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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO A ESTÉTICA NO PENSAMENTO DE THEODOR ADORNO COMO EXPERIÊNCIA FORMATIVA RODRIGO FERREIRA TELLES PIRACICABA - SP 2012

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

A ESTÉTICA NO PENSAMENTO DE THEODOR ADORNO COMO

EXPERIÊNCIA FORMATIVA

RODRIGO FERREIRA TELLES

PIRACICABA - SP 2012

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A ESTÉTICA NO PENSAMENTO DE THEODOR ADORNO COMO

EXPERIÊNCIA FORMATIVA

RODRIGO FERREIRA TELLES

Orientadora: Profª. Drª. Luzia Batista de Oliveira Silva

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

do Programa de Pós-Graduação em Educação da

UNIMEP como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

PIRACICABA - SP 2012

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BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Luzia Batista de Oliveira Silva (Orientadora) - UNIMEP

Prof. Dr. Bruno Pucci – UNIMEP

Prof. Dr. Luís Hermenegildo Fabiano - UEM

Prof. Dr. José Lima Junior – UNIMEP

Prof. Dr. Mauro Maia Laruccia – UBC (suplente)

Prof. Dr. César Romero Amaral Vieira – UNIMEP (suplente)

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AGRADECIMENTOS

À minha querida orientadora, Profª. Drª. Luzia Batista de Oliveira Silva, que me

auxiliou e animou no processo de feitura do trabalho.

Ao Prof. Dr. Bruno Pucci, que me incentivou e encorajou a ingressar no

Mestrado em Educação da UNIMEP.

À minha família que sempre me motivou no caminho do estudo.

Aos meus professores da Graduação em Filosofia que me despertaram o

interesse pela pesquisa.

À CAPES pelo subsídio através da bolsa de estudo, pois o presente trabalho foi

realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

– CAPES – Brasil.

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RESUMO Objetivou-se apresentar, de modo reflexivo, as contribuições do filósofo Theodor W.

Adorno sobre a estética como experiência formativa. Analisou-se a transformação das

características emancipadoras da razão em racionalidade instrumental, a qual ofuscou as

potencialidades do pensar. Constatou-se, no processo de mercantilização cultural,

designado por indústria cultural, uma extensão perversa do processo de racionalização.

Por fim, objetivou-se compreender as contribuições da experiência estética para a

formação como possibilidade de ampliação da capacidade humana/racional para

interpretar elementos da realidade. O filósofo analisou, de forma crítica, o processo de

racionalização da cultura Ocidental que, por sua vez, conduziu a razão a se tornar um

instrumento de domínio sobre a natureza, ofuscando as capacidades críticas do pensar.

A cultura sofreu os impactos da racionalidade pela industrialização e mercantilização de

produtos simbólicos, que foi designado pelo frankfurtiano como indústria cultural. Esta

passa a cooptar a capacidade criativa e reflexiva das pessoas, fornecendo uma imagem

estereotipada do real. No pensamento de Adorno, a experiência estética se apresenta

como contraponto à lógica da razão instrumental e da indústria cultural porque favorece

a formação dos sentidos, aguça o pensamento crítico, beneficia a admiração, o

estranhamento, ajuda a pensar a realidade de inúmeras formas. Com isso, contribui para

a formação humana. Para o autor, a estética também deve estar presente na forma de

transmissão das ideias; apresenta que o ensaio é um salutar caminho para remediar o

processo de sistematização racional que tudo enquadra. Além disso, sua dialética

negativa concorre para valorizar as dimensões que escapam ao conceito abstrato.

Adorno propõe uma formação para além da racionalidade instrumental, aquela que

priorize a emancipação e autonomia, salvaguarda que educar a sensibilidade representa

reeducar a racionalidade; também a estética, ao dinamizar os sentidos, fomenta um

permanente estado de reflexão.

Palavras-chave: racionalidade, estética, educação

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Abstract This paper presents in a reflexive way the contributions of philosopher Theodor W.

Adorno on aesthetic and formative experience. It was analyzed the characteristics

acquired by the emancipating transformation on of motive (reason) in instrumental

rationality , as a result did not allowed the potential of thinking to come up. As a result

we came to a conclusion about this process which was consisted by the influence made

through the mass media harm the process of rationalization. Finally, the objective about

this study was to understand how the contributions of aesthetic experience could play an

important part in the formation of human being capacity to understand the elements of

reality. The philosopher also analyzed in a critical way, this process of rationalization of

Western culture and in its the turn led him to conducted the motive (reason) to become

an instrument to be used to control on the nature of a human being and in a certain way

unable the person to think. This culture suffered the shock of rationality by the process

of industrial culture and the influence made trough the mass media of symbolic products

which were designated by Adorno as cultural industry. In this process the person end

up thinking and co-opt in a different way, changing the capacity or reflectiveness of the

people, providing them a stereotypical image about the real. According to Adorno

thought, aesthetic experience is presented as a counterpoint to the logic of instrumental

reason and culture industry because it helps in building up the perception of senses,

sharp the critical though which led a human being thinking in a different ways.

Furthermore, this concept contributes to the formation of character of human being. For

the author, aesthetic also must be present in a way of transmitting ideas, as well as the

essay is a beneficial form of overcome the process of rationalization. Moreover, his

negative dialectic adds to get through the aspects which people cannot express by

words. Adorno suggests a training beyond instrumental rationality, that formation

which puts in order of importance the emancipation and autonomy, ensure that if we

educate the sensitive senses represent we are reeducating our rationality; also the

aesthetic in order to stimulate the senses encourage the process of reflection.

Keywords: rationality, aesthetics, education

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 8

CAPÍTULO 1 - CRÍTICA DE ADORNO À RACIONALIDADE INSTRUMENTAL ........... 11

1.1. Filosofia e estética na vida e obra de Adorno .................................................... 11

1.2. Adorno e a racionalidade instrumental na Dialética do Esclarecimento .......... 16

1.3. A Indústria Cultural como extensão da racionalidade instrumental ................. 28

CAPÍTULO 2 - A ESTÉTICA COMO CONTRAPONTO À RACIONALIDADE................ 39

2.1. As contribuições estéticas do ensaio .................................................................. 39

2.2. A Dialética Negativa como acolhimento do não-conceitual .............................. 51

2.3. Arte e filosofia - a estética como contraponto à racionalidade ......................... 61

2.4. Adorno e Beckett: Reflexões sobre “Fim de Partida” ........................................ 70

CAPÍTULO 3 – CONTRIBUIÇÕES DE ADORNO À FORMAÇÃO .................................. 80

3.1. Para uma educação além da racionalidade instrumental ................................. 80

3.2. As exigências atuais de uma educação estética ............................................... 91

3.3. A estética como experiência formativa ............................................................. 101

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 110

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 120

Obras de Theodor W. Adorno ....................................................................................... 120

Obras de outros autores ................................................................................................ 121

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INTRODUÇÃO

Essa dissertação de mestrado, intitulada “A estética no pensamento de Theodor

Adorno como experiência formativa”, tem como proposta pesquisar as contribuições do

filósofo Theodor Adorno à educação, especificamente seus apontamentos filosóficos

pertencentes ao campo da estética. As ideias desse autor sobre a formação são ricas e

pertinentes, acentuam a necessidade do pensar que supera as facilidades de um

raciocínio condicionado e que está preso à superfície dos fatos. O filósofo tem como

prioridade a análise do objeto que deve ser feita a partir de uma dimensão mais

profunda, isto é, considerando-se as relações sociais, materiais e históricas. Estimula o

pensamento que reflete sobre si mesmo para alcançar além da realidade aparente.

O objetivo principal foi estudar as relações entre filosofia, estética e formação na

obra de Adorno; além disso, analisar os conceitos de “razão instrumental” e “indústria

cultural”, perspectivar a proposta de uma razão emancipada, bem como a compreensão

das críticas ao processo de racionalização da cultura que reificou o pensar;

demonstrando, com isso, sua contribuição à formação, especialmente as provenientes do

campo da estética, como uma proposta de educação da sensibilidade, de um pensar que

esteja além de uma perspectiva instrumentalizada.

O trabalho é resultado de investigações a partir da pesquisa bibliográfica de

textos do autor, particularmente os ensaios O conceito de Esclarecimento e A Indústria

Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas, do livro Dialética do

Esclarecimento. Também textos como A atualidade da filosofia; o Ensaio como forma;

alguns aforismos do livro Dialética Negativa; Teoria Estética; Tentativas de entender

Fim de Partida; de outros ensaios do autor direcionados à formação, como Educação

após Auschwitz; A educação contra a barbárie; Educação – para que? Teoria da

semiformação; e o estudo de comentadores renomados no pensamento do autor.

A pesquisa se divide em três capítulos. O primeiro visa abordar a crítica de

Adorno à racionalidade que se tornou instrumentalizada. O segundo demonstra suas

contribuições estéticas e como as mesmas podem favorecer a reeducação da

racionalidade. O terceiro apresenta as contribuições específicas ao campo da formação

humana.

De modo geral, no primeiro capítulo, são analisados alguns aspectos da trajetória

intelectual de Adorno para perceber a importância da reflexão estética no conjunto de

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sua obra. Em seguida, demonstra-se a noção de racionalidade instrumental presente na

Dialética do Esclarecimento, especificamente no ensaio O conceito de Esclarecimento.

O objetivo é mostrar que o processo de racionalização desencantou o mundo,

instrumentalizou o pensar, e, com isso, ofuscou as capacidades criativas e

emancipadoras, dificultando o exercício da autonomia. Depois, apresenta-se a análise de

Adorno sobre a Indústria Cultural, a partir do ensaio A Indústria Cultural: O

esclarecimento como mistificação das massas, com o propósito de perceber como a

Indústria Cultural se tornou uma extensão da racionalidade instrumental, elaborando,

racionalmente, produtos simbólicos que direcionam e limitam a experiência, realizando

um assenhoreamento da interioridade humana.

No segundo capítulo, analisam-se elementos estéticos do pensamento de

Adorno. Apresentam-se as contribuições do ensaio para a construção do conhecimento,

a partir do texto “A atualidade da filosofia” e do texto “O ensaio como forma”,

publicado no livro Notas de Literatura I. Demonstram-se, assim, as contribuições do

ensaio como forma de reeducar o demasiado racionalismo com o qual os conceitos são

tratados, pois o mesmo possibilita o exercício de elaborar o pensamento extraindo os

diferentes sentidos conceituais, não se prendendo ingenuamente aos significados. O

ensaio, sendo assistemático, pode captar os detalhes do objeto e detectar os pontos

cegos que passam despercebidos.

Em seguida, analisam-se alguns aforismos do livro Dialética Negativa com o

intuito de perceber as críticas de Adorno à racionalidade que se impõe a partir de uma

visão de totalidade, esquecendo-se das dimensões não-conceituais. Apresentam-se as

críticas ao processo de racionalização que fechou o pensamento em sistemas, rejeitando

o dinamismo e a complexidade do real. A dialética negativa enfrenta a insuficiência do

conceito, resgata esteticamente o momento expressivo do pensar, possibilita dar voz ao

não-conceitual, ousa alcançar as dimensões desprezadas, rejeitadas e não abarcadas pela

razão, e através de um procedimento constelatório, analisa de diferentes perspectivas o

objeto.

Apresenta-se a importância da arte para a construção do conhecimento, isto é,

como ela pode-se tornar um contraponto à racionalidade instrumental. A arte, ao

possibilitar a experiência estética, reeduca o demasiado racionalismo, gerando equilíbrio

entre os elementos sensoriais e racionais, não impondo uma verdade absoluta, mas

ampliando os horizontes sobre a realidade. Expressa elementos que o discurso racional

não consegue captar. A arte, para Adorno, se torna experiência filosófica, pois favorece

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o exercício da admiração, permite a abertura para o estranho, o diferente, salvaguarda a

alteridade, recupera a capacidade humana de lidar com as contradições para subverter o

imperialismo dominador da razão. Por fim, analisa-se a peça de teatro Fim de Partida,

de Samuel Beckett, para perceber a crítica ao processo de racionalização e demonstrar

que tal obra, ao refletir sobre o sentido da existência, torna-se formativa.

No terceiro capítulo, apresentam-se as contribuições de Adorno à formação

humana. O principal objetivo é discutir a importância de uma educação para além da

racionalidade instrumental, que priorize a autorreflexão; a busca pela emancipação; que

salvaguarde a tensão entre autonomia e adaptação; que valorize a experiência como

forma de ampliação sobre a compreensão do mundo. Procura-se, nesse capítulo,

apresentar a importância de uma educação estética para a atualidade, pois esta é

perpassada pela presença das novas tecnologias; além disso, analisar a forte presença da

propaganda que se estabeleceu como ação comunicativa. Por fim, apresentar a relação

entre educação e estética, demonstrando que educar a sensibilidade é também reeducar a

racionalidade. A experiência estética pode dinamizar os sentidos para aguçar a

percepção sobre a realidade, propiciando um permanente estado de reflexão, tornando-

se, assim, forma de conhecimento.

Portanto, a filosofia de Adorno possui inúmeros elementos que podem contribuir

para a educação, principalmente seu pensamento estético, que pode favorecer a

educação para além de uma ótica puramente instrumental. A visão de Adorno amplia a

perspectiva sobre a formação humana, pois esta vincula-se a todos os âmbitos sociais,

como cultura, política, ciência, economia, arte, não se restringindo apenas aos ambientes

escolares. Desse modo, tal perspectiva formativa pode ajudar a construção de uma razão

emancipada e consciente, capaz de elaborar sentidos verdadeiros para a existência.

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CAPÍTULO 1 - CRÍTICA DE ADORNO À RACIONALIDADE

INSTRUMENTAL

1.1. Filosofia e estética na vida e obra de Adorno

A relação entre filosofia e estética tem privilégio no pensamento de Adorno. As

análises estéticas estiveram sempre presentes em suas reflexões, justamente porque,

além de ser filósofo, o autor era músico. Nesse ponto da pesquisa, procura-se apresentar

a trajetória intelectual de Adorno com o intuito de mapear a importância da relação

entre o pensamento filosófico e estético no conjunto de sua obra.

Adorno cresceu em um ambiente marcado por valores artísticos e teóricos, isso

foi decisivo para despertar seu interesse pela música. Recebeu influências de sua mãe,

que era cantora, e de sua tia, que era pianista. Iniciou, aos 16 anos, os estudos na área

musical, no conservatório, em Frankfurt. Em 1921, graduou-se no colégio Kaiser

Wilhelm, em Frankfurt, e ingressou na recém-fundada Universidade de Johann

Wolfgang Goethe. Aos 19 anos de idade, em 1922, conhece Horkheimer, e no ano

seguinte, Benjamin1. Em 1924, Adorno defende sua tese de doutorado em filosofia,

intitulada A transcendência do objeto e do noemático na fenomenologia de Husserl,

tendo recebido orientação de Hans Cornelius.

No ano de 1925, Adorno foi estudar composição em Viena, ingressando no

círculo vanguardista do músico Arnold Schönberg. Estudou composição e piano com

Eduard Steuermann e Alban Berg. Além disso, mantinha contato com outros músicos,

dentre os quais, Rudolf Kolisch e Anton Webern. Esse período foi decisivo, pois

marcou, não apenas sua trajetória musical, mas também intelectual, contribuiu para o

processo de elaboração da sua filosofia atonal, adquirindo rigor e expressão na

composição de seus textos (cf. JAY,1988, p.28). Sua relação com a música e a filosofia

é descrita, de forma interessante, em uma correspondência enviada para o escritor

Thomas Mann. Diz Adorno: “Estudei filosofia e música. Em vez de me decidir por

uma, sempre tive a impressão de que perseguia a mesma coisa em ambas” (2002, p.9).

Adorno retornou a Frankfurt, em 1927, porém suas relações com Viena não

foram cortadas devido ao cargo de editor da revista Anbuch,

1 No ano de 1923 é fundado o Instituto de Pesquisa Social, estando vinculado à Universidade de

Frankfurt, porém com prédio próprio e autonomia financeira, tendo como primeiro diretor Carl Grünberg.

Horkheimer assumirá a direção do Instituto em 1930.

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que lhe pertenceu entre os anos de 1928 a 1932. Vale destacar que no período de 1922 a

1933, o filósofo escreveu vários artigos sobre crítica musical, nos quais procurou

fomentar os debates em torno da música. No ano de 1928, desejoso de conseguir a

Habilitation à docência na Universidade de Frankfurt, apresentou a tese intitulada O

conceito de inconsciente na teoria transcendental da mente. Sua tese não foi aceita por

H. Cornelius, bem como por seu assessor M. Horkheimer. Em 1931, sob a orientação do

teólogo Paul Tillich, tenta novamente a Habilitation, com a tese “Kierkegaard a

construção do estético”2, mostrando que a consciência estética pode fornecer um

conhecimento mais profundo sobre as contradições do real, deixando transparecer seus

interesses pelas questões estéticas. Nesse mesmo ano, assume como professor assistente

de filosofia e profere um discurso inaugural chamado A atualidade da filosofia, em que

expõe seu programa filosófico.

Em 1932, escreveu um artigo para o primeiro número da revista do Instituto de

Pesquisa Social, que estava sob a direção de Horkheimer, com o título A situação Social

da Música. Outros artigos importantes que permeavam a temática musical ou estética se

tornariam recorrentes; dentre os quais, destacam-se os estudos Sobre o jazz, (1936),

Caráter fetichista da música e a regressão da audição (1938), Fragmentos sobre

Wagner (1939), Spengler hoje (1941), A investida de Veblen à cultura (1941).

Com a perseguição nazista, Adorno deixou o ensino de filosofia em 1933. Como

a situação se agravou na Alemanha, seguiu para a Inglaterra, em 1934. Horkheimer foi

um dos primeiros intelectuais a deixar a Alemanha; levou o Instituto de Pesquisa

Social para Genebra, logo depois, para Nova York, mantendo-o vinculado à

Universidade de Colúmbia. Adorno, exilado na Inglaterra, exerceu a condição de

“estudante honorário” no Merton College, em Oxford. Aproveitou o tempo para revisar

seus estudos sobre Husserl, produziu alguns manuscritos que, posteriormente, foram

publicados em 1956, como a Metacrítica do conhecimento: estudos sobre Husserl e

antinomias fenomenológicas.

No ano de 1938, vai para os Estados Unidos, e, a convite de Horkheimer, foi

morar em Nova York. Trabalhava metade do tempo no Instituto de Pesquisa Social, e a

outra metade no Music Study, que era integrado ao Radio Research Project, de

Princeton, formado por um grupo de pesquisadores, que, sob a direção de Paul

Lazarsfed, procurava investigar a radiodifusão, bem como as possibilidades de elevar o

2 Publicado em 1933, ano em que Hitler toma posse como Chanceler da Alemanha. Nesse ano, Adorno

perde sua licença de ensinar na Universidade (venia legendi) cassada pelos nazistas.

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nível cultural dos programas e das audiências. Participou desse projeto entre os anos de

1938 a 1941; produziu alguns textos importantes, como Music in radio (1938), em que

discute os impactos da nova tecnologia na qualidade musical; Pluging study (1941), em

que analisa as músicas populares de sucesso; The radio synphony: an experiment in

theory (1941); On popular music (1941), em que reflete sobre as canções da moda e

expõe a estandardização e pseudoindividualização dos ouvintes; Analytical study of the

NBC Music Appreciation Hour, estudos realizados entre os anos de 1938-1940 sobre a

música clássica no rádio; Current of music: elements for a radio theory, livro

incompleto, produzido entre 1938-1941; A social critique of radio music, texto

apresentado para especialistas da comunicação, com a presença de proprietários de

emissoras e representantes da Rockefeller Foundation (Cf. PUCCI, 2003, p. 382).

O Instituto de Pesquisa Social se mudou para a Califórnia, em 1940, para onde

também Adorno foi, em 1941, após terminar seu trabalho no Radio Research Project.

Entre os anos de 1943 a 1947, colaborou com Thomas Mann, outro importante

intelectual exilado nos Estados Unidos, na elaboração do livro Doutor Fausto, obra em

que narra a vida de um músico. Contribuiu, especificamente, nos capítulos que tratavam

de questões da arte e da música. Sua leitura e observações críticas favoreceram Mann a

melhorar e embelezar progressivamente o texto. Sobre as colaborações de Adorno,

Mann expressa:

De fato o senhor deu a mim, cuja formação mal chegou a ir além do

romantismo tardio, o conceito da música mais moderna, do qual carecia para

um livro que tem por objeto, entre outros, e junto com vários outros, a

situação da arte (MANN, 2002, p.7).

Ainda nos Estados Unidos, o filósofo, em 1948, publicou seu livro Filosofia da

nova música; uma importante obra de análise da música dodecafônica. A Dialética do

Esclarecimento, escrita conjuntamente com Horkheimer, concluída em 1944, foi

publicada em 1947; tornou-se uma das obras fundamentais da Teoria Crítica. Entre os

anos de 1944 a 1947, escreveu seu livro ético-estético intitulado Minima Moralia:

reflexões a partir da vida danificada. Escrito em forma de aforismos, transparecem,

claramente, as inspirações nietzschianas. Adorno expressa os dilemas e ambiguidades

do exílio; critica a sociedade administrada; analisa os fatos ligados à existência para

realizar um grito de protesto contra o genocídio. Publica em 1947, juntamente com

Hanns Eisler, a obra Composing for the Films, em que estudam as músicas de filmes.

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Ainda entre os anos de 1946 a 1949, integrou um grupo de psicólogos sociais e

psicólogos clínicos com formação psicanalítica, vinculados à Universidade de Berkeley,

Califórnia; o propósito era estudar a dinâmica do inconsciente em indivíduos que

manifestavam discriminação por grupos étnicos, políticos e religiosos. Dessa pesquisa

sociológica empírica, resultou o livro denominado A personalidade autoritária: estudos

sobre preconceitos, publicado em 1950, em Nova York.

Ao retornar para a Alemanha, em 1950, foi nomeado, juntamente com

Horkheimer, professor catedrático do Departamento de Filosofia da Universidade

Johann Wolfgang Goethe. Ambos dedicam-se à docência e à reorganização do Instituto

de Pesquisa Social. Introduzem as técnicas de pesquisas empíricas aprendidas nos

Estados Unidos, selecionando os aspectos positivos e excluindo as características

metodológicas de cunho positivista.

Nas décadas de 1950 e 1960, Adorno publicou outros importantes escritos,

dentre os quais, se destacam: Prismas (1955); Dissonâncias: música no mundo

administrado (1956); Mahler: a fisionomia musical (1960); A polêmica do positivismo

na sociologia alemã (1961); Introdução à sociologia da música (1962); Intervenções:

novos modelos críticos (1963); O jargão da autenticidade, (1964); Sem modelo: parva

estética (1967); Improptus (1968); Três estudos sobre Hegel (1969); Palavras e sinais:

modelos críticos 2 (1969). Além disso, realizou algumas conferências nas rádios de

Hessem e Frankfurt entre os anos de 1959 a 1969, dentre as quais, se destacam a

conferência A educação após Auschwitz (1965) e a entrevista Educação e emancipação

(1969).

Da produção do frankfurtiano, desse novo período na Alemanha, três obras

revelam sobremaneira as relações entre filosofia e estética: Notas de Literatura,

Dialética Negativa e Teoria Estética. A obra Notas de Literatura, publicada em quatro

volumes, entre os anos de 1958 a 1974, abrange um total de 30 ensaios; neles, é visível

a presença de Benjamin, nas reflexões de Adorno. O próprio termo notas aponta para a

relação da literatura com a música, que procura, de forma semelhante, para um trabalho

de composição, exprimir o inexprimível; isso indica o fragmentário e experimental no

processo de elaboração dos textos. O livro Dialética Negativa, publicado em 1966,

apresenta paradoxos, não apenas no título, mas na forma; contém uma estrutura lógica;

os capítulos, porém, são constituídos por uma série de aforismos. O filósofo deseja

resgatar os impulsos corporais esquecidos pela abstração conceitual; tornar presentes

elementos retóricos, sensuais e expressivos da linguagem. A Dialética Negativa se

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apresenta semelhante a um procedimento musical, composto por inúmeras variações,

ritornelos, contrapontos; no dizer de Pucci, “na Dialética Negativa a filosofia crítica

faz-se música dissonante” (2003, p.385).

O livro Teoria Estética, cuja organização para publicação foi feita pela esposa de

Adorno, Greta, e por Rolf Teidemann3, foi publicado, postumamente, em 1970. A obra

é composta por 175 aforismos, que realizam a defesa do poder crítico da arte modernista

e destacam a relação tensa entre arte e sociedade; ele ressalta o papel da arte contra

qualquer ordem opressiva que se imponha. Tal obra condensa o amadurecimento da

concepção estética do filósofo, que estabelece um fecundo diálogo entre arte e filosofia.

Sobre a Teoria Estética, vale destacar o comentário abaixo:

A Teoria Estética vai nos mostrar que as obras de arte além de nos despertar

os sentimentos do belo, do êxtase, nesses mesmos sentimentos nos revelam o

estremecimento, o espanto, a dor, a negação, a esperança. Impressionam

nossa sensibilidade e pressionam a nossa racionalidade. Para Adorno, pois,

deve existir no pensamento conceitual um momento mimético, como na arte deve existir um momento racional. (PUCCI; ZUIN; RAMOS-DE-

OLIVEIRA, 2008, p.95).

Adorno privilegia sobremaneira a música em suas análises estéticas, mas

também proporciona reflexões sobre outros tipos de expressões artísticas, como a

literatura, o teatro, a pintura. Procura demonstrar, em sua filosofia estética, a relação

entre arte e sociedade a partir de um pensamento crítico. No dizer de Freitas: “Podemos

dizer, com certo exagero, que cada linha dos textos estéticos de Adorno somente tem

seu sentido assegurado na medida em que é lida com base em sua crítica da sociedade

capitalista” (2008, p.10).

É preciso destacar que a arte e a filosofia não são a mesma coisa, mas

convergem em seu conteúdo de verdade, complementam-se em sua práxis sociocultural.

O frankfurtiano expressa, de forma clara, que “a verdade da obra de arte que se

desdobra progressivamente é apenas a do conceito filosófico” (1988, p.151). Propõe

salvaguardar a tensão existente entre filosofia e arte, não quer que a filosofia seja

estetizada, nem mesmo que a arte se transforme em reflexão filosófica. A arte não se

torna uma alternativa ao pensar, nem mesmo expressa o abandono da racionalidade ou a

transformação para uma nova verdade paradigmática, ela é o contraponto crítico de que

a razão necessita. A verdade apresentada pela arte é uma verdade não vista pela tradição

3 Adorno faleceu no dia 6 de agosto de 1969, na cidade de Visp, Suíça. Na ocasião era diretor do Instituto

de Pesquisa Social.

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controladora do conceito de verdade, pois a arte situa-se no lugar do estranho,

possibilita a experiência do abismamento. A arte como linguagem silenciosa, não

conceitual, pode favorecer à razão dizer aquilo que ela não consegue exprimir através

do conceito; ao mesmo tempo, a razão pode auxiliar na interpretação da arte.

Desse modo, constata-se a importância da estética no pensamento de Adorno,

pois a reciprocidade entre arte e filosofia tem por finalidade estabelecer um

relacionamento crítico entre ambas; favorecer a construção de pensamentos fecundos

que dinamizem a razão e a sensibilidade. A partir disso, para melhor compreender as

contribuições estéticas que os textos de Adorno proporcionam, primeiramente, será

apresentada, mais acuradamente, sua análise crítica ao processo de racionalização que

instrumentalizou o pensar, para, em seguida, constatar as contribuições estéticas para a

construção do pensamento e a formação humana.

1.2. Adorno e a racionalidade instrumental na Dialética do

Esclarecimento

Um dos aspectos importantes do pensamento de Adorno encontra-se em suas

análises sobre o papel da racionalidade humana. No livro Dialética do Esclarecimento,

publicado em 1947, juntamente com Horkheimer, busca compreender o demasiado

acento dado à racionalidade científica que alterou o papel fundamental da razão,

transformando-a em razão instrumental. Além disso, tal obra filosófica demonstra o

conflito entre razão e mito, apontando que o mesmo sempre ocorreu na história e que

não está restrito somente ao período da Modernidade, ao chamado Século das Luzes;

apresenta aspectos antropológicos do modo de ser burguês; analisa a razão que, ao

dominar a natureza, gerou inúmeras barbáries. Neste tópico da pesquisa, procura-se, a

partir da referida obra, especificamente no primeiro ensaio chamado O Conceito de

Esclarecimento, compreender a noção de racionalidade instrumental.

Na metade do século XVIII, surge um movimento do pensamento caracterizado

como Iluminismo. Tal movimento favoreceu a transformação da filosofia, da arte, da

ciência, da política; enfim, fomentou mudanças em diferentes instâncias sociais da

época. O Iluminismo se estendeu a vários países da Europa, como Inglaterra, França,

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Alemanha, Itália. Vários foram os representantes, como Rousseau, Voltaire, Helvétius,

Montesquieu, Diderot, D‟Alembert, Condorcet, Kant e outros.

No contexto do Iluminismo, há uma ênfase na capacidade racional humana, isto

é, compreende-se que todos são dotados de uma luz natural que fornece a capacidade

para agir a partir da consciência racional. Assim, nasce o desejo de liberdade frente a

qualquer espécie de superstição, mitos ou crenças religiosas; tudo deve passar pelo crivo

da razão. Conhecer a realidade se torna imprescindível para que se possa remover

qualquer obstáculo que impeça o desenvolvimento do indivíduo; tudo que impede o

progresso humano deve ser destituído. Nesse sentido, a noção de progresso se torna

importante nesse período, porque se acredita que a humanidade se tornará melhor a

partir do uso crítico e construtivo da razão.

Um dos filósofos importantes do Iluminismo foi Immanuel Kant (1724-1808).

Autor célebre e conhecido, deixou vários escritos, dentre os quais, um pequeno artigo de

1784, no qual responde a pergunta: O que é o Iluminismo? Nesse texto demonstra, de

forma clara, o que significa o exercício autônomo da razão sobre a liberdade do

pensamento; além disso, reflete sobre o projeto central da modernidade que é agir a

partir de fundamentos racionais. Assim, escreve:

Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a

orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não

residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em

se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de

te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do

Iluminismo (KANT, 1784, p.1).

No Iluminismo, a razão se tornou guia infalível, a nova bússola que passou a

conduzir o ser humano no conflitante mar da existência. A proposta filosófica de

Adorno, ao analisar a razão, reconhece seu apogeu no período do Iluminismo, a ênfase

para a análise mais racional da realidade. Contudo, o filósofo defenderá a tese de que há

um movimento dialético da razão na história; que a proposta iluminista desencanta o

mundo, dissolve crenças e mitos a partir do conhecimento, e está presente nos tempos

remotos da história humana, não se restringindo a um período histórico.

A palavra alemã Aufklärung, que pode ser traduzida para o português como

esclarecimento, iluminismo ou ilustração, ganha uma maior expressão histórico-

filosófica ao ser traduzida por esclarecimento, dentro da proposta adorniana, justamente

por não dar a conotação somente do período histórico do Iluminismo. Nesse sentido, o

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livro de Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, propõe refletir sobre a

racionalidade Ocidental que sempre buscou o domínio e o desencantamento do mundo.

Olgária Matos comenta a respeito dessa questão:

Observa-se, portanto, que a noção de Iluminismo é polissêmica entre os

frankfurtianos, referindo-se tanto a um período da história da filosofia e das

ideias, quanto a uma atitude ou tendência epistemológica, ética e política

anterior e posterior ao século XVIII. O conceito é trans-histórico e funda-se

no exame da origem e das formas da dominação (1989, p.19).

É preciso considerar que o conceito de esclarecimento, a partir das perspectivas

de Adorno e Horkheimer, não se restringe a um único sentido interpretativo, pois os

autores captam a tensão presente no próprio conceito, extraem os possíveis sentidos

contrários que nele estão presentes. A proposta primeira do esclarecimento é facilitar a

emancipação da consciência, o uso da razão para favorecer o progresso e

desenvolvimento humano; contudo, os filósofos percebem que essa meta foi revertida

em uma perspectiva contrária, em que a racionalidade passa a ser instrumento de

domínio e controle da realidade. Assim, o esclarecimento alterou-se para uma atitude de

domínio, a razão visa não mais à emancipação, mas investir os humanos na posição de

senhores. Essa é a denúncia apontada por Adorno e Horkheimer, no ensaio O Conceito

de Esclarecimento:

O esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do

medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente

esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa

do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver

os mitos e substituir a imaginação pelo saber (1985, p.17).

A meta do esclarecimento é superar o mito por um saber prático, útil e

calculável, que favoreça o domínio da natureza. A filosofia de Bacon é uma das

primeiras a defender um saber empírico; ele é o arauto da racionalidade científica

moderna, ao insistir no estabelecimento de um método experimental. Bacon conseguiu

captar a mentalidade científica que viria depois dele. Além disso, propõe que saber é

poder, sendo que “a técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens,

nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o

capital” (IBID., p.18).

A filosofia de Bacon será base para o pensamento científico moderno; seu

pensamento possibilitou repensar a antiga concepção científica grega, que possuía um

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caráter contemplativo; seu livro Novum Organum, de 1620, se contrapõe ao Organon

aristotélico. O verdadeiro saber, para Bacon, deve interpretar a natureza para

transformá-la, gerando melhores benefícios à vida humana. Critica os conhecimentos

provenientes da magia e alquimia, pois são ocultos, privados, alcançados por acaso,

corrompem a verdadeira experiência. Prioriza, assim, o saber útil, alcançável,

controlável por todos; com procedimentos metódicos advindos de verdadeiras

experiências; escritos em uma linguagem clara e pública. Para ele, é preciso limpar a

mente dos chamados ídolos, ou seja, das falsas ideias que invadiram o intelecto humano

e que impedem o acesso à verdade.

A proposta de Bacon, que consistia em dominar a natureza para transformá-la, se

concretiza no esclarecimento. Contudo, Adorno e Horkheimer percebem que essa meta

gerou um aspecto repressivo, um desejo de dominar, tanto a natureza como o ser

humano. Instaura-se uma relação de violência nesse processo, pois “só o pensamento

que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos”

(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.18). Assim, o conhecimento reflexivo que gera

algum tipo de descoberta satisfatória não tem mais valor:

O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama

„verdade‟, mas a „operation‟, o procedimento eficaz (...). No trajeto para a

ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o

conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade (IBID., p.18).

No período da modernidade, a ciência ganha maior importância que em outros

períodos. O pensamento científico passa a ser definido por uma estrutura de análise

objetiva acerca do elemento específico estudado; almeja-se encontrar, através de

métodos, leis universais e gerais, a explicação para os fenômenos investigados. A

modernidade visou desvencilhar-se dos paradigmas medievais, especificamente, na

forma de compreender a natureza, pois esta deixa de ser apenas objeto de contemplação

para ser dominada em benefício da humanidade. Essa mentalidade se contrapõe à forma

de conhecimento medieval que é essencialmente contemplativa, ou seja, valoriza-se

sobremaneira o conhecimento teórico em detrimento de experiências práticas;

priorizam-se as discussões racionais desvinculadas da técnica, da indagação empírica e

do saber matemático; mais vale um argumento de uma autoridade da tradição do que

uma demonstração experimental. Nesse contexto, o saber, por excelência, é a teologia, a

razão está absolutamente a serviço da fé.

