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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS DOUTORADO EM LITERATURA COMPARADA CARLA DE FIGUEIREDO PORTILHO DETETIVES EX-CÊNTRICOS: um estudo do romance policial produzido nas margens NITERÓI 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

DOUTORADO EM LITERATURA COMPARADA

CARLA DE FIGUEIREDO PORTILHO

DETETIVES EX-CÊNTRICOS:

um estudo do romance policial produzido nas margens

NITERÓI

2009

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CARLA DE FIGUEIREDO PORTILHO

DETETIVES EX-CÊNTRICOS:

um estudo do romance policial produzido nas margens

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Título de Doutor. Área de concentração: Estudos de Literatura. Subárea: Literatura Comparada.

Orientadora: Profª Dr.ª Sonia Regina Aguiar Torres da Cruz

Niterói

2009

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

P852 Portilho, Carla de Figueiredo.

DETETIVES EX-CÊNTRICOS: um estudo do romance policial produzido nas margens / Carla de Figueiredo Portilho. – 2009.

273 f. Orientador: Sonia Torres.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2009.

Bibliografia: f. 253-273.

1. Ficção policial - História e crítica. I. Torres, Sonia. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título. CDD 801.953

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CARLA DE FIGUEIREDO PORTILHO

DETETIVES EX-CÊNTRICOS: um estudo do romance policial produzido nas margens

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Título de Doutor em Letras. Área de concentração: Estudos de Literatura. Subárea: Literatura Comparada.

Aprovada em ___________________ de 2009.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Sonia Torres (Orientadora – UFF)

TITULARES:

Prof.ª Dr.ª Leila Assumpção Harris (UERJ)

Prof. Dr. Mário César Lugarinho (USP)

Prof.ª Dr.ª Vera Lucia Soares (UFF)

Prof. Dr. Maurício de Bragança (UFF)

SUPLENTES:

Prof.ª Dr.ª Ana Cristina Coutinho Viegas (Univ. Estácio de Sá / UERJ)

Prof.ª Dr.ª Lívia de Freitas Reis (UFF)

Niterói 2009

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Aos meus pais, que priorizaram a nossa educação e nos ofereceram bases sólidas para conquistar nossos espaços.

Aos meus amigos e familiares, que acreditaram na minha capacidade e me estimularam a alcançar este objetivo.

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Agradecimentos

À amiga e orientadora Sonia Torres, pelo estímulo, dedicação e carinho; pela

torcida constante, e também por alguns ‘puxões de orelha’ – e por intuir o meu

caminho, antes que eu mesma soubesse que gostaria de percorrê-lo.

Ao Prof. Dr. Emory Elliot, in memoriam, pela acolhida calorosa na UC

Riverside, pelas conversas sempre instigantes – e por me proporcionar acesso

privilegiado a bibliotecas vastíssimas, fundamentais para este projeto.

Aos colegas e professores do programa de pós-graduação da UFF, pelo

companheirismo e incentivo, e pelas trocas de idéias, sempre enriquecedoras.

À CAPES, pela concessão da bolsa PDEE, sem a qual não teria sido possível

concretizar esta pesquisa.

À amiga Carina Troina, por cuidar dos meus alunos durante o meu afastamento.

À amiga Vanessa Cianconi, pela parceria leal e incentivo constante.

Aos meus alunos da UFF, por tanto carinho e palavras de apoio.

A Nelma Pedretti, por me salvar de todos os ‘apuros burocráticos’.

Ao amigo Ricardo Freire, por gentilmente me ceder suas fotos de Angola.

Aos meus pais, que me ensinaram pelo exemplo o gosto pela leitura – obrigada

pelos jornais, revistas e pela estante de casa sempre repleta de livros...

Aos meus amigos, pelas palavras de estímulo e apoio e pelos momentos de lazer,

tão necessários para tornar mais leve esse percurso...

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Sumário

Introdução: A Confissão do Crime....................................................................... 01

I. Mapeando a tradição: um histórico da ficção policial ...................................... 15

Precursores do romance policial ......................................................................16

Condições para o surgimento do romance policial ..........................................39

Um detetive em Paris: surge o Chevalier Dupin..............................................50

“Elementar, meu caro Watson”: Sherlock Holmes e a ciência ........................58

Um estrangeiro no campo inglês: o ex-cêntrico Hercule Poirot ......................65

Um divisor de águas: o romance noir e o detetive hardboiled ........................69

Muitas dúvidas, nenhuma certeza: o detetive metafísico.................................74

Desdobramentos contemporâneos: gênero e etnia ...........................................77

A vez e a voz das detetives femininas .........................................................77

Detetives ‘Outros’........................................................................................83

Considerações finais.........................................................................................89

II.As herdeiras de Miss Marple e a práxis cotidiana como tática de resistência.. 91

Bisbilhotices e mexericos: a detetive ‘solteirona’............................................91

A História muda: maneiras Outras de fazer .....................................................96

Fugindo do inglês padrão: o Black Vernacular English e o Spanglish............98

Black Vernacular English ............................................................................99

Spanglish....................................................................................................115

O trabalho doméstico e os cuidados com a família........................................123

Arrumar, esfregar, xeretar..........................................................................123

Uma boa mãe de família chicana...............................................................131

Mitos e crenças...............................................................................................138

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Pequenos golpes e astúcias sutis ....................................................................157

Considerações finais.......................................................................................171

III. A história conta a História: falsos policiais e novos discursos produzidos pelo

pós-colonialismo................................................................................................. 181

Um Detetive Bundão......................................................................................183

A África feliz – ou a reinvenção de Botsuana ...............................................212

Considerações finais.......................................................................................237

O Desfecho Final ................................................................................................ 240

Obras Citadas......................................................................................................253

Obras Consultadas ..............................................................................................264

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Lista de figuras

Fig.1 – Os boulevards abertos a partir da Place de L’Étoile na reforma de

Haussman..............................................................................................................33

Fig.2 – Principais vias criadas ou transformadas entre 1850 e 1870 no centro de

Paris ......................................................................................................................34

Fig.3 – O panóptico ..............................................................................................37

Fig.4 – A planta do panóptico (Bentham) ............................................................37

Fig.5 – Oscar Zeta Acosta durante discurso.......................................................174

Fig.6 – Oscar Zeta Acosta com Hunter S. Thompson no Caesar's Palace de Las

Vegas ..................................................................................................................174

Fig.7 – Johnny Depp e Benicio del Toro em Fear and Loathing in Las Vegas.175

Fig.8 – O trânsito em Luanda .............................................................................192

Fig.9 – Mercado Roque Santeiro........................................................................196

Fig.10 – A Ilha de Luanda ..................................................................................199

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We are difference... our reason is the difference of

discourses, our history the difference of times, our

selves the difference of masks. That difference, far from

being the forgotten and recoverable origin, is this

dispersion that we are and make.

(Michel Foucault. Archeology of Knowledge.p.148-9)

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Resumo

O objetivo desta tese é abordar o romance policial produzido por

escritores contemporâneos de diferentes origens étnicas e culturais marginais ao

centro hegemônico de poder como uma contra-escritura do romance policial

tradicional. Pretendeu-se enfocar os caminhos seguidos por tais autores na

releitura desse gênero da literatura de massa, apontando que o romance policial

produzido nas margens ocupa uma posição contra-hegemônica frente ao romance

policial tradicional.

A pesquisa foi norteada pela idéia de que o real objeto de investigação do

detetive, no romance policial produzido nas margens não seria o crime

apresentado no enredo – este não passaria de um pretexto para se investigar as

sociedades contemporâneas, o papel desempenhado por essas comunidades

marginalizadas e como se estabelecem as relações de poder em tais sociedades,

na pós-modernidade, com o objetivo de provocar a reflexão acerca do papel do

Outro, representante da periferia, frente ao centro hegemônico.

Palavras-chave: romance policial; contra-literaturas; periferia.

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Abstract

This dissertation is a study of detective novels produced by contemporary

authors of different ethnic and cultural origins, marginal to the hegemonic center

of power. The author discusses these works as counter-discursive narratives,

focusing on the paths these writers have taken in re-reading this genre of mass

literature, pointing out that detective novels produced in the periphery take a

counterhegemonic position in relation to traditional detective fiction.

The guideline to this research was the idea that the detective’s real object

of investigation in the selected body of works would not be the crime presented

in the plot – this is seen, rather, as a pretext to investigate contemporary society,

the role performed by marginalized communities, and how power relations are

established in these societies in late modernity, with the aim of leading to a

reflection about the role of the Other, representative of the periphery, in relation

to the hegemonic center.

Key words: detective fiction; counterdiscursive narratives; periphery.

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Introdução

A Confissão do Crime

A Confession

For me, as for many others, the reading of detective

stories is an addiction like tobacco or alcohol. The

symptoms of this are: firstly, the intensity of the

craving – if I have any work to do, I must be careful

not to get hold of a detective story for, once I begin

one, I cannot work or sleep till I have finished it.

Secondly, its specificity – the story must conform to

certain formulas (I find it very difficult, for example, to

read one that is not set in rural England). And, thirdly,

its immediacy. I forget the story as soon as I have

finished it, and have no wish to read it again. If, as

sometimes happen, I start reading one and find after a

few pages that I have read it before, I cannot go on.

Such reactions convince me that, in my case at least,

detective stories have nothing to do with works of art.

W.H. Auden – The Guilty Vicarage.1

1 AUDEN, W.H. The Guilty Vicarage. p.15. “Para mim, como para muitos outros, a leitura de romances policiais é um vício como o tabaco ou o álcool. Seus sintomas são: primeiro, a intensidade do desejo – se eu tiver algum trabalho para fazer, devo tomar cuidado para não começar a ler uma história policial, porque, uma vez que começo uma, não consigo trabalhar ou dormir até terminá-la. Segundo, sua especificidade – a história deve deve obedecer a certas fórmulas (eu acho muito difícil, por exemplo, ler uma que não seja ambientada na Inglaterra rural). E, terceiro, seu imediatismo. Eu esqueço a história assim que a termino, e não sinto vontade de lê-la novamente. Se, como às vezes acontece, eu começar a ler uma e descobrir, após

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Esta tese é fruto desse ‘vício’2 compartilhado com W.H. Auden – a leitura

de romances policiais. Assim como o poeta, também eu e outros ‘viciados’ em

literatura policial relatam os ‘sintomas’ descritos, como a intensidade do desejo

de mergulhar em uma história envolvente, cujo poder de absorção conduz o leitor

por suas páginas, curioso, ávido pelo desfecho final, quando será apresentada a

solução para o mistério proposto.

Compartilhar o ‘vício’ do poeta, entretanto, não implica necessariamente

compartilhar a sua opinião acerca das histórias policiais. Ao escrever o ensaio

“The guilty vicarage” (1949), W.H. Auden foi categórico ao afirmar que, ao

menos no seu caso, “as histórias policiais não têm nada a ver com obras de arte”.

Esta tese segue uma orientação distinta, que busca problematizar a

afirmação do poeta, observando que, embora não se possa garantir que toda e

qualquer história policial constitua uma obra de arte, não seria também o caso de

se excluir a priori todo um gênero da categoria ‘arte’ – o que se propõe é

empreender uma investigação cuidadosa e despida de preconceitos. Ainda no

sentido de relativizar a epígrafe acima, cabe lembrar que o teatro, um gênero

usualmente considerado culto, era uma forma de arte popular até o século XIX.

O objeto desta pesquisa é o romance policial produzido por escritores

contemporâneos de diversas origens étnicas e culturais marginais ao centro

algumas páginas, que já a li antes, não consigo continuar. / Tais reações me convencem que, ao menos no meu caso, as histórias policiais não têm nada a ver com obras de arte.” Todas as traduções são minhas, exceto quando especificamente mencionado. 2 Coloco o termo entre aspas simples para assinalar dúvida, e assim diferenciar das aspas duplas, usadas para citações.

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hegemônico de poder. Ao longo da tese, pretende-se apontar os caminhos

trilhados por esses autores na releitura desse gênero consagrado da literatura de

massa, e discutir como esses autores não buscam conformar seus textos às

fórmulas consagradas pela literatura policial ‘hegemônica’3, mas sim marcá-los

como textos produzidos na contramão dessa tradição literária. É interessante

observar, entretanto, que a própria escolha do gênero inscreve a tradição do

romance policial hegemônico e, ao mesmo tempo, estabelece um diálogo com a

literatura ‘culta’, que também já deu sua contribuição à ficção policial – por

exemplo, com os contos policiais de Jorge Luis Borges, como “A morte e a

bússola” e “O jardim de caminhos que se bifurcam”, e o romance de Umberto

Eco, O nome da rosa.

Escolheu-se trabalhar com o romance policial porque a arte popular

contemporânea, especialmente a literatura e o cinema, tem sido marcada por

histórias de mistério e suspense, com destaque para a figura do detetive, tão

presente nos thrillers e policiais. O romance policial tornou-se um dos tipos de

literatura mais vendidos de todos os tempos, e sua vendagem expressiva é uma

das características que o inserem no tipo de literatura que se convencionou

chamar best-seller, também conhecida como paraliteratura, literatura de massa ou

de mercado. Nos dias de hoje, as questões de marketing são decisivas para uma

editora na hora de escolher as obras que serão publicadas e divulgadas com maior

3 O termo vem entre aspas porque, embora a literatura policial tradicional, produzida por escritores originários do centro hegemônico, seja canônica em relação à literatura policial produzida na periferia, ainda assim está relegada a um patamar inferior pelo cânone literário, sendo considerada paraliteratura.

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empenho, e a forte competição entre as editoras pelo lucro se traduz em um

esforço cada vez maior aplicado à produção e comercialização de best-sellers.

Desse modo, o potencial de vendas de uma determinada obra torna-se tão ou

mais importante que o seu ‘mérito’ literário.4 Esse fator é fundamental para que

tanto escritores novatos quanto os consagrados escolham se expressar por meio

de um gênero que encontrará receptividade por parte das editoras e,

conseqüentemente, do público.

A investigação proposta por este estudo tem seu ponto de partida em duas

hipóteses de trabalho, a saber:

O romance policial produzido nas margens seria uma contra-escritura do

romance policial tradicional. Assim como o romance policial tradicional é

marginal em relação à literatura culta, o romance policial produzido nas

margens ocuparia uma posição contra-hegemônica face ao romance policial

tradicional. Sendo assim, o romance policial produzido na periferia do

poder não seguiria uma fórmula, nem buscaria a manutenção do status quo;

pelo contrário, o próprio fato de constituir um gênero da cultura / literatura

de massa enfatizaria a posição marginal ocupada pelo gênero.

O real objeto de investigação do detetive, no romance policial produzido

nas margens, não seria o crime descrito no enredo. Tomando o enredo

4 DILLEY, Kimberley. Busybodies, meddlers and snoops. p.6.

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policial apenas como um pretexto, levanta-se a hipótese de que a verdadeira

investigação que se empreende nessas obras diz respeito ao papel que

comunidades marginalizadas desempenham nas sociedades contemporâneas

e como se estabelecem as relações de poder em tais sociedades, na

modernidade tardia. O verdadeiro crime investigado nessas obras seria,

portanto, a tentativa de apagamento e/ou exclusão dessas comunidades

pelos centros de poder, e o embate que se dá entre diferentes segmentos da

sociedade.

Com base nessas hipóteses, buscaremos alcançar os seguintes objetivos:

Discutir brevemente os conceitos de literatura culta e de massa,

problematizando a ruptura tradicionalmente feita entre elas.

Abordar a literatura policial contemporânea contra-hegemônica como uma

vertente do gênero que escapa às fórmulas repetitivas e desgastadas e

mescla a literatura culta à popular.

Cotejar textos de autores de romances policiais contemporâneos de diversas

culturas não-hegemônicas, marcando a busca de uma voz e espaço próprios

para as literaturas da periferia frente à cultura hegemônica.

Discutir as possíveis razões que vêm levando esses autores a optar pelo

romance policial como meio de expressão.

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Levantar questões que levem à reflexão acerca do papel do Outro,

representante da periferia, em relação ao centro hegemônico.

Ao propor uma reflexão sobre o romance policial contra-hegemônico,

toma-se como ponto de partida o trabalho de alguns estudiosos que discorreram

sobre o conceito de literatura de massa, como Muniz Sodré (em livros como

Teoria da Literatura de Massa5 e Best-seller: uma Literatura de Mercado6) e

Ligia Averbuck (na coletânea de ensaios Literatura em Tempo de Cultura de

Massa7), além de trabalhos críticos especificamente sobre o romance policial.

Tradicionalmente, teóricos que estudaram a literatura de massa a

contrapõem à literatura culta. Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, por exemplo,

afirmam que a primeira se insere perfeitamente no seu gênero, conformando-se a

ele, ao passo que a segunda demonstra uma originalidade não apenas de padrões

narrativos como também de valores pessoais e morais “que produzem uma visão

de mundo singular e inconfundível”8. Além disso, a literatura best-seller

supostamente não exigiria do leitor grandes esforços de sensibilidade,

5 SODRÉ, Muniz. Teoria da literatura de massa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 82-84. 6 SODRÉ, M. Best-seller: a literatura de mercado. [Série Princípios, 14]. São Paulo: Ática, 1985. 7 AVERBUCK, Lígia (org.). Literatura em Tempo de Cultura de Massa. São Paulo: Nobel, 1984. 8 REIMÃO, Sandra Lúcia. Sobre a noção de best-seller. s/d. Disponível online em <http://www.metodista.br/unesco/Encipecom/encipecom_hp/Encipecom_br_SandraReimao.htm> Acesso em: 23/05/03.

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inteligência, atenção ou memória, enquanto a literatura culta estimularia a

capacidade crítica do leitor ao problematizar os valores e suas representações9.

A proposta que se apresenta neste trabalho é a de argumentar a contrapelo

desses autores, questionando afirmativas como as expostas acima. Como membro

de uma geração acadêmica formada pelo momento da entrada dos estudos

culturais em cena, que trouxe ao meio acadêmico o debate entre high e low

culture, tomo como base para tal argumentação tanto a obra de Anthony

Easthope, Literary into Cultural Studies10, quanto a de Bernard Mouralis, Les

Contre-littératures 11.

Easthope defende uma mudança de paradigma nos estudos literários, ao

afirmar que todos os discursos de uma sociedade devem ser objeto do seu

interesse, e não apenas os discursos de uma elite. Ele lembra que os estudos de

literatura no ocidente sempre procuraram negar a idéia de que o cânone é

construído, e que, embora estejam fundamentados sobre uma base lógica, estão

imersos em ideologia disfarçada de estética12. Dessa forma, com o advento dos

estudos de cultura, dá-se status teórico às textualidades populares e de massa. A

esse respeito, é interessante lembrar os exemplos de críticos famosos, como

Slavoj Žižek, que explicou Lacan usando exemplos retirados da arte popular13, e

9 Ibid. 10 EASTHOPE, Anthony. Literary Into Cultural Studies. London & New York: Routledge, 1991. 11 MOURALIS, Bernard. Les Contre-littératures. Paris: Presse Universitaire de France, 1975. 12 EASTHOPE, op.cit., p.6-13. 13 ŽIŽEK, Slavoj. How to read Lacan.

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Susan Sontag, que publicou, nos anos 60, ensaios como “Notes on Camp” e “The

Pornographic Imagination”.

Já Mouralis problematiza a separação entre literatura culta e de mercado.

Segundo ele, as contraliteraturas dizem respeito ao processo de contestação e de

questionamento da ‘Literatura’ (com ‘L’ maiúsculo, referindo-se à literatura

culta) e lembram a existência de todo um setor da produção literária relegado a

uma posição marginal – a paraliteratura ou literatura de massa14. Dessa forma, a

contraliteratura abrange as múltiplas modalidades de subversão do campo

literário. Mouralis argumenta que não seria questão de se estudar

sistematicamente a literatura marginal, pois isso significaria partir do pressuposto

de que existe um corte entre dois setores distintos da produção literária – a

literatura culta e o resto – e, por conseqüência, um objeto de estudo específico,

constituído pelo melodrama, o romance policial, a ficção científica, as histórias

em quadrinhos, as canções, a fotonovela, etc. Sua sugestão é que se enfatize a

relação conflituosa que se estabelece entre a literatura culta e popular15. Afinal, a

literatura popular também pode conter crítica social/cultural, como no caso dos

romances abordados aqui, normalmente não-sancionados pela literatura culta,

mas nem por isso menos críticos, já que retratam comunidades em conflito com a

hegemonia.

Ao longo da tese, serão utilizados vários textos de teoria crítica de autores

que se especializaram no estudo da ficção policial, hegemônica ou contra-

14 MOURALIS, op.cit., p.7. 15 Ibid., p.8-9.

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hegemônica, como Martin Kayman, Stephen Soitos, Tim Libretti, Kimberly

Dilley, Maureen Reddy e Lesley Finnegan, entre outros, para dar suporte às

discussões acerca do corpus ficcional escolhido.

Cumpre notar que a literatura periférica contemporânea tem se mostrado

particularmente prolífica na produção de ficção policial. Nos Estados Unidos,

autores provenientes de diversas ‘minorias étnicas’16, como Tony Hillerman17,

Dale Furutani, Barbara Neely, Lucha Corpi e inclusive nomes consagrados como

Rudolfo Anaya e Rolando Hinojosa escolheram se dedicar ao gênero e criaram,

respectivamente, personagens como a Navajo Tribal Police, o detetive nipo-

americano Ken Tanaka, a faxineira-detetive afro-americana Blanche White e os

detetives chicanos Gloria Damasco, Sonny Baca e Rafe Buenrostro – todos

protagonizam bem-sucedidas séries de romances policiais. No Brasil, além do

pioneiro Rubem Fonseca, autor de A Grande Arte (1983) e Bufo & Spallanzani

(1986), entre outros, contamos com os contos paródicos de Luis Fernando

Veríssimo em Ed Mort e outras histórias (1979), com a incursão de Fernando

Sabino pelo gênero em A Faca de Dois Gumes (1985) e, mais recentemente, com

nomes como Luiz Alfredo Garcia-Roza, criador do Delegado Espinosa,

protagonista de uma série que já se encontra no oitavo volume. Ainda na

América do Sul, o romance Detetives Selvagens, do escritor chileno Roberto

16 Emprega-se aqui o termo ‘minoria’ no sentido político, e não necessariamente numérico, como é o caso da população hispânica dos EUA. 17 Embora seja de origem branca, Tony Hillerman foi criado em uma reserva indígena nos Estados Unidos, e seus personagens são fruto dessa experiência.

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Bolaño, alcançou as listas de mais vendidos, trazendo o foco para a obra do autor

prematuramente falecido. Na África, chamam a atenção o romance paródico

Jaime Bunda, agente secreto e sua continuação Jaime Bunda e a morte do

americano, do escritor angolano Pepetela, e a série The No.1 Ladies’ Detective

Agency, de Alexander McCall Smith, autor escocês nascido na antiga colônia

britânica da Rodésia do Sul, atual Zimbábue.

Escolheu-se, em um primeiro instante, um corpus literário bastante vasto,

composto por obras de Rolando Hinojosa, Lucha Corpi (chicanos), Chester

Himes, Barbara Neely (afro-americanos), Tony Hillerman (branco, cujos

personagens são indígenas), Dale Furutani (nipo-americano), Pepetela

(angolano), Alexander McCall Smith (escocês nascido no Zimbábue), Luiz

Alfredo Garcia-Roza e Antonio Más (brasileiros). Para melhor fundamentar a

discussão, também foram lidas ou relidas algumas obras de autores emblemáticos

da ficção policial tradicional, como os contos de Edgar Allan Poe que deram

origem à ficção policial, alguns contos e romances de Arthur Conan Doyle

protagonizados por Sherlock Holmes, e romances de Agatha Christie, Dashiell

Hammett e Raymond Chandler. Dada a importância da serialização para o estudo

do romance policial – responsável não apenas por números expressivos de

vendas, mas também por oportunidades como o estudo crítico do

desenvolvimento dos personagens ao longo do tempo, além da possibilidade de

interação entre o autor e seus leitores, por meio da reação popular a uma obra – a

princípio fez-se a leitura de dois ou três romances de cada autor, para somente

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então se proceder à seleção final do corpus a ser trabalhado ao longo da tese. Por

fim, foram selecionados quatro autores, cujas obras foram trabalhadas mais

extensamente em dois ensaios – Barbara Neely, Lucha Corpi, Pepetela e

Alexander McCall Smith. Outros autores foram mencionados esporadicamente

ao longo do texto, a título de exemplo ou ilustração, e outros, ainda, reservados

para futuros estudos.

No recorte desta tese, serão abordados detetives de duas minorias étnicas

dos EUA (afro-americana e chicana) e de dois países africanos (Angola e

Botsuana). A escolha das minorias étnicas dos EUA foi devida à área de atuação

profissional da autora, em literatura norte-americana, sobretudo a produzida por

minorias. Já a escolha de Angola e Botsuana se deu pelo próprio fato de haver

romances ambientados nesses países cujo sucesso ultrapassou as fronteiras

africanas – no caso, Jaime Bunda, agente secreto, de Pepetela, editado

primeiramente em Portugal, mas que teve também uma edição brasileira, e os

livros da série The No. 1 Ladies’ Detective Agency, de Alexander McCall Smith,

um sucesso de vendas nos países de língua inglesa, e que já se encontra no

décimo volume. Além disso, todas essas obras estabelecem um diálogo com a

tradição do romance policial anglo-saxão, por meio da reescritura e por vezes, da

paródia. Não achamos relevante aqui o fato de Jaime Bunda ser escrito em

português e ambientado em um país de fala portuguesa, já que o objeto da

paródia é claramente o agente secreto James Bond, criação do britânico Ian

Flemming; desse modo, o diálogo permanece sendo travado com a tradição

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anglo-saxã.

A estrutura da tese consiste em três capítulos – a um capítulo introdutório,

“Mapeando a tradição: um histórico da ficção policial”, seguem-se dois ensaios,

“As herdeiras de Miss Marple e a práxis cotidiana como tática de resistência” e

“A história conta a História: falsos policiais e novos discursos produzidos pelo

pós-colonialismo”.

O primeiro capítulo, “Mapeando a tradição: um histórico da ficção

policial”, apresenta uma proposta de mapeamento da tradição na ficção policial,

desde a sua origem na narrativa de aventuras, passando pela literatura de crimes

dos séculos XVII e XVIII, o surgimento do herói-detetive no século XIX e seus

desdobramentos subseqüentes até chegar à contemporaneidade. Apresenta-se a

hipótese de que detetive deve suas características ao momento histórico em que

foi criado e à sociedade em que está imerso. Seguindo essa linha de raciocínio,

propõe-se também que cada detetive tem como objeto de investigação a si

próprio e a sociedade da qual é membro, assim como as relações de poder que se

estabelecem nessa sociedade... A ficção policial buscaria representar, portanto, o

momento histórico no qual se situa.

No segundo capítulo, “As herdeiras de Miss Marple e a práxis cotidiana

como tática de resistência”, tomando como base para argumentação a teoria de

Michel de Certeau sobre a práxis cotidiana18, buscarei discutir de que forma essas

18 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano.

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práticas se re-significam no embate entre o centro de poder e grupos ‘invisíveis’,

além do seu papel político como uma tática de resistência empregada como

oposição a práticas sócio-culturais dominantes. Assim como nas aventuras de

Miss Marple, as práticas cotidianas marcam presença nas obras de Barbara Neely

e Lucha Corpi que serão abordadas neste capítulo – todas protagonizadas por

detetives mulheres.19 Os romances considerados neste capítulo serão os dois

primeiros volumes da série Blanche White Mysteries, Blanche on the lam e

Blanche among the talented tenth, de Barbara Neely; e os três volumes da série

Gloria Damasco: Eulogy for a brown angel, Cactus blood e Black widow’s

wardrobe, de Lucha Corpi.

O terceiro capítulo, “A história conta a História: falsos policiais e novos

discursos produzidos pelo pós-colonialismo”, propõe uma discussão sobre os

diferentes caminhos trilhados por dois países africanos que se libertaram

politicamente de suas metrópoles na segunda metade do século XX – Angola,

que se tornou independente de Portugal em 1975, e Botsuana, o antigo

Protetorado de Bechuanalândia, que conquistou sua independência da Inglaterra

em 1966. A base para essa reflexão será o estudo de dois romances policiais,

cada um ambientado em um desses países: Jaime Bunda, agente secreto (2001),

19 Ao longo das pesquisas para seleção do corpus percebeu-se que, na maior parte das obras policiais que abordam as questões da práxis cotidiana, as personagens principais são mulheres. Quando as práticas cotidianas são mencionadas em obras cujos personagens principais são detetives homens, como a série protagonizada pelo Delegado Espinosa, de Luiz Alfredo García-Roza, o foco recai sobre a incapacidade do personagem de levar a cabo tais práticas, como preparar a comida ou arrumar a casa. O fato é compreensível, uma vez que as mulheres são – ao menos na tradição ocidental, com a qual estamos mais familiarizadas – as responsáveis pelas atividades do dia-a-dia, como cozinhar, limpar, educar as crianças e assim por diante.

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do escritor angolano Pepetela; e The No.1 Ladies’ Detective Agency (1998), o

primeiro livro da série de mesmo nome, que já se encontra no décimo volume, de

autoria do escocês nascido na antiga Rodésia do Sul, atual Zimbábue, Alexander

McCall Smith.

Cabe lembrar que a própria vastidão do assunto e do material literário

disponível levaram a cortes inevitáveis no corpus literário para que se pudesse

empreender um estudo mais aprofundado dos temas selecionados. Esses cortes, a

princípio difíceis de efetuar, mas absolutamente necessários para o bom

andamento da tese, seguem reservados para projetos futuros.

Para finalizar e abrir espaço para o texto propriamente dito, retomo a

afirmação de W.H. Auden: “ao menos no meu caso, as histórias policiais não têm

nada a ver com obras de arte.” Convido o leitor a passar aos próximos capítulos

interrogando-se a respeito da pertinência dessa afirmação – voltaremos a ela na

conclusão da tese.

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CAPÍTULO I

Mapeando a tradição:

um histórico da ficção policial

As histórias dependem antes de tudo da confiança de

quem ouve, e da capacidade de interpretá-las.

Bernardo Carvalho. Nove noites.20

Este capítulo introdutório tem por objetivo propor um mapeamento da

tradição na ficção policial, desde a sua origem na narrativa de aventuras,

prosseguindo com a literatura de crimes dos séculos XVII e XVIII, o surgimento

do herói-detetive no século XIX e seus sucessivos desdobramentos até a

contemporaneidade. Parte-se da hipótese de que cada tipo de detetive deve suas

características ao momento histórico em que foi criado e à sociedade em que está

imerso. De acordo com esse raciocínio, propõe-se também que o objeto de

investigação de cada detetive não é outro se não ele próprio e a sociedade da qual

é fruto, bem como as relações de poder, quase sempre assimétricas, estabelecidas

entre os seus membros. A ficção policial seria, portanto, como em qualquer obra

da ‘literatura maior’, uma expressão do momento histórico no qual está situada.

20 CARVALHO, Bernardo. Nove noites.p.8.

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Precursores do romance policial

Ao buscar-se a origem do romance policial, faz-se necessário, segundo

Paulo de Medeiros e Albuquerque, ir às origens do romance de aventuras – o

romance policial nasce de um desdobramento deste, transformado pelo advento

do raciocínio e da lógica. As origens do romance de aventuras, por sua vez,

perdem-se no tempo, remontam à própria história da Humanidade e sua luta pela

sobrevivência na Terra. Albuquerque argumenta que as grandes mitologias,

assim como a própria Bíblia, repletas de episódios de ação, de lutas do bem

contra o mal, de heróis e vilões, poderiam ser consideradas, então, histórias de

aventuras.21

Ao longo do tempo, principalmente com o advento da imprensa e a

publicação de livros, o relato de aventuras sofreu modificações graduais, que

deram origem a três gêneros distintos: uma das ramificações manteve o mesmo

espírito dos relatos já existentes, estabelecendo-se como romance de aventuras;

outra assumiu características de intriga política, e mais tarde, no primeiro pós-

guerra, fez surgir o romance de espionagem; a terceira ramificação, com o

aparecimento do raciocínio lógico suplantando a ação e a força, transformou-se,

com as características que hoje associamos ao romance policial.22

O fato é que, como expõe Alma E. Murch em seu estudo sobre o

desenvolvimento do romance policial, inúmeros elementos que desempenhariam

21 ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros e. O Mundo Emocionante do Romance Policial. p.1. 22 Ibid., p.3.

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um papel decisivo na formação da ficção detetivesca já estavam presentes na

literatura da França e da Inglaterra em um período muito anterior ao século

XIX.23 Há muito que as peripécias de aventureiros e marginais entretinham o

povo por meio de canções e narrativas, como as histórias do lendário fora-da-lei

Robin Hood, um herói tradicional desde antes do tempo de Shakespeare. Tais

histórias, quer baseadas ou não em fatos reais, foram populares por todo o século

XVII e parte do século XVIII. Na Inglaterra, eram notórias as aventuras de

Thomas of Reading ou Jack of Newbury, narradas para divertir o leitor; Murch

cita The XII Merry Jests of the Widow Edythe (As 12 Alegres Zombarias da

Viúva Edythe) no qual cada ‘zombaria’ constitui um crime audacioso. Na França,

contos semelhantes remetiam aos romances picarescos espanhóis, biografias ou

autobiografias bem-humoradas de servos tão espirituosos quanto malandros,

cujas carreiras com uma sucessão de senhores ofereciam oportunidades

infindáveis para a sátira e o burlesco. Cavalheiros aventureiros também eram

representados e, segundo Murch, há ampla evidência a demonstrar que contos

sobre todo tipo de crimes engenhosos eram extremamente populares, tanto na

França quanto na Inglaterra.24

A ficção detetivesca se origina, em parte, nesse tipo de narrativa,

vinculada à continuidade do interesse popular pelos feitos de vilões inteligentes e

astuciosos. Porém, Murch chama a atenção para a necessidade de uma mudança

radical na forma como o malandro era visto pelo público em geral, antes que

23 MURCH, Alma E. The development of the detective novel. p.18. 24 Ibid., p.18-19.

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esses ‘contos de malandragem’ pudessem se desenvolver como narrativas

detetivescas.25 Na picaresca, assim como em outros tipos de contos populares

semelhantes, o ‘vilão’26 era apresentado como romântico, divertido, sagaz,

freqüentemente admirado por sua bravura e espirituosidade e por seu talento em

escapar à punição que tanto merecia. Na ficção detetivesca, isso é precisamente o

que não se permite a ele fazer – o leitor é solidário ao detetive, cuja função é

descobrir o vilão e encaminhá-lo à punição. As histórias de detetives, em

contraste com as histórias de crimes, têm como uma de suas características mais

importantes “o reconhecimento de que a atividade do criminoso é repreensível e

não deve ser tolerada, muito menos vista com divertimento ou admiração.”27

Ao longo do século XVIII, a literatura da Inglaterra esteve repleta de todo

tipo de atividade criminal. É interessante notar, entretanto, que o modo como se

lidava com o crime difere grandemente do modo como os séculos subseqüentes o

fizeram. Em seu ensaio sobre as narrativas de crimes do século XVIII, Ian Bell

atribui essa diferença à própria realidade penal da época: a ausência de um

sistema confiável de policiamento ou de detecção rotineira de criminosos. Além

disso, pouco se acreditava que isso pudesse ou mesmo precisasse ser feito de

forma eficiente. O sistema existente era, de modo geral, privatizado: o processo

que se seguia ao roubo era responsabilidade da parte lesada, que poderia oferecer

uma recompensa por informações ou contratar um agente. Essa situação servia

25 Ibid., p.19. 26 Embora Murch considere o pícaro um vilão, concordo com Mario Gonzalez que o pícaro era mais um anti-herói do que um vilão propriamente dito. Remeto o leitor para o seu estudo sobre o romance picaresco, A saga do anti-herói. 27 MURCH, op.cit., p.19.

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aos propósitos de aproveitadores, que combinavam os roubos, recebiam a

recompensa por devolver os bens roubados e, quando lhes convinha, ainda

providenciavam a captura dos supostos ladrões – normalmente membros da

própria quadrilha. A principal ferramenta de cumprimento da lei era o medo da

terrível punição em caso de captura: o chamado Código Sangrento, que

penalizava mesmo os roubos mais insignificantes com a morte. Em parte, o

Código se auto-sabotava, pois o júri que considerasse a punição severa demais

para o crime cometido poderia muito bem absolver o acusado; além disso, havia

vários outros meios, desde o suborno ao aparente arrependimento cristão, que

poderiam levar ao livramento da pena de morte ou à comutação para um castigo

mais brando, como o degredo.28

Na primeira metade do século XVIII, uma indicação de que a mudança no

modo como o criminoso era visto começava a ser operada podia ser percebida no

sucesso de publicações como The Newgate Calendar. Murch relata que, no final

do século XVII, a prisão de Newgate contava com um religioso em seu quadro de

funcionários, intitulado “O Capelão Ordinário”, ou, mais simplesmente, “O

Ordinário”, cujas funções incluíam a responsabilidade de preparar e publicar

panfletos contendo as últimas palavras ou confissões de prisioneiros famosos à

espera da execução, assim como quaisquer detalhes que ele pudesse coletar a

respeito de suas histórias de vida e carreiras criminais.29 Esses panfletos eram

produzidos em larga escala e vendidos prontamente, de modo que estimularam a

28 Cf. BELL, Ian A. Eighteenth-century crime writing. p.7. 29 MURCH,op.cit., p.20.

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produção de outras séries de publicações com intuitos semelhantes, como The

Malefactor’s Register e The New Newgate and Tyburn Calendar. Esses títulos

não eram publicados pelo Ordinário de Newgate, mas por um grupo de gráficos

empreendedores que se auto-intitulavam “Os Editores”. Como não contavam

com os privilégios e as fontes de informação oferecidos ao Ordinário, eles se

permitiam dar mais liberdade à própria imaginação, e expandiam seus relatórios

com comentários e exortações religiosas. No esforço de apontar uma moral e

mostrar os erros cometidos por alguns criminosos notórios, os Editores não

apenas esvaziavam os vilões de qualquer pretensão romântica ou glamurosa, mas

também às vezes chegavam bem perto de escrever passagens com algum

interesse detetivesco.30

Ao longo de várias gerações, o Newgate Calendar foi uma fonte popular

de informações sobre as carreiras de criminosos ingleses. Entretanto, talvez o seu

efeito mais imediato tenha sido o de dar origem ao romance de Newgate, muito

popular no século XVIII. Esse rótulo englobava uma série de relatos semi-

fictícios e bastante exagerados das aventuras de salteadores e outros bandidos

famosos, com uma certa admiração implícita ou explícita pelo criminoso. Os

romances de Newgate eram produzidos por jornalistas e escritores, e não tinham

o cunho moralista do Newgate Calendar. No início da era vitoriana, o gênero foi

a razão de uma controvérsia literária entre dois grandes escritores da literatura

inglesa, Charles Dickens e William Thackeray, a respeito do modo como os

30 Ibid., p.21.

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criminosos eram retratados nos romances. Dickens escreveu Oliver Twist,

rotulado por Thackeray, um dos mais ferrenhos críticos do gênero, como um

romance de Newgate, por ‘glamurizar’ a vida criminal. Dizia Thackeray:

“Deixem os criminosos agirem em seus romances como criminosos, e os homens

honestos como homens honestos.”31 Ironicamente, o romance Catherine, de

Thackeray, publicado na época como sátira aos romances de Newgate, é por

vezes considerado, hoje em dia, como um representante do gênero em si.32 Note-

se, por outro lado, que Dickens, não apenas no auge da controvérsia, mas

também no próprio romance, fez o possível para dissociar sua obra dos romances

de Newgate, ao evitar demonstrar solidariedade com os criminosos.33 O romance

de Newgate pode ser considerado, até certo ponto, um dos precursores do

romance policial, no sentido de que fomentava um interesse por narrativas

emocionantes sobre um pano de fundo de atividades criminais. De acordo com

Murch, porém, o romance policial está mais intimamente ligado ao Newgate

Calendar e outras publicações similares da época, quanto à visão mais ‘realista’

que apresentavam do criminoso, considerado não uma figura romântica e

divertida, mas um vilão que deveria ser capturado e punido.34

31 THACKERAY, William Makepeace. Catherine. p.37. “[L]et your rogues in novels act like rogues, and your honest men like honest men”. 32 Thackeray se baseou na vida e execução de Catherine Hayes, um dos casos mais escabrosos do Newgate Calendar – Hayes conspirou para assassinar e esquartejar seu marido e foi condenada à morte na fogueira em 1726. Para alguns críticos a natureza satírica da obra de Thackeray se perdeu ao longo do tempo, sendo assim lida com freqüência como um romance de Newgate propriamente dito. 33 Cf. BOROWITZ, Albert. Why Thackeray went to see a man hanged. p.746. 34 MURCH,op.cit., p.21-22. Aspas minhas.

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Ian Bell argumenta ainda que a literatura de crimes do século XVIII não

estava restrita a uma única forma genérica ou convencional, destinada a um

público em particular. Além disso, embora por vezes tivesse um teor cômico,

buscava mais o confronto e a inquietação do que o reconforto mais característico

da ficção detetivesca predominantemente recreativa dos séculos posteriores – “o

discurso da literatura de crimes contemporânea ao Código Sangrento media e

articula uma profunda ansiedade ao invés de consolação.”35 Os narradores do

século XVIII descreviam um mundo repleto de trapaceiros e criminosos de todos

os tipos, onde praticamente não havia uma força policial ou qualquer mecanismo

de proteção pessoal, e cujo sistema jurídico e penitenciário era ineficiente e, com

freqüência, claramente corrupto. A lei era imperfeita, tanto em sua concepção

quanto em sua implementação – nas raras ocasiões em que criminosos eram

capturados e levados à justiça, era mais provável que isso se devesse a

anacrônicos códigos de honra pessoal e à vingança do que às operações de

alguma autoridade civil reconhecida.36

Essa instabilidade da noção de justiça da época está presente na literatura

de então, mesmo em obras que não são consideradas especificamente literatura

de crimes. Daniel Defoe, por exemplo, escritor que ocupa um lugar fundamental

na literatura inglesa, ao lado de Samuel Richardson e Henry Fielding, como um

35 BELL, op.cit., p.9. O emprego do termo “consolação” dialoga, evidentemente, com a conhecida “estrutura da consolação” postulada por Umberto Eco. Cf. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. p.190-204. 36 Ibid., p.9..

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de seus primeiros romancistas37, produziu algumas obras, como Moll Flanders e

Roxana, em que o crime ocupa um papel central. Murch considera que o estilo de

Defoe, seu modo de apresentar a história como o relato de uma testemunha

ocular que tivesse realmente vivido aqueles eventos emocionantes, dando ao

leitor todos os ‘fatos’, é particularmente adequado à ficção detetivesca. Além

disso, suas obras revelam um interesse nas atividades de criminosos e nas

tentativas da polícia da época de levá-los à justiça.38

Tal se dá em Moll Flanders (1722), por exemplo. O título completo do

romance já traz ao leitor um resumo do enredo: The Fortunes and Misfortunes of

the Famous Moll Flanders, Etc. Who was born in Newgate, and during a life of

continu'd Variety for Threescore Years, besides her Childhood, was Twelve Year

a Whore, five times a Wife (whereof once to her own brother), Twelve Year a

Thief, Eight Year a Transported Felon in Virginia, at last grew Rich, liv'd Honest

and died a Penitent. Written from her own Memorandums39 É pertinente

relembrarmos a biografia de Moll. Como filha de uma condenada de Newgate,

degredada para a América logo após o seu nascimento, Moll vive da caridade

pública, ao longo de sua infância, cuidada por uma viúva que a ensina boas

maneiras e trabalhos de agulha. Ela se torna uma bela jovem, seduzida e logo

abandonada por seu primeiro amante, que a convence a casar-se com o irmão

37 Cf. WATT, Ian. A ascensão do romance. 38 MURCH, op.cit., p.22. 39 Defoe, Daniel. Moll Flanders. “Venturas e desventuras da famosa Moll Flanders, etc., que nasceu em Newgate e, ao longo de uma vida de contínua variedade por sessenta anos, além da infância, foi por doze anos amante, cinco vezes esposa (uma vez de seu próprio irmão), doze anos uma ladra, oito anos uma degredada para a Virgínia, e por fim enriqueceu, viveu honestamente e morreu em penitência. Escrito a partir de suas próprias memórias.”

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dele. Ela fica viúva após alguns anos, e inicia uma seqüência de casos e

casamentos. Dentre os casamentos, destaca-se o episódio em que Moll se muda

para a América, apenas para descobrir que o seu novo marido é na realidade seu

meio-irmão. Seu próximo casamento é com um cavalheiro aparentemente

milionário de Lancashire, que logo se revela uma fraude – o suposto milionário é

tão pobre quanto ela, e eles decidem buscar suas fortunas separadamente. Moll se

casa então com um banqueiro, que morre poucos anos depois, deixando-a sem

perspectivas. A essa altura dos acontecimentos, perto dos cinqüenta anos de

idade, Moll já não acredita na possibilidade de um novo casamento. Após viver

alguns anos na pobreza, ela começa então a roubar, e logo se torna uma exímia,

ladra, uma lenda local. Por fim, ela é capturada e sentenciada à morte. Na prisão,

reencontra seu marido de Lancashire, que também havia sido capturado. Ambos

conseguem ter suas penas comutadas para o degredo nas colônias, onde

recomeçam a vida como donos de plantações. Na América, Moll reencontra seu

meio-irmão e demanda sua parte na herança deixada pela mãe. Próspera e

arrependida, ela retorna à Inglaterra com seu marido com a idade de setenta anos.

Por esse breve resumo, nota-se que a criminosa-narradora parece não

sofrer qualquer tipo de punição ao fim da história. Em sua velhice, arrependida

(ao menos em seu próprio ponto de vista) de seus maus-feitos, Moll usufrui de

todo o espólio acumulado ao longo de uma vida dedicada ao crime, e tem seu

final feliz. Bell aponta para uma certa indefinição nas noções de crime e vício – o

primeiro seria desculpado pela necessidade; o segundo, apagado pelo

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arrependimento40 – e, nesse sentido, ambos seriam negociáveis... Em seu prefácio

ao romance, Defoe se apresenta apenas como o editor da história narrada pela

famosa ‘heroína’ em pessoa, e procura mostrá-la como uma história de vida

exemplar, que ilustra e confirma o valor da penitência. A ironia, entretanto,

permeia a combinação de segurança financeira e amnésia moral que Moll

conquista no fim da vida. Nas palavras de Bell, Moll “lança mão da conveniente

idéia de arrependimento como o faria com qualquer bem de valor mal guardado”,

e formula a pergunta que remete à fragilidade do sistema penal da época: “e,

afinal de contas, por quê não?”41 Ainda de acordo com Bell, o crime, ao ser

mostrado de forma tão clara, mundana e imediata, tornou-se, para autores e

leitores como um todo, a característica literária que definiu a vida urbana da

época.42

Em seu estudo sobre a ótica feminina no romance policial, Sonia Coutinho

lembra que o romance gótico feminino do século XVIII também foi um

importante precursor do romance policial, pois “lidava com segredos e mistérios,

violência e medo, além de questionar, mesmo implicitamente, a posição das

mulheres na sociedade.”43 As chamadas ‘histórias de terror’ gozaram de imensa

popularidade – entraram em voga na Inglaterra com The Castle of Otranto

(1794), de Horace Walpole, e seguiram pelo século XIX adentro. Os romances

desse estilo transportavam seus leitores para ruínas de castelos misteriosos,

40 BELL, op.cit., p.10. 41 Ibid., p.10.. 42 Ibid., p.12. 43 COUTINHO, Sonia. Rainhas do Crime. p.18.

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assombrados por fantasmas – alguns temas têm pouco em comum com a ficção

detetivesca, porque apelam não para as faculdades lógicas do leitor, mas para o

seu medo do desconhecido, seu pânico do sobrenatural. Entretanto, a escritora

mais conhecida desse estilo, Ann Radcliffe, introduziu em seus romances duas

características que os relacionam indubitavelmente às histórias de detetives dos

séculos posteriores. Em romances como The romance of the forest (1791), The

mysteries of Udolpho (1794) e The Italian (1797), por exemplo, Radcliffe narra

as desventuras de heroínas que vagam por ruínas sombrias, repletas de passagens

secretas, e descobrem indicações de que vários crimes horríveis teriam sido

cometidos. Entretanto, ao contrário de outros autores do gênero, Radcliffe tem o

cuidado de oferecer, ao final da história, uma explicação razoavelmente lógica

para os enigmas criados em seus enredos – eventos aparentemente sobrenaturais,

quando investigados com inteligência, provavam ser devidos à atuação humana

ou a alguma coincidência natural. Além disso, em alguns romances as

explicações eram oferecidas por meio da conversa entre dois personagens, um

dos quais tem mais conhecimento do assunto, enquanto o outro, que se encontra

na mesma ignorância que o leitor e consumido pela curiosidade, faz perguntas até

que tudo seja esclarecido. Essa técnica foi utilizada de forma persistente quando

a ficção detetivesca começou a ser escrita (Sherlock Holmes e Watson vêm

imediatamente à mente), de modo que, embora não se possa dizer que Ann

Radcliffe tenha escrito alguma história de detetives, é certo que ela criou

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personagens que se assemelham ao herói-detetive, e seus romances deram passos

decisivos na direção da história de detetives como viria a se tornar conhecida.44

Voltando à literatura de crimes, vê-se que, no século XIX, esse gênero deu

origem a dois subgêneros: o romance de Newgate e o romance de sensação.

Ambos foram extremamente populares por um breve período de tempo – o

primeiro nas décadas de 1830 e 1840 e o segundo nos anos 1860. O romance de

Newgate esteve sempre associado exclusivamente a autores homens, enquanto o

romance de sensação incluía um bom número de autoras mulheres, o que levou a

importantes diferenças de ênfase nos dois subgêneros, além de respostas críticas

também distintas. Assim, além de serem narrativas envolventes e divertidas,

esses romances e as controvérsias que provocaram nos dizem muito a respeito

das ansiedades culturais e das mudanças sociais e literárias em dois pontos-chave

da época vitoriana.45

Os romances de Newgate gozaram de enorme popularidade no início dos

anos 1830 e provocaram um acirrado debate que se estendeu pelos anos 1840.

Eram obras que se voltavam para a literatura de crimes do século XVIII e

também para os processos radicais característicos do sistema judiciário e penal da

virada do século XVIII para o século XIX. Em sua maioria, tratava-se de

romances de crimes, e às vezes de romances históricos, que contavam as

aventuras e escapadas de criminosos corajosos e independentes, como os

lendários ladrões e salteadores do século XVIII, em um ambiente que variava de

44 MURCH, op.cit., p.27-29. 45 Cf. PYKETT, Lyn. The Newgate novel and sensation fiction, 1830-1868. p.19.

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castelos a tavernas, freqüentados por ladrões e outros habitués do submundo do

crime. Segundo seus críticos, essas narrativas romanceavam e glamurizavam o

crime e a vida no submundo, levando assim a uma maior solidariedade com os

criminosos do que com as vítimas do crime; os criminosos eram retratados como

alvos de perseguição, vítimas das circunstâncias e da sociedade.46

Embora os romances de Newgate tenham tirado seu nome, assim como

alguns de seus enredos e personagens, das várias versões do Newgate Calendar,

seus propósitos aparentavam ser diversos. O Newgate Calendar também buscava

satisfazer o fascínio popular pelo crime e pelos criminosos, ao compilar relatos

das vidas, julgamentos, confissões, punições e escapadas de criminosos célebres,

mas oferecia tais relatos ao público como obras de aperfeiçoamento moral, cujo

objetivo seria prover o exemplo necessário de punição aos criminosos, assim

como “registrar esses exemplos de modo a que os que fossem tentados pela

paixão de adquirir riqueza por meio da violência, ou estimulados pelo pecado da

vingança a derramar o sangue do seu semelhante, pudessem ter diante de si um

quadro dos tormentos mentais e dos sofrimentos físicos desses ofensores.”47 Lyn

Pykett considera, entretanto, que muito do apelo que o Newgate Calendar tinha

junto às massas advinha do modo como transformava em espetáculo o

comportamento socialmente transgressor e sua punição pública e violenta.48

A controvérsia a respeito do romance de Newgate tinha, portanto, um

cunho tanto literário quanto social. Era um debate sobre a natureza e o futuro do

46 Ibid., p.19-20. 47 Ibid., p.20. 48 Ibid., p.20.

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romance enquanto gênero literário, mas também uma resposta à inquietação e aos

levantes sociais na Inglaterra e no resto da Europa. Como seria possível associar

os ladrões e assassinos da ficção aos desordeiros e grevistas da vida real,

considerava-se que a romantização dos criminosos tornava o romance de

Newgate um inimigo da segurança pública.49

Um romance bastante conhecido, lido à época de seu lançamento como

um romance de Newgate, foi Oliver Twist, de Charles Dickens. Oliver Twist,

cuja mãe morreu logo após o parto, passa sua infância em um orfanato. Aos nove

anos, torna-se aprendiz de um agente funerário, mas o aprendizado dura pouco –

logo, outro aprendiz faz comentários ofensivos sobre sua mãe, e Oliver o ataca,

incorrendo na fúria do mestre. Ele resolve então fugir para Londres. Nas

cercanias de Londres, Oliver, já faminto e exausto, conhece Jack, um menino de

sua idade que lhe oferece abrigo na casa de seu benfeitor, Fagin, um criminoso

profissional que treina órfãos para que roubem para ele. Em sua primeira saída

com os outros meninos, entretanto, Oliver fica horrorizado ao vê-los roubar o

lenço de um senhor idoso, e foge, mas é capturado e por pouco não é condenado

pelo roubo. O senhor, Mr. Brownlow, leva Oliver para sua casa, perturbado pela

semelhança entre o menino e o retrato de uma moça na parede de sua casa. Pouco

depois, entretanto, Oliver é seqüestrado por Sikes e Nancy, membros da

quadrilha de Fagin, e levado de volta. Fagin envia Oliver para ajudar a Sikes em

um roubo. O menino leva um tiro de um empregado da casa, e, quando Sikes

49 Ibid., p.21.

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foge, é cuidado pelas mulheres que moram ali, a Sra. Maylie e sua sobrinha Rose.

