugar de memória é todo lugar onde há um reconhecimento

por parte de um grupo, neste caso, tanto a Irmandade quanto algum outro grupo que

tenham uma identificação com a cidade de Caicó, por exemplo, a tomarão como um

lugar de memória.

Para a concretização do referido trabalho utiliza-se a História Oral enquanto

metodologia. Por meio desta, recorre-se aos depoimentos de Baia, que ao discorrer

sobre suas lembranças descrevendo as paisagens do passado se torna perceptível a

ocorrência de algo como uma sobreposição da imagem, os narradores criam uma

imagem a cima da já existente a fim de situar melhor aquele que está ouvindo. Isto,

justificado pelo fato de que “a paisagem do presente muitas vezes já não corresponde à

paisagem do passado”.6

No primeiro capítulo, “Perspectivas históricas: enfrentamentos do sujeito”, faz-

se inicialmente uma análise histórica tomando como base o ano de nascimento de Baia,

problematizando as transformações ocorridas no cenário internacional, nacional,

estadual e local à época do seu nascimento. Por conseguinte, fazemos uma discussão a

respeito da evolução dos métodos de produção e análises históricas, suas novas

abordagens, assim como a importância da manutenção da narrativa oral para as futuras

gerações. Entra-se em questão também as formas de estudo das novas preleções de

abordagens históricas e as artes de narrar de cada indivíduo. Em reflexões a respeito de

história e memória, utiliza-se da cidade de Caicó como “o lugar de memória” da

personagem. No tocante a metodologia, discorremos sobre a História Oral enquanto

5NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista do

Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História da PUC-SP. São

Paulo, 1984, p.7 66 SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1º ed. 1996, p. 97

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matodologia utilizada para a elaboração do referido trabalho, além de questões quanto a

sua utilização.

No segundo capítulo, intitulado “Estudo de caso de Maria José da Silva”,

abordaremos o motivo pelo qual nos levou a escolha do objeto, assim como as

peculiaridades que abrangem a personagem. No curso do capítulo é feito um estudo de

Dona Baia enquanto um sujeito histórico, onde será levado em conta suas “artes de

fazer” no sentido dos modos de agir da personagem, enquanto um sujeito que tece os

fios que a ligam ao seu espaço, que faz uso de suas habilidades para se sobressair no

espaço onde está inserida. No decorrer do capítulo explora-se um pouco a vida da

personagem, seus feitos, crenças, missões e memórias, onde, incorpora-se ao tema

questões sobre as figuras marginalizadas e sua função na sociedade enquanto tal. Entra-

se em questão também a participação de Baia na política, assim como a subjetividade do

personagem e seu olhar para com a vida.

Por fim, faremos uma conclusão expondo as considerações do trabalho,

apontando os resultados da pesquisa e o que se conclui a partir deles, apresenta-se

também uma possível solução para a problemática, na qual está inserido o ser social

marginalizado.

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CAPÍTULO 1: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS: ENFRENTAMENTOS

DO SUJEITO

1.1 Análise histórica

De início é relevante uma digressão acerca do momento histórico – regional,

nacional e internacional – em que se ambientava a senhora Baia quando do seu

nascimento, em 04/07/1945.

Maria José da Silva, também conhecida como Baia, a personagem em estudo,

nasceu durante os últimos meses da Segunda Guerra Mundial, a qual tem como data

oficial de fechamento o dia 02/09/1945 com a rendição formal do Japão, momento de

grande turbulência para a política mundial.

No decorrer do ano de natalício da senhora Baia também ocorreram

acontecimentos marcantes para a política interna do Brasil, foi em 1945 que o Brasil

saiu da ditadura do “Estado Novo”, regida por Getúlio Dorneles Vargas desde 1937, e

começou-se o “Regime Liberal Populista”, cuja gestão inicial coube José Linhares, que

passou a exercer a Presidência da República por convocação das Forças Armadas. Logo,

Baia nasceu em um período em que o Brasil, assim países internacionais, passavam por

transformações políticas e enfrentava importantes movimentos históricos, caminhando

para mudanças significativas.

Em âmbito estadual, vivia a capital potiguar o início de uma sensível fase de

declínio, decorrente esta do fim da guerra, a qual tinha trazido maciço investimento para

cidade desde 1942, quando as tropas Aliadas, lideradas pelos Estados Unidos da

América, passaram a utilizá-la como centro de distribuição de mantimentos e armas,

face sua privilegiada posição geográfica, tornando a antes ignorada Natal em um

exemplo de modernização.

A cidade de Caicó, por sua vez, enfrentava, segundo a autora Paula Sônia de

Brito (2004), o processo de implantação da Escola Prevocacional de Caicó, liderado por

Dom José Adelino Dantas. O bispo mostrava uma aptidão por implementar na cidade

projetos de incentivo a melhoria de vida por meio da educação. Esta Escola

Prevocacional, que fazia parte de uma rede de instituições católicas, sucedeu a chamada

Escola dos Pobres de São José. A implantação da referida escola teve início em 1944 e

seguiu por mais alguns anos, a política de incentivo aos estudos por parte dos clérigos

virou reportagem nos jornais A Folha de Caicó e no A Ordem.

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A Escola Prevocacional representava para Dom Delgado o primeiro passo para

a criação de uma escola profissional, sua motivação para a implantação da mesma era

tanta que o mesmo viajou para o Rio de Janeiro em busca de arrecadar fundos e então

inaugurar a tão desejada escola. Sua ida para a até então capital do Brasil virou notícia

no Jornal católico A Ordem.

A minha vinda ao Rio de Janeiro se prende ao apelo que desejava

fazer ao Governo Federal, as autarquias, aos estabelecimentos

bancários, aos católicos em geral ņ e muito especialmente as famílias

nortistas que aqui se encontram ņ no sentido de nos auxiliar na

construção da Escola Industrial de Caicó. Esta obra que propus

realizar com toda minha dedicação de bispo e de filho do Norte do

Brasil há de refletir dentro de um pouco mais com os seus benefícios

em prol do preparo técnico de centenas de rapazes que se vem a

braços com as dificuldades da vida por falta de conhecimentos que os

capacitem para exercer qualquer ofício. Esta obra é, como já lhe

disse, o ponto crucial da minha gestão apostólica. Faço empenho e

renovo aqui o apelo para que todos me ajudem a construir este núcleo

de trabalho que tem um fim grandemente altruístico e patriótico

porque dotará o Brasil de novos elementos capazes de trabalhar pela

expansão do seu progresso, da sua indústria da sua vida econômica.

Qualquer óbulo para este fim pode ser entregue ao Dr. José Augusto

Bezerra de Medeiros, [...] que está autorizado a receber as dádivas de

qualquer pobre ou rico que deseje contribuir para a nossa Escola

Industrial (MEU DESEJO…, 1944, p. 3).

Esta escola prevocacional foi mais um dos projetos que tinha como objetivo a

educação de jovens e adultos. Já em 1967, no preâmbulo do Regime Militar, criou-se o

Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), uma iniciativa governamental voltada

para a alfabetização de adultos. Baia se alfabetizou no Mobral, aprendeu a ler e a

escrever já na sua fase jovem, o que a ajudou muito na sua lida cotidiana, como poder

ler uma carta, escrever suas composições, o ato de se alfabetizar agregou-lhe

principalmente aos detalhes, que são o que tornam o todo tão mais significante.

O contato com a leitura possibilitou a Baia abranger um pouco mais seu

conhecimento sobre o mundo, discorrer melhor a respeito de suas opiniões, crenças e

momentos de sua vida, além de dialogar de forma mais clara com o outro.

1.2 Estudo da historiografia

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A produção histórica tradicional que imperou no meio acadêmico por muito

tempo trabalha numa perspectiva de tempo linear e tem um caráter precipuamente

literário, sendo marcada por grandes acontecimentos e baseando-se na história dos

grandes homens e dos grandes feitos, através da qual a sociedade é analisada da alta

para a baixa classe.

Comumente, as revoltas populares que ocorreriam eram vistas pelos

historiadores tradicionalistas, até o início do século passado, como atos marginais, logo,

tais movimentos por serem tidos como maus exemplos para a sociedade eram omitidos

ou pouco explorados, além do que o individual não era reputado como algo relevante à

ser analisado a época. Desta feita, o que se fazia era a “história totalizante”, os grandes

acontecimentos. “Baczko o observou: ‘a história das idéias’ nasceu de reações comuns,

particularmente contra o parcelamento que levou, no âmbito de uma obra ou de um

período, à compartimentação das disciplinas”.7

A citada metodologia de se estudar e registrar o tempo e suas interações com o

meio social dominou de forma quase pacífica até o início do Século XX, mais

precisamente no ano de 1929, quando surge na França a chamada Escola dos Annales,

uma revista que trouxe uma nova perspectiva de análise histórica, marcando um

processo de transição da História Clássica para a Nova História.8

O Annales caracterizou uma renovação nos moldes de se analisar e fazer

história, principalmente no período da primeira e segunda geração, quando ocorre uma

inovação nos conceitos históricos e começa-se a trabalhar não só com os grandes

homens, mas com o coletivo, os grupos, o pedinte que faz parte de uma rede de outros

pedintes. Atenta-se então para as particularidades de cada um. Dialoga-se então, com a

ideia de uma “nova história”. Essa nova perspectiva de ver a história encaixa-se na

nossa temática, visto que estamos tratando aqui de um sujeito em particular, Dona Baía.