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A transição do pensamento medieval para o moderno não se dá de forma

simples, mas através de várias rupturas entre mundos e saberes distintos. O processo de

mudanças de paradigmas é lento, às vezes, imperceptível em curto espaço de tempo, não

se constitui de forma linear. Sendo assim, para se compreender a modernidade, é preciso

considerar a nova conjuntura social e histórica que se formou e se desligou da

mentalidade do mundo medieval; pode-se destacar, por exemplo, o humanismo

renascentista, as expedições marítimas que levaram à descoberta de novas terras, a

economia mercantil, a Reforma Protestante, a Contra-reforma, o surgimento da

imprensa; enfim, vários pontos que, analisados conjuntamente, propiciam mudanças de

mentalidade.

Adorno e Horkheimer destacam que a ciência realizou o desencantamento do

mundo, conceito tomado do pensamento de Max Weber, que visa diagnosticar o

processo de racionalização. Apontam os frankfurtianos que “desencantar o mundo é

destruir o animismo” (1985, p.18), quer dizer que, antes do conhecimento científico se

firmar como saber hegemônico, compreendia-se que a realidade era encantada, isto é,

governada e habitada por seres misteriosos, mágicos e miraculosos, incompreensíveis

racionalmente; enfim, uma crença coletiva não fundamentada na racionalidade que regia

a forma de compreender o mundo. Isso foi revertido por uma postura racional que

expurgou toda espécie de mito, para dominar a natureza, gerando o desencantamento.

Assim, apontam Adorno e Horkheimer que “a matéria deve ser dominada sem o recurso

ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas. O que não

se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o

esclarecimento” (IBID., p.19).

Segundo Hilton Japiassú (1996, p.104), “a ciência moderna já nasceu com um

projeto de desencantamento do mundo: tudo o que descreve e explica encontra-se

reduzido a um caso de aplicação das leis gerais do mecanicismo, leis estas desprovidas

de todo e qualquer interesse particular”. O desencantamento do mundo elimina a magia,

o poder religioso sobre as representações do mundo. Não existe mais um apelo ao

sobrenatural; o mundo torna-se dessacralizado e se autolegitima pela razão científica

que se estende na conduta da própria vida. Tudo passa a ser regido por leis que a ciência

pode conhecer e a técnica dominar. Os acontecimentos da natureza tornam-se

previsíveis e calculáveis. Assim, vale destacar o trecho do pensamento de Weber (1995,

p.439), em que ele explica a ideia de desencantamento:

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A crescente intelectualização e racionalização não indicam, portanto, um

conhecimento maior e mais geral das condições sob as quais vivemos.

Significa antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante,

poderíamos, bastando que o quiséssemos, provar que não existe, em

princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível no decurso de nossa vida,

ou, em outras palavras, que podemos dominar tudo por meio de cálculo. Isto

significa que o mundo foi desencantado. Já não precisamos recorrer aos

meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, como fazia o

selvagem que acreditava na existência de poderes misteriosos. Podemos recorrer à técnica e ao cálculo. Isto, acima de tudo, é o que significa a

intelectualização.

A relação de domínio gera a alienação, pois os objetos que estão sob o controle

do ser humano tornam-se estranhos para ele. Assim, a proposta do esclarecimento, que

deveria emancipar, reverteu-se em alienação devido ao ilusório desejo de dominar a

natureza, pois ela jamais será controlada plenamente, visto que suas forças extrapolam o

controle humano:

O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O

preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo

sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas

como o ditador se comporta com os homens (ADORNO; HORKHEIMER,

1985, p.21).

Isso ocorre também no plano das relações humanas que passam a sofrer, como

aponta Duarte (2002, p.28), “as consequências de um procedimento teórico e prático

que não tem outro objetivo que estender e solidificar o predomínio humano sobre a

natureza”. Com isso, a dominação universal da natureza volta-se contra o próprio sujeito

pensante. Nesse sentido, assinalam Adorno e Horkheimer (1985, p.35):

O preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação

aos objetos dominados; com a coisificação do espírito, as próprias relações

dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo

consigo mesmo.

A alienação se reflete na neutralização da consciência, pois o pensamento torna-

se, com isso, reificado, isto é, degrada-se em mero processo técnico. O sujeito iguala-se

às coisas que a ele foram submetidas. Isso se constitui como uma astúcia da desrazão,

que extirpa a multiplicidade do pensamento, juntamente com suas potencialidades que

são indispensáveis para a felicidade humana. O esclarecimento reconhece apenas o que

se deixa captar pela unidade, “seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e cada

coisa” (IBID., p.20). Segundo Adorno e Horkheimer, isso seria fruto da perspectiva

econômica capitalista que tudo engloba:

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O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da

consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de

toda significação em geral, porque a própria razão se tornou um mero

adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba. Ela é usada como

um instrumento universal servindo para a fabricação de todos os demais

instrumentos (1985, p.37).

O procedimento técnico que reificou o pensamento é designado por Adorno e

Horkheimer como razão instrumental, ou seja, a ratio, em seu trajeto do mito à ciência,

se fez instrumento. Há uma estrutura de caráter lógico-formal que se instaura como a

verdade no plano do conhecimento. Tudo o que não passa pelo crivo do cálculo e da

utilidade torna-se suspeito. O ícone desse processo é o número, assim “o número

tornou-se o cânon do esclarecimento” (IBID., p.20). Além disso, “para o

esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser

ilusão” (IBID.). O procedimento lógico espalha-se gerando fascínio e confiança em suas

regras e leis gerais, pois já se sabe, de antemão, as formas de comportamento nas

diferentes situações, tudo se encontra mensurado. Isso ocorreu, segundo Adorno e

Horkheimer, por causa da ênfase dada à matemática:

O procedimento matemático tornou-se, por assim dizer, o ritual do

pensamento. Apesar da sua auto-limitação, ele se instaura como necessário e

objetivo: ele transforma o pensamento em coisa, em instrumento, como ele

próprio denomina (1985, p.33).

O esclarecimento deixa de lado a exigência clássica de pensar o pensamento,

pois passa a confundir o pensamento com o procedimento matemático. Um autor

célebre que valorizou a matemática na forma de compreensão do mundo foi Galileu

(1564-1642). Adorno e Horkheimer citam um trecho de Husserl para exemplificar a

abstração com a qual a natureza passa a ser vista: “Na matematização galileana da

natureza, a natureza ela própria é agora idealizada sob a égide da nova matemática, ou,

para exprimi-lo de uma maneira moderna, ela se torna ela própria uma multiplicidade

matemática” (IBID.). Galileu foi uma figura central que contribuiu para as mudanças de

paradigmas do pensamento antigo e medieval, bem como para o surgimento da ciência

moderna. Comprovou, empiricamente, as teses heliocêntricas de Copérnico através do

uso do telescópio. Sobre a importância de Galileu, aponta Japiassú (1978, p.26):

Foi Galileu quem introduziu um corte epistemológico na história do

pensamento ocidental. Foi ele quem rompeu com todo o sistema de representação do mundo antigo e do mundo medieval. Com ele, o

pensamento rompeu com a Renascença. Ele é o antimágico por excelência.

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De forma alguma se mostra interessado pela variedade das coisas. Aquilo que

o fascina é a ideia da física matemática, da redução do real ao geométrico. É

o primeiro espírito verdadeiramente moderno. Encarna, nos últimos anos do

século XVI e nas primeiras décadas do XVII, a concepção mecanicista do

saber que, vencendo pouco a pouco os obstáculos aparentemente

insuperáveis, definirá, doravante, o ideal científico e o código de

procedimento de todo e qualquer conhecimento com pretensões ao rigor.

A análise sobre a instrumentalização da ratio mostra que a razão, no decorrer

histórico, sedimentou-se nas máquinas. Dizem Adorno e Horkheimer (1985, p.33) que,

com isso, “o pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a

máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo”. A razão se

transforma em um aparato técnico, a partir da aparelhagem matemática que é abstrata e

universal. Com o advento da sociedade industrial, o ser humano se tornou apenas um

objeto que auxilia as máquinas, suas potencialidades intelectivas são ofuscadas. Assim,

“no trajeto da mitologia à logística, o pensamento perdeu o elemento da reflexão sobre

si mesmo, e hoje a maquinaria mutila os homens mesmo quando os alimenta” (p.42).

Os autores frankfurtianos apresentam que o mito já era produto do

esclarecimento, pois antecipa alguns de seus aspectos. Isso significa que o mito seria

uma primeira forma de exposição, organização e explicação do mundo. Nesse sentido,

assinalam que:

Os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio

esclarecimento. No cálculo científico dos acontecimentos anula-se a conta

que outrora o pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos. O mito queria

relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o

registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo

deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui

uma representação dos acontecimentos bem como do processo a ser

influenciado pela magia. Esse elemento teórico do ritual tornou-se autônomo

nas primeiras epopéias dos povos. Os mitos, como os encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo daquela disciplina e poder que Bacon

enaltece como o objetivo a se alcançar (IBID., p.20).

Vale destacar que mito e ciência não se equivalem, uma vez que cada um possui

suas peculiaridades. Na consciência mítica, a magia se torna a principal ferramenta; pela

representação do objeto desejado, acredita-se estar acessando e interferindo no objeto

real. O que há em comum entre o mito e na ciência é o desejo de domar as forças da

natureza. Tal relação é assinalada por Duarte (2002, p.28):

Muito antes de a poderosa ciência moderna se constituir como arma humana

para a intervenção nos processos naturais, os homens já acreditavam intervir nesses últimos através de feitiço ou outras ações cientificamente não

comprováveis.

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O progresso do pensamento é colocado em questão, por não ter ocorrido uma

suposta evolução de um pensar mítico - de caráter inferior - para um saber racional - de

caráter superior. O mito busca compreender certas realidades da natureza que escapam

ao entendimento humano. Na concepção mítica, a natureza possui uma força autônoma,

desconhecida, que, por sua vez, gera medo entre aqueles que não conhecem suas leis. O

mito se torna uma tentativa de domínio e compreensão de tais forças obscuras, como um

remédio para o medo. Assim, como apontam Adorno e Horkheimer, “o elemento básico

do mito foi sempre o antropomorfismo, a projeção do subjetivo na natureza. O

sobrenatural, o espírito e os demônios seriam as imagens especulares dos homens que se

deixam amedrontar pelo natural” (1985, p.19).

Libertar-se do medo representa a manifestação de um poder, no qual os seres

humanos se constituem como senhores, revestidos da capacidade de domínio da

realidade desconhecida, tal como aponta Jeanne Marie Gagnebin (1997, p.111):

O saber que deve liberar do medo é definido como um poder no sentido forte

de domínio: é só quando os homens se tornam „senhores‟ que eles conseguem ficar sem medo. Esse processo de dominação é cada vez mais amplo no

decorrer da história: os mitos – enquanto falas – já representavam uma

tentativa de dominar a angústia, dando-lhes um(s) nome(s); mais tarde, a

crítica aos mitos e à concepção animista da natureza configura um domínio

do logos (razão e linguagem) sobre si mesmo, um autodomínio, portanto.

Ao elaborar os mitos, como tentativa de dominar a angústia e o medo, os seres

humanos passaram da tentativa de submissão à natureza para a submissão às divindades

mitológicas. A relação se estabelece através da obediência aos deuses que desejam ser

reverenciados por meio de sacrifícios. O castigo divino emerge como uma nova forma

de medo. Assim, instaura-se um processo de desmitologização como forma de

superação do medo ao divino, que culmina na denúncia dos pensadores modernos

acerca da religião, apontando os deuses apenas como projeções humanas. Vale destacar

que a filosofia, ao surgir, realizou a captura das intuições míticas; as cosmologias dos

pré-socráticos, por exemplo, sedimentaram, racionalmente, as intuições míticas. Dizem

Adorno e Horkheimer que “com as ideias de Platão, finalmente, também os deuses

patriarcais do Olimpo foram capturados pelo logos filosófico” (1985, p.19).

A modernidade, ao criticar a religião, realiza grandiosa façanha: faz com que os

seres humanos tomem o poder dos deuses. Nesse sentido, não há mais nenhuma figura

onipotente que possa gerar medo ou angústia. Os deuses nada mais eram do que

expressões do próprio medo, como apontam Adorno e Horkheimer (1985, p. 26):

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Os deuses não podem livrar os homens do medo, pois são as vozes

petrificadas do medo que eles trazem como nome. Do medo o homem

presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido. É isso que

determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento, que identifica o

animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao

animado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. A pura

imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais é do que um

tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a

simples ideia do fora é a verdadeira fonte da angústia.

O esclarecimento transforma-se na verdadeira fonte devoradora de qualquer

espécie de onipotência; almeja a libertação do medo pelo domínio total do real; nada

pode lhe escapar; precisa tudo controlar para sentir segurança; assim o diferente deve

ser igualado aos princípios controláveis. Ao assumir tal posição, regride ao mesmo

processo impositivo de um cego destino mítico. Dessa forma, a razão impõe uma

proibição ditatorial, por isso, se torna um deus ameaçador sobre si mesmo. A autonomia

da razão, tão preconizada pelos iluministas, transformou-se em autodomínio e

autorrepressão da própria razão. A dominação da natureza interna e externa parece que

se tornou o fim último da existência no esclarecimento:

A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a

dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à

natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil

burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão

calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie. Forçado pela dominação, o trabalho humano tendeu sempre a se

afastar do mito, voltando a cair sob o seu influxo, levado pela mesma

dominação (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.38).

No processo de domínio da natureza, constata-se que o mito, assim como o

esclarecimento, possui as mesmas raízes, ou seja, as mesmas necessidades básicas:

sobrevivência, autoconservação e medo. A autoconservação nasce do medo mítico de

perder o próprio eu, medo da morte e da destruição. Isso gera um recolhimento

egocêntrico do sujeito sobre si mesmo; tudo que é outro se torna perigoso, precisa ser

dominado. Aquilo que é estranho se torna fonte de angústia, todas as realidades

desconhecidas precisam ser eliminadas. O outro se torna misterioso na sua alteridade,

consequentemente, fonte de perigo. Nesse sentido, a razão se torna paranoica, como

aponta Olgária Matos (1989, p.148):

A razão iluminista é uma razão paranoica porque o paranoico só percebe o

mundo exterior na medida em que corresponde a seus fins cegos, é capaz de

repetir sempre e somente o seu próprio eu, alienado à mania abstrata (...). A

disciplina do sempre igual torna-se substituto da onipotência. É como se a

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serpente, que disse aos primeiros homens de se tornarem iguais a Deus,

tivesse mantido sua promessa no paranoico. Ele cria tudo a sua própria

imagem e semelhança. Parece não ter necessidade de nenhum ser vivo e no

entanto exige que todos o sirvam.

A autoconservação se torna o objetivo central da civilização. O sujeito

desenvolve sua capacidade racional para garantir sua sobrevivência material, obter os

meios imediatos para subsistir; além disso, organizar a vida social como possibilidade

de prolongar as formas de subsistência. Contudo, o aspecto mais imediato da

sobrevivência parece que se impõe, gerando uma espécie de ditadura. Adorno e

Horkheimer apontam que a autoconservação almeja desvincular toda e qualquer

conotação natural que exista no sujeito para se adequar às normas da razão, tal como na

frase de Espinoza citada e explicada por ambos:

“O esforço para se conservar a si mesmo é o primeiro e único fundamento da

virtude” contém a verdadeira máxima de toda a civilização ocidental, onde

vêm se aquietar as diferenças religiosas e filosóficas da burguesia. O eu que,

após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais como algo de

mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem

mesmo um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito transcendental ou

lógico, o ponto de referência, a instância legisladora da ação (ESPINOSA,

APUD ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.36).

Para ilustrar a constituição do eu no processo de autoconservação, Adorno e

Horkheimer analisam a figura de Ulisses, herói das narrativas de Homero. A viagem de

Ulisses, de Troia para Ítaca, simboliza o caminho tomado pelo eu. Tal aventura

apresenta-se como perigosa, pois pode desviar o eu do seu curso lógico, levando-o à

destruição. Há muitas forças impostas que não podem ser contrariadas e que precisam

ser apaziguadas, contra as quais Ulisses precisa lutar para permanecer vivo.

O duodécimo canto da Odisseia é um bom exemplo da forma como Ulisses tenta

inserir algumas artimanhas para superar as imposições estabelecidas pela natureza;

narra, por exemplo, a experiência dele com as sereias (Cf. IBID., p.38). Acreditava-se

que qualquer pessoa que ouvisse o belo canto das sereias, automaticamente, seria

seduzida e se lançaria ao mar. Para ouvir o belíssimo canto, Ulisses pede para ser

amarrado ao mastro do navio, enquanto que sua tripulação permaneceria com os

ouvidos tapados por uma cera, como forma de proteção ao canto sedutor. Ulisses não

desafia diretamente as sereias, mas cria condições legais para dar à natureza o que é dela

e, ao mesmo tempo, traí-la; ele respeita o contrato e, concomitantemente, o infringe.

Isso significa a aparente rendição às normas da natureza para que, em seguida, sejam

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superadas. Ulisses realiza uma automutilação, exerce o domínio sobre sua dimensão

pulsional, visto que, amarrado ao mastro, não consegue entregar-se plenamente aos

apelos da natureza. Da mesma forma, seus companheiros se tornam alienados, pois

estão surdos e submetidos a um poder senhoril.

O ato de se amarrar ao mastro, realizado por Ulisses, expressa o medo iminente

da destruição do eu. Essa realização se torna um exemplo das inúmeras provações pelas

quais o eu teve que se submeter até ser constituído. Sobre a conservação do eu, apontam

Adorno e Horkheimer (1985, p.39):

Mas a sedução das sereias permanece mais poderosa. Ninguém que ouve sua

canção pode escapar a ela. A humanidade teve que se submeter a terríveis

provações até que se formasse o eu, o caráter idêntico, determinado e viril do

homem, e toda infância ainda é de certa forma a repetição disso. O esforço

para manter a coesão do ego marca-o em todas as suas fases, e a tentação de

perdê-lo jamais deixou de acompanhar a determinação cega de conservá-lo.

Para os frankfurtianos (Ibid., p.40) “as medidas tomadas por Ulisses quando seu

navio se aproxima das Sereias pressagiam alegoricamente a dialética do

esclarecimento”, pois ele tenta dominar tanto a natureza interna, quanto externa. A

perspectiva de domínio se manifesta através do controle dos sentidos, podendo ser

exemplificada através da tripulação de Ulisses que se torna incapaz de ouvir com os

próprios ouvidos. Isso constitui um caráter de ofuscamento do ser como apontam os

filósofos (Ibid., p.41) ao analisarem a própria realidade:

A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a

incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder

tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que

vem substituir as formas míticas superadas. Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem

exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o

princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento

na coletividade governada pela força. Os remadores que não podem se falar

estão atrelados a um compasso, assim como o trabalhador moderno na

fábrica, no cinema e no coletivo.

Fica claro o processo de regressão da experiência que é empobrecida pela

aparelhagem social, econômica e científica, que ajusta o corpo através do trabalho

racionalizado, proveniente da lógica da sociedade industrial. O intelecto se torna

autocrático; separa-se da própria experiência para submetê-la. Isso significa o

empobrecimento do próprio exercício do pensar, como apontam Adorno e Horkheimer:

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A unificação da função intelectual, graças à qual se efetua a dominação dos

sentidos, a resignação do pensamento em vista da produção da unanimidade,

significa o empobrecimento do pensamento bem como da experiência: a

separação dos dois domínios prejudica a ambos (1985, p.41.).

As análises de Adorno sobre a racionalidade humana, elaboradas no ensaio O

conceito de esclarecimento, com o auxílio de Horkheimer, apresentam o processo que

ofuscou as dimensões tanto racionais, quanto sensoriais do ser humano. Sua análise

crítica é pertinente, pois avalia a real função da razão, que está para além de uma lógica

dominadora. Para o frankfurtiano, há um movimento dialético da razão na história, que

instrumentalizou o pensar, tendo seu ápice no pensamento científico e na economia

capitalista. Critica a razão que se tornou reificada, que ao mesmo tempo, alterou e

transformou as relações humanas e sociais. O processo pelo qual a razão quis eliminar

os mitos, estabelecendo a autonomia pela racionalidade, reverteu-se em autodomínio. O

problema se encontra na má utilização da capacidade racional humana, isto é, na

irracionalidade com que se utiliza a racionalidade. Dessa forma, para Adorno, dentro da

sua perspectiva sobre a formação humana, é preciso deixar claro qual o verdadeiro papel

da razão, que é favorecer o desenvolvimento das potencialidades do pensamento, que se

caracteriza como múltiplo.

1.3. A Indústria Cultural como extensão da racionalidade

instrumental

Ao analisar a noção de racionalidade a partir do pensamento de Adorno, tornou-

se clara a perspectiva de domínio que ofuscou as potencialidades da razão humana. Tal

lógica dominadora se expandiu para diferentes instâncias sociais, inclusive para a

cultural. Para o filósofo, a cultura possui grande importância, por favorecer a formação

humana. Constata, contudo, a transformação do papel cultural; percebe sua substituição

pela construção de produtos simbólicos, emoldurados pela força do mercado, com a

finalidade de manter a perspectiva de controle das dimensões racionais e sensoriais

humanas. Esse processo foi designado como Indústria Cultural.

No livro Dialética do Esclarecimento, especificamente no ensaio A Indústria

Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas, Adorno e Horkheimer

utilizam, pela primeira vez, tal conceito. Em outro pequeno texto de Adorno, traduzido

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como Indústria Cultural (no alemão Résumé über Kulturindustrie), que se baseia em

conferências radiofônicas, proferidas na Alemanha, no ano de 1962, o filósofo articula,

de forma clara, o conceito de indústria cultural. Busca-se, neste ponto da pesquisa, a

partir de tais escritos, compreender o processo de racionalização que se expandiu no

seio cultural, através da indústria cultural, pois esta aparece, no dizer de Nadja

Hermann, “como manifestação da razão objetificadora, calculadora, unificante,

potencializada pelo próprio desenvolvimento científico e tecnológico” (2009, p.71).

Um dos pontos importantes que favoreceram Adorno em suas reflexões acerca

da indústria cultural foi a experiência de exílio nos Estados Unidos, país onde se

refugiou da perseguição nazista, entre os anos de 1938 a 1949. Ele possuía uma sólida

formação em filosofia e música clássica e, ao entrar em contato com a nova realidade

norte americana, sentiu necessidade de compreender o fenômeno da indústria do

entretenimento, tão presente e desenvolvida naquele país, mas incipiente na Europa.

O filósofo apresenta que a expressão “cultura de massas” tornou-se imprópria

para explicar a produção e o consumo de produtos culturais em larga escala. Isso

poderia sugerir uma concepção equivocada, ou seja, sobre o surgimento de uma cultura

de forma espontânea do meio social. Adorno e Horkheimer, segundo Hermann (Ibid.,

p.71-2) “não defendem a oposição entre cultura de elite e cultura popular, tampouco

uma visão puritana de ataque à cultura popular”, ambos sinalizam que a indústria

cultural não é uma cultura que surge de baixo para cima, de certos grupos sociais, mas é

imposta de cima para baixo, racionalmente organizada, com a finalidade de adaptar-se e

integrar-se à ordem vigente. Nesse sentido, aponta Adorno (1994, p.92) a respeito da

necessidade de utilizar o conceito de indústria cultural:

Tudo indica que o termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez

no livro Dialektik der Aufklärung, que Horkheimer e eu publicamos em 1947,

em Amsterdã. Em nossos esboços tratava-se do problema da cultura de

massa. Abandonamos essa última expressão para substituí-la por „indústria

cultural‟, a fim de excluir de antemão a interpretação que agrada aos

advogados da coisa; estes pretendem com efeito, que se trata de algo como

uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, da forma contemporânea da arte popular. Ora, dessa arte a indústria cultural se

distingue radicalmente. Ao juntar elementos de há muito correntes, ela

atribui-lhes uma nova qualidade. Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou

menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que

em grande medida determinam esse consumo.

No ensaio A Indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das

massas, Adorno e Horkheimer apontam que a indústria cultural - constituída pelo

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cinema, rádio e revistas - substituiu a religião que entrou em declínio com o advento da

racionalidade. A sociedade não ingressou em um caos cultural com o enfraquecimento

da religião, que criava um vínculo social e coletivo, bem como a outros resquícios pré-

capitalistas, mas a mesma passou a ser alicerçada e sedimentada pelo novo sistema de

cooptação ideológica da indústria cultural, que confere a tudo um ar de semelhança.

Tal nivelamento tem como consequência a falsa identidade entre o universal e o

particular, não concedendo aos indivíduos a possibilidade de expressões autônomas que

se posicionem contra a totalidade social. Aparentemente o indivíduo e o todo se

encontram reconciliados. Nesse processo, a cultura é atingida, sendo alterada para fins

monopolizadores e econômicos, como apontam Adorno e Horkheimer (1985, p.100):

A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os

homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do

particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu

esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a delinear (...).

O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia

destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a

si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus

diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus

produtos.

Conceber a cultura como uma indústria, no sentido que esta se transforma em

uma próspera atividade econômica por possuir uma demanda para seus produtos, se

torna algo inédito nas análises sobre a sociedade. O termo indústria cultural não deve

ser entendido literalmente, mas diz respeito à racionalização dos procedimentos técnicos

e não ao processo de produção. Os produtos oferecidos pela indústria cultural são

elaborados para que uma lógica do controle seja exercida sobre a sociedade. Ela não

leva em consideração a necessidade específica do público, mas aquela do próprio

sistema de exploração, que almeja a padronização, a oferta de produtos de baixo nível

formativo e de fácil assimilação. Nesse sentido, assinalam Adorno e Horkheimer que a

racionalidade técnica se transformou em racionalidade da dominação:

Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis porque são aceitos sem resistência. De fato, o que explica é

o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do

sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no

qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os

economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade

técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter

compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e

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o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento

nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia (1985, p.100).

Adorno e Horkheimer analisam criticamente os aparatos tecnológicos que são

utilizados como meios de divulgação da indústria cultural. Ambos estão preocupados

em perceber a apropriação dos meios de comunicação pelo modelo econômico.

Assinalam que a evolução ocorrida do telefone em direção ao rádio se relaciona com a

transformação do capitalismo liberal para o monopolista. Isso ocorre porque o telefone

teria um papel mais liberal, pois ainda permitia ao sujeito desempenhar seu papel; agora

o rádio transforma os interlocutores em meros ouvintes, entregues, de forma autoritária,

aos programas, sem a possibilidade de realizar alguma réplica às informações recebidas.

Aos poucos, os próprios aparatos técnicos tendem a se uniformizar, ou seja,

gerar uma síntese dentro de um único padrão. Esse seria o caso da nascente televisão

que realizou uma síntese rádio/cinema. As possibilidades de comunicação da televisão

podem gerar um empobrecimento estético, isso também ocorre devido à padronização

material e formal dos programas. Nesse sentido, aponta Duarte (2007a, p.53) ao

comentar tal questão:

Digna de nota é a consideração que Adorno e Horkheimer fazem com relação à então nascente tecnologia da televisão como síntese de rádio e cinema, i.e.,

com o poder sinestésico do filme sonoro, mas com a característica de, a

exemplo do rádio, flagrar os consumidores em sua privacidade doméstica, em

seus raros momentos de descontração e lazer. Outra observação interessante

sobre a televisão diz respeito ao fato de seu grande poder de penetração

aliado à inevitável padronização material e formal de seus programas

engendrar uma espécie de Gesamtkunstwerk (obra de arte total) às avessas.

Uma crítica feita por Adorno e Horkheimer à mercantilização da cultura é a

apropriação que ela realiza da capacidade de esquematismo das pessoas. A noção de

esquematismo é um termo que deriva da filosofia de Kant, tratado no livro Crítica da

razão Pura, que designa o “procedimento mental de referirmos nossas percepções

sensíveis a conceitos fundamentais, que ele chamava de categorias” (DUARTE, 2002,

p.39).

Na concepção kantiana, o conhecimento do objeto resulta de duas faculdades da

mente, a saber, sensibilidade que fornece o conteúdo e o entendimento que fornece a

forma. Kant analisa as possibilidades de conhecimento a partir da relação sujeito e

objeto, isto é, não há uma realidade fora do sujeito pré-ordenada, mas o que existe é o

entendimento do sujeito posto no objeto. A indústria cultural realiza uma transformação

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no modo como a realidade é percebida; fornece, no âmbito do sensorial, um mundo

ilusório que não existe concretamente, com a finalidade de atender a interesses

ideológicos. Assim, uma realidade externa, racionalmente organizada, altera os dados

fornecidos aos sentidos, visto que estes não correspondem verdadeiramente ao real.

Sobre essa questão, comentam Adorno e Horkheimer (1985, p. 103):

A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber,

referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. O esquematismo é o primeiro serviço

prestado por ela ao cliente (...). Para o consumidor, não há nada mais a

classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção.

Há uma perda por parte do sujeito em relação a sua capacidade de experiência da

realidade devido aos interesses da indústria cultural. A experiência não se reduz às

vivências passageiras; aponta para uma travessia; um sair dos limites determinados, para

alargar a identidade e o conhecimento4. Contudo, com a indústria cultural, a experiência

do mundo se torna direcionada e limitada (Ibid., p.104):

O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha

experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um

prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio

reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a

norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que

o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre

no filme.

Aos poucos, o que ocorre é uma atrofia dos sentidos, da imaginação e da

espontaneidade, dificultando a percepção da realidade para além daquilo que é

reproduzido pela indústria cultural. Com isso, a capacidade intelectual de compreender

o mundo se torna comprometida, como apontam os frankfurtianos:

Atualmente a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor

cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios

produtos – e entre eles em primeiro lugar o mais característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição

objetiva. São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é

verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas

também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele

4 A palavra experiência é proveniente do latim ex que indica um movimento para fora e per que significa

ir até o limite. A palavra experiência no alemão Erfahrung tem sua raiz no verbo fahren, que significa

viajar, desse modo um sujeito experiente é aquele que viajou muito, ou seja, experiente é aquele que viu

muitas coisas, que se aventurou em realidades novas, diferentes e desconhecidas.

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não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos

(1985, p.104-105).

A indústria cultural visa corresponder aos anseios do mercado capitalista, seus

produtos serão consumidos até mesmo pelos mais distraídos. Contudo, Adorno e

Horkheimer chamam a atenção para a existência de uma arte autônoma, que seria um

resquício pré-capitalista proveniente do contexto europeu, que apresentava certo atraso

no desenvolvimento capitalista, em relação aos Estados Unidos. Nesse período houve a

possibilidade para uma expressão estética autônoma e livre das pressões econômicas:

Atrasada relativamente à tendência ao monopólio cultural estava a Europa

pré-facista. Mas era exatamente esse atraso que deixava ao espírito um resto de autonomia e assegurava a seus últimos representantes a possibilidade de

existir ainda que oprimidos. Na Alemanha, a incapacidade de submeter a vida

a um controle democrático teve um efeito paradoxal. Muita coisa escapou ao

mecanismo de mercado que se desencadeou nos países ocidentais (IBID.,

p.109).

A análise sobre a história da arte demonstra que sua autonomia é fruto da própria

sociedade burguesa, por esta ter possibilitado liberdade aos artistas da dependência em

relação à Igreja, à nobreza e ao mecenato. Os interesses artísticos se voltavam para

corresponder aos anseios dos patronos, pois estes é que garantiam ao artista sua

sobrevivência material. Por volta do século XVIII, a arte se desvincula dos interesses

específicos dos patrocinadores para se firmar enquanto mercadoria. O artista passa a

sobreviver com o resultado do seu trabalho artístico. Dessa forma, surge a possibilidade

de a arte seguir, com autonomia, regras próprias (Ibid., p.130):

A arte como um domínio separado só foi possível, em todos os tempos, como

arte burguesa. Até mesmo sua liberdade, entendida como negação da

finalidade social, tal como esta se impõe através do mercado, permanece

essencialmente ligada ao pressuposto da economia de mercado. As puras

obras de arte, que negam o caráter mercantil da sociedade pelo simples fato

de seguirem sua própria lei, sempre foram ao mesmo tempo mercadorias: até

o século dezoito, a proteção dos patronos preservava os artistas do mercado,

mas em compensação, eles ficavam nesta mesma medida submetidos a seus

patronos e aos objetivos destes.

O artista não está impedido de levar sua obra ao mercado para vendê-la, pois

depende dela para sobreviver. A questão é que o verdadeiro artista não se sujeita às leis

do mercado, isto é, não adapta seu trabalho a fins lucrativos, com interesses apenas

econômicos. São mercadorias tanto produtos da indústria cultural, quanto uma obra de

arte, uma vez que ambas dependem do mercado. O ponto diferenciador será a finalidade

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com que cada uma se apresenta. A finalidade de uma obra de arte é interna, é expressão

singular do artista, é forma de resistência a uma ordem estabelecida. A finalidade de um

produto da indústria cultural é externa, almeja apenas alcançar o lucro e manter a ordem

social vigente, deseja subordinar os sentidos deixando-os ocupados durante o tempo

livre.

Adorno e Horkheimer constatam que, na civilização ocidental, desenvolveu-se

uma arte erudita, designada por arte séria e, ao mesmo tempo, outra mais popular,

designada por ambos de arte leve. Esta obtinha um papel mais de entretenimento,

possuía uma estrutura particular, não menos inferior que a arte culta. Assim, tal

expressão artística também deve ser reconhecida, pois “a arte leve como tal, a diversão,

não é uma forma decadente. Quem a lastima como traição do ideal da expressão pura

está alimentando ilusões sobre a sociedade” (1985, p.111).

Tanto arte leve como erudita possuem características específicas que contribuem

para um tipo de experiência estética. Os autores (Cf. Ibid., p.112) chamam a atenção

para o fato de a indústria cultural ter realizado, racionalmente, uma absorção da arte

leve na arte séria com objetivos meramente econômicos, dificultando expressões dos

anseios particulares. Sobre essa questão, assinala Duarte (2007a, p.59):

Essa tentativa não é sem razão: ao contrário dos outros dois modelos mencionados - o da arte culta „autônoma‟ e da arte „leve‟, popular, que

possuem, em diferente medida e com diferentes graus de elaboração, a

espontaneidade das expressões de anseios e sentimentos das sociedades em

que surgem -, a indústria cultural é, antes de tudo, um negócio que tem seu

sucesso condicionado a empréstimos e fusões da cultura, da arte e da

distração, subordinando-se totalmente às já mencionadas finalidades de lucro

e de obtenção de conformidade ao status quo.

A diversão passa a ter uma finalidade central dentro da perspectiva da indústria

cultural. As mercadorias culturais realizam uma espécie de prolongamento do trabalho

durante o ócio do trabalhador, como se fosse um anestésico para remediar a rotina

mecânica instaurada pela lógica de produção racionalizada. Todo esgotamento físico e

mental é suprido pelo entretenimento da indústria cultural. Assim, apontam Adorno e

Horkheimer (1985, p.113):

A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é

procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado para se

pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a

mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das mercadorias

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destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra coisa

senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho.