Elas se afeiçoam a ele, mas Fagin e um homem misterioso chamado Monks estão

determinados a recapturá-lo. Nesse meio tempo, descobre-se que a mãe de Oliver

deixou um camafeu de ouro ao morrer, que Monks encontra e destrói. Quando a

Sra. Maylie e Rose vão a Londres, Nancy as encontra e revela os propósitos de

Fagin, mas um membro da quadrilha escuta a conversa. Quando Sikes descobre o

fato, ele mata Nancy e foge de Londres; entretanto, perseguido por uma multidão

enfurecida, inadvertidamente se enforca ao tentar escapar. O Sr. Brownlow então

confronta Monks e arranca dele a verdade sobre os pais de Oliver. Monks revela

que ele é o meio-irmão de Oliver. O pai de ambos era infeliz no casamento com

uma mulher rica, e teve um caso com a mãe de Oliver. Monks vinha perseguindo

o menino com a intenção de privá-lo do seu direito à parte da herança da família.

Além disso, descobre-se que Rose é a irmã mais nova da mãe de Oliver – sua tia,

portanto. Por fim, Fagin é preso e levado para Newgate. Lá, é condenado e

enforcado por seus crimes. O Sr. Brownlow adota Oliver e eles, assim como a

Sra. e a Srta. Maylie, deixam Londres e vão viver no campo.

Segundo Lyn Pykett, as credenciais de Oliver Twist como um romance de

Newgate são evidentes – trata-se da história de um órfão de filiação misteriosa,

criado no submundo e treinado como criminoso, e da luta entre o mundo do

crime e o da respeitabilidade pela sua guarda.50 Dickens retirou seus tipos e cenas

criminais em parte da literatura de Newgate, em parte de suas próprias

50 Ibid., p.27.

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observações, e também dos relatórios policiais e artigos de jornais da época sobre

o crime juvenil. Mas, como outros romancistas de Newgate, também ele foi

acusado de representar os criminosos em uma luz favorável demais. Pykett

lembra que os críticos da ficção de Newgate deploravam a mistura de

personagens das altas camadas da sociedade com os das baixas camadas, assim

como a combinação de características das altas e baixas camadas em um único

personagem. Também faziam objeções aos motivos e à moralidade apresentados,

por considerá-los misturados, preferindo a segurança de um universo moral em

que o bom e o mau, o criminoso e o observador da lei fossem prontamente

identificados como tais. Do mesmo modo, gêneros e modos de representação

mistos também eram vistos com desconfiança.51

O outro subgênero derivado da literatura de crimes do século XVIII foi o

chamado romance de sensação. Um dos fatores para a criação de um mercado

para esse tipo de romance foi o crescimento dos jornais baratos que se seguiu à

abolição do imposto sobre os selos nos jornais em 1855. O romance de sensação

baseava seus enredos principalmente em crimes da vida real, conforme relatados

nos jornais da época, e não no Newgate Calendar. Esses enredos se inspiravam

em casos famosos de assassinatos, divórcios por bigamia ou adultério, escândalos

envolvendo internação por engano em hospícios, e o grande mal social da

prostituição.52 Assim como o romance de Newgate, o romance de sensação era

um construto jornalístico, um rótulo anexado a romances cujos enredos lidassem

51 Ibid., p.28;30. 52 Ibid., p.32-33.

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com feitos criminosos, transgressões sociais ou paixões ilícitas. Alguns temas

caros a esses romances eram bigamia, adultério, sedução, fraude, falsificação,

chantagem, seqüestro e, às vezes, assassinato. O romance de sensação, portanto,

não mostrava o submundo do crime, e sim explorava o lado sombrio da

sociedade respeitável. Dado o estabelecimento do espaço burguês no século XIX,

“no romance de sensação era mais provável que a cena de um crime fosse a casa

do que a rua, a sala de visitas em vez da taberna.”53

Note-se que a cena do crime se transfere da rua (espaço público) para a

casa (espaço privado) no momento em que as grandes cidades já estão

estabelecidas como tais. Ao longo do século XIX, por conta das mudanças nos

sistemas de produção, como o cercamento dos campos, que levou a uma grande

migração da população rural para as cidades, e o estabelecimento da indústria, as

zonas urbanas de centros como Londres e Paris tornaram-se superpovoadas.

Essas cidades mantinham praticamente o mesmo traçado arquitetônico desde a

Idade Média, mas com o aumento expressivo da população, surgiram também

problemas graves como a falta de moradia, o aumento da criminalidade e a

disseminação de doenças. Tomando-se Paris como exemplo, vê-se que a cidade

precisava de reformas urgentes que ampliassem seus limites medievais,

melhorassem as condições de vida da população e controlassem as epidemias –

ou seja, que a transformassem em um centro urbano bem-organizado e moderno.

Assim, Napoleão III nomeou o Barão Georges-Eugène Haussmann para

53 Ibid., p.34.

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comandar o projeto de urbanização da cidade, com o planejamento de novas vias,

a abertura dos boulevards, a criação de parques e monumentos públicos, assim

como a instalação da rede de esgotos e mudanças na fachada arquitetônica da

cidade.54 Paris tornou-se, de certa forma, a cidade-símbolo da modernidade.55

Fig.1 – Os boulevards abertos a partir da Place de L’Étoile na reforma de Haussman. 56

54 Cf. Haussmann's Paris – The Art History Archive – Architecture. 55 A urbanização de Paris foi assistida de perto por Francisco Pereira Passos, que estudou na França de 1857 a 1860 e viria a ser prefeito do Rio de Janeiro de 1902 a 1906. Na época, o Rio de Janeiro passava por problemas sociais muito graves, decorrentes de seu rápido e desordenado crescimento, alavancado pela imigração européia e pela transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Quando Pereira Passos assumiu a prefeitura da cidade, o Rio de Janeiro, com sua estrutura de cidade colonial, já possuía quase um milhão de habitantes, mas não contava com sistemas de transporte, abastecimento e escoamento de água, programas de saúde e segurança. Influenciado pela temporada parisiense, Pereira Passos promoveu uma grande reforma urbana, o período conhecido como “Bota-abaixo” – saneou, estendeu, corrigiu e ampliou o arruamento, inaugurou o calçamento asfáltico, demoliu morros, criou novas avenidas, rasgou outras, como a Mém de Sá, Salvador de Sá e Beira-Mar. Para sanear e higienizar a cidade, canalizou os rios Carioca e Maracanã. Arborizou diversas áreas e realizou obras de embelezamento na Praça XV, Largo do Machado, Passeio Público e outras. Transformou o Rio de Janeiro numa cidade moderna, condizente com os valores das elites dirigentes da época., a fim de atrair capital estrangeiro e dar ao Rio de Janeiro ares de cidade moderna e cosmopolita. [Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos <http://www.rio.rj.gov.br/ipp>] 56 Fonte: http://www.arthistoryarchive.com/arthistory/architecture/Haussmanns-Architectural-Paris.html

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Fig.2 – Principais vias criadas ou transformadas entre 1850 e 1870 no centro de Paris.57

Portanto, em meados do século XIX, cidades do porte de Paris, Londres e

Nova York já eram metrópoles, espaços habitados por multidões, e assim,

propícios ao anonimato. Essa questão é bem ilustrada no conto de Edgar Allan

Poe “The Man of the Crowd”58, no qual o narrador, sentado em um café em

Londres, observa o ir e vir da multidão do lado de fora. Através da janela, ele

descortina todo o panorama humano da metrópole – de homens de negócios a

jogadores e prostitutas – até que um transeunte em especial lhe chama a atenção.

O narrador levanta-se do café e decide seguir o homem, a fim de tentar desvendar

sua identidade. Mas este caminha por toda Londres ao longo da noite e de parte

57 Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Haussmann%27s_renovation_of_Paris#References 58 POE, Edgar Allan. Tales of mystery and imagination.

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do dia seguinte, quando, por fim, retorna ao ponto de partida, onde o narrador,

exausto, percebe que de nada vale seguir o homem, uma vez que é incapaz de

delinear a identidade do desconhecido frente à multidão na qual se insere. Em

uma das muitas possíveis leituras do conto, Walter Benjamin vê o desconhecido

como o flâneur, e a multidão como o ‘esconderijo’ perfeito para ele.59 O cenário

do conto é Londres, a metrópole mais populosa da época, na qual toda sorte de

pessoas se abriga – essas condições, tão favoráveis ao anonimato, pareciam

convidar ao crime e à perversão. A impressão que o narrador tem do homem ao

encará-lo no final do conto é a de que ele teria cometido um crime tão horrível

que o tornaria indevassável ao olhar ‘detetivesco’. Mas teria mesmo o homem

cometido um crime de fato? Não seria o seu crime apenas o desprendimento com

que o flâneur se deixa levar pelo ritmo da cidade, envolto por seus cheiros, sons e

cores, abraçando o fato de que a modernidade transformaria o mundo e as

relações sociais de forma irreversível?

Segundo Benjamin, a burguesia da época se empenhava em buscar uma

compensação pelo desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade

grande – e a buscava entre as quatro paredes de casa.60 Desse modo, um gênero

literário que se propusesse a trabalhar com os crimes e trangressões das classes

mais abastadas teria como cenário mais verossímil o espaço privado; por outro

lado, nada seria mais indicado para causar ‘sensação’ do que ver esse mesmo

59 Cf. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. [1994a]. p.45-46. 60 BENJAMIN [1994a], op.cit., p.43.

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espaço, supostamente seguro, invadido pelos crimes e trangressões

aparentemente próprios do espaço público.61

Uma das diferenças mais importantes entre a literatura de sensação e o

romance de Newgate foi a mudança de foco do crime para a detecção. Pykett

explica que essa mudança de ênfase pode estar relacionada a mudanças nas

formas de policiamento em meados do século XIX e ao desenvolvimento, no

rastro das leis de divórcio, de um exército de detetives particulares empenhados

em descobrir segredos familiares. Do mesmo modo, pode também se dever a uma

mudança no significado cultural do crime e do criminoso, a uma passagem de

uma sociedade manipulada pelo espetáculo da punição para uma moralmente

controlada pela disciplina. O crime deixa de ser visto como um mundo à parte, e

torna-se parte integrante do mundo respeitável – um mundo no qual todos eram

criminosos em potencial era um mundo de suspeita universal, no qual ou se

desempenhava o papel de detetive ou de suspeito. O romance de sensação era,

assim, uma forma de articular e lidar com a suspeita universal sobre a qual a

sociedade urbana moderna estava fundamentada.62

61 Seria interessante refletir um pouco a respeito da semelhança que esse quadro guarda com a situação das classes média e alta nas grandes cidades brasileiras dos nossos dias, que também buscam no espaço privado um refúgio contra a violência e a miséria que habitam o espaço da rua – daí, por exemplo, a popularização do cocooning (em uma tradução literal, encasulamento), o hábito de ficar em casa nos momentos de lazer, na companhia da família e dos amigos. Também aqui se percebe a necessidade de proteger o espaço privado contra os crimes e transgressões do espaço público – desta vez com grades, fechaduras e vidros blindados. Além disso, vale mencionar que, ao tomar esta atitude, as pessoas das classes abastadas estão, também, fugindo da ‘mistura’ que o espaço público passou a representar, não só por medo, mas temendo serem identificadas com esse espaço. 62 PYKETT, op.cit., p.34-35.

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Em 1975, Michel Foucault trabalhou o conceito de “sociedade

disciplinar”63, a partir do modelo do panóptico, desenvolvido por Jeremy

Bentham em 178564. O panóptico é um modelo de prisão estruturado da seguinte

maneira: há uma contrução periférica em forma de anel, na qual estão dispostas

as celas, e uma torre central, cujas janelas se abrem para o interior do anel. Cada

uma das celas tem duas janelas – uma interna, voltada para a torre, e uma

externa, por onde entra a luz, que atravessa as celas de lado a lado.65 Como a torre

central oferece uma visão perfeita de todas as celas ao mesmo tempo, basta que

se tenha um único guarda para que, pelo efeito da contraluz, ele possa perceber as

silhuetas dos prisioneiros e, sozinho, vigiar a todos. Além disso, como os presos

não vêem o guarda, a princípio poderia nem mesmo haver alguém na torre – mais

importante do que “ser vigiado” passa a ser “saber-se vigiado”.

Fig.3 – O panóptico66 Fig.4 – A planta do panóptico (Bentham)67

63 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.p.173-199. 64 Cf. BENTHAM, Jeremy. The panopticon writings. 65 Ver figuras 3 e 4. 66 Fonte: http://kairosamerica.org/php_uploads/wordpress/2006/08/06/panopticon

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Nas palavras de Foucault:

Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho,

perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico

organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer

imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas

três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e

suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor

que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.68

O panóptico permitiria a visibilidade completa e, portanto, controle total

sobre os prisioneiros – ao “induzir no detento um estado consciente e permanente

de visibilidade [...] assegura um funcionamento automático do poder.”69 Por esse

motivo, foi escolhido por Foucault como símbolo da sociedade disciplinar – um

sistema de controle social levado a cabo por meio de técnicas de classificação,

seleção, vigilância e controle, e justificado pela necessidade burguesa de

controlar as massas de forma mais eficaz, evitando que se rebelassem contra o

poder estabelecido. Ao longo do século XVIII, a burguesia tornou-se a classe

politicamente dominante, em um processo histórico vinculado ao

estabelecimento de um quadro jurídico formalmente igualitário e à organização

de um regime político representativo; por outro lado, “o desenvolvimento e a

67 Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Panopticon 68 FOUCAULT, op.cit., p.177. Grifo meu. 69 Ibid., p.177.

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generalização dos dispositivos disciplinares constituíram a outra vertente,

obscura, desse processo.”70

Desse modo, em concordância com Foucault, Pykett argumenta que a

sociedade na qual o romance de sensação surgiu e se desenvolveu era uma

sociedade de vigilância, na qual os cidadãos aprendiam a policiar a si mesmos e

aos outros.71

Assim como os romances de Newgate, os romances de sensação eram

vistos por muitos críticos da época tanto como um sintoma quanto como uma

causa de corrupção social. Esse contexto, aliado ao fato de que o Código

Sangrento havia sido abolido no início do século XIX, diminuindo a severidade

das punições, levou à necessidade de que a confiança em sua administração

aumentasse. Foi nesse contexto ideológico, como lembra Ian Bell, que o herói-

detetive encontrou as precondições necessárias para o seu nascimento.72

Condições para o surgimento do romance policial

Foi somente no século XIX, portanto, que se reuniram determinadas

características que possibilitaram o aparecimento da narrativa policial. Sandra

Reimão propõe uma lista de cinco condições fundamentais que abriram caminho

70 Ibid., p.194. 71 Não cabem no recorte desta tese maiores questionamentos e inferências a respeito das sociedades de vigilância; entretanto, remeto o leitor interessado no assunto à dissertação de mestrado de Vanessa Cianconi Vianna Nogueira, As bruxas como desculpa: The Crucible e as práticas ‘preventivas’ de vigilância na sociedade estadunidense contemporânea, em especial o cap.3, “A relação entre puritanismo e vigilância: a vida na casa de vidro.” 72 BELL, op.cit., p.16.

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para o romance policial, que serão utilizadas aqui como guia para entretecer um

diálogo com críticos e teóricos como Ben Singer, Tom Gunning, Walter

Benjamin e outros. Tais condições foram:

1. A popularização da imprensa;

2. O estabelecimento das cidades industriais;

3. O surgimento da polícia;

4. A transformação do criminoso em um inimigo público;

5. O advento do positivismo.73

Embora tenha sido inventada séculos antes, foi apenas no século XIX que

a imprensa foi popularizada e a tiragem de jornais atingiu números expressivos,

com a difusão do hábito de sua leitura cotidiana. Nasce o interesse pelo fait

divers – dramas individuais, crimes raros e outros tipos de narrativas que atraem

o leitor e geram um certo prazer mórbido que o convida à prática regular desse

tipo de leitura.74

Em seu ensaio “O que é o fait divers? Considerações a partir de Roland

Barthes”, Ana Alencar cita a definição do Grand Dictionnaire Universel, que

reproduzo abaixo:

Sob essa rubrica, os jornais agrupam com certa arte e publicam regularmente

todo tipo de notícias que correm pelo mundo: pequenos escândalos, acidentes de

73 REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. [1983] p.12-16. 74 Para um estudo mais aprofundado do fait divers, remeto o leitor ao ensaio fundamental de Roland Barthes, “Estrutura da notícia”.

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carros, crimes horrendos, suicídios por amor, pedreiro caído do quinto andar,

assaltos, chuvas de gafanhotos ou de sapos, naufrágios, incêndios, inundações,

aventuras burlescas, seqüestros misteriosos, execuções fatais, casos de

hidrofobia, de antropofagia, de sonambulismo, de letargia [...] 75

O fait divers, portanto, é um rótulo que abriga tudo o que é considerado

inominável, monstruoso, incompreensível, que provoca incômodo e horror.

Ainda segundo Ana Alencar, “suspenso entre o racional e o desconhecido, o

explicável e o ininteligível, o fait divers introduz sempre um espanto, pois toda

causalidade é minada por forças que lhe escapam.”76 Trata-se de uma narrativa

auto-suficiente, fechada em si própria, que expõe ao leitor ‘acontecimentos’ que

outros tipos de notícia mantêm no campo da invisibilidade, mas sem a

preocupação de oferecer uma explicação lógica e racional para eles; além disso,

nesses relatos normalmente a esfera pública se mistura à esfera privada – desses

fatores talvez advenham o gosto e o fascínio do público.

Marlyse Meyer aponta uma proximidade entre o fait divers e o romance-

folhetim, no sentido de que ambos lidam com temas considerados de ‘mau

gosto’, e se caracterizam pela redundância e pelo excesso:

Gêneros do excesso também porque, se a época é a dos grandes enquadramentos

na usina, no lar, na escola, o que não se consegue trancar é a exteriorização dos

grandes sentimentos, dos grandes sofrimentos, das paixões avassaladoras, que

levam ao crime até, infinitamente repetidas na mesmice do fait divers e nas

75 ALENCAR, Ana Maria de. O que é o fait divers. 76 Ibid.

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seqüências do folhetim-romance: ódio, paixão, ciúme, desejo, ganância,

ambição, fome, morte, luxúria, loucura.

A invenção ocorre por conta do labirinto do enredo, redundante, repetitivo,

previsível no retorno de temas, situações, coincidências, mas sempre

imprevisível na sua sucessão, no suspense, no nascido do hábil entremear das

narrativas paralelas, que o tornam sempre – até hoje para os maníacos do gênero

– um objeto palatável.

Excesso, redundância, mau gosto, vulgaridade, dirão ‘os finos’, mas nem por

isso esse folhetim deixa de remeter a seu modo [...] ao cotidiano de uma época

que, não se sabe bem por quê, se chamou Belle Époque, desmitificada talvez

por esta ficção que não era digna de ser exibida nas vitrines resplandecentes dos

grands magasins. 77 78

Em seu ensaio sobre o início do sensacionalismo popular, Ben Singer

discorre sobre o modo como os jornais exploravam os terrores da cidade grande:

Jornais sensacionalistas tinham uma predileção particular por imagens de

‘instantâneo’ de mortes de pedestres. Essa fixação ressaltava a idéia de uma

esfera pública radicalmente alterada, definida pelo acaso, pelo perigo e por

impressões chocantes mais do que por qualquer concepção tradicional de

segurança, continuidade e destino autocontrolado. A morte não-natural,

desnecessário dizer, também havia sido uma fonte de medo nos tempos pré-

modernos (em particular com relação a desastres epidêmicos e naturais e a falta

de alimentos), mas a violência, o caráter repentino e aleatório (e, em certo

sentido, a publicidade humilhante), da morte acidental na metrópole parecem ter

intensificado e focalizado esse medo.79

77 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história, p.233-234. 78 É pertinente atentar para o fato de que, no Brasil, essa intimidade entre o fait divers e o folhetim encontrou seu expoente máximo em Nelson Rodrigues. Tendo trabalhado como jornalista, teve sua obra ficcional influenciada por suas experiências nas redações de jornais e acabou por absorver certas características mais marcantes da prática jornalística em suas peças, folhetins, contos e crônicas. Para um estudo detalhado do assunto, remeto o leitor interessado à tese de doutorado de Marcos Pedrosa de Souza, Nelson Rodrigues: inventário ilustrado e recepção crítica comentada dos escritos do anjo pornográfico. 79 SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. p.103;106.

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Embora no trecho acima Singer se refira particularmente a mortes

acidentais, quase sempre causadas pelo trânsito, outros tipos de histórias pessoais

eram tratadas de forma semelhante, devido ao fato de que “o sensacionalismo

grotesco vendia jornais.”80 Singer aponta, entretanto, que esse sucesso da

imprensa sensacionalista denota mais do que “simples manifestações de

curiosidade mórbida e oportunismo econômico [e] parece comunicar uma

hiperconsciência especificamente histórica da vulnerabilidade física no ambiente

moderno.”81 Segundo Reimão, esses jornais abrem caminho para o

desenvolvimento de outras narrativas que lidam com elementos semelhantes aos

encontrados nos jornais populares, como o romance policial.82

Em segundo lugar, dá-se o estabelecimento das cidades industriais, o

cenário onde habita esse público dos novos jornais de grande tiragem. As cidades

serão o cenário mais freqüente dos crimes e suas respectivas investigações – suas

fachadas, multidões humanas e labirintos de ruas serão, freqüentemente,

personagens das narrativas policiais.83 A cidade torna-se um elemento recorrente

nessas narrativas e deixa sua marca até hoje, nos romances policiais

contemporâneos.

80 Ibid., p.106. 81 Ibid., p.106.. 82 REIMÃO [1983], op.cit., p.13. 83 Ibid., p.13.

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Antes da era industrial, as cidades já eram lugares movimentados; nunca,

porém, haviam sido tão movimentadas quanto se tornaram na segunda metade do

século XIX. Singer define o impacto dessa transformação sobre o indivíduo

urbano como “um bombardeio de estímulos.”84, fornecendo/oferecendo um

quadro bastante ilustrativo do que passou a ser a vida nas cidades da era

industrial:

A modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que

era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as

fases anteriores da cultura humana. Em meio à turbulência sem precedentes do

tráfego, barulho, painéis, sinais de trânsito, multidões que se acotovelam,

vitrines e anúncios de cidade grande, o indivíduo defrontou-se com uma nova

intensidade de estimulação sensorial. A metrópole sujeitou o indivíduo a um

bombardeio de impressões, choques e sobressaltos. O ritmo de vida também se

tornou mais frenético, acelerado pelas novas formas de transporte rápido, pelos

horários prementes do capitalismo moderno e pela velocidade sempre acelerada

da linha de montagem.

[...]

O súbito aumento da população urbana [...], a intensificação da atividade

comercial, a proliferação dos sinais e a nova densidade e complexidade no

trânsito das ruas [...] tornaram a cidade um ambiente muito mais abarrotado,

caótico e estimulante do que jamais havia sido no passado.85

O romance policial surge como gênero em meio a essa experiência da

modernidade. De acordo com Tom Gunning,

84 SINGER, op.cit., p.96. 85 Ibid., p.106.

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[O] romance policial configura duas posições nesse drama dialético da

modernidade: o criminoso, que vive à custa da complexidade do sistema de

circulação, e o detetive, cuja inteligência, conhecimento e perspicácia lhe

permitem descobrir os pontos obscuros do sistema de circulação, desvendar

crimes e restabelecer a ordem.86

Para Walter Benjamin, a origem do romance policial moderno está situada

na transformação dinâmica da identidade, na obliteração dos traços do indivíduo

na multidão da cidade grande, só permitida pelo ambiente moderno. No espaço

da cidade, tão propício à flânerie, a figura do flâneur permite antever a do

detetive – o flâneur aparentava indolência quando de fato ocultava a intensa

vigilância de um observador que não perde de vista o malfeitor.87 Como logo

faria o detetive, o flâneur usufrui da sua condição de estar incógnito na multidão

– seu olho aberto e seu ouvido atento procuram algo diferente daquilo que a

multidão vem ver.88

Também é nesse século que surge a polícia do modo que a concebemos

hoje. Na França do início do século XIX, os policiais eram recrutados entre os

ex-condenados, que conheciam na prática o mundo dos crimes e os investigavam

por meio da convivência com os próprios criminosos.

Mais uma vez citando o estudo de Alma Murch sobre o desenvolvimento

do romance policial, tem-se que um fato muito importante para a criação da

86 GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. p.39. 87 BENJAMIN [1994a], op.cit., p.219. 88 Ibid., p.233.

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própria profissão de detetive foi a publicação, na Paris de 1828, do primeiro

volume das Memórias de Eugène François Vidocq, o primeiro detetive

profissional da vida real, narrando suas sensacionais caçadas praticamente

solitárias a perigosos bandidos. A imaginação do público foi logo capturada pela

carreira fenomenal desse ex-condenado que se tornou um detetive e fundou a

Sûreté. Embora o povo francês da época não gostasse de sua polícia, o interesse

pelas histórias de Vidocq provocou, conseqüentemente, o interesse pelos

processos de detecção.89

Vidocq, após uma juventude mal aproveitada e uma curta carreira militar,

foi preso com a idade de vinte e um anos, e fez de tudo para escapar. Pelos dez

anos seguintes, com freqüência foi preso ou recapturado, mas sempre conseguiu

escapar novamente, criando então familiaridade tanto com os condenados e a

vida na prisão quanto com os métodos e a organização da polícia. Em um dos

seus períodos de liberdade, ele teve a ousadia de procurar o Chefe do

Departamento Criminal da Polícia de Paris, e ofereceu seus serviços como agente

secreto. Seus préstimos foram aceitos, e logo ele mostrou uma capacidade

brilhante para o seu novo papel.90

Não é de surpreender que Vidocq tenha encontrado uma oposição ferrenha

por parte da polícia regular, que se ressentia da sua presença em seus distritos. A

polícia se indignava principalmente com o fato de um ex-condenado, fugitivo,

89 Cf. MURCH, op.cit., p.42. 90 Ibid., p.42. É interessante perceber que esse recurso de utilizar antigos criminosos no combate à própria atividade criminal está presente ainda no mundo contemporâneo, quando grandes empresas contratam hackers para desenvolver sistemas de segurança que garantam que seus computadores serão invulneráveis às invasões de outros hackers...

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que não havia recebido perdão oficial, tivesse o status de um agente de alto

gabarito, com poder para efetuar prisões e conduzir inquéritos por sua própria

responsabilidade.91 Suas Memórias ofereciam relatos detalhados de como Vidocq

conduzia suas investigações. Sua completa familiaridade com a linguagem dos

criminosos, seus códigos, seu estilo de vida e até seus processos mentais o

capacitavam a empreender suas buscas sem levantar suspeitas, quase sempre sob

o disfarce de um condenado que acabara de fugir, e assim ganhar a confiança

daqueles a quem perseguia. As incontáveis histórias da sua prática detetivesca,

muitas delas certamente fictícias, e aumentadas pelos sucessivos ‘editores’ das

registros de Vidocq, seguem mais ou menos o mesmo padrão: o estabelecimento

do caso; a explicação dos motivos para cada ação ou dedução; o passo-a-passo da

perseguição aos criminosos; e o registro da prisão.92

A personalidade de Vidocq e seu sucesso na profissão que criou deram ao

público em geral uma clara concepção do ‘detetive ideal’ – de onde muitos

detetives da ficção herdaram suas características, como grande força física,

paciência e resistência, talento para o disfarce e uma intuição da mentalidade

criminosa, assim como sua reputação de sucesso garantido e momentos

dramáticos de triunfo pessoal. Outra herança de Vidocq é a premissa geral, por

vezes expressa na ficção detetivesca, de que a polícia é inepta, ineficiente e

91 Ibid., p.43. 92 Ibid., p.43..

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ressentida do mérito do amador talentoso, sem cuja ajuda ela dificilmente

conduziria uma investigação a termo com sucesso.93

Lembra Sandra Reimão, entretanto, que, se a princípio a população das

cidades aceita bem a polícia, logo essa aceitação cede lugar à desconfiança e à

insatisfação. Em suas palavras, “para as novas, instáveis e perplexas classes

médias, era tênue demais o limite entre um contraventor e um ex-contraventor.”94

Assim, é interessante notar que não há entre os primeiros grandes detetives da

ficção nenhum policial.

Um outro fator importante foi que o criminoso passou a ser visto como um

inimigo público, social. Ainda de acordo com Sandra Reimão, até a Idade Média

(com exceção do Direito Romano), o crime era apenas um delito entre

indivíduos, que podia ser resolvido por meio de negociações e acordos entre as

partes envolvidas. Com o surgimento do sistema judiciário, o crime torna-se

público, e passa a ser uma infração às leis do Estado – desse modo, passou-se a

considerar que o criminoso prejudicava não apenas os indivíduos diretamente

atingidos por suas ações, mas a sociedade como um todo.95

Como já foi anteriormente mencionado neste ensaio96, o modo de se lidar

com o crime mudou bastante entre os séculos XVIII e XIX. Se até o século XVIII

não havia um sistema confiável de policiamento ou de detecção rotineira de

93 Ibid., p.45-46. 94 REIMÃO [1983], op.cit., p.14. 95 Ibid., p.15-16. 96 Ver p.17-18.

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criminosos, nem se acreditava que isso fosse possível ou necessário, a partir do

século XIX, com a abolição do Código Sangrento, as punições tornaram-se mais

brandas, e assim, passou a ser importante garantir a eficácia da sua aplicação.

Volto mais uma vez a Ian Bell, que ressalta a importância desse contexto

ideológico para o surgimento do herói-detetive.97

Por fim, o advento do positivismo teve um papel crucial no

desenvolvimento das histórias de detetives. Seu conceito básico era que todos os

fenômenos do universo, inclusive o espírito humano, são regidos por leis, o que

levou à crença de que, uma vez dominados os princípios da mecânica mental,

seria possível desvendar a cadeia de idéias de cada ser humano.98 O positivismo

considerava que o único conhecimento legítimo era o que se encontrava nas

ciências naturais, baseado na observação, experimentação e utilização de

conceitos matemáticos. Assim, para produzir conhecimento, a ciência deveria se

fundamentar nas evidências e na dedução lógica a partir dessas evidências.

As técnicas de utilização desse método científico foram amplamente

aproveitadas pelos primeiros detetives. Aos poucos, observou-se que, apesar do

crescimento das cidades, o anonimato que elas propiciavam eram relativo, já que

ninguém se deslocava sem deixar rastros – ou seja, o criminoso sempre deixava

pistas, que o detetive coletava e organizava em uma cadeia lógica de idéias.

97 Cf. BELL, op.cit., p.16. 98 REIMÃO [1983], op.cit., p.15.

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A doutrina positivista foi, portanto, um fator determinante para que, a

princípio, o romance policial surgisse sob a forma do romance de enigma, ainda

hoje a sua forma mais difundida. Esse tipo de narrativa, como diz o nome, parte

sempre de um enigma e se alimenta da busca de uma solução que o esclareça.

Uma vez desvendado o mistério, a narrativa tem fim.99

Um detetive em Paris: surge o Chevalier Dupin

Como foi visto até aqui, o gênero policial tem suas origens na literatura de

língua inglesa. Surgiu a partir de um desdobramento do romance de aventuras, e

foi alimentado também por canções e narrativas sobre os feitos de bandoleiros

como Robin Hood. Do século XVIII em diante, começou a tomar a forma de

literatura de crimes, com a publicação dos volumes do Newgate Calendar, e a

seguir, com o advento dos romances de Newgate, os romances góticos e os

romances de sensação.

Considera-se, entretanto, que o pai da narrativa policial clássica veio do

outro lado do Atlântico: Edgar Allan Poe escreveu os três contos nos quais figura

o Chevalier Auguste Dupin. Esses contos – “The Murders in the rue Morgue”

(1841), “The Mystery of Marie Rogêt” (1842) e “The Purloined Letter” (1845) –

são considerados os fundadores da narrativa policial clássica, e tornaram o

Chevalier Dupin o primeiro herói-detetive da ficção policial. Ele protagoniza os

99 Ibid., p.11.

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três contos, e o enredo de cada um é desenvolvido de modo a exibir seus poderes

de observação e dedução. O aparecimento desse detetive-protagonista distingue

os contos de Poe das narrativas de mistério que vieram antes.

Dupin é um recluso que, em seus momentos de lazer, discute com um

amigo, o narrador dos contos, os meios pelos quais o raciocínio analítico pode ser

aplicado a problemas de ordem prática, como, por exemplo, certos crimes

cometidos em Paris.100 A esse respeito, Alma Murch questiona se Poe não teria

escolhido Paris como o cenário para os contos de Dupin por haver uma grande

afinidade entre a França e a aplicação do raciocínio cartesiano para a detecção do

crime, o que ela considera um detalhe instigante, uma vez que nenhuma narrativa

policial havia sido produzida na França até então.101 Considerando-se, entretanto,

o fato de que a França é o berço do Positivismo e que Poe sempre dedicou um

imenso cuidado à escolha dos cenários para seus contos, não seria tão arriscado

concluir, raciocinando à moda de Dupin, que essa ‘afinidade’ teria sido, sim, ao

menos um dos seus motivos. Além disso, há que se considerar que os franceses

foram os primeiros apaixonados por Poe – Baudelaire foi seu tradutor, e

incorporou versos inteiros de Poe a sua própria poesia.

Murch aponta que é grande a possibilidade de que Poe tenha lido as

Memórias de Vidocq, por conta de um comentário em especial feito em “The

murders in the rue Morgue”: “Vidocq era um bom adivinho e um homem

100 Cf. MURCH, op.cit., p.67-68. 101 MURCH, op.cit., p.68.

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perseverante. Mas, sem um pensamento educado, ele errava continuamente.”102

Assim é que, em completo contraste com Vidocq, Poe cria o Chevalier Auguste

Dupin – um detetive que tivesse a vantagem de uma educação sólida seria ainda

mais bem sucedido... Dupin é um homem culto, familiarizado com a literatura

clássica e igualmente à vontade quando discute química, antropologia ou álgebra

com seu amigo anônimo, o já mencionado narrador dos contos, que,

humildemente ofuscado pelo brilho da capacidade intelectual de Dupin, lhe serve

de contraponto, como faria o Dr. Watson, anos mais tarde, em relação a Sherlock

Holmes, e o Capitão Hastings em relação a Hercule Poirot. Entretanto, Poe não

oferece nenhuma descrição física de Dupin – afinal, o leitor não deveria se

interessar por sua aparência, e sim por seus processos mentais, pela sua brilhante

mente analítica.103

Sandra Reimão considera Dupin uma “máquina de raciocinar”, um

personagem que não chega jamais a ser delineado de forma complexa, a

expressão máxima das idéias positivistas de “rigor nos raciocínios como um

instrumento preciso para desvendar a aparentemente inexplicável lógica das

ações e motivações humanas”.104 Ele é o pioneiro entre os detetives amadores,

que não fazem parte da força policial, para os quais investigar não é uma

atividade profissional, mas um hobby ou até mesmo um ímpeto, uma necessidade

de solucionar os quebra-cabeças. Baseando-se no Positivismo para fazer

inferências a respeito das mentes dos criminosos, ele se opõe aos policiais ex-

102 Ibid., p.68. 103 Ibid., p.70. 104 REIMÃO [1983], op.cit., p.21.

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condenados e seus métodos empíricos de investigação e resolve intrincados

mistérios sem sair de sua poltrona.105 De certa forma, como lembra Murch, a

‘inveja’ que o chefe de polícia nutre por Dupin, assim como a baixa opinião deste

sobre a inteligência da polícia, refletem a rivalidade entre Vidocq e a polícia

francesa da época – mais tarde, entretanto, principalmente a partir de Sherlock

Holmes, essa capacidade do detetive amador de brilhar mais do que a polícia

viria a se tornar um padrão.106

Outra característica que inicialmente chamou a atenção nos contos

protagonizados por Dupin, mas logo se tornou bastante comum na ficção policial,

foi a própria serialização, a técnica de construir diferentes histórias girando em

torno de um mesmo detetive, seu cronista / admirador e, por vezes, também um

oficial de polícia. Após o sucesso inicial de “The Murders in the rue Morgue”,

Poe dá continuidade às proezas investigativas de Dupin em “The Mystery of

Marie Rôget”, um conto completamente diferente do anterior, mas cujo subtítulo

é “A Sequel to the Murders in the rue Morgue”, o que deixa claro que o tema

essencial de ambos os contos é o raciocínio analítico de Dupin – o único ponto de

105 Dentre os ‘herdeiros’ do estilo de Dupin, destaco Nero Wolfe, o detetive criado por Rex Stout. Criado nos anos 30, Wolfe é o típico armchair detective (detetive de poltrona) – um homem excêntrico e extremamente inteligente, que raramente sai de sua town house novaiorquina, onde se dedica ao passatempo de cuidar de orquídeas. Obeso e sedentário, é um grande apreciador de cerveja e da boa gastronomia, contando mesmo com um chef ao seu dispor. Suas histórias são narradas por seu assistente / investigador / segurança Archie Goodwin – este, sim, mais semelhante ao P.I. (private investigator ou investigador particular) da época. Cf. HILLIARD, Don B. & SMITH, Kevin Burton. The thrilling detective – Nero Wolfe and Archie Goodwin. 106 MURCH, op.cit., p.72.

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conexão entre os dois contos é a sua presença, e os outros personagens servem

apenas para criar situações e problemas que ele deverá solucionar.107

Cabe fazer aqui uma breve digressão para lembrar que, hoje em dia, as

estratégias de marketing são, em grande parte, responsáveis pela serialização dos

romances policiais. Muitos autores continuam as histórias de seus detetives por

diversos volumes, mantendo um conjunto de personagens e o próprio cenário,

que se tornam tão familiares para o leitor quanto os personagens dos folhetins

publicados nos jornais do passado ou das telenovelas de hoje. Às vezes, um autor

que preferiria contar sua história em um único livro se vê pressionado pela

editora ou mesmo pelo público a dar seqüência às aventuras dos seus

personagens. A serialização, ou seja, o aparecimento de um certo detetive em

diversos volumes, resolvendo um caso após o outro, contribui para a formação de

um público fiel, que se encarregará de divulgar o autor e seu detetive por meio de

recomendações, de modo que o número de leitores aumenta de forma progressiva

a cada novo volume publicado. Para as editoras, essa é a melhor forma de

garantir que um autor será rentável e dará o retorno esperado a cada publicação,

uma vez que dificilmente o primeiro romance policial de um autor se torna um

fenômeno de vendas.108

Desde os seus primórdios, as histórias de detetives constituíram um dos

ramos mais vendáveis da literatura, com grande penetração de mercado. É

107 Ibid., p.72.. 108 DILLEY, op.cit., p.8.

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interessante notar, a esse respeito, que dificilmente um romance de mistério

isolado torna-se um best-seller, em termos quantitativos. Os números de

vendagem de cada romance policial são relativamente modestos, embora sejam

estáveis. No conjunto, entretanto, a ficção policial é responsável por uma grande

fatia da renda das editoras. Nos dias de hoje, não é possível negar que as questões

de marketing são decisivas para uma editora na hora de escolher as obras que

serão publicadas e divulgadas com maior empenho. A forte competição entre as

editoras pelo lucro se traduz em um esforço cada vez maior aplicado à produção

e comercialização de best-sellers. Desse modo, o potencial de vendas de uma

determinada obra torna-se tão ou mais importante que o seu mérito literário109.

Esse fator é fundamental para que escritores novatos – e, muitas vezes, também

os consagrados – escolham se expressar por meio de um gênero que encontrará

receptividade por parte das editoras e do público.

Apesar de ter como objetivo principal o retorno financeiro, a serialização

oferece uma oportunidade valiosa para autores e críticos, que podem desenvolver

e estudar os personagens ao longo do tempo, explorando questões complexas

como maturidade, relacionamentos, crescimento, conseqüências das atitudes no

futuro e assim por diante.110 A determinada altura de sua tese de doutorado

publicada com o título de Busybodies, meddlers and snoops (Bisbilhoteiras,

intrometidas e xeretas), Kimberly Dilley faz um comentário, à primeira vista

óbvio, mas muitas vezes esquecido: ler por diversão e fazer crítica literária não

109 Ibid., p.6. 110 Ibid., p.xii.

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são atividades mutuamente excludentes111, levando à conclusão que a leitura

prazerosa não precisa necessariamente ser passiva e desprovida de senso crítico.

Por outro lado, tradicionalmente tem-se considerado que a força

mercadológica da literatura de massa em geral, na qual o romance policial se

insere, está relacionada à estrutura que Umberto Eco denominou “estrutura da

consolação”112. Segundo Eco, a grande tranqüilidade que a literatura best-seller

ofereceria ao seu leitor é a repetição de padrões, a reafirmação do status quo – os

finais são felizes, os maus são punidos, os bons, recompensados, e o mundo

continua como sempre foi. Mesmo que a ordem das coisas seja quebrada, no fim

das contas ela seria sempre restabelecida.

Martin A. Kayman, em seu ensaio “The short story from Poe to

Chesterton”, pondera que o lançamento dos contos de Poe coincide com a data

em que surgiu o Departamento de Detetives da Polícia Metropolitana (1842), e

esse fato seria a razão pela qual muitos críticos consideram a ficção policial um

reflexo literário, quando não propaganda política mesmo, de uma nova forma de

administração e controle social, baseada na vigilância pelo Estado. Por esse

ponto de vista, as narrativas policiais estariam sujeitas à cobrança de serem

promoções ficcionais dos valores de disciplina da polícia moderna e de

defenderem os valores burgueses da propriedade, da moralidade sexual e da

racionalidade burocrática.113 Não deixa de ser interessante notar como um gênero

que nasceu marginal, ligado à vida nas ruas e nas prisões, teria sido apropriado

111 Ibid., p.144. 112 ECO, op.cit., p.202. 113 KAYMAN, Martin A. The short story from Poe to Chesterton. p.44.

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pela classe dominante como um instrumento de controle e manutenção da ordem

social.

Um pouco mais adiante, no mesmo ensaio, Kayman apresenta dois

argumentos que ajudam, se não a refutar, ao menos a questionar a colocação de

que o lançamento dos contos de Dupin teria inaugurado a era da ficção policial

‘hegemônica’, produzida para perpetuar os valores da classe dominante. Em

primeiro lugar, Kayman questiona a própria classificação dos contos de Dupin

como ‘as primeiras histórias de detetive’, apontando que, ao se ler os contos de

Dupin sem qualquer tipo de conhecimento anterior ou pré-julgamento, seria

possível questionar-se até que ponto essas narrativas são mesmo sobre crime e

detecção. Afinal, “The Murders in the rue Morgue”, embora considerada a

primeira história de detetives, não trata de um assassinato, mas sim dos atos

violentos de um animal feroz; também em “The Purloined Letter” a questão do

crime é controvertida, uma vez que o próprio Dupin rouba de volta uma carta que

havia sido subtraída anteriormente; apenas em “The Mystery of Marie Rôget”

encontra-se o que parece ser indubitavelmente um caso de assassinato, mas

mesmo nesse caso havia a probabilidade de que a jovem tivesse morrido em

conseqüência de um aborto a que se submetera. Além disso, Dupin não

demonstra nenhum interesse em particular quanto a fazer justiça ou manter a

ordem social – sua motivação está no problema intelectual específico, não em

valores éticos ou sociais.114

114 Ibid., p.44-45.

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Ainda assim, foi a partir dos contos detetivescos de Poe que houve uma

mudança de foco em relação às histórias de crime e mistério. Murch afirma que

já não era mais suficiente que o leitor ficasse horrorizado diante de um crime ou

se solidarizasse com a vítima. Depois de Dupin, esperava-se que ele também

pensasse, de preferência analiticamente, e que sentisse prazer ao acompanhar a

argumentação lógica que explicava as misteriosas cadeias de eventos

apresentadas. O novo tipo de história tratava de crimes, mas não de criminosos, e

apresentava o detetive como um herói.115

“Elementar, meu caro Watson”: Sherlock Holmes e a ciência

Entre o final do século XIX e o início do século XX, surgem na literatura

policial vários detetives, listados por Martin Kayman sob o rótulo de

‘intelectuais’ e/ou ‘científicos’, como o Professor Van Dusen, de Jacques

Futrelle, ou o Dr. John Thorndyke, de Richard Austin Freeman.116 São todos, de

certa forma, herdeiros do Chevalier Dupin, embora a maioria surja apenas no

rastro de um detetive famoso, talvez o mais famoso de todos: Sherlock Holmes,

personagem criado por Arthur Conan Doyle.

Sherlock Holmes apareceu pela primeira vez em A study in scarlet (1887).

Logo no início do romance, Conan Doyle coloca Dupin como personagem

central de um diálogo entre Holmes e o Dr. Watson:

115 MURCH, op.cit., p.79. 116 KAYMAN, op.cit., p.46.

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“You remind me of Edgar Allan Poe’s Dupin. I had no idea that such

individuals did exist outside of stories.”

Sherlock Holmes rose and lit his pipe.

“No doubt you think that you are complimenting me in comparing me to

Dupin,” he observed. “Now, in my opinion, Dupin was a very inferior fellow.

That trick of his of breaking in on his friends’ thoughts with an apropos remark

after a quarter of an hour’s silence is really very showy and superficial. He had

some analytical genius, no doubt; but he was by no means such a phenomenon

as Poe appeared to imagine.”117

Essa passagem, embora pareça, a princípio, desfazer do detetive de Poe,

na verdade lhe presta uma homenagem indireta, deixando claro que Holmes é um

detetive diferente de Dupin, mas é possível reconhecer-lhe a paternidade...

Martin Priestman aponta, por exemplo, que o caráter de Holmes, assim como

suas circunstâncias e seu relacionamento com o narrador e com a polícia, são

construídos sobre os mesmos moldes que os de Dupin.118

Porém, ao contrário de Dupin, Holmes não é apenas uma ‘máquina de

raciocinar’, e tem lá suas idiossincrasias... Seu gosto por tocar violino, o talento

para os disfarces, o hábito de consumir cocaína, são características que denotam

uma humanização da figura do detetive. Essa humanização o torna mais real,

117 DOYLE, Arthur Conan. A study in scarlet. p.8-9. “ ‘Você me lembra o Dupin de Edgar Allan Poe. Eu não fazia idéia de que esses indivíduos existiam fora das histórias.’ / Sherlock Holmes levantou-se e acendeu o cachimbo. / ‘Sem dúvida você acha que está me elogiando ao me comparar a Dupin,’ ele observou. ‘Agora, na minha opinião, Dupin era um sujeito muito inferior. Aquele truque dele de invadir os pensamentos do amigo com um comentário qualquer depois de quinze minutos de silêncio é realmente muito exibido e superficial. Ele tinha algum gênio analítico, sem dúvida; mas ele não era de forma alguma esse fenômeno que Poe parecia imaginar.’ ” 118 PRIESTMAN, Martin. Detective fiction and literature, p.81.

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mais próximo do leitor, e é uma causa provável da grande popularidade do

personagem. Também é importante considerar que Doyle equilibra diversos

elementos, como a verve de sua própria escrita, a engenhosidade das histórias e o

talento na sua construção para, como pondera Kayman, em consonância com a

“estrutura da consolação” de Umberto Eco119, prover às classes médias

masculinas da época uma leitura relaxante, apaziguando suas ansiedades quanto

ao mundo moderno – celebra-se o materialismo da época, a capacidade de

raciocínio para organizar o material da existência de forma significativa e o poder

do indivíduo racional para proteger o homem comum do caos semiótico e

moral.120

Um outro ponto em que Sherlock Holmes difere de Auguste Dupin diz

respeito à metodologia de ação empregada pelos dois detetives. Holmes usa

procedimentos técnicos e científicos, como a análise de impressões digitais e a

busca de rastros e vestígios, ao contrário de Dupin, que se baseava unicamente na

leitura de índices via intelecto.121 A postura de Holmes como detetive e sua

metodologia são características da ciência do século XIX, e de tudo o que havia

de racional e progressista na sociedade de então. Em um instigante ensaio, no

qual aborda a figura dos detetives dos séculos XIX e XX como uma versão

popularizada da figura dos cientistas, D.F. Rauber lembra que uma das

características mais proeminentes da ciência do século XIX era a sua imensa

confiança na possibilidade de, por meio da razão, da ciência e da tecnologia,

119 ECO, op.cit., p.202. 120 KAYMAN, op.cit., p.48-49. 121 REIMÃO [1983], op.cit., p.38-39.

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solucionar os problemas da humanidade.122 Assim, Holmes personificaria a

atitude cultural da sua época em relação à natureza e à prática da ciência – ainda

segundo Rauber, o grande detetive seria a figura fantasiosa da mente em perfeito

funcionamento, o intelecto em estado puro, seguindo inexoravelmente adiante,

indiferente às considerações emocionais.123

Pode-se, entretanto, fazer um contraponto à posição de Rauber com base

no ensaio de Elliot Gilbert sobre o detetive como uma metáfora para o século

XIX. Gilbert afirma que, embora a razão tenha tido seus triunfos no século XIX,

teve também seus fracassos, e o detetive foi um produto de ambos.124 Em suas

palavras:

[A] razão havia descoberto as leis que fizeram dos homens os mestres do

universo físico. Mas, como para testemunhar a intransigência do caos, essas

mesmas leis também deram origem às fábricas sombrias e satânicas e às favelas

que se alastravam, deteriorando a Europa industrial e a América ao longo desse

período. [...] E das favelas escuras e terríveis, eis que surgiu um novo tipo de

crime – impessoal, anônimo – que requeria pela primeira vez grandes hordas de

policiais impessoais e anônimos para a sua detecção, policiais que,

simplesmente por se responsabilizarem por resolver esses crimes, tornaram-se

também habitantes involuntários das favelas que a razão construiu.125

Além disso, Gilbert lembra também que os tribunais da lei, a princípio

criados para fazer justiça, tornaram-se, ao contrário, grandes centros de injustiça;

122 Cf. RAUBER, D.F. Sherlock Holmes and Nero Wolfe: the role of the ‘great detective’ in intellectual history. p.492. 123 Ibid., p.485. 124 GILBERT, Elliot L. The detective as metaphor in the nineteenth century. p.257. 125 Ibid., p.257..

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que as fábricas, dedicadas a eliminar o desconforto humano, apenas tornaram os

homens mais desconfortáveis; e que a força policial, destinada a banir o crime

com a força da razão, acabou por corromper a razão com a vitalidade do crime.

Vale considerar ainda que, mesmo quando o detetive tem sucesso em sua

empreitada, seu sucesso é trivial face à vitória do criminoso, uma vez que ele

pode prender o assassino, mas nunca desfazer o assassinato.126 Desse modo, se o

detetive do século XIX simbolizava a fé da época nas habilidades do homem para

resolver os problemas do mundo, ele representou, da mesma forma, a crescente

desilusão do homem quanto à razão como uma resposta significativa para a

condição humana, já preparando o caminho para o detetive do século XX,

caracterizado por menos certezas e mais inseguranças. Gilbert aponta que, como

em um pesadelo, a aplicação das leis da física aos problemas do século XIX foi

bem sucedida apenas na criação de novos e maiores problemas.127

O próprio Sherlock Holmes não passa impune por essas mudanças. Tanto

Rauber quanto Gilbert assinalam a atmosfera mais sombria e incerta que marca

as últimas histórias do detetive, em especial “His Last Bow”, publicada em 1917,

em plena Primeira Guerra Mundial. No prefácio ao volume, lê-se:

The friends of Mr. Sherlock Holmes will be glad to learn that he is still alive

and well, though somewhat crippled by occasional attacks of rheumatism. He

has, for many years, lived in a small farm upon the downs five miles from

Eastbourne, where his time is divided between philosophy and agriculture.

