UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE · ocidental, o pensador grego Arístocles, conhecido...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A AMBIGUIDADE DO DISCURSO RETÓRICO: CAMINHOS E DESCAMINHOS DA PERSUASÃO (PEITHÓ) COMO INSTRUMENTO PARA A FILOSOFIA NO GÓRGIAS, DE PLATÃO MAURÍCIO ALVES BEZERRA JÚNIOR NATAL RN 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    A AMBIGUIDADE DO DISCURSO RETRICO: CAMINHOS E DESCAMINHOS

    DA PERSUASO (PEITH) COMO INSTRUMENTO PARA A FILOSOFIA NO

    GRGIAS, DE PLATO

    MAURCIO ALVES BEZERRA JNIOR

    NATAL RN

    2016

  • MAURCIO ALVES BEZERRA JNIOR

    A AMBIGUIDADE DO DISCURSO RETRICO: CAMINHOS E DESCAMINHOS

    DA PERSUASO (PEITH) COMO INSTRUMENTO PARA A FILOSOFIA NO

    GRGIAS, DE PLATO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia, do

    Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em

    Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Markus Figueira da Silva

    NATAL RN

    2016

  • Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

    Sistema de Bibliotecas SISBI

    Catalogao de Publicao na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes - CCHLA

    Bezerra Junior, Maurcio Alves. A ambiguidade do discurso retrico: caminhos e descaminhos da persuaso (Peith) como

    instrumento para a filosofia no Grgias, de Plato / Maurcio Alves Bezerra Junior. - 2016.

    79f.: il.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias

    Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps-graduao em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Markus Figueira da silva.

    1. Filosofia - retrica. 2. Scrates. 3. Plato. 4. Persuaso (Retrica). I. Silva, Markus

    Figueira da. II. Ttulo.

    RN/UF/BS-CCHLA CDU 1:808

  • Dedico essa dissertao a

    minha filha, Sofia, que pelo

    brilho de seus olhos e a

    franqueza de seu sorriso me

    faz perceber que todo dia

    vale a pena.

  • AGRADECIMENTOS

    Obrigado,

    Ao meus pais, por serem aqueles que me conduziram a essa existncia.

    Incentivaram sempre minha intelectualidade, fomentando minha pesquisa .

    Sofia, por garantir minha eternidade.

    Ao professor Markus, pela pacincia e ateno, sempre dando bons conselhos e

    pela preocupao em sempre orientar em boas ideias para o procedimento dessa

    dissertao.

    professora Monalisa, pelos estimosos apontamentos durante o processo e

    construo dessa dissertao, com indicaes de textos e ajudas que puderam aprimorar

    esse trabalho.

    o professor Lourival, pelos grandes apontamentos, pela orientao, respeito e

    pelo cuidado.

    Ribamar, um irmo que a natureza no deu, mas que foi escolhido pela alma.

    Paulinha, que entre as idas e vindas dessa vida, sempre esteve ao meu lado na

    concecusso desse trabalho, no comeo no meio e no final.

    Plato, que o mestre do meu barco.

  • Autoritrias, paralisadoras, circulares, s vezes elpticas, as frases de efeito,

    tambm jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, so uma praga maligna, das

    piores que tm assolado o mundo. Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como

    se conhecer-se a si mesmo no fosse a quinta e mais dificultosa operao das aritmticas

    humanas, dizemos aos ablicos, Querer poder, como se as realidades bestiais do

    mundo no se divertissem a inverter todos os dias a posio relativa dos verbos,

    dizemos aos indecisos, Comear pelo princpio, como se esse princpio fosse a ponta

    sempre visvel de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando at chegarmos

    outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivssemos tido nas mos

    uma linha lisa e contnua em que no havia sido preciso desfazer ns nem desenredar

    estrangulamentos, coisa impossvel de acontecer na vida dos novelos e, se uma outra

    frase de efeito permitida, nos novelos da vida.

    Jos Saramago, A Caverna, p. 71.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO------------------------------------------------------------------------- 9

    2. A RETRICA E A PERSUASO NO DILOGOGRGIAS-------------- 15

    2.1 RETRICA SOFSTICA: TECHNOUEMPEIRIADALISONJA

    (KOLAKIA)?------------------------------------------------------------------------- 15

    2.2 AS DUAS ESPCIES DE PERSUASO----------------------------------------- 36

    3. CAMINHOS E DESCAMINHOS DA PERSUASO NO DILOGO

    GRGIAS---------------------------------------------------------------------------------------- 42

    3.1 CAMINHOS DA PERSUASO--------------------------------------------------- 42

    3.1.1 KAIRS----------------------------------------------------------------------- 43

    3.1.2 HOMOLOGHIA-------------------------------------------------------------- 49

    3.1.3 PHILIA-------------------------------------------------------------------------- 54

    3.2 DESCAMINHO DA PERSUASO: RECALCITRNCIA-------------------- 57

    4. GRGIAS: UM DILOGO SEM PERSUASO-------------------------------- 62

    4.1 MITO COMO POSSIBILIDADE DE PERSUASO---------------------------- 64

    4.2 DILOGO SEM DILOGO----------------------------------------------------------- 67

    5. CONSIDERAES FINAIS-------------------------------------------------------------- 70

    REFERNCIAS------------------------------------------------------------------------------- 73

  • RESUMO

    Esta dissertao apresenta um estudo sobre o dilogo Grgias, de Plato,

    interpretandoque essa obra uma reflexo sobre a crtica platnica retrica sofstica,

    desenvolvendoa ideia de que ela empeiria, produtora de lisonja ().

    Encontramos elementos ambguos que revelam que, apesar de criticar a persuaso

    (), Scrates a reconhece como um requisito essencial para conduzir

    oelenchos(). No dilogo, Scrates v-se diante de trs interlocutores, Grgias,

    Polo e Ccicles. Este ltimo sendo o seu algoz principal. Reconhecemos o dilogo em

    seu contexto histrico-cultural, visto que a Retrica, e seu elemento de persuaso, eram

    insumos constitutivos da cultura grega. Consideramos que o intuito de Plato repensar

    os elementos retricos e persuasivos dos sofistas a fim de alhures, expor a verdadeira

    retrica, ou seja, a Filosofia. Para isso, Plato faz uma anlise da retrica persuasiva,

    colocando frente ao seu mestre um expoente da sofstica, Grgias; e procura desvelar

    suaarte (). Contudo, apesar de podermos reconhecer nele os elementos necessrios,

    o dilogo finaliza sem dilogo, uma vez que no h persuasode nenhumdos lados.

    Consideramos que todos esses pontos sero relevantes para compreendermos a

    persuaso () como um dos elementos basilares na oralidade grega e da dialtica

    platnica.

    Palavras-chave: Ambiguidade; Persuaso; Retrica; Scrates; Plato; Grgias.

  • ABSTRACT

    This essay presents a study about the Gorgiasdialogue, by Plato, expounding that this

    piece is a reflection on the Platonic criticism to sophist Rhetoric, developing the idea

    that it is empeiria, producer of flattery (). We find ambiguous elements that

    show that despite criticizing persuasion (), Socrates recognizes it as an essential

    requisite to conduct the elenchos (). In the dialogue, Socrates sees himself

    before three interlocutors, Gorgias, Polo and Callicles. The latter being his one chief

    tormentor. We acknowledge the dialogue in its historical-cultural context, since

    Rhetoric and its element of persuasion were Greek culture's constitutive inputs. We

    consider that Plato's intent is to rethink the sophists rhetorical and persuasive elements

    in order to expose the "true rhetoric", that it, Philosophy. For this, Plato makes an

    analysis of the persuasive rhetoric, placing before his master an exponent of the

    sophistry, Gorgias; and seeks to unveil its art (). However, although we can

    recognize in it the necessary elements, the dialogue ends without a dialogue, since there

    is no persuasion on either sides. We consider that all these points will be relevant to

    understand persuasion () as one of the basic elements of Greek orality and

    Platonic dialectics.

    Key-words: Ambiguity; Persuasion; Rhetoric; Socrates; Plato; Gorgias.

  • 9

    1. INTRODUO

    O ensejo de compreender a persuaso como elemento na dialtica platnica, e

    refletir sobre a anlise que Plato desenvolve sobre a retrica delineada pelos sofistas,

    o ponto de partida deste trabalho. Considerado como a ossatura do pensamento

    ocidental, o pensador grego Arstocles, conhecido pela alcunha de Plato, foi o inventor

    da Filosofia; o definidor do que a cultura entender como razo; o construtor dos

    valores ocidentais que sero alicerces de todo o seu progresso1. O gnio de Plato ser

    estimulado, ao passo que o pensador, ainda jovem, conhece um [...] tipo singular, um

    velhote de nariz chato e olhos saltados, filho, segundo dizia, dum estaturio, Sofronisco,

    e de uma parteira, Fenreta. O nome Scrates, pronunciavam uns com venerao, outros

    com despeito [...]. (BRUNA, 1987, p. 13).

    Plato viveu numa Atenas que se orgulhava em ter na Democracia sua veia

    central de organizao poltica. O que vai permitir um estabelecimento de uma

    determinada relao entre liberdade poltica e filosofia do tipo dialtico o aspecto de

    liberdade de pensamento e de expresso que os atenienses chamaro de princpios de

    Isonomia () igualdade perante a lei - e Isegoria ( ) igual direito

    palavra nos comcios pblicos (BERTI, 2010, p. 393.), exortando a todos os cidados

    que fossem partcipes diretos da organizao e da elaborao de suas vidas na Plis

    (). Tal liberdade era alegada pelo prprio Plato, ao considerar Atenas como a

    cidade que amava os discursos2. Era, assim, um terreno ideal para o florescimento de

    altercaes filosficas.

    Havia um soberano nessa Democracia: a Assembleia Popular3. Contudo, o

    perodo vivenciado por Plato foi um perodo de conturbao democrtica, o qual

    1 Platon a inventlaphilosophie: il a dfinice que l aculture dsormaisvaentendre par raison. De la sorte,

    il a dessinlecadre lintrieurduquellapense mditerranenne-occidentale construir ases valeurs et

    dvelopperasonprogrs. [...] (CHTELET, 1965, p. 243). Concordando com Chtelet, por sua vez,

    Richard Kraut (2013, p. 15). afirma que Plato fez da Filosofia um assunto distinto, pois, embora os

    temas versados por ele j fossem debatidos, ele foi o primeiro a reuni-los e a dar-lhes um tratamento

    nico. Embora concordemos com Chtelet e com Kraut, uma vez que Plato claramente destoava da

    abordagem discursiva do poeta Homero, interessante notar que Lara (1999, p. 101) coloca Plato em

    segundo lugar no que tange cultura helnica, ao afirmar que Plato tornou-se, pois, o segundo grande

    formador da conscincia cultural helnica e, por meio dela, o grande educador do Ocidente. O primeiro

    foi Homero. 2 No Grgias, fica evidenciada essa posio platnica, ao considerar Atenas o lugar onde a licena para

    falar se faz mais premente (461e-1-3). 3.[...] Sansdoute y a-t-ilunsouveraindansladmocratie: lAssemblepopulaire. [...]. (CHTELET, 1965,

    p. 75).