Para os produtos oferecidos pela indústria cultural serem bem aceitos e gerarem,

também, prazer, eles não exigem nenhum tipo de esforço intelectual. O espectador não

necessita elaborar pensamentos próprios, o produto oferecido direciona o pensamento,

prescrevendo toda a reação. Nesse sentido, “toda ligação lógica que pressuponha um

esforço intelectual é escrupulosamente evitada” (1985, p.113). A capacidade de

imaginação e de criatividade - frutos de uma experiência singular do pensamento - é

inibida por produtos elaborados racionalmente. Os próprios sentidos se habituam a

captar a realidade dentro de algumas perspectivas delimitadas e direcionadas. Assim,

apontam Adorno e Horkheimer que “os filmes de animação eram outrora expoentes da

fantasia contra o racionalismo. Eles faziam justiça aos animais e coisas eletrizados por

sua técnica, dando aos mutilados uma segunda vida. Hoje, apenas confirmam a vitória

da razão tecnológica sobre a verdade” (IBID., p.114).

A indústria cultural realiza um ato astucioso, “não cessa de lograr seus

consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer” (IBID., p.115).

Nesse contexto, Adorno e Horkheimer assinalam que o ritual instaurado pela indústria

cultural seria semelhante à experiência vivida por Tântalo5. Da mesma forma que o

castigo imposto a Tântalo, a indústria cultural quer convencer as pessoas de que a

felicidade se encontra ao lado, fornecendo a sensação de que os produtos

propagandeados já estão ao alcance de todos, juntamente com seus atributos. Contudo,

tal sensação é efêmera, pois, logo em seguida, novos produtos são oferecidos com

atributos mais sofisticados que atestam superar os anteriores, deixando o consumidor

insaciado. Assim, “cada espetáculo da indústria cultural vem mais uma vez aplicar e

demonstrar de maneira inequívoca a renúncia permanente que a civilização impõe às

pessoas. Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a mesma coisa” (IBID,

p.116).

A pergunta sobre o desejo pessoal de cada pessoa torna-se irrelevante, pois é a

indústria cultural quem dita regras e educa para o que deve ser desejado. Isso implica

desconsiderar as potencialidades do pensar, porque as pessoas não estão autorizadas a

construir pensamentos que resistam ao que é imposto. Ao mesmo tempo, a indústria

5O mito de Tântalo, proveniente da mitologia grega, descreve a estória do castigo imposto a Tântalo por

ter roubado os manjares dos deuses. O castigo se resumia no seguinte: quando Tântalo tinha sede e se

aproximava da água, ela se afastava dele, quando tinha fome e se aproximava das árvores, os frutos lhe

eram negados.

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cultural gera uma não vivência do processo subjetivo, o divertimento. Ao eximir o

sujeito de pensar, faz com que ele esqueça o sofrimento que permeia sua vida (Ibid.,

p.119):

A liberação prometida pela diversão é a liberação do pensamento como

negação. O descaramento da pergunta retórica: „Mas o que é que as pessoas

querem?‟ consiste em dirigir-se às pessoas como sujeitos pensantes, quando

sua missão específica é desacostumá-las da subjetividade. Mesmo quando o

público se revela contra a indústria cultural, essa rebelião é o resultado lógico

do desamparo para o qual ela própria o educou.

O ser humano passa a ser compreendido como „ser genérico‟. Tal definição

explicita a degradação das pessoas à mera pertença ao gênero, ou seja, a representação

do que se designa por pessoa pode ocorrer a partir de qualquer anônimo; o indivíduo é

absorvido no ser genérico. Essa é uma questão retomada da filosofia de Marx quando o

mesmo faz uma crítica ao trabalho alienado. Sobre tal questão apontam Adorno e

Horkheimer (Ibid., p.120):

A indústria cultural realizou maldosamente o homem como ser genérico.

Cada um é tão-somente aquilo mediante o que pode substituir todos os outros: ele é fugível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo, é o

absolutamente substituível, o puro nada, e é isso mesmo que ele vem a

perceber quando perde com o tempo a semelhança.

A forma como a sociedade se organiza, através das diferentes instituições,

favorece o totalitarismo imposto pela indústria cultural. Não significa literalmente um

regime imposto politicamente; a liberdade formal está garantida. Contudo, constata-se

um controle através da ambientação social, que, por sua vez, segue os ditames da

indústria cultural. A questão é que o indivíduo não consegue ir contra tal força que o

direciona, pois o instinto revolucionário é domesticado (Ibid., p.127):

A postura que todos são forçados a assumir, para comprovar continuamente

sua aptidão moral a integrar essa sociedade, faz lembrar aqueles rapazinhos

que, ao serem recebidos na tribo sob as pancadas dos sacerdotes, movem-se em círculos com um sorriso estereotipado nos lábios. A vida no capitalismo

tardio é um contínuo rito de iniciação. Todos têm que mostrar que se

identificam integralmente com o poder de quem não cessam de receber

pancadas.

A relação entre o indivíduo e a sociedade pode ser pensada a partir da

apropriação feita pela indústria cultural do elemento trágico, que fornece algo que a

pura diversão não proporciona. Isso significa que “o trágico, transformado em um

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aspecto calculado e aceito do mundo, torna-se uma benção para ele” (1985, p.125). No

teatro grego, encontra-se, com clareza, a definição do que seria o elemento trágico

através de personagens que lutam contra o cego destino6. Nesse caso, a indústria

cultural impossibilita aos indivíduos se posicionarem e se esforçarem contrariamente

aos seus interesses, devido à apropriação do elemento trágico, que enfraquece a

capacidade das pessoas de escaparem a um cego destino. Nesse sentido, “a liquidação

do trágico confirma a eliminação do indivíduo” (IBID., p.127). Essa questão é analisada

por Duarte (2007a, p.63-64):

É nesse quadro que surge a referência ao trágico, como um exemplo da

possibilidade de o indivíduo se defrontar com as forças muito mais poderosas

do que ele com uma chance – mesmo que venha a ser derrotado – deixar sua

própria marca e servir de exemplo e inspiração para os pósteros. Mas no

âmbito do capitalismo tardio, muito especialmente no da indústria cultural

por sua própria vinculação à inarredável sedimentação estética do trágico,

esse se encontra ameaçado de pura e simples extinção pelo fato de que tendem a desaparecer os indivíduos com a coragem de se posicionar

diferentemente da massa, que, por sua vez, é – com raras exceções – uma

reprodutora, naturalmente sem consciência, porém com fidelidade, da

ideologia dominante.

O indivíduo se torna agradecido pela condição de anestesiado em que se

encontra. A indústria cultural lhe poupa qualquer esforço para um processo de

individuação, ofertando modelos a serem imitados. O esforço para a individuação é

trocado pelo esforço da imitação, como apontam Adorno e Horkheimer (1985, p.129):

É só por isso que a indústria cultural pode maltratar com tanto sucesso a

individualidade, porque nela sempre se reproduziu a fragilidade da sociedade.

Nos rostos dos heróis do cinema ou das pessoas privadas, confeccionados

segundo o modelo das capas de revistas, dissipa-se uma aparência na qual, de

resto, ninguém mais acredita, e o amor por esses modelos de heróis nutre-se

da secreta satisfação de estar afinal dispensado de esforço da individuação

pelo esforço (mais penoso, é verdade) da imitação.

Toda lógica da indústria cultural é fomentada pela publicidade, esta seria seu

elixir que fornece a vida. A publicidade leva as promessas, desperta o interesse,

aumenta a lucratividade e, ao mesmo tempo, elimina a concorrência. Nesse sentido, os

produtos veiculados pelo mundo publicitário recebem um ar de encanto; são

enfeitiçados, envoltos em um mistério, estabelecendo uma relação de fetiche. O

6 Vale lembrar a famosa tragédia grega de Édipo Rei, escrita em forma de teatro por Sófocles, por volta

do ano de 427 a.C. Resumidamente a tragédia narra o episódio da vida de Édipo, que tem como destino

matar o próprio pai e se casar com a mãe. Édipo tenta lutar contra tal destino, contudo não consegue

escapar, pois este é mais poderoso. Apesar de ter sido derrotado, a marca de Édipo está no seu esforço, na

tentativa de se posicionar contra o que está traçado, firmando a sua identidade.

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fetichismo referente às mercadorias foi um termo cunhado por Marx, que aponta para o

fato de os produtos comercializados esconderem as relações sociais que lhes deram

origem. No âmbito da indústria cultural, a publicidade camufla os interesses lucrativos,

sendo essa sua verdadeira finalidade; além disso, esconde toda racionalidade que

modela os produtos.

A indústria cultural procura direcionar aquilo que chega ao plano da consciência

e dos sentidos, através da oferta de um mundo ilusório. O indivíduo acaba se

submetendo a essa lógica, aderindo, sem espírito crítico, a tal estrutura, pois a forma de

compreender a realidade é preparada e conduzida pela indústria cultural. Adorno (1997,

p.97) aponta para tal questão:

As ideias de ordem que ela [a indústria cultural] inculca são sempre as do

status quo. Elas são aceitas sem objeção, sem análise, renunciando à

dialética, mesmo quando elas não pertencem substancialmente a nenhum

daqueles que estão sob a sua influência. O imperativo categórico da indústria

cultural, diversamente do de Kant, nada tem em comum com a liberdade. Ele anuncia: “tu deves submeter-te”, mas sem indicar a quê – submeter-se aquilo

que de qualquer forma é e aquilo que, como reflexo do seu poder e

onipresença, todos, de resto, pensam. Através da ideologia da indústria

cultural, o conformismo substitui a consciência; jamais a ordem por ela

transmitida é confrontada com o que ela pretende ser ou com os reais

interesses dos homens.

O conceito de indústria cultural apresentado por Adorno expressa a ampliação

do controle inaugurado por uma postura racional. O pensamento reificado, por sua vez,

reificou a cultura através da elaboração racional de produtos simbólicos. A formação de

um sujeito autônomo torna-se comprometida, pois a indústria cultural delimita aquilo

que deve ser experimentado pelos sentidos, bem como o que deve ser elaborado pelo

pensamento. O mundo perde a sua estranheza, tudo se torna natural, por haver uma

sensação de familiaridade entre o que a indústria cultural apresenta e a própria realidade

concreta. Para Adorno, é preciso resgatar o potencial emancipador do pensamento,

subverter a padronização estabelecida pela indústria cultural, para possibilitar o

surgimento de pessoas autônomas, capazes de direcionar sua existência.

No próximo capítulo, discutir-se-á como a estética pode ser um contraponto ao

processo que instrumentalizou o pensar, apresentando as contribuições estéticas do

ensaio e a importância da dialética negativa como possibilidades de construção de um

discurso pautado por dimensões estéticas; além disso, elementos específicos do campo

da arte que favorecem a compreensão da realidade e da formação humana.

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CAPÍTULO 2 - A ESTÉTICA COMO CONTRAPONTO À

RACIONALIDADE

2.1. As contribuições estéticas do ensaio

A crítica de Adorno à racionalidade se direciona ao processo que reduz a

transmissão das ideias em conceitos, isto é, categorias. Sua experiência e conhecimento

musical, bem como em outras artes, proporcionaram compreender que existem

dimensões da realidade que não são captadas pelo conceito abstrato. Percebe que a

própria filosofia, que deveria ser crítica e reflexiva diante da realidade, perdeu tais

potencialidades por transformar-se em pura abstração, selando um pacto de

cumplicidade com a dominação da natureza. Para que se consiga o antídoto contra o

processo de reificação do pensar, o filósofo propõe repensar a maneira de expressar as

ideias a partir de um toque estético na composição dos conceitos, a saber, o ensaio. Para

se compreenderem as contribuições do ensaio, procura-se, neste ponto da pesquisa,

analisar, especificamente, os textos de Adorno “A atualidade da filosofia” (1931),

realizado como palestra inaugural ao ingresso, como livre-docente, na Universidade de

Frankfurt e “O ensaio como forma”, publicado no livro Notas de Literatura I (1974),

que acena para uma estética da escrita questionadora da visão de totalidade.

Adorno, ao que parece, escolhe os conceitos mais adequados para compor suas

ideias, reconhece que cada palavra traz uma carga de significado histórico sedimentada.

Visa, com isso, constatar os sentidos contrários, para tensionar a interpretação dos

conceitos. Sua filosofia é estrategicamente elaborada para não simplificar suas ideias.

No dizer de Jay, “Adorno se recusava a apresentar suas ideias complexas e plenas de

nuanças de maneira simplificada” (1988, p.13). Propósito que não fornece, de imediato,

ao leitor seu pensamento, para que o mesmo persista e trave um duelo com o texto,

exercitando a reflexão, o pensamento crítico e o vislumbramento com as possíveis

descobertas.

O ensaio tem privilégio no pensamento de Adorno devido ao caráter

antissistemático; isso expressa a qualidade ensaística da sua produção filosófica. Outros

filósofos também utilizaram o ensaio; dentre eles, destacam-se Montaigne (1533-1592),

Leibniz (1646-1716), Nietzsche (1844-1900), Benjamin (1892-1940). O ensaio, como

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forma de expressão intelectual, comparece no pensamento de Adorno desde a época de

sua formação filosófica.

No texto dos anos trinta, A atualidade da filosofia, Adorno já aponta para o

projeto de seus trabalhos subsequentes, demonstra ideias centrais sobre a valorização do

ensaio, sinaliza criticamente a pretensão do pensamento que deseja abarcar a totalidade

do real; inicia seu trabalho dirigindo uma dura crítica à filosofia e questiona o idealismo

que se tornou uma pretensão filosófica à totalidade, por conceber uma ratio autônoma,

que se desenvolve por si mesma:

Quem hoje em dia escolhe o trabalho filosófico como profissão, deve, de

início, abandonar a ilusão de que partiam antigamente os projetos filosóficos:

que é possível, pela capacidade do pensamento, se apoderar da totalidade do

real (...) A filosofia, que hoje se apresenta como tal, não serve para nada, a

não ser para ocultar a realidade e perpetuar sua situação atual (1991, p.73)7.

Prossegue o filósofo, estabelecendo uma discussão crítica com algumas

expressões filosóficas, como a escola de Marburgo, o Círculo de Viena e a

Fenomenologia. Adorno, ao se perguntar pela atualidade da filosofia, não está

preocupado com sua vaga caducidade ou não caducidade; quer pensar se, após o

fracasso dos últimos grandes esforços da filosofia, haveria adequação entre as questões

filosóficas e a capacidade em respondê-las. Acentua que a filosofia entrou num processo

de liquidação pelas ciências lógicas e matemáticas (1991, p.83), que instaurou um ideal

de transformar a filosofia em ciência, reduzindo-a em apenas instância de ordenação e

controle das ciências particulares, sem acrescentar nada de singular aos resultados das

mesmas (IBID., p.84). Isso não significa que a filosofia deva se rebaixar ou se afrouxar

na relação com as ciências, mas é necessário deixar claras suas especificidades. Para

Adorno, ciência e filosofia se distinguem em seus ideais, ou seja, “o ideal da ciência é a

investigação, o da filosofia, a interpretação” (IBID., p.87).

Adorno destaca que a tarefa filosófica - enquanto interpretação - pode parecer

paradoxal, pois, por um lado, se almeja a verdade e, por outro, se adota a postura

interpretativa sem jamais possuir uma chave segura para interpretar. Isso indica que o

trabalho filosófico busca os fugazes indícios presentes na existência, que está em

constante mudança, exigindo do filósofo sempre recomeçar de novo seu trabalho, sem

desconsiderar as longas tramas já tecidas pela história, as quais se encontram, muitas

vezes, fragmentadas. A tarefa da interpretação não implica a busca de um sentido, nem

7 As referidas páginas citadas pertencem à versão castelhana. Tradução de Bruno Pucci (manuscrito).

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mesmo a compreensão de um mundo que esteja “atrás do mundo” em plano metafísico,

marcado por dualismos. Quem realiza a tarefa da interpretação não procura atrás dos

fenômenos o mundo em si, que sirva de base e sustentação, pois “a autêntica

interpretação filosófica não aceita um sentido que já se encontra pronto e permanente

por detrás da questão, e sim a ilumina repentina e instantaneamente” (ADORNO, 1991,

p.89).

Enfatiza Adorno que a filosofia deve procurar dispor os elementos que recebe da

ciência em constelações mutáveis; com diferentes tentativas de ordenação ou em

arranjos experimentais8. Não é tarefa da filosofia investigar intenções ocultas e

preexistentes da realidade, mas interpretar a realidade carente de intenções para

construir elementos de análise; seu propósito é levantar questões, sendo que a

investigação cabe às ciências.

A interpretação filosófica se aproxima do conhecimento materialista, que

procura se distanciar dos respectivos sentidos já implícitos nos objetos, para perceber

que a realidade está plena de intencionalidade e significação. Esse procedimento já

aponta um aspecto importante dentro da análise adorniana que diz respeito à forma da

mercadoria, que, colocada dentro da constelação, ilumina a totalidade dos fenômenos.

A respeito dessa questão, assevera Adorno (Ibid., p.91):

Se a filosofia quisesse hoje perguntar pela relação absoluta entre coisa-em-si

e fenômeno, ou para aproveitar uma formulação mais atual, pelo sentido do

ser, ou ela ficaria parada em uma arbitrariedade formal ou se fenderia em

uma pluralidade de possíveis, arbitrários e ideológicos pontos de vista. Estabelecido isto – dou um exemplo a título de experimento mental, sem

afirmar sua realização efetiva – estabelecido que seja possível agrupar os

elementos de uma análise social de modo que sua inter-relação forme uma

figura, em que é suprimido cada momento particular; uma figura que, com

certeza, não preexiste organicamente e sim deve ser produzida: a forma

mercadoria.

Não buscar, através da interpretação, a pergunta pelo sentido implica o

reconhecimento de que os próprios símbolos filosóficos foram derrubados, forçando

uma nova postura, a saber: a necessidade de se aprender a conviver sem a função

simbólica, que procura representar no particular o universal (ADORNO, 1991, p.90).

8 A ideia de constelações indica claramente a proximidade do pensamento adorniano ao de Walter

Benjamin, Gagnebin destaca essa ideia afirmando que: “Temos, em Adorno, a mesma representação

metafórica que em Benjamin: é como se houvesse um amontoado de peças misturadas de um grande

quebra cabeça - a desordem do real – que somente pode ser salvo pela ordenação tateante de elementos

dispersos, cujo conjunto, subitamente, desenha uma nova figura, agora com sentido” (2007, p.74).

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Certamente, pode-se dizer que essa situação evidencia que a própria realidade não pode

ser superada pelo conceito.

Para Adorno, a partir da construção da figura do real, segue a exigência da sua

transformação, que deve ser sustentada por uma práxis fundamentada na dialética,

justamente por relacionar as questões teóricas e práticas (IBID., p.94). Gagnebin (2007,

p.71), por um lado, destaca que a noção de transformação, no texto de Adorno a

Atualidade da filosofia, é uma temática de proveniência hegeliana e marxista, mas

também “oriunda da tradição mística judaica, de uma realidade injusta, ungerecht e

errada, unrichtig, que aspira a ser justa, gerecht, e correta, richtig”; por outro lado, isso

não representa uma compreensão dogmática do hegelianismo e marxismo. Para a

autora, a transformação é auxiliada pela filosofia, que desiste de abarcar a totalidade do

real, pois “se esta totalidade é falsa, sua apreensão completa só poderia, com efeito,

significar o mascaramento da injustiça e sua perpetuação”. A totalidade mascara a

injustiça, por exemplo, ao velar a exploração presente nas relações de troca e de

trabalho, justamente porque “a sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela

torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas” (ADORNO;

HORKHEIMER, 1985, p.20)

Adorno reconhece que a proposta de uma filosofia interpretativa exclui questões

ontológicas tradicionais, colocando em xeque o próprio conceito de filosofia. É preciso

conviver com a tradição filosófica sem excluí-la por completo, mas estabelecer a tensão

em tal relacionamento, procurando oferecer uma concepção nova e mais adequada de

filosofia. Ele questiona a expressão filosófica mais evidente em seu período,

representado pelo pensamento de Heidegger, que opta por ignorar tal tensão,

esquecendo-se dos antigos problemas e acreditando na possibilidade de, simplesmente,

poder eliminá-los. A respeito dessa questão assinala o filósofo:

Só uma filosofia, por princípio, adialética, orientada para uma verdade sem história, poderia presumir que se abandone os antigos problemas,

esquecendo-os e começando fresquinhos do início. A ilusão de um começo é

precisamente o que, por primeiro, se submete à crítica na filosofia de

Heidegger (ADORNO, 1991, p.96).

Ao contrário do projeto filosófico contido na Idade Moderna, em que o

pensamento estava impregnado do ideário cientificista, Adorno resgata a antiga

concepção de filosofia, formulada por Bacon e pelo filósofo alemão Leibniz, designada

por ars inveniendi. O organon dessa ars inveniendi é a fantasia, contudo “uma fantasia

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exata; fantasia que se atém estritamente ao material que as ciências lhe oferecem, e só

vai mais além nos detalhes mínimos de sua estruturação: detalhes que, certamente, ela

deve oferecer espontaneamente e a partir de si mesma” (ADORNO, 1991, p.99). A ideia

de interpretação filosófica ganha sentido ao se expressar como forma de respostas às

questões da realidade através da fantasia, que reagrupa os elementos destacados.

Representantes do pensamento científico e principalmente da Ontologia

Fundamental alegam que, na concepção de Adorno, subjaz um conceito de homem, um

projeto de existência. O filósofo discorda dessa análise que seria, filosoficamente

ilegítima; uma postura de angústia cega diante do poder da história para desenvolver

uma concepção de ser humano invariável, cuja exigência, idealista e cartesiana, se

relaciona apenas com o puro pensamento, presa a seus axiomas. Uma objeção dirigida a

Adorno, que, por sinal, a considera legítima, se refere a sua valorização ao produzido

historicamente, fazendo a filosofia perder seus padrões de medidas e condenando-a a

um jogo estético, transformando, ao mesmo tempo, a prima philosophia em ensaísmo

filosófico (IBID., p.100-101).

Aceita Adorno agradavelmente a repreensão a seu ensaísmo e destaca que tal

maneira de construção do pensamento foi utilizada pelos empiristas ingleses e por

Leibniz, que “chamaram seus escritos filosóficos de ensaios, porque a violência da

realidade recém-explorada, contra a qual embatia seu pensamento, os impingia sempre à

ousadia do intento” (IBID., p.102).

Para o autor, no período pós-kantiano, perdeu-se a ousadia do intento, o ensaio

se rebaixou para uma forma menor da estética. Porém, com a ruína de toda segurança na

grande filosofia, o ensaio anuncia sua reentrada. Adorno conclui seu texto A atualidade

da filosofia deixando claro que o ensaio se torna importante porque “o espírito não é

capaz de produzir ou de compreender a totalidade do real; mas ele é capaz de irromper-

se no pequeno, de fazer saltar no pequeno as medidas do meramente existente” (IBID.,

p.102).

No texto da maturidade, O ensaio como forma, Adorno prossegue suas análises

sobre a importância do ensaio e define, de forma clara, suas especificidades para a

construção de um pensar estético. Inicia destacando que o ensaio na Alemanha se

encontrava difamado, marcado por preconceitos, repreendido por carecer de uma

tradição convincente, de uma autonomia e por se constituir como um misto de

racionalidade fundida com elementos da criação artística. Considera-se conhecimento

válido aquele que veste as roupagens do universal, do permanente, sendo que o

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particular só torna-se objeto de investigação na medida em que colabora para

exemplificar categorias universais. Para Adorno, o ensaio suscita desconfiança na

Alemanha porque evoca uma liberdade de espírito, busca superar as prescrições,

provocando suspeitas por parte do pensamento oficial.

A liberdade presente no ensaio não gera vergonha pelo entusiasmo com aquilo

que outros já fizeram, não se preocupa em apenas criar novidades científicas ou

artísticas. A liberdade ensaística se expressa no fato de poder falar aquilo que se deseja

dizer, sem a necessidade de começos e fins sistematicamente rígidos, bem como esgotar

totalmente o assunto. A respeito dessa questão, assinala Adorno:

Ele [o ensaio] não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que

deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre

os despropósitos. Seus conceitos não são construídos a partir de um princípio

primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretações não são

filologicamente rígidas e ponderadas, são superinterpretações, segundo o

veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante que se põe a serviço da

estupidez como cão-de-guarda contra o espírito (2003, p.17).

O autor destaca que é preciso penetrar as múltiplas significações presentes na

objetividade do real, com isso, no entanto, interpretar não significa desorientar a

inteligência para devaneios impotentes, para realidades em que nada se tem a explicar;

mas representa reconhecer as falsas pretensões à totalidade entre pensamento e

realidade. O núcleo de verdade das coisas encontra-se mais escondido do que a

tradicional mentalidade científica pode supor; exige ir além dos rigorosos registros e

classificações para se descobrirem os sentidos subjacentes; necessita “aquela

espontaneidade da fantasia subjetiva que é condenada em nome da disciplina objetiva”

(IBID., p.17-18). Isso implica rigorosidade na forma de exposição para que se tenha

capacidade de dar voz ao conjunto de elementos do objeto.

O ensaio não é simplesmente uma forma artística, como definiu Lukács (apud

Adorno, 2003, p.18), aproxima-se de uma autonomia estética, mas difere da arte por seu

meio específico constituído por conceitos, que têm pretensões à verdade em seu

conteúdo. O que diferencia o ensaio da mentalidade positivista que almeja fixar o

conteúdo, tornando-se indiferente à sua forma de exposição, diz respeito ao conteúdo

veiculado que não difere da forma de apresentação; sujeito e objeto são aproximados

nas suas particularidades. O filósofo frankfurtiano critica o purismo científico que

procura, ao máximo, reprimir o expressivo presente na exposição por julgar ser uma

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ameaça para a objetividade. Para o espírito científico, a forma não deve permitir

aflorarem elementos do sujeito para não pôr em risco a integridade do objeto. Com

isso, diz Adorno que “na alergia contra as formas, consideradas como atributos

meramente acidentais, o espírito científico acadêmico aproxima-se do obtuso espírito

dogmático” (2003, p.19).

O filósofo apresenta ser verdadeira a crítica dirigida ao ensaio quando o mesmo

é transformado em mercadoria, desembocando, por exemplo, em biografias

romanceadas; em publicações edificantes, que se revertem em superficialidades

eruditas. Esse tipo de ensaio se confunde com os folhetins, e sua elaboração visa agradar

aos leitores, pois “livre da disciplina acadêmica, a própria liberdade espiritual perde a

liberdade, acatando a necessidade socialmente pré-formada da clientela” (IBID, p.20). É

preciso diferenciar ensaios ruins que buscam apenas satisfazer a demanda social,

desejam falar de pessoas; daqueles que assumem, de fato, o compromisso com a

verdade, que buscam desvendar as diferentes facetas do objeto.

A progressiva desmitologização do mundo resultou na irreversível separação

entre ciência e arte. É impossível restabelecer uma consciência que conceba a unidade

entre intuição e conceito, imagem e signo. A restauração dessa consciência significaria

recair no caos. Entende-se, então, que “dessa violência que imagem e conceito praticam

um ao outro nasce o jargão da autenticidade, no qual as palavras vibram de comoção,

enquanto se calam sobre o que as comoveu” (IBID., p.21).

O conhecimento científico almeja elevar todo saber ao grau de cientificidade,

transformar o conhecimento pré-científico em científico. A respeito dessa premissa, o

filósofo critica sua precariedade, porque existem alguns conhecimentos que não são

capturados pela rede da ciência. Para Duarte, Adorno realiza uma distinção entre

compreender (versteben) e explicar (erklären) apontando “para a impenetrabilidade dos

conteúdos da consciência a uma concepção convencional de conhecimento” (1997,

p.75). Para exemplificar sua posição, Adorno cita a obra literária de Marcel Proust que

possui elementos que não se reduzem aos procedimentos da ciência; conhecimentos que

não poderiam simplesmente ser acolhidos pela ciência, visto que o parâmetro de sua

objetividade não é a verificação de teses já comprovadas, mas o conhecimento da

experiência humana. Sobre essa questão, aponta o frankfurtiano (2003, p.23-24):

Sob a pressão do espírito científico e de seus postulados, onipresente até

mesmo no artista, ainda que de modo latente, Proust se serviu de uma técnica

que copiava o modelo das ciências, para realizar uma espécie de reordenação

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experimental, com o objetivo de salvar ou restabelecer aquilo que, nos dias

do individualismo burguês, quando a consciência individual ainda confiava

em si mesma e não se intimidava diante da censura rigidamente

classificatória, era valorizado como os conhecimentos de um homem

experiente, conforme o tipo do extinto homme de lettres, que Proust invocou

novamente como a mais alta forma do diletante. Não passaria pela cabeça de

ninguém, entretanto, dispensar como irrelevante, arbitrário e irracional o que

um homem experiente tem a dizer, só porque são as experiências de um

indivíduo e porque não se deixam facilmente generalizar pela ciência. Mas aquela parte de seus achados que escorrega por entre as malhas do saber

científico escapa com certeza à própria ciência.

A forma de ensaio se contrapõe ao domínio da natureza e à ditadura da

autoconservação; bem como se torna uma crítica ao procedimento científico que

enquadra o conhecimento da realidade em sistemas. O ensaio questiona quanto ao

direito incontestável do método; denuncia, como ideológico, a igualdade entre coisas e

ideias; valoriza, por princípio, o fragmentário, o parcial diante da totalidade, renuncia à

crença no definitivo. Para Adorno (Ibid., p.25), “o ensaio não segue as regras do jogo da

ciência e da teoria organizadas, segundo as quais, como diz a formulação de Spinoza, a

ordem das coisas seria o mesmo que a ordem das ideias”.

O ensaio não busca uma construção fechada, com características dedutivas ou

indutivas; critica a filosofia que não reconhece o mutável, o efêmero e o transitório

como fontes dignas para pensar e contestar a violência do dogma que reverencia os

resultados da abstração e conceitos invariáveis. Não é possível pensar o mais puro dos

conceitos sem alguma referência ao factual, pois a verdade possui um núcleo histórico.

O ensaio valoriza a experiência devido a sua vinculação com a realidade que, por sua

vez, se presentifica na consciência individual, mediada pela humanidade histórica.

Algumas objeções dirigidas ao ensaio consideram-no como fragmentário e

contingente, porém tais críticas revelam a crença na totalidade como algo dado e na

identidade entre sujeito e objeto. Os objetivos do ensaio não são encontrar o eterno no

transitório, “mas sim eternizar o transitório” (ADORNO, 2003, p.27). Torna-se, assim,

testemunha da não-identidade, denunciando os limites do conceito.

Para o autor, o ensaio “incorpora o impulso antissistemático em seu próprio

modo de proceder, introduzindo sem cerimônias e imediatamente os conceitos, tal como

eles se apresentam. Estes só se tornam mais precisos por meio das relações que

engendram entre si” (IBID., p.28). É preciso cautela para não transformar em fetiche os

significados contidos nos conceitos; o ensaio possibilita perceber suas múltiplas facetas,

reconhece a possibilidade de não saber, com clareza, os sentidos que cada um vai

encontrar, presentes, nos conceitos. O ensaio torna claro que “a exigência de definições

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estritas serve há muito tempo para eliminar, mediante manipulações que fixam os

significados conceituais, aquele aspecto irritante e perigoso das coisas que vive no

conceito” (IBID., p.29).

O ensaio não dispensa os conceitos universais, nem, com eles, procede de

maneira arbitrária; prioriza o como da exposição, isto é, a maneira de expor que busca o

rigor, salva a precisão pela renúncia à abrangência. Mais do que conceitos que definam

objetos, o ensaio exige uma interação recíproca entre os conceitos no processo da

experiência intelectual. Os conceitos não se desenvolvem num continuum de operações;

não avançam em um sentido único, mas se entrelaçam, de maneira semelhante, a um

tapete, e a partir da densidade dessa tessitura resultam pensamentos fecundos. Para

Adorno, o ensaio elege a vida como o palco da experiência intelectual, cita um exemplo

interessante que ilustra sua posição:

O modo como o ensaio se apropria dos conceitos seria, antes, comparável ao

comportamento de alguém que, em terra estrangeira, é obrigado a falar a

língua do país, em vez de ficar balbuciando a partir das regras que se

aprendem na escola. Essa pessoa vai ler sem dicionário. Quando tiver visto

trinta vezes a mesma palavra, em contextos sempre diferentes, estará mais

segura de seu sentido do que se tivesse consultado o verbete com a lista de significados, geralmente estreita demais para dar conta das alterações de

sentido em cada contexto e vaga demais em relação às nuances inalteráveis

que o contexto funda em cada caso (ADORNO, 2003, p.30).

Como o ensaio está aberto à experiência, consequentemente, se expõe ao erro

através das tentativas de conhecer o real. Isso coloca em questão o pensamento

estabelecido, que se encontra nos locais seguros da certeza. O ensaio renuncia ao ideal

de uma certeza indubitável; propõe que o verdadeiro pensamento deve marchar para

além de si mesmo, superando a obsessão em buscar apenas fundamentos inabaláveis.

Destaca Adorno que o ensaio desafia os ideais de clareza e da certeza livre da dúvida

que se encontram presentes no Discurso do Método, de René Descartes. Este quer

colocar em questão todo o conhecimento que recebeu da tradição através da razão;

propõe que a racionalidade humana é a fonte mais pura para se chegar ao verdadeiro

conhecimento. Assim, aponta Descartes: “o que mais me contentava nesse método era o

fato de que, por ele, estava seguro de usar em tudo minha razão, se não perfeitamente,

ao menos o melhor que eu pudesse” (1987, p.40).

O método cartesiano se constitui a partir de quatro regras básicas que objetivam

alcançar o conhecimento verdadeiro imune às dúvidas. Adorno analisa tais regras, de

forma crítica, confrontando-as com o ensaio. A respeito da segunda regra, cujo foco é a

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análise, Descartes propõe dividir cada uma das dificuldades do objeto em tantas

parcelas quantas possíveis para melhor resolvê-las (Cf. IBID., p.37-38). O frankfurtiano

se contrapõe a essa perspectiva, apresentando que os artefatos, objeto do ensaio,

afrontam o procedimento analítico, ou seja, “resistem à analise de elementos e somente

podem ser construídos a partir de sua ideia específica” (2003, p.31). A totalidade não se

deve hipostasiar em algo primordial, tampouco se devem hipostasiar os elementos,

produtos da análise. O ensaio salvaguarda uma ação recíproca em que “os momentos

não devem ser desenvolvidos puramente a partir do todo, nem o todo a partir dos

momentos” (IBID., p.32).

Sobre a terceira regra cartesiana, segundo a qual é preciso conduzir, por ordem,

os “pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para

subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos”

(DESCARTES, 1987, p.38). Diz Adorno ser o ensaio o completo oposto disso, na

medida em que parte do mais complexo e não do previamente familiar. Essa aparente

ingenuidade, por abraçar as causas mais difíceis, se torna mais salutar que o pensamento

que se julga maduro, e que deseja entender as coisas mais simples. Para o filósofo o

ensaio desconstrói a simplificação com a qual o mundo é visto:

O ensaio obriga a pensar a coisa, desde o primeiro passo, com a

complexidade que lhe é própria, tornando-se um corretivo daquele

primitivismo obtuso, que sempre acompanha a ratio corrente. Se a ciência,

falseando segundo seu costume, reduz a modelos simplificadores as

dificuldades e complexidades de uma realidade antagônica e

monadologicamente cindida, diferenciando posteriormente esses modelos por

meio de um pretenso material, então o ensaio abala a ilusão desse mundo

simples, lógico até em seus fundamentos, uma ilusão que presta

comodamente a defesa do status quo (ADORNO, 2003, p.33).