126 Ibid., p.258. 127 Ibid., p.259-260.

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During this period of rest he has refused the most princely offers to take up

various cases, having determined that his retirement was a permanent one. The

approach of the German war caused him however, to lay his remarkable

combination of intellectual and practical activity at the disposal of the

government, with historical results which are recounted in His Last Bow.128

Em um dos contos do livro, “The Adventure of the Cardboard Box”, vê-se

que o próprio Holmes é levado a questionar a eficácia do intelecto frente às

mudanças que o mundo vinha sofrendo:

“What is the meaning of it, Watson?” said Holmes solemnly as he laid down the

paper. “What object is served by this circle of misery and violence and fear? It

must tend to some end, or else our universe is ruled by chance, which is

unthinkable. But what end? There is the great standing perennial problem to

which human reason is as far from an answer as ever.”129

Ao final do conto que dá título ao volume, em uma conversa com Watson,

vê-se que a confiança tão característica de Holmes finalmente parece lhe faltar:

128 DOYLE, Arthur Conan. Preface to His last bow. “Os amigos do Sr. Sherlock Holmes ficarão felizes de saber que ele ainda está vivo e bem, embora um pouco debilitado por ataques ocasionais de reumatismo. Ele vive há muitos anos em uma pequena fazenda a cerca de cinco milhas de Eastbourne, onde divide seu tempo entre a filosofia e a agricultura. Ao longo desse período de descanso, ele recusou as mais régias ofertas para assumir diversos casos, tendo determinado que a sua aposentadoria seria permanente. A aproximação da Guerra com a Alemanha, entretanto, o levou a colocar a sua marcante combinação de atividade intellectual e prática à disposição do governo, com resultados históricos que são narrados em His Last Bow (Sua Última Reverência).” 129 DOYLE, Arthur Conan. The Adventure of the Cardboard Box. p.14. “ ‘Qual é o significado disso, Watson?’ disse Holmes solenemente enquanto baixava o jornal. ‘Que objeto se serve desse círculo de miséria e violência e medo? Isso deve levar a algum fim, ou então o nosso universo é regido pelo acaso, o que é impensável. Mas qual fim? Aí está o grande e perene problema para o qual a razão humana está tão longe de uma resposta como sempre esteve.’ ”

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“Good old Watson! You are the one fixed point in a changing age. There's an

east wind coming all the same, such a wind as never blew on England yet. It

will be cold and bitter, Watson, and a good many of us may wither before its

blast. But it's God's own wind none the less, and a cleaner, better, stronger land

will lie in the sunshine when the storm has cleared.”130

Para finalizar os comentários sobre a obra de Conan Doyle, pode-se

marcar aqui ainda a relevância crescente da figura do narrador para o romance

policial. Watson, o narrador das histórias de Sherlock Holmes, adquire

importância central como o mediador que traz a público os feitos do detetive.

Trata-se de um personagem que incorpora as virtudes da classe média que

Holmes aparenta desprezar, mas na realidade protege.131 Watson não apenas

seleciona as aventuras que serão narradas, mas também decide a forma de

narração. Sua visão dos fatos, no entanto, é parcial, equivalente à dos outros

personagens e, por conseguinte, à do próprio leitor. Ele media as atitudes do

leitor em relação ao detetive – o leitor sabe que não é tão brilhante quanto

Holmes, mas é reconfortado ao saber-se mais brilhante do que Watson. Uma vez

que a narração onisciente feriria um princípio básico do romance de enigma, que

é a preservação do mistério até o último momento, a figura do personagem-

narrador, em geral um memorialista do detetive, aparece como um recurso útil

130 DOYLE, Arthur Conan. His last bow. p.11. “Bom e velho Watson! Você é o único ponto fixo nessa época de mudanças. Há um vento vindo do leste de qualquer modo, um vento como nunca soprou sobre a Inglaterra antes. Será frio e amargo, Watson, e muitos de nós podem sucumbir antes da sua rajada. Mas é o vento de Deus mesmo assim, e haverá uma terra melhor, mais limpa e mais forte sob o sol quando a tempestade houver passado.” 131 KAYMAN, op.cit., p.49.

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para manter o leitor sempre um passo atrás da investigação e assim prender sua

atenção até a revelação final e a reconstrução da trama.132

Um estrangeiro no campo inglês: o ex-cêntrico Hercule Poirot

Anos mais tarde, no período após a 1ª. Guerra Mundial, o romance policial

consagrou-se sob a vertente que seria a sua mais popular até os dias de hoje: o

romance de enigma. O período entre-guerras tornou-se conhecido como a “Era de

Ouro” do romance policial, embora haja discordâncias entre os críticos quanto

aos seus exatos limites temporais – vale ressaltar que romances de enigma

seguindo a fórmula clássica da “Era de Ouro” são produzidos até hoje em dia.

Entretanto, costuma-se marcar a “Era de Ouro” como o período entre as duas

guerras mundias, marcado por uma safra significativa de romances policiais

produzidos por mulheres do porte de Agatha Christie e Dorothy Sayers, para

mencionar apenas algumas. Embora o rótulo “Era de Ouro” possa sugerir uma

época idílica, como lembra Stephen Knight133, o período entre-guerras foi

caracterizado por um grande desconforto social, especialmente na Europa,

marcada por grandes perdas humanas e financeiras ao longo da guerra.134

132 REIMÃO [1983], op.cit., p.31-36. 133 KNIGHT, Stephen. The golden age. p.77. 134 Ao longo da década de 1920 os Estados Unidos pouco sentem esses efeitos, e permanecem no clima de euforia que seria conhecido como “The Jazz Age” (“A Era do Jazz”), período compreendido entre 1918, com o fim da 1ª. Guerra Mundial, e 1930, com o início da Grande Depressão, após a quebra da bolsa de Nova York.

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Agatha Christie, que se tornaria conhecida como “A Dama do Crime”, faz

sua estréia em 1920, com o romance The mysterious affair at Styles. Nesse

romance aparece pela primeira vez o seu detetive mais famoso, Hercule Poirot,

um policial belga aposentado, refugiado na Inglaterra. Segundo Susan Rowland,

foi então que “o caráter do detetive ficcional mudou.”135 A chegada do

homenzinho com cabeça em formato de ovo, longos bigodes cultivados com

capricho e manias que beiram a obsessão marca um contraponto a Sherlock

Holmes. Holmes é heróico, ao passo que Poirot, com sua aparência e modos

considerados exóticos pelos britânicos, poderia ser classificado como um anti-

herói. Caberá a esse anti-herói, cujo nome, que remete à força de Hércules,

contradiz a imagem, a tarefa de reordenar o mundo conturbado que encontra ao

chegar à mansão de Styles.

Stephen Knight aponta que os romances policiais dessa fase não se

confirmam como “romances da cidade moderna”136 – embora os cenários sejam

espaços fechados, boa parte das narrativas se passa no campo. A esse respeito,

W.H. Auden, em seu famoso ensaio “The guilty vicarage”, afirma:

O campo é preferível à cidade, uma vizinhança abastada (mas não abastada

demais – ou haverá suspeita de ganhos ilícitos) melhor do que uma favela. O

cadáver deve chocar não apenas por ser um cadáver, mas também porque,

mesmo para um cadáver, ele está terrivelmente fora de lugar, como quando um

cachorro faz bagunça no tapete da sala de visitas.137

135 ROWLAND, Susan. From Agatha Christie to Ruth Rendell. p.15. 136 KNIGHT, op.cit., p.77. 137 AUDEN, op.cit., p.19.

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Após a Revolução Industrial, o campo assumiu um caráter idílico na

literatura inglesa, uma aura de retorno a um mundo não mais possível após o

crescimento das cidades. A partir da 1ª. Guerra Mundial, cujo lema era “a guerra

para terminar todas as guerras” (“the war to end all wars”), mas que apenas

trouxe instabilidade, miséria e mortes em proporções nunca antes

experimentadas, esse caráter idílico se intensificou. Pode-se, portanto, levantar

uma questão interessante a respeito da escolha do cenário campestre para tantos

romances policiais dessa fase. Retomando a estrutura da consolação de Umberto

Eco138, tem-se que o propósito da literatura de massa seria assegurar ao leitor o

conforto de que, por mais que haja uma ruptura no status quo, ao final o mundo

permanecerá como sempre foi. Assim, o objetivo da descoberta do criminoso em

um romance policial seria eliminar o responsável pela tensão e levar a sociedade

de volta ao seu estado (idílico) original. Existe aqui, entretanto, uma grande

ironia: seria mesmo possível consolar o leitor, uma vez que o assassino é

comumente um membro dessa mesma sociedade supostamente idílica? Ou,

ampliando o campo de raciocínio: haveria refúgio possível para as novas

condições com que deve lidar o ser humano na modernidade? Poirot, o detetive

estrangeiro (e belga – não francês, como seria de se esperar – ou seja, ainda ‘mais

estrangeiro’...), baixinho, gordo, e sob o ponto de vista britânico, de modos

efeminados, ironicamente descobre criminosos nas cidadezinhas idílicas inglesas,

138 ECO, op.cit., p.202.

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expondo que sob a fachada idílica “há algo de podre no reino”139... Como chega

com o propósito de desvendar o crime, ou seja, de expôr os ‘podres’ da sociedade

dita ‘idílica’, não é à toa que essa mesma sociedade busca levar Poirot ao

descrédito – daí sua aparência ser considerada ridícula, seus modos afetados, e

assim por diante. Ele é, sem dúvida, excêntrico – e ex-cêntrico – como Sherlock

Holmes também era, e como seus sucessores também serão. Todos têm suas

manias, suas idiossincrasias – o detetive, mesmo que seja aparentemente

hegemônico, usualmente ocupa uma posição à margem da sociedade.

A esse respeito, cabe ressaltar mais um ponto: Marion Shaw e Sabine

Vanacker consideram Poirot, por ser estrangeiro naquela sociedade ‘idílica’, “um

mero visitante no mundo do crime”.140 Essa falta de adequação do personagem

aos padrões hegemônicos poderia sinalizar que uma possível resposta para as

questões humanas não estaria na ciência que se propôs a tudo resolver no século

XIX. Não apenas a presença de um detetive em desacordo com os padrões

vigentes, mas também as freqüentes referências feitas por Christie a personagens

militares que retornaram à Inglaterra após anos de serviços prestados na Índia,

levam à constatação que, no período pós-guerra, aquela sociedade ‘idílica’ já não

existe enquanto tal – os padrões já estão irreversivelmente alterados, pela “zona

de contato”.141

139 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Ato I, Cena 4. “Something is rotten in the state of Denmark.” 140 SHAW, Marion & VANACKER, Sabine. Reflecting on Miss Marple. p.2. 141 A expressão “zona de contato” foi cunhada pela pesquisadora canadense Mary-Louise Pratt para designar os “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam

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Assim como fez Conan Doyle com Sherlock Holmes, Agatha Christie

também criou um memorialista para Hercule Poirot. O capitão Hastings é o

principal narrador das histórias de Poirot e é freqüentemente usado por ele como

um instrumento para divulgar pistas e interpretações falsas, em um jogo que por

vezes também ludibria o leitor. Sua relação com Poirot, assim como a de Watson

com Holmes, é baseada em admiração e inveja. Tecendo uma comparação com

seus antecessores, nota-se que Poirot não é tão neutro emocionalmente em

relação aos personagens das narrativas quanto Holmes. Ele valoriza o que os

indícios psicológicos podem revelar sobre a personalidade de um personagem.

No entanto, Poirot, como Holmes, considera que investigar compreende tanto o

trabalho de dedução quanto o trabalho empírico, embora dê mais valor ao

trabalho mental.142

Um divisor de águas: o romance noir e o detetive hardboiled

Embora o romance de enigma mantenha leitores cativos até os dias de

hoje, por volta de 1930 uma nova forma de romance policial toma força nos

EUA. Esse novo estilo é o chamado romance da série noire, que abandona

características básicas do romance de enigma, como o otimismo, a moralidade

convencional, o espírito conformista e o detetive infalível. Ao admitir a

falibilidade do detetive, o romance noir subverte toda a tradição do gênero até

uma com a outra, freqüentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação”. Cf. PRATT, Marie-Louise. Os olhos do Império. p.27. 142 REIMÃO [1983], op.cit., p.42-46.

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então, que tanto prezava o sucesso da lógica cartesiana, e torna-se um divisor de

águas na história do romance policial, abrindo caminho para questionamentos e

críticas acerca do homem e sua sociedade, e transformando-se, para citar as

palavras de Sandra Reimão, em uma espécie de “romance de costumes

contemporâneo”.143 O romance noir cria a figura do P.I. – sigla para o termo

private investigator ou investigador particular, que desvenda crimes por

profissão, e não mais por divertimento ou curiosidade como ocorria no romance

de enigma. O novo detetive profissional (também chamado hardboiled ou

‘durão’) apresenta uma postura crítica em relação ao mundo, não mais

considerado um mundo em perfeita ordem. O detetive não é mais o sujeito

autônomo da modernidade, e caminha rumo ao descentramento da modernidade

tardia. Nos enredos do noir é comum que o detetive se misture aos criminosos,

faça amizade ou seja mesmo confundido com eles pela polícia, e se envolva com

mulheres suspeitas, de modo que cabe ao leitor distinguir (ou ao menos tentar,

muitas vezes sem sucesso) onde está a linha, cada vez mais tênue, que separa o

mundo da lei do mundo do crime. A ênfase é transferida para a ação, e exploram-

se situações angustiantes e todos os tipos de sentimentos que podem envolver o

ser humano. O leitor assume um papel mais ativo do que no romance de enigma,

pois cabe a ele fazer deduções sobre os personagens a partir das descrições

oferecidas.

143 REIMÃO [1983], op.cit., p.83.

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Um fator importante para o desenvolvimento do romance noir nos EUA

foi o próprio momento histórico que o país atravessava. Após a Primeira Guerra

Mundial, o país entrou em uma fase de prosperidade sem precedentes, que se

estendeu por toda a década de 1920, a chamada “Jazz Age”. Ao longo da década,

a atmosfera predominante foi de grande abundância e de mudanças resultantes do

aumento da urbanização e da industrialização. Alguns valores tradicionais

puritanos foram deixados de lado – as mulheres encurtaram as saias e os cabelos,

e começaram a fumar; nas festas, dançava-se ao som do charleston e do jazz; e,

apesar da promulgação da Lei Seca em 1920, bares sem licença floresciam

devido ao grande consumo de bebidas alcóolicas. O clima reinante era de euforia

(principalmente por conta dos patamares altíssimos atingidos pelas ações na

Bolsa de Nova York), muito embora a Lei Seca oferecesse um terreno fértil para

o desenvolvimento do crime organizado em grande escala. A esse respeito, diz

Dennis Porter:

[...] e começava a era da Lei Seca. Provavelmente a peça de legislação mais

equivocada do século XX na América, seu efeito foi transformar centenas de

milhares de americanos comuns, da classe operária e da classe média, em

criminosos, e criar uma sociedade na qual os sindicatos do crime floresceram

com o esforço de saciar um apetite que não podia ser contido.144

Em 1929, entretanto, a fase de euforia chegou ao fim com a quebra da

Bolsa de Nova York e o início da Grande Depressão. O crime continuava a

144 PORTER, Dennis. The private eye. p.96.

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crescer, respaldado pela corrupção escandalosa – e criminosos como Al Capone,

Babyface Nelson, Clyde Barrow e Bonnie Parker tornaram-se celebridades

nacionais.145 O país atravessava um período violento, que configurava o pano de

fundo ideal para o desenvolvimento do romance noir – povoado por criminosos e

policiais ‘reais’, repleto das tensões da época, dotado de uma considerável

urgência narrativa e imbuído do espírito de desencantamento próprio da literatura

americana do pós-guerra, o noir era considerado um retrato honesto e preciso da

vida americana.146

Dashiell Hammett criou o detetive mais emblemático do noir, Sam Spade,

que apareceu pela primeira vez naquele que viria a ser o seu romance mais

famoso, The Maltese Falcon (1930). Spade tornou-se o protótipo de um novo

tipo de detetive, o hard-boiled (‘durão’), um idealista disfarçado sob uma

máscara de cinismo, que lutava contra a corrupção da sociedade e buscava a

verdade acima de tudo. Rude, vulgar, deselegante e sempre envolvido com

mulheres, Spade opõe-se aos detetives do romance de enigma clássico.147

Um outro detetive representativo do estilo é Philip Marlowe, personagem

criado por Raymond Chandler, que se considerava um ‘imitador’ de Dashiell

Hammett. Marlowe, como Spade, é um detetive profissional, trabalha por

dinheiro. Ele é o próprio narrador das histórias, muitas vezes desencadeia a ação

e envolve-se com os outros personagens. Assim como Spade, Marlowe percebe a

imprecisão de sua atividade e a possibilidade de erro de um detetive

145 GRELLA, George. The hard-boiled detective novel. p.105. 146 Ibid., p.105. 147 REIMÃO [1983], op.cit., p.54-56.

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simplesmente humano, por oposição às ‘máquinas de raciocinar’ do romance de

enigma.148

Em termos de estilo narrativo, a inovação mais significativa trazida pelo

romance noir diz respeito ao fato de que a maioria das narrativas se desenrola ao

mesmo tempo em que a ação, sendo o narrador o próprio protagonista.149 Não há,

como no romance de enigma, a narração em retrospectiva de um caso

previamente solucionado – o romance noir aponta para um mundo incerto, no

qual o detetive já não tem certeza alguma de que haverá uma solução possível

para o mistério. A ausência do narrador-memorialista mostra que não há garantia

de sucesso na investigação ou mesmo da imunidade física do detetive – o

narrador-protagonista e o leitor estão sempre passo a passo. Além disso, no

romance noir não existe uma verdade final indiscutível – a interpretação proposta

pelo detetive é apenas uma entre outras possíveis.150 As noções de culpa e crime

são difusas, e o detetive não consegue imputar toda a responsabilidade a um

único culpado.

148 Ibid., p.67-72. 149 Não é o caso dos romances de Hammett protagonizados por Sam Spade, que trazem um narrador impessoal, mas é a forma narrativa consagrada pela grande maioria dos romances da série noire. 150 REIMÃO [1983], op.cit., p.56-61.

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Muitas dúvidas, nenhuma certeza: o detetive metafísico

A partir do noir, o romance policial passa a oferecer ao leitor uma visão,

por assim dizer, mais ‘realista’151, mais cética e cínica, tanto em relação ao

mundo do crime e ao próprio sistema judicial quanto a seu papel como detetive.

Nos primórdios do romance policial, como já vimos, uma fórmula básica do

gênero era seguida à risca – um crime é cometido e, a princípio, deve ser

descoberto pelo detetive, que, supõe-se, também deve encaminhar o culpado à

punição devida. O detetive de então era cartesiano e confiava no intelecto e no

raciocínio lógico para desvendar os crimes e restabelecer a ordem do mundo. No

romance noir, a fórmula básica do gênero já não é válida. O detetive hard-boiled

é um desiludido, que já não conserva tantas certezas sobre o mundo – no

universo do noir, nem sempre é fácil separar os bandidos dos mocinhos, e os

culpados dos inocentes... Ainda assim, o noir não questiona a linha mestra que

conduz o romance policial – embora não seja fácil, continua sendo necessário

encontrar um culpado para o fato que desestabilizou a ordem.

Na contemporaneidade fragmentada, o detetive já não tem nenhuma das

certezas do detetive positivista, pois já não compartilha da noção de totalidade de

seu precursor. A ficção policial da modernidade tardia, cujo protagonista é o

detetive metafísico (por vezes também chamado anti-detetive), se caracteriza

151 Ao usar a palavra realista, faço uma referência ao Dirty Realism, termo cunhado pela revista Granta nos anos 80 para descrever o estilo de autores como Raymond Carver, que trazem a classe trabalhadora e pessoas comuns para a sua ficção. Segundo A. Karlsson, o termo “sugere uma escrita focada nos aspectos sórdidos da vida, o lado sombrio da América contemporânea”. Cf. KARLSSON, A. The hyperrealistic short story: a postmodern twilight zone.

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pelo profundo questionamento sobre narrativa, interpretação, subjetividade, a

natureza da realidade e os limites do conhecimento.152 O detetive tem dúvidas

acerca do mundo em que vive, sua sociedade, sua própria identidade, mas não

descobre respostas que atendam aos seus questionamentos – não encontra um

culpado para o crime, se o desvenda o faz por acaso, muitas vezes nem sabe se

um crime foi mesmo cometido, e dificilmente confia que a punição oficial servirá

a algum propósito digno na sociedade...

Vale aqui abrir um breve parêntesis para considerar o conceito de

mapeamento cognitivo, de Fredric Jameson.153 Jameson usa o termo para se

referir ao modo como o indivíduo dá sentido ao espaço urbano – esse

mapeamento funciona como uma interseção entre o espaço pessoal e o espaço

social, e permite que as pessoas trabalhem e avaliem os espaços urbanos nos

quais transitam. Desse modo, o mapeamento cognitivo é uma negociação do

espaço urbano, estreitamente ligada à experiência individual. Percebe-se essa

negociação, no histórico do romance policial, a partir do romance noir, cujo

cenário essencial é urbano, mas ela se faz especialmente necessária na

modernidade tardia, quando o crescimento desordenado das cidades torna

impossível ao indivíduo acessar e avaliar o espaço urbano como um todo.

Como já vimos, o crime como traço marcante da vida social ocidental

surge a partir do aparecimento das metrópoles, no início do século XIX. Os

152 Cf. MERIVALE, Patricia and Susan Elizabeth Sweeney, eds. Detecting Texts: the metaphysical detective story from Poe to Postmodernism. [1999] p.1. 153 JAMESON, Fredric. Cognitive Mapping. p.347-60.

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moradores das grandes cidades, ao mesmo tempo em que demonizavam o

criminoso romantizavam o detetive, que era visto como herói. À medida que a

cidade torna-se um espaço cada vez mais desorganizado, torna-se também

irrepresentável para o indivíduo – inclusive para o próprio detetive (agora anti-

herói ou anti-detetive), que se sente, também, ‘perdido’ no espaço urbano. No

espaço das cidades da modernidade tardia, o detetive já se encontra

irremediavelmente descentrado, sem a convicção de sua autonomia como sujeito,

e “confronta os mistérios insolúveis da sua própria interpretação e da sua

identidade”.154 Nas narrativas dos metafísicos “observa-se que a postura do

detetive/narrador oscila entre investigação racional e incursões subjetivas”:155

Ao que parece, o mundo contemporâneo, a crise dos antigos modelos, a quebra

de valores essenciais e absolutos se refletiram no gênero policial que,

transgredindo suas próprias regras, começa a ter poucas respostas para as

questões esperadas e muitas perguntas para os que lêem criticamente.156

Por meio dessas dúvidas e incertezas do detetive metafísico, bem como de

seus desdobramentos contra-hegemônicos, as questões identitárias nacionais e

individuais assumem uma importância cada vez maior no romance policial

contemporâneo – tais questões constituem o objeto de investigação desta tese.

154 MERIVALE [1999], op.cit., p.2. 155 FREITAS, Adriana M. A. Ambigüidade e Ceticismo no Romance Policial Contemporâneo. 156 Ibid.

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Desdobramentos contemporâneos: gênero e etnia

Como o objeto de estudo desta tese é o romance policial produzido nas

margens, faz-se necessário considerar algumas vertentes do romance policial

contemporâneo que retrabalham de modo original as fórmulas tradicionais,

acrescentando novo fôlego ao panorama cultural e literário do gênero:

1. o romance policial feminino contemporâneo, protagonizado por

detetives mulheres, que, embora não se dediquem apenas a questões

pertinentes ao universo feminino, não as deixam de lado;

2. o romance policial contemporâneo produzido na periferia de poder,

cujos detetives provêm tanto de minorias étnicas nos EUA e Europa

quanto de países do Terceiro Mundo.

A vez e a voz das detetives femininas157

Patricia Merivale, ao resenhar a coletânea de artigos Feminism in

Women’s Detective Fiction, editada por Glenwood Irons, menciona a afirmação

de Marty Roth, que a ficção policial é um gênero (genre) essencialmente

‘masculino’ – mesmo quando escrito por mulheres, mesmo quando as

protagonistas são detetives mulheres – que atingiu o seu ápice nos anos 60. O

157 Neste subtópico será feita apenas uma breve introdução ao romance feminino contemporâneo, uma vez que o assunto será tratado de forma extensiva no segundo capítulo.

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próprio Roth, entretanto, reconhece que desde então, o gênero (gender) do

romance policial pode haver se alterado.158

Na contemporaneidade, particularmente a partir dos anos 80, surgiu nos

EUA uma safra de escritoras de romances policiais, que começaram a criar

detetives femininas em diálogo com a tradição do detetive hardboiled do

romance noir. Algumas dessas detetives foram Sharon McCone, de Marcia

Muller; V.I. Warshawski, de Sara Paretsky; Kinsey Milhone, de Sue Grafton; e

Kate Fansler, de Amanda Cross159. Em princípio, essas detetives fariam um

contraponto ao hardboiled no sentido de desconstrui-lo, pois, embora sejam

também tipos urbanos, não são criadas seguindo fielmente as características do

noir; por exemplo, embora a detetive seja uma mulher independente, quase

sempre desvinculada de obrigações matrimoniais, ela não é uma solitária, como

Spade ou Marlowe. De acordo com Kimberly Dilley, para a detetive feminina,

mesmo as mais inspiradas no modelo hardboiled, como V.I. Warshawski ou

Kinsey Milhone, o trabalho de investigação é apenas uma parte de sua vida. Ela

também tem uma casa, uma vida pessoal – e embora vivam imersas no trabalho e

não tenham uma família tradicional, não deixam de ter figuras substitutas em

suas vidas, principalmente figuras parentais.160

158 Cf. MERIVALE, Patricia. Feminism in Women’s Detective Fiction. [1996] 159 Uma curiosidade a ser mencionada é que Amanda Cross é o pseudônimo de Carolyn Heilbrun, professora de Literatura Inglesa da Universidade de Columbia, NY – uma interessante sugestão de que o trabalho investigativo do detetive se assemelha ao trabalho investigativo do pesquisador acadêmico, e por isso o fascina. 160 DILLEY, op.cit., p.31-32.

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Assim, é interessante refletir a respeito da afirmação de Roth e também do

motivo que o leva a admitir que o gênero do romance policial pode haver

mudado a partir dos anos 60. Na mesma resenha de Merivale, ela aponta que

Irons, na introdução da obra, “mapeia o desenvolvimento do romance policial

feminino pós-anos 60 de acordo com a tensão criativa, embora problemática e

estressante, entre o seu feminismo e as convenções masculinas do gênero

hardboiled.”161 De fato, as detetives femininas não deixam de incorporar a

tradição masculina – mas isso se dá apenas até o ponto em que essa

independência típica do hardboiled, essa facilidade de transitar pelos espaços

públicos, são características culturalmente masculinas. No momento em que as

próprias definições dos papéis masculinos e femininos começam a mudar, a partir

dos anos 60, e as mulheres tornam-se cada vez mais atuantes, pode-se considerar

a entrada das mulheres no campo do hardboiled não necessariamente como uma

atitude que preserva a tradição masculina, mas sim como um reflexo das

mudanças dos papéis de gênero. Desse modo, as mulheres entram em um campo

inicialmente masculino, mas o transformam e subvertem – e essa subversão está

diretamente relacionada aos novos valores que elas trazem para o hardboiled,

valores esses, de acordo com a tradição, culturalmente femininos, como o

relacionamento com a comunidade, a atenção à família, os envolvimentos

afetivos e assim por diante. É importante atentar, entretanto, para o fato de que

subverter a tradição não a elimina – pelo contrário, a insere duplamente. Essa

161 Cf. MERIVALE [1996], op.cit.

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revisão contestadora, de acordo com Linda Hutcheon, “tanto confirma quanto

subverte o poder das representações da História.”162

Na leitura dos romances femininos estudados, há uma sugestão de que a

trajetória da detetive é mais importante do que a descoberta do criminoso –

continua sendo fundamental descobrir o culpado, mas esse não é o seu único

objetivo. Faz-se uma releitura feminina (embora nem sempre feminista) da

tradição masculina. Ao longo do seu processo de investigação ela compartilha

com os outros personagens e com o leitor não apenas suas descobertas acerca do

crime, mas também suas observações e inferências sobre o mundo que a cerca –

e, nesse sentido, estaria próxima do detetive metafísico. As autoras desses

romances aproveitam então essas oportunidades para fazer comentários a respeito

da sociedade em que vivem, como um observador externo, à margem do poder e

da autoridade. A inclusão de um assassinato nessas narrativas torna-se, assim,

uma técnica para atrair a atenção e mostrar o rompimento da ordem na sociedade.

A maior parte do romance, entretanto, trata da vida dos personagens, seus

relacionamentos, sua rotina, sua interação com a comunidade. Por essa razão, o

crime em si é uma das partes menos importantes dos romances policiais

femininos, muito mais marcados pelas discussões sobre os possíveis papéis das

mulheres em uma sociedade na qual o gênero (gender) determina

comportamentos, expectativas e limitações.163

162 HUTCHEON, Linda. The politics of parody. p.95. 163 DILLEY, op.cit., p.136-140.

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O papel das detetives femininas contemporâneas, portanto, consiste em

problematizar as pressuposições de gênero – elas se recusam a ser apagadas em

um meio predominantemente masculino, mas também não aceitam ser cooptadas

por uma “masculinidade honorária”, como o preço a pagar por seu sucesso.164 Um

bom exemplo de detetive feminina que não é cooptada por essa masculinidade

honorária é Gloria Damasco, a detetive chicana criada por Lucha Corpi, que

apenas se profissionaliza como detetive após a morte do marido e a ida da filha

única para a universidade.165 No passado, Gloria havia abandonado a investigação

de um caso como amadora a pedido do marido – ou seja, ela o faz para manter a

família unida, como espera a cultura chicana. Quando a viuvez e a mudança da

filha a deixam de fato sozinha, ela então retoma o caso e decide seguir a nova

carreira. É importante notar que Gloria não opta pela independência / solidão tão

comuns entre os detetives hardboiled de ambos os sexos – pelo contrário, suas

relações familiares e tradições culturais permanecem inalteradas na medida do

possível, tanto por meio da proximidade afetiva com a mãe e a filha e a

manutenção de antigas amizades quanto pelo estabelecimento de um novo

vínculo amoroso. Assim, mesmo se profissionalizando, Gloria não seria

exatamente uma detetive hardboiled – poderíamos chamá-la ‘medium-boiled’, no

sentido de que ela nunca rompe os laços com a família, os amigos e a

comunidade. Não existe em Gloria a solidão tão típica do P.I.... Por outro lado,

ao estabelecer um relacionamento amoroso com seu sócio Justin Escobar, ela

164 MERIVALE [1996], op.cit. 165 Os romances de Lucha Corpi protagonizados por Gloria Damasco serão trabalhados mais extensamente no segundo capítulo.

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foge do padrão convencional e opta por não se casar – cada um vive em sua casa

e mantém sua independência, de modo que vê-se que ela também não acata mais

toda e qualquer tradição chicana.166

O maior compromisso que Gloria mantém, ao longo dos romances, é o que

estabeleceu nos anos 60 e 70 com o Movimento Chicano – todos os romances da

série apresentam episódios da história chicana e deixam clara a postura política

dos personagens, no sentido de defender os direitos iguais da comunidade

chicana frente à sociedade branca. Quanto à questão feminista, entretanto, Gloria

mantém uma postura bastante tradicional, tanto que aceita mesmo abandonar a

investigação pra não perder a família – dificilmente uma detetive feminista faria

o mesmo... Existe aqui uma diferença entre as questões consideradas pertinentes

pela sociedade branca burguesa – no caso, a igualdade de direitos entre os sexos

– e aquelas que atingem a comunidade chicana como um todo. Por ser composta

em grande parte de membros da classe trabalhadora, as questões chicanas estão

relacionadas a direitos a saúde, educação e trabalho iguais aos da classe

dominante; assim, um embate entre os sexos seria inicialmente relegado a

segundo plano, de modo a não dividir forças dentro da própria comunidade no

momento de lutar por direitos que seriam benéficos à comunidade como um todo.

Voltando finalmente às afirmações de Roth, pode-se dizer que a tradição

masculina está presente no romance policial feminino tanto quando este a

preserva quanto no momento em que a subverte, pois lembrando Linda

166 Cf. CORPI, Lucha. Eulogy for a Brown Angel, Cactus Blood, Black Widow’s Wardrobe e Crimson Moon.

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Hutcheon, a representação irônica inscreve o código duplamente – “legitima e

subverte o que parodia”.167 É, portanto, ao inscrever e subverter a tradição que se

atinge a conseqüente renovação do noir na ficção policial escrita por mulheres.

Detetives ‘Outros’

Essas obras, que trazem detetives de diferentes origens, como negros,

chicanos, indígenas e asiáticos – e é válido assinalar, com a presença de várias

detetives mulheres, uma vez que as categorias descritas acima com freqüência se

sobrepõem – estão repensando o romance policial tradicional.

Tim Libretti chama a atenção para o fato de que os escritores das minorias

étnicas dos EUA escolheram o gênero policial com o objetivo de submeter à

crítica as concepções dominantes de crime e injustiça, abrindo caminho para

novas concepções fundamentadas por uma perspectiva histórica da experiência

racial nos Estados Unidos. Desse modo, a ficção policial deixa de ser um fim em

si e torna-se um instrumento, um meio de dar voz a comunidades marginalizadas

ao longo da história. Nesses romances, os detetives das minorias étnicas

inevitavelmente se confrontam com atos de violência que parecem, à primeira

vista, isolados e individuais, mas que revelam, no plano mais amplo, profundas

causas sociais e históricas ligadas aos padrões de injustiça sistematicamente

cometida contra as minorias.168

167 HUTCHEON, op.cit., p.101. 168 LIBRETTI, Tim. Lucha Corpi and The Politics of Detective Fiction. p.61-62

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A literatura policial produzida pelas minorias étnicas quebra diversas

regras da literatura policial ‘canônica’, como as vinte regras de S.S. Van Dine

para escrever histórias policiais.169 As regras de Van Dine, em todo caso, também

foram quebradas por diversos escritores emblemáticos da ficção policial, como

Agatha Christie – e nem por isso esses autores deixaram de representar a tradição

das histórias de detetives, uma fórmula a ser seguida. Uma das características que

diferenciam a literatura policial das minorias étnicas (e que já se prenunciava no

noir) e a torna uma não-seguidora do modelo de romance policial canônico é o

fato de seus autores privilegiarem o caminho do detetive, “sem a pretensão de se

chegar a uma resposta, uma verdade”.170 Além disso, a literatura policial das

minorias étnicas costuma contemplar uma questão social que inexiste na

literatura policial tradicional – essa literatura toma para si a função de informar e

educar essas comunidades a respeito do seu lugar na História.

Rolando Hinojosa, por exemplo, em um dos casos de Rafe Buenrostro,

relatado em Ask a Policeman, nos conta quem é o assassino ao final do primeiro

capítulo do livro.171 Ao igualar a informação de que o leitor dispõe à do assassino,

Hinojosa desconstrói o romance de enigma – pois reza a tradição que o leitor

deve acompanhar o caminho e as descobertas do detetive. Essa revelação provoca

a imaginação do leitor habituado aos romances tradicionais, que prossegue a

leitura na expectativa de que um fato novo venha a mostrar que o assassinato

mostrado no início da história era uma pista falsa, que o assassino não era o real,

169 ALBUQUERQUE, op.cit., p.23-36 170 FREITAS, op.cit. 171 HINOJOSA, Rolando. Ask a policeman. p.4-5.

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ou mesmo que a sua compreensão dos fatos narrados não havia sido acurada. Tal

expectativa se frustra, entretanto, uma vez que Hinojosa, ao longo da

investigação policial de Rafe e seus companheiros da polícia, não apenas

confirma o ocorrido como não dá muita importância ao fato de não ter mantido o

mistério para o leitor, privilegiando, na sua narrativa, a construção do cenário,

personagens e conflitos típicos da fronteira Texas-México, onde se desenrola a

ação.

Ao longo do romance, Hinojosa desconstrói também o romance noir e

seus detetives da escola de Spade e Marlowe, sempre com um copo de uísque na

mão e envolvidos em conflitos com uma polícia inoperante e corrupta. O próprio

Rafe Buenrostro é um detetive da polícia, e os outros policiais são competentes e

têm bom caráter. À primeira vista, Rafe parece manter a imagem do detetive de

copo na mão; um segundo olhar, porém, revela que seu copo nunca contém

álcool – está sempre cheio de limonada ou água mineral...

Ao fazer uma contra-escritura dos romances policiais hegemônicos,

retratando policiais chicanos honestos, trabalhadores e eficientes, Hinojosa

quebra o estereótipo do mexicano traiçoeiro e preguiçoso. Nos romances

policiais em geral, a polícia prende mexicanos malandros, traiçoeiros,

preguiçosos, etc. Nesse caso, Hinojosa faz uma inversão proposital: mostra um

chefe de polícia chicano e sua equipe multiétnica, todos muito competentes,

enquanto Randolph Grayson, branco, é um piloto que faz tráfico de drogas e

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contrabando na fronteira. Essa inversão leva o leitor a um estranhamento inicial

e, presumivelmente, a uma reflexão acerca desses estereótipos.

Uma das semelhanças mais marcantes que o romance policial feminino

guarda com o produzido pelas minorias étnicas é que não se busca um único

culpado para a quebra da ordem social. O(a) detetive reconhece que há várias

causas políticas e sociais que possibilitam um desequilíbrio e o conseqüente

rompimento da ordem. Isso não significa, entretanto, que esses detetives sejam

tolerantes com o crime nem que os criminosos fiquem impunes – apenas se

reconhece que dificilmente um caso criminal investigado representa um exemplo

único, isolado. Cada crime é visto como parte de um contexto mais amplo.

A inserção e o desenvolvimento do romance policial em um contexto

cultural e demográfico diverso do contexto hegemônico no qual foi criado e se

estabeleceu possibilitam uma nova visão desse tipo de narrativa. Segundo Tim

Libretti, a fórmula da ficção detetivesca poderia facilmente servir a uma função

transformadora radical em termos políticos e sociais.172 Ao compreender que as

minorias étnicas dos Estados Unidos efetivamente constituem nações

internamente colonizadas, uma “América Outra”173, uma periferia dentro do

centro, vê-se que não apenas a experiência de nacionalidade, mas também os

mitos culturais e os ideais dessas populações serão dramaticamente diferentes –

por vezes, diametralmente opostos – em relação aos mitos e ideais da cultura

172 LIBRETTI, op.cit., p.67. 173 Cf. TORRES, Sonia. Escritos chicanos: para a leitura de uma América Outra.

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nacional dominante e colonizadora dos Estados Unidos.174 As noções de lei e

justiça, por exemplo, que costumam ser usadas de forma intercambiável pelo

centro hegemônico, podem não ser coincidentes para as comunidades da

periferia. Sendo a lei criada para atender aos interesses do centro, ou seja, a

manutenção do status quo, muitas vezes ela não corresponde à idéia de justiça e

às expectativas daqueles que se encontram à margem. Assim, fazer justiça, para a

população da periferia, não significa necessariamente apoiar a ordem vigente.175

Também no caso dos romances policiais produzidos nos países ditos ‘pós-

coloniais’176, há questões políticas e sociais que precisam ser discutidas. A

primeira questão que vem à mente diz respeito ao fato de que nem todo detetive

pós-colonial é criação de um ‘autor pós-colonial’, o que poderia levantar um

certo questionamento a respeito da legitimidade de tais autores para falar por

essas comunidades. Por outro lado, o mesmo se deu quando os primeiros

detetives das minorias étnicas surgiram nos EUA – a princípio, os detetives de

origem mexicana, por exemplo, começaram a aparecer nas obras de autores de

origem anglo-americana. Em alguns casos, a escolha se dava com o objetivo de

aumentar a verossimilhança da obra; em outros, os personagens mexicanos eram

174 LIBRETTI, op.cit., p.66-67. 175 Ibid., p.67. 176 Uso o termo aqui em sentido bastante restrito, para fazer referência aos países que foram colônias por ocasião da Expansão Imperialista do século XIX e apenas conquistaram sua independência no século XX. Reconheço, entretanto, que várias das questões pertinentes a esses países também se aplicam a países que conquistaram sua independência anteriormente (como, por exemplo, o Brasil), assim como a nações internamente colonizadas (caso das nações indígenas dos EUA, por exemplo).

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incluídos por sua natureza ‘exótica’.177 Embora alguns desses autores não tenham

feito mais do que dar um sobrenome espanhol aos seus personagens, outros

tinham real intimidade com as subculturas representadas em suas obras. Hoje em

dia, como vários autores das minorias étnicas produzem ficção policial, é mais

comum encontrar esses detetives representados por escritores de sua própria

origem. O mesmo começa a acontecer no âmbito dos países pós-coloniais, de

modo que se imagina que será apenas uma questão de tempo para que novos

detetives pós-coloniais sejam criados por autores de sua própria origem.

Ed Christian, na introdução à coletânea The post-colonial detective, afirma

que os detetives pós-coloniais

[...] são sempre nativos ou radicados no país onde trabalham; são de alguma

forma marginalizados, o que afeta a sua capacidade de trabalhar dando todo o

seu potencial; [...] e o interesse de seus criadores está geralmente em explorar

como suas atitudes culturais influenciam o modo como esses detetives abordam

a investigação criminal.178

Tal definição leva a crer que o perfil do detetive pós-colonial é

extremamente semelhante ao perfil do detetive das minorias étnicas de países do

centro. Ambos vêem o crime a partir de uma posição marginalizada, que os torna

mais sensíveis às contradições sociais do mundo em que vivem, quer

177 Dentre eles, destacamos D.L. Champion, Robert Sommerlott, Rex Burns e Marcia Muller, que tem o mérito de haver criado a primeira detetive chicana, Elena Oliverez. (Cf. RAMOS, Manuel. The Postman and the Mex: from Hard-boiled to Huevos Rancheros in Detective Fiction.) 178 CHRISTIAN, Ed. The Post-Colonial Detective. p.2.

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consideremos o nível nacional (como nas minorias étnicas dos EUA frente à

sociedade branca dominante), ou o nível global (como nos países pós-coloniais

frente ao ex-colonizador).

Considerações finais

Nossa hipótese é que, na contemporaneidade, é comum que o enredo do

romance policial tenha se tornado apenas um pretexto. Há fortes indicações de

que o real objeto de atenção do detetive deixa de ser o próprio crime, sugerindo

que a verdadeira investigação que se empreende nessas obras diz respeito a como

se estabelecem as relações sociais de poder na modernidade tardia. No caso dos

romances policiais produzidos na periferia do poder, estudados desta tese, o

verdadeiro crime investigado seria, assim, a tentativa de apagamento e/ou

exclusão de comunidades marginalizadas pelos centros de poder, como também o

enfrentamento que ocorre entre os diferentes segmentos da sociedade.

Nesse sentido, é importante enfatizar uma certa descrença nas leis, na

polícia, no sistema penal e judiciário como um todo. Marca-se que lei e justiça

são conceitos fundamentalmente diferentes. A lei compreende o conjunto de

regras e costumes determinados por um Estado, e cumpre o papel de manter a

ordem vigente, o status quo de uma sociedade. A justiça constitui um conceito

mais abrangente; segundo Platão, é a virtude da eqüidade, cujo objetivo é ordenar

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e dirigir toda a convivência humana.179 Vê-se, portanto, que nem sempre os dois

conceitos são coincidentes – nem sempre a lei é igualmente justa com todos os

segmentos da sociedade.

Por fim, uma vez traçado esse mapa da tradição do romance policial,

cumpre ressaltar que esse é um mapa que se assume imperfeito, uma vez que

seria virtualmente impossível que alguma proposta de mapeamento pudesse

abranger um assunto por completo. Espera-se, entretanto, que o panorama seja

sólido o suficiente para fundamentar as discussões que se seguem, e incompleto o

bastante para estimular o leitor a empreender novos vôos.

179 Cf. PLATÃO. A república.

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CAPÍTULO II

As herdeiras de Miss Marple e

a práxis cotidiana como tática de resistência

A tática é a arte do fraco.

Michel de Certeau180

Bisbilhotices e mexericos: a detetive ‘solteirona’

Agatha Christie já era um nome conhecido dos leitores de romances policiais

quando publicou, em 1930, The murder at the vicarage, o primeiro romance

protagonizado por Miss Jane Marple, uma velhinha simpática e bisbilhoteira que

logo se tornaria um dos personagens mais queridos entre seus leitores. Miss Marple

não foi a primeira detetive feminina da história do romance policial181; entretanto,

tornou-se a mais emblemática entre as detetives mulheres.

180 CERTEAU, op.cit., p.101. 181 Em 1878, Anna Katherine Green já havia publicado The Leavenworth case, com a detetive Amelia Butterworth. Para um levantamento dos diversos detetives que aparecem em romances policiais a partir do século XIX, incluindo as mulheres, remeto o leitor para o livro Crime fiction, 1800-2000: detection, death, diversity, de Stephen Knight (ver, em especial, o apêndice “A chronology of crime fiction”). Na obra de Agatha Christie, a primeira detetive feminina foi Tuppence Beresford, que protagonizou, ao lado de Tommy Beresford, o romance The Secret

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Miss Marple é especial por ter sido a primeira detetive a trazer a investigação

– tradicionalmente associada à esfera policial institucional, ou ao investigador

particular, geralmente do sexo masculino – para a esfera da vida cotidiana. A fictícia

St. Mary Mead182, no interior da Inglaterra, onde ela vive, é aparentemente pacata,

porém apresenta um índice de assassinatos mais alto do que seria de se esperar...

Esses casos intrigam a velhinha solteirona, que, por meio do seu instinto e de uma

cuidadosa observação da natureza humana, acaba por desvendar o mistério. Afinal,

em suas próprias palavras, “a natureza humana é a mesma em todo lugar.”183

Entretanto, Miss Marple não é uma detetive profissional contratada para

resolver esses casos. Sua participação neles costuma começar sob a forma da mais

pura bisbilhotice, e prossegue sem que sua rotina diária seja alterada. O processo de

investigação não interrompe a sua vida cotidiana, mas se desenvolve enquanto ela

faz passeios pelas redondezas, conversa com os vizinhos, tem encontros para o chá

da tarde e, principalmente, mantém a costumeira vigilância da vida alheia. A rotina

constitui o próprio espaço da investigação, fornecendo os elementos para a solução

dos mistérios. São romances, portanto, marcados pela práxis cotidiana. A própria

Miss Marple explica como essas atividades do dia-a-dia definem o seu perfil de

‘detetive’:

Adversary, publicado em 1922. O casal figurou em um total de cinco romances da autora, no período entre 1922 e 1973. 182 Em seu artigo “Miss Marple’s St. Mary Mead: a Geographical Mystery Solved?”, Marty S. Knepper levanta a hipótese de que St. Mary Mead seria a cidade de Sunningdale, Berkshire, onde Agatha Christie vivia na época em que criou Miss Marple. Maiores informações sobre St. Mary Mead, compiladas dos romances de Agatha Christie, podem ser encontradas na Wikipedia, no verbete disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/St._Mary_Mead> 183 Miss Marple Home Page. Disponível em <http://br.geocities.com/missmarplebr/index2.htm>

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Analisou-se com a devida humildade. Era bisbilhoteira, vivia fazendo perguntas,

estava numa idade e tinha um tipo de quem seria normal que se esperasse que

procedesse assim. Esse era um dos aspectos, um aspecto possível. Pode-se

incumbir um detetive particular, ou algum investigador psicológico, de sair por

aí a fazer perguntas, mas a gente tem que concordar que é muito mais fácil usar

uma senhora idosa, cujo hábito de bisbilhotar e ser intrometida, de falar demais,

de querer descobrir coisas, passe por perfeitamente natural.

Uma velha mexeriqueira – disse Miss Marple consigo mesma. – É, tenho

certeza que é assim que me julgam. Existem tantas por aí, e são todas parecidas.

E naturalmente sou um tipo muito comum. Uma velhota comum, meio

excêntrica. Agora, lógico que isso serve de ótima camuflagem.184

Quando a personagem estreou, estava em curso uma importante

transformação social que se iniciara durante o reinado da Rainha Vitória – a

elevação gradual do status das mulheres na sociedade. Segundo Kathleen Hickok,

“as mulheres cada vez mais começaram a ser vistas como seres humanos

independentes, cujo valor para a sociedade e para si próprias não dependia apenas do

bom cumprimento de seus papéis tradicionais como esposas e mães.”185 Elizabeth

Roberts, entretanto, enfatiza que os historiadores que buscam mudanças radicais nos

papéis sócio-econômicos das mulheres devem examinar o período após 1950, já que,

até então, a maioria das mulheres esperava apenas seguir o caminho tradicional:

casar, ter filhos e ficar em casa.186 Assim, embora a situação concreta das mulheres

solteiras melhorasse gradualmente a partir da segunda metade do século XIX, com

cada vez mais empregos disponíveis a elas (para que a condição de ser solteira

184 CHRISTIE, Agatha. Nêmesis. p.45. 185 Cf. HICKOK, Kathleen. The Spinster in Victoria’s England: Changing Attitudes in Popular Poetry by Women. p.119. 186 Cf. ROBERTS, Elizabeth. Resenha de Jane Lewis, Women in England, 1870-1950: Sexual divisions and social change.p.652.

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deixasse de significar uma tragédia sócio-econômica187), pouco mudara no modo

como essas mulheres eram vistas pela sociedade desde o início da era vitoriana. Nas

palavras de Kathleen Hickok:

A mulher inglesa comum, não-casada, com mais de 30 anos, era essencialmente

uma excluída social, cuja própria existência violava a expectativa do século XIX

de que toda moça faria como fizera a própria Vitória – casar-se e gerar um

grande número de filhos. Ao contrário, a solteira – especialmente se ela não

fosse nem rica nem ‘protegida’ por um pai, irmão ou cunhado – se encontrava

sem um propósito de vida sério e socialmente aceitável, e freqüentemente até

sem meios para viver seu exílio em conforto e segurança. [...] A opinião

contemporânea tendia a descartá-la como uma anomalia, um dos poucos mas

inevitáveis fracassos do mercado matrimonial.188

Considerando-se esse contexto, Miss Marple, como uma “velha

mexeriqueira” a mais entre “tantas por aí”, “todas parecidas”, tem a camuflagem

perfeita. Uma velhinha solteirona é uma figura à margem da sociedade hegemônica,

um indivíduo não considerado produtivo, que não gera os frutos esperados pela

sociedade – sejam filhos ou o lucro advindo do trabalho189. É, portanto, ‘invisível’ –

e essa condição lhe confere mobilidade para transitar em diferentes espaços sociais,

187O termo é de HICKOK, op.cit., p.120. Hickok aponta que havia duas abordagens distintas à questão da mulher solteira. A primeira propunha educar as mulheres e modificar o trabalho, para que o celibato se tornasse menos prejudicial; a segunda, ao contrário, sustentava que o celibato não deveria se tornar fácil ou atraente, e que o casamento deveria ser promovido a qualquer custo, mesmo que fosse preciso forçar a emigração de mulheres solteiras para as colônias, a fim de que arranjassem um marido. 188 Ibid., p.120. 189 Mary Jane Jones, em seu artigo “The Spinster Detective”, classifica Miss Marple como uma amadora por excelência, já que, ao longo da série de romances que protagoniza, não apresenta nenhum meio visível de sustento. p.108.

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tornando-se um instrumento fundamental para a investigação. Kathy Mezei aponta

que:

A solteirona, objeto de ridículo, denúncia e pena, é um ícone recorrente na

literatura britânica, que data da Miss Bates de Jane Austen, em Emma, e

prolifera no período entre-guerras. [...] Mas essa imagem da solteirona como

solitária, supérflua e sexualmente frustrada é exposta e até certo ponto desfeita

nas personagens [...], conforme afirmam seus poderes de observação sagaz e de

manipulação.

Enquanto aparentemente regulada ou apagada por aqueles com maior poder

econômico e autoridade moral na família e na comunidade, a solteirona situa-se,

entretanto, como um instrumento de vigilância único, precisamente por causa da

sua posição marginal e indeterminada.190

Nos últimos anos, Miss Marple vem fazendo várias herdeiras entre as

detetives dos romances policiais produzidos fora do centro hegemônico. Também

elas são ‘invisíveis’ em meio à sociedade dominante – agora por questões raciais e

sociais. Como exposto na citação acima, é precisamente o ‘apagamento’ dessas

mulheres na sociedade que permite que elas levem a cabo o seu trabalho de

investigação, valendo-se da posição marginal que ocupam para questionar as

regulações e normas às quais apenas aparentemente se submetem.

Neste capítulo, tomando como base para argumentação a teoria de Michel de

Certeau sobre a práxis cotidiana, buscarei discutir de que forma essas práticas se re-

significam no embate entre o centro de poder e grupos ‘invisíveis’, além do seu

190 MEZEI, Kathy. Spinsters, Surveillance, and Speech: The Case of Miss Marple, Miss Mole, and Miss Jekyll. p.104.

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papel político como uma tática de resistência empregada como oposição a práticas

sócio-culturais dominantes.

A História muda: maneiras Outras de fazer

Em A invenção do cotidiano, Michel de Certeau se dedica a estudar as

práticas cotidianas do homem comum, atividades como andar, falar e cozinhar, entre

outras – a “História muda”191, que costuma ser relegada a segundo plano. Seu

propósito é analisar os usos e fazeres cotidianos como meio de opôr resistência às

práticas sócio-culturais dominantes.

Certeau distingue as “artes de fazer” entre estratégias e táticas192. Define

estratégias como uma manipulação das relações de força que possibilitam o

estabelecimento de um lugar próprio de poder. As táticas, por outro lado, são as

ações determinadas exatamente pela ausência de poder, um “não-lugar” que só se

realiza no espaço do Outro e em relação a ele, aproveitando-se das circunstâncias

para alcançar qualquer possibilidade de ganho. São maneiras outras de fazer, que

imprimem novos significados a códigos pré-estabelecidos e que, por meio de

pequenas astúcias e golpes, re-significam essas práticas. Enquanto as estratégias são

sustentadas pelo poder, as táticas visam a resistir a esse mesmo poder. Desse modo,

segundo Certeau, “a tática é a arte do fraco”193.

