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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

A EXPERINCIA DO CUIDADO DE SI: A CLNICA ENTRE O CUIDADO DO TEMPO E O TEMPO DO CUIDADO

Fernanda Ratto de Lima

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Passos

Niteri-RJ

2010

Fernanda Ratto de Lima

A EXPERINCIA DO CUIDADO DE SI: A CLNICA ENTRE O CUIDADO DO TEMPO E O TEMPO DO CUIDADO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Passos

Niteri-RJ 2010

ii

Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

L732 Lima, Fernanda Ratto de.

A experincia do cuidado de si: a clnica entre o cuidado do tempo e

o tempo do cuidado / Fernanda Ratto de Lima. 2010.

161 f.

Orientador: Eduardo Passos.

Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,

Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de

Psicologia, 2010.

Bibliografia: f. 157-161.

ii

Fernanda Ratto de Lima

A EXPERINCIA DO CUIDADO DE SI: A CLNICA ENTRE O CUIDADO DO TEMPO E O TEMPO DO CUIDADO

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Passos

Universidade Federal Fluminense

_____________________________________________________ Prof. Dr. Cristina Mair Barros Rauter

Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________ Prof. Dr. Analice de Lima Palombini

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

____________________________________________________ Prof. Dr. Roberto de Oliveira Preu

Psiclogo da Prefeitura de Volta Redonda

iii

Dedico este trabalho aos amigos e ao meu

querido gato Joo Balaio, que antes de partir

cumpriu a difcil misso de me domesticar.

iv

AGRADECIMENTOS

A Edu, pelo seu tempo e seu cuidado circular. Por dar corda na linha de fuga quando eu

conseguia acompanh-la, por me jogar a corda quando eu tomava o rumo de uma fuga sem

linha. Pela sua imensa capacidade e necessidade de afetar e ser afetado. Pelo coletivo que

aglutina em seu limiar. Pela generosidade que exala e contagia, pela amizade e parceria na

vida. (Amizade e parceria, alis, que encontro em cada nome citado aqui.)

A Regina, pelo meu primeiro desvio. E tambm pelo carinho que mal consigo descrever. Pelo

acompanhamento, teraputico ou no, pela inspirao. Pela saudade. A Andr, pela

formao e pela formatura. Pelo Bergson, pelo tempo, pelo afeto, pelas experincias, pela

confiana, pela sanga.

A Susana, por fazer comigo a clnica se cumprir e reverberar. Pelo processo dentro e fora da

clnica. Pela vida. A Isa, por querer cuidar de mim e querer meus cuidados. Por

compartilharmos a vida na clnica e a clnica na vida. Pela generosidade e pelo mosaico. A

Cris, por esse acontecimento que foi nosso encontro. Pelo Foucault, pelo Neruda, pela

dana, pelo projeto, pelas madrugadas, pelo cuidado que no mais clnico, mas vital. Ao

GT9: Ed, Claudinha, Deco, Michele, Sabrina, Luis Felipe, Joana, Renata, Iac, Isa, Fernanda;

pela clnica, pelo coletivo, pela durao. Pelo abrao e pelo h-braos.

A Analice, pelo acompanhamento sensvel e generoso, sempre. Pela delicadeza e suavidade

nos gestos simples, firmes e precisos. A Cristina, pela confiana, pela leitura atenta e

cuidadosa nos imensos minimais, pela vibrao, pelo estmulo, e tambm pela Susana! A

Roberto, pela insistncia na amizade e parceria. Pela agudeza nos enfrentamentos. Pela co-

orientao, pelo mosaico.

Aos professores, alunos e funcionrios da UFF, em especial Luis Antonio e Joo, que at hoje

participam da minha formao com sua forte e querida presena. A Mrcia, pela primeira

acolhida na UFF, pela dedicao e carinho ao trabalho, pelo esforo para esta banca

acontecer. A Rita, pelos cuidados acadmico-afetivos. Ao grupo do Projeto AT-UFF, ao grupo

de pesquisa Cognio e Subjetividade UFF/UFRJ (em especial Christian, Jlia, Letcia, Carlos e

Guia!), ao grupo do estgio transdisciplinar, a minha turma de 2008, mestrado e doutorado

juntos. Em especial, nestes dois anos, o Limiar (com todos os seus nomes prprios, que so

v

muitos!), que tanto me inspirou e orientou em seus limiares. A Claudia e Aline, pelo carinho,

pelas duas leituras na raa, pelo avessamento que me ajudou a organizar a baguna! A

Luciana, pela disponibilidade e generosidade de (tambm) duas leituras num momento

difcil. A Diego e Tiago, por me oferecerem sua dissertao para ler.

A Iaco e Ti, que sempre me ensinam a pedir e oferecer ao mesmo tempo. Pelas viagens,

pelos trabalhos, pela casa. A Jonatha, meu irmo por escolha. A Babi, minha ento cunhada.

A Letcia, pela generosidade e parceria. Pela experincia e pelas experincias. A Cristiane,

pela espera, respeito, insistncia e acolhimento. A Jorge, pelo devir Ratto, pelo carinho, pelo

cuidado, pela famlia estrangeira. A Alice, por todos os s um pouquinho!. E tambm por

podermos ser mulheres s nossas maneiras, e ainda assim, fazer coisas de menina. A

Camila, pelo Varela encarnado, pela forte presena e grande vontade. A Raquel, pela leveza

e alegria dos encontros. A Julinha, pela quase casa que fez nascer essa amizade. A Vitor, pelo

masculino que no se ope ao feminino. Pelo AT e pela parceria nas primeiras supervises

fora da UFF. A Drica, pela continuidade da amizade na distncia e pelo corte de cabelo! A Gi,

por fazer do tremer o corpo uma arte, e me ajudar a praticar essa arte. Tambm por me

ajudar a preparar o ventre pra esse e os prximos nascimentos! A Priscila, Isabela, Sabrina,

Wal, Renata, Mariana, Juliana, Paulinha, pela enorme amizade quase impossvel nessa

diferena to grande! A Nair, minha bruxinha querida. A Geg, pela incrvel surpresa de me

proporcionar o que acharia ser o mais impossvel. A Arthus, pela poesia e prosa em

portugus, espanhol e guarani no violo ou no, pelo Senderos, pela milonga, pelos amigos.

Pela urgncia em viver sem urgncia. Pelo Antar, pela Tita. A Antar e Tita, gracias a la vida.

Aos amigos e companheiros da sade mental, sejam usurios, tcnicos, supervisores,

funcionrios, gestores... em especial aos usurios que estiveram mais perto, e a Hugo,

Madalena, Lisete, a equipe do CAPS Pedro Pellegrino e a Flvia, que me possibilitou uma

primeira reverberao da formao de AT na rede pblica. Ao grupo da CRPPP-CRP/RJ, que

me ajuda a habitar fruns polticos difceis. A todos os grupos que passaram por mim

enquanto passei por eles. Todos fundamentais.

A Laura, pelo corpo-rio abertssimo pero no mucho! A Fernando, por nossos estudos

concretos e afetivos com Foucault, pelo franais. A Sandro, pelo tempo no pulsado em

zero minutos. A meu eterno veterano Rodrigo, pelos empurres, em especial na minha

primeira seleo de iniciao cientfica. Pelo dia branco. A Rodrigo e Isa e Ti e ao coletivo

vi

vai chover, pela virada uruguaya. (E outros tantos, tantos nomes que no poderei citar aqui,

pois precisaria de umas cento e cinqenta pginas para isso... mas alguns ainda posso: Jana,

Teresa, ngela, Evandro, Maria Fernanda, Paulinha, Diego, Z, Victor, Sandra, Bruno, Silvana,

Laura, Krol, Mrcio, Carol e todos os amigos de POA, Al, Patrcia, Lia, Pingu, Marcela,

Beth, Tarso, Chico, John, Daniel, Roberta, Marcus, Lis, Carmen, Victor, Gudelia, Mariano...)

A meu pai Valter e minha me Katia, cada qual s nossas maneiras, por todos os

nascimentos que me proporcionaram. Pelo amor. A minha me pela clnica na poltica

pblica, a meu pai pela poltica pblica na clnica.

A minhas irms Ana Paula e Renata, por me proporcionarem um coletivo de cuidado desde

meu primeiro nascimento. A Ana pela msica, pelos ndios, pela msica indgena. A R, pela

arte (grfica ou no), pela msica, pela dana, e tambm por esta capa. A meu irmo Breno,

por me possibilitar viver o cuidado em outra posio. Pela bicicleta e nascer do sol no

cemitrio de Saquarema. A minha famlia tanto do sul quanto do nordeste (que no poderia

citar o nome de todos aqui), que me produzem nessa diversidade rica que o brasileiro. E

em especial minha v Adelaide e minha tia Nuna, sempre muito presentes, e minha outra v

Elmira e meu tio nio, que j no esto de corpo presente, mas cuja presena intensa. A

todos os que se agregaram a esta famlia (tambm no conseguiria nomear todos), fazendo

com que ficasse ainda mais colorida e animada. Especialmente a Leil, Joo, Edinho, Glria.

Mais especialmente ainda a David, pelo apoio, xamanismo, conversas e tradues. A meus

sobrinhos todos, que preenchem a vida com novas cores, alegrias e criancices.

Especialmente Callum, Kieran, Chico e Julio, que esto mais prximos, alegrando meu

cotidiano. E a famlia Boaretto Ferreira, por tudo que vivemos desde que eu era moleca

neste acoplamento transfamiliar.

A todos os que participaram e/ou ainda participam da oficina itinerante de mosaico e

permitem que ela continue. Especialmente minhas professoras Helena e Luciana, e minhas

primeiras alunas Nina, Manu e Claudinha, que comearam a me ensinar a ensinar mosaico. A

Claudia, por me ensinar teorica e praticamente como fazer da oficina uma linha de fuga.