A respeito da quarta regra cartesiana, que propõe fazer, em toda parte,

enumerações tão completas e revisões tão gerais com a certeza de nada omitir

(DESCARTES, 1987, p.38), Adorno percebe, nesse procedimento, o princípio

sistemático, ao qual se contrapõe com sua concepção de antissistema que valoriza os

aspectos infinitamente diversos do objeto, que podem ser trabalhados através do ensaio

devido ao seu caráter fragmentário. A proposta da regra cartesiana de fazer revisões

gerais e enumerações implica reconhecer que o objeto se entrega, sem reservas, aos

conceitos; bem como representa que a exposição pode ser feita a partir de uma cadeia

contínua de deduções, suposição que se aproxima da filosofia da identidade.

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A perspectiva cartesiana se transforma numa arbitrariedade axiomática que

precisa ser estabelecida para satisfazer a necessidade metodológica e garantir a

plausibilidade do todo. A pretensão de exposição do objeto, através do pensamento

contínuo e completo, que não deixa escapar nada, camufla seus antagonismos e

contradições. Para Adorno, o ensaio opera dentro de uma perspectiva diferente:

É inerente à forma do ensaio sua própria relativização: ele precisa se

estruturar como se pudesse, a qualquer momento, ser interrompido. O ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele

encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a

realidade fraturada. A harmonia uníssona da ordem lógica dissimula a

essência antagônica daquilo sobre o que se impõe. A descontinuidade é

essencial ao ensaio; seu assunto é sempre um conflito em suspenso (2003,

p.35).

Escrever, utilizando a forma do ensaio, significa compor experimentando,

representa virar, revirar, questionar, apalpar o objeto, para atacá-lo de diversos lados e,

assim, vislumbrar suas diferentes facetas. O procedimento do ensaio não deixa de

suscitar um mal-estar devido ao seu caráter de inconclusão, pois “a constelação do

ensaio não é tão arbitrária quanto pensa aquele subjetivismo filosófico que desloca para

a ordem conceitual a coerção própria à coisa” (IBID., p.36). O ensaio é determinado

pela unidade de seu objeto, juntamente com a unidade entre teoria e experiência que o

objeto acolhe; é delimitado pelo conteúdo que não postula a identidade entre coisa e

pensamento, pois procura aquilo de singular que escapa à totalidade.

Adorno destaca que o ensaio possui, ao mesmo tempo, as características de ser

mais aberto e mais fechado do que gostaria o pensamento tradicional. É aberto no

sentido em que nega qualquer sistemática, sustentando-se por sua rigorosa disposição. É

fechado porque trabalha enfaticamente a forma de exposição, reconhece a não-

identidade entre o modo de representação e a coisa. Para o filósofo (Ibid., p.37), nesse

ponto “o ensaio é semelhante à arte, no resto ele se aproxima da teoria, em razão dos

conceitos que nele aparecem, trazendo de fora não só seus significados, mas também

seus referenciais teóricos”. É certo que o ensaio possibilita ter extrema cautela no

relacionamento com a teoria e com o conceito, pois prioriza o contato com os seus

objetos.

O ensaio é qualificado por Adorno como a forma crítica por excelência, pois é

absolutamente crítico com as teorias, inclusive com aquelas que podem ter constituído

seu ponto de partida; e, ao mesmo tempo, questiona a ideologia. Ele possibilita tornar o

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objeto visível a partir de diferentes perspectivas não captadas pelas teorias. A acusação

de que carece de um ponto vista sólido e de que possui demasiado relativismo

demonstra, segundo o filósofo, “aquela concepção de verdade como algo pronto e

acabado” (2003, p.38). Desse modo, o ensaio possibilita encontrar, de modo salutar, o

elemento dialético para criticar o abstrato conceito.

A reflexão suscitada pelo ensaio se aproxima da antiga retórica em que o

elemento expressivo é relevante. A retórica se constituía como um pensamento adaptado

à linguagem e tinha como objetivo a satisfação do ouvinte, através da autonomia da

exposição. Desses elementos comunicativos autônomos, o ensaio conserva alguns

vestígios que, por sua vez, são dispensados pela ciência. Nesse sentido, assevera

Adorno que o ensaio permite ao objeto a liberdade para ser ele mesmo, possibilita a

reflexão sem violentar o objeto:

No ensaio, as satisfações que a retórica quer proporcionar ao ouvinte são

sublimadas na ideia de uma felicidade da liberdade face ao objeto, liberdade

que dá ao objeto a chance de ser mais ele mesmo do que se fosse inserido

impiedosamente na ordem das ideias (ADORNO, 2003, p.41).

O ensaio se aproxima da lógica musical que não se confunde com a lógica

discursiva, para conferir à linguagem algo que ela perdeu pelo discurso lógico, para

superar, em astúcia, no interior de suas próprias formas, a insistência da expressão

subjetiva. Isso não significa que ele seja desprovido de lógica, segue critérios lógicos,

não dando espaço para simples contradições, apenas deixa transparecer aquelas que

estão fundamentadas no próprio objeto. O ensaio utiliza-se da parataxe, isto é, opera por

coordenação dos elementos em vez de subordiná-los, dando-lhes autonomia em relação

aos outros. Nesse sentido, ele se torna dinâmico devido à articulação da tensão entre

exposição e exposto; entretanto, também é mais estático por ter uma construção baseada

na justaposição dos elementos.

Por fim, o que confere ao ensaio sua marca diferencial é a capacidade de não

proceder automaticamente, mas, a todo o instante, refletir sobre si mesmo. O ensaio

procura detectar os pontos cegos de seus objetos; deseja, segundo Adorno, “desencavar,

com os conceitos, aquilo que não cabe em conceitos” (2003, p.44). Procura revelar que

a rede de objetividades dos conceitos pertence a um arranjo meramente subjetivo. Tenta,

com isso, liberar as forças que estão latentes. As contribuições estéticas que o ensaio

fornece possibilitam reeducar o demasiado racionalismo instrumentalizado com o qual

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os conceitos são tratados; é salutar para remediar a exacerbada abstração que se esquece

da complexidade do real.

2.2. A Dialética Negativa como acolhimento do não-conceitual

Uma das principais obras de Adorno, Dialética Negativa, surge em 1966, mas

sua temática central sobre a negatividade já se fazia presente em outros textos, como por

exemplo, no livro Minima Moralia, no qual o autor pontua que “o espírito não é como o

Positivo que desvia o olhar do Negativo (...); não, ele só é este poder quando encara de

frente o Negativo e nele permanece” (1993, p.9). Logo no prefácio da Dialética

Negativa, Adorno destaca que a expressão dialética negativa se torna um atentado à

tradição; sua tarefa é libertar a dialética da natureza afirmativa, que se consolidou de

Platão a Hegel (Cf. 2009, p.7).

A intenção da pesquisa nesse quesito é, então, explorar alguns aforismos da obra

Dialética Negativa, com o intuito de perceber a crítica de Adorno à racionalidade que

reificou os conceitos, bem como captar as contribuições estéticas nela presentes, pois,

no dizer de Türcke (2004a, p.51), a “dialética negativa é um tema com inúmeras

variações. Só que, sendo música intelectual do século XX, ela não expõe seu tema antes

de entrar no ciclo das variações”.

Adorno, no prefácio da Dialética Negativa, destaca um comentário de Benjamin,

que diz sobre a necessidade de atravessar o deserto da abstração para alcançar o

filosofar concreto. Com isso, o autor ilustra e introduz um tema caro ao seu

pensamento: a ideia de atingir a complexidade do real que não se deixa abarcar pelo

abstrato conceito que precisa ser superado. A dialética negativa se constitui como

antissistema, visto que, sem escapar a uma lógica consistente, se esforça “por colocar no

lugar do princípio de unidade e de domínio totalitário do conceito supraordenado a ideia

daquilo que estaria fora do encanto de tal unidade” (2009, p.8).

A dialética negativa questiona as normas que visam adequar pensamento e

objeto como forma de explicação e organização do mundo. O intelecto procura entender

a realidade a partir das perspectivas que lhe são apresentadas; tais perspectivas, porém,

mudam de aparência, não permitem aos conceitos uma visão congruente com a

realidade a qual deseja expressar. Para Türcke (2004a, p.50-51), isso demonstra que o

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“intelecto está condenado ao equívoco”, sendo que o papel da dialética é ser a

autorreflexão do equívoco, para superar suas armadilhas. Além disso, a “dialética

negativa não é senão lembrar e enfrentar a insuficiência do conceito”.

O pensamento dialético tem sua expressão e sistematização maior na filosofia de

Hegel. Sem dúvida, a dialética negativa só foi possível como uma contrapartida à

dialética hegeliana, a qual possui um caráter positivo. Isso significa que, para Adorno, a

negação tem um peso maior do que aquele dado por Hegel. A dialética negativa deve

perseguir a disparidade existente entre pensamento e coisa; não se restringir à

ingenuidade que identifica realidade e pensamento. No aforismo A dialética não é

nenhum ponto de vista, o filósofo destaca que “os objetos não se dissolvem em seus

conceitos” (2009, p.12). Questiona a forma de pensar que se porta como trabalho de

identificação; apresenta ser ilusão a busca por uma identidade total, que enfatiza,

sobremaneira, o princípio do terceiro excluído, que visa extirpar do pensamento seus

aspectos contraditórios. Para o frankfurtiano, a contradição é designada por “não-

idêntico” e o papel da dialética é torná-lo consciente, isto é, não deixar de lado a

multiplicidade do diverso (IBID., p.13).

A análise do particular possui extrema importância na dialética negativa, que

repensa a noção de totalidade presente na dialética de Hegel. Para este, o verdadeiro é o

todo, em contrapartida, Adorno já acentuava, em seu livro Minima Moralia, que “o todo

é o não verdadeiro” (1993, p.42). No aforismo Sobre a possibilidade da filosofia, na

Dialética Negativa, o autor retoma e analisa o papel da filosofia, que parecia estar

ultrapassada, porque as transformações práticas que, outrora, ela prometera não se

cumpriram. A partir disso, a dimensão filosófica interpretativa ressurge com novas

conotações, obrigando a filosofia “a criticar a si mesma sem piedade” (2009, p.11), sem

se metamorfosear em ciência particular. O filósofo questiona o pensar que, de forma

ingênua, se apega à visão de totalidade esquecendo-se das composições mais íntimas

que a permeiam; critica a filosofia que quer “justificar a sua própria posição em uma

totalidade que ela monopoliza como seu objeto”, porque “somente a filosofia que se

liberta de tal ingenuidade merece continuar sendo pensada” (IBID., p.12).

Adorno destaca, de forma clara, no aforismo O interesse da filosofia, que a

dialética negativa deve enfrentar o não-conceitual. Ao se referir a Wittgenstein, aponta

que “seria preciso dizer o que não pode ser dito” (2009, p.16). Isso proporciona um

caráter dialético ao pensamento que, a partir do próprio conceito, procura ultrapassá-lo

para atingir as dimensões desprezadas, rejeitadas e não abarcadas. Para o frankfurtiano,

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“a utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual com conceitos, sem equipará-los

a esses conceitos” (IBID., p.17). Ressalta que no pensamento de Hegel há um

desinteresse pelo não-conceitual:

Com base em sua situação histórica, a filosofia tem o seu interesse verdadeiro

voltado para o âmbito em relação ao qual Hegel, em sintonia com a tradição,

expressou o seu desinteresse: o âmbito do não-conceitual, do individual e

particular; aquilo que desde Platão foi alijado como perecível e insignificante e sobre o que Hegel colou a etiqueta de existência pueril. O tema da filosofia

apontaria para as qualidades por ela degradadas como contingentes e

transformadas em quantidade negligenciável. Para o conceito, o que se torna

urgente é o que ele não alcança, o que é eliminado pelo seu mecanismo de

abstração, o que deixa de ser um mero exemplar do conceito (ADORNO,

2009, p.15).

O autor reconhece no aforismo Desencantamento do conceito que nenhuma

filosofia, nem mesmo um empirismo extremo, seria capaz de “colar as coisas

particulares no texto” (IBID., p.18); o conceito, porém, não pode operar de modo tão

fetichista com pretensões a se posicionar como uma totalidade autossuficiente. Os

conceitos são necessários, o importante é não torná-los absolutos, para manter a

perspectiva que visa àquilo que está para além do abstrato. Tal autoconsciência permite

a libertação do fetichismo conceitual, justamente porque, pela mediação da reflexão

filosófica, é possível assegurar o não-conceitual no conceito. Além disso, “a filosofia

que reconhece esse fato, que extingue a autarquia do conceito, arranca a venda de seus

olhos” (IBID., p.19). O conceito jamais deixará de ser conceito, não pode, porém,

perder de vista que está entrelaçado em um todo não-conceitual. Assim, “alterar essa

direção da conceptualidade, voltá-la para o não-idêntico, é a charneira da dialética

negativa” (IBID.).

A filosofia deve favorecer o mergulhar nas realidades heterogêneas, sem a

redução a categorias pré-fabricadas. Adorno destaca no aforismo Infinitude que “o

desencantamento do conceito é o antídoto da filosofia” (IBID.). Isso impede que ela não

se autoabsolutize; mas considere, como fragmentária, a forma com a qual abarca a

realidade, bem como supere a ilusão em considerar finita suas determinações. O autor

questiona os filósofos tradicionais que julgam possuir seu objeto “como um objeto

infinito e, assim enquanto filosofia se torna finita, conclusiva” (2009, p.19-20). É

preciso repensar a crença em que o infinito está esboçado e preso no plano abstrato da

razão:

O que leva a filosofia ao esforço arriscado de sua própria infinitude é a

expectativa não-garantida de que todo singular e todo particular por ela

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decifrados representem em si, como a mônada leibniziana, aquele todo que,

enquanto tal, constantemente lhe escapa uma vez mais; com certeza muito

mais com base em uma desarmonia previamente estabilizada do que em uma

harmonia. A objeção metacrítica à prima philosophia é ao mesmo tempo a

objeção à finitude de uma filosofia que incensa com belas palavras a

infinitude, mas não atenta para ela. O conhecimento não possui nenhum de

seus objetos completamente. Ele não deve promover o aparecimento do

fantasma de um todo (IBID., p.20).

Destaca Adorno que a filosofia contém algo que escapa às tentativas de sua

cientificização, contra o domínio total do método, a saber, o momento do jogo. Este

fomenta justamente a postura não ingênua que reconhece o “quão pouco alcança o que é

pensado” (ADORNO, 2009, p.21). Colocar em evidência algo lúdico não significa

descaracterizar a seriedade com a qual os temas filosóficos são pensados; mas é dar

possibilidade para entrarem em cena elementos estéticos que ajudem a reeducar a

racionalidade. Nesse sentido, o momento estético “não é acidental para a filosofia”

(IBID.), que aprende com a arte, sem nela se metamorfosear, a lidar com o não-

conceitual. Contudo, o pensamento alegre e jovial não deve esquecer-se da configuração

histórica de seus problemas para atingir, com profundidade, a realidade, possibilitando,

na formação das ideias, sempre novos ares.

O autor salienta que a dialética negativa favorece recuperar o momento

expressivo da filosofia. A expressão, que possui um cunho estético, é incorporada ao

discurso filosófico. Para Duarte (2007b, p.19), tal iniciativa adorniana tem como pano

de fundo o “reconhecimento da situação presente de predomínio evidente da

tecnociência em detrimento do pensamento reflexivo”. A dialética negativa possibilita, a

partir do núcleo do discurso filosófico, expressar o sofrimento que atinge o ser humano

massacrado pela opressão tecnológica; as dores experimentadas neste mundo são

elevadas ao âmbito do conceito:

Lá onde o pensamento se projeta para além daquilo a que, resistindo, ele está

ligado, acha-se a sua liberdade. Essa segue o ímpeto expressivo do sujeito. A

necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade. Pois o

sofrimento é objetividade que pesa sobre o sujeito; aquilo que ele

experimenta como seu elemento mais subjetivo, sua expressão, é

objetivamente mediado (ADORNO, 2009, p.24).

O momento expressivo permite pôr em palavras a experiência inominável da

dor, possibilita que o conceito represente o que é não-conceitual. A racionalização

procura justificar o sofrimento; em contrapartida, a filosofia não deve apenas explicar,

deduzir e compreender a dor; mas transformá-la, manifestando todo inconformismo

perante as dores do mundo, pois o verdadeiro pensar traz à tona as dores reprimidas pela

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racionalidade instrumentalizada. No aforismo O sofrimento é físico, Adorno destaca a

importância de que o pensamento reconheça o sofrimento:

O mais mínimo rastro de sofrimento sem sentido no mundo experimentado

infringe um desmentido a toda a filosofia da identidade que gostaria de desviar a consciência da experiência: “Enquanto ainda houver um mendigo,

ainda haverá mito”, é por isso que a filosofia da identidade é, enquanto

pensamento mitologia. O momento corporal anuncia ao conhecimento que o

sofrimento não deve ser, que ele deve mudar (2009, p.173).

No aforismo Apresentação, o filósofo esclarece que o momento expressivo da

apresentação filosófica não é algo indiferente e extrínseco à sua forma, pois o que é

aconceitual apenas é objetivado por intermédio da apresentação de uma linguagem

discursiva. Para o autor, se “a filosofia se abstém do momento expressivo e do

compromisso com a apresentação, ela é assimilada à ciência” (IBID., p.24). Isso

significa que o pensar filosófico possui peculiaridades que o distinguem da

racionalidade científica. A valorização do momento expressivo não significa descuido

em relação ao acuro lógico, que poderia gerar uma situação dicotômica. O

aprimoramento lógico é conquistado, laboriosamente, por intermédio da expressão. Se a

linguagem é a forma objetiva para apresentar o pensamento, então, o rigor da expressão

é importante, pois segundo Adorno “o que é dito de modo frouxo é mal pensado” (2009,

p.24). A valorização da expressão favorece repensar a maneira de relacionar com a

multiplicidade do real, sem a redução a sistemas absolutos e estáticos.

O processo de construção de sistemas é analisado por Adorno no aforismo

Posição em relação ao sistema, que se refere, criticamente, a toda e qualquer

sistematização que se torne absoluta, autoritária e autocrática. O filósofo exemplifica

que os sistemas emergentes, do século XVII, surgiram para compensar a

desestabilização provocada pela queda do mundo feudal e dos valores escolásticos,

manifestando a necessidade de uma nova ordem que estivesse de acordo com a razão

burguesa. O heterogêneo é submetido ao poder nivelador da ratio. Isso exacerba a

ordem racional que se torna absurda. A respeito disso, afirma o autor (IBID., p. 27):

A ratio que para se impor como sistema, eliminou virtualmente todas as

determinações qualitativas às quais se achava ligada caiu em uma contradição

irreconciliável com a objetividade que violentou, pretendendo compreendê-

la. Ela se distanciou tanto mais amplamente dessa objetividade quanto mais

plenamente a submeteu aos seus axiomas, por fim, ao axioma da identidade.

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A voracidade do pensamento que se estrutura na forma de sistema é apresentada

por Adorno no aforismo Idealismo como fúria, que destaca que “o sistema é a barriga

que se tornou espírito, a fúria é a marca de todo e qualquer idealismo” (2009, p.28). A

noção de idealismo, muito mais que uma corrente filosófica, demonstra toda forma de

pensamento, ideias e valores universais, que no trato com as coisas, procura devorar a

realidade que ameace sua coesão. O que o sistema procura é eliminar o detalhe, as

dimensões particulares, o não-idêntico, para se firmar na segurança do universal; de

forma semelhante ao animal faminto que, enlouquecido pela fome, ataca sua vítima. O

sistema que deseja tudo englobar, absorve toda diferença para atingir, de maneira

niveladora, o universal; realiza uma “fúria racionalizada contra o não-idêntico” (IBID.,

p.28).

O sistema transforma o pensamento para compreender o mundo de forma

hegemônica, a partir de ideias dominantes e repressivas, que projetam, de maneira

deformada, um estado pacificado. Adorno considera que, ao se contrapor ao sistema que

classifica os objetos em gavetas conceituais, por uma lógica universalizante, em

detrimento das características particulares, seria interessante um conceito filosófico de

sistema que se colocasse acima de uma sistemática meramente científica, que exige

exposição ordenada e organizada de uma estrutura rígida de pensar.

No aforismo Sistema antinômico, o filósofo destaca que a criação de sistemas é

produto da ratio, isto é, constituído a partir de uma ação racional; através da criação de

conceitos, apenas consegue nomear e descrever fragmentos da coisa, sem mostrar outras

faces que escapam aos conceitos. Isso transforma o pensamento em algo estático,

excluindo o exercício do pensar, para transformá-lo em algo absoluto. Pensar significa,

antes de qualquer coisa, negar, resistir ao que é imposto. Adorno aponta, de forma

crítica, as características do sistema:

O princípio do eu fundador de sistemas, o método puro pré-ordenado a todo e qualquer conteúdo, sempre foi o princípio da ratio. Essa não é limitada por

nada que venha de fora, nem mesmo pela assim chamada ordem espiritual.

Atestando em todos os seus níveis uma infinitude positiva a seu princípio, o

idealismo transforma a constituição do pensamento, sua autonomização

histórica, em metafísica. Ele elimina todo heterogêneo. Isso determina o

sistema como puro devir, como puro processo, e, por fim, como aquela

produção absoluta que Fichte – nessa medida o autêntico pensador

sistemático da filosofia – declara como sendo o pensamento (2009, p.30).

O filósofo destaca que mesmo as aspirações husserlianas antissistemáticas, que

se instituíram sob o nome de ontologia, da qual ramificou a Ontologia Fundamental,

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retrocederam ao sistema, preço pago pela demasiada formalização. A força especulativa

para lançar pelos ares o indissolúvel é a força da negação. As categorias que se tornam

críticas ao sistema são aquelas que concebem o particular. Diz o frankfurtiano que “só

os fragmentos enquanto forma da filosofia seriam capazes de entregar às mônadas

projetadas de maneira ilusória pelo idealismo o que lhes é devido. Elas seriam

representações no particular da totalidade irrepresentável enquanto tal” (IBID., p.32).

O pensamento antissistemático possui afinidade com a dialética enquanto crítica

ao sistema, pois não deixa esquecer aquilo que está fora do sistema. Destaca Adorno, no

aforismo Aquilo que dá vertigem, que uma dialética não mais colada à identidade causa

vertigens, isto é, questiona, de tal forma, a compreensão sobre o real, a produção do

conhecimento, que faz a cabeça girar como a roda de um moinho. Os aprofundamentos

a respeito do objeto superando os axiomas sedimentados, bem como a postura de estar

aberto para o diferente, provocam um choque nas dimensões que a razão julga prever.

Para o filósofo, “a vertigem que isso provoca é um índex veri9; o choque do aberto, a

negatividade com a qual ele se manifesta necessariamente no que é previsto e sempre

igual, não-verdade apenas para o não-verdadeiro” (IBID., p.36). Reconhecer que a

verdade é passível de ser perdida não é tarefa simples, é o exercício radical de avaliar os

pensamentos que se pautam em consensos seguros.

No aforismo Momento qualitativo da racionalidade, Adorno prossegue sua

crítica ao processo de racionalização. Destaca que um pensamento que não se pensa,

amputa a si mesmo entrando em desacordo. A tendência à quantificação própria da ratio

revela a falta de autorreflexão. Resgatar o contato com o objeto representa fazer justiça

ao momento qualitativo, pois “a objetivação científica, em acordo com a tendência à

quantificação intrínseca a toda ciência desde Descartes, tende a excluir as qualidades,

transformando-as em determinações mensuráveis” (IBID., p.44). A racionalidade se

torna cega quando se prende apenas aos dados quantitativos se esquecendo dos

qualitativos. O filósofo destaca que, a respeito dessa questão, Hegel já acentuava os

aspectos quantitativos mesmo em um período em que tal postura ainda não exercia a

supremacia, “para ele, certamente em sintonia com a tradição científica, a verdade da

própria qualidade é a quantidade” (2009, p.45).

O conceito, por ser produto da razão, está fundido com o não verdadeiro, com o

princípio opressor; isso ofusca sua capacidade crítico-cognitiva. Diz Adorno que

9 Do latim: indício de verdade

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“verdadeiros são apenas os pensamentos que não compreendem a si mesmo” (IBID.,

p.48), questionando justamente o que, de fato, os conceitos podem captar, priorizando o

ato de refletir que escapa à cristalização do pensar padronizado. O autor pontua que é

preciso captar, através do exercício linguístico, a história coagulada nas coisas, e isso

ocorre através da utilização dos conceitos por um procedimento constelatório. Sobre

essa questão, explica que, no aforismo Coisa, linguagem, história, “o erro determinável

de todo conceito obriga a que se evoque outros; é daí que emergem aquelas constelações

para as quais unicamente passa alguma coisa da esperança contida no nome” (IBID.,

p.53).

O procedimento constelatório é outra categoria estética que causa, segundo

Duarte (2007b, p.25), grande impacto na Dialética Negativa, dado que “Adorno aponta

para a capacidade de a constelação iluminar o que é específico no objeto, o qual é

indiferente, quando não destrutivo, para o método classificatório habitual”. A

constelação constitui uma alternativa ao conhecimento no sentido convencional,

possibilitando que os conceitos reúnam, em torno de si, a coisa a ser conhecida. O

procedimento constelatório conquista, por meio da linguagem, a objetividade através da

relação na qual coloca os conceitos centrados nas coisas. A respeito dessa questão,

aponta Adorno no aforismo Constelações:

As constelações só representam de fora aquilo que o conceito amputou no

interior, o mais que ele quer ser tanto quanto ele não o pode ser. Na medida

em que os conceitos se reúnem em torno da coisa a ser conhecida, eles

determinam potencialmente seu interior, alcançam por meio do pensamento aquilo que o pensamento necessariamente extirpa de si (ADORNO, 2009,

p.141).

O filósofo, no aforismo Indissolubilidade do algo, prossegue sua crítica à razão

objetivada em sistema. O processo de conceitualização do objeto não atinge seu

particular concreto, o que se diz são apenas generalidades; aquilo que não se encaixa

nas operações conceituais é deixado de lado. O autor designa esse algo indissolúvel nos

procedimentos lógicos por resíduo metalógico e afirma que “a possibilidade de o

pensamento se livrar desse caráter coisal por meio da forma do „em geral‟, ou seja, a

suposição de uma forma absoluta, é ilusória” (IBID., p.119). Nesse sentido, embora os

resíduos sejam desprezados, continuam presentes nas operações lógico-conceituais,

mesmo que recalcados. Permanece no pensamento o impulso que aponta, para além de

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si mesmo, a lembrança do não-conceitual. Para Türcke (2004a, p.54), a razão deve

superar a forma ilusória com a qual julga captar o real:

Pensar não é senão transformar realidade em conceitos. Mas é justamente

este processo de transformação que tende a iludir o pensamento a respeito de seu próprio alcance, sugerindo-lhe uma capacidade de se encaixar sem

resíduo a realidade em suas gavetas conceituais, ou seja, sugerindo-lhe a

congruência de seus conceitos e da realidade por eles captada.

Para Adorno, no aforismo Sobre a dialética da identidade, o fundamento último

do princípio de identidade encontra-se no princípio de troca. Este reduz o trabalho

humano ao abstrato conceito universal do tempo médio de trabalho, que se vincula ao

princípio de identificação, sem o qual não haveria troca. O princípio de identificação

“tem na troca o seu modelo social, e a troca não existiria sem esse princípio; por meio

da troca, os seres singulares não-idênticos se tornam comensuráveis com o desempenho,

idênticos a ele” (ADORNO, 2009, p.128).

A troca de equivalentes constitui-se, na verdade, como a troca de desiguais; na

apropriação da mais valia do trabalho, a troca livre e justa jamais existiu; o princípio de

identidade esconde a exploração existente nas relações sociais. O filósofo percebe e

desmascara que na troca do igual se esconde o desigual; o princípio de identidade

reprime e esconde as contradições do real; mantém as metas de dominação. Nesse

sentido, a “identidade é a forma originária da ideologia” (IBID., p.129). Sobre a

categoria de identidade, no pensamento de Adorno, vale destacar o seguinte comentário:

Para Adorno, pois, a riqueza da dialética negativa não está apenas em mostrar

seus momentos paradoxais e ambíguos, mas em tentar encontrar no coração

desses momentos os apelos de sua historicidade. Assim, na análise da

categoria da identidade, Adorno enfatiza sua perspectiva de negatividade

enquanto expressão de um presente dominado pela razão instrumental,

analisa esse momento presente em sua veracidade e/ou falsidade, se

comparado com seu passado; e na denúncia radical do presente aponta a

esperança de um futuro redentor e a luta, no momento, quase inglória no

sentido de conquistá-lo (PUCCI; ZUIN; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2008,

p.89).

No aforismo Objetividade da contradição, Adorno analisa a questão da

contradição apontando que tal questão não se caracteriza simplesmente como um erro

subjetivo; a contradição é aquilo que enfurece a reflexão predominante; é incompatível

com a lógica predominante que visa à pureza da consonância formal do juízo. A

contradição dialética não é mera projeção de uma formação conceitual infeliz sobre a

coisa, nem uma metafísica desvairadamente sangrenta. Para o autor, “não importa o que

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venha a se apresentar como contraditório: a experiência impede que ele seja aplanado na

unidade da consciência” (2009, p.132).

O mundo envolvido em contradições revela que as coisas estão num estado de

falsidade. Para Türcke, as contradições entre mundo e pensamento revelam-se como um

assunto abismal, a realidade inteira se encontra num estado contraditório. Assim, “o

mundo continua „falso‟ enquanto envolvido em contradições, e a contradição não é

senão falta de reconciliação” (2004a, p.54). Toda carência e dor representam, de forma

elementar, a contradição, ou seja, a dor consiste em contradizer a própria existência.

Desse modo, “a autorreflexão, no sentido adorniano, é a irmã privilegiada da dor,

expressando por conceito e linguagem o que a dor exprime por gritos” (IBID., p.55).

Adorno evidencia a existência da contradição presente no princípio de troca, porque, ao

mesmo tempo em que visa elevar as forças produtivas da sociedade, também aumenta as

possibilidades de sua aniquilação. Para o filósofo, a dialética não deve diluir ou reprimir

o momento contraditório, mas perseguir a inadequação entre coisa e pensamento:

O conhecimento dialético não tem, como seus adversários lhe imputam, que

construir de cima contradições e continuar progredindo por meio de sua

dissolução, apesar de Hegel por vezes proceder dessa forma. Em vez disso,

ela tem por tarefa perseguir a inadequação entre pensamento e coisa; experimentá-la na coisa. A dialética não precisa se deixar intimidar pela

acusação de estar possuída pela ideia fixa do antagonismo objetivo, apesar de

a coisa já estar pacificada; nada singular encontra a sua paz no todo não-

pacificado (2009, p.133).

A dialética negativa é definida por Türcke como lógica do desmoronamento,

pois nenhum conceito é capaz de se manter homogêneo e unívoco; mas se encontra em

conjuntos não-conceituais, não-lógicos que desmoronam a suposta pureza e autarquia

conceitual que está castigada por mil equívocos. A dialética negativa destrói o equívoco

que prende a interpretação do mundo, em gavetas conceituais, dentro de uma

univocidade mentirosa que apaga as contradições; ao mesmo tempo, coloca em suspeita

o princípio de identidade, repensando os conceitos objetivados pelo sujeito cognoscente.

Nesse sentido, aponta Türcke (2004a, p.56):

A lógica do desmoronamento não é o desmoronamento da lógica. É, ao contrário, sua autorreflexão, que significa ampliação da lógica para além de

si mesma: sua aufhebung, quer dizer, seu fim enquanto disciplina própria,

mas, em compensação, a agudização de sua pretensão.

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Uma das fórmulas mais simplificadoras que definem a Dialética Negativa é a

que supõe que ela seja uma dialética sem síntese . O que está em questão no pensamento

adorniano é o ato violento que permeia a síntese, pois, como explica Türcke, “não há

síntese senão subsumindo, abreviando, desfigurando alguma coisa, e subsunção, em

termos sociais, é subjugação, abstração e desrespeito, enquanto desfiguração é

mutilação” (2004a, p.58).

A síntese capta as coisas, encaixando-as, detendo-as; não faz, porém, a justiça

necessária para abrir os diferentes sentidos presentes nos objetos. Essa concepção faz a

dialética voltar contra seu mestre Hegel que privilegia, sobremaneira, a síntese como

instância máxima, considerada como algo superior aos momentos sintetizados. Para

Türcke (Ibid., p.59), a síntese tornou-se “sacralizada, justificada, enquanto motor divino

da dialética, ao passo que Adorno não fez senão adiantar sua desmistificação”.

No aforismo Síntese, Adorno afirma que “a síntese é a determinação da

diferença que sucumbiu, „desapareceu‟ no conceito” (2009, p.137). Isso significa

repensar a ilusão de apoderar-se do múltiplo; assim, é preciso superar as práticas

sintetizantes que fazem recair na dominação mítica.

Desse modo, a dialética negativa fornece elementos importantes para se repensar

o domínio exercido pela racionalidade que cristalizou o pensamento em sistemas,

reificando o pensar. Valorizar o não-idêntico, dar voz àquilo que escapa ao abstrato

conceito significa reavaliar o papel da razão que visa apenas ao domínio do real. A

dialética negativa desconstrói a ilusão do pensamento que julga conseguir captar a

complexidade do real; ao mesmo tempo, resgata, esteticamente, o momento expressivo

do pensar que possibilita dar voz ao não-conceitual.

2.3. Arte e filosofia - a estética como contraponto à

racionalidade

A filosofia de Theodor Adorno realiza uma dura crítica ao processo de

racionalização da cultura Ocidental que, ao propagar o domínio da natureza, ofuscou as

potencialidades humanas, pelo controle das formas de sentir, perceber e pensar o real. A

proposta adorniana, para se contrapor a tal lógica, que privilegia, sobremaneira, o

racional, sugere valorizar a experiência estética como uma possibilidade de pensar a

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realidade para além do enquadramento dominador da razão. Nesse sentido, o projeto

filosófico de levar o não-idêntico à expressão parece guardar maior parentesco com a

arte do que com a lógica discursiva. A experiência estética pode se tornar um caminho

facilitador à emancipação humana, pois, sem excluir a razão, dinamiza uma relação

equilibrada entre os elementos sensitivos, perceptivos e racionais, sem haver

predomínio de um sobre o outro. Desse modo, procura-se, neste ponto da pesquisa,

demonstrar que a experiência estética se torna contraponto à lógica da racionalidade

instrumental.