Nesse sentido, o homem deixa de ser o sujeito da história para tornar-se um objeto,

produto dela. Desta feita, Certeau afirma a interdisciplinaridade ser algo plausível a ser

considerado a partir do “entrecruzamento das disciplinas e dos métodos, associando à

história e à antropologia os conceitos e os procedimentos da filosofia, da linguística e da

psicanálise”.9

7CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p.31.

8 REIS, José Carlos. Escola dos Annales – a inovação em história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

9CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus, 1995, p. 85

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Proporcionando um novo olhar sobre o tempo, a Revista inseriu num primeiro

momento ao estudo histórico, o princípio da interdisciplinaridade, onde, a História

poderia dialogar com outras ciências e não mais se restringir apenas ao seu espaço. É

nesse momento que surgem novos conceitos como “Geo-história”, “tempo histórico” e

“conhecimento histórico”.

Além de proporcionar inovações no campo histórico, a Escola dos Annales

propiciou também o surgimento de novas linhas de pesquisa não só no campo da

História, mas de outras artes. A Nova História Cultural é uma dessas inovadoras linhas

de pesquisa que será abordada a seguir.

1.3 Nova História Cultural10

Tendo seu surgimento no final dos anos 70, a Nova História Cultural é uma linha

de pesquisa que se difere um tanto quanto das demais por dar maior visibilidade às

camadas populares, por se preocupar em retratar os conflitos existentes na sociedade

através de uma análise das culturas. A História Cultural é uma história plural que

apresenta caminhos diversos para a pesquisa histórica, analisando o homem comum, sua

cultura e vivência.

A Nova História começou a se interessar por toda ação humana. Com esses

novos olhares sobre a prática histórica ocorreram muitas mudanças nas pesquisas, nos

procedimentos e nas abordagens dos estudos históricos. O que vem possibilitando uma

visão maior para essa nova linha de pesquisa é, segundo Sandra Jatahy Pesavento, “a

renovação das correntes da história e dos campos de pesquisa, multiplicando o universo

temático e os objetos, bem como a utilização de uma multiplicidade de novas fontes”.11

Seguindo a linha de pensamento da referida autora, “uma das características da História

Cultural foi trazer à tona o indivíduo como sujeito da História, recompondo histórias de

vida, particularmente daqueles egressos das camadas populares”12. É nesse sentido que

se insere nossa personagem, Baia, vista por ela mesma como um sujeito que vive as

margens da sociedade e que, a partir da recomposição de suas memórias, terá sua

história de vida problematizada.

10

História Cultural na concepção de Emília Viotti da Costa, trata-se de uma corrente histórica que se

preocupa com a subjetividade dos agentes históricos. 11

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. 2º Edição. Belo Horizonte: Autêntica. 2003, p

.69 12

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. Cit, p. 18

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22

A proposta desse novo modelo historiográfico visava o rompimento com a

história dita tradicional, que se restringia ao estudo da política como forma de valorizar

uma preleção e sentimento de identificação com o meio social, utilizando como

vestígios somente documentos escritos e oficiais13. Desse modo, na concepção de

Febvre e Bloch, fundadores da Revista dos Annales em 1929, a História não poderia

restringir-se somente ao político e utilizar como fonte apenas as tradicionais, mas

também abrir-se para diferentes objetos, como por exemplo, o estudo da cultura, que

analisa as representações artísticas feitas pelo homem.

Por ser uma vertente que dialoga com as demais áreas, diversas outras correntes

podem se aglomerar dentro dessa história. Um dos contratempos com o qual o

historiador pode vir a se deparar ao optar pela História Cultural é o modo difuso no qual

o campo se apresenta, onde, segundo Peter Burke, não existe conformidade entre os

métodos e objetivos desse tipo de narrativa. No momento em que há espaço para o

método quantitativo14, novos tipos de fontes e objetos de análise surgirão.

Os historiadores adeptos ao novo modelo de História preocupam-se em analisar

as relações existentes entre as mais diversas artes, integrando-as, tentando manter uma

ligação entre os elementos estudados, originando, assim, o que caberia chamar de

“retratos de uma época”.15

A História Cultural surgiu como uma opção à história dita tradicional, pois as

tendências atuais direcionam-se às práticas culturais da vida cotidiana. Trata-se agora

das particularidades; os grandes homens da história dão vez a sujeitos ordinários que

também compõem histórias, sejam elas individuais ou coletivas.

O estudo da cultura e do social trabalha com o individual como afirma Fernand

Braudel, é importante conhecer o meio em que vive para, então, se compreender a

sociedade.

1.3 A Narrativa histórica

13

BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: Editora UNESP, 1992, 360. 14

Segundo Peter Burke, o método quantitativo baseia-se na quantificação de dados, tanto na coleta de

informações quanto no tratamento dessas para as diversas técnicas, o que possibilita uma gama de

novas abordagens. 15

BURKE, Peter. O que é história cultural. Trad. Sergio Goes de Paula – 2ºed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editora. 2008

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23

O atentar-se para a interpretação que o personagem faz de sua narrativa permite

ao pesquisador dialogar com seu objeto, problematizá-lo e conceituá-lo, visto que toda

trajetória de vida está propensa a altos e baixos.

A narrativa histórica está voltada para os esquecimentos da história, assim como

para as lembranças . Essas construções formulam-se em cenas arranjadas da história

onde a escrita também está inserida nesse cenário passível de imaginação. Como afirma

Certeau, a narrativa histórica assim como a escrita da história

tem uma função simbolizadora, permite a uma sociedade situar-se,

dando-lhe na linguagem um passado e abrindo espaço próprio para o

presente: marcar um passado é dar um lugar à morte, mas também

redistribuir o espaço das possibilidades, determinar negativamente

aquilo que está por fazer e, consequentemente, utilizar a narratividade

que enterra os mortos como meio de estabelecer um lugar para os

vivos.16

Nesta perspectiva, a escrita da história toma a forma de uma narrativa histórica

por esta também se remeter a experiências temporais.

Um dos pontos chaves a serem analisados em uma narrativa é a especificidade

da construção do discurso, a aproximação que se faz do passado com o tempo presente.

Walter Benjamin afirma, em 1936, que o narrador se mantém cada vez mais distante da

atualidade, ele está submerso em seu tempo, na nostalgia que lhe traz suas

rememorações. A narrativa, embora algo nato do ser humano, tem se mostrado cada vez

mais rara. Esse fator tanto pode se dar por uma falta de interesse em narrar, como pôr a

forma de contar de histórias já não cativar mais o ouvinte.

Os contadores de histórias mantêm em sua lida saberes e fazeres que são

perpassados de uma geração para outra. Com o avanço tecnológico se tem, atualmente,

um acesso maior à informação, o que se revela como um contraste presente nessa nova

geração, como se pode ir diretamente ao ponto que se deseja saber o acesso é bem mais

fácil, porém, ela não permite uma tecelagem daquele dado ou mesmo estender-se sobre

outras perspectivas analíticas; já “com a narrativa é diferente: ela não se esgota.

Conserva sua força reunida em seu âmago e é capaz de, após muito tempo, se

‘desdobrar’”, afirma Walter Benjamin.

A arte de narrar requer prática e apresenta em si características únicas de cada

indivíduo. Uma mesma história, se contada por duas pessoas diferentes, não será

16

CERTEAU, Michel de. Op. Cit. 107.

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descrita da mesma forma. É possível perceber, a partir de uma história narrada, a carga

emocional que o narrador deposita sobre aquela lembrança. Em certos momentos das

entrevistas realizadas com Baia, percebeu-se sua voz embargada, pausas na fala afim de

degustar melhor aqueles sentimentos invocados a partir de suas rememorações.

Ao relatar, o narrador apropria-se de algo que lhe pertenceu: o tempo. Ecléa

Bosi, em seu livro Memória e sociedade, trabalha com a narrativa de pessoas mais

velhas, especificamente por elas trazerem consigo uma “responsabilidade” maior em

seus contos e por buscarem rememorar elas mesmo suas lembranças. Seguem suas

considerações sobre o tema.

Ao lembrar o passado ele não está descansando, por um instante, das

lides cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do

sonho: ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio

passado, da substância mesma da sua vida.17

A partir de uma discussão anteriormente feita a respeito da História Cultural, as

novas abordagens da história, as artes de narrar e os novos olhares para com a História e

a historiografia, optou-se por trabalhar a história de vida da senhora Maria José da Silva,

popularmente conhecida por Dona Baia, buscando, a partir de seus relatos de vida,

estabelecer um diálogo entre suas vivências e o contexto histórico-social no qual está

inserida.

Nesse sentido, o presente trabalho trata-se não de uma biografia, mas das artes

de narrar, do que se faz presente no discurso daquele que usa de “táticas e astúcias” para

burlar certas barreias que a vida lhe impôs, tomando por base a história de um

indivíduo, sendo este uma mulher, negra, septuagenária e marginalizada, nascida na

década de 1940 na cidade de Caicó – RN.

1.4 História, memória e oralidade

17

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras,

1994.

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25

A construção de espaços está intrinsecamente ligada à formulação da memória

assim como a mesma está ligada à narrativa. É sabido que a memória não é linear, mas

sim algo que está sempre em construção e propenso a receber influência de elementos

exteriores. Nela estão presentes lacunas, partes de uma história que tenta se costurar por

meio da narrativa.

O personagem narra suas lembranças que a posteriori serão lapidadas através

de uma reflexão e análise da carga sentimental que aquela reaparição da memória

representa. Temos em nossa pesquisa uma narradora que se difere justamente pela forma

como expõe suas narrativas. Enquanto narra suas histórias, Dona Baia faz uma volta ao

passado, rememora e traz ao tempo presente suas memórias e lembranças, por ora

felizes, por ora não.