Ao grupo de orientao, sem o qual simplesmente no existiria esta dissertao: Edu,

Denise, Joana, Letcia, Roberta, Iac, Cristiane, Jorge, Rafael, Sandro, e especial a Gustavo,

pelo fundamental gravador. Agradeo demais por mais esta roda!

vii

A CAPES e, principalmente, aos brasileiros, como Diego muito bem disse uma vez, pagadores

de tantos impostos que permitiram a concesso de minha bolsa, fundamental para minha

dedicao integral a esta pesquisa.

viii

RESUMO

Este trabalho fruto de uma pesquisa que problematiza, no sentido foucaultiano, a prtica clnica, atravs da narrativa de uma experincia concreta em alguns dispositivos criados pela Reforma Psiquitrica. A partir de uma compreenso do termo dispositivo concebido por Foucault e comentado por Deleuze, analisamos a prtica do cuidado nesses dispositivos. Norteou-nos a questo que se coloca no plano da relao entre cuidado e tempo: que estatuto queremos dar a esta relao? De que maneira podemos pensar e praticar um cuidado do tempo para criar condies de possibilidade para o tempo do cuidado? Inversamente, de que maneira podemos viver o tempo do cuidado para criar condies de se cuidar do tempo? Assim, acompanhando o movimento dos estudos de Foucault, propomo-nos a compartilhar e pensar uma experincia de cuidado de si na prtica clnica, em contraste com o regime de urgncia vivido no cotidiano do trabalho clnico nos estabelecimentos de sade mental pblica atuais regime que cria uma temporalidade incompatvel com o processo de autonomizao, ou, para dizer com Foucault e Deleuze, com a linha de fuga ou de subjetivao. A aposta no cuidado de si como temporalidade na clnica s se faz a partir da compreenso de que esse cuidado feito no coletivo, para, pelo, atravs do coletivo, buscando compartilhar uma experincia comum. E somente habitando esta paradoxal experincia de um cuidado de si com o outro que conseguimos dela falar. Como experincia concreta, foi preciso habit-la, ainda, no limiar entre teoria e prtica, buscando outras formas de conexo e compreenso dessa relao. Encontramos na teoria uma inspirao na maneira singular de Foucault narrar a histria e pensar o funcionamento da realidade, alm da parceria e inspirao de outros importantes autores. Na prtica, buscamos a experincia vivida com o acompanhamento teraputico, e o projeto de uma oficina de mosaico, que surge primeiramente como prtica de si, mas que vai crescendo enquanto proposta metodolgica na clnica tanto terica quanto prtica, quando cria uma transversal entre essas dimenses e inaugura uma outra experincia. Palavras-chave: reforma psiquitrica, cuidado de si, tempo.

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ABSTRACT

This dissertation is the outcome of a research project that problematizes, in the Foucauldian sense, clinical practice through the narration of concrete experiences in some of the devices created by the Psychiatric Reform movement in Brazil. Setting out from the conception of device formulated by Foucault and later explored by Deleuze, I analyze the care practice in these devices. The project was framed by a series of questions concerning the relation between care and time: what status should we attribute to this relation? In what way can we think about and practice a caring of time capable of providing the conditions for the time of care? Conversely, in what way can we live a time of care capable of providing the conditions for caring for time? By taking my lead from Foucaults studies, I propose to share and think through an experience of self-care in clinical practice, in contrast to the regime of urgency typically forming the everyday world of clinical practice in todays public mental health establishments a regime that creates a temporality incompatible with the process of autonomization, or, to use the language of Foucault and Deleuze, with lines of flight or subjectivization. The focus on self-care as an alternative temporality within clinical practice depends on recognizing that this care is made collectively that is, in, for, by and through the collective with the aim of sharing a common experience. And it is only by inhabiting this paradoxical experience of a self-care shared with others that we manage to speak about it. As a concrete experience, the project also demanded exploring the threshold between theory and practice, searching for other forms of connecting and comprehending this relation. At theoretical level, I have taken inspiration from the singular way in which Foucault narrates history and conceives the functioning of reality, as well as the input and inspiration of other key authors. At practical level, I have drawn from my lived experience with therapeutic accompaniment and a mosaic workshop project. The latter emerged initially as an example of Foucaults pratique de soi, but evolved into a methodological proposal for both clinical theory and practice by creating a transversal connection between these dimensions and ushering in another experience. Keywords: psychiatric reform, self-care, time.

x

Hoje nada mais fascinante para mim do que a prpria realidade das coisas.

Lygia Clark

xi

SUMRIO:

UM TEMPO DE CINCO TEMPOS = TRS TEMPOS ENTRE DOIS

O mosaico: o encontro com um mtodo e a materializao de um estilo .......................... 12

Em busca de um ethos na clnica: o tempo do cuidado e o cuidado do tempo ................... 15

1 PRIMEIRO TEMPO: TEMPO DE QUEBRAR O SABER ........................................................... 23

1.1 A entrada no campo problemtico: a experincia do regime de urgncia na sade mental pblica ............................................................................................. 30

1.2 O dispositivo foucaultiano e a carona nas linhas de fuga ........................................... 33

1.3 Acompanhamento teraputico e uma possvel linha de fuga .................................... 50

2 SEGUNDO TEMPO: TEMPO DE COLAR O PODER ............................................................... 57

2.1 Habitando a clnica-paradoxo: funes clnico-polticas que se atualizam no AT ...... 58

2.1.1 Funo micropoltica ........................................................................................ 59

2.1.2 Funo de transversalizao ............................................................................ 67

2.1.3 Funo deslocalizadora e analisadora da clnica ............................................. 72

2.1.4 Funo rizomtica ............................................................................................ 78

2.1.5 Funo de resistncia aos modelos centrpetos e analisadora

do Movimento da Reforma Psiquitrica brasileira ........................................... 84

2.1.6 Funo de territorializao .............................................................................. 90

2.1.7 Funo de autonomizao ............................................................................... 96

2.1.8 Funo de publicizao .................................................................................... 99

2.2 O retorno ao campo e a capstrizao: entre linhas de fuga e fugas sem linha ....... 103

3 TERCEIRO TEMPO: TEMPO DE REJUNTAR O PENSAMENTO ............................................. 112

3.1 O mosaico na clnica e a clnica no mosaico ............................................................... 113

3.2 ... e Foucault cria o que j estava l...: o dispositivo Foucault e a subjetivao ..... 117

3.3 Cuidado como operao circular: o tempo do cuidado de si ..................................... 131

3.4 Criando um corpo para as conexes: a temporalidade circular nas oficinas ............. 146

EM TEMPO:

o tempo do cuidado o cuidado do tempo ......................................................................... 155

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................................ 157

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UM TEMPO DE CINCO TEMPOS = TRS TEMPOS ENTRE DOIS

O mosaico: o encontro com um mtodo e a materializao de um estilo

Prezado cliente: muito difcil organizar um trabalho que desorganizado pela sua prpria origem, pois trabalhamos com aquilo que no existe. Desculpe nossa falha.

(Placa dentro de uma loja de material de mosaico)

A palavra mosaico uma traduo da palavra grega mosaicon, que significa pacincia,

prpria das musas. Pacincia porque requer muita ateno para execut-lo e prpria das

musas por se tratar de um trabalho de rara beleza, feito com materiais que duram sculos e

por isso tem um sentido divino. Porm, paradoxalmente, podemos perceber tambm que

sua arte consiste justamente em um ato tipicamente mundano, prprio da vida comum: o

ato de conexo/desconexo, o ato de cuidado, quebrando o velho para fazer com ele o

novo. Tal como a pintura e a escultura, o mosaico est entre as primeiras manifestaes

culturais do homem, segundo estudiosos e arquelogos. Ele a arte de quebrar e unir

fragmentos para formar imagens ou padres. Trata-se de uma arte prenhe de possibilidades

inventivas, podendo ser realizada a partir de processos que nem sequer imaginamos ainda.

Ao fazermos um retorno na histria do mosaico, possvel ver a riqueza das variaes de

motivos, materiais, cores e aplicaes que tm sido exploradas ao longo do tempo.

O mosaico atravessa a histria da humanidade, sendo sua prpria histria um mosaico

ou seja, um pouco fragmentada, aparecendo e desaparecendo ao longo dos sculos em

civilizaes aparentemente desconexas, como Mesopotmia, Egito, China, Grcia, civilizao

Asteca, Pompia, Bizantinos, Roma, etc. Ningum sabe ao certo quando surgiram os

primeiros mosaicos, mas um fato incontestvel: so fragmentos da histria do mundo. Foi

na Sumria, (antiga Mesopotmia, onde se situa hoje o Iraque) que se encontrou o mosaico

mais antigo que se tem conhecimento, o Estandarte de Ur (3500 a.C.). Trata-se de um

painel retangular dupla face, feito de mrmore, arenito avermelhado, lpis lazuli e conchas.

Suas duas faces foram trabalhadas: numa delas so narradas cenas de guerra, com o rei e

seu escudeiro num carro que corre e espezinha seus inimigos; os vencedores conduzem os

prisioneiros que, atados em pares, so apresentados ao rei. Na outra face mostra-se cenas

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de paz, da vida domstica de um dos reis sumrios. Hoje a obra encontra-se no British

Museum, em Londres.

Na Grcia foi encontrado um dos documentos mais antigos relativos arte do mosaico

(meados do sculo III a.C.). Num fragmento de papiro descreve-se o mtodo para execuo

de um pavimento numa sala de banhos. O mtodo de construo de mosaicos no sofreu

grandes alteraes ao longo dos sculos, talvez por ter uma natureza paradoxal: um mnimo

de tcnica com infinitas possibilidades de compreenso, tendo em cada produo a

expresso de um sentido da tcnica. As tesselas (do latim tesserae, significa quatro:

pequenas peas cbicas de materiais como vidro, mrmore, cermica, pedra) foram

introduzidas no sculo IV a.C., e as tcnicas se modificavam na medida em que os artesos

viajavam e partilhavam os seus conhecimentos, fazendo ainda com que essa arte se

espalhasse pelos diferentes continentes. Ao longo dos sculos foram-se alterando tambm

as conexes tico-esttico-polticas da arte do mosaico, de maneira que cada obra est

inserida em um contexto e carrega nos materiais, nas cores e na disposio das peas, a

sensibilidade de cada artista e de cada poca. Para o mosaico, quase tudo se torna possvel,

conseguindo-se atingir resultados surpreendentes utilizando tcnicas relativamente simples.

Para isso basta soltar a imaginao e conect-la a um processo de criao concreta.

Assim, podemos dizer que, numa oficina de mosaico, no existe nenhuma regra pr-

estabelecida; mas h algumas coisas que se pode levar em considerao antes de partirmos

para o primeiro projeto. preciso conhecer os materiais, equipamentos e tcnicas prprias a

esta arte (peas de composio, superfcies, tipos de cola e adesivos, ferramentas de corte,

de limpeza, de rejunte, equipamentos de desenho, de proteo, local de trabalho...), mesmo

que seja para no se prender a essas coisas. A habilidade vem vindo na experincia, criando

um estilo prprio neste processo de encontrar o mtodo mais interessante a cada produo.