191 CERTEAU, op.cit., p.35. 192 Ibid., p.97-102. 193 Ibid., p.101.

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As táticas são modos de fazer que funcionam como uma cultura diferente

dentro da cultura dominante. Embora aparentemente estejam em conformidade com

o que é imposto pelo poder, essa conformidade se restringe à superfície, não passa

de uma fachada. São, por exemplo, os usos da língua que divergem da língua

padrão, pois, embora usem a mesma sintaxe e o mesmo vocabulário, expressam

interesses e desejos que não são nem mesmo percebidos pelo sistema em que se

desenvolvem194. São também os modos diferentes de seguir uma religião – Certeau

menciona o caso das etnias nativas da América durante a colonização espanhola, que

resistiam aos espanhóis sem demonstrar, apenas atribuindo novos significados às

práticas religiosas que lhes eram impostas195. Podemos lembrar o sincretismo

religioso no Brasil, que mistura tradições originárias da África com o catolicismo,

ou ainda a prática da capoeira, camuflada como ‘dança’ ou jogo, para driblar os

senhores de escravos.

Partindo-se então do pressuposto de que as práticas cotidianas podem

constituir uma forma de resistência de culturas subalternas ao poder dominante, sua

presença em tantos romances produzidos fora do centro hegemônico adquire um

novo valor. Logo se observa que elas têm um propósito político, constituem uma

tática por meio da qual as comunidades marginalizadas representadas buscam se

(re)apropriar de um espaço cultural, político e sócio-econômico, adquirindo novos

significados no espaço de confronto entre o centro de poder e a periferia.

Nos romances selecionados para discussão neste capítulo, é comum observar-

se a presença de mais de uma prática cotidiana; e cada uma delas pode também

194 Ibid., p.45. 195 Ibid., p.39.

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figurar em mais de um romance. Optou-se por trabalhar em subtópicos cada uma das

práticas escolhidas: o uso da língua; os cuidados com a casa e a família; os mitos e

crenças; e pequenos golpes e astúcias.

Fugindo do inglês padrão: o Black Vernacular English e o Spanglish

Ao estudar literaturas de subculturas, uma das primeiras referências que vêm

à mente é o texto clássico de Gilles Deleuze e Félix Guattari, “O que é uma literatura

menor?”196. O argumento central de Deleuze e Guattari é que “uma literatura menor

não vem de uma língua menor; é, antes, a que uma minoria produz em uma língua

maior.”197 A primeira característica de uma literatura menor é que nela a língua é

afetada por um alto coeficiente de desterritorialização, como no uso que os negros

dos Estados Unidos fazem do inglês198, embora o mesmo possa ser aplicado em

relação a outras literaturas produzidas por ‘minorias’, como a literatura chicana, por

exemplo.

O argumento de Deleuze e Guattari nos remete de volta à teoria de Certeau.

O uso menor de uma língua maior, como se faz tanto no Black Vernacular quanto no

Spanglish, constitui uma prática cotidiana do tipo tática – essas comunidades usam a

língua inglesa de um modo particular, que expressa os hábitos, as tradições, todo um

estilo de vida do qual a língua padrão não dá conta.

196 Trabalhou-se aqui com a versão do artigo em inglês, devido ao fato de que a edição brasileira do livro Kafka: por uma literatura menor, onde se encontra o artigo, está esgotada, e é rara mesmo em sebos e bibliotecas. 197 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. What is a minor literature?, p.16. 198 Ibid., p.16-17.

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Black Vernacular English

Zora Neale Hurston identificou a imitação como uma das características

básicas da expressão afro-americana.199 O termo ‘imitação’ não deve ser

compreendido como uma mera cópia, mas como uma forma de Significar200

diferente do original branco. Em The Signifying Monkey, Henry Louis Gates Jr.

aponta que Significar é um princípio da cultura afro-americana, uma tática por meio

da qual se marca a diferença em relação à cultura branca – há uma imitação

aparente, mas que revela ser uma subversão da estratégia dominante. De forma

simplificada, Significar consiste em engajar-se em certos jogos retóricos, nos quais

os falantes tomam um determinado significante e o esvaziam de seus conceitos

recebidos para que possam preenchê-lo com seus próprios conceitos, rompendo

assim a relação entre o significante e o significado.

Gates lembra que o Significar é um ritual adulto, aprendido pelos negros na

adolescência. Ensinar às crianças a arte de Significar é como ensinar-lhes uma

segunda língua que elas podem compartilhar com outros negros.201 Gates enfatiza o

fato de que se trata de uma estratégia retórica consciente, escrevendo que “[o]

domínio do Significar cria o homo rhetoricus Africanus, permitindo – por meio da

manipulação dessas figuras clássicas negras de Significação – que o negro se mova

livremente entre dois universos do discurso.202

199 Cf. JABLON, Madelyn. Making the faces black: the African American detective novel. p.38. 200 Uso aqui a inicial maiúscula para marcar que se trata do conceito de Signifying do Black Vernacular, mantendo o padrão usado por Henry Louis Gates Jr. em The Signifying Monkey. 201 GATES Jr., Henry Louis. The Signifying Monkey. p.75-76. 202 Ibid., p.75.

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Considerado “o tropo dos tropos do Black Vernacular”203, o Significar se

manifesta de diversas formas no uso diário da língua. Alguns tropos retóricos

negros, listados sob a rubrica Significar, incluem marking, loud-talking, testifying,

calling out, sounding, rapping, playing the dozens e outros.204 Dentre esses, um dos

mais emblemáticos é o jogo chamado The Dozens, também conhecido como “Yo

Momma Fights”, um dos elementos que contribuíram para o desenvolvimento do

hip hop. No jogo, dois competidores se enfrentam em uma bem-humorada batalha

de insultos, principalmente contra a mãe do adversário, até que um deles fique sem

resposta. O jogo pode ser inofensivo, um concurso de espirituosidade, auto-controle

e habilidade verbal – mas pode também mascarar tensões reais e incitar à violência.

De acordo com Mona Lisa Saloy,

As origens da proeza verbal afro-americana historicamente levaram ao insulto

ritual, um jogo para endurecer os corações negros contra o abuso da sociedade

[...], sob a forma dos dozens. Os insultos voam de um lado para o outro entre os

‘competidores’, e o perdedor é aquele que fica zangado, ou literalmente perde a

calma. Embora com freqüência sejam denegritivos, sexistas, estereotipados,

auto-zombeteiros e presunçosos, os dozens estão vivos e se fortalecendo. Hoje,

assim como na virada para o século XX, qualquer menção mais exaltada à mãe

de alguém é um convite para a briga.205

203 Ibid.,p.69. 204 Ibid., p.52. Na tradução do artigo de Kalí Tal, “A insustentável branqueza do ser”, Ricardo Rosas apresenta as seguintes traduções para os tropos retóricos negros: marking – enrolar ou ‘dar chapéu’; loud-talking – tirar onda de alguém ao falar alto com outra pessoa se referindo ao primeiro; testifying – ‘dar a letra’ ou contar a história; calling out (of one’s name) – desafiar alguém chamando seu nome; sounding – zoar; rapping – fazer a rima; playing the dozens – duelar ‘ritmicamente’ com palavras. 205 SALOY, Mona Lisa. Still Laughing to Keep from Crying. p.1-2.

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O poeta Langston Hughes referiu-se à prática dos dozens como “um jogo

fabuloso que poucos brancos parecem compreender, mesmo em seus níveis mais

básicos.”206 Reproduzo aqui uma anedota narrada por ele para exemplificar como se

dá, na prática, a cisão entre o significante e o significado que caracteriza o Significar

afro-americano sobre a cultura e a língua da sociedade branca:

I once knew a colored chauffeur who told me that one morning he had used his

people's car to do a little shopping on his own, since the boss was not going out

until noon. The chauffeur forgot to remove some of his parcels from the back

seat where he had placed them as the dog had been riding in front.

At noon when the boss emerged from the house to get in the car, he demanded

in a rather sharp tone, ‘Whose things are those on the back seat here?’

The way he spoke made the Negro mad. So, feeling evil anyhow, the chauffeur

replied, ‘Your mama’s.’

‘Not at all,’ said the white man. ‘Mother has not been out this morning.’

Fortunately, a complete lack of understanding of the little nuances involved

prevented the chauffeur from getting fired.207

O motorista negro, ao responder com a réplica típica dos dozens, ‘Your

mama’s’, está Significando sobre o patrão – ele fala figurativamente, mas é

compreendido literalmente... Vê-se que o significado do inglês padrão foi descolado

do significante e substituído pelo Significar afro-americano.

206 Cf. ELTON, William. Playing the Dozens, p.149. 207 Ibid., p.149. “Uma vez eu conheci um chofer negro que me contou que certa manhã ele tinha usado o carro dos patrões para fazer umas comprinhas pessoais, já que o patrão não iria sair até o meio-dia. O chofer esqueceu de retirar alguns dos seus pacotes do banco de trás, onde ele os tinha arrumado, já que o cachorro estava no banco da frente. / Ao meio-dia, quando o patrão saiu de casa para pegar o carro, ele perguntou em um tom bastante ríspido: ‘De quem são essas coisas aqui no banco de trás?’ / O modo como ele falou deixou o negro furioso. Então, sentindo-se malvado de qualquer forma, o chofer retrucou: ‘Da sua mãe.’ / ‘De jeito nenhum,’ disse o homem branco. ‘Mamãe não saiu esta manhã.’ / Felizmente, uma total falta de compreensão das pequenas nuances envolvidas evitaram que o chofer perdesse o seu emprego.”

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A idéia de Significar está presente também em outros aspectos da cultura

afro-americana, além do uso da língua, como na música, por exemplo. O jazz e o

blues, dois gêneros musicais afro-americanos por excelência, primam justamente

pela releitura e re-significação de grandes compositores que antecederam os atuais

intérpretes. Gates afirma que há tantos exemplos de Significar no jazz que seria

possível escrever toda uma história formal do desenvolvimento desse gênero

musical apenas sob esse aspecto. Ele aponta que as composições do jazz não buscam

‘superar’ ou ‘destruir’ suas antecessoras; ao contrário, o Significar jazzístico é um

gesto de admiração e respeito.208 Sobre as composições “Signify”, de Oscar

Peterson, e “Signifyin’”, de Count Basie, Gates comenta:

Nessas composições, a história formal dos estilos de solos de piano no jazz é

recapitulada, [...] um estilo de solo de piano segue o seu predecessor

cronológico na própria composição, de modo que os estilos do boogie-woogie,

do stride e do blues, entre outros, são representados em uma composição como

histórias do solo de piano no jazz, histórias do processo interno de repetição e

revisão.209

Gates ressalta ainda que a improvisação, tão fundamental à própria idéia do

jazz, não é nada mais do que repetição e revisão. Esse princípio deleuziano de

repetição e diferença210, essa prática da intertextualidade, tem sido crucial para o jazz

e seus antecessores, como o blues, os spirituals e o ragtime, que são a fonte dos

208 GATES, op.cit., p.63. 209 Ibid., p.63. 210 Cf. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição.

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tropos para a intertextualidade negra na tradição literária formal afro-americana.211

Na introdução de The Signifying Monkey, Gates já aponta que a aparente ‘imitação’

é, na verdade, uma repetição com diferença. Em suas próprias palavras, “[a]

repetição e a revisão são fundamentais para as formas artísticas negras, da pintura à

escultura, da música ao uso da língua. Decidi analisar a estrutura e a função do

signifying precisamente porque se trata de repetição e revisão, ou repetição com uma

diferença.”212

Essa diferença constituiu a base para o estudo das características específicas

da ficção policial afro-americana desenvolvido por Stephen Soitos, em sua obra The

blues detective, que relaciona a escrita negra com o blues – uma forma de Significar,

por sua estrutura repetitiva, que remete a compositores e/ou intérpretes anteriores,

dialogando com eles, da mesma forma que as improvisações do jazz. Soitos aponta

os tropos da ficção detetivesca negra, que permeiam os romances policiais afro-

americanos, marcando a diferença em relação à ficção policial tradicional. São eles:

1. a alteração da persona do detetive: os autores afro-americanos cunharam novas

imagens dos detetives, baseadas nas necessidades afro-americanas, e sua cor é um

fator fundamental para o sucesso da investigação213; 2. a dupla consciência:

segundo W.E.B. DuBois, a natureza do racismo nos EUA força seus cidadãos negros

a verem o mundo filtrado por dois níveis de consciência214 – primeiro são levados a

se verem como cidadãos de segunda classe, por causa da sua ancestralidade africana,

211 GATES, op.cit., p.63-64. 212 Ibid., p.xxiv. 213 SOITOS, Stephen. The blues detective: a study of African American detective fiction. p.29. 214 DuBOIS, W.E.B. The Souls of Black Folk. Ver o capítulo 1: “Of our spiritual strivings”.

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e somente então recebem o privilégio de se verem como cidadãos americanos 215; 3. o

uso do Black Vernacular: Soitos considera que Black Vernaculars são todas as

formas de expressão artística específicas dos negros dos EUA, que formam parte de

sua cultura e derivam da tradição popular.216

Tornar as faces negras – essa foi a técnica empregada por Chester Himes,

pioneiro da ficção policial negra dos Estados Unidos, ao criar sua primeira história

de detetives.217 Segundo Madelyn Jablon, embora Himes visse seu trabalho como

uma imitação, seus leitores insistiam na originalidade da sua obra.218 Considerando

que a ficção policial nasceu e se consolidou como um gênero ligado à ordem

dominante e à manutenção do status quo, ou seja, à burguesia branca, o simples ato

de tornar as faces negras significava operar mudanças no gênero, na medida em que,

de acordo com Soitos, a “negritude [do detetive] é um ingrediente integral para o

sucesso da investigação”219. Além disso, Soitos aponta que o detetive negro

compartilha um senso de comunidade e família que não existe na ficção detetivesca

tradicional220:

Mais do que focar simplesmente no crime e na captura do suspeito, os detetives

blues estão interessados na atmosfera social e política, freqüentemente até

mesmo excluindo a detecção. Essa atmosfera social e política é inscrita pelo

preconceito racial. O detetive blues reconhece a sua própria negritude assim

215 SOITOS, op.cit., p.33-34. 216 Ibid., p.38. Incluem-se aqui, por exemplo, a música, a dança, o uso da língua e a culinária. 217 “I haven’t created anything whatsoever… just made the faces black.” (“Eu não criei absolutamente nada... apenas tornei as faces negras.”). Entrevista concedida por Chester Himes a John A. Williams. Citado em JABLON, op.cit., p.26. 218 Ibid., p.26. 219 SOITOS, op.cit., p.29. 220 Ibid., p.29;31. Soitos faz um contraponto ao que ocorre com o detetive clássico ou hardboiled, cujo modelo de vida, crenças e vínculos pessoais variam entre o esboçado e o inexistente.

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como o que a negritude significa para os personagens no texto. O detetive blues

sabe o que significa ser um afro-americano ou [...] aprende o que significa sê-

lo.221

Nas palavras de DuBois:

O negro é uma espécie de sétimo filho, nascido com um véu, e agraciado com

uma segunda visão nesse mundo americano – um mundo que não lhe cede uma

auto-consciência verdadeira, mas apenas permite que ele se veja por meio da

revelação do outro mundo. É uma sensação peculiar, essa dupla consciência,

esse sentido de sempre se ver através dos olhos dos outros, de medir sua alma

com a fita de um mundo que o observa com desprezo divertido e pena. Pode-se

sentir essa duplicidade – um americano, um negro; duas almas, dois

pensamentos, duas lutas irreconciliáveis; dois ideais guerreando em um corpo

escuro, cuja força obstinada sozinha o impede de se desfazer em pedaços.222

Embora a dupla consciência, em seu sentido original, sugira uma visão de

mundo fragmentada para os negros, reconhece-se a existência de uma interação

dinâmica entre a comunidade negra e o mundo ao seu redor. Soitos aponta que, por

meio da aplicação da dupla consciência à persona do detetive, pode-se ampliar a

conexão entre o tropo do trickster e a detecção negra – como os detetives negros têm

a dupla consciência da sua negritude em relação à sociedade branca, podem usar as

qualidades do trickster para ludibriar seus inimigos no trabalho de detecção.223

221 Ibid., p.31. 222 DuBOIS, op.cit. 223 SOITOS, op.cit., p.35.

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As referências aos vernáculos negros entremeadas no texto de ficção

detetivesca afro-americana configuram o que Soitos denomina um blackground224,

composto por todos os aspectos da cultura afro-americana que ajudaram a definir sua

singularidade.225 De acordo com Soitos, o uso dos vernáculos enfatiza a importância

da cultura afro-americana nesses textos, em contraponto aos textos policiais

produzidos por autores brancos.– por exemplo, por meio das constantes referências

feitas ao blues e ao jazz. Houston Baker aponta que o blues é o vernáculo que

representa todas as qualidades especiais das criações afro-americanas, uma marca da

singularidade e da criatividade particular dos povos afro-americanos: “a cultura afro-

americana é uma empreitada complexa e reflexiva que encontra sua própria

figuração no blues concebido como uma matriz.”226

Este subtópico tratará em detalhes de um dos vernáculos negros apontados

acima: o modo particular desenvolvido pela comunidade afro-americana de se

expressar na língua inglesa subvertendo o inglês padrão – o Black Vernacular 227.

Também conhecido como Black Dialect, Black Idiom, Black English Vernacular,

Black Vernacular English e, mais recentemente, African American Vernacular

English e Ebonics, o Black Vernacular é um dialeto do inglês dos Estados Unidos,

utilizado pela comunidade afro-americana em ambientes e situações específicos –

trata-se de uma variante lingüística sistemática e regular, que contrasta com outros

224 Soitos faz um trocadilho intraduzível com a palavra background – pano de fundo, contexto. O blackground seria um pano de fundo ou contexto especificamente negro. 225 SOITOS, op.cit., p.37. 226 BAKER, Houston apud SOITOS, op.cit., p.38. 227 Embora o Black Vernacular possa englobar também outros aspectos individuais da cultura popular negra, como a música, a dança e a culinária, além da língua, no contexto deste trabalho o termo Black Vernacular significa sempre uma forma reduzida de se dizer Black Vernacular English, e refere-se somente ao uso da língua.

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usos da língua em termos de gramática, pronúncia e vocabulário.228 Sua origem é

controversa229 – mas há o consenso, entre os pesquisadores, de que se trata de uma

forma africanizada do inglês, que reflete a herança lingüística e cultural africana da

América negra, assim como as condições de servilidade e opressão da vida na

América, e não pode, portanto, ser considerado simplesmente uma versão

corrompida do inglês padrão230. O Black Vernacular constitui uma variante

lingüística sistemática, que obedece a regras distintas e apresenta padrões de

pronúncia, gramática, vocabulário e uso que ultrapassam as fronteiras do que seria

meramente a gíria – por isso, caracterizações como uma versão ‘mal falada’ do

inglês padrão são incorretas.231 Porém o consenso científico não se reflete no senso

comum, que mantém a visão preconceituosa de que o Black Vernacular não passa de

uma forma ‘errada’ de se expressar em inglês. Essa visão não é restrita à

comunidade branca, mas compartilhada também por um segmento da comunidade

afro-americana de perfil mais conservador.232 Não cabe aqui discutir a importância

de se dominar a língua padrão a fim de se obter sucesso educacional e profissional –

essa importância é inegável em qualquer sociedade em que relações de poder

restrinjam a mobilidade social, econômica e política dos falantes de acordo com as

diferentes variantes lingüísticas que dominam. A partir do momento, entretanto, em

228 Cf. Center for Applied Linguistics. Dialects. African American English. 229 Há desde pesquisadores que acreditam tratar-se do legado de um dialeto crioulo único existente nos primórdios da escravatura nos Estados Unidos, transformado desde então pelo contato com o inglês padrão, aos que dizem tratar-se do resultado da exposição dos seus primeiros falantes aos diversos falares regionais existentes na época. Cf. POPLACK, Shana, ed. The English history of African American English. p.1. 230 SOITOS, op.cit., p.39. 231 Center for Applied Linguistics, op.cit. 232 Para maiores informações sobre os dois lados da questão, remeto o leitor ao artigo “Ebonics Slang No Substitute for Standard English”, de Michael King, e à entrevista de Geoff Pullum a Jill Kitson para o programa de rádio Lingua Franca, “Why Ebonics is no joke”.

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que se considera a língua padrão apenas uma variante lingüística possível em meio a

outras tantas variantes lingüísticas também possíveis, e não como a única ‘correta’

em meio às ‘erradas’, abre-se caminho para um novo entendimento da questão,

agora sob o ponto de vista político. O inglês padrão não é ‘melhor’ ou ‘mais correto’

do que as outras formas de se falar o inglês – é apenas a variante utilizada pela

classe que detém o poder.

Uma série policial que explora bem a questão do uso do Black Vernacular é a

coleção Blanche White Mysteries, de Barbara Neely. O primeiro volume da série,

que tem como protagonista a faxineira afro-americana dublê de detetive batizada, de

forma deliciosamente irônica, como Blanche White, foi publicado em 1992 com o

título de Blanche on the lam.233 A série conta até o momento com quatro

romances234: a Blanche on the lam seguiram-se Blanche among the talented tenth

(1994)235, Blanche cleans up (1998) e Blanche passes go (2000). O nome da

protagonista, que provoca desde leves constrangimentos a sonoras gargalhadas nos

outros personagens, já sinaliza que esta não é uma série policial descompromissada.

Ao batizar sua protagonista negra com um nome que significa ‘branco’ duas vezes,

Barbara Neely atrai a atenção do leitor para as questões de cor e raça entremeadas no

enredo da série236. Neely afirma que sua intenção, ao escolher esse nome para sua

233 Deste ponto em diante, as referências a este romance serão indicadas pelas iniciais BL seguidas do número da página. 234 Não há informação no site oficial referente à série, disponível em <http://www.blanchewhite.com>, se a autora pretende dar continuidade à obra, embora sejam freqüentes os pedidos de leitores ávidos por novas aventuras de Blanche, na seção “Feedback”. 235 Deste ponto em diante, as citações deste romance serão marcadas pelas iniciais BTT seguidas do número da página. 236 Cf. SCHILLER, Beate. Between Afrocentrism and Universality: detective fiction by black women. p.29.

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protagonista, foi deixar bem claro para o leitor o fato de que se trata de uma série

com intenções políticas, que pretende abordar questões relativas à raça237:

Algo de que me acusaram no passado, em outras situações de trabalho, foi de

dizer algo às pessoas, então dizer-lhes que eu havia dito isso a elas e depois

dizer-lhes o que eu já havia dito, sempre repetindo tudo de novo. Com Blanche

White, era: bem, se vocês não entenderam que este é um livro sobre raça, deixe-

me dar-lhes esta mulher grande e negra cujo nome significa branco – duas

vezes.238

Indo um pouco mais fundo na explicação oferecida pela autora, pode-se

considerar que a carga de significado político do nome de Blanche White reside no

fato de que, no conjunto, a presença dos dois nomes acaba por inverter o significado

isolado de cada um deles. Esse significado não passa despercebido aos próprios

personagens dos romances, como na cena em que Mattie Harris, uma famosa

escritora feminista hospedada no mesmo resort que Blanche, levanta um brinde “à

ironia da pessoa que a nomeou – embora você deva passar maus bocados, Blanche

White.” (BTT, p.27)239. Considerando a escolha dos dois nomes uma tática, na

acepção de Certeau, temos uma fórmula em que a soma dos negativos gera um

resultado positivo, ou seja, Blanche anula White e vice-versa. Dessa forma, o uso

alternativo que se faz dos dois nomes, ou seja, a repetição de significados, ao invés

237 GOELLER, Allison D. An interview with Barbara Neely. p. 299-307. 238 Ibid., p.301. 239 “to the irony of the person who named you – although you must catch hell, Blanche White.”Ao trabalhar com obras literárias em edições estrangeiras, optou-se por manter as citações na língua original de publicação, quando destacadas do corpo do texto, incluindo a tradução no pé de página, de modo a não privilegiar a tradução em detrimento do texto original do autor. Entretanto, usou-se a tradução quando as citações fazem parte de uma estrutura sintática em português.

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de reforçar a noção de branco, acaba por descentrá-la, provocando um deslizamento

nas próprias categorias branco/negro.240

Vê-se que, ao longo dos romances da série, Barbara Neely permite que os

personagens se expressem livremente no Black Vernacular. Tanto em Blanche on

the lam quanto em Blanche among the talented tenth, o Vernacular está presente em

vários diálogos que Blanche trava com sua mãe, como na citação abaixo. Os trechos

em negrito ressaltam construções sintáticas características do Black Vernacular241:

“It’s me, Mama”.

“I was wondering where you was. I want you to stop by the...”

“Listen, Mama, I only got a second.” Blanche lowered her voice and kept her

eyes on the swinging door. The urgency in her tone stopped her mother from

objecting to being interrupted in mid-order.

“I want to tell you I’m safe. I…”

“What do you mean, ‘safe’?” Her mother wanted to know. “I don’t know

nothin’ about you not being safe!”

“I can’t explain right now, Mama. Just trust me and take care of the kids until I

can… If the sheriff or anyone asks, say you haven’t talked to me. Say you figure

I’ve run off to New Orleans, like I been talking about doing. But please don’t

let the kids hear you say that… They’re all right, ain’t they?” (BTT, p.18 –

grifos meus)242

240 Cabe aqui, inclusive, tecermos conjecturas a respeito do nome da detetive, no sentido da dupla inscrição de “branco”, associando-o ao costume do “double negative”, tão difundido no Black English (como por exemplo, na expressão “I ain’t got no money”), sugerindo que o negro nos EUA precisa “negar duas vezes” para poder afirmar. 241 Boa parte dessas características sintáticas do Black Vernacular se perde na tradução para o português. Dessa forma, as traduções dos exemplos apresentados pretendem apenas ser fiéis ao conteúdo semântico e, na medida do possível, transmitir a noção de coloquialismo e familiaridade presentes no original, sem o objetivo de reproduzir literalmente suas construções gramaticais. 242 “Sou eu, mamãe”. / “Eu queria saber onde ’cê tava. Quero que ’cê passe no...” / “Escuta, mãe, só tenho um segundo.” Blanche baixou a voz e ficou de olho na porta vai-e-vem. A urgência do tom impediu que sua mãe protestasse por ser interrompida no meio da ordem. / “Quero te dizer que tô a salvo. Eu…” / “O quê que ’cê quer dizer, ‘a salvo’? Eu num sei de nada de ’cê num tá a salvo!” / “Não posso explicar agora, mãe. Confia em mim e toma conta

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O Black Vernacular também está presente nas longas conversas ao telefone

que Blanche entretém com sua melhor amiga, Ardell. No diálogo a seguir, Blanche

comenta a reação de Arthur Hill, o recepcionista do resort Amber Cove, à sua

aparência:

“I ain’t worried about handling it. I’m just damned sick of having to. For just

once in my life, I’d like to get through a whole week without having to deal

with some fool, black or white, who’s got an attitude about the way I look.”

“Hummm. Well, in this world, in this time, you got as much chance of that

happening as you do of having a limousine come up through your toilet.”

“Don’t I know it?” Blanche agreed. “Everybody in the country got color on the

brain – whitefolks trying to brown themselves up and hate everything that ain’t

white at the same time; black folks puttin’ each other down for being too black;

brown folks trying to make sure nobody mistakes them for black; yellow folks

trying to convince themselves they’re white.” (BTT, pp.8-9 – grifos meus)243

Nos dois romances o Vernacular é usado em situações em que há intimidade

entre os falantes, sejam familiares, amigos ou conhecidos entre os quais há empatia.

Blanche também se permite usá-lo ao conversar com Nate, o jardineiro da casa onde

se emprega, em Blanche on the lam:

das crianças até que eu possa... Se o xerife ou alguém perguntar, diz que ’cê num falou comigo. Diz que ’cê acha que eu fugi pra Nova Orleans, como eu tava dizendo que ia fazer. Mas por favor não deixa as crianças ouvirem isso… Eles tão bem, num tão?” 243 “Eu num tô preocupada de ter que lidar com isso. Só tô de saco cheio. Uma vez só na vida eu queria passar uma semana inteira sem ter que lidar com algum idiota, preto ou branco, cheio de atitude sobre a minha aparência.”/ “Hummm. Bom, neste mundo, nesta época, você tem tanta chance disso acontecer quanto de uma limusine invadir o seu banheiro.”/ “E eu num sei?” Blanche concordou. “Todo mundo no país tem cor na cabeça – os brancos tentam se bronzear e detestam tudo que num é branco ao mesmo tempo; os negros rebaixam uns aos outros por serem negros demais; os morenos tentam se certificar de que ninguém vai confundi-los com os negros; e os amarelos tentam se convencer de que são brancos.”

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“I worked for her daddy and her daddy’s daddy. Outlived both them suckers.”

Nate chortled a vicious little laugh and headed for the back door. “I was looking

forward to going to Miz Em’s funeral too,” he added. “But now…”

“Why you say that? She ain’t dead yet, and neither are you.”

Nate hesitated. “Miz Grace is one of them kinda people always worried about

her standin’ in the community – that’s how she puts it, like she was some

kinda church or the government or something.” (BTT, p.57 – grifos meus)244

Em Blanche among the talented tenth, a única hóspede do resort com quem

Blanche usa o Black Vernacular é Tina, que também sofre o preconceito

generalizado entre os hóspedes do lugar, afro-americanos de pele clara, por ter a pele

escura:

“By the time I was nine, I was always ready to be laughed at or teased for being

so black. For a long time, I didn’t trust nobody, nobody, but my friend, Ardell.

You got a good girlfriend?” she asked.

“Yeah, my homegirl, Karen. We been tight since grade school. She’s always

got my back”, Tina told her.

“Good. Women like us need our girlfriends.” (BTT, p.129 – grifos meus)245

244 “Eu trabalhei pro pai dela e pro pai do pai dela. Vivi mais que os dois otários.” Nate deu uma risadinha malévola e se dirigiu à porta. “Eu tava ansioso pra ir no funeral da Miz Em também,” ele acrescentou. “Mas agora…”/ “Por quê você diz isso? Ela num tá morta, e nem você.” / Nate hesitou. “Miz Grace é uma daquelas pessoas sempre preocupadas com o seu lugar na comunidade – é assim que ela diz, como se ela fosse algum tipo de igreja ou o governo ou coisa assim.” 245 “Quando eu tinha nove anos, eu tava sempre pronta pra que rissem de mim ou implicassem comigo por ser tão preta. Por muito tempo, eu num confiava em ninguém, só na minha amiga, Ardell. ’Cê tem uma boa amiga?” ela perguntou. / “Tenho, uma menina da minha cidade, a Karen. A gente é grudada desde o primário. Ela sempre segurou a minha barra”, Tina disse. / “Bom. Mulheres como nós precisam das suas amigas.”

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Vê-se que utilizar o Black Vernacular significa abrir um espaço de

negociação no qual a língua menor se apropria da língua maior de modo a marcar

sua presença no espaço da cultura dominante e exercer resistência à

homogeneização. Entretanto, nota-se, em ambos os romances, que Blanche costuma

se valer do Black Vernacular apenas quando está em família ou entre amigos. Em

Blanche on the lam, por exemplo, ela raramente usa o Vernacular ao falar com

Grace ou Everett, seus patrões brancos; a variante escolhida é o inglês padrão:

The food was hardly touched. “She doesn’t have much appetite, does she?”

Blanche said, as she took the tray from Grace.

“She’s old and finicky,” Grace told her. “It hasn’t anything to do with your

cooking,” she added.

Blanche emptied the contents of Emmeline’s tray into the garbage disposal and

glanced at Grace. “She was hungry enough at lunch.” (BL, p.142)246

“Good morning, sir.”

“Why, good morning, Blanche White!” (…) “You’re looking quite chipper this

morning. Country air seems to agree with you.”

“Yes, sir, I always did like the country.” (BL, p.67)247

Mesmo com Mumsfield, o herdeiro portador da síndrome de Down, por quem

sente um carinho especial, Blanche costuma se comunicar no inglês padrão:

“Now,” she said, “how do you know someone’s been in the guest room?”

“The clothes, Blanche, I told you. The clothes. In the closet!”

246 A comida mal tinha sido tocada. “Ela não tem muito apetite, não é?” Blanche disse, enquanto pegava a bandeja de Grace. / “Ela é velha e enjoada,” Grace disse a ela. “Não tem nada a ver com a sua comida” ela acrescentou. / Blanche esvaziou o conteúdo da bandeja de Emmeline no lixo e olhou para Grace. “Ela estava com fome bastante no almoço.” 247 “Bom dia, senhor.”/ “Ora, bom dia, Blanche White!” (…) “Você parece bem mais alegre esta manhã. O ar do campo parece lhe fazer bem.”/“Sim, senhor, eu sempre gostei do campo.”

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“Aah.” [...] “I don’t know who’s been in the guest room, Mumsfield, honey, but

I think the clothes probably belong to your aunt Emmeline.” (BL, p.109)248

No segundo romance, Blanche among the talented tenth, o caso se repete –

Blanche tampouco se comunica no Black Vernacular com Mattie, Stu ou outros

representantes da classe média negra hospedados no resort:

“Maybe somewhere in the back of my mind I knew, but wouldn’t let myself

know because I wouldn’t have been able to handle it. What would I have done?

Confronted the man who had given me a life of privilege and accuse him of

exploiting me, of stealing my ideas?”

Blanche knew the question was not meant to be answered, but that didn’t stop

her. “Yes,” she said. “That’s exactly what you ought to have done. And you

probably would have, if you could have.”

Mattie thought for a second. “Maybe I wanted to pay him back for all that he’d

done for me.”

“Or maybe you were so pissed off you knew you would have had to strike out

on your own and try to make it alone, like the rest of ‘our sort’. Not a pretty

prospect when you’re in the catbird seat.”

Mattie was startled, then chuckled. “You know, Blanche, you have all the

makings of a first-class bitch.”

Blanche gave her a shocked look. “Why I sincerely hope so!” (BTT, p.92)249

248 “Agora,” ela disse, “como você sabe que alguém esteve no quarto de hóspedes?”/ “As roupas, Blanche, eu te disse. As roupas. No armário!”/ “Aah.” [...] “Eu não sei quem esteve no quarto de hóspedes, Mumsfield, querido, mas eu acho que as roupas provavelmente pertencem à sua tia Emmeline.” 249 “Talvez em algum recanto da minha mente eu soubesse, mas não me permitiria saber porque não teria sido capaz de lidar com isso. O que eu teria feito? Confrontado o homem que me oferecera uma vida de privilégios e acusá-lo de me explorar, de roubar minhas idéias?”/ Blanche sabia que a pergunta não era para ser respondida, mas isso não a impediu. “Sim,” ela disse. “Isso é exatamente o que você deveria ter feito. E você provavelmente teria feito, se pudesse.”/ Mattie pensou por um segundo. “Talvez eu quisesse recompensá-lo por tudo o que ele tinha feito por mim.”/ “Ou talvez você estivesse tão danada que sabia que teria tido que batalhar por sua conta e tentar se virar sozinha, como o resto da “nossa laia”. Não é uma perspectiva muito atraente quando a gente tá por cima da carne seca.”/ Mattie ficou espantada,

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O fato de Blanche transitar com desenvoltura entre um código e outro, do

Black Vernacular ao inglês padrão e vice-versa, sugere que, assim como o uso do

Black Vernacular significa abrir um espaço de negociação entre a cultura dominante

e a cultura dominada, também o emprego do inglês padrão é uma tática, uma forma

utilizada pelo fraco para sobrepujar o poder do forte. Essa linha de raciocínio nos

remete aos ensaios de Roberto Fernández Retamar sobre Calibán250, o personagem

de A Tempestade, de William Shakespeare. Na peça, Próspero escraviza Calibán,

cuja ilha havia invadido e dominado, e lhe ensina sua língua para que este possa

entender suas ordens e cumpri-las. Calibán, entretanto, encontra um uso alternativo

para a língua do dominador – usá-la para amaldiçoá-lo. Expressar-se na língua do

dominador equivale a amaldiçoá-lo em sua própria língua, para melhor se fazer

compreender: “A falar me ensinastes, em verdade. Minha vantagem nisso é ter

ficado sabendo como amaldiçoar. Que a peste vermelha vos carregue, por me terdes

ensinado a falar vossa linguagem.”251

Spanglish

Dá-se uma situação semelhante ao se considerar a comunidade chicana, que

tem no Spanglish a sua contrapartida ao Black Vernacular. O Spanglish é definido

por Gloria Anzaldúa como uma língua que nasceu da necessidade dos chicanos de se

identificarem como comunidade étnica – uma língua à qual podem ligar sua

depois riu. “Sabe, Blanche, você tem todas as características de uma cachorra de marca maior.”/ Blanche a olhou chocada. “Ora, eu sinceramente espero que sim!” 250 FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. Calibán: Apuntes sobre la cultura de nuestra América. 251 SHAKESPEARE, A Tempestade. Ato I, Cena 2

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identidade, sua realidade e seus valores252. O uso do Spanglish é um aspecto cultural

marcante, por meio do qual a cultura chicana tem reclamado o seu espaço ao longo

do tempo. A criação de uma língua própria foi um recurso necessário à expressão

dessa parcela da população dos EUA cuja primeira língua é o espanhol, mas que

vive em um país cuja língua oficial é o inglês. No Spanglish, palavras em inglês

aparecem mescladas a palavras em espanhol; por vezes, palavras em inglês são

flexionadas de acordo com as regras gramaticais do espanhol. O Spanglish é a língua

da fronteira, mas a fronteira mencionada aqui não é apenas a fronteira física entre

um país e outro; é também aquela que todo membro de duas culturas traz dentro de

si. De acordo com Deleuze e Guattari, cada língua expressa suas particularidades –

uma língua diz o que outra não pode, e assim muitas vezes se completam; desse

modo, as conexões entre as línguas tendem a possibilitar uma gama maior de opções

do que pode ou não ser dito.253 Segundo esse raciocínio, a mudança de códigos

inerente ao Spanglish, a alternância entre o inglês e o espanhol, significa, não uma

divisão da comunidade chicana entre duas culturas, mas sim uma opção política por

uma descentralização de poder. Expressar-se nas duas línguas, para a comunidade

chicana, equivale a retirar a língua hegemônica da sua posição central e buscar uma

redistribuição mais igualitária do poder.

A presença do Spanglish é uma característica marcante da obra de Lucha

Corpi, criadora da primeira detetive feminina da literatura chicana, Gloria Damasco,

252 ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera. p.77. 253 DELEUZE & GUATTARI, op.cit., p.24.

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protagonista de uma série que conta com três romances254: Eulogy for a brown

angel255, Cactus blood256 e Black widow’s wardrobe257.

Gloria é uma personagem sui generis. No início da série, ela é uma jovem

mãe de família chicana que está em Los Angeles participando da Moratorium

March258, e que, ao fugir do confronto com a polícia e da confusão generalizada que

se instala na cidade, encontra o corpo de um menino assassinado. Emocionalmente

envolvida no caso, ela se vê compelida a investigar não apenas o crime em si e seu

autor, mas as causas que teriam levado a essa atrocidade. No entanto, dezoito anos

se passarão antes que Gloria tenha a chance de elucidar o mistério. No ano em que

acontece o crime, ela investiga o caso, colabora com a polícia e coleta uma grande

quantidade de material referente aos envolvidos, mas acaba por abrir mão de

desvendar o mistério em troca de manter a harmonia no seu casamento e os cuidados

com a filha pequena. Somente quando as circunstâncias da vida a deixam sozinha –

254 Lucha Corpi publicou um quarto romance policial, Crimson moon, cujo subtítulo é “a Brown Angel mystery”. Embora os protagonistas Justin Escobar (que aparece desde o primeiro volume da série) e Dora Saldaña (que estréia no terceiro romance) já sejam conhecidos do público da série, não considero que o romance faça parte da série Gloria Damasco, pois Gloria passa boa parte da trama ausente, fora da cidade, cumprindo apenas um papel secundário no enredo. Dado o recorte deste ensaio, o romance não será considerado em minha discussão. 255 Deste ponto em diante, as referências a Eulogy for a brown angel serão indicadas pelas iniciais EBA, seguidas do número da página. 256 A partir deste ponto, as referências a Cactus blood serão marcadas pelas iniciais CB seguidas do número da página. 257 Nas próximas referências, Black widow’s wardrobe constará como BWW, seguido do número da página. 258 A Moratorium March aconteceu no dia 29 de agosto de 1970 em Los Angeles. Foi uma grande passeata em protesto contra a intervenção dos Estados Unidos no sudeste asiático e a indução de centenas de jovens chicanos ao alistamento nas forças armadas. A manifestação se desenrolou de forma pacífica até culminar em um confronto com a polícia no Laguna Park e na morte de civis, dentre os quais se encontrava o jornalista chicano Rubén Salazar. Para maiores informações sobre o episódio, remeto o leitor ao livro Occupied America: A History of Chicanos, de Rudolfo Acuña, particularmente o capítulo 9, “Goodbye America: the Chicanos in the 1960s.”

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seu marido morre e a filha vai para a universidade – ela decide retomar o trabalho de

investigar o caso que havia abandonado tantos anos antes.

No exemplo abaixo, retirado da cena em que Gloria encontra o corpo do

menino, o diálogo entre ela e Mando, um adolescente chicano, se processa em

espanhol e inglês ao mesmo tempo, sem prejuízo para a compreensão mútua:

“Soy Mando”, he said and looked straight at Joel, but his eyes took in

everything between the wall and the opposite sidewalk. He threw a quick glance

at the body, then at me. “El chavalito este. ¿Es tuyo?”

“No,” I replied, “it’s not my child.” (EBA, p.24)259

O Spanglish também é a língua usada quando Joel Galeano, um fotógrafo

chicano, relata ter sido abandonado por sua mulher:

“It’s so ironic. She’s been upset because I don’t have a steady job. ‘The kids

want this. My mother needs that.’ Always nagging me. Hey, I don’t wanna go

work in a photo lab. I wanna write for a newspaper, make a living as a

photographer. Pero esa wouldn’t hear of it. ‘Dame, dame! Gimme, gimme!’

That’s all she knows. Por fin I gave her, y bastante. He got up and leaned on the

counter. “But it wasn’t enough.” (EBA, p.82)260

259 “Soy Mando,” ele disse e olhou direto para Joel, mas seus olhos captaram tudo entre a parede e a calçada oposta. Ele lançou um rápido olhar ao corpo, depois a mim. “El chavalito este. ¿Es tuyo?” / “Não,” eu respondi, “não é meu filho.” 260 “É tão irônico. Ela anda aborrecida porque eu não tenho um emprego fixo. ‘As crianças querem isso. Minha mãe precisa daquilo.’ Sempre me importunando. Ei, eu não quero ir trabalhar em um laboratório fotográfico. Eu quero escrever pra um jornal, ganhar a vida como fotógrafo. Pero esa não queria saber disso. ‘Dame, dame! Me dê, me dê!’ Isso é tudo o que ela sabe. Por fin eu dei a ela, y bastante. Ele se levantou e se apoiou no balcão. ‘Mas não foi o suficiente.’ ”

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Também os diálogos entre Gloria e Justin, seu parceiro na investigação do

crime, são pontuados por expressões em espanhol entremeadas ao inglês:

“Gloria,” she heard Justin whisper, behind her. “Gloria,” he said again – louder

this time – as he got hold of her jacket sleeve and pulled her around. ¿“Estás

loca?”

“No, I’m not crazy,” she snapped. “You don’t have to come if you don’t want

to.” (EBA, p.151)261

Cabe apontar também que, ao longo da série, Lucha Corpi alternou a voz

narrativa entre a primeira e a terceira pessoa262. Eulogy for a brown angel e Black

widow’s wardrobe apresentam partes narradas em primeira pessoa, pela própria

Gloria, e outras narradas em terceira; já Cactus blood é totalmente narrado em

primeira pessoa. Nos trechos em primeira pessoa, por vezes o Spanglish aparece no

corpo da narrativa, e não apenas nos diálogos, como no seguinte exemplo:

I saw someone peer out from behind a window. As the riders passed under the

window, I realized that they were not wearing San Francisco police uniforms.

They were dressed as conquistadors263. It was as if we had been caught in a time

warp. (BWW, p.7)264

261 “Gloria,” ela ouviu Justin sussurrar, atrás dela. “Gloria,” ele disse novamente – mais alto dessa vez – enquanto a puxava pela manga do casaco. ¿“Estás loca?”/“Não, eu não estou maluca,” ela retrucou. “Você não tem que vir se não quiser.” 262 Para maiores informações acerca dos efeitos dessa alternância da voz narrativa, remeto o leitor a PORTILHO, Carla. Contra-escrituras Chicanas: revisitando mitos e subvertendo gêneros. p.58-59. 263 Gloria, a narradora, usa a palavra conquistador em espanhol, flexionada segundo as regras de formação de plural do inglês, ou seja, apenas acrescida de um –s; em espanhol, o plural seria conquistadores. Grifo meu. 264 “Eu vi alguém espiar por detrás de uma janela. Conforme os cavaleiros passavam debaixo da janela, eu percebi que eles não estavam usando os uniformes da polícia de San Francisco. Eles estavam vestidos como conquistadors.Era como se o tempo estivesse distorcido.”

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Ao utilizar o Spanglish como a língua escolhida pelo narrador, ainda que em

exemplos incidentais, Lucha Corpi legitima a sua existência e o seu uso corrente

como a língua representativa da comunidade chicana, questionando a visão

preconceituosa que considera o Spanglish não mais do que uma interferência do

espanhol ou uma forma errada de se comunicar em inglês.

De modo semelhante ao que ocorre com o Black Vernacular, também o

Spanglish é mais utilizado quando os membros da comunidade chicana se

comunicam entre si. Entretanto, é importante ressaltar que, no sudoeste dos EUA, a

parcela da população que usa o espanhol ou o Spanglish para se comunicar é tão

grande que uma pessoa de origem ‘anglo’ tem dificuldades de comunicação se não

tiver ao menos um conhecimento básico de espanhol. Assim, por vezes a prática da

língua se torna tão corriqueira que mesmo aqueles que não fazem parte da

comunidade acabam por incorporar certos termos ao seu discurso. É o caso da cena

em que o policial Matthew Kenyon conversa com Gloria a respeito de Joel Galeano:

“Have you ever read his articles?” He asked me after a long silence. I shook my

head, so Kenyon explained further, “He’s very dedicated, almost to the point of

obsession, to that la causa of yours. I personally think Galeano is very

disturbed.” (EBA, p.74)265

Essa mudança de códigos, o constante ir e vir entre uma língua e outra,

aponta para uma opção política por uma descentralização de poder. A prática de se

265 “Você já leu os artigos dele?” Ele me perguntou depois de um longo silêncio. Eu balancei a cabeça, então Kenyon continuou explicando, “Ele é muito dedicado, quase ao ponto da obsessão, à tal da la causa de vocês. Eu particularmente acho que Galeano é muito perturbado.”

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expressar nas duas línguas permite que a comunidade retire a língua hegemônica de

sua posição central e redistribua o poder de forma mais igualitária.

Voltando novamente a Deleuze e Guattari, vê-se que essa função política,

assim como o valor coletivo, são também características das literaturas menores.

Enquanto na literatura maior o interesse individual liga-se a outros interesses

individuais, e o meio social serve apenas como pano de fundo, na literatura menor

cada questão individual é imediatamente ligada à política. A literatura vem

carregada de uma função coletiva, e quando o escritor está à margem da

comunidade, essa situação lhe oferece ainda mais oportunidades para expressar uma

outra comunidade possível.266 Assim, o que lingüistas, editores e autoridades

educacionais em geral podem às vezes apontar como uma deficiência – a

interferência do espanhol no inglês – é valorizado por uma abordagem híbrida como

contribuições criativas e positivas à literatura. De acordo com Frances Aparicio, o

que parece na superfície ser uma prática que denota a assimilação cultural pode ser

também definido como um ato subversivo: o de usar as ferramentas (a língua, no

caso) do dominador para falar sobre si próprio e, ao longo do processo, infundir seus

próprios valores culturais e ideologias na cultura dominante.267 Assim, ainda com

base no argumento de Deleuze e Guattari, constata-se que a literatura menor se

caracteriza pelo uso particular que faz da língua maior.268

Nesse contexto, quando um escritor de fora do centro hegemônico opta por

abrir espaço em sua obra tanto para o modo como a língua é usada rotineiramente

266 DELEUZE & GUATTARI, op.cit., p.17. 267 APARICIO, Frances. On Sub-Versive Signifiers: Tropicalizing Language in the United States. p.202. 268 DELEUZE & GUATTARI, op.cit., p.16.

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pela sua comunidade quanto para a língua padrão, deixa claro que essa decisão tem

um peso político. Barbara Neely conta que teve o objetivo consciente de escrever

ficção política ao se dedicar à série Blanche White Mysteries: 269

Eu cheguei a um ponto em que não havia nada que eu particularmente quisesse

ler. Sempre me interessei por ficção política; e não me parece que haja muita

ficção política boa. Normalmente, a política está aqui e a história está lá adiante,

e o leitor tem que ir de um lado ao outro, se desdobrando entre as duas. Então eu

decidi brincar com a possibilidade de escrever um livro que fosse político, sobre

raça e classe – e que também fosse engraçado.270

Ainda a respeito da proposta política das séries, cabe escrever algumas

palavras sobre as estratégias narrativas empregadas pelas autoras, na tentativa de

responder aos questionamentos propostos no início deste ensaio. A forma narrativa

mais comum no romance policial dos EUA é a narração em primeira pessoa – uma

característica típica do roman noir, que floresceu nos EUA na década de 30, com

detetives que se tornaram emblemáticos na ficção policial, como Sam Spade271 e

Philip Marlowe. Lucha Corpi opta com freqüência por essa forma narrativa,

colocando Gloria na posição de narradora, em uma manobra que a aproxima dos

detetives do noir. Barbara Neely, por sua vez, escolhe narrar em terceira pessoa,

privilegiando uma forma mais comum nos romances de enigma ingleses, como os de

Agatha Christie, inclusive aqueles em que figura Miss Marple. Por meio dessa

técnica, Neely aproxima Blanche das outras detetives ‘solteironas’. Além disso, a

269 GOELLER, op.cit., p.299-307. 270 Ibid., p.301. 271 Embora Sam Spade seja um detetive icônico do noir, o romance mais conhecido protagonizado por ele, The maltese falcon, é narrado em terceira pessoa.

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decisão de manter a narrativa em terceira pessoa, tendo Blanche como principal

objeto focalizado, tira da autora a obrigação política, e coerente com a sua proposta,

de narrar todo o romance no Black Vernacular – o que seria de se esperar caso a

própria Blanche contasse suas aventuras, dirigindo-se diretamente à comunidade

afro-americana. Ao escolher um narrador impessoal, Neely abre caminho para o uso

do inglês padrão ao longo da narrativa, enquanto mantém o espaço para a expressão

dos personagens no Vernacular. Teoricamente, essa estratégia narrativa permite que

o romance atinja também o público branco, deslocando-o da sua posição central para

a posição do ‘outro’, marginalizado e estereotipado.272

O trabalho doméstico e os cuidados com a família

Arrumar, esfregar, xeretar

No romance Blanche on the lam (1992), as tarefas domésticas de Blanche

assumem um papel bastante diferente do esperado, que seria o de prover o sustento a

si própria e aos filhos da sua falecida irmã, que ela cria como seus. Em uma cena

inicial absolutamente surpreendente, Barbara Neely parece colocar Blanche no

espaço que os negros costumam freqüentar na literatura branca: o outro lado da lei,

ou seja, o banco dos réus. É comum que a literatura produzida por um membro de

uma determinada comunidade étnica tenha como público-alvo os membros dessa

mesma comunidade. Assim, o cenário de um tribunal onde a personagem-título é a

ré, sendo julgada por ter supostamente passado alguns cheques sem fundo, não

parece coerente com a proposta de se narrar as aventuras de uma detetive negra, e

272 Cf. SCHILLER, op.cit., p.76-77.

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causa estranheza ao leitor. Logo se conclui, entretanto, que a cena cumpre o

propósito de mostrar como o sistema judicial dos EUA é parcial em relação à

comunidade negra, freqüentemente associada à criminalidade. Nas linhas seguintes,

Blanche tenta argumentar que não pôde honrar os cheques porque seus patrões

(brancos) saíram da cidade sem pagar o seu salário, mas que tem em mãos o dinheiro

para saldar a dívida e pagar a multa – ou seja, a desonestidade dos patrões brancos

contrapõe-se à honestidade da empregada negra. O juiz, entretanto, mal ouve suas

explicações, e a condena a trinta dias de cadeia. Apavorada com a perspectiva, e

preocupada com o sustento dos filhos, Blanche se aproveita de uma confusão no

tribunal para escapar.

Seu próximo passo então é se refugiar como empregada temporária na casa

de uma família rica, esperando levar uma vida simples e discreta até que possa

esclarecer a situação. O disfarce à disposição de Blanche é a imagem estereotipada

da posição que ocupa na sociedade: a empregada doméstica negra. Ao vestir o

uniforme e tomar os apetrechos necessários para cumprir suas tarefas, Blanche

torna-se, nas palavras de Rosemary Hathaway, “invisível em plena vista”273, com

total liberdade para transitar em um meio que não reconhece a pessoa Blanche nem

sua individualidade, mas apenas a função exercida por ela.274

Blanche é uma mulher negra, solteira, de meia-idade, acima do peso, que

ganha a vida como faxineira diarista por opção própria, e está farta do racismo dos

brancos “que parecem pensar que ela deveria ficar encantada por esfregar seus

273 HATHAWAY, Rosemary V. The Signifyin(g) Detective: BarbaraNeely’s Blanche White, Undercover in Plain Sight. 274 O tema da invisibilidade será retomado mais adiante, no subtópico “Pequenos golpes e astúcias sutis”.