A palavra estética, etimologicamente, origina-se do grego aisthesis, que significa

faculdade de sentir, capacidade de compreender pelos sentidos. A experiência estética

valoriza a percepção, a dimensão racional e a sensorial. As reflexões sobre estética

procuram analisar a relação que os seres humanos estabelecem com as diferentes

expressões artísticas; os sentimentos e pensamentos provocados pelas artes tornam-se

seu principal objeto de estudo. A estética é comumente definida como o estudo do belo,

não se limita, porém, apenas a analisar a beleza, mas tudo o que é manifestado nas obras

de artes que possibilite despertar a sensibilidade humana. Adorno (1988, p.65), em um

aforismo do livro Teoria Estética, intitulado O conceito do Belo, assinala que a reflexão

estética não se restringe à teoria do belo:

A definição da estética como teoria do belo é pouco frutuosa porque o caráter

formal do conceito de beleza deriva do conteúdo global do estético. Se a

estética não fosse senão um catálogo sistemático de tudo o que é chamado

belo, não existiria nenhuma ideia da vida no próprio conceito do belo. No que visa a reflexão estética, o conceito de belo figura apenas como um momento.

A ideia de beleza evoca algo de essencial na arte sem que, no entanto, o

exprima imediatamente.

Ao definir a especificidade da arte, Adorno remete à sua historicidade, que é

caracterizada não de maneira linear, mas constituída por rupturas, que representam um

vínculo ao passado, uma contraposição ao presente e uma utopia para o amanhã. Assim,

o filósofo (Ibid., p.13) assinala a definição de arte na Teoria Estética no aforismo

Contra o problema da origem:

A definição do que é arte é sempre dada previamente pelo que ela foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende

ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se. Enquanto é preciso manter a sua

diferença em relação à simples empiria, ela modifica em si qualitativamente.

Muitas obras, por exemplo, representações culturais, metamorfoseiam-se em

arte ao longo da história, quando o não tinham sido. E muitas obras de arte

deixaram de o ser.

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A arte, para Adorno, só pode expor outra verdade se estiver separada da verdade

social, pois esta é ideológica e contraditória. A obra de arte, porém, é produto do artista

que está em contato com o todo social que, por sua vez, capta da realidade o conteúdo

para criar sua obra. Sendo assim, as obras de artes não estão ilesas das influências da

realidade danificada. Apesar disso, a verdade que a arte pode demonstrar desvela a

ilusão na qual a realidade se encontra. Isso ocorre porque ela possui uma lógica

imanente própria que subverte as imposições externas. Nesse sentido, aponta Márcia

Tiburi (1995, p.83-84):

A verdade da arte não é a verdade da razão tradicional, sua verdade está no

fato de ser ela mentira, ilusão, que em referência à ilusão do estado de coisas

real se torna verdade. Sua verdade é poder dizer que o existente engana (...).

A arte contém em si um momento racional, com elementos teleológicos

compreensíveis pela lógica tradicional, e outro momento de uma

racionalidade indecifrável por esta lógica, a qual Adorno trata como sendo a

lógica imanente da obra. Este momento de lógica diferenciado da lógica

formal da tradição aristotélica é fruto do momento não racional na arte que

dialeticamente se põe como verdade frente aquela lógica.

Apesar de a arte trazer em seu bojo elementos da realidade, sua autonomia se

constitui de forma importante no processo de resistência à realidade. A autonomia da

arte se faz necessária para demarcar e distinguir seu espaço, possibilitando salvaguardar

seu caráter crítico perante a realidade. Adorno compreende que, quanto mais a obra de

arte se dissocia da sociedade, mais escandalosamente subversiva ela se transforma; por

exemplo, a obra com mais caráter político é aquela inteiramente silenciosa a respeito da

política. Tal postura de resistência à realidade presente nas obras de arte é o que

expressa para o autor (1988, p.66) sua beleza, dado que “as obras de arte tornam-se

belas por força da sua oposição à simples existência”. Sobre a relação entre arte e

sociedade, comenta Verlaine Freitas (2008, p.26):

A arte, desse modo, afasta-se da sociedade para dela falar de modo crítico e mais verdadeiro. Entretanto, essa proximidade não é algo pacífico e seguro,

pois o isolamento da arte acaba atribuindo-lhe uma dimensão ideológica, pois

deixa a realidade como está. O engajamento político da arte, na quase

totalidade das vezes, é realizado à custa de sua dimensão artística

propriamente dita. Assim, a arte precisa correr o risco do isolamento total, se

pretende ter validade sui generis. A dimensão social da arte é então altamente

aporética, ou seja, sem saída. Não há como estabelecer uma norma para dizer

se a arte consegue firmar esse vínculo coletivo em segundo grau ou se ela se

perde em um isolamento insignificante. Somente a análise crítica das obras é

capaz de detectar se sua realização foi bem-sucedida, de tal modo que ela

contenha uma dimensão social.

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Para Adorno (1988, p.16, 19, 12), a relação entre arte e sociedade se pauta por

um forte vínculo, cujos “antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de

arte como os problemas imanentes da sua forma”. A arte acaba se tornando a “antítese

social da sociedade”, porque emerge da sociedade e, ao mesmo tempo, almeja suscitar a

transformação das instâncias dominadoras. A arte se assemelha à teoria da mônoda de

Leibniz, reflete o todo social sem possuir janelas para ele. Sobre essa questão, esclarece

o filósofo no aforismo da Teoria Estética Perda de evidência da arte:

As obras de arte destacam-se do mundo empírico e suscitam um outro com

uma essência própria, oposto ao primeiro como se ele fosse igualmente uma

realidade. Tendem, portanto, a priori para a afirmação, mesmo que se

comportem ainda de maneira trágica.

A arte para o frankfurtiano, por estabelecer uma relação com o mundo empírico,

tem a possibilidade de expressar o sofrimento que perpassa a existência dos seres

humanos. Para o autor, a arte não tem apenas a finalidade de proporcionar prazer; mas,

através de sua linguagem silenciosa, possibilitar a manifestação do sofrimento que o véu

da racionalidade oculta. Ao se analisar, por exemplo, o conceito “sofrimento”, o que de

fato, ele pode dizer da realidade concreta, não capta todas as particularidades que

afligem o vivente. A civilização estabelece padrões racionais que reprimem os anseios

mais profundos dos seres humanos; bem como seus impulsos corporais, sensíveis e

emocionais. A civilização instaurou uma cisão no indivíduo, isso por causa da

racionalidade que impõe padrões de domínio sobre sua corporeidade desejante.

Para Adorno, os conceitos criados pela racionalidade instrumentalizada são

reificados e inadequados, pois estão distantes da prática sensível. A razão almeja, pelo

conceito, identificar ideia e realidade, mas essa tarefa é impossível, porque a realidade é

complexa, composta por inúmeras peculiaridades que, por sua vez, são apenas captadas

pelos sentidos. Sendo assim, no dizer de Terry Eagleton, Adorno é um esteta no sentido

tradicional do termo, por ter a “preocupação em fazer voltar o pensamento ao corpo, em

emprestar-lhe um pouco da sensibilidade e plenitude do corpo” (1993, p.248).

Determinadas artes não são harmoniosamente belas e agradáveis como, por

exemplo, figuras humanas distorcidas; construções gramaticais sem sentido, músicas

sem melodia ou com acordes dissonantes podem impactar a sensibilidade com a

conotação de algo irracional; tal irracionalidade, porém, pode tornar-se mais verdadeira

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e racional diante da aparente racionalidade cotidiana que dissimula o sofrimento. Nesse

contexto, segundo Freitas (2008, p.29), a arte possibilita descortinar a realidade:

A vida no sistema capitalista consiste, então, em uma dupla irracionalidade:

recalca de forma exorbitante nossos desejos e obscurece nosso olhar para tal

absurdo. O prazer que a arte nos proporciona é o de descortinar este véu que

paira sobre nossa individualidade concreta, reprimida e abafada pelo esforço

individual de inserção na sociedade.

Também é relevante na filosofia estética de Adorno o conceito de mímesis10

que

representa o momento não propriamente racional no interior da obra de arte; seria o

outro da razão, seu contraponto. Toda obra de arte necessita de uma técnica para ser

elaborada e construída que, por sua vez, se pauta por critérios racionais; a mímesis,

porém, expressa o lado não racional de uma obra de arte que extrapola a lógica racional;

a arte, nesse sentido, seria “semelhante ao conceito sem conceito” (ADORNO, 1988,

p.115). O filósofo não sinaliza que a obra de arte é puramente irracional, mas não é

racionalizável dentro de uma lógica científica; a racionalidade estética é original.

Assim, “na senda da racionalidade e através desta, a humanidade percebe na arte o que a

racionalidade esqueceu e que a sua reflexão segunda relembra” (IBID., p.83). Dentro

desse aspecto, aponta Gerson Trombetta (1995, p.87):

O que distingue a arte e a faz ser algo mais é um terceiro elemento que,

segundo Adorno, na estrutura montada pela modernidade, só ela tem condições de comportar, a saber, a “voz” da natureza, a mímesis. Assim, a

racionalidade ou a lógica da arte deve ser entendida como obscura, regida

pelos princípios que figuram tensão em sua essência. Obscura no sentido que

o seu tipo de clareza, mensagem e distinção não é da mesma natureza que o

da lógica enquanto tal. Essa obscuridade traz uma clareza singular e

específica enquanto expressão. Sua “lógica” subverte a lógica para garantir a

sua condição de “porta-voz” do desconhecido e do incontrolável natural.

A palavra mímesis, proveniente do grego, significa imitar; expressa a

assimilação física do indivíduo à natureza, isto é, ser humano e natureza se

relacionavam de forma mimética, sem qualquer submissão à racionalidade. Nesse

sentido, os seres humanos criavam símbolos, imagens, rituais para se relacionarem com

10 O conceito de mímeses também foi utilizado por Platão e Aristóteles. Para Platão a mímeses

representa a imitação da imitação, pois postula como pressuposto de verdade o mundo das ideias, a arte

seria a cópia de algo já copiado, nesse sentido fonte de ilusão e engano. Para Aristóteles a realidade não

se divide em essência e aparência como em Platão, sua preocupação não é perceber se a mímeses imita o

verdadeiro, mas constatar a capacidade mimética do ser humano, como de fato através de uma obra

artística é capaz de criar, de produzir algo que não está dado previamente, assim, a mímeses contém

elementos ativos e criativos.

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os fenômenos da natureza, mas com o surgimento de uma racionalidade que visava

dominar a natureza, a mímesis foi recalcada e proibida, com a finalidade de gerar o

controle das ameaças provenientes da natureza.

A humanidade começa a se pautar pela construção de uma civilização

sedimentada em critérios racionais, visto que o ser humano passa a ser considerado mais

racional do que animal. Dessa forma, instaura-se a meta de libertar a identidade

primitiva vinculada à natureza. A civilização é produto da manipulação que sufocou a

mímesis. Segundo Tiburi (1995, p.87), a arte seria uma forma de recuperar o

comportamento mimético: “O comportamento mimético do qual fala Adorno é o que

resta da relação de afinidade com a natureza sendo retomado na arte. A arte é o

elemento da cultura, segunda natureza que, no entanto, recupera a primeira”.

A mímesis se pauta pelo relacionamento espontâneo do homem com a natureza

sem qualquer opressão interna ou externa. Porém, como aquela postura mimética dos

primórdios da humanidade não pode ser recuperada por causa da instauração de um

indivíduo racional, surge a necessidade da formação de uma racionalidade mimética,

que se nutra da reflexão sobre a mímesis. Nesse processo, o indivíduo é importante, pois

ele é a via de acesso à mímesis através da produção de obras de arte, lugar em que pode

ocorrer a reconciliação entre mímesis e razão, já que a “arte é refúgio do

comportamento mimético” (ADORNO, 1988, p.68). Para Adorno, no aforismo da

Teoria Estética, Verdade como aparência da não-aparência, a arte pode favorecer a

superação da natureza reprimida:

“Todo o „fazer‟ da arte é um esforço único para dizer o que não seria o „fabricado‟ em si mesmo e o que a arte não sabe: é justamente o seu espírito.

Aqui tem o seu lugar a ideia da arte como reconstituição da natureza

oprimida e implicada na dinâmica da história” (IBID., p.152).

Adorno não desconsidera o valor da racionalidade na experiência estética,

justamente porque a ela está presente no processo de feitura da arte. A crítica do filósofo

se dirige à racionalidade coisificante que desconsidera o momento mimético; aquela que

continua a reprimir a voz da natureza, da qual a arte se quer reconstituir. Diz o

frankfurtiano, no aforismo da Teoria Estética, Mímese e racionalidade, que a arte é

racionalidade que, ao mesmo tempo, critica a racionalidade:

A sobrevivência da mímese, a afinidade não-conceptual do produto

subjectivo com o seu outro, com o não estabelecido, define a arte como uma

forma de conhecimento e, sob este aspecto, como também “racional” (...) A

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arte é racionalidade, que critica esta sem se lhe subtrair; não é algo de pré-

racional ou irracional, como se estivesse antecipadamente condenado à

inverdade perante o entrelaçamento de qualquer atividade humana na

totalidade social” (1988, p.69-70).

Um aspecto importante que define a atitude filosófica é a admiração, posto que a

capacidade de admirar a realidade favorece o permanente pensar; o espantar-se com o

real suscita sempre novos problemas, sem o fechamento exclusivo às verdades

impostas. Nesse sentido, as obras de arte suscitam a admiração por causa do seu caráter

enigmático. Para Adorno, a arte não possui a finalidade de transmitir uma mensagem,

nem mesmo uma única verdade, pois “o conteúdo de verdade apresenta-se na arte como

uma pluralidade” (IBID., p.152). A arte ocasiona a reflexão, por levar o observador a

pensar na multiplicidade dos sentidos nela contidos. A racionalização gerou certos

hábitos que levaram o indivíduo a compreender a realidade dentro de princípios,

arcabouços teóricos, leis gerais, (pré)-conceitos que desacostumaram a capacidade de

admirar e estranhar a realidade: tudo parece ser óbvio e natural. Para o filósofo, no

aforismo da Teoria Estética, Bloco, a arte ajuda a resgatar a capacidade de admiração:

A arte torna-se enigma porque aparece como se houvesse resolvido o que na

existência é enigma, enquanto era esquecido o enigma no simples ente em

virtude do seu próprio endurecimento poderoso. Quanto mais compactamente

os homens cobriam o que é diferente do espírito subjetivo com a rede das

categorias, tanto mais profundamente se desabituaram da admiração perante

esse outro e, com familiaridade crescente, se frustraram da estranheza. A arte

como que numa gesticulação bem depressa fatigada, procura, debilmente,

reparar isso. Leva a priori os homens à admiração, como outrora Platão

exigia da filosofia, que se decidiu pelo contrário (IBID., p.147).

A busca de sentido existente na obra exige reflexão, por isso, a filosofia pode

ampliar e auxiliar a compreensão. Contudo, o enigma na obra jamais será esgotado,

haverá sempre algo não abarcável, que extrapola os significados. Nesse sentido, o

processo mimético é importante para a compreensão da arte, pois o sujeito necessita

tornar-se, cada vez mais, familiar a ela; precisa experimentá-la concretamente, isto é,

para se compreender a obra, é preciso imitá-la (FREITAS, 2008, p.35); deixar que a

obra ressoe aquilo que possui de singular. O sujeito, com isso, vai, aos poucos, se

confrontando com as peculiaridades existentes no interior dela. A obra de arte manifesta

o não esperado, isso porque se porta diferentemente da indústria cultural que visa ser

uma continuação da percepção da realidade. O sujeito é levado a imitar algo

completamente diferente do esperado, superando padrões e banalidades do cotidiano.

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Sendo assim, a percepção sobre a realidade é intensificada. Imitar uma obra significa,

segundo Adorno (1988, p.146-147), no aforismo da Teoria Estética, Interpretação como

imitação, encaminhar-se para sua interioridade:

As obras de arte são a identidade consigo mesmo liberta da coacção à

identidade (...) Se as obras de arte nada imitam a não ser a si mesmas, só

pode compreendê-las quem as imita (...) Se, em Kant, o conhecimento

discursivo deve renunciar ao íntimo das coisas (Dinge), as obras de arte são,

então, os objectos cuja verdade só pode ser representada como a verdade da

sua interioridade. A imitação é o caminho que conduz a tal interioridade.

O que se imita na arte é designado como o belo natural. Mesmo a arte sendo um

artefato construído por pessoas, torna-se, segundo Duarte (1993, p.144), “representante

da natureza no mundo dos artefatos”. O belo natural remete para algo não criado por

mãos humanas, ou seja, para a natureza. Além disso, expressa o estado de não

dominação pelas regras da sociedade administrada; é a natureza não dominada que

salvaguarda a liberdade. A arte se aproxima do pensamento dialético para rever a

postura de dominação da natureza. Sobre o belo natural, aponta Adorno (1988, p.87), no

aforismo da Teoria Estética, O belo natural como história interrompida:

Belo, na natureza, é o que aparece como algo mais do que o que existe

literalmente no seu lugar. Sem receptividade, não existiria uma tal expressão

objectiva, mas ela não se reduz ao sujeito; o belo natural aponta para o

primado do objecto na experiência subjectiva. Ele é percebido ao mesmo

tempo como algo de compulsivamente obrigatório e como incompreensível,

que espera interrogativamente a sua resolução. Poucas coisas se transferiram

tão perfeitamente do belo natural para as obras de arte como este duplo carácter. Sob este seu aspecto, a arte é, em vez de imitação da natureza, uma

imitação do belo natural.

O belo natural presente na arte realiza uma rememoração da natureza no sujeito,

resgatando aquilo que a racionalidade reprimiu. A arte se torna “porta voz histórico da

natureza oprimida, e, em última análise, crítica perante o princípio do eu, agente interno

da opressão” (IBID., p. 275). Nesse sentido, aponta Duarte (1993, p.142-43):

No que tange ao próprio belo natural – e não mais apenas ao belo em geral -, mostra-se em Adorno, compreensivelmente, uma ligação bem mais evidente

à questão da natureza, e não apenas porque a afiguração da natureza seja um

procedimento tradicional das belas artes, mas porque toda obra de arte

autêntica, mesmo não tendo imediatamente nada a ver com a natureza,

apresenta uma solidariedade secreta para com a natureza reprimida.

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A relação com o diferente, com o não-idêntico se torna importante na

experiência estética. O que procura a razão esclarecida é eliminar o dessemelhante que,

por sua vez, é a causa do medo. A racionalidade almeja que nada escape ao seu

controle, pois a alteridade é misteriosa e fonte de perigo. A arte pode ajudar a superar tal

medo, porque salvaguarda o acolhimento do inesperado, que implica uma postura ética

de abertura solidária para com o outro que é diferente.

O elemento que reforçou a perspectiva de extermínio do desigual se deu através

do princípio de identidade, método este que visa excluir qualquer tipo de contradição no

interior das construções racionais. Assim, as formulações do pensamento se tornam

estritamente rigorosas e coerentes a uma lógica racional. Para Adorno, a arte subverte o

princípio de identidade, por ser capaz de lidar com as contradições sem excluí-las, ou

seja, na arte, tudo é também o que não é. A arte realiza um “protesto constitutivo contra

a pretensão à totalidade do discurso” (ADORNO, 1988, p.117). Assim, o autor sinaliza,

no aforismo da Teoria Estética, Da relação entre arte e a sociedade, que a arte deve

defender o não-idêntico:

Toda obra de arte aspira por si mesma à identidade consigo, que, na realidade

empírica se impõe à força a todos os objetos, enquanto identidade com o

sujeito, e deste modo, se perde. A identidade estética deve defender o não-

idêntico que a compulsão à identidade oprime na realidade (IBID, p.15).

Adorno aponta que as artes são cópias do vivente empírico e fornecem o que é

recusado no exterior. Com isso, tal experiência pode favorecer a libertação do que

coisifica externamente. As obras se tornam vivas porque falam do particular, muitas

vezes, negado e recusado, resistem às determinações impressas na empiria. A

experiência estética desloca o pensamento com a finalidade de propiciar um

conhecimento sem dominação e violência, que reconheça a alteridade. Isso implica a

postura de acolher o estrangeiro na sua estranheza, sendo que tal relação pode favorecer

a criação de novos sentidos para a existência. Nessa perspectiva, aponta Gagnebin

(2001, p.69):

A importância decisiva da reflexão estética na filosofia de Adorno me parece

se situar ali, nesta renovação do pensamento por aquilo que não foi pensado

nem previsto, por aquilo que ameaça o pensamento, mas também o estimula, enfim, por algo que não lhe pertence, que lhe é estrangeiro, mas de que pode

se aproximar para inventar novas configurações de sentido.

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Portanto, a noção estética adorniana não representa uma tentativa de reencantar

o mundo desencantado pela razão. A arte não soluciona os problemas, não se torna um

consolo aos conflitos da realidade. Todavia, a experiência estética, para o frankfurtiano,

deve favorecer um despertar, possibilitando que as perspectivas sobre a realidade sejam

ampliadas, favorecendo, ao mesmo tempo, a superação de toda forma de domínio. O

equilíbrio entre as dimensões sensoriais e racionais se torna imprescindível para a

formação de pessoas emancipadas. Adorno, ao valorizar a arte, não deseja abandonar a

razão, mas favorecer o bom uso das capacidades racionais.

2.4. Adorno e Beckett: Reflexões sobre “Fim de Partida”

As obras de arte produzem uma forma de conhecimento que permite expressar

dimensões da existência humana que não são captadas conceitualmente; a lógica

discursiva não abrange a totalidade do real em seus pontos mais particulares e

complexos. Através da experiência estética possibilitada pela arte, é possível favorecer a

reeducação da racionalidade que se fechou nas perspectivas de domínio da natureza.

Para melhor perceber as contribuições da arte para a formação do pensar, neste ponto da

pesquisa, busca-se analisar a peça de teatro “Fim de Partida” de Samuel Beckett11

,

extraindo algumas categorias que estão presentes na referida obra, para se constatar o

potencial formativo da arte. Utilizar-se-á, como referencial de análise, o texto de

Adorno, intitulado: “Tentativas de entender Fim de Partida”, ensaio crítico-literário que

se encontra no segundo volume das Notas de Literatura.

Adorno, em seu livro Teoria Estética, destaca um comentário interessante

dizendo que “as peças de Beckett são absurdas, não pela ausência de todo e qualquer

sentido - seriam, então, irrelevantes -, mas porque põem o sentido em questão” (1988,

p.176). Isso ocorre não simplesmente pelo conteúdo, mas sim, pela forma com a qual as

peças são construídas. Beckett privilegia, como matéria artística, a impotência, a miséria

e a solidão, procura iluminar a falha e o fracasso. Fim de Partida é uma comitragédia,

funciona às avessas da tragicomédia, no dizer de Andrade (2002, p.11) “no lugar de um

clima soturno que se encaminha para uma resolução final em festa e casamento,

11 Samuel Beckett nasceu numa sexta-feira santa, em 13 de abril de 1906, na Irlanda, e morreu às vésperas

do Natal, no dia 22 de dezembro de 1989. A peça Fim de Partida foi concebida em 1954, o texto passou

por algumas revisões em 1955, sendo concluído em 1956.

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instaura-se em seu mundo uma capacidade de rir em meio à privação e ao sofrimento,

mesmo sem a perspectiva de remissão no horizonte sombrio”.

A respeito dos personagens de Fim de Partida, é possível afirmar que

experimentam a espera vazia pelo fim, vivem como se fossem os últimos sobreviventes

de uma humanidade devastada. O cenário apresenta-se como um lugar cinzento,

austero; duas janelas pequenas e altas, uma a direita e outra a esquerda, sem mobiliário,

uma porta, um quadro voltado para a parede. Há quatro habitantes que vivem como se

fossem os últimos moradores de uma humanidade devastada, experimentando uma

natureza já esgotada e destruída. Isso ocorre “não apenas na escassez de meios – tudo na

peça (remédios, provisões, bicicletas) está se acabando – mas também na decrepitude

física dos personagens (um cego paralítico, um coxo, dois mutilados) e na rotina vazia

que custa a preencher o tempo da espera, completamente desprovido de esperança”

(ANDRADE, 2002, p.14-15). Os personagens vivem, segundo Adorno, uma variação de

Hamlet: morrer ou morrer, eis a questão (Cf. 2006, p.29).

Um dos personagens por nome Hamm, geralmente, encontra-se no centro das

cenas da peça, é cego e está imobilizado em uma cadeira de rodas. Servido por um

criado, coxo, chamado Clov, uma espécie de filho adotivo, deseja matá-lo ou deixá-lo,

mas que não realiza nenhuma das duas coisas. Entre ambos, existe uma relação de

opressor e oprimido; uma dependência recíproca fundada em amor e ódio. Outros dois

personagens da peça habitam dois latões de lixo; encostados um ao outro, ficam em seu

interior; encontram-se aleijadas e senis; seus nomes são Nagg e Nell, pai e mãe de

Hamm; às vezes, colocam as cabeças para fora dos latões para conversar. Os nomes dos

quatro personagens conotam, segundo Andrade, um aspecto peculiar presente na

convivência: “Nagg, Nell e Clov evocam, em línguas diversas, os „pregos‟ (Nagel, em

alemão; nail, em inglês; clou, em francês) que o „martelo‟ Hamm (hammer, em inglês)

insiste em torturar” (ANDRADE, 2002, p.15).

O desenrolar da peça ocorre em apenas um ato e com o mínimo de palavras e

gestos, com o intuito de demonstrar a experiência de seres humanos em degeneração. A

própria adoção de Beckett pelo francês, como língua de criação, abandonando o inglês,

permitiu calar ecos e cacoetes formais, para escrever sem estilo e simplificar a dicção. O

encadeamento dos diálogos, na peça, é entrecortado, de mútua incompreensão,

basicamente diálogos de surdos que não levam à ação alguma, aspecto que põe em

xeque a comunicação. A estrutura parece ser enxuta. Pelo conjunto de monólogos,

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diálogos, gestos, pausas e histórias, o conteúdo se faz precário; sua forma simples de

exposição o torna, porém, expressivo e profundo.

Fica nítido em Fim de Partida que a arte pode criticar a seriedade imposta aos

seres humanos pela realidade, ao mesmo tempo, apresentar as mazelas da vida social,

fazendo repensar as próprias condições da existência. Adorno destaca, em seu texto “A

arte é alegre?”, que o humor presente nas peças de Beckett é questionador, que

possibilita lidar, de forma melhor, com o desespero humano:

Em especial diante das peças de Beckett, a categoria do trágico cede lugar à

risada, pois suas peças cortam todo humor que aceite o status quo. Elas

manifestam um estado de consciência que não mais admite a alternativa entre

sério e alegre e nem tampouco a mista tragicomédia. O trágico dissolve-se

porque são evidentemente inconsequentes as demandas de uma subjetividade

que deveria ser trágica. No lugar da risada instala-se o choro sem lágrimas, o

choro seco. O lamento se tornou a tristeza dos olhos ocos e vazios. Resgatado

é o humor nas peças de Beckett porque infectam com risadas sobre o risível do rir e sobre o desespero (ADORNO, 2001, p.17).

A peça Fim de Partida é considerada como um mito da criação às avessas (Cf.

ANDRADE, 2002, p.16), a exemplo de um deus-tirano decaído, que transforma a luz no

cinza onipresente; faz as águas voltarem a tomar conta de tudo; faz a natureza se

manifestar nas suas formas mais baixas, paródicas e elementares como, por exemplo,

em uma pulga, um rato, um cachorro de pelúcia de três patas e sem sexo12

. Dessa

maneira, a natureza apresenta-se como inteiramente devastada, como se já não existisse

mais nada para dela esperar. É ilustrativo o diálogo entre Hamm e Clov:

Clov: (Sobe na escada e dirige a luneta para o exterior, e diz): Vejamos...

(olha, movimenta a luneta) Zero ... (olha) ... zero ... (olha) ... e zero. (Abaixa

a luneta, volta-se para Hamm) E então? Satisfeito? Hamm: Nada se mexe.

Tudo está ... Clov: Zer ... Hamm (com violência): Não falei com você! (Voz normal) Tudo está ... tudo está ... tudo está o quê? (com violência) Tudo está

o quê? Clov: Como tudo está? Em uma palavra? É isso que quer saber? Só

um segundo. (Dirige a luneta para o exterior, olha, abaixa a luneta, volta-se

para Hamm) Cadavérico. (Pausa) E então? Contente? (BECKETT, 2002,

p.76).

Beckett comparou a peça a um jogo de xadrez: Hamm, considerado como rei,

está sempre ameaçado de xeque; os latões representam as duas torres e Clov assemelha-

se ao cavalo que se move lateralmente, inclusive esquivando-se. Hamm, no primeiro e

no último monólogo (Ibid., p.39; p.146), expressa, de forma nítida, o ato de jogar,

12 Únicas referências de animais na peça Fim de Partida.

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falando assim: “Minha... (bocejos) ...vez. (Pausa) De jogar”. A peça, no conjunto todo,

é perpassada pela ideia de um jogo.

Adorno acolheu, de forma salutar, a arte desenvolvida por Beckett. Em

reconhecimento a isso, sabe-se que dedicaria sua obra Teoria Estética, publicada

postumamente, ao escritor. Segundo Jimenez (1977, p.181), “a referência ao teatro de

Beckett está implicitamente contida nas teses adornianas”. Peças, como Esperando

Godot e Fim de Partida, rejeitam interpretações tradicionais e deixam em evidência

características cruciais da existência humana. Adorno escreveu uma carta a Horkheimer,

parceiro com quem elaborou a Dialética do Esclarecimento, para recomendar a leitura

da peça de Beckett, dizendo que as intenções presentes nela eram compartilhadas pela

obra construída por ambos (Cf. ALMEIDA, 2006, p.8).

No texto “Tentativas de entender Fim de Partida”, logo no início do ensaio,

Adorno destaca que as obras de Beckett possuem alguns pontos em comum com o

existencialismo parisiense, precisamente em relação às categorias, como absurdo,

situação da condição humana, escolha. O existencialismo surge no contexto do pós-

guerra, com o intuito de refletir sobre a condição humana destruída e pelo sentido do

existir. Os existencialistas, dessa forma, exaltavam, na peça de Beckett, a noção de

absurdo. O filósofo questiona a apropriação existencialista das categorias presentes nas

peças de Beckett, pois a compreensão da peça não poderia ser alcançada pela referência

a uma eterna e abstrata situação da condição humana, por interpretações que conduzam

ao conformismo proporcionado por definições absolutas. Diz Adorno que “o absurdo

não é mais um estado existencial reduzido a uma ideia e, em seguida, visualizado. (...)

Ele é despojado daquela universalidade da teoria, que o vinculou no existencialismo (...)

ao pathos ocidental do universal e do permanente” (ADORNO, 2006, p. 01).

A peça, segundo o frankfurtiano, acentua o ridículo das categorias do

existencialismo, realizando uma espécie de paródia (Cf. IBID., p.03). A ideia de

absurdo pressupõe vivacidade e reação do sujeito, mas as condições que se impõem pelo

total clima de devastação anulam tal possibilidade. Da mesma forma, acontece com a

ideia de situação tão importante para o existencialismo, que pressupõe alguém situado,

capaz de reagir livremente para buscar os caminhos existenciais que deseja escolher. A

peça demonstra pessoas impotentes, sem quaisquer alternativas. Quais decisões e

opções podem ter um cego numa cadeira, um criado coxo e submisso, dois velhos

mutilados e presos num latão? O termo decisão tão caro ao existencialismo torna-se

anulado nesse contexto.

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Para Adorno, as catástrofes que inspiraram Fim de Partida destituíram aquela

substancialidade de caráter absoluto comuns entre Kierkegaard, Jaspers e a versão

sartreana do existencialismo. Esta ainda concedia às vítimas dos campos de

concentração a liberdade interior de aceitar ou recusar o que era imposto como tortura.

Em Fim de Partida, porém, tais ilusões são destruídas, pois “o indivíduo por si mesmo

revelou-se como categoria histórica, como resultado do processo de alienação capitalista

e do protesto contra o mesmo, como algo, por sua vez, preterível” (2006, p.10). Dessa

forma, é preciso uma interpretação que busque o sentido histórico nas tentativas de

Beckett expor suas ideias. A análise da peça não pode significar outra coisa que buscar a

compreensão da sua incompreensibilidade, “reconstruir concretamente o sentido daquilo

que não tem sentido” (IBID., p.2). Nos personagens, transparece a experiência histórica

de uma catástrofe mutiladora, de pessoas em ruínas, de vivências extremamente sem

sentido. Em razão disso, aponta o filósofo:

As personagens de Beckett comportam-se de maneira tão primitiva e

behaviorista em conformidade com as circunstâncias pós-catastróficas, e essa catástrofe as mutilou tanto que elas não podem reagir de outra maneira;

moscas em agonia, após terem sido amassadas pelo mata-mosca (...). Os

sujeitos completamente reduzidos a si mesmos, um nada cósmico feito carne,

não são nada mais que fatos miseráveis do seu mundo reduzido a fezes,

pessoas ocas que nada mais fazem que ressoar (IBID., p.11).

A peça sugere diferentes interpretações, dentre as quais, a dimensão catastrófica

que devastou completamente a natureza, possivelmente, pelos reflexos do domínio

exacerbado no exercício da razão. Sugere um ambiente pós-guerra, em que a

humanidade sofre as consequências da bomba atômica, pois acena que algo terrível

aconteceu no ambiente fora da casa.

O conteúdo presente na peça, através dos diálogos, não trata, explicitamente, da

questão da racionalidade instrumental, mas, de modo latente, pode se constatar que uma

força dominadora devastou as relações, a natureza e o próprio ser humano. Beckett, sem

trabalhar diretamente categorias filosóficas conceituais, as aborda, de maneira estética,

valendo-se da forma com a qual dispõe a apresentação de seus personagens. Talvez

aquilo que Adorno apresentou, filosoficamente, a respeito da racionalidade

instrumental, Beckett o demonstrou, artisticamente, pois o domínio da razão sobre a

natureza deseja subjugar todas as coisas e - se necessário - exterminá-las. Sobre essa

questão, aponta o filósofo:

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O inseticida que, desde o início, apontava para os campos de extermínio, se

transforma no produto final do domínio da natureza, domínio este que acaba

consigo mesmo. O único conteúdo da vida que resta: que não haja mais nada

que vive. Tudo o que existe deve ser igualado a uma vida que é a morte, o

domínio abstrato (2006, p.33).

O domínio sobre a natureza se inverte no dever do extermínio. Talvez seja esse o

objetivo obscuro que direciona a ação. Nesse sentido, no dizer de Adorno, “a razão,

tornada completamente instrumental, sem autorreflexão e sem reflexão sobre aquilo que

ela desqualifica, tem de indagar pelo sentido que ela mesma aniquilou” (IBID., p.36). É

ilustrativo o desprezo com o qual Hamm trata um suposto alguém que está fora do seu

abrigo:

Hamm: Mais complicações! (Clov desce da escada) Tomara que não se

desenrolem!

Clov aproxima a escada da janela, sobe, direciona a luneta. Pausa.

Clov: Ai, ai, ai, ai!

Hamm: É uma folha? Uma flor? Um toma ... (boceja) ...te?