A lembrança de uma pessoa de mais idade é mais contemplativa e menos ativa,

no sentido de que o seu tempo de atuação profissional já passou, as atividades outrora

exercidas já não lhe pressionam mais. Este apenas revive o passado.

A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência

profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo

desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes

amados, é semelhante a uma obra de arte.18

A figura de Baia se faz importante tanto na Igreja Católica quanto na Irmandade

do Rosário onde ocupa a posição de Rainha Perpétua da Irmandade, por ela ser uma

guardiã das tradições religiosas. Em suas narrativas fica clara a tentativa de repassar

seus antigos cultos e crenças para as gerações futuras. Reforça-se a história para que ela

não seja esquecida, “multiplicam-se as casas de memória, centros, arquivos, bibliotecas,

museus, coleções, publicações especializadas (até mesmo periódicos)”19 para que as

lembranças não se percam no tempo, mas resistam a ele. Desta feita

A memória não pode ser entendida como apenas um ato de busca de

informações do passado, tendo em vista a reconstituição deste

18

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras,

1994. 19

MENESES, Ulpiano B.de. apud ORIÁ,R. Memória e ensino de História. In BITTENCOURT, O saber

histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto,1997.p. 129.

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passado. Ela deve ser entendida como um processo dinâmico da

própria rememorização, o que estará ligado à questão de identidade.20

A memória constitui, ainda que de forma lacunar, um elo entre as sociedades. A

narrativa permite a constituição do passado em sua totalidade.

A arte de contar histórias por parte dos mais velhos tem decaído pelo fato dos

mais jovens não terem mais tempo ou interesse de ouvilos a arte da oferta, da troca de

experiências tem sido deixada um pouco de lado.

Em suma, a memória é uma construção consciente e/ou inconsciente que exerce

uma relação direta com a personalidade do sujeito, seja pela percepção individual que

têm de si ou a imagem que se quer passar para os outros. A memória se torna um

elemento de reconhecimento identitário, que propicia ao sujeito encontrar-se e

reconhecer-se no meio em que vive.

Memória e História, mesmo estando ligadas uma a outra, são linhas que em

muito se diferem.

A história é compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na

memória dos homens. No entanto, lidos nos livros, ensinados e

aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados são selecionados,

comparados e classificados segundo necessidades ou regras que não se

impunham aos círculos dos homens que por muito tempo foram seu

repositório vivo. Em geral a história só começa no ponto em que

termina a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a

memória social. Enquanto subsiste uma lembrança, é inútil fixá-la por

escrito ou pura e simplesmente fixá-la. A necessidade de escrever a

história de um período, de uma sociedade e até mesmo de uma pessoa

só desperta quando elas já estão bastante distantes no passado para

que ainda se tenha por muito tempo a chance de encontrar em volta

diversas testemunhas que conservam alguma lembrança. Quando a

memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por

suporte um grupo, [...] então o único meio de preservar essas

lembranças é fixá-las por escrito em uma narrativa, pois os escritos

permanecem, enquanto as palavras e os pensamentos morrem.21

A Memória começa no momento em que a História finda. A estreita relação

entre História e Memória tem sido objeto de análise já há alguns anos.

20

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4º ed. São Paulo: Edusp,

2003. 21

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

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27

Questões como essa têm moldado análises e reflexões no tocante à produção

historiográfica, mais enfaticamente, à escrita da história. Pierre Nora traz uma outra

definição sobre a afinidade da história com a memória que diz muito sobre cada uma. A

autora nos lembra que memória é vida e, por estar em uma eterna construção, a mesma

está vulnerável a lembranças e esquecimentos.

A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que

não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vi-

vido no eterno o presente; a história, uma representação do passado. A

história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e

discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história

a liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo

que ela une, o que quer dizer como Halbwachs o fez, que há tantas

memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e

desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrá-

rio, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o

universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na

imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às

evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a histó-

ria só conhece o relativo.22

História, lugar, memória e oralidade mantêm uma relação de reciprocidade. As

mesmas não existem isoladamente, precisam de uma comunhão para acontecerem. A

memória só se faz a partir da construção de um lugar, que se dá através da existência de

um espaço, já a história se faz e “reproduz”, além da forma escrita, também por meio da

oralidade, isto desde os tempos remotos. Memória, assim como História, precisa da nar-

rativa oral para que suas lembranças não se vão com o tempo.

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, neste senti-

do, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e

do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulne-

rável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e

de repentinas revitalizações. 23

A Memória não é algo fechado, isolado em si, mas partilhado, onde precisa da

participação de outros para ser reforçada e difundida entre os seus.

22

NORA, P. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo: n. 10.

1993. 23

NORA, Pierre. Op. cit. p. 11

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Uma preocupação com a memória emerge quando sua perda começa a

ser sentida e isto inquieta os depositários da memória. São os respon-

sáveis por mantê-la e dinamizá-la, ressignificando-a. Mesmo fragmen-

tária e seletiva, a memória constitui uma das formas pela qual as soci-

edades se mantém ligadas por um elo comum de experiências culturais

e, portanto, de identificação.24

Ao rever antigas fotos de alguns lugares da cidade de Caicó, como a Igreja do

Rosário na década de 1960, imagens do Cine Alvorada, da Praça do Coreto e de outros

lugares, percebe-se a carga de sentimentos evocados junto as lembranças. Com a fala

embargada e os olhos encharcados, Baia se remete ao tempo onde não havia inveja, de-

sigualdade, um tempo de pureza e inocência. A imagem a seguir foi uma das mostradas

a ela no momento de uma das entevistas.

Imagem 1: Vista parcial de Caicó – RN, Igreja do Rosário na década de 1960.

1.5 História oral25, seus métodos e possibilidades

A metodologia a ser utilizada no presente trabalho enquadra-se na perspectiva

da História Oral, onde a análise dos depoimentos de Dona Baia nos permitiiu compor a

pesquisa.

24

ANDRADE, Joel Carlos de Sousa. Os filhos da lua: Poéticas Sebastianistas na Ilha dos Lençóis – MA.

2002. P. 132. 25

A História Oral é uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com

pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou

outros aspectos da história contemporânea. www.cpdocfgv.br.

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A prática de trabalhar com depoimentos não é de todo inovadora historiadores

da Antiguidade como Heródoto e Tucídides, já recorriam à História Oral para

registrarem os feitos de sua época porém, esta só veio intensificar-se em 1948 com o

surgimento do gravador portátil, utilizado nas entrevistas.

Apesar do desenvolvimento da escrita ao longo dos séculos

(notadamente durante o Império Romano), um meio de conhecimento

histórico valorizado pelos antigos historiadores correspondia ao que

Tucídides havia defendido: a observação direta pela visão (opsis) e

pelo ouvido (akoê). (2007: 23).26

Há pesquisadores consideravam a História Oral como uma ferramenta que

daria voz aos oprimidos, uma possibilidade de tratar a existência de uma história dos

sujeitos ordinários. “Não há dúvida de que a possibilidade de registrar a vivência de

grupos cujas histórias dificilmente eram estudadas representou um avanço para as

disciplinas das Ciências Humanas”.27

Uma das características da História Oral é o trabalho com o individual feito a

partir de um estímulo, onde o pesquisador vai à procura do narrador para lhe fazer

perguntas. Neste caso particular, o consentimento e vontade por parte do entrevistado

em narrar foi de suma importância. Baia, com toda sua predisposição em ajudar,

contribuiu de forma positiva com a pesquisa.

A pesquisa com fontes orais apoia-se em pontos de vistas individuais. A mesma

permite ao sujeito estabelecer um contato direto com seu objeto de pesquisa. Utilizou-se

a História Oral enquanto uma técnica, disciplina e metodologia. Essa metodologia

permite uma compreensão das experiências vividas por outros. É um campo onde se

encontra várias possibilidades de trabalho, como também grandes desafios. Nessa ótica,

cabe destacar a importância da história oral. Segundo Meihy (2007):

A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela

lança vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de

ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a

maioria desconhecida do povo. Estimulam a professora e alunos a se

26

CADIEU, François [et al.]. Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2007. 27

PINSKY, Karla. Fontes históricas. In: ALBERTI, Verena, BORGES, Vavy, Pacheco. 2 ed. Ia

reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008.

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tornarem companheiros de trabalho. Leva a história para dentro da

comunidade e extrai a história de dentro da comunidade. Ela ajuda os

menos favorecidos, especialmente aos idosos, a conquistarem

dignidade e autoconfiança. Propicia o contato – e a compreensão –

entre classes sociais e entre gerações. E para cada um dos

historiadores e outros que partilhem das mesmas intenções, ela pode

dar um sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada

época. Em suma, contribui para formar seres humanos mais

completos. Paralelamente, à história oral propõe um desafio 13 aos

mitos consagrado da história, ao juízo autoritário inerente à sua

tradição. E oferece os meios para uma transformação radical no

sentido social da história.28

Dessa forma, o ato de contar histórias induz a uma reflexão sobre os anseios

coletivos e individuais, o que possibilita a aquisição de experiências em contribuindo

para uma visão subjetiva, em união com o registro único do narrador. Há uma

reciprocidade entre a escrita e a oralidade.

O emprego da História Oral permite que se construa fontes e questionamentos

em relação à memória coletiva tradicional, bem como, acerca da influência do tempo e

seus acontecimentos na vida da comunidade ou indivíduos estudados, acessos esses que

não seriam possíveis com a utilização de outras metodologias de estudo.