Uma norma de prudncia comear com projetos mais simples, para ir se ambientando com

esse fazer. Pode ser interessante tambm considerar o mosaico como um todo, j no

momento da idia, ou seja, todas as informaes que se puder pensar, imaginar, criar, a

respeito daquela obra que se pretende realizar. No um roteiro, mas tomar para si mesmo

algumas referncias:

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Em primeiro lugar, a inspirao. D uma olhada a seu redor, consulte sua memria

inventiva, livros, sonhos, histrias, o que mais quiser. Depois faa um esboo no papel, para

que se possa iniciar um processo de criao da realidade do desenho: uma visibilidade das

formas, cores, materiais. importante considerar tamanho, rea, peso, volume, forma da

superfcie. Outra coisa importante pensar na imagem ou padro em relao forma do

objeto e/ou da superfcie (por exemplo, se a superfcie encurvada ou reta; se tem uma

rea larga ou estreita; se cncava ou convexa, etc.). Pensar tambm na obra em relao ao

seu local de destino (se j souber). Fazer minimamente uma relao do material necessrio,

considerando os gastos, tambm ajuda. Cortar/quebrar as peas uma tcnica que exige

muita prtica (ou melhor, um praticar constante) e imensa pacincia. Mas com o tempo

possvel ir adquirindo uma relao com cada material que permite um fazer sem grandes

esforos. Olhe, sinta, imagine, crie. Qualquer forma possvel, preciso somente se

relacionar com os limites e potncias de cada material.

Podemos fazer uma diviso artificial na experincia de produo de um mosaico em trs

tempos: o tempo de quebrar as peas de composio da obra, o tempo de colar os cacos

produzidos numa superfcie, e o tempo de rejuntar o desenho produzido e ainda um tanto

fragmentado. Esses tempos no so lineares, um aps o outro, mas se comunicam, se

atravessam, se refazem constantemente ao longo do processo. Mas so trs tarefas

distintas, com velocidades tambm distintas. Este no o modo correto de praticar, s

uma idia norteadora. Talvez a nica regra seja essa: usar a intuio atenta, para se criar

vrios mtodos, ou caminhos, para o processo de fabricao do mosaico! Mais importante

cada um poder encontrar um modo prprio de fazer em relao ao material que se

apresenta em cada produo, aquele que desperta mais prazer, criando um estilo!

Mas... o que isso tem a ver com a clnica e com esta dissertao?

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Em busca de um ethos na clnica: o tempo do cuidado e o cuidado do tempo

Se fosse pedido anlise no de destruir a fora (nem mesmo de corrigi-la ou de dirigi-la), mas apenas de decor-la artisticamente?

(Fragmentos de um discurso amoroso; Roland Barthes)

O cerne do problema-dificuldade desta dissertao o seguinte: narrar uma experincia sem

que ela se perca na pessoalizao de uma "ao contra"...

Essa inquietao precisaria ser experimentada para ser compreendida. Eis a primeira

caracterstica a se considerar acerca desta narrativa. Este trabalho no procura falar sobre

uma experincia, ou sobre uma questo, falando de fora dela, mas habitar uma experincia

como questo, compartilh-la, pens-la e diz-la. Tarefa que pode parecer fadada ao

fracasso, j que, por um lado, talvez a experincia nunca encontre uma linguagem

estritamente apropriada para ela, e que talvez s a mudez a pronuncie. Mas a aposta

metodolgica desta escrita a de que justamente no fracasso da linguagem que a

experincia se pronuncia e pode ser compartilhada. E como saber que estamos falando de

dentro da experincia? Como poder afirmar sim, minha fala encarnada, ou a fala de

Fulano encarnada? Eu no tinha at ento seno algumas pistas a seguir, pistas terico-

metodolgicas que precisaria testar. Texto-as aqui, como resultado de um processo ainda (e

sempre) em construo.

Desde o incio do mestrado me vi num impasse. Queria, por um lado, me despedir do

campo da sade mental pblica, campo que venho habitando atravs da formao em

psicologia desde 2001. Queria me despedir deste campo por sentir uma paralisia que me

fazia mal, e reconhecendo a paralisia assim: Fernanda dentro deste campo. Problema mal

formulado, como todos em incio de pesquisa, j dizia Bergson. Por isso, essa despedida,

ainda sem saber de qu ou de quem, veio (e ainda vem...) como fuga (sem linha!): uma sada

francesa; por exemplo, mudando de problema, mudando de campo. Cheguei a pensar em

escrever teoricamente sobre a clnica de maneira geral, sobre o cuidado na clnica. E foi

assim que essa experincia comeou; alis, mais amplo ainda, escrevia sobre a vida, com

Varela e Bergson. Pois para mim era mesmo da vida que se devia tratar.

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Havia outro movimento, presente ainda muito silenciosamente para mim, que o trabalho

de orientao, com muita sensibilidade e cuidado, ajudou-me a ouvir. Esse movimento dizia

da minha dificuldade de simplesmente virar as costas e sair da sade mental, como se ela

de repente no me dissesse mais respeito. Foi um incio muito difcil, e eu me debatia

escrevendo enxurradas de textos quase non sense, entre a dificuldade de afirmar e a de

negar. E depois de muitos rodeios, muitos ritornelos, muitas negaes, questionamentos e

afirmaes, muitas intervenes, muitas dores e alegrias, percebi que a dificuldade de narrar

a experincia era a violncia que vinha grudada nas palavras. Algo me emudecia e era um

silncio paralisante. O que eu tinha a dizer? O que fui fazer no mestrado? Para dar voz

experincia era preciso falar ali, de dentro do campo, compreendendo que no fim das contas

era mesmo da vida que se tratava, mas no sobre ela, e sim de dentro dela e com ela. A vida

s se fala atravs da experincia, de dentro dela como num campo problemtico. Era preciso

afirmar este campo, acolh-lo, sem me negar, me negligenciar, me resignar. Sair da

dicotomia para afirmar o paradoxo. Como fazer isso?

Para falar de dentro da experincia, numa experincia de violncia, era preciso vivenci-la

novamente atravs de uma narrativa sangrenta. E era justamente disso que eu queria me

despedir. Como ento narrar uma experincia violenta sem fazer srie com ela? Como falar

de uma experincia cuidando dessa mesma experincia?

Havia, portanto, nos primeiros textos, certo encobrimento da experincia que se

pretendia narrar, e que foi percebido como problema metodolgico; alis, desde a leitura do

projeto em disciplina de orientao coletiva. Pois o projeto tinha uma dupla preocupao:

numa dimenso, era a de narrar na experincia encarnada, e no de fora dela como quem

julga a partir de uma teoria totalmente abstrata e apartada dessa mesma experincia. Mas

essa experincia tambm no poderia ser dita numa solido, como uma experincia pessoal,

exclusivamente minha, aumentando assim a violncia. Por isso a pretenso de narrar uma

experincia coletiva de transformao, de construo de uma compreenso da prtica do

cuidado, junto com os trabalhadores de sade mental, tcnicos de um CAPS onde trabalhei.

Porm, a metodologia tal como foi proposta no projeto inicial no daria conta dessa

narrativa transformadora, era preciso antes investir numa compreenso terica e prtica

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dos problemas e das metodologias que se apresentavam. E era preciso que eu tomasse essa

tarefa para mim, que estava tomada por esses problemas.

Foi ento que compreendi que o mtodo justamente o problema e o caminho que o

soluciona dissolvendo. Pois narrar uma experincia de transformao da minha prpria

compreenso da prtica do cuidado era tambm narrar o percurso de uma construo

coletiva dessa compreenso. Uma narrativa em devir, que enquanto ia sendo compartilhada,

modificava a si mesma, dissolvendo algumas formas endurecidas que iam aos poucos

cedendo lugar a novas formas, sempre provisrias. Uma dessas formas endurecidas era

justamente a respeito da prpria compreenso do coletivo, que longe de se definir por um

agrupamento, por quantidade de pessoas, se expressa pela possibilidade de compartilhar

uma experincia, pela construo de um plano comum de transformao. Esse plano foi

construdo, nessa experincia, enquanto compartilhava as questes que habitam esta escrita

entre diversos grupos, pessoas, livros; especialmente com o coletivo do grupo de orientao,

onde todos ali participaram da construo desta escrita e se beneficiaram dessa construo,

e onde eu pude participar e me beneficiar da construo do trabalho de todos ali tambm,

de alguma forma.

Ento foi um percurso nada linear, e nele o que norteava era a devoluo do grupo em

relao ao material apresentado, como ndices de compartilhamento da experincia, de

compreenso do problema e de encaminhamento, cuidado e transformao da experincia.

Como no foi linear, ao longo do processo, fizemos um desvio que por um lado me fez

acreditar por um momento que no seria mais to "necessrio" narrar cacos de experincia.

Achei que os trechos (que estavam ainda mais alusivos que encarnados) da experincia

estavam "de bom tamanho", me protegeriam da pessoalizao. Por outro lado, algo ainda

estava me incomodando, embora curiosamente ainda no pudesse compreender bem o

qu. E a partir da experincia de qualificao, no meio deste caminho, entendi que as

condies de possibilidade para esta narrativa foram criadas no prprio caminhar, neste

desvio to necessrio quanto perigoso (o perigo de se instalar paralela e definitivamente

experincia concreta). Para criar essas condies, foi preciso cuidar do tempo. Pois o desvio

criou certo distanciamento espao-temporal daquela experincia concreta de violncia que

permitiu uma localizao privilegiada: nem to longe que no se possa ver nem fazer nada,

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nem to perto que se possa sucumbir ao horror daquela experincia. E assim, nesse

deslocamento, agenciado por essa superviso coletiva, pudemos experimentar o tempo do

cuidado, um tempo que nos reunamos para ler e conversar a respeito dos trabalhos uns dos

outros, cuidando das palavras violentas, dos tempos verbais, das compreenses

equivocadas, duma narrativa impotente de fracasso, pensando juntos em maneiras de

modificar a qualidade dessas experincias. Enquanto fazamos isso, percebi que algo j havia

se modificado, pois estava conseguindo compartilhar a experincia sem cair na posio

contra, sem cair na posio de quem sabe ou de quem no sabe, sem me sentir inferior, com

medo ou vergonha de me expor, de expor minhas fraquezas, sem tambm me sentir

superior, tambm com medo de me expor por precisar estar sempre tudo impecvel. O

mesmo acontecia com o trabalho dos meus parceiros, que confiavam na co-responsabilidade

pela qualidade das experincias. Claro que no foi um fato espontneo, trata-se de uma

construo, mas que tinha em sua base essa disponibilidade por parte daquelas pessoas. E

assim experimentamos esse cuidado circular, esse cuidado que s uma roda pode fazer girar

e reverberar.