Clov: (olhando) Tomate coisíssima nenhuma! Uma pessoa! É alguém! Hamm: Ah bom! Vá exterminá-lo. (Clov desce) Alguém! (vibrante) Cumpra

seu dever! Não, não vale a pena. (Clov pára) A que distância? (BECKETT,

2002, p.140).

Transparecem na peça as relações humanas marcadas por frieza, cálculo,

indiferença, sem quaisquer manifestações de sensibilidade ou de ternura para com o

outro. Fica nítido o predomínio do desapreço mútuo, horror do/pelo outro, pensa-se a

pior coisa uns dos outros. É incomodativo o diálogo quando Hamm pergunta a Clov:

“Por que você não me mata?” Responde Clov: “Não sei a combinação da despensa”

(IBID., p.46). Além disso, Hamm trata seu pai de forma ríspida quando ele pede

mingau, diz: “Maldito progenitor! (...) Não há mais velhos como antigamente!

Empanturrar-se, empanturrar-se, não pensam em outra coisa!” (IBID., p.48). Os

desafetos tornam-se cada vez mais transparentes, palavras são ditas sem qualquer

remorso. Ambos se suportam na medida em que veem utilidade objetiva na

convivência:

Clov: Por que você não me manda embora? Hamm: Não tenho mais ninguém.

Clov: Não tenho outro lugar. Pausa. Hamm: Mesmo assim você vai me

deixar. Clov: Estou tentando. Hamm: Você não gosta de mim. Clov: Não.

Hamm: Antes você gostava. Clov: Antes! (IBID., p.44).

Também a referência ao amor conjugal aparece, de maneira grotesca, na

tentativa não concluída de Nagg e Nell trocar um beijo, momento entrecortado por

diferentes lembranças, por sinais específicos da decrepitude física. Outro momento

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grotesco se expressa no pedido de Nagg para Nell coçar-lhe as costas; esse representa

um dos últimos resíduos da vida conjugal:

Nagg: Não quer mesmo o seu biscoito? (Pausa) Vou guardar pra você.

(Pausa) Pensei que fosse me deixar. Nell: Eu vou. Nagg: Será que não daria

pra você me coçar antes? Nell: Não. (Pausa) Onde? Nagg: Nas costas. Nell:

Não. (Pausa) Se esfregue contra a borda. Nagg: É mais embaixo. No buraco.

Nell: Que buraco? Nagg: O buraco, qual outro? (Pausa) Você não podia?

(Pausa) Ontem você me coçou ali. Nell: (elegíaca) Ah ontem! Nagg: Será

que não daria? (Pausa) Quer que eu coce? (Pausa) Você está chorando de

novo? Nell: Estava tentando (IBID., p.63-64).

Não aparece, de forma explicita, em nenhum personagem da peça, a utilização

consciente de sua racionalidade; ao contrário, a capacidade racional se esvaziou; as

categorias abstratas já não respondem adequadamente diante das necessidades de

agregar sentido à existência. O ser humano reduziu-se ao estado animal, e seu único

desejo é pôr fim à sua vida que já não tem mais qualquer valor, como ilustra Pucci

(2006, p.47): “As personagens de Beckett, reduzidas de homens a animais, aprisionadas

em um abrigo tal como em uma ostra, sonham com a própria morte, que se aproxima

mais e mais”. Beckett, em sua obra, questiona a absolutização da consciência, o que,

segundo Tiburi (1995, p.125), mostra o rumo catastrófico dos discursos racionais:

Na demonstração do grau de absurdidade da realidade tomada como

verdadeira pela tradição, a obra de Beckett serve como testemunho da

catástrofe das perspectivas discursivamente racionais rumo ao controle do

real e às realizações artísticas. Ela comporta a decadência da própria arte, sua

própria insuficiência na busca pela verdade, e, devido a isto, o acesso a uma

verdade não intencional, verdade que ela não pode pré-conceber.

As preocupações com pôr fim à existência permeiam a enfadonha rotina e

ocupam os pensamentos dos personagens. Além disso, as necessidades corporais se

tornam o principal objeto de reflexão, inclusive atrapalham o ato de pensar. Clov, em

uma frase, define bem essa ideia: “Como doem minhas pernas, é incrível. Logo não

poderei mais pensar” (BECKETT, 2002, p.101). Todas as circunstâncias vividas pelos

personagens extrapolam a lógica; isso questiona a eficácia da análise racional; já se

confundem categorias, como o real, o imaginário ou a ilusão. Clov demonstra tal ideia

em um de seus diálogos:

O que eu fiz com a escada? (Procura com os olhos) Não viu a escada por

acaso, viu? (Procura, encontra-a) Ah, já era tempo! (Vai até a janela

esquerda) às vezes fico em dúvida se estou no meu juízo perfeito. Depois

passa, me sinto tão lúcido quanto antes. (Sobe na escada, olha pela janela)

Porra! Está tudo alagado! (Olha) Como é que pode? (Estica a cabeça, a mão

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como viseira) Nem mesmo choveu. (Esfrega a vidraça, olha. Pausa. Bate na

testa) Ah, como eu sou burro! Errei de lado! (Desce, dá alguns passos em

direção à janela direita) Alagado! (Volta, pega a escada) Que idiota!

(Carrega a escada até a janela direita) às vezes fico em dúvida se estou no

meu juízo normal. Depois passa me sinto tão inteligente como antes. (2002,

p.133).

A suposta confusão no uso das faculdades racionais, presente nos personagens,

se transforma, de maneira implícita, em crítica à razão que devastou completamente a

natureza. Essa é uma análise que desvela a verdadeira situação da realidade, que indaga

pelas causas que destruíram a vida, que torna evidentes as mazelas e os infortúnios.

Pensar uma realidade marcada pelo sofrimento é uma árdua tarefa, como diz Clov:

“nunca ninguém pensou de modo tão tortuoso como nós” (IBID., p.52). A peça traz

elementos sociais sem, ao menos, nomeá-los, apenas indiretamente, realizando, no dizer

de Pucci (2006, p.46), “uma crítica radical à sociedade administrada dos anos 1940-

1950”. A obra não manifesta, de forma explícita, conteúdos sociais, para não impor, de

forma didática, uma interpretação, mas possibilitar uma pluralidade de interpretações.

A própria linguagem, meio pelo qual as ideias são transmitidas, é colocada em

questão na peça. Para Adorno, “ao invés de tentar liquidar o elemento discursivo da

língua através do puro som, Beckett o transforma em um instrumento do próprio

absurdo, conforme o ritual dos palhaços, em que a tagarelice se torna nonsense, ao

apresentar-se como sense” (2006, p.24). Isso se confirma pela necessidade compulsiva

de contar histórias e casos, por parte de Nagg e de Hamm.

Dentre as histórias, está a do acidente em que Nagg e Nell perderam as pernas,

triste fato, mas que, sempre que recordado, se torna motivo de riso para ambos, no dizer

de Nell: “Nada é mais engraçado que a infelicidade, com certeza” (BECKETT, 2002,

p.62). Outra história que Nagg insistia em contar era a do alfaiate que demorou um

absurdo de tempo para fazer uma calça. Hamm tinha um fato interessante que gostava

de narrar a respeito de um louco que pintava, via as coisas apenas em cinza, inclusive as

mais belas, talvez por pensar que o fim do mundo havia chegado. Assim, segundo

Pucci, (2006, p.43) “as narrativas apontam para o passado e não trazem nenhum consolo

para o presente, que caminha para o fim; trazem tensões, ensinamentos, mas que, nas

circunstâncias em que se encontram as personagens, eles não têm mais sentido e o

próprio ato de narrar se torna esvaziado”.

Para Adorno (1988, p.28), “a poesia retirou-se para o abandono sem reservas ao

processo de desilusão, que destrói o conceito do poético; é o que torna irresistível a obra

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de Beckett”. Significa que Beckett realiza uma espécie de implosão da palavra,

dinamitando a sintaxe e a lógica, dando margens para que o silêncio apareça,

ressaltando a dimensão desgastada das narrativas. Além disso, procura falar daquilo que

não se deve falar, paradoxo que também permeia a obra adorniana, principalmente em

sua Dialética Negativa, em que demonstra a inadequação entre o conceito e a realidade.

Beckett, ao apresentar, de forma eclipsada, velada, o conteúdo da peça, realiza, segundo

Adorno, uma crítica à onipotência com a qual a racionalidade é tratada:

Dos grandes dramas de Shakespeare, como também das peças de Beckett,

não se pode extrair o que hoje se chama uma mensagem. Mas, o

obscurecimento é, por seu turno, função do conteúdo modificado. Negação

da ideia absoluta, o conteúdo já não pode identificar-se com a razão, como postulava o idealismo; crítica da omnipotência da razão, ele deixa, por seu

lado, de ser racional segundo as normas do pensamento discursivo. A

obscuridade do absurdo é a obscuridade antiga do Novo. Deve interpretar-se

e não ser substituída pela claridade do sentido (1988, p.40).

Por fim, a peça de Beckett favorece a compreensão, de forma mais aproximada,

sobre o papel formativo e questionador da arte. Beckett, em seu teatro, conseguiu

realizar um retrato verdadeiro da humanidade, forneceu uma poderosa configuração da

experiência histórica de seu período, dos rumos tomados pela civilização, das promessas

de humanização não cumpridas, da racionalidade que, ao invés de agregar sentido à

existência, pode esvaziá-la, das relações humanas marcadas por desafetos mutiladores,

da crítica ao esvaziamento das narrativas e da linguagem. Adorno soube captar o

potencial crítico e formativo presente na arte de Beckett, perceber os cursos da

realidade, reconhecer que a arte pode desvelar a ilusão na qual a realidade se encontra,

e, assim compreender que a negatividade, ao ser enfrentada, pode favorecer a escrita

invertida do seu contrário, pode despertar a emancipação.

No próximo capítulo, discutir-se-ão as contribuições específicas das ideias de

Adorno para o campo da formação humana, enfatizando que o processo formativo deve

favorecer o bom desenvolvimento da racionalidade e dos sentidos. Em primeiro lugar,

serão analisados textos específicos do filósofo, que tratam do processo formativo,

procurando elucidar uma proposta educativa que rompa com a perspectiva que vise

instrumentalizar o pensar. A abordagem não se restringirá ao espaço formal da sala de

aula, mas compreenderá, segundo a ótica adorniana, os espaços sociais de formação. Em

segundo lugar, serão mostradas as exigências atuais de uma educação estética, mediante

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os impactos das novas tecnologias na sensibilidade humana. Por fim, será discutido

como a experiência estética pode se tornar formativa.

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CAPÍTULO 3 – CONTRIBUIÇÕES DE ADORNO À FORMAÇÃO

3.1. Para uma educação além da racionalidade instrumental

A análise de Adorno a respeito da racionalidade tem, como principal objetivo,

desmascarar o processo que instrumentalizou o pensar, a fim de recuperar as

potencialidades críticas da razão. O autor deixa claro que a proposta iluminista de

emancipação humana, que visava a um estágio de progresso, em que as pessoas, através

do bom uso da razão, poderiam sair da condição de menoridade, elevando a existência a

estágios mais plenos, foi revertida para outra perspectiva pautada pelo domínio racional.

A realidade desencantou-se, os mitos e crenças dissolveram-se, com o intuito de que o

saber racional predominasse guiado por um método seguro, prático e calculável. Tal

processo, com conotações mais técnicas, reificou o pensar, gerando a alienação. Com

isso, as capacidades criativas e reflexivas do pensamento foram ofuscadas.

De acordo com o frankfurtiano, o esclarecimento sempre exerceu, na história, a

perspectiva de domínio, inclusive o próprio mito é fruto do esclarecimento, pois deseja

denominar, explicar, fixar, intervir na realidade para domar as forças da natureza. O

mito se transforma na tentativa de dominar as forças obscuras causadoras do medo. O

esclarecimento, por sua vez, se torna a radicalização da angústia mítica, que busca

controlar a realidade, de tal forma, que nada lhe pode escapar; tudo precisa passar pelo

crivo da razão; o diferente necessita ser igualado aos princípios controláveis. A razão se

transforma em autodomínio e autorrepressão sobre si mesma, torna-se paranoica, pois

está a serviço de fins cegos. O esclarecimento, ao invés de fomentar a emancipação,

gerou inevitavelmente a dominação; tendo, como consequência, a barbárie e inúmeras

injustiças sociais.

Para Adorno, a indústria cultural representa o prolongamento instaurado pelo

domínio da razão, posto que se pauta pela criação racional de produtos simbólicos, com

a perspectiva de manter uma lógica de controle. A indústria cultural cria produtos de

baixo nível formativo, os quais impossibilitam a formação do pensamento crítico; a

experiência do real empobrece-se; limitada e direcionada, gera uma espécie de atrofia

da imaginação e das potencialidades criativas do pensar. Os produtos oferecidos pela

indústria cultural se tornam anestésicos e passam a preencher o tempo livre, aliviando a

rotina, muitas vezes, mecânica. São aceitos sem resistência, não exigem nenhum tipo de

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esforço intelectual. Nesse sentido, o papel formativo da cultura é alterado, pois a

indústria cultural visa apenas domesticar os sentidos, e, ao mesmo tempo, influenciar na

construção do pensamento.

A partir disso, para se compreender as contribuições filosófico-educacionais da

teoria de Adorno, - em que o autor propõe uma educação além da racionalidade

instrumental e da indústria cultural, - analisam-se, neste tópico da pesquisa, alguns de

seus textos fundamentais, a saber, Educação após Auschwitz; A educação contra a

barbárie; Educação – para que? Esses textos fazem parte de uma série de conferências

e entrevistas realizadas por Adorno, no decênio entre 1959 e 1969, em parceria com a

Divisão de Educação e Cultura da Rádio do Estado de Hessen. Também será analisado

o ensaio Teoria da semiformação para melhor compreender o papel formativo da

cultura.

A conferência radiofônica Educação após Auschwitz13

inicia-se com uma

contundente articulação entre educação e ética. Adorno (2006a, p.119) afirma que “a

exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”. Tal

apelo ao sentido ético não significa, simplesmente, aperfeiçoamento moral, mas

intervenções objetivas, materiais, no nível social e psicológico. Auschwitz demonstra a

regressão do progresso e da experiência formativa, segundo Wolfgang Leo Maar (2006,

p.22), “Auschwitz não representa apenas (!) o genocídio num campo de extermínio, mas

simboliza a tragédia da formação na sociedade capitalista”. Qual o sentido de uma

racionalidade que, de forma eficiente, se apropriou de tecnologias para realizar o

extermínio humano, de maneira planejada? Essa pergunta conduz Adorno a questionar a

racionalidade que perdeu seu potencial reflexivo e que se fez instrumento de uma lógica

desumanizante.

Para o filósofo (2006a, p.121), “a educação tem sentido unicamente como

educação dirigida a uma autorreflexão crítica”. O pensamento deve refletir sobre si

mesmo para não se tornar superficial e direcionado por ideologias. É importante

descobrir os mecanismos sociais e psicológicos que influenciam na ação humana e que

impedem o exercício da autonomia. No estudo de tais mecanismos, Adorno valoriza as

contribuições de Freud, principalmente no que se refere às teorias da psicanálise, pois

favorecem a análise das raízes que conduzem a realização de atos bárbaros. A respeito

da reflexão para a educação crítica, vale destacar o comentário de Pucci, em seu artigo

13 Palestra realizada na rádio de Hessen, transmitida em 18 de abril de 1965.

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Teoria Crítica e Educação (1994, p.47): “Educação/formação cultural pela

autorreflexão crítica significa para Adorno a busca da autonomia, da autodeterminação

kantiana, do homem enquanto sábio fazendo uso público de sua razão, superando os

limites da liberdade trazidos pela barbárie, pela semicultura”.

Adorno leva em consideração os diagnósticos freudianos sobre o mal-estar na

civilização; constata que a pressão civilizatória multiplicou-se chegando ao ponto de

uma escala insuportável. Com isso, pode-se até falar de uma claustrofobia presente no

mundo administrado, ou seja, “um sentimento de encontrar-se enclausurado numa

situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada”

(ADORNO, 2006a, p.122). O desejo de escapar dessa rede densa aumenta o nível de

raiva contra a civilização que a torna alvo de violência. Nota-se que a integração social,

ao invés de propiciar um espaço agradável de convivência, gera tendências de

desagregação. A possibilidade de resistência a tal realidade passa, segundo o filósofo,

por dois caminhos que conduzem à conscientização:

Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto,

ao esclarecimento geral que produz um clima intelectual, cultural e social que

não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que

conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes (IBID., p.123).

A questão da educação infantil insere-se no contexto de uma preocupação mais

psicológica, no sentido de estar atento às dimensões que escapam a ação da educação,

para melhor trabalhar as energias psíquicas e cuidar, com cautela, do período específico

em que o ego se consolida. Adorno reconhece que o retorno à barbárie tem seu aspecto

decisivo nas questões sociais; isso não significa que os aspectos psicológicos devam ser

desconsiderados, por isso, destaca a importância da formação geral, que discuta os

problemas sociais para, justamente, não ocorrer o esquecimento das atrocidades do

passado. Não se pode subtrair e esquivar-se das crueldades que desagregaram o sentido

dado à existência, mas é preciso enfrentá-las para que não venham novamente ocorrer.

Por isso, o autor destaca a importância da autonomia reflexiva para que Auschwitz não

se repita, considerando-se “que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se

repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência

frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização” (IBID.,

p.127).

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O autor aponta para que as pessoas não se enquadrem, cegamente, em instâncias

coletivas com finalidades manipuladoras, que as convertam em algo como um material

manipulável. Utiliza o termo „caráter manipulador‟ para designar aqueles que atuam

dessa forma e salienta que “o caráter manipulador (...) se distingue pela fúria

organizativa, pela incapacidade de levar a cabo experiências humanas diretas, por um

certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado” (2006a, p.129). Além

disso, tais pessoas não imaginam o mundo diferente daquilo que ele é, já que estão

possuídas pela vontade de fazer coisas (doing things); indiferente do conteúdo das

ações. O autor adverte: “se fosse obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de

caráter manipulador (...) eu o denominaria de o tipo da consciência coisificada” (IBID.,

p.130). Tornar a consciência igual às coisas representa instrumentalizar o pensar. Nesse

sentido, as potencialidades da razão são direcionadas para fins cegos. Auschwitz é fruto

da consciência que se coisificou, daquelas pessoas que assentiram e aderiram,

cegamente, aos ideais nazistas; algumas sequer sentiam remorsos, dizendo-se apenas

cumpridoras do dever.

Para o frankfurtiano, a consciência coisificada se defende das possibilidades do

vir-a-ser; não quer libertar-se dos próprios condicionamentos, tomando, como absoluto,

o que existe apenas de um determinado modo. A relação da consciência coisificada em

relação à técnica traz algumas ambiguidades. Para o autor, cada época produz

personalidades que necessitam, socialmente, como uma espécie de distribuição e

canalização, da energia psíquica. Nesse sentido, a técnica em uma sociedade pautada

pela tecnologia ganha papel central:

Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece

atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua

racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos

influenciáveis, com as correspondentes consequências no plano geral. Por

outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado,

irracional, patogênico. Isto se vincula ao “véu tecnológico”. Os homens

inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos

homens. Os meios – e a técnica é um conceito de meios dirigidos à

autoconservação da espécie humana – são fetichizados, porque os fins – uma

vida humana digna – encontram-se encobertos e desconectados da

consciência das pessoas (IBID., p.132).

O filósofo questiona a impossibilidade de saber-se o momento exato de transição

de uma relação boa com a técnica e aquela de coisificação, de fetichização em que, por

exemplo, um sistema ferroviário é construído para levar as vítimas ao campo de

concentração, com mais rapidez e fluência, esquecendo-se do que lá irá acontecer. A

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consciência coisificada tem como fruto a construção de pessoas frias, que já não

depositam seu amor na humanidade, mas, nas máquinas. É ilustrativo o exemplo dado

por Adorno sobre uma experiência em Berkeley, quando pesquisava para seu escrito

Authoritarian Personality. Encontrou um sujeito que afirmava sobre si “I like nice

equipament” (Eu gosto de equipamentos, de instrumentos bonitos). Isso significava que

seu amor era absorvido totalmente por máquinas, coisas, independentemente do

equipamento em questão, tornando-se indiferente em relação às pessoas. Ao comentar

sobre tal fato, diz o filósofo: “O perturbador – porque torna tão desesperançoso atuar

contrariamente a isso – é que esta tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada

ao conjunto da civilização. Combatê-lo significa o mesmo que ser contra o espírito do

mundo” (IBID., p. 133). Isso significa que a civilização acaba produzindo o próprio

processo anticivilizatório; o progresso regrediu: em vez de gerar o desenvolvimento,

fomentou a barbárie.

Destaca Adorno, no aforismo Depois de Auschwitz, em seu livro Dialética

Negativa, que a indiferença e frieza que direcionaram os caminhos da civilização se

fundamentaram, especificamente, na subjetividade burguesa, sem ela, Auschwitz não

teria sido possível. Tal indiferença, em relação à vida, é para onde se dirige a história:

O que os sádicos diziam às suas vítimas nos campos de concentração,

„Amanhã você vai sair como fumaça por essa chaminé e se mover em

espirais em direção ao céu‟, designa a indiferença da vida de todo indivíduo,

uma indiferença para a qual se dirige a história: já em sua liberdade formal, o

indivíduo é tão cambiável e substituível quanto sob os pontapés dos

exterminadores. No entanto, na medida em que o indivíduo, no mundo cuja

lei é a vantagem individual universal, não possui outra coisa senão esse si

próprio que se tornou indiferente, a realização da tendência já há muito

familiar é ao mesmo tempo o que há de mais terrível (ADORNO, 2009, p.300).

No debate radiofônico A educação contra a barbárie14

, o filósofo enfatiza que o

principal objetivo da educação é favorecer a desbarbarização. Questiona os caminhos

tomados pela civilização que, apesar do demasiado avanço tecnológico, cultiva a

agressividade e impulsos de destruição:

Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que estando na civilização

do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas

de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização (...)

tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar

ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma

14 Debate na Rádio de Hessen; transmitido em 14 de abril de 1968.

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tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente impedir isto que

eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade

(ADORNO, 2006b, p.155).

O fato de problematizar e colocar o tema da barbárie no centro das discussões

torna-se algo favorável para provocar mudanças, pois deixa em evidência os momentos

de regressão à violência. Para o autor, é preciso “desacostumar as pessoas de se darem

cotoveladas. Cotoveladas constituem sem dúvida uma expressão de barbárie” (IBID.,

p.162). A superação da barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade, a

educação deve fomentar caminhos que possibilitem o cumprimento desse processo.

O filósofo, no debate radiofônico Educação – para que?15

, se indaga sobre os

caminhos pelos quais a educação deve ser conduzida. Questiona modelos de educação

autoritária que, ao se imporem, a partir do exterior, não geram autonomia. Apresenta, de

forma clara, sua concepção de educação:

A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim chamada modelagem de

pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu

exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja

característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de

uma consciência verdadeira (ADORNO, 2006c, p.141).

A emancipação, caracterizada pela produção de uma consciência verdadeira,

enfrenta, segundo o filósofo, alguns entraves que dificultam sua concretização. O

primeiro deles é a própria organização do mundo, marcada por inúmeras ideologias, que

exercem uma pressão imensa sobre as pessoas. O segundo problema diz respeito à

ambiguidade do caráter educacional: se, por um lado, a educação possibilita a

autonomia, a conscientização; por outro lado, contém um movimento de adaptação ao

mundo, enquanto integração entre as diferentes gerações, na transmissão de valores

culturais, na adequação à realidade em que se vive. O filósofo reconhece que a educação

seria ideológica e impotente se ignorasse o momento da adaptação, que não orientasse

as pessoas para se prepararem para o mundo; alerta, porém, que a educação seria

“questionável se ficasse nisso, produzindo nada além de well adjusted people, pessoas

bem ajustadas, em consequência do que a situação existente se impõe precisamente no

que tem de pior” (IBID., p.143).

Para Adorno, é preciso não arrefecer a tensão entre a autonomia e adaptação,

para que, assim, o processo pedagógico se efetive de forma salutar. A educação deve

15 Debate na Rádio de Hessen; transmitido em 26 de setembro de 1966.

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fortalecer o momento de resistência frente ao conformismo causado pela adaptação. A

estrutura social permeada por ideologias que enfatizam sobremaneira a dimensão da

adaptação precisa ser combatida criticamente. Uma das dificuldades que surgem em

meio a esse processo, segundo o autor, é o empobrecimento da experiência; aponta que

“o defeito mais grave com que nos defrontamos atualmente consiste em que os homens

não são mais aptos à experiência, mas interpõem entre si mesmos e aquilo a ser

experimentado aquela camada estereotipada a que é preciso se opor” (2006c, p.148).

Valorizar a experiência, momento este de contato com a realidade, significa a

possibilidade de aumentar o nível de reflexão; a multiplicidade do real provoca a busca

por diferentes sentidos. Segundo Adorno, “a consciência é o pensar em relação à

realidade” (IBID., p.151); a formação da inteligência está para além de uma capacidade

lógico formal de pensar, porque, com a experiência, resgata-se a capacidade de

imaginação, empobrecida pela aridez das estruturas lógicas. Desse modo, assevera o

autor:

Este sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento lógico formal, mas este corresponde literalmente à

capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer

experiências intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor,

a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação.

(IBID.).

O tema da experiência também foi objeto de análise do filósofo Walter

Benjamin. Em um texto de 1933, intitulado Experiência e Pobreza, o autor destaca

aspectos importantes que levaram ao empobrecimento da experiência, que ocorreu,

principalmente, pela morte da narração, pelo enfraquecimento daquelas tradições

compartilhadas, que eram retomadas, transformadas e continuadas pelas gerações

seguintes. A importância da transmissão é ressaltada por Benjamin (1987, p.114)

através de uma lenda sobre um vinhateiro:

Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da

morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus

vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro.

Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa

experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho.

Benjamin não usa a fábula com fins moralizantes, com intuito de enobrecer o

trabalho e o esforço, mas para enfatizar a narração como momento concreto de

aquisição da experiência. Dessa forma, algo que pertence à memória viva passará para

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outras gerações, para além das pequenas vivências. A perda da experiência influi,

automaticamente, no desaparecimento das formas tradicionais de narração, que tem sua

fonte na memória. Tal processo é consequência das forças produtivas e da técnica que

se sobrepõem ao humano. Isso significa uma nova forma de barbárie; nesse sentido,

assevera o autor: “Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é

mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie” (IBID.,

p.115).

As teses de Benjamin sobre o empobrecimento da experiência estão em sintonia

com as ideias de Adorno, pois o processo de racionalização, acelerado pela lógica

capitalista e industrial, enfraqueceu o momento da experiência, fator importante para a

produção de narrativas, da memória, da imaginação. Um povo que não mais conhece

suas raízes torna-se acrítico. Assim expressa Adorno na conferência O que significa

elaborar o passado16

(2006d, p.33):

O que é o mesmo que dizer que a memória, o tempo e a lembrança são

liquidados pela própria sociedade burguesa em seu desenvolvimento, como

se fossem uma espécie de resto irracional, do mesmo modo como a

racionalização progressiva dos procedimentos da produção industrial elimina

junto aos outros restos da atividade artesanal também categorias como a da aprendizagem, ou seja, do tempo de aquisição da experiência no ofício.

Quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na

adaptação ao existente, nisto reflete-se uma lei objetiva de desenvolvimento.

O filósofo frankfurtiano reconhece que um dos fatores que levaram ao

empobrecimento da experiência encontra-se na falência da formação cultural. Essa era

responsável por propiciar, a partir dos espaços sociais, elementos que promoviam a

formação (Bildung); porém, com a difusão da lógica capitalista, tal processo foi

transformado; a formação cultural é alterada para uma semiformação (Halbbildung)

que, por sua vez, impede os ideais de emancipação, a busca de uma consciência

verdadeira. E, nesse processo de conversão da Bildung em Halbbildung, é possível

observar as consequências da instrumentalização da racionalidade científica.

No ensaio Teoria da Semiformação, o autor desenvolve, com clareza, uma

reflexão crítica sobre a semiformação, mostrando que esta conduz a um processo de

alienação. A crise da formação cultural não é um mero objeto de reformas pedagógicas,

ainda que relevantes, isoladas, entretanto, não trazem contribuições substanciais. Faz-se

necessária a construção de uma teoria mais abrangente que consiga compreender os

16

Palestra no Conselho de Coordenação para a Colaboração Cristã-Judaica, 1959; transmitida pela rádio

de Hessen em 7 de fevereiro de 1960.

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elementos da situação cultural. Assim expressa o autor (2010, p.9): “Apesar de toda a

ilustração e de toda informação que se difunde (e até mesmo com sua ajuda) a

semiformação passou a ser a forma dominante da consciência atual, o que exige uma

teoria que seja abrangente”.

A cultura, na tradição germânica, corresponde ao conjunto de criações

espirituais, tais como: as intelectuais, artísticas e religiosas. Ao mesmo tempo, a cultura

traz a exigência em relação à formação para a vida real, ou seja, adaptação. Por isso,

coloca-se em tensão o duplo caráter da cultura, para que a adaptação não se firme como

um esquema de dominação progressiva.

A formação cultural ganhou autonomia com a sociedade burguesa, visto que,

com a queda do sistema feudal, aumentou-se a possibilidade do usufruto pela população

dos bens espirituais. Segundo Adorno (Ibid., p.12-13), “o conceito de formação

emancipou-se com a burguesia (...) sua realização haveria de corresponder a uma

sociedade burguesa de seres livres e iguais”. A formação cultural possibilitou à nova

classe burguesa as habilidades para realizar as tarefas econômicas e administrativas, já

que “sem a formação cultural dificilmente o burguês teria se desenvolvido como

empresário, como gerente ou como funcionário” (IBID., p.14).

No desenvolvimento histórico, firmou-se, de um lado, o grupo dos burgueses,

possuidores dos meios materiais que, por sua vez, forneciam todo acesso aos bens

culturais para deleite do espírito; do outro lado, a imensa classe trabalhadora, privada do

acesso à formação cultural, submetida a longas jornadas de trabalho e a baixíssimos

salários. Tal antagonismo social entre trabalho material e espiritual não permitiu o

surgimento da sociedade pretendida, sem status e sem exploração. Dessa forma, “os

dominantes monopolizaram a formação cultural numa sociedade formalmente vazia. A

desumanização implantada pelo processo capitalista de produção negou aos

trabalhadores todos os pressupostos para a formação e, acima de tudo, o ócio” (IBID.,

p.14).

Com a revolução tecnológico-industrial e o desenvolvimento do capitalismo

monopolista, no século XX, a classe burguesa perdeu a hegemonia sobre os bens

culturais, e uma nova realidade cultural vai se implantando. Ocorre uma transformação

nos produtos culturais que perdem os valores de uso para ganharem valores de troca,

isto é, integram-se à lógica do mercado, são reproduzidos como qualquer outro objeto,

tornando-se mais acessíveis à grande população. Tal indústria da produção cultural

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esvazia o sentido formativo da cultura, privilegiando o momento da adaptação;

incentivam-se camadas imensas à formação, algo que antes era reservado para alguns:

O que antes estava reservado ao ricaço e ao nouveau riche converteu-se em

espírito popular. Um grande setor da produção da indústria cultural vive

dessa nova realidade e, por sua vez, incentiva essa necessidade por

semicultura. As biografias romanceadas que informam sobre os fatos

culturais mesclados a identificações baratas e vazias, ou o resumo de ciências inteiras, como a arqueologia ou a bacteriologia, adulteradas com

impressionante desfaçatez, convencem o leitor de que está au courant.

Confiante na ignorância, o mercado cultural dela se nutre e a ela reproduz e

reforça. A alegre e despreocupada expansão da formação cultural, nas

condições vigentes, é, de modo imediato, sua própria aniquilação (2010,

p.27-28).

O tempo livre deveria ser aquele momento destinado à reposição das forças

desgastadas pelo trabalho, não simplesmente sua exclusão; período de reorganização da

experiência, voltado para os interesses e necessidades que possibilitem o crescimento

cultural. Porém, quando os trabalhadores conseguiram melhorias na jornada de trabalho

e nos salários, conquistaram um tempo livre maior para o desenvolvimento da formação

cultural, mas tal experiência formativa continuou negada pela semiformação, que se

tornou uma espécie de prolongamento do trabalho, dificultando momentos de cultivo do

espírito; isso devido à indústria cultural que preenche o tempo com produtos de baixo

nível formativo. Desse modo, perde-se aquela seriedade para o exercício da criação,

como destaca Adorno (1995a, p.77): “Sob as condições vigentes, seria inoportuno e

insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre,

uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa”.

A semiformação não representa o meio caminho para a formação, pois “o

entendido e experimentado medianamente – semientendido e semiexperimentado – não

constitui o grau elementar da formação, e sim seu inimigo mortal” (2010, p.29). A meia

experiência não é caminho para a experiência; a meia verdade não é parte da verdade,

mas a privação dela. A semiformação não representa a assimilação de falsas ideias, pois

estas são logicamente descartadas. O que é tomado como verdade é o conhecimento

adquirido através da realidade, considerando-o como absoluto que, por sua vez, fomenta

uma postura de fechamento. A semiformação não propicia o desenvolvimento das

potencialidades, apenas fornece um verniz formativo que impossibilita o ir além da

superfície. Desse modo, “as consequências são a confusão e o obscurantismo, e, pior

ainda, uma relação cega com os produtos culturais não percebidos como tais, a qual

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obscurece o espírito a que esses produtos culturais dariam expressão viva” (IBID.,

p.30).

A semiformação torna-se um empecilho para a construção de pensamentos

críticos; atrofia a espontaneidade, a criatividade, gera o conformismo,

despotencializando a razão, para manter as análises em um baixo nível de

aprofundamento. É preciso perguntar sobre a “psicodinâmica de como pode o sujeito

resistir a uma racionalidade que, na verdade, é em sim mesma irracional” (2010, p.25).

Ao mesmo tempo, o ser humano tem sua vida sensorial afetada, já não capta o real nas

suas diferentes dimensões; isso conduz a um esgotamento da razão, a realidade já não

causa estranhamento, espanto ou suspeita. Nesse sentido, aponta Pucci, em seu artigo A

Teoria da semicultura e suas contribuições para a Teoria Crítica da Educação, que “o

capitalismo tardio e suas crias, a indústria cultural e a semicultura, limitaram o homem

em suas condições sociais e no tempo necessário para realizar suas experiências

formativas e lhes preencheram o tempo com vivências, emoções contínuas e de fácil

alcance” (1997, p.111).

A semiformação enfraquece a consciência em relação ao tempo e esvazia a

memória, que se constitui como a síntese da experiência em relação à formação cultural

vivida em outros períodos. Assim, “não é por acaso que o semiculto faz alarde de sua

má memória, orgulhoso de suas múltiplas ocupações e da consequente sobrecarga”

(ADORNO, 2010, p.33). Isso conduz ao processo de alienação da consciência, que já

não detecta as contradições presentes no desenvolvimento histórico, perde-se aquela

sensatez para perceber os rumos da humanidade. Dessa maneira, “a semiformação,

como consciência alienada, não sabe da relação imediata com nada, senão que se fixa

sempre nas noções que ela mesma aporta às coisas” (IBID., p.22).