Partindo-se da premissa de que o trabalho de inserção de seus personagens e

suas peculiaridades materiais é um meio para o estudo de como as memórias coletivas

são modeladas, desconstruídas e refeitas, o procedimento contrário, aquele que,

utilizando-se da História Oral – parte das memórias individuais – destaca os limites

desse trabalho de enquadramento e, concomitantemente, demonstra uma análise

psicológica do indivíduo, o qual tem a predisposição de esconder seus dissabores,

contradições e tensões entre a narrativa oficial do passado e suas memórias.

No curso das entrevistas, havia uma preocupação por parte da entrevistada em

contar sempre bons momentos de sua vida, o que inicialmente foi um “problema”, haja

vista que esses bons momentos não eram tantos assim, mas eram os melhores que Baia

recordara. Após se render as lembranças, os percalços pelos quais passara começaram

então a surgir.

Alguns dos questionamentos que se remetem a esta linha de pesquisa estão

ligados ao uso que se faz da memória, isto pelo fato das lembranças não seguirem um

tempo linear e por estarem inseridas num contexto social, familiar e coletivo. Para

28

THOMPSON, Alistair. Op. Cit. p.44 apud

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31

Maurice Halbwachs, toda memória individual existe a partir de uma memória coletiva,

logo, toda memória está sujeita a modificações.

Em uma narrativa há alguns pontos que são importantes de serem analisados,

como por exemplo, o porquê do narrador estar relatando uma devida parte de sua

história, por que está falando sobre isso, para quem está contando e de que maneira.

Nesse momento o objetivo é analisar a imagem do narrador e sua performance ao contar

sua história.

A narrativa permite o diálogo com diferentes dimensões uma sociedade que se

conserva arraigada a tradições orais dá vez ao coletivo uma vez que essa precisa de

pessoas para que tenha significado. Desse modo, a valorização do coletivo está

diretamente ligada à tradição oral.

A oralidade é uma das mais antigas formas de comunicação e ensino da

humanidade. A palavra falada além de som tem força, poder e intensidade. O filósofo

americano Walter Ong nos afirma em seus trabalhos sobre oralidade e escrita que

As nações orais preferem, especialmente no discurso formal, não o

soldado, mas o soldado valente; não a princesa, mas a bela princesa;

não o carvalho, mas o carvalho robusto. Assim a expressão oral está

carregada de uma quantidade de epítetos e outras bagagens formulares

que a cultura altamente escrita rejeita como pesados e tediosamente

redundantes em virtude de seu peso agregativo.29

Oralidade e a escrita possuem uma relação dicotômica e mútua ao mesmo

compasso, ambas possuindo critérios de análise diferentes. Há quem diga que a história

começa no momento em que a escrita surge; já outros contrapõem essa tese baseando-se

no argumento de que a oralidade já existia bem antes, logo, já existiria história. Albán

faz uma ressalva em seu texto a respeito da escrita e narrativa oral afirmando que:

O suporte físico do papel tem contribuído para a ‘permanência da

voz’, como gosta de dizer o medievalista Paul Zumthor, mas por outro

lado, nem a representação escrita nem a icônica conseguem aprisionar

a voz. Ao contrário, renovam-se continuamente, emprestam-lhe novas

cores, novas perspectivas, abrem-lhe novos caminhos, que cada

29

ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas: Papirus, 1998, p.49

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32

contador/cantador sabe traçar com sua percepção de co-autor dessa

produção oral.30

Histórias alimentam a alma, entrevistas que utilizam da história oral buscam em

sua completude uma maior nitidez dos fatos. Em decorrência deste, o objetivo no

presente momento é analisar as formas de narrar e a arte que há por trás de cada

narrativa, acoplando-se a isso a utilização da História Oral tanto como fonte quanto

metodologia.

A memória é algo moldado, construído tanto no coletivo quanto na

individualidade. A tradição oral baseia-se na história humana, na reconstrução de sua

memória. A mesma seria uma construção sempre lacunar de fragmentos do passado. A

lembrança não pertence à apenas um indivíduo, mas a um coletivo, haja vista que a vida

é marcada pelo encontro com outras pessoas, logo, o contato com o outro faz adquirir

lembranças que não são suas, mas que se se incorporam a memória daquele que ouvi,

Thompson faz uma ressalva quanto à importância da utilização dessa metodologia:

[···] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da

memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a

realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a

memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a

memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos,

possibilitando a evidência dos fatos coletivos.31

O trabalho com a História Oral se enquadra em um diálogo direto com memórias

e narrativas, constantemente referentes a acontecimentos do tempo presente.Vemos que

[...] a história oral apenas pode ser empregada em pesquisas sobre

temas contemporâneos, ocorridos em um passado não muito remoto,

isto é, que a memória dos seres humanos alcance, para que se possa

entrevistar pessoas que dele participaram, seja como atores, seja como

testemunhas. É claro que, com o passar do tempo, as entrevistas assim

produzidas poderão servir de fontes de consulta para pesquisas sobre

temas não contemporâneos.32

30

apud Almeida e Queiroz. 2004, p. 142 31

THOMPSON, Alistair. Op. Cit. 32

ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 3º ed. Editora FGV. 2013

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33

Essa metodologia de trabalho possibilita o pesquisador ter um maior contato

com o seu objeto de pesquisa. A afinidade criada entre ambos se torna imprescindível

para o bom curso das entrevistas e consequentemente produção da pesquisa, além de lhe

permitir perpassa por tantos outros segmentos de análise.

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34

CAPÍTULO 2: HISTÓRIAS PELAS REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA

2.1 Uma mulher negra na multidão

O trabalho com as narrativas de vida de um personagem ordinário – assim tido

aquele que não encabeçou grandes feitos nem desempenhou funções de destaque para a

coletividade – permite a compreensão de que o registro histórico não deve contemplar

exclusivamente a percepção coletiva, registrada a partir da análise técnica e política de

cientistas sociais, do tempo e seus acontecimentos, mas as particularidades do

indivíduo, posto que também, e provavelmente tão fulcral, sejam as percepções

individuais daqueles que viveram uma época e seus acontecimentos.

Inobstante a visão clássica do estudo histórico ordinariamente ignore as

passagens e opiniões daqueles que não protagonizaram os feitos reputados, muitas vezes

posteriormente, como os mais relevantes para o todo social, esses pontos de vista

marginalizados trazem elementos “de bastidores”, essenciais à formação de uma real e

coletiva análise, posto que os citados acontecimentos influem de forma diversa em cada

indivíduo, variando de acordo com sua situação financeira, origem étnica, colocação

social, gênero, engajamento político, crença religiosa, dentre inúmeras variantes

possíveis. Desta feita, sendo a ciência da História a responsável pela guarda da memória

da sociedade e, não sendo a sociedade mais que uma conjunção de indivíduos, devem os

inúmeros ângulos de percepção ser reputados essenciais à formação de um registro

verdadeiro.

No intuito de trabalhar com os sujeitos ordinários33 da história buscou-se para tal

um caso particular, a narrativa de um indivíduo marginalizado que conseguiu se

sobressair aos percalços que a vida lhe impôs, buscando na religião um meio de

amenizar suas dores e traumas.

Nas andanças pela cidade de Caicó ouve-se falar da figura de Dona Baia, uma

mulher negra de setenta anos, muito devota à religião católica – com características de

hibridismo com religiões de matriz africana – e uma boa contadora de histórias, que não

se deixa abater-se pela idade e que crê na importância da conservação da memória para

as futuras gerações.

Em investigações a respeito da referida pessoa descobre-se nela todos os

elementos a serem abordados na pesquisa, entre os quais se destaca o discurso de um

33

Definição utilizada por Certeau para tratar dos marginalizados, daqueles que se encontram as margens

da sociedade.

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35

“sujeito ordinário” assim como sua forma particular de narrar, o que faz se utilizando do

coloquialismo, decorrente de pouca instrução formal e espontaneidade.

Baia caracteriza-se como uma mulher que esteve à margem da sociedade durante

toda sua vida, a qual traz consigo as marcas e memórias de toda uma vida de pesares e

ardores. Suas maneiras de driblar determinadas perguntas e situações em seu discurso

são características que vem a serem analisadas.

Atos “marginais” cometidos por Baia é um ponto de análise que leva a

demasiadas discussões sobre os usos e desusos de táticas e estratégias, os modos de

fazer que o “sujeito ordinário” utiliza para sobreviver.

A seguir a imagem da senhora Baia, uma mulher que traz em seu rosto as marcas

de expressões de uma vida de superações. Um sujeito que traz o pesar em seu olhar, um

olhar carregado de memórias e passagens. Um olhar perdido em meio ao seu tão vasto

e, contrariamente, recolhido espaço.

Imagem 2 – Foto cedida por Maria José da Silva (Baia). Ano: 2005 Fonte: Arquivo pessoal.

Optou-se por falar sobre essa personagem devido também à sua “necessidade”

em narrar, em deixar registrada sua história para que ela não se perdesse no tempo.

Aliado a isso, conta-se o fato de ser uma septuagenária que se mantém arraigada ao seu

espaço apesar de todos pesares pelo qual passara.

Quando indagada a respeito de sua atual função na sociedade enquanto uma

mulher septuagenária que já passou por momentos consideráveis, e o que espera de sua

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36

vida, temos a seguinte resposta: “Ficar na minha casa, com tranquilidade”34. Os

caminhos pelos quais passara continham pedras e arbustos, ultrapassar essas barreiras

requer-lhe muito esforço, agora enquanto uma mulher de certa idade o que esperava da

vida é poder desfrutá-la na companhia de seu esposo, Seu Severino Romualdo, e

rememorar juntos os feitos de suas vidas.