Era hora de mais um retorno experincia no campo, com a lembrana de que possvel

fazer um uso to potente quanto leve das fices reais. Compreendi assim que havia uma

dupla dificuldade: escrever a prtica e ler a teoria. Essas duas aes precisariam se conectar

para me trazer a experincia presente nesta dissertao. Este o seu enfrentamento e sua

aposta metodolgica: como habitar uma experincia como questo?

E de que experincia se trata afinal? Qual seu estatuto? Essa talvez seja a questo mais

difcil de responder. Existe a necessidade de localiz-la. No se trata de qualquer

experincia, mas de uma experincia. a minha experincia pessoal? a experincia em

sade mental, a experincia no CAPS, no mestrado, no consultrio, na rua, na oficina, na

escrita...? Ela se define a partir de algum campo especfico? uma experincia de algo, uma

experincia especialista?

No assim que queremos localizar essa experincia, pois h tambm a necessidade de,

em localizando, qualific-la sem classific-la. J vimos que se trata de uma experincia

violenta e que se radicaliza num absurdo quando justamente deveria ser uma experincia de

cuidado. Essa experincia no est exatamente localizada em um nico evento, mas foi

19

vivenciada em diversas oportunidades, que aqui restrinjo ao campo da sade mental

pblica. No entanto, ao sentir necessidade de garantir um cuidado dessa e nessa

experincia, cheguei ao mestrado, ou seja, em outra experincia que coloca aquela em

questo. E aqui localizamos, ento, a matria de nossa anlise: uma experincia de cuidado

que coloca a si mesma em questo.

Trata-se de um paradoxo que precisamos de cara anunciar ao leitor; um paradoxo que se

anuncia entre uma experincia particular e a concretude de uma experincia prtica geral,

uma experincia que ao mesmo tempo pessoal e coletiva. Podemos definir essa

experincia-questo como uma experincia clnica, se compreendermos a clnica como uma

experincia paradoxal do constante desafio de quase desconstituir seu campo especfico. Ela

assim compreendida se destitui de seus aspectos formais, abstratos e assujeitadores,

apresentando-se quase como um rompimento em relao a sua especificidade, que por sua

vez s resiste como experincia que se modula. Nesse paradoxo, no se trata de afirmar que

a realidade o que para mim, nem de relativizar distintas realidades como realidades

meramente pessoais; mas de cultivar o paradoxo do compartilhamento de idias e da vida,

paradoxo que permite que ela se realize, atravs do movimento de transformao.

O que vai se encontrar nesta narrativa, primeira vista, parece ser uma confuso a

respeito do sujeito da enunciao. Ora vou fazer afirmaes em primeira pessoa do singular,

ora vou fazer afirmaes em primeira pessoa do plural, ora em terceira pessoa, ora em

segunda. Essa variao poderia facilmente ser resolvida, mas anularia o paradoxo que este

trabalho procura afirmar, e no resolver. No podemos entender a clnica que aqui se

apresenta nem como a forma correta de cuidar, nem meramente como mais uma forma.

Essa experincia clnica s se torna potente quando compreendida enquanto fora de

cuidado que s tem valor quando em relao com outras foras tambm de cuidado.

A narrativa se divide em trs captulos, que esto entre esta introduo e as

consideraes finais. Essa diviso no corresponde a mudanas de tema que poderiam

tambm facilmente ser identificados como a questo, a clnica, o conceito. Na

verdade, trata-se de um nico e mesmo tema, que acompanha as modulaes da prpria

experincia, com a temporalidade de uma experincia de construo de um mosaico.

20

Escrever habitando uma questo nos levou a delinear um mtodo que se encontra no limiar

entre a teoria e a prtica, numa conexo entre os estudos de Foucault e a arte do mosaico.

Esta dissertao se afirma, ento, inspirada ainda na sugesto de Roland Barthes para o

trabalho da anlise com as foras, como um convite para acompanhar uma oficina de

mosaico enquanto prtica clnica, que tem com matria-prima principal a experincia vivida

na rede de sade mental pblica, e como ferramentas principais alguns conceitos que

pegamos emprestado com Foucault, ajudados ainda por Deleuze e outros autores. Uma

oficina pensada como um dispositivo concreto, como nos lembra Foucault, num fazer que

veio se insinuando a algum tempo em minha prtica clnica, a princpio como prtica de si,

para ao longo do tempo ir contagiando metodologicamente a maneira como trabalho na

clnica. E como uma oficina de mosaico, essa dissertao se destaca em um, cinco, trs ou

dois tempos: so variaes da experincia ou velocidades principais para a construo desta

obra. Esses tempos no so de maneira nenhuma realizados numa forma linear, eles co-

existem e se atravessam o tempo todo, e possuem ainda dentro de si infinitos tempos e

variaes e velocidades.

Este tempo, um tempo de cinco tempos que igual a trs tempos entre dois, o

tempo de preparao, de esboar o projeto a ser realizado quando procuramos

compreender o que h de ser feito (a obra) e o que temos para faz-lo (materiais de

composio, superfcies, ferramentas). Ele se faz em um tempo de cinco tempos porque uma

introduo, trs captulos e uma considerao final. Ele tambm se faz em trs tempos entre

dois porque passado, presente e futuro so divises do tempo que se aglutinam no tempo

presente; s h presente, j que trazemos para dentro dele o passado e o futuro,

considerando a questo que nos habita e que queremos circularmente habitar. Assim, uma

vez habitando a questo em sua atualidade, afirmando o presente, dele nos libertamos para

dividi-lo em passado recente e futuro iminente, o que vamos deixando de ser, o que vamos

nos tornando. Esta operao tambm se pode ver na organizao desta dissertao, embora

essa relao no seja bvia: uma introduo que apresenta o que est se passando, uma

considerao final que pressente o que est vindo; entre uma e outra, trs captulos que

brincam de presente, passado e futuro. E como essa construo acompanha o movimento

21

da obra de Foucault ao longo de sua vida, essa diviso tambm diz respeito aos trs eixos em

torno dos quais ele delimitou sua problemtica: saber, poder, pensamento.

No primeiro tempo, portanto, acompanhamos o tempo de quebrar o saber; ou quebrar,

com as ferramentas que temos, as formas que se apresentam no presente, com o passado e

o futuro nele inseridos em bloco. Quebrar no significa estilhaar, e s vezes at mesmo

utilizamos uma forma tal como ela nos chegou; outras quebramos sem querer; outras

avistamos algo que se quebrou e ento recolhemos; outras quebramos de propsito... Seja

como for, quebrar aqui tem o sentido quebrar as formas institudas para produzir

fragmentos entre os quais a fora criativa vai circular. Partir de um dispositivo concreto e ao

mesmo tempo partir esse dispositivo ao meio.

O Segundo tempo o tempo de colar o poder, de preencher, com os cacos de

experincias passadas, o desenho da nova forma que est sendo criada. Neste processo,

tempo de ter pacincia, de colar pedacinho por pedacinho para pouco a pouco engendrar as

transformaes. o tempo de captar as linhas de foras e acompanhar uma linha de fuga

sem metas pr-definidas, para ver onde ela nos levar.

O Terceiro tempo o tempo do rejunte. Assim como o ato de quebrar, ele no se

restringe ao passar o cimento, pois possvel inclusive considerar que tal obra fica mais

interessante sem ele (e ento o rejunte o no ter rejunte, sua ausncia afirmativa e no

compromete a forma criada). O tempo do rejunte o tempo de acabamento da futura obra,

de dobrar aquela fora, que estava dispersa nos cacos e que foi se aglutinando no desenho

da superfcie, sobre a prpria obra, para que ela possa ser finalizada. Aqui sua forma j

comea a se fazer presente, sua fora se fazer sentir.

Em tempo o tempo de, aps outro deslocamento temporal, olhar para si mesmo e

para a obra, para o processo de produo vivenciado, para o produto final. o tempo de

consolidao da obra, da idia, da criao, para que se possa apresent-la, publiciz-la,

oferec-la a apreciaes, crticas, contribuies. tambm o tempo de encaminhamento, de

dar um ponto final, ainda que provisrio. Ou seja, tempo de se despedir deste processo e

cuidar da passagem para o recomeo do trabalho, na criao de outras obras. Claro que no

necessrio fazer um percurso linear entre a criao de uma e outra obra, vrias obras so

22

feitas ao mesmo tempo, embora cada uma com sua temporalidade inerente. Mas no

momento em que finda o processo de realizao de uma obra, abre-se um espao-tempo

para que outras possam ser criadas.

Chegamos assim ao fim deste comeo retomando um incio. Como estamos ainda neste

tempo de preparao, preciso dizer que este tempo tambm de preparao do leitor.

Prepara-se a escrita para o leitor e o leitor para a escrita. Numa inspirao em Lygia Clark e

Lula Wanderley, preferimos inclusive cham-lo de participante, caso no se incomode. Como

se trata de um convite para acompanhar ativamente uma oficina de mosaico, e no para

contemplar passivamente uma exposio, nosso maior desejo o de que cada um possa

viver esta obra como um objeto relacional, tal como Lygia nos inspira, ou seja, que na

relao com esta obra outras possam ser criadas e que possamos nos recriar num fazer

coletivo; e que este seja s mais um momento de uma conversa que continua.

23

1 PRIMEIRO TEMPO:

tempo de quebrar o saber

Se voc vier pro que der e vier comigo Eu lhe prometo o sol Se hoje o sol sair Ou a chuva Se a chuva cair Se voc vier, at onde a gente chegar Numa praa, na beira do mar Num pedao de qualquer lugar Nesse dia branco Se branco ele for Esse tanto, esse canto de amor Se voc quiser e vier pro que der e vier comigo...

(Dia Branco; Geraldo Azevedo e Renato Rocha)

Posso dizer que essa histria comea num embarao, ou numa srie de embaraos. Embora

chame de embaraos (e at por isso mesmo), justamente com eles que se fabrica aqui uma

problematizao.

Esses embaraos fazem parte de uma experincia clnica na rede de sade mental pblica

do Rio de Janeiro: em meu trabalho cotidiano, me sentia presa a uma poltica de cuidado

com a qual no concordava. Pensava eticamente o cuidado de uma certa forma que no

conseguia concretizar na prtica, pois parecia que tal poltica barrava, interrompia, impedia.