  • 10

    contribui para que uma mente tenaz questione as bases e a constituio desse sistema;

    assim como sua justeza e sua corrupo4. Durante as ltimas dcadas do sculo V a.C.,

    as sucessivas guerras levaram para Atenas constantes crises, que denegriram, aos

    poucos, aquela forma de pensar, baseada na igualdade de leis e de fora. O ideal de

    justia, chave do sistema democrtico, deu lugar violao por parte de alguns grupos

    polticos que sucumbiam a lei sua ambio, subjugando os dbeis, subordinando-os

    aos seus ditames, como aponta Meza (1999, p. 116). Plato ser testemunha das crises

    pelas quais a democracia ateniense vai passar, atingindo o ponto de culminncia

    degenerativa quando for anunciada a sentena de seu mestre, por ele considerado o mais

    justo () dos homens5, mas que ter que ceifar sua prpria vida ao ser

    condenado, dentre outras razes, por corrupo dos efebos.

    Aquele soberano, ento, como a prpria experincia mostra, incapaz de

    comandar, pois incompetente e inconstante. E por esta incompetncia se mostra

    incapaz de demonstrar estabilidade, ficando sujeito s deliberaes escusas daqueles

    que so versados em demagogia. No conseguindo, assim, reconhecer quem lhe preza;

    deleitando-se com os que dominam a palavra independente da justia6. As armadilhas

    que podiam surgir dos discursos nos encontros pblicos, relegando s pessoas justas a

    sofrimentos injustos, contriburam para que Plato se tornasse um crtico ferrenho e

    astuto do sistema que era sempre exaltado como o justo.

    4 Irwin (2013), em seu ensaio intitulado Plato: o pano de fundo intelectual argumenta que, por mais que

    Plato fizesse vrias objees Democracia de Atenas, ele assumia que ela era estvel, e que dificilmente

    haveria alternativa factvel a lhe ser superior. Ele tambm observa que o regime democrtico de Atenas,

    restaurado em 405 a.C., vai perdurar durante toda a vida de Plato, fornecendo, assim, inmeros

    elementos para ele elaborar uma profcua reflexo. 5 Alm disso, um amigo meu, mais velho, Scrates, que eu certamente no me envergonharia de dizer

    ser ento o mais justo de todos, mandaram-no com outros contra um dos cidados, conduzindo-o fora

    para a morte, a fim de que fosse cmplice dos negcios deles, querendo ou no. Mas ele no se deixou

    persuadir e arriscou-se a suportar tudo, em vez de se tornar cmplice deles em atos mpios.

    Considerando ento todas essas coisas e ainda outras tais no pequenas, desgostei-me e afastei-me dos

    males de ento (PLATO, Carta VII, 324 e 325 a). 6 [...] Mais surtout, dansla mesure ou elle est incapable dlaborer une ligne politique stable, elle se

    laisseprendrepratiquementauxflatteries ds dmagoguesquisontcommedes frelons aiguillon. La

    contamination est double, dailleurs, et le mal ne cesse de saggraver. [...] Et lepeupleshabitue

    cettesituation: lorsquumcitoyensage et honnteveutluidonner dautresconseils, il fait duvacarme et refuse

    de lcouter. Si bien que desjeuneshommes, biendous, que veulentfairecarrire, sontcontraints, quel que

    soitleurdsintressement premier, de jouerlejeu de La dmagogie. Ilssont, leur tour, contamins; Le bom

    naturelquilspossdaient se perd et leurstalentsservent promouvoirlinjustice (CHTELET,1965, p.

    76.). O estudioso Chtelet deixa claro, neste trecho, que os corruptores do sistema democrtico ateniense

    so os retricos e os sofistas, que no se preocupam com a justeza do objeto de seu ensino. Ademais,

    relevante notar que, para Guthrie, o prprio Plato determina que os sofistas no deveriam ser

    responsabilizados por tal vexao, visto que [...] no eram eles que deviam ser declarados culpados por

    infeccionar os jovens com pensamentos perniciosos, pois nada mais faziam do que refletir os prazeres e as

    paixes da democracia existente [...] (GUTHRIE, 1995, p. 25).

  • 11

    Essa questo fica mais problemtica quando surge, na democracia grega, um

    conjunto de indivduos estrangeiros, sobretudo que vo alegar ser detentores da arte

    dos discursos em si. Apresentar-se-o como condutores de uma educao () que

    tem como escopo fornecer aos seus discpulos o domnio persuasivo sobre uma

    infinidade de discursos, sejam eles individuais ou sociais, podendo produzir pontos a

    favor e contra qualquer questo, deliberando as paixes () e articulando tempos

    oportunos (). Falar desse grupo de homens como uma unidade no argumento

    coerente, uma vez que no se pode ver neles uma escola filosfica, homognea. Melhor

    ento consider-los como mestres cujo contedo variava, dependendo de quem

    ensinavam. Recebiam remunerao em troca de sua sabedoria (), como observa

    Untersteiner(2012, p. 21), com a concordncia de Cardoso (2006, p. 34). Assim, em fins

    do sculo V a.C., Atenas era dominada pelos discursos persuasivos, esculpindo a moral

    e a poltica de seus cidados, organizando sua vida prtica. As narrativas heterogneas

    advindas das pessoas que tinham contato com outros povos sugeriram a um grupo de

    homens que as regras e ditames sociais eram produtos de convenes e no de regras

    indelveis, como afirma Tarnas (2008), o que dava ao discurso e persuaso um poder

    a ser utilizado por quem queria coadunar com aquela sociedade. Surgiram, assim, os

    mestres do discurso.

    O nome dado a esses mestres do discurso o de sofistas, que so historicamente

    reconhecidos como antifilsofos e, em geral, algozes do pensamento platnico, mas

    que, segundo Cassin (2005), apareceram num momento necessrio Filosofia7. Ao

    perceber justamente a protuberncia dos discursos sofsticos em sua Atenas, Plato

    rega-lhes certa reverncia e admirao. Ele no podia prescindir tambm do prprio

    discurso, uma vez que tambm a Filosofia se vale do discurso para se desvelar. A

    questo era refletir sobre em que tipo de discurso deveria ancorar-se a Filosofia,

    desprendendo-se daquele oferecido pela sofstica.

    7 Os sofistas Grgias ento bastante prximo de Protgoras so um momento necessrio da histria

    da Filosofia: eles refutam a abstrao vazia do ser eletico pela considerao das coisas efetivas, da

    realidade do mundo sensvel e vivo, pluralidade, movimento, subjetividade (CASSIN, 2005, p. 14).

    Sobre a relevncia dos sofistas em seu tempo, Guthrie (1995, p 25)afirma que se os sofistas foram

    produtos de seu tempo, por sua vez tambm ajudaram a cristalizar suas ideias. Mas seu ensino pelo menos

    caiu em terreno bem preparado.

  • 12

    O sofista Grgias, no dilogo homnimo de Plato que estudaremos neste

    trabalho8 , ao ser questionado por Scrates sobre que tipo de arte detinha o poder,

    responde que alberga a Retrica9. Tomando para si a adjetivao de um bom rtor logo

    em seguida (449a-b). Adiante, quando convidado a responder qual o cerne do

    conhecimento da Retrica, o grande sofista prontamente responde que esta tem poder

    sobre os discursos (449d-e). E, mais frente, Grgias afirma que os discursos aos quais

    a Retrica abarca so aqueles capazes de produzir persuaso ()10

    , sobretudo no

    ambiente das altercaes pblicas (452e-453a)11

    . Podemos, assim, compreender que, de

    acordo com a definio do sofista, a Retrica a arte dos discursos persuasivos qual

    ele detinha com maestria. Guthrie (1995, p. 253) expe que Grgias [...] viu o poder de

    persuaso como o principal em todo campo, no estado da natureza e em todos os

    assuntos filosficos, no menos que nos tribunais e na arena poltica, ampliando o raio

    de ao da Retrica.

    Casertano (2010) denota que, no dilogo Grgias, Scrates detentor dos altos

    valores que figuram o pensamento de Plato, que pe em questo a Retrica apresentada

    como arte pelos sofistas12

    , apresentando-a como mera adulao (),

    enfileirando-a com outras pretensas artes que versam sobre um saber que no sabem.

    Todavia, no podendo deixar de reconhecer a necessidade da persuaso tambm para a

    Filosofia, Scrates e, por conseguinte, Plato, reconhece nela um poder ao qual no

    pode prescindir, como observa Casertano:

    8As citaes do Grgias utilizadas nesta dissertao so retiradas da traduo de Daniel R. N. Lopes

    (2011), em lngua portuguesa. Ao julgarmos relevante, podemos utilizar outras tradues a serem

    explicitadas em notas de rodap. 9Grgias, 449a. bastante conhecida a proposio de Schiappa (1999, p.14.)sobre o passo 448d, no qual

    aparece, pela primeira vez, a palavra retrica no dilogo, aduzida pelo estudioso como a primeira vez que

    ela utilizada, sendo, com isto, uma cria do gnio platnico. 10

    Para Aristteles, a Retrica , em livro homnimo, a faculdade de observar, em cada caso, o que este

    encerra de prprio para criar persuaso. Nenhuma outra arte possui tal funo (1355b25-30). 11

    [...] GOR: A meu ver, ser capaz de persuadir mediante o discurso os juzes no tribunal, os conselheiros

    no Conselho, os membros da Assembleia na Assembleia e em toda e qualquer reunio que seja uma

    reunio poltica. Ademais, por meio desse poder, ters o mdico como escravo, e como escravo o

    treinador. Tornar-se- manifesto que aquele negociante negocia no para si prprio, mas para outra

    pessoa, para ti, que tens o poder de falar e persuadir a multido.

    SOC: Agora sim, Grgias, tua indicao parece-me muito mais propnqua qual arte consideras ser a

    retrica, e se compreendo alguma coisa, afirmas que a retrica artfice da persuaso, e todo o seu

    exerccio e cerne convergem a esse fim. Ou tens algo mais a acrescentar ao poder da retrica, alm de

    incutir na alma dos ouvintes a persuaso?

    GOR: De forma alguma, Scrates; essa definio me parece suficiente, pois esse seu cerne. [...]. 12

    Tambm no Grgias, em aparncia, e por hbito interpretativo, Scrates considerado o portador de

    altos valores que, ao confrontar-se com as teorias e as prxis sofsticas, postas em ato no tanto pelo

    personagem Grgias quanto seus discpulos e admiradores Polo e Clicles, no final encontram a sua

    afirmao e o seu reconhecimento: se no aos olhos dos prprios personagens, que, com efeito,

    permanecem impermeveis s demonstraes e refutaes socrticas [...] (CASERTANO, 2010, p. 56).