A arte de narrar caracteriza-se como uma troca o narrador por mais que conte

sua história dezenas de vezes ela, ainda assim, contará com novos elementos, narrador e

ouvinte, ambos se modificam no decorrer do discurso. Como afirma Bosi, “narrador e

ouvinte irão participar de uma aventura comum e provarão no final, um sentimento de

gratidão pelo que ocorreu: o ouvinte pelo que aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho

de ter um passado tão digno de rememorar”.35

Baia, é vista na cidade como uma mulher guerreira, alguém que sofreu muito na

vida e que ainda hoje luta pelo seu reconhecimento, uma senhora que possui

características físicas que expressam um pouco de sua vida e cultura. Abaixo, um trecho

da entrevista feita com Gabrielle Lúcio, residente na cidade de Caicó e que por vezes

tem contato com Dona Baia, fala sobre a sua visão acerca da senhora.

Quando conheci Baia, ela me pareceu ser uma pessoa que

aparentemente tem ou teve uma vida sofrida, o rosto dela parece ser

de uma pessoa que ou sofre ou já sofreu muita coisa na vida. Eu vejo

nela também uma pessoa muito carente de atenção e de muitas outras

coisas também, mas o que eu vejo nela uma de suas maiores carências

é carência social, de atenção, porque ela fica de certa forma querendo

chamar a atenção da gente, ela se sente especial quando a gente dá

qualquer coisa a ela. […] E assim ela tem o perfil de uma pessoa de

cultura diferente, apesar dela ser católica, mas as vezes você olha pra

ela e imagina ser uma pessoa de uma cultura diferente, tipo assim uma

cigana, alguém que mexia com Candomblé, mas aí depois eu descobri

que ela era uma pessoa católica, mas eu tive essa visão quando

conheci ela, e ela tem uma energia diferente, eu não sei explicar que

tipo de energia é essa, mas é uma coisa um pouco pesada, as vezes,

bem pesada assim que você olha para os olhos dela e dá medo, dá uma

angústia assim que eu não sei explicar.36

34

Maria José da Silva, 70 anos, entrevista realizada no dia 05 de Dezembro de 2015. 35

BOSI, Ecléa. Op. Cit. p. 61 36

Maria Gabrielle Lúcio de Queiroz, 29 anos, entrevista realizada no dia 05 de Dezembro de 2015.

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37

O discurso de Gabrielle Lúcio nos ajuda a perceber qual imagem essa senhora

transmite para as pessoas. Por ser alguém que já sofreu muito, Dona Baia carrega em si

as marcas desse sofrimento. Como diz Gabrielle, “a senhora passa uma energia pesada,

como se já remetesse as dores do seu passado”.

2.2 O sujeito histórico

Maria José da Silva, mais conhecida como Baia, nascida no dia 4 de julho de

1945 na cidade de Caicó, filha de pais paraibanos, ambos nascidos na cidade de Brejo

de Areia, interior da Paraíba, é uma personagem local singular. Narra a senhora Baia ter

tido uma infância feliz, fase que relembra com nostalgia, em que pese aponte ter vivido

diversos dissabores e sido vítima de atos de violência.

Indagada acerca de sua tenra infância, correspondente à década de 1950, a

senhora Baia relata que costumava brincar nas ruas da cidade de Caicó com as demais

crianças vias estas, quase em sua totalidade, ainda não pavimentadas, afirmando que era

usual entre seus amigos descer correndo as ladeiras de terra da cidade.

Foi abusada aos quatorze anos de idade pelo até então namorado e posta para

fora de casa devido o ocorrido. Uma mostra de uma sociedade em que a mulher ainda

era vista de forma inferiorizada. Ao invés daquele que cometeu o abuso ter sido

penalizado, Baia foi quem sofreu as consequências, sendo expulsa de sua casa pelo seu

irmão, como se a mesma tivesse sido a responsável pelo ocorrido.

Aos vinte e três anos casou-se com o senhor Manoel Fernandes, ela com vinte e

três e ele com sessenta e cinco, e aos trinta e quatro ficou viúva após a morte de seu

esposo, possivelmente causada por uma crise de asma. Cantora e compositora de

cânticos religiosos e de outras vertentes, encontrou na Igreja um lugar de refúgio.

Seus pais se chamavam José Manoel dos Anjos e Maria Antônia da Conceição.

Ao rememorar sobre suas lembranças mais tristes e os momentos de saudades Baia fala

sobre seu pai. “Sinto saudade do meu pai. Ah meu Deus… Meu pai partiu no dia 21 de

1961, morreu numa Quinta-feira. […] A coisa que eu sinto saudade foi quando ele disse

assim: tchau, vou embora”.37

Mesmo aos dezesseis anos, sua dependência para com seus pais era tamanha

que, ao perder seu pai, que era para ela sinônimo de proteção e confiança, perdeu

37

Maria José da Silva, já citada anteriormente.

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38

também sua “identidade”, em depoimento constata-se que até o seu nome era algo que

ela desconhecia de fato.

Por tanto quando ele faleceu, muito tempo que aconteceu aquilo

comigo, aquele cabra safado me estuprar, aí eu fiquei sem saber o meu

nome, se era Maria José Meira, se era Meira, se era Meira, até que

quando eu fui casar no primeiro casamento eu fui tirar o batistério na

Igreja de Santana, na casa paroquial, aí o padre nesse tempo era Pe.

Antenor. Padre Antenor disse: Como é o seu nome? E eu disse: é Maria

José Meira, procure aí Jacinto, não encontrou nada não. Baia você vai

fazer o seguinte, você vai pra casa pergunte a sua mãe, por que você

não se batizou-se aqui não. […] Quando eu fui saindo aí Jacinto disse:

Oh Baia volte aqui. E eu voltei. Oh Baia, você não tem outro nome

não? Eu disse: eu não sei não. Aqui tem 4 de Julho de 1945, mas o

nome é Joana. Pronto, era o nome que mamãe queria comigo.

Dona Baia é uma figura emblemática, Rainha Perpétua da Irmandade dos

Negros do Rosário, realizou muitos trabalhos religiosos, viajou levando sua dança,

canto e crença pela região do Sertão Potiguar.

Suas melhores lembranças de infância são as de brincadeiras de boneca, algo

singelo em meio a um período marcado por traumas e superações. Atos de violência

sem razões ou motivos aparentes era o tipo de cena que costuma ver em seu dia a dia.

Quando ainda jovem Baia tivera de lidar com a falta da única irmã que havia

conhecido, Ester. Sua irmã tinha um relacionamento com um rapaz, um homem loiro e

de olhos claros, o que causava certo estranhamento até mesmo por parte da família o

fato de um homem branco querer algo com uma mulher negra e sem recursos. Por ser

um homem de pele branca e se achar superior, o mesmo se via no direito de violentar

Ester, que acabou fugindo para São Paulo ainda jovem, no ano de 1967, na tentativa de

se livrar dos maus tratos do companheiro, deixando toda sua família sem notícias suas

até os dias de hoje.

Em depoimentos, Baia relata um fato de sua adolescência do qual foi

testemunha, um ato de violência acometido pelo seu cunhado à sua irmã Ester. A mesma

tivera dois filhos com aquele que foi seu companheiro por três anos, o primeiro faleceu

ainda bebê, e o segundo se chama Sancler.

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No dia 8 de Setembro, no dia que ele completou um ano o outro

nasceu, morava em Nova Descoberta e ele judiava muito com a minha

irmã, mas meu pai já tinha falecido né, e eu era frangota ainda não

sabia o que era nada e nem brigar com ninguém, ficava só chorando e

ela apanhando, pegava a cabeça dela minha fia, as panela no fogo

fervendo e botava a cabeça dela assim, só faltava botar dentro da

panela no fogo, mas tirava e ficava a cara dela toda pipocada, esse

cara era muito safado viu38

. (sic)

A ausência do pai trouxe à tona a Baia e seus irmãos uma realidade que eles não

tinham consciência, como o esforço que seus pais faziam para dar-lhes uma vida digna.

Somente com a falta do patriarca que foi possível e preciso que Baia e seus irmãos

trabalhassem para ajudar na subsistência da família. Aos 16 anos quando perdera seu

pai, que trabalhava fabricando fogos de artifício, tivera que começar a trabalhar cedo em

casas de família para ajudar nas despesas da casa, o que até então era impensável, visto

que, apesar das dificuldades o pai não permitia que as filhas trabalhassem fora de casa.

Enquanto trabalhava como babá sua mãe fazia bonecas de pano para vender, e assim

iam levando a vida.

2.3 Casamento: as amarras da libertação

Ainda enquanto jovem, o casamento foi uma tábua de salvação encontrada por

Baia para sair da situação na qual se encontrava, uma jovem, desamparada e

marginalizada, como conta em sua narrativa.

Aí eu tava chorando detrás de casa e um senhor vai me chamou:

Ei, ta chorando porque Baia? É por causa que meu irmão botou

eu pra fora. Vamos morar comigo Baia? E eu fui morar mais o

véi. Eu com vinte anos e ele bem com uns quarenta por aí

assim, mas graças a Deus me deu nome, casei, morei com ele

do dia 19 de Novembro de 1967, 25 de Outubro de 1968

casemo no civil.39

(sic)

Baia casou-se jovem, motivada pelo abuso sofrido, e mesmo estando junto ao

seu parceiro ainda era vista com maus olhos pela sociedade, até o momento em que Frei

38

Maria José da Silva, já citada anteriormente. 39

Maria José da Silva, 70 anos, entrevista realizada no dia 01 de Outubro de 2015.