Havia uma distncia muito grande entre o que gostaria que fosse real e o real vivido no

corpo. Percebia que tanto o que gostaria que fosse real quanto prpria realidade vivida

mudavam no tempo mas continuavam muito distantes. E nos distancivamos uns dos

outros.

Uma srie de questes se colocou: para ser assim mesmo? Como se d essa relao

entre tica e poltica? Esses termos deveriam coincidir? Diante de um mar imenso de

dvidas e obstculos, uma idia: mergulhar nos estudos com a aposta de compreender

melhor essas questes, para que pudesse lidar com elas de outra forma.

E a primeira coisa a ser compreendida era a inquietao. O que inquietava? Uma certa

maneira de cuidar que no conseguia tratar a doena, ou sair da cronificao. Uma certa

maneira de praticar o cuidado que no conseguia descolar do controle, tutela, manipulao,

at mesmo violncia. Uma certa maneira de cuidar que no conseguia escapar lgica de

dominao. Dessa forma, aqueles que eram responsveis pelo cuidado ou se anestesiavam e

24

no se aproximavam do problema, ou colavam no sintoma e cronificavam junto com aqueles

que demandavam o cuidado. De qualquer forma, a relao arrasadora e, como efeito,

indiferena ou impotncia.

Cronificao: essa a palavra-chave de uma intuio inicial que vai nortear esta anlise.

Anlise, portanto, que diz respeito relao entre cuidado e tempo. Que quer dizer essa

palavra? Em sade, diz-se que uma doena crnica em contraste aguda, doenas

respectivamente de longa e curta durao. Mas em sade mental, sabe-se implcita ou

explicitamente que a melhor traduo : sem cura. A loucura parece ser ento uma doena

mental que faz a pessoa sofrer de uma eterna fragmentao. como se o louco estivesse

condenado a viver sem continuidade de tempo, sem unidade de um sujeito, sempre

comeando a viver no mesmo instante em que morre. como se vivesse a vida em outrem;

na medida em que no teria lembrana de sua prpria, porque nem mesmo teria noo de si

mesmo, orientaria sua experincia presente com as conexes que consegue fazer no

momento, como se tivesse acabado de nascer. Mas a conexo nem bem teria incio e j

cessaria, e por isso no se faria continuidade entre uma experincia e outra. Seria como uma

priso dentro de uma nica experincia contnua e totalmente fragmentada. O louco

sofreria, assim, de uma doena mental crnica. Mas ser mesmo esse o sofrimento?

Como veremos ao longo deste trabalho, o problema no viver a vida em outrem. De

uma forma ou de outra todos ns vivemos a vida em outrem. Para compreendermos o

problema da loucura na perspectiva do louco, preciso perguntar: que outrem esse?

Nestes casos crnicos, a instituio psiquitrica. Cronos diz respeito ao olhar da cincia

reconhecendo uma dimenso do tempo que passvel de mensurao, um tempo que se

repetiria sempre igual, como o tempo de um relgio. A questo que um dos efeitos de

privilegiarmos essa dimenso do tempo em detrimento de tantas outras instituir, ou

melhor, deixar institudo, imobilizar aquilo que se vive. Neste caso, o louco uma forma

cronicamente instituda de uma compreenso da loucura. Imobilizou-se a loucura e a

encerrou no corpo do louco. Percebemos assim que o que se cronificou foi uma dimenso j

instituda do cuidado da loucura.

Por isso aqui se fala cronificao. O que indica que essa noo de doena sem cura foi

produzida historicamente (assim como a prpria noo de doena). Muitos j contaram

25

essa histria e, por isso, nesse trabalho, vamos fazer esse retorno na justa medida em que

ele nos ajuda a avanar no problema, inventando outras futuras histrias. Esse o sentido

que queremos dar a este quebrar o saber, numa inspirao metodolgica trazida pelo

mosaico, em consonncia com Foucault, quando diz (1979a, p. 28): que o saber no

feito para compreender, ele feito para cortar. E disso que se trata neste captulo.

Queremos cortar, quebrar esses saberes j consolidados que nos fazem reproduzir uma

mesma prtica (ainda que com outras mscaras), encarar o problema que nos inquieta de

frente para dele se libertar numa descontinuidade (ainda que outros problemas se criem).

Ainda concordando com a frase de Foucault, ao quebrar o saber, paradoxalmente,

alguma compreenso nos interessa aqui. a compreenso dos desafios que se apresentam

hoje prtica do cuidado ao enfrentarmos o problema da dominao, que nessa experincia

ainda se expressa pela confinao e cronificao da loucura nos loucos. Para isso, essa

narrativa, toda feita de recortes, parte da experincia atual no Rio de Janeiro, retorna

passagem de uma experincia a outra (perodo em que a confinao e a cronificao, e tudo

mais que isso implica, comeam a ser questo), e segue tentando captar foras que

promovam algum desvio e nos permitam produzir outras relaes de cuidado.

Considerando isso, parece que nosso problema comea a ganhar corpo. Se este problema

a prtica do cuidado, podemos afirmar agora que ele no se coloca seno em sua relao

com o tempo. Dizem que o tempo no sentido, o que nos faz sentir coisas. Ser

impossvel senti-lo? Passado, presente, futuro; tempo liso e estriado; dia e noite; dias,

meses, anos, dcadas, sculos...; durao; tempo meteorolgico; tempo pulsado e no

pulsado; primavera; plantio e colheita; processo; tempo intensivo e extensivo; kairs, cronos

e ion; tempo subjetivo e objetivo... Diversas qualidades substantivantes que criamos para

dar corpo ao tempo e nos fazer sentir sua presena de mltiplas formas, em diferentes

texturas que podem ou no co-existir, como ciclos que se transversalizam e se combinam de

infinitas formas diferentes numa experincia. Por exemplo, no ciclo de um dia, podemos

perceb-lo atravs das 24 horas que se convencionou dividi-lo; e ao mesmo tempo perceber

outras divises, como o nascer do sol e suas inmeras posies frente a nossos olhos ao

longo deste ciclo, at se pr e dar a vez luz da lua; podemos perceber o calor forte que

emana especialmente neste dia; se estamos cheios de coisa para fazer e ele parece passar

26

rpido, ou se estamos entediados e ele parece no terminar nunca, ou ainda se estamos

cansados precisando de um tempo de pausa, de repouso; podemos tambm lembrar que

combinamos tal hora de encontrar tal pessoa em tal lugar; podemos ser surpreendidos por

alguma coisa que nos exige uma mudana de planos ao longo desse tempo... ou seja,

inmeras qualidades que criamos ao entrarmos em relao com o tempo na mesma medida

em que vamos vivendo, em que as coisas acontecem em nossa vida.

Criamos ento essas qualidades na medida em que nos relacionamos com o tempo.

Podemos dizer, entretanto, que estamos sempre, de alguma maneira, nos relacionando com

ele, j que somos seres vivos e que, embora possamos no conseguir precisar o que a vida,

no podemos negar que a questo do viver uma questo de tempo, ou de movimento,

deslocamento no tempo. Como nos diz Bergson (1979), tudo que dura, dura porque muda. E

o que dura, no a prpria vida? Acredito poder afirmar, ento, que a vida a mudana ao

longo do tempo.

E se por um lado estamos sempre em relao com o tempo, com a vida, por outro lado,

h uma dimenso na experincia dessa relao que nem sempre est presente para ns.

Essa dimenso, vamos chamar aqui de acontecimento. Vamos nos ater dimenso funcional

da experincia no terceiro captulo. Agora nos interessa esclarecer que essa dimenso

importante para criar passagem s experincias e permitir a continuao do processo vital,

pois ela que nos d a sensao ou a convico de que uma experincia potencializou a

vida, ou seja, a sensao da passagem de uma experincia a outra, ou ainda, a sensao de

sentir de uma maneira diferente de como sentia antes, sentir diferentemente. Sem essa

sensao, no deixamos de viver, mas permanecemos presos a uma mesma experincia.

Presos, o tempo passa, ns envelhecemos, a vida nos traz novos elementos, mas viveremos

sempre a mesma experincia, ou melhor, repetiremos essa experincia de diversas formas,

sentiremos do mesmo jeito. Falamos ento de qualidades subjetivantes1 do tempo,

1 Montamos provisoriamente, para esta narrativa, essa distino entre qualidades subjetivantes e qualidades

substantivantes do tempo. Estamos chamando de qualidades substantivantes do tempo as experincias do tempo, as inmeras maneiras de sentirmos as mudanas do tempo. Queremos enfatizar ainda que essa experincia do tempo tem relao com uma experincia no tempo. Essas experincias no tempo dizem de como nos sentimos no tempo. So as qualidades subjetivantes do tempo, que dizem das mudanas que se

27

qualidades que nos permitem diferenciar de ns mesmos e continuar o processo de criao

da prpria vida.

Neste captulo, vamos tentar nos aproximar de uma relao que considero fundamental

para criar condies de possibilidade para a passagem de uma experincia a outra, a relao

entre tempo e cuidado. E exatamente essa relao, com as foras que se puder captar em

meio a ela, que ser o fio condutor dessa narrativa feita de recortes. (Onde sentimos

coisas como cansao, alegria, pressa, impotncia, vigor, fazer sentir a relao entre

cuidado e tempo.)

No se trata, portanto, de saber se uma experincia foi negativa ou positiva, bem

sucedida ou fracassada. Essa anlise no trabalha com essas avaliaes e parte do

pressuposto de que qualquer experincia a experincia de um problema que precisamos

cuidar; guarda sempre alegrias e tristezas; guarda sempre tambm algumas marcas de

experincias passadas e pressgios de experincias futuras. Assim, para viver essa passagem,

preciso viver uma experincia do seu nascimento sua morte, acompanhar seu processo,

desde o acolhimento, aproximao do problema, at o desvio, a passagem de um problema

a outro. Entre um e outro ponto do processo, o que se passa? justamente um tempo, ou

uma durao, que singular ou intrnseco a cada experincia, e necessrio para cuidar do

problema, para que haja um ponto e outro, enfim, para que haja a experincia ela mesma,

para que ela se passe em ns e nos d passagem outra experincia: o que estamos

chamando de tempo do cuidado. No entanto, esse tempo s pode ser vivido quando

acompanhamos o processo (e nos acompanhamos nele): o cuidado do tempo. O que se

passa em uma experincia e faz com ela nos passe , portanto, o tempo do cuidado e o

cuidado do tempo: preciso tempo para cuidar da experincia, e preciso cuidar da relao

com o tempo para que se tenha tempo para cuidar.