  • 13

    Na verdade, a relao entre saber, crena e persuaso no pode ser a

    de uma ntida distino, e, portanto, uma contraposio, justamente

    porque, admitindo que a retrica no faz outra coisa seno persuadir

    os que no sabem, tambm a cincia pe em ato mecanismos de

    persuaso, logo de convico, de crena. [...] Por outras palavras, a

    persuaso e a crena pertencem quer cincia, quer opinio

    (CASERTANO, 2010, p. 58).

    A ambivalncia da persuaso para Plato, se evidencia nas contraposies

    explcitas e implcitas entre retrica e justia, que se refina contraposio entre

    retrica e filosofia, se desvelando em contraposio entre opinio e cincia

    (CASERTANO, 2010, P. 56)13

    . A persuaso se faz assim como prerrogativa tanto da

    retrica sofstica opinio - quanto da Filosofia - cincia. Partindo desse pressuposto

    ambguo da persuaso, pretendemos, nesta dissertao, estudar os mecanismos que

    delinearemos como caminhos necessrios para que ela ocorra, desde o campo

    psicolgico ao poltico e social. Veremos as querelas disputadas por Scrates com os

    interlocutores na tentativa de persuadi-los com seus apontamentos. Procuraremos

    refletir sobre as barreiras que se colocam para que ocorra o processo de persuaso, bem

    como compreender a persuaso que s oferece como escopo a complexa articulao da

    palavra sem almejar conduzir o interlocutor verdade, to pretendida por Plato.

    Perfilhando a riqueza do dilogo, lanaremos olhares sequiosos nas altercaes

    impressas nele, a fim de oferecermos esclios relevantes para a anlise da retrica

    persuasiva perpetrada por Plato.

    Na presente dissertao, portanto, objetivamos fazer uma apresentao dessa

    leitura do Grgias. Para isso, apresentamos o trabalho do seguinte modo. No primeiro

    captulo, tentaremos compreender os conceitos conflitantes de Retrica e persuaso

    expostos no dilogo. Para isso, comearemos com as incurses feitas por Plato ao

    descrever a arte da retrica sofstica, e veremos a crtica feita por Scrates ao tipo de

    persuaso que a Retrica pretendida por Grgias oferece, procurando exortar seu

    interlocutor de que sua arte pretendida no passa de lisonja, adulao. Em seguida,

    veremos que espcies de persuaso podemos reconhecer no tempo do dilogo. No

    13

    Casertano (2010, p. 58) observa que o termo crena (), que bastante utilizado no Grgias, verossimilmente a opinio (). Embora no esteja explcito nesta obra em si, est confirmado pelo corpus platnico. Destarte, consideraremos tambm a verossimilhana existente entre cincia e conhecimento (), ancorado na abordagem platnica que denota haver apenas conhecimento verdadeiro, como vemos em Grgias 454c-455a (sobre a distino entre crena e conhecimento); Mnon 85b-86b (opinio e cincia); Repblica 476c-480a (sobre a ignorncia, opinio e o conhecimento). mister perceber que Brisson e Pradeau em seu Vocabulrio de Plato colocam os termos Cincia, conhecimento e episteme como sinnimos (2010, p. 25-36).

  • 14

    segundo captulo, propomos reconhecer os elementos traados por Plato, no dilogo,

    que se apresentam, segundo nossa compreenso, como caminhos para o processo de

    persuaso, discutindo algumas noes, a saber, o kairs, a homologia e a philia. No

    deixaremos de lado um elemento impugnante para que ocorra a persuaso, a

    recalcitrncia, bastante evidente no decorrer da obra, sobretudo comClicles, partcipe

    tenaz do debate. No terceiro captulo, estimamos analisar a obra como um dilogo onde

    no ocorreu persuaso, dado alguns elementos que se apresentaram como infrutferos.

    Iremos propor tambm o mito como ltima tentativa de Scrates para exortar seus

    algozes, ancorado no princpio da verossimilhana. Em seguida, vamos refletir sobre a

    relao da persuaso com a verdade, objetivo primaz do pensamento platnico. Por fim,

    nas consideraes finais, no somente apresentaremos uma reviso geral das questes

    discutidas nesta dissertao, bem como lanaremos propostas de reflexes posteriores

    sobre como Plato se utiliza da persuaso para a sua filosofia.

  • 15

    2. A RETRICA E A PERSUASO NO DILOGOGRGIAS

    2.1 RETRICA SOFSTICA: TECHNOUEMPEIRIADALISONJA

    (KOLAKIA)?

    Seguindo a clssica catalogao atribuda Trasilo e mencionada por Digenes

    Lartios14

    , o Grgias tem por subttulo: sobre a Retrica ()15

    . Entretanto,

    esse subttulo, per si, no abarca todas as nuanas que podem se desvelar com uma

    leitura rigorosa da obra. Contudo, objetivamos concordar com alguns comentadores que

    afirmam ser a retrica o eixo central da obra16

    , com o intuito de, nessa primeira parte,

    partindo de uma anlise detalhada, refletir sobre aideia de retrica exposta no Grgias,

    bem como compreender as altercaes encetadas no dilogo, permeadas pela constante

    indagao feita pelo Scrates platnico em relao arte (tekhn) que ela comporta.

    Para desenvolver essa primeira questo, sobre a tekhnda Retrica, devemos

    partir da compreenso da importncia da Retrica para o contexto cultural grego e,

    particularmente, ao vivenciado por Plato.

    Reboul (2004), em concordncia com Plebe (1978), argumenta que a Retrica,

    com o uso alm de sua utilidade pragmtica, ter seu bero em regio grega, no sculo

    V a.C. Com isto, as primeiras preocupaes em deliberar sobre tcnicas e teorias de

    utilizao da Retrica surgiram no contexto em que as necessidades prticas dos

    helenos, com o fortalecimento da vida urbana, iam confrontando-se cada vez mais com

    questes de ordem filosfica. E ainda, a Retrica, em seus primeiros anos, era mais de

    origem jurdica, no incorrendo numa abordagem literria, educacional ou mesmo de

    cultura geral17

    . A mudana de enfoque para esses ltimos vai ocorrer quando os sofistas

    puseram a Retrica a seus servios.

    14

    Vidas e Doutrinas dos filsofos ilustres, III, p. 59. 15

    Segundo Digenes Lartios, a obra platnica dividida em nove tetralogias, nas quais cada dilogo

    seguido por um ttulo e um subttulo, que diz respeito ao seu tema. O Grgias est inserido na sexta

    tetralogia. 16

    CROISET, Alfred. Grgias, p. 90-92; DODDS, E. R. Plato, Gorgias, p. 2-5; MAcCOY, Marina.

    Plato e a Retrica de filsofos e sofistas, p. 95. importante notar que MacCoy argumenta que,

    geralmente, compreendido como o objetivo na obra no s analisar a Retrica em si, mas tambm

    demarcar a sua inferioridade em relao Filosofia. 17

    Manuel Alexandre Jnior(2005, p. 19), em sua introduo Retrica de Aristteles, nos relata como

    surgiu a necessidade de uso da Retrica no mbito jurdico: Por volta de 485 a.C., dois tiranos sicilianos

    - Glon e Hiero -, povoaram Siracusa e distriburam terras pelos mercenrios custa de deportaes,

    transferncia de populao e expropriaes. Quando foram destronados por efeito de uma sublevao

    democrtica, a reposio da ordem levou o povo instaurao de inmeros processos que mobilizaram

    grandes jris populares e obrigaram os intervenientes a socorrerem-se das suas faculdades orais de

  • 16

    Ortega (1989) observa que o fortalecimento da Democracia, em detrimento das

    tiranias, se tornou o campo ideal para o engrandecimento da Retrica18

    . A Grcia inteira

    era amante das dissertaes orais, mas foi nas plis democrticas que a Retrica

    encontrou um terreno mais frtil. Como os princpios democrticos retiraram da

    aristocracia a exclusividade de deliberar sobre os assuntos pblicos, o caminho estava

    aberto para o poder da persuaso. Desse modo, os sofistas, que se apresentavam como

    professores de Retrica, passaram a gozar das oportunidades educacionais no campo

    democrtico19

    . Reboul (2004, p. 10) afirma que, por finalidade, a retrica sofstica no

    objetivava o verdadeiro, o saber, mas sim a dominao por meio da palavra, para a

    manuteno do poder. Reboul ainda aponta que os sofistas sero os primeiros

    pedagogos a principiar uma educao voltada para a capacitao para o poder.

    Ao participar do esprito democrtico de Atenas, os sofistas no encontraro

    apenas anseios para usufruir de sua labuta. Vo se deparar com atitudes contrrias sua

    presena. Sobre isso, aponta-nos Guthrie:

    A atitude do pblico ateniense era ambivalente, refletindo a situao

    transitria da vida social e intelectual ateniense. Os sofistas no

    tinham nenhuma dificuldade de encontrar alunos para pagar suas altas

    taxas, ou auditrios para suas conferncias e exibies pblicas.

    Todavia, alguns dos mais velhos e conservadores desaprovavam

    fortemente a eles (GUTHRIE, 1995, p. 40-41).

    Irwin, em consonncia com Guthrie, argumenta que a atividade proposta pelos

    sofistas, no seio da democracia em Atenas, vo despertar-lhes algozes de uma base

    aristocrtica da sociedade, com receio que os sofistas fomentem a ao de corruptores

    dos escopos morais atenienses:

    A prpria sofstica despertou suspeitas, especialmente entre pessoas

    que pensavam que o bero, a famlia, e uma educao distinta lhes

    davam o direito de ser ouvidos. Ora, desse ponto de vista conservador,

    o treinamento sofstico podia parecer fazer as pessoas

    comunicao. Tal necessidade rapidamente inspirou a criao de uma arte que pudesse ser ensinada nas

    escolas e habilitasse os cidados a defenderem as suas causas e lutarem pelos seus direitos. E foi assim

    que surgiram os primeiros professores da que mais tarde se viria a chamar retrica.Reboul (2004, p. 2)

    relata que Corax, discpulo de Empdocles, junto com Tsias, que dar a primeira definio de Retrica

    no mbito judicirio, ao consider-la produtora de persuaso. Era, sobretudo, utilizada na Siclia, mas

    como Atenas mantinha estreitos laos com essa regio da Magna Grcia, a Retrica tambm foi por ela

    adotada. 18

    [...] la Retrica, que ensealos modos y tcnicas de exposicin, em sums radical sentido tiene vida e

    historiacomm com la Democracia, como parte integrante de la vida pblica y de laformacin intelectual,

    sobre todo em la antiga Atenas democrtica de lossiglos V y VI anteriores a nuestra era. (ORTEGA,

    Alfonso. Retrica: el arte de hablar em publico. Madri, Espanha: IdeasCulturales, 1989. p. 19) 19

    Ver nota 6.

  • 17

    consideravelmente mais inteligentes, e os sofistas podiam ser

    acusados de ensinar a pessoas inescrupulosas as habilidades de que

    elas necessitavam para obter um sucesso que no mereciam (IRWIN,

    2013, p. 91).