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Damião em uma de suas missões por Caicó à aconselhara fazer seu casamento no

religioso, e assim ela o fizera.

Em seu primeiro casamento Baia não tivera filhos. De acordo com o seu

discurso, seu esposo enlaçou matrimônio a fim de lhe dar um nome, torná-la alguém

reconhecida e bem vista pela sociedade e pela Igreja.

Analisando o contexto da situação, o casamento tanto poderia ter sido realmente

um ato de carinho quanto uma tentativa de um novo estupro, um abuso “consentido”,

haja vista que no âmago do desespero de uma jovem, a única saída encontrada por ela

foi o casamento com um senhor que lhe prestou ajuda no momento em que mais

precisou; onde, o mesmo, aproveitando-se justamente desse momento de fragilidade e

vendo que ela não teria outra saída, utilizou de seus argumentos a convencendo a casar-

se com ele.

Ainda assim, o casamento de Baia proporcionou-lhe uma nova vida, novas

oportunidades e meios de inserir-se na sociedade novamente, uma “tática” elaborada,

mesmo que inconscientemente, para um fim definido. Permanecera casada com seu

primeiro esposo até o ano de 1979, quando o mesmo viera a falecer.

Com o falecimento de seu esposo, ficara somente Baia, sua mãe e um irmão na

casa onde moravam com o Senhor Manoel. Sobreviviam com a pensão recebida pela

morte do companheiro e com os trabalhos que exercia na Igreja, como cantora dos

cânticos religiosos.

Após alguns anos enquanto viúva, Baia encontrou outra pessoa com quem

enlaçara matrimônio, o também viúvo senhor Severino Romualdo, onde, após pedir a

permissão às filhas do senhor Severino para casar-se com ele, tivera uma filha chamada

Santana. Sua mãe faleceu alguns anos após o seu segundo casamento e seu irmão, após

casar-se, mudou-se para outro lugar com sua esposa, ficando apenas Baia e o Senhor

Severino, seu companheiro, que a aparou nos momentos de dificuldade e tristeza.

Após seu casamento com o senhor Severino, Baia adentrou para um grupo que

fazia alguns projetos sociais, eram os chamados Negros do Rosário. Por meio da

inserção nesse grupo, a integração entre o meio social passou a se tornar mais

expressivo, suas ações passaram a ter uma maior relevância, os cânticos que produzia

passaram a ser ouvidos e propagados.

A seguir, a imagem de Baia junto ao seu esposo o senhor Severino Romualdo.

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Imagem 3 – Dona Baia junto com seu atual marido o senhor Severino Romualdo. Data: 01 de

Outubro de 2015. Fonte: Arquivo pessoal.

A maneira encontrada pela personagem de burlar a situação de desamparo vivida

enquadra-se no que Michel de Certeau descreve em sua obra “A invenção do cotidiano –

Artes de fazer”, como “maneiras de fazer” ou mesmo “táticas e estratégias” utilizadas

no dia a dia. A estratégia é o cálculo, a manipulação, seria algo planejado onde se utiliza

dos meios disponíveis para executar uma ação específica; já as táticas se enquadrariam

nas ações calculadas, determinadas pela ausência de um lugar, de uma utilização do

tempo de forma positiva.

Nesse sentido, a estratégia postula um “lugar”, “um próprio”, “um

lugar do poder e do querer próprios”, de onde se podem “gerir as

relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou

os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os

objetivos e objetos de pesquisa etc.)”.40

Os usos e táticas são os modos de fazer de cada indivíduo, são o que

caracterizam o sujeito no espaço que foi criado por ele.

2.4 A Irmandade dos Negros do Rosário

A religiosidade desde cedo é algo muito presente em sua vida, podendo ser

entendida como um refúgio, uma maneira de se redimir do ocorrido em sua infância ou

40

CERTEAU, Michel de. Op. Cit. p. 99.

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até mesmo uma forma de resgatar a candura, já que a culpa do abuso sofrido em sua

adolescência recaiu apenas sobre ela. Baia tornou-se muito querida pela sua devoção

religiosa, sempre presente nas missões da Igreja foi ganhando o prestígio dos clérigos e

dos fiéis que frequentavam a instituição.

Baia passou a fazer parte da irmandade por influência de seus pais que também

faziam parte do grupo. No ano de 1980, veio a tornar-se Rainha Perpétua da Irmandade

dos Negros do Rosário. O fato de pertencer a Irmandade foi um fator a mais que lhe

permitiu inserir-se novamente no meio “social”.

A imagem a seguir mostra Baia com seu traje e faixa de Rainha do Reinado do

Rio do Peixe, em companhia do que fazia seu par como rei na época.

Imagem 4 – Foto cedida do arquivo pessoal de Dona Baia (tirada por volta da década de 1980).

A Irmandade se caracteriza como um grupo “isolado” que luta por causas

sociais, pelo reconhecimento de seu povo e reafirmação de suas tradições culturais. Os

Negros do Rosário são pessoas de fé acima de tudo, que cultuam suas danças, músicas e

ritos no intuito de manter vivas suas tradições.

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário teve seu início no Brasil no Século

XVI, e já em fins do processo da colonização é que as Irmandades se constituem como

tal, sendo formadas por homens negros e membros de comunidades próximas. Em 1771,

criou-se a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos do Seridó, composta por homens

livres e cativos, representando uma forte resistência à escravidão na região seridoense.

Os que participavam da Irmandade eram pessoas negras e de origem africana que

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tinham como protetora Nossa Senhora do Rosário. Na época de sua fundação,

curiosamente, o único branco aceito na Irmandade do Seridó Potiguar era o tesoureiro,

pelo fato de que para a época o negro dificilmente teria as características requisitadas

para exercer tal função, como ser sã de consciência e temente a Deus. Por esse e tantos

outros motivos o negro foi privado de ocupar determinados cargos na sociedade.

Temos aqui um caso em que a capacidade do negro era posta em dúvida pela

própria comunidade negra. Percebe-se aí que a marginalização para com o negro

começa dentro do seu próprio meio social, onde o mesmo se vê “atado a amarras”,

tendo que se submeter a uma determinada situação para poder então usufruir de alguns

de seus “benefícios” a posterior.

Os festejos da Irmandade são uns dos mais tradicionais do calendário religioso

da região do Seridó potiguar, principalmente nas cidades de Jardim do Seridó, Parelhas

e Caicó. As celebrações eram realizadas inicialmente na Igreja de Sant'ana, mas com o

tempo passou a acontecer na Igreja do Rosário.

A Irmandade possui antigas raízes no catolicismo, de acordo com o potiguar

Bosco Araújo.

Vem desde a Idade Média, no século XIII. No Brasil, chegou com os

colonizadores portugueses, mas com o propósito de ser absorvida

pelos escravos que misturaram crenças da sua terra africana ao culto

dos senhores de engenhos, com ênfase à devoção – principalmente aos

santos negros como São Benedito, Santa Efigênia, Santo Onofre e,

também, à Nossa Senhora do Rosário, a mais venerada entre os negros

brasileiros. Há registros de que alguns grupos de escravos, ao

chegarem no Brasil, já cultuavam essa tradição.41

Ao complementar que as raízes da Irmandade vieram das relações de senhor e

escravo no período colonial, Bosco nos dá uma ideia de como surgiram as irmandades

do sertão nordestino.

Essa relação de cumplicidade entre o escravo negro e o senhor branco

teve suas peculiaridades com o trabalho na criação do gado e na

agricultura. Na região, as primeiras irmandades surgiram nas

41

Entrevista de Bosco Araújo – potiguar– concedida ao portal g1 da Globo em comemoração aos 240 anos

da Irmandade na capital seridoense.

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comunidades de Samanaú, Rio do Peixe, Riacho de Fora e Sabugi, e

posteriormente foram criados grupos polarizados em Jardim do

Seridó, Parelhas, Acari, Currais Novos, Jardim de Piranhas, além de

irmandades que existem no vizinho estado da Paraíba.

Dessa maneira, as Irmandades passaram a existir com o intuito de fornecer para

os seus membros um amparo espiritual e moral, além de lutar pelos direitos básicos dos

seus. Uma das reivindicações exigidas pelo grupo era o reconhecimento social, o que

veio com o tempo, posto que até hoje a Irmandade ainda se faz presente e mantém a

tradicional festa de Nossa Senhora do Rosário, mesmo que com uma sentida defasagem.

Se comparado a décadas anteriores, a presença da Irmandade na sociedade tem

se mostrado menos presente, isso tem se dado, segundo os relatos de Dona Baia, devido

ao fato das pessoas hoje não se mostrarem tão abertas a receber o grupo em suas casas

ou comunidades, haja vista que em outros anos os caicoenses ornamentavam suas

residências para receber os membros do grupo em festejo que adentravam e se punham

a dançar.

De acordo com escritos do bispo e historiador Dom José Adelino Dantas em sua

obra Homens e Fatos do Seridó Antigo (1961), a Irmandade dos Negros do Rosário teve

sua fundação em 16 de Junho de 1771.