E a experincia-problema que aqui pede cuidado para passar diz respeito relao entre

diferentes processos que se distinguem, mas que no se separam: processos de produo de

sade, de subjetividade, de territrio. Quero compreender esta relao por entender que a

processam em ns quando voltamos o olhar para ns mesmos nessas experincias. O que muda em mim quando o tempo muda?

28

prtica do cuidar, que traduz em verbo infinitivo o fazer do clnico, engloba essas trs

dimenses. No obstante, no se trata aqui de qualquer cuidado. um cuidado especfico: o

cuidado da loucura, com a loucura, na loucura, e ainda, para a loucura. Mais especifico

ainda, trata-se de uma pesquisa local, onde falo atravs de experincias vividas por mim.

Para que essa pesquisa se concretize, necessrio que a experincia de narrativa

conceitual seja guiada por uma memria do futuro presente agora em mim. Ou seja,

passado, presente e futuro se atravessam nesta narrativa em gerndio, para que seja

possvel fazer uma separao entre o passado recente e o futuro iminente. Isto no

simplesmente um jogo de palavras, nem um mero rebuscamento estiloso. Quero dizer que

a dificuldade deste trabalho a de se tratar de uma experincia narrativa que d voz a uma

experincia de criao atravs de diversas experincias que se entrecruzam2. E seu esforo

o de habitar uma dimenso da experincia que se situa entre o si mesmo e o mundo, e entre

o que j no mais e o que ainda no , para se perguntar, com Foucault: o que estamos em

vias de nos tornar?

Posso dizer que um problema que se apresenta no presente, a princpio, habita o plano

da memria, do pensamento, dos afetos. Esse problema no de ningum, no sentindo de

posse. No particular. Trata-se de um problema poltico que de repente nos pega e nos

retm, pesa. Ento precisamos fazer algo com ele, faz-lo passar por ns, transform-lo em

matria, expresso. Assim nos livramos dele, e outros problemas surgem. Introduzem-se

assim as dimenses tica e esttica dessa experincia. Como fazemos isso? Traando as

conexes que tal problema faz. Traar o caminho das conexes saber dos afetos que

fizeram com que as coisas se ligassem. E isso se faz num processo coletivo, ou de

coletivizao, colocando-se em relao o que no estava, ou o que estava fora de foco, nos

fazendo perceber coisas que estavam fora de nosso campo perceptivo.

Nesta dimenso entre, onde no sabemos situar o ponto de partida ( fora ou dentro de

mim? passado, presente ou futuro?), o critrio norteador esse encontro com uma

memria coletiva do futuro. No a memria de uma experincia passada, mas a experincia

2 (Sim, so muitas experincias... experincias dentro de experincias. Experincias de, atravs, em, entre, por,

para, com...)

29

de uma memria presente. Uma memria que no se invoca para condenar o futuro,

denunciando um presente ou o desculpando pelo passado, mas para seguir modificando a

natureza de uma experincia em movimento, buscando novas conexes. Assim, esta

narrativa, alternada em primeira, segunda e terceira pessoa, se passa em mim, atravs de

mim, mas no me pertence. Ela um percurso coletivo que me fabrica muito mais do que

fabricado por mim, atravs de uma abertura para o que vou chamar aqui de interveno3.

Seja em primeira pessoa (ou poderia dizer protagonizada por um eu, ou por um ns: aquele

que fala), seja em segunda pessoa (tu ou vs: aquele com quem se fala), seja ainda em

terceira pessoa (ele ou ela, eles ou elas: aquele de quem se fala), acreditamos que a

narrativa sempre a expresso de um coletivo singular.

Podemos ainda acrescentar uma quarta pessoa, ou o isso. Ela no tem conjugao na

gramtica brasileira, mas perpassa todas essas posies, expressa esse coletivo singular

sempre presente. Portanto, se h algum que assina, eu mesma neste caso, por questes

meramente contingenciais, condies que permitem ao mesmo tempo em que foram este

trabalho material feito por este corpo coletivo que me habita. Redimensionam-se, desta

forma, as noes de primeira, segunda e terceira pessoa, pois elas confundem-se a todo

momento: sou eu quem fala? com tu que estou falando? De quem se fala? Preferimos

ento afirmar que sempre um coletivo que fala, com quem fala, de quem fala. neste

sentido que a fala pblica. Entretanto, se esta narrativa se alterna em primeira, segunda e

terceira pessoa, porque vemos nesse revezamento o nascimento de uma pessoa, numa

roda. Quando, numa roda, uma pessoa fala, os outros ouvem. E assim d-se um nascimento:

os outros a ouvem, a prpria pessoa se ouve, v que esto ouvindo o que ela diz, ouve o que

lhe dizem. Ela nasce cada vez que acontece esse fenmeno. Fenmeno onde se compartilha

idias que fabricam uma vida comum.

Sendo assim, o caminho deste captulo (assim como de toda a dissertao) conduzido

por fragmentos de relato da experincia vivida por mim no cotidiano de trabalho em sade

3 Podemos entender interveno como um acontecimento que nos desloca de uma posio a outra,

modificando nossa maneira de perceber, sentir e agir atravs de uma funo paradoxal de coletivizao e singularizao dos modos de existncia. Ao longo do texto estaremos esclarecendo esta noo, que circularmente nos ajudar a esclarecer o que queremos dizer no prprio texto.

30

mental, desde os tempos de formao em psicologia at os dias de hoje, j como psicloga.

Para a confeco desta escrita foi utilizado o dirio de campo tal como aprendi com Lourau;

uma narrativa criada a partir das memrias sensveis presentes no dirio de campo (Lourau,

1993)4. E as ferramentas para este fazer so os conceitos que vo aparecendo neste

processo narrativo quase espontaneamente, intuitivamente. Eles aparecem primeiramente

assim, mas em seguida me foram a estud-los, criando um plano de consistncia para o que

na experincia se quer falar, se quer passar.

Portanto, no se trata aqui de uma proposta de modelo, nos moldes de uma prescrio

apesar de haver sim uma avaliao, como veremos ao longo do texto. Tambm no se trata

simplesmente de um relato de uma experincia pessoal. Se entendemos que os conceitos

no descrevem um estado de coisas, mas so as condies de possibilidade da emergncia

das coisas, porque acompanham acionando e acionam acompanhando processos,

compreendemos tambm que se trata de acompanhar uma dupla aposta em movimento: a

de que o movimento vital e coletivo, e nosso estudo se faz num acompanhamento desse

movimento; e a de que esse acompanhamento permite enxergar pontos de referncia assim

como direes para este movimento pontos de referncia e direes sempre em devir,

porque so uma mistura de regularidade, instabilidade e mutabilidade e, portanto, so

sempre provisrios e irreversveis.

1.1 A entrada no campo problemtico: a experincia do regime de urgncia na sade

mental pblica

eu sei muito pouco, mas tenho a meu favor tudo o que no sei.

(Clarice Lispector)

4 O dirio de campo, tal como Lourau compreende (cf. Lourau, 1993), um instrumento metodolgico muito

potente, pois permite ao pesquisador mapear os trajetos e afetos de uma experincia no campo. atravs dele que podemos dar visibilidade s condies de emergncia dos dados da pesquisa, atravs do exerccio de registrar o processo de transformao da rede a partir das impresses experienciadas.

31

Num presente contnuo que j tem uma durao de cerca de nove anos, essa experincia

vem acontecendo na rede de sade mental pblica, no estado do Rio de Janeiro. Alis, toda

minha formao clnica desde que entrei na Faculdade de Psicologia foi focada na prtica em

sade mental pblica, j norteada pelos preceitos da reforma psiquitrica. Para

compreendermos melhor o problema que habita essa experincia, fao aqui um retorno

narrativo desse percurso. E deste retorno fao uns recortes que considero guias focais para

um caminho desviante.

No incio de minha formao em psicologia, como quase todos os jovens, estava vida por

mudanas. Queria ajudar a fazer um mundo melhor, queria participar das mudanas do

mundo, queria viver essas mudanas. O incio deste encontro com a luta antimanicomial foi

de potncia: acompanhei empolgada uma trajetria brasileira e mundial de resistncia a

mecanismos de dominao (neste caso, a dominao dos loucos pelos ditos normais), em

busca de relaes pautadas na liberdade e na tica e no na regulao e na conteno.

Ouvia falar de algumas experincias de revolues nas maneiras de se compreender a

loucura e o cuidado da loucura; eram libertaes mesmo, em experincias nacionais e

internacionais. Ouvia tambm muitas teorias bonitas, articuladas a essas experincias. Ouvia

falar ainda dessa luta recente no Brasil e no Rio de Janeiro. Mas o que seria isso, liberdade,

tica, regulao, conteno? Como se d uma relao que tem essas premissas? Era hora de

ir a campo experimentar essas questes. L, conheci um pouco dessa rede, e vivenciei mais

intimamente dois servios substitutivos da maior importncia: os CAPS, carro-chefe da

Reforma; e as Residncias Teraputicas, que poderia chamar de tecnologia de ponta deste

movimento, para usurios j com algum grau maior de autonomia5.

5 Usamos aqui a noo de autonomia em consonncia com Roberto Tykanori (2001): autonomia no como uma

suposta auto-suficincia ou independncia, mas como a capacidade de um indivduo de gerar normas para sua prpria vida, a partir de um poder contratual em suas relaes no mundo em que vive. Neste sentido, um indivduo autnomo aquele que tem seus enunciados e aes legitimados em suas relaes. Tykanori fala de poder contratual como um valor previamente atribudo a um indivduo numa relao de troca social. Ele aponta esse valor como uma pr-condio para qualquer tipo de troca, e distingue trs dimenses desse intercmbio: troca de bens, de mensagens, de afetos. No caso do chamado doente mental, sabemos que esse valor sempre negativo (bens suspeitos, mensagens incompreensveis, afetos desnaturados), pois justamente por conta desse negativo que ele nomeado/qualificado assim (trata-se de um adjetivo substantivado, um atributo que tem a marca de um nome, de uma identidade ou seja, alm de ser negativo, eterno). A despeito deste negativo eternizado, h um movimento para romper com esse valor. nesta direo que acreditamos estar de acordo com o movimento da reforma psiquitrica, quando ela se dedica a

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Mas a realidade do campo no Rio de janeiro estava longe das experincias empolgantes

que ouvia falar, vividas na Itlia, Frana, e mesmo aqui no Brasil, por exemplo, em Santos

(Lancetti, 2008). Logo que entrei no CAPS como estagiria-pesquisadora j me assustei com

as condies de trabalho, num encontro com equipes sobrecarregadas. Eram muitos

usurios para poucos tcnicos. Leia-se: pouco tempo para cuidar. E era um trabalho muito

mais complexo e difcil do que poderia parecer. No se tratava de administrar uma certa

estabilidade de uma doena compreendida como crnica e sem cura. Era preciso operar

algumas mudanas, para comear, colocar essa doena e sua cronicidade em questo, a

loucura como doena. O que loucura? O que doena? O que cura? Como compreender

que a loucura no uma doena, muito menos crnica, sem cura? Como compreender que a

loucura no necessita clausura? Mais ainda, como compreender que a loucura no de um

sujeito, mas se faz em relaes, e uma dimenso da vida que to perigosa quanto

necessria? Como lidar ento com essa dimenso? Eram muitas questes, e era preciso

ainda conquistar a sociedade, mostrar-lhe a importncia dessas questes. Como

compartilhar, fazer compreender essas questes?