    Nesse contexto, Plato se apresenta como verdadeiro algoz dos sofistas, para

    quem eles no passavam de professores de erstica (uso dos discursos com o intuito de

    vencer), recebendo dinheiro pelo servio escuso (O Sofista, 226a)20

    . Plato, que tambm

    se interessa pela educao por meio da Filosofia, vai se interessar demasiadamente em

    analisar o projeto pragmtico dos sofistas, escrevendo considerveis dilogos nos quais

    estes se mostram presentes. Como descreve McCoy (2010, p. 19), a mentalidade na

    poca de Plato vai se interessar bastante pela natureza e pelo poder do logos, fazendo

    com que termos como filosofia e retrica sejam utilizados como armas de batalha.

    Grgias21

    de Leontino era considerado o maior sofista de todos. Nascido por

    volta de 485 e 480 a.C., viveu at idade avanada, o que permitiu que ele observasse as

    mudanas no jogo social e poltico das cidades gregas, participando de algumas delas

    com profcuo interesse. Plebe afirma que Grgias foi o primeiro teorizador formal de

    uma arte retrica como disciplina independente, construindo uma ponte entre a Retrica

    da Magna Grcia e a da Grcia Continental (1978, p. 12). Jaeger vai mais alm, ao

    situar Grgias como o criador da Retrica na forma como ela vai se pautar a partir dos

    ltimos decnios do sculo V a.C., e sendo, para Plato, a prpria personificao dessa

    20

    interessante notar o comentrio de Terry Penner (2013, p. 183), em seu ensaio Scrates e os

    primeiros dilogos, acerca da relao dos pensadores atenienses sobre os sofistas e os retricos: para

    Scrates, como para Plato, no h dvida de que o principal inimigo filosfico, sejam os sofistas ou os

    retricos, uma forma de educao que proporciona tcnicas neutras para progredir na vida particular e

    na vida poltica neutras uma vez que so indiferentes a todo e qualquer bem na vida humana que no

    seja o que o indivduo escolhe pensar que bom os valores do indivduo (como costumamos dizer).

    Os sofistas e retricos pretendem pr meios persuasivos nas mos de seus alunos para que estes alcancem

    objetivos que paream melhores para eles [...] sobre o que as pessoas fazem para chegar a seus fins [...].

    Endossando o raciocnio de Penner, Lygia Arajo Watanabe (1995, p. 76) aponta: so os sofistas que

    representam, para Plato, o perigo maior para a Filosofia, pois com eles a noo da realidade da verdade

    que est em jogo. 21

    Colocar Grgias como um sofista levanta uma problemtica, pois ele no se proclamava como

    professor de Arete (virtude), que era a forma regular com a qual Plato situava os sofistas (Mnon95b-c).

    Guthrie (1995, p. 41) aponta que Grgias se concentrou apenas na Retrica, por v-la como a arte mestra.

    Grgias at admite que os alunos aprendero dele os princpios do justo e do injusto (Grgias, 460a), caso

    eles j no os conheam, mas antes isenta o mestre do mal uso das artes pelos discpulos (Grgias 457a-

    c). MacCoy ( 2010, p. 21) argumenta que se h uma diferena no uso que Plato faz dos termos sofista e

    retrico, que o primeiro frequentemente tem uma conotao pejorativa, enquanto o segundo pode ser

    positivo ou negativo dependendo do contexto. Contudo, na obra Grgias, embora Scrates faa uma

    pequena diferenciao entre sofstica e retrica (465c), logo adiante ele afirma que as duas so

    praticamente idnticas (520a). Conscientes de tal problemtica e apoiados em Reboul (2004, p. 5-6) e

    Guthrie (1995, p. 251), intentamos colocar o nome de Grgias com o sentido tcnico de sofista, como

    professor que cobrava para ensinar.

  • 18

    arte (1994, p. 649). No de se espantar que, dado a sua importncia, Plato ir versar

    sobre a arte retrica do Leontino em algumas obras e, em especial, no Grgias, para

    esmiuar sobre o caro tema da Retrica22

    .

    Mas antes de dar continuidade a nossa reflexo acerca da Retrica e de sua

    techn, no podemos perder de vista a compreenso de que o Grgias exposto na obra

    platnica no condiz necessariamente pessoa histrica, reconhecido por obras como

    Elogio de Helena, Defesa de Palamedes e o Tratado do No-ser. Trata-se de um

    personagem, cria do gnio platnico, tal qual outros personagens expostos na obra, tais

    como Scrates, Polo, Clicles e Querofonte23

    . Indubitavelmente, a perspiccia da prosa

    platnica permeia e influenciada pelos espritos dos contrapartes histricos, mas, para

    centralizar nossa reflexo, quando nos referirmos ao carter e sapincia dos

    supracitados, estamos analisando o retrato que Plato faz deles24

    . Nosso objetivo, com

    isto, apresentar a crtica platnica feita aos retores e aos sofistas. Como podemos

    observar no passo 449a, Grgias se apresenta no dilogo como um bom rtor, j

    representando a jactncia que o personagem tem em relao a ser mestre do saber.

    Scrates, por sua vez, recrudesce o valor filosfico em detrimento da Retrica,

    coadunando com os princpios platnicos, se valendo sempre de certa humildade. Sobre

    esse assunto, McCoy argumenta o seguinte:

    [...] No entanto, Grgias coloca a prtica filosfica de Scrates acima

    daquela de seus oponentes sofsticos e polticos. Em primeiro lugar,

    Plato sugere que Scrates possui os traos de benevolncia,

    responsabilidade por seu prprio discurso e um compromisso com o

    conhecimento que Clicles afirma pelo menos em palavras, mas

    Clicles, Grgias e Polo no possuem algumas dessas caractersticas.

    Em segundo lugar, Scrates est disposto a autocriticar sua prpria

    22

    Plato faz meno a Grgias em sete de seus dilogos. Em quatro deles (Apologia de Scrates, Hpias

    Maior, O Banquete e Filebo), as menes so passageiras e irnicas, mas no desrespeitosas. Na obra que

    leva seu nome, Grgias o personagem em torno do qual giram todas as discusses. 23

    Kahn (1998, p. 126) delimita as caractersticas dos interlocutors de Scrates da seguinte forma: The

    first interlocutor, Gorgias, is the famous writer, orator, and teacher, who boasts of the power that oratory

    can achieve but would prefer to decline moral responsibility for any use that is made of it. His pupil,

    Polus, is an outspoken admirer of those who gain political power by immoral or even by criminal means.

    Callicles, finally, is a product of the new Enlightenment, an ambitious young politician willing to attack

    the very notion of justice and morality as Socrates understands it. [] Faced with such opponents,

    Socrates must defend not only his moral principles but his whole way of life. 24

    Embora no seja o escopo desta dissertao, achamos relevante considerar que, para alguns

    comentadores, no apenas Scrates que colocado como porta-voz do gnio platnico, sendo os outros

    apenas caminhos para o objetivo socrtico, mas, sim, toda a gama de personagens expressa o pensamento

    de Plato, como aponta Lopes (2011, p. 30-31) e Cooper (1999, p. 66). Entretanto, concordamos com

    Kraut (2013), em seu artigo intitulado Introduo ao estudo de Plato, no que tange afirmao sobre o

    papel desempenhado especificamente por Scrates nos dilogos platnicos. Embora os outros

    interlocutores sejam tambm porta-vozes do gnio platnico, Scrates encarna, com maior afinco, a

    proposta filosfica de Plato.

  • 19

    prtica de uma maneira que outros, quando diante do desafio da

    filosofia s suas vises de mundo, no esto embora afirmem o valor

    dessa abertura. [...] (MCCOY, 2010, p. 21).

    Lopes, no ensaio introdutrio do Grgias, sobre o mesmo assunto, observa

    ainda: Como vemos no Grgias, Scrates representado por Plato como o novo

    senhor da arte do discurso (tekhnlogn), em substituio figura do rtor

    (GRGIAS, 2011, p. 163).

    Jaeger (1994, p. 652) denota que o Grgias se estrutura em trs atos, sendo que

    o aparecimento de cada personagem recrudesce a discusso sobre o plano terico da

    Retrica. J principiando o primeiro ato, Scrates elabora uma questo que vai

    determinar o desdobramento de todo o dilogo, como observa Arajo (2008, p. 21). A

    questo sobre a arte () da Retrica de Grgias25

    . Nesta parte do captulo, vamos

    discorrer sobre a crtica que Plato desenvolve em relao arte da Retrica na

    abordagem do Grgias. Seria a Retrica uma arte?

    Para responder a tal questo, vamos confrontar a resposta de Grgias e seus

    seguidores sobre sua arte e a anlise seguinte desenvolvida por Scrates. Nos passos

    452e 453a, fica mais evidente a qual arte Grgias afirma ter o domnio, a saber, a dos

    discursos. Esta a arte da Retrica. J nesse ponto, podemos notar uma definio

    genrica, problemtica para Scrates, que esperava uma resposta mais especfica, visto

    que outras artes dizem respeito a discursos (, 449e1). Para Scrates, a

    condio para se estabelecer uma teknh ter um domnio especfico de um objeto

    determinado. Para termos uma ideia de quanto a compreenso do termo teknh pode ser

    complexa, Jaeger denota a diferena existente em nosso conceito de arte daquele

    referenciado pelos gregos:

    A palavra teknh tem, em grego, um raio de ao muito mais extenso

    que a nossa palavra arte. Designa toda profisso prtica baseada em

    determinados conhecimentos especializados e, portanto, no s a

    pintura, a escultura, a arquitetura e a msica, mas tambm, e talvez

    com maior razo ainda, a medicina, a estratgia militar ou a arte da

    navegao. Aquela palavra que estas tarefas prticas ou estas

    25

    [...] SOC: [...] Pois quero saber dele qual o poder da arte do homem e o que ele promete e ensina; o

    resto da exibio. Deixemos para outra ocasio, como dizes [...] 447c. O complemento e a resposta

    podemos ver em: [...] SOC: [...] dize-me agora, de modo semelhante, que arte essa e por qual nome

    devemos chamar Grgias! Ou melhor: dize-nos tu mesmo, Grgias, como devemos te chamar e de que

    arte tens conhecimento! GOR: Da retrica, Scrates. SOC: Portanto, devemos te chamar de rtor? GOR:

    De um bom rtor, Scrates, se queres me chamar, como diz Homero, daquilo que rogo ser. SOC: Mas eu

    quero cham-lo. GOR: Ento chama! [...] 449a.

  • 20

    atividades profissionais no correspondem a mera rotina, mas

    baseiam-se em regras gerais e conhecimentos slidos; neste sentido, o

    grego teknhcorresponde frequentemente, na terminologia filosfica

    de Plato e Aristteles, moderna palavra teoria, sobretudo nos

    passos em que se contrape mera experincia [...] (JAEGER, 1994,

    p. 653).