Adorno enfatiza que não é possível mudar, isoladamente, aquilo que é produzido

e reproduzido nas situações objetivas da sociedade; impõe-se a reflexão sobre a

formação cultural, pois “a única possibilidade de sobrevivência que resta à cultura é a

autorreflexão crítica sobre a semiformação, em que necessariamente se converteu”

(IBID., p.39). Decifrar as determinações objetivas significa desmascarar a cultura que se

tornou ideologia; e, também, perceber a dominação presente no âmbito político e

econômico, pois a semiformação é a forma social da subjetividade determinada nos

termos do capital, como aponta Leo Maar (2003, p.468):

As condições da produção material existentes impõem esta forma cultural-

ideológica e são refletidas na semiformação. Esta é uma formação social

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determinada, sujeitada no curso da formação social destas formas

determinadas de produção e de formação, a sociedade, cuja forma dominante

de consciência será doravante a semiformação.

Portanto, pensar uma educação que supere a racionalidade instrumental significa

reconsiderar o papel da formação cultural, ou seja, os espaços sociais em que a maneira

de compreender o mundo se forma. Conforme Leo Maar (Ibid., p.473), “a educação,

para ser efetiva, é crítica da semiformação real, resistência na sociedade material

presente aos limites que nesta se impõem à vida no “plano” de sua produção efetiva”. A

educação deve propiciar a humanização e, ao mesmo tempo, evitar a barbárie, romper

com o tipo de consciência coisificada que instrumentaliza o pensar, que absolutiza a

técnica esquecendo-se de que ela é apenas a extensão do braço humano. É necessário

superar a frieza e a agressividade que se instauram nas relações. Além disso, é

importante privilegiar a tensão existente entre os momentos de autonomia e de

adaptação, em relação ao mundo, para que, assim, se produza uma consciência crítica.

Ao mesmo tempo, resgatar o valor da experiência, empobrecida pela ênfase racional,

para que se possa elevar o nível de reflexão, pois a multiplicidade do real provoca a

reflexão, a imaginação e a criatividade. Revalorizar a experiência representa reconhecer

a importância da formação cultural, das dimensões estéticas da existência, que fornecem

elementos formativos importantes para a construção de sujeitos autônomos, possuidores

de uma consciência verdadeira.

3.2. As exigências atuais de uma educação estética

Os conceitos filosóficos são criados em contextos específicos, visam responder

às situações concretas de uma determinada época. As categorias elaboradas são

fundamentais, pois analisam elementos particulares da realidade. Adorno contribuiu

com categorias importantes que foram e, ainda, continuam sendo fecundas para a

análise social. As categorias, porém, não são cristalizadas, precisam acompanhar a

dinâmica do movimento histórico, bem como as transformações sociais que afetam as

teorias e que tensionam por novas repostas.

A questão da educação estética torna-se um tema atual devido ao

aperfeiçoamento da tecnologia e dos meios de comunicação que ganharam novas

perspectivas com o advento da Internet, com o mundo digital, com a maior difusão e

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transformação da indústria cultural, que perpetua a semiformação, com a expansão e o

predomínio dos aparatos tecnológicos, que valorizam, sobremaneira, a racionalidade

instrumental.

O tema das novas tecnologias e mídias digitais não estava presente nas reflexões

de Adorno, isso devido ao tempo histórico em que o mesmo viveu. A análise do filósofo

sobre a racionalidade instrumental, sobre a noção de técnica, pode esboçar alguns

elementos para se compreenderem os rumos que as novas tecnologias tomaram e, ao

mesmo tempo, perspectivar suas bases nefastas. Em suas análises, pouco utiliza o termo

tecnologia e também não o diferencia do termo técnica, ambos parecem ter a conotação

do conhecimento científico moderno17

. A técnica é a concretização da razão alienada na

forma de máquinas. A tecnologia traz em seu bojo uma intencionalidade de precisão,

funcionalidade e dominação. Traz a própria alienação da razão. Qualquer suporte

tecnológico não escapa à lógica da ciência moderna, antes, reforça e concentra o capital

por meio da economia do tempo.

As críticas feitas pelo filósofo frankfurtiano eram endereçadas a uma tecnologia

mecânica, que foram cedendo espaço às novas tecnologias sedimentadas em outros

aparatos, em máquinas ou em sistemas, com bases científicas provenientes da Física,

Química, Matemática, mas, sobretudo, da Informática e Biologia. Até a década de 1940,

a tecnologia mecânica predominava. Em 1946, surgiu o primeiro computador eletrônico

chamado ENIAC (Eletronic Numeric Integrator and Calculator), com finalidade de

realizar cálculos militares. O surgimento do transistor foi o pontapé para miniaturização

dos componentes que tiveram seu desenvolvimento entre os anos de 1970. O primeiro

microprocessador foi comercializado em 1971, denominado Intel 4004, que permitirá,

depois, o aparecimento do computador pessoal, em 1975. A revolução microeletrônica

se caracteriza pela miniaturização do hardware e a maximização dos softwares. Ela

possibilitou sua aplicação em diferentes esferas da vida humana, por exemplo, na

militar, na econômica e industrial.

A informática, paulatinamente, liga-se às telecomunicações, principalmente com

o advento da Internet, que desenvolvida em meados de 1969, no período da guerra fria,

para intuitos militares, ganhou, em 1980, outras finalidades. Com o enfraquecimento da

guerra fria, a Internet passou a interligar laboratórios e universidades dos EUA, em

17 Para uma análise mais acurada à noção de técnica no pensamento de Adorno conferir a Dissertação de

Mestrado: DESUÓ, Naê Prada Rodrigues. Novas Tecnologias em tempos de Capitalismo Global: Da

atualidade da Crítica de T. W. Adorno à técnica, UNIMEP, 2006.

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seguida, como um meio de comunicação mundial. Nesse sentido, o novo contexto

tecnológico, sedimentado na hegemonia da razão instrumental, altera a forma de

percepção da realidade conforme assevera Costa (2002, p.31):

Uma das características da cultura mediática é a transformação na forma de o

indivíduo perceber a realidade circundante, tendo como suporte as novas

tecnologias e sua capacidade de justapor imagens, sons, movimentos, em alto

grau de excitação sensível. A cultura mediática, no processo (de)formativo,

requer mais o momento de adaptação ao ecossistema tecnológico do que

propriamente uma ação autônoma, necessária ao processo educativo. Sua

natureza se afirma com a hegemonia da razão instrumental, unindo

debilidade da experiência e o caráter pragmático do conhecimento.

Diante da nova conjuntura que se apresenta, para melhor compreender a

atualidade da reeducação dos sentidos e da racionalidade, serão apresentadas algumas

ideias do filósofo alemão Christoph Türcke, estudioso da Teoria Crítica, a partir de seu

livro Sociedade Excitada – filosofia da sensação, especificamente, o primeiro capítulo

intitulado Paradigma da Sensação, para, assim, estabelecer um diálogo com os

apontamentos de Adorno. O objetivo não é analisar minuciosamente as diferentes novas

tecnologias, mas perceber os impactos que as mesmas causam aos sentidos e à

racionalidade que, por sua vez, interferem na construção do conhecimento, na

concepção de mundo.

Türcke analisa o desenvolvimento do conceito sensação ao longo da história,

percebendo seus deslocamentos semânticos para compreender a sociedade atual,

constantemente bombardeada e excitada pela audiovisualidade, pelo espetacular, pelo

chamativo que, muitas vezes, determinam e ofuscam a forma de perceber, representar,

imaginar e pensar a realidade. Diante de uma sociedade da sensação, o autor apresenta

os fenômenos efêmeros que a demarcam, detecta que a identidade específica de tal

sociedade é a marca do provisório, ou seja, “somente o inconstante se tornou constante:

o estado de uma inquietude geral, de excitação, de efervescência” (2010, p.9). Adorno,

em seu livro Minima Moralia, apresenta alguns aspectos sobre o conceito de sensação

(1993, p.206):

Acerca da “pré-história da modernidade” muito ensinaria uma análise da mudança de significado sofrida pela palavra sensação, sinônimo esotérico do

nouveau de Baudelaire. A palavra universalizou-se na forma cultural

europeia através da teoria do conhecimento. Em Locke ela significa a

percepção simples, imediata, o contrário da reflexão. Mais tarde ela se

transformou no grande desconhecido e, finalmente, na excitação maciça, na

embriaguez destrutiva, no choque como bem de consumo. Ser capaz de

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perceber alguma coisa, sem se preocupar com a qualidade, substitui a

felicidade, porque a onipotente quantificação tirou-nos a própria

possibilidade de perceber.

Com o desenvolvimento tecnológico das mídias, houve um aperfeiçoamento no

processo de transmissão das notícias, que aumentou, em grande quantidade, a circulação

de informações. As pessoas, a todo o momento, são bombardeadas por inúmeras

notícias, e para que os interesses daqueles que produzem informações, - de acordo com

os ditames de uma sociedade do espetáculo e do consumo, - faz-se necessário manter,

sempre novas, as notícias. Aqueles que desejam manter-se atualizados precisam

selecionar, de forma imediata, a superabundância de assuntos oferecidos, devem estar

atentos para suas escolhas, diante de um tiroteio midiático. Com isso, o aparato

sensorial torna-se ultrassaturado, devido à forma violenta com a qual as notícias são

ministradas, representam uma injeção multissensorial. Hoje, para que algo seja digno de

atenção, precisa “causar uma sensação”, é o que destaca Türcke (2010, p.20):

Se tudo o que não está em condições de causar uma sensação tende a

desaparecer sob o fluxo de informações, praticamente não sendo mais

percebido, então isso quer dizer, inversamente, que o rumo vai na direção de

que apenas o que causa uma sensação é percebido.

A propaganda, para Türcke, ajuda a alimentar o bombardeio dirigido aos

sentidos, cujo objetivo é despertar o desejo por comprar as mercadorias difundidas. O

despertar pela propaganda para o ato de comprar é o “ponto crucial em torno do qual

toda uma nova cultura comunicativa é formada” (IBID., p.24). A propaganda deixou de

ser apenas um acessório no ramo das telecomunicações para se tornar sua condição de

existência, principalmente para o sistema televisivo e de radiodifusão, público, que

dispõem dos seus índices de audiências para atrair patrocínios. Sem dúvida, isso

acelerou a mudança de sentido da propaganda.

O desafio estético para se compor uma propaganda é enorme, pois exige a

concentração e concisão de efeitos audiovisuais em um curto espaço de tempo. O

comercial não apenas esclarece informações sobre o produto, mas deve adiantar aos

sentidos algo do prazer que a compra do produto promete. Türcke questiona se o

demasiado refinamento estético das propagandas não seria uma tentativa desesperada de

combater uma perda crescente da capacidade de ter prazer, justamente para remediar o

processo que gerou o embotamento dos sentidos. As propagandas tornaram-se uma

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nova forma de comunicação e percepção, porque comunicam informações aos sentidos,

com a mais alta intensidade:

Tanto mais pesa o comercial como nova forma de comunicação e de

percepção. Em nenhum outro lugar fica tão claro o que é alta pressão de

notícias do que nele – econômica, estética e fisiologicamente. Normalmente

uma companhia recebe uma fração de minuto como tempo de emissão, paga

por isso dezenas ou centenas de euros, dependendo do nível de audiência do canal em questão, e precisa exprimir sua cara mensagem nos poucos

segundos que tem à sua disposição. Por isso é preciso maquinar o mais

precisamente possível quais imagens e sons são capazes de criar

instantaneamente uma atmosfera de conforto, frêmito, ânsia ou inveja, quais

signos e quais cortes intensificam, barram ou descarregam os afetos – em

suma, a imensa pressão de custo e de tempo faz do comercial audiovisual um

laboratório estético-psicológico-fisiológico para o teste das formas

comunicacionais mais pregnantes (2010, p.28).

Türcke pontua que já em 1940, Adorno e Horkheimer destacaram que, tanto do

ponto de vista técnico, quanto econômico, a publicidade e a indústria cultural se

confundem. Entretanto, há no pensamento de Adorno e Horkheimer alguns limites a

respeito da compreensão de uma teoria econômica pouco sustentável, dado que “eles

acreditavam à época que a formação de grandes trustes e monopólios anunciava o fim

do mercado e, com isso, os últimos dias do capitalismo...” (IBID., p.35). Todavia, as

limitações relativas à teoria do mercado, nesse período, não descaracterizam as análises

sobre mercado e propaganda. Adorno e Horkheimer, alérgicos a qualquer tendência

totalitária, percebiam, nas recomendações dadas pelo comercial, o tom de comando do

Führer18

. Ambos “compreenderam, já nos anos 1940, ou seja, bem antes de qualquer

outra ciência social, a propaganda de maneira profética como protótipo de uma forma de

comunicação e de interação, que atravessa toda a sociedade” (IBID., p.36).

Quando a propaganda se torna a ação comunicativa por excelência, equivale a

uma constituição da presença social, torna-se autorreferencial, é condição de sua própria

existência. Nas palavras de Türcke, “quem não faz propaganda não comunica; é como

uma emissora que não emite: praticamente, não está aí. Fazer propaganda de si próprio

torna-se imperativo da autoconservação” (IBID., p.37). Isso significa dizer que aquilo

que não chama a atenção, constantemente, para si, que não causa uma sensação, pode

passar despercebido.

A compulsão por ser percebido instaura um novo tipo de comportamento social,

abre um capítulo singular da história humana. Türcke, sutilmente, reconhece que o lema

18

Führer significa em alemão condutor, guia, líder ou chefe, está associado a Adolf Hitler que usou o

referido termo para se designar líder da Alemanha Nazista.

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que fundamenta a sociedade da sensação já fora definido no século XVIII pelo filósofo

e teólogo anglicano George Berkeley a partir da sua ideia de que “ser é ser percebido”

(esse est percipi). A partir desse enunciado, Berkeley acreditou construir uma teoria do

conhecimento e da realidade, a qual reconhecia que o ser humano não consegue ser

independente das suas sensações. Nesse sentido, as coisas ganham existência quando

são percebidas:

O que não for sensação não existe para nós, pois não podemos compreender o

mundo passando ao largo de nossos sentidos. Mas então Berkeley tira a

seguinte conclusão: o que para nós não existe, não existe de forma alguma; o

que não é notado, sentido, percebido, simplesmente não é (2010, p.39).

É óbvio que há coisas que, mesmo não sendo percebidas, existem. No sentido

imediato pensado por Berkeley, a afirmação esse est percipi pode não fazer sentido. O

que chama a atenção para Türcke é que “sob circunstâncias de alta tecnologia que seu

autor nunca poderia imaginar, uma proposição insustentável começa a ser verdadeira”

(IBID., p.39).

Turcke destaca que o Estado nacional moderno desenvolveu-se como um mestre

do perceber, pois, para que os direitos fossem salvaguardados, era necessário ter os

registros pessoais devidamente efetuados. Os imigrantes ilegais eram os poucos

despercebidos que viviam em um estado de insegurança, porque não queriam ser

notados. Nesse sentido, ser notado significava ser controlado. Atualmente, com a

Internet, o armazenamento de dados tornou-se mais fácil, é possível, até, registrar o

comportamento, hábitos e inclinações de compra das pessoas. Ter um perfil de

consumidor delineado representa ser alguém diante dessa sociedade de consumo, pois

“quem nem mesmo consegue fazer-se percebido para ter um tal perfil simplesmente não

conta: não é ninguém” (IBID., p.41). A ideia de Berkeley, ser é ser percebido, torna-se

central em uma sociedade midiática que valoriza, sobremaneira, as imagens veiculadas.

Türcke destaca que a presença real fica inclusive pálida e apagada em comparação com

a midiática. Ressalta não ser por acaso que algumas atrizes já envelhecidas não se

mostram mais em público, com o intuito de preservar sua imagem construída na

juventude. Com isso, a “radiação física dissolve-se em uma radiação das mídias a ponto

de tornar-se irreconhecível” (IBID., p.42)19

.

19

Um exemplo atual apresentado por Türcke é o caso do cantor Michael Jackson, que a serviço da

radiação midiática, deixou-se reconstruir corporalmente, já não se reconhecia seu verdadeiro rosto, que

parecia ser apenas fruto de um artefato cirúrgico.

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Outro fator que acelerou a emissão foi o computador, que não se constitui

apenas como um instrumento de trabalho, mas entrecruza o processamento e

transmissão de dados, vídeos, imagens, se torna instrumento de trabalho e tempo livre,

de concentração e distração. As pessoas marcadas pela experiência do trabalho sentem a

necessidade de estar ocupadas a todo o momento; a ociosidade é encarada como um

tormento; o cuidado de si não é uma tarefa digna. O computador acaba suprindo duas

dimensões que estão esvaziadas de sentido, o da ocupação e da emissão. Dessa forma,

para Türcke, “a compulsão à ocupação é especificada em uma compulsão à emissão”

(2010, p.44). Não emitir equivale à experiência do vazio que a ociosidade traz,

juntamente com a sensação de não existência:

Quando a linguagem dos jovens se refere a alguém dormindo até tarde e

ainda sonhando como “ainda não conectado”, ela expressa bem mais do que

se imagina, a saber, a lei básica de uma nova ontologia: quem não transmite

não está “aí”. Não irradia nada. Em um sentido imediato isso é tão falso

quanto o esse est percepi. Todos irradiam, mesmo se o cheiro de seu corpo

for leve, sua respiração, fraca, sua postura, gestos e caras, tão discretos que

praticamente não se possam percebê-los. No entanto, quando a tecnologia vai

tão fundo no indivíduo que cada um não pode senão metamorfosear-se em um transmissor de si próprio, então sua radiação pessoal é obscurecida por

uma etérea, que abala o próprio fenômeno do estar-aí (IBID., p.45).

A tecnologia trouxe uma nova condição existencial que modificou a forma de

relação com o mundo. Türcke destaca que se uma televisão quebrar, as pessoas não

voltam, como antigamente, a jogar dominó; da mesma forma, quando o computador está

com algum problema, não se volta à boa e velha máquina de escrever. O sintoma se

assemelha à abstinência sofrida por um paciente quando lhe retiram o medicamento. A

ausência dos aparatos tecnológicos “mostra o quanto é real aquilo que pretensamente

seria somente uma realidade virtual, e o quanto se faz pálido e insosso o aqui e agora”

(IBID., p.46). A compulsão à emissão se insere no contexto específico das condições

microeletrônicas, é preciso estar ligado, conectado em condições de emitir.

As exigências para emissão adquiriram uma forma eminentemente estética, pois

esta “ganhou um peso ontológico como nunca tivera. Isso também faz parte do esse est

percipi” (IBID., p.65). Vale destacar que a emissão não é uma via de mão única, uma

vez que quem emite também recebe. Nesse sentido, ser é perceber, ou seja, quem não

tem sensações deixa de existir, não é. A aparelhagem midiática explora, ao máximo, a

percepção, deixando entediante a rotina sem a sua presença, pois eleva, ao mais alto

grau, o nível de excitação proporcionado aos sentidos. Torna-se difícil concorrer com a

torrente de estímulos midiáticos. O demasiado conjunto de estímulos gera um paradoxo,

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deixa o organismo incapaz de processá-los, devido à enorme quantidade de estímulos

fornecida; para Türcke, isso se assemelha ao contato com uma torrente de água:

Quando se está sob uma torrente de água, os sentidos de equilíbrio e de

orientação, ou seja, uma camada profunda do sentimento de si próprio, ficam

vitalmente afetados. Quem é pego em um redemoinho tem a cada instante um

aqui e agora diferente. No entanto, não pode localizar-se, orientar-se e, muito

menos, apresentar-se. O afogamento na torrente de estímulos é parecido.

Nem de longe tão veemente, mas igualmente constante, ela também ataca o

sentido de orientação. Não que tire de eixo da mesma forma, mas toca em

algo que está intimamente ligado à sensação de equilíbrio (2010, p.66).

Para que a percepção seja atingida, superando a saturação dos sentidos, é

necessário que os estímulos tornem-se verdadeiros choques. As imagens, os sons,

apresentam-se de forma cada vez mais rápida e violenta; a sucessão de dados ocorre em

uma velocidade avassaladora. Tal constante movimentação expressa a desconfiança

sobre o efeito da imagem individual, é preciso uma gama de imagens intensas, que

provoquem novas sensações complexas e variadas. O bombardeio audiovisual adormece

os sentidos, anestesia-os, sendo necessárias doses mais fortes para despertá-los:

A dose atual de imagens e sons de pessoas feridas, desfiguradas,

aterrorizadas, fugindo de algo, sem roupa, as cenas de assassinato e de sexo,

que já representam a normalidade no cenário dos programas, praticamente

não mais podem ser percebidas senão como uma preparatória para novas

doses aumentadas de excitação. A reality-TV é um verdadeiro progresso

nessa linha. Estar ao vivo o mais possível quando casas pegam fogo, aviões

caem, pilotos de carros sofrem acidentes, quando se fazem reféns. Produzir o

calafrio de uma vivência autêntica: isto aqui não foi montado, é de verdade (IBID., p.68).

Diante da necessidade de gerar, constantemente, novos estímulos, a televisão,

com uma enorme quantidade de canais, torna-se um aparelho eficaz para esse processo.

Com o controle remoto, o telespectador pode escolher, entre os inúmeros canais,

aqueles que mais o estimulam. As emissoras precisam de programas que tenham a

capacidade de prender a atenção das pessoas, pois a concorrência tornou-se enorme.

Cada escolha realizada significa abrir mão de outras inúmeras possibilidades, sendo

cada decisão marcada pela suspeita do equívoco. Com a Internet, não é diferente; por

exemplo, a busca realizada de um determinado tema apresenta uma infinidade de links,

textos que levam para outros textos, que prometem leituras mais excitantes. Tal gama de

possibilidades causa a indecisão sobre o que, de fato, é mais importante ler. As dúvidas

para escolher os melhores programas, as melhores leituras, geram, segundo Türcke, “um

imenso potencial de distração, um tipo de percepção que não mais sente a si própria

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como tal, porque está à disposição, não pode mais envolver-se com nada sem reservas,

sempre mirando de soslaio para outras coisas” (IBID., p.70).

O tema da distração é abordado por Adorno de modo geral, no seu ensaio “Sobre

o fetichismo na música e a regressão da audição”. Nesse ensaio, o filósofo investiga a

questão das transformações da música em mercadoria, também analisa sua recepção

pelos ouvintes, que já não fazem uma escolha livre do que ouvem. Destaca que a

música, ao regredir para o âmbito do entretenimento, gera a desatenção. Diz o autor que

“a falta de compromisso e o caráter ilusório dos objetos do entretenimento elevado

ditam a distração dos ouvintes” (1999, p.85). A experiência, marcada pelo rápido

esquecer e recordar, está inserida num sistema que altera a forma de percepção:

O modo de comportamento perceptivo, através do qual se prepara o esquecer

e o rápido recordar da música de massas, é a desconcentração. Se os produtos

normalizados e irremediavelmente semelhantes entre si, exceto certas

particularidades surpreendentes, não permitem uma audição concentrada sem

se tornarem insuportáveis para os ouvintes, estes, por sua vez, já não são absolutamente capazes de uma audição concentrada. Não conseguem manter

a tensão de uma concentração atenta, e por isso se entregam resignadamente

àquilo que acontece e flui acima deles, e com o qual fazem amizade somente

porque já o ouvem sem atenção excessiva (IBID., p.92).

Tais mecanismos que propiciam inúmeras sensações que afetam os sentidos

geram a distração; isso ocorre devido à excitação constante a que expõe o sentir

humano. Desse modo, é possível pensar aspectos em relação ao processo formativo,

pois, diante do panorama apresentado, é preciso repensar as práticas educativas que

salvaguardem a construção de uma educação estética. O bombardeio ao qual os sentidos

são expostos tem, como uma das consequências, a distração. Do ponto de vista da

educação formal, os educadores sofrem para transmitir os conteúdos aos alunos que

estão acostumados com uma forma de recepção que impacta os sentidos. As aulas

podem se tornar cansativas e entediantes. O professor, apenas com sua voz, dificilmente

consegue manter a concentração dos seus estudantes, por isso, comumente, precisa se

apoiar em recursos audiovisuais para despertar o interesse.

A velocidade com a qual as notícias são veiculadas gera o empobrecimento da

memória, pois, ao se receber uma notícia, logo outra chega ocupando seu espaço. A

memória se acostuma a guardar conteúdos relâmpagos, que não criam raízes para

fomentar pensamentos fecundos e críticos. Investir na educação estética representa

salvaguardar o cultivo da memória, para que as pessoas não esqueçam seu passado e

tenham clareza a respeito do rumo da história. Tal perspectiva possibilita, ao mesmo

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tempo, não olhar, de forma superficial, para a realidade, mas com profundidade,

captando os detalhes. A superficialidade com a qual se estabelece as relações impede

uma entrega verdadeira à coisa, consequentemente, dificulta o encontro com a verdade

que depende dessa relação; além disso, relega para segundo plano a concentração a

respeito do que realmente é importante conhecer da realidade:

O pensar, enquanto ato subjetivo, deve primeiro entregar-se verdadeiramente

à coisa, onde, como o ensinaram Kant e os idealistas, constitui ou inclusive produz a coisa (...) O momento ativo do comportamento pensante é a

concentração. Ele se opõe ao desvio em relação à coisa. Através da

concentração, a tensão do Eu é mediada por algo que se lhe contrapõe. Hostil

ao pensar é a avidez própria do olhar que se distrai através da janela,

querendo abarcar tudo (...) A concentração do pensamento confere ao pensar

produtivo uma propriedade que o clichê lhe nega. Ele se deixa comandar,

nisso não deixando de assemelhar-se à inspiração artística, na medida em que

nada o distrai da coisa (ADORNO, 1995b, p.18-19).

Adorno, no aforismo Paysage do seu livro Minima Moralia, ao analisar a

paisagem americana, assinala: “o que o olhar apressado viu apenas de dentro do

automóvel não pode ser retido e, como lhe fazem falta os traços, assim também

desaparece sem deixar traços” (1993, p.41). Essa experiência ilustra o que as pessoas

vivem na sociedade da sensação: veem, vivenciam, sentem tudo, de forma apressada,

como se fossem paisagens vistas do interior do carro, mas nada retêm, já que tudo é

apresentado de forma muito rápida; os bombardeios aos sentidos não permitem a

assimilação, com maiores detalhes. A educação estética pode ajudar a lidar melhor com

as informações que chegam aos sentidos, cultivando os conhecimentos que sejam

importantes para despertar a autonomia. Nesse sentido, “os pensamentos que são

verdadeiros devem renovar-se incessantemente pela experiência da coisa, a qual, não

obstante, só neles recebe sua determinação” (ADORNO, 1995b, p.21).

Por fim, as análises de Türcke a respeito da sociedade da sensação mostram a

necessidade de uma educação estética que auxilie as pessoas a lidarem com o

bombardeio a que seus sentidos são submetidos. A convergência de olhares entre

Türcke e Adorno demonstra a importância de uma educação estética como um caminho

salutar para a formação, para o resgate do pensamento crítico.

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3.3. A estética como experiência formativa

As contribuições estéticas de Adorno enriquecem, sobremaneira, sua obra

filosófica. Suas análises não estão desconectadas das preocupações reais que afligem a

sociedade. A decadência da formação cultural, a monopolização da subjetividade pela

indústria cultural, o demasiado formalismo racional que instrumentalizou o pensar

desafiaram o filósofo a refletir e apontar alternativas que pudessem favorecer o

reaprendizado do pensar crítico. Com isso, ao trabalhar aspectos do campo da estética,

sinaliza elementos que podem favorecer a formação humana, tanto para reeducar a

sensibilidade, quanto a racionalidade.

Um dos pontos importantes na estética adorniana se refere à prática ensaísta,

como forma de se contrapor a reificação do pensar, através do exercício estético de

compor os conceitos, extraindo seus diferentes sentidos que foram, ao logo do tempo,

sedimentados. O ensaio, por ser assistemático, escapa às garras da totalidade que almeja

aprisionar o real. A dimensão interpretativa destacada por Adorno, como tarefa

filosófica, possibilita aguçar o exercício de não aceitar o mundo tal e qual ele se

encontra, mas, sutilmente, de captar os detalhes da existência. A totalidade camufla as

tensões concretas do real, mascara as injustiças; é ideológica por gerar a identidade

entre coisas e ideias. O ensaio valoriza a percepção daquilo que é produzido

historicamente. Com isso, desafia a reflexão do diferente na realidade, ou seja, das

realidades heterogêneas que escapam à visão de sistema; suscita a liberdade de espírito

para superar as prescrições; busca penetrar as múltiplas significações do real; desperta a

espontaneidade; e exige, ao mesmo tempo, a rigorosidade na forma de exposição.

No ensaio, valoriza-se o fragmentário, o transitório, renunciando à crença no

definitivo, pois a ordem das coisas não é a mesma que a das ideias, devido às mudanças

constantes da realidade. Dessa forma, é questionável o pensamento que se fecha em

dogmas e que desconsidera a experiência histórica. A visão de sistema é criticada pelo

ensaio que não se prende, de forma ingênua, aos significados conceituais; a totalidade

pode esconder os elementos irritantes e perigosos que vivem nas coisas. O ensaio elege

a vida como palco da experiência intelectual; não se preocupa em buscar fundamentos

inabaláveis; não se prende, apenas, ao procedimento analítico; enfrenta a complexidade

do real. O ensaio pensa em fragmentos porque a realidade é fragmentada; com isso, não

camufla os antagonismos e contradições. Sua forma de exposição é compor

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experimentando; perceber as diferentes facetas do objeto; superar a solidez rígida de

uma verdade pronta e acabada. Contém, assim, o elemento dialético para criticar o

abstrato conceito, não operando, automaticamente, mas refletindo sobre si mesmo, para

reeducar o demasiado racionalismo com o qual os conceitos são tratados.

Outro aspecto salutar na proposta adorniana se refere à dialética negativa como

crítica ao espírito de sistema que visa absorver as diferenças do real. A dialética

negativa procura captar o que está fora da unidade conceitual a partir de uma lógica

consistente; questiona a suposta adequação entre pensamento e realidade, não

esquecendo-se da insuficiência do conceito. As análises sobre a realidade precisam

reconhecer o não-idêntico, os elementos contraditórios, diversos que, muitas vezes,

escapam à totalidade. É necessário ultrapassar o conceito para atingir o não-conceitual,

as dimensões desprezadas, rejeitadas e não abarcadas. O conceito é importante, mas não

deve ser tomado como absoluto, de forma autossuficiente, ao ponto de menosprezar o

que está para além do abstrato. Desse modo, extinguir a autarquia do conceito significa

arrancar a venda dos olhos; reconhecer que o conceito está entrelaçado em um todo não

conceitual.

A dialética negativa valoriza o mergulho nas realidades heterogêneas, sem

reduzi-las a categorias pré-fabricadas; consegue ir além da rigidez do método científico;

recuperando o momento expressivo do pensamento, elemento este de cunho estético. O

próprio sofrimento humano, reprimido e esquecido pela racionalidade, recebe voz ao ser

elevado ao âmbito do conceito, suscitando a consciência por transformação. O mundo

não deve ser compreendido de forma hegemônica a partir de uma lógica universalizante.

É preciso utilizar os conceitos dentro de um procedimento constelatório para perceber a

história coagulada presente nas coisas. A dialética negativa desmascara a falsidade na

qual a realidade se encontra, especificamente, as contradições entre o real e o pensar;

desmistifica a síntese dialética que apaga as diferenças no conceito, superando a ilusão

de apoderar-se do múltiplo. Assim, torna-se crítica à racionalidade cristalizada em

sistemas que rejeitam o dinamismo e a complexidade do real.

Para a educação, tais elementos que o exercício do ensaio propicia, juntamente

com a perspectiva fornecida pela dialética negativa, são de extrema importância;

obrigam o pensamento a ser rigoroso, a pautar-se pela forma de expor o conteúdo como

algo não indiferente à ideia transmitida. A linguagem precisa ser bem elaborada para se

aproximar daquilo a que almeja dar vida. Isso exige vigilância, sensibilidade e constante

busca pelo pensar, para contrapor-se e superar as facilidades enganosas e deformadoras

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que chegam à consciência. O rigor da exposição, na escolha das palavras, possibilita, ao

máximo, aproximar-se daquilo que está adormecido e escondido nas coisas. É um

esforço por narrar em conceitos as tensões subjacentes, desnudar a interioridade do real,

constatar as marcas que foram esquecidas ao longo da história, ofuscadas pela

instrumentalização do pensar.

A respeito das contribuições específicas da arte, estas possibilitam gerar um

equilíbrio entre os elementos sensoriais e racionais; não impondo uma verdade absoluta,

mas ampliando os horizontes sobre a realidade. Com isso, a percepção humana é

valorizada na sua totalidade, sem haver um predomínio racional. A experiência estética

suscita o pensar para além do enquadramento da razão; favorece a expressão do não-

idêntico, pois consegue dizer aquilo que o discurso abstrato não capta. Ao mesmo

tempo, a arte pode desvelar a ilusão na qual a realidade se encontra: manifestar o

sofrimento, desejos, sentimentos e anseios que a racionalidade reprimiu através da

imposição de padrões sobre a corporeidade. A experiência estética favorece resgatar a

sensibilidade desprezada, através de diferentes manifestações artísticas que despertam

os sentidos.

A racionalidade estética é original, pois não se restringe aos padrões de uma

lógica científica. Isso não significa desconsiderar a racionalidade que está presente no

processo de feitura da arte; a crítica se dirige à coisificação da razão. A arte, por

despertar a admiração e o estranhamento, favorece o permanente pensar, sem o

fechamento a verdades impostas. A experiência estética permite a abertura para o

diferente, salvaguarda a alteridade, pois a arte sabe lidar com as contradições, supera o

medo para acolher o inesperado, elementos que a racionalidade esclarecida procura

eliminar. Nesse sentido a arte defende o não-idêntico e as particularidades que escapam

ao universal, desperta diferentes perspectivas sobre a realidade. No dizer de Adorno

(2001, p.12), “a arte incorpora algo como liberdade no seio da não liberdade. O fato de,

por sua própria existência, desviar-se do caminho da dominação a coloca como parceira

de uma promessa de felicidade, que ela, de certa maneira, expressa em meio ao

desespero”.

Os elementos estéticos se tornam importantes para reeducar a sensibilidade

domesticada pela razão e pelo processo de produção capitalista, que também

industrializa as percepções e anseios humanos, adaptando-os ao sistema de produção e

sustentação. A dimensão cultural que respira um clima social industrializado não

consegue despertar autonomia e liberdade, embrutece as relações humanas, educa os

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sentidos com estereótipos que não rompem os limites das preocupações com a

sobrevivência. Aquilo que é visto, sentido, interpretado não passa de um verniz; tal

superficialidade ausenta o olhar dialético para intervir e transformar a realidade. A

verdadeira experiência estética não estabelece uma relação consumista e imediata, que

massifica e embota os sentidos; mas favorece uma experiência que libera os sentidos

para aguçar a percepção sobre a realidade, propiciando um permanente estado de

reflexão. Para Luiz H. Fabiano (1997, p.175), a educação estética transcende a

instrumentalização do pensar:

Os sentidos mais atentos e dinamizados pela intenção estética possibilitam ao

sujeito transcender a mera razão instrumental com que atua na transformação

da natureza. Pela arte o homem se educa e reeduca constantemente a sua

condição de superioridade em relação à instrumentalização da natureza e se

humaniza. A sua visão se alarga pelos desafios mentais a que se obriga no

processo de fruição estética, que não é tão-somente contemplativo e sim

interativo. A sua imagem histórica se revela porque a realidade decodificada

se manifesta enquanto pensada por um tipo de reflexão e assim ele se

constrói enquanto sujeito e não como objeto ideologicamente útil.