Em sade mental, sade significa principalmente autonomia. At a, tudo bem. Mas como

pensar num processo de autonomizao, sem contudo pensar numa meta, numa autonomia

a ser atingida? Principalmente quando sua principal clientela, a partir do movimento da

reforma, eram pessoas enclausuradas e tuteladas por tanto tempo, que se acostumaram a

ponto de cronificar numa existncia empobrecida de desejo? O desafio era operar nesse

processo de transio. Pois para isso era preciso produzir condies para outras formas de

viver, outras subjetividades mais sensveis a este problema. Mas o problema mesmo era que

tudo isso vinha na forma de uma urgncia em apresentar resultados positivos, sob a

constante ameaa do plano da reforma retroceder em prol dos manicmios. Mas que

resultados seriam estes? Isso ningum sabia muito bem, mas o importante era que, da

maneira como o problema estava colocado, os trabalhadores de sade mental teriam que

emprestar ao louco um poder contratual, isto , utilizar o prestgio, a delegao social, o saber reconhecido pela sociedade aos profissionais, para possibilitar relaes e experincias renovadas aos usurios (Tykanori, 2001, p. 59) Vamos retomar este tema ao longo do trabalho, com as contribuies de Guattari para o que estamos chamando de processo de autonomizao.

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descobrir respostas sozinhos, e rpido. Essa armadilha acabava levando esses trabalhadores

a fazerem justamente aquilo que lutavam contra: a administrao da doena dos loucos,

para provar sociedade que o louco poderia viver em meio a ela. No havia muito tempo de

abertura para se viver essas questes, o pensamento hegemnico no pede questes, pede

respostas. Era tempo de crises e urgncias de apaziguamento das crises. No havia tempo

para viver as crises; crises, assim como as questes, so mal vistas, codificadas como um

mau resultado e no como processo, e por isso devem ser silenciadas, contidas.

Eu estava chegando nesta luta e logo me perdi. O que essas pessoas, usurios e tcnicos,

faziam ali? O que cabia fazer com eles? Resolvi acompanh-los, na aposta de que as

questes ficariam mais claras em forma de estratgias ao longo do tempo, do processo. Mas

ficou para mim a complexidade do problema: ns, tcnicos, estagirios, pesquisadores,

enfim, trabalhadores de sade mental, nos colocvamos ao lado dos loucos nessa luta

contra uma dominao, trabalhando pela autonomia dos loucos. E assim, devamos lutar, e

antes, por nossa prpria autonomia. A produo de subjetividade se faz num processo

coletivo. No se d autonomia ao louco nem a ningum. Isso se cria na relao, relao essa

que, em sua base, ou em ltima instncia, toda a sociedade est conectada.

Em meio perdio, nessas experincias, aprendi que os dispositivos inventados pelo

movimento antimanicomial deveriam estar realmente em movimento, e deveriam dar a si

mesmos direes circunstanciais: a desinstitucionalizao da loucura no deveria se

restringir desospitalizao, como se os servios substitutivos fossem a soluo definitiva

para o problema da clausura; mas era preciso estar atento s lgicas que regem as prticas

cotidianas. Tudo na vida tem sua prpria vida til, incluindo os dispositivos. Mas afinal, o

que um dispositivo? Este um momento de se apropriar deste conceito, que nos ajuda a

compreender tambm a prpria aposta que se faz aqui neste procedimento narrativo.

1.2 O dispositivo foucaultiano e a carona nas linhas de fugas

No vivemos num espao neutro, plano. Ns no vivemos, morremos ou amamos no retngulo de uma folha de papel. Ns vivemos, morremos e amamos num espao enquadrado, recortado, matizado, com zonas claras e escuras, diferenas de nveis, degraus de escadas, cheias, corcovas, regies duras e outras friveis, penetrveis, porosas. H regies de passagem: ruas, trens, metr; regies do transitrio: cafs, cinemas, praias,

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hotis; e tambm as regies fechadas do repouso e do lar. Eu sonho com uma cincia que teria como objeto esses espaos diferentes, esses outros lugares, essas contestaes mticas e reais do espao em que vivemos. Essa cincia no estudaria as utopias, pois preciso reservar esse nome para o que no tem lugar. Mas ela estudaria as heterotopias, espaos absolutamente outros; e forosamente a cincia em questo se chamaria, ela se chama j Heterotopologia, o lugar que a sociedade reserva nessas margens, nas praias vazias que a envolvem; esses lugares so principalmente reservados aos indivduos cujo comportamento desviante em relao mdia ou norma exigida. Da as casas de repouso, as clnicas, as prises. Precisamos acrescentar, provavelmente, os asilos, pois o cio numa sociedade to atarefada como a nossa est ligado velhice. Ao mesmo tempo, um desvio constante para todos os que no tm a discrio de morrer de infarto nas trs semanas que se seguem ao incio de sua aposentadoria.

(Michel Foucault, no filme Michel Foucault por ele mesmo)

Pois bem: ao longo de minha formao em psicologia na Universidade Federal Fluminense,

muito ouvi a palavra dispositivo. Falava-se e, ao mesmo tempo, experimentvamos

diversos dispositivos: aulas, grupos de pesquisa, de estudo, estgios, festas, mesas de bar,

intervenes, avaliaes, selees, concursos, monitoria, congressos, simpsios, fruns,

reunies..., tendo cada uma dessas experincias um funcionamento singular. Era todo um

universo que continha uma vida comum. Vivamos dispositivos e usvamos essa palavra para

muitas coisas. Tanto que alguns nem chegavam a ler, ou liam de m vontade essa parte,

quando ela se apresentava em algum trabalho, alegando sentir um certo enjo por conta do

excesso do uso deste conceito.

E de onde vem este enjo? Parece que h muitas vezes uma banalizao e naturalizao

deste conceito, justamente por sua importncia. Como conseqncia, no s no momento

de ler, mas tambm no momento de escrever, e principalmente de viver, era como se ele

no necessitasse de muitas explicaes, todos j sabiam do que se tratava, j estava dado.

Se ele aparecia muito, na maioria das vezes era s para constar, assim como diversos outros

conceitos. Eu acompanhava esta lgica. Mas neste momento do mestrado, em um grupo de

estudos chamado Limiar, quando estudamos, mais uma vez, o dispositivo, houve um

acontecimento. Em meio conversa acerca deste conceito, tentamos trazer para sua

concretude, para como ele se apresenta em nossas prticas hoje. Esse exerccio foi bem mais

difcil que falar abstratamente acerca de um conceito. Era preciso encarn-lo em nossas

prticas, em nossas relaes, em nossas experincias. Curiosamente, foi quando ele

comeou a ficar muito claro para mim, pela primeira vez. Mas apesar de ter facilitado o

exerccio de escrev-lo aqui, ainda assim foi um desafio muito grande traz-lo para a

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especificidade de mais uma experincia. Percebi que sempre seria difcil, uma nova

dificuldade a cada nova experincia. Comecei a gaguejar, a escrita no era fluida, pois era

algo que ainda no compreendia, era uma outra experincia e por isso outro dispositivo, que

precisaria ser vivido para poder ser tambm falado.

Neste processo, senti a primeira mudana em minha forma de compreender o problema

que me habitava, assim como algumas armadilhas: vi que estava equivocada ao pensar que

o problema da dominao-assujeitamento era especfico a alguns dispositivos em geral,

problema que se resolveria atravs de uma correo, uma reforma, uma substituio,

tambm em geral. Qualquer dispositivo guarda dentro de si suas potncias e perigos, no se

compara dispositivos. Os dispositivos so praticados primeiramente atravs das pessoas e

suas aes e, circularmente, as pessoas e suas aes so efeitos do funcionamento de

dispositivos. Por isso, para compreender um tal problema preciso se posicionar

localmente, de dentro de um dispositivo especfico, vivendo o problema que se apresenta e

se modificando junto com ele at uma dissoluo, criando assim um novo dispositivo, com

um novo problema, e um novo sujeito. preciso viver, nele, sua vida til. Foi uma mudana

sutil e radical: passei a experimentar de fato o conceito que estudava. E para isso precisei

experimentar a teoria do dispositivo, para ver se ela me servia, como e para qu.

O conceito dispositivo foi formulado por Michel Foucault (1979b), e serve para nos ajudar

a compreender a concretude tanto de seus objetos quanto de suas anlises6. Autor

fronteirio, se h uma marca que podemos perceber em Foucault a de habitar o paradoxo.

um filsofo? Historiador? Cientista? Militante? Intelectual? Todas essas coisas? Nenhuma

delas? Gilles Deleuze (1996) lhe faz uma homenagem em O que um dispositivo?,

6 Nossa proposta aqui a de usar Foucault (assim como todos os outros autores presentes nesse texto) como

parceria e inspirao para uma atitude frente aos desafios que nos deparamos em nossas prticas, e no a de explicar em outros termos aquilo que Foucault j disse, ou nomear nossas prticas pelos termos que ele usa. Dizemos assim que falamos com Foucault, e no sobre ele. No entanto, no se trata de uma grande novidade. Queremos simplesmente conversar com Foucault para tentar compreender melhor seus estudos. Se fazemos essa conexo, porque algo desse encontro nos aponta algum desvio em nossos questionamentos, como pistas para uma nova direo a seguir neste caminhar. Contudo, sabemos que no se trata de uma tarefa fcil. Para no cairmos na armadilha de aplicar este conceito nossa realidade, distorcendo a concretude tanto da prtica quanto do conceito numa abstrao que no nos ajuda a compreender o que estamos fazendo, fazemos ento um esforo de testar este conceito em nossas prticas concretas inclusive a prtica terica. Seguimos caminhando e (nos) questionando.