    Para deslindar os conceitos de arte que esto em conflito no Grgias, temos que

    observar a compreenso do que ela significa no contexto dos personagens. Na primeira

    parte da obra, quando Querofonte interpela para saber a que arte Grgias pertence,

    partindo de uma analogia com outras artes, Polo responde que as descobertas das artes

    so feitas por meio da experincia experimentalmente ( ), e que seu

    mestre Grgias participa da mais bela das artes (448c). Observamos, assim, que Polo

    considera que teknhe empeiria esto necessariamente coadunados, como aponta

    Arajo:

    Para Polo, as artes nascem da experincia e pela experincia. Diante

    dessa afirmativa nos necessria certa ateno, para que o termo no

    nos seja tomado como algo que no requeira maiores explicaes.

    Alm da preposio em, que indica em, dentro, o termo formado

    pela palavra pera, justamente a que Grgias utilizava antes da

    interveno de Polo. Pera tentativa, ensaio, prova, o termo que,

    em latim, dar origem a peritus (perito) e a periculum (perigo)

    (ARAJO, 2008, p. 61).

    A associao que Polo faz entre arte e experincia exposta no Grgias,

    provavelmente, influenciou Aristteles em sua definio de teknh(). Diz o

    estagirita, em sua Metafsica, que a experincia parece um pouco semelhante cincia

    e arte. Com efeito, os homens adquirem cincia e arte por meio da experincia. A

    experincia, como diz Polo, produz a arte, enquanto a inexperincia produz o puro

    acaso (981a 1-5). O mais interessante de se notar, sobre a citao de Aristteles, a

    posio de destaque dada experincia () em relao teknh(). Para ele,

    como nos mostra na Metafsica, a experincia um caminho para chegar teknh e a

    epistm. Todavia, no passo 463b do Grgias, Scrates nos diz que a Retrica no

    uma teknh, mas uma mera empeiria() e uma rotina (). Assim, Scrates

    no coloca a empeiria como caminho para a teknh, fazendo, na verdade, uma oposio

    clara entre ambas. Onde Aristteles enxerga derivao, Polo v que uma fruto da

    outra. Por sua vez, Scrates, e, por conseguinte, Plato, as v como diametralmente

  • 21

    opostas26

    . Grgias coadunar com a posio de Polo, aceitando a empeiriacomo prpria

    fonte sopha.

    A definio qualitativa de Polo, ao afirmar que a teknhde Grgias a melhor

    dentre as tais, no suficiente para Scrates, que d uma lio de lgica ao afirmar que

    um julgamento de valor no serve para definir a arte (DODDS, 1980, p. 193)27

    . O que

    Scrates vai querer saber por parte de Polo ser sobre o que a Retrica, e o que a

    diferencia de outras artes28

    .

    Cabe nossa observao para o passo 447c-d, no qual Scrates associa a questo

    dateknhde Grgias ao prprio ser do sofista. Sendo assim, ao intencionar compreender

    a arte do retrico, Scrates quer saber o que o prprio retrico29

    . Por isso, mais uma

    vez, a apresentao de Polo, que procura definir a arte de seu mestre como a mais bela

    (448c), dada a Querofonte, sequer corresponde ao sentido pretendido por Scrates,

    quando projetou tal indagao. Na continuidade desse debate, o prprio Scrates

    observa que a definio de Polo um encmio, ou seja, um argumento de carter

    elogioso, que visa adjetivar positivamente a arte da Retrica, como se algum estivesse

    negativando a priori, mas no respondeu que arte , qual sua definio e escopo. Ao

    26

    Renehan (1995, p. 71) tambm aponta essa contrariedade entre Plato e Aristteles em relao teknhe

    a empeiria. 27

    Em concordncia com esse raciocnio, Arajo (2008, p. 36) nos diz: [...] Portanto, alegar que a retrica

    perlgouse e encontrar nisso o que a distingue de outras artes no basta, preciso tambm dizer o per

    ti desse logos [...]. 28

    O professor Dinucci argumenta que o prprio Scrates, a despeito dos escopos de seus prprios

    questionamentos, no oferece definies de suas proposies, o que para si admissvel. [...] A resposta

    socrtica tambm recorrente: ao longo dos dilogos aporticos, Scrates, ao ser indagado sobre a sua

    questo o que ?, jamais explicita o estatuto ontolgico e epistemolgico de seu modo de

    questionamento. De certa forma, esse procedimento admissvel, pois Scrates no dispe de uma

    ontologia e uma epistemologia explcitas. Porm, pode tornar-se enganador caso o interlocutor

    inadvertidamente tenha de se comprometer com princpios ontolgicos e epistemolgicos que

    conscientemente no admitiria. Ademais, os esclarecimentos de Scrates sobre seu questionamento

    parecem inconsistentes, se levarmos em conta seus prprios critrios: ele nada faz seno dar exemplos de

    perguntas semelhantes e suas respectivas respostas. Tal procedimento sempre rechaado por Scrates

    quando um interlocutor, ao invs de oferecer uma definio como resposta questo o que isto ou

    aquilo, se limita a dar exemplos de coisas que so isto ou aquilo. Scrates, tambm no Grgias, se limita

    a dar exemplos e no nos informa sobre o que h de mais importante em seu questionamento, ou seja,

    seus fundamentos. (DINUCCI, Aldo. Scrates versus Grgias. In: ANAIS DE FILOSOFIA CLSSICA,

    vol. 02, n. 4, 2008). 29

    [...] CAL: Nada como tu a indag-lo, Scrates! Alis, esse era um dos pontos de sua exibio: h

    pouco mandou aos presentes que lhe perguntassem o que desejassem, e afirmou que responderia a todas

    as perguntas.

    SOC: Bem dito. Querofonte, interroga-o!

    QUE: Sobre o que devo interrog-lo?

    SOC: Quem ele .

    QUE: Como dizes?

    SOC: Por exemplo: se ele fosse artfice de sapatos, ele decerto te responderia que sapateiro; ou no

    entender o que digo? [...]

  • 22

    passo que Polo, sem compreender aonde Scrates queria chegar, refora o que dissera

    anteriormente, dizendo que a arte de seu mestre a mais bela (448e). Nos passos

    seguintes, veremos a definio da Retrica advinda do Grgias em si, mas j no

    princpio podemos ver a retomada da qualificao da Retrica, o que ser destoante do

    objetivo do questionamento socrtico. Ao ser questionado a respeito do que concerne

    aos discursos retricos, Grgias afirma que concerne s melhores e s mais importantes

    coisas humanas (451d). Logo em seguida, Scrates vai problematizar reiteradamente o

    argumento elogioso de Grgias e Polo.

    Como observa Lopes:

    Depois de Scrates mostrar a Grgias que a sua definio de retrica

    no era vlida [...], Grgias tenta esclarecer o que diferencia a retrica

    dessas outras artes com relao ao objeto especfico de seu discurso.

    Todavia, nessa segunda definio proposta, ele acaba incorrendo no

    mesmo tipo de equvoco, segundo as regras dialgicas estabelecidas

    por Scrates, cometido por Polo no prlogo (448c). A uma pergunta

    de definio objetiva do domnio especfico do discurso retrico,

    Grgias oferece uma resposta encomiasta: como Scrates disse

    naquela ocasio a Polo, a pergunta no se refere valorao do objeto

    em questo, mas sua definio. Scrates lhe mostra que a sua

    resposta no satisfatria porque as melhores e mais importantes

    coisas humanas [...] uma assero polmica, na medida em que h

    igualmente outros artfices [...] que reivindicam para sua arte o mesmo

    ttulo. A propenso ao elogio de si mesmo ou de seu ofcio um dos

    traos do personagem Grgias no dilogo, que corresponde, por sua

    vez, a um dos elementos fundamentais do modo de discurso retrico

    (Grgias, nota 16, p. 186).

    Havemos agora de discorrer sobre o fato de, reiteradas vezes, tanto Polo, quanto

    Grgias, procurarem qualificar a Retrica para determin-la como a arte sobre as outras.

    Irwin (1979) afirma que o atributo de qualidade dado por Polo Retrica suficiente

    para dar uma definio da mesma, uma vez que se trata de um atributo mormente dela,

    apesar de Scrates no corroborar com tal caminho. Podemos, ento, partir para a

    compreenso que estamos nos deparando com ideias primevas divergentes em relao

    ao mesmo objeto. Para Grgias, a prpria teknhvem da empeiria, sendo assim, no ser

    preciso conhecer a definio de uma coisa para dizer o que ela , mas a prpria

    definio vem a partir da descrio dos dados sensveis, que podem ser comparados

    com outros e, por isto mesmo, qualific-los a partir deles. Assim, dizer que bela e tem

    maior poder faz sentido para Grgias. Tal ponto pode ser observado quando, no passo

    452d, Grgias afirma que o domnio da Retrica sobrepor-se aos outros em sua

  • 23

    prpria cidade, claramente colocando a sua teknh em carter superior30

    . J no passo

    seguinte (452e), Grgias afirma que seu ofcio tem, por meio da persuaso (), o

    poder de falar e persuadir a multido ( ),

    transformando os outros artfices em escravos de suas palavras31

    . Sendo assim, diz

    Arajo:

    Mas, para Grgias, justamente o que diz Scrates que no faz

    sentido. De modo algum a retrica seria excluda de uma reunio que

    queira decidir sobre o saber, e isso porque s a retrica sabe, pois s

    ela capaz de dizer o melhor, entenda-se, s a retrica realiza o

    necessrio em uma reunio, o discurso. Sempre que uma arte manual

    precisa decidir o que fazer, ela precisa da retrica para dizer por ela,

    para lhe dar um sentido [...]. (ARAJO, 2008, p. 52-53).

    A Retrica, ento, seria, reforando mais uma vez a viso de Grgias, e a de

    Polo, a teknhmelhor e mais bela. O professor Aldo Dinucci (2010) tambm aponta que,

    embora reconhea as variadas formas de discursos, Grgias no fenece de seu mister

    uma superioridade em relao aos outros tipos32

    . Vemos claramente, com isto, que os

    personagens Grgias e Scrates discordam diametralmente em relao ao conceito de

    teknh.

    A partir do pressuposto que Grgias possui, dentre sua gama de

    intencionalidades, a preocupao em denotar a superioridade dialgica socrtica frente

    aos seus interlocutores, vamos observar que Scrates procura impor sua prpria noo

    de teknh, estabelecendo nuances divergentes inclusive daquelas que estavam

    disponveis nos contextos sociais dos personagens. No obstante, apontaremos a

    30

    [...] GOR: Aquele que , Scrates, verdadeiramente o maior bem e a causa simultnea de liberdade

    para os prprios homens e, para cada um deles, de domnio sobre os outros de sua prpria cidade. No

    dilogo Mnon, Plato coloca, nos lbios desse personagem, que a definio da virtude maior do homem,

    que a virtude sobre a cidade, a capacidade de comandar os homens. Interessante perceber que, antes

    dessa afirmao de Mnon, Scrates afirma que o pensamento de seu interlocutor est coadunado com o

    de Grgias (Mnon, 73c-d). 31

    No Filebo, podemos notar o seguinte do personagem Protarco: Da minha parte, Scrates, ouvi, muitas

    vezes, Grgias repetir que a tcnica da persuaso ultrapassa em muito todas as outras, pois a ela

    submetem-se todas as coisas no por violncia, mas de bom grado por ser ela, de longe, a melhor

    dentre todas as tcnicas. No gostaria, por isso, de me opor, agora, nem a ti nem a ele. Com essa

    afirmao, vemos que as deliberaes qualitativas em relao ao mister pretendido por Grgias eram

    comumente aceitas no contexto vivido por Scrates e demais personagens do Grgias. 32

    Portanto, Grgias distingue diversos tipos de discurso, diferenciando-os de acordo com a matria

    tratada e a persuaso exercida. Alm disso, podemos dizer que, do ponto de vista da retrica, todos os

    discursos supem (como condio para que existam) o conhecimento da linguagem e o consequente

    reconhecimento de que a retrica subjaz a todos eles como sua condio de possibilidade. Assim, desse

    ponto de vista, a definio apresentada pelo personagem Grgias no seria ampla em demasia, mas to

    somente revelaria o fato de que toda e qualquer techn tem de fazer apelo retrica, arte que concerne

    s palavras, na medida em que for preciso tratar discursivamente de algum aspecto seu [...]. (O que nos

    faz pensar, n. 28, dez. 2010, p. 220).