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banheiros e lixeiras ganhando uma miséria.”275 À primeira vista, parece tentador

considerá-la uma Miss Marple negra – ambas são solteiras, decididamente curiosas e

bisbilhoteiras, e a princípio se auto-incumbem da tarefa de resolver os mistérios que

perturbam suas vidas aparentemente pacatas.276 Entretanto, um olhar mais atento

percebe que as semelhanças entre Miss Marple e Blanche se resumem ao estado civil

e à capacidade de resolver esses mistérios que parecem povoar suas vidas com uma

freqüência fora do normal... Blanche é uma mulher independente, que ganha o

próprio sustento com seu trabalho e que permaneceu solteira por opção. Sua

liberdade de escolha se afirma no longo relacionamento mantido com Leo,

considerado o homem perfeito para ela por sua família e amigas, mas com quem ela

se recusa a casar; além disso, com a morte de sua irmã, Blanche cria um vínculo de

responsabilidade familiar distinto das tradicionais representações burguesas de

detetives solteiras, ao assumir a criação dos sobrinhos como se fossem seus próprios

filhos.

Como empregada doméstica, Blanche considera que “ler pessoas e sinais, e

avaliar situações, fazem parte do seu trabalho tanto quanto esfregar o chão e arrumar

as camas.” (BL, p.3)277 Seu trabalho de investigação se inicia quando ela se vê na

iminência de ser considerada suspeita de um assassinato; assim, ela busca desvendar

o mistério por meio de sua inteligência, seu conhecimento da natureza humana e seu

275 CARY, Alice. Grandma Just Liked to Boogie. 276 Tanto Blanche quanto Miss Marple permanecem fiéis à condição de detetives amadoras, e nunca se profissionalizam. Ambas, entretanto, no decorrer de suas respectivas séries, aceitam usar suas habilidades investigativas para ajudar amigos em necessidade. Blanche o faz em Blanche Passes Go, quarto e último livro da série até o momento, e Miss Marple em Nêmesis, previamente citado. 277 “[…]reading people and signs, as much as sizing up situations, were as much a part of her work as scrubbing floors and making beds.”

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bom senso – estratégias comumente empregadas pelas detetives amadoras – além de

uma extensa rede de informações formada por amigas e conhecidas que trabalham

em outras casas.

Essa rede de informações funciona também como uma proteção à detetive ao

longo do seu trabalho investigativo. Ao contrário da detetive hard-boiled, que

costuma ser sozinha e não tem uma família imediata com a qual se preocupar, a

detetive amadora precisa ficar atenta ao risco em que coloca sua própria família ao

investigar o crime. A detetive amadora acumula papéis – além de detetive, é amiga,

mãe, esposa – mas, nenhum desses papéis a define por si só; cada papel é apenas um

entre os demais. Para ela, a investigação não representa sua identidade pessoal ou

profissional, mas uma necessidade, a de defender a si própria, a um amigo ou a um

membro da família. Ainda assim, muitas vezes o papel da detetive amadora entra em

conflito com o papel protetor que a mulher tradicionalmente desempenha na família,

que, de acordo com a tradição burguesa, seria sua obrigação primordial. Suas

obrigações em relação à comunidade e a outras instâncias da esfera pública viriam

apenas em segundo plano.

Segundo Kimberly Dilley, a detetive feminina, profissional ou amadora, não

constitui uma figura de autoridade como o homem, que é parte da ordem vigente e

determina as soluções para os casos em que essa ordem é rompida.278 Nos romances

femininos, muitas vezes não se aceita uma única visão da realidade – não há uma

única voz privilegiada, detentora da verdade. Entretanto, embora a detetive feminina

branca busque espaço para o feminino dentro da ideologia masculina, ela não deixa

278 DILLEY, op.cit., p.124.

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de fazer parte da ideologia dominante, que é branca. A detetive branca protesta

apenas contra os estereótipos de gênero, contra a posição secundária a que a mulher

é relegada em uma sociedade dominada pelos homens. No caso de uma detetive

como Blanche White, essa situação é exacerbada, pois a exclusão é multiplicada por

três. Além das questões referentes ao gênero, é preciso então analisar também as

questões relativas à raça e à classe social da personagem – Blanche não é apenas

mulher, é também negra e pobre.

As mulheres negras nos Estados Unidos estão sujeitas a estereótipos que têm

origem histórica, e remontam à época da escravidão. Tais estereótipos estão

fundados em figuras como a Mammy, por exemplo, a escrava negra responsável por

cuidar das crianças brancas, oferecendo alimento, conforto e carinho. Embora a

Mammy seja um símbolo de força, resistência e autoconfiança, aceito inclusive pela

própria comunidade negra279, Blanche recusa o rótulo, assim como recusa o papel

secundário desempenhado pelos negros na sociedade branca. Pelo contrário, ela

percebe que pode se valer do estereótipo da Mammy como um disfarce, e que

Significar sobre esse estereótipo pode fortalecê-la, como aponta Hathaway:

Blanche parece ‘manter-se em seu lugar’ ao seguir as regras de seus patrões

enquanto leva a cabo sua própria agenda subversiva por baixo dos panos.

Porque ninguém que Blanche está ‘investigando’ sabe que ela está

transgredindo, ou mesmo pensa que ela seria capaz de tal complexidade, seu

ganho ao fazê-lo é aumentado exponencialmente.280

279 SCHILLER, op.cit., p.23-24. 280 HATHAWAY, op.cit., p.325.

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Um exemplo desse fortalecimento por meio do Significar sobre o estereótipo

é o episódio em que Blanche deliberadamente imita os gestos de Butterfly McQueen

no filme “E o Vento Levou”:

“Oh, Lord!” Blanche lifted her apron to her face as she’d seen Butterfly

McQueen do in Gone with the Wind. If the subject had been anything other than

Nate’s death, she’d have had a hard time keeping a straight face. It was the kind

of put-on that gave her particular pleasure. But now she only wanted to appear

convincingly simple. She rubbed her eyes to moisten and redden them, and

raised her head to regard her enemy’s helpmate. (BL, pp.153-154)281

Ainda segundo Hathaway, cozinhar e limpar são, para Blanche, atividades

que significam não somente o seu modo de sobreviver, mas também uma forma de

conquistar liberdade e independência, tanto dos seus patrões quanto dos seus

perseguidores – “ela existe dentro dos limites do seu trabalho, e luta contra esses

limites usando o próprio trabalho”282. Desse modo, essas atividades adquirem um

novo valor ao funcionarem como táticas, conferindo a Blanche um poder não

tradicionalmente associado ao empregado doméstico.

No entender de Blanche, ser uma empregada temporária pode ter suas

desvantagens, mas lhe dá autonomia e independência, além de impedir que ela

trabalhe tempo suficiente em uma mesma casa para se envolver com os seus patrões

ou começar a se preocupar com eles. Blanche vê qualquer preocupação e/ou

281 “‘Oh, Senhor!’ Blanche cobriu o rosto com o avental, como tinha visto Butterfly McQueen fazer em “E o Vento Levou”. Se o assunto fosse outro, que não a morte de Nate, ela teria tido problemas para segurar o riso. Era o tipo de encenação que lhe dava um prazer especial. Mas agora, tudo o que ela queria era parecer simples e convincente. Ela esfregou os olhos para que ficassem vermelhos e lacrimejassem, e levantou a cabeça para encarar a ajudante do seu inimigo.” 282 HATHAWAY, op.cit., p.326.

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interesse pelos brancos como um sintoma da doença que ela denomina Darkies’

disease283, e que funciona como um instrumento de dominação psicológica. A

‘doença’ se manifesta quando os empregados negros acreditam que existe uma

relação de carinho por parte da família branca que os emprega e se apegam a ela,

como se fizessem ‘parte da família’, criando laços de afeto que dificilmente são

retribuídos. Blanche relata o caso de uma mulher que sempre tomava o mesmo

ônibus que ela:

There was a woman among the regular riders of the bus she often rode home

from work who had a serious dose of the disease. Blanche actually cringed

when the woman began talking in her bus-inclusive voice about old Mr.

Stanley, who said she was more like a daughter to him than his own child, and

how little Edna often slipped and called her Mama. That woman and everyone

else on the bus knew what would happen to all that close family feeling if she

told Mr. Stanley, or little Edna’s mama, that instead of scrubbing the kitchen

floor she was going to sit down with a cup of coffee and make some phone

calls. (BL, p.48) 284

Blanche luta contra os sintomas da Darkies’ disease principalmente quando

percebe que sente um carinho especial por Mumsfield, um rapaz branco que tem

Síndrome de Down e é o herdeiro milionário da família para a qual ela trabalha.

Apesar do afeto que sente, Blanche não se permite relevar o fato de que Mumsfield é

283 Em uma tradução literal, “Doença dos Escurinhos”. 284 “Havia uma mulher entre os passageiros regulares do ônibus em que ela normalmente ia para casa depois do trabalho que tinha um sério caso da doença. Blanche literalmente se encolhia quando a mulher começava a contar, naquela voz que o ônibus todo ouvia, sobre o velho Sr. Stanley, que dizia que ela era uma filha para ele, mais do que a sua própria filha, e como a pequena Edna volta e meia se confundia e a chamava de mamãe. Aquela mulher, e todos no ônibus, sabiam o que aconteceria a todo esse apego familiar se ela dissesse ao Sr. Stanley, ou à mãe da pequena Edna, que, ao invés de esfregar o chão da cozinha ela iria pegar um cafezinho e se sentar para dar alguns telefonemas.”

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branco – “Ela não queria cobrir de atenções uma pessoa cujos antepassados haviam

provavelmente comprado e vendido os antepassados dela como se fossem sapatos ou

máquinas.” (BL, p.182)285 Ainda assim, Blanche é sensível ao fato de que a condição

de Mumsfield o torna tão invisível quanto, no caso dela, a cor da pele e a profissão:

She understood that his Down’s Syndrome made him as recognizably different

from the people who ran and owned the world as she… There was no way she

could explain how the last six days had confirmed her constitutional distaste for

being any whiteman’s mammy… “I understand, Blanche,” he’d told her. “I

understand.” And for two seconds she’d thought that somehow he’d leaped

across the gap between them and truly knew what it meant to be a black woman

trying to control her own life (…). (BL, pp.214-215)286

Embora Blanche confira a Mumsfield um status diferente do conferido aos

seus outros patrões brancos, Monika Muller ressalta que suas reflexões acerca dos

relacionamentos entre os empregados negros e seus patrões brancos no geral

apontam para o fato de que, mesmo décadas após o Movimento pelos Direitos Civis,

a estrutura de poder ainda não se modificou.287

285 “She didn’t want to shower concern on someone whose ancestors had most likely bought and sold her ancestors as if they were shoes or machines.” 286 “Ela reconhecia que a sua Síndrome de Down o tornava tão claramente diferente das pessoas que controlavam e possuíam o mundo quanto ela... De modo algum ela poderia explicar como os últimos seis dias haviam confirmado o seu desgosto essencial por ser a ‘mammy’ de qualquer homem branco... ‘Eu entendo, Blanche,’ ele tinha dito a ela. ‘Eu entendo.’ E por dois segundo ela pensou que de algum modo ele tinha saltado sobre o espaço entre eles e verdadeiramente sabia o que significava ser uma mulher negra tentando controlar sua própria vida.” 287 MULLER, Monika. “A Cuban American ‘Lady Dick’ and an African American Miss Marple?: The Female Detective in the Novels of Carolina García-Aguilera and Barbara Neely”. p.123.

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Uma boa mãe de família chicana

No caso de Gloria Damasco, a prática de cuidar da casa e da família tem um

papel menos preponderante na sua rotina de detetive do que no caso de Blanche, já

que, a princípio, se mostra em Gloria justamente por meio de suas renúncias – ela

renuncia à investigação do crime em nome de manter a tradição chicana, que reza

que a primeira obrigação da mulher diz respeito ao seu marido e à sua família. Por

outro lado, é exatamente essa renúncia inicial à investigação, que retarda a solução

do caso por quase duas décadas, que define o perfil de Gloria como detetive. Ao

longo da série, ela deixa de ser uma detetive amadora, que investiga o caso usando

apenas seu bom senso, sua intuição e sua rede de contatos – semelhante assim ao

modelo oferecido por Miss Marple – para se tornar uma detetive profissional,

treinada para utilizar armas de fogo e enfrentar situações de perigo, distanciando-se,

portanto, do modelo original e acercando-se dos detetives hard-boiled do romance

noir.

Em 1970, ano que acontece o crime, Gloria investiga o caso de forma

amadora, levada pela perturbação causada pela morte do menino cujo corpo ela

descobre na rua. Envolvida afetivamente no caso, ela colabora com a polícia, estuda

o caso e acaba por montar um bom dossiê referente aos envolvidos. Entretanto,

pressionada pelo marido a escolher entre a família e o prosseguimento das

investigações, Gloria abre mão de desvendar o mistério em troca de manter a

harmonia no seu casamento e os cuidados com a filha pequena. Judy Maloof enfatiza

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que Darío, o marido de Gloria, usa chantagem emocional quando verbaliza o

seguinte ultimato288:

I know I shouldn’t have gone through your papers [...] but I needed to find out

what it was you were risking your health and happiness for. (…) You never told

me that you were held at gunpoint. What has happened to you, Gloria? Is

tinkering with this case so important to you that you would risk everything for

it? (…) I’ve never told you what to do. [...] And I never kept you from doing

what you thought was best. But you’ve never been reckless before. Now you’re

endangering your life, with no regard for Tania’s well-being or mine. (…) I will

not keep you from going on with your investigation. (…) But think about this.

What is more important for you, solving this case or keeping our marriage and

family together? This is something you alone will have to decide. (EBA,

p.121)289

A sensação de estar roubando tempo da família para se dedicar ao trabalho é

uma questão inexistente para os detetives homens, mas essencial para as mulheres,

sobretudo as chicanas, cuja obrigação primordial diz respeito ao bem-estar do

marido e dos filhos. Por vezes, essa condição feminina se assemelha a uma

armadilha, como na seguinte passagem do romance:

288 MALOOF, Judy. The Chicana Detective as Clairvoyant in Lucha Corpi's Eulogy for a brown angel (1992), Cactus blood (1996), and Black widow’s wardrobe (1999). p.6. 289 “Eu sei que não deveria ter mexido nos seus papéis [...] mas eu precisava descobrir em nome de quê você estava arriscando a sua saúde e a sua felicidade. [...] Você nunca me disse que ficou na mira de uma arma. O que houve com você, Gloria? Resolver esse caso é tão importante pra você que você arriscaria tudo por ele? (…) Eu nunca te disse o que fazer. [...] E eu nunca te impedi de fazer o que você achasse melhor. Mas você nunca foi descuidada antes. Agora você está colocando a sua vida em perigo, sem nenhuma consideração pelo bem-estar da Tania ou o meu. (…) Eu não vou impedir que você continue com a sua investigação. (…) Mas pense nisso. O que é mais importante pra você, solucionar esse caso ou manter o nosso casamento e a nossa família? Isso é algo que você sozinha vai ter que decidir.”

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Then her thoughts drifted over the many mothers who had been involved in this

case. [...] They seemed to be caught in a game where all the main players were

men, and the losers were all women and their children. When this was over – as

in time of war and subsequent peace – the women would have to swallow their

grief and their shame. They would have to comfort and support each other, then

begin the long and painful task of rebuilding their lives. (EBA: 170 171)290

Desse modo, dezoito anos se passam antes que seja possível a Gloria

destrinchar o caso. Ela só volta a investigar o mistério em 1988, após a morte de seu

marido e a ida da filha para a universidade. Nesta segunda parte do romance, ela já

está livre de suas obrigações para com a sociedade, em particular a sociedade

chicana, centrada na unidade familiar. A viuvez representa a conquista da liberdade

– a mulher viúva é ainda mais livre do que a divorciada, já que esta é

responsabilizada pelo fim do casamento.

Kimberly Dilley aponta que o detetive masculino tradicional não tem tempo

para uma esposa e filhos, mas nunca é cobrado em relação a isso. Por outro lado, a

detetive feminina sofre pressões da sociedade para casar e constituir uma família,

uma vez que esse é considerado o papel fundamental da mulher na sociedade. Seu

trabalho como investigadora particular é visto como a principal causa de rupturas

nos casamentos e como fonte constante de conflitos para o casal. As mulheres

divorciadas estão livres de grande parte da pressão exercida pela sociedade sobre as

mulheres solteiras para ‘agarrar’ um marido – é certo que são consideradas culpadas

290 “Então seus pensamentos se dirigiram às muitas mães envolvidas no caso. [...] Elas pareciam estar presas em um jogo no qual todos os principais jogadores eram homens, e os perdedores eram as mulheres e seus filhos. Quando tudo terminasse – como em tempo de guerra e paz subseqüente – as mulheres teriam que engolir sua tristeza e sua vergonha. Elas teriam que confortar e apoiar umas às outras, e então começar a longa e penosa tarefa de reconstruir suas vidas.”

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pelo fracasso da relação, mas ao menos recebem aprovação social por terem seguido

o caminho do casamento.291 Ela ressalta ainda que os relacionamentos mais

satisfatórios mostrados nos romances policiais femininos são aqueles em que os

papéis e expectativas tradicionais são continuamente renegociados e compreendidos

como definições sociais, ao invés de qualidades inatas.292

Gloria volta a se envolver afetivamente ao conhecer Justin Escobar, um

detetive particular contratado por sua mãe para protegê-la quando ela decide reabrir

seus arquivos e dar prosseguimento às investigações. A princípio, Gloria e Justin

tornam-se parceiros profissionais, mas a relação se aprofunda no decorrer da série.

Em Cactus blood, o segundo romance, eles tornam-se amantes e, no início do

terceiro, Black widow’s wardrobe, Gloria se refere a Justin como “o homem com

quem há algum tempo eu dividia meu trabalho investigativo, minha cama, meus

sonhos” (BWW, p.10)293. No caso da detetive chicana, esse relacionamento de igual

para igual envolve uma total subversão dos valores tradicionais familiares

mexicanos / chicanos, baseados na submissão da mulher ao marido. Gloria não

enfrenta a oposição da família ou da sociedade porque decidiu seguir a carreira de

detetive somente depois de se dedicar com afinco ao papel de esposa e mãe. Em

nenhum momento ela escolhe deixar de lado a vida com o marido e a filha para se

tornar uma detetive profissional, ou seja, trocar a esfera privada pela pública. É

apenas quando as circunstâncias da vida a deixam sozinha que ela decide retomar o

trabalho de investigação que havia abandonado.

291 DILLEY, op.cit., p.26-27. 292 Ibid., p.29. 293 “the man with whom I had for some time shared my investigative work, my bed, and my dreams.”

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A questão da obrigação da mulher chicana em relação à família é tão forte

que um dos grandes mitos da cultura é La Llorona. A imagem de La Llorona refere-

se às mulheres cujos filhos foram mortos ou àquelas que por si próprias mataram ou

abandonaram os filhos. Os espíritos dessas mulheres vagam sem conseguir

descanso, e seus gritos angustiados podem ser ouvidos durante a noite.294 Em

algumas narrativas, como no consagrado romance Bless me, Ultima, de Rudolfo

Anaya (1972), o medo de La Llorona se faz presente naqueles que se aventuram

pelas margens dos rios, pois a versão mais comum do mito relata que ela afogou as

crianças, se matou em seguida, e desde então assombra os rios à noite lamentando os

seus atos e chamando pelos filhos.295 Os pais costumam avisar às crianças que não

fiquem fora de casa ou perto dos rios até tarde, para que La Llorona não os confunda

com os seus próprios filhos e os leve com ela.296

Lucha Corpi faz uma referência explícita ao mito de La Llorona no

personagem de Lillian Cisneros, a mãe do menino assassinado. Lillian se culpa por

ter deixado o filho com a avó para participar da Moratorium March e sente-se

responsável pela morte dele. Ela vaga pela casa sem conseguir chorar até que um dia

desaparece pela manhã e é encontrada pelo marido junto a uma fonte na frente da

casa, repetindo: “Essa é a minha fonte de lágrimas. [...] Vou me afogar nela. O que

eu fiz?”297 (EBA, p.38) . Tempos depois, Gloria e sua amiga Luisa também têm uma

visão de Lillian como La Llorona:

294 Cf. REBOLLEDO, Tey Diana. From Coatlicue to La Llorona: Literary Myths and Archtypes. p.62-63. 295 Cf. WEST, John O. La Llorona. 296 Cf. CASIAS, Stephanie. La Llorona: A Chicano Folktale. 297 “This is my pool of tears. [...] I’m going to drown in it. What have I done?”

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[...] they heard Lillian murmur, “M’ijito, I’m coming.”

“La Llorona”, whispered Luisa as her trembling hand squeezed Gloria’s arm,

“It’s spooky”. (EBA, p.174)298

Essas passagens remetem o leitor à importância da unidade familiar para a

cultura chicana, e lembram que a obrigação primordial da mulher chicana é em

relação à família e aos filhos. O uso do mito no romance não tem função didática,

não pretende apontar caminhos a serem seguidos pelos leitores e, principalmente,

leitoras. O romance apenas descreve o que seria a reação comum de uma mãe de

origem mexicana que perdesse um filho nas circunstâncias relatadas – ela choraria a

perda, sim, mas dificilmente deixaria de sofrer o peso da responsabilidade imposta

pelos costumes e se culparia por ter deixado o filho aos cuidados de outra pessoa.

O mito de La Llorona ajuda a compreender a razão pela qual Gloria opta pela

família em detrimento da investigação do caso. A detetive Gloria Damasco não se

opõe à mulher chicana Gloria Damasco – pelo contrário, elas se complementam. A

detetive é um desdobramento natural de uma mulher que desde a juventude já se

preocupava com o bem-estar da comunidade chicana, era politizada, participante

ativa do Movimento Chicano, engajada na luta pelo fim do preconceito racial.

Lucha Corpi efetiva a reviravolta na vida de Gloria – de mãe de família a

detetive – por meio de uma mudança na voz narrativa em Eulogy for a brown angel.

A primeira parte do romance, ambientada em 1970, ano em que o crime é cometido,

é narrada em primeira pessoa e no tempo passado, pela própria Gloria Damasco, e

298 [...] elas escutaram Lillian murmurar, “M’ijito, estou indo.” / “La Llorona”, sussurrou Luisa enquanto sua mão trêmula apertava o braço de Gloria, “É apavorante”.

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corresponde a um relato autobiográfico. Gloria é exposta a uma situação-limite, no

caso a descoberta do corpo do menino assassinado, e se envolve emocionalmente

com o inquérito policial instaurado para solucionar o crime. A investigação que ela

inicia não é uma atividade profissional, mas sim uma necessidade interior de

compreender a ruptura da ordem que se dá com a morte do menino e,

posteriormente, com as mortes de Mando e Joel Galeano. É interessante notar que o

crime aqui é visto como uma ruptura da ordem não apenas no âmbito familiar, mas

social – o crime não é considerado uma ocorrência isolada, e sim o fruto de um

contexto social mais amplo. Como o relato de Gloria é feito no passado, há uma

garantia, senão de imunidade total da detetive, ao menos de que ela sobreviverá para

narrar a sua história.

O fim da primeira parte do romance corresponde à virada na vida pessoal de

Gloria. Há uma passagem de tempo de dezoito anos. Em 1988, Gloria já é viúva e

sua filha está na universidade; assim, já não enfrenta mais o conflito pessoal de ter

que escolher entre cuidar da família e prosseguir na investigação do crime. Uma vez

cumpridas as obrigações familiares, ela está livre para seguir o caminho que

escolher, e decide dedicar-se à solução do mistério em tempo integral.. Ela conhece

Justin Escobar, detetive profissional, e o convida para ser seu parceiro na

investigação do crime. Essa segunda parte é narrada em terceira pessoa, também no

tempo passado; corresponde, na trama do romance, a essa transição na vida pessoal

de Gloria, e em termos literários, a uma passagem da narrativa autobiográfica para a

narrativa policial propriamente dita. A mudança na voz narrativa acarreta um

aumento do suspense e o fim da garantia de integridade física da detetive. Essa

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garantia se perde pois a narração passa a ser feita por um narrador externo, ainda que

continue utilizando o tempo passado. Enquanto a própria Gloria narrava os fatos,

havia garantia de sua sobrevivência para o leitor.

A falta de imunidade é uma característica que afasta Gloria dos detetives dos

romances de enigma, como Dupin, Holmes e Poirot, além da própria Miss Marple,

que não corriam riscos ao longo das investigações. Por outro lado, a aproxima dos

detetives dos romances noir, como Spade e Marlowe, assim como de outras

detetives femininas contemporâneas, como a V.I. Warshawski de Sara Paretsky.

Gloria não representa, entretanto, o protótipo da detetive hard-boiled. Seria mais

apropriado fazer um jogo de palavras e considerá-la uma detetive medium-boiled,

uma pessoa normal, talvez com uma dose um pouco maior de coragem e ousadia que

o cidadão comum, mas com fragilidades típicas de qualquer ser humano. A detetive

é colocada como apenas humana, não uma máquina – não é indestrutível nem

invulnerável.

Mitos e crenças

Donna M. Bickford define a percepção extra-sensorial de Gloria Damasco

como um modo de saber alternativo à visão de mundo ocidental, que valoriza apenas

a ciência baseada no pensamento cartesiano e ignora outros meios de saber.299

Bickford ressalta que o pensamento contemporâneo, ao trabalhar com a crítica da

objetividade científica, já apontou que é virtualmente impossível alcançar a almejada

299 BICKFORD, Donna M. A Praxis of Parataxis: Epistemology and Dissonance in Lucha Corpi’s Detective Fiction.

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objetividade, uma vez que os saberes que adquirimos e produzimos são filtrados

pelas nossas posições sociais, histórias e narrativas nacionais, estejamos ou não

conscientes desses filtros.300 Os romances de Corpi seguem essa premissa, embora

traduzida de forma singular – na construção de sua protagonista, ela estabelece a

percepção extra-sensorial como um caminho para o conhecimento equivalente à

abordagem científica tradicional.301

Desse modo, as experiências psíquicas, premonições e visões de Gloria se

apresentam como uma outra característica que desconstrói a imagem do detetive

hegemônico, pois ela não utiliza apenas o intelecto para resolver os mistérios. As

visões vão contra o caráter positivista do romance policial tradicional, sobretudo o

de enigma, uma vez que não podem ser explicadas pela razão nem por uma relação

de causa e efeito. Como, além disso, Gloria também costuma se envolver

emocionalmente nos casos que investiga, desafiando a técnica mais aceita de manter

distância emocional como parte do modelo investigativo, Corpi valida a presença da

emoção no trabalho do detetive, mas vai além. Ao invés de propor uma polarização

entre racionalidade e emotividade, Corpi oferece uma alternativa diferente, qual seja,

conjugar a intuição e a percepção extra-sensorial como meio para se chegar ao

conhecimento, subvertendo a epistemologia ocidental, que considera a lógica e a

razão os únicos meios legítimos para se alcançar o conhecimento.302

Em um dos capítulos iniciais de Cactus blood, Gloria descreve a descoberta

de seus poderes psíquicos e como lida com eles no dia-a-dia:

300 Ibid.,p.99. 301 Ibid.,p.99. 302 Ibid.,p.99.

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I was twenty-three when I’d first discovered I had an extrasensory awareness –

my dark gift. Since then, I had known that I had no more control over its

rhythms than I had over my heart’s beating. Nonetheless, I had relentlessly

fought not to have my reason clouded by this prescience in me. But I also

realized that regardless of how I felt about my heightened perception, once the

dreams and visions came I would be committed – like an unskilled

cryptographer – to extract meaning from them and to act on the knowledge.

(CB, p.32)303

A princípio, Gloria não se sente à vontade com o seu dom, e demonstra uma

certa ambivalência quanto a esse meio nada convencional de chegar ao

conhecimento. Assim, ela busca explicações racionais que possam sustentar o

conhecimento que adquire por meio das visões, como na passagem a seguir:

I purposely didn’t mention any of my ‘flying’ experiences. I suppose I felt

embarrassed since I had always sought rational explanations for anything that

happened to me, using intuition to support reason rather than the other way

around. (EBA, p.30)304

303 “Eu tinha vinte e três anos quando descobri que tinha uma percepção extra-sensorial – meu dom oculto. Desde então, eu sabia que não tinha mais controle sobre seus ritmos do que sobre as batidas do meu coração. Entretanto, eu tinha lutado sem trégua para que a minha razão não fosse nublada por essa minha pré-ciência. Mas eu também percebia que, a despeito do modo como eu me sentisse em relação a essa percepção aguçada, uma vez que os sonhos e as visões chegassem eu estaria comprometida – como um criptógrafo sem talento – a extrair o seu significado e agir com base nesse conhecimento.” 304 “Eu não mencionei de propósito nenhuma das minhas experiências de “voar”. Eu acho que me sentia constrangida porque sempre tinha procurado explicações racionais para qualquer coisa que me acontecesse, usando a intuição para sustentar a razão ao invés de fazer o oposto.”

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Logo, entretanto, Gloria começa a se dar conta das limitações impostas por

essas ‘explicações racionais’, como, por exemplo, quando conta à sua amiga Luisa

que não culpa seu marido Darío por não compreender ou dar valor às suas visões:

‘He’s a medical doctor. If I told him any of this, he probably would assume I’m

on LSD or some other drug. I don’t think Darío would understand this at all.

[…] I’m not sure that I myself understand or accept what’s been happening to

me.’

[…] ‘There are things one may not understand, but, still, one accepts them. I

don’t know where poetry comes from, but I know I’m moved to write poetry

and I accept that. […] There are things that can’t be grasped intellectually.

Maybe all this seems strange because you don’t rely much on your intuition and

perception of people and things.’ (EBA, p.48)305

Ao longo da conversa com Luisa, Gloria afirma que a incapacidade de Darío

de compreender o que se passa vem do próprio sistema de crenças vigente. Como

aponta Bickford, “a implicação clara é que o conhecimento científico, como um

meio de saber, tem suas próprias falhas e pontos cegos.”306

O conhecimento psíquico, contudo, não é, para Gloria, um atributo simples

ou pacífico, mas uma característica com que ela aprende a conviver e na qual vem,

305 “Ele é um médico. Se eu contasse a ele sobre isso, ele ia presumir que eu tomei LSD ou alguma outra droga. Eu não acho que Darío entenderia isso absolutamente. Não estou certa de que eu mesma entendo ou aceito o que vem acontecendo comigo.” / “Há coisas que não se entende, mas, ainda assim, se aceita. Eu não sei de onde vem a poesia, mas sei que sou levada a escrever poesia e aceito isso. Há coisas que não podem ser alcançadas intelectualmente. Talvez tudo isso pareça estranho porque você não confia muito na sua intuição e na sua percepção das pessoas e das coisas.” 306 BICKFORD, op.cit., p.100.

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por fim, a confiar, ainda que de forma extremamente cuidadosa, como mostra a

passagem seguinte, em que sua filha Tania a questiona a respeito das visões:

“You’ve been having visions again. […] Does it have anything to do with that

case you and Justin are working on?” […]

“It would seem that way,” I answered, trying to tell myself that I shouldn’t be so

sure my theory was right until I went out and got the evidence to support it. “I

still have to prove it though. I have to make sure I’m not just fooling myself. It’s

the only way I can keep my sanity.” (CB, p.41)307

Essa necessidade de confirmação, entretanto, não diminui a importância do

seu poder – Gloria encontra um ponto de equilíbrio entre a razão e a intuição em seu

método investigativo, de forma que, quando Luisa a questiona “Quem vence? ... A

intuição ou a razão?” (EBA, p.48)308, é Bickford quem responde que, obviamente,

nenhum dos dois modos de conhecimento vence, pois não são mutuamente

excludentes, e nenhum dos dois precisa ser privilegiado:

De fato, reconhecer como a razão e a intuição operam em situações específicas é

o que permite a Gloria interrogá-las, e a si mesma, e por fim ver que esses

modos de saber como ações inextricavelmente ligadas, mesmo que não

explicitamente conectadas: a intuição a ajuda a desconstruir a racionalidade, e a

racionalidade fundamenta suas percepções psíquicas. 309

307 “Você está tendo visões de novo. Tem alguma coisa a ver com esse caso em que você e o Justin estão trabalhando?” / “Parece que sim,” eu respondi, tentando dizer a mim mesma que eu não deveria estar tão certa de que a minha teoria estava correta até sair e conseguir a evidência para sustentá-la. “Mas eu ainda tenho que prová-la. Eu tenho que ter a certeza de que não estou me enganando. É a única forma de manter a minha sanidade.” 308 “Who wins? ... Intuition or reason?” 309 BICKFORD, op.cit., p.101.

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Nesse mesmo romance, Lucha Corpi desconstrói explicitamente o trabalho

investigativo positivista de Poirot e outros detetives tradicionais, em um diálogo

entre Gloria e o policial Matthew Kenyon, no qual ele dá crédito também à intuição

como um instrumento de que o detetive se vale:

“What makes you so sure? A hunch?” […]

“You make it sound like a dirty word.” He chuckled.

“I thought detecting was accomplished through the analysis of evidence and lots

of legwork. Ze littel grray cells, mon ami. Doesn’t a detective have to be a

combination of Hercule Poirot and Phillip Marlowe?” […] “Do you really

believe in hunches?”

“Don’t you?” (EBA, p.76)310

Complementando essa linha de raciocínio, Judy Maloof lembra que Gloria

passa por um processo de aceitação gradual do seu dom, mas por fim o percebe

como um meio único de resolver mistérios, que a distingue dos detetives

tradicionais, conhecidos por seus talentos no emprego de métodos dedutivos e

pensamento racional. As ferramentas de Gloria são seus sonhos e visões

‘irracionais’, que representam, no texto, realidades alternativas e subjetivas.311

As passagens a seguir exemplificam algumas das visões de Gloria. Na

primeira, extraída de Eulogy for a brown angel, ela tem uma visão do assassino de

Mando:

310 “O que lhe dá tanta certeza? Um pressentimento?” [...] / “Você fala como se fosse uma palavra suja.” Ele riu. / “Eu pensava que se fazia detecção pela análise de evidências e muito trabalho de campo. As pequenas células cinzentas, mon ami. Um detetive não tem que ser uma combinação de Hercule Poirot e Phillip Marlowe? [...] Você acredita mesmo em pressentimentos?” / “Você não?” 311 MALOOF, Judy. The Chicana Detective as Clairvoyant in Lucha Corpi's Eulogy for a brown angel (1992), Cactus blood (1996), and Black widow’s wardrobe (1999).

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I was moving slowly through a dark place, a warehouse of sorts, hot and misty,

as if someone had opened the valves of a steam locomotive. Except for Mando,

who was moving away from me, the place was empty. Suddenly, a shadow,

with an even darker face, came towards him out of nowhere. Then, I saw a knife

in a gloved hand strike straight ahead – a precise incision, through which only a

little amount of blood spilled. Mando reached to his chest, keeled over, and laid

face down. The dark-faced shadow swiftly moved out of sight. Finally, silence

and darkness enveloped the scene. (…) The darker face I’d seen in my vision a

few minutes ago appeared to be greasy, like the face of a soldier or a guerrilla

fighter who’s trying to camouflage his presence. (EBA, pp.54; 56)312

A segunda passagem, retirada da primeira página de Cactus blood, relata a

visão que impulsiona Gloria a descobrir o mistério por trás da mulher crucificada a

um cactus:

That’s when I saw her. The woman. Naked. Her arms stretched up, tied to the

fleshy leaves. Her legs together, bound to the stem. A slumping female Christ

with a prickly-pear cactus cross on her back, shrouded in blood, bathed in amber

moonlight.

Ever since, she haunts my vigil and dreams. I know I will not rest until I learn

for whose sins she was sacrificed. (CB, p.11)313

312 “Eu estava andando devagar por um lugar escuro, tipo um armazém, quente e enevoado como se alguém houvesse aberto as válvulas de uma locomotiva a vapor. A não ser por Mando, que se distanciava de mim, o local estava vazio. De repente, uma sombra, com um rosto ainda mais escuro, apareceu do nada e foi na direção dele. Então eu vi a faca na mão enluvada golpeá-lo – uma incisão precisa, que só espirrou uma pequena quantidade de sangue. Mando levou a mão ao peito, ajoelhou-se e caiu. A sombra de rosto escuro sumiu de vista. Por fim, o silêncio e a escuridão envolveram a cena. [...] A face escura da minha visão de poucos minutos antes parecia estar engordurada, como o rosto de um soldado ou de um guerrilheiro tentando camuflar sua presença. ” 313 “Foi então que eu a vi. A mulher. Nua. Seus braços esticados para o alto, amarrados às folhas carnudas. Suas pernas juntas, presas ao caule. Uma figura de Cristo feminina e encurvada, com uma cruz de cactus espinhoso às costas, coberta de sangue, banhada na luz âmbar da lua. /

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Também Black widow’s wardrobe se inicia com uma visão de Gloria, ou

melhor, um pesadelo recorrente:

A woman fans the fire in a stone stove. She wears a mid-length skirt underneath

a huipil with embroidered red flowers. Her long hair streams down her back.

Her back is to me and I cannot see her face. Her young daughter plays by her

side. A brooding young man sits at the kitchen table, playing with a dagger, a

gift from his father. Suddenly, without saying a word, he gets up, picks up the

dagger, and walks towards the woman at the stove. He raises his hand. She

turns. The fire flares up, and her hair catches on fire, then her clothes. (BWW,

p.1)314

Quando vê pela primeira vez a Viúva Negra do título do romance, Gloria

imediatamente reconhece a mulher do pesadelo. Porém, a essa altura de sua carreira

investigativa – pois Black widow’s wardrobe é o terceiro romance da série – ela já

aceita o fato de que seus sonhos e visões constituem uma parte integrante do seu

trabalho de detetive, e comenta:

The first time I laid eyes on Black Widow, walking down a dark street in the

Mission District, I knew she was the woman in my recurring nightmare. Two

days later, I helplessly realized that my feelings and dreams had become

“Desde então ela assombra a minha vigília e os meus sonhos. Eu sei que não vou descansar enquanto não descobrir pelos pecados de quem ela foi sacrificada.” 314 “Uma mulher abana o fogo em um fogão de pedra. Ela usa uma saia comprida debaixo de um huipil bordado com flores vermelhas. Seu longo cabelo escorre por suas costas. Ela está de costas para mim e eu não posso ver seu rosto. Sua filha pequena brinca ao lado dela. Um jovem pensativo está sentado à mesa da cozinha, brincando com um punhal, presente do seu pai. De repente, sem dizer uma palavra, ele se levanta, toma o punhal e caminha na direção da mulher no fogão. Ele levanta a mão. Ela se vira. O fogo aumenta e lambe o cabelo dela, depois suas roupas.”

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inextricably meshed with the threads of Black Widow’s life. I knew that the

visions would follow, and that I would give myself no choice but to work

toward freeing myself from their hold. (BWW, p.1)315

É curioso notar que Gloria atribui seus poderes extrasensoriais – a percepção

aguçada, a intuição, e o ‘dom oculto’ das visões e sonhos premonitórios – à sua

herança mexicana. Assim, Maloof ressalta que por meio da caracterização dessa

personagem, Lucha Corpi abre o gênero policial à diversidade cultural, oferecendo

uma percepção não-eurocêntrica da realidade, que inclui e aceita como real o

conhecimento que vem de fontes misteriosas e intangíveis como os sonhos, as

visões, a intuição e a percepção extra-sensorial.316 Em Black widow’s wardrobe, em

especial, essas experiências não-racionais se entrelaçam à presença de um mito

fundamental da cultura chicana – La Malinche – para apresentar um enredo policial

que subverte a lógica cartesiana da ficção detetivesca tradicional. Na trama do

romance, a missão de Gloria é proteger a vida da personagem Licia Lecuona, que

acredita ser a reencarnação de La Malinche, a amante e intérprete indígena de

Hernán Cortés.

Bem pouco se conhece da verdadeira história de La Malinche, e nem mesmo

seu verdadeiro nome se sabe ao certo. Malintzin Tenepal, La Malinche ou Doña

Marina, a nobre asteca que supostamente traiu o seu povo ao tornar-se intérprete,

315 “Na primeira vez em que botei os olhos na Viúva Negra, descendo uma rua escura do Mission District, eu soube que ela era a mulher no meu pesadelo recorrente. Dois dias depois, percebi que os meus sentimentos e sonhos tinham se enredado inextricavelmente aos fios da vida da Viúva Negra. Eu sabia que as visões se seguiriam, e que eu não me daria outra escolha, a não ser trabalhar para me livrar dessa prisão.” 316 MALOOF, op.cit.

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amante e sobretudo aliada do conquistador espanhol Hernán Cortés na empreitada de

tomar a capital asteca Tenochtitlán, é ainda hoje uma personagem controversa.

Nascida em família nobre, Malintzin recebeu educação condizente com a sua

posição social. Quando seu pai morreu, no entanto, sua mãe casou-se novamente e

teve um filho. Decidida a torná-lo seu único herdeiro e a evitar disputas por herança

e poder, ela forjou a morte da filha e vendeu-a como escrava aos maias Xicalango

que, por sua vez, a ofereceram à tribo Tlaxalteca. Por conta dos sucessivos

deslocamentos territoriais a que foi submetida em sua nova condição, ela, ainda

muito jovem, teve contato com novas tribos e culturas, desenvolvendo assim sua

capacidade lingüística para o aprendizado de novos idiomas.317 Quando Malintzin

contava 14 anos, os conquistadores espanhóis obtiveram sua primeira vitória

significativa em terras mexicanas. Ela foi-lhes então oferecida como presente,

integrando um grupo de vinte moças, todas batizadas com nomes cristãos e

distribuídas entre os oficiais da confiança de Hernán Cortés. Malintzin tornou-se

Doña Marina e foi destinada a um dos oficiais. Seus talentos lingüísticos foram logo

percebidos e utilizados pelos conquistadores e Cortés tomou-a então para si como

amante, além de tradutora e intérprete. Ela tornou-se conhecida entre os soldados

espanhóis como “la lengua”, a tradutora, que se postava ao lado de Cortés não

apenas traduzindo o que era dito, mas também inserindo conselhos a ambas as

partes, convencendo muitas tribos a se entregarem sem luta, buscando acordos

diplomáticos e alianças sempre que possível.318

317 FITCH, Nancy. Malinche – Indian Princess or Slavish Whore? An Overview. 318 Ibid.

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La Malinche passou à História do México como uma traidora. Aliando-se ao

conquistador e permitindo a comunicação entre espanhóis, maias e astecas, pode-se

considerar que ela realmente facilitou a conquista do território indígena mexicano

pelos espanhóis. Sua missão consistia em traduzir as palavras que eram ditas, mas

ela também oferecia conselhos e explicações que contribuíram para a transição de

uma cultura indígena, principalmente asteca e maia, para uma cultura que mesclava

características indígenas e espanholas. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que

ela não escolheu juntar-se a Cortés, mas foi-lhe oferecida como um presente, uma

escrava, alguém que deveria servir-lhe e cuja vontade a princípio não seria

reconhecida nem levada em consideração.

Além de sua importância crucial como intérprete e mediadora para a vitória

espanhola, La Malinche cumpriu um outro papel que também marcaria

profundamente a história do povo mexicano – o de amante de Cortés. Os

conquistadores espanhóis vieram para a América sem a companhia de suas esposas,

pois não era comum entre as mulheres da época empreender tal tipo de viagem

aventureira, e esse fato muito contribuiu para a miscigenação em terras mexicanas.

Ao tornar-se mãe de um filho, Martín, cuja paternidade foi reconhecida pelo

conquistador, La Malinche tornou-se simbolicamente a mãe do povo mexicano

mestizo, a fundadora de uma nova raça, de uma nova nacionalidade, não mais

espanhola ou asteca, mas mexicana. Ainda hoje, La Malinche é uma personagem

histórica vista de forma paradoxal. Sua importância simbólica transcendeu sua

existência histórica e ela tornou-se uma figura mítica para mexicanos e chicanos, os

quais, no entanto, não compartilham um mesmo ponto de vista. Os mexicanos,

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partidários da visão tradicional (que ganhou força durante o movimento de

independência do México, no século XIX), a consideram realmente uma traidora,

aquela que entregou seu povo aos conquistadores, “uma metáfora cultural para tudo

o que há de errado com o México”.319 O próprio adjetivo malinchista guarda

conotação pejorativa – é usado para designar aquele que trai o seu povo, e hoje se

refere principalmente aos mexicanos que têm uma estreita ligação com o estilo de

vida anglo-americano.

A visão expressa por Octávio Paz320 é o ponto de partida para praticamente

todas as revisões que foram feitas do mito de La Malinche a partir do Movimento

Chicano. Norma Alarcón mostra que Paz foi o primeiro a subverter o mito

tradicional de La Malinche e não considerá-la uma traidora321. Malintzin seria

simplesmente a mãe primitiva do povo mexicano, aquela que deu origem a uma

nova raça – ainda que essa origem seja considerada ‘impura’, já que a mãe teria sido

violentada pelo conquistador. Seguindo essa linha de raciocínio, Paz argumenta que

as próprias origens mexicanas são baseadas na conquista, opressão e ilegitimidade.

Desse modo, La Malinche torna-se parte integrante do imaginário mexicano –

romper com esse mito seria romper com o passado e negar as próprias origens.

Ainda segundo a visão tradicional, traduzir para Cortés, facilitando o trabalho

de conquista, e gerar um filho dele, dando início a uma nova raça, teriam inscrito o

nome de Malintzin na História definitivamente como uma “tradutora, traidora” –

aquela que traduz é também a que trai o seu povo, não apenas entregando-o nas

319 KRAUSS, Clifford. A Historic Figure is Still Hated by Many in Mexico. 320 PAZ, Octavio. Hijos de la Malinche. 321 ALARCÓN, Norma. Traddutora, Traditora: A Paradigmatic Figure of Chicana Feminism. p.114.

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mãos do conquistador para que seja escravizado, mas também gerando um filho que

dará origem a um povo amaldiçoado, marcado pela traição.

Norma Alarcón explica como os conceitos de tradutora e traidora se fundem

na figura de La Malinche:

Malintzin suscita um fascínio misturado com asco, suspeita e tristeza. Como

tradutora, ela é a mediadora entre culturas antagônicas e contextos históricos. Se

presumirmos que a linguagem é sempre, de certo modo, metafórica, então

qualquer discurso, oral ou escrito, pode implicar traição quando se nota que ele

vai além de repetir o que a comunidade percebe como conceitos, imagens ou

narrativas ‘verdadeiros’ e/ou ‘autênticos’. O ato de traduzir, que freqüentemente

introduz conceitos e percepções diferentes, desloca o conhecimento local e pode

até mesmo lhe ser violento por meio da linguagem.322

No mesmo ensaio, Alarcón tece alguns comentários sobre um poema do

romancista e poeta mexicano José Emilio Pacheco, intitulado “Traduttore, traditore”,

que também ajudam a compreender melhor a questão:

Os tradutores, que usam a linguagem como agente mediador, têm a habilidade,

consciente ou inconsciente, de distorcer ou converter o evento, a emissão, o

texto, a experiência ‘originais’, tornando-os assim falsos, ‘impuros’. [...] Ao

traduzir, converter, transformar uma coisa em outra, interpretar (todos

significados sugeridos pelo dicionário) o ‘original’, a conexão supostamente

clara entre palavras e objetos é rompida e corrompida. A corrupção que se dá

por meio da mediação lingüística pode tornar o falante um traidor no ponto de

vista dos outros – não simplesmente um traidor, mas um traidor da tradição

representada no evento, emissão, texto ou experiência “originais”.323

322 Ibid., p.113. 323 Ibid., p.117.

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Ainda na visão de Alarcón, Malintzin é considerada uma traidora porque

assume uma postura própria, independente do seu papel de mãe. Essa postura era

vista como uma catástrofe, pois uma mulher da época só teria permissão para

articular suas necessidades e desejos em nome de seus filhos, e não em seu próprio.

Por falar em seu próprio nome, ela seria uma traidora também da função primordial

da mulher – a maternidade.324

Tey Diana Rebolledo lembra que mitos e histórias heróicas são instrumentos

comumente usados pelas culturas para criar modelos a serem seguidos, diferenciar

comportamentos corretos dos incorretos, transmitir valores morais e identificar

características consideradas desejáveis por um determinado grupo.325 Durante o

Movimento Chicano, muitas mulheres foram rotuladas malinches ou vendidas

apenas por tomar parte ativa no Movimento, demonstrando que buscavam

transformar seus papéis culturais, o que gerava um conflito com a obrigação social

de desempenhar um papel feminino tradicional. Seus maridos e os homens chicanos

em geral pressupunham que elas deveriam ficar em casa cuidando dos filhos,

cabendo a eles participar de marchas e protestos. Na visão masculina, o povo

chicano sofria opressão por igual; na visão feminina, entretanto, a mulher era

oprimida não apenas pela sociedade anglo-americana, por ser chicana, mas também

por seu povo, por ser mulher.

Tal situação contribuiu para que várias escritoras chicanas – sobretudo a

partir dos anos 80 – ficassem fascinadas pelo mito da mulher que transgrediu sua

cultura e procurassem reler o mito, vingando La Malinche. Quando os mitos

324 Ibid., p.113. 325 REBOLLEDO, op.cit., p.49.

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existentes não correspondem aos valores que se deseja transmitir, torna-se

necessário então escolher um entre dois possíveis caminhos: criar um novo mito que

atenda à demanda ou imbuir os modelos existentes de traços e características às

vezes radicalmente diferentes dos originais.326 Seguindo esse raciocínio, as escritoras

chicanas começaram a revisitar mitos já existentes em busca de arquétipos que

correspondessem à demanda por figuras femininas positivas, ativas e enérgicas.

Assim, a leitura feita pelas mulheres chicanas do mito de La Malinche vai além dos

aspectos mais superficiais da história e subverte a idéia de conotação machista

perpetuada pela tradicional interpretação mexicana. De acordo com Rebolledo, La

Malinche torna-se uma personagem a ser não apenas redimida, mas também

transformada.327

Sua habilidade de traduzir para Cortés é considerada de fundamental

importância entre as chicanas, uma vez que elas compartilham desse ir e vir

consciente entre duas línguas e duas culturas. Assim como La Malinche foi acusada

de hispanizar a cultura indígena, a comunidade chicana carrega o peso da acusação

de anglicizar a cultura mexicana. La Malinche transitava entre a cultura espanhola

que se impunha aos povos indígenas conquistados e a cultura nativa que buscava

sobreviver, enquanto as chicanas transitam entre a cultura anglo-americana

dominante e a cultura chicana, composta também por elementos espanhóis,

mexicanos e indígenas, que também luta para manter uma voz.

Torna-se difícil para muitas chicanas compactuar com a visão que considera

La Malinche culpada por todos os males que afligem o México, traidora do seu povo

326 Ibid., p.49. 327 Ibid., p.64.

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e da sua raça. Uma mulher que é vendida como escrava pela própria família e

oferecida como presente aos conquistadores seria mais uma vítima dos algozes que

dizimaram o seu povo, ao invés de cúmplice da conquista. Apesar desse contexto, no

entanto, as escritoras chicanas não vêem a figura de La Malinche como uma vítima

passiva dos acontecimentos. O principal ponto de ruptura com Octávio Paz é

exatamente o confronto entre a visão da mulher apresentada por ele – sexualmente

passiva, violentada pelo conquistador – e a visão chicana, na qual ela é considerada

uma mulher que exerceu o seu direito de escolha e optou pelo caminho da

sobrevivência. Ao aliar-se a Cortés, traduzir para ele e possibilitar a negociação

entre os conquistadores e as tribos em lugar da matança indiscriminada, ela teria

salvo milhares de vidas e evitado uma aniquilação ainda mais completa das tribos

indígenas do México.328

No entanto, a visão defendida por Rebolledo quanto à posição de La

Malinche como uma mulher que fez escolhas encontra críticas no ensaio de Norma

Alarcón já previamente mencionado. Diz ela:

Na realidade, toda a noção de escolha, uma noção existencialista da filosofia

anglo-européia do século XX, precisa ser problematizada a fim de se

compreender os entraves com os quais vivem as mulheres de outras culturas,

épocas e lugares. Ao tentar tornar Malintzin uma motivada ‘produtora de

história’, del Castillo não está reconstruindo o próprio momento histórico de

Malintzin tanto quanto a usando para ir de encontro ao discurso masculino

contemporâneo e para projetar um sentido mais novo do ‘eu’ feminino, um

328 REBOLLEDO, op.cit., p.64-65.

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sujeito dotado de fala, com uma visão totalmente moderna de consciência

histórica.329

Alarcón mantém uma postura divergente tanto dos escritores mexicanos

quanto das mencionadas escritoras chicanas. Para os escritores mexicanos, a questão

da violência sexual é de suma importância, pois marca a condição ilegítima do povo

mexicano. É interessante lembrar que a expressão “hijo de la chingada” é uma

grande ofensa no México, uma referência clara a Malinche, a violentada. Já as

escritoras chicanas nem mesmo mencionam esse tipo de violência em sua produção

literária, mas valorizam um poder de escolha que Alarcón diz ser questionável. Em

sua visão, ela poderia ter se aliado a Cortés até como uma forma de se proteger, de

evitar sofrer violência.