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chamando o amigo de filsofo dos dispositivos. Paul Veyne (1982, p. 151) faz o mesmo em

Foucault revoluciona a histria, dizendo que este filsofo um dos grandes historiadores

de nossa poca. Foucault mesmo diz:

para dizer a verdade, eu no sou filsofo, eu no fao filosofia no que eu fao. Se eu tivesse que me nomear, dar-me uma etiqueta, dizer o que eu sou, confesso que ficaria terrivelmente embaraado. Eu no pergunto o que conhecer. Meu problema no saber se os discursos cientficos so verdadeiros ou no, se eles tm relao com uma objetividade ou no, se preciso consider-los como coerentes ou somente cmodos, se eles so a expresso de uma realidade terrvel. Isso tudo no uma questo minha. Eu diria que preciso fazer uma histria das problematizaes, quer dizer, a histria da maneira pela qual as coisas produzem problemas. (Filme Michel Foucault por ele mesmo)

O que estes autores nos dizem com tal homenagem? O que o prprio Foucault nos diz

com histria das problematizaes? O que significa dar este estatuto de filosofia ou de

histria ao estudo dos dispositivos? Entendendo que o dispositivo sempre aquilo que

posto a funcionar, aquilo que nos permite dar conta de uma dimenso funcional da

existncia, ao acompanharmos o movimento da obra deste autor, percebemos que a tarefa

que ele se designou foi a de pensar o funcionamento da realidade e o seu engendramento. E

isso uma tarefa filosfica, e tambm histrica.

Mas porque Foucault afirma que no filsofo? Acreditamos que ele queira se distanciar

de uma filosofia hegemnica que procura uma verdade universal e eterna para o que

vivemos, para se aproximar do presente em movimento. Para ns, este pensador antes de

tudo um revolucionrio, no sentido mais radical e mais simples deste termo. O que a

revoluo, seno ciclos diferenciantes? Heterotopologia nos dispositivos: Foucault tem a

coragem e a fora de entrar na estrutura (ou instituio) filosofia e lev-la ao seu limite,

redefinindo seus contornos. Faz o mesmo com a estrutura histria. Ele transforma as

estruturas em dispositivos para lev-las a seu limite. Quando estuda as instituies, para

ver e fazer ver, em cada uma, o movimento vital do novo, e no o torpor do institudo. Para

apreender o movimento, ele sabe que no se deve habitar um lugar, mas se deixar habitar

por um percurso de prticas concretas que vaga por onde h vaga entre espaos

aparentemente fixos. Devemos ser habitados por essas experincias, por ciclos temporais

que diferenciam o que tomamos como problemtico. Por isso prope um a priori histrico

de uma experincia possvel (Foucault, 1984a, p. 235), num convite para sairmos da

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dicotomia, ou melhor, da dialtica, e entrarmos no paradoxo, vivendo a continuidade na

ruptura e a ruptura na continuidade. Tudo gira em volta desse paradoxo, que a tese

central de Foucault, e a mais original: o que feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer

em cada momento da histria; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prtica, se

explica a partir do que feito (Veyne, 1982, p. 164).

A proposta , ento, substituir uma filosofia do objeto, tomado como fim ou como

causa, por uma filosofia da relao (uma causalidade circular): encarar o problema pelo

meio, pela prtica ou pelo discurso. Encarar o problema pelo meio pensar o presente

entendendo o presente como algo que nasce de um acontecimento ; e pens-lo significa

pensar aquilo que no acontecimento opera diferena. Ou seja, no se problematiza o

acontecimento; a prpria problematizao o acontecimento. E o que Foucault

problematiza em ato : o que estamos em vias de diferir? Quais so as condies de

possibilidade para essa diferenciao?

Eis aqui uma primeira pista: ao sermos habitados, com Foucault, por este paradoxo,

entramos num ciclo temporal de diferenciao. Queremos pensar a relao entre cuidado e

tempo, atravs da relao entre produo de sade, produo de subjetividade e produo

de territrio. Por isso nossa proposta aqui no dar uma definio de tempo, uma definio

de cuidado, etc., para da pensar a relao entre eles. O percurso aqui nasce de uma intuio

que tem em suas bases a sensao, no cotidiano das prticas, dessa relao como

problemtica. Ento, encarando este problema pelo meio, ou seja, pensando este problema

a partir de nossas prticas e discursos cotidianos, nos propomos a transformar o campo

problemtico em plano de produo, ou seja, tornar sensvel o processo que est aqum e

alm dos efeitos que sentimos. Tornar sensvel o processo, aqui, tornar sensveis as

relaes entre cuidado e tempo; como j dissemos, relaes que nos fazem sentir inmeras

coisas: cansao, alegria, pressa, impotncia, vigor... Aqum e alm dessas sensaes, h um

plano que as produz e que as faz produzir (e muitas vezes reproduzir) outras sensaes.

habitando esse plano que acreditamos ser possvel acessar a relao entre cuidado e tempo;

novamente: onde sentimos coisas, fazer sentir nelas a relao entre tempo e cuidado.

Por isso perguntamos: de que maneira estamos vivendo a relao entre cuidado e

tempo? De que maneira estamos vivendo (praticando e discursando) a relao entre

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produo de sade, produo de subjetividade e produo de territrio? O que est em vias

de diferir na maneira como vivemos estas relaes? Estas so as questes que precisam nos

acompanhar nesta escrita/leitura para que possamos acompanhar o prprio percurso

diferenciante.

Com esta introduo, podemos nos deter um pouco em determinados aspectos do

conceito dispositivo. Nas palavras de Foucault (1979b, p. 244), o dispositivo um

conjunto decididamente heterogneo que engloba discursos, instituies, organizaes

arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados

cientficos, proposies filosficas, morais, filantrpicas. Em suma, o dito e o no dito so os

elementos do dispositivo. O dispositivo a rede que se pode estabelecer entre esses

elementos. O autor indica ainda um certo jogo que se passa nos dispositivos, onde esses

elementos heterogneos mudam de posies e funes. possvel perceber, por exemplo,

que as posies de quem enuncia e as funes de um discurso podem variar muito. Talvez

seja preciso perguntar, a cada vez, a qu ele serve. Foucault nota ainda que o dispositivo

sempre responde a uma urgncia, funcionando como mecanismo de controle-dominao de

uma minoria que escapa a determinado funcionamento hegemnico (padro) de uma

sociedade. Lembramos do dispositivo manicmio, criado essencialmente para controle-

dominao da minoria loucos.

Deleuze (1996) chama essa rede de novelo, como um emaranhado de linhas de natureza

diferente. Essas linhas no delimitam sistemas homogneos, mas seguem direes, traam

processos que esto sempre em tenso, sempre em desequilbrio. Nesse processo de

movimentao das linhas, estas ora se aproximam, ora se afastam umas das outras; ora se

quebram, variando de direo, ora se bifurcam, criando derivaes. Ns estamos sempre em

meio a elas. Os objetos visveis, os enunciados formulveis, as foras em exerccios, os

sujeitos numa determinada posio, so como que vetores ou tensores (p. 83). E se so

vetores ou tensores, no esto dados, articulam-se e movimentam-se em diversas direes.

Mas preciso acompanhar os percursos dessas linhas para ver para onde elas conduzem o

dispositivo. Seu limite; o fim de sua vida til. Assim, dentro do manicmio, existe uma

compreenso hegemnica da forma de se lidar com a loucura: conteno, limitao,

infantilizao, tutela, desqualificao... Mas so tambm de dentro do prprio dispositivo

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manicmio que emergem outras compreenses, outras formas de se lidar com a loucura. Se

h processos de controle-dominao, h tambm processos libertrios que se colocam em

tenso. No podemos entend-los de forma simplista como duas faces, uma em oposio

outra, como o Bem versus o Mal. So processos mistos, mltiplos, que habitam todos ns e

que, num movimento complexo, vo modificando o dispositivo manicmio at que ele

imploda, num ato no somente destruidor, mas tambm criador: de outros dispositivos.

Tenho cincia de que essa afirmao, a de que tambm de dentro do dispositivo

manicmio que emergem processos libertrios a ele mesmo, um tanto complicada, pois o

que vemos um movimento a favor do manicmio que poderamos dizer que vem de

dentro dele , e outro movimento contra o manicmio que viria de fora dele. Porm,

respeitando o processo intuitivo sem querer defend-lo a todo custo, desrespeitando assim

esse mesmo processo, peo ao leitor que me acompanhe nesse percurso argumentativo sem

aceit-lo nem refut-lo de sada. Vamos precisar de toda essa dissertao, ou provavelmente

mais, para clarear essa questo.

Por ora, posso dizer que, se aparentemente o que visvel so as investidas contra o

manicmio vindo de fora, atravs principalmente do movimento antimanicomial,

queremos aqui remanejar essas fronteiras entre o dentro e o fora. Assim como

desinstitucionalizao no sinnimo de desospitalizao, dentro e fora do manicmio,

nesta narrativa, no sinnimo de dentro e fora da lgica manicomial. Muitas das pessoas

que compem este fora da lgica manicomial s puderam afirmar suas posies (e precisam

reafirm-las a todo momento) a partir do que viveram ali dentro, qualquer que seja o tempo

em que ali estiveram (algumas horas, dias, meses, anos... com intervalos ou no... num

mesmo estabelecimento ou no...) e a maneira pela qual estiveram inseridos (como loucos,

como funcionrios, como familiares, como visitantes, como pesquisadores...). Alm do mais,

para combater essa lgica, preciso compreend-la por dentro, para de dentro faz-la

implodir.

Compreend-la por dentro significa aqui, primeiramente, saber que fazemos parte dessa

experincia e que essa lgica nunca ser superada completamente, estaremos sempre em

confronto com ela dentro das experincias. Essa lgica muito mais complexa do que

aparenta, e no respeita nossa boa vontade contra a dominao. At porque, se formos

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interrogar qualquer (qualquer mesmo!) pessoa acerca dos motivos para qualquer ato ou

discurso, nenhuma delas poder afirmar que deseja dominar (ou ser dominada), pura e

simplesmente. H sempre uma justificativa para esse ato ou discurso, e nessa justificativa,

uma sincera boa inteno.

Tendo essa primeira compreenso sempre em mos, preciso o exerccio de entrar em

seus mecanismos e compreender como eles se fabricam em meio s prticas em cada

experincia, para no cairmos na armadilha de acreditarmos que esse perigo no corremos

mais e, dessa forma, internaliz-los em ns sem nos darmos conta. Pois se o combate se faz

no posicionamento do lado de