  • 24

    posio socrtica em relao Retrica, no excluindo o foco de que ela faz parte de

    uma empeiria, mas que no produz a epistm, sendo seu escopo a mera adulao

    (). Dinucci (2010) assim argumenta sobre essa concepo socrtica de

    teknh, que destoa de seus pares:

    preciso reconhecer que Scrates impe suas prprias premissas na

    argumentao. A retrica afirmada uma empeiria e no uma techn

    por Scrates devido sua singular concepo de techn, que ao

    mesmo tempo epistm (j que pressupe o conhecimento da

    definio de seu objeto), praxis (j que implica uma prtica de acordo

    com esse conhecimento, sendo o erro, para Scrates, devido

    ignorncia) e poisis (j que a techn tem como fim a produo de

    eudaimonia). Essa concepo radicalmente distinta no somente

    daquela de Grgias como de todos os seus contemporneos, que

    tendiam a ver uma estreita ligao entre techn e empeiria,

    desconsiderando a possibilidade de um carter epistemolgico da

    techn. Porm, simplesmente afirmar que o argumento de Scrates

    invlido por impor ao adversrio certos conceitos e noes perder de

    vista o ponto em questo e o sentido histrico da argumentao

    socrtica e platnica como um todo. No podemos deixar de notar, em

    primeiro lugar, que Scrates, por meio de sua argumentao, est

    apresentando aos seus contemporneos sua prpria noo de techn,

    que ser desenvolvida de diferentes formas por Plato nos dilogos da

    juventude, da maturidade e da velhice. [...]. (DINUCCI, 2010, p. 229-

    230).

    Delinearemos, a partir de agora, os passos que sustentam a crtica socrtica

    Retrica, que a coloca como mera adulao. Ao nos debruarmos no passo 453a,

    relembramos que Grgias anuiu compreenso socrtica que coloca como maior poder

    () da Retrica a capacidade de incutir na alma dos ouvintes a persuaso ().

    No passo seguinte, Scrates estabelece que a persuaso plural, ao questionar a que tipo

    de persuaso Grgias afere ser utilizada em sua Retrica, embora ele j suspeite qual

    dever ser a resposta33

    . No passo 453d, o prprio Grgias concorda que, quem ensina,

    qualquer que seja a arte, persuade.

    Conduzindo a compreenso e tendo a anuncia de Grgias em relao ao fato de

    a persuaso no ser objeto exclusivo da Retrica, Scrates almeja saber de qual

    persuaso alberga exclusivamente a Retrica, visto que no faz jus s demais34

    . A

    33

    [...] SOC: Passo a te dizer agora. Que persuaso essa proveniente da retrica qual te referes e a que

    coisa concerne a persuaso, saibas bem que no o sei claramente, mas suspeito, presumo eu, de que

    persuaso falas e a que ela concerne. Todavia, no deixarei de perguntar a ti que persuaso provm da

    retrica qual te referes e a que coisa ela concerne [...]. (453b). 34

    McCoy (2010, p. 98) sugere que, nessa parte do dilogo com Grgias, Scrates procura mostrar

    aparentemente a insuficincia da retrica, visto que no se ancora em nenhum conhecimento especfico.

  • 25

    resposta de Grgias delimita como cerne as deliberaes acerca do justo () e ao

    injusto () em tribunais e demais assembleias (454b5-7)35

    .

    A partir dessa parte do dilogo, Scrates conduz Grgias ideia de que existem

    dois tipos de persuaso, a saber: uma, que incute na pessoa a quem se pretende

    persuadir uma crena falsa, e a outra, que incute uma crena verdadeira. Em outros

    termos, a primeira produz a crena sem conhecimento, e no uma cognio, ou seja,

    uma cincia () (454d-e)36

    . Ao consentir que a persuaso produzida pela

    Retrica nos tribunais geradora de crena, e nada ensina sobre o justo e o injusto,

    Grgias demonstra a inpcia de sua pretensa arte37

    . Ao menos sob o escrutnio

    perpetrado por Scrates, que, como j vimos, associa a tcnica ao conhecimento

    pretendido por ela38

    . Sobre este aspecto, infere-nos Casertano (2010, p. 57-58) que [...]

    o fato de induzir nos outros uma crena separada do conhecimento, isto , privada de

    , na realidade coloca imediatamente a retrica no campo no de uma tcnica, mas

    de uma empiria enganadora [...]. McKirahan (2013, p. 619-620) vai reforar esse

    Como ela mesmo diz: Scrates apresenta a posse de conhecimento tcnico como o fundamento da boa

    persuaso. 35

    Faz-se interessante observar o comentrio de Arajo (2008, p.48-49) em relao a essa definio de

    Grgias: A ideia de Grgias deve ser compreendida como a transmisso, pela persuaso do discurso, do

    saber que s o retrico tem acerca do que o bem segundo a determinao das circunstncias. Em outras

    palavras, a retrica transmite pela persuaso a determinao do poder em termos de vontade e permisso,

    e a partir da que ela pode dizer o justo, como o que respeita essa ordem, e o injusto, como a prpria

    insolncia. Dizer o justo e o injusto fazer jus ao discurso, submeter o discurso gide de um bem,

    fazendo ocultar que ele muito mais poderoso que o bem. Um pouco mais acima, a prpria autora j

    observara que, mais uma vez, essa resposta de Grgias foge novamente ao intento do questionamento

    socrtico, que busca o per ti, ou seja, o que . O que ele faz com essa nova resposta fornecer outra

    perspectiva (p.48). Vamos observar que Scrates vai utilizar essa nova linha de raciocnio para refutar seu

    interlocutor. 36

    Mais frente, no subitem 1.2 deste captulo, retornaremos com uma anlise mais prolfica sobre as duas

    espcies de persuaso. Por hora, suficiente a ns esta distino apenas para observarmos que esse um

    dos passos dados por Scrates para argumentar sobre a Retrica e seu carter lisonjeiro. No obstante,

    achamos importante observar, ancorados em DODDS (1980, p. 206), que a distino entre crena ()

    e conhecimento (), elementos importantes para a filosofia de Plato, aqui formalmente exposta

    pela primeira vez: Ele modificou sua terminologia depois: do Mnon em diante, a palavra normal para

    opinio doxa, enquanto, na Repblica (511e1), pistis se torna o nome para uma subdiviso da doxa. A

    doutrina da presente passagem [do Grgias] reafirmada em nova linguagem no Teeteto (201a8) [...] Mas

    Plato no rigoroso em seu uso dos termos: numa famosa sentena do Timeu (pois, assim como o ser

    est para o vir-a-ser, assim est a opinio para a verdade 29c3), pistis equivale ao termo mais usual

    doxa. 37

    [...] SOC: Qual , ento, a persuaso que a retrica produz nos tribunais e nas demais aglomeraes, a

    respeito do justo e do injusto? A que gera crena sem o saber ou a que gera o saber?

    GOR: deveras evidente, Scrates, que aquela geradora de crena.

    SOC: Portanto, a retrica, como parece, artfice da persuaso que infunde crena, mas no ensina nada a

    respeito do justo e do injusto.

    GOR: Sim. [...] 454e8-455a3. 38

    Arajo (2008, p. 51) observa que Grgias decide dar a resposta que Scrates quer, ao anuir que a

    Retrica gera a crena sobre o justo e o injusto. Grgias havia constatado que Scrates no aceitaria mais

    uma vez o discurso como resposta.

  • 26

    argumento ao aduzir que ser neste ponto que Scrates virar o jogo contra os sofistas,

    retirando no s o pretenso carter universal da tcnica da Retrica, como tambm

    negando-lhe o atributo de arte, por no ter um cerne determinado.

    Tomando como pressuposto a ideia de que as decises tcnicas em uma cidade

    devem ser tomadas pelos artfices mais aptos, Scrates retira dos retricos o poder de

    deliberar corretamente sobre as decises da cidade, como aponta Irwin (1979, p. 119):

    Scrates supe que deve haver experts polticos que tenham conhecimentosobre o que

    justo e injusto, e estes oradores no so estes experts. Ou seja, em relao ao poder

    (455b). O retrico, por no ser detentor de um saber especfico, nada teria de decidir

    sobre a cidade, como observa Arajo (2008, p. 52). Entretanto, Grgias procura mostrar

    o poder da Retrica aolembrar a Scrates que algumas das principais obras de Atenas

    no foram conselhos de artfices especficos, mas de oradores como Temstocles e

    Pricles (455d6-e3). A seguir, e tomando como referncia a prpria inferncia de

    Grgias, Scrates, mais uma vez, indaga sobre o poder () da Retrica, pois, tal

    como o sofista expe, faz parecer sua arte um elemento divino (456a). Adiante, Grgias

    afirma que, em meio multido, no h assunto em que o retrico no seja mais

    persuasivo que qualquer artfice (456c). Lopes (Grgias, 2011, p.202) argumenta que

    Grgias leva a ideia de que a Retrica no se apresenta como uma arte com o domnio

    especfico, mas sim como detentora de um saber sobre os diversos saberes, inclusive

    sobre os que tenham uma tcnica especfica39

    . Observamos aqui que, mais uma vez,

    Grgias prope ser a Retrica uma panaceia aos discursos, reforando o elogio que ele

    procurou determinar desde o princpio do dilogo40

    .

    Ao elaboraruma analogia entre a Retrica e a luta () (456d1), o

    personagem Grgias estabelece o carter agonstico comum s duas, encerrando-as em

    processos de profundas altercaes, como aponta Lopes (Grgias, 2011, p. 203, nota

    29). E como comparativo direto, Grgias afirma que, assim como o que apreende a arte

    da luta no deve utiliz-la de forma injusta, o que apreende a Retrica, em todo o seu

    poder tambm no o deve faz-lo. Todavia, se o rtor e o lutador utilizarem suas artes

    39

    Interessante observar que Aristteles, na abertura de sua Retrica, coloca a Retrica no estatuto de uma

    arte genrica, sem um saber especfico. A retrica a contraparte da dialtica. Ambas igualmente dizem

    respeito a estas coisas que se situam, mais ou menos, no horizonte geral de todos os indivduos, sem ser

    do domnio de nenhuma cincia determinada [...]. (1354a1-4). 40

    De acordo com essa ideia, esclarece Arajo (2008, p. 53): A retrica tem em si o poder de todas as

    outras artes. Sempre que uma deciso tiver que ser tomada, ser o retrico o escolhido, e o que ele quiser

    ser sempre realizado [...].