Deve ter sido, sem dúvida um grande dia, aquele 16 de Junho de 1771,

na povoação do Caicó. Grupos de homens e mulheres de cor,

confluindo de toda parte, aguardando ansiosos a hora de uma reunião

que se lhes marcara na matriz. E’ que a ideia da fundação de uma

Irmandade que congregasse os elementos negros da Freguesia, estava

amadurecida, e havia chegado a ocasião de tomar-se conhecimento

dos termos de seu primeiro compromisso.42

A Irmandade faz parte da vida de Baia por ter representado um marco em sua

história, por ser a Rainha perpétua sua imagem será memorada por todos, anos a fio.

Diante do exposto, entendemos que é a relação social que determina os seus termos, e

não o inverso, foi a participação em grupos de caráter religioso que determinou os

caminhos a serem seguidos por Baia.

42

DANTAS, José Adelino. Homens e Fatos do Seridó Antigo. Garanhuns: O Monitor, 1961.

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Desde tempos remotos que a religiosidade é tida por muitos como o último fio

de salvação, para Baia essa realidade não estava muito distante. O encontro com a

religião a “salvou” da situação de desconforto pela qual passara. A “necessidade” de

fazer parte dos segmentos disponíveis para a população era, além do querer “estar

presente”, uma forma de se desviar das barreiras existentes no seu caminho, a junção de

uma tática enquanto “sujeito ordinário”, quanto à remição por alguma culpa.

A religião católica aparece para Baia não como algo ofertado, mas que lhe foi

imposto, o que é praticado desde tempos remotos no período da escravidão. As

irmandades se caracterizam como grupos de resistência que se fazem presentes na

contemporaneidade, mas que tem seu viés desde o período de escravidão, quando os

negros traficados buscavam criar laços com seus “irmãos” de cela, gerando assim uma

resistência e eram obrigados a pertencer ao catolicismo, ser cristão não seria uma opção,

mas uma condição a ser seguida pelo escravizado. Baia, assim como os negros

escravizados, não teve opção quanto a religião a seguir, já que a mesma lhe foi imposta

por seus pais desde a sua infância.

2.5 Uma figura marginalizada: tessituras de uma vida

Mulher, negra, violentada e viúva vivida na década de setenta no Seridó

Potiguar. Características que por si só dão uma longa história representam marcos na

vida da referida personagem. Baia, como prefere ser chamada, combinado a seus dados

adjetivos afirma, em seus relatos, não ter sofrido preconceito durante sua vida. No

entanto, o fato de ter sido expulsa de casa ao sofrer o estupro foi uma forma de

preconceito advinda do seu próprio seio familiar. Baia diz que não foi nada se

comparado a indiferença sofrida por suas enteadas após o seu casamento com o Senhor

Romualdo, onde veio a saber de fato o que é se sentir realmente discriminada.

As filhas de seu esposo que no início aprovaram o casamento, com pouco tempo

se voltaram contra Baia acusando-a de ter manchado o nome da família devido sua cor

negra e seu “cabelo duro”. Aquelas a quem Baia ajudara nos momentos de dificuldade

foram as mesmas que lhes deram as costas, quando o esperado era, na verdade, um

abraço, um afago por agora fazer parte da família.

Diante da indiferença preferiu a forma de defesa escolhida foi o distanciamento

daqueles que a repudiavam, o desalento sentido por Baia fez com que ela se afastasse

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das filhas do senhor Severino e levasse a vida da maneira mais amena possível, ainda

que com o peso da rejeição.

O que vem a chamar atenção em seu discurso são os marcos de cada etapa de

sua memória, a forma como expõe suas reflexões acerca de sua passagem pelo tempo.

Quando se remete a família, percebe-se aí uma certa emoção, uma carga de sentimentos

a mais em sua fala, posto que os laços familiares se mantêm inalterados no sentido de

que uma mãe será sempre mãe, o filho, mesmo que venha a se tornar pai, será sempre

filho. Essa fixação na posição familiar possui uma valorização enquanto tal, daí as

emoções afluírem mais quando vêm à tona recordações familiares, principalmente ao

falar sobre seus pais e sua irmã Ester, de quem sente muitas saudades.

O julgamento que existe a respeito de cada indivíduo de uma família é diferente

do julgamento de alguém indiferente a você, o parente é julgado de acordo com o que

ele é, e não pelo que possui ou o que representa.

Desse modo, o que mais afligia a Baia era o sentimento de repulsa sentido por

aqueles que fariam parte de sua família, da história de cumplicidade e amizade que

poderia ter existido e não existiu por discriminação e preconceito.

A narrativa de um sujeito marginalizado por vezes diz mais que a de um

intelectual, por assim dizer. A generosidade com que fala combinado a sua simplicidade

dão uma vivacidade ímpar a narrativa.

Experiência adquire-se não com os anos, mas com os danos. Baia, além dos seus

setenta anos passou por momentos de dificuldade consideráveis em sua vida, o que a fez

se transformar na pessoa que é hoje. De suas experiências é que vem sua narrativa

contemplativa.

2.6 O homem ordinário: Baia e as artimanhas da vida

Um dos conceitos trabalhados por Certeau é o de lugar para ele o mesmo indica

estabilidade, centralidade, os espaços só se formulariam enquanto tal a partir da

existência de um lugar. São nos espaços que a trama acontece, onde se dá as relações

que costuraram as trajetórias de vidas e onde se capta os modos de fazer, a forma de agir

de casa indivíduo.

O diferenciador maior entre o espaço e o lugar é a apropriação que o sujeito faz

dele. Segundo Certeau, espaço realiza-se enquanto vivenciado, é o ato, o lugar onde

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ocorre a ação de indivíduos. Quando se projeta uma cidade está sendo criado um lugar,

e as pessoas que por ali transitam transformarão este lugar em espaço.

A respeito da paisagem, Schama dá sua clara definição: “Paisagem é cultura

antes de ser natureza; um constructo da imaginação projetado sobre mata, água,

rocha”.43 Assim sendo, “uma árvore nunca é apenas uma árvore. A natureza não é algo

anterior à cultura e independente da história de cada povo. Em cada árvore, cada rio,

cada pedra, estão depositados séculos de memória”.44

Todo espaço existe a partir de um lugar, assim como, para Halbwachs, toda

memória individual existe a partir de uma memória coletiva, percebe-se aí uma relação

onde um está intimamente ligado ao outro.

Até estabilizar-se definitivamente na cidade de Caicó, Baia havia passado por

alguns outros lugares. Mesmo sendo natural da referida cidade a vida fez com que ela

perpassasse por outras cidades da região. Por fim, ao retornar a Caicó, Baia encontrara-

se novamente com o seu eu, resgatou sua identidade, formulou sua história e construiu o

seu espaço. O espaço, formado a partir da vivência de um lugar, é onde habita o homem

ordinário.

A construção de espaços está intrinsecamente ligada à formulação da memória.

As narrativas de Baia remetem a construção de um espaço que se transformou em lugar,

um lugar de memória. “O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há

locais de memória porque não há mais meios de memória”45. O contar histórias é algo

natural no cotidiano de Baia, reforça-se a história para que ela não seja esquecida, para

que todo o transtorno e frustração passados não tenham sido em vão.

O espaço humano é, em qualquer período histórico, resultado de uma

produção. “O ato de produzir é igualmente o ato de produzir espaço”.

O homem, que devido à sua própria materialidade física é ele mesmo

espaço preenchido com o próprio corpo, além de ser espaço também

está no espaço e produz espaço.46

Sendo um objeto de estudo trabalhado por Certeau, o homem ordinário

enquadra-se como aquele que está em todos os lugares e não está em lugar nenhum. É

43

SCHAMA, Simon. Op. Cit. p. 70 44

Afirmação presente na contra capa do livro Paisagem e memória. 45

NORA, Pierre. Op. Cit. P. 7 46

BARROS, José D'Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes,

2004.

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um ser astuto que consegue tirar vantagens do lugar no qual está inserido, aproveitando-

se dos pequenos deslizes a fim de captar algo para o seu proveito. O mesmo não está

fixo em um lugar, são “nômades” que estão sempre em busca de pequenas brechas no

espaço.

Então, homem ordinário é todo aquele (indivíduo, grupo, etc.) que

consegue fugir, escapar, burlar ou usar em seu proveito um olhar, um

enquadramento, uma determinação, uma ação estratégica, um espaço

totalizador ou um olhar universalizante através de movimentos e ações

táticas, inventivas, astutas burlando, usando e desviando dos choques

com o ‘poder’, (re)inventando olhares, lugares e determinações em

proveito de outros interesses e desejos. Inventando assim outros

espaços, provisórios é certo, de movimentação e de ação, de

visibilidade e dizibilidade e de combate. Enfim, o homem ordinário é

cada um e ninguém, é uma personagem disseminada, caminhante

inumerável, inclassificável.47

Baia, enquanto “sujeito ordinário”, sempre que possível se fazia presente nos

mais diversos lugares, porém, sua presença não era de todo notada. Com o passar do

tempo e sua inserção nos meios religiosos sua imagem passou a ter maior visibilidade, o

que era uma constante, imutável, passou a ser agora uma variável.

O que a torna um personagem singular é o fato de que mesmo ganhando seu

reconhecimento enquanto tal, Baia não deixou de ser aquela que estava as margens.

Uma mulher negra que se destacou por sua perseverança, religiosidade e canto e que em

momento algum saiu do lugar no qual se encontrava, nas margens da sociedade, por

reconhecer aquele espaço como seu, algo pertencente a sua história.