É a essa figura histórica tão controversa que a investigação de Gloria a

encaminha. Seus primeiros passos a levam a uma ex-companheira de prisão de Licia,

que ganha a vida como vidente. Gloria a consulta, sob disfarce, na companhia de

Nina, amiga de sua mãe, e ouve que a chave para desvendar o mistério que cerca a

tentativa de assassinato que Licia sofreu está na própria morte da Malinche. Nina se

oferece para ir às bibliotecas com Pita, a mãe de Gloria, fazer um levantamento de

toda e qualquer informação disponível acerca da história de La Malinche.

Ao transformar La Malinche em parte essencial do mistério, Lucha Corpi

pode resgatar essa figura histórica do México por meio das descobertas das

personagens e dos comentários e conversas que se seguem. Como foi dito

anteriormente, a cultura tradicional mexicana considera a Malinche traidora da sua

329 ALARCÓN, op.cit., p.121.

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raça, aquela que abriu caminho para que os espanhóis dizimassem o povo asteca.

Hoje em dia, vários estudiosos chicanos têm procurado redimir a sua figura, ao

mostrá-la como uma outra vítima da Conquista. É interessante notar que são

justamente Pita e Nina que pesquisam o mito – por serem mais velhas, elas estariam

supostamente mais próximas da visão tradicional da Malinche. As incursões das

duas pelas bibliotecas, entretanto, abrem para elas uma nova percepção histórica –

elas efetuam um reaprendizado da História por meio de fontes de pesquisa e

informação chicanas. Assim, torna-se flagrante a injustiça feita à Malinche pela

história mexicana:

My mother voiced her protest about the way Mexican historians had reviled La

Malinche, presenting her as a traitor to her people. ‘How about those

Tlaxcalteca warriors who fought the Aztecs alongside Cortés’s army?’ she

asked. ‘No-o-o-o. They were men. Men do not betray’. (BWW, p.73)330

No diálogo que estabelece com a cultura chicana, a narrativa de Lucha Corpi

não deixa sem revisão nem mesmo a posição do escritor mexicano Octavio Paz

acerca da Malinche. Embora o ensaio de Paz tenha sido o estudo precursor para as

revisões chicanas do mito, nem ele escapa às críticas feitas pelas novas

pesquisadoras, pois, embora não a veja como traidora, mas como a mãe do povo

mexicano, ainda assim a considera destituída de atuação, um objeto nas mãos do

conquistador:

330 “Minha mãe verbalizou seu protesto a respeito do modo como os historiadores mexicanos haviam ultrajado La Malinche, apresentando-a como traidora do seu povo. ‘E todos aqueles guerreiros Tlaxcaltecas que lutaram no exército de Cortés contra os astecas?’ ela perguntou. ‘Nã-ã-ão. Eles eram homens. Homens não traem.’ ”

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Octavio Paz is a great writer, but even he calls Malintzin la gran chingada. I

didn’t know that the word chingada means the Indian woman raped by the

conqueror. No wonder we Mexicans consider it the worst of all insults. (BWW,

p.86)331

Embora reconheçam o relativo poder de escolha da Malinche, é importante

ressaltar que a visão da mãe de Gloria e sua amiga acerca do mito não é

romantizada:

“At first, Cortés didn’t want her and gave her to his favorite captain,

Puertocarreño [sic]. But he soon found out that Malintzin was not only good-

looking and good-natured, she was smart and knew many Indian languages. She

also learned Spanish very fast. Cortés sent Puertocarreño [sic] on an errand to

Spain and took Malintzin as his mistress...”

“I’m glad you’re saying she was his mistress, not his girlfriend, like you told me

earlier,” my mother interjected. “Really, Nina.” (BWW, pp.72-73)332

Aparentemente, as novas pesquisadoras compartilham da visão de Norma

Alarcón ao admitir que, ainda que ela tenha agido por sua própria vontade, essa seria

apenas a opção reservada aos que são escravizados: escolher, entre dois males, o

331 “Octavio Paz é um grande escritor, mas até ele chama Malintzin de la gran chingada. Eu não sabia que a palavra chingada significa a mulher indígena violentada pelo conquistador. Não é de se admirar que nós mexicanos consideremos esse o pior dos insultos.” 332 “A princípio, Cortés não a quis e a ofereceu ao seu comandante favorito, Puertocarrero. Mas ele logo percebeu que Malintzin não era apenas bonita e de boa natureza, ela era esperta e sabia muitas línguas indígenas. Ela também aprendeu espanhol bem depressa. Cortés enviou Puertocarrero em missão à Espanha e a tomou como sua amante...” / “Fico feliz que você esteja dizendo que ela era amante dele, e não namorada, como você tinha me dito antes”, minha mãe interrompeu. “Francamente, Nina.”

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menor. Dá-se uma ruptura com a tradição, com base na reapropriação do mito da

Malinche a partir dos escritores mexicanos e da tradição oral chicana.333

Pequenos golpes e astúcias sutis

Segundo Michel de Certeau, “a tática é a arte do fraco”334. O poder, amarrado

às aparências e à sua visibilidade, não se pode permitir mobilizar seus meios para os

efeitos da astúcia; o fraco, ao contrário, muitas vezes tem na astúcia sua única

possibilidade, um último recurso. Por meio de golpes e astúcias, usando a

criatividade e sabendo aproveitar as ocasiões, o homem comum aproveita as brechas

que se abrem no sistema dominante para buscar seu próprio espaço.

No âmbito deste ensaio, essa prática é representada por Blanche White e suas

características tipicamente associadas ao trickster. Ao longo das investigações de

Blanche, são constantes as referências à invisibilidade daqueles que estão à margem

da sociedade, uma idéia que remete o leitor ao romance Invisible man, de Ralph

Ellison, obra paradigmática do tema na literatura afro-americana. Trata-se de um

“bildungsroman às avessas”335 – ao longo da narrativa, o protagonista, que narra sua

história em primeira pessoa, percebe que, por ser negro, é invisível aos olhos da

sociedade branca. Essa constatação é exposta ao leitor logo nas linhas de abertura do

romance:

333 ALARCÓN, op.cit., p.118. 334 CERTEAU, op.cit., p.101. 335 FRANK, Joseph apud LYNE, William. The Signifying Modernist: Ralph Ellison and the Limits of Double Consciousness.

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I am an invisible man. No, I am not a spook like those who haunted Edgar Allan

Poe; nor am I one of your Hollywood-movie ectoplasms. I am a man of

substance, of flesh and bone, fiber and liquids – and I might even be said to

possess a mind. I am invisible, understand, simply because people refuse to see

me.336

A narrativa do romance é circular – tanto o prólogo quanto o epílogo são

ambientados no mesmo momento e no mesmo espaço, um buraco subterrâneo que

serve ao narrador, a princípio, de esconderijo, e logo de moradia. Esse buraco é o

porão abandonado de um edifício ocupado apenas por famílias brancas, situado nos

limites do Harlem, onde ele vive secretamente, sem pagar aluguel, ouvindo blues, e

usufruindo da potente iluminação fornecida por mais de mil lâmpadas mantidas com

eletricidade desviada da companhia de energia. É a partir desse peculiar refúgio

subterrâneo que ele conta a sua jornada.

O fato de que o personagem preenche o silêncio à sua volta com a voz de

Louis Armstrong cantando “What did I do to be so black and blue?” é sintomático,

pois o blues é um dos meios pelos quais o personagem re-significa a sua trajetória

pelos paradigmas vividos pelo negro nos EUA. Como aponta Raymond M.

Olderman, “o blues é uma expressão simbólica [...] [que] expressa todas as

ambigüidades, contradições, possibilidades, esperanças e limitações que se

encontram na circunstância humana.”337 Ainda nas palavras de Olderman:

336 ELLISON, Ralph. Invisible Man, p.3. “Eu sou um homem invisível. Não, eu não sou um fantasma como aqueles que assombravam Edgar Allan Poe; nem sou um daqueles ectoplasmas dos filmes de Hollywood. Eu sou um homem de substância, de carne e osso, de fibra e líquidos, e poderiam dizer até que possuo uma mente. Eu sou um homem invisível, entendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver.”

337 OLDERMAN, Raymond M. Ralph Ellison’s Blues and Invisible Man. p.142.

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O narrador de Invisible man canta seu próprio blues ao nos contar a sua história,

e ao cantar o blues ele descobre o significado do seu próprio ser e a natureza da

sua realidade; é um conto que fala do crescimento da consciência individual e

do crescimento da percepção.[...] Porque, novamente, no âmago do significado

do blues encontram-se todas as ambivalências, esperanças, liberdades,

limitações, possibilidades, e mistérios que repousam sob a pele do homem e sob

a superfície do que o homem chama de realidade.338

Ao longo da jornada do protagonista, Ellison seguidamente expõe, reverte e

destrói uma série de rituais, mitos, tradições e preconceitos sobre o negro nos

EUA339. Na definição de Jeremy Weate, “a história que ele narra é, na superfície, um

relato picaresco de tédio existencial, que mapeia as tragicomédias de fracassos na

escola, em uma fábrica, na política radical e, por fim, no Harlem.”340 Os capítulos

iniciais apresentam um personagem passivo, cuja percepção de si próprio é moldada

pelo mundo exterior – o fardo da dupla consciência de que trata DuBois341.

Conforme o desenrolar do enredo, o protagonista é levado à percepção de sua

invisibilidade, à sua condição de mero instrumento para a sociedade branca, que não

o enxerga como um indivíduo. É interessante ressaltar aqui uma observação de

Weate a respeito da explicação oferecida pelo personagem para sua invisibilidade:

A invisibilidade, explica o Homem Invisível, ocorre como uma construção dos

olhos interiores daqueles que se recusam a vê-lo. O Homem Invisível é invisível

porque não é reconhecido como um ser humano.[...] [V]emos que por meio de

uma redução metonímica inconsciente, as ‘pessoas’ que se recusam a ver o

Homem Invisível por meio das construções de seus olhos interiores são de fato,

338 Ibid., p.143. 339 Ibid., p.144. 340 WEATE, Jeremy. Changing the Joke: Invisibility in Merleau-Ponty and Ellison. p.12.

341 DuBOIS, op.cit.

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pessoas brancas. O Homem Invisível aparentemente capitula e internaliza seu

estado sub-humano ao reproduzir essa elipse no seu discurso: todas as ‘pessoas’

são pessoas brancas.342

O raciocínio de Weate leva o leitor a concluir que ser negro em uma

sociedade que apenas reconhece os brancos como humanos equivale a ser

invisível343, a premissa básica do romance de Ellison. Charles Mills explica que para

que essa estrutura social se mantenha é necessário que a lógica normativa que a

sustenta seja dissimulada:

A experiência branca é incrustada como normativa, e a incrustação é tão

profunda que sua normatividade não é nem mesmo identificada como tal.

Porque isso implicaria que as coisas poderiam ser de outro modo, enquanto é

óbvio que esse é apenas o modo como as coisas são. A relação com o mundo

que é assentada sobre o privilégio racial torna-se simplesmente a relação com o

mundo.344

Desse modo, a estrutura social da normatividade branca é naturalizada,

escondendo os vários mecanismos por meio dos quais as pessoas são reduzidas a um

estado sub-humano com base apenas na cor da sua pele.345

Por fim, no epílogo do romance, o narrador assume uma postura mais

atuante, no momento em que decide que é chegada a hora de abandonar a sua

hibernação e sair do buraco:

342 WEATE, op.cit., p.12-13. Grifo do autor. 343 Ibid., p.13.

344 MILLS apud WEATE, op.cit., p.13. Grifo do autor. 345 WEATE, op.cit., p.13.

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And, as I said before, a decision has been made. I’m shaking off the old skin

and I’ll leave it here in the hole. I’m coming out, no less invisible without it, but

coming out nevertheless. And I suppose it’s damn well time. Even hibernations

can be overdone, come to think of it. Perhaps that’s my greatest social crime,

I’ve overstayed my hibernation, since there’s a possibility that even an invisible

man has a socially responsible role to play.”346

Assim como o narrador-protagonista de Ralph Ellison, Blanche White

também é uma personagem invisível nos lares brancos. A princípio, essa

invisibilidade se traduz como uma supressão da individualidade – a sociedade

branca não vê o negro, e essa cegueira torna-se ainda mais gritante no caso do

empregado doméstico. Doris Witt aponta que os membros das classes socialmente

privilegiadas aprendem a não ver os empregados domésticos, e estes, por sua vez,

podem contribuir para permanecer despercebidos, ao usar o uniforme exigido pelos

patrões ou ao portar os instrumentos característicos do seu trabalho, por exemplo.347

Duas passagens de Blanche on the lam ilustram bem o caso – na primeira, Blanche

se prepara para bisbilhotar o quarto de hóspedes da casa onde estava trabalhando,

mas não sem antes preparar todo o aparato necessário a uma boa faxina; na segunda

passagem, ela faz um comentário mordaz sobre uma patroa que exigia que os

empregados usassem uniformes:

346 ELLISON, op.cit., p.581. “E, como eu disse antes, uma decisão foi tomada. Estou descartando a pele antiga e vou deixá-la aqui no buraco. Vou sair, não menos invisível sem ela, mas vou sair mesmo assim. E eu suponho que esteja mais do que na hora. Até as hibernações podem durar mais do que deveriam, pensando bem. Talvez seja este o meu maior crime social, ter hibernado por tempo demais, já que existe a possibilidade de que até mesmo um homem invisível tenha um papel socialmente responsável a desempenhar.” 347 WITT, Doris. Detecting Bodies: Barbara Neely’s Domestic Sleuth and the Trope of the (In)visible Woman. p.170.

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Blanche was reminded of old lady Ivy, out on Long Island. She couldn’t stand

to see the help in regular clothes, either. Might mistake them for human beings.

(BL, p.12)348 She lugged the vacuum and a bucket holding a feather duster, furniture polish,

chamois, sponge, spray cleaner, and a long-handled brush up the back stairs.

She had no intention of using all those items, but it looked good to have them.

(BL, p.82)349

A invisibilidade, entretanto, apresenta também um lado positivo. Como

lembra Ellison, ainda no prólogo de Invisible man, “It is sometimes advantageous to

be unseen, although it is most often rather wearing on the nerves.”350 Tanto a cor da

sua pele quanto o uniforme de empregada doméstica fazem Blanche passar

despercebida, e é apenas por isso que ela pode ‘xeretar’ sem ser incomodada. De

acordo com Doris Witt, a invisibilidade do empregado doméstico é uma ficção que

provê o disfarce ideal para os olhos curiosos, e Blanche freqüentemente tira

vantagem dessa ficção, ficando até mesmo frustrada quando, uma vez iniciada a

investigação, seus patrões a ‘vêem’.351 Nancy Tolson, entretanto, lembra que ela se

torna visível quando algum acontecimento nesse ambiente a ameaça ou ameaça um

membro da família ou um amigo, e uma reação se torna necessária:

348 “Ela também não suportava ver os empregados em roupas comuns. Poderia confundi-los com seres humanos.” 349 “Ela arrastou o aspirador e um balde com um espanador, o lustra-móveis, uma flanela, uma esponja, o limpador em spray, e uma escova de cabo longo pela escada dos fundos. Não que ela tivesse a intenção de usar todos esses itens, mas dava uma boa impressão tê-los consigo.” 350 ELLISON, op.cit., p.3. “Às vezes é vantajoso não ser visto, embora na maior parte das vezes seja bem desgastante para os nervos.”

351 WITT, op.cit., p.169.

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Que personagem literário seria melhor para adentrar o gênero policial senão

uma empregada negra que conhece a casa melhor do que os seus próprios

donos, que vê mas não é vista, e que nunca é questionada por abrir as gavetas?

Ela não é detectada porque é invisível há anos e agora grita quando a sujeira de

outros lugares além das janelas e das pilhas de roupas para lavar respinga nela

própria ou nos seus.352

Em determinadas circunstâncias, portanto, vê-se que manter a invisibilidade é

uma tática de sobrevivência, especialmente se aliada a uma aparência de submissão

e docilidade. Trata-se de uma forma de Significar – ao invés de se disfarçar como

um personagem completamente diferente de si própria, Blanche mergulha no

estereótipo da empregada negra, familiar aos seus patrões brancos, no qual ela pode

se esconder da polícia com segurança. Rosemary Hathaway afirma que Blanche se

engaja em um jogo entre os estereótipos que seus patrões brancos têm a seu respeito

e sua própria consciência do poder e da proteção oferecidos por essa lacuna, esse

espaço entre o significado superficial, percebido por eles, e o significado latente, do

qual apenas ela está ciente.353 De acordo com Hathaway, “essa lacuna, na verdade, é

onde ela escolhe se refugiar, porque a proteção metafórica que ela oferece é ainda

mais segura do que a proteção literal da casa de veraneio.”354 Blanche faz um uso

tático dessa segurança e do poder latente do seu disfarce – ao ‘brincar’ com as

suposições dos brancos a seu respeito, Blanche pode subvertê-las, como no exemplo

abaixo:

352 TOLSON, Nancy. The butler didn’t do it, so now they’re blaming the maid: defining a black feminist trickster through the novels of Barbara Neely. p.75. 353 HATHAWAY, op.cit., p.323-324. 354 Ibid., p.324.

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She (…) quickly slipped on the bright-eyed but vacant expression behind which

she’d hid from the woman so far. Blanche had learned long ago that signs of

pleasant stupidity in household help made some employers feel more

comfortable, as though their wallets, their car keys and their ideas about

themselves were all safe. Putting on a dumb act was something many black

people considered unacceptable, but she sometimes found it a useful place to

hide. She also got a lot of secret pleasure from fooling people who assumed they

were smarter than she was by virtue of the way she looked and made her

living.355 (BL, p.16)

Ao se disfarçar como a imagem estereotipada do seu ofício, que muitos

assumem ser a epítome da domesticidade dos negros, Blanche se aproxima da figura

do trickster,356 uma figura ambígua, de certa forma contraditória, mais indefinida do

que intrinsecamente boa ou má, e que ocupa um espaço à margem da sociedade – no

caso de Blanche, um espaço de negociação entre a sociedade dominante e aqueles

por ela dominados. É assim que ela tira vantagem da cegueira cultural da

comunidade para investigar e por fim resolver os mistérios em sua cidade natal. Em

suas próprias palavras, “This is how we’ve survived in this country all this time, by

knowing when to act like we believe what we’ve been told and when to act like we

know what we know.” (BL, p.73)357

355 “Ela [...] rapidamente assumiu aquela expressão vazia, mas de olhar brilhante, atrás da qual ela tinha se escondido da mulher até então. Blanche tinha aprendido há muito tempo que sinais de uma agradável estupidez nos ajudantes domésticos tranqüilizavam alguns patrões, como se suas carteiras, chaves do carro e suas idéias acerca de si mesmos estivessem seguras. Desempenhar um papel de bobo era algo que muitos negros consideravam inaceitável, mas ela às vezes achava que era um lugar seguro para se esconder. E ela também sentia um prazer secreto ao ludibriar gente que achava que era mais esperta que ela, por conta de sua aparência e do modo como ganhava a vida.” 356 Ibid., p.74. 357 “Foi assim que sobrevivemos neste país todo esse tempo, sabendo quando agir como se acreditássemos no que nos disseram e quando agir como se soubéssemos o que sabemos.”

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O trickster é, nas palavras de Renato Queiroz, “o herói embusteiro, cômico,

ardiloso, pregador de peças, protagonista de façanhas.”358 Como o trickster, Blanche

se vale da astúcia e da rebeldia como meios para desafiar a autoridade e questionar a

ordem vigente. Embora o trickster possa empregar tais características tanto de forma

destrutiva quanto construtiva, Blanche se atém ao segundo modelo, pois seu objetivo

primordial é encontrar uma saída para a situação adversa em que ela própria se

encontra – caso não descubra o verdadeiro assassino, ela corre o risco de se ver

acusada pelo crime. Em seu processo de investigação, muitas vezes os ardis são

fundamentais para que ela alcance seu objetivo. No exemplo abaixo, seu objetivo era

assegurar o respeito devido a uma mulher mais velha por parte de um rapazinho –

branco, no caso:

Blanche hissed some broken Swahili and Yoruba phrases she’d picked up at the

Freedom Library in Harlem and told the boy it was a curse that would render his

penis as slim and sticky as a lizard’s tongue. The look on his face and the way

he clutched his crotch lifted her spirits considerably. Nina Simone’s version of

“I Put a Spell on You” came rolling out of her mouth in a deep, off-key

grumble. (BL, p.38)359

Mesmo não tendo conhecimento de magia, feitiços ou maldições, Blanche

age como se tivesse, e isso é o que realmente conta para impressionar seu

interlocutor, que é branco e, portanto, provavelmente não teria nenhum

358 QUEIROZ, Renato da Silva. O herói trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster. p.94. 359 “Blanche murmurou algumas frases em suaíli e iorubá, que ela tinha aprendido na Biblioteca do Harlem, e disse ao rapaz que era uma maldição que tornaria o seu pênis tão fino e pegajoso quanto a língua de uma lagartixa. O olhar dele e o modo como ele segurou a virilha levantaram o ânimo dela consideravelmente. A versão de Nina Simone para I Put a Spell on You (Eu te enfeiticei) veio então à sua boca, em uma voz profunda e ligeiramente desafinada.”

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conhecimento da tradição religiosa africana. Como o trickster, ela usa a

ambigüidade a seu favor: ela é e não é, ao mesmo tempo.

Essa ambigüidade é um ponto de aproximação entre o trickster e o pícaro. O

pícaro, cujo objetivo primordial é fugir da pobreza, almeja tornar-se um ‘homem de

bem’ – um aristocrata – e se espelha no modo de viver da aristocracia para alcançar

seus objetivos. Seu caminho passa, portanto, pela usurpação e ostentação dos

símbolos que caracterizavam a nobreza, parodiando o processo de ascensão dentro

de uma sociedade na qual o parecer prevalece sobre o ser.360 Para alcançar seus

objetivos, o pícaro se vale das suas próprias armas, em especial a astúcia e a trapaça.

Tais características permanecem vivas nas releituras da picaresca como, por

exemplo, as feitas pelas escritoras chicanas Erlinda Gonzáles-Berry e Ana Castillo,

em Paletitas de guayaba e The Mixquiahuala letters, respectivamente, sugerindo

que o contexto de exclusão social existente na Espanha do século XVI, que deu

origem à picaresca, continua presente na contemporaneidade.361 No caso do povo

chicano, essa exclusão se dá tanto nos Estados Unidos, onde é excluído por ser

‘outro’, ‘estrangeiro’, mexicano, mas também no México, onde é visto como pocho,

mexicano del otro lado, aquele que não consegue nem mesmo falar espanhol direito.

A escritora mexicana Elena Poniatowska lembra que os chicanos “estão presos entre

dois mundos que os rejeitam: os mexicanos, que os consideram traidores, e os

americanos, que só os querem como mão-de-obra barata”.362

360 Cf. GONZÁLEZ, Mario M. A Saga do Anti-herói. Estudo sobre o romance picaresco clássico espanhol e algumas de suas correspondências na literatura brasileira. p.72. 361 Para uma discussão das releituras da picaresca nos romances citados, remeto o leitor a PORTILHO, op.cit., p.65-84. 362 PONIATOWSKA, Elena. Mexicanas and Chicanas. p.37.

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O heroísmo é também uma faceta do trickster que Blanche compartilha.

Embora por vezes aja de forma destrutiva, o trickster representa um desejo muito

terreno, muito humano, que é o desejo de transgredir. A transgressão do trickster de

certa forma sacia esse desejo, sem que seja necessário pagar o preço devido por essa

transgressão. Por esse motivo o trickster é visto de forma heróica. Ainda segundo

Renato Queiroz, “o ato violador é praticado individualmente – e por isso o trickster

é avaliado com sérias restrições – enquanto seus resultados são apropriados

coletivamente – o que faz dele um herói.”363

Na infância, Blanche se chateava quando as outras crianças a chamavam por

apelidos como Ink Spot (Borrão de Tinta) ou Tar Baby (Boneca de Piche). Sua prima

Murphy então inventa a Night Girl (Menina da Noite), uma personagem que, por ser

negra, pode se confundir com a noite, e assim transitar livremente, protegida por

essa ‘invisibilidade’, um poder quase mágico, característico do trickster:

Some people got night in ’em, some got morning, others, like me and your

mama, got dusk. But it’s only them that’s got night that can become invisible.

People who got night in ’em can step into the dark and poof – disappear! Go

any old where they want. Do anything. (BL, p.59)364

A Night Girl é uma imagem que subverte o preconceito racial e projeta a pele

negra como uma vantagem. A invisibilidade ganha então um tom ambíguo

(novamente uma característica do trickster) – deixa de significar falta de

363 QUEIROZ, op.cit., p.99. 364 “Algumas pessoas têm em si a noite, outras a manhã, outras, como eu e a sua mãe, temos o crepúsculo. Mas são só aqueles que têm a noite que podem se tornar invisíveis. As pessoas que têm a noite em si podem sair no escuro e puf – desaparecer! Ir a qualquer lugar que queiram. Fazer qualquer coisa.”

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importância, e se converte em uma forma de poder, de superioridade. À noite, a

Night Girl Blanche é como os super-heróis, tem poderes que as pessoas comuns não

têm, como o dom de ver sem ser vista. Assim, ela tem liberdade para agir, e, por

conseqüência, para “bisbilhotar” sem ser notada, como se vê no trecho abaixo:

Night Girl gave Blanche a sense of herself as special, as wondrous, and as

powerful, all because of the part of her so many people despised, a part of her

that she’d always known was directly connected to the heart of who she was. It

was then that she’d become Night Girl, slipping out of the house late at night to

roam around her neighborhood unseen. She’d sometimes stop beside an

overgrown azalea by a rickety front porch and learn from deep, earnest voices of

neighborhood deaths and fights, wages gambled away, about-to-be-imprisoned

sons and pregnant daughters, before her mother and her talkative friends had

gotten the news. The prior knowledge had convinced Blanche’s mother that her

child had second sight. (BL, pp.59-60)365

A Blanche adulta reconhece que, como uma empregada doméstica negra, é

‘invisível’ várias vezes, por sua raça, sexo e classe social. Rosemary Hathaway

aponta, entretanto, que ela também reconhece o poder potencial dessa invisibilidade,

e o utiliza para conduzir e disfarçar suas investigações:

Outros detetives ficcionais poderiam usar perucas e fantasias para se disfarçar,

mas o ‘disfarce’ de Blanche é construído por meio dos estereótipos de raça,

365 “A Night Girl dava a Blanche uma noção de si própria como uma pessoa especial, admirável e poderosa, tudo por causa da parte dela que tantas pessoas desprezavam, uma parte que ela sabia estar diretamente ligada a quem ela era no íntimo. Era então que ela se tornava a Night Girl, saindo de casa tarde da noite para vagar pela vizinhança sem ser vista. Escondida nos canteiros de azaléias perto das varandas, ela ouvia sobre as mortes e brigas na vizinhança, os salários perdidos no jogo, os filhos prestes a ir para a cadeia e as filhas grávidas, tudo antes que sua mãe e as amigas faladeiras soubessem das notícias. Esse conhecimento prévio tinha convencido a mãe de Blanche de que sua filha tinha visões.”

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gênero e classe que a circundam – estereótipos que Blanche consegue explorar e

subverter ao fazer o seu trabalho de detetive.366

Hathaway argumenta que, para Blanche, essas várias perspectivas são

inextricáveis – como trickster, suas ações e percepções se baseiam não apenas na sua

consciência racial, mas também na sua consciência de ser mulher e pertencer à

classe operária, além de desempenhar, em seu trabalho, um papel tipicamente

feminino. Seu trabalho de detetive e suas observações dependem da complexa rede

formada por esses múltiplos níveis de consciência.367

Por outro lado, Renato Queiroz chama a atenção para o fato de que a

transgressão levada a cabo pelo trickster já constitui uma transgressão

institucionalizada, autorizada pela sociedade:

O trickster colocaria em jogo, assim, o inesperado, o indefinido, desrespeitando,

no nível do imaginário, a própria ordem social. [...] Seu papel seria [...]

semelhante ao de outros personagens – bufões, mascarados, bobos da corte –

aos quais se concede licença para que possam zombar da ordem estabelecida,

“quebrando aparências e desfazendo ilusões”. Muito embora as transgressões

cometidas por tais figuras sejam autorizadas pela sociedade, a própria ordem

acabaria sendo assim reforçada, por meio de um processo catártico, e com o

mérito de revelar aos seus integrantes a desordem que poderia se instaurar caso

as normas, os códigos e os interditos viessem a se dissolver. Elemento, a um só

tempo, perturbador e agente da ordem, decorreria disto a ambigüidade do

trickster.368

366 HATHAWAY, op.cit., p.320. 367 Ibid., p.321.

368 QUEIROZ, op.cit., p.98.

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A validade do trecho acima é questionável em relação a Blanche. Embora,

como detetive, ela teoricamente personifique um elemento “agente da ordem”, cabe

lembrar que a ordem que ela representa não é necessariamente a ordem vigente,

instaurada pela sociedade branca. Lembra Tim Libretti que as noções de lei e justiça,

que costumam ser consideradas sinônimas pelo centro hegemônico, podem não ser

coincidentes para a comunidade periférica. Uma vez que a lei é feita para atender

aos interesses do centro, ou seja, à manutenção da ordem vigente, muitas vezes ela

não é justa com aqueles que se encontram à margem.369 Desse modo, servir à justiça,

para a população da periferia, não quer dizer necessariamente apoiar o sistema

existente.

Além disso, Blanche não é uma detetive profissional; não está, portanto,

comprometida com o sistema policial ou com qualquer outra forma de manutenção

da lei. Segundo Barbara Neely, Blanche é apenas “uma mulher negra e pobre, da

classe operária, que tem que lidar com o que quer que a vida ponha em seu caminho,

inclusive alguns cadáveres.”370 Nos moldes de Miss Marple, ela é uma detetive

amadora, auto-designada para resolver os mistérios que surgem em seu caminho –

embora às vezes tenha que fazê-lo para salvar a própria pele, na maior parte dos

casos é levada pela força da curiosidade e da mais pura bisbilhotice. Seu propósito,

entretanto, não é leviano – suas investigações são tratadas como uma forma de

reparar o desequilíbrio de poder entre ela própria e seus patrões.

369 LIBRETTI, op.cit., p.67 370 Cf. CARY, op.cit.

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Considerações finais

Nota-se que é grande a probabilidade de que os gostos e valores dos leitores

para os quais Barbara Neely e Lucha Corpi escrevem contradigam ideologicamente

os gostos e valores do grande público leitor dos Estados Unidos, alinhado com as

crenças, valores e atitudes hegemônicas da cultura dominante do país, que é branca.

Maureen Reddy aponta que há certos comentários sobre questões raciais,

distribuídos ao longo da série Blanche White Mysteries, que só fazem sentido se

forem compreendidos como direcionados aos leitores brancos, como uma forma de

instruí-los sobre tais assuntos.371 Alguns exemplos dessas ‘passagens de instrução’ se

encontram em Blanche among the talented tenth, romance em que Neely trata das

dificuldades existentes nas relações entre os negros de pele escura e os de pele clara,

indicando a existência de um preconceito intrarracial que passa ao largo do

conhecimento dos brancos. Logo no início do romance, ao chegar a Amber Cove,

Blanche descreve a reação de Arthur Hill, o gerente, à sua aparência:

Without a word, he placed his hands on the counter, leaned slightly forward and

played his eyes over her luggage, shoes and clothes in a way that said who made

her clothes and how well she’d whitefied her hair were major issues for him. In

the case of someone as black as her, were her clothes and the condition of her

hair even more important to him? Something had to compensate. (BTT, pp.15-

16)372

371 REDDY, Maureen T. Traces, codes, and clues: reading race in crime fiction. p.66. 372 “Sem uma palavra, ele apoiou as mãos sobre o balcão, inclinou-se um pouco para a frente e passou os olhos pela sua bagagem, sapatos e roupas de um modo que dizia que quem assinava suas roupas e o quão bem ela tinha embranquecido seus cabelos eram questões fundamentais para ele. No caso de alguém tão negro quanto ela, será que suas roupas e o estado do seu cabelo eram ainda mais importantes para ele? Alguma coisa tinha que compensar.”

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No trecho abaixo, temos um outro exemplo de como as questões de cor

permeiam as relações dentro da própria comunidade negra. Blanche explica porque

reage com desconfiança quando Stu demonstra seu interesse por ela:

He was a member of one of those First Black Families. He probably went to

private schools and had never seen a cockroach – unless he went south during

the civil rights movement. And then there were his looks. He wouldn’t be the

first light-skinned man who’d thought her blackness meant an automatic trip to

paradise in gratitude for his willingness to screw someone as black as her, was

how she thought the reasoning went. (BTT, p.57)373

Em outro episódio, Blanche surpreende Veronica, uma das hóspedes do

resort, em uma farmácia, comprando produtos alisantes para o cabelo.

Imediatamente, ela pega suas compras e foge depressa, o que leva Blanche a se

perguntar se a mulher teria se incomodado tanto com o fato de uma desconhecida

descobrir que ela alisava o cabelo por estar tentando se passar por branca:

The woman snatched her purchases and hurried around the corner. Blanche

wondered if she might actually be trying to pass for white.

She tried to imagine having that chance and taking it. She could picture herself a

hundred shades lighter with her facial features sharpened up; but she couldn’t

make up the leap to wanting to step out of the talk, walk, music, food and

feeling of being black that the white world often imitated but never really

373 “Ele era membro de uma daquelas Primeiras Famílias Negras. Provavelmente estudou em escolas particulares e nunca viu uma barata – a menos que tenha ido para o sul durante o Movimento pelos Direitos Civis. E tinha também a aparência dele. Ele não seria o primeiro homem de pele clara a pensar que a pele escura dela significava uma viagem automática ao paraíso em gratidão pela boa vontade dele em transar com alguém tão negro como ela, era assim que ela via que o raciocínio funcionava.”

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understood. She realized how small a part her complexion played in what it

meant to her to be black. (BTT, p.20)374

Ao refletir sobre quais características em si mesma a levam a definir-se como

negra, Blanche abre um questionamento sobre o significado de ser branco ou negro,

inclusive chamando a atenção para o fato de que o branco freqüentemente imita o

negro – nas roupas e penteados, nos modos de falar e dançar. A imitação do negro

pelo branco também carrega uma diferença, mas essa diferença não é vista como

uma forma de Significar diferente, e sim como uma incapacidade de compreender

verdadeiramente as implicações de ser negro nos EUA da contemporaneidade.

A obra de Lucha Corpi segue por um caminho diferente, mas rumo a um

objetivo semelhante. Embora não apresente ‘passagens de instrução’ tão explícitas, a

literatura policial de Corpi torna-se, de acordo com Tim Libretti, “um espaço no qual

os autores podem repensar o Movimento Chicano de uma perspectiva

contemporânea.”375 Nos romances da série há várias menções a personagens e fatos

da vida real que marcaram a história do Movimento Chicano.

Em Eulogy for a brown angel, além de escolher a Moratorium March como

cenário, Lucha Corpi cita o jornalista Rubén Salazar e o famoso advogado militante

pelos direitos chicanos, Oscar Zeta Acosta (EBA, p.20). Rubén Salazar foi um

repórter proeminente do jornal Los Angeles Times, morto durante a Moratorium

374 “A mulher agarrou suas compras e dobrou a esquina com pressa. Blanche se perguntou se ela poderia mesmo estar tentando se passar por branca. / Ela tentou imaginar o que seria ter essa chance e aproveitá-la. Ela conseguia se ver com a pele centenas de tons mais clara e as feições refinadas; mas ela não conseguia chegar ao ponto de querer deixar para trás o falar, o andar, a música, a comida e o sentimento de ser negra que o mundo branco freqüentemente imitava mas nunca entendia de verdade. Ela percebeu que a cor de sua pele desempenhava um papel muito pequeno no que significava para ela ser negra.” 375 LIBRETTI, op.cit., p.63.

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March. As circunstâncias peculiares em que Salazar morreu – atingido na cabeça por

uma bomba de gás lacrimogêneo, quando não estava envolvido no protesto, mas

apenas almoçando no Silver Dollar Café – somadas ao fato de que ele era um

repórter chicano trabalhando para a imprensa mainstream, levantaram suspeitas de

tratar-se de um ataque planejado. O fato de ter usado sua coluna no jornal para

denunciar discriminação contra chicanos e mexicanos faz com que sua morte pareça

ainda mais encomendada.376 Oscar Zeta Acosta foi uma figura histórica da maior

importância para o Movimento chicano, autor dos clássicos chicanos Autobiography

of a Brown buffalo (1972) e The revolt of the cockroach people (1973). Em 1974,

Acosta desapareceu misteriosamente, durante uma viagem ao México, o que

contribuiu ainda mais para que se tornasse uma figura cult. É o personagem central

(Dr. Gonzo) do romance Fear and loathing in Las Vegas, do autor contracultural

Hunter S. Thompson, adaptado para o cinema, em 1998 377, com Benicio Del Toro

no papel de Acosta e Johnny Depp no papel do próprio Thompson. (Figs. 5, 6 e 7)

Fig.5 – Oscar Zeta Acosta durante discurso, s/d

Fig.6 – Oscar Zeta Acosta com Hunter S. Thompson no Caesar's Palace de Las Vegas, 1971

376 Cf. RODRIGUEZ, Ralph E. Brown Gumshoes: detective fiction and the search for the Chicana/o identity. p.60. 377 Fear and loathing in Las Vegas, dir.Jerry Gilliam, distr. Fear and Loathing LLC, 1998.

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Fig.7 – Johnny Depp e Benicio del Toro em Fear and Loathing in Las Vegas

(© Universal City Studios Productions Inc.)

Tais citações ao longo do romance, somadas ao fato de que Gloria leva

dezoito anos em busca da solução para o mistério do assassinato do menino,

sugerem, de certa forma, que a História continuará a irromper no presente, para que

os modelos de resistência política e de compreensão da experiência desenvolvidos

no passado não sejam esquecidos.

Em Cactus blood, o mistério está ligado ao episódio conhecido como La

Huelga, os boicotes às uvas californianas, que tinham por objetivo aumentar a

consciência da população quanto às condições desumanas que os trabalhadores de

origem mexicana haviam suportado por décadas a fio. Dezessete milhões de

estadunidenses uniram-se ao boicote e deixaram de comprar uvas californianas ao

longo de cinco anos. Ao fim desse tempo, após perder milhões de dólares devido ao

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boicote, os produtores cederam às pressões e concordaram em garantir os direitos

dos trabalhadores e elevar o salário mínimo.378

Já em Black widow’s wardrobe, Corpi transforma a crítica Norma Alarcón

em personagem, quando a bibliotecária da universidade onde Pita e Nina estão

pesquisando sugere às duas que procurem a Dra. Alarcón, pois ela poderia lhes

fornecer muitas informações sobre La Malinche (BWW, p.95).379 Há uma

preocupação constante um diálogo com os intelectuais e ativistas chicanos

marcantes, que têm ajudado a tirar o chicano da invisibilidade, o que corrobora o

argumento de que a literatura chicana, como um todo, é um diálogo constante com a

comunidade.

Na sociedade contemporânea, ser branco, negro, indígena ou pertencente a

qualquer raça ou etnia é uma noção fluida, que não obedece a critérios biológicos,

mas sim políticos. O branco sabe-se branco por ser parte da sociedade política e

culturalmente dominante, distinto dos outros, que, no ponto de vista hegemônico,

perdem suas identidades particulares e são homogeneizados e abrigados sob a

rubrica ‘Outro’. Nos textos produzidos na periferia do poder, entretanto, vê-se que o

branco não ocupa uma posição central, de quem detém o poder. A própria Barbara

Neely oferece dois exemplos bastante ilustrativos dessa questão, ambos retirados de

Blanche on the lam. No primeiro exemplo, Blanche percebe que tem, em relação a

378 Novamente remeto o leitor ao capítulo 9 do livro Occupied America: A History of Chicanos, de Rudolfo Acuña: “Goodbye America: the Chicanos in the 1960s.” 379 Para um aprofundamento do assunto, remeto o leitor ao ensaio de Ralph Rodriguez, “Lucha Corpi’s Gloria Damasco Series: Detecting Cultural Memory and Chicanidad”. RODRIGUEZ, op.cit., p.55-77.

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Mumsfield, o mesmo ‘sexto sentido’ que a alerta quando sua mãe, sua amiga Ardell

ou uma das crianças se aproxima:

This thing with him was beyond her Approching Employer Warning Sense,

which alerted her to the slightest rustling or clinking of a nearing employer. This

was more like the way she always knew when her mother was around, or Ardell,

or which one of the children was about to fling open the door and bound

through the house. This ability to sense Mumsfield’s approach was of the same

nature but different. What made it different was the fact that she didn’t know

this white boy and didn’t appreciate having him on her frequency. (BL, p.45)380

Doris Witt faz um paralelo entre esse trecho do romance e a passagem na

qual Blanche compara a posição de Mumsfield na sociedade com a posição dos

negros, particularmente das mulheres negras (BL, pp.214-215).381 Blanche conclui

que, devido à Síndrome de Down, Mumsfield é tão diferente e, portanto, tão

invisível aos olhos da sociedade hegemônica quanto ela própria e, desse modo,

“visível ao seu olho interior e merecedor do seu cuidado”.382 Ainda segundo Witt:

Blanche finalmente justifica o seu investimento emocional em Mumsfield,

aceitando a realidade empírica de sua deficiência e designando-o uma mulher

negra honorária. Por essa perspectiva, a diferença genética de Mumsfield em

relação à masculinidade branca burguesa normativa o torna, paradoxalmente,

380 “Essa coisa com ele estava além do seu Sentido de Alarme para o Patrão que se Aproxima, que a alertava quanto ao menor ruído de um patrão se aproximando. Parecia mais o modo como ela sempre sabia quando sua mãe estava por perto, ou Ardell, ou qual das crianças estava prestes a abrir a porta de repente e irromper pela casa. Essa habilidade de sentir a aproximação de Mumsfield era da mesma natureza, mas diferente. O que a tornava diferente era o fato de que ela não conhecia esse garoto branco e não apreciava tê-lo em sua freqüência.” 381 WITT, op.cit., p.175. Essa passagem do romance foi anteriormente citada na página 53 deste trabalho. 382 “[…] visible to her inner eye and eligible for her concern”.

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tão invisível quanto Blanche e, assim, merecedor de ser registrado pelo seu

‘sexto sentido’.383

Ao conferir a Mumsfield o título de “mulher negra honorária”, Blanche leva

o leitor a questionar o que significa ser uma “mulher negra” e, por extensão, o que

significa ser mulher ou homem, negro ou branco.

No segundo exemplo, Neely introduz uma estratégia de reverter a conotação

de que branco equivale a positivo e negro a negativo, ao Significar sobre o sentido

de blackmail (chantagem) 384:

She thought the sheriff’s solution included paying someone off with money he

expected to get from Everett for not telling Grace that Everett was fucking

around. Blackmail, in a word. Blanche quickly searched the mind for the other

word, the one that began with “ex”. She tried not to use words that made black

sound bad. When she couldn’t find the word she wanted, she settled on

“whitemale” and was pleased how much more accurately her word described

the situation. (BL, p.122) 385

A esse respeito, Monika Mueller aponta que Neely reproduz a oposição racial

binária entre branco e negro pelo ponto de vista do negro, efetivamente mostrando

383 WITT, op.cit., p.175. 384 A palavra blackmail é formada pela junção de black (negro) e mail (tributo, pagamento). Literalmente, a chantagem seria, portanto, o “tributo negro”. 385 “Ela raciocinou que a solução do xerife incluía pagar a alguém com o dinheiro que ele esperava receber de Everett para não contar a Grace que Everett estava galinhando por aí. Chantagem (blackmail), em suma. Blanche buscou depressa na mente a outra palavra, a que começava com ‘ex’. Ela procurava não usar palavras que fizessem negro (black) soar mal. Quando não conseguiu encontrar a palavra que queria, ela se decidiu por homem branco (whitemale), e ficou satisfeita ao ver que a sua palavra descrevia a situação de forma bem mais apropriada.” [N.T.: Neely faz um trocadilho intraduzível entre as palavras mail (correspondência) e male (homem, macho). Assim, blackmail (literalmente a ‘correspondência negra’) torna-se whitemale (homem branco)].

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como, no caso de Blanche, “ser branco significa uma alteridade ao sujeito negro, que

requer controle e domínio”.386

Percebe-se, assim, que, no momento em que o branco é retirado do centro o

sentido de autoridade e hegemonia se perde – o que definiria o branco então nesse

contexto? Seguindo o raciocínio de que o branco é branco porque não é o Outro, e

nesse momento ele é deslocado de sua posição central e passa a ocupar o lugar do

Outro, excluído e marginalizado, faz-se necessário um convite à reflexão.

Nesse sentido, Minrose Gwin faz uma contribuição pertinente ao afirmar, em

seu ensaio sobre as leituras de textos de mulheres negras por mulheres brancas, que

se tal leitura pretende ter algum significado deve dobrar-se sobre si mesma, em um

processo reflexivo que não apenas lê suas próprias premissas culturais, mas também

volta-se para si própria para ler-se como o outro branco nos textos produzidos por

negros.387 Como um adendo a essa linha de raciocínio, pode-se considerar também

pertinentes as colocações feitas por Doris Sommer, ao analisar a narrativa de

testemunho de Rigoberta Menchú, no primeiro exemplo, e as narrativas de escravos

dos EUA, em seguida:

Talvez seus silêncios audíveis e suas recusas a conversar sejam calculados não

para diminuir a nossa curiosidade, mas para incitá-la e então frustrá-la, levando-

nos a sentir que o acesso está fechado e a espantar-nos frente a nossa própria

exclusão.388

386 MUELLER, op.cit., p.125. 387 GWIN, Minrose. “A Theory of Black Women’s Texts and White Women’s Readings, or... The Necessity of Being Other.” 388 SOMMER, Doris. “Textual Conquests: On Readerly Competence and ‘Minority’ Literature.” p.144.

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180

Esses livros resistem ao leitor competente, intencionalmente. Ao marcar uma

distância intransponível entre o leitor e o texto, e dessa forma levantar questões

de acesso e boas-vindas, os escritores [...] praticam estratégias para produzir o

tipo de incompetência ao ler que mais leitura não consegue superar. [...] O ponto

a ser considerado é a retórica de uma compreensão seletiva e socialmente

diferenciada. O propósito é anunciar o acesso limitado, e não realmente sonegar

ou não alguma informação.389

Essa ‘incompetência’ de que fala Sommer seria o resultado alcançado pelos

romances trabalhados aqui, ao permitir essa “compreensão seletiva” e “anunciar o

acesso limitado”.

Nos romances considerados neste ensaio, a práxis cotidiana assume um papel

fundamental como forma de resistência das culturas abordadas frente ao poder

dominante; constituem táticas por meio das quais essas comunidades marginalizadas

buscam uma (re)apropriação de seus espaços na sociedade – em termos políticos,

sócio-econômicos e culturais. Conclui-se que, nos romances estudados, a rotina

diária se converteu em um modo de re-significar a ‘invisibilidade’ daqueles que se

situam à margem da sociedade hegemônica. Ser ‘invisível’, para as detetives

consideradas aqui, é uma poderosa ferramenta de trabalho, que permite o bom

andamento da investigação. As atividades do dia-a-dia constituem o próprio espaço

dessa investigação, onde as detetives buscam as pistas para a resolução dos

mistérios, o que só é possível porque passam despercebidas. Assim, a invisibilidade

conduz a um maior acesso ao poder – valendo-se da posição marginal que ocupam,

nossas detetives podem questionar uma sociedade a cujas regulações e normas

apenas aparentemente se submetem.

389 Ibid., p.147.

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181

CAPÍTULO III

A história conta a História:

falsos policiais e novos discursos produzidos pelo pós-colonialismo

Começa a ser tempo de se fazer a História disto tudo

[...]. Como uma geração faz uma luta gloriosa pela

independência e a destrói ela própria.

Pepetela. A geração da utopia. 390

Mma Ramotswe did not want Africa to change. She did

not want her people to become like everybody else,

soulless, selfish, forgetful of what it means to be an

African, or, worse still, ashamed of Africa. She would

not be anything but an African, never, even if

somebody came up to her and said "Here is a pill, the

very latest thing. Take it and it will make you into an

American” She would say no. Never. No thank you.

Alexander McCall Smith.

The No.1 Ladies’ Detective Agency. 391

390 PEPETELA. A geração da utopia. p.30 391 McCALL SMITH, Alexander. The No. 1 Ladies’ Detective Agency. p.215. “Mma. Ramotswe não queria que a África mudasse. Ela não queria que o seu povo se tornasse como os demais, sem alma, egoístas, esquecidos do que significa ser africano, ou, ainda pior, envergonhados da África. Ela não seria nada além de africana, nunca, mesmo que alguém chegasse a ela e dissesse ‘aqui está uma pílula, o que há de mais moderno. Tome-a e ela vai transformá-la em uma americana.’ Ela diria não. Nunca. Não, obrigada.”

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Em 1885, a Conferência de Berlim oficializou a partilha do continente

africano entre os países europeus – uma dominação que vinha se delineando

desde o final da Idade Média, quando a Europa começou a estabelecer relações

comerciais com a África. A colonização da África durou até meados do século

XX, quando, enfraquecidas por duas guerras mundiais, as potências européias

não tiveram alternativa senão começar a negociar os processos de independência

dos países africanos, a chamada ‘descolonização’ da África. Na prática, uma real

descolonização mostrou-se impossível, uma vez que as conseqüências nefastas da

colonização não podem ser apagadas, mas apenas renegociadas. Cada novo país

africano nascido com a independência busca então se (re)construir e afirmar uma

identidade nacional – e um dos meios encontrados para tal é a literatura.

Este ensaio se propõe a refletir sobre dois caminhos distintos seguidos por

países africanos que se tornaram independentes de suas metrópoles na segunda

metade do século XX – Angola, que conquistou sua independência de Portugal

em 1975, e Botsuana, o antigo Protetorado de Bechuanalândia, que se tornou

independente da Inglaterra em 1966. Essa discussão será feita por meio do estudo

de dois romances policiais ambientados nesses países: Jaime Bunda, agente

secreto (2001), de Pepetela, que já teve uma continuação, Jaime Bunda e a morte

do americano; e The No.1 Ladies’ Detective Agency (1998), o primeiro da série

homônima, que já conta com dez volumes, de autoria do escocês nascido na

antiga Rodésia do Sul, atual Zimbábue, Alexander McCall Smith.

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Um Detetive Bundão

Em Angola, no ano de 2001, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos,

mais conhecido como Pepetela, publica o romance Jaime Bunda, agente secreto,

o primeiro romance policial angolano e objeto de estudo deste ensaio.392 O

romance narra as peripécias do detetive estagiário Jaime Bunda, cujo nome leva

o leitor familiarizado com a cultura popular contemporânea a evocar

imediatamente a imagem do agente secreto britânico James Bond, criado por Ian

Flemming em 1953, e levado às telas do cinema em mais de vinte filmes, a partir

de 1962, obtendo grande êxito popular. O apelido de Jaime, entretanto, decorre

de uma razão mais prosaica – ele realmente tem um traseiro avantajado, que o

tornava inábil para os esportes na adolescência e ainda o caracteriza como

desengonçado e trapalhão na idade adulta. Jaime não se incomoda com o apelido,

ao ponto de incorporá-lo ao próprio nome e apresentar-se, à moda de James

Bond, dizendo “Chame-me Jaime Bunda”.393

Jaime nos é apresentado como um detetive estagiário dos Serviços de

Investigação Geral (SIG) do governo angolano, posto para o qual havia sido

designado por influência do Diretor Operacional, seu parente. O leitor é logo

informado que Jaime encontra-se “sempre esquecido, atirado para uma das

cadeiras da sala de detetives, sem nada para fazer, só porque era ‘das

392 Ressalto aqui que Pepetela é um autor inquestionavelmente canônico em Angola; entretanto, a literatura angolana ocupa uma posição periférica no cânone universal. 393 PEPETELA. Jaime Bunda, agente secreto. p.26. Deste ponto em diante, todas as referências ao romance serão feitas em parênteses, por meio das iniciais JB acompanhadas do número da página.

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famílias’.”(JB, p.13) O D.O. havia mandado “recrutá-lo, evitando as

formalidades de praxe. Depois de admitido, faria os testes e os treinos, abaixo a

burocracia que impede o combate eficaz ao crime.” (JB, p.13)

O romance se inicia no momento em que Jaime é escolhido para investigar

o mistério do estupro e assassinato de uma adolescente, uma ‘catorzinha’394,

ocorrido no Dia da Independência. O caso é considerado corriqueiro e banal por

todos, uma vez que a menina não fazia parte de nenhuma família importante.

Entretanto, cansado de nada fazer e disposto a mostrar serviço, pois acreditava

estar diante de sua grande oportunidade de tornar-se um verdadeiro detetive,

Jaime logo se põe a investigar. Extremamente observador, característica que a

princípio faz lembrar detetives cerebrais como Sherlock Holmes e Hercule

Poirot, Jaime não consegue, entretanto, distinguir uma pista importante de um

detalhe insignificante. Assim, completamente desorientado, inicia sua

investigação tendo como único suspeito o dono de um carro semelhante ao que

fora visto no local do crime, o que deixa claro ao leitor que Jaime não dispõe de

qualquer técnica investigativa, a não ser o que imagina haver aprendido com a

ávida leitura de livros policiais, especialmente os romances noir norte-

americanos. Por coincidência, o dono do carro, que passa a ser seguido por Jaime

por toda Luanda, é um figurão do governo que o primo D.O. tem interesse em

investigar; desse modo, por obra do acaso, Jaime acaba por descobrir um

intrincado esquema internacional de falsificação de dinheiro. Nesse meio tempo,

394 O termo é usado para especificar a idade da adolescente, ou seja, quatorze anos.

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e praticamente sem a sua participação, o assassinato da menina é desvendado

pela polícia.