  • 27

    de forma injusta, nem o mestre que o ensinou tal arte nem as prprias artes devem ser

    responsabilizadas, pois seus princpios so guiados pela justa ao (456d-457c).

    Observamos, apoiados em Lopes (Grgias, 2011, p. 205) e Arajo (2008, p. 54), que,

    para Grgias, a utilizao correta de uma arte de responsabilidade do prprio agente,

    que deve responder por suas aes, e no de quem ensinou, que mantm a medida41

    .

    Essa declarao ser focal na consumao do elenchos por parte de Scrates, uma vez

    que ser um ponto crucial em sua refutao, como ficar claro na sequncia da

    discusso.

    Observamos que, almejando a refutao ao argumento de Grgias, Scrates

    procura manter seu interesse na discusso, afirmando ser ele um homem que se compraz

    com a possibilidade de ser refutado, com o escopo da busca da verdade (458a)42

    . E

    indaga a Grgias se ele tambm esse tipo de homem, que assente com presteza (458b).

    Podemos notar, nesse passo, a tentativa de Grgias em se desvencilhar do dilogo com

    Scrates, para evitar ser refutado, ao aludir aos demais presentes um desgaste de

    contedos dados43

    . Entretanto, sua tentativa no logra xito, uma vez que a prpria

    audincia, na pessoa de Clicles, se mostra sequiosa pela continuao do debate

    (458d)44

    .

    O Leontino assente o interesse do pblico e pede que Scrates continue a

    indagao principiada (458e1-2). Como desenvolvimento, Scrates questiona Grgias

    41

    O professor Dinucci (O que nos faz pensar, n. 28, dez. 2010, p. 225-226) observa que, para Grgias, o

    mau uso da teknh, ou seja, ao ser utilizada injustamente, no possibilidade exclusiva da Retrica, mas

    tambm das demais artes. Citao? 42

    Sobre esse passo, Lopes (Grgias, 2011, p. 206-207) argumenta que Scrates demonstra uma

    preocupao sobre o que vir, uma vez que ele teme que Grgias considere que a motivao socrtica seja

    de carter pessoal e no de busca de esclarecimento sobre o tema aduzido. Scrates procura se justificar

    antecipadamente, por j saber que, diante de alguns interlocutores, seu processo de elenchos , muitas

    vezes, confundido com a mera prtica da erstica, cujo objetivo apenas a vitria. Como vimos acima,

    nota 21, essa prtica era tpica dos sofistas e no de filsofos como Scrates, ao qual Plato pressupunha

    deter uma benevolncia. 43

    [...] GOR: Mas ao menos eu, Scrates, afirmo ser um homem do tipo ao qual aludiste; mas talvez

    devssemos pensar tambm na situao dos aqui presentes. Pois, muito antes de vs chegardes, eu j

    havia lhes exibido inmeras coisas, e talvez agora nos estendamos em demasia, se continuarmos a

    dialogar. Assim, devemos averiguar tambm a situao dessas pessoas, a fim de que no nos

    surpreendamos se parte delas queira fazer alguma outra coisa(458b). Tambm se faz mister perceber que

    Polo, no prlogo do dilogo, afirmara que o prprio Grgias estava exausto depois de sua apresentao

    sobre diversos assuntos (448a). 44

    De acordo com Lopes (2011, p. 210, nota 34), a manifestao dos ouvintes representa, sutilmente, a

    derrota de Grgias para Scrates, uma vez que se inverte o jogo de foras. Na chegada, Scrates se depara

    com um ambiente desconhecido, cheio de discpulos de Grgias, e consegue impor sua modalidade

    dialgica, tendo o pblico ao seu favor. Utilizando Arajo (2008, p. 56) como referncia, podemos

    argumentar que, provavelmente, o pblico presente intenta que o dilogo d continuidade para ter

    conhecimento de um vencedor. Embora saibamos que Scrates intenciona d prosseguimento em respeito

    questo proposta, como ele mesmo afirma reiteradas vezes.

  • 28

    sobre a possibilidade de este transformar algum que o procure num rtor; num artfice

    cujo poder possa persuadir, no ensinar, a multido. A essa turba de incautos, que no

    goza de conhecimento especfico, o rtor se apresenta como mais convincente em

    relao sade, por exemplo, que o mdico, detentor de conhecimento especfico45

    .

    Grgias assente as indagaes socrticas com presteza, concordado com a conduo.

    Entretanto, faz-se mister a compreenso que Scrates conduz a anuncia de Grgias a

    considerar que o sucesso da empreitada do rtor depende da ignorncia da audincia,

    sendo que, se fosse em meio aos que tivessem conhecimento, a persuaso retrica seria

    infrutfera46

    . Somos levados a perceber, ento, que a persuaso dos retores influi

    diretamente na ignorncia do pblico. E por no deter o conhecimento sobre o que

    ensina, o rtor se mostra tambm ignorante, que em meio a ignorantes detm maior

    poder47

    . A partir da assuno de Grgias sob o escrutnio de Scrates, este mostra a

    retrica no como uma arte, detentora de um saber, mas sim como uma contrafao,

    uma aparncia incutida aos ignorantes, perpetrada por ignorantes48

    . Grgias anui

    concluso socrtica, entretanto, interpretando como vantagem e superioridade a

    caracterstica da Retrica delineada por Scrates 458c3-549

    . No comentrio sobre o

    Grgias, Lopes interpreta esse passo como sendo mais uma evidncia de que os

    45

    A utilizao da medicina como exemplo de teknh em Plato referencia a importncia dessa arte na

    cultura grega, como nos diz Jaeger: Ainda que no tivesse chegado at ns nada da antiga literatura

    mdica dos gregos, seriam suficientes os juzos laudatrios de Plato sobre os mdicos e a sua arte, para

    concluirmos que o final do sculo V e o IV sculo a.C. representam na histria da profisso mdica um

    momento culminante do seu contributo social e espiritual. O mdico aparece aqui como representante de

    uma cultura especial do mais alto grau metodolgico e , ao mesmo tempo, pela projeo do saber num

    fim tico de carter prtico, a personificao de uma tica profissional exemplar, a qual por isso

    constantemente invocada para inspirar confiana na fecundidade criadora do saber terico para a

    edificao da vida humana [...]. (Paideia, 1995, p. 1001). Ainda sobre este aspecto da medicina em

    detrimento das pretensas artes, nos diz Penner (2013, p.184): [...] Como a medicina olha para o que

    objetivamente melhor para a sade (e no apenas para o que parecemelhor aos pacientes no que tange

    sua sade), assim a cincia da virtude olha para o que objetivamente melhor para os homens (no s

    para que os homens pensam ser melhor para eles) [...]. 46

    Grgias, 459a. 47

    Grgias, 459b6-8. 48

    SOC: Assim, no tocante a todas as demais artes, o rtor e a retrica se encontram na mesma condio:

    a retrica no deve conhecer como as coisas so em si mesmas, mas descobrir algum mecanismo

    persuasivo de modo a parecer, aos ignorantes, conhecer mais do que aquele que tem conhecimento

    (459b10-459c2). 49

    Interessante observar o comentrio de McCoy (2010, p. 100) sobre a assuno de Grgias. O que nos

    faz entender que at aqui o elenchos socrtico est coadunado com o que pensa o Leontino: [...] O

    conhecimento tcnico sobre um assunto particular no qual algum est persuadindo desnecessrio. Em

    vez disso, o retrico sabe como produzir convico parte de qualquer conhecimento especializado, tanto

    por parte do falante quanto do persuadido. Se o mdico e o retrico convencem, o efeito prtico o

    mesmo em seu pblico de fato, at o efeito epistemolgico o mesmo do ponto de vista do paciente,

    pois, seja quem for convencido, a pessoa que toma o remdio somente ter mudado suas opinies. A

    diferena que o retrico mais eficiente em atingir o objetivo de persuaso. Grgias no nega que o

    conhecimento tcnico existe, mas que haja uma ligao necessria entre conhecimento e a boa persuaso

    [...].

  • 29

    personagens debatedores at agora tm suas prprias convices em relao Retrica,

    que se excluem mutuamente50

    .

    J tendo sinalizado que a Retrica um engodo aos incautos, Scrates conduz

    seu elenchos para uma encruzilhada da qual Grgias no consiga sair. Voltando a

    questo do cerne do justo e do injusto, alegados como escopos da Retrica pelo prprio

    Grgias (454b5-7), que considera que o rtor deva se guiar pela justia, mas que, se ele

    se guiar pela ao injusta, no se deve culpar o mestre que o ensinara (457b), Scrates

    indaga ao seu interlocutor se a relao do retrico com o justo e o injusto encontra-se a

    respeito do justo como se encontra a respeito da sade. Ou seja, ignora o saber da

    justia, mas, por meio da persuaso (), conduz os ignorantes de modo a parecer

    conhecer, mais que aqueles que, de fato, conhecem (459d). Ou se necessrio que o

    pretendente a rtor saiba previamente sobre o justo e o injusto, ou sendo Grgias um

    mestre da Retrica (), ele possa ensinar-lhe esse cerne (459e).

    Grgias, por sua vez, assente que acaso no conhea, o aprendiz poder ter com ele as

    coisas referentes ao justo e ao injusto. Scrates, ento, encerra seu raciocnio

    completando que, quer seja previamente, quer por ensinamento, ser necessrio que o

    rtor conhea acerca do justo e do injusto (460a)51

    .

    Como prximo passo, Scrates utiliza o argumento por analogia entre arte

    () e virtude (), comum nos primeiros dilogos de Plato, como sustenta

    Lopes (Grgias, 2011, p. 216), no qual bastaria saber sobre certa arte para reproduzi-la.