Tomando por base o pensamento de Certeau no tocante ao modo como o

homem ordinário é visto por si só e pelos demais temos que:

O homem ordinário desempenha aqui ainda o papel de um deus que se

pode reconhecer por seus efeitos, mesmo acanalhado e confundido

com o comum supersticioso: fornece ao discurso o meio de

generalizar um saber particular e garantir por toda a história a sua

validade.48

47

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4º ed. São Paulo: Edusp,

2003. 48

CERTEAU, Michel de. Op. Cit. p. 62.

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A linguagem define não só seus preceitos, mas sua historicidade. Neste

segmento há uma inversão de perspectiva, a atenção desloca-se para o “homem

ordinário”, que, ao contrário do convencional, cria o seu cotidiano utilizando dos seus

meios disponíveis. Essa invenção do cotidiano se dá devido às “artes de fazer”, as

astúcias e o modo de operar do indivíduo, sua persuasão e habilidade de se sobressair de

determinadas situações do dia a dia. O estudo do cotidiano seria uma análise das

práticas em ação, uma análise das práticas comuns e principalmente a forma narrativa

dessas práticas.

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em

partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma

opressão no presente. [...] O cotidiano é aquilo que nos prende

intimamente, a partir do interior. [...] É uma história a caminho de nós

mesmos, quase em retirada, às vezes velada. [...] Talvez não seja inútil

sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou

desta ‘não história’, como o diz ainda A. Dupont. “O que interessa ao

historiador do cotidiano é o Invisível (...).49

Desta forma, a análise do cotidiano se faz a partir de práticas cotidianas e das

maneiras de fazer como falar, ler, circular, comprar. São as práticas microscópicas que

interessam a Certeau, assim como as pequenas resistências do indivíduo.

O trocar experiências e a arte da oferenda fazem parte das práticas tradicionais

africanas. Em entrevistas com Dona Baia foi possível sentir a arte da oferta em sua

narrativa, a troca, não dita de forma verbalizada, mas sentida a partir de gestos.

Baia, além do campo religioso, inseriu-se também no âmbito político,

participava ativamente de comícios onde abraçava a campanha junto ao seu candidato e

cantava durantes as passeatas alguns de seus jingles.

Caicoense brabo 15 de Novembro vamos todos votar

vamos votar com Vivaldo para prefeito para melhorar

após tanto tempo o nosso povo vai se libertar

ele não queria queria mas Dinarte quis e resolveu ficar

49

CERTEAU, Michel de. Op. Cit. p. 31

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50

Dr. Vivaldo com essa luta triunfante tem todo estudante e trabalhador

essa vitória é de gente consciente e foi Deus onipotente que lhe mandou

não promete nada nós já sabemos a quem tem a dar

trabalho e honestidade, dedicação vai nos ofertar

com a nossa ajuda o estudante vai se transformar

Dr. Vivaldo é do povo e no meio ele vai ficar

Dr. Vivaldo é do povo e no meio do povo é o seu lugar.50

Segundo a personagem, suas composições eram gratuitas, ela não cobrava nada

por elas, cantava nas passeatas por amor ao partido e a bandeira vermelha (cor que

repersentava o partido). Percebe-se aí um apego partidário, não tanto ao representante,

mas a cor da bandeira. “Quem eu gostava de abraçar na política chama Vivaldo Costa,

mas eu soube que agora ele é bacural”51 (cuspiu no momento em que disse isso).

Há uma contradição em sua fala quando indagada sobre as eleições, a mesma

afirma não ir votar nas próximas campanhas pelo fato dos candidatos atualmente não

darem mais nada ao eleitor, diferente de antigamente.52 Baia afirma nunca ter recebido

ajuda de políticos, quando na verdade a casa que mora há quase quarenta anos foi paga

em partes por um político.

Ao casar-se com o primeiro esposo ambos haviam dado entrada em uma casa e

pagavam a quantia de dez cruzeiros por mês. Alguns anos após a aquisição da casa o

esposo de Baia veio a falecer, e as prestações da casa passaram um ano sem vir, até que,

quando enfim chegaram, foi com o valor correspondente ao ano todo. Sem ter como

quitar a dívida, a maneira mais fácil encontrada por Baia foi solicitar a ajuda de um

político candidato a época das eleições.

Quando fez um ano chegou o papel pra pagar um ano todin de uma

vez. Quanto dava? Dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta, cem, cento e

vinte cruzeiro. Aí pronto, fui pra convenção dos partidos de Wanderley

Marisco e ele disse: não Baia depois nóis acerta isso. Aí ele pagou o

que eu tava devendo e eu não paguei mais não. (sic)53

50

Autoria de Maria José da Silva. 51

Maria José da SiIva, 70 anos, entrevista realizada dia 05 de Dezembro de 2015. 52

Observações registradas em caderno de campo. 53

Maria José da Silva, já mencionada.

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Constata-se por meio de seu depoimento uma forma de benefício recebido pela

mesma em tempos de eleições políticas, o que aparece como um momento onde há a

possibilidade do “sujeito ordinário”, que está sempre à procura de algo que possa te

beneficiar, tirar dali algo para o seu proveito. Analisa-se todos meios possíveis de se

inserir no meio e tirar da situação algo de proveito para si.

O contraste presente no testemunho de Baia nos mostra como a memória é

lacunar, o ato de desnarrar tanto pode ser uma falha da memória como uma maneira de

voltar atrás no que disse outrora.

À medida que a gente envelhece vai perdendo a memória do presente.

Acho que falhei em certas ocasiões, mas falhei porque era muito

moça; O bom senso vem quando a gente é mais velha. É por isso que

se tem que ter paciência com os moços. Não me arrependo da

compreensão que tive”.54

54

BOSI, Ecléa. Op. Cit. p. 360

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos aos final deste trablho com sentimento de dever cumprido para com

a sociedade, a personagem em estudo, e a academia. A gratificação se dà diante da

conclusão da pesquisa, tendo em vista o àrduo, porém prazeroso, onde, cada nova

descoberta surgia como um novo estimulo para sua concretização.

Esta pesquisa é apenas um laboratório na área das singularidades, tendo em

vista a quantidade e a qualidade do material disponível para demasiados estudos e o que

ainda falta ser pesquisado. Observamos que as subjetividades do indivíduo vão além do

que foi trabalhado aqui, é um vasto campo que permite ser analisado a partir de

diferentes olhares e perspectivas. O indivíduo e suas singularidades dispõe de material

para pesquisas no tocante a História Cultural, História Local e História Social, assim

como para outras linhas.

No decurso das entrevistas, percebemos que, por vezes, as narrativas de Baia

adquiriam um ar alegórico, soando como algo fantasioso a quem ouve; o que não agride

a “veracidade” dos fatos, mas se caracteriza apenas como uma tentativa de dar mais

vivacidade e beleza a sua história, como não é nossa preocupação a constatação da

veracidade de suas (des)narrativas, tomamos as supostas “fantasias” de seu discurso

como uma tentativa de dar mais densidade aos seus momentos vividos, se

caracterizando como mais uma das formas do “sujeito ordinário” se destacar.

O que propusemos aqui foi uma análise do indivíduo enquanto um alguém que

se encontra nas camadas mais simples da sociedade. A importância deste trabalho se dá

na valorização do indivíduo, na análise de mundo feita a partir de seu olhar e nas

resistências do mesmo. O mundo para Baia é visto como um lugar bom, bonito, apesar

da inveja e orgulho presente nas pessoas que nele habitam. Quando indagada a respeito

da importância do presente trabalho representa para ela, obtivemos a seguinte resposta:

“eu gosto que é pra saber que eu existo, [...] pra minha história não se perder”. A partir

de sua resposta fica nítida a preocupação em se preservar um pouco da história de cada

ser, independentemente de seus feitos para a sociedade ou um grupo, cada um,

principalmente aqueles que vivem as margens e que não tem uma “posição” na

sociedade, quando se deparam com algum interessado em estar sua história de vida se

sente importante, digno de reconhecimento por ter sua história lembrada.

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Por fim, concluímos que, utilizando um olhar micro para a compreensão do

macro, a busca pela captação da problemática envolvendo o sujeito histórico não finda

por aqui, ainda há mais a se pesquisar, novas perspectivas de análise sobre o indivíduo,

suas artes de narrar e desnarrar, assim como o que pode nos proporcionar a revitalização

de memórias. O estudo foi satisfatório por alguns bons motivos, um deles foi poder

chegar ao final e vermos a alegria nos olhos de Baia, a satisfação por ter colaborado

com a pesquisa que a tinha como objeto de estudo. Além do que, as descobertas a

respeito das peculiaridades do sujeito histórico mostrou-se como algo inovador na

perspectiva na qual o trabalho foi realizado.

O surgimento de uma problemática a partir de uma história “comum” mostra a

grandeza por trás de casa “simples” pessoa. A beleza nos detalhes, nas sutilezas da vida.

FONTES ORAIS:

Maria José da Silva. 70 anos de idade. Natural da cidade de Caicó – Atualmente

residente nesse mesmo município. Data de nascimento: 04.07.1945. Entrevistas em

01/10/2015, 31/10/2015 e 05/12/2015.

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Maria Gabrielle Lúcio de Queiroz. 29 anos. Natural da cidade de São Bento – Estado da

Paraíba – Reside atualmente na cidade de Caicó. Data de nascimento: 26/12/1985.

Entrevista realizada em 05/12/2015.

REFERÊNCIAS:

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BARROS, José D'Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens.

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CADIEU, Fronçois [et al.]. Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus, 1995.

CERTEAU, Michel De. A invenção do cotidiano - Artes de fazer. 6ª Ed. Petrópolis, RJ.

Editora Vozes, 2001.

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