Pepetela desenvolve o enredo do romance de um modo que o afasta das

fórmulas tradicionais do romance policial; este, porém, não é o único aspecto do

romance que subverte a tradição detetivesca. Também a estrutura narrativa foge

aos padrões comuns na literatura policial, que se consagrou utilizando um

narrador-memorialista, não onisciente, para contar as aventuras do detetive após

a conclusão de cada caso, e inovou ao introduzir o narrador em primeira pessoa

no romance noir, sinalizando uma época de menores certezas. Em sua narrativa,

Pepetela não se atém a esses padrões narrativos já usuais e brinda o leitor com

uma estrutura narrativa bastante interessante, na qual um autor ficcional coordena

quatro narradores e seus respectivos relatos, “todos falseadores e despistadores

do assassinato inicial”, como bem aponta Carmen Secco395. Esse autor ficcional é

responsável por escrever o prólogo e o epílogo, e constitui a autoridade máxima

sobre os quatro narradores, que são ‘contratados’ e ‘demitidos’ por ele ao longo

do romance. Além disso, o autor ficcional faz interferências ao longo do texto de

cada narrador, inserindo críticas e comentários, e sempre convidando o leitor a

participar do processo de construção da narrativa. Ainda que não haja a

possibilidade de interação real, uma vez que se trata de uma obra fechada, o leitor

é constantemente levado à reflexão, seja a respeito dos fatos narrados ou dos

modos de narrar. O que, a princípio, parece ser um divertido jogo, mais um

395 SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. Entre Crimes, Detetives e Mistérios.

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quebra-cabeça a ser solucionado pelo voraz consumidor de romances policiais,

sugere ao leitor mais atento a impossibilidade de se oferecer uma verdade

inconteste, ou mesmo uma narrativa fechada, no tempo e no espaço em que se

desenvolve o romance, a saber, a Angola do período pós-colonial, uma nação

formada em meio a guerras – a guerra de independência (1961-1975) contra a

dominação portuguesa e a guerra civil (1975-2002) entre os principais partidos

políticos, MPLA e UNITA, apoiados, respectivamente, pela União Soviética e

pelos Estados Unidos, refletindo a cisão global entre socialismo e capitalismo – e

comandada por um governo corrupto, burocrático e inoperante.

O presente ensaio buscará trabalhar o romance de Pepetela como uma

revisão paródica da ficção detetivesca hegemônica, tomando como fio condutor

duas afirmações de Linda Hutcheon desenvolvidas em seu ensaio “The politics of

parody”396, a saber:

Essa reprise paródica do passado feita pela arte não é nostálgica; é sempre

crítica. […] [P]or um duplo processo de instalar e ironizar, a paródia sinaliza

como as representações presentes vêm das passadas e que conseqüências

ideológicas derivam tanto da continuidade quanto da diferença.397 A paródia [...] é um tipo de revisão contestatória ou releitura do passado que

tanto confirma quanto subverte o poder das representações da História.398

396 HUTCHEON, op.cit. 397 Ibid., p.93. 398 Ibid., p.95.

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A paródia, portanto, constitui um diálogo com a tradição, na medida em

que, para que a possa subverter, deve primeiro inscrevê-la, ou seja, reconhecer

sua hegemonia. Com base nesse mecanismo, Pepetela cria seus personagens

como releituras de personagens hegemônicos, e os constrói como caricaturas, nas

quais as características de cada um são ou revertidas ou representadas com

exagero. Assim, o inábil Jaime Bunda é um contraponto irônico ao

competentíssimo James Bond, “paradigma de excelência tanto em espionagem

quanto na sedução feminina”399; nosso anti-herói não apenas não tem idéia de

como conduzir uma investigação policial, mas também revela ser um mero

joguete nas mãos de Florinda, sua amante casada, que o usa apenas para

descobrir se o marido contrabandista está na mira da polícia.

A respeito da inoperância de Jaime, já ao fim do primeiro capítulo o leitor

recebe indícios que o levam a suspeitar que talvez as características negativas não

sejam exclusividade do detetive estagiário. Ao descrever os outros detetives que

trabalham para o SIG, Pepetela os transforma em símbolos da corrupção e dos

desmandos praticados nas instituições angolanas. Tome-se, por exemplo, o

Isidro, colega da sala dos detetives, que é assim concebido no pensamento

ingênuo de Jaime:

Patrício não dá mesmo, pensou Jaime Bunda, o dinheiro que o Isidro ganha

gasta-o em ouro. Anéis, pulseiras, fio grosso de ouro como usam aqueles

corredores de 100 metros da seleção norte-americana... Só falta um Rolex de

ouro. Parece um desses novos-ricos que ultimamente engrossam por aí... Deve

399 DUTRA, Robson Lacerda. Pepetela e a elipse do herói.p.137.

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ser isso mesmo, quer passar por novo-rico, ele que não tem onde cair morto. A

menos que... Sabia de alguns esquemas do Isidro, mas talvez não desse para

enriquecer. (JB, p.12)

O que a Jaime parece ser apenas um descuido financeiro ou um excesso de

vaidade, ao leitor logo se afigura como o fruto dos esquemas de corrupção que

seriam, sugere-se, coordenados pela própria polícia, ou seja, o SIG. Do mesmo

modo, também o SIG é responsável por vigiar atentamente tudo o que sai

publicado nos jornais, “procurando mensagens subliminares contra o regime”

(JB, p.36), e sinalizando o quanto a incipiente democracia angolana ainda é

frágil. Assim, não é de surpreender que o autor ficcional se pergunte se seria

sensato deixar o primeiro narrador dar ao leitor uma pista fortíssima quanto à

motivação do chefe Chiquinho Vieira para a escolha de Jaime Bunda para o caso:

[E será mesmo verdade que eu, o autor, devo deixar o talvez imprudente

narrador pôr aqui esta frase do chefe Chiquinho Vieira? Não deveria ficar

escondida até perto do fim? Dúvidas e mais dúvidas, esta vida é regida por elas.]

(JB, p.18)

A frase do chefe, que provavelmente passaria despercebida não fosse o

comentário do autor, é “Tenho o homem certo”(JB, p.17). À primeira vista, a

ambígua frase poderia parecer apenas um elogio à competência do detetive

escolhido para a missão. A cena passada no gabinete do chefe Chiquinho Vieira,

entretanto, deixa dúvidas. A primeira pergunta que Jaime faz ao chefe é quantas

vezes a menina assassinada foi violada, uma questão aparentemente irrelevante,

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que parodia a precisão cartesiana dos detetives hegemônicos, pois ilustra um zelo

extremado que, todavia, não apresenta um objetivo prático. Logo se percebe que

Jaime é, sim, um observador muito atento, a quem nenhum detalhe escapa – ele

percebe, por exemplo que Chiquinho está usando cadarços de cores diferentes

nos sapatos, o que mortifica o vaidoso chefe, que se veste, colonizadamente, nos

melhores alfaiates de Paris e Lisboa.(JB, p.15) Essa observação é feita, porém, no

momento em que Jaime está completamente desconcentrado das explicações que

o chefe oferece acerca do crime, o que leva o leitor a se indagar se seria ele o

homem certo para resolver o caso ou, justamente ao contrário, para manter o

crime sem solução e o assassino impune? O próprio nome do chefe, usado no

diminutivo, sugerindo intimidade, poderia significar que ele seria um chefe

menor em relação àquele que realmente deteria o poder, e a quem poderia

interessar que o crime não fosse desvendado. A dúvida que assalta o chefe

Chiquinho é a mesma que acompanha o leitor ao longo do romance: “Este tipo é

ainda mais parvo do que eu julgava. Ou então não é nada parvo, mesmo nada

parvo, só disfarça.”(JB, p.14)

Ao caracterizar Jaime Bunda como um anti-herói, inábil, lerdo,

atrapalhado, mais interessado em comida e bebida do que no bom andamento da

investigação, Pepetela desconstrói não apenas os detetives dos romances de

enigma, mas também os do romance noir, os agentes secretos hollywoodianos e

até mesmo outros detetives contra-hegemônicos – todos aparentemente mais

capazes que o nosso James Bond angolano... O leitor, se acostumado aos

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romances policiais tradicionais, vê-se então deslocado da posição que

habitualmente ocupava – a de seguidor do detetive, aquele que acompanha seu

caminho e suas descobertas – para tornar-se um observador crítico, aliado ao(s)

narrador(es) e ao autor ficcional. Essa possibilidade de distanciamento oferecida

ao leitor o convida, dessa forma, a ampliar a sua esfera de observação e a ler

criticamente, também, o próprio contexto social e político da ‘democracia’ de

Angola.

O próprio Pepetela, em entrevista a Doris Wieser, classificou o romance

Jaime Bunda como um “falso policial”, pois, assim como outros autores situados

à margem do centro hegemônico, usa o fato policial como um pretexto,

privilegiando, em sua narrativa, a análise da sociedade angolana, a crítica social e

política, e a construção do cenário, personagens e conflitos da região de Luanda.

Em suas próprias palavras:

A fundação policial, criminosa, é apenas um pretexto para analisar a sociedade.

É isso o que os livros policiais são. Os livros da escola americana dos anos trinta

e quarenta também eram. Era uma análise da sociedade americana através do

policial. Sempre foi. [...] Neste livro a parte do policial eu acho o menos

importante. Importante é levar o leitor à sociedade de Luanda ou pelo menos a

algumas camadas da sociedade.400

Uma das características mais marcantes dos romances policiais não-

seguidores do modelo hegemônico é justamente o fato de seus autores

400 WIESER, Doris (entrevista). Pepetela: “O livro policial é o pretexto”.

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privilegiarem o caminho do detetive, “sem a pretensão de se chegar a uma

resposta, uma verdade”401 – afinal, a própria idéia de uma resposta única, uma

verdade absoluta, já se tornou inatingível na contemporaneidade, quando o

sujeito tem muitas dúvidas e bem poucas certezas.

Em sentido literal, o caminho do detetive Jaime Bunda nos leva a

percorrer as praias da Ilha de Luanda com seus hotéis e restaurantes, a Cidade

Alta e suas residências sofisticadas, a pobreza do Bairro Operário e do

musseque402 do Sambizanga, além da profusão de cores, sons e cheiros do

Mercado Roque Santeiro. Ao longo do percurso, o leitor é brindado com

comentários e críticas do(s) narrador(es). A respeito do trânsito, por exemplo,

faz-se uma crítica à falta de organização, nas palavras de Bernardo, o motorista

destacado para acompanhar Jaime:

Esta conversa elucidativa do Bernardo era pontuada por umas discussões

rápidas e alguns insultos à mistura trocados com outros motoristas, pois no

trânsito a regra principal para ter prioridade é avançar e buzinar e berrar e fazer

gestos ameaçadores. Nestes momentos é que me arrependo de ter escapado da

tropa para entrar na polícia, nos tempos, acabou por confessar o Bernardo.

Devia ter ficado lá até ter arranjado um tanque. Entrava nestas ruas com o

blindado e queria ver se não tinha sempre prioridade. (JB, p.22) 403

401 FREITAS, op.cit. 402 Bairro marginalizado na periferia; uma espécie de favela. 403 A título de ilustração, reproduzo aqui as impressões de um viajante brasileiro de passagem por Luanda a respeito do trânsito da cidade: “Ninguém vende chiclete nos engarrafamentos de Luanda. Mas se você quiser comprar tábua de passar, antena de TV, calcinha, relógio de parede, faqueiro ou sapato, é só esperar. Enquanto o trânsito estiver parado – e aqui a hora do rush vai das 8 da manhã às 8 da noite – sempre vai aparecer alguém para vender o mosquiteiro, o cinto, o abajur e a cueca que você estava precisando. Com sorte, você leva para casa ventilador, três em um, toalha, churrasqueira, benjamins, óculos de grau e a Caras da semana, sem jamais se incomodar em achar uma vaga para estacionar. Você pode se chocar com a pobreza de um lugar

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Fig.8 – O trânsito em Luanda (foto cedida por Ricardo Freire)

Assim como no caso da desorganização do trânsito, outras denúncias

apontam as marcas que a situação colonial e seus desdobramentos impuseram a

Angola. Ao longo do romance, há referências às diversas fases da História

recente do país – a época colonial, que durou do século XVI até o século XX; a

guerra de independência, de 1961 a 1975; e a guerra civil, entre os principais

partidos políticos do país, MPLA e UNITA, antigos movimentos pela libertação,

que se estendeu até 2002.404 Os resquícios da rivalidade entre o MPLA, apoiado

pela União Soviética e por Cuba, e a UNITA, apoiada pelos EUA e outros países

capitalistas, aparecem nas cenas em que Jaime Bunda, membro do SIG, e

subordinado ao Bunker, ligado aos EUA, visita o inspetor Kinanga, do Ministério

do Interior, ligado ao MPLA. Jaime se ressente que o Ministério do Interior seja

em que todo mundo parece viver de vender alguma coisa na beira da estrada. Ou você pode admirar a vitalidade e a capacidade de um povo que inventa uma maneira de sobreviver entre os escombros de uma guerra que durou quase os 30 anos da existência do país.”(FREIRE, Ricardo. Postal por escrito: Luanda.) 404 Cf. Info-Angola: a biblioteca virtual de Angola.

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decorado com poltronas de couro e Kinanga tenha uísque de boa qualidade para

servir aos visitantes, se “os SIG eram mais importantes que o Ministério do

Interior todo junto”.(JB, p.23) Ao mesmo tempo, Kinanga, que estudou em Cuba

nos tempos do ‘socialismo esquemático’405, se sobressalta a cada visita de Jaime,

imaginando se o SIG não estará a vigiá-lo para conferir se está desempenhando a

sua função com competência.

Do mesmo modo, muitas vezes os comentários dos personagens, suas

conversas e reminiscências, trazem ao leitor informações a respeito da história do

país – e confirma-se que o fato policial não passa mesmo de um pretexto para

que se possa discorrer sobre a construção da nação angolana no período pós-

colonial. Ao chegar ao Bairro Operário, onde viveu seu pai, Jaime reflete sobre

as transformações pelas quais passou o bairro desde a época da colônia, o que

acaba por instruir o leitor acerca da história angolana, como se vê na passagem

abaixo:

B.O. dos grandes tempos, como lhe contava o pai, saudoso do bairro de onde foi

corrido para o Sambizanga, no tempo colonial, por falta de dinheiro para o

aluguel da casa. No Bairro Operário nasceu o Ngola Ritmos, contava ele com

orgulho, os fundadores da moderna música angolana e do nacionalismo. No

B.O. viveu Agostinho Neto, nosso primeiro Presidente... O pai era adepto

ferrenho do Bairro Operário e morreu de tuberculose, triste por não ter

acontecido aí o trespasse, mas no Sambizanga, para onde iam os deserdados dos

405 A expressão ‘socialismo esquemático’ é usada por Pepetela para denunciar que, na época do socialismo, os funcionários públicos não viviam dos salários, mas sim dos ‘esquemas’, com os quais garantiam o sustento de suas famílias; tal sistema constitui um impecilho para a obtenção de bons resultados na luta contra a pobreza e a corrupção. Cf. O Insurgente, de 12/03/2009 e PACATOLO, Usindi. Socialismo esquemático.

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deserdados. Apesar de ostentar um nome ilustre, de séculos, morreu pobre e

esquecido. (JB, p.36)

Ainda a respeito das transformações ocorridas na transição da fase

colonial para a fase pós-colonial, Jaime relata a forma como o seu tio Jeremias

‘adquiriu’ a vivenda onde mora atualmente:

Nas convulsões antes da independência, o colono fez as malas e bazou para

longe. Jeremias, que morava do outro lado da vala, numa barraca de madeira e

adobe, agiu rapidamente. Instalou a família na vivenda, escreveu no muro

‘Ocupada por camaradas do MPLA’. Tia Sãozinha estava com medo, nos vão

pôr na rua, e já nem a barraca recuperamos. Mas quem é que tem coragem?

Escrevi que é do MPLA, ninguém mais brinca conosco. De fato ninguém

reclamou. Muito depois da independência, fez contrato com o Estado, que

entretanto tinha confiscado as casas abandonadas pelos donos, e passou a pagar

uma renda muito baixa. E quando nos anos 90 começou o processo de venda

dos imóveis estatais, comprou a vivenda por um preço ainda mais simbólico.

(JB, p.60)

A crítica ao governo prossegue, agora enfocando todo o processo

burocrático pelo qual Jeremias precisou passar até legalizar a aquisição da

vivenda:

O trabalho foi ter de andar desta repartição para aquela e levar documentos de

um funcionário para o outro, dentro da mesma repartição, durante meses, num

processo burocrático de assustar o mais corajoso dos guerreiros. Não desistiu,

perdeu dias e mais dias de trabalho, o que de fato não era grande problema,

quem perdia não era ele, era o mesmo Estado para o qual trabalhava e que

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criava uma teia inextricável de burocracia para se desembaraçar das casas que já

não queria administrar. (JB, p.60)

Vê-se, assim, que o próprio Estado sofre os efeitos da burocracia, quando

os funcionários precisam deixar de cumprir o horário de trabalho para cuidar dos

trâmites burocráticos criados pelo próprio Estado... Levanta-se no leitor a

suspeita de que um Estado assim tão inoperante faz por merecer um agente como

Bunda, Jaime Bunda.

As ironias a propósito das ações do Estado e dos poderosos de Angola

continuam a se desenrolar ao longo do romance. O início do capítulo que se

passa no Roque Santeiro, por exemplo, diz o seguinte:

O maior mercado ao ar livre da África, com nome de novela brasileira. Pelo

menos era o que dizia a propaganda oficial, como se a incapacidade de construir

um grande mercado coberto fosse razão para aquecer o orgulho nacional. (JB,

p.101)

A menção à novela brasileira Roque Santeiro leva a uma reflexão sobre o

que poderia ter levado à escolha do nome da novela para batizar o mercado. A

história do Roque Santeiro mostra a resistência dos pequenos comerciantes que,

tendo seus mercados fechados em outras regiões da cidade, ali se estabeleceram,

para continuar vendendo suas mercadorias. Nas lembranças de Jaime:

Ele cresceu ao lado e com o Roque Santeiro. Era muito criança e vivia com os

pais no Sambizanga, quando alguns vendedores, escorraçados de outros

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mercados da cidade, fechados manu militari, aproveitaram aquele terreno vago

no alto da barroca, depois da lixeira acima do porto, para montarem as primeiras

bancas. Zona privilegiada, as mercadorias escapavam do porto, roubadas ou

contrabandeadas sem pagar alfândega, ficavam logo ali à venda. Além disso,

pela estrada vinham os produtos agrícolas dos lados do Cacuaco. E como,

sobretudo, as autoridades não controlavam nada, apesar de haver duas esquadras

a menos de quinhentos metros, de um lado e do outro, o mercado foi crescendo

em clandestinidades abertas aos olhos de todos. Não havia dia sem aparecer

banca com novos produtos. Depois foram barracas feitas de paus e luandos.

Nesse tempo dos começos, princípio dos anos 80, era muito seguro. Vinham

senhoras dos bairros ricos, sozinhas, fazer as compras. Aqui tinham certeza de

tudo encontrar, mesmo o que não aparecia em nenhuma loja, mais barato que

em qualquer sítio e em total segurança. Depois chegou o progresso: bares,

restaurantes, negócios de prostituição, venda de drogas, ladrões, assassinos a

soldo, imigrantes indocumentados, falsaficadores de passaportes, de cartas de

condução, cassinos, enfim, uma Nova Iorque de esteira, poeira e lixo. (JB,

p.101-102)

Fig.9 – Mercado Roque Santeiro (foto cedida por Ricardo Freire)

Roque Santeiro, a novela de Dias Gomes, é uma obra emblemática na

história da teledramaturgia brasileira. Havia sido interditada pela censura em

meados dos anos 70, durante a vigência da ditadura militar, e foi finalmente

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exibida pela Rede Globo em 1985, um ano bastante representativo para a

abertura política brasileira, quando tomaria posse Tancredo Neves, o primeiro

presidente civil brasileiro desde a deposição de João Goulart pelos militares, em

1964.406 Reproduzo aqui uma breve sinopse da novela:

Há dezessete anos, na cidade de Asa Branca, o sacristão Luis Roque Duarte,

chamado de Roque Santeiro, pela habilidade em fabricar pequenos santos de

pedra, caiu morto tentando defender a população das ameaças do bando do

temível Navalhada; foi consagrado pela população que, a partir de então, passou

a considerá-lo miraculoso; tornou-se mito e a cidade prosperou graças à lenda.

Entretanto, Roque, na realidade, não morreu, voltará à cidade e ameaçará pôr

fim à lenda. O seu retorno trará o pânico para o padre Hipólito, o prefeito

Florindo Abelha e o negociante Zé das Medalhas, o principal explorador do

mito. Contudo, o coronel Sinhozinho Malta, o rei da carne verde, está muito

mais preocupado, pois mantém um caso amoroso com a falsa viúva Porcina.407

Em seu artigo “Roque Santeiro, uma alegoria do Brasil”, Cláudio Paiva

aponta que os arquétipos sociais que estruturam o cotidiano brasileiro estão todos

presentes na obra – “o padre, o coronel, o comerciante, o homem da lei, o herói,

o vilão, o louco, as beatas, as prostitutas, os amantes, os místicos, os miseráveis

e os artistas.”408 Trabalhando as lendas e os mitos do imaginário coletivo

brasileiro, Dias Gomes “faz rir dos poderes constituídos, mostrando, na

materialidade da linguagem e comportamento dos personagens, as falhas, gafes e

406 O presidente eleito Tancredo Neves adoeceu gravemente às vésperas da posse e faleceu sem ser empossado. A transição para o governo civil se concretizou ainda assim, com a posse do vice-presidente José Sarney. 407 PAIVA, Cláudio. Roque Santeiro, uma alegoria do Brasil. p.6. 408 Ibid.,p.5.

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derrapagens das autoridades.”409 O retorno do personagem de Roque à cidade de

Asa Branca, como um herói disposto a libertar a população, que segue na

pobreza, explorada pelos poderosos, os únicos a usufruir da riqueza gerada pelo

mito de Roque Santeiro, representa um desafio ao poder instituído. Dessa forma,

não é de se estranhar que a novela tenha atraído a atenção dos censores como

uma obra “que viria perturbar as convenções sociais, numa época de fechamento

ideológico.”410

Seguindo o mesmo raciocínio, o batismo do mercado angolano em

homenagem à novela brasileira sugere – ao menos ao leitor brasileiro – um

paralelo entre o momento brasileiro de abertura política e um desejo legítimo da

população angolana de seguir pelo mesmo caminho...

Nota-se, dessa forma, que as aventuras do detetive são narradas contra o

pano de fundo da história e da cultura angolanas, que são, mais do que um

cenário incidental, a própria razão de ser do romance – o romance policial se

apresenta fundido ao romance histórico e à etnografia. A escolha da ficção

policial (de forma semelhante ao caso da telenovela discutida acima) possibilita

atingir um grande público, por tratar-se de um gênero popular da literatura de

entretenimento, e abrir uma ampla discussão de questões políticas e sociais

referentes à História de Angola – a colonização, a guerra pela independência, os

conflitos entre a UNITA e o MPLA e assim por diante.

409 Ibid., p.6. 410 Ibid., p.7.

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Fig.10 – A Ilha de Luanda (foto cedida por Ricardo Freire)

Ao longo do processo de investigação, o detetive compartilha com os

outros personagens e com o leitor não apenas suas idéias e suspeitas acerca do

crime, mas também suas observações e inferências sobre o mundo que o cerca.

Acompanhando Jaime em suas incursões por Luanda, o leitor aprende, por

exemplo, sobre a comida típica angolana – sendo Jaime um grande apreciador da

boa mesa, não faltam oportunidades para lautos almoços nos intervalos das

investigações. O leitor é informado que o funje de pacaça é um prato típico feito

com mandioca e carne de caça, e que o calulu é preparado com peixe e óleo de

dendê. Essas inserções, que talvez pareçam ‘exóticas’ ao leitor europeu

(provavelmente o português, uma vez que o romance foi publicado em Lisboa)

causam um efeito distinto no leitor brasileiro, de familiaridade ao invés de

exotismo. A partir das semelhanças culinárias – afinal, os pratos típicos

mencionados evocam nos paladares brasileiros os nossos típicos ‘escondidinhos’

e moquecas – chega-se a outros vínculos entre Brasil e Angola. Ambos foram

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colônias de Portugal a partir do século XVI, embora o Brasil tenha sido

privilegiado por haver servido de refúgio à Corte Portuguesa quando da invasão

napoleônica, o que o elevou à condição de Reino Unido já no início do século

XIX. Entretanto, ao longo do tempo em que vigorou a escravatura no Brasil,

parte dos escravos trazidos da África vinham da região de Angola, o que significa

que, hoje em dia, em meio à população afro-descendente do Brasil há muitos

descendentes dos escravos angolanos. Em parte, a presença angolana no Brasil

desde a época da escravatura explicaria, assim, a nossa sensação de familiaridade

com a comida típica angolana, uma vez que os próprios pratos típicos brasileiros

foram criações dos escravos.

Para Paul Gilroy, a diáspora quebra a relação entre lugar, posição e

consciência, de modo que o território deixa de ter o poder de determinar a

identidade; assim, as novas relações formadas por conta da diáspora configuram

uma rede de comunicação transnacional que extrapola os limites do Estado-nação

e permite o contato e a interação cultural entre as populações dispersas.411

Embora Gilroy privilegie o estudo do ‘Atlântico Norte Negro’, como o Caribe,

considera-se Brasil e Angola como legítimos representantes do ‘Atlântico Sul

Negro’, de modo que se abre o caminho para pensarmos o próprio Brasil a partir

das críticas feitas no romance à organização social e política angolana, e

considerar quais outras semelhanças entre os dois países estariam representadas

no romance. Vê-se, portanto, que o assassinato em si não é o eixo fundamental da

411 Cf. SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. Resenha de O Atlântico Negro. p.274.

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trama, mas apenas um ponto que provoca o leitor e ajuda a atrair sua atenção para

outras questões e relações significativas.

Alguns capítulos mais adiante, Jaime Bunda inicia a perseguição ao

personagem conhecido como T. O personagem já havia aparecido no romance de

forma secundária, mas assume importância como o principal antagonista de

Jaime quando o velho Salukombo aponta o seu carro como semelhante ao carro

onde Catarina Kiela, a ‘catorzinha’, havia entrado. Desde o início da narrativa, o

leitor sabe que T, descrito como uma figura tenebrosa, baixo e atarracado, sem

pescoço e com boca de peixe, é um figurão das altas rodas políticas de Luanda,

protegido do todo-poderoso chefe do Bunker, e que uma velha adivinha da Ilha

havia dito que ele corria perigo de ser descoberto por algo errado que havia feito.

O próprio leitor desconfia que T, cujo verdadeiro nome nunca é mencionado no

texto, esteja envolvido na morte da menina. Jaime, que não faz idéia de quem

seja o seu alvo, empreende, a partir desse momento, o que imagina ser uma

verdadeira perseguição policial, a fim de confirmar se o ‘suspeito’ seria mesmo o

assassino da menina. No entanto, logo é surpreendido pelo próprio T, que o

denuncia ao chefe Chiquinho Vieira; este, por sua vez, determina que Jaime se

afaste de T, afirmando enfaticamente que um membro do alto escalão do Bunker

está acima de qualquer suspeita, o que só faz torná-lo, aos olhos do leitor, ainda

mais suspeito.

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Ao descrever o caminho de Jaime Bunda durante a perseguição ao

personagem o narrador mais uma vez aproveita a oportunidade para fazer uma

crítica mordaz ao Estado. Diz ele:

T [...] foi dar a volta obrigatória dos cidadãos comuns que nem podiam olhar a

Presidência, pelo perigo de ficarem ofuscados pela intensa luz do Poder de

Estado. Por essas razões humanitárias, de preservação da boa visão dos súditos,

era interdito passar à frente da Presidência da República [...], o que aumentava

de uns tantos quilômetros e muitos minutos a distância para se sair da cidade

pelo sul. Alguns ingratos reclamavam dessa benemerência que os tinha afastado

do mais belo passeio que se podia fazer em Luanda, contornando toda a orla

marítima e apreciando as ilhas amarelas e verdes no mar azul, mas a segurança

dos cidadãos está acima de tudo, sobretudo deles próprios.(JB, 137-138)

Nada satisfeito ao ter suas pretensões à glória abreviadas pela intervenção

do chefe, Jaime corre a pedir auxílio ao seu parente importante, o D.O. Este, que

foi prejudicado por T no passado e tem uma desconfiança a respeito do seu

envolvimento em atividades ilegais, oferece a Jaime todas as condições – carro,

celular, auxiliares – para que a investigação possa prosseguir sem interrupções.

A essa altura do romance, no final do livro do primeiro narrador, temos

um encontro de Jaime com a velha Filó, a adivinha da Ilha, que prediz que ele

não conseguirá desvendar o mistério, mas que tremerá de medo no dia em que se

vir frente a frente com o assassino. Irritado com o primeiro narrador, por ter dito

ao leitor que o detetive não conseguirá descobrir o culpado, o autor ficcional o

demite sumariamente. Ao leitor, resta a desconfiança – afinal, Jaime Bunda será

mesmo incapaz de descobrir o assassino? O leitor mais atento faz ainda outras

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perguntas: será que não se trata apenas de uma pista falsa do narrador? Esse

narrador é confiável ou não?

No segundo livro, somos apresentados a Malika, uma argelina que havia

entrado no país acompanhando Said, um libanês que já havia sido expulso de

Angola antes por participação em atividades ilegais como o contrabando. À

primeira vista, a narrativa de Malika parece ter o propósito de afastar o leitor do

caso sendo investigado, que seria o da menina assassinada. Ao longo do seu

relato, ela conta sobre a sua vida, como saiu da Argélia e como foi trazida por

Said à Angola para servir de ‘isca’ – Said pretendia casá-la com um angolano

rico e importante como forma de ter proteção em seus negócios excusos. Malika,

embora seja mantida à parte das negociatas de Said, percebe que este tem

vínculos com T, que ela conhece pelo nome falso de Ezequiel, e seu relato serve

à polícia mais tarde como auxílio para compreender como se armou o esquema

de falsificação de dinheiro que Jaime por acaso ajuda a desmantelar. Aliás, se o

leitor alimentava secretamente a esperança de que o fim do romance lhe

trouxesse a tranqüilidade de saber que o detetive não era “mesmo nada parvo”

(JB, p.14), recebe apenas frustração. Ao final do romance, Jaime Bunda é, sim,

aclamado como o principal responsável pelo desmantelamento do esquema de

falsificação de dinheiro, porém tudo o que descobre é fruto do acaso, e não de

trabalho árduo, uma investigação bem conduzida ou mesmo um raciocínio

privilegiado. Além disso, como Malika não conhece Jaime, nem sabe que ela,

Said e T estão sendo seguidos por ele, não há nessa parte da narrativa nenhuma

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menção ao detetive e sua investigação do assassinato da menina. De fato, o livro

do segundo narrador é aparentemente tão desconectado da trama principal que

rende uma ‘bronca’ do autor ficcional ao leitor que houvesse deixado de ler essa

parte do romance:

[Esse relatório, com pequenos cortes e alguns arranjos, muitas vezes derivados

da tradução, mas sobretudo para disfarçar o estilo de relatório, constituiu o

Livro do Segundo Narrador, como os leitores certamente já repararam, se não

andaram a saltar demasiadas páginas só para descobrir viciosamente como

acaba a estória.] (JB, p.328)412

Ao fim da investigação, a polícia prende Said e Bubacar, um maliano que

havia tido uma participação menor no esquema. Entretanto, não consegue

encontrar provas contra T, embora haja fortes indícios de que seria ele o cérebro

responsável por todo o esquema. Um ponto sugestivo, que se pode também

considerar como um desses indícios, é que Said tem planos de casá-lo com

Malika – ou seja, Said sabia que T seria tão poderoso que escaparia a qualquer

acusação, e poderia livrá-lo também, se isso o interessasse. Assim, sabendo que T

não se interessava por virgens, mas sentia uma atração especial por mulheres

comprometidas, fez-se passar por marido dela.

O fato de que é impossível encontrar meios de condenar T pode, por um

lado, sugerir que não há um único culpado para a quebra da ordem; uma vez que

T representa o poder político e social de Angola, a culpa não poderia ser

412 Todas as interferências do autor ficcional são feitas em itálico no original.

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atribuída a um único indivíduo, mas a todo o status quo. Mesmo um detetive

inoperante como Jaime Bunda reconhece a existência de várias causas políticas e

sociais que possibilitam um desequilíbrio e o conseqüente rompimento da ordem.

Cada crime é visto como parte de um contexto mais amplo. Tomando-se como

exemplo o caso da corrupção da polícia – se não é justificada, é ao menos

explicada como parte de uma engrenagem maior, que reserva um orçamento

paralelo a certos órgãos do Estado. Mais uma vez, qualquer semelhança com a

situação brasileira é muito mais do que uma mera coincidência... A situação fica

clara nas palavras de Bernardo, o motorista de Jaime Bunda – como ambos são

funcionários do SIG, recebem seus salários desse ‘caixa dois’:

Nós somos privilegiados, não recebemos do orçamento do Estado, recebemos

dos sacos azuis, o circuito paralelo. O paralelo é que dá, seja o mercado, seja a

polícia, seja a igreja, sabedoria do Bernardo. Por isso é que os polícias têm de

pentear as pessoas, quer os pedestres que vendem mercadorias, quer os

circulantes [...] Mas vão fazer mais como, então os polícias também não têm

mulher e filhos para sustentar? É melhor pedir que roubar e é melhor roubar que

ser roubado, não acha, chefe? (JB, p.22)

Mais adiante, o próprio Jaime Bunda faz uma denúncia em relação aos

gastos indiscriminados do Estado:

[...] espero que um pássaro cague o carro do ministro, o que também não

adiantava muito, se a pintura começasse a ficar com defeito logo ele mudava de

carro, para isso serve o orçamento do Estado. (JB, p.143)

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Essas situações, entre outras também irônicas, como o roubo do carro que

já era roubado (JB, p.245), levam o leitor brasileiro a refletir sobre a situação do

seu próprio país. Afinal, Brasil e Angola são países irmãos (JB, p.112) não

apenas pelo fato de ter sido o Brasil o primeiro país a reconhecer a independência

angolana... A certa altura, um personagem usa a expressão “tudo jóia”, que diz

ter aprendido em uma novela brasileira (JB, p.288), o que levanta um

questionamento sobre o efeito desse contato entre as nações periféricas. Seria a

união entre esses países através da cultura de massa uma forma de resistência ao

domínio do centro hegemônico? Ou estaria o Brasil exercendo influência sobre

os ‘países irmãos’ por meio de sua cultura de massa, e seguindo, dessa forma, o

esquema neocolonial dos Estados Unidos?

Voltando ao caso da falsificação de dinheiro, com a prisão de Said e

Bubacar, o D.O. pensa que finalmente conseguirá incriminar T. Entretanto, Said,

apesar de brutalmente espancado pelos policiais, não revela o nome do sócio e

comandante da operação. A única saída possível, então, é consultar o chefe do

Bunker em pessoa, em busca de autorização para interrogar T. Em uma manobra

política que sugere haver algo que T esconde e que não seria do interesse do

Bunker levar a público, o chefe nega autorização para o interrogatório, o que

revolta o D.O. e Armandinho, seu auxiliar:

– O chefe acha que não há matéria para interrogar o bagre defumado.

– Como assim? – fez Armandinho.

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– Assim mesmo. Que são apenas suposições, as nossas. Que o bagre é

conhecido por não resistir a uma mulher comprometida ou mesmo acompanhada

apenas por um homem. Logo a quer comer. Complexo de corno invertido,

segundo classificação do chefe, o qual chegou a suspirar quem não tem suas

fraquezas? Que o fato de usar nome falso não quer dizer nada, quem não se

esconde muitas vezes atrás de um pseudônimo? (JB, p.350)

Assim, com um desfecho que soará bastante familiar aos leitores

brasileiros – já acostumados aos rotineiros crimes sem solução, principalmente

quando envolvem políticos e/ou empresários como perpetradores e o povo como

vítima – o caso da falsificação de dinheiro é dado por encerrado, com Said e

Bubacar sendo totalmente responsabilizados pelo esquema, e sem que seja

possível envolver T.

Com o caso resolvido, chega o momento de colher os louros pelo ‘bom

trabalho’ realizado. ‘Bom trabalho’ referente a esse caso, sem dúvida, pois

enquanto Jaime se dedicava a perseguir T e Said pelas ruas de Luanda, coube à

polícia chefiada pelo inspetor Kinanga descobrir o assassino de Catarina. Assim,

a participação de Jaime na solução do caso para o qual fora inicialmente

destacado é, pode-se dizer, insignificante. Como o assassino era o filho de um

deputado da bancada majoritária, pode-se compreender o empenho para que o

crime permanecesse sem solução. Entretanto, na entrevista coletiva que o D.O.

concede à imprensa para apresentar os culpados pela falsificação de dinheiro,

assim como o responsável pelo desmantelamento da quadrilha, Jaime se vê, pela

primeira vez, frente a frente com T. Nesse momento, ele recorda as palavras de

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Dona Filó, a adivinha da Ilha, e sua predição – de que ele sentiria medo, muito

medo, ao finalmente encarar o assassino.

Nesse momento o leitor se vê diante de uma encruzilhada, sem saber se

opta por acreditar nas palavras da velha adivinha ou nas descobertas da polícia,

guiada por “princípios europeus, racionalistas e cegos”. (JB, p.368) Pois então

seria mesmo T o assassino da menina? Parece pouco provável, uma vez que o

figurão não gostava de virgens... Além disso, o filho do deputado não era o

assassino confesso? E por que haveria o leitor de dar mais atenção às palavras de

uma velha adivinha do que ao que a polícia havia descoberto? Essa ambigüidade,

a alternância entre as crenças nativas e as crenças européias, representa uma forte

característica da religiosidade angolana, marcada pelo sincretismo, assim como

ocorre no Brasil. Dona Filó é uma adivinha, uma quimbanda que joga búzios,

mas que tem nome de santa, Filomena, e também freqüenta a igreja. Por outro

lado, o fato de que a polícia recorre aos seus préstimos para ‘sentir’ se as

vibrações da menina morta estavam no carro do filho do deputado (JB, p.367-

368) não deixa de ser uma paródia a alguns seriados policiais da TV americana,

nos quais a polícia conta com o auxílio de um paranormal para ajudá-la a

desvendar os mistérios.413

Um detalhe, porém, uma pista oferecida em meio a tantas outras, muitas

vezes falsas, ao longo do romance, poderia significar uma chave, senão para a

solução do crime, ao menos para a interpretação do leitor. Sabe-se que o crime

413 Dois exemplos desses seriados são “Medium” e “The Dead Zone”.

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em questão consistiu na violação e assassinato de uma adolescente no dia da

Independência. Sabe-se também que T é o assassino, de acordo com a previsão

de Dona Filó. Deve-se então voltar a certas instruções dadas por Jaime Bunda a

Kinanga, logo no início do romance:

– Os pais foram interrogados?

– Sim, claro, fizemos as perguntas habituais...

– E as outras? – perante o ar aparvalhado do outro, repetiu: – Não fizeram as

outras? (JB, p.24)414

Seguindo as instruções de Jaime, portanto, devemos fazer uma pergunta

não-habitual, e essa seria: quem era a vítima? Concluímos que Dona Filó não se

referia a T como o assassino de Catarina, mas da própria nação angolana. Tendo

alcançado a independência em 1975, Angola seria, em termos históricos, não

mais do que uma adolescente – uma adolescente sistematicamente violentada

pelos abusos e desmandos de uma classe política corrupta, personificada em T.

Tim Libretti escreveu, a respeito da literatura policial de minorias nos

EUA, que a inserção e o desenvolvimento do romance policial em um contexto

cultural e demográfico diverso do contexto hegemônico no qual foi criado e se

estabeleceu possibilitam uma nova visão desse tipo de narrativa. A fórmula da

414 Grifo meu.

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ficção detetivesca poderia facilmente servir a uma função transformadora radical

em termos políticos e sociais.415

Nesse sentido, a mensagem final de esperança reside em um personagem

que é apenas mencionado superficialmente ao longo do romance, mas que toma

força total no epílogo: Gégé, o irmão mais novo de Jaime Bunda. Gégé é

formado em jornalismo, mas passara muito tempo desempregado, morando na

casa da mãe no musseque e vendendo aparelhos de rádio nas ruas de Luanda para

sobreviver. Na primeira página do epílogo, Gégé chega à casa de Jaime para

contar-lhe que finalmente conseguira um emprego “em um semanário pequeno,

mas independente e com boa linha editorial” (JB: 376). Jaime, que considera o

irmão subversivo, tenta demovê-lo da idéia; Gégé, porém, não deixa esfriar seu

entusiasmo:

Mano, nos tempos do tio Esperteza do Povo os jovens iam para as matas,

pegavam em armas para combater o colonialismo e sonhar criar uma sociedade

melhor, mais justa. Esse tempo passou. Depois outros jovens foram para as

matas, pegaram em armas, para combater o regime que o tio ajudou a criar. Esse

tempo também passou. Agora eu pego na caneta para contar a verdade aos meus

conterrâneos. Só a verdade interessa.416 É o nosso tempo. (JB, p.376)

Por considerar Gégé subversivo, Jaime teme não receber promoções no

futuro nem ascender a cargos mais altos. Segundo ele, “há verdades que

incomodam e por isso devem ficar pudicamente sob sete véus”... (JB, p.376)

415 LIBRETTI, op.cit., p.67. 416 Grifo meu.

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Gégé torna-se então um símbolo de esperança para a comunidade

marginalizada, como ele mesmo bem sabe: “Agora vou rápido contar lá no bairro

que tem um jornalista para pôr nos olhos e ouvidos do mundo tudo aquilo que a

população sempre marginalizada sente e quer.” (JB, p.376-377) Ele acena com a

possibilidade real de sair do musseque – e, em um plano mais amplo, da periferia

do poder – por meio da palavra, da educação, levando ainda outros consigo.

Tomar a palavra possibilita “contar as verdades” e narrar a própria história, ao

invés de aceitar o que é imposto pelo centro hegemônico de poder. Gégé

representa uma renovação da utopia que guiou os jovens “nos tempos do tio

Esperteza do Povo”. A própria idéia de renovar a utopia remete o leitor a uma das

obras mais famosas de Pepetela, A geração da utopia, cujo título permite duas

diferentes interpretações, ambas igualmente pertinentes ao contexto sócio-

histórico contemporâneo de Angola. Por um lado, Gégé e os outros jovens que

sonham com “uma sociedade melhor, mais justa” para Angola são a nova

geração que luta por essa utopia; por outro lado, a arma que agora utilizam, a

caneta, é um instrumento que serve para criar, ou seja, gerar, essa mesma utopia.

Desse modo, podemos concluir que Pepetela, ao escrever o primeiro

romance policial angolano e criar a figura de Jaime Bunda, fez mais do que

apenas parodiar o romance policial tradicional. Dadas as circunstâncias sócio-

econômicas, políticas e culturais da sociedade angolana contemporânea, um

romance protagonizado por um anti-herói como Jaime Bunda seria o único

romance policial possível.

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A África feliz – ou a reinvenção de Botsuana

Em 1998, a pequena editora escocesa Polygon publicou um romance sui

generis que, na época, recebeu apenas atenção limitada por parte da crítica e do

público. Escrito por Alexander McCall Smith, branco, de origem escocesa,

nascido e criado no Zimbábue, The No. 1 Ladies’ Detective Agency tem como

protagonista Precious Ramotswe, uma mulher negra de Botsuana, que, ao receber

a herança deixada por seu pai para que monte um negócio próprio, decide fundar

uma agência de detetives, a primeira comandada por uma mulher em seu país. O

autor, que viveu no Zimbábue até os dezoito anos de idade, quando se transferiu

para a Escócia a fim de completar sua educação, tornou-se um respeitado

professor de Medicina Legal na Universidade de Edimburgo e voltou à África –

desta vez a Botsuana, especificamente – por alguns anos, a fim de trabalhar na

criação de um Código Penal e auxiliar na fundação da Faculdade de Direito

daquele país.417 Hoje, McCall Smith é o prolífico autor de mais de cinqüenta

livros, que vão desde os volumes científicos, como The forensic aspects of sleep,

aos livros infantis, como The perfect hamburger. Sua primeira incursão no

campo do romance policial deu-se com The No. 1 Ladies’ Detective Agency, mas

logo ele criou também uma outra série, protagonizada pela professora

universitária Isabel Dalhousie e ambientada em Edimburgo, The Sunday

Philosophy Club.

417 Cf. MATZKE, Christine. ‘A good woman in a good country’ or the essence is in the pumpkin. p.64.

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No ano de 2002, o grupo editorial norte-americano Random House lançou

The No. 1 Ladies’ nos Estados Unidos, e o romance tornou-se um fenômeno de

vendas, alcançando o primeiro lugar na lista de mais vendidos do jornal The New

York Times, e permanecendo na lista dos dez mais vendidos por mais de um ano.

Desde então, McCall Smith já acrescentou nove volumes à série, e só faz

aumentar o fascínio dos leitores ocidentais pelas aventuras da detetive “de

constituição tradicional”418, muitas vezes erroneamente rotulada pelos críticos e

resenhistas como de meia-idade (a personagem conta apenas 35 anos de vida no

primeiro romance). Christine Matzke aponta que Mma. Ramotswe parece haver

tomado vida própria fora dos romances, e dá como exemplo a coluna interativa,

lançada no website da Random Publishing House, que funcionaria como uma

espécie de consultório sentimental em que Mma. Ramotswe daria conselhos aos

leitores. Ao longo da pesquisa, não foi possível localizar essa coluna

especificamente, porém uma rápida busca no Google mostrou que Mma.

Ramotswe tornou-se popular em uma série de novas mídias – mantém um blog419,

um perfil no Facebook420 e outro no Twitter421. A personagem também vem sendo

usada para fazer o marketing de outros livros de McCall Smith, como The girl

who married a lion, uma coletânea de contos africanos, que traz uma carta da

418 McCALL SMITH, Alexander, The No.1 Ladies’ Detective Agency. p.195 As próximas referências a este romance serão feitas pelas inicias LDA seguidas do número da página. 419 Mma. Ramotswe Blog. Disponível em <http://mma-ramotswe.blogspot.com>. Acesso em 12/07/2009. 420 Mma. Ramotswe / Facebook. Disponível em <http://www.facebook.com/pages/Mma-Ramotswe/48341424129> Acesso em: 12/07/2009. 421 Mma. Ramotswe on Twitter. Disponível em <http://twitter.com/mma_ramotswe> Acesso em 12/07/2009.

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‘autoria’ de Mma. Ramotswe. Além disso, Mma. Ramotswe está ‘escrevendo’

um livro de receitas de Botsuana, um projeto conjunto de McCall Smith e do

assistente social e ex-jornalista da BBC Stuart Brown, com o intuito de levantar

fundos para causas nobres em Botsuana.422 Na cidade de Gaborone, capital de

Botsuana e cenário habitual dos romances, uma empresa de turismo que

geralmente leva turistas a safáris pelo Delta do Okavango e pelo Deserto de

Kalahari agora oferece também um tour pela capital e seus arredores, seguindo a

trilha de Mma. Ramotswe423 – a exemplo do que já foi feito na Londres da série

Harry Potter e na Paris de O Código da Vinci – atestando o alcance popular da

série ambientada em Botsuana. Por fim, em 2008, o canal de TV HBO levou ao

ar a primeira temporada da série The No. 1 Ladies’ Detective Agency, composta

de sete episódios e dirigida por Anthony Minghella, com a atriz Jill Scott no

papel de Precious Ramotswe.424

Diante de tal recepção, cabe aventar as possíveis razões que

transformaram Mma. Ramotswe e sua agência de mulheres detetives em uma

febre dessa proporção no Ocidente – e vale lembrar que, embora o epicentro do

fenômeno tenha sido os Estados Unidos, no ano de 2005 os romances disponíveis

422 Cf. Reading Copy Book Blog. Disponível em <http://www.abebooks.com/blog/index.php/2009/06/29/alexander-mccall-smiths-heroine-precious-ramotswe-set-to-publish-cookbook> Acesso em 12/07/2009. 423 Detective Ramotswe offers clues to Botswana. Disponível em <http://www.ioltravel.co.za/article/view/3550658> Acesso em 12/07/2009. 424 Cf. Internet Movie Database. Disponível em <http://www.imdb.com/title/tt1356380> Acesso em 12/07/2009.

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já somavam mais de 6 milhões de cópias vendidas e o primeiro volume já havia

sido traduzido para mais de 30 línguas425, inclusive o português426.

A princípio, não seria de causar estranheza que um romance policial

chegasse ao topo das listas de mais vendidos, uma vez que se trata de um gênero

típico da literatura de massa; entretanto, os romances da série não contêm os

ingredientes tradicionais que caracterizam o gênero e satisfazem o gosto popular,

como crimes, ação e violência. Pelo contrário, trata-se de uma série que

privilegia os bons sentimentos e a retidão de caráter, o bem-estar emocional e a

velha moralidade de Botsuana. Richard Bartlett comenta que o próprio McCall

Smith, em uma entrevista, definiu os romances como não sendo romances

policiais, mas sim romances “sobre uma mulher que por acaso é uma detetive

particular”427. Marcel Berlins compartilha essa opinião, dizendo que “talvez seja

equivocado classificar os romances como ficção policial, uma vez que são muito

mais sobre a África do que sobre investigação.”428 No terceiro romance da série,

Morality for beautiful girls, a própria Mma. Ramotswe diz a um espantado

cliente: “Nós não estamos aqui para solucionar crimes. Nós ajudamos as pessoas

com os problemas em suas vidas.”429

425 Cf. FINNEGAN, Lesley. The old iron cooking pot of Europe. p.9. 426 No Brasil estão disponíveis os três primeiros livros da série, publicados pela Companhia das Letras, com os títulos Agência No.1 de Mulheres Detetives, Lágrimas da Girafa e Moralidade para Garotas Bonitas. 427 BARTLETT, Richard. A woman, and a detective. 428 BERLINS, Marcel. Precious Ramotswe and me. 429 McCALL SMITH, Alexander. Morality for beautiful girls. p.56. Deste ponto em diante, referências a este romance serão indicadas pelas iniciais MBG seguidas do número da página.

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Um breve resumo do primeiro romance ajudará a delinear mais claramente

o tipo de enredo que McCall Smith desenvolve. Quando seu pai falece, Precious

Ramotswe recebe quase duzentas cabeças de gado de herança, que deve vender

para investir em um negócio próprio. Ela decide abrir uma agência de detetives,

embora não esteja totalmente segura de que terá sucesso. Afinal, dispõe de

poucos bens – apenas uma pequena caminhonete branca, duas mesas, duas

cadeiras, um telefone, uma velha máquina de escrever, um bule de chá e três

xícaras – embora possua um grande estoque de bens intangíveis como intuição,

inteligência, perseverança, um profundo conhecimento da mente e do coração

humanos, um sentido arraigado de certo e errado, e uma personalidade que

inspira confiança nos que a conhecem. Ela também sente um profundo amor pela

África e por Botsuana, principalmente por seu povo; a partir desse sentimento ela

define a sua missão: “Eles são o meu povo, meus irmãos e irmãs. É meu dever

ajudá-los a resolver os mistérios em suas vidas. Isso é o que fui chamada a

fazer.” (MBG, p.4) Os mistérios a que Mma. Ramotswe se refere não são aqueles

com os quais os leitores de romances policiais estão acostumados – não há

mulheres fatais ou milionários assassinados nos romances da série. Os casos com

que ela trabalha vão desde desmascarar um aproveitador que se faz passar pelo

pai de uma contadora bem sucedida a descobrir se uma jovem indiana tem ou não

um namorado; de averiguar a legitimidade de um pleito trabalhista a descobrir a

razão para o desempenho irregular de um médico. São questões prosaicas –

problemas que as pessoas comuns enfrentam no decorrer da sua vida cotidiana.

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Apenas uma vez, ao longo do primeiro romance, Mma. Ramotswe se depara com

uma questão que envolve uma ameaça mais violenta – quando um menino

desaparece e ela suspeita que ele possa ter sido vítima de feiticeiros, um crime

que envolveria a assustadora tradição de usar ossos humanos para fazer muti

(remédio). O romance é permeado pelas observações de Mma. Ramotswe sobre o

comportamento humano, como “era curioso como certas pessoas tinham um

senso de culpa altamente desenvolvido, ela pensou, enquanto outras não tinham

nenhum. Algumas pessoas se martirizavam por causa de pequenos deslizes ou

erros, enquanto outras permaneciam impassíveis apesar de seus atos abjetos de

traição e desonestidade” (LDA, p.125). Essas observações fazem lembrar as

inferências de Miss Marple acerca da natureza humana, e lhe valeram o apelido

de “Miss Marple de Botsuana” entre os críticos.430 Além disso, o leitor também

acompanha suas avaliações bem-humoradas das falhas masculinas, sua luta

incansável pela igualdade entre os sexos, seu profundo amor pelo seu país e seu

povo e percebe o calor, a generosidade e a inteligência que caracterizam a sua

personalidade.