É preciso reverter o processo gerado pela indústria cultural que veicula imagens

vazias, estereotipadas e que massificam os sentidos, para uma estética que tenha

intenções educativas, que resgate o imaginário, a criatividade, a espontaneidade,

expressões de uma subjetividade livre e emancipada. Para Susan Buck Mors (1981,

p.250), a experiência estética se constitui para Adorno na mais adequada forma de

conhecimento, pois inter-relaciona a razão e os sentidos:

En el sistema hegeliano se le concedia al arte una función cognitiva racional, pero se lo relegaba a una esfera inferior en comparación con la filosofía, así

como Kierkegaard había condenado el modo estético de experiência vivida a

un nível menor en comparación con la espiritualidad. Oponiéndose al

idealismo racionalista y al existencialista, Adorno sostenía que la experiência

estética era en realidad la forma más adecuada de conocimiento, porque en

ella sujeto y objeto, idea y naturaleza, razón y experiência sensual estaban

interrelacionadas sin que ninguno de los pólos predominara – em síntesis,

proporcionando un modelo estructural para el conocimiento “dialético”,

materialista.

A estética torna-se forma de conhecimento devido à sua busca por representar o

mundo; por criar um universo simbólico ligado à sensibilidade, à intuição, ao

imaginário, elementos que dinamizam a racionalidade sem excluí-la. A representação

suscita questionamentos que, por sua vez, convertem-se em elementos formativos, pois

as interrogações sobre a realidade significam não aceitá-la ingenuamente. No dizer de

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Marc Jimenez (2008, p.17), “acontece com a estética o mesmo que acontece com a

filosofia, em que a arte de colocar os problemas é muitas vezes mais importante do que

a solução”.

Para Maria Seabra Loubet (1993, p.62-3), a aprendizagem estética possibilita

três vias para a formação. Em primeiro lugar, proporciona uma sensibilidade lúdica, ou

seja, desperta a livre curiosidade, a iniciativa para o criar, introduzindo o sentido do

jogo, em que a ação em si é mais significante que o produto final conseguido. Desse

modo, a “atividade que se insere eminentemente na ordem do fazer, serve como

primazia, pelo seu cunho criativo, na adoção de um modelo de metodologia da

aprendizagem”. Em segundo lugar, viabiliza uma sensibilidade equilibrante,

contrabalanceando os limites da razão discursiva que, por privilegiar um raciocínio

lógico, possui uma lacuna do ponto de vista da compreensão existencial. E, por fim,

uma sensibilidade liberadora, que se expressa na descoberta de uma configuração

específica, seja do ponto de vista pessoal ou social. Assim, “uma identidade cultural só

é mantida e desenvolvida quando as peculiaridades internas de um povo o

singularizam”. A identidade cultural se faz importante para não cair nas garras da

padronização que massifica as expressões culturais, tão importantes para a formação da

consciência.

A supracitada autora apresenta uma distinção entre o conhecimento científico e o

estético; ressalta que, enquanto para a ciência a preocupação se encontra na construção

de um conhecimento visando ao geral, subsumindo os casos particulares debaixo de leis

gerais; a estética, em contrapartida, busca o singular, evidenciando uma maior

quantidade possível de observações em torno de fatos singulares e únicos (1993, p.59).

Destaca uma distinção interessante proveniente de Baumgartem, filósofo alemão (1714-

1762), criador do termo estética, que “contrapunha a „clareza extensa‟ do cientista que

conceitualiza, generaliza e classifica os conhecimentos à „clareza intensa‟ do poeta que

vê as coisas por inteiro e conserva o valor vivencial de uma experiência” (IBID., p.65).

A expressão artística lida com a dimensão mais intuitiva, mimética, dando

margens para pensamentos não rotineiros, dinamizados pela inspiração, estabelecendo

novas relações simbólicas. Num primeiro momento, a criação é pré-simbólica, pré-

verbal, em seguida, materializada em símbolo. Nesse processo, o jogo ensaístico que dá

margens para a diversidade da experiência e da experimentação se faz importante, como

forma de perspectivar, de diferentes maneiras, a realidade, para deixar fluir o sentir

humano, suas dores, alegrias, tristezas, angústias, dramas.

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A valorização da dimensão estética reconhece aspectos importantes, como a

criatividade e a imaginação, desconsiderados pelo esclarecimento que priorizou a

racionalidade. A imaginação fomenta o processo criador; a arte de inventar (ars

inveniendi) é auxiliada pela fantasia para superar os enquadramentos formais. As

dificuldades geradas pela ênfase racional podem ser trabalhadas pelo incentivo à

criação, pelo despertar da imaginação.

A arte, ao trabalhar dimensões que escapam à linguagem, explora regiões que

não são abarcáveis pelo pensar. Nesse sentido, reconhece os limites da linguagem

humana; articula conhecimentos que não podem ser expressos discursivamente. Essa

seria uma função pedagógica da arte, isto é, demonstrar experiências importantes que

não são acessíveis ao pensamento discursivo. Quando uma arte transmite, de maneira

objetiva, determinados sentimentos, possibilita ao espectador a compreensão de

dimensões profundas da sua existência. O ser humano não está preso apenas ao mundo

físico, constrói dimensões simbólicas; não se reduz ao âmbito racional, mas é afetado

por diferentes emoções. Desse modo, a arte, por ser fruto da experiência histórica, ajuda

a enfrentar os sentimentos, a conhecer aspectos que permeiam a constituição social e

humana, gera um equilíbrio entre as faculdades intelectuais, imaginativas e emocionais.

Através da experiência estética, a imaginação amplia os limites impostos pela

razão, função esta de cunho pedagógico, pois liberta o pensamento das rotinas impostas

que direcionam a forma de interpretação do real. A arte torna-se fator de descoberta

devido à imaginação que cria elementos, até então, insuspeitados, experiência que gera

prazer pelas novidades encontradas. O caráter enigmático presente na arte tensiona a

busca por sentidos. Tais descobertas exercitam a reflexão. Dessa forma, a experiência

estética favorece alternativas à ação humana para reinventar a própria existência perante

a realidade danificada.

A experiência estética é pedagógica por favorecer o reaprendizado do papel da

linguagem humana, que não se reduz à utilização de símbolos lógicos que representem,

fielmente seus objetos, numa perfeita adequação entre o que é representado e a própria

realidade. Além disso, exercita a compreensão de elementos para além dos domínios da

linguagem, pois os conceitos são reificados, por serem frutos de uma racionalidade que

instrumentalizou o pensar. Há um poder que reside na linguagem devido a toda

classificação e legislação à qual está submetida. Segundo Roland Barthes, a língua

impõe e direciona as conotações sobre o que diz do objeto, ou seja, “ela é simplesmente:

fascista, pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (2007, p.14).

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A língua está consequentemente a serviço de um poder. Os signos que compõem

a linguagem servem para estabelecer uma relação gregária, pois se constituem a partir

de um consenso ao qual as pessoas estão submetidas. Instaura-se uma relação de

servidão e poder, em que a própria liberdade é tolhida pela linguagem. Para R. Barthes,

é preciso esquivar-se desse fardo imposto pela linguagem, é necessário trapaceá-la, ou

seja, utilizar da língua fora do discurso do poder (IBID., p.16). Dentro da perspectiva

adorniana, isso representa superar o conceito pelo próprio conceito, reconhecendo seus

limites, suas sedimentações históricas, através do exercício estético de compor os

conceitos.

Para o filósofo Nietzsche (1978), a inteligência é algo tipicamente humano e por

causa dela a realidade pode ser conhecida. Contudo, tal característica peculiar gera um

certo orgulho ligado ao conhecer e ao sentir sobre a existência. Nietzsche tece uma

crítica à exaltação da razão, avalia as verdades estabelecidas, porque elas se ligam

diretamente à linguagem.

A linguagem, segundo Nietzsche, tem como finalidade gerar as convenções

sociais, pois o ser humano tem necessidade de viver gregrariamente, o que exige certos

padrões de conduta elaborados pela linguagem. O que se pode, porém, conhecer da

realidade pelas palavras? Os conceitos elaborados não conseguem abarcar todas as

dimensões da realidade, são apenas metáforas construídas pela ótica humana. A verdade

que se impõe pela linguagem não passa de uma invenção humana. Nietzsche (1978,

p.48) afirma:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,

antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram

enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo

uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são

ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e

sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em

consideração como metal, não mais como moedas.

Para o filosofo E. Cassirrer, a linguagem, por ser metafórica, está muito próxima

do mito, pois este também se utiliza de símbolos para explicar a realidade. Essa é uma

experiência que marca o homem primitivo; a palavra possuía um poder mágico; as

palavras pronunciadas corretamente dominariam a natureza. Aos poucos, essa visão

mágica sobre a palavra foi sendo superada por uma função semântica; o caráter lógico

ganha destaque; é preciso entender o que a fala significa para se compreender o

universo.

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A comunidade humana não existiria sem a linguagem, essa, porém, constitui-se

por uma grande diversidade. Os conceitos elaborados pelas diferentes línguas conduzem

para uma determinada maneira de organizar o pensamento e compreender a realidade.

Há uma transição do mundo subjetivo para o objetivo, como resultado da fala que

molda a forma de pensar. Assim demonstra E. Cassirrer (1994, p.219):

Para o adulto, o mundo objetivo já tem uma forma definida como resultado

da atividade da fala, que de certo modo moldou todas as nossas outras

atividades. Nossas percepções, intuições e conceitos fundiram-se com os

termos e formas discursivas da nossa língua nativa. São grandes esforços para

desatar os laços entre as palavras e as coisas.

Desse modo, a experiência estética favorece, pedagogicamente, um novo

dinamismo na sua relação com a linguagem humana, superando as imposições na forma

de construção do pensamento. Apresenta novas perspectivas sobre o conhecimento da

realidade. A experiência estética possibilita perceber que a verdade não se reduz ao

pensamento conceitual. Nessa perspectiva, aponta Lúcia Santaella (1994, p.94), ao

comentar o pensamento de Adorno:

Mantendo o antigo valor hegeliano da verdade, mas deslocando a prioridade

desse valor da filosofia para a experiência estética, Adorno evidenciou que a

filosofia deve aprender com a estética que o pensamento conceitual não é

tudo. Ao revelar uma verdade que lhe é própria, a arte evidencia quão

dilatado é o reino da verdade e quão pouco território desse reino é ocupado

pelas reflexões conceituais. Há muito para ser compreendido que escapa às

formas de controle do pensamento filosófico tradicional.

A arte é fruto da cultura e do período histórico que, por sua vez, é marcado por

maneiras próprias de pensar e sentir o mundo. Exprime questões concretas que

permeiam o existir humano. Tais fatores tornam-se pedagógicos por fornecerem uma

cosmovisão da época, a experiência real de um povo, as transformações ocorridas, os

anseios utópicos. Nesse sentido, aponta Duarte Junior (1988, p.111) que os artistas são

as antenas da civilização, ou seja, “são eles que captam aquilo que está por vir, que está

na iminência de acontecer, expressando-o em suas obras. Assim, a arte pode despertar

para o que pode ser construído, para um projeto de futuro, para uma utopia”.

O desenvolvimento tecnológico penetrou profundamente na sociedade

transformando as relações sociais, a maneira como se elabora o pensar, o sentir, o

imaginar, o criar. A intensidade, a velocidade, a pressão, causadas por aquilo que as

mídias veiculam, transformam tudo em provisório; alteram a percepção sobre o real;

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geram a superficialidade do pensar que passa a operar a partir de estímulos; a distração

impossibilita visualizar as coisas por inteiro; as peculiaridades, o não-idêntico, os

antagonismos e contradições, os detalhes que constituem a complexidade do real, a

dinâmica histórica. Entretanto, a educação estética pode ser uma possibilidade de

construir uma postura de vigilância em torno daquilo que chega aos sentidos. Dessa

maneira, reeducar os sentidos significa também reeducar a racionalidade.

As contribuições filosóficas de Adorno mostram algumas alternativas para o

processo formativo, pensando de forma integral a pessoa humana, que não se encontra

desconectada da realidade e que sofre as interferências das relações sociais, daquilo que

capta ao seu redor. O filósofo salvaguarda o equilíbrio entre razão e sentidos; ambos

constituem duas dimensões essenciais para o processo de conhecimento. É preciso,

assim, liberar os sentidos saturados pela massificação, para aguçar a percepção;

dinamizar o pensamento; superar os estereótipos; problematizar a interpretação sobre a

realidade; perceber o diferente; as múltiplas significações que permeiam a realidade e

que escapam aos ditames da razão, cujos detalhes passam despercebidos para uma

sensibilidade menos aguçada. Enfim, Adorno propõe, como saída estética, uma

reeducação dos sentidos a fim de resgatar o papel emancipador da razão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do trajeto percorrido na pesquisa, ficou evidente a relação entre as

reflexões filosóficas e estéticas na obra de Adorno. Sua filosofia, construída de forma

ensaística e assistemática, demonstra a capacidade expressiva de compor, esteticamente,

os conceitos, para, assim, comunicarem, com clareza, o pensamento. A tensão

instaurada entre arte e filosofia torna-se salutar para dinamizar a busca pela verdade. Ao

mesmo tempo, o pensamento do filósofo pode colaborar com diferentes elementos

formativos.

A análise da crítica adorniana à razão possibilitou compreender o processo de

racionalização que, ao instrumentalizar o pensar, ofuscou suas potencialidades. A

proposta iluminista de progresso e emancipação humana reverteu-se para uma ótica de

controle que passou a dificultar o desenvolvimento humano. O método científico

enfatizou, como pensar válido, aquele que possuía características práticas, úteis e

calculáveis. A racionalidade ganhou conotações instrumentais estando a serviço da

dominação e desencantamento da realidade. O processo de controle racional exerceu

uma violenta repressão, tanto na natureza interna, quanto externa das pessoas. Essa nova

forma de relação faz com que objetos e pessoas sejam tratados como coisas

manipuláveis, expressão de uma consciência reificada e alienada, que está a serviço do

processo técnico. Com isso, as capacidades criativas e emancipadoras do pensar são

inibidas.

O esclarecimento, com sua luz radiante dos princípios racionais, cegou a

humanidade, que passou a não mais enxergar os verdadeiros valores; ao mesmo tempo,

por julgar possuir todas as verdades, promoveu posturas centradas apenas na

racionalidade, esquecendo-se de outras dimensões da existência. Em uma das Notas e

Esboços da Dialética do Esclarecimento, intitulada “Contra os que têm resposta para

tudo”, assinalam Adorno e Horkheimer contra os perigos da esclarecida inteligência,

que pode tornar-se estúpida:

Os inteligentes disseram que o fascismo era impossível no Ocidente. Os

inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros, porque são tão estúpidos. São os juízos bem informados e perspicazes, os prognósticos

baseados na estatística e na experiência, as declarações começando com

palavras: “Afinal de contas, disso eu entendo”, são os statements20

conclusivos e sólidos que são falsos. Hitler era contra o espírito e anti-

20 Declarações, enunciados

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humano. Mas há um espírito que é também anti-humano: sua marca é a

superioridade bem informada (1985, p.173).

Os autores questionam a transformação da inteligência esclarecida em estupidez

que se caracteriza como o avesso da dialética, ou seja, sua privação que, por sua vez,

gera a cristalização do pensar. A suposta inteligência não salvou a Alemanha do

nazismo; não protegeu a humanidade das inúmeras barbáries; não impediu as grandes

guerras; mas colocou o pensar a serviço da exploração. A inteligência humana é motivo

de análise do filósofo Nietzsche que a julga como uma criação meramente arrogante

(1978, p. 45):

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-

número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais

inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais

mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto.

Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais

inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula

e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão

fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto

humano dentro da natureza. Houve eternidades em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para

aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida

humana.

Trecho questionador de Nietzsche que favorece a reflexão sobre o sentido do

pensar humano. As análises de Adorno também colocam o sentido da inteligência em

questão, ao criticar a instrumentalização do pensamento que se tornou coisificado. O

filósofo frankfurtiano quer resgatar o potencial crítico do pensar para, com isso,

favorecer a emancipação humana. A racionalidade instrumental provocou a regressão da

consciência individual criativa, pois as forças pessoais são minadas pelo sistema social

opressor, conforme aponta Freitas (2003, p.18):

Sabemos que as jornadas de trabalho em um escritório, na fábrica, nas

escolas, nas oficinas, nas tarefas do lar etc., são sempre motivo de

esgotamento físico e emocional em vários graus. Para que possamos exercer

todas essas funções de forma adequada àquilo que o sistema espera de nós,

muito de nossos desejos deve ser postergado, adiado, ou seja, reprimido. Por

mais que se tenha um sentimento de realização pessoal através de dinheiro e

de status, a satisfação em ser si mesmo é constantemente minada. Aquilo de

que as pessoas carecem, devido ao cansaço gerado pelo trabalho no

capitalismo, é o reforço de sua própria identidade, a satisfação de ter um eu

engrandecido, forte, valorizado.

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A análise da crítica adorniana à indústria cultural permitiu compreender que esta

representa o prolongamento instaurado pela racionalidade instrumental com objetivos

de direcionar e manipular a experiência da realidade. A indústria cultural cria produtos

superficiais, descartáveis, os quais dificultam e interferem na construção de

pensamentos críticos. Os meios de comunicação passam a ser um dos seus principais

divulgadores disso, favorecendo o controle e a manutenção da ordem social. A

capacidade de experimentar o real torna-se limitada e direcionada gerando a atrofia da

imaginação e das potencialidades do pensar. A indústria cultural absorve aos poucos as

expressões dos anseios singulares, exercendo um controle rígido a partir dos seus

interesses.

Os produtos da indústria cultural se tornam anestésicos que preenchem o tempo

livre, gerando um falso alívio diante da rotina mecânica. Tais produtos são aceitos sem

resistência, pois não exigem nenhum tipo de esforço intelectual; o pensamento é

direcionado para os interesses específicos. Além disso, as ofertas da indústria cultural

jamais saciam plenamente; tudo se torna efêmero, pois novos produtos procuram

superar os anteriores. O desejo individual é desconsiderado, tornando-se irrelevante;

deve-se desejar o que a indústria cultural cria racionalmente. Assim, ocorre um

assenhoreamento da interioridade.

As pessoas são livres, aparentemente; não percebem, contudo, que algo está

traçando e direcionando suas ações. O espírito revolucionário é sufocado, não se

consegue lutar contra o cego destino imposto. Vale mais imitar os exemplos

apresentados pela indústria cultural do que se esforçar para construir a própria

identidade. A indústria cultural deseja domesticar os sentidos e o pensamento, criando

dificuldades para que as pessoas possam construir a própria existência. Sobre essa

questão, vale destacar o comentário de Freitas (2003, p.18):

O que essa atividade capitalista efetivamente quer é uma produção em série de bens culturais para satisfazer de forma ilusória necessidades geradas pela

estrutura de trabalho e também para manter a carência por novos produtos. O

que se estabelece é um grande sistema em que as pessoas são constantemente

enganadas em relação àquilo de que necessitam. Os produtos fornecidos

pelos meios de comunicação de massa passam a ideia de que as necessidades

que eles satisfazem são legítimas, próprias dos seres humanos como seres

livres, que podem exercer seu poder de escolha, quando, na verdade, todas as

opções são sempre pensadas a partir de um princípio que torna todas as

alternativas idênticas, pois todas acabam sendo meramente mais uma

oportunidade de exercer o poder de compra.

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Diante da conjuntura em que o pensamento reificado acabou por reificar a

cultura, tornou-se importante a compreensão das alternativas estéticas e formativas

presentes no pensamento de Adorno. As análises sobre uma nova forma de relação com

a linguagem através da prática ensaística, auxiliada pela perspectiva da dialética

negativa, favoreceram a percepção de outras possibilidades para se lidar com os

conceitos, que também sofrem os processos da reificação, justamente por serem frutos

de uma racionalidade instrumentalizada.

O ensaio viabiliza uma estética da escrita, permite uma forma diferente de se

lidar com a linguagem. É inegável a importância dos conceitos para a construção do

pensamento, pois, através deles, o pensar é objetivado. O ensaio se aproxima da arte

porque permite compor o texto a partir de arranjos experimentais, não sistematizados,

primando, principalmente, pela forma da expressão das ideias.

Adorno, no aforismo do livro Minima Moralia, intitulado Atrás do espelho,

chama a atenção para o processo da escrita, enfatiza a nitidez da expressão, destaca que

nenhuma correção é desnecessária, pois “em cem alterações, cada uma pode aparecer

isoladamente como tola e pedante; juntas podem constituir um novo nível do texto”

(1993, p.73). Acentua que as variações são importantes, as diferentes abordagens

indicam que o autor busca perceber o objeto, de diferentes perspectivas, para melhorar a

expressão:

Quem todavia, sob o pretexto de servir com abnegação a uma causa,

negligencia a pureza da expressão, está por isso mesmo traindo a própria

causa. Os textos bem elaborados são como teias de aranha: densos,

concêntricos, transparentes, bem estruturados e sólidos. Eles atraem para

dentro tudo o que voa e rasteja (IBID., p. 74-75)

O ensaio permite a liberdade do pensamento, não se prendendo à visão de

sistemas. No dizer de Tiburi, (2009, p.99), o poder ensaístico seria o “do pensamento

que se oferece em circunstâncias resumidas, como lampejos de ideias, torna-se

fragmento”. Isso indica o não fechamento a projetos filosóficos que buscam atingir a

totalidade do real, como se pudessem dominá-lo plenamente, mediante a força do

conceito.

O filósofo frankfurtiano demonstrou que, através da forma ensaística, resgata-se

o papel interpretativo do pensamento, superando ideias prontas e cristalizadas, com

sentidos permanentes, pois não se tem a preocupação de buscar definições ocultas, mas

analisar a realidade, que é plena de significado e intenções. O ensaio permite o exercício

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da arte de inventar, mediante a imaginação, que tensiona o momento intuitivo e

racional, dando margens para a ousadia do pensar, deixando o particular saltar da

realidade, na tentativa de penetrar sua multiplicidade.

Com a perspectiva da dialética negativa, busca-se acolher o não-conceital,

procura-se detectar os pontos cegos do objeto. Nesse sentido, são apresentadas

alternativas à coisificação do pensar, pela forma estética com a qual se lida com os

conceitos. Ela subverte a tradição que privilegiou o momento da síntese. Na concepção

adorniana, a síntese acaba deixando de lado elementos importantes. É necessário tratar,

de forma aberta, o objeto, pois o conceito não abarca plenamente o real, não capta as

particularidades, mas universaliza e aplaina as diferenças.

Adorno destaca que “a dialética é a consciência consequente da não-identidade.

Ela não assume antecipadamente um ponto de vista” (2009, p.13). Isso representa o

valor da análise que se faz do objeto, não tomando, como ponto hierárquico máximo do

conhecimento, a racionalidade, bem como as concepções de mundo já cristalizadas. A

dialética negativa fornece instrumentos para melhor interpretar o objeto, para não

encaixá-lo em esquemas totalizantes.

O conceito é forma de dominar a natureza, é momento de mediação com a

realidade. A filosofia se aproxima da realidade pelos conceitos, mas eles não devem ser

absolutizados, fechados em si, fetichizados. O conceito traz a compulsão de querer

abarcar tudo, como se fosse seu pecado original. Na dialética negativa, destaca-se a

necessidade de se desmitologizar o conceito, tirar seu poder que dogmatiza, para, assim,

romper com sua autarquia. O conceito tem sua importância, é imprescindível para o

conhecimento da realidade, ele permite pensar o objeto, não esgota, contudo, suas

qualidades. Vale destacar o comentário de Perius (2008, p.111):

Portanto, antes de o conhecimento ser a hegeliana dissolução da verdade do

objeto na certeza do sujeito, que culmina no saber absoluto, para Adorno, o

conhecimento é um “escutar” o objeto, um estar atento a potencialidade

interna do material para, no processo de interpretação, agrupá-lo, sem

violentá-lo, em constelações.

A dialética negativa prioriza uma prática interpretativa em que procura analisar o

objeto em constelações, ou seja, se serve de diferentes conceitos para a análise, com o

propósito de avaliar, de diversas perspectivas, o real. A constelação é uma espécie de

composição que ilumina, de diferentes maneiras, o objeto, para dispô-lo em uma

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ordenação mutável, não sistemática; isso, porém, não implica abrir mão da rigorosidade

expressiva, mas a busca por trabalhar a melhor forma de exposição das ideias.

A partir da compreensão das possibilidades para uma nova forma de discurso

conceitual, foi importante analisar a comunicação proveniente da linguagem artística. O

estudo da concepção adorniana de arte favoreceu a compreensão de que ela, através da

sua linguagem silenciosa, expressa aquilo que o discurso racional não consegue dizer.

Para Adorno, a arte tem o papel de criticar a razão e não suprimi-la. No dizer de Hebert

Marcuse, “a arte combate a reificação fazendo falar, cantar e talvez dançar a palavra

petrificada” (1986, p.79).

Adorno analisa a relação entre arte e sociedade e assinala que, diante da

realidade danificada, ela pode assumir uma postura de resistência e apresentar outra

verdade que desvela a ilusão na qual a realidade está inserida. Isso ocorre porque a arte

possui uma lógica própria, que questiona a lógica da razão. A arte, ao se firmar como

autônoma, demarca o seu limite e o seu espaço perante a sociedade; podendo, assim,

demonstrar todo seu potencial crítico. Os problemas sociais não resolvidos podem

aparecer nas obras de arte, que se tornam a antítese social da sociedade, isso porque

emerge da sociedade e, ao mesmo tempo, deseja transformá-la.

A arte, para Adorno, pode manifestar o sofrimento que a realidade esconde. A

supremacia da razão fez com que as pessoas reprimissem sentimentos, desejos e

anseios, realizando uma cisão no indivíduo através da imposição de padrões sobre sua

corporeidade. O frankfurtiano almeja resgatar o valor dos sentidos, quer fazer voltar o

pensamento ao corpo, salientando o valor da experiência estética, que pode favorecer o

equilíbrio entre racionalidade e corporeidade. Isso faz rememorar a natureza no sujeito

que a racionalidade reprimiu.

Adorno apresenta que o momento não racional dentro de uma obra de arte é

chamado de mímesis, o qual pode ser caracterizado como o contraponto da razão. Toda

arte é construída através de uma técnica que segue critérios racionais; a mímesis

constitui, na arte, a sua dimensão não racional; seria seus elementos inerentes não

racionalizáveis. A experiência da mímesis é importante, pois favorece resgatar um

relacionamento com a natureza que não esteja pautado pelo domínio da racionalidade,

mas com caráter espontâneo, em que se pode ouvir a voz da natureza, superando as

opressões internas ou externas.

A arte se torna experiência filosófica por favorecer o exercício da admiração.

Cada obra de arte se apresenta como um enigma, com uma pluralidade de verdades que

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suscitam a reflexão. Isso motiva a busca pelos diferentes sentidos que estão contidos na

arte, sentidos singulares que extrapolam as expectativas e padrões já impostos pela

racionalidade. Ampliam-se, dessa forma, as possibilidades de conhecimento sobre a

realidade. A experiência estética permite a abertura para o estranho, o diferente,

salvaguarda a alteridade, visto que a arte sabe lidar com as contradições; assim,

subverte-se o imperialismo dominador da razão. A estética torna-se experiência

formativa ao romper com o processo de racionalização, ao estimular e dinamizar o

pensamento para perceber a realidade, de diferentes perspectivas.

De modo mais específico, as propostas formativas de Adorno, em sintonia com

seus apontamentos estéticos, demonstram a possibilidade para a construção de uma

educação situada além da racionalidade instrumental, que valorize a autorreflexão, a

autonomia e a emancipação. Sua crítica se dirige ao processo que reificou o pensar

ofuscando as dimensões criativas e reflexivas do pensamento. A educação talvez possa

contribuir mais ao nos ensinar a lidar, de modo diferente, com a razão, priorizando uma

racionalidade expressiva, menos instrumental, mais dinâmica e criativa.

O esclarecimento não cumpriu suas promessas de humanização porque a razão,

especialmente, sob a o império da razão instrumental, levou o homem à regressão,

gerando a barbárie. A educação não deve se eximir dos compromissos éticos, mas

resgatar o potencial crítico do pensamento, que se perdeu por causa da exploração

econômica. É necessário superar a superficialidade do pensar que, obscurecido pelas

ideologias, gera situações desumanizantes. A reflexão pode contribuir para que

atrocidades não ocorram e, com isso, fortalecer a resistência contra as imposições cegas

do coletivo. Nesse sentido, “pensar é, já em si, antes de todo e qualquer conteúdo

particular, negar, é resistir ao que lhe é imposto” (ADORNO, 2009, p. 25).

Numa sociedade em que a técnica tem preponderância, os relacionamentos

humanos podem tornar-se frios e indiferentes. Esse passa a ser o espírito da civilização,

que, ao mesmo tempo, gera o processo anticivilizatório. A educação, enquanto

desbarbarização, questiona os rumos tomados pela humanidade que, ao avançar do

ponto de vista tecnológico, cultiva a agressividade e a destruição.

A racionalização embotada por esse processo de barbarização gerou o

empobrecimento da experiência; o privilégio dado às estruturas lógicas dificultou a

relação com a multiplicidade do real e enfraqueceu a força da narração e da memória. A

semiformação, fruto da instrumentalização da razão, contribuiu para o empobrecimento

da experiência. O tempo livre, que deveria ser utilizado como exercício criativo para

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recompor a experiência, passou a ser preenchido por um verniz formativo que modela a

consciência. A semiformação dificulta o desenvolvimento das potencialidades do

pensar, gerando uma relação cega com os produtos culturais. A realidade já não é

captada nas suas diferentes dimensões, pois o que marca as experiências são apenas

vivências e emoções de fácil assimilação.

Com o advento das novas tecnologias e mídias digitais, o processo de

racionalização, a propagação e transformação da indústria cultural, o empobrecimento

da formação cultural, a semiformação, atingem estágios mais elevados e preocupantes.

A educação estética se torna uma exigência atual diante da sociedade marcada pela

sensação e pelo efêmero.

A nova conjuntura bombardeia e excita os sentidos através da audiovisualidade,

por aquilo que é espetacular, chamativo que, por sua vez, obscurece a forma de

compreender o mundo. A sociedade que privilegia a sensação tem como característica

peculiar o provisório, ou seja, a inconstância e inquietude geral. A pressão das notícias

realiza um tiroteio midiático. Com isso, o aparato sensorial torna-se ultrassaturado

devido à força violenta com a qual as notícias são apresentadas; tudo com o propósito

de causar sensações. A propaganda se torna uma ferramenta indispensável para tal

sociedade. Ao seu redor, forma-se uma nova cultura comunicativa, não sendo apenas

um acessório, mas condição de existência.

O lema da sociedade da sensação é representado pela ideia de que “ser é ser

percebido”. Isso indica, por um lado, uma compulsão pelo emitir: as imagens veiculadas

tornam-se centrais em uma sociedade midiática; por isso, não emitir equivale à

experiência do vazio, é preciso estar ligado, conectado. Por outro lado, ser também é

perceber; quem não tem sensações deixa de existir. Para atingir a percepção saturada, os

estímulos precisam ser verdadeiros choques, com uma velocidade intensa, firmando-se

apenas aquilo que impressiona. Segundo Türcke (2004b, p.69), “a luta moderna em

relação à percepção desdobra-se em duas formas: o ser percebido e o perceber. Como

apenas aquilo que chama a atenção proporciona a si mesmo o direito à existência, então

se afirma apenas aquilo que impressiona”.

A sociedade da sensação estabelece um tipo de comportamento marcado pela

distração, pois a percepção já não sente a si própria, relaciona-se com as coisas com

reservas, não por inteiro, olhando, de soslaio, para a realidade, com medo de perder algo

impressionante. Isso influi no processo formativo, por isso, é necessário construir uma

educação estética que salvaguarde a tensão entre razão e sentidos, para que a

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experiência se torne duradoura, e não simplesmente vivências passageiras que

empobrecem a memória e o conhecimento histórico. A experiência estética permite uma

entrega verdadeira ao objeto para percebê-lo, de diferentes perspectivas, favorece lidar

melhor com as informações que chegam aos sentidos.

A experiência estética pode tornar-se formativa quando possibilita repensar a

monopolização da subjetividade; ao questionar o demasiado formalismo racional que

instrumentalizou o pensar; ao dinamizar razão e sensibilidade favorecendo o

reaprendizado do pensar crítico. Nesse sentido, educar a sensibilidade é caminho para se

reeducar a racionalidade. Dinamizar os sentidos representa ampliar as experiências de

conhecimento e reflexão sobre o mundo.

A estética permite lidar com o pensar de forma dinâmica, a prática ensaística em

conjunto com perspectiva da dialética negativa possibilitam liberdade e, ao mesmo

tempo, rigorosidade na expressão. Os conceitos, momento de objetivação do pensar, ao

serem elaborados, de forma estética, podem aproximar-se daquilo a que almejam dar

vida. É necessário, para isso, sensibilidade e vigilância, para não aderir, com facilidade,

ao que chega, com facilidade, à consciência.

As expressões artísticas despertam o pensar para além do enquadramento da

razão; captam o não-idêntico, despercebido pelo discurso abstrato; acolhem o diferente

que a racionalidade esclarecida procura eliminar. Os elementos estéticos se tornam

importantes para reeducar a sensibilidade domesticada pela razão, bem como as

percepções massificadas, para liberar os sentidos e aguçar a percepção sobre a realidade,

resgatando o imaginário, a criatividade, a espontaneidade: expressões de uma

subjetividade livre e emancipada.

A formação, pela via estética, facilita a construção de uma sensibilidade lúdica

ao incentivar a livre curiosidade, em que o momento da criação é mais importante que o

resultado final conseguido. Privilegia-se o equilíbrio entre o momento lógico e intuitivo

no processo de conhecimento, entre razão e sensibilidade. A estética busca o singular,

observa as particularidades, e, nesse processo, valoriza a criatividade e a imaginação,

desconsideradas pelo esclarecimento. A experiência estética torna-se pedagógica ao

favorecer o conhecimento de realidades não acessíveis pelo pensamento discursivo,

ampliando, assim, os limites impostos pela razão para melhorar a interpretação sobre o

real. Favorece uma nova relação com a linguagem e contribui para a construção de uma

postura vigilante acerca de tudo o que chega aos sentidos.

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Portanto, o pensamento de Adorno pode propiciar elementos facilitadores para o

processo formativo, especialmente a partir da proposta estética que procura

compreender, de forma dinâmica, razão e sentidos, percebendo o ser humano na sua

totalidade. Assim, sua filosofia pode contribuir para um tipo de concepção de educação,

a partir de pressupostos filosóficos que acenam para a formação, enquanto um processo

de emancipação da consciência.

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