    Assim, bem como o detentor da arte de carpintaria o carpinteiro, e o detentor da arte

    da medicina o mdico, quem detm a justia justo (460b). A partir do passo (460c-e)

    Scrates infere a Grgias, de certa forma ardilosa, que o rtor sendo justo, jamais

    50

    A diferena de juzo entre Scrates e Grgias sobre o poder da retrica mostra como, do ponto de vista

    da construo das personagens, elas possuem valores absolutamente diferentes, refletindo, portanto, o

    abismo entre filosofia e retrica: enquanto para Scrates ela consiste numa prtica irracional e num saber

    aparente, na medida em que o rtor no precisa conhecer aquilo sobre o que discursa, mas somente

    parecer conhecer multido para a qual discursa (razo suficiente para no consider-la uma techn,

    embora Scrates no explicite essa tese nesse momento do dilogo), para Grgias justamente esse

    aspecto que a torna superior s demais tekhnai, pois parecer conhecer condio suficiente para

    persuadir uma multido ignorante daquilo sobre o que se discute. O domnio do aparente no tem

    qualquer valorao negativa por parte da personagem Grgias, enquanto para Scrates, inversamente, a

    busca pelo conhecimento tem como fim a supresso do aparente (Grgias, p. 212. Nota 36). 51

    MacCoy (2010, p.99) argumenta que aqui Scrates que estabelece a ideia de haver uma ligao

    necessria entre a retrica e o conhecimento da justia. At ali, Grgias apresentara a retrica e o

    conhecimento da justia como separveis. Segundo a autora, no mximo, Grgias associara levemente a

    retrica com a justia (454b). Concomitantemente, embora possa aduzir que Grgias cometeu um deslize

    conquanto a ligao necessria estabelecida por Scrates, ele no demonstra que a posio original de

    Grgias sobre a natureza da retrica seja incoerente. Dodds (1980), por sua vez, aponta que Grgias no

    deveria simplesmente ter afirmado que ensina justia, podendo, assim, escapar do argumento.

  • 30

    querer cometer injustia, ao passo que o sofista anui. Por fim, fazendo Grgias entrar

    em contradio, Scrates o relembra quando o disse que se um rtor utilizar a Retrica

    injustamente, a culpa deve cair para ele, e no para quem o ensinou. Ora, se quem

    conhece o justo, querer ser justo, como pode um rtor cometer injustia?52

    Entretanto,

    faz-se mister reconhecer que essa concluso do elenchos socrtico vai de encontro ao

    prprio pensamento de Plato j exposto no Mnon (95c), no qual este profere que

    Grgias jamais professou ser mestre da virtude ( ), e sim prometeu

    ensinar apenas a tcnica dos discursos, como j observamos acima53

    .Contudo, temos

    que concordar com Nichols JR. (2016, p. 59), que argumenta que, apesar de os temas

    em Plato perpassarem por vrios dilogos, cada um deles deve ser visto como

    unilateral e parcial, buscando uma abordagem especfica ou um ponto de vista especial

    para um problema.

    O processo encerrado por Scrates, que deixa Grgias em contradio, abrir

    caminho para a entrada repentina de Polo na questo (461b3), que acusar de ardilosa a

    maneira como Scrates havia conduzido a discusso54

    . Por isto mesmo, passa a colocar-

    se como defensor da Retrica, retomando e renovando o debate. Com a entrada de Polo,

    Scrates reconhece a oportunidade de, por si mesmo, estabelecer o que entende por

    Retrica. Este fato fica evidente ao nos depararmos com a inverso de papis conduzida

    por Scrates, ao permitir que seu interlocutor saia da condio de inquirido para a

    condio de inquiridor55

    .

    52

    Vemos aqui a contradio pela qual passa a personagem Grgias frente ao elenchossocrtico.

    Entretanto, podemos notar a contra-argumentao de Robinson (1966, p. 23), alegando que sequer

    Grgias entrou em contradio, mas sim, houve uma inconsistncia de seu pensamento sob as premissas

    estabelecidas por Scrates. 53

    Tambm interessante observar o comentrio de Lopes acerca desse assunto: Ao acrescentar na

    concluso do argumento indutivo que a pessoa que conhece o justo, alm de ser justa, que age de modo

    justo [...], Scrates introduz, na discusso, uma tese sobre a motivao moral que ultrapassa os limites da

    analogia entre arte e virtude [...] (Grgias, p. 217, nota 39). De forma igualmente relevante, MacCoy

    (2010, p. 99) alega o seguinte: a assuno de Scrates de que Grgias deve ou saber sobre a justia e

    ensin-la, ou ser responsabilizado por seus alunos parecerem saber quando no sabem, questionvel.

    claro que h alternativas. Uma pessoa pode saber sobre a justia em si, mas ser capaz de ensin-la a

    outros: considere o exemplo da falha de Scrates em ensinar qualquer um presente de que a vida justa

    melhor do que a vida injusta nesse dilogo. Sobre a dificuldade de ensinar que a vida justa melhor que

    a injusta, versaremos com afinco no captulo 02 desta dissertao. 54

    Apoiados em Lopes (2011, p. 220. Nota 44), observamos aqui que, segundo Polo, Scrates estabeleceu

    premissas que colocaram seu mestre em posio de vergonha, ao ter que admitir que ensinava a justia.

    Para o jovem Polo, a anuncia de Grgias se d no por ele concordar com as premissas de Scrates, mas

    sim, pelo fato de, como estrangeiro naquela cidade, ter que corroborar com os valores morais assentados

    nela, mesmo que no condissesse com sua prtica de rtor. Assim, teria que admitir para os que ali

    estavam que ensinava qualquer assunto a quem quisesse, inclusive em relao ao justo e ao injusto. 55

    SOC: E agora, cumpre a parte que te aprouver: pergunta ou responde! (462b1). Lopes (2011, p. 222.

    Nota 47) observa que essa inverso de papis rara nos primeiros dilogos de Plato.

  • 31

    De pronta celeridade, Polo alberga a condio de questionador e, sem demora,

    pergunta a Scrates o que para ele a Retrica. Compreendemos aqui que Scrates j

    imaginara qual pergunta Polo lhe dirigiria, uma vez que, desde o comeo desta

    interveno, Polo mostrava-se afetado e jactante em relao derrota de Grgias. Por

    isso, podemos observar o passo 462a1-3, no qual Scrates adverte sobre a possibilidade

    de ele ser refutado, como o prprio Grgias o fora56

    . Posto isso, e de forma direta,

    Scrates vai afirmar que, segundo seu parecer, a Retrica no nenhuma arte (462b).

    De fato, Scrates coloca a Retrica como certa experincia ( )

    (462c3). Arajo (2008, p. 77) observa que, at ento, essa definio da Retrica como

    experincia no seria um contraponto ideia de Polo, a no ser pelo fato de,

    efetivamente por esta caracterstica, Scrates no considerar a Retrica uma arte

    (). No obstante, temos aqui uma definio no qualitativa, como aquelas aduzidas

    por Grgias e Polo, e partiu de Scrates, que procurar definir os meandros da retrica

    sofstica. Polo, at ento ignorando as pretenses de Scrates, quer ouvir deste o eco de

    sua prpria definio, perguntando que tipo de experincia a Retrica (462c7).

    Quando Scrates afirma que uma experincia de produo de deleite e prazer

    ( ) (462c8), Polo novamente entra na perspectiva

    qualitativa, querendo que seu interlocutor reconhea ento, na Retrica, a mais bela das

    artes. Scrates se esquiva e pede que, para continuar com sua definio do cerne da

    Retrica, Polo pergunte que tipo de arte lhe a culinria57

    . Vejamos, ento, essa parte

    da argumentao:

    SOC: Pergunta-me agora que arte me parece ser a culinria!

    POL: Pergunto sim: que arte ela ?

    SOC: Nenhuma, Polo.

    POL: Mas o qu, ento? Fala!

    SOC: Falo sim: certa experincia.

    56

    No ensaio introdutrio do Grgias, Lopes (p. 44-45) argumenta que, em sua apresentao, Polo se

    mostra como futuro mestre de Retrica, seguindo os passos de Grgias, ao pretender educar os regentes

    da democracia de Atenas. Entretanto, posto que Plato o representa no decorrer do dilogo como um

    personagem impaciente e dbil (), o que vai, inclusive, permitir que Scrates seja mais incisivo em

    seu processo de refutao. Em concordncia com Lopes, Alfred Croiset, em sua nota de abertura do

    Grgias, assim apresenta Polo: Polos, plusjeune, plustranchant, um peuridicule par soninfatuaton, mais

    quireculedevantlesconsquencesdangereuses de ss thories. [...]. 57

    Como j apontamos acima, o personagem de Polo posto por Plato como inbil no conhecimento

    dialgico de Scrates, o que faz este conduzir o dilogo com o efebo a seu bel prazer, como observa

    Arajo (2008, p.77-78): Vale a pena notar o quanto Scrates se diverte com a satisfao inicial de Polo

    pela concordncia que ele teria feito surgir e com o seu espanto, ao ver essa concordncia resultar em algo

    to bizarro quanto a comparao da melhor das artes com a culinria [...].

  • 32

    POL: Qual? Fala!

    SOC: Falo sim: de produo de certo deleite e prazer, Polo.

    POL: Portanto, a culinria e a retrica so a mesma coisa?

    SOC: De forma nenhuma, mas partes da mesma atividade. [...] (462d8-462e3).

    Com efeito, Scrates procura delimitar a Retrica fora do eixo de uma teknh,

    conduzindo sua argumentao para encerr-la como uma ferramenta de prazer e deleite

    destituda de conhecimento tcnico. O comparativo, nesta parte da Retrica, com a

    culinria, serve como princpio para que Scrates estabelea uma esquematizao do

    que ele vai chamar de tcnicas e de suas partes em contrafao, a saber, de adulaes ou

    lisonjas58

    . Contudo, antes de sedimentar sua proposio acerca do aspecto lisonjeiro da

    Retrica, Scrates, com certa indulgncia, se mostra preocupado em no ser rude por

    dizer uma verdade que parea a Grgias um gesto de tripudiar. Entretanto, Grgias se

    mostra sequioso em dar continuidade e pede que Scrates no se preocupe (463a4).

    Posto isto, Scrates sentencia que a Retrica uma atividade como outras, que longe de

    ser arte, apropriada alma ligada a conjecturas, com capacidade de se relacionar com

    os demais e que tem como seu cerne a lisonja () (463b1). Sendo assim, o

    nome dado ao grupo de ocupaes empricas como a Retrica lisonja, sendo esta

    delineada pela experincia e pela rotina. No Filebo, podemos notar uma definio de

    no tcnicas feita por Scrates que se aproxima dessa definio de Retrica enquanto

    lisonja. Quando Protarco, o interlocutor de Scrates no Filebo, procura saber como

    distinguir os conhecimentos puros que podemos tomar como verdadeiros dos

    impuros que tomaremos como falsos , Scrates diz que, tirando do conhecimento

    suas tcnicas, o que teria sobrado depois disso seria a conjectura, o exerccio dos

    sentidos pela experincia e por certa rotina, utilizando-se ainda as potncias de

    adivinhao que muitos denominam tcnicas cuja eficcia produzida pelo exerccio e

    pelo trabalho rduo (55d-56a1).

    Estabelecido o cerne da Retrica e destituindo-a do altar de uma teknh, Scrates

    agora vai traar que tipo de lisonja a Retrica. De pronto, ao ser perguntado por Polo

    em que parte da lisonja colocaria a Retrica, Scrates argumenta que ela um simulacro

    da poltica e, como tal, m e vergonhosa (463d). Entendemos o simulacro como uma

    58

    Casertano (2010, p. 63) vai argumentar que, antes de estabelecer esta esquematizao, Scrates no faz

    nada mais que brincar com as palavras, dizendo e no dizendo.

  • 33

    contrafao, ou seja,