McCall Smith atribui o seu sucesso no mercado norte-americano ao

momento histórico em que a obra foi lançada, após o 11 de setembro, quando a

sociedade norte-americana, traumatizada pelos acontecimentos recentes, estava

430 BECKER, Alida. Miss Marple of Botswana.

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pronta para dar as boas-vindas a uma história amena, repleta de otimismo e bem-

estar.431 Diz McCall Smith:

Esses livros não são agressivos, são muito suaves. São livros calmos, nos quais

se bebe muito chá. Tratam de boas pessoas que levam boas vidas. Eu acho que

os americanos que os lêem estão cansados do realismo social escancarado – aqui

está algo muito mais ameno, um pouco antiquado. Eles vêm passando por um

período terrível no âmbito doméstico, e os meus livros são um antídoto.432

Essa qualidade moral, tanto quanto o estilo narrativo simples e direto, o

conjunto de personagens cativantes e o amor por uma boa história estariam

provavelmente no cerne do apelo extraordinário que Mma. Ramotswe encontrou

junto ao público. Amanda Craig aponta que, nos últimos anos, poucos detetives

conquistaram de fato o interesse do público, e atribui esse relativo descaso a

mudanças na própria estética do gênero, que adquiriu características mais

sombrias, marcadas pela neurose e pela autoindulgência. Assim, o gênero teria se

tornado mais literário, porém menos ‘satisfatório’ na função de consolar o leitor,

tradicionalmente desempenhada pelo romance policial.433 Nos romances de

McCall Smith, “a maioria das pessoas se apaixona pelo lugar, e sua atmosfera de

cortesia e decência humana. É um país com um sentimento de moralidade, onde

as regras e leis são respeitadas.”434

431 Cf. FINNEGAN, Lesley. ‘A completely satisfactory detective’. p.123. 432 BERLINS, op.cit. 433 CRAIG, Amanda. The morality of Mma. Ramotswe. 434 BERLINS, op.cit.

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Alguns críticos consideraram que McCall Smith estava empreendendo um

“retorno ficcional a um país que obviamente amava”435. Mma. Ramotswe,

combinando firmeza e empatia, resolve de forma triunfal todos os casos que se

apresentam, de modo que todos ficam mais felizes do que antes, enquanto celebra

os pequenos prazeres da vida e as virtudes fundamentais da conduta humana. De

acordo com Anthony Daniels, o autor representa a vida cotidiana em Botsuana

como superior – em termos de civilidade, por exemplo – ao estilo de vida do

Ocidente; mesmo os delitos com que Mma. Ramotswe tem que lidar, em sua

profissão, se devem mais às fraquezas da alma humana do que ao mal perpetrado

na sociedade ocidental. Assim, Daniels aponta que a narrativa da vida em

Botsuana seria também, implicitamente, um trabalho de crítica social.436

Outra parte da crítica, porém, interroga a legitimidade do discurso de

McCall Smith. Kathy Weissman, por exemplo, lembra que os escritores

ocidentais geralmente tratam da África por intermédio de um protagonista que

pertença à sua própria cultura, seja um soldado, um missionário, um explorador,

que “se aventura em território desconhecido”.437 Assim, considera “um dos

mistérios – e milagres – da ficção recente que um escocês chamado Alexander

McCall Smith tenha criado uma personagem como Precious Ramotswe, a

corpulenta, sensata e absolutamente cativante investigadora que protagoniza os

romances de Botsuana.” Pode-se refutar os argumentos de Weissman apontando,

435 MATZKE, op.cit., p.64. Cf. também BARKER, Paul. The mysterious case of the Scottish crime writer. 436 DANIELS, Anthony. Agent for good. 437 WEISSMAN, Kathy. Review of The Kalahari Typing School for Men.

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em primeiro lugar, que McCall Smith não é um escocês ‘comum’ – tendo nascido

e vivido no Zimbábue até os dezoito anos de idade, e retornado após os estudos

universitários para mais alguns anos em Botsuana, o autor não é um estranho à

África que escolheu representar, ou seja, não está exatamente adentrando um

“território desconhecido”. É certo, sem dúvida, que o fato de ter nascido na

África não o torna um membro daquela comunidade – uma criança branca,

nascida na África na época colonial, dificilmente teria alguma convivência com

as comunidades nativas além do contato com os criados, ou seja, a princípio

permaneceria alienada da realidade das populações que viviam sob o jugo

metropolitano. Por outro lado, essa mesma criança não compartilhava a vivência

das crianças européias das metrópoles – suas memórias de infância, de cenários,

cheiros, sons e cores seriam sempre africanas.

Sendo esse o caso de McCall Smith, seria mais adequado considerá-lo

como um habitante do entre-lugar438, ou um fruto do que Mary Louise Pratt

denomina “zona de contato”, em que metrópole-colônia se intercontaminam439.

McCall Smith seria, assim, um sujeito capaz de “ver a África pelo lado de dentro

e pelo lado de fora ao mesmo tempo”440 – essa visão, até mesmo pela sua

duplicidade de pontos de vista, não seria idêntica à do colonizador nem à do

colonizado; seria, sim, uma terceira visão, diferente, que englobaria vivências de

ambos os lados. Dessa forma, pode-se aceitar que se questione se McCall Smith

teria legitimidade para falar por uma mulher negra de Botsuana, como sua

438 Cf. SANTIAGO, Silviano. Entre-lugar do discurso latino-americano. 439 Cf. PRATT, Mary-Louise. Os Olhos do Império. 440 FINNEGAN [2005], op.cit., p.17.

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protagonista, mas não que não teria legitimidade para falar sobre a África. Ele

fala como um homem branco, mas não como o colonizador; embora sua voz não

seja negra nem feminina, é indiscutivelmente africana.

Vale aqui lembrar Walter Benjamin, que, em seu conhecido ensaio “O

Narrador”, descreve um tipo de narrador, ou contador de histórias, que deixa a

sua comunidade para ganhar o mundo e contar as histórias de sua cultura aos

outros povos, assim como trazer as histórias de outros lugares e outras culturas

para a sua comunidade de origem.441 Por esse ponto de vista, seria possível

apontar semelhanças entre McCall Smith e o narrador benjaminiano – ao sair da

África para a Europa e criar uma série best-seller em que narra as histórias, as

tradições e a cultura da Botsuana de Mma. Ramotswe, ele usa toda a máquina da

poderosa indústria editorial (e, mais recentemente, televisiva) do Ocidente para

narrar ao mundo as histórias de uma África bastante diferente daquela construída

no imaginário popular ao longo dos anos em que a África foi descrita sempre

através de um ‘filtro’ eurocêntrico, desde as narrativas dos exploradores e

missionários europeus da época pré-colonial, e que permaneceu por todo o

período da colonização imperialista.

Para ilustrar essa questão, reproduzo a seguir alguns trechos de uma

resenha de Michael Allen442 sobre o quarto volume da série, The Kalahari Typing

441 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.[1994b] 442 ALLEN, Michael. Dickens in the Kalahari.

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School for Men, publicada no blog Grumpy old bookman443, que exemplifica bem

a expectativa do europeu / americano médio a respeito da África que busca

encontrar na literatura:

É tudo um bocado – bem, delicado, francamente. Os bons personagens são

decididamente santos, e os maus não são assim tão maus quando chamados às

falas. O único que poderia realmente ser considerado um vilão nesse livro é um

marido namorador. E o que ele faz quando Mma. Ramotswe revela que sabe o

que ele está aprontando? Ele murcha, é isso. ‘Me desculpe,’ ele diz. ‘Vou fazer

o que me disser, Mma.’

Agora, me creiam quando digo que não tenho a intenção de difamar ninguém.

Mas me parece um pouco difícil acreditar que um homem africano

contemporâneo, quando ameaçado de exposição por uma mulher intrometida,

reagiria de forma tão mansa. Partindo do que eu sei sobre o caráter do homem

africano, seria muito mais provável que ele pegasse a primeira arma

pontiaguda ao seu alcance e cortasse Mma. Ramotswe em pedacinhos. Com

crianças adotadas ou não.

Em suma, The Kalahari Typing School for Men parece estar, a meu ver, situado

em um mundo irreal.444

O comentário acima sugere o quanto a idéia de uma África violenta e

selvagem está arraigada no imaginário ocidental: ao se deparar com uma situação

em que um indivíduo reage de forma absolutamente civilizada ao ser pêgo em

falta, o leitor médio não consegue aceitar que esse mundo seja ‘real’. Como se

443 O blog Grumpy old bookman foi escolhido por ter sido eleito pelo jornal The Guardian um dos dez melhores blogs literários voltados tanto para escritores quanto para leitores, no ano de 2005. Dessa forma, considera-se que expressa uma opinião endossada por seus eleitores. 444 ALLEN, op.cit. Grifos meus.

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não bastasse, ele acha ‘provável’ que na África um homem parta de faca em

punho para atacar uma mulher que o ameace, ao menos “partindo do que [ele

sabe] sobre o caráter do homem africano”... Cabe questionar então de onde viria

todo esse ‘conhecimento’ ocidental sobre o caráter africano, senão da literatura

do período colonial, dos relatos de exploradores europeus e, mais recentemente,

das telas do cinema...445

É importante considerar também a opinião de Allen a respeito da África

que McCall Smith representa em seus romances:

Então, eu suspeito que a Botsuana do Professor McCall Smith não seja a

Botsuana real, ou a África real. O continente escuro, até onde eu vejo,

permanece escuro. De fato, ele é negro e absolutamente imundo em alguns

lugares. Parece ser um continente de corrupção, brutalidade e, claro, AIDS. Mas

há apenas menções leves e bastante distanciadas a esses problemas na série The

No. 1 Ladies’ Detective Agency.

[...] o único ponto que eu quero enfatizar é que o leitor não deveria, na minha

opinião, confundir essa Botsuana amena e benigna com a coisa real.446

Allen incorre em um equívoco muito comum no discurso hegemônico – a

homogeneização. Ao falar de Botsuana, ele a toma como uma representação do

continente africano como um todo, e critica essa representação com base em

informações prévias recebidas de outras fontes, que talvez não se referissem a

445 Para maiores informações sobre como o cinema europeu / americano serviu ao projeto colonial, ajudando a disseminar o discurso hegemônico, remeto o leitor ao ensaio “Contested Histories: eurocentrism, multiculturalism and the media”, de Robert Stam e Ella Shohat. 446 ALLEN, op.cit.

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Botsuana especificamente. No parágrafo seguinte, ele cita um fato ocorrido na

Nigéria como parâmetro para as críticas que faz à Botsuana de McCall Smith –

ora, Botsuana e Nigéria estão situadas em pontos opostos do continente africano,

têm histórias, línguas, costumes e governos completamente distintos, de modo

que tecer uma crítica a Botsuana com base em um fato ocorrido na Nigéria é, no

mínimo, uma ingenuidade. Faz-se necessário, portanto, investigar a situação de

Botsuana no contexto africano da descolonização para conferir até que ponto a

representação de McCall Smith seria ou não coerente com a realidade desse país.

O antigo Protetorado de Bechuanalândia adotou o nome de República de

Botsuana ao tornar-se independente da Inglaterra em 1966, em um processo

pacífico que começou com uma proposta apresentada ao governo britânico para

um auto-governo democrático em Botsuana. O primeiro presidente foi Seretse

Khama, o líder do movimento de independência, que foi reeleito duas vezes;

desde então, os presidentes são eleitos de forma democrática, sem que o país

tenha passado por qualquer golpe de estado ou ditadura. Botsuana faz fronteiras

com a África do Sul, a Namíbia, o Zimbábue e a Zâmbia, e não tem saída para o

mar; além disso, setenta por cento do seu território são tomados pelo Deserto de

Kalahari. Ao conquistar a independência, era um dos países mais empobrecidos

do mundo. Hoje, seu mercado econômico cresce com rapidez e sua economia é

uma das mais bem sucedidas da África, baseada em um setor de serviços em

expansão, na mundialmente conhecida indústria de diamantes, no turismo e na

manufatura. Apenas trinta por cento da população vive abaixo da linha de

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pobreza. O crescimento de Botsuana superou o dos chamados Tigres Asiáticos e

o Banco Mundial cita o país como uma das histórias mais bem sucedidas do

mundo em desenvolvimento. Por outro lado, Botsuana sofreu um impacto

considerável por conta da pandemia de AIDS. Estima-se que um em cada seis

indivíduos adultos seja HIV-positivo, o segundo maior índice de infecção do

mundo, atrás apenas da Suazilândia; por essa razão, a expectativa de vida caiu de

65 para 35 anos. Vale assinalar, entretanto, que o governo de Botsuana lançou o

que é considerado o melhor programa de prevenção à AIDS da África, e já

conseguiu baixar o nível de transmissão do HIV de mães infectadas para seus

filhos de quarenta para quatro por cento.447 Assim, não é de se estranhar que a

Fundação Bertelsmann, da Alemanha, tenha dado ao país o apelido “a Suíça da

África”.448

Vê-se, portanto, que a história da África narrada por McCall Smith não é a

do ‘continente escuro’ do inconsciente coletivo europeu, e sim a de uma África

que, gradativamente, vem, em grande medida, dando certo. O autor desenvolve

uma narrativa leve e bem humorada de uma nação que emergiu do período

colonial praticamente sem perspectivas, mas que conseguiu se reconstruir e se

destacar no cenário mundial por razões positivas, como o seu crescimento

econômico, embora ainda precise lidar com problemas sérios como o alto índice

de contaminação pelo HIV. No todo, pode-se dizer que Botsuana não é a África

que o espectador ocidental foi acostumado a ver nos noticiários, nos filmes ou

447 Cf. Verbete Botswana.Wikipedia. 448 Cf. “German foundation says we are the best”. Daily News.

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mesmo na literatura, mas um país que enfrentou uma dura realidade pós-colonial

e conseguiu se reerguer, tornando-se, nas palavras de McCall Smith, “o melhor

país da África, que soube se conduzir na mais completa integridade”.449

Fig.11 – Rua de pedestres no centro de Gaborone450

Fig.12 – O deserto de Kalahari451

449 Cf. BARKER, op.cit. 450 Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:MainMall.jpg 451 Fonte: http://www.gondwana-collection.com/Kalahari_Desert.htm

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Com base nisso, voltamos a refletir acerca da visão que McCall Smith

apresenta ao leitor em seus romances. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o

autor não busca representar a África como um todo, mas enfatiza que trata apenas

de Botsuana especificamente – e o faz inclusive por meio de cenas dos romances

e diálogos entre os personagens. Em The No.1 Ladies’ Detective Agency, por

exemplo, Mr. Paliwalar Sundigar Patel é um indiano que imigrou para Botsuana,

onde se estabeleceu como comerciante, tornando-se um dos homens mais ricos e

respeitados do país. Ao receber parentes para o casamento de seu filho, estes o

advertem para que tome cuidado com a ‘África’ e não ostente sua riqueza, ao que

Mr. Patel reage, procurando mostrar-lhes que não se deve generalizar /

homogeneizar, embora sem muito sucesso:

An elderly cousin had said to him at the wedding in Durban: “Look, man, we

Indians have got to be careful. You shouldn’t go flashing your money around

the place. The Africans don’t like that, you know, and when they get the chance

they’ll take it all away from us. Look at what happened in Uganda. Listen to

what some of the hotheads are saying in Zimbabwe. Imagine what the Zulus

would do to us if they had half a chance. We’ve got to be discreet.”

Mr. Patel had shaken his head. “None of that applies in Botswana. There’s no

danger there, I’m telling you. They’re stable people. You should see them; with

all their diamonds. Diamonds bring stability to a place, believe me.”

The cousin appeared to ignore him. “Africa’s like that, you see,” he continued.

“Everything’s going fine one day, just fine, and then the next morning you wake

up and discover your throat’s been cut. Just watch out.” (LDA, p.96-97) 452

452 “Um primo mais velho havia dito a ele no casamento em Durban: ‘Olha, cara, nós indianos temos que tomar cuidado. Você não devia ostentar o seu dinheiro por aí. Os africanos não

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O leitor poderá, sem dúvida, discordar da afirmação de Mr. Patel quanto à

função dos diamantes na estabilidade de Botsuana, ao se lembrar que toda a

riqueza em diamantes da África do Sul não impediu aquele país de viver os

horrores da política do apartheid. Entretanto, o ponto que a fala de Mr. Patel

enfatiza é a necessidade de se ver cada nação individualmente, em sua própria

trajetória, evitando incorrer em generalizações e na conseqüente homogeneização

das nações africanas sob o rótulo ‘África’.

Ao mesmo tempo, reforça-se a idéia de que Botsuana representa uma

África desconhecida e inesperada para o leitor ocidental, justamente por se

mostrar fundamentada em valores morais e virtudes um tanto quanto desgastados

no Ocidente. É interessante considerar que a própria recepção dos romances pela

crítica e pelo público leitor demonstrou haver uma certa curiosidade (ou seria

desconfiança?) a respeito da veracidade do cenário escolhido por McCall Smith

para ambientar seus romances. Para melhor ilustrar a questão, reproduzo aqui um

trecho de uma entrevista de Pinkie Mekgwe com o autor, por ocasião de uma de

suas visitas a Botsuana:

PM: Nesses livros, o foco recai principalmente sobre o lado alegre da vida. [...]

Há menções aos problemas, em toda a série, mas as pessoas parecem

gostam disso, você sabe, e quando tiverem a chance vão nos tomar tudo. Veja o que aconteceu na Uganda. Ouça o que estão dizendo no Zimbábue. Imagine o que os Zulus fariam conosco se tivessem alguma chance. Nós temos que ser discretos.’ / Mr. Patel balançou a cabeça. ‘Nada disso se aplica a Botsuana. Não há perigo lá, estou te dizendo. Eles são pessoas estáveis. Você devia vê-los, com todos os seus diamantes. Diamantes trazem estabilidade a um lugar, pode acreditar.’ / O primo pareceu ignorá-lo. ‘A África é assim, veja bem,’ ele continuou. ‘Tudo está indo bem um dia, e na manhã seguinte você descobre que te cortaram a garganta. Preste atenção.’”

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sempre superá-los, e a alegria, o calor, a empatia parecem ser a ordem do

dia.

AMS: Eu acredito que é importante ser otimista. [...] Acho que é importante

acreditar que se pode fazer muito da vida, que se pode ter muita satisfação

em viver. Suponho que eu seja um romancista meio utópico. Eu não estou

preocupado em descrever as coisas como elas são, mas procuro vê-las

como poderiam ser.453

McCall Smith apresenta, de fato, uma versão um tanto romantizada de

Botsuana. Embora o país venha realmente se destacando no cenário africano, e

apresentando resultados econômicos bastante satisfatórios, é importante ressaltar

que ainda há um longo caminho a ser percorrido até que a “Suíça da África”

supere graves problemas já mencionados neste ensaio, como, por exemplo, o

desemprego e a epidemia de AIDS. Um dos pontos mais criticados na obra de

McCall Smith é justamente o modo como ele trata a questão da AIDS, tão

sutilmente que muitas vezes se torna imperceptível ao leitor, como quando um

dos personagens explica a Mma. Ramotswe porque havia se envolvido em um

esquema ilícito para ganhar dinheiro: “Eu estou cuidando dos meus pais. [...] E

eu tenho uma irmã que tem aquela doença que está matando todo mundo hoje em

dia. Você sabe do que eu estou falando. Ela tem filhos. Eu tenho que sustentá-

los.” (LDA, p.173) A essas críticas, McCall Smith responde que, embora se refira

ao assunto nos romances, procura não se ater a ele, porque lhe parece que aquela

população está interessada em continuar vivendo a sua vida, apesar dos

453 MEKGWE, Pinkie. “All that is fine in the human condition”: crafting words, creating Mma. Ramotswe. p.183. Grifos meus.

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problemas.454 Vale ressaltar, também, que, embora a sua visão de Botsuana tenda

a ser romantizada, não se pode afirmar ser uma visão alienada – está bem

fundamentada na realidade de um país pacífico e bem sucedido. Nas palavras de

Pinkie Mengwe, “Botsuana se destaca como a verdadeira heroína.”455

Pode-se concluir, portanto, que uma das razões do fascínio do leitor

ocidental pelos romances seria essa nova visão da África que lhe é apresentada.

Uma outra razão que se destaca, e que está intimamente ligada a essa África

construída com base na moralidade e no orgulho nacional, são as lições de vida

que Mma. Ramotswe oferece aos leitores a cada novo caso – e, como ela trabalha

em vários casos a cada romance, também se multiplicam as lições. Um ponto

importante a considerar é que raramente os casos requerem alguma interferência

da polícia, embora Mma. Ramotswe recorra à eventual ajuda de um amigo

policial em busca de informações. Como muitos dos casos não constituem crimes

propriamente ditos, e seriam mais bem caracterizados como falhas de caráter e/ou

conduta, resultantes das fraquezas humanas, busca-se prioritariamente obter a

reparação do erro, em detrimento da punição do culpado. Essa atitude, que

aparentemente poderia legitimar a impunidade, ao menos no âmbito individual,

assume o caráter de correção da conduta no plano coletivo e, por conseguinte,

estimula o desenvolvimento da sociedade e do país como um todo.

Alguns exemplos, retirados de The No.1 Ladies’ Detective Agency,

poderão ilustrar melhor a questão. Em um dos seus primeiros casos, assim que

454 Ibid., p.183. 455 Ibid., p.183.

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inaugura a agência, Mma. Ramotswe é procurada por uma contadora muito bem

sucedida, que abriga em sua casa um homem que diz ser seu pai desaparecido há

muitos anos. A moça o havia recebido com toda a hospitalidade, comandada

pelos costumes tradicionais, que dizem que a família deve apoio a seus membros

mais necessitados. Ela, entretanto, desconfia que o homem não é seu pai

verdadeiro, e sim um aproveitador interessado apenas em explorá-la. Mma.

Ramotswe monta uma armadilha para o suspeito, inventando que a moça havia

sofrido um acidente e que ele, como seu pai, precisaria doar-lhe sangue – tanto

sangue que poderia mesmo morrer por causa disso. Face a esse risco, o homem

revela não ser o pai verdadeiro da moça e Mma. Ramotswe determina que ele

volte para sua cidade de origem, ameaçando enquadrá-lo no Código Penal de

Botsuana, caso ele não a obedeça. (LDA, p.7-14) Nesse caso específico, uma

situação familiar individual é resolvida de modo a salvaguardar os costumes

tradicionais – protege-se aquele que observa os costumes, e pune-se aquele que

abusa da boa fé alheia. Embora a própria Mma. Ramotswe admita haver

“charlatães e parasitas” (LDA, p.12) que se aproveitam dos costumes tradicionais

para viver às custas dos parentes, impedir o abuso significa manter vivo o

costume, e assim manter uma rede de proteção que garanta o bem-estar dos mais

necessitados.

Um outro caso, também apresentado em The No.1 Ladies’, é o de um

homem que abre um processo trabalhista contra um amigo de Mma. Ramotswe,

dono de uma fábrica. O homem alega haver perdido um dedo em decorrência de

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um acidente na fábrica; o dono da fábrica, entretanto, está seguro de que não fez

nada de errado, e desconfia da história. Embora aconselhado por todos, inclusive

a companhia de seguros, a fazer um acordo e pagar a indenização, ele pede que

Mma. Ramotswe investigue se a história procede, para que o homem não seja

estimulado pelo ganho fácil de dinheiro ilícito e passe a enganar também outras

pessoas. Imaginando que poderia não ser a primeira vez que o homem tentava

esse golpe, ela entra em contato com outras companhias de seguro do país, e

descobre que o homem vinha pleiteando sucessivas indenizações pela perda do

dedo, e já havia fraudado outras duas companhias de seguros. Sua primeira

reação é entregar o fraudador à polícia; ao descobrir, entretanto, que ele era o

responsável pelo sustento de toda a família, ela conclui que não haveria nenhum

ganho real para o próprio homem, para sua família ou para o dono da fábrica se

ele fosse preso. Assim, exige que ele retire o pleito e se abstenha de usar o

acidente para voltar a extorquir dinheiro de pessoas inocentes. (LDA, p.152-174)

Mais uma vez, um caso individual assume um caráter coletivo – em uma nação

que luta para se firmar no cenário mundial, e se reconstruir com dignidade, não

poderia haver lugar para fraudadores, aproveitadores e outros tipos de maus

elementos, que buscariam desviar para si os recursos que precisariam ser

investidos no desenvolvimento do país. Entretanto, a conduta de Mma.

Ramotswe enfatiza que há espaço para a reparação que advém do

arrependimento, antes que se considere a necessidade de punição. O ato de

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reparar um erro, uma falha, está vinculado à necessidade de (re)construir – uma

nação, por exemplo.

O conceito de reconstrução e reescritura da nação, que engloba,

necessariamente, se narrar uma identidade nacional, é uma das características

mais prementes da chamada literatura pós-colonial.456 Não se pretende aqui

afirmar, ou mesmo sugerir, que McCall Smith seria um ‘autor pós-colonial’, mas

cabe lembrar algumas palavras de Susan Basnett, a respeito dos reflexos do

processo de colonização sobre os sujeitos nele envolvidos:

Há uma tendência a se falar do colonialismo como se essa fosse uma

experiência exclusivamente negra. Esta é uma compreensão muito limitada. Foi

uma via de mão dupla. O colonialismo foi uma experiência branca tanto quanto

foi uma experiência negra. Simplesmente o mundo branco levou muito tempo

para compreender a natureza dessa empreitada.457

Vê-se, portanto, que a empreitada colonial operou transformações sobre

todos os envolvidos, direta ou indiretamente. Por esse aspecto, a obra de McCall

Smith não se apresenta em contradição com a literatura pós-colonial; pelo

contrário, se coaduna com ela, indo ao encontro dos seus anseios e expectativas

quanto à possibilidade de se narrar uma nação. Vale enfatizar que, como fruto do

processo de colonização, McCall Smith também tem a África como seu local de

fala – e sua protagonista representa o sujeito pós-colonial.

456 Não por acaso, uma das obras mais emblemáticas da crítica pós-colonial é intitulada Nação e narração, de Homi Bhabha. 457 BASNETT, Susan. Comparative identities in the post-colonial world. p.91.

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A busca da construção de uma identidade nacional tem início com a

necessidade de se desenvolver uma releitura da imagem construída pelo

colonizador, uma imagem que representa o colonizado como selvagem,

primitivo, perigoso e até mesmo diabólico. Nas palavras de Basnett,

[...] gradualmente foi-se criando o mito de um coração secreto da África, um

lugar de medo e escuridão, no qual as trevas das grandes florestas se

combinavam com as peles negras e sugestões de adoração aos espíritos e

poderes diabólicos primitivos.458

Promover a criação de uma nova imagem do sujeito pós-colonial passa

pelo processo de se rever a história colonial e aceitar a impossibilidade de uma

efetiva descolonização – não existe um retorno possível a um mundo pré-

colonial, de modo que é preciso ‘fazer as pazes’ com o passado e lidar com as

ambigüidades resultantes no presente, reconhecendo “as complexidades dos

processos históricos que resultaram em tal pluralismo.”459 A esse respeito,

vejamos o que Mma. Ramotswe teria a dizer:

Seretse Khama, Paramount Chief of the Bangwato, First President of Botswana,

Statesman. Look at the way the British had treated him, refusing to recognise

his choice of bride and forcing him into exile simply because he had married an

Englishwoman. How could you have done such an insensitive and cruel thing to

a man like that? […] But Seretse himself never made much of this later on. He

did not talk about it and he was never anything but courteous to the British

Government and to the Queen herself. [...] Then there was Mr. Mandela.

458 Ibid., p.72-73. 459 Ibid., p.80.

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Everybody knew about Mr. Mandela and how he had forgiven those who

imprisoned him. They had taken away years and years of his life simply because

he wanted justice. […] But at last, when he had walked out of the prison on that

breathless, luminous day, he had said nothing about revenge or even

retribution.460

Estaria Mma. Ramotswe se perguntando se não seria melhor “deixar o

passado pra lá”, como sugere Muff Andersson?461 Não nos parece ser esse o caso,

dada a personalidade de Mma. Ramotswe e seu gosto pelas lições de moral

cotidianas. Pelo contrário, ao rememorar as atitudes de dois líderes políticos

muito admirados na África, a personagem sugere que eles teriam lições a ensinar

ao mundo – e tais lições não diriam respeito à vingança, mas à mudança. O que

Seretse Khama e Nelson Mandela teriam buscado ensinar, ao não retaliar os atos

injustos cometidos contra eles, seria a necessidade de se quebrar o paradigma de

ação e reação, de violência gerando violência e injustiça gerando injustiça, de

modo a transformar as relações dentro daquela sociedade para que outros atos

injustos não viessem a ocorrer.

O foco se volta novamente, então, para as ‘lições de vida’ sempre

presentes nos romances, que chamam a atenção dos leitores para valores que o

460 McCALL SMITH, Alexander. Tears of the giraffe. p.59-60. “Seretse Khama, Chefe Maior de Bangwato, Primeiro Presidente de Botsuana, Estadista. Veja o modo como os britânicos o trataram, recusando-se a reconhecer a escolha de sua noiva e o forçando ao exílio simplesmente porque ele havia se casado com uma inglesa. Como poderiam ter feito algo tão insensível e cruel a um homem como aquele? [...] Mas o próprio Seretse nunca deu muita importância a isso mais tarde. Ele não comentava o assunto e era sempre cortês em relação ao Governo Britânico e à própria Rainha. [...] Depois veio Mr. Mandela. Todos sabiam de Mr. Mandela e de como ele havia perdoado aqueles que o aprisionaram. Eles haviam tirado anos e anos de sua vida apenas porque ele queria justiça. [...] Mas, por fim, quando ele saiu da prisão naquele dia ofegante e luminoso, ele não disse nada sobre vingança ou mesmo retaliação.” 461 Cf. ANDERSSON, Muff. Watching the detectives. p.147.

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mundo ocidental já deixou, até certo ponto, se perderem – o orgulho nacional, o

patriotismo, a honestidade, a esperança de um futuro melhor... A produtora

novaiorquina Amy J. Moore, uma das responsáveis pela transposição da série

para as telas da TV, que viveu em Botsuana nos anos 80 e se apaixonou pelo

país, assim relata a sua primeira reação ao ler os romances de McCall Smith: “Eu

fui surpreendida por essa verdadeira fábula [...] de que é possível viver uma boa

vida, é possível ser uma boa pessoa, é possível ser um bom vizinho, e que a

verdade pode existir juntamente com a beleza. Eu pensei, esse livro africano tem

muito a ensinar ao mundo ocidental.”462

A frase grifada sugere um diálogo com W.E.B. DuBois em seu ensaio

“The Conservation of Races”, no qual interroga o real sentido da raça, e que

lições o negro teria a ensinar ao mundo, além de enfatizar a necessidade de se

estabelecer um diálogo entre raças, etnias e nacionalidades. Em suas palavras:

[…] permanece o fato de que a mensagem completa da raça negra não foi ainda

dada ao mundo […] A pergunta é, então: como essa mensagem será entregue;

como esses vários ideais serão realizados? A resposta é simples: pelo

desenvolvimento desses grupos raciais, não como indivíduos, mas como raças.

[…] Para o desenvolvimento do gênio negro, da arte e da literatura negras, do

espírito negro, apenas os negros juntos, os negros inspirados por um vasto ideal,

podem trabalhar em sua plenitude a grande mensagem que temos para a

humanidade. Nós não podemos reverter a história; estamos sujeitos às mesmas

leis naturais que as outras raças, e se o negro vier a ser um fator na história do

mundo – se entre as bandeiras coloridas que adornam as largas defesas das

civilizações estiver hasteada uma negra, descompromissada, então que tenha

462 WINES, Michael. Seduced by Botswana: Minghella brings No. 1 Ladies' Detective Agency to the screen. Grifo meu.

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sido colocada por mãos negras, desenhada por mentes negras e consagrada pelo

trabalho de 200.000.000 de corações negros batendo em uma canção de

alegria.463

Considerações finais

A leitura dos romances trabalhados ao longo deste ensaio nos leva a

perceber imensas diferenças entre a África de Mma. Ramotswe e a África de

Jaime Bunda, confirmando que a idéia de uma África homogênea não se sustenta.

O ‘continente escuro’ tão presente na literatura colonial se desvanece aos olhos

dos leitores quando apresentado pelo ponto de vista da literatura produzida na

época pós-colonial, e revela algumas facetas desconhecidas ou até inesperadas.

Não cabe no âmbito deste ensaio investigar as razões históricas que

levaram a tais diferenças entre as duas Áfricas representadas nos romances – a

Botsuana de Mma. Ramotswe, um país estável e próspero, e a Angola de Jaime

Bunda, uma terra que sente os efeitos acumulados de várias guerras, disputas

pelo poder e governos corruptos – embora se possa deduzir que as razões estarão

na própria história de seu processo de colonização e subseqüente

‘descolonização’. Assim, mais uma vez fazendo referência à obra de Homi

Bhabha, vê-se que, embora os romances lancem mão do gênero policial, a

História das nações sendo narradas ocupa um espaço preponderante, apontando

não só para a busca da construção, como para a busca de uma identidade nacional

463 DuBOIS, W.E.B. The Conservation of Races.

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que leve os países dos autores a ocupar o seu espaço no cenário mundial.

Percebe-se, então que, nesse contexto, o objeto de investigação dos detetives

protagonistas dos romances é a própria sociedade em que vivem, bem como as

relações de poder que se estabelecem entre os seus membros. Concordamos, a

esse respeito, com a posição de Pepetela, que aponta a história policial como um

mero pretexto para a análise da sociedade.464 A ficção policial seria, deste modo,

como nas obras da chamada ‘literatura maior’, uma representação do seu

momento histórico.

Constatamos, em nossa leitura, a existência de duas Áfricas, tão distintas

que parecem situadas a uma distância bem maior do que os dois mil e duzentos

quilômetros que separam Gaborone de Luanda – a primeira, uma África que vem

dando certo, que encontrou uma certa estabilidade política, social e econômica; a

outra, uma África que tem enfrentado inúmeras dificuldades nesses aspectos, e

que ainda busca meios que a possam levar à superação dessas barreiras. Os

protagonistas dos romances são representantes adequados de seus países nativos

– Jaime Bunda é, nas palavras de Pepetela, um “James Bond subdesenvolvido”

(JB, p.148), ao passo que Alexander McCall Smith nos apresenta Precious

Ramotswe nos seguintes termos: “Ela era uma boa detetive, e uma boa mulher.

Uma boa mulher em um bom país.” (LDA, p.4)

Por fim, cabe apontar que as duas Áfricas narradas nos dois romances

estudados não esgotam a possibilidade de outras Áfricas. Uma vez que se

464 PEPETELA, op.cit.

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desconfie da ficção de homogeneidade pregada pelo domínio colonial, abre-se o

caminho para que cada nação africana narre a sua própria África – ou as suas

Áfricas plurais – e serão tantas quantas forem os modos de narrar ou os gêneros

escolhidos pelos autores.

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O Desfecho Final

Mr. Raymond Chandler has written that he intends to

take the body out of the vicarage garden and give the

murder back to those who are good at it. If he intends

to write detective stories, […] he could not be more

mistaken […]. Actually, whatever he may say, I think

Mr. Chandler is interested in writing, not detective

stories […] and his powerful but extremely depressing

books should be read and judged, not as escape

literature, but as works of art.

W.H. Auden – The Guilty Vicarage.465

465 AUDEN, op.cit., p.19. “O Sr. Raymond Chandler já escreveu que pretende retirar o corpo do jardim do vigário e devolver o assassinato àqueles que são bons nisso. Se ele pretende escrever histórias policiais [...] ele não poderia estar mais enganado. Na realidade, não importa o que ele diga, eu acho que o Sr. Chandler está interessado em escrever, não histórias policiais [...] e seus livros fortes, embora extremamente depressivos, deveriam ser lidos e julgados, não como literatura de escapismo, mas como obras de arte.” A menção ao “jardim do vigário” tem relação direta com o título da obra de Auden – uma referência aos conhecidos mistérios girando em torno de pacatas cidades inglesas (os de Agatha Christie, por exemplo).

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Embora não seja o propósito deste estudo discutir o que leva uma obra a

ser classificada ou não como uma história policial, o contraste da epígrafe acima

com outra citação de W.H. Auden, usada como epígrafe da introdução desta tese,

deixa claro que o poeta faz um julgamento de valor, ao negar a Raymond

Chandler a classificação de suas obras como romances policiais. Vemos que

Auden acredita na distinção entre a ‘alta literatura’ e a que considera “de

escapismo”466 – e sua afirmação dá a entender que, por ser um autor talentoso,

que produz “livros fortes”, Chandler não ‘mereceria’ ser associado às ‘literaturas

menores’ ou ‘subliteraturas’.

Percorrendo um caminho a contrapelo do que julgou o respeitado e

respeitável poeta inglês serem “livros fortes”, constatamos que inúmeros

romances contemporâneos costumam trazer elementos do romance policial

entremeados em sua estrutura. Lembrando, ainda, que a origem do romance

policial moderno está relacionada à transformação dinâmica da identidade, e à

obliteração dos traços do indivíduo na multidão da cidade grande, características

do ambiente moderno467, partimos da hipótese de que é comum que, hoje em dia,

o enredo do romance policial apresente o crime como um pretexto para uma

discussão e análise da sociedade.

466 Ibid., p.19. 467 BENJAMIN [1994a], op.cit., p.219.

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Inúmeros autores contemporâneos da periferia, já citados em detalhe na

introdução desta tese,468 como Rolando Hinojosa, Rudolfo Anaya, Rubem

Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza e Roberto Bolaño, entre outros, produziram

obras de ficção policial, levando-nos a problematizar uma classificação rígida da

estrutura ou ‘fórmula’ do gênero policial. Assim, argumentamos que a

investigação do crime apresentado no enredo dos romances policiais produzidos

nas margens, considerados nesta tese, não constitui o foco primordial da atenção

do detetive, sugerindo que o verdadeiro crime sendo ‘investigado’ seria: 1) o

apagamento e/ou a exclusão das comunidades subalternizadas pelos centros de

poder e neles representadas; e/ou 2) o embate que acontece entre os diferentes

segmentos dessas próprias sociedades.

Ao longo dessa pesquisa, percebeu-se que talvez um dos fatos que mais

contribuam para um enredo policial ‘fraco em investigação’ nos romances

policiais produzidos na periferia do poder seja a forte dose de descrença no

sistema penal e judiciário em geral, mostrada através de uma desconfiança a

respeito das leis e da polícia. Cabe ressaltar, assim, uma diferença fundamental

entre os conceitos de lei e justiça – segundo essa distinção, a lei se refere ao

conjunto de regras e costumes determinados por uma sociedade, com o objetivo

de manter a ordem vigente, ao passo que a justiça constitui um conceito mais

amplo, definido por Platão como a virtude da eqüidade, responsável por ordenar

468 Ver p.9-10.

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e dirigir toda a convivência humana.469 Busca-se apontar, nos romances aqui

estudados, que não há necessariamente uma coincidência entre os dois conceitos

– nem sempre a aplicação da lei garantirá que a justiça terá sido feita a todos os

segmentos da sociedade.

Vimos, no decorrer do trabalho, que na contemporaneidade as noções de

raça e etnia tornaram-se bastante fluidas – os critérios usados para se definir

quem são os brancos, por exemplo, são mais de ordem política do que biológica.

Desse modo, ser branco significa ser membro da sociedade hegemônica, política,

econômica e culturalmente dominante; as outras etnias, sob o ponto de vista

hegemônico, são vistas como um grande grupo identificado como o ‘Outro’, sem

características particulares ou identidades próprias que os distingam entre si – são

portanto, homogeneizados pelo olhar hegemônico. Os textos produzidos na

periferia do poder, no entanto, buscam retirar o branco de sua posição central,

expondo essas questões de modo a provocar questionamentos – não apenas nos

membros da própria comunidade representada nesses textos, mas muitas vezes

também na sociedade hegemônica.

A esse respeito, considera-se de grande importância o trabalho de Barbara

Neely e Lucha Corpi no sentido de repensar e questionar os valores da sociedade

hegemônica dos Estados Unidos. Ambas as autoras produzem romances que,

com grande probabilidade, representam um choque ideológico aos gostos,

469 Cf. PLATÃO. A república.

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valores e crenças do leitor médio daquele país, identificado com a cultura

hegemônica branca. Cabe ressaltar que as duas autoras utilizam, em suas obras,

recursos que têm por objetivo promover o descentramento do branco.

Na série Blanche White Mysteries, percebe-se que os comentários sobre

questões raciais inseridos no enredo fazem mais sentido se interpretados, como

sugere Maureen Reddy, como meios para instruir o leitor branco acerca do

assunto.470 A personagem Blanche White, por exemplo, é a porta-voz da

necessidade de se abrir um questionamento a respeito do significado de ser

branco ou negro nos EUA da contemporaneidade – ao analisar as características

que a definem como negra, sugere que o branco, quando imita o negro em sua

música, dança ou vestuário, sempre também com uma diferença, não o faz como

uma forma de Significar; pelo contrário, essa ‘imitação’ sugere que o branco é

incapaz de compreender a real situação do negro naquela sociedade.

A obra de Lucha Corpi não apresenta ‘passagens de instrução’ tão claras

ou numerosas quanto a obra de Barbara Neely. Mesmo trilhando um caminho

diferente, no entanto, a autora chega a um destino semelhante. Corpi opta por

fazer interrupções na trama, nas quais conta a história de diversos personagens e

episódios da vida real que marcaram a história chicana. Assim, atinge o objetivo

de instruir a comunidade chicana, por um lado, mas também o de descentrar o

branco.

470 REDDY, Maureen T. Traces, codes, and clues: reading race in crime fiction. p.66.

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Ao descentrar o branco, ou seja, ao retirá-lo da posição de poder que

ocupa, essas autoras provocam a perda do sentido de autoridade e hegemonia –

provoca-se uma indefinição do branco nesse novo contexto. Ao ser deslocado de

sua posição central, de poder, o branco passa a ser excluído e marginalizado, ou

seja, torna-se o Outro nesses textos. Vale lembrar aqui que as contribuições de

Minrose Gwin e Doris Sommer – Gwin aponta que o branco, ao ler textos

produzidos por minorias, deve entregar-se a um processo de reflexão no qual

procure deixar suas próprias premissas culturais de lado a fim de ler-se como o

Outro representado nesses textos471; Sommer, por sua vez, ressalta que os textos

produzidos pelas minorias, através de recursos como permitir apenas uma

compreensão seletiva e anunciar o acesso limitado, resistem à compreensão e

provocam uma ‘incompetência’ por parte do leitor do centro hegemônico.

Em seu artigo “Bridges and boundaries: race, ethnicity and the

contemporary American crime novel”, Andrew Pepper faz um comentário a

respeito de uma colocação de bell hooks que ajuda a lançar mais luz sobre a

questão:

bell hooks sugere que há uma tendência dentro da comunidade negra nos

Estados Unidos a essencializar a experiência negra ou, pelo menos, a não

criticar a essencialização, já que se teme que isso faria com que muitos

perdessem a visão da história e da experiência especiais dos afro-americanos.

471 GWIN, Minrose. “A Theory of Black Women’s Texts and White Women’s Readings, or... The Necessity of Being Other.”

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Apesar disso, ela enfatiza que os negros na América [sic]472 têm muitas

identidades diferentes e, quando essa diversidade é ignorada, é fácil ver os

negros caírem em duas categorias... identificados com os negros e identificados

com os brancos. [...]473

Andrew Pepper afirma, assim, que a identidade negra nos Estados Unidos

tampouco é universal, mas sim foi universalizada de modo a aumentar as chances

dessa comunidade de alcançar algum poder. Nos dias de hoje, esse

“essencialismo estratégico”474 já não dá conta, e as novas táticas seriam mais

relacionadas ao trickster – por exemplo, a ‘intraduzibilidade’ e a invisibilidade

estratégicas, como as que foram vistas nos ensaios apresentados.

Um recurso compartilhado por Barbara Neely e Lucha Corpi nos

romances considerados nesta pesquisa foi o uso da práxis cotidiana como uma

tática cujo objetivo é levar essas comunidades marginalizadas a uma

(re)apropriação de seus espaços na sociedade – tanto em termos políticos quanto

sócio-econômicos e culturais. A rotina diária assume um papel fundamental

como forma de resistência das culturas abordadas frente ao poder dominante;

conclui-se que a práxis cotidiana torna-se um meio de agregar novos significados

à ‘invisibilidade’ dos que estão situados à margem da sociedade hegemônica.

Nos romances estudados, ser ‘invisível’ é uma ferramenta de trabalho

fundamental para as detetives, que permite o desenvolvimento bem-sucedido da

472 Questiono aqui a apropriação do termo “América” para referir-se exclusivamente aos Estados Unidos quando as Américas do Norte, Central e do Sul reunidas compreendem mais de 40 países. 473 PEPPER, Andrew. Bridges and boundaries. p.252. 474 Cf. SPIVAK, Gayatri C. Entrevista com Angela McRobbie.

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investigação. As atividades e tarefas do dia-a-dia constituem o próprio espaço

dessa investigação, um espaço no qual passam despercebidas e, portanto, podem

coletar pistas e indícios para resolver os mistérios. Assim, a posição marginal que

essas detetives ocupam – a ‘invisibilidade’ – reverte em um maior acesso ao

poder, por meio do qual elas questionam as leis e regras da sociedade às quais se

submetem apenas na aparência.

Outro ponto considerado nessa pesquisa foi o contraste entre as duas

Áfricas tão diferentes representadas na obra de Pepetela e de Alexander McCall

Smith. Jaime Bunda e Mma. Ramotswe habitam mundos bastante distintos, o que

reafirma a idéia de que é um equívoco considerar a África como um continente

homogêneo. A África apresentada pela literatura do período colonial como o

‘continente escuro’ cede lugar às Áfricas vistas sob um novo prisma por esses

autores da fase pós-colonial, trazendo aos leitores fatos históricos, características

culturais e outras informações até então desconhecidas de grande parte do

público leitor, que provavelmente não teria conhecimento prévio dessas culturas.

Embora o recorte desta pesquisa não inclua a investigação das possíveis razões

históricas que levaram os países considerados a trilhar caminhos tão diferentes, a

leitura dos romances sugere que o próprio processo histórico de dominação

colonial e posterior independência da metrópole guarda as razões para que um

deles, Botsuana, tenha seguido um caminho estável rumo à prosperidade,

enquanto o outro, Angola, ainda enfrenta as conseqüências deixadas por várias

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décadas de guerras desde o início dos movimentos pela independência, como a

corrução generalizada e disputas pelo poder.

A postura de Pepetela em relação ao romance policial contemporâneo é

considerar que o crime mostrado no enredo constitui apenas um pretexto para a

análise da sociedade.475 Concordamos com essa posição, enfatizando que os

detetives que protagonizam os romances têm como seu principal foco de

investigação a sociedade em que vivem e as relações de poder que a norteiam.

Nos romances considerados neste estudo, nota-se que, embora a trama principal

seja a investigação de crimes e/ou delitos, a história das nações narradas nas

obras tem importância fundamental, e aponta para a necessidade de se buscar a

(re)construção desses países e de formar uma identidade nacional, de modo a que

esses possam marcar sua presença no cenário mundial.

Duas Áfricas contrastantes transparecem em nossa leitura – a Botsuana de

Mma. Ramotswe, uma África que vem se mantendo firme no caminho da

estabilidade política, social e econômica; a outra, a Angola de Jaime Bunda, uma

África que ainda encontra inúmeras barreiras a superar nesses quesitos, e

continua enfrentando dificuldades para se reafirmar. Os protagonistas dos

romances oferecem leituras adequadas de seus países – nas definições de seus

criadores, são “uma boa mulher em um bom país” (LDA, p.4) e “um James Bond

subdesenvolvido” (JB, p.148).

475 PEPETELA, op.cit.

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Leela Gandhi, em seu ensaio “Postcolonial literatures”, faz uma colocação

em particular, a respeito da qual pensamos que seja pertinente tecer uma

conjectura. Gandhi destacou o paradoxo que governa o cânone pós-colonial:

[A] cultura metropolitana fez um investimento romântico em uma narrativa

literária que é marcadamente anti-romântica em sua percepção do mundo pós-

colonial. Aqui só podemos encontrar a língua da crítica; um hibridismo que está

calcado precisamente sobre a violação da nação pós-colonial.476

Gandhi argumenta que existe uma literatura ‘que se espera’ do sujeito pós-

colonial – o “investimento romântico” da citação acima – como se a periferia

não tivesse o direito de escrever romances policiais, porque estaria fadada a

produzir “alegorias nacionais”.477 Ao interrogar o cânone pós-colonial, a autora se

pergunta, na última linha do seu texto, deixando a questão em aberto e o leitor

entregue à reflexão, se não seria chegada a hora de se fazer uma contra-narrativa

da contra-narrativa pós-colonial.478 Ora, escrever romance policial já seria, em si,

então, uma forma de desconstruir esta forma de orientalização.479

Ao sugerir, ainda, que a narrativa pós-colonial já estaria, de certa forma,

sendo apropriada pelo discurso metropolitano, hegemônico, Gandhi nos incita a

considerar quais seriam essas possíveis contra-narrativas da contra-narrativa pós-

476 GANDHI, Leela. Postcolonial literatures. p.166. Grifos meus. 477 Até Jameson cometeu este deslize, na década de 80, ao afirmar que todos os textos produzidos no Terceiro Mundo são alegorias nacionais (cf. JAMESON, Fredric. “Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism”), que gerou o famoso debate com o crítico pós-colonial Aijaz Ahmad (cf. AHMAD, Aijaz. “Jameson's Rhetoric of Otherness and the ‘National Allegory’”.) 478 GANDHI, op.cit., p.166. 479 Dialogo aqui, evidentemente, com Edward Said. Cf. SAID, Edward. Orientalismo.

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colonial. No âmbito desta pesquisa, travou-se um diálogo sutil entre a produção

de Alexander McCall Smith e a literatura pós-colonial – o autor não recebe o

rótulo de ‘pós-colonial’, porém sua protagonista representa o sujeito pós-

colonial; por outro lado, o autor tampouco representa o olhar colonizante. Ao se

considerar McCall Smith como um representante do lugar de trânsito entre a

colônia e a metrópole, sugere-se que um espaço possível para que essa contra-

narrativa da contra-narrativa pós-colonial venha a ocorrer seria o entre-lugar, a

zona de contato – nesse sentido, a obra de McCall Smith estaria no eixo de

articulação do cânone metropolitano com o cânone pós-colonial.

Voltamos a reiterar que existem inúmeras outras possibilidades de

narrativas da África além das que estão representadas nos romances abordados

aqui. Ao se desconfiar da ficção homogeneizante advogada pelo domínio

metropolitano sobre a África, abre-se o caminho para que as nações africanas

narrem as suas Áfricas, individuais e heterogêneas.

Ao finalizar este trabalho, é válido enfatizar que, mais do que oferecer

respostas, o objetivo que se buscou durante a pesquisa foi o de provocar a

reflexão. Seriam as obras selecionadas para estudo meras versões exóticas da

velha fórmula do romance policial, ou apresentariam elementos contra-

discursivos? Em caso negativo, que violações ou rasuras provocariam no cânone

do romance policial? O trabalho resultante se reconhece incompleto, no sentido

de que é impossível esgotar um assunto tão vasto. Contudo, ficam reafirmadas as

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hipóteses iniciais de que – muito embora não se possa afirmar que eles fujam das

convenções básicas, e mesmo necessárias ao romance policial – esses romances

policiais produzidos fora do centro hegemônico convocam textualidades Outras,

imbricadas à narrativa policialesca. Ao mesmo tempo em que procedem à análise

das sociedades em que se inserem, inscrevem a tradição do romance policial

hegemônico, por meio de estratégias como a releitura, a contra-escritura, e, por

vezes, a paródia.

Por fim, os romances policiais trabalhados nesta pesquisa, assim como

vários outros, convidam a uma revisão da frase de W.H.Auden que se utilizou

como epígrafe na introdução desta tese. Disse o poeta: “ao menos no meu caso,

as histórias policiais não têm nada a ver com obras de arte.” A frase de Auden

vem imbuída de preconceitos e julgamentos de valor, um reflexo da ideologia de

sua época. Nos dias de hoje, após o advento dos estudos culturais, tornou-se

inconcebível ao crítico / pesquisador tomar as palavras do poeta como algo mais

do que uma opinião que reflete o seu momento histórico. Afinal, como aponta

Anthony Easthope, todos os discursos de uma sociedade devem ser objeto de

interesse dos estudos literários – pois o cânone é uma construção, na qual a

ideologia aparece disfarçada de estética.480 Isso não implica, evidentemente, dar

as costas para toda e qualquer hierarquia cultural, e passar a defender a literatura

ingênua, com fins meramente mercadológicos, como a única ‘cultura’ válida nos

dias de hoje.

480 EASTHOPE, op.cit., p.6-13.

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Mas, por ora, deixemos o fantasma de Auden em paz. Joguemos de lado

“The Guilty Vicarage”. Deixemos Chandler retirar o corpo do jardim do vigário e

devolver o assassinato àqueles que (também) são bons nisso. Podemos, até, quem

sabe, ler (sem culpa) um romance de Chandler.

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